Uma História da Cidade da Bahia

Cinco séculos de vida de um lugar, da formação de um povo, do processo construtivo de uma sociedade diversa estão aprese

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Table of contents :
Capa
Folha de Rosto
Créditos
Prefácio
1 Da Aldeia ao Engenho
O SAMBAQUI DAQUI
A PRAIA TUPINAMBÁ
COISAS & ESPÍRITOS
AMORES NA ALDEIA
INTERMEZZO: A ILHA BRASIL
PRESENÇAS EUROPÉIAS
DIOGO CARAMURU
A ALDEIA DA BAHIA
HISTÓRIA DE UM FRACASSO
O PODER LUSITANO
UM OUTRO JOGO
LUSOS & ÍNDIOS
A CIDADE E O RECÔNCAVO
A SANTIDADE DE JAGUARIPE
UMA SOCIEDADE MESTIÇA
2 O Século Barroco
NO MEIO DO REDEMOINHO
O RETORNO DOS FLAMENGOS
PAISAGEM DA RESTAURAÇÃO
CRISTÃOS NOVOS NA BAHIA
DESENHO DO ENGENHO
FIDALGOS CARAMURUS
DA VIOLA AO PATURI
CONTRA A ESCRAVIDÃO
O POVO BANTO
SAMBA, SEXO E PREGUIÇA
A PÉROLA IRREGULAR
O XADREZ E A SÁTIRA
PANORAMA FINISSECULAR
3 À Margem da Margem
FORA DE FOCO
O ESPAÇO URBANO
DAS LETRAS
UM POUCO DE MÚSICA
ALGUNS ESTILOS FEMININOS
O PODER DOS MERCADORES
A DEVASTAÇÃO AMBIENTAL
SOBRE SAVEIROS
ENSAIOS DE REBELDIA
A CONSPIRAÇÃO MULATA
SENTIDOS DA SEDIÇÃO
JEJES E NAGÔS
CAMINHO DA SOLIDÃO
4 Sangue, Suor e Cultura
UM BREVE OLHAR
PLANO GERAL
A GUERRA DA INDEPENDÊNCIA
A REVOLUÇÃO CONSERVADORA
A REBELIÃO MALÊ
A SABINADA
BACHARÉIS E MULATOS
A PESCA DA BALEIA
ARMAÇÕES, INCÊNDIOS E LUCROS
ESTALEIROS, PORTOS E MARES
ADEUS MAR OCEANO
PELAS ILHAS
ORIXÁS, CABOCLOS E FESTAS
ABOLIÇÃO – REPÚBLICA
LETRA E MÚSICA
TOQUE AFRICANO
NASCE UM POVO
AQUARELA DA BAHIA
5 Terra em Transe
UMA SOCIEDADE AGROMERCANTIL
SOCIALISMO NA BAHIA
A INVENÇÃO DA PRAIA
A REVOLUÇÃO DE 1930 NA BAHIA
REFORMISMO E TRADICIONALISMO
O COMUNISMO BAIANO
A CAMINHO DA FONTE NOVA
ATUALIZAÇÃO HISTÓRICA
AVANT-GARDE NA BAHIA
SOB O SIGNO DO SINCRETISMO
PÓLO PETROQUÍMICO
O “FIM” DO RECÔNCAVO
A FALÊNCIA DAS OPOSIÇÕES
O CARNAVAL
A ECONOMIA DO LAZER
METRÓPOLE E MEMÓRIA
Alguma Bibliografia
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Uma História da Cidade da Bahia

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Capa Folha de Rosto





RIO DE JANEIRO 2004

Créditos

Copyright © Antonio Risério - 2004 Este livro contou com o apoio cultural da Braskem S.A. Revisão José Carlos Sant’Anna Capa Folio Design Projeto g ráfico e editoração Folio Design Quarteto Editorial Produção g ráfica Marcos Paulo (Tatá) Ferreira Editoração para ebook Janaína Salgueiro Todos os direitos desta edição reservados à VERSAL EDITORES LTDA. Rua Jardim Botânico 674 sala 315 Centro Empresarial Jardim Botânico 22461-000 – Rio de Janeiro – RJ Tel/Fax (21) 2239 1778 / 2239 4023 www.versal.com.br

Prefácio À partida deste escrito, penso que não posso deixar de adiantar alguns esclarecimentos. Antes de mais nada, devo sublinhar que este trabalho não se destina aos que já sabem – e muito menos aos que julgam saber. Não. Este é um livro endereçado, sobretudo e principalmente, àqueles que desconhecem, mas desejam conhecer. Aos que buscam alguma coisa um pouco mais informativa sobre a formação da gente baiana e o processo construtivo de nossa sociedade. Não se trata, portanto, de objeto enviado a reduzido e erudito grêmio de especialistas. Mas, sim, à comunidade geral dos leitores. Mas não é só. Tenho a mais tranqüila compreensão de que Uma História da Cidade da Bahia é um produto esquemático, superficial, sujeito, talvez, a muitas correções. E dificilmente poderia ser outra coisa. De uma parte, em decorrência de minhas próprias deficiências mentais e, claro, de limitações de ordem mais propriamente intelectual. De outra, porque lido aqui, em espaço curto, com nada menos do que cinco séculos da vida de um povo e de um lugar. Cada século teve de ser comprimido em um capítulo, quando poderia se estender, sem esforço, por todo o volume. Assim, antes que com o esquadrinhamento de temas, o eventual leitor vai se deparar, obviamente, com uma visão ao mesmo tempo panorâmica e concisa de cada centúria da existência humana na Bahia de Todos os Santos, Salvador e seu Recôncavo. Mas a riqueza da nossa história é um fato. Tive, por isso mesmo, de ser sintético. E, o que é pior, seletivo. Drasticamente seletivo. É claro que tal disposição compulsoriamente seletiva gera muitos problemas. Selecionar e sintetizar fenômenos de um século não é algo que se possa fazer impunemente. Coisas importantes e interessantes têm que ser deixadas de lado. Com tristeza, algumas vezes. Mas não há saída. Além disso, é óbvio que não pude pairar acima de balizamentos concretos do momento histórico-político-cultural baiano em que vivo. Digo, então, que fiz o melhor que pude, em minhas circunstâncias objetivas de trabalho, na reconstrução ou tentativa de reconstrução de cada realidade secular. Procurei fixar e examinar dados e fatos fundamentais, centúria por centúria. Assim, o leitor terá à sua frente, quando nada, um elenco razoavelmente estruturado de informações, podendo aprofundar, posteriormente, temas que atraírem a sua atenção ou ferirem a sua sensibilidade. E aqui aflora o problema “clássico” da historiografia. Não me refiro apenas à questão geral da re-imaginação do passado, sempre situada no horizonte do provável,

já que não dispomos daquele “cronoscópio” – or time viewing – imaginado por Isaac Asimov em The Dead Past. De modo pedestre, lembro mais imediatamente que, profissional ou não, o historiador nunca faz um registro passivo dos processos que estuda. Trata-se, sempre, de um recorte no tecido do real (qualquer que seja o sentido último dessa palavra). De uma reconstrução do que foi vivido. Mas as escolhas implicadas nesse recorte, configurando um ponto de vista sobre a realidade, serão eternamente discutíveis. E outros recortes poderão ser feitos. Qualquer estudante de História sabe disso. É um lugar-comum, o beabá da historiografia, pisado e repisado nos mais diversos escritos que tratam desse ofício ou arte de reconfiguração do passado. No seu romance O Feitiço da Ilha do Pavão, aliás, João Ubaldo Ribeiro escreveu: “O curso da História é caprichoso e arisco, dependendo do olho de quem o observa, do pensar de quem o examina e dos vezos de quem o narra, fruto das humanas limitações de que ninguém escapa”. Como se não bastasse, Uma História da Cidade da Bahia é um texto que se move na encruzilhada da história e da antropologia. Risco ainda maior, pois, como disse com propriedade Clifford Geertz, em Nova Luz sobre a Antropologia, “todas as ciências humanas são promíscuas, inconstantes e mal definidas, mas a antropologia cultural abusa desse privilégio”. Daí que o título deste livro seja Uma História da Cidade da Bahia. Faço a mais absoluta questão desse artigo indefinido. O que há para ler, nas páginas seguintes, não é de modo algum a história de Salvador. Mas uma, entre outras possíveis. Para realizála, impus a mim mesmo uma rígida disciplina mental, assentada num tripé. Primeiro, tentar entender as coisas e os atores históricos do modo mais despreconcebido possível. Segundo, afastar da minha frente qualquer pretensão ou ânsia de originalidade, de modo que uma procura de ângulos inusitados não viesse para turvar as águas. Terceiro, caminhar, sempre e sistematicamente, com espírito dialógico – isto é, dar cada passo em diálogo sério, aberto e generoso com os demais pesquisadores e estudiosos da vida baiana. Se consegui, não sei. O resultado aí está, nas páginas que seguem, franqueado à curiosidade dos curiosos. Devo dizer ainda que este livro foi publicado antes, no ano 2000, em edição luxuosa e ricamente ilustrada, pela Secretaria de Cultura e Turismo do Governo do Estado da Bahia – e distribuído como brinde, em meio às comemorações pela passagem dos 450 anos da Cidade da Bahia. Naquela época, o secretário Paulo Gaudenzi, ex-colega de sala de Torquato Neto e ex-professor de história, bancou o projeto com entusiasmo. Mas a edição, evidentemente, não teve circulação pública. Agora, graças ao empenho do editor José Enrique Barreiro (que editou, com amor e rigor, o meu Adorável Comunista, ensaio histórico-antropológico sobre o comunismo baiano), o volume volta à luz. Mas é praticamente outro livro: revisto, ampliado, trazendo novos capítulos, escritos entre Santo Amaro do Ipitanga, São Paulo e Brasília. Não tem, é claro, o luxo nem a massa de informações visuais da primeira edição. Para

compensar, é mais completo – e acessível ao público. Antes que a narrativa comece, porém, tenho o prazer de poder fazer, aqui, alguns agradecimentos. Em primeiro lugar, dizendo que devo muito à conversa brilhante, consistente e ousada de Roberto Pinho, que me telefonava às vezes no meio da noite, de Recife ou de São Paulo, para saber do andamento do trabalho. Depois de ler a versão que seria estampada na edição comemorativa do aniversário da Cidade da Bahia, aliás, Roberto me convidou para comer uma moqueca no Recôncavo. Fomos: eu, ele e nossas mulheres, Taya e Cris. Bem, o almoço acabou se transformando num giro de cinco dias por cidades, vilas, feiras e engenhos da região, terminando na travessia da Ilha de Itaparica para Salvador, em pleno carnaval baiano. Não preciso dizer que foi um “almoço” inesquecível, com as moças tendo de comprar vestidos de chita no mercado de Cachoeira (não tínhamos saído para uma excursão – e muito menos para uma viagem) e a cerveja descendo suave entre os mariscos que deslumbravam o paladar de Gregório de Mattos, à luz do lagamar do Iguape. Ao mesmo tempo, não foram poucas as tristezas, diante das ruínas barrocas de um Recôncavo abandonado à sua solidão. Agradecimentos especiais devo também ao economista Luiz Chateaubriand Cavalcanti. Durante a feitura do livro, Chateaubriand esteve sempre por perto, ouvindo pacientemente minhas “falações”, dando palpites, fazendo perguntas, fornecendo números, emprestando textos, instigando. Vera Rollemberg, por sua vez, leu atentamente o texto, submetendo-o a um rigoroso, erudito e sensível escrutínio lingüístico, como amante e profunda conhecedora da língua portuguesa. Agradeço, também, a amigos e amigas que, de alguma forma, contribuíram para a existência deste livro. Pessoas que me emprestaram escritos, sugeriram coisas, contornaram obstáculos, formularam questões, pediram esclarecimentos, deram dados e/ou, sobretudo, animaram o meu ânimo. Eis: Armando Almeida, Bete Capinan, Claudius Portugal, Caetano Veloso, Fred Abreu, Fernando da Rocha Peres, Gustavo Falcón, Gisela Moreau, Geraldo Machado, Giovanni Soares, Jorge Alfredo, Jeferson Bacelar, José Cerqueira Filho, J. Guinsburg, João José Reis, Kátia Jordan, Myriam Fraga, Paulo César de Souza, Renato Pinheiro, Renato da Silveira – e, ainda, Taya Soledade Risério, minha mulher. Por fim, quero dizer que encarei a realização desta Uma História da Cidade da Bahia como uma homenagem à memória de meu pai, Antonio Risério Leite (“um homem de bem – e não um homem de bens”, como o definiu o escritor Mário Cabral), advogado, jornalista, membro do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia, que, com o seu desdém por especulações metafísicas, me conduziu, ainda no limiar da adolescência, aos campos da sociologia, da ciência política, da economia e da história. Além disso, um gesto seu foi fundamental para a definição de minha fisionomia ou personalidade intelectual. Eu tinha sido preso como subversivo, aos 16 anos de idade,

pela ditadura militar. E ao me fazer uma visita vespertina, na cadeia da Marinha, na Cidade Baixa, em Salvador, levando-me de presente um exemplar do Grande Sertão: Veredas, ele disse: “Você pode estudar as correntes de pensamento que bem entender. Mas, se você quer mesmo entender o Brasil, vai ter que ler e reler Euclydes da Cunha, Gilberto Freyre e Guimarães Rosa”. Ainda hoje, agradeço o conselho. Santo Amaro do Ipitanga – Brasília, Antonio Risério.

1

Da Aldeia ao Engenho O século XVI deve ser visto por nós como um período ao mesmo tempo inaugural e experimental. Ninguém sabia ao certo no que tudo aquilo poderia dar. Mas o fato é que, da obra do Governo Geral à expansão da agroindústria açucareira, implantou-se o projeto lusitano para os nossos trópicos. Não exatamente dentro das balizas ou dos trilhos planejados pelos portugueses, é claro. Eles pensaram em termos de transplantação cultural, de reprodução imediata do modelo metropolitano, sonhando uma Nova Lisboa em nossas terras. Mas a mestiçagem genética e o sincretismo cultural, que já vinham da aldeia eurotupinambá de Diogo Caramuru, se encarregaram de tecer uma outra realidade, original, na Bahia de Todos os Santos e seu Recôncavo. Assim teve início o processo histórico-cultural que fez, de nós, o que somos.

O SAMBAQUI DAQUI A Bahia de Todos os Santos é o nosso mar interior. Nosso mediterrâneo, com a sua cidade nascida no cimo do alto monte, de olhos postos nesse mesmo mar. Já em sua Crônica da Companhia de Jesus do Estado do Brasil, o jesuíta Simão de Vasconcellos escrevia: “A Bahia de Todos os Santos, se houvéramos de descrever aqui suas grandezas, largura e circunferência de suas águas, de suas ilhas, de seus recôncavos, e dos muitos rios caudalosos que descem a pagar-lhe tributo, fora cousa mui larga. Baste dizer, que esta só parte do Brasil, com seus arredores, é capaz de um Reino”. São 1000 km2 de águas claras e cálidas, trezentos quilômetros de costa. “Imenso seio do mar”, no dizer do velho Theodoro Sampaio, na História da Fundação da Cidade do Salvador. Seio marinho semeado de ilhas, ilhotas, ilhetas, com os seus rios e as suas ribeiras, os seus manguezais, as suas praias, as suas enseadas e os seus promontórios, as suas campinas de beira-mar. Infelizmente, não temos mais como ter uma história ameríndia da região. Mas as poucas

informações de que dispomos nos indicam que grupos indígenas que aqui viveram, neste ou naquele período, vieram atraídos pelo litoral, pela baía imensa – e que, à exceção dos tupinaés, foram íntimos de suas praias, de seus rios, de seu rosário de ilhas irregulares. Em seu livro Arqueologia Brasileira, André Prous escreveu: “Até o início de nossa Era, os habitantes do litoral mantiveram sua profunda originalidade, mesmo quando absorviam novos elementos tecnológicos, talvez procedentes do planalto, como a cerâmica. Suas culturas desapareceram somente sob os golpes da cultura panbrasileira dos tupiguaranis, oriundos das terras do interior. Apesar de se esforçarem para manter seus traços culturais tradicionais, estes tiveram, por sua vez, de aprender a explorar o meio marítimo, reproduzindo assim algumas características de seus antecessores, cuja lembrança não mais existia quando chegaram os primeiros portugueses”. Prous está falando, no caso, das culturas litorais arcaicas do centro-sul do Brasil. Mas as suas observações valem, também, para a faixa costeira atualmente baiana. Os processos de ocupação humana e de colonização da Bahia de Todos os Santos não tiveram início com a invasão lusitana, nem com a invasão que mais imediatamente a precedeu, promovida por grupos tupis. Na verdade, quando os guerreiros tupinambás invadiram a região, dali expulsando violentamente os seus moradores, ela já era habitada há tempos e tempos. Há mais de dois milênios. E não nos faltam testemunhos culturais deixados por esses agrupamentos humanos mais antigos, que se assentaram nas vizinhanças dos rios e nas praias daquele território. Sambaquis e urnas funerárias, por exemplo. A produção de cerâmica nesta região, como a arqueologia nos ensina, é bem anterior à chegada, ali, tanto de portugueses quanto de tupinambás. Os arqueólogos falam, a propósito, da criação ceramista de grupos ameríndios englobados, tecnicamente, sob a denominação geral de “aratu”, em decorrência do fato deles terem sido identificados, pela primeira vez, graças ao pesquisador Valentín Calderón, nas cercanias do Riacho Guipe, na Baía de Aratu. Esta cerâmica aratu, produzida, pelo menos, a partir do século IX, foi encontrada depois em outros pontos do Estado da Bahia (no Litoral Norte e no Oeste) e do Nordeste (Sergipe, Pernambuco, Piauí). Com base na semelhança do material utilizado para a sua confecção, na extensão territorial em que foi achada e no fato dos sítios arqueológicos pertencerem a uma faixa cronológica contínua, Calderón pôde então defender a tese da existência de uma tradição ceramista específica – a Tradição Aratu. No Guipe, hoje praticamente dentro da Cidade da Bahia, Calderón encontrou, entre outras coisas, urnas funerárias em forma de pera – ou, como ele mesmo diz, em A Fase Aratu no Recôncavo e Litoral Norte do Estado da Bahia, “grandes igaçabas periformes para enterramentos”. Não são estes, contudo, os dados mais antigos. A arqueologia dos litorais brasileiros tem, nos sambaquis, os seus sítios mais célebres. Sambaquis, como se sabe, são colinas de conchas de moluscos, restos e sobras alimentares, depositados, num mesmo lugar, por antigos povos mariscadores, que viviam em nossa atual fachada atlântica. Mas a verdade é que só conhecemos sambaquis mais recentes. O nível do mar subiu (e não foi pouco, de acordo com os cientistas) nos últimos quinze mil anos, de modo que os sambaquis mais antigos se encontram, hoje, sob as águas. Sambaquis submersos. Monumentos subaquáticos de remotos mundos ameríndios, que também naufragaram. Restam-nos somente, portanto, os sambaquis mais recentes. Os que têm de oito a seis

mil anos. O sambaqui da Pedra Oca, localizado em Periperi, subúrbio da Cidade da Bahia, foi examinado por Valentín Calderón, num estudo intitulado, exatamente, O Sambaqui da Pedra Oca. As datações de carbono 14, obtidas para este sítio arqueológico baiano, nos remetem para cerca de 2800 anos AP (antes-do-presente). Mas havia muitos outros sambaquis na região. O próprio Calderón se refere aos sambaquis da Ilha do Casqueiro, da Ponta do Sobrado e de Porto Santo (Itaparica). Ao chegar à atual Bahia de Todos os Santos e seu Recôncavo, no século XVI, os portugueses logo notaram a existência daqueles altos monturos litorâneos e fluviais de cascas de ostras e outros mariscos. De imediato, aliás, deram-lhes finalidade prática. Em seu Tratado Descritivo do Brasil em 1587, o senhor de engenho e bandeirante Gabriel Soares de Sousa, primeiro morador do Solar do Unhão, fala mesmo de uma Ilha da Ostra, localizada no Rio Paraguaçu, nas imediações do lagamar do Iguape (denominação redundante, por sinal, já que iguape, em tupi, significa, precisamente, ‘lagamar ’): “...outra ilha, que chamam da Ostra; de onde se tem tirado tanta quantidade que se fizeram de ostras mais de dez mil moios de cal e vai-se cada dia tirando tanta que faz espanto”. Uma verdadeira montanha de cal. O lixo ameríndio se convertia, assim, em material para a engenharia lusitana. “Como curiosidade histórica, podemos mencionar que os sambaquis se confundem com a própria construção das cidades coloniais. Efetivamente, os carbonatos de cálcio das conchas serviram, depois de queimados, para a fabricação de cal, que foi utilizada para as construções dos primeiros momentos de instalação portuguesa”, lembra Carlos Etchevarne, no estudo A Ocupação Humana do Nordeste Brasileiro Antes da Colonização Portuguesa. De fato, aquelas primeiras construções lusitanas, de natureza mais sólida, recorriam a coisas do mar. Traziam óleo de baleia na argamassa e cal de mariscos a recobri-las. O jesuíta Fernão Cardim, em Tratados da Terra e Gente do Brasil, refere-se aos sambaquis, “serras de cascas”, e à produção de cal a partir dessas ostreiras indígenas: “Os índios naturais antigamente vinham ao mar e às ostras, e tomavam tantas que deixavam serras de cascas, e os miolos levavam de moquém para comerem entre ano; sobre estas serras pelo discurso do tempo se fizeram grandes arvoredos muito espessos e altos, e os portugueses descobriram algumas, e cada dia se vão achando outras de novo, e destas cascas fazem cal, e de um só monte se fez parte do Colégio da Bahia, os paços do Governador, e outros muitos edifícios, e ainda não é esgotado: a cal é muito alva, boa para guarnecer e caiar... tão boa como a de pedra da Espanha”. A longa trajetória do sambaqui da Pedra Oca, no tempo, faz com que aquela colina de resíduos e detritos possa ser tomada como um modelo reduzido, uma expressão sintética, da história cultural da Bahia de Todos os Santos e seu Recôncavo. Com o olhar da antropologia histórica (ou da história antropológica), podemos acompanhar com nitidez a sua formação, as suas mudanças temporais, as modificações na composição de seus estratos e as suas transfigurações semióticas. Resumidamente, teríamos o desenho seguinte. Há cerca de três mil anos, numa praia baiana hoje extinta, estabeleceram-se os primeiros habitantes da atual Pedra Oca, em Periperi. Acampados no areal, de frente para o mar, aqueles índios

oleiros e mariscadores, comedores de moluscos, foram acumulando restos alimentares e detritos objetais num mesmo ponto. E assim se foi formando o sambaqui. Nos seus estratos mais antigos, há cinzas e conchas de moluscos. Logo em seguida, cacos de cerâmica. Muito mais tarde, chegaram ali índios tupis e, quase de imediato, gente da Europa. Inicia-se a época do contato luso-indígena. E o sambaqui sinaliza, em seus estratos mais recentes, a realidade das trocas interculturais. Misturam-se, então, no terreno escavado, artefatos tipicamente indígenas e artefatos claramente europeus. As contas de colares feitas de vértebras de peixe, as pedras com entalhes artificiais, as pontas de osso e a cerâmica ameríndia mesclam-se com cerâmica azul e branca européia e alguns objetos de ferro. Tupinambás e portugueses já se encontram, já se atritam e já se entrelaçam no espaço da Bahia de Todos os Santos. Calderón comenta: “A promiscuidade de traços indígenas e coloniais [europeus] encontrados sugere um grupo humano [indígena] em estado de aculturação, ou pelo menos em freqüentes contatos com os colonizadores [portugueses] que proporcionaram, por comércio, possivelmente, artefatos de fabricação alienígena”. E sugere: “Poderia situar-se esta fase de ocupação [da área da Pedra Oca] dentro do século XVI, concluída drasticamente por Duarte da Costa, quando tirou das terras próximas à capital todos os índios”. Mas o tempo não pára. Novas plantas e novas gentes continuam chegando em nossos trópicos, na mutação paisagístico-antropológica da Terra do Brasil. Vêm os coqueiros, trazidos do arquipélago de Cabo Verde. Vêm os africanos, originários dos mais diversos cantos e recantos do assim chamado “continente negro”. A paisagem física e humana da Bahia de Todos os Santos vai ganhando outras cores e uma outra personalidade, aprofundando ao extremo o seu caráter mestiço e sincrético. No tempo da pesquisa arqueológica de Valentín Calderón, coqueiros haviam crescido sobre o sambaqui litorâneo, agora situado no interior de uma chácara suburbana, com um vigilante contratado para afastar dali incorrigíveis ladrões de cocos. E mais: o monumento pré-histórico experimentara uma curiosa e fascinante migração cultural, simbólica, vindo de um horizonte indígena milenar para se plantar no universo negromestiço da Bahia, vinculando-se ao espaço sagrado das águas, ao culto de uma divindade aquática, Iemanjá, a deusa do mar. Quem informa é o próprio Calderón. “Deve seu nome [Pedra Oca] ao lugar onde está encravado, por causa de um grupo de grandes fragmentos de arenito que existem, no mar, a pouca distância do sambaqui, lugar de culto à Mãe d’Água e onde, durante as escavações, os habitantes dos arredores depositaram flores, pratos com comidas e velas. Parece-nos que o culto se estende, também, ao sambaqui, talvez por sua proximidade, pois várias velas foram depositadas sobre os estratos de arenito, junto aos depósitos secundários, ao alcance das marés”. Persistência difusa, em nossa memória, de uma presença ancestral, cruzando contatos e/ou trocas genéticos e simbólicos entre índios e negros, agora ressemantizada em termos neoafricanos, brasileiros? Não sei. Em todo caso, aí está: o axé do sambaqui. Mas não vamos apressar o passo, nem estreitar a trilha. Retornemos ao pouco que é possível contar da história indígena baiana, da vida dos índios na Bahia.

A PRAIA TUPINAMBÁ Kirymuré. Paraguaçu. Eram esses os nomes que os nossos antepassados tupinambás davam, respectivamente, ao sítio onde viria a ser construída a Cidade do Salvador e à região que, às primeiras luzes do século XVI, receberia a denominação de Bahia de Todos os Santos. Mas a verdade é que conhecemos muito pouco (e muito mal) a história desses índios, chamados “brasis” nos textos antigos. A razão da ignorância é simples. De uma parte, os brasis não produziram sistemas escriturais próprios, nem incorporaram, a seus saberes, a tecnologia européia da escrita. Além disso, seus filhos mestiços que conseguiram se alfabetizar não se dedicaram ao cultivo das criações culturais da parte ameríndia de seus antepassados. Resultado: não temos uma documentação indígena (nem “mameluca”) acerca de sua própria vida, ou sobre o encontro e as relações daquelas aldeias com os navegantes e conquistadores que vinham da Europa. De outra parte, os escritores europeus que aqui estiveram, ao longo do século XVI, estavam muito mais preocupados em retratar condutas e crenças indígenas do que em recontar os seus processos históricos. Talvez até achassem que índios não tinham história. Mas o fato é que eles tinham. Antes que os portugueses invadissem Kirymuré-Paraguaçu, este segmento da fachada atlântica dos trópicos brasílicos fora cenário ensolarado de outras ondas invasoras. Quando os primeiros portugueses, franceses e espanhóis chegaram aqui, o litoral da Bahia era habitado, da foz do Rio de São Francisco até à altura da atual cidade de Ilhéus, pelos índios tupinambás, do grupo tupi. Não se sabe precisamente em que época eles invadiram e dominaram a região, mas o certo é que não constituíam uma população autóctone. Até onde sabemos, as terras hoje baianas conheceram, antes da conquista lusitana, a dominação dos “tapuias”, a expulsão dos tapuias pelos tupinaés e, finalmente, a derrota e a fuga dos tupinaés, diante do avanço irresistível da máquina de guerra dos tupinambás. Bem vistas as coisas, a dominação da Bahia pelos tupinambás fez parte de um poderoso processo expansionista. Integra a história da conquista tupi de quase toda a zona costeira do que hoje é o Brasil. Uma conquista violenta, sanguinária, feita de batalhas tão constantes quanto encarniçadas. Ao falar de “tapuias”, não queremos, na verdade, dizer muita coisa. “Tapuia” era uma designação geral para diversos grupos indígenas que não falavam o tupi. Ou, ainda, era como os tupis chamavam os seus “bárbaros”. Os europeus simplesmente adotaram a classificação indígena. E é assim que, não muitos anos depois da construção da Cidade da Bahia, o jesuíta Aspilcueta Navarro vai encontrar “tapuias” pelas bandas do sertão, andando pelos matos “como manadas de veados, nus, com os cabelos compridos como mulheres” e sempre levando consigo as suas flechas envenenadas. Seu reinado baiano, cuja origem se desconhece, foi destruído pelos tupinaés. Estes, por sua vez, foram expulsos de Kirymuré/Paraguaçu pelas implacáveis clavas dos tupinambás. Tapuias, tupinaés e tupinambás, em suas novas posições, guerreavam sem trégua entre si. Eram três exércitos indígenas em confronto armado, com os seus guerreiros coloridos, as suas flechas de fogo, as suas canoas velozes, os seus cantos de guerra, os seus inúmeros banquetes canibais. Tupinaés e tupinambás eram, ambos, agrupamentos tupis. Matavam-se uns aos outros porque não

faziam parte de nenhuma coligação. Ao contrário do que se ensina na escola, jamais existiu uma “nação tupi”. Mesmo a noção de “tribo”, enquanto totalidade etnocultural abrangente, não encontra equivalência factual no que até hoje se conhece da história indígena do Brasil. Assim, tupinaés e tupinambás se engalfinharam com violência na Bahia, numa guerra que teve como desfecho a vitória dos últimos. Em seguida, os próprios tupinambás se dividiram, com as aldeias da futura Salvador lutando contra as aldeias de Itaparica. Logo, quando falamos de um controle tupi de boa parte da orla marítima da Terra do Brasil (ou da “Índia Brasílica”, como Anchieta gostava de dizer), tal “controle” deve ser visto de uma perspectiva relativizadora: um índio tupi não vivia numa nação, mas numa aldeia. Uma aldeia era, de fato, uma unidade social distinta, economicamente auto-suficiente, com a sua vida integrada e os seus contornos bem definidos. Era o espaço delimitado pelo aglomerado das malocas e pelas práticas da existência cotidiana. Envolvia a roça, as zonas de caça e pesca, as reservas vegetais, os caminhos de terra e de água. Os índios escolhiam um pedaço de mundo onde viver – geralmente, segundo Gabriel Soares de Sousa, em seu Tratado Descritivo do Brasil, “um sítio alto e desabafado dos ventos, para que lhe lave as casas, e que tenha a água muito perto, e que a terra tenha disposição para de redor da aldeia fazerem suas roças e granjearias” –, e aí erguiam as suas casas amplas, chamadas “malocas”. Regra geral, uma aldeia tupinambá era composta por um conjunto que ia de 4 a 8 malocas. Um reduzido número de grandes casas vegetais, feitas inteiramente de madeira e folha, muitas vezes medindo mais de 100 metros de comprimento, 10 metros de largura e aí por volta de uns 10 metros de altura. Em apenas uma delas, podiam se abrigar 200, 600 ou mais indivíduos. Pode-se falar, a seu respeito, de uma arquitetura efêmera, feita para resistir apenas por uns poucos anos, até que a comunidade, por esse ou por aquele motivo, resolvesse (ou precisasse) se pôr novamente em movimento. “Após cinco ou seis anos, pois não costumam ficar mais tempo no mesmo lugar, [os índios] destróem e queimam a aldeia e vão edificar outra mais adiante, a uma distância de meia légua pouco mais ou menos, dando-lhe, entretanto, o mesmo nome da precedente”, informa o capuchinho Claude d’Abbeville, em sua História da Missão dos Padres Capuchinhos na Ilha do Maranhão e Terras Circunvizinhas. Ao inquirir sobre os motivos dessas mudanças periódicas, Abbeville recolheu duas respostas indígenas. A primeira, de extração simbólica: era assim que os antepassados agiam; a segunda, de feitio técnico: as plantas cultivadas nas roças se compraziam em terrenos novos e assim produziam mais. Uma coisa, no entanto, permanecia, atravessando o ciclo das mudanças. Era o nome da aldeia. O capuchinho registrou vários deles, por sinal: Itapari (‘camboa do peixe’), Itaendaba (‘largo de pedra’), Araçaritiba (‘pouso do tucano’), Juniparã (‘jenipapo verde’), Guarapiranga (‘guará vermelho’), Icatu (‘água boa’), Caaguira (‘sombra das árvores’), Aruípe (‘rio dos sapos’), Abatininga (‘cabelos secos’), Igaraupaba (‘porto das canoas’), etc. Mas, para além da imediata beleza dessa toponímia aldeã, devemos assinalar que a permanência do signo, frente à impermanência do sítio, é em si mesma reveladora. Mostra que cada aldeia via a si mesma como uma comunidade particular, ciosa do seu caráter e de sua autonomia. Ao carregar o seu nome de um lugar para outro, ela sublinhava a sua identidade. Além de efêmera, essa arquitetura indígena se expressava em edificações ecológicas, fosse pelos

materiais usados em suas construções, fosse pela adequação climática, fosse pela inserção ambiental. Eram materiais e técnicas extremamente eficazes na proteção contra as chuvas e variações de temperatura, desempenhando também a função de amenizar o calor – como se os seus moradores, em momentos de sol, pudessem se achar quase que à sombra de uma palmeira imensa. Para isso, muito contribuía o seu design – casas altas, “arredondadas em cima como a abóbada duma adega e cobertas espessamente com folhas de palmeiras”, na descrição de Hans Staden (Duas Viagens ao Brasil). Conforto não faltaria também para o sono-sonho na “ini” de algodão, a rede tupinambá que se erguia alta sobre um pequeno fogo, aceso e entretido para o aquecimento de quem ali repousava. Na boa frase do jesuíta Fernão Cardim, aliás, o fogo era a roupa do índio. Vistas de fora, essas malocas sugeririam, de forma ampliada, a textura de um lombo de capivara, ouroparda palha de palmeira, tingida pelo sol. O espaço interno, por sua vez, era inteiramente aberto, livre. Não comportava separações físicas, fossem trançados, cipós ou outra espécie qualquer de divisória. Se alguém olhava por uma porta ou por uma fresta, tinha o domínio visual completo de seu interior. Cada família possuía o seu canto na maloca, o seu segmento exclusivo (mas à vista de todos), ao qual os antigos cronistas chamavam “lanço” ou “rancho”. Era no “lanço” que ocupava que ela amarrava alto as suas redes, acendia os seus fogos noturnos, guardava as suas coisas. Se a maloca contava com 60 “lanços”, por exemplo, eles se dispunham aos pares, um frente ao outro, ao longo dos dois lados da habitação, deixando um corredor central para a circulação de todos. Marido e mulher dormiam nus na mesma rede, à exceção dos índios que tinham o privilégio da poligamia – estes dormiam sós, freqüentando variavelmente as redes das esposas, conforme o desejo da noite. No âmbito de sua vida interna, cada maloca era uma communitas, regida pela figura da solidariedade. Possuía sempre um morubixaba, um chefe, base da estrutura do poder político na sociedade tupinambá. Este morubixaba assumia, entre outras coisas, o papel de guardião da tradição, fazendo discursos noturnos acerca dos padrões de conduta dos índios. E seu discurso se endereçava quase sempre a uma comunidade entrelaçada por nexos de parentesco e de amizade. Basicamente, a solidariedade maloqueira se manifestava no terreno afetivo, na postura diante dos bens materiais e nas atividades bélicas. Enfim, o que se via ali era o produto, numa determinada cultura, da relação íntima e intensa de um grupo de pessoas partilhando a vida numa enorme casa sem cômodos. É claro que, sem solidariedade e harmonia, qualquer maloca pegaria fogo – e é espantoso que dezenas de indivíduos pudessem conviver tão amistosamente sob uma mesma cobertura de palha. Mas também não devemos idealizar. Existiam tensões, disputas e desejos de privacidade, como sabem os estudiosos do assunto. Não há cotidiano que não traga, para além das suas alegrias, alguma nuvem mais pesada, opressiva. E mesmo relâmpagos. Embora possuísse vida própria, a maloca não existia sozinha. Erguia-se do solo ao lado de outras malocas, compondo então a malha da aldeia. À interdependência dos membros de uma mesma maloca, acrescentava-se a interdependência das malocas entre si. Fisicamente, elas se dispunham no terreno de modo a desenhar um espaço central de convívio, uma praça onde os índios realizavam suas festas e seus ritos. E se a aldeia se situava em perigosa zona de fronteira, ela se guardava atrás de uma cerca dupla, chamada “caiçara”, onde não raro se achavam espetadas cabeças de inimigos

devorados em farras antropofágicas. Mas é bom lembrar também que, embora ajustada no sistema da aldeia, as malocas podiam entreter relações extragrupais. Isto é, a maloca de uma aldeia poderia estar vinculada à maloca de outra, por laços de parentesco ou de amizade. Nesse caso, a vinculação costumava envolver tratos de auxílio mútuo. Formas semelhantes de relacionamento e cooperação se desenvolviam igualmente entre aldeias. Tais nexos se tornavam especialmente manifestos em ocasiões festivas, em sacrifícios rituais e nas operações de guerra. Mas não se pense que um conjunto de aldeias formava uma “tribo”. Ao contrário, as evidências condenam essa noção ao reino das falácias classificatórias. “Sobre a articulação dos grupos locais em unidades mais amplas, designadas como ‘tribos’ pelos autores quinhentistas e seiscentistas, nada consegui obter de significativo”, declarava já o sociólogo Florestan Fernandes, ao cabo de minucioso esquadrinhamento, que desembocou no livro A Organização Social dos Tupinambás. Assim, antes de afirmar que aldeias tupis, reunidas para a guerra sob o comando de grandes morubixabas como Cunhambebe, estavam engastadas no conjunto maior de uma “tribo”, será mais correto encarar a frente guerreira como uma espécie de sistema instável de grupos conectados numa rede de alianças táticas e/ou estratégicas. Em Fragmentos de História e Cultura Tupinamba (texto incluído no volume História dos Índios no Brasil, organizado por Manuela Carneiro da Cunha), Carlos Fausto soube situar bem a questão. “Várias aldeias, possivelmente ligadas por laços de consangüinidade e aliança, mantinham relações pacíficas entre si, participando de rituais comuns, reunindo-se para expedições guerreiras de grande porte, auxiliando-se na defesa do território. Esse conjunto informe de grupos locais circunvizinhos, porém, não estava sujeito a uma autoridade comum, nem possuía fronteiras rígidas: era fruto de um processo histórico em andamento, onde se definiam e redefiniam as alianças”, escreve o antropólogo. E prossegue: “A inimizade recíproca distinguia grupos de aldeias aliadas, que operavam segundo uma estrutura de tipo ‘rede’: as aldeias, unidas uma a uma, formavam um ‘conjunto multicomunitário’, capaz de se expandir e se contrair conforme os jogos da aliança e da guerra. Os limites dessas ‘unidades’ não são palpáveis, nem definitivos: um dia poder-se-ia estar de um lado, no dia seguinte do outro”. Diante dessa realidade movediça, Fausto fala então de “labilidade das fronteiras da amizade e da inimizade” e admite que uma rede de grupos locais aliados não configurava um complexo sistêmico estável. Isto é, não formava exatamente uma “totalidade social discreta”, ou o que se pudesse definir, em termos rigorosos, como uma “tribo”. A idéia de um “conjunto multicomunitário” em ação, que Fausto foi colher em Hélène Clastres, parece corresponder mais adequadamente à realidade dos fatos. Podemos checar essa correspondência factual, de resto, em diversos relatos quinhentistas, como os de Hans Staden e Gabriel Soares de Sousa. Lá estão, com a clareza possível, o “conjunto multicomunitário” e a “labilidade das fronteiras” da aliança e da hostilidade. Já nos referimos à guerra entre tupinaés e tupinambás pelo controle de Kirymuré-Paraguaçu. Eram grupos tupis. Mas, antes que uma “tribo”, o vocábulo “tupi” define um campo lingüístico. Tupinaés e tupinambás não eram peças de uma mesma engrenagem. Não estavam submetidos a uma autoridade superior. Do mesmo modo, tupinambás de Kirymuré e tupinambás de Itaparica lutaram

livremente entre si, por conta do rapto de uma cunhã, uma Helena canibal – e isto apesar da comunhão idiomática e da identidade de costumes e de valores. “Entre os tupinambás moradores da banda da cidade armaram desavenças uns com os outros sobre uma moça que um tomou a seu pai por força, sem lha querer tornar; com a qual desavença se apartou toda a parentela do pai da moça, que eram índios principais [morubixabas], com a gente de suas aldeias, e passaram-se à ilha de Itaparica, que está no meio da Bahia, com os quais se lançou outra muita gente, e incorporaram-se com os vizinhos do rio Paraguaçu, e fizeram guerra aos da cidade, a cujo limite chamavam Caramurê [Kirymuré]; e salteavam-se uns aos outros cada dia, e ainda hoje em dia há memória de uma ilheta, que se chama a do Medo, por se esconderem detrás dela; onde faziam ciladas uns aos outros com canoas, em que se matavam cada dia muitos deles”, reconta Gabriel Soares. Fragmentou-se então ali, naquele áspero confronto baiano, a “gigantesca máquina de guerra Tupinambá” (Viveiros de Castro). Houve uma cisão da população indígena. O descosturamento ou a desarticulação abrupta de um conjunto de aldeias e o rearranjo das forças disponíveis em dois novos conjuntos, cada qual apontando para o outro as suas flechas certeiras. Como se pode ver, amigos e inimigos eram, na opera aperta do expansionismo tupi, entidades essencialmente ocasionais. O que contava, mesmo, era a aldeia. A aldeia e a sua trama de alianças mutáveis.

COISAS & ESPÍRITOS Guerra. Ainda à entrada do século XVI, as sociedades européias possuíam um forte componente bélico, na tradição da primeira época medieval. Não me refiro a meras mostras de agressividade, mas a um culto, socialmente estabelecido e culturalmente inquestionado, de valores guerreiros. A aristocracia cultivava uma idéia de honra fundada na virtude militar. E o povo fazia coro com a nobreza. Os Lusíadas são um canto da aristocracia guerreira e da ideologia oficial do expansionismo português. Do mesmo modo, embora em base diversa e com sentido distinto, os índios brasileiros, quando os belicosos portugueses aqui desembarcaram, empenhavam-se na multiplicação de escaramuças, assaltos e emboscadas. Em seu Diário, Pero Lopes de Sousa observava: “a cada duas léguas têm guerra uns com os outros”. Tacapes vibravam na pele tensa do ar e flechas cruzavam sem cessar o céu dos trópicos, ao som de cantos e gritos de guerreiros emplumados. Enfim, nossos antepassados indígenas sugeriam sinônimos perfeitos da violência belígera. Será extremamente difícil encontrar qualquer anotação ou comentário sobre a vida social no Brasil quinhentista que, referindo-se aos índios, não mencione a sua nudez, o seu prazer em comer carne de gente, a sua incrível belicosidade e as suas inumeráveis batalhas. Há uma unanimidade aqui, aliás: todos concordam a respeito da alta competência guerreira dos ameríndios. Eram sujeitos capazes de flechar o olho de um pássaro em pleno vôo.

E as guerras e surtidas guerrilheiras dos tupinambás tinham como objetivo principal a captura de inimigos. Colhidos em emboscadas silvestres ou refregas aquáticas, esses prisioneiros eram escravizados e conduzidos à aldeia de seu amo, para serem sacrificados e comidos. Antes da festa canibal, uma índia era cedida ao prisioneiro. Cabia-lhe vigiá-lo, engordá-lo e satisfazê-lo sexualmente. Marcada a data da execução, eram convidados índios de outras aldeias e iniciava-se a fabricação dos vinhos. Enfeitava-se e se consagrava o tacape que desceria em cheio na nuca do preso. Soavam os cantos. Uma farra. No dia estabelecido, o matador se dirigia ao futuro morto, dizendo que assim vingava amigos. A vítima, em resposta, afirmava que seria vingada por seus companheiros. Dado o golpe mortal, as mulheres arrastavam o prisioneiro para o fogo. O corpo era assado, com as velhas no comando da operação culinária. Diz Alfred Métraux (A Religião dos Tupinambás) que elas lambiam até a gordura que escorria pelos varais da fogueira. As mulheres ficavam com a genitália (assada) do cativo. As crianças eram levadas a tocar o corpo do morto e a embeber as mãos no sangue. E, para que também os bebês participassem do festim, as mulheres molhavam de sangue os bicos dos peitos, dando-lhes de mamar. A antropofagia era o rito central da cultura tupinambá. Em Araweté – Os Deuses Canibais, Eduardo Viveiros de Castro chega a dizer que o canibalismo era “meta, motor e motivo” daquela sociedade. Era somente através da execução ritual de um inimigo que um tupinambá podia alcançar o estatuto de adulto, de pessoa plena (só a um matador se permitia casar e fazer filhos), e ter acesso ao Paraíso, isto é, ao mundo dos deuses, dos heróis civilizadores, dos antepassados. O ato canibal não só respondia ao passado, vingança de amigos e parentes mortos, como visava o futuro, único mecanismo capaz de produzir o movimento social, possibilitando a constituição de pessoas e a geração de filhos. Cessasse a prática antropofágica, cessava o devir. Mas o que era mesmo que os tupinambás comiam ao comer a carne do prisioneiro sacrificado? Não se tratava de incorporar a coragem ou a força física do adversário, já que os tupinambás devoravam também mocinhas e crianças. O que todas as vítimas dos brasis tupis tinham em comum, independentemente de sexo e de idade, era a condição de inimigo. O que os tupinambás comiam não era uma pessoa, mas essa condição. Incorporavam o incorporal, no dizer do antropólogo. Já quando falamos de deuses e heróis civilizadores do mundo tupinambá, Maíra e Tupã são personagens lembradas quase que automaticamente. Os missionários quinhentistas atribuíram a Tupã um papel central na mitologia tupinambá. Mas os estudos mais recentes colocam Maíra no centro do palco. Parece que aqueles índios acreditavam que Maíra tinha criado o mundo, através não de um fiat instantâneo e global, mas por meio de uma série de ações sucessivas. Maíra seria o Grande Feiticeiro, instaurador de regras sagradas, que morreu quando, ao saltar uma fogueira, foi consumido pelas chamas: sua cabeça explodiu num trovão, as labaredas viraram raios e o deus subiu aos céus, transformando-se em estrela. Mas Tupã não deve ser deixado de lado. Os jesuítas não seriam estúpidos ao ponto de associar o Pai Eterno da mitologia judaico-cristã a um demônio de segunda classe. Além disso, Tupã não era apenas o senhor do trovão. Era a ele que os índios atribuíam a origem da agricultura. Em todo caso, ao tocar nesses temas é bom deixar a rede em aberto, pois há sempre o risco de se estar inventando uma “religião tupinambá”, pouco importa se

com Maíra ou Tupã no posto de morubixaba cósmico. Afora isso, os tupinambás acreditavam na existência de todo um elenco de seres extranaturais, do Jurupari ao Anhanga, passando pelo Curupira, o Ipupiara e o Boitatá. O mito do Jurupari é, obviamente, uma construção simbólica destinada a legitimar a dominação sexual masculina. Quando Jurupari apareceu, as mulheres mandavam, contrariando as leis do Sol. Ele tomou o poder das mulheres e o deu aos homens, ensinando segredos e festas que só podem ser conhecidos por estes (curiosamente, os mistérios e as flautas mágicas do Jurupari são citados no livro The Picture of Dorian Gray, de Oscar Wilde, acentuando a aura exótica da personagem). Embora tenha puxado o tapete político das mulheres, Jurupari se relaciona sexualmente com elas e com os homens. Como ele, Anhanga foi também identificado, pelos jesuítas, ao diabo cristão. Os índios temiam as suas agressões. Enquanto as almas dos guerreiros destemidos tomavam o rumo do paraíso, as almas dos medrosos caíam nas mãos de Anhanga, que as atormentava. Anhanga praticava ainda a necrofagia, o que o traz para o âmbito do complexo antropofágico, já que o guerreiro consumido em chama canibal virava pura espiritualidade, vendo-se livre da possibilidade de que o “diabo” viesse para comer o seu corpo. Era o temor da necrofagia anhânguica que fazia com que os índios depositassem alimentos junto às sepulturas – caso não procedessem assim, Anhanga desenterraria e devoraria o cadáver. Mas o “encantado” martirizava também os vivos. Espancava-os. Curupira foi igualmente assimilado ao demo. Anchieta (Cartas – Informações, Fragmentos Históricos e Sermões), que se preocupou com o assunto, transmite-nos a seguinte informação: “É coisa sabida e pela boca de todos corre que há certos demônios, a que os brasis chamam curupira, que acometem aos índios muitas vezes no mato, dão-lhes de açoite, machucam-os e matam-os. (...). Por isso, costumam os índios deixar em certo caminho, que por ásperas brenhas vai ter ao interior das terras, no cume da mais alta montanha, quando por cá passam, penas de aves, abanadores, flechas e outras coisas semelhantes, como uma espécie de oblação, rogando fervorosamente aos curupiras que não lhes façam mal”. O mesmo Anchieta se refere também ao Boitatá, que define como um “facho cintilante” a atacar e a matar índios. Por fim, o jesuíta fala de outros “espectros pavorosos”, meios de que o demônio se utilizaria para demonstrar o seu poder aos brasis. Note-se, aliás, que, mais do que qualquer outra espécie de gente, eram os sacerdotes católicos que de fato criam em diabos e feitiços. A Inquisição foi fruto exatamente dessas crenças. Voltando aos tupinambás, eles acreditavam ainda na existência de homens marinhos, os “ipupiaras”, muito comuns na Bahia. Eram criaturas aquáticas de ambos os sexos, que levavam as suas vítimas para o fundo das águas, comendo-lhes a boca, o nariz, as pontas dos dedos e os genitais. O curioso é que essa crença indígena foi incorporada pelos lusitanos. “Não há dúvida senão que se encontram na Bahia e nos recôncavos dela muitos homens marinhos, a que os índios chamam pela sua língua ipupiara, os quais andam pelo rio de água doce pelo tempo do verão, onde fazem muito dano aos índios pescadores e mariscadores que andam em jangada”, escreve, por exemplo, Gabriel Soares. Jesuítas como Cardim e Simão de Vasconcellos (que disse ter visto ossadas de humanos devorados por peixes-homens e peixes-mulheres) também embarcaram na canoa mitológica dos tupinambás, inclusive explicitando o caráter sexual da lenda. Os ipupiaras davam um abraço erótico-

fatal em suas vítimas, beijando-as e apertando-as tão fortemente que as matavam. Ao vê-las mortas, diz Cardim, soltavam gemidos sentidos. Era a fantasia de uma humanidade inferior que, vivendo sob a água, desejaria sexualmente a humanidade plena, terrestre – ainda que, convenhamos, de um modo algo desajeitado. Conclui-se então que, olhando à sua volta, aqueles índios se sentiam em meio a uma verdadeira floresta de espíritos – especialmente depois que anoitecia, trazendo consigo o temor universal da escuridão. E eles realizavam atos mágicos para afastá-los. Jogavam plumas na água, por exemplo. E, à entrada de algumas aldeias, era possível encontrar pequenos escudos de folha de palmeira, estampando, em vermelho e preto, a figura de um homem nu. Sua função era manter os maus espíritos à distância. Mas as coisas não se passavam apenas em perímetro terrestre. Os tupinambás possuíam um conhecimento refinado de estrelas e constelações – e cultivavam crenças astrais. Entre outras coisas, emanações celestes podiam favorecer a vida, como no caso das plêiades, que faziam crescer no campo a mandioca. Em resumo, aqueles brasis teciam e curtiam mitos e ritos, sentiam-se cercados de “encantados”, liam signos no firmamento, acreditavam na imortalidade da “alma” (masculina) e na existência de uma espécie de paraíso, o Guajupiá, reservado aos guerreiros intrépidos, ao qual mulheres e homens covardes jamais teriam acesso. A comunicação entre o mundo humano e esse mundo extranatural era feita por intermédio dos xamãs, cuja função residia, basicamente, na profecia e na cura. Esses feiticeiros (homens ou mulheres) se dividiam em duas categorias – a dos pajés, xamãs comuns, de poderes limitados, e a dos caraíbas, que eram os profetas, os grandes magos. Tais caraíbas, homens de vida errante, falavam com freqüência da Terra sem Mal, uma espécie de utopia ameríndia, apontando para a existência de um reino feliz, onde a humanidade seria eternamente jovem, os víveres cresceriam por si mesmos e as flechas tomariam por conta própria o rumo das matas, caçando sozinhas. Como se pode ver, há um parentesco essencial entre esse utopismo indígena e as utopias populares da Europa medieval – nos dois casos, o sonho social se traduz numa vida de ócio, festa, juventude e abundância. Por fim, deve-se dizer que os tupinambás conferiam imensa relevância aos sonhos que sonhavam. Para eles, alguma verdade, especialmente de cunho profético, inscrevia-se e deixava-se ler no texto quase sempre enigmático dos delírios oníricos. Em tempos de paz e em tempos de guerra. Hans Staden conta não apenas de “principais”, de morubixabas, que entraram em clima de terror por causa de seus sonhos, mas fala também de Cunhambebe exortando os seus guerreiros, na véspera de uma operação militar, a sonhar coisas boas e felizes. Refere-se ainda a uma certa manhã em que viu morubixabas tupinambás narrando uns aos outros os seus sonhos, em volta de uma igaçaba repleta de peixes cozidos. Em As Singularidades da França Antártica, André Thevet faz um comentário geral sobre o assunto: “...em vista de serem desprovidos de razão e do conhecimento da verdade, os selvagens são muito facilmente sujeitos a cometer uma enorme quantidade de erros e loucuras. Eles atribuem enorme importância aos seus sonhos, achando que todos deverão realizar-se pouco tempo depois. Se sonharam que vão derrotar algum inimigo, ou que por eles serão derrotados, passam a acreditar

nisto tão piamente quanto nós nos Evangelhos, não havendo como dissuadi-los de tal idéia”. Adiante, o mesmo Thevet observa que os tupinambás não só criam no que sonhavam, como viam os seus delírios noturnos como peças interpretáveis pelos xamãs. Havia, portanto, uma onirocrítica tupinambá. Uma técnica ameríndia de interpretação dos sonhos. Mas desçamos das viagens oníricas para as paisagens mais pedestres da vigília. Aqui, podemos nos referir a uma divisão básica de responsabilidades e desempenhos. Os homens faziam a guerra – as mulheres, trabalhavam. Não é que as mulheres se mantivessem completamente alheias ao universo das atividades bélicas. Em todas as sociedades, as mulheres sempre participam do teatro da guerra. As índias acompanhavam os seus maridos nas investidas militares, mas realizando somente tarefas de apoio ao grupo beligerante. Do mesmo modo, os índios não desconheciam inteiramente o trabalho. O que se quer enfatizar, aqui, é que a guerra se constituía na atividade por excelência do contingente masculino daquela sociedade, enquanto que as mulheres se encarregavam da sustentação do grupo, em termos produtivos. Os homens gastavam o seu tempo, principalmente, em emboscadas e cauinagens. As mulheres eram, sobretudo, domésticas, lavradoras, fiandeiras e ceramistas. Providenciavam o pão de cada dia das aldeias tupinambás. Daí que o velho Pero de Magalhães Gandavo tenha dito que os índios (homens) não pensavam em outra coisa que não fosse “comer e beber e matar gente”. Mas é óbvio que, apesar da rigorosa determinação de papéis, fixados já na infância, havia diversos momentos da vida social em que homens e mulheres se moviam juntos. Vimos que o estatuto xamânico podia ser alcançado por qualquer pessoa, desde que agraciada com os dons para exercer a função feiticeira. A dança e o canto, igualmente, não eram monopólio de homens ou de mulheres. Todos dançavam. E, segundo Jean de Léry (Viagem à Terra do Brasil), os índios se reuniam diariamente para “dançar e folgar”. Os antigos cronistas, em verdade, ficaram surpresos com a alta freqüência de festas e bailes na vida tupinambá. Fosse no dia-a-dia da aldeia ou a caminho da guerra, aqueles brasis não paravam de dançar. E o próprio Paraíso-Guajupiá era concebido como um baile eterno, interminável. Como uma festa infinita. Outro espaço igualmente aberto a homens e mulheres era o da criação poética e musical. O padre Fernão Cardim (Tratados da Terra e Gente do Brasil) chegou mesmo a dizer que as mulheres tupinambás eram “insignes trovadoras”. E o senhor de engenho Gabriel Soares de Sousa, ao falar dos tupinambás da Bahia, emprega diversas vezes a expressão “grandes cantares”. Pelo número e variedade das situações em que tais cantares afloravam, vê-se a intensidade da produção poéticomusical daqueles ameríndios. Bem vistas as coisas, a poesia, a música, o canto, a dança e o vinho (cauim) permeavam toda a vida social tupinambá. Eram como que onipresentes, marcando de uma ponta a outra a existência aldeã. “Este gentio é muito amigo do vinho”, escreve Gabriel Soares, e “o bebem com grandes cantares, e cantam e bailam toda uma noite às vésperas do vinho, e ao outro dia pela manhã começam a beber, bailar e cantar”. Bebia-se no nascimento de uma criança, na festa do primeiro fluxo menstrual de uma cunhã, na recepção ao hóspede, na véspera da batalha, no primeiro casamento do mancebo, após o trabalho comunitário na roça, no ritual antropofágico, ao fim do período de luto pela morte de um parente, à passagem festiva dos caraíbas, etc., etc. E, quando havia

cauinagem, havia canto e dança. Canções e mais canções. Poemúsica ameríndia. Gabriel Soares e Cardim, que viveram na Bahia quinhentista, nos mostram, aliás, que o grande poeta-músico era reconhecido, respeitado e reverenciado até por grupos inimigos do seu. “Entre este gentio são os músicos mui estimados, e por onde quer que vão, são bem agasalhados, e muitos atravessaram já o sertão por entre seus contrários, sem lhes fazerem mal”, comunica Soares. A informação de que o criador indígena podia atravessar os campos, sem ser molestado por adversários, é confirmada por outros escritores da época. Fernão Cardim, por seu turno, acrescenta que tais cantores e produtores poético-musicais não eram canibalizados quando caíam prisioneiros. Isto dá uma bela medida do amor tupinambá pela palavra, pela eloqüência, pelo artesanato textual. “Estimam tanto um bom língua que lhe chamam senhor da fala”, diz o mesmo Cardim. Em outras palavras, eram índios que conheciam a floresta encantada da linguagem.

AMORES NA ALDEIA Para completar esta descrição breve e superficial do mundo tupinambá, não podemos nos esquecer de que aqueles índios andavam nus. Nus como haviam saído do ventre materno, escrevem, quase que invariavelmente, os viajantes do século XVI. Mas se a primeira observação é verdadeira, a segunda é falsa. Andavam nus, sim, mas não do jeito que tinham vindo ao mundo. A nudez ameríndia nunca foi uma nudez natural, mas uma nudez transfigurada por códigos culturais solidamente sedimentados e mesmo rígidos. Não se pode compará-la à nudez de uma pedra, uma planta, um peixe ou um jaguar. Na boa frase de Darcy Ribeiro, em O Povo Brasileiro, os ameríndios andavam “vestidos da nudez emplumada”. Tome-se o exemplo tupinambá. Aquele era um povo de machos emplumados. Eles faziam uma tonsura no alto do couro cabeludo, tonsura frontal em forma de meia-lua, deixando crescer à sua volta uma espécie de coroa de cabelos. Rebrilhando no alto da cabeça, estava a acangatara, um feixe de plumas vermelhas. Em cada maçã do rosto, uma pequena pedra polida ou um cristal. Perfurando o lábio inferior, o tembetá, grande pedra verde. Mas a artificialização cultural do corpo não se limitava aos cabelos, às orelhas, à face. Uma gargantilha branca de caracol marinho cingia o pescoço. Amarrado às cadeiras, poderia estar um enorme leque de plumas de ema, o enduape. Tufos de penas se projetavam dos braços, às vezes pintados, um de preto e o outro de vermelho. Sobre o corpo pintado, colavam penas vermelhas e brancas, “entremeando-lhes o colorido”. E quando os rapazes queriam radicalizar, arrepiavam o cabelo para cima com uma espécie de goma, enfiando-lhe pequenas e inúmeras penas amarelas. As mulheres tupinambás, embora menos enfeitadas que os homens, também coloriam o ar de sua graça. E como ninguém sai do útero com brincos e braceletes, o requinte cultural é evidente. O que os europeus classificaram como “nudez natural” se resumiria então à exposição da

genitália. Era o que impressionava as suas retinas mareadas – e almas reprimidas. Mas mesmo nesse particular a nudez brasílica não era propriamente natural. Gabriel Soares assinala a prática da ornamentação fálica entre os tupinambás, “os quais cobrem os membros genitais por galanteria, e não pelo cobrir”. Tratava-se não de ocultar ou dissimular, mas de emoldurar, dar destaque, engalanar. Uma estetização do pênis – e de um pênis muitas vezes inchado artificialmente, graças ao contato com um “bicho peçonhento” (Gabriel define o processo em termos rudes, falando de uma técnica indígena para “engrossar o cano”). As índias, por sua vez, traziam as suas “vergonhas” cerradinhas, isto é, depilavam com esmero a elevação púbica. É o que se lê na Carta de Pero Vaz de Caminha ao rei de Portugal. Foi justamente graças à depilação, aliás, que o escrivão português pôde definir como “tão graciosa” a “vergonha” de uma das mocinhas tupinambás que desfilou à vontade diante dos olhos encantados dos lusos. E a prática depilatória não é coisa da natureza. É arte corporal. Na verdade, estamos aqui diante de um quadro sintomático. Para os primeiros europeus que aqui chegaram, a nudez “natural” seria indissociável de uma sexualidade também “natural”, vale dizer, sem princípios ou proibições. A vida sexual ameríndia estaria mais próxima da dos animais do que da regulamentação civilizada da energia erótica. Dupla ignorância. Ignorância sobre a sexualidade animal, que se manifesta a intervalos regulares, no fenômeno do cio – e ignorância sobre a sexualidade indígena, que tinha, sim, o seu código de licenças e interdições. É verdade que a fantasia européia não floresceu no vazio. Havia a simples razão de que os índios encaravam de modo bem mais livre que os europeus a dimensão sensual de suas vidas. Os tupinambás podiam ser précolombianos, mas não columbinos. Daí a se portarem como celerados sexuais, desconhecendo quaisquer limites, vai uma distância muito grande. Da maneira como alguns cronistas falam, parece que, ao chegar à Terra do Brasil, eles se viram diante daquele caos sexual original, que o poeta latino Lucrécio imaginou ter existido no “estado selvático” da história humana. Penso que o florentino Vespucci compôs o quadro mais sucinto e acabado do suposto caos sexual indígena, reunindo poligamia, incesto e erotismo desenfreado: “tantas mulheres trazem quantas querem; e o filho se mistura com a mãe, e o irmão com a irmã, e o primo com a prima, e o encontrado com a que encontra”. Mas a verdade era bem outra. Por mais livre que fosse a vida erótica de uma cunhã tupinambá, havia sempre a regulamentação sociocultural. Ninguém se encontrava ali sob o signo da devassidão. Erguia-se com nitidez, em cada maloca e aldeia, a figura impositiva e discriminadora do tabu. Havia, sobretudo, o sistema de parentesco. A mulher tupinambá jamais se endereçaria eroticamente para a rede com o seu pai, nem com nenhuma daquelas pessoas que a aldeia classificava como seus “pais”, isto é, os irmãos do seu pai. Nunca se entregaria sexualmente ao seu irmão, ou a quem fosse classificável como tal, isto é, os primos paralelos do lado paterno. Nem se deliciaria libidinosamente com o filho. Mesmo fora dessa teia do parentesco, ela conheceria outros impedimentos. Abster-se-ia rigorosamente de ter relações sexuais nas épocas de preparo do cauim ou na iminência de certas cerimônias mágicas. E isso quer dizer que limites existiam. Existiam e eram obedecidos. A cunhã tupinambá recuava, sob pena de ser amaldiçoada e atrair maldições, diante da lei que regulava o sexo. Aliás, dois escritores da época, o católico Claude d’Abbeville (que encontrava

dificuldades para desviar seus olhos das ameríndias nuas) e o calvinista Jean de Léry, concordam num ponto importante, que bem demonstra a sagacidade dos missionários religiosos, em suas reflexões obsessivas sobre as fontes da tentação. Ambos observam que a nudez cotidiana, habitual, das índias brasileiras era menos perigosa, como germe ou manancial da lascívia, do que as vestes sedutoras das mulheres européias. Ou seja – a lucidez missionária constata que a via para o pecado está menos na nudez rotineira do que no vestuário erotizante; menos no corpo que se exibe sem atavios de sedução do que no corpo que se cobre para insinuar e sugerir; menos no que se mostra do que no que se entremostra; menos na fêmea que no fetiche. Mas retomemos o passo: a sensualidade ameríndia, à época da entrada das primeiras naves européias em águas brasílicas, não ignorava constrangimentos. O que os europeus não percebiam era a diferença das morais sexuais. Gilberto Freyre salienta que “o ambiente em que começou a vida brasileira foi de quase intoxicação sexual”. Mas faz a ressalva de que era esperável que, surpreendidos por uma moral sexual diversa da sua, os europeus concluíssem pela “extrema luxúria” dos índios – “entretanto, dos dois povos, o conquistador talvez fosse o mais luxurioso”. Anchieta flagrou os dois aspectos da questão: liberdade e regulamentação da sexualidade indígena. De uma parte, escreveu: “as mulheres andam nuas e não sabem se negar a ninguém, mas até elas mesmas cometem e importunam os homens, jogando-se com eles nas redes porque têm por honra dormir com cristãos”. De outra parte, o poeta-missionário soube ver os limites impostos pela estrutura do parentesco. Mas façamos agora uma outra observação de caráter geral. Aquelas mulheres indígenas eram vistas como bens materiais. Como artigos que integravam o circuito das trocas do comércio ameríndio. Além disso, e independentemente de sua vontade, podiam ser dadas de presente a morubixabas, xamãs e grandes guerreiros. Depois da chegada dos europeus, presenteava-se com mulheres também aos brancos que vinham do outro lado do grande mar. Elas eram também requestadas por certos homens. Pelos xamãs mais poderosos, por exemplo. Os feiticeiros infundiam medo, utilizando o terror que despertavam como um meio para requerer riquezas. E as mulheres faziam parte do rol de “presentes” que aqui e ali solicitavam. Vamos, contudo, avançar por partes. As mulheres tupinambás eram agrupadas por faixas etárias, cada qual tendo a sua designação. Do nascimento até completar os 7 anos de idade, a fêmea era uma cunhãmirim. Na puberdade, ou entre os 7 e os 15 anos, era cunhãtim. Dos 15 aos 25, cunhãmuçu. Dos 25 aos 40, cunhã, simplesmente (como se pode ver, o termo “cunhã”, solto, remetia a uma classe etária específica; utilizo-o livremente neste escrito, o eventual leitor já terá notado, como sinônimo de moça ou mulher, e não como etiqueta de um grupo de fêmeas reunidas pela idade). Depois dos 40, uainuy. Elas experimentavam muito cedo a iniciação sexual. Eram defloradas, geralmente, ao deixar o grupo cunhãmirim e ingressar no grupo cunhãtim. O que significa que a índia tupinambá podia perder a virgindade e ganhar a vida antes mesmo de atingir a sua maturação hormonal. E o evento era sempre tornado público. Ao lhe levarem a “flor”, como disse um cronista, a mocinha era obrigada a romper os fios que até então envolviam o seu antebraço e a sua cintura – caso contrário, espíritos maus a atormentariam. E como a índia só podia ter um marido depois de se tornar cunhãmuçu, nenhuma

tupinambá se casava virgem. Era uma fantasia européia a idéia de que virgens mascavam as raízes, no preparo do cauim. Não havia virgens. Antes que privilegiar a virgindade, os tupinambás praticavam uma espécie de adestramento, uma didática erótica que introduzia pré-adolescentes, crias ainda púberes, nos prazeres do sexo. Ignoro em que consistia tal pedagogia tupinambá. Não temos mais como saber, com certeza e em detalhe, do elenco das técnicas e práticas eróticas desenvolvidas por aqueles índios para, como diriam os nativos do Havaí, fazer “a alegria das coxas”. Vemos, mais próximo de nós, o exemplo dos arawetés da região amazônica, um grupo tupi que sobrevive em nossos dias – mas nada nos garante que os seus procedimentos eróticos sejam centenários, ou que remontem a tupinambás e tupiniquins. Quanto aos primeiros, consta, como vimos, que os homens recorriam a expedientes (dolorosos, por sinal) que resultavam no inchaço do pênis. Haveria algum equivalente feminino da prática macha de “engrossar o cano”? Não sei. A ars amatoria dos arawetés inclui uma técnica que incide sobre a genitália feminina, processo de estiramento dos lábios vaginais: “...a deformação progressiva dos labia majora, sobre ser uma parte da arte erótica, é necessária à maturação sexual da mulher. (...). A obsessão ocidental com o tamanho do pênis parece ter seu correspondente Araweté... no problema do tamanho dos lábios da vulva”, escreve Viveiros de Castro. Mas, como disse, não podemos tomar os tupinambás pelos arawetés, cujas práticas eróticas incluem, entre outras coisas, a extração manual dos pelos pubianos femininos e “carícias algo violentas”. Mas é claro que aqueles índios teriam as suas técnicas e os seus truques sexuais. É o que podemos deduzir de uma afirmação de André Thevet, que viveu no Brasil no século XVI. Segundo Thevet, as índias tupinambás inventavam e empregavam todos os meios possíveis para “arrastar o homem aos prazeres”. As solteiras conheciam uma enorme liberdade sexual. Possuíam chocinhas ou cabanas nos matos, onde entretinham os seus casos amorosos. Eram construções singelas, situadas fora do círculo de visão da aldeia. Erguidas no meio do mato, protegiam contra a vizinhança invasiva da aldeia e a intimidade compulsória da maloca. Quanto aos parceiros, a moça se achava relativamente livre para realizar e aceitar investidas. Poderiam ser eles cartas marcadas, companhias fugazes, achados circunstanciais, cativos destinados ao caldeirão antropofágico ou, até mesmo, o futuro marido. Mas sem excluir a possibilidade de que o encontro, na minicabana silvestre, se desse entre cunhã e cunhã. Vimos que o prisioneiro recebia uma moça para o seu deleite. Não é muito complicado imaginar o que poderia se passar – numa rede erguida na noite da maloca ou numa cabana isolada na mata – entre a cunhã fogosa e o guerreiro viril, à espera da morte sacrificial. Ele certamente não se furtaria ao brilho da labareda erótica. E ela, afinal, estava ali para isso mesmo. Alargaria as pernas ao menor sinal do homem, ou quem sabe provocaria, ela mesma, o enlace carnal, atraindo-o até às suas coxas. E há um dado interessante aqui: não era lá muito raro a cunhã se apaixonar pelo prisioneiro – e ambos fugirem. Assim como os escravos do sexo masculino, as mulheres não estavam condenadas a encerrar suas vidas sexuais, caso fossem escravizadas pelos tupinambás. Algumas delas escapavam do banquete antropofágico e se integravam na vida da aldeia, executando deveres agrícolas e domésticos, do fabrico de beiju à produção de vasilhas e tecidos. Como aqueles índios praticavam a poliginia, não era incomum que elas fossem admitidas no elenco das esposas de seu dono. Caso este

viesse a rejeitá-la, tudo bem – poderia ir para a rede com outros. Mas deixemos de parte o sexo praticado com pessoas escravizadas – e o amor que poderia brotar de tal relação essencialmente assimétrica, ao menos em seus inícios – para falar do casamento heterossexual entre aqueles brasis. O epitalâmio tupinambá quase sempre unia uma cunhãmuçu a um homem mais velho, dificilmente a um jovem, um curumim-uaçu. E vice-versa: ligava rapazes a mulheres mais velhas. O casamento de uma cunhã não se dava antes do primeiro eflúvio menstrual, assinalado ritualmente na aldeia com cantos e vinhos. Antes do casamento, todavia, podiam acontecer as chamadas “noites de prova”: relações pré-matrimoniais entre o noivo e a noiva, com o consentimento da mãe da moça. O homem só podia se casar depois que matasse um inimigo. E a cerimônia nupcial era uma grande cauinagem. No rito de núpcias, ocorria o primeiro porre masculino. Os velhos davam uma cuia de vinho ao noivo, torcendo para que não houvesse vômito, pois, caso arrevesasse, o sujeito não seria valente. Note-se, portanto, que enquanto a mulher casava cedo, o homem tinha que esperar. Na relação marido-mulher, a fêmea encarnava a submissão. Sujeitava-se em tudo. E o modo como ele a tratava apresentava um contraste gritante. Um era o tratamento em tempo sóbrio, outro era o tratamento em dias de vinho. No primeiro caso, eles cuidavam bem das suas índias. Não brigavam, nem batiam. Diz Cardim que os cônjuges andavam sempre juntos. Quando saíam fora da aldeia, ia a mulher atrás e o marido adiante, para que ela não caísse em cilada e tivesse tempo para fugir, caso houvesse assalto adversário. À tornada, era a mulher quem seguia na frente, de modo que, em vista de algum entrevero, escapasse correndo para a aldeia. “Porém em terra segura ou dentro da povoação – prossegue Cardim – sempre a mulher vai diante, e o marido de trás, porque são ciosos e querem sempre ver a mulher”. Mas esse cenário de gentileza conjugal rompia-se na esbórnia do vinho. Da orgia cauínica. Caindo na farra, o índio perdia a cabeça – e, não raro, enchia a mulher de porrada. Mas logo, passada a bebedeira, recorria à desculpa do vinho, os ódios se desfaziam no vento leve e ambos ficavam “amigos como dantes”. E como os índios aprontavam à vontade em suas farras, atribuindo o destempero e a doideira, exclusivamente, ao vinho – como se tivessem sido possuídos por um poder externo –, pode-se falar, em termos gregos, de uma espécie de “atê” tupinambá. Para os gregos arcaicos, “atê” era um enceguecimento momentâneo do juízo, provocado por uma força extranatural. Na explicação de E. R. Dodds, em Os Gregos e o Irracional, tratava-se de “um obscurecimento ou confusão temporária da consciência normal”, uma forma de “loucura parcial”, creditável na conta de alguma potência “demoníaca” externa – e, na Odisséia, diz-se que uma das suas fontes está justamente no consumo excessivo de vinho. Para os tupinambás, por sinal, o cauim não era uma bebida qualquer. Tinha a sua aura mágica. Eles não faziam nada de importante sem o seu consumo. E conseguiam produzi-lo a partir de muitos tipos de vegetais, ao ponto de Simão de Vasconcellos, em sua Crônica da Companhia de Jesus do Estado do Brasil, ter suspeitado que algum “Deos Baccho” havia passado pela Índia Brasílica, ensinando aos nativos a fabricação de tantas “castas de vinho”. Ainda no terreno do relacionamento conjugal, havia a questão da situação da mulher num casamento poligâmico, desde, é claro, que ela fosse casada com um índio que pudesse ter mais de uma esposa, caso de morubixabas, caraíbas, grandes guerreiros. Para o homem, as vantagens de um

harém eram evidentes. Vantagens eróticas, sociais e econômicas: o bando de mulheres ao seu dispor significava prestígio, variação sexual e mais braços para os trabalhos da casa e do campo. Mas essas mulheres não receberiam todas o mesmo tratamento. A ascendência da primeira esposa sobre as demais levou Gabriel Soares a vê-la como “a mulher verdadeira”. As outras a obedeciam e a sua rede ficava armada ao lado da do marido. Fica difícil acreditar que o ciúme não disparasse aí a sua famosa flecha preta, ou que a diversão masculina em redes variadas passasse em brancas nuvens. Mas é o que dizem autores quinhentistas e seiscentistas. E Montaigne invejou esse aspecto da vida conjugal tupinambá, lamentando que, na França, o ciúme impelisse as esposas a impedir que os seus maridos buscassem “a amizade e as boas graças de outras mulheres”. Nesse panorama, Gabriel Soares é uma exceção, ao dizer que “sempre há entre estas mulheres ciúmes” – embora ele mesmo relativize a sua afirmação, falando de esposas que levavam moças solteiras para se deitar com os seus maridos, a fim de que estes não ficassem entediados. Enquanto alguns homens tinham várias mulheres, mulher alguma podia ter mais de um homem. Exigia-se dela fidelidade absoluta. À liberdade sexual das solteiras, seguia-se a monogamia rigorosa da casada. Se ela cometesse adultério, experimentaria o repúdio, o espancamento ou mesmo a morte. E nem só a mulher seria castigada ou morta. Ao se referir à prática do infanticídio entre os tupinambás, assinalando que deficientes físicos eram enterrados vivos, Anchieta observou que também eram enterradas vivas criancinhas suspeitas de “terem sido concebidas em adultério”. De qualquer modo, as mulheres tupinambás casadas, as “cunhãs mucupoare”, fosse por medo e/ou por introjeção profunda de códigos culturais, costumavam ser fiéis. “São castas as mulheres a seus maridos”, na frase concisa de Manoel da Nóbrega, em suas Cartas do Brasil. Mas se o adultério era tão severamente punido, o divórcio, por iniciativa do homem ou da mulher, era coisa fácil de obter – “se a mulher se sente farta do marido e lhe diz não querê-lo ou desejar outro, responde-lhe o esposo sem se perturbar: Ecoain, isto é, ‘vá para onde quiser ’. A mulher pode então entregar-se a outro homem sem inconvenientes. E pode largar o segundo, como o fez com o primeiro, o mesmo sendo permitido ao homem”, registra Abbeville. E ainda: “como o casamento é fácil, igualmente fácil é desmanchá-lo, bastando para tal a vontade recíproca dos cônjuges”. Cardim chegou até a duvidar da veracidade do casamento tupinambá, pela facilidade com que marido e mulher se separavam, “por qualquer arrufo, ou outra desgraça, que entre eles aconteça”. O enviuvamento de mulheres deveria ocorrer com muita freqüência naquele mundo de guerras praticamente contínuas. Houve mesmo quem acreditasse que aí se encontrava uma das razões para a instituição da poligamia entre aqueles brasis. Outra resposta ao problema da viuvidade estava nos cativos. Embora nem todas aceitassem a solução (o jesuíta Leonardo do Valle conta, numa das suas cartas, de uma índia que escolheu a morte, ao ver o marido morrer numa epidemia de varíola), viúvas podiam se dar à fruição regulamentada de prisioneiros de guerra, como forma de compensação pela morte do esposo. O prisioneiro tomava o lugar e os objetos do morto e se casava com a viúva. Em todo caso, é bom salientar que as mulheres tupinambás não eram obrigadas a casar, nem a ter filhos. Praticavam, aliás, o aborto e o infanticídio. Além disso, podiam escolher, para tocar o barco da vida conjugal, uma pessoa do mesmo sexo. Lésbicas não eram forçadas ao ocultamento de

seus envolvimentos erótico-amorosos, nem marginalizadas do convívio social. O homossexualismo, tanto masculino quanto feminino, foi praticado, sem maiores problemas, em toda a sociedade tupinambá (e tupiniquim, claro). Embora praticantes passivos do “pecado nefando” ou lésbicas pudessem eventualmente ser objetos de farpas verbais, o fato é que o homoerotismo pertencia ao cotidiano da vida indígena. Aqueles grandes e temidos guerreiros tupinambás gostavam de acariciar – e se deixar acariciar por – indivíduos do mesmo sexo. Juntavam os seus corpos nus aos corpos nus de outros homens, entregando-se aos jogos da volúpia. Homossexuais abriam casas públicas ao longo dos caminhos mais freqüentados pelos guerreiros, a fim de recebê-los em seus braços. Enfim, como bem disse Florestan Fernandes, “a sodomia recebia o beneplácito social”. E, como ainda hoje ocorre em meio às classes populares brasileiras, havia uma visão diferenciada dos indivíduos envolvidos num engate homossexual, a depender de suas supostas posições no coito: passivo = bicha, veado (“tivira”, no léxico erótico tupinambá); ativo = macho e mesmo valente. Ainda no dizer de Florestan, os tupinambás que eram “pederastas ativos se orgulhavam daquelas relações, considerando-as manifestações de valor e valentia”. Do mesmo modo, o tribadismo tupinambá era uma realidade. E nada clandestina ou dissimulada. Lésbicas se afirmavam como tais em plena luz do dia. “Algumas índias há que também entre eles determinam ser castas, as quais não conhecem homem algum de nenhuma qualidade, nem o consentirão ainda que por isso as matem. Estas deixam todo o exercício de mulheres e imitam os homens e seguem seus ofícios, como se não fossem fêmeas. Trazem os cabelos cortados da mesma maneira que os machos, e vão à guerra com seus arcos e flechas, e à caça, perseverando sempre na companhia dos homens, e cada uma tem mulher que a serve, com quem diz que é casada, e assim se comunicam e conversam como marido e mulher”, informa Pero de Magalhães Gandavo, em sua História da Província de Santa Cruz, escrita no século XVI. Diz ainda o jesuíta Pero Correia que a maior injúria que se podia fazer àquelas fêmeas, correndo inclusive o risco de receber um flechaço, era chamá-las “mulheres”. Finalmente, as tupinambás envelheciam. Eram escanteadas pelos homens fortes e fogosos da aldeia, mas nem por isso batiam em retirada, abandonando a cena da vida sexual aldeã. A economia sexual da aldeia não condenava os mais velhos ao ostracismo erótico ou à solidão masturbatória. A eles era confiada a missão de iniciar sexualmente os garotos e as garotas das malocas. A ministrar educação libidinal à puberdade e à adolescência. Era esta a paisagem nada lúgubre da “terceira idade” entre os tupinambás: velhos e velhas iniciando sexualmente rapazitos e mocinhas luminosamente jovens. E a tarefa era considerada fundamental. A obrigação de adestrar doméstica e sexualmente os mais jovens era vista, pelos tupinambás, em termos bem amplos. Garotos e garotas nada sabiam do mundo. Era necessário instruí-los. Tratava-se de transmitir conhecimentos, símbolos, valores, práticas. De introduzir a juventude no mundo da cultura.

INTERMEZZO: A ILHA BRASIL O nome “Brasil” é anterior à chegada dos portugueses na Bahia. Aflorou nítido, bem antes daquele 21 de abril de 1500, na história da vida simbólica dos povos do Ocidente. E, o que é significativo, para designar um lugar feliz: Brasil, ou Ilha Brasil, estrela da constelação utópica das ilhas míticas do Atlântico, que povoaram e imantaram o imaginário medieval, para em seguida inspirar o utopismo literário dos eruditos da Renascença. O primeiro registro que se conhece dessa ilha está numa carta náutica elaborada, em 1325, pelo genovês Angelo Dalorto. A ilha aparece localizada, aí, a oeste da costa sul da Irlanda, região que cultivou largamente a fantasia da existência de um Paraíso Terrestre. O que significa que o nome “Brasil” já repontava em mapas quando ainda faltavam 175 anos para a armada cabralina avistar o acidente geográfico que receberia a denominação de Monte Pascoal. Para a mentalidade medieval, esta Ilha Brasil foi, sobretudo, sinônimo de sonho social – ou, em termos menos líricos, mais uma criação psicologicamente compensatória para as asperezas do real histórico. São as ilhas fantásticas dos tempos medievais, produto do sincretismo de antigas crenças pagãs em paraísos insulares e da fé cristã na existência real do sítio paradísico. É o Paraíso Terrestre em desenho ilhéu, exibindo, numa terra fertilíssima e de clima temperado, a exuberância do verde, as árvores de copa altíssima, as fontes de água límpida (capazes de curar e de rejuvenescer), a fragrância perene das flores, os pássaros melômanos, a brisa rara e delicada, a ausência de doenças e de pestes, a desnecessidade do trabalho diante de frutos que se ofertam, generosos, ao menor movimento da mão. É justamente em tal oceano esparsamente pontilhado de lugares áureos e edênicos que vai emergir a Ilha Brasil, vinculada à mitologia céltica da Irlanda. Mais especificamente, ela irá despontar engastada no que se pode caracterizar como uma espécie de sistema mitológico de São Brandão (Brendan), o santo-navegador irlandês que viveu entre os séculos V e VI, dando origem à legenda da Navegação de São Brandão, e que, segundo a tradição, viajou em busca da Ilha dos Bem Aventurados, à qual os antigos irlandeses chamavam terra de O’Brasil. Essas ilhas lendárias, focos celestiais implantados na extensão azul do oceano, marcaram fundamente a criação poético-literária do Ocidente. É a ilha edênica/sociedade ideal que aparece na Tempest de Shakespeare, ecoando diretamente o capítulo dos Essais de Montaigne sobre os canibais brasílicos – ou seja: o reflexo do mundo tupinambá na dramaturgia shakesperiana (que ecoaria, ainda, na obra de Rousseau, como demonstrou Afonso Arinos de Melo Franco, em O Índio Brasileiro e a Revolução Francesa – As Origens Brasileiras da Teoria da Bondade Natural). E vai aflorar, séculos depois, num dos poemas de Mensagem, de Fernando Pessoa, As Ilhas Afortunadas, utopismo banhado em água “sebastianista”: Que voz vem no som das ondas Que não é a voz do mar?

É a voz de alguém que nos falla, Mas que, se escutarmos, cala, Por ter havido escutar.

Mas não topamos somente com tematizações genéricas das insulae fortunatae, como também com um tratamento poético específico dado à Ilha Brasil, que vai do discurso com laivos utopistas ao ponto de vista integralmente utópico. Neste último caso, está o poeta romântico inglês William Blake, mesclando numa profecia a Ilha Brasil e o Brasil Histórico. James Joyce, por sua vez, cita a ilha no Finnegans Wake, dentro do contexto mitológico irlandês: “...on the island of Breasil the wildth of me perished”. Por fim, para não ficar multiplicando exemplos, o mito vai reverberar no vanguardista Maiakóvski: “Prezados senhores!/ Dizem/ que em alguma parte/ - parece que no Brasil - / existe um homem feliz!”. Mas vamos retomar o fio da meada. Uma ilha mirífica, flutuando nos mares do imaginário medieval, traz o nome de “Brasil”. Em seus Capítulos de História Colonial, Capistrano de Abreu resumiu: “havia um nome à procura de aplicação”. Além da ilha mitológica, um sintagma flutuante. Um signo verbal que se descolaria do seu substrato mítico para ancorar num referencial geograficamente concreto. Em outras palavras, o significante “Brasil” deslizaria, do mito céltico original, para se acoplar a um novo significado: a extensão de terras alcançada pelos portugueses em abril de 1500. Houve, inclusive, nesse deslocamento semântico, um instante de transição, de hesitação toponímica. Num mapa quinhentista do português Vaz Dourado, aparecem simultaneamente o designativo “hobrasill”, aplicado já às terras brasílicas, e o nome “obrasill”, indicando a ilha mágica situada a sudoeste da Irlanda. Mas, enfim, como diria Capistrano, o nome se aplicou. Aconteceu uma justaposição da seqüência fonológica b-r-a-s-i-l e do trecho do planeta que corresponde a terras do Brasil atual. Ou, por outra, a visão do paradisíaco se vinculou aos trópicos brasileiros, fazendo com que estes fossem contemplados através de lentes edenizantes. E isso desde a Carta de Caminha e os relatos de Vespucci. Sergio Buarque de Holanda, que estudou à exaustão a tópica paradísica medieval em Visão do Paraíso, observou: “O tema paradisíaco em estado puro, e não através de longínqüas refrações, aparece desde cedo, e a propósito do Brasil, em um texto de Américo Vespúcio, narrador muito mais sóbrio e objetivo do que Colombo”. Está na célebre lettera de 1502. Depois de cruzar o mar oceano à luz de “corpos de estrelas muito claras”, Vespucci percorre terras litorais do Brasil – Bahia, inclusive –, para articular topoi da mitologia paradisial no seguinte comentário: “Esta terra é muito amena; e cheia de inúmeras árvores verdes, e muito grandes, e nunca perdem folha, e todas têm odores suavíssimos, e aromáticos, e produzem inúmeras frutas, e muitas delas boas ao gosto e saudáveis ao Corpo, e os campos produzem muita erva, e flores, e raízes muito suaves, e boas, que umas vezes me maravilhava do odor suave das ervas, e das flores, e do sabor dessas frutas, e raízes, tanto que em mim pensava estar perto do Paraíso Terrestre”. Havia, portanto, a sensação de que aqui, no Brasil, se estava nas vizinhanças do sítio edênico. É

claro que esta ilusão primordial, ou fantasia do primeiro contato, não vale apenas para a região brasílica – e sim para todo um “Novo Mundo” primaveril (Colombo imaginou divisar o Paraíso Terrestre numa elevação subequatorial que apareceu, a seus olhos, como um mamilo de mulher: bico paradisíaco do peito da Terra). Mas me limito aqui à referência brasílica – à força impressiva dessas terras na visão daqueles que primeiro as viram e visitaram, nela identificando tópicos típicos da recôndita província edênica que se sonhava encontrar. Para estes, o Brasil surgia como uma espécie de éden concreto, cartografável, praia clara atingida enfim pela proa lusitana, ou abrindo-se cheia de sol frente às velas da pirataria. Com isso, a entidade mítica “Brasil” se encarnou no corpo da Terra. Logo à entrada do século XVI, os vocábulos Brasil e Portugal (de Portocale, Condado Portucalense), que até então vinham percorrendo trilhas distintas, se associaram historicamente. De agora em diante, não mais haverá como desquitar esses nomes próprios. E o irlandês James Joyce, intensamente imerso nas tradições da sua gente, vai lidar com a nova conjugação de topônimos – “...from Blasil the Brast to our povotogesus portocall...”, lê-se no mesmo Finnegans. É digno de nota, penso, o fato do sintagma utópico medieval ter se imposto tão rapidamente, afastando para fora da cena as designações oficiais que a Coroa lusitana determinara, sucessivamente, para a região que então se desvelava aos olhos da Europa – Terra de Vera Cruz e Terra de Santa Cruz. O comércio do chamado “pau-brasil”, madeira de tinturaria a que os índios chamavam “ibirapitanga”, acelerou a vulgarização do nome. Essa vitória do vocábulo proveniente do repertório das utopias populares da Idade Média é explicável por três motivos, ao menos. Havia, é certo, o comércio da madeira vermelha. Mas havia, ainda, a existência anterior do mito – aquele “nada que é tudo”, do poema de Pessoa – habitando, há tempos, mapas e mentalidades medievais. E havia, também, o fato de o “Brasil” ter sido, ao longo desse mesmo período medieval, um signo popular. Sim: é importante frisar que a utopia chamada “Brasil” não foi uma criação estético-intelectual erudita, traçada a régua, latim e compasso. Não se formou como produto da pluma e da tinta de algum alto letrado medieval, horas a fio encurvado sobre a escrivaninha. Não. Antes que fruto da pena de um escriba doutoral, que tivesse se recolhido para imaginar mundos ideais, o Brasil Utópico foi criação dessa entidade plúrima, meândrica e complexa a que chamamos povo. Uma Utopia Popular, portanto, aparecendo em meio ao conjunto das utopias populares da Idade Média. “A utopia popular se oculta sob numerosos nomes e aspectos. Na Inglaterra é Cokaigne, na França Cocagne, em Espanha Cucaña; existem também Pomona, Hy Brasil, Venusberg e o País das Crianças”, vai listando A. L. Morton, em As Utopias Socialistas. A utopia Brasil é, assim, paraíso tecido com fios de sol e de sonho nos teares da fantasia popular medieval. Signo forjado na massa arquetipal do utopismo. Curiosamente, contudo, o seu espaço geográfico, ao ser atingido pelas caravelas ideológicas de Thomas Morus, vai abrigar uma utopia erudita. É que Morus, guiando-se pelas cartas de Vespucci, situou a sua utopia naquela que é, hoje, a Ilha de Fernando de Noronha. Desse modo, a expressão “Brasil” acabou atravessando ambos os espaços utópicos – o popular e o erudito. Não deixa de ser um dado que tem o seu alto teor de fascínio. Mas não é esse o meu tema aqui. Retornemos, portanto, a Kirymuré-Paraguaçu, no momento mesmo em que os ventos começaram a trazer coisas até então estranhas àquele sítio

milenar.

PRESENÇAS EUROPÉIAS Atravessada por embarcações indígenas e por feixes de peixes, cardumes de baleias que se reproduziam com estrondo em suas praias, a grande baía tropical de Kirymuré-Paraguaçu, ocupada pelos tupinambás depois da expulsão dos tupinaés para os sertões, começou a receber de repente, em seus mil km2 de águas salgadas e 300 km de costa, navios muito esquisitos, exóticos, tripulados por homens brancos, que vinham, transmarinos, de um outro mundo. Eram naus, caravelas, galeões e bergantins despachados dos portos da velha Europa. E foi aí que um novo processo histórico começou a se desenhar. A região foi encontrada oficialmente pelos portugueses em finais de 1501, na viagem de uma esquadrilha exploradora que o rei D. Manoel, dito “o Venturoso”, endereçara aos nossos trópicos, ainda no calor das primeiras informações cabralinas. É provável que ela tenha sido visitada antes disso, no mesmo ano do desembarque inaugural de Porto Seguro, pelo navio comandado por Gaspar de Lemos. Lemos se destacara da esquadra do capitão Cabral para levar ao reino notícias do “achamento” das novas terras. E o seu navio-mensageiro, perlongando a costa brasílica de Porto Seguro às costas do Cabo de São Roque, dificilmente terá passado ao largo da larga barra da baía, ainda mais que, segundo o seu comandante, o barco vinha examinando enseadas e rios, a fim de transmitir ao rei o que fosse possível saber da recém-batizada Ilha de Vera Cruz. Como bem disse Theodoro Sampaio, é altamente improvável que aquele “enorme seio do mar” não se tenha imposto então à visão dos experimentados tripulantes da nave lusitana. Mas, apesar de toda a plausibilidade dessa visita ao apagar das luzes do século XV, o terreno é apenas hipotético. Existe um quadro lógico, mas não uma base documental, para sustentar a tese de que Lemos tenha passado por aqui em inícios de maio de 1500. A expedição do ano seguinte, ao contrário, foi registrada em cartas de Vespucci. Comandada por Gonçalo Coelho, a frota deixou Portugal no dia 13 de maio, para, cerca de três meses depois, fazer a sua aterragem na costa do atual Rio Grande do Norte. A partir daí, as naves vieram margeando o litoral e batizando catolicamente os acidentes geográficos mais significativos, numa geração de topônimos incorporados de imediato à cartografia da época, do mapa de Cantino ao do clérigo Waldseemüller. Para dar apenas dois exemplos, assim foram batizados o Rio de São Francisco, no dia 4 de outubro – e, a 1º de novembro de 1501, a Bahia de Todos os Santos. A esquadrilha de Gonçalo Coelho se deteve aqui por uns poucos dias. Comerciou com os índios e achantou um marco de pedra numa ponta rochosa que, por isso mesmo, veio a se chamar Ponta do Padrão, onde fica, atualmente, o Farol da Barra. Alguns mapas da época, por sinal, cometeram um equívoco toponomástico algo divertido, atrapalhando-se com a denominação que Vespucci dera

àquela ampla e bela baía. Mapas, cartas e globos, aliás – mas não os portugueses, espanhóis ou italianos, e sim aqueles produzidos no Norte da Europa. É que Vespucci escreveu, em suas cartas italianas, “A baia di tutti santi”. E a cartografia norte-européia, escrita em latim, deu uma pequena derrapada, grafando Abbatia omnium sanctorum, isto é, “Abadia de Todos os Santos”. Logo cedo, a nossa conhecida “abadia” se converteu em “estação de esgarramento” e “ponto de refresco”. No vocabulário náutico da época, “ponto de refresco” era uma parada, um lugar para carenar e refrescar as naves. Isto é, um local para as embarcações serem limpas, vistoriadas, reparadas, reabastecidas de mantimentos frescos. No caso da Bahia de Todos os Santos, Portugal passava a ter um espaço de “refresco” para os navios que viajavam com destino a terras asiáticas. Quanto à sua definição como “estação de esgarramento”, local de encontro para as naves que se desgarrassem de sua frota ou de sua capitânia, ficamos sabendo da escolha graças à expedição de 1503, que o mesmo D. Manoel mandou para cá, sob o comando do mesmo Gonçalo Coelho, que trouxe em sua companhia o mesmo Vespucci. Como se sabe, aquela esquadra se separou na Ilha de Fernando de Noronha. Gonçalo partiu antes de Vespucci e os dois não mais se viram nessa viagem. Apartado da nau capitânia, Vespucci organizou-se então para cumprir o regimento régio. Tomou assim o rumo da Bahia de Todos os Santos, onde permaneceu dois meses e quatro dias, antes de descer a costa e construir uma fortaleza na atual Cabo Frio. Infelizmente, Vespucci não escreveu uma só linha sobre esse tempo passado em terras baianas. O que fica de certo para nós é que a Bahia de Todos os Santos já vai assumindo então a sua importância aos olhos dos navegadores europeus. Àquela altura, porém, não eram apenas os lusos que atentavam para a Bahia. Franceses já começavam a circular com desenvoltura por essas terras. Anchieta anota que, em 1504, eles já se achavam no “porto da Baía”, entrando pelo Paraguaçu e fazendo as suas trocas comerciais, para retornar com “boas novas” à França. Eram normandos e bretões se lançando ao mar. E essa presença francesa foi se tornando cada vez mais intensa, na Bahia e em todo o litoral brasílico. Nossa mestiçagem e nossa toponímia são mais do que reveladoras a esse respeito. O senhor de engenho Gabriel Soares falava dos cruzamentos de índios e franceses. E aqui existia, já em inícios do século XVI, uma Ilha dos Franceses, visível ainda hoje no baixo curso do Paraguaçu, à frente do lagamar de Iguape. Theodoro Sampaio dá outros exemplos. Fala da localidade de “Mairapé” (ou Marapé, como se lê em poema de Gregório de Mattos), também no Recôncavo Baiano, cujo nome significaria “caminho de mair”, isto é, dos franceses, porque “mair” era como os tupinambás chamavam os gauleses, reservando a denominação de “peró” para os lusos. Fala, também, de uma Aldeia dos Franceses, situada na região do atual bairro do Rio Vermelho, em Salvador, enquanto Artur Neiva vai localizá-la nas imediações de Itapoã. E a correspondência jesuítica da época faz referência a um Porto dos Franceses, nas vizinhanças de Tatuapara, região de Praia do Forte-Açu da Torre. A presença francesa, na costa brasílica, é facilmente explicável. O aparelho estatal francês demorou a querer colônias, na verdade. Foi a iniciativa privada, voltada para a pesca do bacalhau e o comércio de coisas extra-européias, que levou os franceses por sobre os mares. Desse modo, aliás, enquanto Espanha e Portugal exibiam objetivos grandiosos para a sua expansão pelo mundo, como a dilatação da cristandade e a conversão de infiéis, a França entrou em cena com algo bem mais

prosaico: busca de bacalhau e madeira corante, pau-brasil. E foi assim que os franceses – normandos e bretões, em especial – passaram a freqüentar o longo litoral brasílico. No tempo, essa presença assumiria tais proporções que, para afastar daqui os seus rivais, os portugueses, segundo Celso Furtado, “até pelo suborno atuaram na corte francesa”. Quem veio para o Brasil em 1503, passando pela Bahia, foi o normando Paulmier de Gonneville, comandando o navio L’Espoir. Na “Relação” escrita por esse capitão – objeto de um estudo recente de Leyla Perrone-Moisés (Vinte Luas – Viagem de Paulmier de Gonneville ao Brasil: 1503-1505) – lêse que, antes dele, “homens de Dieppe e Saint-Malo assim como outros normandos e bretões” viajavam à Terra do Brasil, em busca de “madeira para tingir de vermelho, algodão, macacos, papagaios e outras mercadorias”. Circulando de boca em boca pelos portos franceses, as narrativas desses navegadores lograram concentrar a atenção de empresários da Normandia e da Bretanha nas coisas do Brasil. Eles enviavam navios para trocar, com os índios, produtos europeus por produtos tropicais. Facões e espelhos por pau-brasil, principalmente, a fim de abastecer, com a madeira de tinturaria, os núcleos franceses de fabricação de tecidos. Era o chamado “escambo”. Portugal demorou a reagir. Só muito tardiamente começou a desenvolver um esforço diplomático para afastar daqui os súditos de Francisco I, rei da França, e a adotar medidas de defesa militar do espaço geográfico que considerava seu, despachando armadas para os trópicos. Mas o rei francês estava disposto a quebrar o monopólio português no Brasil, na África e no Oriente. Rebelando-se contra o Tratado de Tordesilhas, argumentava ele que queria ver a cláusula do Testamento de Adão que excluía a França da partilha do mundo. E a disputa pelo Brasil se acirrou. Dividiu, inclusive, a população indígena local, com os tupinambás se associando aos franceses e os tupiniquins, aos portugueses. Apenas a partir da fundação da cidade do Rio de Janeiro, em março de 1565, é que os ventos sopraram decididamente a favor de Portugal. Como disse Capistrano de Abreu, “durante anos ficou indeciso se o Brasil ficaria pertencendo aos Peró (portugueses) ou aos Mair (franceses)”. A demora da reação lusitana é um fato. Durante as três primeiras décadas de nossa existência, Portugal praticamente nos abandonou. Mas se Portugal não estava interessado no Brasil, outros estavam – alguns portugueses, inclusive. É curioso. Até recentemente, era um lugar-comum a afirmação de que a História do Brasil só começava, de fato, no decênio de 1530, com a chegada, em nossas latitudes tropicais, da armada comandada por Martim Afonso de Sousa, celebrado chefe militar lusitano, que chegou a ser nomeado capitão-mor do mar da Índia e a ganhar alguns versos nos Lusíadas de Camões. Mas a verdade é que a nossa história, enquanto peripécia da constituição de um povo, não começa aí. Vem de antes, tecendo-se extra-oficialmente através de acasos, acidentes, aventuras individuais. Daí a necessidade de uma distinção elementar. Existem os marcos oficiais da conquista e da colonização sistemática do território atualmente brasileiro. Mas existem também as aventuras e os empreendimentos que não foram programados pela Coroa lusitana. No primeiro caso, temos coisas como a celebração da primeira missa no ilhéu da Coroa Vermelha, a partilha da terra brasílica em capitanias hereditárias, a implantação do Governo Geral na Capitania da Bahia. No segundo, vamos

encontrar o Bacharel de Cananéia, a peripécia planaltina de João Ramalho ou a formação de uma espécie de aldeia eurotupinambá, reunida no litoral baiano em torno das figuras hoje legendárias do Caramuru (Diogo Álvares) e da Caramurua (Catarina Paraguaçu). Dizer que terras brasílicas não foram “ocupadas”, em seguida ao “descobrimento”, é uma falácia. Diogo Álvares e João Ramalho, entre muitos outros “caramurus”, não eram entidades fantasmais, mas pessoas de carne e osso, pisando num chão igualmente espesso. Se a Coroa portuguesa deixou no esquecimento, afastada de seus planos religiosos e mercantis, aquilo que hoje conhecemos como Brasil, isso não quer dizer que não houvesse vida esfervilhando por aqui. Era apenas que o poder lusitano só tinha olhos para as imensas promessas de lucro que reluziam em extensões asiáticas. No entanto, “caramurus” perlongavam a nossa costa e não se intimidavam sequer à vista dos sertões. Fizeram e aconteceram por aqui, produzindo filhos e reproduzindo signos, à revelia de decretos reais. As suas marcas, as tatuagens e os entalhes que eles fizeram no corpo brasílico, não foram nada insignificantes. Despedindo flechas ou tiros de arcabuz, pescando polvos ou colhendo araçás, alisando cunhãs ou desbravando planaltos, respirando sob o diadema amarelo do sol ou sob o frio claro da lua, os caramurus deram início a uma obra. E é por isso mesmo que, aos três primeiros decênios do século XVI – que estão na origem mesma de nossa formação genética e cultural, de nossa trama biossemiótica – chamo período caramuru da História do Brasil.

DIOGO CARAMURU Diogo Álvares Correia, natural da Vila de Viana (atual Viana do Castelo), na província de Entre Douro e Minho, Norte de Portugal, veio para a Terra do Brasil ainda muito jovem, aqui naufragou e recebeu dos índios a alcunha de Caramuru. Pouco depois, casou-se com uma índia tupinambá, filha talvez de um morubixaba, e numa espécie de morubixaba tornou-se também ele, constituindo uma curiosa aldeia mestiça, que reuniu europeus e ameríndios no litoral da Bahia quinhentista. Mas quem era mesmo ele? Já se disse que a vida do florentino Vespucci se acha de tal modo enevoada, permitindo a formulação de tantas hipóteses, que estas, em seu conjunto, assumem características de um elenco de possibilidades matemáticas. È vero. Mas a obscuridade que envolve Vespucci se converte em campo claro, claríssimo até, quando pensamos em Diogo. Tal ausência de informações se explica, entre outras coisas, por ele não ter sido nenhum nobre, mas um jovenzito comum, ordinário, da região do Minho. O que ouvimos sobre ele são, no mais das vezes, lendas tardias, como aquela do tiro de arcabuz que teria espantado, seduzido e conquistado uma platéia de canibais. Mas essa proeza não passa de uma invencionice do jesuíta Simão de Vasconcellos, nos meados do século XVII.

Europeus viajaram para o “Novo Mundo” pelos motivos mais diversos que se possa imaginar – no dizer de Cervantes, em uma de suas Novelas Exemplares, esse Novo Mundo significava, então, “refúgio e amparo dos desesperados..., abrigo dos falidos, salvo-conduto dos homicidas, apoio e proteção dos jogadores..., chamariz de mulheres perdidas, engano comum de muitos e remédio particular de poucos”. Alguns vieram para cá porque quiseram, outros porque foram expelidos de lá. E o nosso jovem Diogo? Integrava o agrupamento dos migrantes voluntários ou pertencia à legião dos viajantes compulsórios? Não se sabe. O que há são hipóteses: degredado, cristão-novo, agente comercial dos franceses, etc. Mas nada comprovado ou historicamente comprovável. De qualquer modo, Diogo deixou a Península numa época pouco animadora. Em 1510, Portugal não experimentara ainda as vantagens da colonização do Brasil. As terras portuguesas apenas estavam na véspera de ser transformadas pelos reflexos concretos da empresa ultramarina. Ou seja: o que Diogo conheceu foi o Portugal expulsivo. Embora o aroma das especiarias impregnasse já o seu ar, Lisboa ainda não enchera os seus olhos com os esplendores do Mosteiro dos Jerónimos, nem vira surgir – na antiga praia do Rastrelo, ou Restelo, de onde partiram as embarcações de Vasco da Gama e de Pedro Álvares Cabral – este raro exemplar de elegância manuelina, que é a Torre de Belém. Coisa parecida se pode dizer de Viana. O que reinava em Portugal, naquela época, era a crise, estendendo a sua sombra triste desde o Minho até ao Algarve. Viana do Castelo era, então, pouco mais que uma cidadezinha perdida nos confins do território lusitano, póvoa litorânea com menos de três mil habitantes, vivendo do mar e para o mar. Humanamente habitada desde os tempos ditos “pré-históricos”, que lhe deixaram as ruínas do alto de Santa Luzia, o lugar foi aos poucos se mediterranizando, via colonizações fenícia e grega, para finalmente ser latinizado e cristianizado na expansão peninsular do Império Romano. O Rio Lima, que atravessa verde e denso a região, recebera, da Antigüidade Clássica, o mito do Letes: era o rio do oblívio, do esquecimento, lavando a memória de quem o cruzasse. O comandante romano Décimo Junio Bruto foi gloriado exatamente por ter atravessado o rio do esquecimento. No raconto de Carlos Fabião (A Romanização do Actual Território Português, na obra História de Portugal – Primeiro Volume – Antes de Portugal, coordenada por José Mattoso), o cônsul romano, depois de triunfar no sul de Portugal, avançou para as terras nortistas, ao encontro dos calaicos do Lima, onde também foi vitorioso: “O exército [romano] não parece ter encontrado grande oposição... As suas hesitações depois de passado o rio Douro parecem mostrar que só então os romanos ousaram afastar-se de regiões pacíficas. Os temores supersticiosos que os assaltaram parecem ter sido mais fortes do que qualquer oposição movida pelas populações locais. (...). A primeira hesitação manifesta-se nas margens do rio Lima. Ao que parece, os soldados recusaram-se a ultrapassá-lo, com medo de assim perderem a memória das suas origens. Este episódio... justifica as terríveis propriedades que, na Antigüidade, se atribuíam ao rio Lima. O temor dos soldados foi vencido pelo exemplo do próprio general [Junio Bruto], que, sozinho, atravessou o rio, para demonstrar que nenhum mal lhe sucedia”. A região de Viana do Castelo, como a de Vigo, fazia parte da Galécia. Foi romanizada e cristianizada, como disse. Roma impôs uma língua e um modo de vida. Aculturou, em profundidade, aquelas paragens – fazendo nascer, assim, uma nova sociedade, “galaico-romana”. Pelo fato de se

localizar na zona geocultural galaico-minhota, a futura Vila de Viana achou-se no espaço mesmo em que se gestou a língua portuguesa. Finalmente, o pequeno aglomerado pesqueiro ganhou estatuto de município, graças a um foral do rei Afonso III, datado de 1258. Mas Viana não se tornou um centro importante. É verdade que experimentou algum crescimento na segunda metade do século XV. Mas ela só foi se enriquecer, de fato, depois da partida de Diogo – e em conexão com a produção brasileira de açúcar, já que vianeses se engajaram em todos os estágios do processo, da instalação de engenhos na Bahia e em Pernambuco, ao transporte e à comercialização do produto em território europeu. Na época em que Diogo vivia por lá, o que se agitava mesmo, no horizonte português, era a empreitada marítima. E ele foi arrastado por essa onda expansionista, que espalhou a população portuguesa pelos quatro cantos do globo terrestre. Ou seja, Diogo viveu, pessoalmente, aquela que era a única realidade dinâmica, febril, da vida portuguesa de então – o mar e os sonhos que o mesmo mar excitava. Enfim, a aquarela que podemos compor à nossa frente vai retratar um jovem ousado e cheio de energia, vivendo numa região pobre, incapaz de oferecer maiores perspectivas de vida. Isto já seria suficiente para configurar um projeto migratório. E Diogo nascera em Viana, arraial atlântico, íntimo das grandes viagens marítimas, com uma população desinquieta, que não temia mares ou migrações. Não foi por acaso que, em Portugal – a Terra e o Homem, Jaime Cortesão definiu o lugar como “a capital marítima do Minho”. A intimidade vianesa com a paisagem marinha era de tal ordem que gerou a fórmula popular, ainda hoje lá usada, “botar o navio ao mar”, registrada por Afonso do Paço, em sua Etnografia Vianesa – “Quando um rapaz ou rapariga aparece pela primeira vez a namorar em público, encostado à parede, em tarde domingueira, diz-se que ‘botou o navio ao mar ’ com fulano ou fulana...”. Vivia ali uma gente que circulava pelas rotas do Atlântico Norte, em direção a Terranova e que, como disse, foi intensamente atraída, desde o início da nossa existência, para o Brasil. O donatário da Capitania de Porto Seguro, aliás, viria a ser um vianês que morava no arrabalde do Campo do Forno, o mareante Pero do Campo Tourinho. Mas a história das íntimas relações entre Viana e o Brasil não cabe aqui. Registro apenas que o historiador vianês Fernandes Moreira chegou a escrever, em Os Mareantes de Viana e a Construção da Atlantidade, que “o Brasil foi, ao longo dos últimos séculos, a segunda pátria dos vianeses”. A música popular daquela região lusitana exibe, de resto, diversas quadrinhas marítimo-brasílicas, reflexos das migrações iniciadas no século XVI – como esta, por exemplo, recolhida por Gabriel Gonçalves, no Cancioneiro Temático da Ribeira Lima: Oh meu amor do Brasil Passa o mar, anda-me ver, Que uma carta não é nada Para mim, que não sei ler.

Não se sabe precisamente com que idade Diogo Álvares cruzou a foz do Lima/Letes e embarcou oceano afora, com destino ao litoral brasílico. Diz-se apenas, como se lê numa carta de Manoel da

Nóbrega, que ele era muito moço. Mas o que significava ser “muito moço”, em fins da Idade Média? Juventude, certamente. Mas numa paisagem etária cujo desenho não coincide exatamente com o da nossa. Naqueles tempos, uma pessoa entrava na velhice ao dobrar a esquina dos 50 anos de idade. “O outono da vida do homem dos finais da Idade Média começava pelos 35 anos”, lembra Oliveira Marques, citando, a propósito, a teoria das idades formulada por D. Duarte. Na tabela etária do rei, a adolescência se achava delimitada pelos marcos dos 14 e dos 21 anos, idade que marcava o ingresso no período da “mancebia”. Dos 14 anos em diante, segundo o rei, as pessoas já se encontravam em idade de casar. Aos 21, “acabam de crescer”. Aos 28, “percalçam toda força e verdadeiro fornimento do corpo”. Com a chegada dos 35, tem início o declínio, degrau a degrau, rumo à velhice – e esta se instalava de vez quando o indivíduo alcançava o seu meio século de existência. Se Diogo veio para cá muito moço, deveria ter pouco mais de 14 anos de idade, talvez entre 14 e 18, e não mais que isso. Na terminologia tupinambá, seria um “curumim-açu”. E não é de espantar. Checando a idade de várias das personagens dos movimentos inaugurais do processo de conquista e colonização, vemos que a América foi, entre outras coisas, uma aventura da juventude européia. Lembre-se que o príncipe D. João estava com 19 anos de idade quando, em 1474, seu pai, o rei Afonso V, entregou-lhe a coordenação política e econômica da expansão portuguesa. Um pouco adiante, em sua obra Décadas da Ásia (1552), o cronista João de Barros se referiu à “mancebia juvenil” que embarcara com Pedro Álvares Cabral, na armada que passou pela região da atual Porto Seguro. E, em Retrato do Brasil, Paulo Prado escreveu: “A extrema mocidade de muitos desses emigrantes é um traço característico da época e da gente”. Prado cita alguns casos, como o do francês Simão Luís, que aqui chegou aos 10 anos de idade. E mais: “Cortés embarcara para a América aos dezenove anos de idade; Cieza de León, aos 13, e Gonçalo Sandoval, capitão de Cortés, apenas tinha 22. Estácio de Sá, entre nós, já era governador aos 17 anos, segundo uma informação jesuítica”. Prosseguindo, o escritor observa que “à sedução da terra aliava-se no aventureiro a afoiteza da adolescência”. Voltando a Diogo, podemos fazer as contas. O seu naufrágio na costa brasílica se deu em 1510 ou 1511 – o que significa que ele deve ter nascido no decênio de 1490. Viveu em Viana do Castelo, portanto, entre 1490 e 1510 – na transição entre os séculos XV e XVI, isto é, na passagem do “mundo medieval” para o “mundo moderno”. Exatamente entre uma data e outra, como ponto histórico eqüidistante, localiza-se o marco de 1500, com o estacionamento da armada cabralina nos arredores do que viria a ser Porto Seguro. Ou seja: também no caso de Diogo, a mocidade contou. Juventude é, quase sempre, sinônimo de “afoiteza”, como disse Prado. De ânimo e atrevimento. De desconhecimento de barreiras que são óbvias para um adulto. A ausência de vínculos, de responsabilidade pessoal e social, de compromisso produtivo, de engajamento numa rede de relações sociais de produção, de tarefas que dizem respeito ao pão-de-cada-dia da organização familiar, ou mesmo de uma atenção para esposa e filhos, permitem uma disponibilidade maior para a aventura e o risco. Disponibilidade para estabelecer tratos venturosos e desconhecer contratos rotineiros. Neste sentido, a juventude favorecia a viagem. Ora, o nosso Diogo era jovem – e queria viver. E a América significou, para ele e para muitos outros, uma possibilidade altamente sedutora: sexo, riqueza,

trópico e liberdade. Poderia alguém “muito moço” pedir mais que isso? À aventura, portanto. As travessias atlânticas, naquele tempo, nada tinham de fáceis. Não só pela penúria tecnológica de então, como pelo vão das ondas abrindo abismos insondáveis a uma fantasia forjada no maravilhoso medieval. O pessoal se amontoava num convés tão fétido quanto superpovoado, reclamando da pouca água, alimentando-se de bolachas apodrecidas, encharcando-se, caçando ratos e tentando divisar estrelas, já que os instrumentos náuticos então disponíveis não eram exatamente confiáveis. Sempre costumo recordar, a esse respeito, da viagem de Villegaignon, em que veio Jean de Léry. Ela durou de maio a novembro de 1555 – e a empreitada foi de qualquer forma abençoada, porque eles, partindo da França, conseguiram chegar vivos à Guanabara. Mas sofreram o diabo, ao longo do caminho marítimo. Veja-se este pequeno trecho do relato da travessia, extraído da narrativa de Léry: “Para cúmulo de nossa aflição na zona tórrida, as contínuas chuvas levaram água até os paióis, estragando e mofando a nossa bolacha. E tão pequena era a nossa ração, que nos víamos obrigados a comê-la apodrecida sem sequer desperdiçar os vermes que entravam por metade, fazendo de tudo sopas ou bolos a fim de não morrermos de fome. (...). Nossa água doce de tal modo se corrompera e tanto bicho acoitava que, tirada das vasilhas em que se achava depositada a bordo, a todos repugnava e o pior era que para beber se fazia mister segurar o copo com uma das mãos e tapar o nariz com a outra”. Léry pergunta então, aos “delicados senhores” que não saíam da Europa, fiéis à louça limpa, ao vinho translúcido, aos “copos bem enxaguados” e a “guardanapos brancos como a neve”, se eles gostariam de “embarcar assim para viver de tal maneira”, entre o pão podre e a água putrefata do equador, pagando caro para poder comer um rato. Adiante, aliás, a declaração do viajante calvinista é ainda mais forte: meses flutuando no oceano, sem vista de porto algum, sugeriam à marujada uma espécie de “exílio sem solução”. Dispor-se a cruzar o oceano era como que se dispor a encarar o desconhecido. A afrontar o medo: “...o medo imperava a bordo: o medo dos perigos de uma viagem cujo resultado final era sempre uma incógnita, o medo das intempéries, dos corsários e da doença. ‘Se queres aprender a orar, entra no mar ’, dizia um ditado português da época, revelando bem a fragilidade psicológica do viajante”, escreve Francisco Contente Domingos (Navios e Marinheiros, texto incluído na coletânea Lisboa Ultramarina – 1415-1580 – a Invenção do Mundo pelos Navegadores Portugueses, organizada por Michel Chandeigne). O navio podia sumir sem razão aparente e sem deixar rastros, como a nau de Vasco de Ataíde, que se desgarrou da armada cabralina sem que para isso houvesse explicação – e para nunca mais ser vista. Frédéric Mauro, em Portugal, o Brasil e o Atlântico – 1570-1670, dá uma boa visão dessas coisas, navios perdendo a rota por conta do mau tempo e/ou do mar enfuriado: “Um navio deixa o Brasil para o Cabo da Boa Esperança. Mas os ventos do Nordeste são tão fortes, que dentro em pouco ele regressa quase ao ponto de partida. Os [ventos] gerais impelem as naus da Índia para tão perto das costas do Brasil, que elas correm o risco de quebrar-se contra os Abrolhos. Podem encontrar-se perdidos em Espanha navios da rota de Pernambuco. Um navio é apanhado por um golpe de vento nos Açores: vem a ser reencontrado para os lados da Irlanda. (...). Em 1582, Fructuoso Barbosa deixa Portugal com quatro navios para colonizar a Paraíba. Chega à vista do Recife. Mas, aí, uma tempestade arrasta-o até às Antilhas....”

Repetindo Damião Peres, Giulia Lanciani insiste, a propósito, que enquanto os feitos heróicos da expansão portuguesa produziram poemas épicos, as tempestades, a fúria dos grandes ventos, o estrondo das ondas altíssimas, os ataques corsários, etc., fizeram nascer um “gênero literário peculiar”, formado pelos relatos de naufrágio. “O espetáculo dos mastros arrancados, dos cascos destruídos pelas tempestades, o pavor e os gritos dos náufragos, a engenhosidade dos homens que tentam se salvar, e depois a longa e arriscada marcha dos sobreviventes pelas terras desoladas da África, os ataques dos negros e das feras, a fome e a sede” constituem, no resumo de Lanciani (Uma História Trágico-Marítima), a matéria dessa literatura dos séculos XVI e XVII. Ainda segundo a estudiosa, a estrutura narrativa desses relatos apresenta uma tal homogeneidade que é possível sustentar a hipótese de que eles derivem de um modelo textual comum, “arquetípico”, que ela vai identificar “no modelo de relato medieval de viagem, principalmente nas narrações de viagens fantásticas para o além”. Mas se essas narrativas se estruturam a partir do relato medieval de viagem, também é possível verificar, como fez Angélica Madeira em A Prosa Barroca da História TrágicoMarítima, que a construção daquela prosa – com os seus jogos de contrastes abruptos e a figura do naufrágio ganhando dimensão alegórica, representação da existência humana em sua fragilidade e como perdição – coloca tais “relações” quinhentistas e seiscentistas no espaço da estética barroca. Muitos desses relatos foram enfeixados numa antologia, a História Trágico-Marítima, compilada no século XVIII por Bernardo Gomes de Brito – e podemos ainda hoje atravessar esses textos que exalam danação, pânico e morte. Veja-se, por exemplo, a relação do naufrágio da nau São Bento, ocorrido em 1554, no Cabo da Boa Esperança. O relato foi escrito por um certo Manoel de Mesquita Perestrelo, “que se achou no dito naufrágio”. E é impressionante: “A este tempo andava o mar todo coalhado de caixas, lanças, pipas, e outras diversidades de cousas, que a desventurada hora do naufrágio faz aparecer; e andando tudo assim baralhado com a gente, de que a maior parte ia nadando à terra, era cousa medonha de ver, e em todo o tempo lastimosa de contar, a carniçaria que a fúria do mar em cada um fazia e os diversos géneros de tormentos com que geralmente tratava a todos, porque em cada parte se viam uns que não podendo mais nadar andavam dando grandes e trabalhosos arrancos com a muita água que bebiam, outros, a que as forças ainda abrangiam menos, que encomendando-se a Deus nas vontades se deixavam a derradeira vez cair ao fundo; outros a que as caixas matavam, entre si entalados, ou, deixando-os atordoados, as ondas os acabavam, marrando com eles em os penedos; outros a que as lanças, ou pedaços da nau, que andavam a nado, os espedaçavam por diversas partes com os pregos que traziam, de modo que a água andava em diversas partes manchada de uma cor tão vermelha como o próprio sangue, do muito que corria das feridas aos que assim acabavam seus dias”. Diogo topou a parada. Podemos imaginá-lo de manto e ceroula de lã, comendo bolacha podre e caçando ratos raros, exposto ainda ao “mal do mar”, aos lacraus do escorbuto, em meio à marujada suja e colorida. A nave, afinal, apontara a proa em direção à América. No ano de 1510 ou 1511 – e para naufragar. É verdade que não temos um relato desse naufrágio. Mas o navio, para lembrar o Shakespeare da Tempest, fizera mais água do que donzela no cio. Afundara, apagando as suas luzes. Não se sabe exatamente como, nem quando, nem onde. Provavelmente, entre a pedra empinada –

pedra da ponta, “itapoã”, pela qual se antecipava a entrada da baía baiana, à vista dos lençóis de areia – e a elevação então verdejante do Morro do Conselho. A nau deu de proa ou de lado ou de quina ou de popa nalgum banco areento ou coroa de pedras, se já não vinha avariada desde antes, oscilando em direção à virada, para ceder de vez, ou paulatinamente, ao ímpeto ou à cadência das ondas. E Diogo, o vianês, estava nela. Atirou-se na água cheia de sal, agarrou-se num troço qualquer de madeira, nadou – tanto faz. O que conta é que conseguiu se aproximar da faixa mais clara da maré, ali onde as algas às vezes se enramam umas nas outras, e bem à altura da atual praia do Rio Vermelho, logrando, sabe-se lá como, ajustar-se entre onda e pedra. Pouco importa se com a mão sangrando, o joelho ferido, as roupas rasgadas ou a língua suplicando santos. Salvou-se. Com um brilho náufrago nos olhos, alcançou a pedra necessária ao batimento do coração. À entrada do ar pelas narinas. E ali estava. Esbarrara como náufrago, molhado e faminto, no trópico brasileiro. “Consta que deixara a sua terra, com um tio, atraído pelo gosto da aventura. Apareceu em circunstâncias obscuras, não se apurando até hoje como isso sucedeu. Tomando terra nos baixios do norte da barra, que os tupinambás denominavam Mairaquiquiig, entrou a viver entre os índios dos arredores sem jamais regressar a Portugal”, reconta-nos, numa vida de algum sabor quinhentista, o antropólogo Thales de Azevedo, em seu Povoamento da Cidade do Salvador. Mairaquiquiig, de acordo com os entendidos, significa “naufrágio dos franceses” – o que é um registro claro da presença de piratas da França nessa faixa territorial do Novo Mundo. Curiosamente, a toponímia tupinambá atravessou os séculos, sob a forma rápida e deliciosamente aportuguesada de Mariquita. “Ainda hoje chama-se Mariquita certo trecho do arrabalde do Rio Vermelho, correspondente aos aludidos baixios”, prossegue Thales. Em vez de a alguma cachopa esperta ou mulata vivaz, “Mariquita” vem, portanto, do tupi clássico, remetendo a corsários. E lá está, no bairro do Rio Vermelho, na Cidade do Salvador da Bahia de Todos os Santos, o Largo da Mariquita, com a sua pequena estátua em homenagem a Colombo, o seu posto policial preguiçoso, os seus automóveis barulhentos, o seu mercado de mariscos e cachaça, o seu rio transformado em esgoto a céu aberto. Por ter surgido do mar em meio às pedras, e à vista dos índios que ali demoravam, o jovem náufrago vianês recebeu, dos tupinambás, um apelido preciso. Caramuru. Gabriel Soares registra: “Chamam os índios às moréias caramuru, das quais há muitas, mui grandes e mui pintadas como as da Espanha, as quais mordem muito, e têm muitas espinhas, e são muito gordas e saborosas; não as há senão junto das pedras, onde as tomam às mãos”. No instante em que escrevo, “caramuru” é como ainda se chama o mesmo peixe, no vocabulário dos pescadores baianos, não raro vítimas suas. Caramuru – a moréia ou lampréia, peixe angüiliforme, enguia perigosa, quase uma cobra do mar, a viver entre locas e pedras, nas praias da Bahia. A expressão “moréia” vem, como se sabe, do grego myraina, e chegou até nós através do latim, muraena. Mas “caramuru” é palavra que pertence ao léxico tupinambá. Que tenha se convertido em apelido, em nome tropical do vianês Diogo, é coisa fácil de entender. Tudo está no modo como ele veio aparecendo na praia do Rio Vermelho, provavelmente magro e esfarrapado, desnutrido e pouco nutritivo, certamente encharcado, com as roupas ou restos de roupas colados no corpo macilento, esgaivotado. A sua figura esguia, deslizando

entre pedras onde moravam (e moram) moréias, sugeriu de imediato, ao agudo olhar tupinambá, a imagem da enguia. E os índios disseram – “Caramuru”, nome com o qual o jovem Diogo teria a sua personalidade gravada, e se tornaria célebre na História do Brasil. Caramuru – enguia se movendo esguia, de modo mais instintivo que reflexivo, entre marés culturais de força distinta e procedência diversificada. A partir daquele momento, do ponto exato da arribada na costa brasílica, nada seria como antes. O português poria os pés em terra, a caminho da transmutação. O mar alto já não seria somente o mar oceano, cartografado em mapas eruditos ou no imaginário popular, mas também a praia grande, grinalda de águas azuis, como diziam os tupinambás. Não seria apenas Atlântico, mas também Paraguaçu – Ipitera. Oceano lusitano e imensidão ameríndia. E assim passariam a se cruzar e entrecruzar, pela cabeça aventureira de nosso vianês, “culturemas” vindos da província de Entre Douro e Minho e “culturemas” produzidos nas malocas dos tupinambás. Signos e genes da Vila de Viana e signos e genes de Kirymuré. E é justamente aí que vai se configurar a nova persona: Diogo Caramuru, movendo-se entre árvores, bichos, pessoas e falas partícipes de um enigma.

A ALDEIA DA BAHIA Em 1535, premiada pela sorte, a nau São Pedro, da desastrada expedição do português Simão de Alcazaba, então a serviço do rei de Castela, ao Estreito de Magalhães, achava-se tranqüilamente ancorada em meio às águas mansas e cheias de “uma baía que se chama Todos os Santos, que é na Terra do Brasil”. A marinheirada fora recebida por Diogo Caramuru, em sua aldeia praieira, sincrética e tropical. E é graças aos depoimentos dessa gente, organizados em narrativa escrita por Oviedo y Valdés, ainda na centúria dos quinhentos, em sua Historia General y Natural de las Indias, que temos aquele que é o retrato mais completo da aldeia eurotupinambá da Bahia. Retrato, por sinal, de um momento de esplendor da povoação, antes do seu esvaziamento definitivo, em conseqüência do avanço da colonização oficial, a partir da implantação do sistema das donatarias. O que se projeta do texto quinhentista de Oviedo (um espanhol que achava que a pólvora estava para os infiéis assim como o incenso estava para o Senhor) é um Diogo Caramuru integrado na existência tropical, tratado com respeito e reverência pelos índios, não só como se tivesse nascido entre eles, mas como se já tivesse nascido morubixaba. Era um “capitão” (em outra passagem da Historia, Oviedo emprega a expressão “caudilho”), naquela terra, trazendo os índios sujeitados, a lhe guardarem “tanto acatamiento, como se nasçiera señor dellos”. O porte da sua aldeia não deixa de ser admirável. Não era uma povoazinha qualquer, insignificante, com meia dúzia de fogos ao redor de uma fogueira. Oviedo fala de umas 300 casas – “caserias desparçidas pero á vista unas de otras muchas dellas” – e de cerca de mil índios morando ali. Ou seja: algo que se aproximava de um povoado médio de Portugal, na região de Entre Douro e Minho, nesse mesmo período. Essas casas

teriam sido construídas mais ou menos à moda ameríndia, embora não fossem malocas, nem sugerissem uma aldeia tupinambá. Esta era composta por um pequeno número de grandes casas, que se colocavam no terreno, umas em relação às outras, de modo a definir uma praça central – e não por um casario espacejado. Tampouco se teria, ali, algo que sugerisse a Vila de Viana, retângulo de seis ruas paralelas entre si, no interior de muralhas de traçado arredondado, ovóide. A aldeia do Caramuru era uma outra coisa. Sincretismo arquitetônico apontando para um assentamento brasileiro. Diogo sabia comerciar. Abasteceu a nau São Pedro em troca de uma chalupa e de duas pipas de vinho. O que mostra que o nosso bom vianês, embora conhecesse o cauim, não abria mão do vinho europeu. Pragmático, demandou a chalupa, com a qual poderia circular pelas ilhas, praias e rios da Bahia de Todos os Santos e seu Recôncavo. Mas, como bom português de Viana do Castelo, quis o vinho para acompanhar os seus repastos tropicais, brindar com hóspedes e amigos, matar o tempo. Ou quem sabe para temperar, à sua moda, conversas e namoros com Catarina Paraguaçu e outras cunhãs, à luz de alguns luares litorâneos. Ainda segundo a narrativa de Oviedo, Diogo, antes que enclausurado no dia-a-dia da sua póvoa marítima, andava a par do que havia e acontecia fora de suas fronteiras aldeãs – na Europa e no Brasil. Não cortara os seus canais de comunicação extramuros. É assim que ele pode passar aos espanhóis o dado de que a “ochenta leguas de allí [da Bahia] la costa adelante tenia el rey de Portugal una fortaleça, de onde le llevan el brasil [pau-brasil], que se llama Pernambuco, donde residen ocho ó diez personas”. Mas Diogo sabe mais. Não tem conhecimento apenas da existência da feitoria, de sua função comercial e militar e do número de seus moradores, mas também do que vai se passando por lá, incluindo aqui uma expectativa do pequeno grupo de portugueses que a habitava – os oito ou dez residentes estavam, naquela hora, esperando de Portugal “una armada que yba á poblar aquella costa”. Como no ano anterior, 1534, o rei de Portugal, D. João III, promulgara a medida instauradora do regime das capitanias hereditárias, podemos concluir que a armada lusitana que aquela gente de Pernambuco estava aguardando era, claro, a de Duarte Coelho, seu donatário, que ali chegaria naquele mesmo ano de 1535, para fundar, em um monte alto chamado Marim, a sua Vila de Olinda. Como se vê, Diogo Caramuru não se achava espalhando pistas falsas ou coisas inventadas no instante. Ele sabia do que estava falando. Não era para menos. O circuito de naves e de informações era relativamente ativo na Bahia de Todos os Santos. De naves e de informações, frise-se, egressas de pontos variados do continente europeu. Havia, também, o giro incessante das informações que transitavam pelo meio ameríndio, circulando boca a boca, de aldeia em aldeia. Vem daí que o Caramuru não pecava por alheamento ou alienação. Ao contrário – como resumiu Thales de Azevedo, Diogo Álvares vivia entre os índios e bem ao modo dos mesmos, “sem no entanto abandonar as suas ligações com o mundo europeu através os civilizados que por aqui apareciam freqüentemente. E desses os mais assíduos eram os franceses, que o mantinham informado do que se passava em outros pontos da colônia e lhe davam indicações sobre épocas do calendário cristão, de tal maneira que nunca se desorientou quanto a datas quando interrogado por viajantes portugueses e espanhóis que, em diversas ocasiões, vieram ao sítio

da aldeia onde vivia, a Ponta do Padrão, por sua causa denominada também Ponta do Caramuru nos relatos dos cronistas coloniais franceses”. Em suma, o polígamo e poliglota Diogo Caramuru – que, pelo visto, falava francês, espanhol, português e tupi – vivia com as suas antenas ligadas. Acesas. As 300 casas-cabanas quase avulsas da aldeia, pontilhando em descaída o arvoredo à beira-mar, dispersavam-se, umas à vista das outras, por terras que ficavam entre a citada Ponta do Padrão, onde se acha o atual Forte de Santo Antônio, e a enseada que vai do atual Forte de Santa Maria ao atual Forte de São Diogo. Vale dizer – entre o Farol e o Porto da Barra, talvez se estendendo daquele ao ponto onde deságua o Rio dos Seixos. Era esta a faixa litoral do sítio da aldeia mestiça em que viviam Diogo e sua mulher Paraguaçu, cercados de índios e de índias, de um pequeno punhado de europeus (vindos de Portugal, da França, da Espanha) e de brasilíndios ou mamelucos de ambos os sexos. No Porto da Barra, já quase à entrada das águas largas da Bahia de Todos os Santos, Caramuru fez a sua camboa de pescar. E um pouco mais para dentro, já no sopé do que viria a se chamar Outeiro Grande, onde hoje é o assento da Ladeira da Barra Avenida e do bairro da Graça, ergueu ele a sua casa e uma pequena fortificação. É difícil delimitar com exatidão a área da aldeia. A chegada do donatário Francisco Pereira Coutinho, o Rusticão, parece ter alterado um pouco o quadro original: enquanto constrói a sua Vila Velha no Largo da Barra (hoje devorado pelos automóveis), ele doa ao primeiro morador terras que ficavam entre a Ponta do Padrão e o Rio dos Seixos – em direção ao litoral norte, portanto. Além disso, Diogo e Catarina tiveram, também, casa no alto, moradia posterior à da Barra, em lugar que hoje é parte do bairro da Graça. Nesse terreno é que foi erguida a capela em honra à Virgem Maria. E uma outra fortificação. Escreve Luiz Vilhena: “posso livremente participar-te a tradição que há, de que Diogo Álvares Caramuru fizera de taipa, e terra calcada a pilão, uma espécie de fortaleza junto onde hoje está o convento da Graça”. Diogo teria reproduzido então, no alto do outeiro, o modelo casa/fortificação implantado anteriormente nas proximidades da sua camboa, por onde antigamente penetrava a maré, “alagando o terreno baixo e arenoso”, depois coberto pelo aterro e as edificações que vieram a conformar o Largo da Barra, hoje destruído. Peça rara da colonização informal da Índia Brasílica, a aldeia do Caramuru viveu aquele que foi o nosso primeiro “ciclo econômico”, a chamada fase do escambo, quando os engenhos ainda não haviam definido a paisagem produtiva da Cidade da Bahia e seu Recôncavo. No seu caso, as atividades comerciais parecem ter se desenvolvido em duas direções. De uma parte, com naves européias; de outra, com aldeias indígenas. O intercâmbio com os europeus não fugiria ao figurino costeiro da época. A aldeia teria a sua oferta de pau-brasil, jacarandá, milho, farinha de mandioca, papagaios, araras, beija-flores e macacos, além de aves e animais de criação aqui introduzidos pelos próprios europeus, a exemplo de galinhas e de coelhos. Em troca, receberia tecidos, contas de vidro, tesouras, machados, facões, espelhos, foices, facas e guizos. Talvez alguma arma de fogo, talvez alguma pólvora. O escambo com os índios, por sua vez, era mais miúdo e mais amiudado. Pela própria localização litorânea da povoação, por sua inserção na rede dos grupos indígenas circunvizinhos e por sua posição de intermediário entre viajantes e nativos, o Caramuru atuou, muito possivelmente, como um fornecedor de produtos europeus aos brasis de Kirymuré e do Recôncavo.

Assim, a póvoa da Ponta do Padrão foi, também, um entreposto comercial. Não sabemos o que se passava diariamente naquela povoação de casario irregular, debruçada sobre o mar azul. Mas é evidente que a aldeia teria o seu horizonte cotidiano. Uma paisagem de homens circulando da caça à pesca, mulheres concentradas na cozinha e no tear, crianças correndo soltas no arvoredo. Volta e meia, um navio repontava ao longe, ponto móvel cruzando a linha do horizonte, avançando em meio aos meandros das águas marinhas. E, logo em seguida, a saudação mais próxima, alguma conversa, quiçá o escambo. Não raro, a necessidade de interceder junto a morubixabas e guerreiros de outras aldeias, a fim de que os adventícios fossem recebidos cordialmente, ainda que dessem água na boca, acendendo o desejo indígena de devorá-los. E é claro que haveria também explosões virulentas, tumultos de guerra, tiros da artilharia dos navios, flechas de veneno e fogo rasgando a pele do ar. Rebuliço especial no meio daquela indiada deve ter causado a viagem de Caramuru e Paraguaçu à França, a bordo de alguma nau da Bretanha. Viagem a um reino estranho-maravilhoso, que os índios apenas fantasiariam, em devaneios ocasionais. Lá, na cidade de Saint-Malo, a Paraguaçu foi conduzida à pia batismal, recebendo o nome de “Catarina do Brasil” (em homenagem à sua madrinha, Catherine des Granches, mulher do mareante Jacques Cartier, louvado como o “descobridor” do Canadá), e se casando, em seguida, com o seu Diogo. A propósito, Simão de Vasconcellos nos fornece um dado importante. Diz ele que a cerimônia nupcial, reunindo Diogo e Catarina, foi assistida por um jovem português, chamado Pero Fernandes Sardinha. Chegando a Lisboa em seguida, o jovem Sardinha “fez aviso a El-Rei D. João III da bondade da barra e da terra da Bahia”, o que significa que ele e Diogo tiveram alguma conversa. Mas Diogo estava entre os franceses, recebido com festas por uma gente que ameaçava o domínio tropical lusitano. Daí a preocupação de Sardinha, instando el-rei a povoar as terras brasílicas. Iremos encontrar esse Sardinha adiante, já como primeiro bispo do Brasil – mas numa situação algo desconfortável, tostando numa fogueira, prestes a ser repartido, em banquete antropofágico-canibal, pelos caetés que viviam nas cercanias do Rio de São Francisco. Bem. Diogo e Catarina voltaram de Saint-Malo e continuaram a tocar o barco de suas vidas na aldeia estendida ao largo da Ponta do Padrão. Portugal, embora já preocupadíssimo com a posse do extenso território tropical, permanecia indecidido, sem tomar a iniciativa do povoamento e da colonização. Até que resolveu enviar ao Brasil a expedição de Martim Afonso de Sousa. A 13 de março de 1531, a armada afonsina alcançou a Bahia de Todos os Santos. E foi só então que o Caramuru, depois de cerca de vinte anos vendo somente navios franceses e espanhóis, deu de cara alegre com naves que velejavam com as cores de Portugal. Graças ao Diário da Navegação, de Pero Lopes de Sousa, ficamos sabendo do encontro daqueles lusos com Diogo, “um homem português, que havia vinte e dous anos estava nesta terra”. Conta Pero Lopes que Diogo “deu razão larga do que nela [na terra da Bahia] havia”. Isto é: como costumava agir com outros navegantes que aqui aportavam, Diogo fez um relatório das riquezas e das carências da região. Lemos também aí que ele trouxe, à presença do capitão Martim Afonso de Sousa, “os principais homens da terra”. Que os índios fizeram festas e bailes, “amostrando muito

prazer por sermos aqui vindos”. Que os portugueses ficaram encantados com o que viram – a beleza das índias, comparáveis, por eles, às mulheres mais formosas da Rua Nova de Lisboa, então a via mais importante da capital do Reino. Que os lusos assistiram a uma batalha naval ameríndia – dois grupos adversários com cerca de cinqüenta canoas cada, todas elas coloridas, “apavezadas de pavezes pintados”, disparando flechas atrás de flechas –, vencida pelos aliados de Diogo Caramuru. E, finalmente, que os guerreiros vencedores comemoraram a façanha com um festim antropofágico. Dois anos depois, Martim passou de novo pela Bahia de Todos os Santos. E mais uma vez as festas pipocaram na aldeia eurotupinambá da Ponta do Padrão. Martim trazia um grupo de frades franciscanos – e houve um rosário de sermões e de batizados. Realizaram-se, também, os casamentos de duas filhas mestiças de Diogo, as brasilíndias Madalena e Felipa, que se uniram, respectivamente, a Afonso Rodrigues, português de Óbidos, e a Paulo Dias Adorno, filho de italiano e mãe portuguesa – uma dupla de foragidos que chegou à Cidade da Bahia por conta de um homicídio cometido em São Vicente. A partir dessa data, o futuro da póvoa do Caramuru seria o declínio, com a progressão da colonização oficial do Brasil. Em síntese, o quê dizer? Aldeia sincrética, mistura genética e simbólica, mestiçagem permanente. Filha mameluca de náufrago lusitano tupinizado e de índia tupinambá europeizada se casa com foragido ítalo-português acusado de assassinato em terras vicentinas... Sim: estamos nos primórdios da tessitura biossemiótica de uma peripécia histórica que responde pelo nome de “Brasil”. Uma aldeia tão sincrética que, ao português que a comandava, posso chamar pelo nome indígena de Caramuru – e, à sua esposa índia, meiga flor do canibalismo, por um nome europeu, Catarina.

HISTÓRIA DE UM FRACASSO A expedição afonsina de 1531 cumpriu os seus objetivos de defesa militar, exploração do litoral e do interior, fundação de vilas. Nesse último caso, a criação das vilas de Piratininga e São Vicente, em São Paulo, marcam o início do processo de colonização oficial do território ultramarino, com o estabelecimento de uma burocracia urbana e a distribuição de sesmarias. Viagem de caráter colonizador, e não apenas militar, ela nasceu das preocupações lusitanas diante da expansão americana dos espanhóis e da ameaça francesa à integridade territorial do Brasil. Mas a atenção portuguesa para o ultramar, naquele momento, já não era somente estatal. Se, antes do Estado, aventureiros e degredados tinham vindo para cá, agora o que havia era o interesse de um grupo social poderoso. Gente enriquecida no Oriente resolvera investir em outros territórios teoricamente dominados por Portugal. Até então, a Coroa lusitana vinha tratando a colonização do Brasil como uma questão estatal. Posicionara-se pelo monopólio régio. Mas o fato é que garantir a soberania lusitana através de uma ou outra feitoria implantada no litoral, ou do eventual envio de alguma armada guarda-costa, era não

apenas ineficaz, mas muito dispendioso. A fachada atlântica da Índia Brasílica exigia mais que um mero patrulhamento naval. Era preciso ocupar de fato a orla marítima brasileira. Foi aí que se impôs a necessidade de canalizar energias e capitais da iniciativa privada. E o Governo português resolveu transportar, para o Brasil, a experiência que realizara já, e com êxito, na colonização das ilhas da Madeira, dos Açores, de Cabo Verde e de São Tomé e Príncipe. Nasceu assim o decreto real de 1534, promulgando o regime das capitanias hereditárias. Portugal se voltaria finalmente, com propósito essencialmente colonizador, para o Brasil. O modelo, como disse, era o do Infante D. Henrique, aplicado antes nas ilhas atlânticas: a divisão da colônia em capitanias, a figura do capitão-donatário, a terra doada em troca de taxas para a Coroa e defesa do território, a plantação de açúcar. Em suma, a associação de capitais privados e de estímulos reais. Fora por esse caminho que aquelas ilhas se haviam convertido em bases importantes do comércio açucareiro na Europa. O modelo era vantajoso para a Coroa, que assim podia estabelecer colônias a baixo custo, e vantajoso para a iniciativa privada, movendo-se sob a proteção e o incentivo régios. Transposto para os nossos trópicos, ele faria o Brasil passar da feitoria e do escambo para a capitania e a agricultura escravista. Como, de fato, ocorreu. A Coroa doou terras a fidalgos e burocratas, reservando-lhes direitos que iam da montagem de engenhos à exportação de índios escravizados, da fundação de vilas à distribuição de cargos funcionais, da doação de sesmarias à exploração de minas que viessem a ser desveladas ou que porventura fizessem os seus brilhos aflorar. O donatário, premiado por seu desempenho africano e/ou asiático, vinha com poderes amplos. Além disso, a capitania era transmissível por herança, mediante confirmação real. Mas havia limites. Como frisou Jacob Gorender, em O Escravismo Colonial, as “cartas de doação” mostram o claro propósito de balizar as atribuições dos capitães hereditários. O sujeito poderia ter poder de vida ou morte sobre determinados indivíduos, mas não era dono de toda a extensão da terra doada. Ficava com 20% da área de sua capitania, obrigando-se a distribuir os 80% restantes. Feita a ressalva, vamos insistir em dois pontos básicos. A preocupação militar era nítida. Cabia ao donatário erguer fortes ou fortins em pontos estratégicos, construir e aparelhar navios para a vigilância das águas, organizar milícias. E nítida era também a preocupação econômica. Tratava-se de transformar o Brasil em colônia produtiva, com o incremento dos trabalhos agrícolas e das práticas comerciais. As terras que hoje pertencem ao Estado da Bahia foram então divididas em três capitanias: a da Bahia de Todos os Santos, doada a Francisco Pereira Coutinho; a de Ilhéus, entregue a Jorge de Figueiredo Correia; e a de Porto Seguro, que coube a Pero do Campo Tourinho. Nos termos da “Carta de Doação”, assinada pelo rei e passada em Évora em abril de 1534, a Capitania da Bahia de Todos os Santos estendia-se do Rio de São Francisco à “dyta baya de todos los santos e a largura della”, incluindo os seus recôncavos e as suas ilhas. Seu donatário, Francisco Pereira Coutinho, militar experimentado no serviço da Índia, onde ganhara a alcunha de “Rusticão”, veio para cá em 1536, trazendo parentes, amigos e colonos. Thales de Azevedo lembra que foi ele o comandante da nau Nossa Senhora da Ajuda, que “levou da Índia a Lisboa uma coleção de animais exóticos, entre os quais um elefante e um rinoceronte, mandados pelo rei de Gambaia ao monarca português, que por

sua vez os presenteou ao papa Leão X”. O cognome de Rusticão lhe foi pespegado porque não era exatamente a delicadeza o que o distinguia. O Rusticão não era um diplomata, mas um soldado. E um soldado que seria arrasado e liqüidado na Bahia. Ao chegar aqui, o Rusticão confirmou a posse de terras de Diogo Álvares Caramuru, estabeleceu-se nas proximidades da enseada da Barra e logo ordenou a construção das casas que viriam a formar a chamada Vila Velha – situada à beira-mar, na base do outeiro que vai se erguendo em direção ao atual Largo da Vitória – onde fez uma fortaleza, provavelmente onde hoje está o Forte de São Diogo. Além disso, tratou de construir dois engenhos e partiu para plantar algodão e cana. Nos primeiros anos, viveu em paz com os índios – e foi graças a isso que os moradores de Vila Velha fizeram as suas roças fora do arraial. Mas logo vieram ventos adversários. Os portugueses começaram a praticar desmandos na região. Pereira Coutinho – velho e doente – não tinha autoridade sobre eles. E os índios começaram a reagir, realizando ataques que mantinham a povoação insegura. Principiavam aí os tempos de terror, com assaltos e mortes. Finalmente, no ano de 1545, os tupinambás jogaram uma cartada mais dura. Incendiaram os engenhos de açúcar construídos pelo Rusticão, destruíram as plantações feitas nos seus arredores, mataram muitos colonos e, golpe final, sitiaram Vila Velha. Os portugueses se viram então em maus, péssimos lençóis. Estavam cercados pelos índios, sem comida e obrigados a buscar água, pelo mar, na Capitania de Ilhéus. Gabriel Soares de Sousa, que relata os tempos dessa luta, fala de uma época de “grandes fomes, doenças e mil infortúnios”. Os tupinambás matavam lusitanos a cada dia, incluindo alguns parentes e um filho de Coutinho Rusticão. Em resumo, aqueles portugueses tinham atravessado o Atlântico cheios de projetos e de sonhos, mas acabaram por mergulhar, de corpo e alma, em pesado, mais que pesado, pesadelo. A guerra com os índios era previsível. A paz dos primeiros dias foi, muito provavelmente, uma proeza alcançada por Diogo Caramuru (note-se que os tupinambás se aliaram aos franceses em toda a costa brasílica, menos na Bahia de Todos os Santos). Mas não poderia durar. O que se desenhava ali, diante daqueles tupinambás litorâneos, era um processo de invasão e de conquista. Não se tratava mais do comerciante francês, sempre de passagem, sem um projeto de ocupação territorial. Os portugueses tinham vindo para ficar. Queriam tomar a terra, fazer casas, disseminar lavouras. Por maior que fosse o prestígio do Caramuru – uma liderança carismática, em sentido weberiano –, seus discursos esbarrariam numa realidade óbvia: a invasão. Os tupinambás sabiam o que isso significava. Haviam invadido eles mesmos aquelas terras, liqüidando a pretensão tupinaé de dominar o litoral baiano. E agora começavam a ser enxotados pelo avanço lusitano, cujo programa incluía, de resto, a escravização dos índios. Theodoro Sampaio soube situar o problema em sua História da Fundação da Cidade do Salvador. A chegada daquele agrupamento de portugueses, ainda que contando com a proteção do Caramuru, não era, para o índio, senão uma invasão, “com todas as conseqüências imediatas ou remotas de uma conquista”. Os lusos iam se apoderando de tudo, das terras aos pesqueiros, “numa usurpação crescente, real, iniludível que acabaria por converter em ódio entranhado aquela descuidosa indiferença e quiçá boa vontade com que ele [o índio] acolhera o donatário e os seus colonos”.

A reação indígena estava engatilhada – e logo se acendeu. Mas, além da insubordinação armada dos ameríndios, havia os franceses, rondando os arredores de Vila Velha, e disputas internas que dividiam os próprios portugueses. Com relação aos franceses, sabemos que eles continuavam por ali. A vinda do donatário não fora suficiente para afastá-los das cercanias da Ponta do Padrão. Eles permaneceram amigos da indiada, fazendo o seu comércio e atiçando os tupinambás contra os lusos. Em Diogo Álvares Caramuru e os Franceses, Artur Neiva retraçou seus movimentos. Viu que eles estiveram aqui antes, durante e depois da experiência malograda de Coutinho Rusticão. O jesuíta Ruy Pereira, aliás, fornece dados sobre o assunto, ao narrar uma viagem que fez da Bahia a Pernambuco (Cartas Jesuíticas 2 – Cartas Avulsas). A embarcação em que ia teve que buscar as costas de Tatuapara, mas lá estavam à vista duas naus francesas. Havia uma outra nave mais para dentro, disseram os índios. Os portugueses não tiveram como ancorar. Como se fosse pouco, uma vela veio vindo ao longo da costa e viu-se que era, também, francesa. Ora, Tatuapara (Praia do Forte-Açu da Torre) é colada a Salvador, local onde hoje ecologistas tentam salvar tartarugas. Foi possível encontrar ali, num só dia, quatro navios da França. Ocorre que a carta de Ruy Pereira é de 1561. Se, em pleno governo de Mem de Sá, franceses possuíam porto e velejavam pela região, é fácil imaginar o que acontecia nos tempos de Pereira Coutinho. Na verdade, os gauleses queriam ver aqueles portugueses bem longe dali. Quando Vila Velha foi abandonada por sua população, avançaram sobre o arraial, pilhando-o. O donatário de Porto Seguro, Pero do Campo Tourinho, escreveu então uma carta sobre o assunto ao rei de Portugal, datada de julho de 1546. E se essa carta não falseia fatos, o que se tem pela frente é claro. Os franceses não somente saquearam Vila Velha, levando-lhe a artilharia. O que eles anunciaram aos tupinambás, naquela ocasião, foi um projeto de ocupação e de domínio. Voltariam para substituir os lusos, trazendo armas e gente em quantidade suficiente para tomar a póvoa marítima abandonada, promovendo a povoação da região. Temos aí um primeiro sinal, anterior às expedições colonizadoras para a Guanabara e o Maranhão, de que os franceses já pretendiam não apenas traficar, mas ocupar áreas do Brasil. Pouco tempo depois dessa investida contra Vila Velha, eles estarão de fato tentando implantar uma colônia no Rio de Janeiro. Mas fiquemos na Vila Velha. A situação ali, antes do povoado ser deixado ao deus-dará pelos seus moradores, ia se tornando sempre mais difícil. Os tupinambás a mantinham isolada. Em vez de saudações, brandiam bordunas; em vez de farinha, enviavam flechas. Os franceses espicaçavam o ânimo indígena. Fomentavam o ódio contra os lusos. Estes, acuados, experimentavam doenças e dores. O destino da Capitania parecia selado. E, como se não bastasse, explodiram brigas internas. Disputas intestinas. Um clérigo chamado Bezerra, afastado da Capitania pelas desordens que praticara, retornou numa caravela, portando um alvará falso, para anunciar a prisão do donatário. É difícil saber precisamente como tudo isso ocorreu. Mas o certo é que a anomia se instalara. Restava a dispersão. A fuga. E foi o que aconteceu. Uma parte dos habitantes de Vila Velha foi parar em Ilhéus. Outra parte refugiou-se, com Coutinho Rusticão, nas terras da Capitania de Porto Seguro. “Senhor – A Bahia, capitania de Francisco Pereira Coutinho, se despovoou por razão do gentio dela lhe dar guerra haverá um ano, e ele [Coutinho] se veio aqui onde ora está, sem nunca por

diligência acerca de a povoar”, escreveu Pero do Campo Tourinho, em sua carta ao rei. Da exitosa Capitania de Pernambuco, o donatário Duarte Coelho também se manifestou. Era preciso dar um jeito nas coisas da Bahia. Coutinho Rusticão era o culpado – e já não tinha pulso para resistir “às doidices e desmandos dos doidos e mal ensinados”. O agitado clérigo Bezerra, por sua vez, deveria ir preso para o reino, por ter feito “coisa mui desonesta e feia e digna de muito castigo” e por ser um “grão rebelde”, sentenciou o vitorioso capitão Duarte Coelho, que fizera construir, no alto de uma colina, em Pernambuco, a sua Vila de Olinda. Não tenho notícia alguma do destino desse clérigo Bezerra. O de Coutinho Rusticão, ao contrário, é bem conhecido. Chegou-se, não se sabe como, a um tratado de paz. Cronistas e historiadores dizem que Diogo Caramuru foi a peça fundamental desse acerto. Teria funcionado como uma espécie de emissário, mensageiro da bandeira branca entre as partes em conflito, até conseguir levar ao capitão-donatário a mensagem pacificadora dos índios. E Coutinho Rusticão resolveu, então, regressar. Embarcou em Porto Seguro com destino à Bahia de Todos os Santos. Mas para se dar mal, muito mal. Na viagem de volta para Vila Velha, o navio em que vinha encontrou “muito vento e tormentoso”, naufragando nos baixios da Ilha de Itaparica. O donatário e os seus caíram nas mãos dos tupinambás que lá viviam. Estes pouparam, apenas, Diogo Caramuru, o morubixaba luso. Coutinho e a sua entourage foram trucidados. Sepultados, como disse Luiz Vilhena, “nos ventres dos gentios que então habitavam aquela ilha”. E assim chegou ao fim, em dia de festa para os canibais itaparicanos, a carreira do cavaleiro que servira na Índia com o almirante Vasco da Gama.

O PODER LUSITANO De certa forma, o fim de Coutinho Rusticão, devorado pelos canibais de Itaparica, acabou contribuindo para o projeto português. Graças ao fracasso total da Capitania baiana, pôde o rei reaver aquela faixa territorial. A Capitania era hereditária, claro, mas D. João III optou por indenizar os herdeiros. A Bahia foi, assim, reincorporada à Coroa lisboeta, tornando-se Capitania Real. E aquele era mesmo o momento em que Portugal precisava dar mais um passo à frente, com relação ao Brasil. Na verdade, o passo decisivo. Era realmente uma situação de alto risco, para os interesses de Portugal. Podemos resumi-la nos termos seguintes. De uma parte, havia as pressões externas; de outra, as pressões internas. No primeiro caso, a integridade territorial da “América Portuguesa” achava-se ameaçada de duas direções. No litoral, pela ação francesa. No interior, pelo avanço da colonização espanhola. A essa dupla ameaça externa, acrescentava-se a questão interna. Estava claro àquela altura que, sozinhas, as capitanias não conseguiriam permanecer de pé. Tinham pela frente três grandes e graves problemas, aos quais não conseguiam responder com a eficácia esperável. De saída, permanecia inatingida a

meta da ocupação inteira do Brasil. Além disso, os donatários não alcançavam assegurar a defesa ativa e efetiva da extensa província ultramarina. Por fim, a maioria das capitanias, em vez de ir para a frente, desmoronava. Capitães se mostravam ausentes ou flácidos, se arruinavam, morriam. Duarte Coelho comandava Pernambuco, mas o que se via em outros focos colonizadores era a proliferação do desleixo, a multiplicação de desmandos e abusos, duras disputas internas. Para completar o quadro, crescia a ira ameríndia. Não é que o regime das capitanias tivesse simplesmente falido. É que faltava a peça central da nova engrenagem colonizadora. Analisando aquela conjuntura e a atitude tomada então pelo poder lusitano, Jorge Couto sintetiza (A Construção do Brasil): “A alternativa encontrada pelos conselheiros de D. João III consistiu na criação de uma estrutura político-administrativa, judicial, fiscal e militar diretamente subordinada a Lisboa: o Governo Geral”. Ato contínuo, em dezembro de 1548, o rei assinou os regimentos que definiam o novo quadro institucional da colônia, fixando as atribuições de seus elementos. Um poder sistêmico seria implantado nos trópicos brasílicos, com o objetivo de coordenar e aprofundar o processo colonial. Esvaziava-se em muito, portanto, o poder dos capitãesdonatários. O Governo Geral viria para comandar as atividades militares e os movimentos econômicos, controlando ainda o que dissesse respeito à área fazendária e à distribuição da justiça. Apenas a concentração do poder religioso seria retardada, já que somente em 1551 o papa Júlio III criaria a diocese da Cidade da Bahia, através da bula Super Specula Mi-litantis Ecclesiae. E aí então estaria concluída, no dizer do citado Jorge Couto, “a arquitetura institucional da Província de Santa Cruz no período joanino”. A escolha do local para implantar a nova estrutura de poder recaiu sobre a Bahia de Todos os Santos. O antigo “ponto de refresco” e “estação de esgarramento” deveria dar agora, depois do desbaratamento da Capitania, um salto notável. Os motivos que ordenaram a escolha não são difíceis de imaginar. Entre eles, contaram certamente o fato de a Capitania ter voltado às mãos da Coroa, a boa posição geográfica da região, a sua capacidade para receber grandes frotas, a fertilidade comprovada do solo para o plantio de cana-de-açúcar e de algodão, e mesmo a presença, ali, de Diogo Caramuru, capaz de facilitar a entrada dos portugueses e de atrair a massa indígena para os trabalhos vistos como necessários. Seja como tenha sido, D. João III decidiu construir em sítio baiano a sua cidade-fortaleza, destinada a centralizar as operações colonizadoras. Nas palavras do frei Vicente do Salvador, reunidas em uma História do Brasil, o rei resolvera “povoar outra vez” a Bahia de Todos os Santos, nela fazendo “uma cidade, que fosse como coração no meio do corpo, donde todas [as capitanias] se socorressem e fossem governadas”. De algum modo, o poder lusitano estaria assim corroborando a geopolítica dos ameríndios, pois, de acordo com o frei, os tupinambás mais antigos comparavam “o Brasil a uma pomba, cujo peito é a Bahia”. Outro religioso, o jesuíta Simão de Vasconcellos, demonstrou claro entendimento do sentido da empreita, ao observar que o propósito do rei de Portugal era “dar princípio a um Estado em que pretendia fundar Império”. Tudo foi planejado em detalhe. Thomé de Sousa foi o escolhido para “dar princípio” a essa nova realidade. Na definição de Gabriel Soares de Sousa, tratava-se de “um fidalgo honrado, ainda que

bastardo, homem avisado, prudente e mui experimentado na guerra de África e da Índia”. Logo, o bastardo estaria recebendo o “Regimento”, assinado pelo rei português. Espécie de “plano piloto”, contendo as determinações sobre o que se deveria fazer na Bahia de Todos os Santos, esse “Regimento” era, ao mesmo tempo, amplo e minucioso. Previa desde coisas de caráter bastante geral até ações de natureza localizada, como o porte de armas, por exemplo. Como sublinhou Thales de Azevedo, o “Regimento” fixava os poderes do Governo Geral, a alçada da justiça, as atribuições do fisco e, mais ainda, estabelecia uma verdadeira política demográfica para o Brasil, “indicada nas medidas de ordem econômica tendentes a criar uma base material à existência dos núcleos humanos, como nas providências de natureza religiosa e social endereçadas à integração dos aborígenes e à formação nos trópicos duma civilização cristã”. A fim de preparar o terreno a ser devidamente ocupado, D. João III despachou, de Portugal para o Brasil, em novembro de 1548, um navio comandado por um certo Gramatão Telles. O emissário Telles trazia uma carta do monarca lusitano para o nosso Diogo Caramuru. Nesta missiva, o rei avisava que estava enviando Thomé de Sousa como capitão-governador da Bahia de Todos os Santos – e que este faria uma povoação por aqui. Caberia a Diogo Caramuru se engajar na empresa. Antes de mais nada, providenciando uma reserva de mantimentos para a armada. Mas isso seria apenas o começo, bem entendido. Dizendo-se informado da “muita prática” que o Caramuru tinha das terras e gentes da Bahia de Todos os Santos e seu Recôncavo, o soberano português queria a sua adesão integral ao esforço que seria desenvolvido pelo Governo Geral – especialmente porque, segundo cálculos feitos pela própria Coroa, em Lisboa, haveria cerca de seis mil guerreiros tupinambás espalhados entre a foz do Rio Paraguaçu e a zona de Tatuapara. Em resumo, Diogo Caramuru estava convocado para participar da obra construtiva que o poder lisboeta idealizara. O planejamento deu conta ainda, com muito cuidado, da constituição da tripulação da armada. Além de despachar quadros administrativos e missionários jesuítas (a primeira leva da recémfundada Companhia de Jesus que chegaria à América), a Coroa escalara soldados, colonos e trabalhadores especializados. Se os soldados responderiam pela segurança da nova aldeia, os artífices colocariam a cidade de pé, com a ajuda de todos os braços disponíveis. Eram pedreiros, carpinteiros, marceneiros, serralheiros, telheiros, caieiros, calafates, ferreiros, etc., que trabalhariam sob a coordenação geral de um Mestre das Obras – o arquiteto-urbanista Luís Dias. No dizer de Theodoro Sampaio, a armada de Thomé de Sousa vinha com aparelhagem completa – “porque a expedição tinha por alvo antes criar e acrescentar do que combater e destruir”. Por último, o “Regimento” determinava que o Governo Geral esquecesse, deixasse de lado, Vila Velha. E erguesse a cidade-fortaleza em outro ponto. Seria preciso encontrar – “em sítio sadio e de bons ares” – um local mais apropriado que o da póvoa erguida por Coutinho Rusticão. E, aqui, surge um aspecto da maior relevância, para quem quer pensar a Cidade da Bahia: a cidade-fortaleza de Thomé de Sousa deveria ser feita em conformidade com “os traços e amostras” que o governadorgeral recebera ainda em Lisboa. Em outras palavras, o rei estabelece não apenas que a nova povoação seja edificada em sítio saudável, que possua “abundância de águas e porto em que bem possam amarrar os navios”. Mais que isso, ele “encomenda e manda” que a sua implantação siga os projetos

desenhados, antes, em prancheta lisboeta – os tais “traços e amostras”, que era como então se fazia referência a esboços e planos de natureza urbanística e arquitetônica. Tendo em vista que a cidade tivera o seu nome escolhido antes da partida da expedição de Thomé de Sousa, que a sua feitura e a sua fisionomia foram previamente planejadas, e que até o seu “escudo d’armas”, figurando um retorno da pomba à Arca de Noé, viera “desenhado e pronto” de Portugal, o estudioso Edison Carneiro, em A Cidade do Salvador – 1549 – Uma Reconstituição Histórica, disparou sem a mínima hesitação: “uma Brasília do século XVI”. No final de janeiro, tudo pronto, as embarcações já se achavam no Tejo, orlando a bela Torre de Belém. Mas foi só no primeiro dia do mês de fevereiro, uma sexta-feira, que as naves deixaram enfim Portugal, tomando o rumo da Bahia de Todos os Santos. Formada por três naus – Nossa Senhora da Conceição, Salvador, Nossa Senhora da Ajuda –, duas caravelas – Leoa e Rainha – e por um bergantim, o São Roque, a armada contava com cerca de mil homens, incluindo aí uma legião de “degredados” (que não eram somente os criminosos que costumamos fantasiar – pessoas conheciam o “degredo”, naquela época, por motivos que hoje soariam ridículos: por serem videntes, por exemplo; daí que eu costume dizer que personalidades como Glauber Rocha e Menininha do Gantois seriam, então, sérios candidatos à degredação). Nas palavras do padre Manoel da Nóbrega, a viagem se fez “sempre com ventos prósperos... sem que sobreviesse nenhum contratempo e antes com muitos outros favores e graças de Deus, que bem mostrava ser sua a obra que agora se principiou”. Realmente, o que houve foi uma travessia transmarina de rara tranqüilidade, prolongando-se por apenas 56 dias. E assim, a 29 de março de 1549, também uma sexta-feira, a frota exibiu as suas cores na moldura de sol da Bahia de Todos os Santos. Deu-se em Vila Velha o desembarque e o encontro, fundamental, com Diogo Caramuru. A indiada dos arredores, ouvindo o cacique branco, manteve os seus arcos à sombra, distensos, em posição de repouso. “Diogo Álvares quietou o gentio e o fez dar obediência ao governador, e oferecer-se ao servir”, informa Gabriel Soares. Escolhido o local para a construção da cidade, coroa quase plana no cimo de uma colina escarpada, cortada a pique sobre o mar, os trabalhos foram imediatamente iniciados. De começo, uma empreitada penosa. Os homens trazidos por Thomé de Sousa não tinham, evidentemente, onde dormir na terra firme. “Na faina dos primeiros dias, galgava essa gente a montanha pela manhã e descia com o entardecer a pernoitar nas naus”, reconta o supracitado Theodoro Sampaio. O movimento no porto improvisado, de resto, fez brotar uma rancharia, onde se levantou a ermida ou capela de Nossa Senhora da Conceição (da “concepção”, poucos se lembram). Mas só depois de armada uma forte cerca de pau a pique no cume da escarpa foi que o governadorgeral, sentindo-se sossegado, levou soldados, operários e degredados para dentro do canteiro de obras. Assinaladas as portas da cidade, definidos os alinhamentos das ruas, sinalizados os locais dos edifícios públicos, foi se formando, então, o arraial, o vilarejo cercado com muros de taipa grossa, “com dois baluartes ao longo do mar e quatro da banda da terra”, cada um deles contando com “muito famosa artilharia”, ainda segundo Gabriel Soares de Sousa. Em pouco tempo, a povoação já ia ganhando alguma forma, constelando-se com as suas casas de barro cobertas de palma, bem à

maneira ameríndia. A Casa dos Contos, a Alfândega, os armazéns e as oficinas, a Casa da Câmara e Cadeia e o próprio Palácio do Governo foram, todos, feitos de barro, madeira e palma, assim como de palha foi a primeira igreja erguida no interior dos muros da cidade, a de Nossa Senhora da Ajuda. Era o inevitável sincretismo arquitetônico, prenunciando outras misturas, não só previstas como estimuladas pelo “Regimento” que el-rei entregara a Thomé de Sousa. Um sincretismo que presidira já à formação da aldeia eurotupinambá de Diogo Álvares Caramuru – e que agora prosseguia na edificação do núcleo urbano que sediava o Governo Geral. Projetos e materiais europeus se misturavam com técnicas e materiais ameríndios, com o uso de varas para o ripamento, cipó substituindo a pregaria, palha brasílica em desenho europeu. A mão-de-obra era, aliás, maioritariamente indígena. Ameríndia. E esse sincretismo arquitetônico como que cristalizava, expressava e anunciava, nas suas construções tropicais, outros – e muitos – sincretismos. Ritmo rápido, para a época. Em quatro meses, construíram-se cerca de cem casas – “uma cidade de palha, como uma aldeia do gentio” (Theodoro Sampaio). E logo o padre Manoel da Nóbrega estará datando uma das suas cartas para Portugal nos seguintes termos: “deste porto e cidade do Salvador a 10 de agosto de 1549” – é o primeiro registro, que temos, de que existimos. Naquela ocasião, o chefe dos jesuítas já se encontrava pregando na nova cidade que surgia. Ora entusiasmado com a obra nascente, e as antevisões do trabalho da catequese, ora indignado com o desregramento e a luxúria dos homens, circulava o padre em meio às suas ruas e casas ensolaradas. Ao tempo em que ia observando que, no entorno mesmo do povoado, alguns braços principiavam a se mover, começando “a plantar canas de açúcar e muitas outras coisas para o mister da vida”. Rodeada de aldeias tupinambás, fosse em direção ao Carmo ou à Barra, a cidade de Thomé de Sousa era então um arraial fortificado no cimo do alto monte, estendendo-se da atual Praça Municipal à atual Praça Castro Alves. Fora da cidade ficava, portanto, o atual Terreiro de Jesus, perto do qual estava uma aldeia indígena, atraindo olhares missionários. Arraial acanhado, como se diz. Mas foi das experiências da aldeia eurotupinambá de Diogo Caramuru e da povoação de Vila Velha, caminhando em direção à póvoa de Thomé de Sousa, com o seu caráter de fortaleza dotada de toda uma organização político-administrativa, que se ergueu e se consolidou, a cavaleiro do Atlântico Sul, a Cidade do Salvador da Bahia de Todos os Santos. E não, aliás, como alguns acreditam, “São Salvador” – equívoco toponímico que, cometido pelo papa Júlio III, na bula em que nomeou o bispo Pero Fernandes Sardinha, acabou se generalizando, para ser popularizado, séculos mais tarde, por um samba de Dorival Caymmi. Mas o “são” nunca fez parte do nome da primeira capital do Brasil.

UM OUTRO JOGO A instituição do Governo Geral ultimou a engenharia do avanço lusitano nos trópicos. Num primeiro momento, tivemos a colonização individual, fragmentária, extraestatal – foi o período

caramuru da história do povo brasileiro. Adiante, com a expedição afonsina, uma tentativa de colonização tocada pelo Estado. Em seguida, apostou-se na iniciativa privada, ainda que sob as asas e a regulamentação estatais. Foi a vez das capitanias hereditárias. Por fim, num quarto momento, deu-se a intervenção estatal direta, o engajamento do poder monárquico no processo colonizador. Pode-se falar, agora, de um esboço de aparelho estatal funcionando na colônia. Deixando de parte o período caramuru, é possível dizer, nos termos de Jorge Couto, que passamos da exclusividade régia à exclusividade particular, para só então experimentar um “modelo misto”, definido pela combinação do sistema de governo geral e do regime das capitanias. Estudando os alicerces em que se assentaram os nossos primeiros núcleos coloniais, Darcy Ribeiro observa, em O Povo Brasileiro, que eles se plasmaram a partir de diversos processos adaptativos, associativos e ideológicos, dentre os quais se destacam a sua integração numa única estrutura sociopolítica, a incorporação da tecnologia européia, a difusão da língua portuguesa e o controle da vida mental no eixo Igreja-Estado. As inovações tecnológicas, as novas formas de ordenação social e o novo aparato ideológico “proporcionaram as bases sobre as quais se edificaram a sociedade e a cultura brasileiras como uma implantação colonial européia”. E a Cidade do Salvador da Bahia de Todos os Santos esteve no centro mesmo desse processo. Foi um núcleo urbano que surgiu para o mundo como o avesso mesmo da cidade medieval européia. Antes que ir se configurando no tempo, somando paisagens e passagens históricas, ou deixando a sua fisionomia se desenhar aos poucos por sucessivas levas de gentes e de técnicas, a capital do Brasil Colônia nasceu de um projeto racional. Não veio se desenvolvendo organicamente, desde um remoto embrião urbano. Seu nascimento foi concebido e determinado no âmbito das discussões do poder português sobre o destino do Brasil. Assim, antes que se formar a partir de direções diversas e de movimentos múltiplos, ela brotou de uma decisão real. Decretou-se o seu nascimento e o lugar onde ela seria construída. Ou seja: a criação da Cidade da Bahia foi um gesto intelectual e não o arranjo mais ou menos espontâneo de pessoas se agregando gradualmente num determinado sítio. Cidade concebida intelectualmente para responder às exigências da colonização, cidade planejada para direcionar o processo colonizador, ela não foi produto de um passado, mas plano – e sonho – de um futuro. Desse modo, aliás, o seu nascimento se inscreve perfeitamente no campo mais geral da história das cidades do Novo Mundo. “Desde a remodelação de Tenochtitlan, logo depois de sua destruição por Hernán Cortés em 1521, até à inauguração, em 1960, do mais fabuloso sonho de urbe de que foram capazes os americanos, a Brasília, de Lúcio Costa e Oscar Niemeyer, a cidade latino-americana veio sendo basicamente um parto da inteligência”, como disse o Angel Rama de A Cidade das Letras. Configura-se então, em sua plenitude, o projeto lusitano para os trópicos brasileiros. E qual era, em seu sentido mais geral, a natureza desse projeto? Para responder, situemos o tema num quadro amplo. Em A Invenção da América, Edmundo O’Gorman sustenta que, desde os primórdios do século XVI, a América foi pensada como a possibilidade de realização de uma nova Europa. E que havia dois caminhos para cumprir esse programa. O primeiro era o da adaptação das novas circunstâncias americanas ao modelo europeu, assim tomado como “arquétipo”. O segundo, inversamente, seria o

da adaptação do mencionado modelo às novas circunstâncias, caso em que tal modelo se tornaria “o ponto de partida de um desenvolvimento histórico empreendido por conta própria”. Os ibéricos – portugueses e espanhóis – escolheram o primeiro caminho. A conformação das realidades tropicais ao “arquétipo” metropolitano. Nas palavras de O’Gorman, “seja na esfera de interesses religiosos, políticos e econômicos, seja quanto à organização das relações sociais, verifica-se que a norma consistiu em transplantar para as terras da América as formas da vida européia”. O mais importante, no momento, não é sublinhar que o projeto de transplantação não pôde se realizar em sua pureza. Sabemos muito bem que o programa foi subvertido pela própria contextura tropical, pela existência de culturas indígenas e porque, em nosso caso, os portugueses resolveram importar escravos negros, o que significou trazer para cá densas e ricas formações culturais africanas. E a mestiçagem genética e cultural mandou pelos ares o projeto de pura e simples transplantação. Trataremos disso adiante. Mas não percamos de vista o fato de que a transplantação foi a idéia original. Buscou-se a reprodução de Portugal nos trópicos, a Cidade da Bahia como uma Nova Lisboa. Tendo isso em mente, podemos avaliar melhor o significado do impacto lusitano nos trópicos. A partir da implantação do sistema das capitanias, passamos do período caramuru de nossa história (colonização assistemática, integração de europeus no mundo indígena, economia extrativista, escambo) para um novo patamar. Muda o relacionamento de Portugal com o Brasil. Dáse a imposição de novos padrões econômicos e culturais. É a vez do sistema de plantação e do emprego de mão-de-obra escrava. Ao contrário dos traficantes de pau-brasil, os donatários vêm para viver aqui; ao contrário dos caramurus, plantam-se aqui não para extrair, mas para produzir mercadorias. Na dimensão antropológica, inicia-se aí o processo de inversão do predomínio cultural. Em vez de se integrar em graus variáveis no universo ameríndio, os europeus querem agora impor os seus valores, as suas crenças e as suas práticas. O Governo Geral vem para ordenar e aprofundar esse processo. Os índios deveriam então ser expulsos de grandes faixas de terra e submetidos ao trabalho escravo nas plantações. A guerra e o extermínio se tornavam inevitáveis. Enquanto perduraram a fragmentária colonização caramurua e a troca de pau-brasil por produtos europeus, perduraram as condições para que posturas e condutas, perante os indígenas, permanecessem aflorando em leque aberto, variegado. Caramuru não desejou – nem pôde desejar – a morte cultural dos tupinambás. Não pensou – nem pôde pensar – em unidimensionalizar culturalmente a Bahia de Todos os Santos. Ele era um, diante de muitos outros. Com a empresa oficial e o início da produção de mercadorias, tudo mudou. O encontro da colonização extraestatal e da sociedade sem Estado ficou para trás. Foi atropelado pelo rolo compressor montado pelos grupos dirigentes da sociedade portuguesa. Assim, a festa das hibridizações sígnicas deu lugar a um projeto de transplantação cultural. O que se passa a querer então é a erradicação do modo de vida social indígena, assim como a abolição da sua organização simbólica da experiência humana.

LUSOS & ÍNDIOS Os portugueses se achavam divididos quanto ao destino dos índios. Para falar em termos extremos, tínhamos a polarização entre os jesuítas e os colonos. Os jesuítas queriam transformar índios em cristãos. Os colonos queriam braços para as plantações que começavam a se expandir pelo Recôncavo Baiano. De um lado, a usina de signos, empenhada em concretizar o ideal utópico de uma sociedade cristã. De outro, a fábrica de açúcar, desejosa de incrementar riquezas. E enquanto o missionário jesuíta projetava pacificar e converter, o colono agrícola preferia que os índios continuassem canibais, guerreando entre si, pois assim estariam mais seguros nas suas plantações. Para os brasis, por seu turno, as perspectivas eram as piores possíveis. Embora houvesse dois planos lusitanos para o seu futuro, ambos apontavam, sem dúvida, para a sua destruição. Não haveria futuro algum. O julgamento do trabalho jesuítico costuma comportar radicalizações. Ora os padres são exaltados como seres canonizáveis, ora atacados sem pudor. Regra geral, a nota crítica está presente, mesmo nos críticos menos violentos. Guimarães Rosa fala, no Grande Sertão: Veredas, de missionários “engabelando índios”. E o enciclopedista Diderot faz com que um dos interlocutores do seu Suplemento à Viagem de Bougainville defina os inacianos como “cruéis espartanos de hábito negro”. Daí que seja sempre bom encarar o tema com serenidade. Superar o extremismo. Afinal, aqueles padres vieram para cá com o propósito de “reinventar o humano”, como bem disse Darcy Ribeiro. Era a utopia jesuítica. Ao mesmo tempo, não podemos perder de vista que tal utopia era totalitária – utopia terrorista da verdade única: só existe um saber, só existe uma verdade. A missão jesuítica nasceu de um Cristianismo que pretendia universalizar a sua linguagem, as suas normas, os seus gestos. Tratava-se de justapor, à conquista territorial, a conquista espiritual da Terra do Brasil. Seu objetivo era cristianizar os brasis. De início, pela persuasão. Contavam com a palavra (a pregação, o ensino escolar) e o exemplo. Mas logo a cena mudou. Nóbrega chegou aqui cheio de entusiasmo, multiplicando batismos. Percebeu de imediato, no entanto, que o seu otimismo contábil era vazio. Os índios não se convertiam de fato. No Diálogo sobre a Conversão do Gentio, performance barroca na estrutura clássica do diálogo platônico, ele conclui, simultaneamente, pela possibilidade teórica e pela impossibilidade prática da conversão. A saída seria reduzir o índio ao cativeiro, ao “jugo justo”, de modo que pelo menos os seus filhos, aí nascidos, pudessem ser cristianizados. É em momento de desencanto jesuítico, portanto, que o método da persuasão dá lugar ao plano dos “aldeamentos”, formulado por Nóbrega, que já então considerava o índio brasileiro como “o mais vil e triste gentio do mundo”, como se lê em suas cartas. Assim, a itinerância do missionário, andando de aldeia em aldeia, é trocada pela fixação do índio num espaço determinado pelos padres, geralmente junto de povoações portuguesas, mas onde brancos, pecadores contumazes, não podiam pôr os pés. E eis a aldeia jesuítica, espaço cristão para a reforma do índio. Utopia monástica, onde os brasis estariam a salvo da sanha escravizadora dos colonos. “A Aldeia é um grande projeto pedagógico total”, resume Luiz Felipe Baêta Neves, em O Combate dos Soldados de Cristo na Terra

dos Papagaios. Um espaço fechado para a reinvenção do humano. E a Bahia foi, no dizer de Serafim Leite, o “campo experimental dos aldeamentos indígenas”. Mas, persuasão ou aldeamento, o que isso significava? Era preciso afastar o índio do Demônio e trazê-lo até Cristo. Acontece que, naquele contexto, o Demônio era a Cultura Indígena. O ameríndio tinha que renunciar aos seus modos de viver e pensar. Tinha que deixar de ser índio: vestir-se, tornarse monogâmico, abster-se de comer carne de gente, trabalhar nas lavouras, jejuar. Trocar uma estética por uma ética do corpo. Para o jesuíta, o índio ideal era o índio que não fosse índio. Dito de outro modo, o projeto jesuítico pretendia promover a liqüidação sociocultural do mundo tupinambá. Proibir a antropofagia, a guerra, a nudez, a poligamia, o nomadismo. Daí que, depois de observar que “o que se salvou dos indígenas no Brasil foi a despeito da influência jesuítica”, Gilberto Freyre tenha escrito em Casa-Grande & Senzala que, como “agentes europeus de desintegração dos valores nativos”, a ação daqueles padres revelou-se tão destrutiva “quanto a dos colonos, seus antagonistas, que, por interesse econômico ou sensualidade pura, só enxergavam no índio a fêmea voluptuosa a emprenhar ou o escravo indócil a subjugar e a explorar na lavoura”. Quanto aos colonos, cabe situá-los em perspectiva histórica. Seria ilusório falar, genericamente, de uma visão portuguesa dos índios – ou apresentar um único modo lusitano de lidar com aqueles brasis. A diversidade é o que se impõe. A paisagem ideológica nada tem de mono-cromática, nem as intervenções práticas se pautam por uma partitura inflexível. Tanto na dimensão do pensamento, quanto no plano comportamental objetivo, as coisas tiveram muitos matizes. Ora o índio era visto como um companheiro de aventuras, ora era encarado como uma espécie falante de animal de carga – e não seria difícil encontrar a mescla dessas posturas numa só pessoa. Vamos falar no plural, portanto. Existiram visões lusitanas dos índios, assim como modos portugueses diversos de tratar aquela gente amarelo-avermelhada, festeira, guerreira e destemida. Tudo começa, é claro, com a chegada do capitão Pedro Álvares Cabral. Da escala brasílica daquela viagem com destino a Calicute, na Índia, ficou a Carta de Pero Vaz de Caminha, primeiro documento de uma visão portuguesa dos índios. E o que encontramos ali é um retrato, em moldura luminosa, de índios belos e inocentes, desfilando seus corpos saudáveis sob o céu do litoral brasílico. Índios mansos, nobres, edênicos – terreno que verá florescer o mito do homem em “estado natural”, que os textos de Vespucci e Léry irão popularizar na Europa, para impressionar a alma de Montaigne e, através deste, desaguar nos escritos de Rousseau. Caminha diz que a terra “achada” é amável – e que amáveis são as criaturas que nela vivem. Também o capitão Cabral representa um modo português de lidar com os índios que não merece a nossa reprovação. O sentimento de superioridade está presente, mas o comportamento é limpo. Enquanto Cabral prosseguia, cometendo o duvidoso mar com lenho leve, a situação brasílica começava a mudar. Cabral não tinha compromissos, nem contratos, por aqui. O seu contato com os índios se deu numa espécie de hora do recreio, em dia de folga, amplo e cintilante feriado tropical. Agora, no período caramuru, o panorama estava completamente transformado. Além da convivência rotineira, brancos e índios passavam a ter, em seus horizontes, a instância do trabalho. O ócio começou a ser destronado pelo negócio (do latim nec-otium, isto é, a negação do ócio). Entrava-se

no tempo da extração e da comercialização do pau-brasil. Nessa conjuntura extrativista anterior à consolidação da ocupação territorial, os brancos se achavam em estado de completa dependência. Era o índio quem podia conduzir o branco ao sítio das madeiras, era ele quem derrubava a árvore e, ainda, quem a transportava, já que, naquela época, inexistiam animais de carga na Índia Brasílica. E o índio fazia esse trabalho em troca de facas, espelhos, tesouras, miçangas. Mas e se de uma hora para outra ele não quisesse mais se sujeitar àquela faina sem fim? A empresa iria por água abaixo. Escravizar índios seria vantajoso, assim, não só para vendê-los a europeus que passavam, mas para obrigá-los a trabalhar. Não há razões históricas que nos impeçam de afirmar que, nesse período caramuru, os relacionamentos entre brancos e brasis se estenderam do amor, do companheirismo e da amizade ao desprezo, ao nojo e até ao ódio. Os gestos dos portugueses foram dos arranjos de amor e de sexo interracial, deflagrando o processo brasileiro de mestiçagem, às práticas de captura, escravização e venda dos ameríndios. Na Terra do Brasil, aliás, a escravidão não era coisa desconhecida por nenhuma das partes em jogo. Os índios brasileiros sabiam o que significava escravizar pessoas. Tupinambás escravizavam não somente europeus e “mamelucos” (ou “brasilíndios”), mas também, e antes disso, indígenas de grupos inimigos, como tupiniquins, carijós e maracajás. Os portugueses também escravizavam, há muitos e muitos sóis. Tinham escravos mouros – e, àquela altura, negros, também. O comércio europeu de escravos africanos começou em 1444, quando Gil Eanes, em viagem armada pelo Infante D. Henrique, levou para Portugal uma carga de duzentos indivíduos, entre pretos retintos e outros algo clareados, pela mistura com sangue árabe ou berbere. Se não havia novidade alguma no fenômeno escravista em si mesmo, mas diferenças nas realidades do escravo em formações socioculturais distintas, nem por isso portugueses e franceses deixaram de introduzir uma inovação, alterando o panorama do escravismo em terras brasílicas. Eles trouxeram para cá o comércio de escravos. E a prática comercial modificou a atitude ameríndia perante a escravidão. Hans Staden registra que, certa vez, quando os tupiniquins prenderam um lote inteiro de tupinambás, devoraram apenas os mais velhos, vendendo os jovens aos portugueses. Antes desse comércio, tais jovens teriam sido escravizados e, posteriormente, submetidos ao ritual antropofágico. É correto assinalar, assim, um efeito anticanibal, antimágico, da conversão de gente em mercadoria. Mas as coisas só mudaram radicalmente quando, em meados do século XVI, a economia do escambo começou a ser suplantada pela cultura da cana. A mão-de-obra indígena foi se tornando de importância crescente para o empreendimento colonial. E, com o desenvolvimento da agricultura, a simples compra de cativos em mãos dos índios passou a não dar mais para o gasto. Os colonos partiram, eles mesmos, para as ações de apresamento e escravização dos brasis. Paralelamente, a visão que esses portugueses tinham dos índios ia descoincidindo em tudo da cálida aquarela traçada por Caminha. Eles já não olhavam para os brasis como nobres e doces representantes de uma vivência paradísica anterior à Queda. Pero de Magalhães Gandavo dá voz à mentalidade reinante entre os colonizadores, quando escreve que os índios eram desonestos, cruéis, viciados e desumanos, vivendo como animais brutos, “sem ordem nem concerto de homens”. Nos termos de Lewis Ranke, o

índio passara do estatuto de noble savage à categoria de dirty dog. De nobre selvagem a cão imundo. Daí o confronto entre colonos e jesuítas. Os padres criavam obstáculos à escravização generalizada de índios, conseguindo que alguns de seus pontos de vista se convertessem em decretos legais. Entre outras coisas, tratavam de impedir a escravização de índios cristianizados. Defendiam que só poderiam ser submetidos ao jugo brasis capturados em “guerra justa” (guerra lusa em resposta a ataque indígena). Colocavam a salvo da escravização os índios que moravam em seus aldeamentos. Mas os colonos não faziam por menos. Os senhores de engenho do Recôncavo, como o nosso conhecido Gabriel Soares de Sousa, combatiam e sabotavam o trabalho jesuítico. Tentavam impedir a aproximação entre padres e brasis. Seqüestravam ameríndios indiscriminadamente. E assaltavam os próprios aldeamentos jesuíticos. No fim das contas, tudo conspirava contra a existência indígena – inclusive os próprios índios, em guerras constantes entre eles mesmos. Mas é evidente que os principais responsáveis pelo extermínio dos tupinambás da Cidade da Bahia e seu Recôncavo foram os portugueses, numa ampla ação que envolveu padres e capitães, ou os Soldados do Rei e os Soldados de Cristo. Eram trabalhos complementares. Os soldados do rei cuidavam da desestruturação política, social e econômica dos agrupamentos indígenas. Os soldados de Cristo, da desintegração espiritual, retirando os índios das suas aldeias, violentando-os e tratando de lhes impor uma nova mentalidade, essencialmente estranha a tudo o que eles eram. Já o “Regimento” de Thomé de Sousa trazia instruções da Coroa acerca do tratamento que deveria ser dispensado aos brasis. O rei ordenava que o capitão-governador submetesse os ameríndios hostis aos lusitanos. Thomé obedeceu, mas nem tanto. E a verdade é que, ao longo da administração do primeiro governador geral, o que se tinha na Bahia não era um estado de guerra entre brancos e índios. O caldo só vai engrossar um pouco mais adiante, no período de Duarte da Costa, segundo governador. Foi aí que o fogo da guerra se alastrou de vez. E os índios levaram a pior. Na versão de Gabriel Soares, o gentio “se alevantou e cometeu grandes insultos”. O governador deu o troco. Consta que, em 1555, ele incendiou cinco aldeias pelas bandas do Rio Vermelho e, em seguida, no espaço de apenas uma semana, destruiu outras treze nos arredores da capital, levando à morte, ao cativeiro e à fuga cerca de três mil ameríndios. Não é por outro motivo que Luís Henrique Dias Tavares destaca em sua História da Bahia, no governo de Duarte da Costa, “a conquista militar do Recôncavo” (“a conquista do além São Tomé de Paripe, em direção de Aratu e Passé”) e “a submissão dos índios que aldeavam em Itapuã”. Mas o grande massacre da massa indígena ainda estava a caminho. Viria com a aliança entre Mem de Sá, terceiro governador geral, e os padres da Companhia de Jesus. Mem de Sá deu apoio claro à política de aldeamento dos jesuítas. Estes, por sua vez, apoiaram a guerra do governador contra os brasis, inclusive com Anchieta celebrando-a exaltado, no poema Feitos de Mem de Sá. E o jogo foi, sem dúvida, pesado. “Caem já aos índios brutais os brutos braços e pernas...”, comemora, em um dos seus versos, o padre Anchieta. Na verdade, foi Mem de Sá, irmão do poeta Sá de Miranda, quem ultimou a “conquista militar” do Recôncavo. Quem moveu a chamada Guerra do Paraguaçu, nos anos de 1558-1559, quando foram arrasadas cerca de cem aldeias indígenas. “Mem de Sá destruiu e

desbaratou o gentio que vivia de redor da Bahia, a quem queimou e assolou mais de trinta aldeias, e os que escaparam de mortos ou cativos, fugiram para o sertão e se afastaram do mar mais de quarenta léguas”, escreveu o nosso sempre citado Gabriel Soares de Sousa. Em termos panorâmicos, o fato é que, do governo de Thomé de Sousa ao governo de Mem de Sá, os milhares de tupinambás de Kirymuré e Paraguaçu – aqueles que se opuseram aos lusos, é claro, porque boa parte deles se aliou aos novos invasores – não foram simplesmente submetidos ao domínio português. Foram eliminados.

A CIDADE E O RECÔNCAVO As últimas décadas do século XVI foram, para a Cidade da Bahia e o seu Recôncavo, um período de expansão e de enriquecimento. Mas é claro que, ao falar de crescimento e de riqueza, não estou me referindo a nenhum “paraíso terrestre”. Longe disso. Essa foi uma época em que houve muitos problemas. E sérios. Como se sabe, a Cidade da Bahia recebeu, logo depois de construída, fortes injeções reais para o seu desenvolvimento. Em 1550 e 1551, por exemplo, o rei de Portugal enviou duas armadas até à Bahia, conduzindo gente e mantimentos. Além disso, houve o chamado “incentivo fiscal”. D. João III assinou um alvará determinando que as pessoas que passassem a morar na Cidade da Bahia, naquela época, ficariam isentas de impostos – por três anos, os lavradores; por cinco anos, os artífices. Mas, ao lado dos estímulos régios, sopraram também, e às vezes fortemente, ventos decididamente contrários. Ventos da fome e da doença, em especial. Os anos de 1562-1563 foram tempos de fome e de epidemia. Sob o açoite da fome, aliás, índios tupinambás chegaram a se vender, a si mesmos, como escravos, suplicando para serem comprados. E a varíola varreu sem piedade a região, dizimando, particularmente, pretos e brasis. Suspeita-se que a peste tenha sido trazida por uma nau que ancorou em Ilhéus. Daquele porto, a varíola foi se espalhando em progressão assassina, ocupando “sertão e courela do mar”, segundo o jesuíta Leonardo do Valle – “e assim veio mui devagar, correndo para cá até chegar a Itaparica”. Depois da mortandade causada naquela ilha, a peste cruzou o mar, avançando em direção à Cidade da Bahia e ao seu Recôncavo. O painel composto pelo jesuíta Leonardo do Valle, testemunha dos fatos, é realmente espantoso. Ele fala do fedor sufocante dos corpos putrefatos, de mulheres debilitadas parindo prematuramente nas ruas e nos monturos, de crianças morrendo por não ter o que chupar nos peitos doentes das mães, de porcos comendo cadáveres. Índios e negros foram as grandes vítimas da epidemia, que, em poucos meses, deixou milhares de mortos. Entre febres e pústulas, houve um duelo mágico. Os missionários jesuítas diziam que a peste era um castigo divino, pelo fato dos índios estarem se deslocando para além do Paraguaçu, em adesão a um movimento messiânico – a uma “santidade” ameríndia, como veremos. Ocorre que esses padres

corriam, então, de um lado para o outro, no afã de batizar às pressas os contaminados que estavam à beira da morte. Aproveitando-se disso, os pajés saíam a campo para frisar o vínculo entre batismo e falecimento, denunciando que a água benta era letal. Flechas fendendo as paragens extranaturais, como se vê. Já em plano humano, a Cidade da Bahia e o seu Recôncavo experimentaram também, naqueles decênios de prosperidade, agressões armadas de ingleses e de holandeses. O interesse dos ingleses pelo Brasil – e, particularmente, pela Bahia – não teve, obviamente, um décimo da intensidade do interesse francês. Mas não deixou de existir. Tivemos, inicialmente, as viagens de William Hawkins, negociante de Plymouth. Sabe-se, ainda, que um certo Pudsey, de Southampton, fez uma viagem à Terra do Brasil em 1542, construindo um forte nas vizinhanças da Bahia de Todos os Santos. Objetivo: dar cobertura militar ao comércio dos ingleses com os tupinambás. Como os súditos de Francisco I, os ingleses vinham para cá à procura de pau-brasil, algodão e papagaios. Que chegassem a erguer aqui uma fortificação, é certamente sinônimo de que tal comércio era relativamente ativo, rendendo lá os seus lucros. Mas o que mais nos interessa, no momento, é a ação dos corsários, lançando-se ao mar no rastro de sir Francis Drake, o pirata-mor da Inglaterra. Mais precisamente, importa-nos a expedição comandada por Robert Withrington e Christopher Lister. Destinada originalmente aos mares do Sul, essa expedição fracassou. Não conseguiu atingir o Estreito de Magalhães – e acabou promovendo um longo canhoneio contra a Cidade da Bahia. No primeiro volume da História Geral da Civilização Brasileira, Olga Pantaleão e Sergio Buarque de Holanda informam: “Tendo apresado dois pequenos navios no Rio da Prata, [a expedição] recebeu dos seus prisioneiros informações sobre a Bahia, que a decidiram a dirigir-se para aquela região, onde chegou em abril de 1587. Não conseguiu tomar a cidade do Salvador, mas assolou o Recôncavo durante dois meses, retirando-se para a Inglaterra, sem grandes ganhos, no começo de junho”. Continuemos no plano internacional. Em 1580, por uma questão dinástica, Portugal caiu sob domínio espanhol. Instaurava-se assim o período histórico batizado pelos espanhóis de “União Peninsular”, uma situação que se prolongaria até 1640. Com Portugal anexado, o Brasil passou também a ser senhoreado pela Espanha. Era a época do reinado de Felipe II. Gravitando em órbita espanhola, a possessão ultramarina se viu envolvida nos jogos e conflitos daquela coroa ibérica. De profunda repercussão para nós, no caso, foi a luta da Holanda – ou do que viria ser a Holanda – para se ver livre da dominação espanhola. Em conseqüência dessa conjuntura bélica é que se dariam as invasões holandesas da Bahia e de Pernambuco, no século XVII. Mas antes disso, ainda no período que estamos focalizando, o peso da artilharia batava foi sentido na Bahia. Já no finalzinho do século XVI – em 1599, para ser preciso –, os holandeses bombardearam a Cidade da Bahia, sem conseguir conquistá-la, durante vinte e cinco dias. Mas o fato é que – apesar da fome, da grande epidemia de varíola, dos disparos insistentes de Withrington e Lister e do bombardeio holandês – Salvador e o Recôncavo conheceram décadas de indiscutível florescimento, da expansão urbana à disseminação dos engenhos, com os seus canaviais sedeando ao vento. Bem vistas as coisas, é já nessa época que se pode começar a falar da cidade-eseu-recôncavo como de realidades interligadas ou entrelaçadas. De certa forma, os portugueses

superpuseram a sua rede econômico-comunicacional a uma malha indígena preexistente, que conectava as aldeias do Paraguaçu, do Iguape, de Itaparica e de Kiry-muré e cercanias. Dito de outro modo, os assentamentos e as interconexões tupinambás como que prefiguraram a realidade a que nos referimos quando enunciamos o sintagma a Cidade da Bahia e o seu Recôncavo. Plantado nas redondezas da Ponta do Padrão, Diogo Caramuru conhecia os caminhos do Recôncavo. Circulava por aquelas muitas rotas aquáticas e terrestres, deslocando-se de Kirymuré para Itaparica, de Itaparica para o Paraguaçu, do Paraguaçu para o Vale do Iguape. Mas aquela era uma região indígena. Com a chegada de Coutinho Rusticão, os portugueses se acantonaram na Barra, espraiando aos poucos as suas roças, até que a Capitania entrou em parafuso. Retomando passos, Thomé de Sousa abriu caminhos, facilitando o circuito Salvador-Recôncavo. Duarte da Costa levou adiante o processo de integração, impondo vias lusitanas onde houvera vias ameríndias. Mem de Sá ampliou a clareira, para, na base de duríssimas disputas com os índios, chegar à região de São Francisco do Conde. E as terras foram sendo ocupadas. Sesmarias. Egas Moniz recebeu a Ilha dos Franceses, Álvaro da Costa tomou posse de considerável segmento da margem direita do baixo curso do Paraguaçu, possessão convertida em capitania “de juro e herdade” em 1566. E os engenhos de açúcar foram avançando sobre o massapê. Na década de 1580, conforme Gabriel Soares de Sousa, eles eram 36, caminhando para o Recôncavo a partir de Água de Meninos. A cidade foi-se “enobrecendo”, como dizem alguns estudiosos. Isto é: via imóveis efêmeros, “rústicos”, darem lugar a edificações mais sólidas e mais amplas, ao tempo em que ultrapassava as suas primeiras demarcações, deixando para trás os muros de taipa grossa. A caminho do final do século XVI, o atual Terreiro de Jesus não era mais apenas um logradouro na mira catequética dos jesuítas, mas um espaço socialmente concorrido, onde se promoviam procissões e corridas de touros. Vila Velha, ponto do desembarque de Thomé de Sousa, convertera-se em subúrbio da nova capital. E as moradias dos mais ricos iam adquirindo imponência, requintes lusitanos. Em suma, o acampamento militar de Thomé de Sousa estava quase irreconhecível. Começara, de fato, a se transformar em cidade. E a riqueza crescia nos campos. Já em inícios da segunda metade do século XVI, gado bovino, cavalos, éguas, porcos e cabras circulavam pelo litoral norte, na fazenda de Garcia d’Ávila, cujas terras se localizaram primeiramente nos chamados campos de Itapuã, mas para logo alcançar a enseada de Tatuapara, em cujas redondezas foi construída a célebre Casa da Torre. Na direção oposta a Tatuapara, canaviais iam cobrindo o Recôncavo. Os primeiros engenhos de açúcar, instalados na época de Coutinho Rusticão, viram seus talos estalando sob a fúria das fogueiras tupinambás. Mas a empresa açucareira vingou. “O século XVI caracteriza-se pela implantação e desenvolvimento ininterrupto da agroindústria açucareira”, sintetiza Esterzilda Berenstein de Azevedo, em seu Arquitetura do Açúcar. Havia estímulos oficiais, associação de capitais privados portugueses com capitais de outros países – flamengos, inclusive –, facilidades para “obtenção e transferência” de mão-de-obra escrava, etc. E o fato é que a produção brasileira de açúcar logo suplantou a das ilhas do Atlântico, cujo modelo produtivo Portugal transplantara para cá. Bahia e Pernambuco eram os grandes centros da geografia açucareira do Brasil. E os engenhos do Recôncavo se encorpavam,

quase atingindo, por estabelecimento, o número de igrejas existentes na Capitania Real. Entre a cidade “enobrecida” e o Recôncavo rico, estabeleceu-se desde logo uma espécie de circuito reversível. Os senhores das grandes casas urbanas eram, também, os senhores das grandes casas rurais. Cidade e Recôncavo viviam assim um movimento complementar de fluxo e refluxo, a depender do que estava em jogo na temporada. Demografia sazonal. Na época da moagem, todos para o campo; no “inverno”, de abril a junho, todos para a cidade. Mais que siameses, a Cidade da Bahia e o seu Recôncavo se fizeram siamesmos. Porque eram os mesmos os seus senhores, os mesmos os seus escravos negros e os mesmos os seus índios destronados.

A SANTIDADE DE JAGUARIPE Falamos já da resistência armada dos tupinambás à progressão tropical dos lusitanos. Eles destruíram a Capitania da Bahia. Mas não foi ela a única seriamente atingida. Outras donatarias conheceram a dor e a morte espalhadas pelos flechaços indígenas. O que se costuma esquecer, na verdade, é que a guerra não representou um recurso exclusivo, como se fosse o único método de colocar barreiras à implantação dos europeus na região. Conhecemos também outras formas de resistência indígena, naquela época. A resistência cultural, por exemplo – embora também essa, não raro, desembocasse, aqui e ali, em fortes conflitos armados. Nesse caso, temos que destacar o papel desempenhado pelas “santidades”, que era como os missionários jesuítas designavam os caraíbas. Na verdade, a expressão “santidade” possuía diversos significados nos textos jesuíticos. Nomeava o profeta-feiticeiro, os ritos que eles oficiavam (com transes, bailes e cantos), o conjunto das crenças que cultivavam e, ainda, os movimentos messiânicos que deflagravam, acenando com a possibilidade do advento da Terra sem Mal. Para se ter uma idéia do fenômeno, vamos falar um pouco da Santidade de Jaguaripe, que se formou no Recôncavo Baiano na década de 1580. De acordo com o historiador Ronaldo Vainfas – que examinou o assunto em seu estudo A Heresia dos Índios: Catolicismo e Rebeldia no Brasil Colonial – foi ela “a santidade mais importante de nossa história quinhentista, autêntica seita herética que, comandada por um caraíba já marcado pela catequese jesuítica, desafiou o colonialismo, a escravidão e a obra missionária dos inacianos, incendiando engenhos, promovendo fugas em massa dos aldeamentos, pondo em xeque, enfim, o status quo colonialista da velha Bahia de Todos os Santos”. Vamos seguir de perto, aqui, as informações contidas na obra de Vainfas. Os caraíbas sempre fizeram pregações contra o domínio europeu. E pregações especialmente agressivas. Entre outras coisas, exortavam os índios a fugir dos aldeamentos jesuíticos, a matar portugueses, a provocar incêndios, a roubar. Houve mesmo um caraíba que profetizou que os brancos ainda iriam se transformar em caça, para ser a comida dos índios. No caso da Santidade de

Jaguaripe, o que tivemos não foi coisa muito diversa. Seu líder foi um índio, um caraíba, mas que conhecera os ensinamentos dos jesuítas no aldeamento da Ilha de Tinharé, onde chegou a ser batizado, recebendo então o nome de Antônio. Pois bem: Antônio fugiu de Tinharé com o propósito de sublevar os índios. E conseguiu. Não só índios, por sinal. Também os “negros da Guiné” foram atraídos para a movimentação subversiva. Resultado: autoridades coloniais, padres e senhores de engenho se encresparam, quase beirando o pânico. Fugas e revoltas indígenas cresciam. Índios botavam fogo em fazendas e matavam colonos. Incendiaram, por exemplo, uma fazenda do poderoso Garcia d’Ávila, que viera para cá na armada de Thomé de Sousa. E, também, um aldeamento jesuítico. Fala Ronaldo Vainfas: “Bahia, anos 1580: tempo de levante indígena, incêndios e saques”. E mais: “o fim do século XVI parecia indicar o clímax das hostilidades recíprocas entre portugueses e ameríndios na Bahia”. Quanto à Santidade de Jaguaripe, especificamente, há dois aspectos seus que merecem ser negritados. O primeiro é o do sincretismo religioso. O caraíba Antônio passara, como vimos, pela catequese jesuítica. E ele incorporou muitos signos cristãos. Conforme as palavras de Vainfas, a Santidade de Jaguaripe apresentou “uma plêiade de ingredientes que mesclavam, de forma original, o catolicismo e a cultura tupinambá”. O resultado deu numa espécie de catolicismo tupinambá, se assim se pode dizer. O caraíba Antônio se apresentava como portador dos poderes mágicos característicos do feiticeiro tupi. Acreditava-se capaz de fazer as plantas crescerem e de rejuvenescer as velhas, por exemplo. Ao mesmo tempo, “dizia ser também o verdadeiro papa, chefe da verdadeira Igreja que levaria os índios para o céu”. Havia também na “seita” uma profetisa tupi chamada... Santa Maria ou Mãe de Deus. Por último, a fim de “purificar” os índios antes convertidos pelos jesuítas, a Santidade tratava de rebatizá-los, num rito que alternava a água benta européia e o tabaco indígena. Ou seja, utilizava-se de um rito católico, o batismo, para invertê-lo. A pia batismal servia agora para limpar a mácula cristã, contraída pelos índios que haviam caído na conversa dos missionários. O outro aspecto a ser enfatizado é que a Santidade foi cooptada por um poderoso senhor de engenho, Fernão Cabral, talvez descendente do capitão Pedro Álvares Cabral. Fernão resolveu atrair os índios heréticos para as suas terras, acolhendo e protegendo a Santidade. É fato que o caraíba Antônio jamais botou os pés nos domínios daquele dono de escravos, mas parte da “seita” se deslocou para lá. Fernão era um fidalgo rico e arrogante, amigo do governador Teles Barreto, inimigo dos jesuítas. Chegou a seqüestrar índios das aldeias dos padres, por sinal. Tinha o hábito de dizer na boca das mulheres, durante o ato sexual, a frase latina hoc est enim corpus meum (‘isto é o meu corpo’), usada no ritual cristão da missa para expressar a presença de Cristo na hóstia consagrada. Violento, chegou a lançar uma escrava índia – viva e grávida – na fornalha de seu engenho. Mas o que Fernão Cabral pretendia com a cooptação da Santidade, que construiu uma igreja nas proximidades de sua casa-grande? Segundo seus contemporâneos, Fernão, fingindo ter aderido ao culto católico-tupinambá, objetivava usar os índios em proveito próprio. Apoiando a heresia, o senhor de engenhou propiciou a sua expansão. E quanto mais a Santidade crescia, mais crescia a mão-de-obra em sua fazenda. Índios começaram a migrar para lá, fugindo de outras fazendas. Fernão

tinha o intuito de escravizar todos – “projeto megalômano de tornar-se o principal, se não o único, senhor de escravos da Bahia, dono de todos os índios, forros e guinés, governador de todos os mamelucos, verdadeiro rei da Bahia” –, mas ele acabou perdendo o controle da situação. O culto é que estava se fortalecendo. E é claro que os demais senhores do Recôncavo se revoltaram. Armaram uma onda de protestos e pressões. Até que o governador, encurralado, ordenou a destruição da Santidade. A expedição repressora cercou e incendiou a igreja, dominando os índios. Estes, perplexos, não chegaram sequer a ensaiar uma reação. A Santidade de Jaguaripe sonhava “emendar a lei dos cristãos”. Destruir a igreja dos padres e acabar com a escravidão. Ou, por outra, projetava escravizar os brancos ou mesmo eliminá-los. Mas o que sobreveio foi a sua derrota. Recusa radical da situação colonial, a Santidade de Jaguaripe foi uma espécie de canto de cisne da resistência tupinambá na Bahia.

UMA SOCIEDADE MESTIÇA Sim. Sob o signo da mestiçagem. Foi assim que teve o seu ponto de partida essa aventura a que chamamos Brasil. Fiz referência, parágrafos atrás, ao fato de estudiosos brasileiros – como Pandiá Calógeras e Ronald de Carvalho, por exemplo – datarem o início da colonização da Índia Brasílica a partir da chegada da esquadrilha de Martim Afonso de Sousa, instaurando, em São Vicente, as bases de uma “vida conversável”. Mais recentemente, o marco da passagem de Martim Afonso perdeu o privilégio de ser visto como o pontapé inicial da partida que ainda agora estamos a jogar. Reagindo contra as teses centenárias da “descoberta” e do “Novo Mundo”, nossos historiadores passaram a fixar o início da história do Brasil em remotas migrações páleo-asiáticas, retraçando o enredo histórico à chegada dos primeiros grupos “amarelos”, que teriam atravessado o Estreito de Bering em direção ao nosso atual território. Sem pretender de modo algum desconsiderar a presença indígena, penso que devemos situar o início do processo histórico brasileiro justamente no encontro, na encruzilhada de trajetórias histórico-culturais distintas, que aqui se atritaram e se mesclaram. Temos a história de tupinambás e tupiniquins, com a sua política expansionista, assim como temos a história de Portugal – e, em seguida, histórias africanas –, na origem última de nossa configuração atual. Mas, quando falo de um marco inaugural da aventura chamada Brasil, tenho em vista o que principia com o cruzamento dessas vertentes histórico-culturais dessemelhantes. Caso contrário, manuais de história brasileira teriam que abrir espaço para o casamento (e as façanhas adúlteras) de D. Dinis, o rei-poeta que tornou oficial o uso da língua portuguesa em Portugal, e para os rituais coloridos e percussivos dos alafins de Oió, com os seus “orikis” de linhagem e as suas roupas rubras pontilhadas de búzios brancos.

Sejamos razoáveis. O Estreito de Bering, a reconquista cristã da Península Ibérica e as guerras entre nagôs e haussás foram indispensáveis à nossa formação. Mas não pertencem, exatamente, à História do Brasil. São, no máximo, capítulos extrabrasílicos da nossa peripécia. Ou, sempre que quisermos falar de nossa circunstância, teremos que recontar múltiplos mitos e múltiplas histórias da humanidade, e até mesmo que refazer a cena adâmica do batismo dos bichos ou reencenar o momento em que Olodumarê enviou Oxalá para fabricar a terra firme. Afinal, quais foram mesmo os povos asiáticos que meteram o pé na estrada, cruzando a chamada “Beríngia” e dando de cara com o continente americano? Que produção cultural traziam com eles? Que sabemos nós das etnias que habitavam Portugal antes que Cristo deixasse em polvorosa quartéis e sinagogas do Oriente Médio? Que sinais os lígures nos legaram? De que modo os bantos brotaram na chamada África Negra? São perguntas que ignoram respostas. Se o que importam são tais “raízes”, estaremos condenados, talvez definitivamente, ao tateio aleatório no brumado dos tempos. Mas a verdade é que não é isso o que nos interessa. A história ameríndia deságua na história do Brasil, mas não a deflagra. Pode-se falar então de uma pré-história indígena, de uma pré-história portuguesa e de uma pré-história africana do Brasil. Mas o processo brasileiro propriamente dito se dá a partir do momento em que europeus passam a habitar as terras em que antes apenas índios pisavam. Isto é, ingressamos no que se chama História do Brasil no momento em que ocorreu uma ruptura no isolamento oceânico em que os ameríndios viviam – e o imenso território se integrou num jogo agora realmente mundial. É evidente que, para nos pensar e nos entender, temos que conhecer os nossos índios, os nossos portugueses, os nossos africanos. Mas, em princípio, a história e a cultura ameríndias, assim como as de Portugal e as de África, devem nos interessar por si mesmas, independentemente do Brasil. Pois é só quando começam os cruzamentos genéticos e culturais que podemos nos referir a movimentos inaugurais de nossa trajetória histórico-antropológica. Fiquemos, portanto, na encruzilhada. Nos dias do grande encontro antropológico do século XVI. Se há que haver um marco, o marco é este: nascemos sob o signo do pragmatismo caramuru. A sociedade que se formou na Cidade da Bahia e seu Recôncavo, ao longo do século XVI, foi uma sociedade em processo contínuo de mestiçagem, apesar de todas as desigualdades existentes entre os grupos que a constituíram. A estruturação social que ela exibia decorreu, logicamente, do próprio caráter da agricultura escravista. Para falar em termos esquemáticos, os grupos sociais se dividiam numa minúscula camada privilegiada, formada pelos senhores de escravos; num setor intermediário numericamente mais significativo, onde vamos encontrar lavradores, mercadores e artesãos; e na massa de seres humanos reduzidos à escravidão. Apesar dessas fortes assimetrias, no entanto, o sincretismo esteve presente em todos os momentos daquela vida social. Para usar uma nova distinção da biologia inglesa (ver The Selfish Gene, de Richard Dawkins), o que houve ali foi um jogo incessante de “genes” e de “memes” de procedências diversas. Se os “genes” são unidades ou entidades de transmissão de informações biológicas, sediadas no DNA, os “memes” aparecem como unidades ou entidades de transmissão de informações simbólicas ou culturais. E o que se viu na Bahia quinhentista foi a armação de um primeiro cenário para um espetáculo destinado a atravessar

toda a nossa história. Um espetáculo tropical feito de coreografias, metamorfoses e fusões – inevitáveis, casuais ou procuradas – de genes e de memes. No plano genético, por exemplo, o sincretismo conheceu tanto a necessidade quanto o acaso e a busca. As mulheres brancas eram praticamente inexistentes nesse segmento do mundo banhado pela luz atlântica. O que os europeus encontraram aqui, nos primeiros tempos coloniais, foi uma multidão de ameríndias nuas. E eles prontamente adotaram a prática indígena da poligamia, alguns indo além disso, para cometer abusos e atentados sexuais. Nóbrega, que se preocupava com o “grande pecado e escândalo” da poligamia quase tanto quanto com a “boca infernal” do canibalismo, chegou a escrever uma carta observando que o rei de Portugal deveria mandar para cá mulheres brancas. Órfãs, por exemplo. Ou mesmo mulheres que “fossem erradas”, desde que não tivessem perdido de todo “a vergonha a Deus e ao mundo”. Mas a falta de fêmeas brancas não foi suprida. Com isso, os filhos mestiços, brasilíndios, se multiplicaram. Mais tarde, começaram também as mestiçagens euroafricana e afroameríndia. Mas a verdade, como disse, é que essas misturas interétnicas não foram apenas inevitáveis, mas também procuradas. A presença de mulheres brancas, na Bahia, não aboliu de modo algum as fusões. O que se pode dizer é que a ausência delas, no início da nossa formação sociocultural, ajudou a incrementar o jogo. A mestiçagem foi igualmente intensa na dimensão cultural. Sincretismos em vai-e-vem, processo aculturativo de mão dupla. Páginas e páginas podem ser escritas sobre esse fenômeno de entrecruzamentos antropológicos, mas vamos falar apenas de umas poucas coisas, capazes de dar uma idéia geral do assunto. Aqui, o que houve de mais notável, inicialmente, foi que os índios ensinaram os brancos a viver na Terra do Brasil. Ensinaram os caminhos da água e da terra, as virtudes e os venenos da flora e da fauna – o que plantar, o que comer, o que fazer; a distinguir entre uma cobra e outra; a ler informações no mapa celeste. Em suma, submeteram os europeus a uma pedagogia ecológica. A uma didática dos trópicos brasílicos. Sem essa pedagogia tropical, os portugueses não teriam sobrevivido aqui. Em contrapartida, os índios não receberam dos europeus nada que fosse tão fundamental. A grande maioria das coisas que os portugueses lhes ensinaram contribuiria apenas para a sua desintegração final, a curto, médio e longo prazos. De qualquer modo, naquela época, eles incorporaram equipamentos do repertório tecnológico desenvolvido na Europa, especialmente no setor da utensilagem metálica. Coisas que, como as enxadas e os anzóis, modificaram radicalmente os seus métodos de plantar e pescar. Na verdade, não podemos nos esquecer de que essa teia de sincretismos transformou em profundidade os lusos, fazendo-os brasileiros, mas serviu, em primeiro lugar, à sua vitória sobre os ameríndios. Eles tinham vindo para dominar. E era indiscutível a sua superioridade em termos de poder tecnológico e mortífero, inclusive em escala microbiana. Nesse particular, aliás, sabemos que a devastação da população indígena foi sobretudo biológica, em conseqüência das ondas epidêmicas que, após a chegada dos europeus, varreram os litorais quinhentistas da Índia Brasílica. Mas voltemos um pouco o filme. Falamos já do sincretismo arquitetônico – com europeus assimilando técnicas construtivas ameríndias e ameríndios assimilando técnicas construtivas

européias –, a propósito da edificação da Cidade da Bahia. Mas, mais importante que isso, foi o sincretismo lingüístico. Sob o influxo da língua tupinambá e, em seguida, de idiomas africanos, tivemos o primeiro capítulo da história da língua portuguesa no Brasil. Essa história começa antes da colonização oficial. O idioma português veio para cá mais cedo que a armada de Martim Afonso – e foi se intrometendo aleatoriamente pelas aldeias e matas da Terra do Brasil, flama que vicejava na ponta da língua dos caramurus. Este é o ponto de partida da trajetória brasileira do sistema lingüístico português. O que vamos presenciar depois da excursão saneadora de Martim Afonso, com a demarcação das capitanias hereditárias e o estabelecimento do Governo Geral, já é um segundo lance do jogo. No primeiro, com os caramurus, a língua portuguesa apenas ondula e lampeja nos trópicos, mas sem uma direção projetual previamente delimitada. No segundo, com a marcha irrecorrível da centralização estatal, subordinando as capitanias a um projeto único, o horizonte é outro. Ou melhor: existe, pela primeira vez, a definição de um horizonte. Ao invés da palavra escassa e casual, do fragmento discursivo que reponta aqui e ali, ou da pequenina mancha verbal ilhada na floresta dos falares indígenas, o que vai se configurar então, em resposta à implantação de um Novo Portugal entre nós, é um projeto geral de transplantação lingüística. Mas também a transplantação lingüística não se impôs na sua pureza. Foi, igualmente, subvertida. A língua portuguesa entrou em contato com outros sistemas lingüísticos altamente estruturados, originários da própria Índia Brasílica e, posteriormente, da África. E essas mestiçagens verbais foram se encarregando, ao longo dos tempos, da definição de uma realidade lingüística peculiar, de tal modo que hoje é possível dividir a língua portuguesa em dois grandes dialetos – o lusitano e o brasileiro. O que assistimos então, durante o século XVI, foram os movimentos iniciais da formação do Português do Brasil. Mas, para não ficar multiplicando exemplos, já que as mesclas e misturas se deram em todas as direções, da vivência de concepções temporais distintas ao campo da vida afetiva e sexual, vamos falar de apenas mais duas coisas. Houve, no século XVI, uma grande diversificação de nossa paisagem botânica. “A colonização do Brasil provocou um dos mais amplos processos de cruzamento intercontinental de espécies vegetais”, enfatiza Jorge Couto. Os portugueses trouxeram para cá plantas do reino, dos arquipélagos atlânticos e de terras africanas e orientais. O coqueiro, hoje tão “típico” da Bahia, veio nessa época. Assim é que podemos dizer que os nossos coqueirais foram importados. E que a sua origem é asiática. Por outro lado, os portugueses entraram em contato, aqui, com o vasto conhecimento botânico dos índios – e daí nasceu uma medicina sincrética, tropical. Um cientista francês, Sigaud, ficou simplesmente horrorizado com a mistura de práticas terapêuticas ameríndias e fórmulas copiadas de livros europeus de medicina. Expressando a sua reação diante dessas mesclas medicinais, o acadêmico francês fuzilava, definindo-a como uma “terapêutica informe, grosseira, extravagante”. Desse verdadeiro rosário de sincretismos do primeiro século brasileiro faziam parte já, como vimos, os negros vindos compulsoriamente do continente africano. Passada a experiência sociocultural da aldeia eurotupinambá de Diogo Caramuru, eles começaram a dizer presente por aqui. Consta que um primeiro grupo de africanos chegou à Bahia de Todos os Santos em 1538. Seu

destino, Vila Velha; seu condutor, um certo Jorge Lopes Bixorda. Mas ainda não se pode falar, a respeito daquela época, da existência de um tráfico sistemático de africanos escravizados. A armada de Thomé de Sousa, por sua vez, praticamente não trouxe negros. Sabemos de um Ignacio Dias, serralheiro, que montou sua base de trabalho no Rio Vermelho, e dos mulatos Manoel Pereira e Vicente Affonso. Mas não muito mais que isso. De qualquer sorte, havia, desde a instalação das donatarias, autorização da Coroa para a importação de escravos africanos. O que significa que os “bixordas” poderiam se multiplicar, como, de fato, se multiplicaram. E os negros começaram a chegar em ondas sucessivas, mas já na segunda metade do século XVI. Foi o chamado “Ciclo da Guiné”. Na década de 1580, os engenhos do Recôncavo já se achavam cheios de africanos. Em O Negro na Bahia, Luiz Viana Filho calcula que havia por aquela época, em nossas terras, cerca de sete mil escravos negros. Um contingente populacional mais do que significativo. E como, onde havia escravidão, havia revolta contra a escravidão, datam daí, de resto, nossos primeiros quilombos, núcleos de refúgio e revelação dos escravos que escapavam aos mandos e desmandos da agricultura escravista. Para incrementar ainda mais as misturas de códigos e repertórios, havia a presença judaica. Eram os chamados “cristãos novos”, judeus convertidos ou supostamente convertidos ao Catolicismo, por oposição ao “cristão velho”, espécie de católico da gema. Há, inclusive, a suspeita de que Diogo Caramuru tenha sido cristão novo. Não se pode provar, mas também não é improvável. O nascimento de Diogo, que podemos situar aí por volta de 1490, coincide com um tremendo incremento da migração judaica para Portugal. E essa migração – especialmente, a de judeus aragoneses – alcançou as terras de Viana do Castelo. Foi por essa época, aliás, que Viana começou a possuir as suas “judiarias”, como eram chamados os guetos da comunidade judaica nas cidades portuguesas. E se Diogo tinha de fato origem judaica, aí estaria, de resto, um bom motivo para ele se retirar do território português. Aquele foi, ainda que contraditoriamente, o período culminante da reação antijudaica em Portugal, que desembocaria no massacre da “judiaria” de Lisboa, em 1506. Nesse período, muitos cristãos novos vieram parar no Brasil. Antes e depois do início da colonização oficial, aliás, fugindo da situação portuguesa ou degredados pela Inquisição. De 1501 a mais ou menos 1516, espaço de tempo que envolve o naufrágio de Diogo na praia do Rio Vermelho, o Brasil, nas palavras de José Gonçalves Salvador, em Os Cristãos-Novos – Povoamento e Conquista do Solo Brasileiro (1530-1680), “esteve arrendado a um consórcio de cristãos-novos, encabeçado por Fernão de Noronha”. E há quem diga que os judeus emigrados teriam, inclusive, “contribuído com vocábulos hebraicos para o Tupi”. Esta última tese foi defendida, entre nós, por Moysés Kahan, no livro Judeidade. Em resumo, Kahan acredita que a formação da chamada “língua geral”, forjada na comunicação entre os índios e os primeiros povoadores europeus, data do período caramuru de nossa história. É pré-jesuítica (aos padres da Companhia de Jesus coube o trabalho de “gramaticizála”), configurando-se “em virtude do contato que, durante 50 anos, tiveram os indígenas do Brasil com os judeus, portugueses e espanhóis, a salvo de outras influências que se manifestaram a partir de 1549, quando se iniciou a regular e sistemática colonização do litoral”. É no campo das trocas lingüísticas do Brasil Caramuru, portanto, que Kahan vai centrar o seu estudo, afirmando que as

línguas faladas por aqueles pioneiros europeus penetraram nas línguas indígenas do litoral, nelas deixando as suas pegadas, do plano fonético ao lexical. Entre os nexos mais interessantes que Kahan nos oferece, está o de que a expressão emboaba (em tupi, ‘forasteiro’) derivaria do hebraico am bo aba (‘homem de outro povo’). Mas não vamos nos alongar. Tome-se aqui como referência, mais uma vez, a expedição de Martim Afonso. Ela já encontrou judeus aqui, trouxe judeus a bordo e, mais tarde, quando o capitão recebeu a sua donataria, distribuiu ele terras entre cristãos novos. A verdade é que, como a situação dos judeus não andava lá muito boa pelas bandas do reino, o Brasil apareceulhes como uma possibilidade encorajadora e mesmo fascinante. E não foram poucos os judeus que vieram parar na Bahia, no século XVI, muitos protegendo-se de perseguições sob a fachada de cristão novo, mas realizando discretamente os seus ritos e cultivando a Bíblia Hebraica em seus corações. Como se vê, o que aqui se formava era uma sociedade extremamente colorida e variada. Os prédios de pedra e cal, que iam surgindo, eram exceções numa cidade de palhoças. Ainda na segunda metade do século, africanos e índios enxameavam em seus espaços, com jesuítas embatinados fazendo o possível e o impossível para vestir os “bárbaros”. Theodoro Sampaio, falando sobre o povo da Cidade da Bahia no final daquela centúria, sintetiza: “a gente que formava o grosso da população fixa da cidade” – isto é, a que não passava parte do ano na vida rural do Recôncavo e apenas vinha a Salvador entre os meses de abril e junho – era uma “população polícroma, interessante no viver, no vestir, nos hábitos e costumes, gente onde havia brancos, índios e negros, cristãos novos, judeus, ciganos ou mouros, soldados do presídio, degredados, indivíduos com os estigmas do crime, desorelhados uns, mutilados nos dedos outros, escravos seminus ferrados no rosto, falando uma meia língua, misto do português com o africano ou com o tupi”. Por fim, é preciso lembrar que não podemos entender todo esse jogo de genes e memes fora do horizonte da época. No âmbito dos sincretismos simbólicos, devemos ter em vista que os portugueses de então pertenciam a um universo intelectual que ainda não era o da modernidade ocidentaleuropéia. O espaço mental em que eles se moviam era, na verdade, medieval. E não o novo campo racionalista que vai se esboçar no curso da revolução científica do século XVII, para se desenvolver e se impor na Europa do século XVIII. Era, antes, um tempo em que o conhecimento era estável, “artesanal”, passando rotineiramente pela esfera do sagrado ou mesmo do “mágico”. E a dependência ecológica era maior. Para dar um só exemplo, a medicina européia, naquela época, era feita de superstições, fluidos, olhares, astros, humores. Dominavam a cena as terapias mágico-populares, traduzindo e retraduzindo o pensamento hipocrático. E isso facilitava a mistura de suas técnicas com as técnicas das terapias ameríndias e africanas. Mas não só. Havia outros fatores em jogo. Confrontando a alta disposição portuguesa para a mestiçagem genética no Brasil Colônia e a sua baixa miscibilidade no período da dominação colonial na África nos séculos XIX e XX, o historiador Luiz Felipe de Alencastro chegou a uma distinção importante, no seu estudo Geopolítica da Mestiçagem. No seu entender, podemos falar de duas eras da mestiçagem moderna. A primeira, estendendo-se de 1500 a 1825, estaria fundada no comércio e na evangelização. A segunda, abarcando os anos de 1850 a 1950, se processaria sob o

signo do Estado-Nação e do “racismo científico”. Na primeira era é que se deram, como no caso do Brasil, “as formas mais extensas da mestiçagem moderna”. Basicamente, por razões demográficas e econômicas. A migração forçada de africanos, a escravização dos índios e a vinda organizada de portugueses – quase sempre, homens – acionaram, nos termos do historiador, “um duplo movimento de aculturação e miscigenação”. Escreve Alencastro: “Transformados em engrenagem do comércio mundial, os índios, os negros e os brancos... tecem uma trama densa de relações sociais”. Já a segunda era da mestiçagem, de baixíssima miscigenação genética, se dá numa realidade completamente diferente. “Arrastada no turbilhão da Revolução Industrial, a Europa fecha-se provisoriamente em si mesma, unificando os espaços nacionais, concluindo a concentração das populações, abrindo caminho para a formação de Estados-nação constituídos em torno de um território, uma língua, um povo”. Seja como tenha sido, o certo é que, em comparação com o que fizeram no Brasil, os portugueses praticamente não se misturaram nos tempos mais recentes do colonialismo em terras africanas. Na verdade, frisa o historiador A. H. de Oliveira Marques, em Portugal na Crise dos Séculos XIV e XV, que, mesmo no século XVI, a mestiçagem brasileira não encontra paralelo em nenhuma outra parte do império português – à exceção, talvez, de Cabo Verde. O Brasil conheceu a folia das misturas. Mas é bom sublinhar que aquilo nada teve de um mar de rosas. Muito pelo contrário. Mestiçagem não é sinônimo de encontro tranqüilo. De harmonia. Aqueles foram tempos de índios destruídos, de negros torturados a ferro quente e a sangue frio, de senhores de engenho estuprando mulheres ameríndias e africanas. Não se trata, portanto, de voltar ao mito senhoril da “democracia racial”. Mas, muito simplesmente, de não cair ingenuamente na leitura oposta, fechando os olhos ou voltando as costas ao que aconteceu. É inútil dar murro em ponta de fato. Os primeiros tempos de nossa existência foram um período de misturas intensas e urgentes. De um verdadeiro festival biossemiótico. Por tudo isso é que o sonho lusitano da transplantação cultural não teve como vingar. Toda uma ativa – intensa e extensa – simbiose biológica e cultural cruzou, de uma ponta a outra, o primeiro século da vida brasileira. E a projetada “Nova Lisboa” se converteu, então, em algo que não fora previsto. Numa entidade original. Assim, ao fim do século XVI, a Cidade da Bahia é uma cidade tropical de feitio essencialmente luso-afro-ameríndio.

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O Século Barroco Presidido pela mentalidade barroca, o século XVII foi, para a Cidade da Bahia e seu Recôncavo, um tempo de fortes contrastes. Tempo de fome, de peste, de riqueza. Tempo das invasões holandesas, da parenética do padre Antônio Vieira, das visitações do Santo Ofício, dos cantos do poeta-músico Gregório de Mattos, do açúcar se cristalizando em divisas. Saqueada, invadida, incendiada, a região se manteve. Abrigou, em seu espaço urbano de fisionomia francamente medieval, feito de ruas tortuosas e ladeiras íngremes, a linguagem da arquitetura e do espetáculo barrocos. Nas terras férteis do Recôncavo, seguindo os passos da expansão militar e agrícola dos portugueses, as vilas começaram a dar o ar de sua graça. Tempo, ainda, dos negros bantos, vindos de Angola e do Congo. Tempo de quilombos, calundus e capoeiras. Tempo de festas.

NO MEIO DO REDEMOINHO Modificando um pouco o célebre verso do poeta “metafísico” inglês John Donne, podemos dizer que, a partir da chamada “Era dos Descobrimentos”, não há mais ilhas no planeta Terra. Nenhuma região política e/ou economicamente significativa do globo terrestre está mais isolada. As navegações transmarinas dos séculos XV e XVI desmantelaram a concepção medieval do Orbis Terrarum, que via o planeta como uma realidade insular, a Ilha da Terra, província que Deus dera à humanidade para a sua moradia, compreendendo a Europa, a Ásia e a África. Os périplos oceânicos explodiram esse quadro fechado, abrindo mares e clareando horizontes. Esta é a época em que os europeus dobram o Cabo da Boa Esperança, alcançam terras que irão desvelar um continente – a América –, chegam à Índia, dão a volta ao globo. Em poucas palavras, o planeta se planetariza. Fala Jaime Cortesão, na sua História da Expansão

Portuguesa: no “curto espaço de dois séculos que decorrem entre o fim da Idade Média e o começo do Renascimento, dir-se-ia que de súbito os povos, durante milénios confinados nos limites mais ou menos escassos dos seus quadros geográficos, se lançam por mar e terra, através de continentes e oceanos, renovando e alargando infinitamente o horizonte da vida”. Ainda Cortesão: “Aos portugueses cabe, pode-se afirmá-lo hoje, a glória de haverem sido os principais animadores desse primeiro esforço de unificação da Humanidade”. É toda uma nova Imagem do Mundo que começa a se compor aí, sob os signos de Colombo e de Copérnico. Nasce, em suma, o “mundo moderno”. A Europa estende as suas teias em direção a todas as partes da Terra. Povos que nunca tinham se visto entram em contato. Milhões de quilômetros quadrados se integram ao mercado mundial. As realidades da política e da economia criam, em conseqüência, nexos e vínculos que ultrapassam fronteiras. Sim, não há mais ninguém sozinho. Aquele foi um primeiro momento da “globalização”, do qual a Bahia não poderia, evidentemente, ficar de fora. É assim que uma guerra entre a Espanha e os Países Baixos (atualmente, Bélgica e Holanda) terá profunda repercussão no trópico baiano. Para se ter uma idéia da rede de implicações internacionais que então se configurara, a luta européia entre batavos e ibéricos vai se desdobrar em guerras no Atlântico Sul, mobilizando energicamente ambas as margens do grande oceano. Assim como irão atacar lugares como Itaparica e Itamaracá, no Brasil, os holandeses vão tomar o castelo-fortaleza português de São Jorge da Mina, na África. Teremos Maurício de Nassau na margem ocidental do Atlântico Sul e, em sua margem oriental, van Ypern. Mas as coisas não ficaram só aí. Em Angola, o antigo reino do Ndongo, em luta contra a dominação portuguesa, levará a legendária rainha Nzinga a tecer alianças com os holandeses. E também essa realidade africana vai cruzar as extensões atlânticas. Neste sentido, o célebre quilombo dos negros bantos em Palmares, nas Alagoas, deve ser visto como um desdobramento brasílico daquela guerra africana. Na visão do historiador Roy Arthur Glasgow, em Nzinga – Resistência Africana à Investida do Colonialismo em Angola – 1582-1663, Palmares representou, do lado de cá do Atlântico, a continuidade da violência mbundoiaga que então infernizava a vida dos portugueses no Ndongo. Vamos clarear o quadro. No século XVI, os relacionamentos de Portugal e da Espanha com os Países Baixos se apresentavam de modos claramente distintos. Entre Portugal e Holanda, o que havia, desde os tempos medievais, era um comércio sempre em expansão. Comércio largo e livre. Navios holandeses levavam para os portos lusitanos produtos de diversos pontos do continente europeu – trigo, peixe salgado, equipamentos náuticos, objetos de metal. Em troca, carregavam sal, vinho, especiariais asiáticas, drogas africanas, açúcar do Brasil. E se encarregavam de distribuir esses produtos por toda a Europa. Era, enfim, uma relação vantajosa para ambas as partes. Quanto à Espanha, a situação era bem outra. Nesse mesmo século XVI, os Países Baixos eram um grupo de províncias que constituíam uma possessão espanhola: as províncias meridionais, que hoje formam a Bélgica; e as setentrionais, ou nortistas, que são a atual Holanda. Acontece que, em meados daquela centúria, os batavos se rebelaram contra o domínio espanhol. E as batalhas pipocaram. Felipe II, rei da Espanha, jogou duro. Obteve a rendição e, mais que isso, a adesão das províncias meridionais. Mas as províncias nortistas foram em frente, prosseguiram na luta, até proclamar a sua

independência em 1581. A proclamação independentista não significou, todavia, o fim do conflito. A Espanha não a reconheceu. E a guerra continuou. Ocorre que, em 1580, também Portugal passou para o domínio espanhol. Em 1578, o jovem rei português D. Sebastião morreu na África, nas proximidades de Alcácer Quibir, sem deixar descendentes – e as coroas ibéricas acabaram unidas em mãos de Felipe II. Logo, os inimigos da Espanha se converteram, automática e forçosamente, em inimigos de Portugal. Desenhou-se, portanto, o fim do grande comércio luso-flamengo. A Espanha impôs uma política de embargos e confiscos aos navios holandeses, dificultando-lhes o acesso à costa lusitana. A Holanda, que já se exibia então como a maior potência comercial do mundo, com uma frota mercante inigualada na época, viu-se assim, subitamente, excluída do circuito comercial altamente rentável do açúcar brasileiro, produzido basicamente em Pernambuco e na Bahia. Mas é claro que não iria abrir mão do negócio assim tão facilmente. O açúcar brasileiro era, àquela altura, uma das peças centrais da economia flamenga. Um negócio no qual a burguesia holandesa estava metida até à medula. Dinheiro flamengo financiara boa parte da implantação da empresa açucareira no Brasil – em geral, segundo o historiador pernambucano Gonsalves de Mello, “através de comerciantes portugueses (muitos dos quais cristãos-novos) de Viana do Castelo e do Porto”. E aquele açúcar, produzido nos trópicos, era refinado na – e distribuído pela – Holanda. Celso Furtado resumiu com clareza a situação: “Se se tem em conta que os holandeses controlavam o transporte (inclusive parte do transporte entre o Brasil e Portugal), a refinação e a comercialização do produto, depreende-se que o negócio do açúcar era, na realidade, mais deles do que dos portugueses”. Impedida de ter acesso às fontes produtoras de açúcar, a Holanda resolveu, então, tomá-las. À mão armada, é claro, porque não haveria outro caminho. E, como os centros da produção açucareira estavam no Nordeste brasileiro, na Bahia e em Pernambuco, passamos a ficar, assim, na mira dos empresários, dos militares e, sobretudo, dos canhões batavos. Mais cedo ou mais tarde, o fumo e o fogo da guerra chegariam até nós. Tivéramos já um primeiro sinal de sua vinda em 1599, crepúsculo do século XVI. Mal entrado o século seguinte, veio um anúncio mais sério. Em 1604, sob o comando de van Caarden, os holandeses bombardearam a Cidade da Bahia durante quarenta dias consecutivos. Do ponto de vista baiano, o bombardeio foi um corte inesperado. E dramático. Uma torção abrupta e brutal nas róseas expectativas que então reinavam. Como bem disse Thales de Azevedo, em seu livro Povoamento da Cidade do Salvador, o século XVI encerrara-se sob as melhores esperanças. Os ataques de ingleses e holandeses haviam sido rechaçados, a população aumentava, e nas noites no Recôncavo, para lembrar uma frase do poeta Paulo Leminski, era possível ouvir o açúcar inchando nos caules das canas. O otimismo foi assim a nota dominante à entrada do novo século. Mas a alegria durou pouco. O ataque holandês de 1604 significou gastos e destruição, dinheiro desviado da produção para a defesa, engenhos incendiados. Quarenta dias de insônia, apreensão, desgaste, enormes prejuízos. De qualquer modo, veio em seguida a Trégua dos Doze Anos (1609-1621), assinada entre a Espanha e os Países Baixos. Com isso, o comércio luso-flamengo foi refazendo laços e retomando o

ritmo. Consta que, ao longo dessa suspensão das hostilidades batavo-espanholas, cerca de 50 mil caixas de açúcar foram levadas, anualmente, do Brasil para a Holanda – e que as refinarias se encorparam em terras flamengas, concentrando-se, basicamente, em Amsterdã. Mas há que assinalar aqui uma diversidade de perspectivas. Se, para os baianos, o armistício representou um alívio e o prosseguimento normal dos negócios, para os flamengos a trégua teve outro sentido. Aproveitaramse eles do cessar-fogo para se enfronhar ainda mais no Brasil, não só através da realização de operações comerciais, como avançando, até à intimidade, o conhecimento que já possuíam da colônia agora espanhola. Vendo-se a salvo, pelo menos por uma dúzia de anos, do perigo flamengo, a Cidade da Bahia e seu Recôncavo foram no entanto castigados, entre os anos de 1616 e 1617, pelo retorno das epidemias. Foi a vez do sarampão e a volta da velha varíola, matando principalmente escravos. Escreve Thales de Azevedo: “Morreram também muitos mamelucos, mulatos e brancos nascidos na terra; só os estrangeiros eram poupados pela epidemia. A escravaria foi de tal modo dizimada que os engenhos pararam de moer e muitos senhores empobreceram com a perda dos negros e a cessação do fabrico”. Em resumo, com o canhoneio batavo, a dupla sarampão-bexiga e a perspectiva do fim da trégua hispânico-flamenga, a prosperidade, que se anunciara em cores tão claras à passagem do século XVI para o XVII, parecia destinada a não encontrar espaço onde florescer. De fato, não encontraria. Pelo menos, a médio prazo. 1621, ano que marcou o encerramento do armistício entre espanhóis e flamengos, foi também o ano da criação da Companhia das Índias Ocidentais, uma organização empresarial-militar dirigida para a conquista de terras na África e na América. Rapidamente vai ganhando corpo, então, a idéia de que nada poderia ser mais proveitoso, para os interesses da Holanda, do que a Companhia se lançar à conquista de territórios no Brasil. A Bahia se achava, uma vez mais, na mira dos flamengos. Afinal, aqui estava a capital colonial, em posição geográfica privilegiada, centro urbano do Recôncavo açucareiro e provável base para futuras investidas em outras regiões do Brasil. O projeto da invasão foi elaborado com cuidado e em detalhe. Os preparativos começaram de imediato. Em segredo. E o resultado foi a armação de uma grande esquadra, com vinte e seis navios, quinhentas bocas de fogo e mais de três mil homens. No comando, Jacob Willekens e Pieter Heyn, o “Terror dos Mares”. A bordo, Johan van Dorth, designado como primeiro governador holandês no Brasil. E assim, no mês de dezembro do ano de 1623, a esquadra holandesa saiu para o mar oceano, quilha contra as ondas, em direção à cobiçada Bahia de Todos os Santos.

O RETORNO DOS FLAMENGOS “E foi tal a tempestade de fogo e ferro, tal o estrondo e a confusão, que a muitos, principalmente aos pouco experimentados, causou perturbação e espanto, porque, por uma parte os muitos

relâmpagos fuzilando feriam os olhos, e com a nuvem espessa do fumo não havia quem se visse; por outra, o contínuo trovão da artilharia tolhia o uso das línguas e orelhas, e tudo junto, de mistura com as trombetas e mais instrumentos bélicos, era terror a muitos e confusão a todos”. Assim Antonio Vieira, que ainda fazia o seu noviciado, descreveu o que viu – é o seu primeiro texto conhecido, um relatório sobre os jesuítas no Brasil em 1624-1625, escrito quando o futuro pregador contava com apenas 18 anos de idade. No dia 8 de maio, a esquadra holandesa despontara diante da Bahia de Todos os Santos, visível para quem se achava na terra. Segundo Vieira, suas “trombetas bastardas” e seus escudos vermelhos vinham desde longe “publicando o sangue”. Alarme. Em terra firme, a infirmeza. Correrias desencontradas, falta de comando, desentendimentos, fuga. E a esquadra se aproximando, inexorável. Na madrugada do dia seguinte, alguns navios canhonearam o forte da velha Ponta do Padrão, para em seguida desembarcar mil soldados na enseada da Barra. Simultaneamente, outras embarcações, tendo entrado já nas águas da própria baía, bombardeavam o centro da cidade. Ao pôr-do-sol, os invasores chegavam a São Bento. Aqui e ali, alguma resistência, mas breve e leve. Com a noite, o silêncio. Na cidade deserta, a respiração que se ouvia era holandesa. Na verdade, o governador Diogo de Mendonça Furtado, cercado de alguns auxiliares, permanecera em seu posto. (“D. Diogo não me chamo/ E nem assim me chamara/ Se este fogo de loucura/ Não me esbraseasse a cara” – rende-lhe homenagem, séculos depois, a poetisa Myriam Fraga, num dos poemas que dedica ao tema das invasões holandesas, em seu livro Sesmaria). Além desse grupelho de autoridades, restaram perambulando, pelas ruas apertadas e escuras de Salvador, apenas uns poucos escravos africanos e índios catequizados. Gente que não tinha nada a perder, como se diz. Preso, Mendonça Furtado foi remetido para a Holanda. Era a manhã do dia 10 de maio. E imediatamente começou a farra da soldadesca, o saque da Cidade da Bahia pelas tropas batavas. Em primeiro lugar, a procura de caixas de açúcar para enviar à Holanda. Mas logo objetos de ouro ou de prata, peças de arte sacra, coisas preciosas ou de luxo, enfim, tudo que tivesse valor era açambarcado pelos flamengos. Em sua Relação da Conquista e Perda da Cidade do Salvador pelos Holandeses em 1624-1625, Johann Gregor Aldenburgk, testemunha dos fatos então ocorridos, informa: “Na mencionada cidade de S. [sic] Salvador não encontramos outra gente senão negros, mas grandes riquezas em pedras preciosas, prata, ouro, âmbar, muscada, bálsamo, veludo, sedas, tecidos de ouro e prata, cordovão, açúcar, conservas, especiarias, fumo, vinho de Espanha e de Portugal, vinho das Canárias, vinho tinto de Palma, excelentes cordiais, frutas e bebidas, com o que muito nos maravilhamos, e alguns soldados denominaram a terra de ‘batávica’; não tardou em começar o jogo do à vous, à moi, dividindo-se o ouro e a prata em chapéus, e havendo quem arriscasse numa carta trezentos e quatrocentos florins”. Sem maior demora, um iate foi despachado para a Holanda, “a fim de cientificar aos Senhores dos Estados Gerais e ao Príncipe Maurício de Orange do assédio e da conquista da cidade de S. Salvador”. Era o iate Raposa, que partira levando “farto carregamento de belas preciosidades”. Em seguida, foi a vez de quatro navios mercantes conduzirem riquezas baianas para terras holandesas. Enfim, a Cidade da Bahia caíra, totalmente, sob controle batavo. E até as suas portas receberam novos nomes. A Porta de São Bento passou a se chamar Porta de Isenach, por ser

guarnecida por uma tropa comandada pelo capitão Hans von Isenach, assim como a Porta do Carmo recebeu a denominação de Porta de Bastefeld, em homenagem-referência a um outro oficial holandês. A população baiana desertora ia se agrupando nas vizinhanças da cidade. “Os fugitivos acomodaram-se como puderam em engenhos próximos, aldeias de índios, debaixo de árvores, ao céu aberto”, escreve Capistrano de Abreu, para em seguida comentar – “quantas privações passaram e como foi difícil sustentar e conter esta multidão, pode-se bem imaginar”. De qualquer sorte, havia que se dar um mínimo de organização às pessoas e às coisas. E tentar a reconquista da cidade. O arraial do Rio Vermelho foi então escolhido para ser a base das operações militares da resistência antibatava. Não se sabe bem como, mas o posto de capitão-mor acabou ficando com o bispo Marcos Teixeira, religioso que não hesitava muito em despachar o próximo para o outro mundo. E a luta começou. Podemos dizer que o plano baiano de guerra extraiu sua virtude da necessidade. Como não havia poder de fogo para a orquestração de uma ofensiva global, a opção foi cercar a cidade. Manter o invasor sitiado, impedindo que ele circulasse pela região para renovar seus mantimentos ou mesmo, como lembrou um historiador, conseguir a adesão dos escravos, já que para estes era indiferente a nacionalidade do senhor, pois o cativeiro prosseguiria do mesmo jeito. A propósito, frei Vicente do Salvador, que foi prisioneiro dos holandeses nessa época, fala de “negros de Guiné que com eles [os batavos] se haviam metido” – e cita o caso de um escravo que se aproveitou da oportunidade para, com a ajuda “de outros negros e de quatro holandeses”, cortar fora a cabeça de seu antigo senhor. A possibilidade de que os escravos jogassem por conta própria, a fim de tirar partido do confronto ibero-batavo, era, portanto, real. De qualquer modo, é bom frisar uma coisa. Nessa guerra seiscentista pelo domínio da Cidade da Bahia, vamos encontrar índios e negros brigando tanto ao lado de lusos e espanhóis quanto ao lado dos batavos. Aldenburgk fala, por exemplo, que inúmeros holandeses caíram mortalmente feridos pelas “flechas ervadas” dos índios. Mas para, adiante, referir-se aos “selvagens nossos pescadores”. Do mesmo modo, muitos pretos se engajaram nas fileiras de Portugal e Espanha. Mas outros tantos se alistaram entre as falanges flamengas. Ainda Aldenburgk: “Como viessem ter conosco muitos escravos e negros cativos dos portugueses, foram alguns destinados a trabalhar, e outros, armados de arcos, flechas, velhas espadas espanholas, rodelas, piques e sabres de abordagem, se organizaram numa companhia de negros, para capitão da qual foi escolhido um deles próprios, chamado Francisco. O seu tambor, quando tinha de tocar a reunir, tomava dum duplo chocalho de carneiro e batia nele com um pau. Esta companhia não apresentava grande préstimo para combater; mas servia para espreitar o inimigo, mostrar os passos, e transportar os soldados contundidos, feridos ou mortos; também não era possível mantê-los em ordem, pois corriam uns pelos outros, como porcos, inteiramente nus, e, quando se abeiravam do inimigo, manifestavam-se por estranhos saltos e gritos”. O destino desse preto Francisco é, aliás, conhecido. Cessada a luta, com a rendição dos invasores, ele e seus companheiros foram enforcados pelos lusitanos. Mas vamos adiante. A tática da guerra anti-holandesa também foi ditada pela necessidade. Os

baianos não contavam com armas pesadas, de razoável poder destrutivo. Havia falta – e, em seguida, inexistência – de pólvora. Restavam os recursos “à arma branca, à flecha, ao combate singular, à tocaia” (Capistrano). Partiu-se então para a guerra de guerrilhas, com a sua típica estrutura móvel, aberta. Eram vinte e sete grupos guerrilheiros, as companhias-de-emboscadas, cada qual com o seu capitão e umas poucas dezenas de homens. Esses grupos funcionavam na base do ataque-relâmpago, da surpresa guerrilheira, realizando investidas em pontos diversos da Cidade do Salvador e cercanias. Ataques quase sempre exitosos, aliás. Ainda Myriam Fraga, poetizando: Agora que tudo é claro, Que a luz do sol nada esconde, Mergulho os olhos no escuro Livro do tempo passado. E é tudo um jogo montado O peão com seu cavalo. Um rei em xeque no mapa E uma torre decepada. O bispo com seu remorso, O soldado com seu medo, D. Diogo prisioneiro E a cidade conquistada. Agora um risco na areia E uma espada no chão. Assentados no Conselho, O bispo por capitão. ‘Da nossa fraqueza, força. Teceremos a vitória Com fios de astúcia e sangue, De emboscada e de surpresa, Por caminhos que não veja O inimigo. E nem se atreva Sem uma escolta de medo Além das portas pisar’. Na boca cornos de prata Sopram fúria nos ouvidos, Soam patas de cavalo, Rasteja um corpo no escuro E na sombra do caminho O olho do bacamarte, Pupila de chumbo, fria, Espreita a morte que passa.

Pela noite da emboscada Maduro o sol da guerrilha Sobre a coragem se abria.

Luís Henrique Dias Tavares conta alguma coisa dessas surtidas da guerrilha baiana: “Por vezes, chegavam até o Carmo; outras vezes, até Água de Meninos. Certa feita, em julho, nas proximidades do forte de São Felipe, o capitão de emboscada Francisco Padilha surpreendeu um grupo de holandeses, no qual estava Johan van Dorth. Atacando-os com os seus homens, matou o governador. De outra, os capitães Afonso Rodrigues Adorno e Pero do Campo desembarcaram na ilha de Itaparica e tomaram armas e pequenas embarcações aos holandeses, que ali haviam instalado o matadouro. Ainda em outra ocasião, Padilha e os capitães Antônio de Morais, Francisco Brandão e Antônio Machado saltearam uma companhia holandesa, matando 45 soldados, dentre os quais o coronel Albert Schouten, sucessor de Van Dorth no governo”. O já citado holandês Johann Gregor Aldenburgk narra nos seguintes termos a morte do seu general Van Dort (que parece ter servido, ao menos parcialmente, de pasto para canibais) pelos guerrilheiros da Bahia: “Logo também apresentou-se o inimigo, com grande força, junto à porta de Bastefeld [Carmo], pelo que saiu ao seu encontro o Sr. Van Dort, com duzentos homens, metade dos quais, armados de escopetas e pistolas, a servir como arcabuzeiros a cavalo, e a outra metade de mosqueteiros. Quando, porém, o Sr. General, que cavalgava na frente, à espreita do inimigo, acompanhado apenas de um tambor e de um ordenança, adiantou-se demais por estreita vereda, cheia de mato, na qual era impossível fazer meia-volta, foi ali, afastado do grosso da tropa, surpreendido pelos índios selvagens, portugueses e pretos, e ferido, bem como seu cavalo, de muitas flechas ervadas. O mesmo sucedeu ao tambor, em cujo corpo se fincou uma flecha, tendo então a ordenança trazido a notícia à nossa gente, gritando que se apressasse, e exclamando: ‘O general está morto’. Avançamos rapidamente, carregando contra o inimigo, que, por sua vez, feriu muitos dos nossos, e achamos primeiro o cavalo do Sr. General, caído e eriçado de flechas, e logo adiante o corpo e a cabeça do nosso chefe, que arrancamos aos desumanos e satânicos selvagens, já ambas aquelas partes mutiladas, com falta dos narizes, orelhas, mãos e outras porções mais que, ou os portugueses conduziram em grande triunfo ao seu acampamento, ou os selvagens devoraram; trouxemos para a cidade, em meio à maior tristeza, o corpo e a cabeça do nosso general, e, dois dias após, sepultamos o seu cadáver, no chão da igreja nova [a Sé, chamada nova em contraste com a da Ajuda, também conhecida como a Sé de Palha, em referência à sua primitiva cobertura], salvando nessa ocasião a artilharia em derredor da muralha e a de todos os navios”. Prossigamos. Em setembro, o capitão-mor Francisco Nunes Marinho veio de Pernambuco para assumir o comando das operações. As companhias guerrilheiras avançavam, cutucavam o cão flamengo com vara curta, ousando cada vez mais para dentro do sítio sitiado. Faiscavam em ataques de surpresa na Vila Velha, na Graça, na estrada da Vitória, em São Bento. Enquanto isso, os holandeses iam conhecendo a paralisia e divergências internas. Não era para menos. Estavam obrigados a permanecer dentro dos limites de um lugar vazio, uma espécie de cidade-fantasma, sem

vida, onde a qualquer momento podiam ser flechados pelo corisco de um golpe da guerrilha. Mantinham-se ali, na verdade, por conta de sua supremacia naval – a armada de Willekens e Heyn dominando amplamente as águas da grande e calma baía. Em dezembro, ostentando o vistoso título de “capitão-mor do Recôncavo”, chegou Francisco de Moura, antigo governador de Cabo Verde, trazendo com ele a informação de que uma esquadra lusoespanhola estava a caminho da Bahia de Todos os Santos. Bem, não era simplesmente uma esquadra, mas uma superesquadra, com nada menos que 52 navios e 12 mil homens armados, sob o comando de Fradique Toledo Osório. O que aconteceu foi que, quando a notícia da invasão da Cidade da Bahia chegou à Península Ibérica, provocou uma espécie de onda patriótica em meio à nobreza. Foi a chamada “Jornada dos Vassalos”, de entusiasmo quase cruzadista. Formou-se então essa esquadra admirável – “a maior que até então cruzara o Equador”, segundo o historiador pernambucano J. A. Gonsalves de Mello, em O Domínio Holandês na Bahia e no Nordeste, estudo incluído na já citada História Geral da Civilização Brasileira. A viagem foi rápida. No dia 27 de março, suas velas se fizeram visíveis, tingindo a paisagem baiana. Se o adolescente Vieira ficara visualmente encantado com a aparição da frota flamenga em maio de 1624, ele agora certamente se entregaria, plasticamente seduzido, à contemplação dos movimentos da armada ibérica. Na descrição de frei Vicente, a poderosa esquadra foi se movendo até formar um arco, dispondo seus navios em meia-lua, da ponta da Barra à de Itapagipe, para fechar completamente a saída às embarcações batavas. Milhares de soldados foram então desembarcando. Houve reação. Combates sangrentos. Quase um mês de luta. Desesperados, soldados holandeses foram ao ponto de investir contra o seu próprio comandante – àquela altura, o coronel Arnt Schouten. “Esperavam os nossos diariamente e desejavam com ansiedade, que o inimigo promovesse um assalto geral, no qual acabássemos todos”, escreve Aldenburgk, dando a medida de tal desespero. Soldados holandeses chegaram a decidir se entrincheirar em seu próprio paiol, dispostos a resistir até onde fosse possível, quando então lançariam fogo à pólvora – “e voaríamos todos pelos ares”. Mas os portugueses e espanhóis não empreenderam o “terrível assalto”. Preferiram parlamentar. Até que, no relato de Dias Tavares, “o último comandante holandês na Bahia, Hans Ernest Kijff, afinal reconheceu a derrota e solicitou os termos da rendição, que foram aceitos e assinados na sacristia do convento do Carmo, no dia 30 de abril”. Assim, no primeiro dia de maio de 1625, a Cidade da Bahia estava livre daquele pesadelo. Depois de um ano de ocupação flamenga, seria aquela a hora de reatar os processos, retomar os fios da meada, reconstruir as coisas. Mas aí veio a segunda parte da história. Os soldados da armada libertadora passaram a se comportar como se fossem invasores, ocupantes de uma cidade inimiga. Pintaram e bordaram em Salvador, promovendo saques e badernas. Como se fosse pouco, Toledo Osório partiu para a Europa deixando aqui uma guarnição de mil soldados, com o propósito de defender a praça baiana. Nada poderia ter sido mais desastroso. Além de ter que pagar pesados tributos para sustentar a tropa desordeira, os baianos tiveram que engolir a seco o pão que o demônio esmagou. Thales de Azevedo sintetizou a situação: “...aos estragos e mortes, ao saque e à destruição resultantes da luta contra os batavos, não tardaram a sobrepor-se a pilhagem, o incêndio, os

assassínios perpetrados pela soldadesca espanhola. A Bahia ficou reduzida à extrema miséria. Da metade do casario que restava, a tropa de ocupação arrancou até as fechaduras das portas. A escravaria fugira, os canaviais haviam sido incendiados, os engenhos depredados. Pobres e ricos padeciam as mesmas misérias”. Os holandeses, por sua vez, tinham sido expulsos, mas não haviam desistido. Para a Companhia das Índias Ocidentais, era vital a conquista da região da Bahia de Todos os Santos e seu Recôncavo. “Sujeita [a Bahia] ao nosso poder, logo nos assenhorearíamos do Brasil inteiro”, dizia o historiador seiscentista holandês Caspar Barleus, em sua História dos Feitos Recentemente Praticados durante Oito Anos no Brasil. E as investidas prosseguiram. Em março e maio de 1627, por exemplo, Pieter Heyn voltou à carga, saqueando navios na enseada da Ribeira e engenhos nas terras do Recôncavo. Depois que a Holanda ocupou Olinda, a Bahia não ficou fora de foco. Convertera-se em centro de apoio à luta pela libertação de Pernambuco. E, assim, voltou a ser atacada. No relatório do conselheiro Adriano van der Dussen, apresentado ao parlamento holandês e à diretoria da Companhia das Índias Ocidentais, lê-se: “Sabemos que a Bahia é de todas as cousas a mais hostil, tal qual unha doente num corpo sadio. Ela domina a terra com saqueadores e o mar com os seus navios, o que lhe é fácil em razão dos portos e baías acessíveis a ela em toda a parte. Por conseqüência, ficando de pé esta Cartago, não haveremos de ter nenhum descanso de guerrear. Precisamos de pôr este remate a tantos triunfos; cumpre aos aliados expugnar este antro de Caco [ladrão mitológico morto por Hércules] e este valhacouto de vagabundos. Nisto estará o ápice e o principal de todos os labores nossos”. Não admira, pois, que em 1638 o próprio príncipe Maurício de Nassau tenha tentado tomar a região. Sabedor das disputas entre governo e comando militar na Bahia, Nassau imaginou se beneficiar dessas dissenções. Achou que, diante de um ataque pesado, as forças baianas se mostrariam algo divididas e, logo, hesitantes. Estava bem informado o príncipe. Mas calculou mal a reação baiana – e errou o bote. Em vez de atacar o coração da cidade, Nassau resolveu desembarcar na enseada da Ribeira, acampando os seus soldados na península itapagipana. Contava, paciente, com as citadas divergências internas. Infelizmente, para ele, os baianos se uniram. As velhas companhias-deemboscadas voltaram à cena, bloqueando Itapagipe. O príncipe marchou com os seus soldados em direção ao alto da Soledade. Tentou romper o cerco por Santo Antônio Além do Carmo. Sem sucesso. Vendo-se então encalacrado, bateu em retirada na madrugada do dia 26 de maio de 1638. Vimos, antes, trecho da “Carta Ânua” dos jesuítas, redigida por Vieira. Foi a sua impressão da primeira investida batava. Mas os flamengos fizeram tanto fogo por aqui, que Vieira, já padre e pregador, acabou dedicando alguns sermões ao assunto, jóias admiráveis da língua portuguesa, como o Sermão de Santo Antônio, o Sermão da Visitação de Nossa Senhora a Santa Isabel ou o Sermão da Santa Cruz. Foram anos de brilhante oratória antibatava. Mas o mais célebre desses sermões ficou sendo o Sermão pelo Bom Sucesso das Armas de Portugal contra as de Holanda. É um texto esplêndido, lido na Igreja de Nossa Senhora da Ajuda da Cidade da Bahia, em 1640. Nele, Vieira encara ninguém menos que o próprio Deus – e o faz “mais protestando que orando”, pedindo-lhe contas pelas derrotas lusitanas diante de “inimigos da fé” (os flamengos eram calvinistas), já que os

holandeses continuavam firmes nas terras de Pernambuco e dali ameaçavam a Bahia. Em cena, nesses sermões, o nacionalismo místico de Vieira. Ele pensa Portugal como um instrumento de Deus. E é assim que fala das obras maravilhosas, das vitórias contra “nações bárbaras”, que a onipotência divina realizou “por meio dos portugueses”. Mas, diante dos triunfos holandeses em Pernambuco, Vieira vê “tudo isto tão trocado”, que parece que Deus abandonou o seu povo: “já não ides diante das nossas bandeiras, nem capitaneais os nossos exércitos”. Como o povo português pode perder fazendas, vidas e honra, sofrendo às mãos cruéis da “desumanidade herética”, se ele é o povo da fé, a gente de Deus, o povo eleito? “O reino de Portugal, como o mesmo Deus nos declarou na sua fundação, é reino seu e não nosso”, frisa o pregador, num tom que repercutirá fundamente na cultura portuguesa, para atingir em cheio, no futuro, a alma de um Fernando Pessoa. E é por isso que ele, Vieira, investe “piedosamente atrevido” contra Deus, cobrando-lhe a razão do seu descaso. É um sermão ousado, original, aquele pregado “pelo bom sucesso das armas de Portugal”. Nele, Vieira diz que, ainda que sejam os portugueses os pecadores, Deus é que haverá de ser o arrependido. De certo modo, Vieira se coloca no lugar de Moisés e identifica o povo português ao povo de Israel. A referência é a passagem bíblica em que se fala do “bezerro de ouro”, quando Deus se enfurece com os judeus, ameaçando destruí-los, e Moisés o contesta, arrazoando em defesa da vida de seu povo. Vieira fala desse mesmo lugar, perguntando a Deus sobre os motivos que o fizeram voltar a sua ira contra o seu próprio povo, o povo de Portugal, ao qual escolhera (este é o verbo empregado pelo pregador: escolher) “entre todas as nações do mundo para conquistadores da vossa Fé”. Teria Deus virado batavo? Bem, o que estava em jogo ali, para Vieira, eram a honra e a glória de Deus, da fé católica, romana, encarnada nos portugueses. E o que Vieira quer é que Deus derrote e desbarate as armadas holandesas, que despeje doenças e pestes no meio em que vive o “herege torpe e brutal”. Enfim, que Deus entre na guerra. Afinal, não era ele o rei dos reis, o senhor dos exércitos? A resposta divina demorou um pouco. Naquele mesmo ano de 1640, aliás, partira para a Bahia uma expedição com vinte naus e dois mil e quinhentos homens. “Desembarcando ali os soldados, deram provas horrendas do seu furor bélico. Reduziram a cinzas todos os engenhos de portugueses, menos três; tomaram ou queimaram quantos navios pequenos encontraram aqui e acolá; devastaram e depredaram, à vista dos cidadãos, as lavouras circunvizinhas, os casais, granjas e prédios. A ilha de Itaparica e outras foram inteiramente postas a saque, para não se mencionarem outros danos, porquanto em parte alguma estorvou ou sustentou o inimigo a nossa violência”, relata o holandês Barleus. Era a estratégia da terra arrasada. “Trucidavam-se a ferro os homens e os que podiam pegar em armas”. Em fevereiro de 1647, novo massacre em Itaparica, com a infantaria holandesa sob o comando de van Schkoppe – ofensiva que, séculos mais tarde, nos daria as maravilhosas primeiras páginas do romance Viva o Povo Brasileiro, de João Ubaldo Ribeiro, obra que tem, como uma de suas matrizes fundamentais, o sermonário vieiriano. Mas o fato é que, só em meados da década de 1650, os holandeses assinariam a sua rendição.

PAISAGEM DA RESTAURAÇÃO Com a Espanha vivendo dias de funda crise econômica e o governo de Madri inteiramente concentrado na luta para derrotar a sublevação separatista da Catalunha, a nobreza portuguesa mergulhou fundo na conspiração: estava na hora de libertar Portugal. O desfecho da história é conhecido. Em 1640, Portugal recuperou a sua autonomia política. Ficou independente da monarquia castelhana. Foi a chamada “Restauração”, com D. João IV, duque de Bragança, subindo ao trono lusitano. No plano internacional, algumas coisas ficaram, por assim dizer, confusas. A Holanda investira contra o Brasil pelo fato deste ter sido arrastado, como colônia portuguesa, para o âmbito da dominação espanhola. Seria natural que, na nova conjuntura da Restauração, o jogo ganhasse outras cores, isto é, que Portugal e Holanda tratassem de pactuar, em função da retomada das transações luso-flamengas. Portugal realmente orientou a sua política externa no sentido de estabelecer a paz com os holandeses. Mas nada poderia ser muito simples. Àquela altura, lusitanos e batavos achavamse engajados, como adversários várias vezes ferozes, no quadro das disputas coloniais. Como observou Oliveira Marques, “a paz imediata com a Holanda significaria para os holandeses renunciar à sua política de conquista na Ásia e no Atlântico”. No que nos diz respeito mais de perto, o processo atlântico já tinha adquirido uma lógica própria. A Companhia das Índias Ocidentais considerava que a paz era “nociva” para os seus interesses. Nassau atacou a cidade de Luanda, em Angola. No Brasil, anexou o Maranhão aos seus domínios. E assim a luta prosseguiria até à rendição final dos holandeses, em 1654. Diz F. A. de Varnhagen, em sua História Geral do Brasil, que a aclamação de D. João IV fez-se com “felicidade análoga” por todas as regiões do Brasil que não se achavam submetidas ao domínio batavo. Evidências indicam, todavia, que a Restauração não chegou a ser recebida com foguetório em certos círculos da elite político-administrativa colonial. No Rio de Janeiro, por exemplo, houve a hesitação do governador local, Salvador Correia de Sá, que, ligado aos espanhóis, ficou sem saber o que fazer ao receber a notícia da independência portuguesa. Mas acabou optando por reconhecer o fato e permanecer no cargo. A esse respeito, aliás, os historiadores Mello e Bandeira perguntam e respondem com todas as letras: “O que dizer, porém, da maneira como essa restauração repercutiu no Brasil? Ato de simples protocolo, onde se vê claramente um aspecto fundamental: o cuidado das autoridades coloniais em não perderem o posto”. A Bahia era governada, na época, pelo Marquês de Montalvão, nosso primeiro vice-rei, que, na conta curiosa de Vilhena, “governou unicamente um ano menos um mês, e catorze dias”, de maio de 1640 a abril de 1641. Seu título de “vice-rei” fora dado, claro, pelos espanhóis, que o enviaram até nós, ainda segundo Vilhena, “para rostrear com os holandeses”. No processo da Restauração, sua mulher e seus filhos, que viviam no continente europeu, optaram pelo partido de Castela. E Mello e Bandeira tomam o marquês como exemplo típico de apego ao cargo, naquela conjuntura: “A notícia recebida por Montalvão é a da restauração de um reino e da deposição de um reinado. A reação da autoridade é simples. Rei morto, rei posto, viva o rei. É isso exatamente o que lhe ditam os seus interesses imediatos”.

As coisas, no entanto, podem ter sido mais complexas. Muitos soldados castelhanos se achavam, naquele momento, na Cidade da Bahia. E há quem considere que o vice-rei agiu com “argúcia”, a fim de conseguir sem tumulto a aclamação baiana de D. João IV. Além disso, existem notícias de que Montalvão batalhou pela adesão de outros, despachando emissários para capitanias sulistas e mesmo para Maurício de Nassau, na esperança de reintegrar Pernambuco ao domínio lusitano, já que os portugueses acreditaram, naquela conjuntura, que a paz com a Holanda seria estabelecida de imediato. O certo é que, no dia 27 de fevereiro de 1641, uma comissão nomeada pelo vice-rei (da qual faziam parte os jesuítas Simão de Vasconcellos e Antonio Vieira) partiu da Bahia para Lisboa, levando a mensagem da fidelidade baiana a D. João IV. Mesmo assim, perdurou o medo de que Montalvão traísse Portugal, optando pela dominação espanhola. Quem desempenhou um papel fundamental, no contexto da Restauração, foi o padre Antonio Vieira, que por isso mesmo atraiu para si a ira do Tribunal do Santo Ofício, adversário tenaz da autonomia lusitana. Mas a ação de Vieira não se deu no interior dos limites coloniais, e sim no próprio coração do reino. Em 1641, ele partiu da Bahia para Lisboa, onde foi recebido por D. João IV, de quem logo se tornaria conselheiro próximo e influente. Entre outras coisas, Vieira foi então nomeado “pregador régio”, tornou-se embaixador extraordinário do rei em missões diplomáticas em Paris e Haia (onde tentou estabelecer a paz com os holandeses) e redigiu a sua “Proposta” ao rei acerca da necessidade de readmitir no reino os judeus de origem portuguesa que se achavam espalhados pelo mundo. Mas falaremos disso adiante. A Cidade da Bahia e o seu Recôncavo encontravam-se nessa época obviamente empenhados na luta para expulsar os flamengos. Penavam com as ofensivas predatórias desfechadas desde Pernambuco. Mas, de todo modo, a região não estava ocupada. Nesse tempo, Salvador via o Recôncavo ampliar os seus passos, enquanto se ressentia da falta de casas onde abrigar os seus habitantes, já que boa parte delas ou fora destruída pelos holandeses ou se convertera em alojamento de soldados. Em todo caso, era uma cidade que já se consolidara, com o comércio se desenvolvendo em sua parte baixa, a zona residencial implantada no alto, juntamente com palácios e igrejas, e um guindaste ou grua fazendo o transporte de mercadorias entre a praia e o cume da escarpa. Mas era, sobretudo, uma cidade que ansiava por um novo tempo. Com a proclamação de D. João IV como rei de Portugal, o que se desenhava no horizonte era o advento de um tempo próspero e pacífico. “Era a liberdade para os portugueses e a perspectiva de uma paz duradoura que pudesse refazer a lavoura abandonada, os engenhos queimados e a cidade em ruína”, como escreveu Affonso Ruy em sua História Política e Administrativa da Cidade do Salvador. O que, em realidade, não deixaria de acontecer. Na observação do historiador Russell-Wood, a Cidade da Bahia e o Recôncavo conheceriam a sua “idade de ouro” entre os anos de 1650 e 1700.

CRISTÃOS NOVOS NA BAHIA

O Tribunal do Santo Ofício da Inquisição se estabeleceu em Portugal no ano de 1536, pleno reinado de D. João III, mesmo monarca que ordenaria, mais tarde, a construção da Cidade do Salvador da Bahia de Todos os Santos. Era uma instituição excepcionalmente poderosa. A sua jurisdição cobria casos de heresia – do grego hairesis, que significa ‘escolha’ – de práticas feiticeiras e de condutas sexuais consideradas “desviantes”, como a “sodomia”, isto é, relacionamentos homossexuais masculinos ou femininos e mesmo a conjunção anal heterossexual. Além disso, cuidava da censura de livros. E suas sentenças iam da prisão à pena de morte, passando pela determinação do confisco dos bens dos infratores do código inquisitorial. Os cristãos novos (ou a “gente de nação”, como também se dizia) – em sua maior parte, descendentes de judeus sincera ou forçosamente convertidos ao Catolicismo – eram o alvo principal dos inquisidores. Até então, Portugal jamais possuíra qualquer legislação contra convertidos, mas a partir daí, da segunda metade do século XVI, conheceria, em escalada crescente, o cerco e a caça ao Judaísmo. Ainda no século XV, Portugal fora, nas palavras de Maria José Ferro Tavares, em Os Judeus na Época dos Descobrimentos, uma espécie de “el dorado para os judeus peninsulares”. Este é, entre outras coisas, o período em que se ergue a sinagoga gótica de Tomar, ao pé do célebre castelo da Ordem de Cristo, e em que crescem as “judiarias” de Lisboa, do Porto, de Évora, de Santarém. Assim também foi que, nos últimos anos da centúria de quatrocentos, “Portugal tornou-se o centro da cultura dos judeus da Península”. Ao mesmo tempo, a intolerância foi também se desenvolvendo a pouco e pouco, rumo ao desfecho de 1496, quando D. Manoel, para poder se casar com a princesa Isabel, filha dos “Reis Católicos” e herdeira da Espanha, teve que expulsar formalmente os judeus do território português – embora também agisse para manter a minoria judaica, inclusive estimulando a conversão e recorrendo ao expediente do batismo compulsório en masse. Mas se o “Venturoso” era contraditório, expulsando judeus em cumprimento de uma cláusula do seu contrato nupcial, D. João III, um fanático religioso, era claro. Foi ele quem pediu ao papa a licença para organizar a Inquisição em Portugal. E o tempo fechou. Entre 1541, ano do primeiro “auto-de-fé”, e 1684, a Inquisição queimou cerca de mil e quatrocentas pessoas em Portugal. Algumas, por feitiçaria; outras, por “depravação”. Mas a maior parte dos que morreram nas fogueiras inquisitoriais lusitanas era formada por indivíduos acusados de Judaísmo. “No século XVII, tanto a Espanha como Portugal se acham dominados pela verdadeira obsessão da idéia de pureza de sangue”, assinala Anita Novinsky (em Cristãos Novos na Bahia), que localiza exatamente aí “o primeiro exemplo, na História, de um racismo organizado”. E o círculo repressor se aperta em torno dos cristãos novos, gente de sangue impuro. Perseguição. Ainda Novinsky: “Resumindo, temos os cristãos novos no século XVII impedidos de ingressar na carreira eclesiástica, de ocupar cargo da Justiça ou Fazenda. Desde o ano de 1598 não podiam desempenhar funções públicas na Índia, não podiam ser boticários, nem médicos, nem ser admitidos a nenhuma cadeira da Universidade. Não podiam pertencer às ordens militares, nem negociar na Bolsa, e cogitava-se de medidas que os impedissem de casar com cristãos velhos. Não podiam ser fidalgos nem ter honra alguma e tentaram impedi-los de exercer o comércio, aumentando sempre as queixas de que os

comerciantes cristãos novos ‘prejudicavam’ os naturais. Também os bispos quiseram excluí-los completamente da atividade mercantil, porém como fosse impraticável o projeto, pediram que não os admitissem como arrematadores de impostos”. É certo que há várias leituras e interpretações do fenômeno inquisitorial português. Mas não é este o lugar adequado para esquadrinhar a questão. Basta reter o seguinte. Em termos claros e didáticos, podemos dizer que o Estado lusitano monopolizava então o comércio e repartia os seus lucros em meio à nobreza. De outra parte, a burguesia prosperava. Em seu âmbito, moviam-se cristãos novos, exibindo respeitável poder econômico. Na concorrência entre cristãos novos e aristocratas, o Estado ficou com a nobreza senhorial. E a Inquisição, em que pesem os signos sagrados que ostentou, surgiu como uma espécie de instrumento da oligarquia hereditária lusitana para barrar os passos da burguesia, em cuja esfera estavam os judeus. É nesse contexto que ganham relevo (e sentido) o combate ao comércio judaico e a política de confisco dos bens dos cristãos novos, que sustentavam e enriqueciam o Santo Ofício. Confiscar a fortuna alheia era, aliás, altamente oportuno, também, para um Estado imerso em imensas dificuldades econômicas. Além disso, o judeu servia ainda de “bode expiatório”, responsabilizado pelos males e misérias que castigavam Portugal. Assim, tinha-se como inimigo externo, naquela época, a Reforma de Lutero e Calvino. Internamente, o herege era o cristão novo. Havia que combater e destruir o Judaísmo. Essa maré antijudaica do reino alcançou, obviamente, as terras baianas. Na Bahia, “o português de remotas origens judaicas continuará sendo legalmente objeto do mesmo programa de eliminação vigente no Reino e discriminado como casta à parte” (Novinsky). Tivemos então, em nosso meio, as primeiras “visitações” oficiais do Santo Ofício, em 1591-1593 e 1618. Os inquisidores procuravam, não por acaso, as regiões mais prósperas da colônia. E foi assim que concentraram seu fogo, inicialmente, na Bahia e em Pernambuco. Na “visitação” de D. Marcos Teixeira, em 1618, alguns cristãos novos foram presos e remetidos para o reino. Também aqui, na Bahia, as autoridades governamental e eclesiástica reagiam contra a força econômica e o prestígio dos cristãos novos, classificando-os como hereges que viravam as costas à Igreja e chicoteavam crucifixos. Mas ainda não era nada. Tempos realmente rudes, para os cristãos novos da Bahia, viriam entre os anos de 1642 e 1647. Este é o período em que o inquisidor D. Pedro da Silva Sampaio, cognominado “o Duro”, acha-se à frente do bispado do Brasil. E em que o governador é também um homem da Inquisição – Antonio Telles da Silva, mercador rico, que concorria com cristãos novos no setor do comércio de exportação. Sob o açoite conjunto do bispo e do governador, a “gente de nação” foi asperamente perseguida na Bahia, conhecendo humilhações, processos e o cárcere. No entanto, a violência antijudaica não chegou a atingir, entre nós, os extremos que alcançara em Portugal. Já fiz referência ao confronto entre Vieira e o Santo Ofício. Vieira ansiava pela recuperação da autonomia lusitana. A Inquisição, ao contrário, apoiava a dominação espanhola – e acionou as suas forças para tentar impedir a Restauração. “Atacou a casa de Bragança em todas as frentes, e procurou até depois da morte de D. João IV minar as possibilidades de consolidação da nova monarquia”, observou Anita Novinsky, para esclarecer: o Santo Ofício lutava, acima de tudo, pelos seus próprios interesses. “Com a independência de Portugal, os rumos que se esboçavam na política de D. João IV

em relação aos cristãos novos, tendo ao seu lado um conselheiro como Vieira e políticos como o Marquês de Niza e Francisco de Sousa Coutinho, não agradaram aos Inquisidores, que viam assim suas bases ameaçadas: os confiscos”. E logo o Santo Ofício começou a perseguir os ideólogos da Restauração, datando daí as primeiras denúncias contra Vieira e a tentativa para expulsá-lo da Companhia de Jesus. Era inevitável. E Vieira sabia disso. Ao dizer, em sua primeira “Proposta” a D. João IV, que Espanha e França só agiam de acordo com as leis da conveniência própria, ele escreveu: “Imaginar o contrário é querer emendar o mundo, negar a experiência, e esperar impossíveis”. Essas palavras se aplicariam, à perfeição, às ações desencadeadas pelo Santo Ofício. Para a Inquisição, Antonio Vieira era um inimigo que cumpria varrer do mapa. Ele pretendia, de um só golpe, arquivar as discriminações antijudaicas e desarticular a base material sobre a qual se estruturara o Santo Ofício. No seu modo de ver, só por esse caminho a nova monarquia portuguesa poderia se sustentar. E o seu raciocínio é exposto sem rodeios nas “Propostas” de 1643 e 1646. Nesses textos, ele não só chama a atenção do rei para o “perigoso estado” em que se encontrava o reino, como, em seguida, se apressa em apontar “os meios eficazes com que se lhe deve acudir e procurar os seguros da sua conservação”. Em resumo, Vieira pensava, lúcida e pragmaticamente, o seguinte. Portugal vivia tempos de crise. A monarquia não conseguiria sobreviver apelando apenas para si mesma. As colônias, naquele momento, significavam “maior gasto que proveito”. E tampouco Portugal deveria se fiar na aliança com a França, então em guerra com a Espanha, ou apostar na paz com a Holanda. “A nação francesa naturalmente é inconstante, inquieta, amiga de novidades e fácil de corromper-se por dinheiro”, dizia ele. Cessasse a guerra entre França e Castela, e logo Portugal teria pela frente a espada espanhola. Quanto à Holanda, alertava: “...a pouca fé, e falsa amizade com que os holandeses nos tratam, bem mostra que debaixo do nome da paz, nos querem fazer na Índia a mesma guerra, que em Pernambuco, Angola, Maranhão e S. Tomé, entretendo-nos com fingidas promessas e embaixadas, para mais nos divertirem, e segurarem as suas conquistas”. Esboçado o panorama crítico, Vieira defende o retorno ao reino dos portugueses de origem judaica, fortes homens de negócio que andavam dispersos pelo mundo, em decorrência da caça inquisitorial aos cristãos novos. Portugal deveria recebê-los de volta – e de braços abertos, sepultando a divisão entre cristãos novos e velhos, já que todos amavam a sua pátria. Com os seus capitais e o interesse que tinham pela sorte de Portugal, esses mercadores luso-judaicos – “homens de grandíssimos cabedais, que trazem em suas mãos a maior parte do comércio e riquezas do mundo” – poderiam providenciar uma poderosa injeção de vitalidade econômica, levantando o reino. Mais – Portugal se fortaleceria vendo os seus rivais enfraquecer, já que os tais capitais judaicos dinamizavam a Holanda, a Espanha e a França. E o que “desnaturalizara” os cristãos novos e agora os impedia de voltar? A Inquisição, que os escorraçara injustamente de Portugal. Colocando-se frontalmente contra o Santo Ofício, Vieira ataca em duas frentes, que podemos definir como a frente teológica e a frente pragmática. Na primeira, recorre aos “sagrados cânones” e a exemplos da “história sagrada” para demonstrar que o retorno dos judeus não contrariaria em nada os princípios cristãos. Pelo contrário, contribuiria para o alargamento da fé. Argumenta, assim, com a “razão

católica”. Em termos pragmáticos, pede uma “mudança de estilos” do Santo Ofício e o fim do confisco de bens. Fruto dessa batalha de Vieira, nasce, em 1647, a Companhia Geral do Comércio do Brasil, com os seus acionistas, cristãos novos, isentos do seqüestro de bens. Um golpe duro na Inquisição, que viu começar a secar as suas fontes de financiamento e corrupção. Mas a instituição, como disse, era poderosa. E prosseguiu executando o seu programa racista. No mesmo ano em que Vieira defendia em Lisboa os cristãos novos, a Cidade da Bahia experimentava a chamada “Grande Inquirição” de 1646. E aqui há um dado de muito interesse: na “Grande Inquirição”, a acusação aos cristãos novos se deslocou do plano religioso para o plano político. A pecha de herege deu lugar à de traidor, cúmplice da invasão holandesa, o que é mais um atestado de que o móvel central da Inquisição não era exatamente teológico, mas econômico. O pretexto para confiscar bens podia variar, desde, é claro, que permitisse o confisco. E ponto final. A verdade é que a acusação de traição, atribuindo aos cristãos novos uma suposta entrega da Cidade da Bahia aos holandeses, em 1624, não resiste ao menor exame histórico. O fato é que alguns cristãos novos, assim como alguns cristãos velhos, chegaram a ficar a favor dos holandeses. Mas eram adesões isoladas, numericamente pouco significativas, e ditadas por interesses econômicos. Não se pode falar genericamente de colaboração dos cristãos novos ou dos cristãos velhos com o invasor. A falcatrua histórica da “traição” judaica foi uma manobra dos inquisidores. Sabe-se que não faltaram cristãos novos lutando contra os batavos. Para citar apenas dois exemplos, tomem-se os casos de Mateus Lopes Franco e Diogo Lopes Ulhoa. Eles participaram ativamente da defesa da Bahia, inclusive construindo barcos, por conta própria, para socorrer os engenhos do Recôncavo. Por fim, não será demais lembrar que a Companhia Geral do Comércio do Brasil – formada por cristãos novos, sob a inspiração de Vieira – armou a esquadra que veio a expulsar os holandeses de Pernambuco. Fato que, por sinal, levou à seguinte afirmação enfática do estudioso I. S. Révah: “A singular, se bem que patriótica aliança, dos judeus e dos jesuítas, salvou o Brasil e a independência portuguesa”. Feitos esses esclarecimentos, podemos, finalmente, abordar uma diferença: ser cristão novo na Bahia. Na verdade, talvez não seja incorreto falar, ainda que sem maior rigor, de uma categoria - o “cristão novo baiano”. Portugueses de ascendência judaica começaram a chegar na Bahia muito cedo, num processo migratório que atravessou o século XVI e entrou pela centúria seguinte. Passando pela Bahia em 1610, Pyrard de Laval notou o grande número de “cristianos nuevos” aqui existente. Calcula-se que, entre 1635 e 1654, eles somassem de 10 a 20% da população de Salvador. Mas o fato é que, apesar do número, não formavam uma “comunidade judia”, no sentido mais exato da expressão – isto é, um grupo coeso, levando existência apartada, nitidamente demarcável, nas tramas e tessituras da vida baiana. No século XVII, eram uma gente estabelecida aqui de longa data, perfeitamente integrada nos ritos e ritmos daquela vida social. E o seu judaísmo era mais um vínculo com o passado, a ancestralidade, do que uma militância no presente. Ou, por outra, era mais um eco ou um reflexo do que propriamente uma prática. Não se quer dizer com isso que o preconceito e a discriminação inexistissem. O cristão novo nunca deixou de ser tratado e de se perceber como diferente, como indivíduo marcado por um

estigma, num mundo que cultivava ostensivamente o mito da “pureza de sangue”. Mas também é verdade que o quadro reinol de discriminação e perseguição se atenuou nos trópicos. O que se podia ver, na Bahia, era uma plasticidade maior, ou mesmo um certo relaxamento, no campo das relações humanas. Citemos, novamente, Anita Novinsky: “De um lado, as autoridades e a massa da população cristã velha descuidaram-se das numerosas proibições e tabus, de outro, os cristãos novos deixaramse envolver com maior docilidade pelo processo assimilatório”. Daí a conclusão da pesquisadora, falando em termos comparativos: “O cristão novo no Brasil apresenta algumas características extremamente interessantes e que o distinguem nitidamente dos cristãos novos que emigraram para os países do norte da Europa ou para o Levante. Miscigenou-se com a população nativa, criou raízes profundas na nova terra, integrando-se perfeitamente na organização social e política local”. Vamos encontrá-los em diversas posições na estrutura social e na vida político-administrativa da Bahia seiscentista. São senhores de engenho, homens de negócio, burocratas, artífices, bacharéis, boticários, lavradores, religiosos, etc. Ocupam postos na administração pública, aparecem na Câmara como representantes do povo, chegam à intimidade do poder, como Diogo Lopes Ulhoa, que foi conselheiro do governador Diogo Luís de Oliveira. Mas há também os artesãos e empregados mais humildes. Aliás, como frisou Novinsky, o processo assimilatório dos cristãos novos “cumpriu-se de modo mais integral entre os grupos sociais extremos”. Os que atingiam as posições mais altas na hierarquia social, casavam-se com cristãos velhos; os mais pobres muitas vezes se mesclavam com negros e índios. E os casamentos significavam que novas famílias entravam para o rol dos cristãos novos. Em suma, o que houve na Bahia foi assimilação e mistura. O pólo oposto à integração teria sido representado pela figura de um jovem radical, brilhante e sedutor – Joseph de Liz (Isaac de Castro Tartas), o “judeu francês”, enviado para instruir os cristãos novos do Brasil na fé judaica. Conta-se que era um rapaz especialmente culto, falando diversas línguas, “um dos judeus mais conscientes e idealistas que passaram pela Colônia nesse século [XVII]” (Novinsky). Detido na Bahia, Joseph de Liz foi enviado para Lisboa, sendo atirado nos cárceres da Inquisição. E os inquisidores foram implacáveis em sua sentença. Liz morreu queimado, em 1647, aos 24 anos de idade. Mas, por mais rumor e fascínio que a sua passagem tenha provocado entre os cristãos novos da Bahia, o que prevaleceu foi a integração.

DESENHO DO ENGENHO A empresa açucareira foi um tipo de organização econômica cuja configuração seria simplesmente impensável antes do século XV. Um rebento típico da rede de relações mundiais que se instaurou a partir das grandes navegações oceânicas deflagradas desde Sagres, em Portugal, pelo Infante D. Henrique e sua comunidade tecnocientífica, reunindo especialistas nascidos nas mais

diversas partes do globo terrestre, inclusive judeus e muçulmanos. O cultivo da cana-de-açúcar começou em terras asiáticas. Alcançou posteriormente a Pérsia – e, graças aos conquistadores árabes, foi levado ao Mediterrâneo. Chegou, depois, ao Norte da África, ao continente europeu, às ilhas atlânticas. Para, finalmente, implantar-se na massa continental da América. Mas se a cana veio do Oriente, o trato técnico a que foi submetida aprimorou-se no Mediterrâneo, nas ilhas atlânticas e em terras africanas, ao longo do século XV. Também aí se impuseram a opção pela monocultura e o emprego de mão-de-obra negroafricana. Os capitais e os sistemas de financiamento e comercialização foram, por sua vez, gerados na expansão comercial européia. Assim nasceu uma espécie de empreendimento cujo caráter era francamente cosmopolita. Os relatos da época são generosos ao fornecer exemplos dessa sua natureza transcultural. E não era apenas a tecnologia produtiva que se difundia rapidamente, cobrindo as distâncias. Os próprios técnicos eram recrutados em locais variados – muitas vezes entre nações em conflito ou em estado de competição acirrada – e, numa política de transferência de recursos humanos que contava, quase sempre, com apoio governamental. No Brasil, essa história tem o seu ponto de partida com a passagem da armada de Martim Afonso de Souza. Martim trouxe colonos portugueses, italianos e flamengos que tinham experiência na manufatura do açúcar. Como todos sabem, o plantio e a produção prosperaram, apesar de todos os obstáculos. No final do século XVI, existiam já, na Índia Brasílica, mais de uma centena de engenhos. Quase todos localizados no eixo Pernambuco-Bahia. O caso baiano, aliás, começou mal. Os dois engenhos construídos por Francisco Pereira Coutinho – um deles, em Pirajá – tiveram vida curta. Foram destruídos, como vimos, pelos índios tupinambás. Ainda assim, ao crepúsculo do século XVI, a Bahia contava com cerca de 40 engenhos. Mas vamos por partes. Passado o fracasso do Rusticão, veio o Governo Geral. E Thomé de Sousa chegou com a orientação de construir um engenho real e estimular a criação de outros engenhos, através da concessão de sesmarias e de benefícios fiscais. O engenho real foi erguido sobre as cinzas do velho engenho de João de Velosa, em Pirajá. E logo o empreendimento açucareiro estaria seguindo os passos do avanço militar dos portugueses sobre as terras férteis do Recôncavo. Na década de 1560, engenhos já coloriam a paisagem da área norte da Bahia de Todos os Santos, instalando-se em Paripe, Pirajá, Cotegipe e Matoim. Adiante, Mem de Sá alargou a zona de expansão, ao liqüidar a maioria das aldeias tupinambás do Recôncavo. E os canaviais foram em frente, espraiando-se pelas terras invadidas. O próprio governador geral tomou para si, de resto, uma bela faixa de terra (três léguas e meia no litoral, quatro léguas em direção ao interior), onde fez erguer um dos engenhos mais célebres de nossa história colonial, o Sergipe. A partir daí – e apesar de tudo - as plantações de cana e a produção de açúcar se estabeleceram, para se converter em fatores fundamentais, determinantes, da vida baiana. Stuart B. Schwartz acha que, por ocasião da morte de Mem de Sá, em 1572, a geografia baiana do açúcar assumira já a sua fisionomia definitiva. De uma parte, havia a concentração litorânea – e engenhos espalhados pelas ilhas. De outra, já estavam franqueadas à plantação as áreas dos rios Sergipe e Subaé, que constituiriam o “cerne” da economia açucareira, florescendo, no século XVII, entre São Francisco do

Conde e Santo Amaro da Purificação. Neste século, a ocupação do Recôncavo já se pode considerar obra realizada. Para se ter uma idéia do quadro, em 1676, a região contava com nada menos que 130 engenhos. E, desde que Pernambuco foi tomado pelos holandeses, ela assumiu o comando da produção brasileira de açúcar. Depois que a ponta-de-lança militar desbaratou a massa indígena do Recôncavo, os engenhos desempenharam o papel de desbravar brenhas e fixar gente, promovendo o domínio territorial efetivo da região. Para isso, muito contribuiu o fato do engenho não ser somente uma unidade econômica produtiva, mas, mais que isso, uma unidade cultural, colonizadora, formada pela fábrica, a casa-grande, a capela e a senzala. Ao se implantar num determinado ponto do Recôncavo, fosse perto do mar ou em borda de rio, ele imediatamente magnetizava o espaço à sua volta. E assim, no rastro de sua expansão, iam surgindo, paulatinamente, vilas e paróquias. A gente que colocava os engenhos para funcionar sofreu uma alteração básica em sua composição, se compararmos o que havia no século XVI e o que houve no século XVII. No século XVI, os engenhos se instalaram com base no trabalho forçado dos índios. No limiar da centúria seguinte, a mão-de-obra era mista, mesclando, em termos mais ou menos proporcionais, escravos ameríndios e escravos africanos. Regra geral, os africanos eram empregados em tarefas mais técnicas, mais propriamente açucareiras, cabendo aos índios atividades de certo modo periféricas ao fabrico do açúcar, como a caça, a pesca, o corte e o transporte de lenha, a plantação de mandioca. Com o andar da carruagem, todavia, o equilíbrio étnico foi rompido. Os negros passaram a predominar de ponta a ponta. Em comparação com os padrões vestuais e alimentares de certas regiões africanas, aqueles escravos se vestiam mal e comiam pior ainda. Os senhores eram sovinas, nesse particular. A Coroa portuguesa chegou a ficar preocupada com o assunto, determinando que os escravos recebessem uma alimentação adequada. Sabe-se que seu alimento básico era a farinha, alguma carne seca, algum peixe, algumas bananas. De qualquer modo, em engenhos situados perto da praia ou de manguezais, podia-se pescar e mariscar. Além disso, durante a safra, sobrava sempre um pouco de cachaça. O começo da safra, aliás, era marcado ritualmente. Em inícios do mês de agosto, os engenhos já se achavam em ponto de bala, prontos para entrar em ação. O senhor convocava os seus trabalhadores e recebia indivíduos livres que moravam nas vizinhanças. Era então que vinha o padre celebrar a missa, abençoar o engenho, aspergir água benta sobre a maquinaria. Caldeiras, escravos, carros-de-boi especialmente coloridos para a ocasião, tudo era abençoado. Feitos os pedidos e promessas, era a hora do banquete na casa-grande. Mesa e sobremesa fartas. Garapa de baixo teor alcoólico ia para os escravos. E, em seguida ao rito e à comilança, o trabalho – sob o olhar e o açoite do feitor. Trabalho duro. Duríssimo. Para os escravos, é claro. Em Segredos Internos – Engenhos e Escravos na Sociedade Colonial 1550-1835, Stuart B. Schwartz escreve: “O trabalho em um engenho brasileiro era ininterrupto, sendo as tarefas pertinentes aos canaviais realizadas durante o dia e as atividades de moenda feitas à noite. A moenda ficava em funcionamento normalmente por dezoito a vinte horas, parando por apenas algumas horas para limpeza do mecanismo. No século XVII, os engenhos baianos (...) iniciavam a moagem às quatro

horas da tarde, prosseguindo durante toda a noite até às dez horas da manhã seguinte. Então limpavam-se as caldeiras e a moenda, que às quatro recomeçava a funcionar. Durante as poucas horas de folga, os escravos tentavam dormir, mas às vezes passavam esses momentos procurando mariscos ou outros alimentos”. Note-se, ainda, que nem todos os engenhos utilizavam força hidráulica. Havia os que eram movidos a tração animal – bois, em geral. E crianças eram empregadas como condutores desses animais. Cumpriam jornadas de trabalho mais do que penosas, andando horas em círculo, no compasso ditado pelo ritmo da moagem. Homens, crianças e mulheres. A colheita era feita por pessoas dos dois sexos – os homens cortando a cana rente ao solo e retirando-lhes as folhas superiores; as mulheres reunindo a cana em feixes, para serem transportadas. E sempre havia mulheres trabalhando na moenda, passando canas, carregando bagaço, regando as engrenagens ou cuidando da candeia de óleo de peixe. Muitas delas, entre exaustas e bêbadas, tiveram as suas mãos trituradas pela máquina. E a faina prosseguia, à luz das fornalhas. Estas, aliás, eram alimentadas por um escravo chamado “metedor”, ou metedor-de-fogo. Naquela época, ser “metedor” era uma atividade exclusivamente masculina. Era um serviço arriscado (geralmente, um castigo determinado pelo feitor), onde se corria o risco de, a qualquer distração, cair em cheio no meio das chamas. Alguns escravos, de resto, se suicidaram assim, atirando-se ao fogo. E houve senhor que jogasse gente viva na fornalha de seu engenho. Mas a faina, repito, prosseguia. O caldo das canas indo para gamelas e daí para a “casa das caldeiras”, passando por processos de cozimento, até atingir a consistência do “melado”, que era retirado das tachas sob a orientação do chamado mestre-do-açúcar. Colocado em fôrmas de barro – como os vasos de Maragogipinho, por exemplo –, na “casa de purgar”, esse melado passava duas semanas endurecendo, antes de ser filtrado. Seis semanas depois, o açúcar estava pronto. Escolhia-se um dia de sol, e o produto era retirado das fôrmas. Havia uma gradação de valores: o açúcar branco, que ficava no topo do vaso, era o mais caro; o do meio, pardo, tinha menor valor; e o do fundo da fôrma, escuro, era considerado de pior qualidade. Era quase que uma representação visual, um ícone da estratificação social escravista. Açúcar branco e açúcar mascavo. E logo o produto era acomodado em caixas de jequitibá ou camaçari. À venda. Esse trabalho ia de julho/agosto a maio, quando chegavam as chuvas e as atividades cessavam. O que significava, certamente, um período de maior autonomia para o ser humano escravizado. Sobre essa relativa liberdade que os escravos gozavam, no Brasil, podemos, de resto, estabelecer uma gradação. Num extremo, ficaria a escravidão mineira. Engajado nas tarefas contínuas da mineração, o escravo praticamente não contava com um tempo para si mesmo, onde pudesse compor ou recompor um espaço de refúgio cultural, voltando-se para o cultivo e a transmissão de seus valores e de suas práticas. No extremo oposto, vamos encontrar a escravidão urbana. Foi na cidade que o escravo pôde desenvolver um maior grau de autonomia física e psíquica, circulando pelas ruas, encontrando seus pares, realizando seus ritos, trocando informações. Entre um extremo e outro, estava a escravidão agrícola. O escravo agrícola teve bem mais liberdade do que o escravo das minas. No intervalo entre os períodos de trabalho mais intenso, isto é, no tempo que se prolongava entre o plantio e a colheita, ele

se via relativamente livre para trabalhar e retrabalhar os seus sons, os seus dons e os seus sonhos. Mas não há dúvida de que era menos livre que o escravo urbano – os chamados “negros do ganho”, por exemplo, nem mesmo costumavam morar em casa de seus senhores –, na medida em que se achava demasiadamente próximo à casa-grande e em que o seu mundo era acanhado, sem a variedade e o colorido da vida citadina. Ainda assim, esses escravos não deixaram de fazer os seus próprios empreendimentos culturais, deixando uma funda marca na vida do Recôncavo da Bahia, como veremos adiante, em outro tópico deste capítulo, ao tratarmos da presença, entre nós, dos negros bantos de Angola e do Congo. Seja como tenha sido, o Recôncavo Baiano se tornara um centro internacional da produção açucareira. Não admira, pois, que o romancista inglês Daniel Defoe tenha feito, do seu célebre aventureiro Robinson Crusoe, senhor de engenho na Bahia. Sim: antes de naufragar em sua ilha deserta no Caribe (onde se lamenta da falta de um escravo, mas não se importa com a falta de uma mulher), o puritano Robinson veio para cá. Tentou a sorte em nossos trópicos. Chegou aqui a bordo de um navio português (“We had a very good voyage to Brazil and arrived in the Bay de Todos los Santos”), implantando-se no Recôncavo, onde plantava fumo e cana-de-açúcar. Depois de quase quatro anos no Brasil (onde afirma que aprendeu a língua portuguesa, embora ela, no texto de Defoe, se reduza às expressões “seignior inglese”, “ingenio” e “assientos”, palavras que não são exatamente portuguesas), é que ele parte da Bahia (da Cidade do Salvador, “our port”) para a África, com o intuito de traficar escravos. O que Robinson queria era se tornar comerciante de negros, fazendo a rota África-Bahia. Só que, na viagem de estréia, seu navio foi colhido por uma tempestade e atirado numa ilha caribenha, naufragando. E é aí que ele vai encontrar o pobre do Sexta-Feira. Mas o que nos interessa é uma outra coisa. O simples fato de um escritor, um romancista inglês, escrevendo no princípio do século XVIII, ter escolhido como cenário a Cidade da Bahia e seu Recôncavo, para aqui situar uma peripécia agrícola, escravocrata, de sua personagem, mostra de imediato o que significávamos então para o mundo. A Bahia era sinônimo de açúcar e de negros.

FIDALGOS CARAMURUS Naquele mundo de ostentação e aparência, que foi a sociedade seiscentista baiana, onde os mais abastados devotavam absoluto desprezo ao trabalho – especialmente, ao trabalho manual – os que possuíam bens e capitais se esforçavam para ser reconhecidos como “fidalgos”. Como integrantes do reduzido círculo da chamada “nobreza de sangue”. Para isso, não hesitavam em falsificar árvores genealógicas. Mas dificilmente escaparia, ao apreciador crítico daquela vida baiana, essa prática da falsificação de linhagens. Boa parte daqueles senhores e comerciantes ricos era, evidentemente, mestiça. Descendia, não raro, de índios que andavam nus e cultivavam a antropofagia. Famílias poderosas da

região eram, assim, agrupamentos mamelucos. Basta lembrar que a índia tupinambá Catarina Paraguaçu chegou a ver, ainda em vida, descendentes seus fazendo parte das “melhores famílias” do lugar – e ocupando postos públicos importantes. Fidalgos recebiam suas filhas em casamento. Um neto do casal Caramuru-Paraguaçu, chamado Diogo Dias, casou-se, por sinal, com Isabel de Ávila, o que fez com que o sangue indígena fosse irrigar, também, a Casa da Torre. Genes em rotação. Francisco Dias d’Ávila, o primeiro, foi, portanto, bisneto do velho Caramuru. E esse entroncamento das famílias Caramuru (cujo nome foi traduzido algumas vezes por “moréia”, como vemos em Belchior Dias Moréia, pai de Robélio Dias, o das minas de prata) e Ávila não foi um fato isolado. Outros cruzamentos ocorreram. Satirizando a vida baiana, Gregório de Mattos não passaria ao largo do tema. Aliás, ele – que era branco e cristão velho, descendente de senhores de engenho – não via com bons olhos a ascensão social dos novos-ricos, com seus anseios de fidalguia, nem a proliferação de mulatos, os quais considerava atrevidos e boçais. Por isso mesmo é que dedicou alguns poemas ao desnudamento da linhagem “pura” de alguns dos nossos fidalgos. Daqueles que formavam, como ele dizia, a nobreza de “sangue de tatu” (“tatu”, no caso, para acentuar a sua origem tropical, e não reinol). E foi ao ponto central da questão, mostrando que, por trás dos véus, dos truques e disfarces de cariz aristocrático, o que se encontrava era a antro-pofagia. Mais preciso ainda, em sua referência baiana, Gregório adjetivou o apelido indígena de Diogo Álvares, agrupando aqueles falsos nobres sob a denominação geral de “fidalgos caramurus”. Para então disparar: Um calção de pindoba a meia porra, camisa de urucu, mantéu de arara, em lugar de cotó, arco e taquara, penacho de guará em vez de gorra. Furado o beiço, sem temor que morra, o pai, que lho envazou com ua titara, senão a mãe, a pedra lhe aplicara a reprimir-lhe o sangue, que não corra. Alarve sem razão, bruto sem fé, sem mais lei que a do gosto, quando berra, de arecuná se tornou em abaité. Não sei como acabou, nem em que guerra; só sei que do Adão de Marapé procedem os fidalgos desta terra.

Bem, sejamos didáticos, ainda que correndo o risco de entediar os entendidos. O que Gregório compõe poeticamente, nesse texto, é a figura ancestral dos “fidalgos caramurus” – o Adão de Marapé (há quem leia “massapê”). “Um calção de pindoba a meia porra” é, na verdade, uma espécie qualquer de tanga de palha (pindoba = palmeira), mais ou menos na altura (ou na metade) do pênis. A figura

está pintada de urucu, praxe indígena, e, em vez de cutelo e gorra, leva arco e penacho de plumas. Na segunda quadra, vemos que traz o beiço furado. E é desse ancestral desaparecido (o índio exterminado na Bahia) que descendem nossos fidalgos. Trata-se, assim, de um Adão dos trópicos. Mais exatamente, de um Adão do Recôncavo. Marapé era uma localidade da região (“Mairapé”, segundo Theodoro Sampaio), onde começavam, de acordo com Gabriel Soares, as terras de Mem de Sá. Ainda Gregório, frisando, em outro poema, o vínculo daqueles pseudofidalgos com o mundo ameríndio, o canibalismo (os tupinambás, como se sabe, separavam os ossos das vítimas que devoravam, para fazer flautas ou empregar em artes mágicas): Que é fidalgo nos ossos cremos nós, pois nisto consistia o mor brasão daqueles que comiam seus avós.

Um dos alvos da sátira gregoriana foi, note-se bem, o governador geral Câmara Coutinho, que teria sido neto de português e índia, logo, um mameluco. Fala, sobre esta, o poeta: A tal era uma tapuia grossa como uma jibóia que roncava de tipóia e manducava de cuia.

Não é difícil imaginar os efeitos que tais porretadas verbais devem ter tido na Bahia de então, sociedade marcada pelo culto das aparências, onde a máscara importava mais do que a cara. Gregório avivava a ascendência ameríndia que aquela fidalguia pretendia abolir ou, ao menos, sublimar. Ao dado genético, acrescentava um traço fundamental do universo cultural indígena. Além do sangue “impuro”, aquela gente trazia a alma maculada, manchada por um pecado pavoroso, do ponto de vista europeu. Era filha, em linha direta, de canibais.

DA VIOLA AO PATURI A paixão dos nossos indígenas do litoral – tupinambás e tupiniquins – pela dança, pela música e pela retórica, pela eloqüência discursiva, tornou-se proverbial entre os estudiosos. Será muito difícil encontrar qualquer registro daquela vida ameríndia que não mencione o fato. Jean de Léry, por exemplo, fala que os índios dançavam todo santo dia. Dançar, cantar e beber constituíam a sua “ocupação ordinária”. Léry nos conta, ainda, de crianças de corpo pintado, dançando em grupos,

quando europeus visitavam suas aldeias. E das grandes farras regadas a cauim, prolongando-se por dias: “...enquanto dura a cauinagem, os nossos brejeiros americanos, para melhor esquentar o cérebro, cantam, assobiam e se incitam uns aos outros a portarem-se valentemente e a fazerem muitos prisioneiros na guerra; enfileiram-se, como grous, e não cessam de dançar, de entrar e sair da casa em que se reúnem, até que tudo se conclua, isto é, que se tenha esgotado toda a bebida”. O capuchinho Claude d’Abbeville, por sua vez, não economiza elogios, ao se referir aos bailarinos tupinambás. Para o missionário, eles eram “os maiores dançarinos deste mundo”. E d’Abbeville é preciso em sua descrição: “Dançam sem trejeitos, nem saltos, nem requebros e rodeios; colocam-se todos em círculo, muito perto uns dos outros, sem entretanto tocar nem falar; quase sem sair do lugar”. Em tempos de cauinagem, contudo, o desenho era algo diferente. “Assim não se entusiasmam demasiado durante a dança a não ser no tempo do cauim; então percorrem as aldeias dançando e saltando em torno de suas cabanas”. Mas resta o padrão coreográfico: “Dançam em geral com os braços pendentes, às vezes com a mão direita nas costas e contentam-se com mover a perna e o pé direito. É verdade que não raro se aproximam uns dos outros, voltam, param e giram sempre com o pé no chão; mas de três a quatro voltas regressa cada um em cadência ao lugar de onde saiu”. É curioso: aqueles índios, que desconheciam a carícia do beijo, não se tocavam corporalmente, em seus passos dançarinos. Infelizmente, sabemos que eles cantavam, mas não sabemos como tematizavam a vida e o universo, recriando-os em seus textos. Disso, o que chegou até nós é muito pouco, praticamente nada. De qualquer modo, há uma coincidência curiosa, fascinante mesmo. Ao falar das aves brasileiras, Léry chama a nossa atenção para a arara canindé, que “tem a plumagem do peito amarela como o ouro fino; o dorso, as asas e a cauda são de um belíssimo azul, e pasmamos ante tanta formosura ao vê-la como que vestida de ouro e por cima toda sombreada de roxo”. Embora não fosse uma ave doméstica, a arara não era facilmente vista na mata, mas sim nas grandes árvores que envolviam as aldeias. Os índios a depenavam de tempos em tempos, usando as suas belas plumas para produzir cocares, guarnições de clavas, braceletes e outros enfeites corporais. Mas o que nos interessa, no momento, é que, segundo Léry, os tupinambás aludiam freqüentemente a essa ave, nos textos de suas canções. Ele próprio nos transmite um estribilho referente à arara, que diz mais ou menos assim: “canindé amarela, canindé amarela, feito mel”. E o intrigante é que vamos encontrar essa mesmíssima arara num texto de um dos últimos grupos tupis que entraram em contato com a nossa sociedade, no Brasil, na segunda metade do século XX – os arawetés, da região amazônica. O texto, composto pelo xamã Kãñipayero (pronuncia-se Kanhipaiêro), foi apresentado na aldeia do Ipixuna, na madrugada do dia 26 de dezembro de 1982, fora, aliás, de qualquer calendário ritual. O texto foi colhido e traduzido pelo antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, que o publicou em seu livro Araweté – Os Deuses Canibais. Talvez a leitura desse texto nos dê uma idéia aproximada do que pode ter sido a poética tupinambá, mas a verdade é que não há como afirmar categoricamente nada sobre o assunto. De todo modo, trata-se de um canto xamânico araweté, pertencente ao gênero Mai marakã, o dos cânticos ditados pelo mundo extranatural. E aí aparece, entre imagens mágico-eróticas perfumadas de mistério, a figura de uma

divindade feminina, a Mulher-Canindé, Kadîne-kanhí, em meio a seres sobrenaturais que emplumam “a face” de uma castanheira amazônica... A partir do século XVI, os portugueses começaram a freqüentar, com assiduidade sempre maior, os nossos litorais. Trouxeram para os trópicos brasílicos, entre outras coisas, a sua língua, a sua poesia, a sua música, os seus instrumentos musicais, as suas danças, as suas festas. Os tupiniquins do atual Estado da Bahia, das terras litorâneas vizinhas do Espírito Santo, foram os primeiros a conhecêlos, à passagem da frota de Pedro Álvares Cabral, que viajava com destino à Índia. Aconteceu ali, na região de Porto Seguro, naquele final de abril de 1500, o que podemos classificar como a dança do encontro, devidamente descrita por Caminha. Conta o escrivão que um grupo de tupiniquins dançava a seu modo, na margem de um rio que desembocava na praia, quando Diogo Dias, exalmoxarife de Sacavém, partiu em direção a eles, levando consigo um gaiteiro, um tocador de gaita de fole ou gaita galega. Ao som de alguma antiga cantiga lusitana, Diogo foi tomando os índios pelas mãos (fato significativo, já que tupis não dançavam de mãos dadas) e saiu com eles a dançar – “e eles folgavam e riam, e andavam com ele mui bem ao som da gaita”. Enfim, houve então um pequeno baile praieiro, festa à luz do sol e ao ar livre, encontro de humanidades sob os signos da música e da dança. Mas a gaita cabralina em Porto Seguro não foi mais que uma pequena amostra grátis. O sincretismo musical só vai acontecer (ou se incrementar) adiante. Especialmente, a partir da construção da Cidade da Bahia. E isso tanto de modo informal, no dia-a-dia das populações, como de forma sistemática, na prática pedagógica dos padres da Companhia de Jesus. Sabemos que, em seu trabalho catequético, jesuítas faziam sermões e compunham versos em tupi. Mas não só. Nessa prática missionária, acionaram também a música. E de modos diversos. Usavam instrumentos e criações musicais tupinambás ad majorem Dei gloriam. Substituindo lyrics de cantares ameríndios por textos doutrinariamente católicos, por exemplo. Assim como atraíam índios, para a sua esfera de influência, através do ensino do canto e da música, incluindo-se, aqui, a leitura partitural. Esse duplo movimento jesuítico – uso da música ameríndia, ensino da música européia – aparece claramente nas cartas que os padres enviavam da Bahia para Portugal. Na correspondência de Manoel da Nóbrega, por exemplo, quando ele se refere ao desempenho do jesuíta basco Azpilcueta Navarro: “Na língua deste país [o tupi] alguns somos muito rudes e mal exercitados, mas o padre Navarro tem especial graça de Nosso Senhor nesta parte, porque andando pelas aldeias dos negros [índios], em poucos dias que aqui estamos, se entende com eles e prega na mesma língua... e à noite ainda faz cantar os meninos certas orações que lhes ensinou em sua língua deles, em lugar de certas canções lascivas e diabólicas que dantes usavam”. Os jesuítas costumavam, ainda, tocar (ou “tanger”, como então se dizia) instrumentos tupis – e aqueles índios fabricavam, entre outras coisas, chocalhos, flautas ósseas e borés de taquara. Fernão Cardim, ao falar dos aldeamentos jesuíticos do litoral norte da Bahia, em sua Narrativa Epistolar (1583), comenta: “Em todas estas três aldeias [Santo Antônio, Espírito Santo, São João], há escola de ler e escrever, onde os padres ensinam aos meninos índios; e a alguns mais hábeis também ensinam a contar, cantar e tanger; tudo tomam bem, e há já muitos que tangem flautas, violas, cravos e oficiam missas em canto d’órgão”.

O que os portugueses traziam para os trópicos, musicalmente, eram frutos de antigos sincretismos ocorridos em processos histórico-sociais que configuraram as gentes e as culturas ibéricas. Os estudiosos são unânimes ao afirmar, por exemplo, que a formação da música portuguesa não pode ser abordada fora do contexto da dominação árabe, que submeteu, durante séculos, o território hoje lusitano. Palavras como “alaúde” e “guitarra” (do grego, kithára), aliás, nos vieram do árabe ou pelo árabe. E foram mesmo os árabes que introduziram o alaúde e a chamada guitarra mourisca na Península Ibérica. Mas o que os lusos trouxeram para o Brasil foi, sobretudo, a canção e a viola – a antiga vihuela de mano (distinta da viola-de-arco, ou rabeca), usada pelos trovadores galego-portugueses, em tempos medievais. Entre essas violas, por sinal, um tipo chamado “cavaquinho”. Sofisticada (“palaciana”) ou popular (de apenas quatro cordas), as violas se tornaram tão comuns em Portugal que foram consideradas coisas extremamente vulgares, típicas da gente mais pobre, ou mesmo de “negros e patifes” – coisa que, de resto, aconteceria também, mais tarde, com o violão, no Brasil, como se pode ver no romance de Lima Barreto. É à viola que nos remete a poesia de Gregório de Mattos. Rastreando os próprios textos gregorianos, em sua História Social da Música Popular Brasileira, José Ramos Tinhorão tirou a sua conclusão sobre o estilo violeiro do poeta: ele não tocava a sua viola “de forma dedilhada, mas pelo processo popular de ferir as cordas todas de uma vez, que era o chamado toque rasgado”. Gregório, aliás, não foi só um tocador de viola, um poeta-músico, como consta que teria fabricado, para as suas performances, uma viola de cabaça. É o que nos conta o seu primeiro biógrafo, Manuel Pereira Rabelo: “Era o doutor Gregório de Mattos consumado solfista, e modulando as melhores letras daquele tempo, em que a solfa portuguesa avantajava a todas as de Europa, tangia graciosamente... Com estas prendas fazia apreço particular de uma viola, que por suas curiosas mãos fizera de cabaça, freqüentado divertimento de seus trabalhos: e nunca sem ela foi visto nas funções, a que seus amigos o convidavam... Por esta viola, que havia deixado na [Ilha da] Madre de Deus, fazia extremos tais, receando que sem ela o embarcassem [para o exílio em Angola]: mas o vigário Manuel Rodrigues, a quem feriam nalma suas desgraças, prontamente lha mandou com um liberal donativo para as cordas dela”. Era a velha viola dos poetas e cantadores lusitanos, em versão tropical, com um típico toque túpico, no uso da cabaça brasílica. Cabaça que, por sinal, viria a ser utilizada sistematicamente, na segunda metade do século XX, por Anton Walter Smetak, na construção de suas “plásticas sonoras” – e o microtonalismo smetakiano guarda relações, como ele mesmo dizia, com a música indígena brasileira. Além da música de produção e consumo mais popular, havia ainda, em Portugal, a música considerada “séria”, erudita, que, no dizer do historiador A. H. de Oliveira Marques, em A Sociedade Medieval Portuguesa, era “predominantemente religiosa, com grande variedade de missas e de cânticos para os diversos ofícios divinos”. Esta música, reino do órgão e do cantochão, foi também trazida para a vida colonial ultramarina. E nela, na execução de seus hinos e cânticos, foram iniciados índios e, posteriormente, africanos escravizados. Ao lembrar que os jesuítas zelavam pela formação de músicos voltados para desempenhos litúrgicos, o supracitado Tinhorão escreve: “Músicos, aliás, que deveriam demonstrar-se capazes de executar o erudito repertório universal aprovado pela Igreja

Romana, mesmo quando os recrutados para esse mister fossem índios convertidos, ainda não bem desligados de sua cultura primitiva”. Excanibais, dispensando dias e dias no estudo da música européia, passavam assim a tocar viola, órgão, flauta, trombeta. A executar cantigas populares e cânticos eruditos vindos da Península Ibérica. Índios e descendentes seus acabaram se movendo com desenvoltura nesse terreno, tocando em Salvador e nas vilas do Recôncavo e, inclusive, participando de novidades coreográfico-musicais produzidas aqui. Como se sabe, já pelo século XVII, surgiam, em nosso meio, novos estilos (ou modas) de dançar. Gregório de Mattos – em cuja poesia, aliás, aparece uma mulata desinquieta conhecida pelo nome ou apelido de Samba – nos fala de um desses estilos, o paturi. No caso, o que temos é já um produto mestiço-popular da vida citadina no Brasil seiscentista. E o poema nos fala de um jovem índio (no texto, “colomim” por “curumim), talvez um mameluco, mandando brasa em sua “guitarrilha”, para a alegria das mulatas manhosas – inzoneiras, diria Ary Barroso – num conhecido recanto da Cidade da Bahia, chamado Água Brusca: Ao som de uma guitarrilha Que tocava um colomim Vi bailar na Água Brusca As Mulatas do Brasil: Que bem bailam as Mulatas, Que bem bailam o Paturi!”

CONTRA A ESCRAVIDÃO Em seu estudo Classes Sociais e História: Considerações Metodológicas, o sociólogo Fernando Henrique Cardoso escreveu que os escravos foram, no Brasil, “testemunhas mudas de uma história para a qual não existem senão como uma espécie de instrumento passivo sobre o qual operam as forças transformadoras da história. Sua luta, quando houve, nada teve em comum sequer com os ‘rebeldes primitivos’ da Europa. Pertencem às páginas dramáticas da história dos que não têm história possível”. Penso exatamente o contrário. Os escravos não foram testemunhas mudas e passivas, mas agentes transformadores do real histórico. Ou, como disse Genovese, foram sujeitos ativos e vitais de sua própria história. A tal ponto que fizeram, de suas práticas e de seus discursos, vertentes fundamentais do que veio a ser, com o tempo, a realidade sociocultural brasileira. E participaram intensamente da longa e árdua movimentação que terminou por provocar a falência do regime escravista em nosso país. Na verdade, o escravo foi, desde o início, e como não poderia deixar de ser, o inimigo número um da escravidão. O problema é que os estudiosos da peripécia brasileira costumam se esquecer de

uma coisa elementar. Não existe apenas uma tradição revolucionária em nossa história. As conspirações e os movimentos rebeldes que aqui se sucederam, entre os séculos XVI e XIX, podem ser agrupados, esquematicamente, em torno de dois pólos básicos. Num extremo, vão enxamear as revoltas escravas, que ora provocam o deslocamento geográfico do revoltoso, como no quilombismo rural, ora procuram abolir a escravidão dentro dos limites espaciais da ordem senhorial, como ocorreu no caso dos levantes urbanos promovidos na Bahia pelos filhos negros de Alá. Em outro extremo, concentram-se os movimentos da elite colonial dissidente, cuja preocupação maior não era produzir modificações estruturais na sociedade que então se construía, mas criar uma nova nação. O que está em tela não é o destino do negro, mas a questão colonial. A distinção é fundamental. A contestação do estatuto de colônia era a referência central das manifestações reformadoras da elite. Mas, antes que num processo colonial, o escravo se sentiria engajado, imediata e concretamente, numa relação escravista. Para ele, o dado primeiro era a escravidão, não o sistema colonial. Regra quase geral, nossa historiografia não se lembra de que senhores e escravos viviam processos históricos solidários, mas relativamente distintos. Aquela sociedade não foi homogênea. E a melhor prova disso é que, depois de liqüidado o regime colonial, os negromestiços continuaram se rebelando. Há uma linha de continuidade histórica entre Palmares e a Revolta dos Malês. Mas não vamos falar aqui apenas das grandes rebeliões. De atos espetaculares que se gravaram em compêndios historiográficos e mesmo em manuais escolares. Falemos, antes, daquelas “pequenas sedições do cotidiano”, estudadas por José Alípio Goulart, em seu livro Da Fuga ao Suicídio – Aspectos de Rebeldia dos Escravos no Brasil. Pequenas sedições que denunciam a “permanente revolta do escravo”, sempre disposto a espernear contra o emparedamento do regime escravista. A mentira, por exemplo. O engodo pensado, sistemático. Sim – havia o sentido social da mentira. Da trapaça. E como deve ter sido gratificante levar o senhor ao erro! Apontar o rumo errado de uma fuga, por exemplo. Ou falsear a receita do preparado medicinal, de modo a reter o controle da informação. Dentro da mentira, o fingimento. Fingir enfermidades e dores, disfarçar afetos, mascarar ações. O escravo era um expert em simulações. Era como se a mentira fosse um modo seu de afirmar uma verdade própria. Uma outra forma de se insubordinar contra as determinações do regime escravista estaria na prática voluntária do aborto. Antonil observou que algumas escravas procuravam de propósito abortar – recorrendo à força, a pesos, a ervas silvestres – “só para que não cheguem os filhos de suas entranhas a padecer o que elas padecem”. A mãe sofria, mas feria o regime. Impedia o crescimento da mão-de-obra escrava. Afinal, ódio com ódio se paga. Assim como a mentira e o aborto voluntário, ocorreu entre nós o envenenamento de senhores. Era um método que exigia paciência aldeã. O senhor não deveria morrer da noite para o dia, sob pena de flagrarem o autor da façanha. No romance Viva o Povo Brasileiro, João Ubaldo Ribeiro recriou o tema com maestria. É quando a escrava Merinha, encarnação da delicadeza, envenena, de forma lenta e impiedosa, o barão de Pirapuama. Ubaldo foi rico na construção de sua trama. O envenenamento do barão, programado por homens escravizados e executado pela “doce envenenadora”, é uma dádiva da ficção que ilumina a história. A morte por envenenamento data dos

primeiros dias do estabelecimento do regime escravocrata em nossos trópicos. E atravessou toda a história do escravismo entre nós. Escrevendo já no setecentos, Vilhena se refere ao “detestável, mas usado costume, de propinar os senhores, muitos dos quais são vítimas dos seus escravos, que sem o mínimo remorso de consciência lhes lançam no comer algum dos muitos e venenosíssimos vegetais, e ainda minerais, que bem conhecem”. Mas os escravos não envenenaram somente os seus senhores. Envenenaram-se, também. Suicídio. Foram muitos os escravos que se mataram. Gilberto Freyre abordou o assunto de passagem, em Casa-Grande & Senzala: “Houve os que se suicidaram comendo terra, enforcando-se, envenenandose com ervas e potagens de mandingueiros”. Infelizmente, Freyre não se dispôs a ler o suicídio escravo em pauta sociológica. Limitou-se a roçar um psicologismo de ocasião, conectando suicídio e “banzo”. É verdade que o banzo foi a ante-sala do suicídio, mas este nem sempre necessitou daquele à guisa de prefácio. Antes que à labareda do protesto, o banzo remete à mais funda e essencial melancolia. Não é o raio da recusa, mas a morte cozinhada em fogo brando. Os escravos não se mataram apenas porque se achavam tristes, tristíssimos. Muitos foram os móveis da revoada – e muitos os métodos que usaram para cair fora da vida. Não é difícil fazer uma lista de motivos que poderiam levar um escravo a escolher a morte. Há quem fale que o suicídio foi um caminho apontado pela altivez. Outros acenam com a exaustão psicofísica do ser humano encarcerado num mundo de trabalho e punição. Com o medo de castigos. Ou, ainda, com a estranha vingança de quem se fere para ferir um outro, num raivoso deslocamento objetal. Seja como tenha sido, o suicídio escravo foi expressão de um mal-estar essencial. De um desajustamento de base – o do ser humano submetido a um sistema social reificador, que, em princípio, não gostaria de distinguir entre coisa e gente. Fruto da depressão, do medo ou do ódio, sim. Mas fruto, sobretudo, de uma violência sistêmica. Esta, em última análise, a causa fundamental do suicídio escravo. Durkheim falaria, a propósito, em suicídio “fatalístico”. E foi também nesse sentido que Fernando Ortiz pôde definir o suicídio escravo como um “último meio de emancipar-se”. De uma parte, este suicídio foi recusa. Recusa total e absurda do indivíduo que escolhia se desgarrar da órbita da vida. De outra, representou prejuízo para a economia senhorial. Mas era no assassinato que a fúria escrava se manifestava em sua forma mais crua. Que o escravo encarnava, num instante-luz, o tigre da ira. Trazendo ao contexto palavras de Sartre, era aquele o momento em que o escravo descobria – e sentia – que o ódio era o seu único tesouro. Vilhena dizia “ser raro o escravo que não apetece ver morto o senhor, e tardando a alguns o complemento deste ímpio desejo, aproveitam toda boa ocasião, que se lhes oferece, matando os senhores, já a facadas, já a golpes de machado, já a cacetadas”. Mas não só facas, machados e porretes serviram para despachar, para o outro mundo, senhores, feitores e outros membros da camada senhorial. Muitos indivíduos caíram baleados. Outros sentiram a lâmina do punhal. Houve ainda quem fosse abatido por facão, enxada, foice e mesmo bordoada de pilão. Mas nem sempre os escravos recorreram a instrumentos para liqüidar seus desafetos. Usaram, também, as próprias mãos. Mas passemos a outras formas de resistência à escravidão. Tanto o trabalho bem feito quanto o trabalho mal feito serviram aos propósitos da resistência. Em Ser Escravo no Brasil, Kátia Mattoso

assinala que o trabalho bem feito permitia que o escravo escapasse um pouco da presença asfixiante do poder senhorial, cuja vigilância relaxava em vista dos bons frutos produzidos. De outra parte, o fato do escravo fazer mal o seu serviço já foi incluído, por diversos estudiosos, entre as “pequenas sedições do cotidiano”. Trabalhar mal era prejudicar o senhor, assim como destruir, “por acaso”, instrumentos de trabalho. O supracitado Jean-Paul Sartre fez uma observação que é aplicável ao desmazelo do escravo no Brasil: “são preguiçosos, é claro, e isto é sabotagem”. Havia, também, o furto. George Washington costumava dizer que, para cada duas garrafas de vinho que bebia, escravos ladrões haviam saboreado cinco. O furto foi uma prática escrava que prejudicou e, sobretudo, irritou os senhores. Tanto que a visão do negro como ladrão, do furto como característica racial, se espalhou em meio aos plantadores escravistas. O furto, como a fuga, foi um protesto. Uma reação contra a escravidão. Não por acaso a palavra “muamba” passou a integrar o léxico brasileiro. Sua origem é africana. Vem do quimbundo, provavelmente com o significado original de “carga”. Aqui, ganhou um ar contraventor. Kátia Mattoso cita, aliás, um canto popular sobre o furto negro no sistema escravista: branco diz que preto furta preto furta com razão sinhô branco também furta quando faz a escravidão

Podemos dizer que o furto escravo era um gesto carregado de transcendência. Significava algo maior do que simplesmente subtrair alguma riqueza das burras do senhor. Por definição, escravo é aquele que não possui vontade própria, totalmente sujeito à vontade de um amo. Mas furtar é um movimento da vontade. Daí que Jacob Gorender tenha dito que “o primeiro ato humano do escravo é o crime”. Ao furtar, ele afirmava a sua humanidade. Nem foi por outro motivo que o poeta Affonso Ávila inscreveu o furto escravo no campo da rebeldia: Para quem é jaula o dia, que seja conspiração de perfídia e sortilégio, de roubo e contravenção a noite cujas estradas não se sabe aonde dão, a noite que enlaça o negro com seus silêncios de irmão.

Outra forma de “pequena sedição” esteve no emprego da magia. Em Cultura e Opulência no Brasil, o jesuíta italiano André João Antonil alude a escravos que “procuram tirar a vida aos que lha dão tão má, recorrendo (se for necessário) a artes diabólicas”. Abordando essa dimensão do medo senhorial diante da “feitiçaria”, Kátia Mattoso fala do senhor que sabe que “o escravo, cuja raiva

contra os senhores brancos é crescente, tem sua própria maneira de agir: são os ‘maus olhados’, cuja força faz adoecer e mata com a mesma eficiência de uma flecha envenenada”. E acrescenta: “O branco treme diante das forças misteriosas que os africanos comandam”. Já o tema do negro prófugo merece comentário especial. O escravo sempre tentou escapar da escravidão. Mal o negro africano desembarcava por aqui, já tentava fugir. O lance era chegar – e dar no pé. Na verdade, a fuga de escravos deve ser encarada como uma espécie de efeito lógico do sistema escravista. A propósito, Herbert S. Klein, em seu estudo sobre a escravidão na América do Sul e no Caribe, chegou a escrever o seguinte: “Com os altos custos de ausências prolongadas, os proprietários e supervisores [de escravos] dispunham-se, com freqüência, a negociar com os escravos. As exigências dos fugitivos chegaram, em alguns casos, a ser muito elaboradas. Alguns fugitivos da Bahia, no século XVIII, se recusaram a voltar à plantação até que a eles se concedesse mais tempo para o trabalho em suas próprias hortas”. Os escravos desenvolveram uma verdadeira arte da fuga. Ao ponto de John V. Lombardi, em The Decline and Abolition of Negro Slavery in Venezuela, ter dito que era possível distribuir os cativos venezuelanos em quatro grupos ocupacionais: lavradores, artesãos, domésticos e fugitivos. Pode parecer estranho, pelo menos à primeira vista, que “fugitivos” venham a constituir uma “categoria ocupacional”. Mas é que eles, muitas vezes, se estabeleceram em comunidades rurais produtivas. As coisas não foram diferentes entre nós. Durante muito tempo, antes que engrossasse o caldo da campanha abolicionista, as páginas de nossos jornais vinham cheias de anúncios de escravos fugidos. Escritos em linguagem clara e direta (era preciso descrever o fugitivo com a maior exatidão possível; com pormenores de “retrato falado”), esses anúncios provocaram a observação apaixonada de Gilberto Freyre, num livro intitulado, justamente, O Escravo nos Anúncios de Jornais Brasileiros do Século XIX: “No Brasil, George Borrow teria dito o mesmo que na Espanha: a língua deste povo é maior, muito maior, que sua literatura. A língua dos anúncios de jornais brasileiros do tempo do Reino e da época do Império parece-me às vezes maior, como expressão nacional, do que toda a nossa literatura do mesmo período, incluindo o romance com as suas moreninhas e as suas iaiás já meio desaportuguesadas”. Mas os escravos não esperaram pela existência de jornais para empreender as suas fugas. Tomaram, desde sempre, o rumo da brenha e da noite. E essa liberdade, não raro, durava pouco. Poderia não passar de breve intervalo entre um e outro açoite. Mas, ainda assim, a fuga era tentação irresistível. De tanga de pano da costa ou calça de estopa, às vezes com um chapéu de palha na cabeça, o escravo se lançava à aventura. Deixava para trás o inferno do eito, o chão da senzala, o chicote cantando no lombo nu. Acontecia também que escravos fugidos se encontrassem em seus caminhos pelos morros e pelos campos. Que escravos fugissem em pequenas levas. Daí, é claro, o surgimento de grupos de escravos fugidos, perambulando perigosamente pelas vizinhanças de vilas e cidades. Eram grupos guerrilheiros, atacando e roubando. Não raro, moradores de locais atingidos por essas incursões, na Bahia ou em São Paulo, recorreram às suas câmaras, na tentativa de evitar – ou, ao menos, de reduzir – o volume de tais “insultos”. E era justamente aqui que a chamada petit marronage ia adquirindo novos contornos, até assumir uma outra dimensão: a do bandoleirismo e,

mesmo, a do quilombo, este misto de acampamento guerreiro e comunidade agrícola, espécie de entidade agrobélica. Mas aqui já vamos saindo do âmbito das “pequenas sedições do cotidiano”. Os quilombos, por exemplo, representavam projetos de vida comunitária alternativa. E a sua formação era coisa corriqueira, atravessando toda a história do escravismo nas Américas. Num primeiro momento, o quilombo era um efeito da fuga de escravos; num segundo, convertia-se em causa dessas mesmas fugas. Pode-se dizer, ainda, que ele possuía uma face construtiva e uma destrutiva. Em sua face destrutiva, a povoação quilombola servia como base de operações para ataques, roubos, emboscadas, saques e seqüestros. Aqui, a atividade era externa, voltada para fora, com o objetivo de ferir o sistema senhorial. Em sua face construtiva, o quilombo era, regra geral, uma entidade social precária e provisória, com a sua própria hierarquia, as suas plantações, a sua criação de animais domésticos. Nesse caso, a preocupação, antes que prejudicar a alheia, era garantir a própria subsistência. E a atividade era interna, desenvolvida no próprio espaço quilombola. Mas uma coisa era o microquilombo – outra, o macro. Numa definição da Coroa portuguesa, era quilombo “toda a habitação de negros fugidos que passem de cinco... ainda que não tenham ranchos levantados nem se achem pilões neles”. Teríamos aqui o patamar inferior da organização quilombola. No outro pólo, encontraremos a complexa vida social de Palmares. Entre um extremo e outro, o arraial rebelde, estágio intermediário entre o grupo de cinco e a liga palmarina. O quinteto quilombola estava mais para o acampamento do que para a comunidade. Mais para o assalto guerrilheiro do que para a pequena lavoura. A sua rotina era a aventura. Não podemos falar aqui, com propriedade, em agregado social. O estatuto da trupe fugitiva era, digamos, infra-sociológico. Parece não haver lugar aí para o abrigo mais estável ou o paciente trabalho cotidiano. Ranchos e pilões eram coisas para quilombos maiores. Por fim, é possível aceitar a hipótese de que, afora aqueles formados por grupelhos de fugitivos, os quilombos não tiveram, como finalidade principal, a agressão à sociedade escravista. Kátia Mattoso é dessa opinião: “O quilombo quer paz, somente recorre à violência se atacado, se descoberto pela polícia ou pelo exército que tenta destruí-lo, ou se isto for indispensável à sua sobrevivência”. Acontece que não era grande a possibilidade de se manter a salvo dos movimentos repressivos determinados pela classe senhorial. É por isso que os macroquilombos se caracterizam não apenas por suas plantações e pela criação de animais, mas também por fortificações, paliçadas, armadilhas. Eles estavam na obrigação de combinar as necessidades de subsistência com as necessidades de defesa. De amolar os dois usos do facão. Dissemos antes que, onde quer que tenha havido escravidão de negros, houve quilombos. Em Palmares – A Guerra dos Escravos, Decio Freitas foi enfático: “Enquanto houve escravidão, no Brasil, os escravos se revoltaram e marcaram a sua revolta em protestos armados, cuja interação não encontra paralelo na história de qualquer outro país do Novo Mundo”. A Cidade da Bahia e o seu Recôncavo não foram uma exceção a essa regra. Pelo contrário. O problema é que os quilombos do século XVII são, ainda hoje, pouco conhecidos. Mas a verdade é que, segundo Affonso Ruy, já existiam quilombos, nos arredores da cidade, desde o ano de 1575. Em inícios do século XVIII,

quilombos se espalhavam pelo Recôncavo – nas matas de Jacuípe, em Jaguaribe, Maragogipe, Muritiba e Cachoeira –assim como despontavam nas cercanias de Salvador. E não houve uma suspensão mágica do fenômeno no século XVII. Escreve Pedro Tomás Pedreira, em Os Quilombos Brasileiros: “Antes da terceira década do século XVII eram conhecidos na Bahia os primeiros núcleos de negros escravos fugidos, pois em 1629, no lugar conhecido como Rio Vermelho... se havia constatado um ‘quilombo’, cuja destruição ocorreu em 1642 por ordem do governo da Capitania”. Entre 1629 e 1637, por sinal, o Senado da Câmara da Cidade do Salvador da Bahia de Todos os Santos não se cansou de adotar medidas e tomar providências para extinguir os quilombos que floriam na periferia urbana. E foi em abril desse mesmo ano de 1629 que essa câmara decidiu que todos os negros fugitivos deveriam ser “marcados no rosto com um ferro, para assim serem conhecidos”. Se os negros provocavam assim a reação de autoridades coloniais, é porque a sua insubmissão ao cativeiro era mesmo um problema público. Eles fugiam das fazendas e se agrupavam em zonas mais ou menos protegidas do olhar senhorial, onde ensaiavam novos modos de vida. Faziam o possível e o impossível para sobreviver à margem da sociedade escravista-colonial, reunindo-se em pequenas comunidades onde pudessem cultivar, de algum modo, a chama do humano que traziam dentro de si.

O POVO BANTO Com relação à realidade negra da Bahia, o século XVII apresenta duas mudanças fundamentais. O que havia por aqui, até ao final da centúria anterior, eram os chamados “escravos da Guiné” – africanos de procedência variada, sobre os quais sabemos muito pouco, em termos precisos. No século XVI, Guiné era um nome geral que os europeus davam à costa ocidental africana que se desdobrava ao norte da linha equatorial. Roland Oliver e J. D. Fage (Breve História de África): “El término ‘Guinea’ lo tomaron los portugueses Del primer idioma africano que conocieron, el de los bereberes marroquíes. Estrictamente hablando, Akal n-Iguinawen significa lo mismo em bereber que Bilad as-Sudan em árabe, es decir, ‘tierra de negros’”. E o número daqueles negros-da-guiné, embora bastante expressivo no conjunto daquela sociedade, ainda não era nada, em comparação com o que viria acontecer em seguida, entre nós. Na estimativa de Fernão Cardim, a Cidade da Bahia teria, em inícios da década de 1580, cerca de quinze mil habitantes: “três mil vizinhos portugueses, oito mil índios cristãos e três ou quatro mil escravos da Guiné”. O que mudaria no século XVII? Simples. Em primeiro lugar, os escravos começaram a chegar em massa. Em segundo, passaram a vir de uma faixa territorial específica do continente africano. Da região de Angola (de ngola, título do soberano do antigo reino Ndongo) e do Congo, expressão cujo significado é controverso, podendo vir de kongo (‘parente da pantera’), nkongo (‘grande caçador ’)

ou kong (‘arma de arremesso’). É o tempo, portanto, da chegada dos negros bantos, assim batizados, no século XIX, por um lingüista chamado Bleek – de ba-ntu, ‘os homens’, plural de mu-ntu (nas línguas bantos, os prefixos ba, a e wa marcam o plural dos nomes de pessoas e grupos de pessoas, como em bakongo, por exemplo). O tráfico tropical transatlântico dos bantos teve início no próprio século XVI, com levas e levas de negros vindo, basicamente, como disse, de Angola e do Congo. Eram povos que haviam se dispersado, desde tempos remotos, pela África Central. No primeiro milênio da Era Cristã, eles já conheciam a cerâmica, praticavam a agricultura, criavam animais domésticos e gado bovino. Haviam domesticado diversas plantas. E o que é bem mais importante: dominavam a tecnologia do ferro. Eram metalúrgicos hábeis nos trabalhos da forja. Além disso, os bantos se dedicavam ainda à fabricação de cestos, à tecelagem em ráfia, à tanoaria e à extração de sal do mar. Os bantos conheciam também a escravidão, o comércio e a moeda. Escreve J. Vansina (A África Equatorial e Angola: as Migrações e o Surgimento dos Primeiros Estados, estudo incluído no volume IV da História Geral da África, coordenado por D. T. Niane): “As primeiras indicações do emprego de cruzetas de cobre como moeda aparecem no Cinturão do Cobre, por volta do ano 1000; até 14501500, essa prática se havia alastrado do Rio Zambeze até o Lualaba. Os portugueses encontraram no [reino do] Kongo, em 1483, uma moeda imaginária, a que se dava o nome de nzimbu; por volta de 1500, quadrados de ráfia circulavam, como unidade de valor, nas rotas comerciais de toda a savana meridional fronteira ao Atlântico”. Mas, quando se fala de um estilo de vida banto, o que vem imediatamente à luz, em meio aos estudiosos do assunto, é, antes de mais nada, um modus vivendi fundado na agricultura e na utilização intensiva do ferro. E a difusão da metalurgia teve fundas conseqüências na vida social, econômica e política dos bantos, contribuindo para a formação de reinos e estados. Ao alcançar a costa ocidental da África Equatorial, os portugueses encontraram dois grandes reinos: Loango e Kongo. Supõe-se que eles tenham se formado entre os séculos XIII e XIV. Dos dois, sabemos mais sobre o do Kongo, implantado pelos bacongos em aliança com os ambundos, povos que forneceriam muitos e muitos escravos à Bahia de Todos os Santos e seu Recôncavo. O Kongo era, no final do século XV, um dos maiores estados africanos existentes ao sul do Saara. Seu rei, o manikongo (mani = senhor), tinha sua capital em Mbanza Kongo (mbanza = corte, residência real), posteriormente rebatizada pelos portugueses com o nome de São Salvador. Ainda Vansina: “O rei não era como o comum dos mortais. Cometendo incesto com a irmã, tornava-se ‘sem família’ – o que o capacitava, e somente a ele, a governar todas as famílias com justiça e imparcialidade. Esse ato e sua iniciação lhe conferiam formidável poder sobre os encantamentos, que era comparável ao dos feiticeiros”. A estratificação social do reino era clara, com suas três ordens distintas: a casta aristocrática, impedida de se casar com plebeus; a camada intermediária de homens livres; os escravos. Seus guerreiros – que, no campo de batalha, se comunicavam musicalmente com trompas de marfim e tambores –, eram admirados por seu desempenho bélico. Os portugueses se aproximaram também do “país mais acolhedor de Ngola”. Como se sabe, o

contato luso-angolano data de inícios do século XVI. Mas nada ocorreu de significativo até 1520, quando D. Manuel ordenou a dois portugueses, antigos moradores do Congo, que visitassem o “rei de Angola [Ndongo]”. Orientação de D. Manuel: “Deus antes e acima de tudo, mas tenhais em mente também o ouro”. Na verdade, a iniciativa da aproximação foi “angolana”. O Ndongo – que, como Loango, era um reino “vassalo” do Kongo – buscou contato com Portugal, com o objetivo de abrir brechas no monopólio congolês do comércio de escravos. Logo, as primeiras incursões lusas, em terras do Ndongo, provocaram ciúmes em Mbanza Kongo. O Ndongo se afastava do Kongo. Reduzia o grau de sua dependência. “Angola tornou-se, portanto, para infelicidade sua, a filha querida dos portugueses”, como observou Joseph Ki-Zerbo, em sua História da África Negra. Em 1575, investido nas funções de governador e capitão geral, Paulo Dias de Novais chegou ao porto de Luanda, levando 700 homens. Dias ocupou a ilha de onde o manikongo extraía as conchas marinhas (zimbos), que eram então a moeda dos congoleses. Uma atitude, no mínimo, hostil. Mas parece que a intenção inicial dos lusitanos era fazer de Angola uma enorme colônia agrícola. Não deu. O tráfico de escravos se sobrepôs a todas as outras iniciativas, apagando-as. Roy Glasgow anotou que todos os esforços para implantar e desenvolver uma economia mais variada, em Angola, foram barrados e superados pelo condomínio dos traficantes europeus e de seus aliados africanos. Escreve Jaime Cortesão: “Em conformidade com as instruções que trazia, o governador [Paulo Dias] começou por fundar em 1576 a vila de Luanda no lugar mais propício à intrusão de armadas estrangeiras, percalço já previsto na metrópole. Porto natural, abrigado a oeste pela ilha de Luanda, então muito maior que hoje, centro principal da pesca do zimbo, e lugar de grande resgate, já anteriormente freqüentado pelos navios de São Tomé, ao governador não era possível eleger sítio mais adequado, dentro dos limites impostos pelo regimento [carta de normas e orientações administrativas], ditados, aliás, pelas necessidades duma primeira fundação. A ilha de Luanda ofereceu desde logo as comodidades duma vastíssima ribeira, isto é, de cais de desembarque, espalmadeiro e estaleiro, para o maior empório de escravos do Atlântico, que o porto foi em breves anos”. E a Bahia, como foi dito, recebeu, por umas boas duas centúrias, parte considerável desses negros bantos exportados pelo continente africano. O comércio dessa gente era facilitado, obviamente, pela proximidade entre a Bahia e Angola, travessia oceânica que se faria, em média, em quarenta dias de viagem. “O abastecimento em Angola era cousa natural... era um mercado novo, abundante, fácil. Para ele convergiu o comércio baiano, que, em troca de aguardente, fazendas, missangas, facas, pólvora, ia buscar negros”, escreveu Luiz Viana Filho. Essas relações baiano-congo-angolanas se fizeram tão intensas que, quando os holandeses invadiram a Cidade da Bahia em 1624, aprisionaram, em nosso porto, nada menos que seis navios vindos de Angola. Em conseqüência dessa migração massiva, que se estendeu por todo o século, os bantos se tornaram fundamentais para a conformação biológica e cultural do povo baiano. Em todo caso, há uma dificuldade central quando tentamos examinar a presença dos bantos na Bahia. Os estudiosos da diáspora africana se concentraram quase que exclusivamente em leituras e interpretações da cultura iorubana, ou do sistema jeje-nagô que aqui se fixou. Como bem anotou Vivaldo da Costa Lima, sempre houve, entre os pesquisadores, “um certo etnocentrismo, uma certa

preferência ideológica, pelas casas-nagô e pelas casas-de-jeje”. E há o problema da precedência histórica. Como, entre todos os africanos, o povo nagô-iorubá foi o que chegou à Bahia em época mais recente, seus elementos culturais se identificam com maior nitidez. No caso banto, ao contrário, a própria ação do tempo se encarregou de disseminar e diluir sinais, gestos, práticas e símbolos. No entanto, todos aqueles que se aproximam do tema da participação banto no processo da nossa formação cultural, nunca hesitam em apontar a natureza profunda e poderosa do fenômeno. O já citado Luiz Viana Filho, por exemplo: “Bantos foram os primeiros negros exportados em grande escala para a Bahia, e aqui deixaram de modo indelével os marcos da sua cultura. Na língua, na religião, no folclore, nos hábitos, influíram poderosamente”. Podemos rastrear sinais dessa presença cultural já na poesia barroco-mestiça de Gregório de Mattos. Gregório fala, ainda que preconceituosamente, dos “tios” e das “tias” do Congo e das negras de Angola, além de usar palavras bantos. Artur Neiva cita, a propósito, os seguintes versos do Boca do Inferno: Que mengui colo moambundo mazanha, malunga e má.

Mas não é só. Ao escrever um poema como “procurador” da Cidade da Bahia, atacando vícios ou supostos vícios de seus moradores, Gregório satiriza o mundo cultural banto, que já ia se alastrando em nosso meio: Que de quilombos que tenho com mestres superlativos, nos quais se ensinam de noite os calundus e feitiços.

Vivaldo da Costa Lima esclarece que calundu (palavra que passou a designar, no Português do Brasil, uma espécie de zanga) “nos falares de Angola, nos falares da língua congo, significa, exatamente, um sinônimo de inquice, portanto, de orixá, de vodum”. O que temos então, no texto gregoriano, é a referência a um culto seiscentista de Candomblé, a terreiros de “inquices” (que é como se chamam os deuses bantos, entre nós – nkisi, em língua kikongo), com os seus sacerdotes (os “mestres do cachimbo”, diz Gregório no mesmo poema) e as suas práticas rituais. Por sinal, escrevendo em inícios do século XVIII, o jesuíta Plácido Nunes, ao tratar dos negros, vai mencionar justamente, em meio a outras manifestações culturais bantos, os “calundus” de que falava Gregório – “delitos de feitiçarias, malefícios, calundus, danças a seu modo e com instrumentos”. Sobre os calundus, especificamente, Nuno Marques Pereira nos descreve, em seu Compêndio Narrativo do Peregrino da América, o que eles eram e significavam, na virada do século XVII para o

século XVIII. Hospedado numa casa do Recôncavo Baiano, Marques Pereira passou a noite em claro por causa “do estrondo dos atabaques, pandeiros, canzás, botijas e castanhetas”. Quando o dia principiou a clarear, comentou o assunto com o dono da casa, classificando o que ouvira como “tão horrendo alarido, que se me representou a confusão do Inferno”. Não era o que o dono da casa pensava. Para ele, não podia haver “coisa mais sonora, para dormir com sossego”. Mas, preocupado, diz a Marques Pereira: “se eu soubera que havieis de ter este desvelo, mandaria que esta noite não tocassem os pretos seus Calundus”. Pereira, intrigado, pergunta: “que cousa é Calundus?”. Responde o senhor de engenho: “São uns folguedos, ou adivinhações... que dizem estes pretos que costumam fazer nas suas terras [na África], e quando se acham juntos, também usam deles cá [na Bahia], para saberem várias cousas; como as doenças de que procedem; e para adivinharem algumas cousas perdidas; e também para terem ventura em suas caçadas, e lavouras; e para outras cousas”. Percebendo de imediato a natureza essencialmente religiosa do calundu, Marques Pereira parte para a pregação antiherética. Diz que é absurdo permitir a realização “de semelhantes ritos, e abusos tão indecentes”. Consegue convencer o dono da casa a reunir seus escravos, quando faz uma longa pregação contra a idolatria. Obriga todos a se ajoelharem e rezar. Por fim, manda fazer uma grande fogueira, onde são atirados “todos os instrumentos, com que se obravam aqueles diabólicos folguedos”. Ora, quando Gregório inclui o calundu entre os traços distintivos da Bahia seiscentista, nos revela, de imediato, a importância local que aquele culto de Candomblé adquirira. O poeta registra explicitamente, aliás, que tais terreiros (“quilombos” é a expressão que emprega) eram freqüentados por um respeitável número de pessoas de ambos os sexos (e por homossexuais: “mil sujeitos femininos”). Com Marques Pereira, vemos que o calundu existia, também, pelas terras do Recôncavo. Sua forte presença, na região, levou o nosso moralista a denunciar a “quase geral ruína de feitiçaria e calundus dos escravos e gente vagabunda neste Estado do Brasil”. Mas o fato é que não eram somente os negros que se entregavam a tais práticas e freqüentavam tais ritos. Também mestiços e brancos recorriam a bruxos e compareciam a batuques. Em resumo, já se formara entre nós, no século XVII, um mundo cultural paralelo, distinto do mundo da cultura oficial, dita “superior” ou “erudita”. E esse mundo veio se desenvolvendo e se afirmando através dos séculos. O culto seiscentista do calundu chegou vivo até nós, embora reestruturado com base nos modelos nagôs e jejes das assim chamadas casas-de-santo, isto é, os terreiros de orixás e voduns. É a ele que nos referimos quando falamos, atualmente, dos candomblés congos e angolas. Foram os calundus (ou os quilombos-de-calundu) os primeiros terreiros do culto candomblezeiro que se implantou na Bahia. Deles descende, por exemplo, o belíssimo terreiro do Bate Folha, localizado na Mata Escura do Retiro, com os seus amplos espaços, mais de quinze hectares de Mata Atlântica, repleto de árvores, onde ainda hoje é possível andar entre sucupiras, cedros, maçarandubas e cajazeiras, em cujos galhos pousam sabiás e bem-te-vis, além do pássaro preto, do azulão e de corujas e gaviões. Uma paisagem que se completa, aliás, com a presença de animais diversos, da cotia ao camaleão, da raposa ao teiú, circulando em meio a cobras, lagartos, sapos e borboletas. O Bate Folha é mundo dos inquices trazidos pelos bantos – mundo de Zambi, Catendê, Dandalunda, Gangazumba, Caiari,

Luango e Lemba. Como se vê, aliás, os próprios nomes dos inquices foram abrasileirados, numa aclimatação fonética de resultados às vezes surpreendentes. Assim, Madya Padya virou Maria Padilha e Ndembu, ou Dembwa Tembwa, senhor do vento e da tempestade, converteu-se em Tempo, ganhando, sob este nome, uma bela canção de Caetano Veloso, Oração ao Tempo. Pois bem. O caráter de resistência cultural das religiões negras, na diáspora, dispensa comentários. O homem arrancado de sua terra, escravizado do outro lado do mar oceano e submetido a um intenso processo de “branqueamento” espiritual, foi encontrar, em sua religião, a possibilidade de manter viva uma continuidade, até mesmo no plano pessoal. A religião foi, neste sentido, um espaço de resistência ao processo de desafricanização do homem africano. Mas nem só no calundu-cambomblé se manifestou essa resistência. Os escravos se entrincheiraram até mesmo no âmbito da Igreja Católica, com as “irmandades” religiosas negras que – nascidas das irmandades de Nossa Senhora do Rosário, criadas pelos jesuítas no século XVI – se espalharam pela Cidade da Bahia e pelas plantações de cana e fumo do Recôncavo. Contraparte das irmandades dos brancos (havia, ainda, as irmandades mulatas), elas agrupavam unicamente negros – e assim funcionavam como fator de coesão grupal e espaço para a transmissão de crenças e valores culturais. É certo que tais irmandades foram uma imposição senhorial, acionando o Catolicismo como instrumento de controle social e abrandamento dos antagonismos raciais. (Não podemos nos esquecer de que as pessoas eram obrigadas a ser católicas, naquela época – o Catolicismo era a religião oficial do Estado). Mas é também certo que os negros, escravos ou libertos, transformaram essas irmandades em instrumentos próprios. O movimento foi duplo. Os negros foram, de fato, assimilados e controlados. Ingressando na irmandade, se aculturavam. Em contrapartida, usavam a irmandade para desencadear ações que contrariavam os ditames escravistas. Assim, as irmandades foram, ao mesmo tempo, peças da ação aculturativa e da reação contraculturativa. Canal de clareamento cultural – participando, inclusive, do processo que deu origem ao catolicismo popular brasileiro –, mas também instrumento de luta contra a dominação escravista (no século XVIII, por sinal, elas se desdobrariam em organismos creditícios para auxílio mútuo e compra de cartas de alforria). Lugar de reforço dos laços de solidariedade étnica. E espaço de expansão lúdica. Durante as festas das irmandades, ocorriam também outras festas, que incluíam a coroação de “reis”, os chamados “Reis Congos”. Ali, ao lado do Catolicismo, achavam-se presentes elementos culturais africanos, especialmente na música e na dança. O velho Antonil, em seu Cultura e Opulência do Brasil, registra tais eventos. Na parte do seu trabalho em que faz recomendações sobre “como há de haver o senhor do engenho com seus escravos”, ele recomenda que os senhores não reprimam as manifestações festivas dos negros. E o faz, com sagacidade senhorial, nos seguintes termos: “Negarlhes totalmente os seus folguedos, que são o único alívio do seu cativeiro, é querê-los desconsolados e melancólicos, de pouca vida e saúde. Portanto não lhes estranhem os senhores o criarem seus reis, cantar, e bailar por algumas horas honestamente em alguns dias do ano, e o alegrarem-se honestamente à tarde depois de terem feito pela manhã suas festas de N. S. do Rosário, S. Benedito e do orago da capela do engenho, sem gastos dos escravos, acodindo o senhor com sua liberalidade... e dando-lhes algum prêmio do seu continuado trabalho”.

É evidente que boa parte dessas festas de irmandades, organizadas por negros e mulatos, devem ter transcorrido de modo ordeiro e disciplinado. Mas não há dúvida, também, de que muitas vezes escapavam inteiramente da órbita devocional, descambando para a esbórnia, para a farra mais gostosa e desabrida. Como se sabe, as mulheres se organizavam de forma independente, segmentar, dentro daquelas confrarias, podendo assim estabelecer o seu próprio calendário de festas em homenagem às santas. E as mulatas devotas da Virgem do Amparo e da Virgem de Guadalupe pareciam não brincar em serviço. Suas festas enveredavam por rumos nada devotos. Muita comida, muita bebida, danças, brigas, paquera e sexo. Pelo menos, é o que nos diz Gregório: Tornaram-se a emborrachar As mulatas da contenda, Elas não tomam emenda, Pois eu não hei de emendar: O uso de celebrar Àquela Santa do Amparo, E a esta de Guadalupe Com uma, e com outra festa Não é devoção inteira, É papança, é borracheira Dar de cu, cair de testa.

O mesmo Gregório de Mattos também nos fornece um documento sobre a participação de irmandades em festas de caráter profano – ou de um “alarde”, como se dizia na época, espécie de parada ou de desfile, ao qual os pretos da Irmandade do Rosário queriam, supostamente, ir “enfrascados”, expressão que designa um estado de embriaguez, mas que, no caso, serve ao trocadilho com “mascarados”. O poema aparece na obra gregoriana sob a seguinte explicação – “A peditório dos pretos de Nossa Senhora do Rosário fez o poeta o seguinte memorial para o mesmo governador [Câmara Coutinho], impetrando licença para saírem mascarados a uma ostentação militar, a que chamavam alarde”. Veja-se o texto: Senhor: os Negros Juízes da Senhora do Rosário fazem por uso ordinário alarde nestes Países: como são tão infelizes, que por seus negros pecados andam sempre emascarados contra a lei da policia, ante Vossa Senhoria pedem licença prostrados. A um General Capitão suplica a Irmandade preta,

que não irão de careta mas descarados irão: todo o negregado Irmão desta Irmandade bendita pede, que se lhe permita ir ao alarde enfrascados não de pólvora atacados, calcados de jeribita.

Trata-se, como se viu, de uma espécie de ofício ou requerimento poético, vazado naquele estilo carnavalesco que caracteriza boa parte da poesia de Gregório. É muito difícil, claro, que os membros da Irmandade tenham pedido ao governador licença para se embebedar no “alarde”. Gregório desviou, satiricamente, a mensagem que deveria ser enviada ao governador. De todo modo, nota-se aí o entrecruzamento do sagrado e do profano na vida baiana, indigitado naquele século XVII pelo Marquês de Mondevergue, surpreso com a mistura tropical de hóstia e pandeiro, nos atos litúrgicos católicos que se realizavam em nosso meio. E aqui devemos fazer uma observação. Não é de modo algum improvável que, sob a fachada de festa profana realizada em seguida à festa de um santo católico, os bantos praticassem o culto do calundu. O pesquisador Roberto Benjamin, por exemplo, afirma com todas as letras que, em diversas regiões do Brasil, “as festas profanas do Rosário serviram para ocultar festejos de religiões africanas não cristãs, cujos rituais estavam proscritos pelas autoridades religiosas e policiais”. Depois de tanto utilizar a palavra banto “calundu” (e mencionar o seu deslocamento semântico do espaço religioso para o da caracterização de um tipo de comportamento enfezado), não podemos deixar de fazer uma breve abordagem da influência lingüística daqueles africanos, principalmente em plano lexical, na configuração do Português do Brasil. Aqui, as palavras falam por si mesmas. Mas é melhor aprender a ouvi-las de acordo com as orientações de Yeda Pessoa de Castro, a pesquisadora de Os Falares Africanos na Interação Social do Brasil Colônia. São de origem banto palavras como caçula, fubá, andu, dendê, bunda, quiabo, dengo e maconha. Também de origem banto são expressões referentes ao nosso mundo religioso de raiz negroafricana – a exemplo de candomblé, macumba e umbanda. Igualmente ao banto remete parte considerável do vocabulário ligado à vida no escravismo colonial brasileiro, como quilombo, senzala e mucama. Aliás, cercando-se de dados históricos e lingüísticos, Yeda Castro chega à conclusão de que eram de base banto os dialetos predominantes nas senzalas e nos quilombos, incluindo-se aqui, é claro, Palmares. Conforme a estudiosa, “essa penetração [lingüística] banto se deve a um processo mais prolongado de contatos interétnicos e interculturais e à supremacia numérica dos povos de língua banto entre os africanos transplantados para o Brasil Colônia”. Ainda segundo Yeda, os ambundos (de língua quimbundo, da região de Luanda) e os bacongos (de língua quicongo, da foz do Rio Congo, do Baixo Zaire e do Sul da República do Congo) foram, entre os povos bantos da Bahia, “os grupos étnicos mais impressivos”, diferentemente do que ocorreu em outras regiões brasileiras – como Minas Gerais, São Paulo e Rio de Janeiro – , onde também é marcante a presença dos ovimbundos, povo de língua umbundo, proveniente de Benguela, no Sul de Angola.

Não por acaso deixei para mencionar com destaque uma outra palavra de origem banto: samba. Sabemos que os bantos trouxeram para cá padrões rítmicos, instrumentos musicais como a cuíca e o berimbau (do quimbundo, mberimbau), estilos dançarinos. Em seu desenho distintivo, o ritmo e a dança do samba-de-roda do Recôncavo vieram com eles. Kazadi wa Mukuma reconheceu a origem angolana desses modelos. Viu a semelhança óbvia entre a “umbigada”, por exemplo, e coreografias igualmente eróticas encontráveis na bacia do Zaire. E o samba-de-roda soube guardar e expressar, através dos séculos, um ponto de vista negro sobre aspectos da vida nos tempos da agricultura escravista. Veja-se o seguinte exemplar do gênero, colhido por Edison Carneiro em Mar Grande, na Ilha de Itaparica: Toca fogo na cana - No canaviá... Quero ver laborar - No canaviá... Olha cana madura - No canaviá... Ela é verde, é madura - No canaviá... Pra fazer rapadura - No canaviá... O moinho pegou fogo - No canaviá... Queimou o melado - No canaviá...

O que aí se ouve não é apenas uma lembrança da escravidão. Do trabalho negro nos engenhos do Recôncavo. Há um índice de sabotagem, com o verbo no imperativo: “toca fogo no canaviá”. Em seguida, o prazer de ver as chamas se espalhando (o fogo “laborando” na plantação – ou seja: não o desempenho produtivo do negro, mas o trabalho destrutivo das labaredas), até alcançar o moinho e queimar o melado. E é notável a alegria com que se canta o incêndio. Com que se celebram os futuros prejuízos e aflições senhoriais, com a perda da safra, os danos causados ao moinho, a queima do melado. Em poucas palavras, o samba é um pequeno retrato, simples e direto, do júbilo do negro com a desgraça do seu senhor. O fato da música negra ter cruzado o Atlântico, vindo da África para o Brasil, foi um acontecimento de funda conseqüência cultural. Música rítmica, inseparável da dança, ela teve um papel nada insignificante no contexto da resistência e da sobrevivência negras no escravismo colonial. Analisando o samba desse ângulo, em Samba – o Dono do Corpo, Muniz Sodré foi ao cerne da questão: “Nos quilombos, nos engenhos, nas plantações, nas cidades, havia samba onde estava o negro, como uma inequívoca demonstração de resistência ao imperativo social (escravagista) de redução do corpo negro a uma máquina produtiva e como uma afirmação de continuidade do universo cultural africano”. Sodré enfatiza os dois pontos fundamentais – resistência à coisificação e

continuidade cultural. Corpos enérgicos, elásticos, sensuais – a exuberância narcísica do negro como negação da tentativa de redução do corpo a mero instrumento produtivo. E esse corpo humano se afirma, em sua vitalidade e beleza, num ambiente sonoro-percussivo de criação africana – isto é, avivam-se aí os vínculos culturais. A África se faz presente na roda de samba que se abre do lado de cá do Atlântico Sul. Mas há mais: a mestiçagem musical. Ao se encontrarem aqui em nossos trópicos, formas musicais africanas (não apenas bantos, é claro, mas também de outros povos negros) e formas musicais européias geraram um produto novo, original em relação às suas matrizes. O que se diz, de um modo geral, do sincretismo musical afro-europeu, vale, evidentemente, para o que produzimos – na síntese de Kazadi wa Mukuma, “uma predominância do conceito rítmico africano de organização, que fornece um pano de fundo sobre o qual as influências européias, manifestadas em implicações harmônicas e melódicas, encontram suporte”. Ainda nas palavras do autor de Contribuição Bantu na Música Popular Brasileira, o que ocorreu foi uma espécie de “mutação”, com o tradicional africano se transformando no popular brasileiro. E do encontro desses padrões rítmicos com os modelos harmônico-melódicos da Europa é que foi se configurando o espaço estético em que um dia viria a nascer um poeta-compositor como, por exemplo, Dorival Caymmi. Para finalizar, lembre-se que também a capoeira (uma expressão tupi, unindo os vocábulos caá, ‘mato’, e puêra, partícula do pretérito, ‘o que foi’ – significando, portanto, roça abandonada, onde o mato já cresceu) remete de alguma forma ao mundo banto, angolano – muito embora, como ensina Waldeloir Rego, em Capoeira Angola – Ensaio Sócio-Etnográfico, tudo leve a crer que ela foi uma invenção dos africanos no Brasil. Como todos sabem, a capoeira é uma forma de luta e um jogo de destreza corporal, com um repertório de golpes plasticamente atraentes, do aú à meia-lua, ou da chibata ao rabo-de-arraia. “Divertimento velho no Brasil, a capoeira. Tão velho, suponho, quanto o tráfico de negros bantos”, anotava, tempos atrás, Edison Carneiro. Foi assim que, desde pelo menos o século XVII, se jogou capoeira nas ruas da Cidade da Bahia e nos engenhos e quilombos do Recôncavo. E o seu repertório de cantos fez ouvir, ainda em pleno século XX, referências à cidade angolana de São Jorge de Luanda. Como no seguinte canto, onde ela aparece como Aluanda e Aluandê: Tim tim tim Aluandê Aluandê caboco é mungunjê Tim tim tim Aluandê Aluanda Aluanda Aluandê

SAMBA, SEXO E PREGUIÇA

A natureza festiva da vida baiana nunca se deixou conter dentro dos limites das festas oficiais, patrocinadas pelo poder laico ou religioso. Na verdade, as festas oficiais é que primaram sempre por uma espécie de transbordamento, com a massa da população prolongando a celebração pública organizada pela elite dirigente em espaços de comemoração em que ela podia se entregar, sem maiores inibições, aos jogos do prazer. Prazer de falar, de cantar, de dançar, de se embriagar, se abraçar, se tocar. Da sensualidade do samba ao envolvimento sexual propriamente dito, muitas vezes não era necessário dar mais do que um passo. Dançarino, obviamente. O lundu e a umbigada já eram, na verdade, prefigurações do ato sexual. Convites explícitos aos prazeres do sexo. Descrições de viajantes estrangeiros que presenciaram o lundu nos dizem tudo – e em poucas palavras. Lindley, por exemplo, a define como uma dança “singularmente impudica”, brotando de “todos os gestos lascivos do corpo”. E Tollenare não é menos objetivo: “Esta dança, a mais cínica que se possa imaginar, não é nada mais nem menos do que a representação a mais crua do ato de amor carnal”. Lendo tais descrições, ficamos até sem entender porque, hoje, alguns baianos se mostram algo espantados com as performances de grupos locais que fazem fortuna em torno do “tchan”. Esses grupos se movem na linha da umbigada e do lundu, cultivando uma espécie de sexo alegre, jogo de risos, ventres e quadris. Podem não interessar, musicalmente, aos nossos ouvidos – mas não é aos ouvidos que eles se dirigem e, sim, ao olhar. Ou, melhor, o que importa aí não é a música, mas a diversão. Havia, ainda, o “entrudo”, bagunça lusitana transportada para os trópicos, que mereceu os seguintes versos de Gregório de Mattos: Filhós, fatias, sonhos, mal-assadas, Galinhas, porco, vaca, e mais carneiro, Os perus em poder do pasteleiro, Esguichar, deitar pulhas, laranjadas; Enfarinhar, pôr rabos, dar risadas, Gastar para comer muito dinheiro, Não ter mãos a medir o taverneiro, Com réstias de cebolas dar pancadas; Das janelas com tanhos dar nas gentes, A buzina tanger, quebrar panelas, Querer em um só dia comer tudo; Não perdoar arroz, nem cuscuz quente, Despejar pratos, e alimpar tijelas: Estas as festas são do Santo Entrudo.

Além do lundu e da umbigada, isso aqui era – para quem não fosse negro escravizado – o reino da preguiça e do ócio. E o ócio, todos sabem, é um espaço mais do que propício para os alongamentos do langor sensual. Com o bom-humor de sempre, o historiador Emanuel Araújo sintetiza: “Tudo indica, realmente, que pelo menos nos centros urbanos se trabalhava pouco. Havia,

com efeito, grande quantidade de dias santos e feriados civis; em finais da década de 1810, segundo Spix e Martius, os primeiros eram exatos 35, os segundos 18 no total. O que significava, só aqui, 14,5% do ano. Acrescentem-se a esses dias de folga – e de folguedos – os domingos, naturalmente santificados, o do padroeiro do lugar e os de comemorações especiais (que ninguém era de ferro), como a trasladação de qualquer imagem de uma igreja para outra, a chegada de um bispo, o falecimento do soberano, o casamento do soberano, a coroação do soberano, o nascimento do futuro soberano e, claro, mais um ou dois (ou vários) dias de festa justificavam de sobra a bajulação coletiva de celebrar o aniversário do soberano, da mulher do soberano, dos filhos do soberano ou até o do supremo representante do soberano na Colônia. Assim, tem-se a forte impressão de que entre um festejo e outro se trabalhava. E trabalhava-se cansado da festa passada, mas poupando-se, está visto, para a próxima. O ócio fatigava”. Missionários e viajantes sempre se mostraram algo espantados com essa nossa disposição para a festa e o nosso “caráter” lascivo. De uma lascívia contagiante, por sinal. Para o holandês Caspar Barleus, por exemplo, os batavos foram expulsos da Bahia, em 1625, por uma razão bastante simples: a luxúria. “Tendo-nos antes dela senhoreado com varonil audácia, fomos depois privados por feminil covardia, por se haverem os guardas entregado à lascívia”, diz ele. Ou ainda, mais conciso: “perdeu a lascívia a cidade ganha pelo valor”. É claro que não foi exatamente assim. Os flamengos conheceram a derrota porque, desde o seu desembarque, permaneceram sitiados, sofrendo rasteiras e martelos da ágil guerrilha baiana, até que fossem cercados também pelo mar, com a aparição da grande esquadra comandada por Fradique Toledo Osório. A versão de Barleus é simplista e caricatural. Mas, ao mesmo tempo, não deixa de guardar um certo vestígio de verdade. Quando os holandeses avançaram sobre Salvador, a população local bateu rapidamente em retirada, refugiando-se fora dos limites urbanos. Na cidade, restaram apenas uns bandos de índios e índias, de negros e negras e de brancos e brancas. Não era o suficiente para fazer com que o burgo retomasse um ritmo normal de vida: o que se via ali era um estado citadino anômalo. Mas era mais do que suficiente para que a soldadesca batava se entregasse não somente ao saque das riquezas, mas também aos prazeres da farra. Em poucas palavras, à bebida e ao sexo. A própria situação excepcional em que se achava a cidade, sem norma e sem rotina, sem um cotidiano, era um convite ao excesso e ao abuso. Somando-se a isto a situação igualmente extracotidiana daqueles calvinistas recrutados para uma guerra fora de casa, tudo conduzia à desmesura. Depois da morte do governador Van Dort, então, a coisa degringolou de vez. Eram folias etílicas e orgias sexuais. Alguns membros da própria cúpula administrativo-militar holandesa – como os irmãos Schouten – não pensavam em outra coisa que não fosse farrear. Enfim, os flamengos foram fundo na esbórnia. Entregaram-se, de fato, à desordem lúdica e ao desmando erótico. Não foram, certamente, os primeiros – nem viriam a ser os últimos. Pareciam apenas render tributo à famosa divisa que anunciava a inexistência do pecado sob a linha equatorial. Na Bahia, como em outros pontos da Índia Brasílica, o desregramento estava mais próximo da norma do que do desvio. Historicamente. Desde o meado do século XVI, Nóbrega protestava já contra o caráter blasfemo e devasso do povo que aqui residia. “A gente da terra vive em pecado mortal”, lamentava o

jesuíta, atacando inclusive os clérigos que aqui encontrou. Irado, ele acabou por bater na mesa, exclamando: “eu ladrarei quanto puder”. E não era para menos, de um ponto de vista inaciano. Da transgressão mais séria ao descomedimento mais leve, ninguém parecia imune a “deslizes” comportamentais. É claro que havia exceções. Mais do que raras, mas havia. A regra, todavia, era a pândega. Uma adaptação sociologizável à vida tropical, com certeza, mas a Igreja Católica, ao menos sobre tal matéria, não raciocinava sociologicamente. Queria a obediência aos seus princípios. Logo, se escandalizava. Mesmo os seus quadros supostamente mais inflexíveis vacilavam, ao cair no calor dos trópicos. Um bom exemplo é o do “visitador” frei Antônio Rosado, comissário do Santo Ofício, que, chegando à Bahia, irresistiu. Em vez de se dedicar a prender judeus e a confiscar os seus respectivos bens, como ordenava o figurino inquisitorial, Rosado preferiu “folgar” numa fazenda do Recôncavo, tornando-se amigo de um grupo de cristãos novos. A Inquisição, por sinal, inaugurou-se na Bahia com um choque. O primeiro morador da região a se confessar perante o Tribunal do Santo Ofício foi um sacerdote, o padre Frutuoso Álvares. Postando-se para ouvi-lo, o inquisidor Heitor Furtado de Mendonça ficou estarrecido, sem saber o que fazer. Afinal, o sacerdote, que contava com 65 anos de idade, abriu a boca para declarar que era homossexual. Pederasta assumido. Confessando aliás, segundo o texto redigido pelo escriba do Tribunal, que cometera “a torpeza de tocamentos desonestos com algumas quarenta pessoas pouco mais ou menos”. Era verdade. Um dos “machos” do padre – o jovem Jerônimo de Parada, um adolescente de 17 anos de idade, filho de um carpinteiro – confessou em seguida. Disse ele (e os escritos do Santo Ofício sugerem, ao leitor atual, literatura pornográfica de baixo nível) que realmente dormira “com o dito clérigo carnalmente por detrás, consumando o pecado de sodomia, metendo seu membro desonesto pelo vaso traseiro do clérigo como um homem faz com uma mulher pelo vaso natural por diante, e este pecado consumou tendo polução”. O historiador Emanuel Araújo, em O Teatro dos Vícios – Transgressão e Transigência na Sociedade Urbana Colonial, se dedicou, com um misto de bom-humor e erudição, a reconstruir não só o código dos delitos sexuais, como as violações de que ele foi objeto. Vamos acompanhá-lo nos próximos parágrafos, selecionando alguns dos exemplos transgressores que ele fornece. Antes de mais nada, Araújo avisa que a inflexibilidade da legislação sexual lusitana, retomada pelas Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia, só encontrou paralelo no desejo igualmente inflexível de violá-las. Diz ele: “Ao fim e ao cabo [sic] todo mundo transgredia, pecava, desobedecia, violava grande número de normas. E muito”. Eis a lista dos nove pecados principais: sodomia, bestialidade, molície, adultério, incesto, estupro, rapto, concubinato, bigamia. Cada um deles parecia ter o seu peso particular. Em termos gerais, os três primeiros implicavam desperdício do líqüido seminal, passando ao largo da procriação – o que era especialmente grave. Mas, se eles ameaçavam por jogar fora a possibilidade da constituição de uma família, os quatro pecados restantes ameaçavam a própria família, já constituída, enquanto instituição. Uma coisa era deixar que o sêmen se perdesse em prática masturbatória ou homossexual; outra coisa era gastá-lo em empreitadas como o adultério ou o incesto, que, além de não contribuírem para a formação de novas famílias, colocavam em risco as formações familiares já existentes. Mas vamos por partes, de pecado em

pecado. A expressão “sodomia” designou, inicialmente, o envolvimento amoroso-sexual de dois machos – eram os masculorum concubitores de que já falava o apóstolo São Paulo. Com o tempo, a definição se alargou não só para abrigar relacionamentos entre mulher e mulher, como também o coito anal, fosse ele praticado homem a homem ou entre macho e fêmea, ainda que casados. Na verdade, a Igreja Católica pôs em prática, nessa época, o que já vinha forjando desde tempos medievais: regras para a boa conduta, na cama, do casal que se pretendesse católico. Quem cometesse o “pecado de sodomia”, deveria ser queimado vivo. O crime era tão horrendo que não mereceria sequer ser pronunciado – daí a expressão “pecado nefando” (“nefando” é o que não se diz, o indizível, o impronunciável). No entanto, a Bahia seiscentista conheceu sodomias e mais sodomias. Com relação à prática sodomita masculina, fiquemos apenas em dois exemplos. Primeiro, o do governador geral Diogo Botelho, que administrou o Brasil de 1602 a 1607. Ele tinha um caso com o seu pajem. Segundo, o de um outro governador geral, Câmara Coutinho, que, de tanto “soltar a franga”, recebeu, do poeta Gregório de Mattos, as seguintes perguntas: Mandou-vos el-rei acaso desgovernar os quadris? Mandou-vos acaso el-rei com as fêmeas não dormir, senão com vosso criado, que é bomba dos vossos rins?

Quanto à sodomia feminina, o quadro não é menos rico. “Em Salvador, na última década do século XVI, nas confissões feitas ao inquisidor Heitor Furtado de Mendonça, aparecem 29 mulheres envolvidas em relações homossexuais. Salvo duas viúvas, eram então quase todas casadas, mas a maioria delinquira em tenra idade, entre nove e 14 anos”, informa Emanuel Araújo. Prosseguindo, Araújo nos diz que “algumas se conheciam e se reconheciam como desviantes, a exemplo de Paula de Siqueira, Filipa de Sousa e Maria Lourenço, respectivamente casadas com um contador da Fazenda, um pedreiro e um caldeireiro”. Cercada pela Inquisição, Filipa de Sousa encarou a barra mais pesada. Foi obrigada a ouvir de pé, durante missa na Sé, a sua sentença: açoites desferidos publicamente – e degredo. Uma outra cena que permanece em nossa imaginação, ao estudar esse aspecto da história baiana, vem do romance entretido por Francisca Luís e Isabel Antônia, chamada “a-do-veludo”, por usar, em seus intercursos sexuais com outras mulheres, “um instrumento coberto de veludo”. Isabel começara a sair com um homem, provocando a fúria de Francisca. Um dia, não suportando mais o que via, Francisca a interpelou na porta de casa: “Velhaca! Quantos beijos dás a seu coxo e abraços não me dás um?” – gritou Francisca. Completando: “Não sabes que quero mais a um cono do que quantos caralhos aqui há?”. Dito isto, Francisca arrastou Isabel pelos cabelos, à vista dos vizinhos. E a empurrou, aos tapas, para dentro da sua casa. Foi o fim do romance. Mas não era só, como vimos. O segundo grande pecado, acarretando desperdício de sêmen, era o da “bestialidade”, vale dizer, o ajuntamento carnal entre um ser humano e um outro animal. Na Bahia,

apenas uma pessoa confessou ter cometido esse crime sexual – Heitor Gonçalves, que fora “pastor de gado” entre os 8 e os 14 anos de idade, período em que “dormiu carnalmente, por muitas vezes, em diversos tempos e lugares, com muitas alimárias, ovelhas, burras, vacas, éguas”. Parece que, na verdade, as pessoas de algum modo não se sentiam muito à vontade para confessar a prática da bestialidade. E ficariam envergonhadas, também, de falar de suas atividades masturbatórias. Afinal, os pecados da “molície” (masturbação) e da bestialidade não devem ter sido tão raros assim. Mas por que não confessá-los e confessar sodomias? “Algum acanhamento parecia também impedir as pessoas de se referirem ou confessarem ter cometido o pecado da ‘molície’. Este vocábulo veio do grego por via latina. Em grego, malakós significa ‘coisa própria para apalpar ’ e, em se tratando de pessoas, ‘suave, meigo, dócil’, ou no mau sentido, ‘mole, de hábitos voluptuosos, efeminado’. O latim mollitia ou mollities tem o mesmo significado, de modo que o mollis é o lascivo, obsceno, efeminado, prostituído. Em neolatim prevaleceu a raiz indo-européia da palavra, mo-, ‘esforçar-se, empenhar-se’, acabando por designar masturbação”, esclarece Emanuel Araújo. Para acrescentar: “Curioso, entretanto, é o fato de nos tempos coloniais tanto a legislação civil quanto a eclesiástica só citarem esse delito cometido em dupla, como masturbação mútua”. O pecado do adultério, ao contrário, era comentado de modo mais ou menos público e sabidamente praticado com alta freqüência. Não se dava muito bola para o fato de um homem casado alimentar casos, escapadas, aventuras. O problema era o adultério feminino. Mesmo aqui, o que vinha à baila não era a reputação da mulher, mas a honra do marido. Acreditava-se que as mulheres, essencialmente pérfidas, eram sempre as culpadas, incitando permanentemente os homens ao pecado, pela simples razão de existirem. E era olhado com naturalidade o assassinato da mulher adúltera pelo marido traído, postura que, por sinal, perdurou no Brasil por muito tempo. Mas nem por isso aquelas sinhás seiscentistas deixavam de aprontar. Fala Araújo: “Dizia Froger em 1696 que em Salvador os homens ‘amam o sexo à loucura’. Esse viajante permaneceu apenas 39 dias naquela cidade; viu um comportamento masculino desregrado e um confinamento feminino na aparência severo ao extremo. No entanto, o próprio Froger logo se apercebeu de que as sinhás, embora sujeitas à reclusão doméstica e ao perigo de morte se flagradas em adultério, sempre encontravam ‘um jeito de conceder seus favores...’. Froger não exagerava. As mulheres, no concernente ao adultério, eram perigosamente desviantes do padrão prescrito à estabilidade da família. Sua transgressão não tinha como encaixar-se na hipocrisia da moralidade social, que dava ao marido o direito de praticar adultério. Os homens também transgrediam, é claro. Só que elas arriscavam a vida”. O incesto não era tão comum quanto o adultério, mas não deixou de ser praticado com alguma freqüência. A própria definição do conceito, então muito ampla, concorria para isso. Naquele tempo, cometia incesto o homem que dormisse carnalmente com filha, mãe, irmã, nora, madrasta, enteada, sogra, tia, avó, prima, cunhada, comadre, madrinha ou afilhada. E as penas eram pesadas, indo da morte ao degredo e ao trabalho forçado nas galés. Também o rapto e o estupro poderiam ser castigados, ao menos teoricamente, com a pena de morte, ainda que a mulher obrigada ao ato sexual fosse escrava ou prostituta. Mas é óbvio que, também aqui, a perspectiva da punição jamais foi suficiente para abolir a prática. E o mesmo se pode dizer do concubinato e da bigamia.

Não eram poucos os que cometiam “sacrilégio”, no sentido em que a expressão aparece na lista de delitos sexuais do dominicano Antonino, arcebispo de Florença no século XV. Padres deitavam e rolavam em casos de concubinato ou mancebia. É respeitável a documentação existente sobre o assunto. Escreve o já citado Araújo: “Não foram raros, entre eles [padres e freiras], os casos de homossexualismo, de excessos no trajar-se, de corrupção, de sedução de mulheres, afora o mais freqüente dos delitos em que se envolviam os padres: o concubinato. A julgar pela quantidade de sacerdotes amancebados – discretamente ou não –, era difícil, quase tarefa de santo, manter a castidade sexual no Brasil”. Mas não só os padres. Também as freiras podiam ser sedutoras e seduzíveis – daí, de resto, a expressão “amores freiráticos”, comum à época. Mas é bom frisar que nada disso foi invenção tropical, brasileira. Seduzir freiras, por exemplo, foi um esporte que Gregório de Mattos começou a praticar em seus tempos lusitanos de estudante, na Universidade de Coimbra. Informa Fernando da Rocha Peres: “Com um ano escolar que [em Coimbra] ia de outubro a julho, pontilhado de ‘feriados’ religiosos e férias (as ‘vacações’ de agosto a setembro), o estudante conimbricense tinha bastante tempo para cuidar de outros assuntos, para provocar arruaças com arma de fogo, para seduzir as freiras, as noviças dos conventos, conforme pode ser comprovado nos ‘processos’ que puniam e procuravam regular os excessos e a indisciplina”. Mas é claro que nem tudo era “transgressão”. Me detive na documentação inquisitorial por dois motivos. Primeiro, porque tudo ali fica razoavelmente claro: as pessoas confessam. Segundo, porque mais visível ainda se mostra o anseio totalitarista da Igreja e do Estado. Como se pôde ver, há um afã de regulamentar, até na cama, a vida dos indivíduos. E tudo isso nos transmite uma boa imagem da época e da mentalidade que ali reinava. Mas o fato é que, dentro ou fora do raio de alcance do olhar inquisitorial, a sensualidade vigia. Naquele mundo de sol e de preguiça, estando de passagem por São Francisco do Conde, o poeta Gregório de Mattos cantava: Há cousa como estar em São Francisco donde vamos ao pasto tomar fresco? Passam as negras, fala-se burlesco, fretam-se todas, todas caem no visco.

E Gregório era uma personalidade masculina típica da mentalidade da época. Embora gostasse de cheirar a flor, não era flor que se cheirasse. Sabe-se que sua segunda mulher, Maria de Povos, fugiu de casa certa vez. Não agüentava mais a carência de comida (o “pouco pão que havia em casa”) e o excesso de comidas, os sucessivos e efêmeros “casos” do marido. Foi, assim, parar na casa de um tio. Este não só a repreendeu em termos ríspidos como foi pedir ao poeta que a aceitasse de volta. Gregório não fez por menos: a aceitaria de volta, sim, mas desde que ela viesse amarrada e conduzida “por um capitão-de-mato, como escrava fugitiva”. Foi o que aconteceu – ou, como disse Manuel Pereira Rabelo, primeiro biógrafo do poeta, escrevendo em inícios do século XVIII: “Assim se fez pelo mais decoroso modo”. Para o espanto do leitor de hoje, ninguém na época se escandalizou. Todos, na verdade, estavam mais preocupados com outras coisas. E concordavam, no fundo, com o que Gregório dizia:

O Amor é finalmente um embaraço de pernas, uma união de barrigas, um breve tremor de artérias. Uma confusão de bocas uma batalha de veias um reboliço de ancas, quem diz outra coisa, é besta.

A PÉROLA IRREGULAR O barroco é um traço fundamental de nossa formação. Vamos, portanto, tentar defini-lo, ainda que de forma breve e genérica. Para lembrar uma distinção feita pelo escritor cubano Severo Sarduy, em seu livro Escrito sobre um Corpo, a arte “clássica” está para o sexo com finalidade reprodutora, assim como o barroco está para o jogo do prazer. O barroco seria a arte erótica por excelência. “Jogo, perda, desperdício e prazer: isto é, erotismo enquanto atividade que é sempre lúdica, que não é mais que uma paródia da função de reprodução, uma transgressão do útil, do diálogo ‘natural’ dos corpos”. No erotismo, como na arte barroca, a finalidade está em si mais do que na veiculação de uma mensagem, genética ou simbólica. O discurso barroco é o avesso mesmo do discurso objetivo. Ao contrário deste, se compraz na demasia. No excesso. O barroco é a linguagem da abundância, do transbordamento, da prodigalidade. Daí a equação de Sarduy: barroco = jogo; arte clássica = trabalho. “A exclamação infalível que suscita toda capela de Churriguera ou do Aleijadinho, toda estrofe de Góngora ou de Lezama, todo ato barroco, quer pertença à pintura ou à confeitaria: ‘quanto trabalho!’, implica um mal dissimulado adjetivo: quanto trabalho perdido!, quanto jogo e desperdício, quanto esforço sem funcionalidade. É o superego do homo faber, o ser-para-o-trabalho o que aqui se anuncia impugnando o deleite, a voluptuosidade do ouro, o fausto, o desbordamento, o prazer”, comenta Sarduy. Em termos gerais, podemos falar do barroco como uma arte ao mesmo tempo “aberta”, intratextual e intertextual. “Aberta”, na medida em que ela cultiva uma espécie de dispersão do sentido, recusando a linearidade, o significado único. É assim que a igreja barroca pode se oferecer, aos olhos que a contemplam, como um “labirinto de figuras”. Em O Lúdico e as Projeções do Mundo Barroco, Affonso Ávila panoramiza: “Há, portanto, em toda a arte barroca declarada propensão para uma forma que se abre em indeterminação de limites e imprecisão de contornos, uma forma que apela para os recursos da impressão sensorial, que não quer apenas conter a informação estética, mas sobretudo comunicá-la sob um grau de tensão que transporte o receptor, o espectador, da simples

esfera de plenitude intelectual e contemplativa para uma estesia mais franca e envolvente – mais do que isso, para um êxtase dos sentidos sugestionadamente acesos e livres”. O barroco é, ainda, “intratextual”, no sentido em que privilegia a retórica, os jogos verbais, a trama da linguagem. É o que vemos no seu gosto pelo torneio metafórico, pelo trocadilho, pelo emprego da palavra rara e do neologismo, enfim, pelo recurso a todo um arsenal de mecanismos de artificialização estética da língua. E é “intertextual” por seu cultivo sistemático da paródia e da citação, quando uma obra ironiza outra ou incorpora elementos seus. É por isso que o barroco é tantas vezes visto como uma espécie de “apoteose do artifício”. É justamente a obsessão da forma, a desmesura, a vertigem provocada pelo excesso, a “maisvalia” simbólica, a multiplicidade de signos e de leituras possíveis o que vamos encontrar em tantas igrejas barrocas que se implantaram em cidades da Bahia e de Minas Gerais, marcando e orientando a antiga paisagem urbana brasileira. Aliás, uma cidade pode ser imediatamente lida pelo sentido dos seus prédios. Se a velha cidade barroca de Salvador da Bahia de Todos os Santos era dominada visualmente pelas torres das igrejas, signos ostensivos de um mundo católico-mercantil, hoje as “torres” mais altas são os centros empresariais e edifícios de escritórios, marcos do materialismo vulgar. Mas esse é um outro tema. Roger Bastide enfatizou duas funções de nossos templos barrocos. Disse ele que a igreja barroca da Bahia era um lugar de encontro, um centro de vida social, “traço de união” entre senhores de engenho. Daí, prossegue o sociólogo, a extensão de suas sacristias. Elas não se destinavam apenas a guardar vestimentas litúrgicas. Eram espaços que recebiam o patriarcado escravista, oferecendo-lhes “seus bancos ornamentados e esculpidos, suas ricas poltronas, a suavidade de seus azulejos... suas salas frescas e calmas, para as conversas sobre as dificuldades em obter mão-de-obra, sobre as produções deficientes dos canaviais, sobre o último navio chegado de Lisboa, sobre o próximo casamento de um filho ou filha de família, sobre as doenças e sobre Deus”. Ainda Bastide: “Uma outra função dessas igrejas barrocas é a de ser uma espécie de teatro sagrado, onde o drama representado é o drama da missa. O teatro, porém, mantém a diferença entre as classes: a estratificação social se inscreve na estrutura arquitetônica. O barroco nasceu e se desenvolveu numa época em que a sociedade se compunha de camadas superpostas e hierarquizadas: a nobreza, a burguesia enriquecida pelo comércio das especiariais ou pela venda de tecidos e, por fim, o povo. E daí a existência de frisas de onde os nobres podem contemplar o padre que oficia, enquanto os burgueses, na nave, instalados em cadeiras se opõem, por sua vez, aos humildes que ficam de pé ao redor da nave. Mas, a essa oposição de níveis, a igreja igualitária imprimia uma certa unidade, pois o sacrifício de Deus é feito para todo o mundo. É por isso que, embora haja lugares diferentes, não há maus lugares: pode-se ver, e ver bem, de todos os recantos; os gestos heráldicos não escapam a um único fiel”. Vamos falar um pouco de um desses templos – a Igreja da Ordem Terceira de São Francisco de Assis. Essa organização religiosa de leigos – a Ordem Terceira – se formou, na Cidade da Bahia, em 1635. E já nasceu rica, muito rica. Ordens, como irmandades, eram agrupamentos de leigos, organizações seculares dedicadas à vida religiosa. A Ordem Terceira de São Francisco, formada

exclusivamente por brancos, homens de muitas posses e poder, pertencentes à cúpula da elite local, era também uma organização financeira, administrando empresarialmente o seu patrimônio. Neste sentido, podemos falar de sua atuação em plano interno e externo. Internamente, a Ordem cuidava de seus associados: providenciava ajuda pecuniária, dotes para órfãs, enterros. Externamente, funcionava como uma agência. Como disse a pesquisadora Ana Palmira, em Mentalidade e Estética na Bahia Colonial, a Ordem era respeitada, na sociedade baiana, por seus atos e atributos religiosos – mas era vista, igualmente, como uma espécie de casa comercial, “uma casa de negócios, usurária, onde tomava-se dinheiro emprestado e precisava-se pagar com juros; onde hipotecava-se e penhorava-se bens e alugava-se somente sob fiança”. Não é preciso dizer o quanto isso contraria, a nossos olhos, a figura e o pensamento do próprio São Francisco de Assis, pregador da vida e da fé simples e humilde que, numa peregrinação a Roma, trocou suas roupas pelos trapos de um mendigo, passando ele mesmo a esmolar. Mas aqueles brancos ricos da Bahia pareciam não dar a mínima bola para a contradição. Pelo contrário. A Ordem cultivava preconceitos sociais e raciais. Suas portas não se abriam para pobres, negros, mulatos ou judeus. E foram esses homens – instituidores, em 1649, do espetáculo da Procissão de Cinzas da Bahia – que levaram adiante o projeto de construção da Igreja de São Francisco, escolhendo, inclusive, o seu estilo. A obra foi realizada no biênio 1702-1703. E foi assim que a Cidade da Bahia ganhou um templo de belíssima fachada. Parágrafos atrás, lemos o cubano Sarduy citando o barroquismo de Churriguera, o Aleijadinho da América Espanhola. Pois bem: ao visitar a Igreja de São Francisco, Pierre Verger fez a ponte barroca. O estilo da igreja baiana fez com que ele se lembrasse, de pronto, do “delírio churrigueresco de certas igrejas do México” – e São Francisco é, de fato, um templo absolutamente singular no Brasil. Esta singularidade é imediatamente visível em sua fachada lavrada em pedra, esculpida em relevo, farta de formas e figuras. Numa palavra: barroquíssima. É como se fosse uma superescultura, com as suas alegorias, as suas sereias letradas, os seus anjinhos, a estátua do santo, a esquisita presa de sua águia, as suas voltas, volutas e ondulações. O olhar é atraído sem cessar para elementos e mais elementos. Não consegue se controlar diante de tal plurifaiscamento semântico. E o interior do outro templo de São Francisco, a igreja de ouro da Cidade da Bahia, não é menos extasiante. Deixemos Pierre Verger, um fotoetnógrafo francês, dizer o que viu: “O interior da Igreja de São Francisco é coberto de ouro em profusão. É uma orgia de colunas torcidas cobertas de folhagens e de motivos alegóricos, de anjinhos bochechudos e de damas pintadas que nos dirigem um olhar afetado e insinuante; os motivos decorativos mais insignificantes têm um aspecto sensual, com cores ternas e vagas formas de coração ou de ventres suavemente abaulados”. É tudo uma dança de brilhos e de formas, expressando o esplendor divino. Dissemos que a Ordem Terceira promovia, na Bahia, a procissão de Cinzas. E assim passamos do plano da arquitetura barroca para o espaço da festa barroca. Estudiosos do assunto chegam a falar de uma vontade de festa, uma disposição como que “inata”, indestacável daquilo que seria a “alma barroca”. Em outras palavras, o homem barroco, estivesse ele vivendo a realidade peninsular européia ou circulando sob o sol dos trópicos, apresentaria, em alto grau, uma espécie de

disponibilidade festiva. Bem, inata ou não, o fato é que a festa foi um acontecimento central da vida barroca. E aqui estou me referindo apenas a festas “oficiais”, promovidas pela Igreja ou pelo Estado. A comemorações de caráter cívico e religioso. Em seu estudo Festa Barroca: Ideologia e Estrutura, Affonso Ávila fala dessas festas em termos de “uma estratégia de enunciação triunfalesca do poder laico ou religioso”, ou, ainda, de um “instrumento encantatório-persuasivo a serviço das correntes diretivas em busca de afirmação e hegemonia”. O impacto causado por todo aquele aparato festivo teria assim, obviamente, a sua função política. Carros alegóricos, flagelados, fantasias, cavalhadas, touradas e música criariam, em verdade, uma contextura estética barroca para a afirmação expressiva e impactante do Poder. Para que se tenha uma idéia do que eram essas festas barrocas, veja-se como Ávila resume uma festa ocorrida em Vila Rica, atual Ouro Preto: “...viam-se em ricos trajes de gala as diversas irmandades de brancos, pardos e negros já existentes então em Vila Rica e, em torno delas e seus estandartes e santos padroeiros, uma complexa trama coreográfica em que se mesclavam grupos de dançarinos, conjuntos musicais, carros de triunfo, personagens a cavalo, alegorias mitológicas, cartazes alusivos ao acontecimento, etc., buscando cada figurante realçar mais a sua original indumentária, feita de seda, veludo ou damasco e adornada de ouro e pedraria. A arquitetura e a escultura do efêmero salientavam-se nas ruas ornamentadas de arcos, mastros, guirlandas e outros artefatos plástico-visuais, com as casas vistosamente alcatifadas de colchas e cortinas nas janelas, sendo que à noite o ambiente ganhava uma atmosfera feérica, seja pelas luminárias acesas por toda a vila, seja pelos castelos de fogos e jogos pirotécnicos”. O festivo barroco não foi menos maravilhoso na Bahia. Tome-se como exemplo a citada procissão de Cinzas, organizada, desde meados do século XVII, pela Ordem Terceira de São Francisco de Assis. Era um desfile de alegorias móveis, mesclando penitentes e peças de ouro, vestes caras e vistosas, cruzes e bandeiras coloridas, anjos e andores ricamente adornados. Mas havia também o aspecto “carnavalesco”, por assim dizer. Descrevendo uma outra procissão baiana do século XVII, a do Santíssimo Sacramento, Froger resumiu, nos termos seguintes, o que lhe foi dado ver: “uma quantidade prodigiosa de cruzes, de relicários, de ricos ornamentos e de tropas em armas, de corpos de ofícios, de confrarias e de religiosos, como também ridícula pelos grupos de máscaras, de músicos e de dançarinos, os quais, por suas posturas lúbricas, perturbavam a ordem da santa cerimônia”. Havia, assim, o teor carnavalesco, geralmente representado e alimentado pelos pretos. Devoção, sim, é claro. Mas com batuque, algazarra, folia. Com violas, pandeiros e marimbas. Nem foi por acaso que um historiador de nossa música popular, José Ramos Tinhorão, viu, nessas procissões coloniais, um esboço/modelo dos desfiles carnavalescos de nossas atuais escolas de samba. Não faltavam alegorias, “destaques”, alas de fantasiados e mascarados, naquelas celebrações católicas. As festas cívicas não faziam por menos. Eram eventos francamente carnavalescos, com batucadas, luminárias e foguetório. Injeções negroafricanas no código festivo que nos vinha, diretamente, de Portugal.

O XADREZ E A SÁTIRA Descendente, ao que se diz, de uma escrava mulata dos condes de Unhão, Antonio Vieira atravessou vivo praticamente toda a centúria de seiscentos. Nasceu em 1608, em Lisboa, falecendo na Bahia em 1697. E foi a personalidade maior do século XVII luso-brasílico. Vimos o seu desempenho no período da Restauração, quando ele não só enfrentou o Santo Ofício como, de uma perspectiva mais ampla, remou contra a maré da mentalidade reinante na sociedade ibérica, fundamente eivada de preconceitos anti-mercantis. Aliás, ao sublinhar a importância vital do comércio e a necessidade que Portugal tinha de contar com banqueiros de ascendência judaica, cristãos novos que viviam à vontade no mundo das finanças internacionais, o discurso do jesuíta chega a exibir por vezes, como notaram alguns estudiosos, uma fisionomia algo insólita, de caráter barroco-mercantilista, ali onde a razão cristã e a razão mercantil, burguesa, vão se entrelaçar na trama da linguagem. Assim foi o Vieira conselheiro real, diplomata, preceptor de príncipes, pregador da palavra contundente, homem perseguido e depois condenado pela Inquisição. O Vieira que via superlotar os templos onde falava, que articulou a criação da Companhia Geral do Comércio do Brasil, que foi proibido de pregar e conheceu o desterro e a reclusão nos cárceres do Santo Ofício de Coimbra. O Vieira pragmático, geopolitólogo, que tratava Santo Antônio, “o divino português”, como um “estadista”, e que sabia condenar ao fogo do inferno os senhores de escravos, ao tempo em que manobrava saídas para os mesmos. Enfim, o Vieira que encarnou o que ele mesmo pregava, como se pode ver no Sermão da Terceira Dominga do Advento, elogio barroco do fazer, da ação, da praxis. Neste sermão – crítica mordaz dos estamentos superiores da sociedade portuguesa, alcançando, em certas passagens, os extremos da sátira que desvela, desnuda e fere –, Vieira parte da famosa cena bíblica dos embaixadores de Jerusalém que, tendo saído à cata do Messias, perguntam a João Batista, em primeiro lugar, “quem és tu?” – e, em segundo, “quem dizes que és?”. A razão dessa dupla pergunta, segundo o próprio Vieira, estaria no fato de que nenhum homem é tão reto juiz de si mesmo que diga realmente o que é, ou seja realmente o que diz. E o Batista respondeu: “eu sou a voz que clama no deserto”. Ou seja – perguntaram ao santo quem ele era; em resposta, o santo disse o que fazia. E daqui Vieira projeta a sua proposição fundamental: o ser humano é o que ele faz. Não se deixa definir por uma “essência”, mas pelo seu fazer. “Cada um é as suas ações, e não é outra cousa”. E ainda: “O que fazeis, isso sois, nada mais”. Assim, quando dirigirem a ti um quem-és, não procures genealogias, títulos, pensamentos, etc. – “ides ver a matrícula de vossas ações”. Mas aqui há um aspecto de que ainda não falamos. As ações de Vieira tinham, como solo e horizonte, o “sebastianismo”. Sua meta última era a instauração do Quinto Império, da monarquia universal profetizada no “Livro de Daniel”, traduzindo-se agora, contextualmente, na utopia cristã do advento de um tempo de justiça, sob o signo de Portugal. Vieira era, sim, um pensador utópicomessiânico, sonhando um planeta regido pelos princípios de Cristo. Mas, para não deixar o assunto enevoado, registrado em termos excessivamente vagos, sob o rótulo genérico de “profetismo messiânico”, falemos um pouco dessa manifestação culturalmente singular, que foi o messianismo lusitano, tal como ele se expressou entre os séculos XVI e XVII. Afinal, iremos reencontrá-lo, ainda

que muito modificado em sua aparência, aqui bem próximo de nós, ao longo da vida política, religiosa e cultural da Bahia. Na pregação de Antônio Conselheiro e na Guerra de Canudos, por exemplo. Mas também, e ainda mais recentemente, repercutindo fundo no cinema e no discurso de Glauber Rocha. Cabe, assim, a digressão didática. Em fins do século XV, os judeus da Península Ibérica, vivendo a certeza de sua expulsão da Espanha e a incerteza de seus dias em Portugal, começaram a esperar, para muito breve, a vinda do sempre anunciado e desejado Messias. Tal atmosfera messiânica logrou contaminar também cristãos velhos, que, com a expansão planetária de Portugal, passaram a sonhar com o estabelecimento de um império religioso que impusesse mundialmente o Cristianismo, em sua vertente católica. Formou-se assim um compósito judaico-cristão, mas articulado de uma perspectiva francamente portuguesa. Adiante, já no reinado de D. João III, surgiram, e logo se alastraram pelo meio do povo, do conjunto da população portuguesa, as trovas proféticas de Gonçalo Annes, o Bandarra, um sapateiro de Trancoso, anunciando o advento do “Encoberto” – um Rei que viria para inaugurar o “tempo desejado” pelas gentes, convertendo-se em imperador universal. Era o mito do Quinto Império, que Bandarra fora buscar na Bíblia – e que por isso mesmo conheceria a condenação do Tribunal do Santo Ofício. Trovas e provas proibidas, sim, mas nem assim menos lidas, ditas, repetidas, recitadas, transmitidas e comentadas. E foi justamente àquela altura que entrou em cena o rei D. Sebastião. Ele recebera o epíteto de “o Desejado” quando ainda se achava no ventre materno. Por um motivo simples: o trono português estava sem herdeiros – e, se não nascesse naquele momento uma criança do sexo masculino, a Coroa iria para uma cabeça castelhana. O povo português pedia a Deus, entre promessas e procissões, que isso não acontecesse. E assim o nascimento do futuro rei produziu uma onda de júbilo em Portugal. Educado pelos jesuítas, tomado desde cedo por um férvido espírito de conquistador e cruzado, D. Sebastião subiu ao trono aos 14 anos de idade. Conquistar o Marrocos era, desde a infância, uma obsessão sua. E foi justamente a tentativa de realização desse antigo projeto que teve, como desfecho, a sua derrota e a sua morte em 1578, aos 24 anos de idade, na batalha de Alcácer Quibir. Acontece que o desastre militar de D. Sebastião se projetou, dos terrenos mais grosseiros e acidentados do real histórico, para as paragens superiores do mito. Como nenhum dos sobreviventes da expedição ao Marrocos viu a cena da morte do rei, o seu cadáver não foi identificado com precisão e nunca ninguém encontrou a sua armadura e as suas armas, correu então velozmente, pelas terras de Portugal, a versão de que o rei não havia sido morto. Entrando no circuito da já referida conjuntura de messianismo luso-judaico, a narrativa adquiriu rapidamente um estatuto mitológico. Como escreveu Charles Boxer, em O Império Colonial Português, D. Sebastião passou a ser visto como “um herói trágico de proporções épicas, cujo desaparecimento era apenas temporário, e que voltaria um dia para redimir o desastre de Alcácer Quibir, conduzindo a nação a novos apogeus de conquista e glória”. Por esse caminho, deu-se a identificação da figura de D. Sebastião com o Encoberto, o rei-messias das trovas proféticas do Bandarra. Assim configurado, o mito sebastianista encontrou solo mais do que propício para se aprofundar e florescer, como utopia redentora gerada no momento mesmo em que Portugal passou a amargar a

dominação espanhola. O mito assumiu então uma clara dimensão política. Era o sebastianismo restaurador, com as trovas do Bandarra funcionando, na boa definição de José Augusto Seabra, como “palavras de passe da Resistência”. Dito de outro modo, o sebastianismo se converteu não só em refúgio e trincheira de um sonho português para Portugal, como em profecia libertária, anúncio de uma incomparável grandeza no futuro. As coisas assumiram tais proporções que a Restauração de 1640 foi vista como uma confirmação óbvia das trovas do sapateiro de Trancoso. Fala José Hermano Saraiva, na sua História Concisa de Portugal: “Considerado o profeta nacional, o sapateiro foi venerado como santo. O arcebispo de Lisboa autorizou a colocação de uma imagem de Bandarra num altar da cidade. D. João IV teve de prometer que, se D. Sebastião voltasse, lhe entregaria o trono”. Vieira foi a personagem mais célebre desse messianismo lusitano. Mas propondo uma leitura própria, pouco “ortodoxa”, se assim se pode dizer, dos mitos que então se cristalizavam. Na verdade, Vieira os adaptava, ou os relia, em função das injunções mais concretas da realidade em que estava imerso. Foi assim que traduziu, em termos próprios e práticos, o regresso do Encoberto e a perspectiva do Quinto Império. Contrariando conjunturalmente a corrente sebastianista, pregou que o Encoberto era ninguém menos que o rei D. João IV, que estava no trono. Quando D. João IV morreu, Vieira não recuou: o rei ressuscitaria para comandar o estabelecimento do Quinto Império. E o que seria este? A utopia de que o império missionário português iria fazer com que a palavra de Deus se encarnasse na história, dominando o planeta. Uma utopia “igualitarista”, em última análise, já que – como está dito no Sermão de Santo Antônio, pregado em Lisboa em 1642 – “a Lei de Cristo é uma lei que se estende a todos com igualdade”. O que estava em questão, naquele caso particular, era a carga tributária, que incidia unicamente sobre o povo. Mas o discurso vieiriano era de longo alcance. E ele foi definitivo: “Se os três estados do Reino [nobreza, clero, povo], atendendo a suas preeminências, são desiguais, atendam a nossas conveniências, e não o sejam. Deixem de ser o que são, para serem o que é necessário, e iguale a necessidade os que desigualou a fortuna”. Nota-se facilmente como em Vieira se mesclavam o mítico e o político, o realista e o profético, o visionário e o pragmático. Vimos, por exemplo, que ele trouxe a profecia do Encoberto para o momento histórico-político lusitano, encarnando-a em D. João IV – num sermão que, de resto, seria recriado poeticamente por Gregório de Mattos: “Ouçam os sebastianistas/ ao profeta da Bahia”... “que em prosa os compôs Vieira/ traduziu em versos Mattos”. Na formulação de José Augusto Seabra – em Pessoa e Vieira: Dois Profetas Messiânicos, estudo incluído no volume O Heterotexto Pessoano – Vieira quer sempre “transpor para a realidade referencial o que é do domínio do mito”. Daí a natureza singular de seu discurso poético-profético: “O messianismo judaico vem, através da inspiração de Bandarra, cruzar-se com o cristão, numa espiritualidade cada vez mais liberta da estreiteza eclesial, mas ao mesmo tempo mais enraizada no concreto histórico e fecundando a sua ação prática”. Séculos mais tarde, Fernando Pessoa, que se definia como “nacionalista místico” e “sebastianista racional”, vai sentir em cheio, à flor e ao fundo de si mesmo, o impacto do ideário vieiriano. Fascinado pela “grande certeza sinfônica” daquela prosa parenética (“aquele movimento hierático da

nossa clara língua majestosa, aquele exprimir das idéias nas palavras inevitáveis, correr da água porque há declive, aquele assombro vocálico em que os sons são cores ideais – tudo isso me toldou de instinto como uma grande emoção política”, confessou o poeta, em seu Livro do Desassossego), Pessoa vai redimensionar o messianismo lusitano, situando não mais no império, mas na língua portuguesa, a realização do Quinto Império, numa visão que será retomada por Caetano Veloso em sua composição Língua. Caetano cita Pessoa: “minha pátria é minha língua”. Pessoa, por sua vez, perguntava-se – e respondia: “Imperialismo de poetas? Seja”. E Caetano: “sejamos imperialistas, sejamos imperialistas”. Em Sebastianismo: Imagens e Miragens, Eduardo Lourenço flagrou: “Mas o Quinto Império com que [Fernando Pessoa] sonha é um império cultural. E desse império e não de outro talvez seja ele mesmo o D. Sebastião”. Ainda Lourenço, com a elegência de sempre: “Esse D. Sebastião-Pessoa não anuncia mais que um império cultural sem imperialismo de culturas nem de verdades, mero espaço da absoluta liberdade de cultivar as múltiplas e inconciliáveis ‘verdades’, que, na ausência definitiva de Deus, nos servem de simulacros plausíveis e implausíveis do verdadeiro”. Para, então, finalizar: “Assim, o que começou como um sonho de um império redivivo termina com Pessoa em império de sonho”. Mas aqui estamos já nos domínios mais sutis (e quiçá mais duradouros) da poesia. Sim. Vieira não foi somente o militante das grandes causas públicas, nem só o estratego pragmático-messiânico a sonhar com a chegada de um reino universal de fraternidade, onde os seres humanos se vissem sem distinções de nobreza ou de cor. Ele aparece ainda, a nossos olhos, como produtor/criador textual, arquitetando e tecendo a prosa esplendorosa dos seus sermões. Nunca ninguém havia escrito assim no idiomaterno. E foi justamente em função dessa viagem de Vieira pela dimensão estética da linguagem que Fernando Pessoa o chamou, sem medir medidas, o “imperador da língua portuguesa”. Eis aqui o poema, tal como publicado no livro Mensagem, e mantida, é claro, a ortografia pessoana: ANTONIO VIEIRA O céu strella o azul e tem grandeza. Este, que teve a fama e à glória tem, Imperador da língua portuguesa, Foi-nos um céu também. No immenso espaço seu de meditar, Constellado de fórma e de visão, Surge, prenuncio claro do luar, El-Rei D. Sebastião. Mas não, não é o luar: é luz do ethereo. É um dia; e, no céu amplo de desejo, A madrugada irreal do Quinto Império Doira as margens do Tejo.

Falamos de Gregório versificando Vieira. Esta é a dupla fundamental. A dupla que inaugura a

criação literária brasileira. Mas há que fazer uma distinção. O “texto criativo” começa, em nossas latitudes tropicais, com a produção poética ameríndia. O que se inicia, com a lírica de Anchieta, o poeta-missionário nascido nas Canárias, e com os textos de Vieira e Gregório, é a “literatura”, um dos modos possíveis da criação textual, fundado em modelo greco-latino. E aqui cabe uma advertência. É bobagem, falácia “historicista”, pensar que a “literatura brasileira” teve um desenvolvimento embriológico, vindo de uma suposta infância para uma suposta maturidade. Como enfatizou Haroldo de Campos, em O Seqüestro do Barroco na Formação da Literatura Brasileira: o Caso Gregório de Mattos, a literatura brasileira não conheceu uma fase infantil. “Nossa literatura, articulando-se com o Barroco, não teve infância (in-fans, o que não fala). Não teve origem ‘simples’. Nunca foi in-forme. Já ‘nasceu’ adulta, formada, no plano dos valores estéticos, falando o código mais elaborado da época”. Em tela, o “xadrez de estrelas” de Antonio Vieira e a sátira, a “musa praguejadora” de Gregório de Mattos, o Boca do Inferno. Ninguém terá o direito de ser suficientemente tolo para dizer que eles, Gregório e Vieira, foram o nosso jardim-de-infância literário – seria muito mais sensato afirmar o contrário. E não por acaso empreguei o sintagma “xadrez de estrelas”. É uma expressão que aparece no Sermão da Sexagésima, de Vieira, que é um sermão mas é também um breve tratado de estilística, onde o autor procura definir o que deve ser o estilo do pregador. Curiosamente, neste sermão, em que cuida de delinear a forma eficaz desse gênero discursivo, de modo que possa fazer frutificar no mundo a palavra divina, Vieira parece estar falando contra ele mesmo. O que se diz aí é que “o estilo há de ser muito fácil e muito natural” – e, no entanto, o sermão em que isto é dito poderá sempre ser citado como um exemplo de agudeza verbal, de artificialização estética da linguagem. Vieira fala, ainda, contra os “estilos modernos” – mas o faz na linguagem “moderna” da época, o barroco. E, lá pelas tantas, ele diz que o mais antigo pregador que houve no mundo foi o céu – que o céu tem sermões, que o céu tem palavras. “As palavras são as estrelas, os sermões são a composição, a ordem, a harmonia e o curso delas”. Ao pensar a terra semeada de trigo e o céu semeado de astros, Vieira diz que o sermão deve ser ordenado, mas como as estrelas. E dispara: “Não fez Deus o Céu em xadrez de estrelas, como os pregadores fazem o sermão em xadrez de palavras”. É uma contradição. A virtude suprema de Vieira era compor o sermão em xadrez de palavras. O que reluz, no céu da sua fala, são estreletras dispostas em desenho rigoroso. Ele foi e é “imperador da língua portuguesa” exatamente porque foi e é um enxadrista estelar. O outro lance esteve, como disse, nos brilhos e nas gargalhadas da “musa praguejadora” de Gregório de Mattos, o Boca do Inferno, irmão do jesuíta Eusébio de Mattos e amigo do padre Antonio Vieira. (Sua vida foi mapeada, na medida do possível, por Fernando da Rocha Peres, em Gregório de Mattos e Guerra: uma Re-Visão Biográfica). Filho de uma família muito bem situada na hierarquia social baiana – os Mattos eram cristãos velhos que conheciam a governança, possuíam terras, engenho e escravaria – educado inicialmente no Colégio da Bahia, dos jesuítas, e depois na Universidade de Coimbra, onde recebeu o título de “doutor”, Gregório acabou se convertendo no maior poeta satírico que a língua portuguesa produziu, em seu avanço quinhentista-seiscentista pelo mundo. Mas isso depois de uma conversão – aquela que o levou, contra os seus ensaios carreiristas,

às difíceis realidades brasileiras e ao Português do Brasil, então em movimentos quase que préconstelacionais da formação de um discurso próprio, fruto impuro dos trópicos. É o Gregório barroco-tropical ou barroco-popular, entidade poética em que se metamorfoseou a nossa personagem, depois de dar um adeus de “mão fechada” a Lisboa, desvencilhando-se de posturas supostamente “cultas” e das máscaras de juiz e jurista, que afivelara em conjunto com a careta nupcial. Ou seja: o Gregório que temos – e o que conta para nós – já não é o representante de Salvador nas cortes lisboetas de 1668, a lutar pela implantação de uma “Universidade do Brasil” e a defender os plantadores do Recôncavo que se queriam mais leves de tributos. E sim o boêmio incorrigível da década de 1680, de gadelha ao vento e viola à mão, misturando, em linguagem e ritmo de originalidades incontornáveis, tanto pedidos confortáveis ao poder como passos ricos de riscos, a um grau do degredo em Angola, que enfim se consumou. Este é o Gregório que interessa. O poeta que mergulhou, funda e profundamente, na vida seiscentista da Cidade da Bahia e seu Recôncavo, despachando pedradas para todos os lados. E que descreveu nos seguintes termos, com referências à atual Praça Municipal e ao Terreiro de Jesus, a Salvador do século XVII: A cada canto um grande conselheiro, Que nos quer governar cabana e vinha; Não sabem governar sua cozinha, E podem governar o mundo inteiro. Em cada porta um bem freqüente olheiro, Que a vida do vizinho, e da vizinha Pesquisa, escuta, espreita, e esquadrinha, Para levar à Praça, e ao Terreiro. Muitos mulatos desavergonhados, Trazidos pelos pés os homens nobres, Postas nas palmas toda a picardia. Estupendas usuras nos mercados, Todos, os que não furtam, muito pobres, E eis aqui a Cidade da Bahia.

Escrevendo no começo do século XX, o crítico Araripe Júnior, com todos os seus preconceitos, soube ver muito bem o que acontecera. Gregório se transformara. Era agora não o doutor “reinol”, e sim o “reles boêmio, quase louco, sujo, mal vestido, a percorrer os engenhos do Recôncavo, de viola ao lado, tocando lundus e descantando poesias obscenas”. Cantor dos prazeres da farra e do sexo, da culinária e da vagabundagem, não raro pesando a mão em seus ataques a clérigos e prostitutas, dirigiria ele, ao então governador Câmara Coutinho, versos que, inesperadamente pontuados por um “amém”, ainda hoje nos fascinam pelos extremos do despudor e da violência: Sal, cal e alho

caiam no teu maldito caralho. Amém. O fogo de Sodoma e Gomorra em cinzas te reduzam essa porra. Amém. Tudo em fogo arda, tu, e teus filhos, e o Capitão da Guarda.

O que aconteceu entre nós no século XVII, com Antonio Vieira e Gregório de Mattos, foi um encontro fascinante, e que se repetirá, em termos gerais, no futuro de nossa história cultural. Para falar de um modo genérico, deu-se ali uma dialética entre o cosmopolita e o antropológico, numa circunstância histórica, social e ecológica que teve a sua especificidade. De uma parte, a linguagem internacional do barroco; de outra, a realidade dos trópicos brasileiros, marcada desde os seus primórdios pela mestiçagem genética e pelo sincretismo cultural. A antropologia barroca de Vieira nasce justamente desse lugar em que se cruzam a razão universal católica e a novidade humana e social da vida brasileira. É assim que os textos vieirianos vão se ocupar de questões relativas à natureza humana, à diversidade das raças e culturas, ao problema da escravidão. É o discurso barroco-católico num espaço historicamente inédito: o novo mundo etnocultural dos trópicos. Veja-se, a propósito, a seguinte passagem de um dos sermões da série Maria, Rosa Mística, proferido na Cidade da Bahia (África e africanos são referidos aí, segundo o uso comum da época, como Etiópia e etíopes – expressões gregas que têm o significado de ‘rostos escuros’): “Uma das grandes coisas que se vêem hoje no Mundo, e nós pelo costume de cada dia não admiramos, é a transmigração imensa de gentes e nações etíopes, que da África continuamente estão passando a esta América. A armada de Enéias, disse o príncipe dos poetas, que levava Tróia a Itália; (...); e das naus que dos portos do mar Atlântico estão sucessivamente entrando nestes nossos, com maior razão podemos dizer que trazem a Etiópia ao Brasil. (...). Os Israelitas atravessaram o Mar Vermelho e passaram da África à Ásia, fugindo do cativeiro; estes atravessaram o mar Oceano na sua maior largura, e passam da mesma África à América para viver e morrer cativos. (...). Os outros nascem para viver, estes para servir; nas outras terras do que aram os homens e do que fiam e tecem as mulheres, se fazem os comércios; naquela o que geram os pais e o que criam a seus peitos as mães, é o que se vende e se compra. Oh trato desumano, em que a mercancia são homens! (...). Estes homens não são filhos do mesmo Adão e da mesma Eva? Estas almas não foram resgatadas com o sangue do mesmo Cristo? Estes corpos não nascem e morrem como os nossos? Não respiram com o mesmo ar? Não os cobre o mesmo céu? Não os aquenta o mesmo sol? Que estrela é logo aquela que os domina, tão triste, tão inimiga, tão cruel?”. Mas aqui devemos fazer um esclarecimento. O texto de Vieira não é “puro”. Não se move na esfera tranqüila, higiênica, da tese universitária. Ao contrário, é um discurso feito no front. Vieira se movimenta, simultaneamente, em dois planos: o teórico e o da intervenção política imediata. Daí que seja um esporte acadêmico supérfluo ficar falando de suas “contradições”. Veja-se a sua postura diante da questão indígena. De uma parte, ele é o teórico que condena a escravidão. De outra, é o homem de ação colocado diante do fato concreto do cativeiro, tentando livrar, na medida do possível, a cara dos índios. Ou seja: há o Vieira generalista, que defende o bem maior. E o Vieira pragmático,

que procura saídas, ou a única opção que temos, em matéria política: o mal menor. Gregório é um outro momento dessa dialética barroco/tropical. Leia-se, como exemplo extremo, o texto que aparece, na edição de James Amado, sob o “título” de “Disparates na língua brasílica a uma cunhã, que ali galanteava por vício”: Indo à caça de tatus encontrei quatimondé na cova de um jacaré tragando treze teiús eis que dois surucucus como dois jaratacacas vi vir atrás de umas pacas e a não ser um preá creio que o tamanduá não escapa às gebiracas. De massa um tapiti um cofo de sururus dois puçás de baiacus samburá de murici com uma raiz de aipi vos envio de Passé e enfiado num imbé guaiamu e caiacanga que são de jacaracanga bagre, timbó, inhampupê. Minha rica cumari minha bela camboatá como assim de Pirajá me desprezais tapiti: não vedes que, murici, sou desses olhos timbó amante mais que um cipó desprezado inhampupê, pois se eu fora zabelê vos mandara um miraró.

Foi a imersão no jogo de efeitos recíprocos entre o barroco e o trópico que fez de Gregório de Mattos, de resto, não apenas um poeta erudito, de “cultíssimas profecias”, mas um poeta-músico (como, aliás, o tratou recentemente o crítico José Ramos Tinhorão, em sua História Social da Música Popular Brasileira), circulando pelo Recôncavo com a sua viola de cabaça, a cantar o que via à sua volta. Gregório compunha, tocava e cantava, produzindo criações originais, que faziam dele um produtor barroco, poeta da “musa crioula”, diferente de tudo o que se gerava na Península Ibérica. O romancista Xavier Marques disse bem: a obra gregoriana “reproduz abreviadamente a fisionomia

etnográfica do país”. E não era Gregório o único poeta-músico da Bahia seiscentista, é bom que se diga. Ele mesmo fala, num dos seus cantares, de um outro personagem – curiosamente, chamado Gil (e não por acaso coloquei essa passagem gregoriana na abertura do livro Gilberto Gil Expresso 2222, que organizei no início da década de 1980): Assim fomos caminhando sobre os dous cavalos áscuas alegres como nas páscoas, ora rindo, ora zombando: eu que estava perguntando pela viola, ou rabil, quando ouvimos bradar Gil, que recostado à guitarra garganteava a bandarra letrilhas de mil em mil.

Mas eu não poderia encerrar esse tópico sem uma referência a outro poeta baiano, Manoel Botelho de Oliveira, descendente, em linha direta, dos gongorinos ibéricos. Sua poesia não é comparável à de Gregório. Mas a sua competência – o nível da fatura de seus versos –, não pode ser desprezada. Dele, disse Mário Faustino, em Evolução da Poesia Brasileira: “Embora não inovasse, Botelho não se limitava a reproduzir, embriagadamente, as proezas discursivas de seus predecessores e contemporâneos. A consciência profissional do poeta é sua qualidade maior: ver os prólogos em que ele considera a poesia de sua época, bem como os problemas específicos de um poeta brasileiro, a experiência poética européia em contacto com o novo mundo. Manoel Botelho de Oliveira foi, de todos os nossos gongóricos, o melhor aparelhado para sê-lo: verdadeiro erudito pós-renascentista, o homem, entre outras sapiências, escrevia e compunha perfeitamente em português, espanhol, italiano e latim... Manoel Botelho de Oliveira é nosso primeiro verse-maker de vulto”. Para se ter uma idéia, leia-se: Querendo ter amor ardente ensaio, Quando em teus olhos seu poder inflama, Teus sóis me acendem logo chama a chama, Teus sóis me cegam logo raio a raio. Mas quando de teu rosto o belo maio Desdenha amores no rigor que aclama, De meus olhos o pranto se derrama, Com viva queixa, com mortal desmaio. De sorte, que padeço os resplendores, Que em teus olhos luzentes sempre avivas, E sinto de meu pranto os desfavores:

Cego me fazem já com ânsias vivas De teus olhos os sóis abrasadores, De meus olhos as águas sucessivas.

Veja-se, ainda, o trecho seguinte do poema A Ilha de Maré, onde Mário Faustino sentiu, imediatamente, o influxo das Soledades do velho Góngora: Jaz em oblíqua forma e prolongada A terra de Maré toda cercada De Netuno, que tendo o amor constante, Lhe dá muitos abraços por amante, E botando-lhe os braços dentro dela A pretende gozar, por ser mui bela.

Bem. Aqui chegando, devo sublinhar duas coisas. Em primeiro lugar, é possível dizer que se inicia, nesse período, o processo de delimitação de nossa autonomia estético-cultural. Temos no século XVII, entre outras coisas, o poeta-músico Gregório de Mattos e os negros bantos. E o que vai se formar a partir daí, na Cidade da Bahia e seu Recôncavo, é um mundo essencialmente afrobarroco. Em segundo lugar, essa configuração afro-barroca vai se projetar, de modo fundo e profundo, no futuro da criação cultural baiana, para florescer, com especial nitidez, no século XX. É verdade que a projeção do barroco, cruzando séculos, não é um fenômeno exclusiva ou especificamente baiano. Longe disso. Diz respeito, em amplo arco, à produção cultural das Américas de língua portuguesa e espanhola. Em seu recente livro Barroco e Modernidade, a estudiosa Irlemar Chiampi chega a afirmar, com clareza, que será definitivamente falho qualquer debate acerca da modernidade cultural americana que não tome, como um de seus temas centrais, a questão do barroco. Está certo. E a Bahia afrobarroca integra, à sua maneira e com os seus vistosos traços distintivos, essa constelação de cultura que vai das volutas do Aleijadinho às volúpias de Lezama Lima.

PANORAMA FINISSECULAR Em sua História Social de Salvador, Wanderley Pinho escreveu que a Cidade da Bahia “nunca se isolou”. Ao contrário, esteve sempre ligada, desde a sua mais remota origem, “ao Recôncavo que a envolve, ou para que se expande”. O que devemos dizer é que, ao longo do século XVII, ambos, cidade e Recôncavo, não apenas cresceram – aprofundaram os seus múltiplos vínculos. Ainda para usar palavras de Pinho, a sociedade baiana, ao chegar ao final daquela centúria, “estava nascida e formada, já crescida, forte e adulta”. Conhecendo Salvador nessa época, um viajante francês, Froger, a definiu como “grande, bem

construída e bastante povoada”. Um pouco antes dele, um outro estrangeiro, o aventureiro inglês William Dampier, já a tratava como “a mais importante cidade do Brasil, seja em relação à beleza de seus edifícios, seu tamanho, ou seu comércio e renda”. É até surpreendente, na verdade, que isso tenha acontecido. Afinal, Salvador foi construída por um povo que não a amava. É certo que Diogo Álvares Caramuru nunca desejou voltar para Portugal, mas não foi esse o caso da vasta maioria dos brancos que aqui desembarcaram, a partir do início do processo de colonização oficial. Eles queriam apenas fazer alguma fortuna e, dinheiro no bolso, retornar ao reino. O trópico era visto como uma espécie de degredo. E de um degredo muitas vezes infernal. Mesmo as autoridades coloniais pareciam estar aqui cumprindo uma pena. À maneira de Thomé de Sousa, contavam ansiosamente os dias, não vendo a hora de pegar o navio da volta. O próprio Gregório de Mattos, “capadócio de gênio” que morava numa casa perto do Terreiro de Jesus, se lamentou por estar na Bahia, na “peste do pátrio solar”, como diz num dos seus poemas. Além disso, não podemos nos esquecer do fato de que, no século XVII, da elite dirigente à massa de escravos, Salvador não foi uma cidade de baianos – mas, ao contrário, uma cidade de estrangeiros, fossem eles portugueses ou africanos. Frei Vicente do Salvador definiu com vivacidade essa realidade baiana, ao dizer que os povoadores, “por mais arraigados que na terra estejam e mais ricos que sejam, tudo pretendem levar a Portugal e, se as fazendas e bens que possuem souberam falar, também lhe houveram de ensinar a dizer como aos papagaios, aos quais a primeira coisa que ensinam é: papagaio real para Portugal, porque tudo querem para lá”. Tal postura de desapego, e mesmo de desprezo pelo trópico, contagiava, ainda, os que tinham nascido aqui. Diz o frei: “E isto não têm só os que de lá [de Portugal] vieram, mas ainda os que cá nasceram, que uns e outros usam da terra, não como senhores, mas como usufrutuários, só para a desfrutarem e a deixarem destruída”. Conseqüência – e grave: “nem um homem nesta terra é repúblico, nem zela ou trata do bem comum”. Aliás, alguns dos sérios problemas urbanos da Salvador seiscentista se tornariam crônicos com o passar do tempo, para chegar, inclusive, aos nossos dias. O problema da sujeira, por exemplo. O costume de jogar lixo nas ruas, emporcalhando as vias públicas, era generalizado já naquela época. Algumas ruas mais estreitas, mal pavimentadas, chegavam mesmo a se converter em depósitos de lixo. E ainda hoje baianos supostamente “educados” parecem confundir rua e esgoto. Um outro problema que atravessou os tempos foi o dos desabamentos provocados pelas chuvas. Casas espetadas nas encostas eram sistematicamente arrastadas pelas enxurradas mais fortes. No dia 14 de agosto de 1671, por exemplo, trinta pessoas morreram em conseqüência disso. E já naquele tempo se discutia a necessidade da realização de obras de engenharia destinadas à contenção de encostas. Mas, enfim, lá estava a cidade, com as suas construções religiosas e militares, reunindo, em seu espaço, cerca de vinte mil habitantes. Rebento característico do urbanismo medieval português (os lusitanos praticamente não tomaram conhecimento do urbanismo renascentista) – com a sua típica divisão em cidade alta e baixa, as suas ladeiras empinadas, as suas ruas irregulares –, abrigaria ela, entre os séculos XVII e XVIII, a linguagem e os frutos da arquitetura e do urbanismo barrocos. E deixando-se definir como uma cidade “talássica”, como Gilberto Freyre gostou de dizer. Isto é, uma cidade que ia desenvolvendo, em todos os sentidos e direções, o gosto e o hábito das coisas do mar.

Wanderley Pinho, a propósito, amplia o quadro. Fala da “formação da alma marítima do cidadão da Bahia e seu Recôncavo”. E está certo. No século XVII, por sinal, o Recôncavo já contava com algumas “freguesias”. Graças à expansão do açúcar, exibia, aqui e ali, as suas primeiras vilas. A Vila de Nossa Senhora do Rosário do Porto de Cachoeira, por exemplo, já pensava até mesmo, àquela altura, em construir uma nova matriz, deixando para trás a bela Capela da Ajuda, que encimava uma colina de acesso algo difícil. Por falar em Cachoeira, o Recôncavo já não era, no século XVII, sinônimo exclusivo de açúcar. As plantações de fumo haviam se estabelecido – e ganhavam importância a cada dia que passava. Espalhando-se pelas terras do Paraguaçu, fizeram nascer paróquias como as de Água Fria, Santo Estêvão de Jacuípe e São Pedro do Monte de Muritiba. E o produto, sob a forma de fumo-de-corda, era exportado para Portugal e para a África. Além disso, havia as culturas alimentícias voltadas para o consumo local – o que significa dizer que o espaço geográfico do Recôncavo fora submetido a uma espécie de hierarquização das suas terras. Mas o que contava, mesmo, era o açúcar – “sua alvíssima alteza”. Como disse o jesuíta Simão de Vasconcellos, em sua Crônica da Companhia de Jesus do Estado do Brasil, o açúcar fazia “toda a doçura, e todo o riso do rei, e do reino”. E era na produção dos canaviais que residia a riqueza baiana. Ao longo do século XVII, houve, aqui e ali, retrocessos. Mas nada que realmente tivesse levado à derrocada, ou ameaçado o açúcar. Nada de catastrófico. Pelo contrário. Durante aquela centúria, novas terras foram conquistadas, o número de engenhos cresceu, as rendas aumentaram. Mesmo com o início da concorrência do açúcar antilhano, a produção baiana prosseguiu alta, permitindo a acumulação de riquezas e a ostentação do luxo, em meio aos meios senhoriais da Bahia de Todos os Santos. As epidemias, de qualquer modo, continuaram castigando a população. A varíola voltou a atacar em massa. E, em 1686, tivemos um surto de febre amarela, então chamada “a peste da bicha”. Foi um horror. Sebastião da Rocha Pita, que vivia na época, fez um relato da peste em sua História da América Portuguesa. Conta ele que “era o mesmo adoecer que em breves dias acabar, lançando pela boca copioso sangue”. Contavam-se os mortos pelos enfermos. “Estavam cheias as casas de moribundos, as igrejas de cadáveres, as ruas de tumbas”, escreve, ainda, o historiador. Foi então que o povo da cidade se voltou para São Francisco Xavier, fazendo-lhe promessas solenes. A peste recuou. E foi desde aí que o santo – um jovem descendente da aristocracia basca que se fez missionário jesuíta em terras do Japão e Sri Lanka – se tornou padroeiro da Cidade da Bahia. Em síntese, é isso. Apesar de todos os obstáculos e de todos os revezes – das invasões holandesas aos surtos de varíola (1665-1666 e 1680-1684) e febre amarela – um balanço geral aponta que a Cidade da Bahia e seu Recôncavo prosperaram ao longo do século XVII. Mas é claro que tal prosperidade não existiu para todos. Em Salvador, os moradores mais pobres viviam ainda em palhoças de barro, cobertas com folhas de coqueiros. E os escravos, ainda que pertencentes a exescravos que haviam conseguido a alforria, eram esfolados. “Como a cidade é alta e baixa e em conseqüência os carros são impraticáveis, os escravos ali fazem a função de cavalos”, escrevia o francês Froger, já quase à entrada do século XVIII.

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À Margem da Margem Se o século XVII foi o momento da consolidação da colonização portuguesa, a centúria seguinte representou a época do questionamento decisivo do sistema colonial. Os “brasileiros” começavam a querer atirar fora a dominação portuguesa. No plano internacional, Portugal jogou a toalha. Transformou-se em vassalo de um império britânico em formidável processo de expansão. A Cidade da Bahia, por sua vez, sofreria um golpe rude, condenada a assistir à transferência da capital colonial para o Rio de Janeiro. Mas este foi também mais um século de luta contra a escravidão – dos quilombos da Cidade da Bahia e seu Recôncavo à chamada “Revolução dos Alfaiates”, conspiração popular que se colocou sob o signo dos ideais mais radicais da Revolução Francesa. E o tempo em que se iniciou a chegada, no trópico baiano, dos jejes e dos nagôs, povos que transformariam, em profundidade, as nossas vidas.

FORA DE FOCO Diversos historiadores localizam, na primeira metade do século XVI, o ponto mais alto da presença de Portugal no mundo. Para Vitorino de Magalhães Godinho (Estrutura da Antiga Sociedade Portuguesa), por exemplo, é entre 1527 e 1531 que se pode situar o apogeu do império oceânico português. De modo semelhante, embora um pouco mais elástico, Frédéric Mauro considera que os reinados de D. Manoel I e D. João III “marcam o apogeu da grandeza política portuguesa, do estado imperial moderno, mercantilista e empreendedor”. Dessa época em diante, o processo português vai se colocando, de modo cada vez mais nítido, sob o signo do declínio. Observamos, no capítulo anterior, que o grande negócio do açúcar brasileiro era, na verdade, mais holandês que lusitano. Vimos também que, de 1580 a 1640, Portugal

viveu sob domínio espanhol. Veio então a Restauração. Mas o que aconteceu ali não foi o desejado retorno a um esplendor perdido. O esperado renascimento econômico português, depois de assentada a paz com a Espanha e a Holanda, nunca chegou a se materializar. Ao contrário, tivemos a crise do final do século XVII, quando Portugal assistiu não só à queda dos preços de seus produtos coloniais, como à elevação dos preços dos produtos que importava do Norte europeu. Assim, pode-se dizer que, a partir de 1640, Portugal recuperou apenas a sua autonomia política. Mas para ir mergulhando, sempre mais fundo, numa situação de subordinação ou de dependência econômica. Até se ver inteiramente submetido à nova potência mundial – a Inglaterra. O Tratado de Methuen, assinado pelos dois países em dezembro de 1703, foi o retrato consumado dessa submissão lusitana. No dizer de Celso Furtado, Portugal se transformara “numa dependência agrícola da Inglaterra”. Esta, por sua vez, cobria e recobria, com os seus produtos têxteis, as terras do velho reino. Em sua recente História do Brasil, Boris Fausto abreviou o quadro de modo claro e direto: “Na virada do século XVIII, a dependência lusa com relação à Inglaterra era um fato consumado. Para ficar em um exemplo apenas, o Tratado de Methuen... indica a diferença entre um Portugal agrícola, de um lado, e uma Inglaterra em pleno processo de industrialização, de outro. Portugal obrigou-se a permitir a livre entrada de tecidos ingleses de lã e algodão em seu território, enquanto a Inglaterra comprometeu-se a tributar os vinhos portugueses importados com redução de um terço do imposto pago por vinhos de outras procedências”. Mas mesmo esse “privilégio” concedido aos vinhos lusitanos tinha endereço certo – “É bom lembrar que a comercialização do vinho do Porto estava nas mãos dos próprios ingleses”. Em resumo, como disse um observador radical, Portugal passou a ser “a mais excelente colônia da Grã-Bretanha”. Ou seja: no novo contexto internacional que se desenhou às primeiras luzes do século XVIII, Portugal estava, sob todos os aspectos, afastado do centro da cena principal. Era uma nação marginal. Fora de foco. E enquanto a Inglaterra se encaminhava a passos largos e firmes para a Revolução Industrial, o velho reino lusitano permanecia preso a estruturas antigas e a formas tradicionais de produção e exploração coloniais. Na verdade, devemos dizer que, na centúria de setecentos, Espanha e Portugal são impérios em decadência. A Inglaterra, ao contrário, é um império em expansão. E logo Portugal, que dependia da proteção inglesa diante da França e da Espanha, se converterá numa espécie de súdito desse império britânico. É certo que, no final do século XVII, explodiram em brilhos, no Brasil, as jazidas auríferas de Minas Gerais. Portugal, vivendo dias difíceis, respirou aliviado. Mas por pouco tempo. A metrópole, então sob o longo reinado (1706-1750) de D. João V, não soube lidar com a súbita riqueza encontrada na colônia. Partiu para a farra, fazendo gastos tão grandes quanto extravagantes. O ouro brasileiro cobria as despesas – e ainda era canalizado para tapar os rombos da balança comercial portuguesa, sempre deficitária em suas relações com a Inglaterra, a França, a Holanda e a Espanha. Para completar o quadro, cometia-se um equívoco espetacular. Em vez de investir numa indústria própria, Portugal, montado no ouro brasileiro, preferia comprar manufaturas estrangeiras. A bem da verdade, houve um ensaio de industrialização lusitana, com o Conde de Ericeira – mas o programa foi abandonado com o suicídio do seu promotor, em 1690. E o ouro fez com que os portugueses

ficassem ofuscados, deixando de lado a rotina industrial, para estar mais interessados em palácios do que em fábricas. Por tudo isso, a riqueza das minas brasileiras ia desembocar em outras praças européias. Em resumo, podemos dizer que, assim como o açúcar brasileiro fora um negócio principalmente holandês, com Amsterdã no papel de centro de redistribuição do produto para todo o Norte europeu, o ouro brasileiro seria, principalmente, um negócio britânico. No comentário do historiador português José Hermano Saraiva, a “maré alta” do ouro passou por Portugal “como vento e deixou o país como dantes”. Ainda Saraiva, em sua História Concisa de Portugal: “O Tejo foi apenas a escala de passagem de valores que afluíam a regiões de economia mais desenvolvida, produtoras dos bens que os portugueses consumiam mas não sabiam produzir. A Inglaterra foi a mais beneficiada dessas regiões”. Ela drenava o ouro brasileiro não apenas via Portugal ou por expedientes legais. Entre outras coisas, comerciava diretamente com o Brasil - e apelava para o contrabando no próprio porto de Lisboa. Informa Charles R. Boxer que, em 1730, dois terços do volume de ouro que chegava a Lisboa tomavam, de imediato, o rumo de Londres. Daí o célebre desabafo do jesuíta Antonil: “a maior parte do ouro, que se tira das minas, passa em pó e em moedas para os reinos estranhos... salvo o que se gasta em cordões, arrecadas e outros brincos, dos quais se vêem hoje carregadas as mulatas de mau viver”. Houve, como se sabe, a reação pombalina. Um esforço de reação portuguesa com a subida, ao trono, de D. José I – e, ao poder, de Sebastião José de Carvalho e Melo, futuro Marquês de Pombal. É um dos capítulos mais estudados da história lusitana. Pombal achava que o problema de Portugal era a sua dependência em relação à Grã-Bretanha, que embolsava o ouro do Brasil. Tentou ele então, entre outras coisas, tornar eficaz a arrecadação de impostos na região aurífera; criar companhias comerciais privilegiadas, premiadas pela Coroa com o monopólio da área onde atuavam; fortalecer os comerciantes “nacionais”, de modo que eles pudessem competir com os britânicos, na trama comercial das colônias. Mas mesmo a virada pombalina teve que se render aos fatos da vida européia. A reconstruir uma Lisboa violentamente atingida pelo terremoto de 1755. E a se curvar diante do imperativo da dominação inglesa, que ficou mais do que claro no contexto da chamada Guerra dos Sete Anos. Também o Brasil vai passar por uma mudança em seu significado no plano internacional. Em Nova História e Novo Mundo, ao se perguntar pelas condições gerais das trocas econômicas intercontinentais, no século XVII, Frédéric Mauro responde: a Ásia já não desempenha, na economia européia, o papel que desempenhara no século anterior; a América Espanhola “encontra-se em recuo”, vivendo dias depressivos; a América Inglesa ainda se acha engatinhando. E o Brasil? Mauro: “o Brasil goza de um lugar privilegiado”. O século XVII é o tempo do pleno florescimento de nossa produção açucareira. É essa produção que dá vida ao comércio português e, em decorrência do tráfico de escravos, à economia africana. Era o Brasil, então, a zona agrícola mais importante do mundo atlântico. Mas esse posto será perdido, irrecorrivelmente, no decorrer do século XVIII. De uma parte, porque o poder econômico se transferiu, das antigas potências ibéricas, para a França e a Inglaterra, países agora hegemônicos. De outra, porque o açúcar das Antilhas inglesas e francesas

passou a concorrer com o produto brasileiro. Nessa época de franca expansão do mercado mundial, o açúcar permanece como o nosso principal produto de exportação. Mas o que é fundamental agora, para os centros vitais da economia européia, é o ouro de Minas Gerais, Goiás e Mato Grosso. E era muito ouro. Diz Magalhães Godinho que, em dez ou quinze anos, o Brasil fornecia mais ouro a Portugal do que todo o ouro que a América remetera, em 150 anos, aos espanhóis. O contrabando era, também, altamente significativo. Estima-se que, para 35 arrobas entradas legalmente em Portugal, 20 arrobas eram contrabandeadas. E boa parte desse ouro seguia, como vimos, para a Inglaterra. Numa obra hoje clássica dos estudos brasileiros, Formação Econômica do Brasil, Celso Furtado escreveu que, “do ponto de vista da economia européia em seu conjunto, o ouro do Brasil teve um efeito tanto mais positivo quanto o estímulo por ele criado se concentrou no país que melhor aparelhado estava para dele tirar o máximo proveito”. Furtado se refere à política inglesa de concentração de investimentos no setor fabril. E, ainda, ao fato dos bancos ingleses, ao receber a maior parte do ouro que então se produzia no mundo, terem transferido, de Amsterdã para Londres, o centro financeiro da Europa. Explicitando com todas as letras a tese de Furtado – hoje vista com reservas por alguns historiadores –, Andrade Arruda escreve: “Para os ingleses, o ouro brasileiro significou uma enorme disponibilidade de metal amoedado que, investido em setores estratégicos, teria papel de relevo na preparação da infraestrutura indispensável à Revolução Industrial”. Nessa nova estruturação do comércio mundial, com a Inglaterra se assenhoreando das operações atlânticas, configura-se um fenômeno importante para nós. Em seu Atitudes de Inovação no Brasil 1789-1801, Carlos Guilherme Mota abordou o assunto, observando que as transformações ocorridas no cenário europeu, ao incidir “poderosamente nas estruturas do sistema colonial português”, provocaram uma espécie de “internacionalização” do Brasil. O vínculo entre Inglaterra e Portugal permitia a penetração de mercadorias inglesas em nosso território – ou, mais precisamente, Portugal permitiu, em troca de proteção política e militar, que comerciantes ingleses passassem a negociar diretamente com o Brasil. E os britânicos não se contiveram nos limites da legalidade: “o Brasil tornou-se, por essa época, base de ação contrabandista inglesa para quase toda a América do Sul”. Essa “internacionalização” vai funcionar, obviamente, como um elemento de desintegração do sistema português de dominação. Não só porque produz uma fissura na relação metrópole-colônia, ao ferir o monopólio de comércio (o chamado “exclusivo colonial”), como também porque vai se desdobrar na dimensão das idéias, fazendo circular aqui as teses “subversivas” que então se multiplicavam pela Europa, dizendo respeito, entre outras coisas, aos ideais republicanos e aos anseios anticoloniais. Mas esse é um outro tema – e vamos examiná-lo adiante. Cheguemos, no entanto, à Bahia. Assim como Portugal foi deslocado do centro das decisões européias, a Cidade da Bahia e seu Recôncavo vão conhecer, ao longo do século XVIII, um progressivo processo de marginalização, que será oficializado de forma definitiva em 1763, com a transferência da capital colonial para o Rio de Janeiro. Para dizer em poucas palavras, foi um golpe rude. Não seria a Bahia, com o seu florescente desejo separatista, que comandaria o processo de

fixação de fronteiras, nem a questão, que principiava a aflorar, da unidade nacional. Assim, desde 1750, a Cidade da Bahia vira o seu poder diminuir, com a jurisdição do governador do Rio de Janeiro, Gomes Freire de Andrada, estendendo-se às capitanias de São Paulo, Minas Gerais, Goiás, Mato Grosso, Santa Catarina e Rio Grande do Sul, incluindo-se nesse rol a Colônia de Sacramento, já no Rio da Prata. Era, agora, a vez do Brasil Meridional. O governador da Cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro passava a ter um poder maior do que o do governador da Cidade do Salvador da Bahia de Todos os Santos. Duas coisas pesaram em tal eleição. Uma delas foi o ouro descoberto, na última década do século XVII, em Minas Gerais. E a outra – provavelmente, a mais importante – foi a questão lindeira, fronteiriça. Não seria um governador baiano que garantiria, num país carente de redes comunicacionais traduzíveis imediatamente em poder militar, a posse de lugares cada vez mais distintos – e distantes. Como veremos, ambos os fatores confluíram em direção a uma centralização político-administrativa da vida colonial, cujo núcleo se transferiu para a baía de Guanabara.

O ESPAÇO URBANO Frei Vicente do Salvador conta uma história interessante. Em inícios da segunda metade do século XVI, embora ostentasse o título de cidade, Salvador era no máximo um arraial, uma aldeia feita de palhoças. As casas eram baixas, modestas, construídas algo improvisadamente com os materiais mais à mão, de modo que se podia ouvir, na rua, o que era conversado dentro delas. Naquela época, à noite, havia o toque de recolher. Mas o governador geral Duarte da Costa, sucessor de Thomé de Sousa, gostava de dar os seus passeios noturnos, depois que a população se recolhia. Numa dessas andanças, ouviu o que não queria. Narra o frei: “...aconteceu uma noite que, andando rondando a cidade, ouviu que em casa de um cidadão se estava murmurando dele altissimamente, e depois que ouviu muito lhes disse de fora: senhores, falem baixo, que os ouve o governador”. Uma cena dessas jamais ocorreria no século XVIII. Salvador já havia se transformado, realmente, numa cidade. E numa cidade imponente, senhorial. O bairro da Praia, também chamado “Cidade Baixa”, corria tortuosamente da Preguiça em direção à Jequitaia, com prédios de três e até quatro andares. No alto, o burgo se estendia do Forte de São Pedro ao Convento da Soledade. Havia aí três praças - a da Piedade, a do Palácio (hoje, Praça Municipal), com a Casa da Moeda e a Casa da Câmara e Cadeia, a do Terreiro de Jesus – e “muitos edifícios nobres, grandes conventos, e templos ricos, e asseados”, segundo o relato de Vilhena. Mas, ainda de acordo com o cronista, não era só no “corpo da cidade” que estava a sua grandeza. Existiam já, naquela época, seis bairros: São Bento, Praia, Santo Antônio Além do Carmo, Palma, Desterro e Saúde. Construções religiosas e militares dominavam a paisagem. Igrejas como as de Nossa Senhora da Vitória, da Barroquinha, de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, da Sé Catedral, de Nossa Senhora

da Ajuda, de Nossa Senhora da Conceição da Praia, de São Francisco de Assis. Conventos como os de Nossa Senhora da Graça, de Nossa Senhora das Mercês, de Santa Clara do Desterro, de Nossa Senhora do Monte do Carmo, de Nossa Senhora da Soledade. Ou mosteiros como os de São Bento, de Santa Tereza, de Nossa Senhora da Piedade, de Nossa Senhora da Conceição da Lapa. Eram prédios e mais prédios erguidos para a glória de Deus. Não vamos fazer aqui uma listagem completa. Note-se, apenas, que, no século XVIII, a freguesia de Nossa Senhora da Penha de Itapagipe contava, como uma de suas “filiais”, com a Igreja do Senhor do Bonfim, já naquele tempo, segundo Vilhena, de “muita devoção”. Não era menos visível a existência de fortes e fortalezas. A começar pelo Forte de Santo Antônio, o “forte grande”, na Ponta do Padrão, onde hoje está o Farol da Barra. Essa construção – em cujas vizinhanças ficam os fortes de Santa Maria e São Diogo – deveria ser tomada como exemplo por aqueles que, vindo depois, decidiram se dedicar a exercícios de arquitetura. O que está ali é uma aula de como um prédio pode se implantar num terreno. Mas havia sobretudo, em termos arquitetônicos, uma preciosidade chamada Forte do Mar – talvez o castellum maritimum ou water kasteel dos escritos de Barleus –, parecendo flutuar sobre as águas da Bahia de Todos os Santos. A ele, o poeta modernista Oswald de Andrade dedicou os seguintes versos: “Panela de pedra da história colonial/ Cozinhando palmas”. Além disso, do castellum maritimum, viam-se os fortes do Barbalho, de Santo Antônio Além do Carmo, de São Bartolomeu da Passagem. Somando-se à pontuação visual desses prédios isolados, “monumentais”, surgiram nessa época alguns conjuntos urbanos, produtos notáveis do que se pode definir como um urbanismo barroco. O assunto merece comentário, quando nada pelo fato de que, até bem recentemente, ignorou-se a existência de um urbanismo barroco entre nós. Quem chamou a atenção para o fato foi Nestor Goulart Reis Filho, expert no assunto. Em suas Notas Sobre o Urbanismo Barroco no Brasil, ele contesta a visão tradicional que contrasta os urbanismos espanhol e português, nas Américas, atribuindo ao primeiro o culto da regularidade – e colocando o segundo sob o signo da desordem. De acordo com Goulart Reis, conjuntos urbanos como os da Cidade da Bahia e do Rio de Janeiro – “formas de realização do urbanismo barroco” – deitam por terra tal interpretação. Neles, o que vigora não é a anarquia, mas o planejamento. O conhecimento da ordem. Esta foi a grande novidade que irrompeu no espaço urbano da Cidade da Bahia, durante o século XVIII. Chama-se “conjunto urbano”, aqui, a um grupo de prédios (comerciais e residenciais) construídos segundo um projeto comum. Tomados isoladamente, cada um deles não possui maior importância. Mas, “reunidos de acordo com o desenho de conjunto, os edifícios relativamente simples dos particulares adquirem caráter monumental, que até então havia sido privilégio dos edifícios e das praças de caráter aristocrático, nas quais se instalavam as edificações públicas, as do clero e da nobreza”. Isto é, enquanto um palácio ou uma igreja aparece, solitariamente, como um monumento, a natureza monumental do conjunto barroco reside, ao contrário, em seu próprio caráter de conjunto. Um outro aspecto relevante é que o conjunto não é obra do poder laico ou do religioso – nem empreendimento isolado de um membro da nobreza. Os responsáveis por sua construção exercem atividades comerciais.

No caso baiano, o mais importante desses conjuntos, hoje destruídos, foi o Cais da Farinha, no bairro da Praia. Era um conjunto de quadras, formadas por edifícios que tinham o mesmo número de andares (quatro) e o mesmo acabamento externo, de tal sorte que o observador ficava com a impressão de estar vendo um único prédio em cada quadra. Das três quadras de meados do século XVIII, o Cais da Farinha passou a contar com seis, todas de aparência regular, no final do mesmo século. Uma obra que se impunha. Daí que Goulart Reis possa contrapor a sua existência à idéia comumente aceita de que o urbanismo lusitano tenha sido sinônimo exclusivo da ausência de regras. Ao contemplar os conjuntos do urbanismo barroco da Bahia setecentista, o estudioso, frisando justamente a sua diferença com relação aos “arruamentos mais desordenados”, vai ver surgindo, junto ao mar, “as linhas imponentes dos grandes sobrados, como uma barreira de racionalidade formal”. E há, ainda, um dado importante – intrigante, até. Com a palavra, Goulart Reis: “Tudo nos leva a supor que o conjunto do Cais da Farinha e do Cais das Amarras [outro belo conjunto urbano do bairro da Praia] fosse uma cópia ou influência urbanística direta dos planos pombalinos da Cidade Baixa de Lisboa. Tudo, menos um fato paradoxal: os quarteirões mais antigos do Cais da Farinha são mais antigos que o projeto de Lisboa. Já existiam em 1756, quando apenas se cogitava da reconstrução de Lisboa, destruída pelo terremoto do ano anterior. Uma parte do conjunto urbanístico da Colônia antecedeu ao da Metrópole”. Mas as coisas não cresciam apenas na Cidade da Bahia. Como observou István Jancsó, “a cidade e o Recôncavo formavam um todo notavelmente integrado e integrador”. Havia uma articulação orgânica entre os espaços urbano e rural. Salvador não vivia sem o seu Recôncavo, o Recôncavo não vivia sem a sua capital. As muitas águas da região, fossem elas praieiras ou interioranas, marítimas ou fluviais, eram constantemente cruzadas nas mais variadas direções, com as barcas, os saveiros e as canoas transportando, de um lado para o outro, númeras e inúmeras mercadorias. De certa forma, podemos dizer que as ilhas e vilas do Recôncavo, juntamente com a Cidade da Bahia, formavam um só rendilhado – uma poética historicamente solidária. Cachoeira providenciava os rolos de fumo; Santo Amaro da Purificação, já com cerca de cinco mil habitantes, despachava os seus carregamentos de açúcar, tabaco e cachaça; de Jaguaripe, as embarcações levavam a produção das olarias; Maragogipe remetia farinha e mariscos; etc. “Essas vilas configuravam uma malha urbana significativa, e sua imbricação, ‘como nós de um sistema mais amplo de sociedade, economia e governo’, girando como satélites em torno de Salvador, integravam, com esta, um conjunto consideravelmente urbanizado pelos padrões da época, superior, neste sentido, aos índices da Escandinávia, da Suíça... ou ao verificado na Europa centro-oriental”, compara Jancsó. E esses núcleos citadinos do Recôncavo, que hoje vemos mergulhados em mormaço existencial, contavam então com “os equipamentos urbanos básicos de uma cidade consolidada”, das casas da câmara e cadeia aos templos religiosos. Além disso, o Recôncavo primava pela ostentação de casarões monumentais, como o que ainda é possível ser visto na Fazenda Lagoa, com o seu salão aberto para o vale, e construções como a igreja e convento setecentistas hoje ruinosos, erguidos à vista da bela Ilha dos Franceses, na margem mesma do Paraguaçu. Enfim, o Recôncavo, antes que a

região da Feira de Santana pudesse distinguir as fumaças de seus engenhos, era lugar de obras e opulências – e de uma aristocracia que açoitava escravos e cultivava mariscos. Fora do continente, o avanço colonizador, agora em fase de cristalização arquitetônica e ideológica, fora também notável. Ouçamos Vilhena falando de Itaparica, com as suas freguesias de Santo Amaro e Santa Vera Cruz: “Compreende também o termo da cidade a ilha de Itaparica, que lhe fica defronte... e figurada esta ilha como deve ser, representa a sua planta a figura de um perfeito cavalo. Na sua ponta do norte, que... fica fronteira à cidade, se acha a fortaleza de S. Lourenço... e uma grande povoação de bastante comércio no tempo da pescaria das baleias, por ser naquele sítio a fábrica, onde se faz o azeite destes monstros marinhos”. Tais atividades baleeiras reuniam uma mãode-obra variada e numerosa, girando em torno das armações, como se pode ver no romance Viva o Povo Brasileiro, de João Ubaldo Ribeiro. Só no ano de 1768, por exemplo, foram capturadas e “industrializadas”, naquela ilha, algo em torno de 150 baleias. Mas já no século XVII Gregório de Mattos poetizava:

Ilha de Itaparica, alvas areias, Alegres praias, frescas, deleitosas, Ricos polvos, lagostas deliciosas, Farta de putas, rica de baleias. Voltando à Cidade da Bahia, devemos dizer que o nosso espaço urbano não se deixava definir apenas por seus prédios imponentes, suas igrejas ricas, seus conjuntos urbanos e suas casas “nobres”. Além de construções como a Casa da Câmara, a Casa dos Sete Candeeiros, o Solar Ferrão, o Berquó, o Cais da Farinha, a Igreja da Ordem Terceira de São Francisco de Assis ou, ainda, a chácara setecentista do Unhão, a cidade possuía inúmeras moradias, dos casebres mais precários aos sobrados senhoriais, muitos dos quais podem ser vistos hoje em dia em nosso “Centro Histórico”. Deixando de lado palhoças e choupanas, o que havia por aqui, em termos de habitação, era a casa térrea e o sobrado assoalhado, com seus telhados em duas águas, enviando a chuva em direção à rua ou ao quintal. A casa térrea era morada de pobre – e o “térreo” era, por isso mesmo, estigmatizado. Não por acaso o pavimento térreo do sobrado servia de loja, senzala, depósito ou cocheira. Daí para cima é que ficavam os aposentos da família. Curiosamente, empregava-se naquela época a expressão “casas”, no plural, para designar a habitação que contava com mais de um andar ou vários aposentos (casa de dormir, casa de banho, etc.). Era assim que se dizia que a família de Gregório de Mattos possuía “casas” nas proximidades do Terreiro de Jesus, no distrito da Sé; ou que se lê, no inventário do poeta Claudio Manoel da Costa, constante dos Autos da Devassa da Inconfidência Mineira, acerca de sua “morada de casas com seu quintal cercado de pedra e dentro do mesmo com suas árvores de

espinho”. Importante notar que o uso dos grandes sobrados seria simplesmente impensável sem o concurso da escravaria. Ou, por outra, que aquela era a arquitetura de uma sociedade escravista. Para se ter uma idéia, não havia em Salvador, naquela época, equipamento para o abastecimento de água ou o serviço de esgoto, por exemplo. Eram os escravos que faziam tudo, carregando e despejando bilhas d’água e barris de fezes. Estes barris, de resto, ficavam no quintal da casa ou em aposento próprio, especial, no interior mesmo da residência. Quando se achavam cheios, eram transportados por escravos, chamados “tigres”, para o local estabelecido pela autoridade pública. Não admira que, observando aquelas casas com cavalariças no andar térreo e um aposento especial para acumular as fezes da família, a viajante inglesa Maria Graham, a elegante filha do almirante George Dundas e futura Lady Augustus Calcott, as tenha considerado “repugnantemente sujas”. Realmente, sujeira era o que não faltava. O que não havia, no centro da cidade, eram árvores. Inexistia então a prática da arborização das ruas. A ausência de verde era completa. Além disso, as habitações eram assentadas, sem recuo, sobre a linha da rua. Não possuíam jardins. Jardim – não só na Bahia, mas em todo o Brasil – é coisa do século XIX. Em compensação, existiam pomares, diversos pomares. E muitas outras coisas mais. Além de praças, becos; além de becos, vielas. Que se pense, ainda, no caso das “feiras livres”, por exemplo – naquela época, chamadas “quitandas”, uma expressão banto. Havia a quitanda da Praia, a quitanda do Terreiro de Jesus, a quitanda das Portas de São Bento. Nelas, mulheres negras vendiam peixe, toucinho, carne de baleia, hortaliças, etc. Era para tais quitandas que o povo se encaminhava, quando ia comprar o de-comer. Por falar nisso, está em Vilhena o primeiro documento da existência daquilo a que hoje chamamos “cozinha baiana”. Naquela época, século XVIII, essas comidas circulavam pelas ruas, becos e praças, levadas por vendedores ambulantes, negros. E eram uma fonte de renda dos ricos, não dos pobres. “Não deixa de ser digno de reparo o ver que das casas mais opulentas desta cidade, onde andam os contratos, e negociações de maior porte, saem oito, dez, e mais negros a vender pelas ruas a pregão as cousas mais insignificantes, e vis”, informa Vilhena. Explicitando o “catálogo de viandas tediosas”, nosso cronista apresenta o seguinte rol: mocotó, caruru, vatapá, mingau, pamonha, canjica, acaçá, acarajé, bobó, arroz-de-coco, feijão-de-leite, pão-de-ló, rolete de cana, queimado e “doces de infinitas qualidades”. Por fim, refere-se ele a uma “água suja”, chamada aluá, “que faz vezes de limonada para os negros”. Como se pode ver, aí está a base da nossa especificidade culinária. Não se fala, ainda, em “moqueca”. Mas lá estão o caruru, o vatapá e o acarajé. Isto é: o dendê já aromatizava os espaços públicos da Cidade do Salvador da Bahia de Todos os Santos. Impregnava, com o seu cheiro tão característico, aquelas ruas e praças coloridas, onde a vida esfervilhava em meio a senhores enfatiotados, cadeirinhas de arruar, tanger de sinos, jogadas financeiras, candeias de azeite, tavernas tumultuadas, discursos bacharelescos, soldados insolentes, batuques de negros, batinas apressadas e mulatas seminuas.

DAS LETRAS No plano da cultura erudita, ou das formas canonizadas pela cultura ocidental-européia, o século XVIII não apresentou nada que fosse realmente digno de nota. Numa comparação com o século anterior – o século barroco de Antonio Vieira e Gregório de Mattos –, em vez de ganhar, perdemos. Nas palavras de um observador crítico, o ouro, o açúcar e o tabaco – e não a literatura, a arte e a música – ocupavam as mentes dos “homens educados” da Bahia. De qualquer modo, duas coisas merecem discussão, neste passo: a investida pombalina contra os jesuítas, com os inacianos sendo expulsos do Brasil, e o chamado “movimento academicista”, patrocinado pelo Estado português. Não cabe examinar aqui o enredo político-filosófico que desembocou na expulsão dos jesuítas do Brasil. De um modo genérico, pode-se dizer que o choque entre a Coroa portuguesa e a Companhia de Jesus talvez fosse inevitável. O Brasil vivia lances agudos de fixação de seu desenho territorial – e os jesuítas, de certa forma, atrapalhavam os planos da administração lisboeta. Por um lado, o vasto complexo de missões jesuíticas espanholas e portuguesas, estendendo-se da região amazônica às proximidades do Rio da Prata, era olhado com desconfiança pelos governos da Espanha e de Portugal. Mais até – como uma ameaça, pouco importa se real ou imaginária, aos domínios daquelas potências ibéricas. Por outro lado, o Marquês de Pombal ia frontalmente contra o projeto jesuítico para os índios. Ele queria que todos aqueles indígenas, que viviam então sob as asas da Companhia de Jesus, fossem integrados no processo construtivo brasileiro. Que eles, em vez de viver isolados nos aldeamentos, entrassem no jogo da mestiçagem e da “europeização”, de modo que contribuíssem para o aumento de nossa população nas regiões fronteiriças. O desfecho da disputa é conhecido. Em 1759, Pombal expulsou os jesuítas e tomou as suas propriedades, um patrimônio mais do que invejável, com suas fazendas, e seus engenhos e casarões espalhando-se pelos campos e pelas cidades. Na Capitania da Bahia, por sinal, os jesuítas possuíam cinco engenhos e cerca de 700 escravos. Sublinhe-se, ainda, que a Igreja não só aceitou tranqüilamente a expulsão dos padres como, em 1773, o papa Clemente XIV extinguiu a Companhia de Jesus, que só voltaria à cena em 1814. Ocorre que os jesuítas, com os seus dezenove colégios, eram responsáveis pela existência e pelo funcionamento de praticamente todo o sistema educacional do Brasil Colônia. Ao expulsá-los, Pombal desarticulou o sistema. É verdade que pretendeu preencher a lacuna imensa, mas sem maiores resultados práticos. Sua idéia era que o Estado assumisse diretamente a responsabilidade de providenciar a escolarização da América Portuguesa. Para isso, criou-se um imposto especial, o chamado “subsídio literário”, e foram projetadas as “aulas régias”. Pensou-se, ainda, numa espécie de “modernização”, digamos assim, do nosso ensino. Mas a verdade é que se abriu um abismo entre a intenção estatal e a realidade dos fatos. Faltaram professores, faltaram aulas, faltaram livros, faltaram recursos. O sistema jesuítico de seminários e colégios caiu por terra – e o sistema pombalino não vingou. A educação pública brasileira foi por água abaixo. E assim se perdeu, em grande parte, a base da vida cultural erudita no Brasil Colônia. Um quadro entristecedor – e sem remédio. A médio prazo, pelo menos. Porque durante muitos e muitos anos, as coisas ficaram por isso mesmo. No ano da expulsão dos jesuítas, aliás, a biblioteca

do Colégio da Bahia foi simplesmente destruída. Muitos dos seus livros chegaram mesmo a ser vendidos – “por vilíssimos preços” – a boticários e tendeiros, para que estes pudessem, segundo Vilhena, “embrulhar adubos e ungüentos”. Por falar nisso, bibliotecas – ou “livrarias”, como então se dizia – eram coisas raras no Brasil, mesmo no século XVIII. Em todo caso, é nesse período que elas experimentam uma mudança em sua composição. Nos séculos XVI e XVII, as poucas bibliotecas que existiam eram formadas, basicamente, por livros religiosos, devocionais, como as Horas Marianas do padre Francisco de Jesus Maria Sarmento, ou narrativas de vidas de santos católicos – e obras clássicas expurgadas, isto é, das quais haviam sido suprimidas passagens consideradas prejudiciais, inconvenientes ou perigosas. No século XVIII, esses livros religiosos continuavam de pé nas estantes – mas estas já se viam invadidas, progressivamente, por títulos profanos. Ficou famosa, neste sentido, a biblioteca de Luís Vieira da Silva, o cônego inconfidente, em Mariana. Nela, a literatura profana predominava, de longe, sobre o volume das obras sacras. Eram livros de Catulo, Cícero, Descartes, Corneille, Milton, Racine, Condillac, Diderot, Hume, Montesquieu, Voltaire, etc. – vale dizer, de autores clássicos a pensadores da Ilustração. “Na Bahia, o padre Francisco Agostinho Gomes, ilustrado da passagem do século XVIII para o XIX, reunia a melhor e maior livraria particular do Brasil de então, composta de milhares de livros, entre eles as obras de Lavoisier, de Buffon, de Thomas Paine, de William Robertson; a Encyclopédie de Diderot e D’Alembert, e a Wealth of Nations, de Adam Smith; e títulos variados em língua inglesa e francesa sobre história natural, economia, política, viagens, filosofia”, informa o historiador Luiz Carlos Villalta (O que se Fala e o que se Lê: Língua, Instrução e Leitura, em História da Vida Privada no Brasil – 1). Sobre esse padre, que esteve ligado a movimentos conspiratórios, escreveu Affonso Ruy que era “homem riquíssimo e o espírito mais iluminado da cidade [da Bahia] pelo saber... ledor infatigável e ao par de todo o movimento científico do mundo”. Também a biblioteca do poeta inconfidente Claudio Manoel da Costa era essencialmente profana, ostentando, antes de tudo, obras jurídicas e literárias. Apesar dessas alterações temáticas, com os saberes profanos tomando espaço aos saberes sacros, o fato é que as bibliotecas continuaram raras. E raríssimos eram os leitores. O livro, em muitos casos, não era visto como algo para ser lido, mas como objeto ornamental, enfeite hard cover com letras douradas na lombada – elemento importante, sim, mas da decoração doméstica. Neste caso, encontrava-se até mesmo, segundo Villalta, “a prática de decorar as casas com estantes que aparentavam ter livros, mas, de fato, não os tinham – eram estantes com livros simulados”. Culto das aparências, mais uma vez – e não distinto do que ocorre em nossos dias, quando vemos o objetolivro fazendo parte da decoração de tantas casas e apartamentos, especialmente sob a forma coletiva de coleções e enciclopédias jamais lidas ou consultadas. Havia também os que usavam livros para propósitos muito pessoais, nem sempre previstos pelos autores. Nos séculos XVII e XVIII, os livros foram, com freqüência, “motivo de inventividade entre seus leitores”, conforme relata o mesmo Villalta: “Em casos extremos, foram usados na sedução e gozo dos prazeres mais íntimos, subvertendo os valores estabelecidos. Frei Luís de Nazaré, reputado exorcista baiano de inícios do século XVIII, usava-os para seduzir as mulheres: fazendo-as tremer e

estrebuchar ao ler ‘por uns livros que trazia os exorcismos’, ordenava-lhes que saciassem seus desejos sexuais, no que lhe obedeciam, pois ‘o livro por que fazia os exorcismos assim o mandava’. Depois de seduzir e engravidar Rosa Maria Pereira, o padre Antonio José de Azevedo, em 1764, em Mariana, passou-lhe uma receita, tirada de um livro, que pretensamente lhe restituiria a virgindade; a dita mulher tomou o remédio e se julgou ‘curada’, entendendo-se de novo donzela”. Vê-se, então, que, ao lado do desprestígio da leitura, havia um prestígio como que mágico da escrita encerrada no livro. Sublinhe-se, por outro lado, que a leitura não era uma prática estimulada pelo poder público. Muito pelo contrário. Para o Estado e a Igreja, idéias e livros eram, em princípio, sinônimos de inquietude espiritual, de incitação ao questionamento da ordem estabelecida, de subversão. Portugal contava, aliás, com uma longa tradição de censura de livros. E essa postura repressiva cruzou o Atlântico, implantando-se na colônia americana. Também aqui os poderes laico e eclesiástico fizeram de tudo para bloquear o acesso das pessoas às idéias “defesas”, isto é, proibidas. Havia uma política oficial de restrição à circulação de livros e de controle da leitura. E como era costume alguém ler em voz alta para um grupo de interessados, as Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia proibiam não apenas que o sujeito lesse uma obra “defesa”, mas também que ouvisse a sua leitura. Essa proibição do ouvir ler aponta, de resto, para a persistência, naquela época, de uma atitude essencialmente oral diante da escrita – coisa bem diversa de nossa atual concepção da leitura como ato silente e solitário. É certo que, a depender de sua condição social ou de sua categoria profissional, alguns indivíduos conseguiam obter licença régia para ler livros proibidos. A concessão era dada, quase sempre, na medida em que a leitura de uma determinada obra “defesa” fosse encarada como uma necessidade profissional. Havia também os que obtinham tal licença de leitura sob o argumento de que assim estariam melhor equipados para combater as idéias que os poderes consideravam subversivas, materializações tipográficas de ameaças à ordem vigente. Ainda assim, o indivíduo agraciado com a concessão régia deveria cercar de cuidados a obra proibida. O livro tinha que ficar guardado numa estante fechada com chave e rede de arame, de modo que não fosse sequer visto por aqueles que não portavam autorização para lê-lo. É no âmbito desse programa de controle oficial dos fluxos informacionais que devemos entender a ausência de tipografias no Brasil Colônia. Nenhuma leitura da realidade cultural brasileira, nesse período colonial, pode passar ao largo desse vazio. Em capítulo do livro O Império Luso-Brasileiro 1750-1822, Maria Beatriz Nizza da Silva acertou no alvo, ao fazer o comentário seguinte: “Talvez a característica fundamental da cultura no Brasil colonial tenha sido a ausência de tipografias locais que divulgassem os escritos de sua elite ilustrada, que se viu obrigada a recorrer à imprensa metropolitana ou então a fazer circular cópias manuscritas de suas produções, literárias ou científicas. Ao contrário da Espanha, Portugal não pensou, de modo algum, em criar na sua colônia americana os dois tipos de instituição que mais contribuem para a divulgação da cultura escrita: a Imprensa e a Universidade”.

O caso da Universidade apresenta ainda um outro aspecto. Tratava-se de manter a elite brasileira próxima da metrópole. De educá-la, envolvendo-a. Permitir a existência de uma vida universitária própria, no Brasil, seria abrir o flanco da dominação. Propiciar um certo desgarramento da órbita lusitana, a gravitação em torno de um outro centro cultural europeu, como a França ou a Inglaterra, e mesmo a conquista de alguma autonomia mental. Nada disso poderia interessar ao poder lisboeta, com o seu propósito de preservar intacto o sistema colonial. “Embora nos colégios [do Brasil] houvesse curso de nível superior, el-rei procurou manter a dependência em relação à Universidade de Coimbra, considerada um aspecto nevrálgico do pacto colonial. Assim, impediu a criação de universidades na América portuguesa”, comenta, precisamente, Villalta. Na verdade, a Coroa portuguesa tinha tanto medo do livre movimento das idéias, que chegou a temer a difusão de uma língua em nosso ambiente colonial – o francês. Em vão. No final do século XVIII, o francês se convertera, no Brasil, em língua par excellence da vida intelectual. Era o idioma “culto”. Acontece que a produção intelectual francesa, naquele tempo, trazia as tais idéias subversivas, tão temidas pela Coroa e pelo sistema eclesiástico. Saber francês era então coisa que tinha algo de suspeito; traduzir textos franceses, uma atividade francamente desaconselhável. Informa Villalta: “Na Bahia de então, quando estudantes manifestavam o desejo de fazer traduções do francês, viam-se prontamente desaconselhados por seus parentes, pois tal língua era considerada de libertinos [isto é: livres-pensadores], ímpios e ateus”. Como se vê, a Coroa pretendeu controlar rigorosamente o circuito de livros e idéias, de sorte que signos de subversão e ruptura não viessem para desestabilizar os princípios da dominação colonial. Mas de nada adiantou. Para além do comércio legal de livros e de uma que outra licença régia para a leitura privada de obras proibidas, havia a realidade do contrabando. Falamos já da biblioteca de Vieira da Silva, vasculhada por Eduardo Frieiro em O Diabo na Livraria do Cônego. E o fato é que o cônego rebelde do arraial da Soledade lia em várias línguas e sobre os mais diversos assuntos, não escapando à sua curiosidade pragmática nem mesmo um sugestivo Traité des Maladies Vénériennes. “Os intelectuais de Vila Rica leram tudo o que quiseram ler”, observou Frieiro. Não faltaria aqui, no paraíso tropical do contrabando, a inestimável figura do muambeiro de letras preciosas, rebocando obras de Rousseau, do abade Raynal, de Voltaire, de Montesquieu e dos “enciclopedistas”. E o fenômeno pode ser encarado de uma perspectiva mais larga, em termos de processo global, como bem frisou o historiador Carlos Guilherme Mota, ao falar de uma “internacionalização” do Brasil, em conseqüência das transformações ocorridas no continente europeu, durante o século XVIII. Essa “internacionalização”, a que nos referimos no primeiro tópico deste capítulo, vai se manifestar também – e vigorosamente – no plano das idéias. “Na Bahia, em 1798, Rousseau, Volney e Boissy d’Anglas eram parcialmente transcritos nos cadernos de preces dos revolucionários”, exemplifica Carlos Guilherme. Assim, a “internacionalização” não dizia respeito unicamente ao trânsito de mercadorias, nem apenas ao fato do Brasil ter se convertido em base do contrabando de produtos ingleses para a América do Sul. Aconteceu, igualmente, uma “internacionalização” do espaço de circulação de bens simbólicos. Apesar da repressão oficial, portanto, a muamba ideológica alcançava então os principais pontos

da colônia. Foi assim que livros (e jornais) subversivos se fizeram intensamente lidos e discutidos na Cidade da Bahia, no Rio de Janeiro, no Maranhão, em Pernambuco, nas Minas Gerais. Enfim, foram textos que circularam amplamente pelo Brasil, socializando a pólvora de seus argumentos. Ou, em termos mais precisos, alimentando, com ideais democráticos, a série de conspirações anticoloniais que se articularam no Brasil entre o final do século XVIII e o raiar da centúria seguinte. Vale dizer, as conjurações mineira (1789), carioca (1794), baiana (1798) e pernambucana (1801), todas elas voltadas para dar um fim à situação colonial – e se integrando, dessa perspectiva específica, na chamada Revolução Atlântica, que sacudiu naqueles tempos o mundo ocidental. Por fim, o século XVIII foi também, nas cidades brasileiras, a época do “movimento academicista”. Esclareça-se que, nesse caso, o vocábulo “academia” era utilizado em dois sentidos. Servia para designar tanto sessões panegíricas (fazer uma “academia” em louvor de algum mandachuva) quanto entidades organizadas, com os seus estatutos, os seus quadros de associados, as suas reuniões periódicas. Em Portugal, essas academias se dividiam entre as literárias e as científicas. Ou, no dizer de Fidelino de Figueiredo, existiram sob a dupla forma de “corporações literárias” e de “corporações científicas de aplicação prática”. No Brasil, as coisas foram um pouco diferentes. “Aqui, as academias são simultaneamente literárias, históricas e em alguns casos também científicas, além do espírito moralista, religioso e predominantemente bajulatório que as presidiu”, resume o crítico José Aderaldo Castello, em seu estudo Manifestações Literárias do Período Colonial. De qualquer sorte, tivemos naquela época uma academia francamente extraliterária. Foi a Academia Científica do Rio de Janeiro. Formada basicamente por médicos e naturalistas, seu objetivo era, segundo o Marquês do Lavradio, examinar “todas as cousas que se puderem encontrar neste continente pertencentes aos três reinos vegetal, animal e mineral, fazendo-se-lhes todas as análises, e mais observações que couberem no possível”. Parece que a coisa foi um pouco além disso. Fizeramse estudos sobre a cana, o fabrico do açúcar, a extração da tinta do pau-brasil, etc., mas também acerca de assuntos como doenças de escravos e o comércio de Portugal com as suas colônias. Mas o fato é que não temos notícia de que nada de semelhante tenha ocorrido na Bahia. Vingaram aqui, unicamente, as academias de cunho histórico-literário, como a Academia Brasílica dos Esquecidos, cujo objetivo principal era o estudo da História do Brasil, e a Academia Brasílica dos Acadêmicos Renascidos. (Houve um baiano que se destacou em plano extraliterário, científico, mas num outro lance. Foi o viajante e naturalista Alexandre Rodrigues Ferreira, dito “o Humboldt brasileiro”, que nasceu aqui, em 1756. Durante quase dez anos, a mando da Coroa, Rodrigues Ferreira percorreu as capitanias do Grão-Pará, Rio Negro e Mato Grosso coletando espécimes e encetando análises nos campos da botânica, da zoologia, da mineralogia, da geografia e da antropologia. Escreveu, ainda, sobre um inesperado tratado luso-indígena. Em Mestiço É que É Bom, livro de entrevistas, Darcy Ribeiro observa: “O Alexandre Rodrigues Ferreira escreve sobre o Tratado de Paz entre o povo Mbayá e o rei de Portugal, assegurando a eles a terra deles... isto está na obra do Alexandre. Esse tratado é o único caso no Brasil de uma tribo que tinha um tratado de paz com o rei de Portugal”. Mas Alexandre era, enfim, pássaro de outra plumagem – voltemos ao academicismo).

Podemos dizer que, mesmo no terreno dos estudos brasileiros, o trabalho dessas academias não só não foi inaugural, como nem sempre esteve à altura do que fora feito antes. Afinal, o século XVI nos dera uma etnografia colonialista-cristã, com os escritos de Jean de Léry, Claude d’Abbeville, Cardim, Gabriel Soares, etc. E o século XVII marcou o início de nossa produção historiográfica, com a obra de frei Vicente do Salvador. As academias como que prosseguiram, no século XVIII, o trabalho do frei, com os desempenhos de Sebastião da Rocha Pita, frei Antonio de Santa Maria Jaboatão e Domingos Loreto Couto, entre outros mais. Michel de Certeau definiu o olhar antropológico quinhentista como uma “heterologia”. Ali se constituiu, por assim dizer, a “préhistória” da antropologia contemporânea. Nem é por outro motivo que Claude Lévi-Strauss se sente vinculado à época em que a Europa recebeu a “revelação” do chamado Novo Mundo, vendo-se a si mesmo como uma espécie de descendente de Jean de Léry. Já no caso da historiografia seiscentistasetecentista, o alcance é mais modesto. O que se produziu ali foram documentos preciosos para o entendimento daquele período de nossa formação histórico-social. Dito de outro modo, obras que se converteram em fontes valiosas para a leitura e a reflexão historiográficas contemporâneas. E o “movimento academicista” foi, sob esta luz, empreendimento de algum relevo. Em termos literários, contudo, o peso daquelas “academias” foi múltiplo de zero. Mesmo os analistas mais complacentes reconhecem que o século XVIII não chegou a ser, para a Bahia, um período literariamente brilhante. Para que se tenha uma idéia do tom que ali reinava, Rocha Pita, um dos fundadores da Academia Brasílica dos Esquecidos, escreveu que aquela era uma “doutíssima Academia”, onde “eruditíssimos sujeitos” faziam “agudíssimos versos”. Pois bem: os tais “eruditíssimos sujeitos” se reuniam, com toda a pompa, para versejar e realizar torneios poéticos sobre temas como “uma moça que, metendo na boca umas pérolas, e revolvendo-as, quebrou alguns dentes”... Em prosa, dissertavam sobre tópicos como, por exemplo, a sabedoria do rei Salomão. Caprichava-se, assim, no discurso vazio, floral – e, claro, na mais escancarada bajulação “aos grandes da Metrópole ou aos seus mandatários entre nós”. Eram, a bem da verdade, organizações protegidas e dirigidas pelo Estado. Mas o problema não estava exatamente no patrocínio estatal, e sim no fato de que tal patrocínio era pago com pilhas e mais pilhas de frases ocas, exageradamente laudatórias, que fariam de qualquer anão lusitano um gigante mitológico da Grécia, ou herói romano.

UM POUCO DE MÚSICA Em nossa abordagem da vida baiana no século XVII, fizemos referência à música percussiva dos bantos em nosso ambiente. Às danças, altamente erotizadas, da umbigada e do lundu. E, ainda, às andanças do poeta-músico Gregório de Mattos, vagando pelo Recôncavo com a sua viola de cabaça, e às “letrilhas” cantada pelo guitarrista (tocador de viola) Gil. Pois bem: podemos dizer que aquele

foi o primeiro capítulo da história da música popular no trópico baiano. É tempo, agora, de dar conta de um outro momento poético-dançarino-musical. Assinale-se, antes de mais nada, que, ao longo de todo o século XVIII, os negros prosseguiram promovendo os seus “batuques”, fossem estes de caráter sagrado ou de natureza profana. Vilhena, que não se conformava com a altivez dos pretos aqui escravizados, chegou a protestar contra a complacência dos senhores diante de tais batucadas: “...não parece ser muito acerto em política, o tolerar que pelas ruas, e terreiros da cidade façam multidões de negros de um, e outro sexo, os seus batuques bárbaros a toques de muitos, e horrorosos atabaques, dançando desonestamente, e cantando canções gentílicas, falando línguas diversas, e isto com alaridos tão horrendos, e dissonantes que causam medo, e estranheza, ainda aos mais afoitos”. Nem todos concordavam com o nosso professor de grego. Os “batuques” continuaram. E não há como não ver aí, nessas inúmeras batucadas ao ar livre, com bandos percussivos se exibindo pelas ruas e terreiros de Salvador, uma das vertentes centrais que irão configurar, no futuro, o carnaval da Bahia, filho, em boa parte, dos negromestiços encaretados que dançavam pela cidade, em dias de procissão religiosa. Mas trataremos desse assunto adiante. Por ora, vamos nos concentrar em alguns caminhos de nossa música popular. Para isso, recorreremos, basicamente, aos estudos de José Ramos Tinhorão sobre a matéria. Para esse estudioso, a peculiaridade regional, que fizera de Salvador, no século XVIII, a cidade “culturalmente mais rica e socialmente mais diversificada” da colônia, iria permitir, ainda, “o aparecimento de uma série de novas formas de diversão entre as baixas camadas [da população]”, transformando a nossa capital não apenas “no primeiro centro produtor de cultura popular urbana do Brasil, mas a garantir para a própria Bahia o título de pioneira na exportação de criações para o lazer de massa citadina no exterior”. Tinhorão está certo. Os fortes nexos existentes entre a Cidade da Bahia e o Recôncavo, gerando um campo concentrado para o entrecruzamento de informações, constituíam, certamente, uma realidade singular na vida do Brasil Colônia. Surgiram aqui, desde cedo, formas de entretenimento popular. E, quanto à exportação de produtos culturais populares, o pesquisador exemplifica. Nossas “modas e cantigas” não demoraram a ser exportadas para a metrópole lusitana, como se pode ver, por exemplo, num “folheto de cordel impresso pelos meados daquele mesmo século XVIII em Portugal, anunciando a chegada de uma primeira criação cultural do povo baiano: Relação da fofa que veyo agora da Bahia”. Não tenho idéia mais nítida de como seria, em detalhe, a tal “fofa” baiana. Pelas informações disponíveis, sabemos que se tratava de uma coreografia erótica, claramente sexual. Um viajante inglês, que a viu executada em Lisboa, disse em poucas palavras o que sentiu: “foi a coisa mais indecente a que já assisti”. E um observador francês, também em Portugal, esclarece que, na fofa, um par de dançarinos evoluía até simular o gozo sexual, momento em que o homem caprichava nos gestos obscenos e nas palavras lascivas. O texto do folheto citado por Tinhorão a classificava como música “giribandeira”, indecente, capaz de “atrair e inquietar, mover e bailar”, finalizando: “esta Fofa é singular, bela, estupenda, e perfeita, para causar tudo isto; pois viva a Fofa da Bahia, viva, viva”. Não era pobre entre nós, de fato, o elenco de danças e cantos “nativos”, criados aqui mesmo. A

Bahia, também sob esse aspecto, produzia coisas inexistentes no mundo metropolitano – e que logo se popularizavam por lá. Era o tempo das chulas e das fofas da Bahia. E esses cantos e danças brotavam em ambientes populares – ou, para lembrar as palavras de Nuno Marques Pereira, no meio de “negros, mulatos e gente calaceira, e vadia”. Com o tempo, todavia, essa produção coreográficomusical ia invadindo irresistivelmente os salões mais elitizados da sociedade colonial. Ainda Tinhorão: “Surgidas nesses ambientes das mais baixas camadas de Salvador ou de alguns dos centros mais populosos do Recôncavo, as danças e cantos estruturados pelas ruas, praças ou terreiros a partir da mistura de elementos rítmicos, melódicos e coreográficos negroafricanos e peninsulares europeus, para atender à nova realidade social da colônia, iniciava então uma espécie de ascensão, através da entrada nas casas das famílias: primeiro as mais modestas ou ‘mal constituídas’, e, depois, nas salas da própria minoria branca da burguesia e dos funcionários do poder real”. Daí, como se viu, para Lisboa e outras cidades lusitanas – menores, naquela época, do que Salvador: enquanto a Cidade da Bahia ultrapassava os 50 mil moradores, o Porto e Coimbra contavam, respectivamente, com 30 e 15 mil habitantes. E o sucesso dessas criações era enorme em Portugal. O próprio Tinhorão cita, a propósito, extraindo-a de uma peça composta por frei Lucas de Santa Catarina, a seguinte passagem sobre a vida no bairro lisboeta da Alfama, falando da chula baiana:

Da semana na ribeira, Ao dia santo no bairro, Mas sobre tudo a viola, E o pandeiro veterano, Ou à tarde no batismo, Ou à noite no noivado. Do Brasil em romaria Os sons vem ali descalços, Crião-se ali, ali crescem, E dali se vão passando Pouco a pouco para as chulas Piám piám para os mulatos.

Quanto ao lundu, a que nos referimos no capítulo passado, o que se dá é uma outra coisa. Ouçamos, primeiro, a caracterização feita por Tinhorão: “Esse chamado lundu, muito mais preso que a fofa aos batuques de negros – de onde se destacara como dança autônoma ao casar a umbigada dos rituais [sic] de terreiros africanos com a coreografia tradicional do fandango (tanto na Espanha quanto em Portugal caracterizado pelo castanholar dos dedos dos bailarinos que se desafiam em volteios no meio da roda) –, apresentava ainda um traço destinado a determinar sua evolução: o estribilho marcado pelas palmas dos circunstantes, que fundiam ritmo e melodia no canto de estilo estrofe-refrão mais típico da África negra”. E o que o estudioso afirma é que esse lundu passou de dança de roda a número de teatro, para se transformar, “por artes de seus estribilhos cantados... em canção de sabor humorístico”. Mas não eram só os batuques africanos ou de origem africana que enxameavam pelo espaço urbano de Salvador e pelos espaços rurais do Recôncavo. Também a música européia continuava ressoando nas cidades e nos campos da região da Bahia de Todos os Santos. Em serenatas, por exemplo, como a que Gentil de la Barbinais presenciou entre nós, em 1718, quando viu um bando de portugueses “vestidos de roupões, rosário ao pescoço e espada nua sob as vestes, a caminhar debaixo das janelas de suas amadas, de viola na mão, cantando com voz ridiculamente terna”. E não apenas serenatas, é claro. As formas musicais trazidas pelos colonizadores eram diversas e em diversos lugares soavam, ao ar livre ou em interiores, das festividades em ruas e praças aos eventos celebrados em residências e templos religiosos. E o encontro de códigos musicais distintos, originários do continente europeu ou do africano, já se tornara, no século XVIII, fenômeno antigo. Como frisa Bruno Kiefer, em sua História da Música Brasileira, não podemos nos esquecer da “participação do negro escravo em funções musicais eruditas ou semieruditas, de caráter evidentemente europeu”. Temos a informação, registrada por Pyrard de Laval, de que, já em inícios do século XVII, um senhor rico da Bahia “possuía uma banda de música de trinta figuras, todas negros escravos, cujo regente era um francês provençal”. E essas informações musicais não foram simplesmente recolhidas. Pelo contrário, se disseminaram, andando pelos meandros que tenham andado. A Bahia foi o mais importante centro da música erudita nos primeiros séculos coloniais. Em seu estudo A Música na Bahia Colonial, Régis Duprat informa que aqui se produziu “a mais antiga obra musical erudita no Brasil, e que representa um real testemunho do nível e da sensibilidade artística atingida, naquela data, na região do Recôncavo”. Confesso que fico em dúvida quanto a esses “nível” e “sensibilidade”, mas a obra em questão, trazendo a data de 2 de julho de 1759, era um Recitativo e Ária, de autor desconhecido, talvez do compositor Caetano de Mello Jesus, que na época era mestre de capela da Sé de Salvador – uma obra profana, com texto em português, composta para voz, violinos e baixo contínuo. Havia portanto em nosso meio – e pelo menos desde os primeiros anos do século XVII – a curiosa figura do negro escravizado com formação musical européia erudita. Mas não apenas

erudita, obviamente. Muitos negros absorveram exemplos do repertório dos cantares extraeruditos do mundo europeu. Até mesmo compulsoriamente, por sinal – e isto pelo simples fato de que os aristocratas da Cidade da Bahia costumavam utilizar escravos seus para fazer o galanteio noturno das serenatas. Além disso, havia a música das bandas militares, também européia. Por outro lado, os chamados “batuques de negros” não eram necessária ou exclusivamente rituais, no sentido religioso da expressão. Estes, como se sabe, costumam se conter nos limites de algum calendário litúrgico – ou, mesmo, não ser acontecimentos sempre abertos a não-iniciados. Na verdade, é mais fácil pensar que a maioria das batucadas e rodas de dança se dava fora do círculo da vida místico-religiosa. Os negros, em seus momentos de folga, entregavam-se ao puro e simples prazer do entretenimento, recorrendo às suas formas estéticas de lazer. E esses eventos lúdicos atraíam, na Bahia seiscentista e setecentista, um considerável contingente de brancos e mulatos, com conhecimento variável das estruturações musicais de origem européia. Como se vê, músicos daquele período, fossem compositores ou somente instrumentistas, poderiam habitar, simultaneamente, dois universos musicais dessemelhantes. De um lado, o universo das combinações sonoro-percussivas da música africana; de outro, o universo harmônico-melódico da música ocidental. Música predominantemente rítmico-corporal e música predominantemente lírico-meditativa. Nada mais natural que, com o passar do tempo, esses códigos fossem se afetando mutuamente, e mesmo se mesclando. Com isso, veio se configurando, entre nós, uma produção musical mestiça, sincrética como o nosso povo e a sociedade que aqui construímos. Nas palavras de Tinhorão, começaram então a surgir, na Cidade da Bahia e seu Recôncavo, “adaptações provocadas pelo casamento da percussão, da coreografia e do canto responsorial africano-crioulo com estilos de danças, formas melódicas e novo instrumental (principalmente a viola), introduzidas pelos herdeiros nativos da cultura européia”. Mas é bom acentuar, embora correndo o risco de estar apenas repisando o óbvio, que esse sincretismo foi essencialmente luso-africano, já que, até onde nos é dado distinguir, os ameríndios não deixaram traços facilmente audíveis no curso central da criação musical brasileira. Tivemos assim, em nossa trajetória, brancos fazendo batucadas e pretos tocando árias. “A música exerce todo o seu domínio sobre os negros; eles são músicos por instinto...”, escrevia Ferdinand Denis, em seu livro O Brasil, falando da Bahia dos primórdios do século XIX - para contar, ainda, que conheceu aqui um negro carregador que fizera um “violino” de concha de tartaruga e corda de baleia. Mas o fundamental, para a formação de nossa música popular, foi realmente a mistura. A mescla de células sonoras de procedência variada. A mestiçagem dos sons.

ALGUNS ESTILOS FEMININOS “O ordinário das mulheres deste país é serem meigas, e chulas”, escreveu Luiz Vilhena. Apesar

da frase, que não deixa de sugerir, ao leitor de hoje, um misto de censura e carinho, o velho professor de grego, que viveu na Bahia setecentista, não vacila em caprichar na oposição. Numa ponta, ficam as senhoras; em outra, as “mulheres da tarifa” – vale dizer, as prostitutas. Vilhena defende vigorosamente as primeiras: “aquelas, que aqui são senhoras, o sabem verdadeiramente ser... os que aí [na Europa] vão dizer o contrário, mentem, ou nunca aqui trataram com senhoras, mas sim com mulheres da tarifa... aquelas pois que são senhoras, não dão acesso tão livre como aí vão publicar os detratores”. Ao contestar a difamação européia, Vilhena credita as críticas na conta dos hábitos vestuais das senhoras da Bahia. É que, dentro de casa, elas não só andavam descalças, como vestiam “camisas de cassa finíssima, e cambraia transparente” – e eram camisas de golas tão largas que “muitas vezes caem, e se lhe vêem os peitos”. Mas ora, diz Vilhena, as roupas transparentes e os peitos de fora não depunham contra o recato daquelas damas: elas eram obrigadas a andar assim por causa do clima. Mas não eram apenas os estrangeiros que criticavam o uso dessas blusas lassas. José da Silva Lisboa, o Visconde de Cairu, ao deplorar o mau gosto do vestuário feminino da época, refere-se, entre outras coisas, à “nauseosa indecência de uma camisa bordada, que lhes deixa ver o peito todo”. Vilhena faz ainda uma afirmação algo suspeita. Declara que as senhoras da Bahia eram tão “extremosamente amigas das suas amigas, e tão zelosas umas das outras, que bem podiam competir com os amantes mais impertinentes”. É um pouco estranho. Mas, quem sabe, a insinuação lesbiana e a referência à existência de amantes decorressem, igualmente, de determinações climáticas... Roger Bastide, aliás, sublinhou o caráter erótico, tríbade, da prática do cafuné. Bem antes dele, o comerciante francês Louis François de Tollenare, ao passar pela Bahia, já registrava: “As damas experimentam uma grande volúpia em se fazer coçar e apalpar a cabeça... As boas amigas, nas visitas que se fazem, procuram, digamos, muito freqüentemente esse prazer”. E Charles Expilly, em Mulheres e Costumes do Brasil: “À hora do grande calor, quando o mover-se ou mesmo o falar é uma fadiga, as senhoras, recolhidas ao interior dos aposentos, deitam-se ao colo da mucama favorita, entregando-lhe a cabeça. A mucama passa e repassa os seus dedos indolentes na espessa cabeleira que se desenrola diante dela. Mexe em todos os sentidos naquela luxuriante meada de seda. Coça delicadamente a raiz dos cabelos, beliscando a pele com habilidade e fazendo ouvir, de tempos a tempos, um estalido seco entre a unha do polegar e a do dedo médio. Esta sensação torna-se uma fonte de prazer para o sensualismo das crioulas. Um voluptuoso arrepio percorre os seus membros ao contato dos dedos acariciadores. Invadidas, vencidas pelo fluido que se espalha em todo o seu corpo, algumas sucumbem à deliciosa sensação e desmaiam de prazer sobre os joelhos da mucama”. Mas antes que Roger Bastide chamasse a atenção para o aspecto lésbico dessas carícias, em seu texto Psicanálise do Cafuné, as pessoas já comentavam, e de há muito, o assunto. Nem foi por outro motivo que Expilly escreveu as seguintes palavras: “Se se acreditasse nas más línguas, algumas damas tinham razões mais poderosas para cultivar assiduamente o cafuné do que o desejo de uma doce superexcitação dos nervos, seguida de um estado de prostração que chega ao êxtase. Repugname, porém, aceitar esta idéia infamante e enfraquecer, por uma suspeita injuriosa, a admiração que provocam os reflexos azulados da opulenta cabeleira negra das brasileiras. Chamaram-me uma vez

de inimigo do Brasil, e dou-me por bem prevenido”. É claro que Expilly está se divertindo – e passa a informação sob a capa de um suposto insulto. Não quero dizer com isso, evidentemente, que as senhoras brancas da elite baiana de então fossem todas umas taradas. Elas não eram nenhumas santinhas, obviamente. E ninguém é, em parte alguma do mundo. Os depoimentos prestados ao Tribunal do Santo Ofício mostram, claramente, o cultivo de transgressões, do “sacrilégio” ao lesbianismo. Mas o fato é que aquela era uma sociedade opressiva. As mulheres viviam sob severa vigilância, praticamente trancafiadas no sobrado. Viviam ali, cercadas pela escravaria, engordando no ócio. No comentário de Rodrigues de Brito, olhavam como se fosse uma virtude o isolamento que as fazia evitar os homens como a uma praga. Ouçamos: “As gelosias também obstam à civilização, escondendo o belo sexo ao masculino, para aparecer a furto sempre envergonhado. A destruição deste enconderijo mourisco poria as senhoras na precisão de vestir-se melhor para chegarem às janelas, a satisfazerem a natural curiosidade de verem, e serem vistas, e assim familiarizando-se com o sexo masculino, não olhariam como virtude o insocial recolhimento, que as faz evitar os homens, como a excomungados”. Froger, por sua vez, disse que as sinhás e sinhazinhas da Cidade da Bahia eram “de dar pena” – “pois jamais vêem ninguém e saem apenas aos domingos, no raiar do dia, para ir à igreja”. Havia, de resto, o provérbio que rezava que uma mulher realmente virtuosa só deveria sair de casa três vezes, ao longo de toda a sua vida – para ser batizada, para se casar e para ser enterrada. Daí que as suas saídas à rua fossem, quase sempre, acontecimentos de teor teatral. Passo a palavra, uma vez mais, ao velho Vilhena: “Quando saem às suas visitas de cerimônia, é em sumo grau asseadas, sem que duvidem gastar com um vestido quatrocentos mil réis, e mais, para aparecerem em uma só função; e tanto caso fazem, em ocasiões tais, de cetins, quanto nós poderemos aí [em Portugal] fazer de serguilha. As peças com que se ornam são de excessivo valor, e quando a função o permite aparecem com as suas mulatas, e pretas vestidas com ricas saias de cetim, becas de lemiste finíssimo, e camisas de cambraia, ou cassa, bordadas de forma tal, que vale o lavor três, ou quatro vezes mais que a peça; e tanto é o ouro, que cada uma leva em fivelas, cordões, pulseiras, colares, ou braceletes, e bentinhos, que sem hipérbole, basta para comprar duas, ou três negras, ou mulatas como a que o leva: e tal conheço eu que nenhuma dúvida se lhe oferece em sair com quinze, ou vinte, assim ornadas. Para verem as procissões, é que de ordinário saem acompanhadas de uma tal comitiva”. Além disso, aquelas senhoras não andavam. Eram carregadas. Mesmo. Saíam assim, aparatosas, em cadeiras que eram carregadas por parelhas de negros escravizados. No século XVII, eram levadas em redes, protegendo-se, é claro, do sol inclemente dos trópicos. Em seguida, vieram as chamadas cadeiras de arruar. Um luxo. E assim elas eram conduzidas, em meio ao seu cortejo privado de mulatas e negras engalanadas, fosse para uma igreja ou para uma festa num dos sobrados ricos da cidade. Fica difícil, à distância, exigir dessas mulheres qualquer preocupação com o bem público. Nem seria de bom tom, pelo visto, cobrar-lhes uma participação mais ativa na vida baiana. Não era bem isso o que se esperava ou se queria delas – o desejo patriarcal insistia na fêmea submissa, ignorante, tutelada pelo pai ou pelo marido.

O que havia, portanto, era o regime severo do sobrado – e a ostentação de riqueza na rua. Mas a vaidade não era monopólio das mulheres. O já citado Visconde de Cairu, por exemplo, dispara, entre divertido e irritado: “Este Estado do Brasil se acha ainda no da inocência ou da ignorância a respeito daquelas leis suntuárias, porque aqui não há notícia, nem observância delas, mas cada um se regula pelo seu apetite e veste como lhe parece sem diferença alguma no modo e no excesso do imoderado luxo, nos trajes e adornos de ouro, prata e sedas; e com tantas desordens que se não conhecem as pessoas de um e outro sexo pelo ornato dos vestidos; porque estes lhes confundem as qualidades e só pelos acidentes das cores se distinguem uns dos outros, excedendo quase todos em muito as suas possibilidades”. A ostentação era tanta que muitos contraíam dívidas e iam à falência por conta do exibicionismo. No dizer do Visconde, as mulheres baianas andavam tão embonecadas, tão cobertas de jóias, que mais pareciam “taboletas de oiro”. Mas a rua não era o espaço das senhoras. Em vez da claridade, o que as abrigava era o aposento escurecido do sobrado colonial. Quem realmente vivia as vias públicas eram mulheres mais pobres, negociantes que possuíam vendas ou tavernas, escravas de ganho, negras e mulatas que mercanciavam pela cidade. Eram mulheres que sabiam providenciar o sustento de suas próprias casas ou que suplementavam o orçamento doméstico, cativas que assim aumentavam os rendimentos de seus senhores ou mesmo labutavam para comprar a sua alforria. Aqui, o que se via era o avesso mesmo da indolência conventual das senhoras brancas da elite. A vida corria ao ar livre. Tudo era atividade. E o fato é que eram principalmente elas e os negros de ganho que davam colorido às ruas da cidade. No extremo oposto ao das senhoras (ainda que “climatizadas”), ficavam as “mulheres da tarifa”. A prostituição feminina nunca foi coisa insignificante em Salvador. Gregório de Mattos cantou, em seu estilo desabusado, as putas seiscentistas da Bahia de Todos os Santos. Ficava furioso, aliás, com os sacerdotes que concorriam com ele, disputando as boas graças daquelas mulheres. No século seguinte, o problema permanecia. Vilhena, mais conservador que Gregório, reivindicava a determinação de um bairro só para elas. Uma espécie de gueto-das-prostitutas, como ele defende, numa das suas cartas: “Visto não ser permitido, mas tolerado, o haver mulheres públicas, entre os povos cristãos; seria na Bahia um acertado rasgo de política, o destinar-se em algum dos subúrbios da cidade, onde há casas de menos preço, e consideração, a morada para todas as que sem pejo se entregam, como por modo de vida, à depravação; e limpar de algum modo a cidade desta praga tão contagiosa, visto que com os seus desonestos exemplos, e palavras torpes proferidas sem pejo altamente, escandalizam os vizinhos, que querem reger, e educar suas famílias, segundo as regras da moral cristã; bem como se lhes devera vedar o transitarem pela cidade depois do toque do sino a recolher; se bem que esta cerimônia ninguém sabe o para que serve; assim como o toque de recolher para os militares, que é o mesmo que fosse para sair, porque então o fazem até das guardas”. O jesuíta Antonil se refere, aliás, ao uso ou à negociação sexual do corpo com o objetivo específico de comprar a carta de alforria. Considerava ele que os senhores deveriam selecionar moralmente as escravas que deveriam ganhar a condição de libertas – e jamais “forrar mulatas desinquietas de perdição manifesta”. O motivo? Simples: “...o dinheiro, que dão para se livrarem,

raras vezes sai de outras minas, que dos seus mesmos corpos, com repetidos pecados; e depois de forras continuam a ser ruína de muitos”. A propósito, Gentil de la Barbinais já dizia que “se se tirassem aos portugueses seus santos e suas amantes, eles se tornariam bem mais ricos”. Mas não é impossível que as relações entre senhoras e prostitutas tenham sido menos distantes do que se costuma imaginar. Um viajante estrangeiro comentou que as senhoras baianas possuíam mais jóias do que virtudes. E um outro chegou a dizer que algumas senhoras enfeitavam escravas suas, encaminhando-as à prostituição, com o propósito de obter lucros com esse empreendimento sexual. Thales de Azevedo colocou tal afirmação sob suspeita, considerando a sua prática improvável, em vista dos rígidos costumes da época. Não sei. “Agora, que muitas pretas e mulatas desinquietas o fizessem, por conta própria, para atrair a atenção dos solteiros e casados, isso é certo”, assevera o antropólogo. “As negras eram audazes e muito protegidas”. Para confirmar o dito, Thales reproduz uma carta do soberano português ao nosso governador geral, escrita em resposta a um apelo da Câmara de Salvador, em 1709. Vale a pena transcrevê-la:

Eu El Rei vos envio muito saudar. Havendo visto a representação que me fizeram os oficiais da Câmara dessa Cidade sobre a soltura com que as escravas e escravos costumam viver e trajar nas minhas Conquistas Ultramarinas, andando de noite e incitando com os seus trajes lascivos aos homens. Me pareceu ordenar-vos façais com que se guarde a ordenação pelo que toca aos que andam de noite. E como a experiência tinha mostrado que dos trajes que usam as escravas se seguem muitas ofensas contra nosso Senhor. Vos ordeno não consintais que as escravas usem de nenhuma maneira de sedas, nem de telas, nem de ouro, para que assim se lhes tire a ocasião de poderem incitar para os pecados com os adornos custosos de que se vestem: e esta minha Lei façais executar em todas as Capitanias de vossa jurisdição, mandando-a para este efeito publicar e registrar nos Los. da Relação desse Estado, Secretaria e mais partes necessárias.

É claro que o decreto não vingou. Além disso, é importante notar que as coisas não aconteciam somente na rua ou apenas à noite, e nem sempre se reduziam à lascívia. A relação entre senhores e escravas comportaram também lances bem mais sutis, da sedução à gratidão, da cumplicidade cotidiana ao amor, como foi demonstrado pelas pesquisas de Ligia Bellini (ver, por exemplo, Por Amor e por Interesse: a Relação Senhor-Escravo em Cartas de Alforria, na coletânea Escravidão & Invenção da Liberdade, organizada por João José Reis), enfatizando, para além da mera exploração sexual, “a complexidade e a força dos laços pessoais que uniam escravas e proprietários”.

O PODER DOS MERCADORES É claro que o açúcar permaneceu, no século XVIII, como o manancial maior da riqueza baiana. Mas é também verdade que a Cidade da Bahia, ela mesma, nunca chegou a produzir coisíssima alguma. Nem um só garrafão de cachaça para consumo próprio. Era uma cidade essencialmente comercial – e de “serviços”. Durante muito tempo, todavia, as cartas foram dadas, aqui, pelos senhores de engenho, que formavam a chamada aristocracia rural. No século XVIII, diversamente, os homens de negócio exibem um admirável poder de pressão. Cercam, envolvem e mesmo orientam as autoridades coloniais. Bem vistas as coisas, a projeção desse agrupamento sócio-econômico vem ganhando visibilidade desde o século XVII. “Com o desenvolvimento da exportação do açúcar, do tabaco, dos algodões e ainda do couro e da madeira, a cidade passou de centro simplesmente administrativo a um forte núcleo de homens de negócio”, escreveu Thales de Azevedo. E esses homens de negócios começavam a jogar para o alto a timidez, intervindo “francamente no governo, fazendo sugestões e protestos em defesa dos seus interesses”. Era a tomada da cena pela “máquina mercante”, de que falava a poesia de Gregório de Mattos. Sim. Num soneto que ficaria famoso, ao ser musicado e gravado por Caetano Veloso em seu disco Tranza, o velho Gregório de Mattos já assinalava a emergência dessa nova falange social e financeira, protestando:

Triste Bahia! oh quão dessemelhante Estás e estou do nosso antigo estado! Pobre te vejo a ti, tu a mi empenhado, Rica te vejo eu já, tu a mi abundante. A ti tocou-te a máquina mercante, Que em tua larga barra tem entrado, A mim foi-me trocando, e tem trocado Tanto negócio e tanto negociante. Em Fidalgos e Filantropos, Russell-Wood escreve que “há todos os indícios de que no século

XVIII era possível fazer fortuna [na Bahia] sem possuir gado ou cana de açúcar”. Diz mais. Assevera que o esplendor setecentista da Cidade da Bahia estava ancorado, em última análise, em base comercial. “O comércio era a chave dessa prosperidade [baiana]”. E cita William Dampier, que frisou o caráter ativo de nossa comunidade de negócios, em defesa de sua tese. “Havia sempre demanda de capital na Bahia, fosse para financiar a colheita de açúcar, a compra de escravos, a compra de gado, ou simplesmente uma casa na cidade”. E eram os comerciantes que entravam com esse capital. Cobrando juros, evidentemente – uma taxa que, naquela época, ficava em pouco mais de 6% ao ano. Mas era comparativamente alto. Ainda mais porque, não raro, o capital emprestado acabava significando a aquisição daquilo que fora financiado. Salvador era, na verdade, um grande entreposto comercial. De uma parte, recebia produtos de pontos diversos do mundo. Da Europa, da África e, mesmo, da Ásia. De outra parte, não parava de enviar mercadorias suas para esses mesmos lugares. Trocava tabaco por negro, ouro por manufaturas inglesas, fumo e açúcar por seda. O comércio baiano-asiático é, hoje em dia, o menos citado. Mas nem por isso foi de pouca importância. Pelo contrário, recebíamos navios e produtos oriundos daquelas distâncias do Oriente. E para aquele Oriente tínhamos também os nossos próprios produtos. Viessem naves de Macao ou de Goa – e seriam bem-vindas. Havia, ainda, o circuito do comércio intracolonial. Nesse caso, aliás, o que se projetou, no século XVIII, foi o comércio entre a Bahia e o Rio Grande do Sul. Para lá, a Bahia mandava sal, açúcar, gêneros produzidos na Europa, doces, escravos. Para que se tenha uma noção da intensidade de tal parceria comercial, lembre-se que, entre os anos de 1798 e 1807, Lisboa enviou para cá 304 navios – o Rio Grande do Sul, 464. Em contrapartida, mandamos 258 naves para o porto de Lisboa e, para o Rio Grande do Sul, 459. Como se pode ver, o número das embarcações que faziam a conexão Bahia-Rio Grande do Sul superava, folgadamente, o das naves que nos conectavam com Lisboa. A realidade (e a grandeza) desse comércio colonial entre províncias nunca foi devidamente enfatizada por muitos dos nossos historiadores. Mas ali estava, certamente, um dos principais suportes da nossa vida econômica. Além disso, desdobrava-se, em várias linhas, a tessitura comercial interna que movimentava, por enseadas, ancoradouros e braços de rio, a vida própria do Recôncavo. Ainda nas primeiras décadas do século XX, esse movimento andava vivo, como sabe quem quer que tenha lido romances de Jorge Amado, como Mar Morto ou Os Pastores da Noite. Saveiros e mais saveiros se deslocavam sem cessar da Cidade da Bahia para o Recôncavo, e vice-versa, sob dias de chuva ou de sol, ou em noites quase sempre estreladas. A meiga Lívia e Mestre Manoel, personagens do fabulário amadiano, são descendentes mestiços do que, em verdade, já acontecia, por aqui, nos séculos XVII e XVIII, e até mesmo antes disso. Naquele panorama setecentista, há que destacar, obviamente, o comércio de carne humana. O tráfico de escravos. Este ramo do comércio da Bahia, organizado por famílias que pertencem atualmente às nossas elites, era, de fato, da maior importância. Não só porque era altamente lucrativo, mas também, e sobretudo, porque tinha um significado simplesmente vital para o funcionamento mesmo do sistema produtivo de nossa economia, inteiramente dependente da mão-de-obra escrava, trazida da África a bordo dos famigerados navios negreiros. Os mercadores de escravos eram os

responsáveis pela reposição de tal força-de-trabalho, que se desgastava com rapidez nas condições infra-humanas de vida que caracterizavam a sociedade senhorial-escravista. Eles injetavam sangue novo nas plantações que revestiam as terras amplas do Recôncavo. E era altíssimo o volume dos recursos que moviam, nesse seu incessante ir-e-vir entre as margens ocidental e oriental do Atlântico Sul, colocando negros e mais negros sob o signo daquela “estrela cruel” de que falara, em seus sermões de fogo, o padre Antonio Vieira. Mas o que importa salientar, no momento, é que, ainda ao longo do século XVIII, o “corpo dos comerciantes”, como dizia Vilhena, era olhado de forma atravessada. No entanto, eles não constituiam, naquela hora, apenas uma fração da elite baiana. Eram, de fato, uma fração especialmente poderosa no desenho da nossa hierarquia social, capaz de exercer pressões praticamente incontornáveis e, não raro, de determinar a conduta prática de nossa burocracia político-administrativa, incluindo-se aqui o primeiro escalão da administração “civil”, como ficou patente em atos de alguns governadores-gerais, manobrando para que os homens de negócio se dessem bem. Havia entre nós, naquele tempo, os grandes comerciantes, vinculados diretamente ao mercado internacional; os chamados “comissários”, que muitas vezes não realizavam mais do que uma operação financeira, suficiente para que se estabelecessem em outra atividade econômica, como a lavoura; os “atravessadores”, intermediários entre o setor produtivo e o comércio varejista de Salvador; e os comerciantes do varejo. O espectro ia, assim, dos mais ricos homens de negócio aos mais simples mascates. Mas, mais interessante do que tentar organizar uma listagem da distribuição operacional dos comerciantes, é assinalar dois outros aspectos da nossa realidade de então. Em primeiro lugar, os comerciantes se afirmaram como que a contrapelo da ideologia social que vigorava em nosso ambiente. Na Bahia seiscentista e setecentista, a atividade comercial não era vista como uma ocupação capaz de “enobrecer” um indivíduo. O comércio – o jogo das finanças – não conferia status a ninguém. O que dava prestígio, reconhecimento social, acesso à nobreza, era a agricultura. O cultivo sistemático e prolongado dos campos do Recôncavo – e não a especulação citadina, com a sua ciranda de empréstimos. Mas acontecia uma outra coisa. O comércio gerava riqueza – e, em conseqüência, poder, no sentido largo da palavra. Por isso mesmo – e aqui está o segundo aspecto da questão, que cumpre sublinhar – pessoas nobres, ou pertencentes à elite político-administrativa, se imiscuíam em operações comerciais. Mas, quase sempre, disfarçadamente. Acionavam, para a tarefa, os seus prepostos, ou testas-de-ferro, a fim de não atrair para si a pecha de que desenvolviam atividades infames, aos olhos da aristocracia. Assim, lucravam e, ao mesmo tempo, se preservavam. Ao falar daqueles comerciantes baianos, Vilhena já dizia – “alguns comerceiam só com o nome, e com cabedais de personagens a quem seria menos decente o saber-se que comerceiam”. Aliás, é o próprio Vilhena quem se encarrega de publicar que eram das casas mais opulentas da Cidade da Bahia, ali onde se celebravam os grandes contratos, que saíam para a rua até mesmo os vendedores ambulantes, mercando iguarias daquilo a que hoje chamamos “cozinha baiana”. Por esse detalhe, pode-se imaginar o que, em realidade, ocorria. Dinheiro era dinheiro, afinal.

De qualquer modo, os comerciantes baianos se enriqueceram e passaram a ter poder. Possuíam capitais, faziam empréstimos aos senhores de engenho, cobravam juros, delimitavam diretrizes de ação para as autoridades coloniais. A traficância do ouro não representou o maior dos seus lucros, mas também não foi o menor. E o seu poder chegou a tal ponto, que eles se tornaram alvo da hostilidade popular. Não foram poucas, na Bahia setecentista, as manifestações da irritação do povo contra o que se considerava abuso dos mercadores, atravessadores, etc. Eles já haviam se firmado, àquela altura, como um bloco de poder. Um bloco exigente e ciente de sua importância nas articulações do sistema colonial. Ou, ainda, uma força econômica que se podia eventualmente questionar e mesmo combater, mas que era impossível contornar. Vilhena definia a praça baiana, no século XVIII, como “uma das mais comerciosas das colônias portuguesas”. E, de fato, era. De acordo com Maria Beatriz Nizza da Silva, é possível afirmar que o núcleo mais forte de negociantes, no Brasil Colônia, achava-se concentrado na região da Bahia de Todos os Santos, vindo a seguir, em importância, os grupos mercantis do Rio de Janeiro e de Pernambuco. Ainda segundo Nizza da Silva, “o corpo dos comerciantes atuava como um corpo coeso sempre que se tratava da defesa dos seus interesses”. Essa coesão, visível para quem quer que consulte a documentação da época, foi fundamental para a sua afirmação na paisagem sociopolítica da Bahia setecentista. Falamos anteriormente da novidade dos conjuntos gerados pelo urbanismo barroco. Mas a sua novidade não foi somente urbanística, arquitetônica ou plástica. Foi, também, novidade social. Assim como o Estado, a Igreja e a nobreza inscreveram concretamente o seu poder no corpo da cidade, erguendo igrejas e palácios, também o novo poder dos mercadores se expressou materialmente no espaço urbano. Goulart Reis sublinhou com clareza o que havia ocorrido: “O conjunto urbano da Cidade Baixa era como um grande cenário, para quem chegasse à Bahia, por mar. Mas era também um cenário para a vida dos setores ligados ao capital comercial, na Cidade Baixa, geralmente controlados diretamente por portugueses natos. Se os palácios de portadas barrocas da Cidade Alta, construídos em fins do século XVII e início do XVIII, foram uma afirmação do poder dos grandes proprietários rurais da Bahia, o conjunto urbano da Cidade Baixa foi uma afirmação do poder de seus rivais, os comerciantes da segunda metade do século XVIII e do início do século XIX. Os primeiros se afirmavam por obras monumentais isoladas, e praças com edifícios oficiais. Os últimos por obras simples, integradas em conjuntos monumentais e praças com edifícios destinados a fins comerciais: mercado, praça do Comércio e Alfândega”. Em resumo, as atividades comerciais que nasceram com a agricultura de exportação, no século XVI, acabaram por promover uma diversificação em nosso desenho social. O comércio foi sempre mais e mais florescente na região. No dizer de um estudioso, aquela cidade era “o universo do fluir da mercadoria”. E assim, no final do século XVIII, os grandes mercadores já integravam – ao lado de proprietários rurais, membros da burocracia político-administrativa, figuras do alto clero e militares de altas patentes – aquilo que, à falta de expressão melhor, caracterizamos como a “elite” da sociedade baiana de então. E as obras físicas que realizavam haviam já transformado a personalidade urbana da Cidade da Bahia.

A DEVASTAÇÃO AMBIENTAL Fala-se muito, hoje em dia, da questão ecológica. Mas, regra geral, as pessoas se portam como se os delitos ambientais fossem uma criação recente, efeitos inevitáveis e específicos da civilização urbano-industrial. Não é bem assim. O que há, nos dias que passam, é que a nossa capacidade destrutiva alcançou um grau historicamente inédito. Temos poder suficiente para detonar o planeta. Mas isso não significa que crimes contra o mundo natural sejam uma invenção contemporânea. Bem vistas as coisas, a história da devastação ambiental dos trópicos brasílicos começou com os índios. Foram eles que deram início ao processo de destruição da vegetação que recobria milenarmente o nosso litoral. Quando os primeiros navegadores europeus chegaram aqui, não deram de cara com uma natureza “pura”, intocada. Mas com um mundo onde, para lembrar o trocadilho de James Joyce, a mão do homem já havia posto os pés. Seres humanos circulavam há milênios por esses trópicos. Dados arqueológicos revelam que a zona costeira do Brasil já possuía “sambaquis”, depósitos de conchas marinhas e restos humanos, há oito mil anos atrás. Viviam então, em nosso atual território, populações engajadas em atividades de caça e coleta de alimentos. E tudo indica que essas populações não deixaram de realizar as suas intervenções no mundo natural. Apesar das evidências disponíveis, todavia, o terreno permanece hipotético. Os problemas começam, de fato, quando começam as práticas agrícolas. A agricultura representa – sempre – uma reviravolta radical na relação do homem com a natureza. Quando ela se impõe, o ecossistema deixa de imediato de ser regido por processos unicamente naturais. Foi com a onda invasora dos tupis, portanto, que as coisas começaram a ficar um pouco mais complicadas. Para resumir numa fórmula, podemos dizer o seguinte: onde os tupis avançam, a floresta recua. Em seu livro A Ferro e Fogo - A História e a Devastação da Mata Atlântica Brasileira, Warren Dean sublinhou duas evidências desse desmatamento ameríndio. “Exploradores e missionários do século XVI raramente sugerem que a floresta de alguma forma se imiscuía em seus afazeres. Poucas vezes relatam qualquer dificuldade em atravessá-la e diversos deles, despachados pelos primeiros expedicionários, penetraram centenas de quilômetros com aparente facilidade. (...). Uma outra evidência: entre os primeiros títulos de doação de terras na área do Rio de Janeiro, que datam dos anos de 1590, quase todos descrevem as áreas doadas como matos maninhos, aparentemente de crescimento secundário; poucos se referem a matos verdadeiros – evidentemente uma transliteração do tupi caá-etê. Dois ou três mil moradores da vila do Rio de Janeiro não poderiam, em quarenta e poucos anos, ter sido responsáveis por uma transformação tão grande”. Numa avaliação geral, Dean é categórico: “os tupis não eram conservacionistas no sentido de poupar os recursos naturais para as gerações vindouras”. Em suma, a floresta penou com a pressão tupi. Aliás, a agricultura tupiniquim-tupinambá se processava, basicamente, pelo método da coivara. Isto é: da queimada. Determinado o espaço onde fariam as suas roças, destinadas especialmente ao plantio da mandioca e do algodão, aqueles índios

incineravam a vegetação. Faziam, inclusive, fogueiras em volta das grandes árvores, para abatê-las mais facilmente. Enfim, enfrentavam a floresta com fogo. E só depois da obra destrutiva é que vinham com os seus chuços e as suas raízes, semeando. Os homens botavam fogo, as mulheres plantavam. E a produção agrícola tupi não era nada desprezível. Sabe-se que, em 1532, o navio Pélérine levou, da Índia Brasílica para a França, nada menos que 5,5 toneladas de algodão. Adiante, a história de nossa vegetação vai conhecer um novo capítulo, muito mais desastroso, para a sua sorte, do que a soma de todos os capítulos anteriores. O supracitado Warren Dean lembra que um dos primeiros atos dos portugueses, naqueles dias inaugurais do mês de abril de 1500, foi derrubar uma árvore, com a qual fizeram uma cruz. Celebraram então uma missa ao redor dessa cruz, cadáver de uma árvore, no Ilhéu da Coroa Vermelha – missa a que os índios assistiram de joelhos, imitando a postura dos lusitanos. À lembrança do fato, Dean comenta: “Os indígenas, que inocentemente se irmanaram com eles [os portugueses] naquela praia, não faziam idéia, tal como as árvores às suas costas, da destruição que essa invasão [européia] causaria”. Assim, durante o século XVI, a agricultura predatória dos tupis ganhou um aliado espantosamente poderoso, no processo de destruição das matas. Foram os europeus, que vinham em busca do paubrasil. O comércio montado em torno dessa madeira de tinturaria fez com que, em algumas décadas, as nossas florestas litorâneas fossem fundamente feridas. Os índios iam para o mato arrancar aquelas árvores enormes, abarrotando as naus européias de pau-brasil, em troca de objetos que não sabiam fabricar, como facões, espelhos e contas vítreas. Em From Barter to Slavery - The Economic Relations of Portuguese and Indians in the Settlement of Brazil, Alexander Marchant já chamava a nossa atenção para o tema, escrevendo que o tráfico de pau-brasil fora tão intenso que havia deixado as florestas brasílicas “stripped of their trees”. Florestas nuas, desarvoradas. O cálculo de Warren Dean, a esse respeito, é simplesmente impressionante: “Em 1588, 4700 toneladas de pau-brasil passaram pela aduana portuguesa, talvez metade do verdadeiro volume. O tráfico francês clandestino de madeiras corantes era tão bem estruturado quanto o dos portugueses ou até melhor – um cronista de meados de 1550 relatou haver observado 100 mil pedaços de tronco estocados na colônia francesa do Rio de Janeiro. Havia ainda o contrabando intermitente feito por navios espanhóis e ingleses. Em conjunto, todos esses negociantes podem ter provocado a extração de 12 mil toneladas [de pau-brasil] por ano”. E a participação da Bahia de Todos os Santos e seu Recôncavo, nesse volume, não foi nada insignificante. Desde antes do surgimento da aldeia de Diogo Caramuru, o comércio de pau-brasil foi intenso na região. Participamos assim, ativamente, desse período euro-ameríndio da devastação florestal. Em seguida, vieram as plantações de cana e de fumo. A opção lusitana pela monocultura latifundiária representou um sistema devastador de ocupação das terras do Recôncavo. Foi uma espécie de golpe de misericórdia desferido contra a velha cobertura vegetal da região. Há informações de que, na segunda metade do século XVI, a vegetação original de Paripe, Pirajá, Cotegipe e Matoim já havia sido praticamente destruída. No século seguinte, com a expansão da fronteira agrícola, a paisagem do Recôncavo seria já completamente outra, irreconhecível para um olhar ameríndio. As extensas plantações de cana-de-açúcar exigiam, simplesmente, a retirada da

cobertura vegetal existente, para então se espraiar. E o consumo de lenha pelos engenhos era, igualmente, um fator transformador. Para se ter uma idéia, estima-se que, para cada quilo de açúcar que se produzia, era preciso queimar cerca de quinze quilos de lenha. “O alimento do fogo é a lenha”, dizia então Antonil, contando com quantos paus se fazia um engenho. Coisa que aliás, no seu entender, só seria possível no Brasil, “por não haver outra parte do mundo tão rica de paus seletos, e fortes”. Usava-se o jacarandá, o pau-brasil, o vinhático, etc. O madeiramento da casa do engenho deveria ser de massaranduba; os eixos da moenda, de sapucaia; as rodas-de-água, de pau-d’arco. E por aí vai: canoas de jequitibá, quilhas de sapupira, remos de lindirana, ou de jenipapo. Assim, o crescimento das canas e o funcionamento das fornalhas – que Antonil define como “bocas tragadoras de matos, cárceres de fogo e fumo perpétuo” – iam destruindo o que havia para destruir. E as coisas não tiveram retorno. Se em 1676 o Recôncavo abrigava 130 engenhos, à entrada do século XVIII, em 1710, o seu número havia subido para 146. Por outro lado, não existia o menor indício da existência de uma preocupação pública ou privada que dissesse respeito à conservação ou ao destino da mata. Pelo contrário. Vimos antes que, escrevendo no século XVII, frei Vicente do Salvador investia contra o modo colonial de lidar com a terra, afirmando que aqueles colonizadores só pensavam em explorá-la até onde fosse possível. Em usá-la – e abusar de sua bondade. Não eram, por isso mesmo, “senhores”, dizia ele, mas sim “usufrutuários”. O que importava era enriquecer. Três séculos depois de frei Vicente, Warren Dean não dirá palavras muito diferentes: “os plantadores de cana não viam na floresta nada além de um obstáculo à realização de suas ambições”. Além de destruir a mata, o sistema da monocultura trazia uma outra conseqüência grave. Aprofundava o problema da fome baiana. Ou, para dizer o mínimo, fazia com que a região vivesse em permanente crise de abastecimento. Claro. Ainda no século XVII, algumas autoridades coloniais se mostraram preocupadas com o avanço das plantações de fumo, nucleadas na região da Vila de Cachoeira: se não havia espaço para plantar gêneros alimentícios, como as pessoas poderiam comer? É certo que às vezes havia fartura – e muita – de alimentos. Mas houve também momentos – e não poucos – de penúria alimentar. Nem foi por outro motivo que, a caminho do final do século XVII, um alvará real proibiu a plantação de tabaco e a criação de gado na orla do mar e na margem dos rios. Espaços precisavam ser reservados para o plantio de coisas que pudessem alimentar a população. Mas o problema persistiu na centúria seguinte. Havia quem considerasse que era perda de tempo plantar mantimentos. No final do século XVIII, a Câmara lutava ainda pela mandioca. E a polêmica terminou por entrar no século XIX. Uma polêmica que, ainda que se articulando em contexto bem diverso do nosso, soa para nós como algo familiar. De um lado, ficaram aqueles que achavam que o Governo estava certo ao ditar a lei que estabelecia a obrigatoriedade do plantio de produtos alimentares. De outro, os senhores do açúcar, que consideravam inaceitável a imposição, bradando que o Estado agia erradamente ao querer determinar o que eles deveriam fazer em suas terras. Exemplo dos primeiros foi Vilhena. Ele atacava os grandes produtores de açúcar que, pensando apenas em seus próprios lucros, não hesitavam em deixar a população sob a ameaça permanente da fome. Para Vilhena, só havia uma

saída: obrigar os plantadores a reservar partes de suas propriedades para o plantio de gêneros alimentícios. Rodrigues de Brito, por sua vez, falava em nome dos senhores. Dizia que não iria “renunciar à melhor cultura do país [a cana] pela pior que nele há [a mandioca]”. Os que pensavam como ele rejeitavam qualquer interferência estatal em seus assuntos, fosse para determinar opções de plantio ou para fixar preços. Ou seja: esta foi a primeira grande polêmica que se armou entre nós em torno do chamado “liberalismo econômico”. A disputa entre os defensores da regulamentação estatal da agricultura e os defensores do laissez-faire nos canaviais. Mas deixemos de parte o debate – e vamos em frente. Havia, com certeza, alternativas alimentares para a população local. A alternativa do pescado, por exemplo. De peixes como a cavala, o vermelho, o xaréu, o dourado, o olho-de-boi e mesmo o tubarão. Mas sabe-se que, nos séculos XVII e XVIII, já não era tão fácil assim comer peixe. Já não se achava mais a abundância de peixes dos tempos dos tupinambás e dos primeiros dias coloniais. A especulação comercial (com a sua rede de atravessadores) e a pesca predatória eram apontadas, já naquela época, como os principais fatores que concorriam para fazer do peixe um produto raro e caro. A Câmara se manifestou, aqui e ali, sobre o problema. De sua ótica, tudo decorria do emprego de “redes miúdas, de arrasto”, que recolhiam peixes muito pequenos, impedindo-lhes a procriação – e da ausência de criação, de viveiros de peixes. Como se vê, se ninguém se voltara para a questão da preservação da mata, existia a preocupação com a conservação da fauna marinha, de modo que a alimentação local não ficasse tão empobrecida. Ainda assim, o problema permaneceu – permanecer, aliás, parece ser a sina de boa parte dos problemas baianos. Thales de Azevedo cita dois embarcadiços ingleses que, estando aqui em meados do século XVIII, observaram que “o peixe era pouco abundante na Bahia”. Mas é óbvio que nem tudo pode ser atribuído a fatores comerciais e ambientais. Um dos maiores problemas relativos à nossa alimentação estava no fato de que a Cidade da Bahia providenciava o abastecimento dos navios e frotas que aqui aportavam. E a movimentação marítima era notável. Thales de Azevedo nos dá uma idéia clara da situação, em O Povoamento da Cidade do Salvador. O abastecimento desses navios significava um sacrifício enorme para o nosso povo. Lembra Thales que, quando Lourenço de Almada chegou aqui, no começo do século XVIII, havia nada menos que noventa navios em nosso porto, carregando mais de nove mil pessoas. Era demais. Como se não bastasse, as mercadorias que aqueles navios traziam tinham que ser pagas em moeda viva, cash, o que resultava em escassez de dinheiro na região. E disso se valiam os comerciantes locais para especular, complicando ao extremo a vida dos mais pobres. Gregório de Mattos deixou-nos um retrato incisivo de tal situação, pontuando as suas observações com um “cala-te boca” (no caso, “ponto em boca!”) :

Toda a cidade derrota esta fome universal; uns dão a culpa total

à câmara, outros à frota. A frota tudo abarrota dentro nos escotilhões - a carne, o peixe, os feijões e se a câmara olha, e ri porque anda farta até aqui, é cousa que me não toca. Ponto em boca! Se dizem que o marinheiro nos precede a toda a lei, porque é serviço del-rei, concedo que está primeiro; mas tenho por mais inteiro o conselho que reparte com igual mão, igual arte por todos jantar, e ceia. Mas frota co a tripa cheia, e o povo co a pança oca? Ponto em boca! A fome me tem já mudo,

que é muda a boca esfaimada, mas se a frota não traz nada por que razão leva tudo? Que o povo por ser sisudo largue o ouro, e largue a prata a ua frota patarata, que entrando co a vela cheia, o lastro que traz de areia por lastro de açúcar troca? Ponto em boca! Se quando vem para cá nenhum frete vem ganhar, quando para lá tornar o mesmo não ganhará. Quem o açúcar lhe dá perde a caixa, e paga o frete, porque o ano não promete mais negócio, que perder o frete, por se dever, a caixa, porque se choca. Ponto em boca!

Entretanto eu sem abrigo, e o povo todo faminto; ele chora, e eu não minto, se chorando vo-lo digo: tem-me cortado o embigo este nosso General, por isso de tanto mal lhe não ponho algua culpa; mas se merece desculpa o respeito a que provoca, ponto em boca! Com justiça, pois, me torno à Câmara nossa senhora, que pois me traspassa agora, agora leve o retorno: praza a Deus que o caldo morno, que a mim me fazem cear da má vaca do jantar por falta de bom pescado, lhe seja em cristéis lançado;

mas se a saúde lhes toca, ponto em boca! Claro que é sempre bom ouvir ou reouvir a língua afiada do Boca do Inferno. Mas aqui já estou me desviando do tema. É certo que questões ambientais e questões sociais não costumam andar desquitadas. Entrelaçam-se, desde sempre. Especulação comercial, no entanto, não é o que nos interessa, pelo menos agora. O que importa reter é que a mata baiana já estava inteiramente desfigurada, quando a Cidade da Bahia e o seu Recôncavo iam atravessando a centúria de setecentos. E mais: que o modo como se deu a agonia final da vegetação, expulsa pelas plantações exclusivistas de cana e de fumo, concorreu para o agravamento, em nosso meio, das aflições da fome.

SOBRE SAVEIROS Antonio Vieira disse belas palavras sobre o mar. Foi num Sermão de Santo Antônio, pregado na Igreja das Chagas de Lisboa, em 1642, quando Portugal já se libertara do domínio espanhol. Vieira fala dos “elementos transformados” de que julgava se compor o sal – fogo, ar e água –, comparandoos aos três “estados” que formavam, tradicionalmente, a sociedade portuguesa: nobreza, clero e povo. Para, então, afirmar: “...o elemento água representa o estado do povo: – Aquae sunt populi [as águas são o povo], – diz um texto do Apocalipse – e não como dizem os críticos, por ser elemento inquieto e indômito, que à variedade de qualquer vento se muda, mas por servir o mar de muitos e mui proveitosos usos à terra, conservando os comércios, enriquecendo as cidades, sendo o melhor vizinho que a natureza deu às que amou mais”. O mar que Vieira via não era, portanto, aquele mar pérfido de que falou Lucrécio em De Rerum Natura – o corpus acerbum de Netuno, com as suas insídias, a sua violência, a sua astúcia, no qual não devemos confiar nem quando nos sorri, plácido, com o seu feitiço enganador. O que Vieira contemplava, do alto da Cidade do Salvador, através das janelas abertas do Colégio dos Jesuítas – o “suntuoso colégio dos padres da Companhia de Jesus, com uma formosa e alegre igreja, onde serve o culto divino com mui ricos ornamentos” (Gabriel Soares) –, era uma outra realidade: a baía solidarizante, vinculável, socializadora. Cardim, que foi reitor do Colégio quando o adolescente Vieira fazia o seu noviciado, assim compõe o quadro: “...das janelas [do Colégio] descobrimos grande parte da Bahia [de Todos os Santos], e vemos os cardumes de peixes e baleias andar saltando n’água, os navios estarem tão perto que quase ficam à fala”. Aquelas águas marinhas significavam não armadilha ou divórcio, mas aproximação, contato, correspondência, permuta, vida vicinal.

No tempo de Vieira, a Cidade da Bahia e seu Recôncavo já exibiam os lineamentos de uma fisionomia própria, ostentando prédios como o da Casa da Câmara e Cadeia, projetada por um padrearquiteto espanhol, o beneditino Frei Macário de São João, a quem também se atribui o projeto que transformou, em palácio barroco à beira-mar, a Casa da Torre de Garcia d’Ávila, implantada em Tatuapara. O Bairro da Praia, por sua vez, agitava-se em atividades comerciais, com o seu porto, seus armazéns, seus trapiches. No Recôncavo central e sulino, Recôncavo barroco dos canaviais, erguiamse as primeiras vilas, a exemplo da de Nossa Senhora da Ajuda de Jaguaripe. E toda essa trama se articulava, como vimos, por caminhos de água – fluviais e marítimas. Em Salvador, mesmo para ir do Bairro da Praia a Monte Serrat e à Ribeira, trajeto possível por terra, as pessoas preferiam a via aquática, margeando rente ao litoral. A Bahia de Todos os Santos era então, simultaneamente, espaço de convergência e irradiação, acolhendo e despachando desde saveiros de pequeno alcance até navios de alto mar. Já no século XVI, Anchieta dizia: “quase todo o serviço dessa baía é por mar”. Embarcações pequenas e médias coloriam diariamente a nossa paisagem, circulando sem cessar pelas águas do grande golfo e do Recôncavo. E o Recôncavo era mesmo uma realidade atlântica, vivendo entre águas salgadas e rios marinhos. Escreve Kátia Mattoso (Bahia, Século XIX – Uma Província no Império): “...não há tempestade na baía que não faça subir as águas dos rios do Recôncavo”. São rios sujeitos ao movimento das marés. Rios que, desaguado no golfo, providenciavam o entrelaçamento da capital, das ilhas e das vilas da interlândia. Fala Braz do Amaral, em sua História da Independência na Bahia: “...todos os que conhecem a Bahia sabem que esta cidade é alimentada pelas vitualhas que lhe são trazidas dos inúmeros portos da beira d’água, onde são colhidos os cereais, farinhas, frutas, animais domésticos, etc., artigos que são conduzidos ao mercado, graças à ativa navegação que se faz no golfo todas as semanas”. E a mesma Kátia Mattoso: “A Bahia de Todos os Santos é um mar interior para as pequenas embarcações. Elas não se aventuram além da barra que separa a baía e o oceano sem limites. Podem ignorá-la fragatas, bergantins, grandes veleiros, grandes vapores vindos de além-ilhas. Mas são os homens do mar do Recôncavo e da Cidade do Salvador que garantem, com seus barcos, as trocas cotidianas. Marinheiros das ilhas, das praias e das enseadas, marinheiros de inúmeros cursos d’água que penetram nas terras, pescadores, transportadores – eles conhecem as riquezas de sua baía, mas conhecem também as traições sempre possíveis de suas águas e ventos... Na Bahia de Todos os Santos, águas e terras entremeadas guardavam, consertavam, reabasteciam, carregavam e descarregavam mais de mil embarcações de todo tipo. Descrevê-las todas seria impossível: barcos rudimentares, canoas e botes; barcos de tamanhos variados, que se lançavam corajosamente ao mar, tendo a bordo um, dois ou três homens; saveiros para transporte ou pesca, barcaças, tábuas, balcões, lanchas, sumacas e, principalmente, jangadas de quatro troncos. Águas, salgadas e doces, eram os caminhos percorridos por homens e mercadorias... No século XIX, as vias terrestres eram precárias e insuficientes, mas havia água por toda parte. Os velhos saveiros, hoje transformados em barcos de lazer, lembram-se ainda dos périplos de antanho, dos peixes espalhados e escolhidos na areia, dos fardos descarregados em ancoradouros ou diretamente na praia.” Essas embarcações, como as jangadas e os saveiros, que rendilhavam o golfo setecentista baiano,

singraram por séculos as nossas águas, inclusive para alcançar, ainda que à beira da aposentadoria (a menos que o turismo ecológico e cultural as recupere e revitalize, dando-lhes outras destinações), os dias atuais. Nem é por outro motivo que elas vêm atravessando, com desenvoltura, toda a história da criação textual baiana, da poesia de Gregório de Mattos (“...trespassamos o saveiro,/ que ia então vendendo azeite”) ao cancioneiro de Dorival Caymmi, com as suas jangadas, os seus barquinhos brancos, a sua galeota, passando por versos barrocos de Santa Maria Itaparica e pelo artesanato lingüístico do simbolista Pedro Kilkerry, para não falar do romance de Jorge Amado, onde o saveiro aparece como instrumento de trabalho, meio de transporte, veículo para farras (as “saveiradas”) e abrigo de casais, em noites de amor. O navegador Amyr Klink, aliás, em entrevista na televisão ao jornalista Boris Casoy, no programa Passando a Limpo, enfatizou que o Brasil é um dos países que tem maior diversidade de estilos navais, em todo o mundo. Olhando a nossa paisagem náutica, não podemos passar ao largo da variedade do feitio, do desenho, da técnica construtiva, do material empregado nas embarcações, que encontramos ao longo do longo litoral brasileiro. E é regra quase geral: cada lugar intensamente aquático acaba engendrando embarcações características, ou transformando, a seu modo, modelos náuticos originários de outras regiões. Foi assim que se firmou a “chiola” de Viana do Castelo, pequena embarcação comercial de cabotagem, que navegava basicamente para os portos da Galícia, carregando peixes, frutas, cereais, panos, madeiras, etc. Que surgiram a quffa bojuda e o kalak, uma espécie de jangada, que os antigos árabes fabricavam, para navegação estritamente local, nas margens do Tigre e do Eufrates, como aprendemos na leitura de As Aventuras de Sindbad, o Marujo, romance composto em Bagdá aí pelo século IX, talvez sob o reinado do califa Harun al-Rachid. A Bahia, à sua maneira, não escapou desse semi-determinismo. Herdeira da igapeba ou piperi dos índios tupinambás – vale dizer, de tradições náuticas ameríndias, que incluíam, obviamente, o conhecimento das madeiras tropicais mais próprias ao fabrico de barcos, da sucupira à massaranduba – e de embarcações lusitanas ou traduzidas pelo português, não deixou ela de também dar a sua pitada no campo da tipologia naval. Em seu caso específico – baía de navios, corvetas, sumacas, canoas, lanchas, jangadas –, o saveiro ocupou, durante séculos, um lugar especial, especialíssimo, com o seu incessante ir e vir sobre águas doces e salgadas. Em poucas palavras, o saveiro teve um papel fundamental na história econômica e cultural da Cidade da Bahia, suas ilhas e seu Recôncavo. A sua própria história, como tipo naval, tem o seu encanto. Dizem os especialistas que ele veio da Índia, através dos estaleiros de Portugal, para enfim se tornar personagem corriqueira – típica e trivial – das águas baianas. “Saveiro origina-se de saveleiro, barco usado nos rios de Portugal para a pesca do savel. Por extensão, saveleiro significa também o barqueiro; por transformação, a cadeia de sucessão fonética: saveleiro, salaveiro, saaveiro e saveiro”, esclarece o navegador e designer naval ucraniano Lev Smarcewski, em seu Graminho: a Alma do Saveiro. Diz o mesmo Smarcewski que a morfologia do saveiro nos remete, em última análise, aos mares do Oriente. A um tipo de embarcação que ficava a meio caminho entre o barco de mar alto e o barco de pesca, que outrora navegaram no Índico, no Golfo Pérsico e no Mar Vermelho. “No século XVI, recorreram os

portugueses aos estaleiros de Goa e de Cochim e aos seus construtores navais, oriundos de Málaca, da Índia e da China, complementando a sua frota com os mestres da Ribeira das Naus”, reconta o expert, para assinalar que, em seguida, essas práticas navais se deslocaram de Goa e Cochim para a Capitania Real da Bahia de Todos os Santos. Smarcewski lembra que “mestres construtores indianos [foram] trazidos de Goa, Cochim e, principalmente, da Ilha de Bitão para o Brasil no século XVI”. Com eles, trouxeram o graminho, de que logo iremos falar. Desse modo, se o estudioso está correto, a cultura indiana nos terá dado duas coisas fundamentais, sem as quais a Bahia, tal como a conhecemos, seria impensável: o saveiro e o carro de bois, elementos indispensáveis ao andamento de nossa economia agrícola, fundada na produção e na comercialização do açúcar e do tabaco. Como se sabe, os engenhos baianos do período colonial contavam, de modo praticamente unânime, com uma frota de carros de bois e uma frota de barcos – quase sempre, saveiros. De maneira geral, os carros de bois transportavam cana e lenha para a unidade fabril – e os barcos conduziam o açúcar, branco ou mascavo, para o porto da Cidade da Bahia. Conta Gabriel Soares que não existia engenho que não tivesse “de quatro embarcações para cima”. Na Bahia, os saveiros de vôo breve passaram a ser fabricados em Itapagipe, Santo Amaro da Purificação, Cachoeira, São Félix, São Francisco do Conde, Itaparica, Bom Jesus, Madre de Deus, etc. Já os chamados “saveiros de barra fora” eram produzidos em lugares como Valença, Cairu, Cajaíba, Ilhéus, Porto Seguro, Caravelas e Nova Viçosa. E assim os proto-saveiros orientais foram experimentando, entre nós e em outros pontos dos trópicos brasileiros, processos de americanização ou abrasileiramento. Smarcewski: “Os saveiros brasileiros foram adquirindo características próprias, regionais inclusive. Assim, os do Pará e Maranhão preservando a ortodoxia, os do Rio de Janeiro se modernizando e os da Bahia adquirindo tipicidade”. De certo modo, como se vê, essas trajetórias brasileiras do saveiro não deixam de manter uma curiosa correspondência com o que também ia ocorrendo em outros campos da vida e do fazer cultural, nas cidades citadas. Ainda para Lev Smarcewski, o graminho teria sido o responsável pelo alto grau de homogeneidade formal dos saveiros da Bahia. De fato, uma semiótica do saveiro jamais poderá deixar o graminho de parte. O graminho é um quadro de madeira com figuras geométricas, que funciona como uma espécie de calculador matemático, fornecendo parâmetros dos dimensionamentos estruturais e funcionais que orientam a construção de saveiros de tamanhos diversos. “É uma tábua com a relação 2:1, riscada com informações que estabelecem proporções a partir da capacidade de carga prevista, com as formas e as dimensões das diversas peças utilizadas na construção dos saveiros”. O graminho baliza, tutela a feitura do barco, determinando a sua fisionomia e assegurando a sua funcionalidade náutica. Em termos semióticos, trata-se de um “ícone de relações”, como diria Peirce. Um ícone de natureza diagramática – isto é, de uma configuração sígnica onde a relação entre significante e significado é analógica, regida pela similaridade entre as suas partes. Vale dizer, os traços do graminho irão projetar, no mundo físico, um análogo de sua disposição interna. Na boa definição de Smarcewski, o graminho é um ábaco, “detentor dos parâmetros utilizados

pelos mestres construtores indianos”, que para cá se transferiram. Há, ainda, um outro dado interessante, acerca do uso do graminho, relativo, agora, à cultura oral. Smarcewski: “As informações teóricas, necessárias para a utilização do graminho, foram guardadas e transmitidas oralmente e, para fixação na memória, também de forma mnemônica, através de cantigas rimadas. O engenheiro José Góes de Araújo... nos informou que dentre as suas recordações de menino em férias, em Salinas da Margarida, estão as cantigas de roda sobre o graminho”. Infelizmente, essa produção poético-musical se perdeu. São cantos que desapareceram – signos deletados da memória popular – tanto do litoral marinho quanto das margens de nossos rios. Numa apreciação geral, podemos dizer que os construtores navais da Bahia chegaram a ter um alto conhecimento de seu ofício. Eles não só conheciam muito bem os tipos de madeira mais adequados à confecção de cada elemento náutico, por exemplo, como condicionavam a sua extração à diversidade dos influxos das fases lunares. Além disso, sabiam avaliar as diferenças entre espécimes de uma mesma espécie, em função de sua localização no terreno, já que árvores situadas em elevações apresentam troncos mais consistentes do que aquelas que crescem em vales, ou próximas a lagoas e lagos. E não será demais sublinhar que muito desse repertório eco-tecnológico veio, como disse, da cultura náutica ameríndia. “Assim, as técnicas indígenas de várias confecções, artesanatos e aproveitamento de matérias-primas aceitas pelo colonizador na lavoura, na construção das casas, na escolha e preparo de comestíveis e em outros inúmeros setores da vida social, estenderam-se também à construção naval”, como observou José Roberto do Amaral Lapa, em A Bahia e a Carreira da Índia. Mas a verdade é que hoje os saveiros se encontram em véspera de extinção. Se olhamos a produção textual da Bahia no século XVIII, da prosa de Vilhena à poesia de Botelho de Oliveira (Música do Parnaso, 1705) e Manuel de Santa Maria Itaparica (Eustáquidos, 1769), são constantes as referências ao saveiro. Em Botelho: “Os pobres pescadores em saveiros,/ Em canoas ligeiros...”; em Itaparica: “Aqui se cria o peixe copioso,/ E os vastos pescadores em saveiros,/ Não receando o Elemento undoso,/ Neste exercício estão dias inteiros”. Mas é claro que os saveiros não ficaram retidos no século XVIII. Na centúria seguinte, prosseguem sua navegação textual. Repontam, por exemplo, em Jana e Joel, a novela eco-romântica de Xavier Marques, publicada em 1899. Para, no século XX, como ficou dito, tomar conta das águas baianas de Jorge Amado, em romances como Mar Morto e Os Pastores da Noite. É de um saveiro, aliás, que Quincas Berro Dágua se atira no mar, gritando a sua frase derradeira: “Cada qual cuide de seu enterro, impossível não há”. O provável enterro do saveiro. A partir da década de 1970, os saveiros começaram a desaparecer da nossa marinha. As tradicionais rotas do Recôncavo para Salvador se esvaziaram inteiramente. As velas brancas sumiram de Água de Meninos e da Rampa do Mercado, hoje revisitáveis unicamente nos registros da antropologia visual de Carybé, Pierre Verger e Marcel Gautherot. Também os saveiros que vinham do Recôncavo Norte, entre Itapoã e Porto Sauípe, conduzindo pessoas e mercadorias, saíram de cena. Hoje, somente uns poucos circulam, carregando grupelhos de turistas. De seus brilhos passados, restam apenas os nomes, ainda belos, sugestivos ou pitorescos – Anjo dos Mares, Idiota, Cabaça Gostosa, Namorado da Lua, Pastorinha, Capricho, Linda Escolha, Cavaleiro da

Lua, Graça Divina, Xixi, Trovador, Luz do Mar.

ENSAIOS DE REBELDIA “Os negros... apesar da sua estupidez, conhecem contudo o preço da liberdade”, escrevia José da Silva Lisboa, futuro Visconde de Cairu, em carta a Domingos Vandelli, diretor do Real Jardim Botânico de Lisboa. Acrescentando: “Todos os dias se recebem más notícias de um preto morto, outro doente, outro fugitivo, outro rebelde, outro que deixou corromper os pés de bichos, por preguiça e ainda para desgostar o seu senhor”. O século XVIII foi, realmente, um tempo de irradiação e de aprofundamento prático da rebeldia negra, como se os africanos aqui escravizados estivessem ensaiando quase que sem descanso, em pontos vários da Bahia de Todos os Santos e seu Recôncavo, a armação das grandes cenas rebelionárias que tomariam conta das primeiras décadas do século seguinte, com a promoção de eventos tão espetaculares quanto sanguinários, no coração mesmo da Cidade do Salvador. Vamos seguir aqui, abreviadamente, a documentação reunida sobre o assunto por Pedro Tomás Pedreira, em Os Quilombos Brasileiros. O que houve então foi uma verdadeira maré de quilombos – ou “mocambos”, como também eram chamados, naquela época, os aglomerados de negros em fuga. É bem verdade que tais quilombos não se limitaram ao Recôncavo Baiano e à sua capital. Pontilharam, com focos de rebeldia, todo o mapa da antiga Capitania Real, das matas e mangues do Recôncavo à caatinga sertaneja e às florestas do Sul, entre Cairu, Camamu e Ilhéus. Pipocaram em lugares tão distintos quanto as regiões de Rio de Contas, Jequié, Jacobina, Itaberaba, Andaraí, Jequiriçá, Canavieiras, Cairu, Taperoá. E eram, às vezes, quilombos de longa duração, como o do Camisão, localizado nas redondezas da atual cidade de Ipirá, assediado e sobrevivendo, de 1722 a 1726, às ordens de ataque decretadas pelo Conde de Sabugosa, então nosso vice-rei. Mas vamos nos concentrar de momento, por motivos óbvios, no que aconteceu na Cidade da Bahia e seu Recôncavo. E não foi pouco o que aqui aconteceu. Em 1705, atendendo a uma solicitação da Câmara da Vila de Cachoeira, o governador Rodrigo da Costa despachava, em direção a Jacuípe, no Recôncavo Baiano, o coronel Bernardino Cavalcanti de Albuquerque. Aqueles cachoeiranos se queixavam da existência de um quilombo nas matas de Jacuípe. E o coronel fora enviado, nas palavras do próprio governador, com a missão de dar um fim às “insolências e roubos que os negros de um mocambo que há nos matos de Jacuípe fazem ao povo daquela Vila [de Cachoeira]”. O governador parecia realmente disposto a liqüidar o tal quilombo. Pedia que os moradores da região auxiliassem em tudo o seu enviado, fornecendo-lhe inclusive, caso fosse necessário, um grupo de índios rastejadores. Ninguém sabe, infelizmente, qual foi o final dessa história. Mas a verdade é que os negros não se mostraram inclinados a dar sossego ao Governo da Bahia.

No ano seguinte, 1706, foi a vez de moradores de Jaguaripe se queixarem ao governador. Não falavam no singular, mas no plural: havia quilombos na área. Sozinhos, não tinham como enfrentálos. Daí a solicitação ao governador Luís Cezar de Menezes. Eles se diziam oprimidos e impotentes, cercados por negros foragidos. Em resposta, o governador Menezes ordenou a destruição dos “mocambos”. Mas entre uma ordem e um fato vai sempre uma razoável distância. E, também aqui, nada sabemos do final da história. Um pouco adiante, o governo se dispôs a combater outros quilombos: os dos “negros levantados” que zanzavam pelos matos das freguesias de São Bartolomeu de Maragogipe e de São Pedro do Monte de Muritiba, ambas localizadas no Recôncavo. O encarregado de desmantelar os quilombos foi o “capitão-mor das entradas e mocambos”, Antonio Veloso da Silva. Veloso chegou a atacar pelo menos um dos quilombos. Mas a sua empreitada não parece ter sido exatamente bem sucedida. Alguns negros fugiram, “dois morreram na resistência” e dois foram presos. Muito pouco, na verdade. Claro: se alguém sai para devastar quilombos e volta praticamente com as mãos abanando, isto significa que os pólos rebeldes não foram erradicados. No máximo, se deslocaram para os lados, ou para um pouco mais adiante. Mas, dificilmente, foram destruídos. Em 1714, circula a notícia sobre o quilombo dos Campos da Cachoeira, território do atual município de São Gonçalo dos Campos. O governador Pedro de Vasconcelos escreve então ao já citado coronel Bernardino de Albuquerque: “Sou informado de que nos matos dos Campos da Cachoeira, distrito do Regimento de Vossa Mercê, há um grande Mocambo de negros fugidos... Pelo que ordeno a Vossa Mercê que tanto receber esta carta, avise logo de minha parte ao Capitão-mor das Entradas dos Campos da Cachoeira, que sem a mínima demora e dilação, se prepare com poder bastante e ponha cerco e prenda os negros, negras e crias que houver no dito Mocambo, reduzindo a tal forma que fique extinguido”. Mas, em vez de ser notificado acerca da destruição do mocambo, o governador é premiado com a informação da existência de um outro ajuntamento negro, “mais antigo e poderoso”, na mesma região. Era o quilombo de Caracuanha. Mais uma vez, desconhecemos os desfechos dessas investidas antiquilombolas. Mas as cartas do governador – uma dirigida ao coronel Albuquerque, outra aos oficiais da Câmara da Vila de Nossa Senhora do Rosário do Porto da Cachoeira – chamam a nossa atenção para uma outra coisa: a impotência do aparato repressivo diante do fenômeno quilombista. Na carta ao coronel, o governador estranha não ter sido avisado da existência do quilombo justamente por aquele que era o responsável pela desarticulação dos agrupamentos de negros prófugos. Na carta à Câmara da Vila de Cachoeira, requer o exame da “grandeza e poder” dos quilombos locais, ordenando que “sujeitos mais capazes” coordenem as diligências solicitadas. Ou seja: o governador se sente às voltas com o ocultamento de fatos e a incompetência dos seus militares. Tenho para mim que a sensação do governador derivava de um motivo muito simples. O coronel e o capitão-mor ocultavam o que não conseguiam resolver de modo razoavelmente satisfatório. Em outras palavras, a repressão armada era insuficiente para dar conta da movimentação quilombista do Recôncavo. Esta, sem dúvida, era múltipla e móvel. Dançava por entre as folhas dos morros e dos vales – mocambos se deslocando, mocambos se sucedendo. Os negros, além disso, não paravam

nunca de fugir. E de se agrupar no que restava das matas. Do mesmo modo, sabe-se que o Conde de Sabugosa não só se bateu durante anos contra o quilombo do Camisão, em Ipirá, como ficaram no ar os resultados das suas expedições de 1734 contra os mocambos de Nazaré das Farinhas e Santo Amaro da Purificação. E os exemplos podem ser multiplicados, daí ao fim daquele século. O que significa dizer que quilombos nasciam e renasciam, com a cumplicidade das noites e das antemanhãs. Como se fosse pouco, não existiam quilombos apenas nas terras do Recôncavo. Também as vizinhanças da Cidade da Bahia acolheram os seus mocambos negros. O quilombo do Buraco do Tatu – situado às margens da atual estrada que liga Campinas a Santo Amaro de Ipitanga, próxima do aeroporto de Salvador – foi talvez o mais importante deles. Que se saiba, durou pelo menos vinte anos. Segundo Pedro Tomás Pedreira, era o quilombo “bem protegido e defendido por ‘estrepes e armadias’ escondidas nos matos que o circundavam, o que dificultava grandemente a aproximação de elementos estranhos, e das tropas das Milícias da Capitania que os iam atacar”. Os negros ali aquilombados “atacavam todas as pessoas que demandavam a Cidade do Salvador ou que dela saíam, roubavam e assaltavam as fazendolas e sítios dos arredores”. Um texto do “governo interino” da Bahia, datado de 1764, informa que os quilombolas do Buraco do Tatu raptavam escravas – “aquelas pretas que melhor lhes pareciam” –, levando-as para viver com eles. E – ousadia suprema – entravam de noite pelas ruas da Cidade da Bahia, “a prover-se de pólvora, chumbo e demais bagatelas que precisavam para a sua defesa”. Este quilombo foi, contudo, destruído. Arrasado. No final do ano de 1763, foi atacado por uma companhia militar que levava ordem de “não desistir do combate nem retirar-se das matas sem ficar destruído o Quilombo, presos os negros e mortos os resistentes, pesquisadas as matas, queimadas as choupanas e estrepazias, e entulhados os fossos que tinham feito por todas elas”. O que se cumpriu. Mas não eram só os pretos escravizados que se revoltavam, buscando os campos fora da cidade ou recantos pouco palmilhados do Recôncavo. Aos olhos do observador de hoje, impressiona o que se pode classificar, não sem uma pequena ponta de preconceito ou de teleologismo, como a rebeldia “pré-política” da Bahia setecentista. A agitação popular – manifestando-se em badernas, food riots, motins militares, etc. – é uma constante da época: “a cidade transpira indisciplina, informalismo, desapreço às normas e prescrições”, escreveu István Jancsó. E era perfeitamente compreensível. A Bahia vivia, então, tempos da mais deslavada “escorcha fiscal”, como bem disse Affonso Ruy. E o excesso de impostos e taxações acabava se refletindo nos preços dos chamados gêneros de primeira necessidade, deixando o povo na pior. Mas o fato é que ninguém ficava quieto. Pelo contrário, o pau quebrava. E pra valer. Em 1711, por exemplo, tivemos a chamada “revolta do maneta”, uma reação popular contra taxas fiscais que fizeram o sal se tornar um produto praticamente inacessível. Conta Affonso Ruy: “A população amotinada, em 17 de outubro, cometeu depredações nas casas comerciais dos portugueses e, chefiada pelo Juiz do Povo, João de Figueiredo Costa, alcunhado ‘o maneta’, saqueou as ditas casas”. Especificamente, “a onda humana, engrossada pela ralé hostil e rebelada, moveu-se em demanda da casa do contratador do sal Manuel Dias Filgueira, situada atrás da Igreja da Ajuda, arrombando as portas, tudo saqueando e depredando, inclusive o armazém que ficava na parte térrea, que foi

destruído, deixando furadas as pipas de vinho e vinagre que encharcaram a rua”. Prossegue Affonso Ruy: “E assim com o sal, com o azeite, com a carne que, pela deficiência, chegou a 600 réis a arroba, levando o povo e os soldados a arrombarem os açougues, tomarem à força a carne ali depositada e até a arrebatarem-nas das mãos dos escravos dos ministros, alegando não serem estes melhores que eles”. E como tudo ia ficando por isso mesmo, o arrojo crescia. O povo arriscava mais e mais em seus atrevimentos. “No sábado da aleluia de 1797, arrancou o povo, das mãos dos escravos do general comandante, a carne que lhe era destinada, provendo-se e distribuindo-a com as negras vendedeiras de carne moqueada. Para suprir o serviço do governador, foi necessário abater-se uma rês, no pátio do palácio”, narra o mesmo Ruy. A indisciplina dos militares, por sua vez, formava um capítulo especial. A arrogância e o ânimo para a arruaça pareciam fazer parte da personalidade daqueles soldados baianos. Em maio de 1728, por exemplo, o chamado “terço velho”, que contava com mais de 600 homens, se amotinou. Exigia liberdade para uns colegas presos. Cerca de 300 soldados saíram armados para as ruas, levando “angústias e sobressaltos”, durante 48 horas, aos moradores do Carmo, de São Bento, da Ribeira. Atacaram casas residenciais, surraram mulheres, aprisionaram colegas integrantes do “terço novo”. No final das contas, sete rebelados foram condenados à morte – e dois, esquartejados. Mas esse é somente um exemplo – especial, por suas proporções e repercussão – do que os milicianos aprontavam por aqui. Ao se referir à indisciplina dos militares, “cujos abusos aumentavam” ano a ano, Affonso Ruy observa que ela se fortalecia “pelo silêncio contemporizador do chefe do governo [no caso, Fernando José de Portugal], a quem repugnavam meios enérgicos e extremos que requeria a situação, para debelar o mal que se alastrava, ameaçando tragar até a própria administração”. Coisas assim se passavam numa cidade que, além de suja e corrupta, cheia de mendigos e vadios, era também violenta. Isto é, além de funcionários farejando gorjetas, juízes acusados de suborno, escândalos morais nos conventos (especialmente, no de Santa Clara do Desterro), insubordinação militar e agitações populares, havia, ainda, a criminalidade propriamente dita. Marginais circulavam com desenvoltura pelas ruas, becos e travessas de Salvador, especialmente depois que o sol se recolhia. Em 1766, quando Antonio Rolim de Moura Tavares assumiu o governo, a cidade se achava “infestada de malandrins e vadios”. E antes que obras de terraplanagem destruíssem um outeiro, fazendo surgir a Praça da Piedade, em 1785, aquela zona da cidade era definida como “valhacouto de vagabundos e ladrões”. Sair de casa à noite não era, portanto, coisa que se fizesse com tranqüilidade. Poderia ser, e muitas vezes era, uma empresa arriscada. E não seria tão raro assim encontrar alguém morto numa esquina, numa ladeira, numa rua irregular, logo que os primeiros brilhos do sol clareavam a cidade. Também as autoridades tumultuavam a nossa vida. Um exemplo é o do confronto que em 1737 opôs os poderes legislativo e executivo, no vice-reinado de André de Melo e Castro. Contrariando um despacho do vice-rei, a Câmara manteve a decisão de impedir que os jesuítas construíssem, nas proximidades do guindaste que possuíam, um cais destinado ao desembarque de mercadorias. Suspendeu-se a obra. Veio então despacho real favorável aos jesuítas. A Câmara não recuou. Representantes seus foram ao local, recolheram o entulho lá colocado, arrancaram estacas,

mandaram prender trabalhadores. E ainda fizeram uma “representação irreverente” ao vice-rei, distribuindo cópias pela cidade e convocando o povo a votar se a obra deveria ou não ser feita. O troco não tardou. O rei mandou destituir e prender os vereadores. Mas vamos retomar o enredo. Os motins de militares e as arruaças justiceiras da plebe flagelada pela miséria nunca chegaram a se ordenar num projeto global de transformação da sociedade. Ficaram sempre no acidental, no fragmentário, no plano do evento concreto e imediato. Daí que possamos confiná-las a uma dimensão “pré-política” – isto é: ao espaço das ações claramente aprisionadas na urgência do dia-a-dia, presas de uma vez por todas à contingência, ao fato isolado, sem jamais transcendê-lo no sentido da proposição de uma nova organização política e social da vida. Dito em outros termos, eram atos de rebeldia visando alvos específicos – e não programas destinados, em princípio, a provocar uma alteração na ordem das coisas. De qualquer modo, indícios de algum “nativismo” aparecem aqui e ali na Bahia setecentista. Vilhena – que sempre sublinha a nossa preguiça, dizendo que “o comum do povo é serem todos ociosos” –, não só ataca os “fidalgos caramurus” e a arrogância dos militares. Diz também de pessoas e famílias “que se honram em deduzir a sua prosápia dos caboclos, ou índios”. É um dado importante. E que vai se avolumar no século seguinte, quando o Brasil consegue realizar a sua decisão de se separar de Portugal.

A CONSPIRAÇÃO MULATA Na madrugada do dia 5 para o dia 6 de novembro de 1799, o alfaiate mulato Manuel Faustino dos Santos Lira, nascido escravo, tentou pela terceira vez o suicídio. Na primeira tentativa, bebeu veneno. Na segunda, esforçou-se para enterrar um prego de quatro polegadas no coração. Finalmente, tentou a asfixia – dar “a si mesmo o garrote”, como escreveu frei José d’Monte Carmelo, carmelita descalço, em seu relato dos fatos –, apertando no pescoço uma tira de pano. Também Lucas Dantas do Amorim Torres, soldado mulato do Regimento de Artilharia, tentou cair fora da vida, enfiando pela garganta, repetidas vezes, uma colher de prata. Não, não estavam brincando. Era a luz do desespero que os arrastava, descontroladamente, para além da via. Ambos, Santos Lira e Lucas Dantas, pareciam querer se antecipar a uma sentença que, estavam certos, os condenaria à morte, juntamente com dois outros mulatos pobres de Salvador – o alfaiate João de Deus do Nascimento, de 27 anos de idade, natural da Vila de Nossa Senhora do Rosário do Porto da Cachoeira, e o soldado Luiz Gonzaga das Virgens e Veiga, de 37 anos, nascido na Cidade da Bahia, neto de um branco português, Manoel Gomes da Veiga, e de uma africana escravizada, a negra Helena. De fato, no dia 8 de novembro, dia áspero e plúmbeo, daqueles em que o tempo fecha sem retorno, os quatro foram conduzidos à Praça da Piedade. Luiz Gonzaga e João de Deus, em palanquins abertos; Lucas Dantas e Santos Lira, a pé. Chegando à praça, o ritual se consumou. Foram,

os quatro, enforcados e esquartejados. Corpos despedaçados, repartidos, expostos em lugares públicos. A cabeça de Lucas Dantas ficou espetada no Campo do Dique do Desterro. A de João de Deus, na Rua Direita do Palácio. A de Santos Lira, no Cruzeiro de São Francisco. A de Luiz Gonzaga, juntamente com as mãos, na Piedade. Terminava assim, de modo tenso e fúnebre, o episódio que passou à nossa história sob o rótulo de “Revolução dos Alfaiates”. Uma denominação absolutamente imprópria, por sinal. Em primeiro lugar, porque não chegou a acontecer revolução alguma. O plano de uma sublevação, que realmente existiu, não passou da luz do sonho à luz do sol. Em segundo lugar, porque as pessoas presas e processadas, em conseqüência do anseio subversivo, não eram, em sua maioria, alfaiates. Havia escravos, oficiais militares, soldados da tropa e até mesmo um cirurgião, Cipriano Barata, que se tornaria uma figura quase lendária das movimentações sociopolíticas ocorridas no Brasil entre os séculos XVIII e XIX. Se houve um traço dominante, naquele agrupamento rebelde, foi o da cor da pele. Os mulatos – fossem escuros, claros, trigueiros ou fuscos – somavam o dobro do número de brancos e pretos envolvidos. E a verdade é que esse território mestiço ou interétnico, então em seus momentos iniciais de difícil afirmação, não pode ser deixado de parte em nenhuma leitura que se faça daquela turbulência baiana. Os rebeldes que foram à forca eram mulatos – e eram pobres. Mas vamos aos fatos. Tudo pipocou no dia 12 de agosto de 1798. Aquela manhã trouxera uma surpresa para a população da Cidade da Bahia. As pessoas iam acordando e encontrando papéis manuscritos, cartazes artesanais, fixados em diversos pontos da cidade. Nas proximidades de São Bento, na esquina da praça do palácio, às portas do Carmo, nas paredes da cabana da preta Benedita, etc. – lá estavam eles. Eram os pasquins da sedição, falando ou refalando temas da Revolução Francesa, ainda que aqui e ali relidos de uma perspectiva mestiça e tropical. “Animai-vos Povo Bahinense [sic] que está para chegar o tempo feliz da nossa Liberdade: o tempo em que todos seremos irmãos: o tempo em que todos seremos iguais”, dizia um dos pasquins. E os demais seguiam mais ou menos na mesma batida. Falavam de revolução (“quer o povo que se faça nesta cidade e seu termo a sua memorável revolução”), de liberdade (“...estado feliz... estado livre do abatimento... doçura da vida...”), do fim da dominação colonial (“para que seja exterminado para sempre o péssimo jugo reinável da Europa”... “a total Liberdade Nacional”), de regime republicano, de abertura dos portos ao comércio internacional, de “meritocracia”. Prosaica e candidamente, atribuía-se ao povo o desejo de que os soldados tivessem aumento salarial. Uma carta ao prior do Carmo acenava com a fundação de uma igreja baiana (a “Igreja Bahinense”), livre do jugo papal. E – risco dos riscos – apontava-se para a abolição da escravidão, ao lado da promessa de proteção ao comércio e de respeito à propriedade privada. Mais: quem ficasse contra o projeto revolucionário, seria morto. Uma ousadia e tanto. Na verdade, uma provocação. Como dizer coisas de tal teor explosivo numa colônia organizada em cima do trabalho escravo – e dominada por um reino em que vigorava a velha monarquia absolutista? Era cutucar o cão com vara curtíssima. Esses pasquins manuscritos, aparecendo em pontos variados de Salvador como um desafio frontal à autoridade reinante, foram, evidentemente, uma iniciativa isolada. Individual. Ato intempestivo de alguém que se engajara no movimento revolucionário – e que, impaciente, ingênuo,

irresponsável ou destemperado, pôs a perder o que parece ter sido um constante trabalho proselitista e todo um movimento que ia se articulando clandestinamente nas diversas camadas de nossa sociedade setecentista, incluindo-se aqui, de forma historicamente inédita entre nós, pessoas escravizadas. Diversos historiadores se ocuparam já da matéria. Mas vamos seguir aqui, em plano factual, a narrativa de Luís Henrique Dias Tavares, organizada em seu História da Sedição Intentada na Bahia em 1798 (“A Conspiração dos Alfaiates”). Pois bem. Com a aparição dos pasquins, o Governo reagiu. A bem da verdade, o próprio governador da Bahia, Fernando José de Portugal, tinha já notícias das conversas subversivas que aqui iam se sucedendo (e se desdobrando), na década de 1770. Sabia de “reuniões secretas” realizadas em residências particulares. Mas nunca deu maior importância a elas. O que foi um equívoco, já que a Bahia setecentista vivia dias férteis para idéias de transformação social e política. Um ano antes dos eventos de agosto de 1798, uma representação anônima endereçada a D. Maria I, “a louca”, rainha de Portugal, falava da Bahia como uma terra em que se multiplicavam “males sobre males”, vendo-se o seu povo reduzido “a uma penúria geral de tudo”. E não era só a miséria. Havia a discriminação racial, a violência do fisco, a corrupção administrativa. De resto, foi talvez a complacência do governador, diante dos circuitos da subversão, que levou os militantes subversivos a acreditar que ele apoiaria dissimuladamente a revolução projetada. E que o autor dos pasquins sediciosos o tenha instado a assumir o comando da sonhada “democracia bahinense”. Mas a publicação dos pasquins, somando-se à pressão portuguesa, fez o governador se mover. Ele não queria, como disse, ser incluído na categoria dos “homens frouxos”. Enfiou-se na papelada burocrática para tentar identificar, em meio à pilha de requerimentos e petições que recebia, quem poderia ter sido o autor dos boletins democráticos. Letra por letra, chegou à conclusão de que o escriba teria sido o mulato Domingos da Silva Lisboa, que morava na Ladeira da Misericórdia e em cuja casa foram encontrados textos franceses e um poema à Liberdade. Em seguida, ainda por razões grafo(ideo)lógicas, ordenou a prisão do soldado Luiz Gonzaga, bem definido por Dias Tavares como “um estranho rebelde, mistura de beato religioso e revoltado social”. Gonzaga, aliás, que era homem ressentido e solitário, vivia protestando contra o fato de jamais obter promoções na hierarquia militar, “por ser homem pardo”. Entre os seus papéis, a repressão militar encontrou uma cópia do Paradise Lost de Milton, estudos gramaticais, uma biografia de Cristo, texto de Boissy d’Anglas, a Gazeta de Lisboa, um diário (onde ficamos sabendo de coisas como desabamentos de terra na cidade, a visita a Salvador de um príncipe do Daomé ou a caída de um raio no mirante do Convento da Lapa), orações e ladainhas. Enfim, uma tremenda mistura mulata de alhos e bugalhos. A prisão de Gonzaga, na tarde do dia 23 de agosto, levou o pânico ao arraial da rebeldia. Gonzaga, mulato de cabelo comprido sobre a nuca, integrava um grupo revolucionário. Na noite daquele mesmo dia, conspiradores se encontraram e acabaram resolvendo radicalizar. Marcaram uma reunião no Campo do Dique, a fim de checar as forças com que poderiam contar. Lembre-se, aliás, que José de Freitas Sacoto, preso pela repressão, declarou que quem se alistava no “partido da revolução” trazia sinais distintivos de sua escolha, uma espécie de semiótica da militância: brinco na orelha, barba crescida ao meio do queixo, um búzio “de angola” nas cadeias do relógio. Quem viesse

pela rua com esse conjunto de signos, deveria ser identificado como subversivo, partidário da rebelião que se programava. Mas isso, claro, antes que os pasquins estampassem, nas esquinas da cidade, as idéias básicas do projeto que vinha se desenhando. Havia, ainda, um poema-panfleto, decorado pelos subversivos, cuja última estrofe, inapelavelmente subliterária, dizia:

Quando os olhos dos Baianos Estes quadros divisarem, E longe de si lançarem Mil despóticos tiranos, Que felizes, e soberanos, Nas suas terras serão! Oh, que doce comoção. Experimentarão essas venturas, Só elas, bem que futuras, Preenchem meu coração. A reunião do Dique foi um fiasco. Nem chegou a acontecer. João de Deus, apostando na fantasia, esperava encontrar, naquele local, nada menos que 280 partidários da rebelião. Só foram catorze. E nem tiveram tempo de colocar cartas na mesa. O Governo, àquela altura, já estava sabendo de tudo – ou de quase tudo. Seguia agora os passos dos rebeldes mais insistentes. E estes iam ficando sem alternativa. Alguns, como Lucas Dantas, sempre de brinco na orelha, tentaram a fuga. O sumiço pelo meio dos matos do Recôncavo. Geralmente, em vão. Dantas, com os seus cabelos pretos e ondeados, acabou sendo preso no dia 9 de setembro, um domingo, numa fazenda no sertão de Água Fria. Pouco tempo antes, quando João de Deus quis saber o que seria uma revolução, Lucas Dantas lhe dissera: “É fazer uma guerra civil entre nós, para que não se distinga a cor branca, parda e preta, e sermos todos felizes, sem exceção de pessoa, de sorte que não estaremos sujeitos a sofrer um homem tolo, que nos governe, que só governarão aqueles que tiverem maior juízo, e capacidade para comandar homens, seja ele de que Nação for, ficando esta Capitania em Governo Democrático, e absoluto”. Pois era justamente o sonho democrático que ia agora ladeira abaixo. Da noite do Campo

do Dique à prisão numa fazenda, o que restava era a mais triste perspectiva. A de um pelourinho erguido mais alto do que os pelourinhos convencionais. Seis palmos a mais, para ser preciso. A justiça baiana foi altamente seletiva, no episódio. Ou melhor: socialmente seletiva. Deixou de fora os chamados “homens de consideração”, isto é, indivíduos pertencentes ou vinculados à classe dirigente. Pistas e personalidades foram simplesmente ignoradas pelos desembargadores responsáveis pela “devassa” do movimento subversivo. Para dar apenas um exemplo, ninguém se interessou pela investigação dos vínculos do padre Francisco Agostinho Gomes – intelectual que era, também, riquíssimo comerciante – com a sedição. Antes disso, ao ser informado, pelo coronel Ferreira e Lucena, da realização de reuniões suspeitas “na Barra, em Itapagipe e em outros lugares, em casas de pessoas abastadas”, o governador Fernando José minimizou as coisas, dizendo que aquilo era típico de “bebedeira e rapaziada”. Francisco Agostinho Gomes, aliás, merece um parágrafo. Ainda jovem, herdou uma das maiores fortunas da Bahia, montada em base comercial. Sabia latim, português, inglês, francês e italiano. Mantinha-se perfeitamente informado do que corria pelo mundo, discutia coisas da política, embora os seus maiores interesses se concentrassem em astronomia, mineralogia e botânica. Bibliômano, montou um enorme acervo de publicações, para os padrões da época. Acervo que, mais tarde, constituiria a base da Biblioteca Pública da Bahia, inaugurada já no governo do Conde dos Arcos. Mas Agostinho não foi o único a ficar de fora da mira do governo. Como disse, o poder baiano foi socialmente seletivo no julgamento dos implicados na sedição de 1798. Gente como Borges de Barros, João da Rocha Dantas ou Joaquim Ignácio de Serqueira Bulcão, senhor dos engenhos de São José, Desterro e Guaíba, conseguiu escapar do processo. E é irrecusável, para o historiador, a idéia de que eles subornaram muita gente, e com muito dinheiro, para se ver livres daquela “devassa” que puniu apenas os mais pobres. Em outras palavras, os membros da elite, que estavam envolvidos na sedição, compraram, por alto preço, a exclusão de seus nomes das listas de suspeitos. Dias Tavares está certo ao distinguir duas fases do movimento sedicioso. E em identificar, no tenente Hermógenes de Aguillar, o ponto de conexão entre as conversas da elite e o discurso popular que então foi se armando. Em A Primeira Revolução Social Brasileira – 1798, Affonso Ruy já escrevia: “As idéias desceram dos salões letrados para os engenhos onde enxameava uma infinidade de crias e libertos inteligentes e ledores, propagaram-se daí à cidade, irradiaram-se nas oficinas e ganharam artesãos e escravos, insinuaram-se nos quartéis, atrairam oficiais e receberam o apoio dos soldados”. Bem, o fluxo das teses subversivas pode não ter sido exatamente esse, caminhando do engenho para a cidade, mas é difícil discordar da indicação acerca do movimento das idéias, irradiando-se da elite para as camadas mais pobres da população – para soldados e artesãos, em especial. Em termos mais precisos, vieram elas de gente como Francisco Agostinho Gomes, Cipriano Barata, Ignácio Bulcão e Francisco Moniz Barreto para gente como Lucas Dantas, Santos Lira, Luiz Gonzaga e João de Deus. Fazendo a ponte (ou uma das pontes), o tenente Hermógenes de Aguillar – e mesmo Cipriano, acusado por um padre, em maio de 1798, por “publicar as suas depravadas paixões entre os rústicos povos, já com palavras, já com escritos”. De qualquer forma, a abrangência social do movimento é algo que parece inquestionável. Não só

pelas diferenças sociais dos implicados, abrindo-se num leque que se estendia da elite à ralé escravizada. Mas também pela amplitude do discurso. Sobre o primeiro aspecto, István Jancsó é definitivo: “Por mais que se reconheça a enorme dificuldade que apresenta o conhecimento da estrutura organizacional desta articulação sediciosa na Bahia de fins do século XVIII, e é plausível que esta não estivesse formalmente configurada, é difícil não reconhecer que dela participaram indivíduos cuja condição social cobria a maior parte da ampla gama em que se dividiam os coloniais, tomando-se por base seja o critério legal (livres e escravos), seja o étnico (negros, pardos e brancos), ou ainda o critério corporativo, ou de riqueza ou de ilustração”. Quanto ao segundo aspecto, o discursivo, basta ler os pasquins e as declarações dos militantes que foram presos. Contestava-se da monarquia à escravidão. Outra coisa a ser dita é que, se o pensamento de todos esses rebeldes coincidia em pontos fundamentais, diferia no tocante a algumas questões. A religiosidade, por exemplo. Sabemos que Luiz Gonzaga era católico e que, do fundo de suas “manias e melancolias”, emergia para crises místicas. Outra era a postura do tenente Hermógenes. Diz Affonso Ruy que, para se casar, Hermógenes dispensou o ritual católico, argumentando que bastava que “ele, o noivo, afirmasse o desejo de desposar a sua prometida”. Lucas Dantas era outro que dispensava favores divinos. E instruía o jovem Caetano Veloso nos seguintes termos: “isto de religião é peta, devemos todos ser humanos, iguais, livres de submissão”. Mas havia, no movimento, a idéia de criar uma igreja baiana, desvinculada de Roma. Idéia de religião nacional que, de resto, havia sido gerada no contexto da Revolução Francesa. Note-se, por fim, que não se pensava, naquela época, em termos de uma Revolução Nacional, como a que se fará mais tarde, em 1822. O sentimento ou a consciência de uma “unidade nacional” não se impõe no horizonte sedicioso. O que está em jogo, para os revolucionários de 1798, não é o Brasil. Inexiste, aqui, essa visão de conjunto. Deseja-se, unicamente, o desligamento baiano. A perspectiva é assim a de um separatismo regional, antes que a de um projeto independentista global, que abarcasse, num todo, as diversas regiões brasileiras. Naquela época, o Brasil não era, para os brasileiros, mais que uma abstração. Uma espécie de conjunto desconjuntado. Sem alma – e sem nitidez. Mas, seja como tenha sido, o movimento encrespou a Cidade da Bahia. Não será excessivo recordar que, no dia do enforcamento, a soldadesca ficou de costas para a Praça da Piedade, apontando as suas armas para o povo que fora assistir à cerimônia. Havia o receio de um tumulto, ou mesmo de um levante popular.

SENTIDOS DA SEDIÇÃO Na segunda metade do século XVIII, a Europa assiste, não raras vezes perplexa, à crise final do ancien régime. O Brasil, à crise do assim chamado Antigo Sistema Colonial. Entramos no tempo das

conjurações. Da superação do mero desabafo, do murro na mesa ou do pontapé na porta – isto é, das explosões “pré-políticas”. Agora, o que toma a cena é um projeto global de libertação. Não se trata mais da empreitada que se esgota com um saque na esquina, ou uma baderna no portão do açougue. O que se busca é a ruptura do pacto colonial. O fim do “viver em colônias”. Em termos amplos, podemos dizer que, no século XVII, a colonização do Brasil se tornou, de fato, irreversível. E que, no século seguinte, os brasileiros se dispuseram a contestar, de frente, o sistema colonial. É nesse espaço contestatário que vão ganhar corpo tanto a “Inconfidência Mineira” quanto a chamada “Revolução dos Alfaiates” – ou a “Conspiração dos Búzios”. Ambas essas encrespações anticolonialistas devem ser encaradas, de resto, como manifestações brasileiras produzindo-se num horizonte bem mais vasto – o da chamada “Revolução Atlântica”. Os historiadores franceses foram, com Jacques Godechot, os primeiros a colocar nesses termos a onda das revoluções que explodiram, no Ocidente, entre a segunda metade do século XVIII e as primeiras décadas do século XIX. Em L’Ancien Régime et la Revolution 1750-1815, René Rémond escreveu: “...entre 1780 e meados do século XIX, durante cerca de 70 anos, o mundo é sacudido, a curtos intervalos, por ondas de revoluções... permitindo que se fale de uma era de revoluções. (...). Seu próprio número leva certos historiadores a falar, hoje, não mais de Revolução Francesa, mas de uma revolução ocidental, ou de uma revolução atlântica, em relação à qual os acontecimentos da França não passariam de um episódio particular, um aspecto local. Aliás, os próprios contemporâneos [dos fatos] tinham consciência dessa solidariedade entre os episódios. (...). Tudo impõe a imagem de uma onda revolucionária que teria percorrido o mundo ocidental de oeste para leste, desde as margens ocidentais do Atlântico até ao centro da Europa”. É claro que a Revolução Atlântica não significou a mesma coisa no continente europeu e na massa continental das Américas. Diversamente do que aconteceu na Europa, com a rejeição de sistemas políticos que vinham de séculos, o que esteve na base mesma das agitações americanas, ocorressem elas nos EUA ou em Minas Gerais, foi a situação colonial. A Bahia, como se viu, avançou além disso. Mas era esse o cerne da questão – o “viver-em-colônias”, ou o ser colonizado. Um francês ou um português poderia sonhar, antes de mais nada, com a desarticulação definitiva das estruturas monárquicas. Mas a elite brasileira visaria, em primeiro lugar, os laços que a prendiam ao espaço imperial lusitano. Em nosso caso, o que estava em questão não era exatamente o absolutismo, ou o “despotismo esclarecido”, mas o colonialismo. O desejo da independência. O Brasil participou portanto, e com as suas especificidades, da grande maré revolucionária que varreu o Oceano Atlântico entre as centúrias de setecentos e de oitocentos, gerando a independência norte-americana e a derrocada do “antigo regime” francês. Ainda assim, os esboços de sublevação ou as intenções sediciosas aqui flagradas não podem ser simplesmente diluídas sob um rótulo geral homogeneizador. Elas guardam as suas singularidades. Exibem diferenças entre si. E é por isso mesmo que temos que saber distinguir entre as conjurações mineira e baiana. Tiradentes e seus companheiros jamais se aproximaram do grau de abertura e de radicalidade que caracterizou a movimentação baiana de 1798. O que tivemos, no caso mineiro, foi uma revolta elitista. No caso baiano, a rebeldia popular.

A historiografia brasileira mais recente tem sido praticamente unânime na ênfase conferida a essa dessemelhança. Vejam-se, entre outros, os estudos de Carlos Guilherme Mota e um livro como Na Bahia, Contra o Império – História do Ensaio de Sedição de 1798, de István Jancsó. Para Carlos Guilherme, por exemplo, o movimento baiano aparece como “um aprofundamento significativo” do movimento mineiro, na medida em que “a agitação... é feita também por escrito e sempre com uma sólida marca popular”. Em Minas, as “cogitações sediciosas” foram coisas de “gente importante”. De membros da elite. De proprietários de escravos. Na Bahia, não ficaram de modo algum restritas a esse círculo social. Ao contrário, envolveram pessoas pobres, pretos e mestiços. Em suma, as teses subversivas foram incorporadas e redimensionadas por integrantes das camadas não-proprietárias da população. E isso vai se refletir, evidentemente, no ideário contestador que aqui começou a se configurar. Nem é por outro motivo que István Jancsó afirma que a Inconfidência Baiana de 1798 representou uma tentativa singular em nossa história colonial – “a busca da integração do conjunto da população, por cima das diferenças de riqueza, privilégios, origem e cor, em torno de um projeto de luta política”. Ainda Jancsó: “Tentativa limitada em sua escala, pobre de instrumental operacional, pouco definida quanto aos objetivos, de reduzidíssima capacidade de passar da proposta para a prática, representou, apesar de tudo, a experiência mais profunda de ultrapassar os limites que o Antigo Regime impunha à consciência política dos homens em Colônia”. E mais: “o Movimento da Bahia representou o primeiro ensaio de aliança de classes em torno de propostas explicitamente políticas no Brasil, limite máximo possível da utopia revolucionária com raízes na crítica do Antigo Regime, pondo em evidência as possibilidades e limites reais da luta política, centrada no controle do Estado, no interior da Colônia”. É verdade que o problema colonial foi tema comum aos movimentos sediciosos da época, no Brasil. Mas, na Bahia, esta não parecia ser a questão central. O que mais se criticava aqui não era o domínio lusitano, mas a desigualdade, fosse ela social ou racial. Entre nós, como bem observou Carlos Guilherme Mota, “o problema social surge mais violento que o problema colonial”. Daí que, na opinião desse historiador, a Revolução Americana de 1776 – basicamente, anticolonialista – tenha sido fundamental para os mineiros, ao tempo em que, para os baianos, o que realmente contou foi o “modelo francês” – basicamente, social. Está certo. Era o radicalismo francês, a contestação dos sans cullottes, que inspirava a Cidade da Bahia. Os mineiros apostaram as suas fichas na subversão política, mas desde que esta não viesse a alterar, para além da superfície, a organização da sociedade. Nada de conflitos de classe ou de casta, portanto. Emancipação dos escravos? – nem pensar. Ou seja: os mineiros queriam uma revolução política sem revolução social. Já na Bahia, especialmente através das vozes de Lucas Dantas e Manuel de Santanna, que fora castigado na “roda de pau” por ter discursado publicamente “contra a Religião Cristã”, fala-se claramente não só da separação entre metrópole e colônia ou da modificação das instituições políticas existentes, mas se propõe, em direção ao futuro, a reorganização da sociedade em novas bases. Não se tratava de tentar mandar pelos ares somente a dominação portuguesa. Além de dinamitar o pacto colonial, cuidava-se de explodir a estruturação centenária da sociedade

escravocrata. Vejamos um pouco mais de perto. Sabemos que, a despeito da origem social de sua personagem mais famosa, o estreito e prático alferes apelidado de Tiradentes, a conjuração mineira foi um movimento de elite. Tiradentes aderiu a um grupo de privilegiados, para encarnar, como ele mesmo disse, o desejo de que o Brasil “ficasse livre dos governos que só vêm cá ensopar-se em riquezas”. E o certo é que a ideologia “inconfidente”, até onde nos é possível rastreá-la, jamais avançou o jogo em direção aos mais altos riscos da subversão social. A coragem física de Tiradentes não encontrou correspondência em lances de audácia ideológica. Àquela fração contestadora da elite mineira não incomodava, de modo algum, a estupenda usura dos metais. Ao contrário: ela manobrava, contra a metrópole, para alargar os seus lucros. Seu adversário era o sistema colonial que travava o desenvolvimento mineiro e levava para Lisboa o que se lavava em nossas areias auríferas. E o raciocínio sedicioso era claro. Apesar do cansaço das minas, a capitania poderia se sustentar independentemente, desde que cancelasse as suas dívidas para com a Coroa, desse um fim à sangria fiscal, regulamentasse o comércio externo e investisse em mineralogia e manufaturas. Para isso, seria preciso criar um Estado autônomo e conseguir a adesão do Rio de Janeiro e de São Paulo, agremiando-se as três capitanias à maneira dos confederados da América do Norte. Os inconfidentes estavam cônscios de que o sucesso da conspirata dependeria do apoio popular. Planejaram concentrar, sob a sua direção, a insatisfação que grassava naqueles tempos em que, quanto mais escasseava o ouro e se alastrava a insolvência, mais ameaçador se mostrava o erário régio. Mas que ninguém pense que o “povo das minas”, grupo medial diluidor do modelo dicotômico senhor/escravo, seria parceiro da Inconfidência. O objetivo de sua mobilização estava em inibir um primeiro choque repressivo e aparar a inevitável ofensiva contra-insurrecional do poder ultramarino. E se o “povo”, composto de brancos e mestiços de diversas gradações sociais, merecia tratamento secundário, secundaríssima era a atenção dispensada ao contingente negro da população, especialmente à escravaria. Vamos encontrar exemplos bem expressivos do ânimo tradicionalista dos mineiros em Tomás Antônio Gonzaga. Em seu Tratado do Direito Natural, Gonzaga se coloca entre os que depositam índios e negros no último escalão da humanidade. E no Tratado às Cartas Chilenas, o desembargador vai carregando nas cores. Aceita a escravidão como coisa natural – a escravidão e as suas punições corporais. Razão tem Affonso Ávila quando frisa que o humanitarismo de Gonzaga só ia ao ponto em que não corresse o risco de arranhar a lei ou a estrutura social. Claudio Manoel da Costa vai na mesma batida. Ele gostaria de ver Minas radicalmente limpa das nódoas negras dos quilombos. Por fim, de acordo com os Autos da Devassa, o jovem Álvares Maciel, que estudara técnicas fabris na Inglaterra, chamou a atenção de Alvarenga Peixoto para o perigo de se promover uma sublevação no Brasil, “sendo o número de homens pretos e escravatura do país muito superior ao dos brancos”. Estas eram, obviamente, conversas de proprietários de lavras e de lavouras. Mas o que dizia (e fazia) Tiradentes, que era um sujeito pobre? Confessa que, embora sentindo o círculo se fechar, só se resolveu a fugir depois da prisão de um mulato que era seu escravo. Tiradentes considerava tranqüilamente a posse de um escravo que, por sinal, acabara de vender. Não se encontra, no acervo

documental relativo à conjura, o mais leve indício de que ele reprovasse, ainda que só em tese, a instituição da escravidão. O fato é este: entre um discurso e outro sobre o tema da liberdade, Tiradentes mercadejava um homem. E tinha a consciência limpa. Na Cidade da Bahia e seu Recôncavo, a conversa foi outra. É claro que havia, em nosso meio, um revolucionário como Cipriano Barata, proprietário de escravos, dizendo que era preciso se precaver contra a “canalha africana”. Mas a verdade é que a participação popular, no processo conspiratório, deu um outro tom ao movimento. A movimentação baiana foi radicalizada, em sentido socialmente inédito entre nós, por essa presença da gente pobre. De pardos e pretos alforriados. De libertos. De escravos – que formaram, por sinal, 31% do contigente de presos e acusados. Logo, ninguém deve ficar surpreso com o fato de que os discursos, aqui, não tenham se concentrado no tema da drenagem tributária, ou da exploração metropolitana. Tinham tudo para ir além disso. E foram, ao se perguntar não somente por uma determinação externa, a do “pacto colonial”, mas ao colocar em pauta a discussão da própria estruturação interna da sociedade colonial. Como disse Jancsó, havia, em nosso meio, uma variante popular da cultura política da época. E foi exatamente por isso que a conjuração baiana se revelou mais profunda. Ainda segundo o mesmo Jancsó, suas proposições abarcavam a totalidade das dimensões de nossa vida colonial: a ordem política, a organização da economia, o aparato ideológico, a estrutura do poder militar, os critérios de ordenamento da sociedade. Em síntese, podemos dizer que a “Revolução dos Alfaiates” tentou atar as pontas das rebeldias. Enquanto facções da elite brasileira se rebelavam contra o sistema colonial, negros de procedência variada se rebelavam contra a escravidão. O movimento baiano, precipitado e certamente abortado pela exposição pública de seu ideário em cartazes-pasquins, chamou para si ambas as brasas em jogo. Queria o fim do sistema colonial, mas, igualmente, o fim da escravidão. Um exagero, diriam os conspiradores mais sensatos, no rastro de um Cipriano Barata. Mas, exagero ou não, foi o que aconteceu. Lucas Dantas, Luiz Gonzaga, Santos Lira e João de Deus morreram por conta dessa ousadia.

JEJES E NAGÔS Houve uma alteração fundamental na composição do contingente negro de nossa população, a partir do século XVIII. Até então, o tráfico baiano de escravos fora feito sobretudo com a África subequatorial. Com as regiões de Angola e do Congo. Foi nesse período, como vimos, que a Cidade da Bahia e seu Recôncavo abrigaram, na tenda cruel do cativeiro, levas e levas de negros bantos. Com a chegada do século XVIII, todavia, o tráfico foi mudando de rumo. Voltou-se em direção à África superequatorial, para a região da Costa da Mina, deslizando posteriormente para a baía do Benim. Ingressamos aí nos dois últimos ciclos do tráfico escravista entre a África e a Bahia, devidamente documentados por Pierre Verger. Primeiro, o ciclo da Costa da Mina, desenrolando-se

nos três primeiros quartos do século XVIII. Em seguida, o ciclo da baía do Benim, prolongando-se de 1770 a 1851. Foi este o período da travessia atlântica massiva e compulsória de negros nagôs, jejes e, em menor escala, haussás. “A chegada dos daomeanos, chamados jejes no Brasil, fez-se durante os dois últimos períodos. A dos nagôs-iorubás corresponde sobretudo ao último”, distingue, ainda, Verger, em seu Fluxo e Refluxo do Tráfico de Escravos entre o Golfo do Benin e a Bahia de Todos os Santos. Os haussás, negros islamizados, eram vizinhos dos iorubanos. É provável que, como os nupês, tenham sido um povo autóctone – isto é, um povo nascido em seu próprio território, coisa raríssima na história da humanidade. Mais tarde, outros povos, como os nômades fulanis, que haviam feito uma “guerra santa” contra a iorubana Oió, foram se instalando nessa área haussá. E o fato é que esses haussás se envolveram em guerras nagôs, acabando por cair no cativeiro. Por essa época, o “paganismo” experimentou algum reflorescimento na região, o que acabou desembocando na jihad comandada pelo erudito Usman dan Fodio. Nessa guerra, que parece ter-se prolongado de 1804 a 1809, inúmeros haussás e nagôs islamizados foram escravizados e vendidos, muitos deles para a margem ocidental do Atlântico Sul. Em 1807, em carta ao poder lisboeta, o Conde da Ponte, então governador da Bahia, já se referindo a uma primeira insurreição, entre nós, de negros procedentes da Haussalândia, informava: “Esta colônia, pela produção de tabaco, que lhe é própria, tem o privilégio exclusivo do negócio da Costa da Mina: importaram, no ano passado, as embarcações deste tráfico oito mil e trinta e sete escravos, jejes, ussás [sic], nagôs, etc., nações as mais guerreiras da costa Leste, e nos mais anos há com pouca diferença igual importação, grande parte fica nesta capitania [da Bahia de Todos os Santos] e considerável quantidade nesta capital”. De fato, os haussás e nagôs aparecem no centro mesmo da cena das grandes rebeliões urbanas de escravos, nas primeiras décadas de nosso século XIX. Por uma curiosidade histórica, lembro aqui que um dos principais líderes comunistas do Brasil, o mulato baiano Carlos Marighella, não deixou de retraçar aos haussás, também chamados “malês”, a sua disposição para a luta armada contra a ditadura militar, em finais da décadas de 1960. É o que se lê em seu texto Porque Resisti à Prisão: “Minha ascendência por linha materna procede de negros haussás, escravos africanos trazidos do Sudão e afamados na história das sublevações baianas contra os escravistas”. Como se viu na carta do Conde da Ponte, antes mencionada, o tabaco estava no centro mesmo dessas relações comerciais entre a Bahia e a África. Trocava-se diretamente fumo do Recôncavo por haussá, jeje ou nagô escravizado. Os holandeses controlavam então a Costa da Mina, assim chamada em função do Castelo de São Jorge da Mina. Permitiam que Portugal traficasse por lá, em portos situados no litoral do Daomé. Mas desde que eles não levassem nenhuma mercadoria européia para realizar as suas trocas. Negros só poderiam ser trocados por tabaco – única e exclusivamente. Como a Bahia praticamente detinha o monopólio da produção brasileira de tabaco, nossos negociantes de gente preta se viram numa situação privilegiada. E o circuito foi se incrementando com o tempo. Mais tarde, já na segunda metade do século XVIII, o tráfico se concentrou em outros pontos daquela área, a leste de Uidá, nos portos de Porto Novo, Badagris e Lagos, configurando assim o ciclo do

Golfo do Benim. Os portos mudaram, mas a importância comercial do fumo permaneceu. O tabaco da Bahia continuou sendo o produto mais cotado nas trocas do comércio escravista naqueles rincões africanos. Autoridades colonialistas na África chegaram a afirmar que o fumo baiano tinha preferência, entre os negros, sobre o ouro. Assim, enquanto a Bahia enviava os seus navios ao Benim, traficantes de outras áreas brasileiras permaneciam nas rotas de Angola e do Congo. Daí que o Rio de Janeiro tenha sido fundamente marcado pela presença congo-angolana. Do mesmo modo, e também pela distância geográfica, os traficantes baianos não se interessaram tanto pelos “moçambiques”, gente de língua macua ou maconde, que parecem ter se concentrado mais em São Paulo e Minas Gerais. Notese ainda que o ciclo do tráfico Bahia/Benim prosseguiu intenso até 1851, apesar das proibições e da vigilância repressiva da armada real inglesa. Cabe, aqui, uma observação. Quando se fala de “migrações secundárias”, na história etnodemográfica do Brasil, o que vem à mente, de modo automático e exclusivo, são as migrações européias e asiáticas para o sul do país. Os estudiosos não se dão conta de que também houve uma “migração secundária” de povos africanos (talvez porque achem, ainda que subconscientemente, que todos os pretos são iguais). Nessa nova conjuntura migratória, vêm para o Brasil – para a Bahia, especialmente, mas também para Pernambuco e o Maranhão - sobretudo, ondas sucessivas de jejes e de nagô-iorubás. Eram povos desconhecidos neste lado do Atlântico Sul. Falavam línguas que ninguém entendia. Traziam consigo novos deuses, novos mitos, novos ritos e novos ritmos. A expressão “jeje” (ewe), como se sabe, designava grupos étnicos do antigo Daomé, como a gente fon. A expressão “nagô” (em Cuba, “lucumí”, do iorubá oluku mi, ‘meu amigo’), por sua vez, referia-se a grupos étnicos de língua iorubá. E tanto jejes quanto nagôs foram atirados na Bahia de Todos os Santos em conseqüência de guerras, extra e intra grupais. Os jejes, trazendo os seus voduns – trazendo Dã, a serpente sagrada do Daomé. Os nagôs, com seus orixás e seus orikis. Esses agrupamentos de pessoas de fala fon e iorubá vieram para, com o tempo, modificar em profundidade a nossa fisionomia humana e cultural. Ou, ainda, para dar a definição última dessa fisionomia. Assim, além do substrato ameríndio, da estruturação lusitana e da poderosa presença banto, a Bahia de Todos os Santos se tornou, também, jeje-nagô. Em The Yoruba of Southwestern Nigeria, William Bascom escreveu: “...no African group has had greater influence on New World culture than the Yoruba”. Nenhum grupo africano teve maior influência, na cultura do Novo Mundo, do que o iorubá. Ler Nina Rodrigues e Fernando Ortiz, Vivaldo da Costa Lima e Lydia Cabrera, Severo Sarduy e João Ubaldo Ribeiro, assim como ouvir Dorival Caymmi e Bola de Nieve, Celia Cruz e Maria Bethânia, ou olhar os quadros de Rubem Valentim, nos convence, de modo imediato, de que a afirmação de Bascom é especial e intensamente verdadeira para a Bahia e para Cuba, em cujas águas marinhas reina a mesma Iemanjá, Yèyé omo ejá, ‘mãe cujos filhos são peixes’, prateando as ondas mansas do golfo baiano, onde é sincretizada com Nossa Senhora da Conceição da Praia, erguendo-se padroeira do porto de San Cristóbal de la Habana, onde é sincretizada com Nuestra Señora la Virgen de Regla. Sabemos que, antes de qualquer contato com europeus, os habitantes da Iorubalândia já

conheciam a economia monetária, a metalurgia, a escravidão, formações estatais e um alto grau de urbanização. Em Yoruba Culture: a Geographical Analysis, Afolabi Ojo chama a nossa atenção exatamente para o fato de que o grau de urbanização da Iorubalândia não encontrava paralelo em toda a África Tropical. “Their tradition of urban life gives them a unique place not only among African societies, but among nonliterate peoples the world over”, acrescenta Bascom – sua tradição de vida urbana lhes confere um lugar único não apenas entre as sociedades africanas, mas entre povos iletrados de todo o mundo. Na primeira metade do século XIX, Lagos, Ibadã, Oió e Ilorim eram centros urbanos de dimensões razoáveis. Além disso, os iorubanos exibiam uma produção estética altamente sofisticada, da estatuária de Ifé à poesia. Para que se tenha alguma idéia, ainda que pálida, dessa poesia que os iorubanos praticavam em suas terras de origem, veja-se este oriki de OiáIansã, que traduzi e publiquei em meu livro Oriki Orixá:

Ê ê ê epa, Oiá ô. Grande Mãe. Iá ô. Beleza preta No ventre do vento. Dona do vento que desgrenha as brenhas Dona do vento que despenteia os campos Dona de minha cabeça Amor de Xangô. Duzentas e uma esposas O seu amado domina. Oiá é a favorita. Um dia de guerra bastou Para a sua glória. Orixá que abraçou seu amor terra adentro.

Com o dedo tira a tripa do inimigo. Oiá que cuida das crianças Toma conta de mim. Seu fogo queima como sol. Ela dorme dançando Ela desperta dançando. Epa, Oiá ô. Não me queime o sol de sua mão. Ligeira mulher guerreira Corre veloz o fogo de Oiá Oiá veloz faz o que fizer. Fêmea forte, com passos de macho Moradora de Irá Grande guerreira Enérgica se ergue à mira do marido. Vendaval e brisa. Força de orixá que está no alto. Oiá que vem à vila envolta em fogo. Rara Oiá, rumores de amores com Ogum. Aquela que dorme na forja. Oiá na cidade, Oiá na aldeia

Mulher suave como sol que se vai Mulher revolta como vendaval Levanta e chama o vendaval Levanta e anda na chuva Assim é a grande Oiá Eparipá, Oiá ô, hê-hê-hê Firme no meio do vento Firme no meio do fogo Firme no meio do vendaval Firme orixá Que bate sem mover as mãos Firme orixá Que tomou o tambor para tocar E com pouco rasgou o couro Epa, vocês tragam mais um tambor Firme orixá Epa, ela dançou sob a árvore aiã Eparipá, as folhas de aiã caíram todas Orixá que é só axé Castiga sem ser castigada Dona do vento da vida.

Aquela que luta nas alturas. Que doma a dor da miséria Que doma a dor do vazio Que doma a dor da desonra Que doma a dor da tristeza. Mulher ativa, amor de Xangô Bela na briga, altiva Oiá. Mãe lúcida. Fecha o caminho dos inimigos. Deusa que fecha as veredas do perigo. Egungum de pé no pilão. O que é isso? Oiá espanta o babalaô, que nem apanha o seu ifá. Oiá, tempo que fecha sem chuva Fogo no corpo todo Riscafaísca – fogo. Oiá, corpo todo de pedra. Com Oiá eu sou. Com axé de Oiá na cabeça. Minha cabeça aceitou a sorte. Esse orixá me carrega no colo.

Amor de Xangô Epa, senhora sem medo De segredo de egum. Ialodê Espada na mão Bela no batuque Do tantã tambor. Ventania que varre lares Ventania que varre árvores Não nos desarvore. Epa Oiá, maravilha de Irá. Quem não sabe que Oiá é mais que o marido? Oiá é mais que o alarido de Xangô. Alguns estudiosos costumam chamar a nossa atenção para um fenômeno interessante. Falam da existência, já na África, de um “sincretismo” envolvendo jejes e nagôs. Vivaldo da Costa Lima, por exemplo, acentua o fato de que povos vizinhos, vivendo basicamente entre a Nigéria e o Daomé, mantendo relações comerciais entre si ou se engalfinhando em guerras, fazendo prisioneiros e os vendendo no mercado de escravos, e mesmo tecendo alianças e promovendo casamentos interétnicos, não poderiam deixar de se influenciar mútua e fortemente. Uma influência que, segundo o antropólogo, iria da dimensão religiosa ao plano das adoções tecnológicas, passando pelo campo da estrutura dos sistemas familiares. Indo adiante, Costa Lima acredita que esse processo aculturativo entre jejes e nagôs se aprofundou na Bahia, “com a participação de líderes religiosos das duas culturas em movimentos de resistência anti-escravista”. Sobre o Candomblé, especificamente, Vivaldo se refere a empréstimos mútuos, fixando-se na fórmula jeje-nagô “como significativa do tipo de cultos religiosos organizados na Bahia, principalmente sobre os padrões culturais originários dos grupos nagô-iorubá e jeje-fon”. Sobre esses sincretismos, uma alta personalidade do Candomblé da Bahia, Deoscóredes M. dos

Santos, o Mestre Didi, assim se manifestou: “Para que atualmente, mesmo em Salvador-Ba., um terreiro de orixá seja ‘puro’, cultuando exclusivamente os orixás, é preciso que ele seja fechado e reaberto novamente... Mesmo aqueles que se consideram da nação Nagô ou Ketu, estão permeados por Obaluayé, Nanã, Oxumaré, e mesmo Legba ou Elegbará, todos fortemente associados à nação jeje, sem falar de assentamentos da nação Grunci e de tradicionais terreiros que cultuam caboclos – donos da terra –, nos quais muitos de seus filhos e filhas, independentemente de seu orixá, têm um caboclo que se manifesta”. A verdade é que o sintagma jeje-nagô entrou em uso corrente na Bahia, presente tanto em simpósios acadêmicos como em nossa música popular, com Caetano Veloso cantando um “afoxé jeje-nagô” em sua composição Sim/Não. Além disso, podemos constatar que esse sistema jeje-nagô se converteu em código central das manifestações de cultura do Brasil que apresentam nítidos traços africanos. Ou, como costumo dizer, numa espécie de “metalinguagem”, ideologia geral ou lugar geométrico no qual as demais formas e práticas culturais de extração negroafricana se imantam e se tornam legíveis, traduzindo-se umas nas outras, transfiguradas. Numa visão de conjunto das diversas configurações religiosas africanas, é realmente possível destacar alguns aspectos básicos, genericamente partilhados: a relação com o “meio ambiente”; a ausência de corpos doutrinários sistemáticos; a coexistência de monoteísmo e politeísmo; o antropocentrismo; o caráter pragmático da fé. Pode ser que esses traços não sejam comuns a todas as religiões africanas, mas aparecem na vida tradicional iorubá - e são reconhecíveis, mesmo que aqui e ali modificados, no Candomblé jeje-nagô. O vínculo religião-natureza é claro. Os nagôs trouxeram para cá os seus procedimentos de sacralização ambiental. Para eles, a natureza não era vazia. Seus objetos e fenômenos estavam (e estão) carregados de significância religiosa. De vibrações e poderes especiais. Uma colina, uma árvore, uma cachoeira ou uma fonte poderiam ser lugares de manifestação do sagrado. E essa forma religiosa, conduzida a bordo de navios negreiros, apresentava uma alta capacidade para a absorção de práticas e de idéias, na medida mesma em que não se achava formalizada por escrito num conjunto sistemático de dogmas. Numa ortodoxia. A transmissão do saber seguia por outras vias. O que importava era o discurso oral, em presença. Para dar um exemplo extremo, radicalmente distinto do emprego da palavra em religiões alfabéticas, lembre-se o que é a transmissão do conhecimento iniciático no sistema nagô-iorubá, que não destoa do que ocorre no meio jeje-fon. A palavra que leva o saber tem que ser dita por uma pessoa a outra pessoa. É rigorosamente interpessoal. E sua emissão deve ser acompanhada por movimentos corporais. A palavra tem que ser proferida com o corpo, a respiração, o hálito, a saliva, a temperatura – “é palavra soprada, vivida, acompanhada das modulações, da carga emocional, da história pessoal e do poder daquele que a profere”, como ensina Juana Elbein em Os Nagô e a Morte. Caso contrário, a palavra será apenas palavra, signo convencional, incapaz de veicular axé, a força que, ainda no dizer de Juanita, “assegura a existência dinâmica”, permitindo o acontecer e o devir. Monoteísmo e politeísmo não eram vistos, nesse espaço, como termos antitéticos. Ocorria justamente o contrário, conjunção do um e dos muitos. Tinha-se Olodumarê, deus supremo, e os orixás. E tudo isso nos leva para longe da cultura judaico-cristã. E para mais longe ainda, quando

assinalamos o fato de que o Candomblé jeje-nagô nada tem de “salvacionista”. Não se fala que depois da morte poderá haver uma vida melhor. Não há paraíso, inferno, expectativa messiânica, apocalipse. “Viver aqui e agora é a mais importante preocupação das atividades e das crenças religiosas africanas”, diz o teólogo John S. Mbiti, em seu African Religions and Philosophy. Aqui, tudo é visto a partir do ser humano. Deus é a origem e o sustento do homem; espíritos explicam o destino do homem; animais, plantas, objetos e fenômenos naturais constituem o ambiente no qual o homem vive, do qual sobrevive e com o qual pode estabelecer conexões místicas. Enfim, o ser humano está numa posição-chave em relação a tudo o mais. Em The Religion, Spirituality and Thought of Traditional Africa, Dominique Zahan é categórica. O ser humano é o elemento central do sistema. A idéia de uma finalidade exterior à humanidade é completamente estranha a esse pensamento. “O homem não foi feito para Deus ou para o universo; ele existe para ele mesmo e carrega dentro de si a justificativa de sua existência”. Mas o espaço é curto e vamos nos aproximar, finalmente, de duas outras características do pensamento religioso africano clássico, onde se situa a vertente nagô-iorubá: o pragmatismo e o geocentrismo. O que está em primeiríssimo lugar é a vida presente no mundo presente. Os atos de adoração aos deuses são, sobretudo, pragmáticos. O que importa é não adoecer; é ter muitos filhos; são os bons resultados da caçada; é a beleza e a riqueza; é que a chuva caia fertilizando os campos; é a vitória. Daí, de resto, a concentração do candomblé jeje-nagô em assuntos cotidianos, terrestres. Além disso, é a própria superfície terrestre que aparece como o palco por excelência para as proezas dos deuses, orixás que não cessam de intervir nas tramas do mundo humano. É aqui que Exu incendeia a savana, Iemanjá destrói pontes, Omolu distribui castigos, Oxum coleciona jóias, Oiá dança com o seu corpo brilhante e perfeito, Oxóssi caça, Ogum pune, Xangô trova trovões, Oxalá sorri sem mover os lábios. E tudo para que tudo seja o melhor possível. Como Roland Hallgren colocou no título de seu livro, trata-se de uma cultura religiosa voltada para as coisas boas na vida. E foi exatamente essa cultura que deu um outro colorido à vida baiana, inclusive na encruzilhada do sincretismo religioso afro-católico, fenômeno altamente complexo, que tanto pode sugerir, em alguns momentos, a existência de um “bilingüismo”, como disse o historiador Cid Teixeira, quanto redimensionar um Senhor do Bonfim, que às vezes nos confunde, a meio caminho entre um orixá da Palestina e um Cristo de Ilê Ifé.

CAMINHO DA SOLIDÃO Como foi dito na abertura deste capítulo, a Cidade da Bahia sofreu um golpe rude no século XVIII. Viu escapar de suas mãos, para o Rio de Janeiro, a condição de núcleo central da vida no Brasil Colônia. Mas esse deslocamento da Cidade da Bahia, projetada desde então para fora do centro brasileiro de decisões – políticas e econômicas – foi se consumar apenas nos últimos anos daquele

século. E o processo de reorganização espacial do poder não será devidamente entendido se não levarmos em conta duas realidades. A primeira, de natureza econômica, diz respeito à descoberta de jazidas de ouro na atual Minas Gerais. A segunda, de caráter geopolítico, é relativa ao controle do sul do Brasil - à definição de nosso desenho cartográfico, empurrado para além de todas as expectativas lusitanas. Quando os franceses resolveram atacar o Brasil, na aurora mesma do século XVIII, em conseqüência da aliança de Portugal com a Inglaterra, na Guerra de Sucessão do trono espanhol, eles não escolheram, como alvo da empreitada militar, a Cidade do Salvador da Bahia de Todos os Santos, mas a Cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro. Alguém pode argumentar que a escolha do Rio de Janeiro se inscrevia, de alguma forma, na pauta de uma tradição histórica. Afinal, fora naquela região que se pretendera – ainda no século XVI, sob o comando de Villegaignon – o estabelecimento de uma “França Antártica”, vale dizer, a fixação de uma colônia francesa no Brasil. Não é improvável que a história das relações entre o Rio de Janeiro e a França tenha tido um certo peso na determinação da localização da investida militar. Mas houve, inegavelmente, um outro fator, que não pode ser esquecido, nem menosprezado. Nas palavras de Charles R. Boxer, em seu The Golden Age of Brazil, o Rio de Janeiro era visto, naquele iniciozinho do século XVIII, como o prêmio maior que alguém poderia desejar, já que era pelo seu porto que escoava, em direção a um mar de muitos corsários, a riqueza dos grãos extraídos (e subtraídos) de Minas Gerais. Foi principalmente por isso que se contratou Jean-François Duclerc, um crioulo nascido em Guadalupe, para atacar o Rio de Janeiro, em 1710. A Cidade da Bahia já não era, portanto, jóia assim tão cobiçada. A ofensiva de Duclerc, auxiliada por quatro escravos fugidos de um engenho da Ilha Grande, resultou em fracasso. O próprio Duclerc, depois de se ter rendido ao governador do Rio de Janeiro, foi assassinado, em seu quarto de dormir, por um grupo de homens mascarados, jamais identificados – reza a tradição carioca que os mandantes do crime foram maridos enciumados, enfurecidos com as cartas sedutoras que o comandante derrotado enviava às suas esposas. Mas a derrota de Duclerc não fez com que os franceses desistissem. Veio para cá uma segunda expedição militar, desta vez comandada por um célebre corsário bretão, René Duguay-Trouin, nascido na cidade de Saint-Malo, que fora palco, dois séculos antes, do batizado e do casamento de uma índia tupinambá, Catarina Paraguaçu, ou Catarina do Brasil. Considerado um homem “singularmente bonito”, a figura de Duguay-Trouin tem, sem dúvida, o seu fascínio. Ele era exímio em exercícios de esgrima, renomado como homem ardente nas artes do amor, exemplo de cavaleiro e anfitrião, coisas que lhe renderam o epíteto de le parfait gentilhomme. Era um pirata admirado até pelos seus inimigos. E mais uma vez o alvo do ataque – sancionado por Luís XIV, o Rei Sol – seria o Rio de Janeiro. Corria o ano de 1711. E Duguay-Trouin cruzou a linha equatorial comandando dezoito navios. Naquele dia de setembro de 1711, o tempo, no Rio de Janeiro, estava nublado. Antes que a névoa matinal se dissipasse, Duguay-Trouin já havia cruzado a linha de fogo dos fortes que guardavam a entrada do porto. Foi um deus-nos-acuda. O governador carioca, em vez de encarar a situação, apelou para um “salve-se quem puder”. A população evacuou a cidade numa noite escura,

tempestuosa, clareada a relâmpagos. E o Rio se rendeu. Duguay-Trouin só ordenou o levantar âncoras em meados do mês de novembro, diante de notícias de tropas que vinham de Minas Gerais, sob o comando de Antonio de Albuquerque, para socorrer a cidade. Ao bater em retirada, o pirata bretão tinha em mente saquear a Cidade da Bahia. Para a nossa sorte, ventos contrários, persistentemente contrários, impediram a execução do plano. Mas o que fica para nós, de tudo isso, é que a Cidade da Bahia já se convertera em alvo secundário. Em “prêmio de consolação” – botim de um francês que não se impusera ao Rio de Janeiro. Ao contrário do que ocorrera no século XVII, com os holandeses da Companhia das Índias Ocidentais tentando insistentemente ocupar Salvador e o Recôncavo, os navios de guerra estrangeiros tomavam agora o rumo da Baía de Guanabara. As coisas tinham, de fato, mudado. E continuariam mudando. É verdade que as atividades de mineração alcançaram terras da capitania baiana. Mas as jazidas não foram achadas na Cidade da Bahia ou no Recôncavo. Surgiram, em inícios do século XVIII, na região de Jacobina e Rio das Contas, belo burgo barroco que o ouro fez erguer no alto serão, bem acima do nível do mar. De todo modo, um bom volume de ouro chegou a Salvador. Sabe-se que, também aqui, o contrabando foi intenso. Mas, diz Boxer, o ouro baiano não foi totalmente para a África, em troca de escravos, nem para a Inglaterra, em troca de manufaturas. Boa parte terá ficado na própria Bahia, como atestariam, segundo o estudioso, o emprego do metal na decoração de igrejas e a profusão de jóias ostentadas pelas senhoras baianas, naquela época. Ainda assim, a produção de ouro, na Bahia, nunca foi comparável à de Minas Gerais. Não se quer dizer com isso que a economia açucareira tenha sido liqüidada em função das atividades auríferas. De modo algum. O que houve foi que todo um novo cenário começou então a se articular, de modo vigoroso e veloz, no Brasil colonial. A corrida do ouro incendiou a metrópole e a colônia. Milhares e milhares de pessoas se lançaram de Portugal, das ilhas atlânticas e de diversas regiões brasileiras, em busca das terras de Minas Gerais. Esse massivo deslocamento demográfico fez surgir novas estradas, arraiais e vilas, gerando um povoamento do interior, numa escala inédita; provocou contatos entre lugares até então isolados entre si, inclusive providenciando a integração efetiva do Rio Grande do Sul ao processo brasileiro; intensificou relações comerciais, ensaiando a formação de um mercado interno – coisa algo estranha numa economia colonial, exportadora de matérias-primas; etc. Houve, ainda, uma reorientação do fluxo de escravos e um aumento em seus preços, já que Minas pagava mais pelas “peças”, prejudicando, entre outras coisas, a agricultura litoral da Bahia. Enfim, como reza o clichê, mudou-se, para o Centro-Sul, o “eixo” ou o “centro dinâmico” de nossa vida sócio-econômica. E foi aí que o Rio de Janeiro – porto por onde entravam os escravos, porto por onde saía o ouro – assumiu uma outra importância. Tornou-se, em poucas palavras, o principal porto comercial do Brasil. E a Cidade da Bahia, em conseqüência, principiou a se mover em direção a um lugar um pouco mais sombreado. Mas a riqueza das minas não foi tudo. A produção aurífera atingiu seus pontos mais elevados entre 1735 e 1755, quando começou a despencar. Ouro Preto chegou a contar com vinte mil

habitantes em 1740 – e a partir daí foi sofrendo um esvaziamento constante, para ter apenas sete mil moradores em 1804. O que significa dizer que, em pouquíssimo tempo, a cidade passou a pertencer essencialmente ao passado. De outra parte, quando, em 1760, a exportação colonial atingiu o seu auge, alcançando cinco milhões de libras esterlinas, coube ao açúcar 2400, ficando 2200 com o ouro. É claro que o contrabando não está computado aí. Mas a cifra é suficiente para mostrar o peso do açúcar. Além disso, a Bahia contava ainda com o tabaco de Cachoeira, a “erva santa”, como o fumo era chamado nos primeiros tempos coloniais. No final do século XVIII, o tabaco ocupava o quarto lugar na produção agrícola brasileira – e a Bahia era o principal centro produtor e exportador de fumo. De acordo com Boxer, aliás, esse tabaco do Recôncavo, tido como o melhor que se produzia no mundo, era ansiosamente procurado por personalidades tão distintas entre si quanto monarcas asiáticos e potentados do Daomé. Mas se o ouro não foi tudo, no processo da transferência de poder da Bahia para o Rio de Janeiro, um outro fator pesou decisivamente nesse deslocamento. Foi o estratégico-militar. Para os colonizadores efetivos do Brasil, o célebre Tratado de Tordesilhas nunca passou de letra-morta, traço abstrato confinado a jogos de geopolítica teórica. Porque, na prática, os construtores do Brasil não tomaram conhecimento de sua existência – e foram avançando em todas as direções possíveis, da bacia amazônica à bacia platina. Assim, em meados do século XVIII, ocupávamos já um território de extensão continental, sobre o qual ia se impondo gradualmente, mas não sem muitas dificuldades e transformações significativas, a língua portuguesa. Frei Vicente do Salvador julgava poder observar, no século XVII, que os portugueses, no Brasil, contentavam-se com “andar arranhando ao longo do mar como caranguejos”. Bem, penso que a frase é duplamente injusta. De uma parte, porque se refere, com injustificável desdém, ao que, na verdade, foi uma proeza – uma obra dificílima, que não só exigiu, em grau extremo, determinação e coragem, como custou não poucas vidas: a obra do assentamento lusitano na fachada atlântica dos trópicos atualmente brasileiros. A colonização portuguesa jamais teria ido adiante, na conquista das extensas terras do Brasil, se não tivesse conseguido dominar o litoral com fortes, feitorias, plantações, engenhos e vilas. Para isso, os lusos tiveram que enfrentar outros europeus (franceses, sobretudo) e diversos grupos ameríndios, que de tudo fizeram para confiná-los à orla marítima – e isto para não falar de barreiras geográficas dificultando o acesso aos sertões e da carência lusitana de recursos humanos, que levou Portugal a concentrar estrategicamente, na linha do mar, seus soldados e colonos. Em suma, aquela gente não estava apenas “arranhando” o litoral, mas assentando as bases de um império no ultramar. De outra parte, porque, quando o nosso frei escrevia a sua História do Brasil, lusos e brasileiros já haviam ultrapassado a linha litoral e se embranhado em terras interioranas. Desde inícios do século XVII, bandeirantes paulistas freqüentavam o Rio Grande do Sul. Em 1615, São Luís fora tomada dos franceses. Meses depois, tivemos a fundação de Santa Maria de Belém. O controle da foz do Amazonas. E, por essa mesma época, mamelucos brasilíndios já criavam gado no vale do Rio de São Francisco. Eram vaqueiros e boiadas da Casa da Torre de Garcia d’Ávila, que, sob o comando de Francisco Dias d’Ávila Caramuru, principiavam a colonizar os campos de Jacobina e as margens do grande rio.

Se o frei é injusto quanto às movimentações do século XVII, seu comentário já não teria cabimento algum com relação à centúria seguinte. Examinando o panorama delineado no século XVIII, Kenneth Maxwell se viu na obrigação de sublinhar justamente o contrário: “A longo prazo, a expansão das fronteiras foi talvez o fato mais importante desses anos. No mesmo período em que os colonizadores ingleses estavam ainda instalados junto às águas marítimas e em que os espanhóis ainda baseavam o seu domínio na América, essencialmente, nas serranias e nos ombros dos camponeses índios, os portugueses tinham já subido os rios do interior e atravessado grandes extensões de terra para reclamar direitos sobre mais da metade do continente sul-americano”. Mas os espanhóis reagiram. O século XVIII foi um tempo de intermináveis disputas fronteiriças. Uma época de tratados diplomáticos e de enfrentamentos militares. Os portugueses garantiram desde cedo a posse da região amazônica. Na verdade, os espanhóis não estavam interessados na Amazônia ao ponto de encarar batalhas por ela. Abriram mão daquele espaço, onde veio a ser criada, em 1755, a Capitania de São José do Rio Negro. Para eles, a questão central não dizia respeito ao Extremo Norte atualmente brasileiro, mas ao Extremo Sul. À América Austral. Mais exatamente, à Bacia do Prata. Para enfrentar essa parada, o Rio de Janeiro estava, obviamente, muito mais bem localizado do que a Cidade da Bahia. E as coisas não estacionaram nas primeiras décadas do século. No plano internacional, continuaram a vigorar as alianças que colocavam França-Espanha, de um lado, e Inglaterra-Portugal, de outro. Vassalo da Inglaterra, o reino de Portugal foi envolvido, em 1762, na Guerra dos Sete Anos, que opôs a Grã-Bretanha à dupla França-Espanha. E essa guerra teve o seu desdobramento americano, com o reacender das disputas lindeiras luso-espanholas. Mais uma vez, a situação do Rio era estrategicamente privilegiada. Fortes razões militares pesaram, portanto, na passagem do poder colonial para o Rio de Janeiro. Fala Russell-Wood: “O golpe final contra a supremacia da Bahia foi casual. Em 1761 a França arrastou a Espanha à Guerra dos Sete Anos, e em pouco tempo ficou claro que ambos os países invadiriam Portugal. Pombal invocou a aliança inglesa, mas em abril de 1762 tropas espanholas invadiram o norte de Portugal. Esse fato teve repercussões no Brasil. Em setembro de 1762 a colônia do Sacramento no Rio da Prata foi invadida por uma força espanhola comandada por D. Pedro de Ceballos e rendeu-se no mês seguinte. A intervenção inglesa foi tardia e ineficaz. Ceballos invadiu então o Rio Grande do Sul e foi detido. Esse desafio militar às fronteiras meridionais do Brasil aumentou a importância estratégica do Rio de Janeiro. Lisboa compreendeu integralmente a situação. Por carta real de 27 de junho de 1763, D. José I declarou a sentença de morte [sic] da Bahia, ordenando a transferência da capital do Brasil, da Cidade do Salvador da Bahia de Todos os Santos para a Cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro”. Vamos resumir. A descoberta do ouro, a expansão demográfica e urbana do Centro-Sul, a ocupação e colonização de zonas austrais e as disputas em torno de territórios sulinos foram exigindo uma progressiva centralização política e administrativa do Brasil. Nesse processo, as capitanias hereditárias se viram submetidas a fusões, transformadas em capitanias reais e, finalmente, foram extintas. O governador do Rio de Janeiro, Gomes Freire de Andrade, teve o seu poder

estendido a todas as terras meridionais, incluindo-se aqui as de Minas Gerais. Escreve Oliveira Viana: “O centro de gravidade econômica e militar da Colônia deslocava-se do norte para o sul e com ele o centro de gravidade política”. Em 1762, Portugal voltou a se bater com a Espanha. No ano seguinte, Pombal transferiu a capital para o Rio. Os baianos ficaram ressentidos, obviamente, mas nada puderam fazer. E a Cidade da Bahia se viu conduzida, no cenário brasileiro, a uma posição de segundo plano. É bem verdade que Salvador não desceu de imediato a escada. Foi, durante boa parte do século XVIII, a mais rica e populosa cidade do império português, depois de Lisboa. Contava, no final daquela centúria, com cerca de 50 ou 60 mil habitantes, pretos e mulatos, em sua maioria – Lisboa abrigava cerca de 180.000 habitantes, mas o Porto e Coimbra não iam, respectivamente, além dos 30 e 15 mil moradores. E entrou no século seguinte como cidade opulenta, impressiva, senhorial, centro da Igreja Católica em nossos trópicos. O seu porto recebia bandeiras das mais variadas partes do mundo, naves comerciais de Portugal, da Inglaterra, da Espanha, dos Estados Unidos da América do Norte, da França e até mesmo da Dinamarca, como o navio Luiza, que aqui aportou em janeiro de 1798. Mercadorias iam para a África e vinham da Ásia. Etc. E havia ainda o colorido interno, fruto da trama do Recôncavo, com centenas de embarcações a vela, saveiros e barcos, chegando de Itaparica, Jaguaripe, Maragogipe, Santo Amaro, Cachoeira, Iguape, Maré, Madre de Deus, Saubara ou Passé. Na verdade, o final do século XVIII foi, para a Cidade da Bahia e seu Recôncavo, um período de alta animação econômica. Nossos historiadores ensinam que, entre 1790 e 1820, a economia da região viveu dias de pique. Rodrigues de Brito não se cansa de falar, a propósito, em expansão das lavouras. Mas o fato é que esse bom tempo de lucros e mais lucros não iria durar muito. Celso Furtado talvez tenha exagerado o quadro: passávamos da “letargia secular” da centúria de setecentos para a falsa euforia dos últimos dias coloniais. Discutiremos o assunto no próximo capítulo. Visto de uma perspectiva mais ampla, todavia, o que se desenhou à nossa frente, entre o final da centúria de setecentos e o início da de oitocentos, apesar da euforia açucareira dos primeiros anos do século XIX, foi um quadro de declínio e isolamento. O início de um período de mais de cem anos de solidão. E foi justamente aí que se consolidou o que hoje chamamos cultura baiana.

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Sangue, Suor e Cultura O século XIX foi, sobretudo, um tempo de enfrentamentos armados. A conquista da autonomia nacional significou, para os baianos de Salvador e do Recôncavo, mais de um ano de guerra, até que as forças do chamado Exército Libertador triunfassem, entrando na Cidade da Bahia no dia 2 de julho de 1823. Em seguida, ouviu-se na região a voz virulenta dos deserdados da Revolução Nacional – uma série sanguinária de levantes escravos e federalistas, que conheceram os seus momentos extremos na Revolta dos Malês e na Sabinada, movimento que provocou “a noite mais triste” da nossa história. Tempo da decadência da economia açucareira, da grande epidemia de cólera, da projeção de mulatos e bacharéis, da Guerra do Paraguai, da Abolição da Escravidão e da Proclamação da República. Época em que se configurou, de forma plena, o complexo antropológico a que hoje chamamos “cultura baiana”.

UM BREVE OLHAR “O século XIX encontrara a cidade do Salvador com o seu delineamento urbano estabelecido”, escreveu Affonso Ruy. È vero. Nessa época, levantavam-se os últimos paredões de sustentação das terras da Ladeira da Misericórdia. Chafarizes pontuavam a extensão urbana. Construído pelo Conde dos Arcos, o Passeio Público era um jardim iluminado, chamando a atenção de todos, com as suas alamedas de plantas frutíferas (laranjeiras, jambeiros, etc.), suas densas cercas de pitangueiras, suas grandes árvores. A Biblioteca Pública, herdando os livros de Francisco Agostinho Gomes, oferecia ao público leitor – reduzidíssimo, é claro – entre três e cinco mil títulos. O Teatro São João surgira em praça arborizada, a atual Praça Castro Alves, com vista para o mar. Mas nem só o núcleo citadino se definira. A Praça do Palácio funcionara como pólo central, irradiador. E o casario foi avançando em várias direções, para fora e para longe do miolo original.

Ia assim cobrindo roças e matas para o nascimento de novos bairros e a formação de subúrbios, como aconteceu com a antiga freguesia da Vitória, agora convertida em área residencial favorita de diplomatas, estrangeiros e negociantes ricos, que iam a cavalo para os seus escritórios na zona mais propriamente urbana. Brotas (com os seus pomares) e Itapagipe (para onde, “por conveniência e segurança pública”, o Conde dos Arcos planejou transferir nosso centro administrativo) adensavamse mais e mais. Ao Bonfim dos devotos e dos veranistas, com a sua clara igreja de meados do século transato, ia-se a pé, de barco ou de saveiro, especialmente em tempo de festa. O Rio Vermelho pintara como um povoado de pescadores, com a sua armação de baleias. Também nas armações de Itapoã se praticava a pesca da baleia e o refino de seu óleo, empregado na iluminação da cidade. O missionário metodista Daniel Parish Kidder, aliás, fez um registro interessante sobre a paisagem suburbana da Salvador oitocentista: “as linhas divisórias dos subúrbios, na Bahia, são constituídas por limeiras de cujas folhas, quando recentemente aparadas, desprende-se uma fragrância toda peculiar”. Enfim, ali estava, nítida, com o seu mundo de misérias e alegrias girando a beira-mar, “a extensa e luminosa cidade mercantil”, como a tratou Maximiliano de Habsburgo, o príncipe-poeta austríaco que abominava a língua portuguesa (“quem ainda não ouviu o português, não sabe como o diabo fala com sua avó”, dizia ele). Ou, nas palavras do médico alemão Robert Avé-Lallemant, era aquela a Cidade do Salvador da Bahia de Todos os Santos, estendendo-se sobre a cadeia de colinas paralela à praia, como “o seu nome por extenso no papel”. Assim como Kidder, Avé-Lallemant e Maximiliano, muitos outros visitantes estrangeiros deixaram por escrito as suas impressões da Cidade da Bahia no século XIX. “Uma cidade magnífica de aspecto, vista do mar, está colocada ao longo da cumeira e na declividade de uma alta e íngreme montanha. Uma vegetação riquíssima surge entremeada com as claras construções, e além da cidade estende-se até o extremo da terra, onde ficam a pitoresca igreja e o convento de Santo Antônio da Barra. Aqui e ali o solo vermelho vivo harmoniza-se com o telhado das casas. O pitoresco dos fortes, o movimento do embarque, os morros que se esfumam à distância, e a própria forma da baía, com suas ilhas e promontórios, tudo completa um panorama encantador”, escreveu, por exemplo, em seu Diário de uma Viagem ao Brasil, a inglesa Maria Graham. Em seu livro Visitantes Estrangeiros na Bahia Oitocentista, a estudiosa Moema Parente Augel nos dá um panorama dessas visões forasteiras da Cidade da Bahia, descortinando-a desde o mar. E o que se vê é que os viajantes eram unânimes ao enfatizar a rara beleza da vista daquela cidade erguida em anfiteatro, a cavaleiro do Atlântico Sul. Todos falam em termos de espetáculo grandioso, de uma das vistas “mais belas que se podem imaginar”, etc. São as águas da baía imensa, o forro azul cintilante do céu, as formas e cores e luzes da vegetação tropical, a cidade rebrilhando lá no alto. Mas o êxtase é substituído pelo choque decepcionante, tão logo o indivíduo desembarca na Cidade Baixa. Aqui, a unanimidade continua, só que pelo avesso. Um após outro, os estrangeiros vão sublinhando, com traços fortes, a feiúra e a imundície da Rua da Praia. Maria Graham: “sem nenhuma exceção, o lugar mais sujo em que eu tenha estado”. Ferdinand Denis: “o lugar mais feio da Terra”. São os pardieiros, a sarjeta correndo a céu aberto pelo meio da rua, as lojas barulhosas, os vendedores de salsichas e chouriços, os armazéns, os cães e porcos andando para lá e para cá. Para

Spix e Martius, por exemplo, o mercado de peixe deixava “ofendidos o olfato e o sentimento moral”. Enfim, o então chamado bairro da Praia é um quadro que horroriza e enoja. E que faz lembrar – pela balbúrdia colorida, ruidosa e suja – os bazares de Constantinopla. A exceção é a Rua Nova do Comércio, cujas principais casas comerciais, no julgamento do pastor James Cooley Fletcher, “compõem o mais belo bloco de edifícios do Brasil”, que bem poderiam “adornar os bairros comerciais de Londres, Paris ou Nova York”. Ao chegar à Cidade Alta, no entanto, o visitante volta a se enfeitiçar. É a parte clara da Cidade da Bahia – a cidade burocrática, eclesiástica e residencial, estirando-se por “um vasto planalto, sem cessar refrescado pelas brisas marinhas”. É a cidade da riqueza, das praças amplas e arejadas, dos chafarizes, das igrejas grandiosas (“artigos de luxo que não podem alegrar a Deus Nosso Senhor”, sentencia o príncipe Maximiliano), dos monumentos da arquitetura civil, do “magnífico panorama da baía” – uma vista que, de resto, levou a princesa Tereza da Baviera a recordar o golfo de Nápoles. Enfim, o contraste entre as cidades alta e baixa é acentuado ao extremo por aqueles que visitam a Salvador oitocentista. Numa, eles experimentam a náusea – e mesmo o nojo; noutra, o prazer, a sedução sensorial. Moema Parente Augel expõe de forma perfeita: “A estratificação das duas cidades é bem nítida: em baixo, a cidade do grande e do pequeno comércio, dos negócios e do dinheiro, a cidade malsã e mal cheirosa, abafada e espremida entre a montanha e o mar, antro da sujeira, do ruído e da balbúrdia, protótipo do exótico. (...). Na parte superior... A cidade bem ornada com edificações de relevo, praças ‘surpreendentes’, casario alvacento. A cidade silenciosa, inesperadamente calma, luminosa e ampla, arejada e salubre. A cidade cartão-postal, dos belos jardins, da esperada arboração luxuriante das laranjeiras perfumadas, das mangueiras portentosas, jaqueiras monumentais, coqueirais perdendo-se de vista. (...). Em baixo, o ar carregado de miasmas, a sarjeta, o burburinho. Em cima... a calma idílica, o perfume da vegetação, a brisa marinha, a magia da paisagem. (...). De um lado, a cidade-porto, a cidade-armazém, a cidade-empório, a cidadeformigueiro. Do outro, a cidade-jardim, a cidade-lazer, a cidade residencial, a cidade paradisíaca. (...). A Cidade Baixa – cidade negra, cidade escrava. A Cidade Alta – cidade branca, cidade senhorial. (...). O quadro das duas cidades é complementado pelos dois mundos sociais, numa correspondência entre a estratificação topográfica e ecológica de um lado, e a estratificação social e racial do outro.” De qualquer modo, se a cidade, regra geral, provocava impressões e leituras contrastantes, a natureza que a envolvia era quase sempre fonte de enleio e de fascínio. Veja-se Tereza da Baviera falando de um passeio seu ao Rio Vermelho, já na época do tramway: “O bonde volteia penosamente pelos caminhos abertos como brechas no mato, passando por vales generosamente arborizados, por barrancos estreitos e encantadores, cobertos completamente pela vegetação, e bosques inteiros de palmeiras elevam ao céu seus leques de folhas”. Ou a seguinte anotação de Charles Darwin, “founding father” da biologia contemporânea, feita numa escala baiana do navio Beagle, e depois incluída em seu livro Viagem de um Natu-ralista ao Redor do Mundo: “A elegância da relva, a novidade das parasitas, a beleza das flores, o verde luzidio das ramagens, e, acima de tudo, a exuberância da vegetação em geral, foram para mim motivos de uma contemplação maravilhada. (...). Para o amante da história natural, um dia como este traz consigo uma sensação de que jamais se

poderá, outra vez, experimentar tão grande prazer”.

PLANO GERAL Na esquina entressecular, passagem do século XVIII para o XIX, os interesses e os desejos da elite urbana e mesmo do setor médio da população citadina muitas vezes colidiam com os desejos e interesses dos senhores rurais do Recôncavo. Mas agora, princípios dos oitocentos, vivia-se um momento especial. O final do século XVIII fora, para a Bahia, o início de um período de expansão das atividades econômicas. Pode-se dizer que os anos que vão de 1790 a 1820 configuram um momento de euforia da economia açucareira. No resumo de José Jobson de A. Arruda, em O Brasil no Comércio Colonial, houve “uma leve ascensão do volume das exportações no final do século, um patamar, a seguir, e uma rápida aceleração das exportações até 1820, quando, então, sim, começa a retração”. Marés e ventos se moveram de forma progressivamente favorável, portanto, até à véspera mesma da proclamação da nossa independência, quando o filho de D. João VI assumiu o título de Pedro I, imperador do Brasil. Ora, durante os três primeiros quartos do século XVIII, a participação brasileira no mercado atlântico do açúcar não fizera senão cair. Há uma estimativa de que, em fins da década de 1780, ela não ultrapassava a casa dos 7%. São números que falam com clareza. E o que eles dizem cabe numa palavra: declínio. É bem verdade que a já referida Guerra dos Sete Anos (1756-1763), ao interromper o movimento do comércio de nossos concorrentes antilhanos, provocou uma alta dos preços do produto na Europa. Os senhores de engenho da Bahia, na época, não couberam em si de contentamento, escarrapachando-se à sombra das casas-grandes do Recôncavo. Mas logo veio a paz – e, com ela, a figura do declínio se recompôs ainda mais sombria. Está certo afirmar, por isso mesmo, que o século XVIII foi, quase todo ele, um tempo essencialmente depressivo para a agroindústria açucareira baiana. No entanto, o final do século nos surpreendeu com um renascimento. A decadência, que chegara a parecer irreversível, viu-se subitamente substituída pela euforia. Graças, como se sabe, a mudanças ocorridas na conjuntura mundial. Sobretudo, à desarticulação do império espanhol na América e à desorganização da produção açucareira das Antilhas – ou, mais precisamente, ao colapso do Haiti, onde negros sublevados, partindo para uma guerra de independência, destruíram os engenhos de açúcar. Este último fato foi, para nós, o evento realmente decisivo, fundamental. Escreve Stuart B. Schwartz: “Um acontecimento, mais do que qualquer outro, estimulou a recuperação e a expansão da indústria açucareira baiana... O evento foi a grande revolta escrava em São Domingos [Haiti], colônia francesa nas Antilhas, em 1791. Essa rebelião acabou por tornar-se um movimento de independência, e durante um decênio de guerra, São Domingos, o maior produtor de açúcar e café na década de 1780, foi praticamente eliminado como exportador desses produtos. Uma imensa demanda por

açúcar esperava para ser suprida por áreas produtoras, tradicionais ou novas. A economia baiana, embora houvesse esboçado alguns sinais de recuperação na década de 1780, com a revolta haitiana conseguiu uma grande expansão da indústria açucareira e, com ela, a intensificação e o crescimento do tráfico negreiro e das tensões e apreensões sociais resultantes de um aumento na população cativa e na proporção de africanos nesta última”. Expansão. Esta é a palavra-chave. Novos engenhos foram surgindo em carretilha no Recôncavo, ao tempo em que engenhos tradicionais iam sendo reedificados ou ampliados, intensificando as suas operações. A produção aumentava. Passava das dez mil caixas anuais da década de 1770 para as trinta mil exportadas em 1817. Os senhores sorriam. O otimismo reinava. Era a revitalização, em alto estilo, da agroindústria do Recôncavo. Depois das asperezas e lamúrias do século XVIII, voltava a brilhar, uma vez mais, sua majestade, o Açúcar. “Uma aura de sucesso gradualmente ofuscou o passado de lutas e dificuldades, criando, ao disseminar-se, um mito de riqueza aparentemente contínua desde o século XVI”, comentou, com propriedade, Schwartz. Apontando, aliás, para um aspecto importante: “Conquanto numerosas sugestões para melhoramentos tecnológicos, experiências com novos tipos de cana-de-açúcar e outras reformas surgissem nesse período, o crescimento da economia açucareira deu-se essencialmente através da expansão do número de unidades produtivas e da intensificação do sistema escravista existente. A Bahia experimentou um revivescimento, não uma transformação”. Dito de outro modo, o que houve foi um incremento do já existente. Em meio a esse avanço do açúcar, o processo europeu nos fez uma surpresa: provocou a transferência da corte portuguesa para o Brasil. Napoleão decretara o bloqueio continental à Inglaterra. Pouco depois, em Fontainebleau, declarou, dirigindo-se a Portugal, velho parceiro dos ingleses: “A casa de Bragança cessou de reinar”. Logo, as tropas napoleônicas, sob o comando do general Junot, estariam caminhando em direção às terras portuguesas. A corte lusitana, pressionada pela Inglaterra e achando-se débil para ensaiar qualquer reação, optou pela fuga, embarcando para os trópicos brasileiros. Chegando à Cidade da Bahia em janeiro de 1808, o então príncipe-regente D. João assinou carta régia suspendendo a legislação que proibia o “recíproco comércio” entre brasileiros e estrangeiros, no ato mesmo em que franqueava os portos do Brasil às nações que estivessem “em Paz, e Harmonia” com a Coroa portuguesa. Foi a chamada “Abertura dos Portos às Nações Amigas”, talvez promulgada sob a influência das teses defendidas pelo Visconde de Cairu. Mas a verdade é que, contrariando Cairu, tal “abertura” logo sofreria um brutal estreitamento. Um “vergonhoso recuo”, como disse Pinto de Aguiar, em A Abertura dos Portos do Brasil. Foi a Carta de Lei de 1810, conferindo tratamento preferencial à Inglaterra, ao determinar que navios britânicos não seriam obrigados “a dar entrada na alfândega, nem a seguir outras formalidades praticadas pelas embarcações mercantes”. Fazia já algum tempo que, para os ingleses, o Brasil era muito mais importante do que Portugal. A Inglaterra buscava nossas matérias-primas (incluindo o algodão, depois da perda dos EUA) e o mercado interno que aqui se formara – como se sabe, o Brasil seria, à época da independência, o terceiro mercado externo dos ingleses. E como Portugal lhe era subordinado, conseguiu que o príncipe-regente, num gesto

servil, estabelecesse, para os produtos britânicos, tarifas menores do que as definidas para os próprios produtos portugueses. Era a anulação da carta régia de 1808. A concessão, à Inglaterra, do monopólio efetivo do mercado brasileiro. E os ingleses inundaram o Brasil com seus produtos. Inclusive – pasmem – e esquis. De qualquer sorte, oficializou-se assim um comércio que de há muito vinha correndo na clandestinidade. E o fato é que a trasladação da corte para o Brasil e a cena teatral da abertura dos portos contribuíram para reforçar ainda mais a confiança e o otimismo baianos. Confiança e otimismo que vinham de antes, com um Portugal deficitário em seu comércio com o Brasil, metrópole que se tornara parasita de sua colônia, dependendo desta para sobreviver. Na verdade, Portugal não passava, em inícios do século XIX, de um intermediário do comércio brasileiro, tanto nas importações quanto nas exportações – situação que alimentaria nossos projetos de autonomia nacional, aprofundando-se agora em virtude da nossa descolonização econômica e pelo fato do Rio de Janeiro ter se transformado, na prática, em capital do império português. Apreciando (ainda que a vôo de pássaro) o panorama, podemos chegar facilmente a algumas conclusões. De um modo geral, as guerras napoleônicas criaram condições favoráveis para o comércio brasileiro. A “abertura dos portos”, por sua vez, eliminou a intermediação lusitana, permitindo que venda e compra se fizessem por melhores preços. E a presença da corte entre nós significou o fim da antiga subordinação à velha e decadente metrópole. A conquista de privilégios que nos colocavam em pé de igualdade com Portugal, abrindo caminho para a nossa independência. Sim – o Brasil deixava para trás o estatuto colonial. Fora elevado, em 1815, à categoria de reino. Integrava agora, como se sabe, o Reino Unido, juntamente com Portugal e Algarves. E de fato, embora não de direito, era mais que isso. Era a sede da monarquia portuguesa. E a Bahia, como vimos, se movia com desenvoltura nesse contexto, com o açúcar dominando a cena. Como bem disse um comentarista, parecia definitivamente conjurado, no princípio do século XIX, o abalo econômico e social que proviera da mudança da capital em 1763. Mas essa é apenas uma face da história. Existiu também uma outra face, nada leve ou ligeira. Foi o duro reverso da medalha. É que a expansão da indústria do açúcar nunca chegou a ser sinônimo de felicidade geral. Havia o cativeiro, a escassez de alimentos, a pobreza generalizada. Não eram somente os escravos que penavam. Também os que podiam usar sapatos (cativos eram obrigados a andar descalços, comprando sapatos assim que conseguiam a carta de alforria: homem de sapato = homem livre), mas não possuíam maiores riquezas, padeciam – e não era pouco. Para lembrar a definição de Vilhena, o estrato médio da população baiana formava “uma congregação de pobres”. Daí a insatisfação permanente que pairava no ar da cidade e de sua interlândia. As tensões sociais que não raro alcançavam extremos de agudeza. E, aqui e ali, explodiam. Na verdade, a placidez jamais foi, antes da chegada do século XX, uma característica da vida na Cidade da Bahia e seu Recôncavo. Até 1820, ao tempo em que a produção açucareira se alargava, seguindo sem embaraço ou estorvo desorganizador o seu curso mais visível e mais vistoso, não cessaram de acontecer manifestações de descontentamento e inconformismo, tendo os seus pontos incandescentes nos riscos radicais das insurreições escravas. Já quando o crescimento agrícola ameaçava se descompassar,

sobreveio a luta pela independência, a Revolução Nacional, que significou, para os baianos, não apenas um grito na beira de um riacho, e sim enfrentamento armado – mais de um ano de guerra, com perdas em capitais, bens e vidas. Em sua Vida Econômico-Financeira da Bahia no Século XIX (Elementos para a História) – de 1808 a 1889, Goes Calmon afirma que foi justamente aí que as coisas se complicaram. As conseqüências da guerra independentista “contribuíram para estancar o progresso que tão rico de promessas, de novo se vinha acentuando desde 1800”. Casas opulentas foram então reduzidas à penúria, a agricultura se viu seriamente desfalcada das forças humanas necessárias às atividades produtoras. “Desconjuntou-se”, na sugestiva expressão do mesmo Goes Calmon, a nossa vida econômico-financeira – “e, desde então, começa a série infindável das desgraças que nos perseguiram durante todo o século XIX”. Desgraças e sofrimentos que, ainda nas palavras do ex-governador, vieram “uns após outros, sem dar tempo a reparação ou recuperações”. Realmente, entre 1820 e 1840, a Cidade da Bahia e seu Recôncavo não conheceram sossego. Foi este um período de nossa história que se deixou marcar, fundamente, por agitações antiportuguesas (“mata-marotos”), levantes militares como o do Batalhão dos Periquitos em 1823, insurreições escravas em Cachoeira e Salvador, revoltas federalistas. Nessa época, Salvador chegou até mesmo a ser bombardeada pelos canhões do Forte do Mar, tomado por subversivos que lá se achavam presos – e queriam nada menos do que a rendição do Governo Provincial. Adiante, já na década de 1850, a Bahia, transformada de capitania real em província imperial desde a primeira Constituição brasileira (1824), vai experimentar castigos ecológicos e uma arrasadora onda de pestilência. Os danos e distúrbios tiveram, assim, origem nos mais variados planos, do ambiental ao sanitário, passando pelo político-social. Mas, apesar do rol de desgraças referido por Goes Calmon, Stuart B. Schwartz, talvez confundindo imprudência empresarial com “desenvolvimento”, considera que a indústria açucareira baiana não deixou de continuar gozando de algum crescimento até 1840. Avançando um pouco mais no tempo, Thales de Azevedo avalia que, por volta de 1850, a Bahia ainda experimentava dias de relativa ventura. Havia equilíbrio, havia otimismo. “Florescia entre nós uma civilização empreendedora e otimista, com uma aristocracia rural de senhores de engenho, fazendeiros, comerciantes fortes..., comissários das importações e exportações, cujos requintes de maneiras e de gosto impressionavam os visitantes estrangeiros”, exagera o antropólogo Thales, em A Economia Baiana em Torno de 1850. Bem, é mais fácil falar de alguma bonança do que de requinte (estrangeiros não cansaram de indigitar o mau gosto e a grossura da elite baiana de então). Com relação àquela, Thales sustenta que “o panorama da província trinta anos depois da emancipação política nacional justificava franco otimismo”. E apóia a sua afirmação nos dados que seguem: a Província exportava bem, possuía intenso movimento portuário, mantinha linhas de navios a vapor, abria estradas, exibia três “estabelecimentos bancais”, fabricava pólvora, rapé, sabão, papel e charutos. Mas é o próprio Thales quem acena com realidades que, no mínimo, relativizam o seu quadro de otimismo: o aparelhamento bancário era insuficiente e inadequado; o desequilíbrio entre importação e exportação produzia uma sangria na economia e nas finanças da Província, gerando um “encarecimento espantoso do custo de vida”; o fim do tráfico negreiro, coincidindo com o surto do café no Brasil Meridional, não só

promovia a transferência de escravos para as plantações centro-sulistas, desfalcando a mão-de-obra baiana, como ocasionava, aqui, “uma seleção negativa com a venda dos melhores elementos” – “o que, em círculo vicioso, vinha a refletir-se na produtividade que era sempre decrescente”. Contudo – prossegue Thales – “havia ainda recursos para modernizar a capital da província com a limpeza e canalização dos rios da Vala e do Camurugipe, a abertura de ladeiras, muradas e calçadas entre as cidades Baixa e Alta, o calçamento das ruas do bairro comercial, do trecho entre a Barroquinha e a Rua das Flores, da Estrada da Vitória e da Ladeira da Barra, com a instalação de chafarizes públicos e de iluminação das ruas com combustores de gás, com melhoramentos das estradas para a periferia da cidade, como as do Rio Vermelho, dos Pernambués, de Brotas, e a grande via de acesso ao interior, a Estrada das Boiadas. Por essa época, fazia-se o levantamento da planta da cidade, nivelavam-se terrenos, contratavam-se técnicos franceses, ingleses, italianos e portugueses para a construção de edifícios públicos, para os estudos de estradas no interior, para a organização de espetáculos dramáticos, vaudevilles e bailados no Teatro São João e dum Conservatório Dramático e para a pesca em larga escala nas águas da província; incrementava-se a instrução pública, subvencionavamse empresas de navegação a vapor, subscreviam-se ações e ofereciam-se garantias de juros às companhias que iniciavam a construção da Estrada de Ferro de Juazeiro com meio milhar de operários italianos e da rodovia de S. Amaro, a chamada Estrada do Pé Leve, com uma folha diária de quinhentos e tantos trabalhadores.” Rômulo de Almeida vai mais ou menos na mesma batida de Thales, embora alargando mais o horizonte. Vivíamos então, na justa definição de Rômulo, em uma “economia aleatória”, isto é: uma economia que vagava “nas incertezas da produção natural e sobretudo do comércio estrangeiro”. Rômulo: “a insegurança era o signo do açúcar”. Acompanhando as oscilações, o autor de Traços da História Econômica da Bahia no Último Século e Meio observa que a economia baiana conheceu uma alta no começo do século XIX, uma baixa nas décadas de 1820-1830, “certa reanimação” na década de 1840, altos e baixos na de 1850 e uma queda cobrindo o tempo que foi da Guerra do Paraguai até 1890, “quando se registra nova alta”. Mas foi Kátia Mattoso quem fez o balizamento mais preciso desse, digamos, andamento ondulatório da economia baiana no século XIX. De acordo com Kátia, os jogos conjunturais compuseram o seguinte desenho: 1787-1821: prosperidade; 1822-1842/45: depressão; 1842-1860: recuperação; 1860-1887: grande depressão; 1887-1897: recuperação; 18971905: crise. O que significa que prosperidade, mesmo, foi coisa que só aconteceu entre o final do século XVIII e as duas primeiras décadas do século XIX. Em Bahia, Século XIX – Uma Província no Império, a própria Kátia é categórica: “Salvador – e com ela toda a Província – só conheceu, em todo o século XIX, um momento de verdadeira prosperidade: os anos de 1800 a 1821”. Mas, antes de prosseguir, cumpre frisar que o período focalizado por Thales de Azevedo não transcorreu de forma tranqüila. Houve momentos extremamente difíceis. Já em setembro de 1849, éramos revisitados pela febre amarela, em ataque rápido, porém intenso. Em 1855-1856, atravessaríamos uma devastadora epidemia de cólera-morbo, que fez milhares e milhares de mortes na Cidade da Bahia e seu Recôncavo. De acordo com dados coletados por Onildo Reis David (O Inimigo Invisível – Epidemia na Bahia no Século XIX), a peste deixou quase dez mil mortos em

Salvador, 8.500 em Santo Amaro, 8.200 em Cachoeira, 3.215 em Nazaré das Farinhas, etc. Se esses números seriam certamente altíssimos mesmo hoje em dia, imagine-se naquela época, quando Salvador não ultrapassava a casa dos cem mil habitantes... Como se fosse pouco, provamos, ainda, o açoite ecológico. Profundas perturbações causadas por irregularidades sazonais. Sim. Os anos de 1851-1852 foram de chuva excessiva, superabundante, resultando na destruição de safras de matérias-primas exportáveis e de produtos alimentares essenciais para a dieta da população, como a farinha de mandioca. Passada a chuva descomedida, veio a grande seca. Entre 1857-1860, a Bahia sofreu uma das secas mais longas de toda a sua história, comprometendo terrivelmente a produção de alimentos. Peste e seca, ao se somarem (1855-1860), traduziram-se, é claro, em escassez e carestia extremas dos gêneros alimentícios de primeira necessidade – e assim, juntamente com a especulação dos mercadores, estiveram na base mesma da agitação da “carne sem osso e farinha sem caroço”, motim popular contra a carestia, que pipocou em Salvador no ano de 1858. Escassez, carestia, pobreza. A miséria foi, fora de qualquer dúvida, um dos aspectos mais salientes e mais cruéis da vida baiana no século XIX. O fantasma da fome rondava a cidade dia e noite. Pessoas lutavam por uma simples porção de farinha. Em Bahia: a Cidade do Salvador e seu Mercado no Século XIX, Kátia Mattoso dá justo realce ao problema. “Com efeito, em quase todos os movimentos e revoltas que se verificaram entre 1822 e 1837 o espectro da fome que ameaça a população de Salvador parece ter sido o elemento motor de sua participação e ação”, assinala a historiadora. Segundo os seus cálculos, de resto, ficava em torno da casa dos 90% a percentagem dos habitantes da Cidade da Bahia que, na centúria de oitocentos, viviam no “limiar da pobreza”. É uma cifra espantosa, mas o fato é que não há exagero na estimativa. Na verdade, a indigência foi aumentando no decorrer do século. Tanto em Salvador quanto no Recôncavo. Em 1855, mendigos inundavam ruas de Santo Amaro da Purificação. A caminho do final do século, em 1889, bandos de famintos invadiram São Gonçalo dos Campos, saqueando e roubando o que encontraram pela frente. Na capital, era comum, naqueles tempos, a existência dos hoje chamados meninos-de-rua: “crianças seminuas suplicando caridade”. Walter Fraga Filho, que se viu às voltas com o tema em seu Mendigos, Moleques e Vadios na Bahia do Século XIX, lembra a propósito que, a exemplo do que ocorria em outras sociedades escravistas, a economia baiana era “pouco flexível à incorporação da mão-de-obra livre ao mercado de trabalho”. Aumentava a cada dia o número de homens livres e libertos, mas não havia emprego para eles. Claro: se o sujeito tinha escravos para fazer as coisas, por que pagaria alguém para realizálas? A perspectiva para livres e libertos era então o trabalho esporádico, free lance, e/ou a marginalização – o crime, a vagabundagem, a mendicância. “No século XIX – continua Fraga Filho –, esta situação tornou-se crítica, uma vez que não havia espaços econômicos suficientemente amplos para absorver um contingente populacional em permanente crescimento”. Fala, ainda, o jovem historiador baiano: “A documentação da época nos revela a dura realidade dos que haviam cruzado os limites da pobreza para se transformarem em verdadeiros miseráveis. Sinais desses dramas seriam as dezenas de recém-nascidos diariamente abandonados nas portas das igrejas e dos conventos por

pais empobrecidos e sem condições de sustentá-los. As autoridades freqüentemente recolhiam cadáveres de crianças e velhos depositados nos adros das igrejas por pessoas sem recursos para promoverem ao menos um funeral minimamente digno aos seus mortos”. Mas que Salvador era essa? – pode alguém, menos avisado, perguntar. Era a Salvador verdadeira, é a resposta – a Salvador que não costuma freqüentar fantasias colegiais. Cidade senhorial, sim, mas também cidade “lúmpen”. Cidade de párias e pariás, onde pobres livres e libertos muitas vezes não viam, à sua frente, senão as vias e vielas velhas e vis do crime e da mendicância. Mas vamos adiante. A partir do ano de 1860, a barra pesou de vez. Para todos. Quase três décadas de depressão econômica. A Cidade da Bahia pode encantar então por sua topografia, arquitetura, clima ou paisagem. “Verde de todos os tons, viçoso, exuberante e úmido, salpicado de flores flamejantes, invadia as encostas do caminho, indo de um lado a outro, numa riqueza transbordante”, escrevia, por exemplo, o maravilhado Maximiliano. Mas, no plano da vida social, aqueles dias nada tiveram de viçosos ou exuberantes. “A Bahia dos anos de 1860 é uma cidade em crise”, abrevia Kátia Mattoso. Uma região que sofre, ainda, os reflexos da epidemia de cólera. Que se bate com a retração do seu açúcar no mercado internacional, em decorrência da produção de outras colônias européias e do desempenho do açúcar de beterraba. Que assiste ao êxodo da mão-de-obra escrava. Que não é abandonada pela febre amarela. Que vê as falências se multiplicarem e a seca tornar a torturar o sertão. Em 1864, estoura a guerra contra o Paraguai de Solano López. Parte razoável da população masculina baiana em idade economicamente produtiva foi recrutada para o enfrentamento bélico. Segundo relatório do Visconde de São Lourenço, a Bahia já fornecera, um ano antes do término da campanha, cerca de dezenove mil soldados, entre voluntários e recrutados compulsoriamente. Vem da toponímia dessa guerra, de resto, a aplicação do nome Curuzu, localidade paraguaia que fora palco de batalhas, a um segmento do bairro negromestiço da Liberdade, em Salvador. E o fato é que chegou a tal intensidade a participação baiana no conflito que, em Viva o Povo Brasileiro, João Ubaldo Ribeiro o recriou nos termos de uma Ilíada Negra, com os orixás em lugar dos olímpicos e orikis fazendo as vezes dos epítetos homéricos. Veja-se a seguinte passagem do romance (que se filia ao “nacionalismo místico” de Vieira, trocando-se o Deus católico pelos deuses iorubanos), quando Oxóssi – “caçador de coragem, hábil no arco e flecha, senhor da floresta” – discursa com o fito de sensibilizar Xangô, “o que atira pedras”, resplandecente em sua roupa rubra pontilhada de búzios brancos: “Ca-uô-ô-ca-biê-si, salve meu grande irmão, Rei de Oió, senhor do raio, senhor da igi-ará, Jacutá, atirador de pedras! Acolá, nos campos de um lugar distante chamado Tuiuti, há uma grande batalha, a maior batalha já vista deste lado do mundo e, nessa batalha, estão morrendo muitos dos nossos filhos mais valorosos, derrubados por um inimigo desapiedado e fortíssimo. Não falta valentia aos nossos filhos, que combatem pela honra carregada no sangue, mas a sorte da porfia é incerta e já temo pela hora em que não reste de pé um só de nossos bravos filhos. Muitas vezes nos bateram as cabeças, cumpriram suas obrigações com sacrifício, deram-nos nossa comida em oferenda. Quem agora me lembrará na madrugada, me dará meu galo e meu cabrito? Quem me saudará à beira da mata? Quem honrará tuas armas, quem fará teus assentamentos, quem te evocará?

Não cabe a nós ausentar-nos dessa luta, antes nos metermos nela como se fosse nossa, pois que de fato é. E é por essa razão que chamo o meu irmão Xangô, mestre do fogo e do machado, de orgulho e valentia jamais igualados, para que me acompanhe a essa grande batalha em que morrem nossos filhos mais valorosos, para que, pela força do nosso braço e do nosso engenho, lhe mudemos a feição.” É claro que Ubaldo não só trata o nosso povo como “povo eleito” pelos deuses, na linha de Vieira e mesmo de Glauber Rocha, como força a mão, contrariando as evidências históricas. Sabe-se que aquela guerra (fazendo um total de 350 mil mortos – mais que o dobro da população de Buenos Aires em 1864, segundo Kolinski) foi feita para integrar a Bacia do Prata na economia mundial, sob o signo da Inglaterra. O Paraguai partira em direção à auto-suficiência, resistindo à sua inserção no mercado. Logo, foi massacrado pela chamada Tríplice Aliança (Brasil, Argentina, Uruguai), que se articulou, em última análise, em função do projeto global dos ingleses para a região. Resultado: em cinco anos de guerra, o Paraguai perdeu quase toda a sua população masculina. Foi impiedosamente destruído. Mas retornemos ao nosso tema. Examinando, em panorâmica provincial, o período que vai de 1860 a 1887, Kátia Mattoso sumaria: “Este último momento da conjuntura econômica da Bahia no período imperial foi marcado por uma profunda depressão que deu início a um declínio sem retorno. As exportações de diamantes [descobertos ou redescobertos por volta de 1844 em Santa Isabel do Paraguaçu, atual Mucugê] entraram em crise, por força da concorrência dos diamantes do Cabo; os carbonatos não podiam compensar a perda, porque as deficiências do transporte encareciam o produto, que, embora tivesse demanda regular nos mercados internacionais, tinha baixa cotação. As exportações de algodão, que tinham crescido sensivelmente durante a Guerra de Secessão, caíram a níveis muito baixos. Por fim, a produção açucareira, a despeito de um esforço constante para aumentar a produção, viu-se prejudicada pela deterioração dos preços do produto no mercado externo. Na década de 1870, a cana-de-açúcar foi afetada por doenças e parte da produção foi perdida. Por outro lado, os produtores de açúcar, sem meios de crédito disponíveis, mostravam-se desanimados, avessos a inovações e permitiam que continuasse o êxodo de escravos para outros centros produtores de açúcar, em outras províncias. A depressão econômica que se instalou na Europa a partir de 1873 veio tornar dramático um quadro já sombrio”. 1873 é, na verdade, uma espécie de marco negativo. Ano em que principiamos a adotar o sistema métrico francês, assinala o agravamento de uma crise que já vinha de antes. Foi aí que a cana-deaçúcar adoeceu. “A moléstia da cana durou muitos anos, apesar da semente e da substituição de qualidades, pesteiando a nova como pesteou a velha, e tornando-se infrutífero todo o esforço, toda a atividade do lavrador”, escreveu Goes Calmon, na perquirição da sua “série das desgraças”. E assim fomos tropeçando, seguindo aos trancos e barrancos, em direção ao crepúsculo do século. No caminho, a Abolição da Escravidão. Do ponto de vista da classe proprietária, aquele foi um evento de conseqüência caótica. Mais Calmon: “O ano de 1889 sucedera ao da abolição dos escravos, portanto, fora o da desordem no trabalho, decorrente do abandono por eles das propriedades rurais. (...). Os emancipados não aspiravam outra liberdade senão a do direito de viver nas cidades... Daí a

desorganização e a miséria”. E Pinto de Aguiar: a Abolição gerou “décadas de desencorajamento e de apatia”. O tabaco de certo modo escapou de sina mais triste. A produção de fumo, que vinha crescendo pelo Recôncavo desde tempos seiscentistas, conheceu bons dias no final do século. A Bahia foi favorecida pela guerra civil em Cuba, que se prolongou de 1868 a 1878. Além disso, aumentou consideravelmente, nas últimas décadas da centúria, o consumo mundial do produto. Cachoeira, São Félix, Cruz das Almas, Santo Antônio de Jesus, Nazaré e Maragogipe se destacavam como centros exportadores. A cultura do fumo – basicamente, obra de homens livres e libertos – continuava a ser bem mais barata do que a da cana-de-açúcar. E o certo é que, no final do século, o fumo passou a ser nosso principal produto de exportação. Há um aspecto, aliás, a que devemos dar destaque. Data de 1819 a chegada das manufaturas de fumo na região – e elas irão se desenvolver ao longo dos oitocentos. Primeiro, produzindo rapé; em seguida, charutos e cigarros. São as fabriquetas de fumo do Recôncavo, como a “Juventude” e a “Fragrância”, pequenas unidades produtoras de caráter doméstico e artesanal, com seus charutos e cigarros enrolados à mão. Mais tarde, já a caminho do fim do século, teremos não só essa produção artesanal, mas fábricas de maior porte, investindo na produção de rapé e charutos, como a Leite & Alves e a de Geraldo Dannemann, instalada em São Félix. Mas aqui já vamos entrando em terreno industrial. Tentativas de adequar a produção baiana às novas realidades do mundo vinham dos primórdios do século, com o Visconde de Cairu, Rodrigues de Brito, Caldeira Brandt (futuro Marquês de Barbacena), Manoel Ferreira da Câmara Bittencourt Sá, Francisco Agostinho Gomes. Pinto de Aguiar fala, a propósito, que Cairu era o “corifeu” de uma “plêiade de homens de ação e de estudo que, desde as últimas décadas dos setecentos, vinham agitando, na Bahia, problemas de renovação econômica, social, cultural e política”. Agostinho, tendo abandonado já a vida eclesiástica, introduzindo melhoramentos na lavoura e na pecuária, e batalhando para implantar uma fundição de cobre e ferro; Ferreira da Câmara, apostando em inovações e reformando fornalhas no Iguape; Cairu e Brito, levantando bandeiras e plantando sementes do liberalismo econômico; Brandt, criando nosso primeiro estabelecimento bancário, o Banco da Bahia, e colocando em circulação o Vapor de Cachoeira, máquina inglesa montada num barco construído no estaleiro da Preguiça. Mas as coisas não andaram conforme o sonhado. Criada em 1841, a “Companhia para Introdução de Fábricas Úteis na Bahia” logo se extinguiu. Houve, ainda, alguma insistência. Em dezembro de 1861, aliás, inaugurou-se a primeira exposição de artefatos baianos, em Salvador. Foram brotando fábricas de papel, cerveja, vinagre, chapéus, etc. Mas nada de especial. Além dos produtores que lidavam com o fumo, o que vamos ter de fato, na última década do século XIX, é a indústria de tecer. A atividade têxtil. E aqui assistimos a uma prática industrial modelar. Refiro-me, obviamente, à Companhia Empório Industrial do Norte, fundada por Luiz Tarquínio em 4 de março de 1891. Goes Calmon fala de sociedades anônimas surgidas no começo da década de 1890 “com o plano preconcebido de criar títulos para jogatinas da bolsa”. Mas diz isso exatamente com o fito de marcar a diferença da Companhia Empório Industrial do Norte, “tipo modelar de organização e grandeza na

indústria de tecidos”. Quanto ao próprio Luiz Tarquínio, Calmon destaca o seu “espírito privilegiado” e a sua “força de vontade inquebrantável”, combinando segurança e “ímpetos arrojados”. Posteriormente, Rômulo de Almeida irá mencionar a Empório como “o conjunto fabril que terá sido o mais moderno naquele momento, e a experiência social mais avançada da época”. De fato, raríssimas vezes terá existido (se é que chegou a existir), entre nós, igual concepção e valorização do trabalho e do trabalhador. Como se sabe, Luiz Tarquínio se responsabilizou, entre outras coisas, pela criação de uma vila operária que ainda hoje pode ser vista nas proximidades do Largo de Roma, na Cidade Baixa. Difícil deixar de concordar com o político e economista Rômulo de Almeida, quando ele classifica o projeto do empresário baiano como “uma experiência realmente admirável, espantosa”. Mas a verdade é que a Bahia não se armou para ir assumindo um ritmo industrial. Sua capitalização era fraca, havia a enorme dificuldade de transporte, a carência de energia e, ainda, a hegemonia dos comerciantes, que não se interessavam tanto por investimentos em atividades produtivas. Quem começou a se industrializar, de fato, foi o Brasil Meridional, levando o supracitado Rômulo a dizer: “Por condições históricas, teve a Bahia que pagar tributo ao Sul. Duplo tributo de comprar mais caro as mercadorias (tecidos e artefatos de São Paulo, queijos e manteigas de Minas), e de fornecer braços e capitais”. Forneceu mais que isso, como se sabe. A Bahia parecia mesmo ter se especializado, àquela altura, em ceder às províncias centro-sulistas não apenas mão-de-obra, mas também a sua elite política. Há dois aspectos curiosos, aqui. De uma parte, a supremacia do comércio, na vida econômica da Bahia, não encontrava equivalência na esfera da política. Pelo contrário – ao longo de todo o período imperial, os comerciantes baianos ocuparam, sempre, posições de menor relevo. Na frente da cena política nacional, permaneceram, invariavelmente, proprietários de terras. De outra parte, o declínio da agricultura baiana não teve correspondência em desprestígio político. Além de eleger seus deputados e de assistir à nomeação vitalícia de baianos para o Senado, a Bahia não cessou de fornecer quadros para o desempenho de altas funções no executivo nacional. Foi, mesmo, um celeiro de ministros. Entre 1857 e 1871, por exemplo, foram baianos nada menos que 34,92% dos membros do gabinete imperial – para se ter uma noção do que isso significou, lembre-se que os cariocas ocuparam o segundo lugar no ranking, com 19,05%. “Os representantes da Bahia dominaram a cena política”, conclui Kátia Mattoso. Mas é exatamente aqui que está a estranheza. A forte presença baiana no núcleo mesmo do poder nacional jamais se traduziu numa ação vigorosa em favor da Província. Escreve Kátia: “Essa enorme participação na chefia do governo central poderia ter sido particularmente benéfica aos negócios da Bahia, se os políticos tivessem lutado pelos interesses de sua província de origem. Mas... parece que nunca foi o caso. No poder, os homens se identificavam rapidamente com o Estado Nacional, e essa era uma condição para sua permanência à frente dos negócios político-administrativos”. E ainda, mais concisa: “Essa elite política, apesar de talentosa, nunca se preocupou com o destino econômico de sua província, aceitando as desventuras como fatalidade”. Em síntese, a paisagem oitocentista baiana é melancólica, do ponto de vista econômico. A Bahia

não conseguiu se estruturar industrialmente. E sua agricultura ia de mal a pior. Tempo de barões endividados. De senhores de engenho na pindaíba. Mas é também verdade que nem todos sofreram por igual na maré adversa. Se o ramo agrícola se encalacrou, entrevado ou paralítico, o setor comercial lucrou com o século depressivo. Tirou proveito de todas as crises. Da Guerra de Canudos, inclusive. Analisando as três primeiras décadas daquela centúria, Goes Calmon já notava que a vida do comércio corria bem, como aliás era de praxe, dizia ele, em “fases de convulsão social ou nas de calamidade pública”. Os negociantes, afinal, obedeciam apenas aos seus próprios interesses e ao seu senso especulativo, “aproveitando e explorando as dificuldades e apertos dos precipitados, dos descoroçoados e dos inertes”. Em 1840, por exemplo, já em dias de lucrativo tráfico clandestino (contrabando, é a palavra) de escravos africanos, instalavam eles a Associação Comercial da Bahia, composta de banqueiros e negociantes brasileiros e estrangeiros, “corretores e mais pessoas estabelecidas e auxiliares, do comércio”. A Associação – “sempre prestante e defensora dedicada dos interesses da classe”, no juízo de Goes Calmon – foi ocupar, na Cidade Baixa, um verdadeiro palácio, com as suas guirlandas, as suas colunatas jônicas, os seus lustres de cristal. Enfim, um típico e vistoso exemplar da chamada arquitetura neoclássica, impondo-se em nossa paisagem urbana. Autor de alguns estudos sobre a matéria, o sociólogo Gustavo Falcón enfatiza justamente a hegemonia do segmento comercial, no horizonte econômico da Bahia, durante largo período de nossa história. O comércio foi de fato a nossa atividade mais expressiva, nesse âmbito, tanto no Império quanto na chamada República Velha. Em Preeminência do Capital Comercial na Economia Baiana 1850-1930, Falcón frisa o contraste: à choradeira da oligarquia do açúcar e às dificuldades generalizadas da economia, corresponde o fortalecimento do grande comércio, estendendo as suas rotas muito além dos limites provinciais ou estaduais, para chegar, inclusive, ao Xingu. É a evidência dessa supremacia comercial que faz com que o sociólogo diga que “as crises produzem fortunas” – e classifique a Bahia como um “paraíso mercantil”. E é também por isso que, ao falarmos de um declínio baiano, devemos sempre acrescentar: declínio relativo. A agricultura murchava, mas o comércio florescia. Chegávamos assim ao final do século com a Província – desde 1889, o Estado – da Bahia vendo o comércio dar as cartas. Contentando-se com uma agricultura estrutural e tecnicamente arcaica – a exceção apenas começava a se impor, mas fora do raio do Recôncavo, com a expansão dos cacauais no eixo Ilhéus-Itabuna. A Cidade da Bahia e sua interlândia mergulhavam então no mormaço. Na sonolência econômica. Num período de fundo declínio, relativizado apenas pelo desempenho do comércio. De qualquer modo, Salvador fechava a centúria de oitocentos como uma cidade bela, clara, agradável e, em alguns aspectos, moderna. Assistira à terraplanagem do Campo da Pólvora, à abertura da Ladeira da Montanha e à pavimentação de várias ruas e do Campo Grande; vira chegar o telégrafo, os bondes, a iluminação a gás carbônico e novas casas alcançarem a Barra; passara a freqüentar o sobe-e-desce do plano inclinado e do elevador construído pelo comerciante e comendador Antônio de Lacerda; e a estudar nas escolas Normal ou de Medicina. Ao mesmo tempo, passeios de tramway para o Rio Vermelho ou para o banho de mar no Bonfim eram verdadeiras excursões ambientais. Veja-se a narrativa de uma excursão ao Matatu, por exemplo, em O Feiticeiro,

de Xavier Marques. Com suas jaqueiras e gameleiras, suas “fontes emboscadas” e seus laranjais, seus “matos saturados de resinas de aroeira e cajueiro”, o Matatu apresentava então uma paisagem em tudo distinta dos “jardins raquíticos da cidade”. E ainda era possível divisar jacarés – “pequenos jacarés, de focinho comprido, que exalam forte cheiro de almíscar, prevenindo assim ao passante de sua perigosa presença”, informam Spix e Martius – nas margens de um Dique que se estendia para os lados de Brotas. Mas o certo é que a cidade experimentara um novo deslocamento. Sim. Se, no século XVIII, Salvador fora o maior centro urbano do império português, depois de Lisboa, passava ela agora, com o século XIX, a um outro segundo lugar. Convertera-se na maior cidade do império – e, depois, da república – do Brasil, depois do Rio de Janeiro, sede efetiva do Reino Unido, ao tempo de D. João VI, capital imperial sob Pedro I e Pedro II, capital republicana, a partir de 1889. Como que se descolando do conjunto mais dinâmico da economia brasileira, a Cidade da Bahia e seu Recôncavo voltaram-se então intensamente para si mesmos, vivendo, antes de mais nada, a intrincada trama interna de suas próprias vidas. E essa nova realidade, firmando-se entre o século XIX e o século XX, foi fundamental para o desenho e a fixação de nossa personalidade, no complexo brasileiro de civilização.

A GUERRA DA INDEPENDÊNCIA “Os brasileiros sentiram-se sempre pouco confortáveis com a maneira pela qual seu país nasceu para a vida autônoma. Para um povo com o gosto tão agudo da cenografia, ela tinha de parecer frustrante”, comentou um historiador. E mais, referindo-se às figuras de Pedro I e de José Bonifácio: “O fato é que [a realização da nossa independência] não produziu figuras ou episódios exaltantes, como Bolívar ou San Martin, Ayacucho e a travessia dos Andes. Em seu lugar, tivemos um playboy cheio de rompantes, mais interessado pelos segredos de alcova (se é que ela ainda os tinha para ele) do que pelos de Estado; e um paulista soturno encanecido no serviço da Coroa, bem representativo da competência mas também da cautela raiando em tacanhice da antiga burocracia régia”. Essas palavras, escritas recentemente por Evaldo Cabral de Mello, são sem dúvida irretocáveis. Desde que se faça a ressalva indispensável: elas não se aplicam a todo o Brasil. Sabem disso os baianos. O processo de independência do Brasil não teve, para nós, o caráter pacífico que assumiu em regiões meridionais do país. O que ocorreu ali, como se costuma dizer, não foi uma separação litigiosa, mas um desquite amigável. Não sem zangas e ameaças, evidentemente. Mas, de qualquer forma, desquite – e amigável, inclusive com o Brasil desembolsando dois milhões de libras, para compensar a metrópole pela perda da colônia. Na Bahia, não. Houve guerra – cerco, emboscada, fuzilaria, baioneta calada. O preço da autonomia foi pago em sangue. Mas a verdade é que também não devemos exagerar, deixando-nos seduzir pelas lentes de aumento de algum narcisismo

provinciano. Primeiro, porque o que aconteceu entre nós foi uma guerra relativamente curta, sem chegar a exibir um verdadeiro elenco de batalhas – e apresentando, ao contrário, um baixo número de baixas. Segundo, porque o caso baiano não prima exatamente pela singularidade, no contexto geral do Brasil. Também o Extremo Norte, o Maranhão, em especial, conheceu, na mesma época e na mesma situação, o calor dos entreveros bélicos. Vamos recapitular, ainda que brevemente. Falamos já da trasladação da corte. Desde que D. João VI pisou no Brasil, como que viramos a verdadeira metrópole. Portugal era, àquela altura, um país inexpressivo, encolhido num escaninho da Europa. Sua única e exclusiva grandeza estava em conseguir manter o Brasil unido a si, graças à integridade cada vez mais precária da monarquia portuguesa. Em outras palavras, não havia grandeza no próprio Portugal – a grandeza era ultramarina. Portugal era um reino três vezes humilhado. Humilhado por sua própria pobreza; humilhado pela tutela britânica (recorde-se que, com a partida da família real, o reino passou a ser governado por um conselho presidido por um inglês, o marechal Beresford, que foi também comandante do exército lusitano); humilhado, ainda, por sua conversão em dependente do Brasil. A revolução liberal do Porto, em 1820, nasceu em resposta a esse triste estado lusitano. Estabelecendo a monarquia constitucional e um parlamento (as “Cortes”) no antigo reino, sua maré atingiu de pronto a praia brasileira. Acharam os brasileiros, naquele momento, que o programa revolucionário de Lisboa, consolidando-se nas cortes, ampliaria o horizonte da nossa liberdade. Reconheceria, constitucionalmente, a soberania do Brasil, ainda que este continuasse unido a Portugal. Numa análise retrospectiva, Marcos Antônio de Sousa, deputado baiano àquele parlamento, disse que, em 1820, os espíritos de alguns moradores da Cidade da Bahia “foram abrasados com o fluido elétrico da imaginária liberdade”. E veio a adesão. A da Bahia, então muito ligada à Cidade do Porto, foi decisiva – como, aliás, logo se viu, com o Rio de Janeiro vindo no seu rastro. O que houve por aqui, como não há quem ignore, foi um movimento armado, fruto de reuniões de civis e militares que se definiam como “constitucionalistas”. A carta foi colocada na mesa na madrugada de 10 de fevereiro de 1821. À frente, o brigadeiro Freitas Guimarães. Vitória-relâmpago. Tudo se resolveu no mesmo dia. Aconteceu um só combate entre os militares pró-revolução e os da resistência. Vinte baixas, no total. Entre os mortos, atingidos pela “metralha e fuzilaria” do Forte de São Pedro, o agora major Hermógenes de Aguilar, militante das conspirações de 1798. Outros revolucionários calejados, como Frei Caneca e Cipriano Barata, também participaram da movimentação, mas, em campo oposto ao de Hermógenes, defendendo um maior controle sobre o poder monárquico. Adotando o sistema constitucional já aceito em Portugal, os baianos logo formaram uma “junta provisional”, em substituição ao governador, Conde da Palma – coisa que também ocorreria nas demais províncias brasileiras. No comando das armas, ficou Freitas Guimarães. Meses depois, a Bahia elegeria seus representantes, seus deputados às Cortes de Lisboa, onde seria elaborada a Constituição. Entre eles, Domingos Borges de Barros, futuro Visconde da Pedra Branca, “espírito delicado a quem já preocupavam a sorte dos negros e a incapacidade política das mulheres”, segundo Oliveira Lima – e dois velhos conhecidos nossos: Francisco Agostinho Gomes (“rígido consigo mesmo, tolerante para com os outros, escrupuloso na moral, incansável no

estudo, ardente na caridade”, conforme o mesmo Oliveira Lima) e Cipriano Barata, caracterizado por Cairu como “façanhoso perturbador público”. Portugal solicitou, digamos assim, o retorno do rei. Bem, se a vinda da família real alargara a estrada para a nossa independência, sua partida como que selaria, antecipadamente, a separação definitiva dos dois reinos. D. João VI resistiu o quanto pôde (desconfiando inclusive que o príncipe Pedro, aventureiro galante, lançaria mão da coroa), mas, a 26 de abril de 1821, acabou indo e levando com ele a realeza, que aqui vivera na e da corrupção. Oliveira Lima cita, a propósito, o relato de von Weech: “Os portugueses de torna-viagem despojaram a terra de avultadas somas e, fiéis ao seu sistema de esgotamento até o último momento, esvaziaram todos os cofres públicos, até a caixa das viúvas e órfãos. Só Sua Majestade carregou em ouro em barra e amoedado mais de 60 milhões de cruzados, sem falar nos diamantes, empenhados no Banco do Rio de Janeiro a troco de fortes somas e que foram transportados sem o Banco ser indenizado”. Algum tempo depois, viajaram, parceladamente, os nossos deputados. E a representação brasileira ao Soberano Congresso Constituinte chegou, em Lisboa, cheia de esperanças. Esperava alcançar, sem maiores contratempos, a ratificação da nossa autonomia. Mas seria bem outro o jogo português. O que as Cortes desejavam era providenciar um retrocesso histórico. Mas foi só no desenrolar das tramas parlamentares que os deputados brasileiros perceberam que o objetivo da assembléia liberal portuguesa era, realmente, esse. Tratava-se de restaurar a antiga ordem, promovendo a recolonização do Brasil (ou, o que talvez seja mais exato dizer, ainda que entre aspas, a “descolonização” de Portugal, já que o Rio se convertera em sede do império português em 1808). A partir daí, a coisa desandou. A política portuguesa se concentrava na manipulação dos grandiosos ideais de Liberdade – para, sob essa capa vistosa, nos conferir apenas, como bem disse Oliveira Lima, “um simulacro de autonomia”. A fim de recolocar o Brasil em trilhos coloniais, propunha-se o fechamento de nosso comércio com a Inglaterra, a desmontagem da estrutura político-administrativa aqui estabelecida por D. João VI, o esvaziamento do Rio de Janeiro como poder central, com a subordinação direta das províncias a Lisboa. Diante desse quadro, Maria Graham fez uma observação perfeita: as Cortes tinham resolvido legislar para um país efetivamente autônomo como se este fosse um presídio perdido na costa africana. E o que receberíamos em compensação? Para empregar a expressão de Oliveira Lima, em seu O Movimento da Independência 1821-1822, o Brasil aceitaria assegurar a salvação econômica de Portugal a troco de uma “fantasma-goria política”? É claro que não. E como Portugal não se mostrava disposto a reconhecer e confirmar as franquias que já tínhamos conquistado entre 1808 e 1815, o caldo só poderia engrossar. Como, de fato, engrossou. A gota d’água foi a intimação portuguesa ao príncipe Pedro, ordenando seu regresso a Portugal. A reação brasileira foi imediata. Desfecho: o dia do fico, 9 de janeiro de 1822. O processo se tornou então irreversível. Impôs-se a tese da convocação de uma Assembléia Constituinte no Brasil. Em seguida, no mês de agosto, o príncipe decretou que seriam consideradas inimigas quaisquer tropas que Portugal despachasse para o Brasil. Lisboa, no entanto, estava cega. Incapaz de entender que não dispunha de meios práticos, efetivos,

para conter ou sufocar o ímpeto brasileiro, tomou uma decisão estúpida, ansiosamente aguardada, de resto, por nossa liderança separatista: revogou os decretos do príncipe-regente e determinou, uma vez mais, o seu retorno a Portugal. O príncipe soube das novas no dia 7 de setembro, quando se achava em São Paulo, nas proximidades de um riacho chamado Ipiranga. Era a afronta que faltava. Formalizou ele então, ali mesmo, e dizem que com um grito, a independência do Brasil – que, por sinal, já havia sido comunicada desde antes ao corpo diplomático estrangeiro, através de uma circular de José Bonifácio, datada de 14 de agosto daquele ano. E assim, menos de três meses depois do gesto, com apenas 24 anos de idade, foi ele coroado imperador do novo país, recebendo o título de D. Pedro I. (É interessante notar que a independência do Brasil foi oficialmente reconhecida, em primeiro lugar, pelos EUA, em maio de 1824. Vieram a seguir, em dezembro daquele ano, dois reinos da África. A informação sobre estes últimos é de Pierre Verger, em Orixás – Deuses Iorubás na África e no Novo Mundo: “o rei de Onim (Lagos), juntamente com o imperador do Benim, de quem era vassalo, seriam os primeiros soberanos estrangeiros a reconhecer a independência do Brasil, em 4 de dezembro de 1824”. Os reconhecimentos da França e de Portugal só viriam no ano seguinte. O dos ingleses, que logo trataram de assegurar a manutenção de seus privilégios alfandegários, deu-se informalmente – a demora oficial correndo por conta do fato da Inglaterra ter tentado então, sem êxito, a extinção imediata do tráfico afrobrasileiro de escravos). A Bahia, a essa altura, achava-se já em tumulto aberto. Em guerra. A 22 de junho, o príncipe escrevia a D. João VI: “O Madeira [de Melo] na Bahia tem feito tiranias, mas eu vou já pô-lo fora, ou por bem, ou a força de miséria, fome, e mortes feitas de todo o modo possível, para salvar a inocente Bahia”. Mas as “tiranias” continuaram – e a revolta cresceu. Antes do 7 de setembro, aliás, a situação crítica baiana era até mesmo usada como exemplo para as demais províncias brasileiras, contribuindo então para a aglutinação de forças em torno do príncipe e, em conseqüência, para o fortalecimento da opção pela monarquia. Com base em relatórios do barão Wenzel de Mareschal, agente diplomático austríaco enviado ao Brasil por Metternich, Oliveira Lima escreveu: “...a condição da Bahia, reflexo da política das Cortes, servia de salutar espantalho contra a anarquia em que podia cair todo o Brasil..., impelia para a solução monárquica o espírito democrático da colônia americana e congregava as simpatias em redor do príncipe”. Mas vamos caminhar mais devagar. Para a Bahia, a mesa começa a virar em 15 de fevereiro de 1822. Naquele dia, vinda pelo correio marítimo, chegou à nova “junta provisional” a carta régia nomeando o coronel Madeira de Melo para o posto de comandante das armas da província. Se a movimentação baiana de 1821 agrupara “brasileiros” e “portugueses” (entre aspas, sim – a classificação dizia respeito não à naturalidade, mas aos interesses de cada um) em função de um objetivo genérico – contribuir para o triunfo da revolução liberal, com o seu projeto constitucionalista –, a nomeação de Madeira de Melo provocaria o rompimento dessa aliança. As forças, que já pressagiavam a ruptura, dividiram-se de fato. De um lado, o “partido brasileiro”; de outro, o “partido português” – e “partido”, aqui, é sinônimo de tendência ou corrente, não de agremiação política. O primeiro já não queria mais aceitar irrestritamente as determinações das

cortes. E Madeira, ocupando o cargo de governador das armas, isto é, a chefia de um poder militar independente da junta provisional, teria espaço e força para impor os decretos ditados por Lisboa. Daí a oposição brasileira. A tentativa de impedir a posse do militar lusitano. E, logo, o choque armado entre as duas facções em cena. Entre os soldados de Madeira e os de Freitas Guimarães. O historiador Luís Henrique relata: “No dia 19 de fevereiro, ainda muito cedo (6:30 da manhã), soaram disparos para os lados do forte de São Pedro. Horas depois, ocorriam choques entre soldados brasileiros e portugueses nas Mercês, no Rosário e na praça da Piedade. Ainda nesta manhã de 19, obedecendo ao comando de Madeira de Melo, o Tenente-Coronel Joaquim Antônio de Almeida, movimentando a Artilharia e soldados dos fortes de Santo Antônio e Barbalho, atacava o forte de São Pedro, baluarte de resistência dos oficiais e soldados brasileiros. A luta foi demorada, mas o forte de São Pedro terminou ocupado pelos portugueses na manhã de 21”. Vitória portuguesa, portanto. E houve arruaça lusitana nas ruas já no início da disputa armada. Soldados e marinheiros lusos, de mistura com civis também portugueses, saíram pela cidade “tiroteando pessoas e saqueando casas”. Como é muito comum em tais circunstâncias, eles se aproveitavam do fato da luta, usando o pretexto da guerra para embolsar dinheiro e jóias. Eram atos desordeiros que escapavam ao controle do comando português. Rapina, pura e simplesmente. Ouçamos a narrativa de Mello Moraes, em sua História do Brasil-Reino e do Brasil-Império: “Havia na Bahia um ancião, professor de Latim... aposentado, de nome José Bento, benquisto e de um comportamento exemplar. Tendo recebido... os seus ordenados, que montavam em alguns centos de mil réis, constou isto ao Major Serrão, da legião lusitana, que, aproveitando-se das circunstâncias, invade a casa do pobre velho, sob o pretexto de que dela faziam fogo para a tropa portuguesa... prende-o e o leva à presença do Madeira, que, reconhecendo a sua inocência, o fez reconduzir por uma escolta para sua casa... passadas horas, o Major Serrão, sob o mesmo pretexto invade de novo a casa do professor... assassina-o, e rouba-lhe todo o dinheiro e as alfaias de prata e ouro que possuía. Em ato quase contínuo o mesmo facínora, sob o mesmo pretexto, desejando roubar o Convento das Religiosas da Lapa (era segunda-feira de entrudo), acompanhado de soldados, bate na portaria com os couces das armas, e descendo a inofensiva Abadessa Madre Maria Joaquina [Joana Angélica de Jesus], com uma bolsa cheia de dinheiro, disse-lhe que de seu convento não podia partir ofensas à tropa, que estava postada na rua, por ser aquele asilo morada de mulheres e que não podia pela sua regra admitir homem algum, e lhe ofereceu o dinheiro para as deixar em paz. (...). Serrão recebe a bolsa, e ao mesmo tempo é a pobre religiosa varada por uma baioneta... O alarido das religiosas foi grande, e o virtuoso Daniel [velho capelão do convento], que acudiu a esta cena, foi horrivelmente maltratado a deixarem-no quase por morto.” Com a queda do Forte de São Pedro e a cidade ocupada pelas tropas de Madeira de Melo, começou a revoada brasileira para o Recôncavo. Militares e civis deixavam a Cidade da Bahia, por terra e por mar, em busca de refúgio e pouso nas vilas da interlândia. E enquanto eles abandonavam a capital, Madeira recebia reforços lusitanos. Lembre-se de que, logo após a festa do fico, a tropa portuguesa se revoltou no Rio de Janeiro. Malograda em seu intento de recambiar o príncipe, viu-se ela mesma despachada de volta para Portugal. O comandante dessa tropa, general Jorge de Avilez

(que detestava o regente, pelo fato deste cortejar sua mulher), ainda pensou em marchar para a Bahia, a fim de se unir às forças de Madeira. O projeto foi descartado porque os portugueses não tinham idéia de como chegar aqui, nem certeza de que aqui chegariam. E Avilez foi obrigado a embarcar. A caminho de Lisboa, todavia, o brigadeiro Carreti, contrariando o príncipe Pedro, desembarcou com parte da tropa em Salvador. Já ninguém duvidava, então, que o que estava por vir era a guerra. Propagava-se, pela província, a tese da emancipação política. Prova disso são os textos enviados por Madeira a Portugal, em março de 1822. Neles, o general observa que só com “sofismas” alguém poderia pretender “nublar a facção que positivamente se dirige à suspirada independência” – e acentua que o uso da força seria o único recurso para conservar a Bahia sob domínio lusitano. Daí a sua solicitação ao reino, pedindo dois batalhões, “cavalos e outros objetos precisos para a conservação da Província” e insistindo na necessidade de se montar, aqui, “uma força marítima”. Em O Processo de Independência na Bahia (estudo incluído na coletânea 1822: Dimensões, organizada por Carlos Guilherme Mota), Zélia Cavalcanti nota que, por esses documentos, “podemos avaliar... o grau de reação a Madeira na Província pela grande quantidade de reforço militar pedido por ele para a conservação daquela parte da monarquia portuguesa”. Quanto à citada “facção” emancipacionista, Madeira é também revelador. Diz que o “partido da independência” nascera da união de dois outros “partidos” – o monárquicoconstitucionalista e o republicano. Note-se, de passagem, que o general não menciona, no momento, a existência de ainda um outro “partido”, quase sempre eclipsado também pelos historiadores, mas do qual falaremos adiante: o “partido negro” da independência. Prossigamos. No mês de maio, chegou de Lisboa uma carta-consulta, essencialmente política, dos deputados baianos. Eram indagações, às câmaras da Província, sobre a questão do poder executivo no Brasil. Queriam eles saber se a Bahia achava que o poder deveria estar concentrado só no rei, se seria mais conveniente que houvesse no Rio de Janeiro uma “delegação” desse mesmo poder (ou diversas “delegações” em pontos variados do país, como no tempo das capitanias), ou ainda, caso as opções precedentes não interessassem, o que a Província julgava “mais útil e conveniente... para o seu bom regime e administração, mantida a união dos dois reinos”. A Câmara de Santo Amaro da Purificação foi a primeira a responder – e a sua resposta, dada a 14 de junho, foi fundamentalmente subversiva. Optava por “um centro único de Poder Executivo”, desde que este fosse exercido pelo príncipe regente, “segundo as regras escritas em uma liberal Constituição”. Mais – o Brasil deveria ter exército, armada naval, tesouro e justiça próprios. Além disso, era necessário manter “sem restrição alguma” a liberdade de comércio e fundar “quanto antes uma Universidade em o lugar que mais conveniente for”. Nos dias seguintes ao pronunciamento santamarense, o príncipe Pedro de Alcântara enviou três cartas à Bahia. A primeira, ordenando a volta de Madeira a Portugal, em que fala dos “desastrosos acontecimentos” de fevereiro e adianta que, se o general desacatar a ordem de embarque, ficará responsável “a Deus, a Mim, ao Antigo e Novo Mundo pelos deploráveis resultados e funestíssimas conseqüências” da desobediência. Madeira, como era de esperar, não deu a mínima bola para a intimação. A segunda carta foi endereçada à junta provisória do governo da Bahia, dando conta da

“urgentíssima e indispensável” expulsão do comandante português. A terceira era uma proclamação aos baianos, que Affonso Ruy considera como “a declaração formal da luta”. Diz, entre outras coisas, o príncipe Pedro: “Baianos, é tempo... Vós vedes a marcha gloriosa das Províncias coligadas; vós quereis tomar parte nela, mas estais aterrados pelos invasores; recobrai o ânimo. Sabeis que as tropas comandadas pelo infame Madeira são suscetíveis de igual terror. Haja coragem, haja valor”. Affonso Ruy assevera que, a partir desse momento, “a oposição a Portugal e às autoridades provinciais começou a fazer-se às claras, sem subterfúgios, pelas esquinas e pelos jornais”. Continua o pesquisador: “‘O Constitucional’, periódico de Salvador, iniciara a publicação dos atos oficiais do Regente, sendo as edições, na sua quase totalidade, adquiridas pelos partidários de Madeira, no intuito de furtá-lo à leitura da população. Frustrado esse propósito, foi o mesmo empastelado em pleno dia por um grupo de exaltados... que invadiu as oficinas, espedaçando os móveis da redação e destruindo o prelo”. No Recôncavo, onde se achavam reunidos civis e militares dissidentes que haviam escapado da capital, o processo deflagrado em Santo Amaro se alastrou. A 25 de junho, Cachoeira reconhecia e aclamava a regência do príncipe. No “termo de vereação” daquela terça-feira de 1822, lê-se que os membros da câmara cachoeirana chegaram “às janelas dos Paços do Conselho para saber do povo, e tropa, que na praça se achava postada... se eram contentes que se aclamasse a S. A. R. o Sr. D. Pedro de Alcântara, por Regente e Perpétuo Defensor e Protetor do Reino do Brasil... e logo pelo povo, e tropa, que se achavam na praça, foi respondido – que sim”. O sim foi dado, portanto, em manifestação popular matutina, ao ar livre, na praça principal da vila. Ao entardecer, missa. Cerca de mil pessoas se encaminharam para a matriz. Estacionada em meio ao Paraguaçu, à frente do Cais dos Arcos, uma escuna-canhoneira, enviada por Madeira de Melo, acompanhava a movimentação. Seus canhões apontavam para a Casa da Câmara. Soaram então os primeiros tiros, disparados, tanto da terra quanto do rio, contra a multidão que regressava da matriz. “Os tiros que mataram o soldadotambor Soledade partiram da janela de uma residência portuguesa. O povo embarafustou pela Rua Direita e, então, a canhoneira entrou em ação”, reconta Joel Rufino, em O Dia em que o Povo Ganhou. No comunicado da junta cachoeirana ao Governo Provisório da Província, lemos que a canhoneira disparou “três tiros de peça com metralha sobre a tropa e povo, que, concluído o sermão e o Te-Deum, a que se procedera desfilava pacificamente para suas casas”. Ainda conforme o comunicado, a agressão poderia ter causado “horrorosa mortandade”, caso “a vazante da maré não fizesse malograr as pontarias, empregando-se no cais a maior parte da metralha, do que resultou poucos saírem feridos”. À noite, novo canhoneio – contra Cachoeira e São Félix. Dessa vez, fazendo “grandes estragos nos edifícios”. No dia seguinte, com o objetivo de dar “unidade e comando” à luta, os brasileiros formaram uma Junta Conciliatória de Defesa, presidida por Teixeira de Freitas e secretariada pelo advogado negro Antonio Pereira Rebouças. A escuna foi atacada. E no dia 28 entregou os pontos. A Câmara de Cachoeira se dirigiu então ao príncipe, informando: “Senhor - O leal e brioso povo do distrito de Cachoeira, de quem temos o prazer de sermos órgão, acaba de proclamar e reconhecer V. A. R. como

Regente Constitucional e Defensor Perpétuo do Reino do Brasil. Debalde o verdugo da Bahia, o opressor Madeira, quis renovar nesta Vila as sanguinosas catástrofes do dia 19 de fevereiro e seguintes da Capital da Província. Debalde tentou ainda aumentá-las, destacando neste rio uma escuna artilhada, para bombardear, como com efeito bombardeou, por alguns dias com balas e metralha, não só os honrados Cachoeirenses (cujo crime consistia em quererem ser brasileiros e súditos de V. A. R.) mas até seus inocentes edifícios”. “Os Cachoeiranos, Senhor, não poderão mais contemporizar”, dizia a mesma carta ao regente. Nos dias que seguiram, outras vilas da Província, situadas dentro ou fora do Recôncavo, se uniram a Cachoeira – São Francisco do Conde, Camamu, Maragogipe, Itaparica, Nazaré, Maraú, Rio de Contas, Jaguaripe, Valença, Jacobina, Caravelas, Caetité, Cairu, Inhambupe, etc. Em poucas palavras, a guerra tinha começado. E a estratégia militar do “partido da independência” seria uma reprodução, em novo contexto, do procedimento utilizado na guerra contra os holandeses. Tratava-se de cercar e sitiar Salvador. Manter as tropas portuguesas ilhadas na capital da Província, cortando-lhes as vias de comunicação e abastecimento. Em A Bahia – 1808-1856 (estudo incluído na História Geral da Civilização Brasileira, organizada por Sergio Buarque de Holanda), Wanderley Pinho distingue duas fases principais nessa guerra: antes e depois da chegada de Labatut a Capuame. A primeira fase vai do 25 de junho, em Cachoeira, a outubro do mesmo ano de 1822. A segunda, de outubro, quando o general Labatut pisou em campo, ao 2 de julho de 1823, dia da entrada do Exército Pacificador (ou Libertador) na Cidade do Salvador da Bahia de Todos os Santos. Na primeira fase, de acordo com Luís Henrique Dias Tavares, “a ação se deveu à iniciativa regional dos produtores e lavradores do Recôncavo, em ligação com os oficiais militares e os intelectuais que haviam deixado Salvador”. Foi nesse período que se formaram os diversos “batalhões patrióticos”, responsáveis pela ocupação das terras do Recôncavo e da Ilha de Itaparica. Sobre a segunda fase, quando o príncipe interveio, enviando comandante e soldados, escreve o mesmo Luís Henrique: “Quando Labatut alcançou a Feira de Capuame (Dias d’Ávila), em 29 de outubro de 1822, os batalhões patrióticos já ocupavam todo o Recôncavo, inclusive Itaparica. Sendo um profissional militar competente, Labatut procurou consolidar as posições anteriormente conquistadas e estabelecer disciplina e comando para as tropas regulares e os batalhões dos voluntários. Foi assim, com sua orientação, que este Exército brasileiro ficou coeso na sua estrutura, disposto em três Divisões – a 1ª., aquartelada em terras do Engenho Novo de Pirajá, sob o comando do tenente-coronel José de Barros Falcão de Lacerda; a 2ª., com a 3ª., 4ª. e 5ª. brigadas, sob o comando do coronel Felisberto Gomes Caldeira; e a do Centro, comandada pelo coronel José Joaquim de Lima e Silva. Ademais, é nesta fase do comando de Labatut que a guerra pela independência do Brasil na Bahia vive os seus principais choques bélicos, o mais sério dos quais foi a batalha de Pirajá.” Na verdade, como já disse, a guerra da independência da Bahia não foi uma guerra de grandes batalhas. Ela se caracterizou, principalmente, por pequenos entreveros. Episódios belicamente breves e pouco mortíferos: tomada da escuna no Paraguaçu, tentativa de desembarque lusitano em Saubara, tiroteios em Itaparica, etc. “A guerra não era de movimento”, definiu Affonso Ruy. O que havia era o

Recôncavo apertando o cerco sobre a sua capital, então isolada, semideserta e faminta. Nesta, as tropas de Madeira de Melo – um “exército inativo, sofrendo de quando em quando baixas nas suas escoltas e patrulhas”. João José Reis diz a mesma coisa: “De um modo geral os combates foram de pequena monta, escaramuças em que os baianos foram favorecidos pela superioridade numérica”. Mesmo a batalha de Pirajá, considerada a refrega maior e mais decisiva, nada teve de realmente espetacular, em termos militares. Mas vamos a passo mais lento. Labatut – um aventureiro francês, calejado na campanha napoleônica e nas lutas autonomistas das colônias espanholas, quando chegou a se desentender com Bolívar – conseguiu de fato transformar, em hostes militarizadas, “a massa desordenada que era o exército nacional” (Ruy). Para se ter uma idéia do seu feitio, veja-se o seguinte trecho do texto que ele enviou a Madeira de Melo, em setembro de 1822, instando-o a abandonar a arena: “General, como militar e filantropo, eu deploro vossa sorte; sim, vós achai-vos a mais de 2.000 léguas distante de Portugal, donde vos podiam socorrer, e eu à testa de um povo vingador dos seus direitos, e habitantes deste vasto continente, que em número de 20.000 (contando os que ocupam já diferentes pontos da Província), desejam mostrar pelo seu valor o nobre patriotismo, de que se acham possuídos”. Madeira não se intimidou. Resolveu lançar a sorte numa ofensiva contra os brasileiros acampados em Pirajá. Seu objetivo era, finalmente, furar o bloqueio adversário. Contava, para isso, com a sua querida Legião Constitucional Lusitana. E o certo é que, naquele dia, os portugueses surpreenderam as forças brasileiras. Depois de umas quatro horas de luta, a vitória começou a se desenhar com nitidez para os lusitanos, que recebiam mais e mais reforços, superando numericamente a tropa inimiga. A certa altura, eram cerca de 2.000 portugueses contra pouco mais de 1.200 nacionais. Barros Falcão, comandante brasileiro, viu que as coisas estavam realmente feias. Ordenou, então, a retirada. Mas o corneteiro Luís Lopes, por razões nunca esclarecidas (ainda hoje não sabemos se ele era incompetente, desastrado, insubmisso, vidente, fanático ou maluco), tocou “cavalaria avançar e degolar”. Foi uma confusão dos diabos entre os lusos. Os brasileiros foram em cima deles na base da baioneta e do sabre. E o que pintava como uma derrota converteu-se, por artes do Santo Deus Imprevisto, numa perseguição aos portugueses em fuga, debandando espavoridos para as bandas da Lapinha. Comenta Luís Henrique: “O valor desta batalha não está no número de mortos, nem em qualquer especial manobra tática. Os mortos, parece que não chegaram a cem [ao contrário da pirâmide de cadáveres fantasiada por um adolescente romântico chamado Castro Alves]; de manobra tática, nada existiu de notável”. Estrela, se houve alguma, foi o clarim de Lopes. Onde esteve então a importância daquele combate? Para Luís Henrique, na preservação do posicionamento geográfico do exército brasileiro, que permitiu fechar o anel em torno de Salvador. Rufino, por sua vez, fala de um significado moral (tropa improvisada repelindo ataque de tropa profissional) e militar – a renúncia portuguesa, depois do fiasco, a forçar outra vez o bloqueio. Completamente cercado por terra, Madeira agora só tinha como respirar “pelo lado do mar.” Por pouco tempo, diga-se logo. Contratado a peso de ouro por D. Pedro I, o almirante-

mercenário inglês Thomas Cochrane apareceu em cena no mês de maio de 1823. Agora, enquanto a guerrilha baiana fustigava e feria os lusos, Cochrane, abrigado no Morro de São Paulo – numa Ilha de Tinharé guarnecida por 60 soldados pobres, descalços, vestindo calças puídas e chapéus de palha –, ensaiava, com uma esquadra pequena e precária, o bloqueio marítimo de Salvador. Num mar que, de resto, suportava a apatia da armada lusitana, ao tempo em que se alegrava com as proezas de João das Botas (um português convertido à causa brasileira), fazendo e acontecendo com a sua esquadrilha de saveiros de proa verde. Madeira de Melo estava perdido – e sabia disso. Militar imperito, mas sério (recusou, inclusive, o alto suborno proposto por José Bonifácio), contava os seus dias. Consta que, em meados de junho, comerciantes portugueses de Salvador tentaram a sua deposição. Sobrava-lhe, na circunstância, capitular, ou entrouxar a tropa e embarcar na surdina para Portugal. Fez a última escolha. “O embarque do exército colonialista, na madrugada do dia 2 de julho de 1823, foi a melhor operação realizada por Madeira de Melo durante a guerra”, ironizou Joel Rufino. “Quem o derrotara? A fome. Salvador não tinha mais o que comer, no começo de junho de 1823. As tropas metiam a mão nas reservas de viagem e o tesouro fora raspado”. Ainda cedo, naquela mesma manhã, chegava ao acampamento de Pirajá, onde estava o agora comandante Lima e Silva, a notícia da fuga portuguesa. Era o fim da guerra. Lima e Silva não gostou do que ouviu. Não queria a fuga, mas a rendição do adversário. Madeira já havia acenado com o abandono da capital – e ele reagira: “Responde o comandante do exército pacificador que tem todas as notícias da cidade marcadas até por horas, de todos os passos da tropa inimiga e que, logo que saiba que esta principia a embarcar, pretende atacá-la, e neste momento romperá o fogo no mar; que se o general inimigo deseja retirar-se tranqüilamente proponha uma capitulação que será concertada entre os comandantes de mar e terra de uma e outra parte contratantes”. Formalismo e vaidade, é claro. Mas agora era tarde. As velas portuguesas já haviam desaparecido sob o céu azul, singrando de torna-viagem o mar oceano. Restava ao Exército Pacificador, àquela multidão de milhares de brasileiros descalços e maltrapilhos, fazer a sua entrada triunfal na Cidade do Salvador da Bahia de Todos os Santos. E foi o que se fez – sob aplausos, pétalas e palmas.

A REVOLUÇÃO CONSERVADORA A nomeação de Madeira de Melo para comandante das armas da Bahia, a repressão militar aos anseios emancipacionistas e o envio de reforços às tropas portuguesas aqui sitiadas desenham um quadro bastante claro. De uma clareza solar, pode-se dizer. É que Portugal tinha os seus projetos para o Brasil – e os estava levando à prática. A Bahia seria o centro armado da resistência lusitana à liqüidação da presença de Portugal nas Américas. Manter a Bahia sob controle poderia significar, para Lisboa, duas ou três coisas. Primo. Portugal

não perderia por inteiro o Brasil – ao contrário, teria em suas mãos uma das províncias mais ricas do reino ultramarino que pretendia recolonizar. Secondo. O domínio da Bahia permitiria pensar numa partilha do Brasil – um reino autônomo poderia se articular no Centro-Sul, mas Portugal ficaria com um vasto território americano, estendendo-se da Província baiana a terras amazônicas (à exceção de Pernambuco, que mais facilmente faria a escolha republicana, no rumo da revolução de 1817). Terzo. A ocupação militar desse espaço, do Leste ao Extremo Norte, quiçá abriria caminho para futuras investidas, conduzindo à reconquista lusitana de todo (ou quase todo) o Brasil. Dessa perspectiva, o 2 de Julho significou não apenas a independência da Bahia. A vitória baiana em 1823 foi fundamental para consolidar, em sua inteireza, o processo global da autonomização brasileira. Depois da adesão de Pernambuco e do 2 de Julho, ficou faltando somente o triunfo brasileiro no Pará-Maranhão – e ele não demorou, incorporando-se assim a vastidão amazônica ao império que então principiava a sua trajetória, caminho que se interromperia apenas em 1889, com a proclamação do regime republicano. Na Bahia, a luta foi, como acabamos de ver, entre o “partido português” e o “partido nacional”. Mas aqui temos que fazer uma distinção elementar. Enquanto o “partido português” apresentava-se unido e homogêneo, sempre idêntico a si mesmo, cristalizando-se em função de um só objetivo, o “partido brasileiro” era, ao contrário, marcado pela diversidade, sofrendo a carência de uma unidade projetual e estratégica. João José Reis foi ao grão da questão: “A história das lutas da Independência na Bahia não foi apenas a história de um conflito entre brasileiros e portugueses. Se estes últimos formavam um grupo com interesses relativamente coesos, entre os primeiros havia divisões étnicas, ideológicas, políticas e sociais. Essas diferenças se refletiram nas atitudes de maior ou menor radicalismo frente ao colonialismo português e na escolha do regime político que deveria sucedêlo”. Vimos que Madeira de Melo caracterizava o “partido brasileiro” como o resultado da soma de dois “partidos” – o que defendia a construção de uma monarquia constitucional e o que pregava a implantação do regime republicano. O historiador Joel Rufino também fala do delineamento de três agrupamentos básicos, ativos do começo ao fim da guerra baiana: o dos “colonialistas e seus aderentes”, o dos “patriotas conservadores” e o dos “patriotas revolucionários”. Como o primeiro grupo se definia de pronto, foi sobre os dois últimos que ele acendeu alguma luz. Os “patriotas conservadores”, segundo Rufino, eram “pessoas gradas” do Recôncavo, “homens bons” das câmaras municipais, proprietários de terras e de escravos, negociantes, autoridades militares. Em suma: a elite baiana. “Eram patriotas porque lutavam pela nossa Independência; e conservadores porque lutavam só por ela”. Os “patriotas revolucionários”, por seu turno, aparecem como “aliados incômodos” dos conservadores. Querem sempre levar o barco adiante, empurrando-o em direção a águas mais democráticas, para além do primeiro horizonte balizado pelo sistema monárquico-constitucional. Eram, enfim, aqueles “sediciosos e malvados elementos” dos documentos oficiais, que Rufino vai definir como “a legítima liderança democrática e popular da guerra da Independência do Brasil”. Mais precisamente, esses líderes extremados, que reivindicavam a ruptura republicana e ameaçavam conduzir o povo a “excessos anárquicos”, pertenciam, regra geral, ao estrato médio da

população baiana. Eram militares, artesãos, profissionais liberais, etc. Uma gente livre – e quase sempre mulata. “Pessoas que haviam emergido pela primeira vez na história política baiana em 1798 com a Conspiração dos Búzios, ou dos Alfaiates, apenas para terem suas cabeças cortadas. Após outra tímida tentativa em 1817, elas agora retornavam propondo medidas secessionistas imediatas e renovando o sonho democrático de 1798” (Reis). Tratava-se de uma tremenda pedra na bota da “nobreza” local. E o que os conservadores realmente temiam era que chegasse ao chão de barro das senzalas o discurso libertário dessas personalidades política e socialmente mais atrevidas. Daí a sua constante preocupação (e os seus inevitáveis problemas) com líderes como o tenente Sátiro Cunha, o cadete João Primo e o médico mulato Francisco Sabino Vieira, futuro condutor do movimento separatista chamado “Sabinada”, que chegou a ser preso por Labatut em 1823, sob a acusação de radicalismo. Mas havia ainda um outro “partido”, ao qual já fazia referência o capitão-mor da Vila de Cachoeira, José Antonio Fiúza, em carta a Madeira de Melo: “...nesta vila e seu distrito há três partidos revolucionários, a saber, um de brasileiros, um de europeus e o terceiro de negros”. Mas o que foi mesmo esse partido negro na luta independendista baiana? João José Reis, que examinou o assunto em O Jogo Duro do Dois de Julho: o “Par-tido Negro” na Independência da Bahia, responde: “O ‘partido negro’ era ao mesmo tempo uma construção ideológica da elite e um fenômeno absolutamente real. Neste último sentido ele significava os vários grupos negro-mestiços de escravos, libertos ou homens livres que, cada qual à sua maneira, tentaram negociar uma participação no movimento da Independência, ou subverter a própria ordem escravocrata no calor do conflito luso-brasileiro”. É claro que também o “partido negro” nada tinha de homogêneo. Escravos africanos e escravos crioulos (isto é, nascidos no Brasil) estavam divididos por longínqua inimizade. Mais longínquas ainda eram as raízes das diversas rivalidades étnicas que separavam os agrupamentos africanos que aqui viviam. Também negros e mulatos se desentendiam – e, não raro, se odiavam – há tempos. Obviamente, um panorama desses vai gerar uma multiplicidade de interesses e de desejos, ou um leque de muitas descoincidências. Mas o fato é que pretos e mulatos, livres e libertos, se mobilizaram para a campanha autonomista – e se engajaram na guerra. “A maioria da população livre pobre [da Bahia] era negra e mestiça e odiava os portugueses porque estes monopolizavam a venda e especulavam com os preços de certos produtos básicos de subsistência, além de serem particularmente racistas”, lembra Reis. Quanto aos escravos, africanos ou crioulos, está fora de dúvida que eles divisaram, no campo da guerra de libertação nacional, a possibilidade de se libertarem, eles mesmos, da escravidão brasileira. O discurso anticolonialista da elite não poderia deixar de ferir a sensibilidade escrava. Representava-se o Brasil, naquela construção retórica, como um “escravo” de Portugal, que agora se dispunha finalmente a lançar por terra o jugo do “senhor” metropolitano. Em sua proclamação aos baianos, datada de 17 de junho de 1822, o próprio príncipe-regente afirmava, alto e bom som, que os “honrados brasileiros” preferiam “a morte à escravidão”. Ora, tal articulação discursiva não deixaria de sensibilizar e mesmo de atiçar, como de fato sensibilizou e atiçou, a massa escrava. Daí que

muitos escravos tenham fugido da órbita de seus senhores para se alistar nas tropas brasileiras. Mas a verdade é que, para o desespero e a raiva desses escravos, os senhores não foram apeados de suas montarias. Pelo contrário: os conservadores seguraram firme as rédeas e comandaram o processo independentista. Não fizeram, é certo, a independência modera-díssima, que manteria os dois reinos unidos; mas a moderada, que descartou não só o regime republicano como qualquer modificação mais profunda em nossa organização social. Essa vitória da conservação e da continuidade está muito bem expressa no desenho do escudo de armas do novo país e num dos primeiros decretos do novo governo da Bahia independente. Foi um decreto de 18 de setembro de 1822 que fixou a feição do citado escudo de armas. E nada poderia ser mais claro como afirmação da permanência. Num campo verde, uma esfera armilar de ouro, atravessada por uma cruz da Ordem de Cristo. Circulando a esfera armilar, dezenove estrelas de prata [as províncias] aplicadas numa orla azul. A coroa real diamantina, no centro. Ladeando o escudo, dois ramos: um de café e um de tabaco, reproduzidos em suas próprias cores, como emblemas de nossa riqueza comercial. Ramos ligados, na parte inferior, pelo laço da nação. Ou seja: um escudo de armas essencialmente lusitano e senhorial. Estranho, apenas, que a cana-de-açúcar tenha sido excluída do arranjo vegetal. Quanto ao campo verde, que ninguém se engane. O verde, aí, não é a cor das matas brasileiras – mas a cor da Casa de Bragança. Quanto ao decreto governamental baiano, antes referido, data ele do dia 31 de julho de 1823. Fora redigido, portanto, quando ainda não se completara sequer um mês da entrada do Exército Pacificador, com Lima e Silva e Maria Quitéria (cabocla de olhos rasgados e compridos cabelos pretos, a mais célebre das mulheres que, fardadas ou não, disseram presente nas fileiras e nos serviços das tropas brasileiras), na Cidade da Bahia. E, sem rodeios, declara: O Governo Provisório desta Província querendo acautelar como é de seu dever, os graves prejuízos que resultam, tanto aos particulares, como geralmente a toda a Província, da dispersão dos escravos que andam vagando fora da companhia de seus Senhores pelas povoações, lugares e matas do Recôncavo e alguns retidos em poder estranho, ordena o seguinte: 1. - Que toda e qualquer pessoa que tiver em seu poder algum escravo que por legítimo título não lhe pertença, o entregue imediatamente ao seu verdadeiro dono (...). 2. - Que todos os Juízes e Capitães Mor façam a mais exata indagação para descobrirem tais escravos e fazêlos prender (...). 3. - Que todos os proprietários de Engenho e Fazendas indaguem se nas suas terras se acolhem alguns desses escravos e os faça prender e remeter à cadeia mais vizinha (...).

Bem, o texto dispensa até mesmo o mais mínimo comentário. O que aconteceu na Bahia, entre 1822 e 1823, foi uma revolução essencialmente conservadora, no que disse respeito à estruturação interna da sociedade que se vinha construindo. Fato sublinhado, aliás, já no próprio título do admirável estudo do historiador inglês F. W. O. Morton sobre o processo independentista entre nós – The Conservative Revolution of Independence. Na Bahia, como em todo o império, evidentemente. Afinal, caso único nas Américas, o Brasil continuaria sob o signo do regime monárquico. E nosso

modelo constitucional seria, em verdade, mais monárquico que democrático. A Assembléia Constituinte fora dissolvida, como se sabe, em 1823 – e ao príncipe-regente, agora imperador, se permitiu atropelar, quando achasse necessário, o princípio da soberania popular. Além disso, mantinha-se um Bragança na coroa. Mais que isso: um Bragança nascido em Portugal. E tal espinha ficaria atravessada na garganta brasileira – fazendo com que Pedro I governasse sob a suspeita de que (especialmente depois da morte de D. João VI, em 1826) desejava o retorno à realidade do reino unido a Portugal e Algarves –, para se resolver apenas com a abdicação do imperador, depois da famosa “noite das garrafadas”, na madrugada de 7 de abril de 1831. Mas não foi só. Além dos conservadores terem conseguido neutralizar os adeptos mais conseqüentes do constitucionalismo, e sobrestar e calar os republicanos, a revolução da independência insistiu na preservação do sistema escravista. Manteve os negros no cativeiro. E não desviou, das populações indígenas sobreviventes, a mira criminosa. No caso baiano, o “partido negro”, antes tão temido, foi simplesmente ignorado. Não admira portanto que, depois do 7 de Setembro e do 2 de Julho, viesse a se fazer ouvir na região, com estardalhaço e violência, a voz armada dos deserdados da Revolução Nacional.

A REBELIÃO MALÊ A história da escravidão no Brasil tanto exibe inúmeros exemplos de escravos rebeldes e de rebeliões escravas, como exemplos também inúmeros de escravos conformistas e traidores, além de escravos que, alcançando a sua liberdade individual, compravam de imediato, para seu serviço, um “irmão de cor”. Nem foram poucas, de resto, as iniciativas rebeldes abortadas pelos próprios escravos, pelo expediente da delação. Não é disso, todavia, que vamos tratar aqui. Mas, sim, de insurreições – e de insurreições acontecidas na Bahia. Um jogo pesado. Se a relação entre o quilombo e a ordem escravocrata admitiu muitas nuanças, que foram da constância guerrilheira à convivência pacífica, o mesmo não se pode dizer a respeito das insurreições negras. Aqui, nunca houve meio-termo, diálogo, contemporização. E diante do elenco de insurreições escravas ocorridas em nosso meio, fico tentado a dizer que parte razoável da escravaria aqui existente poderia ostentar, como divisa, a subversão a que Albert Camus submeteu o princípio cartesiano. Je me révolte, donc j’existe. O período em que brilhou com intensidade máxima a cólera insurrecional, entre nós, cobre as primeiras décadas do século XIX. Vai de 1807 a 1835 – isto é, dos últimos dias coloniais aos primeiros dias do país independente e da organização do Estado Nacional. Nessa época, Salvador ostentava, em sua periferia, uma espécie de cinturão móvel de terreiros e quilombos – e havia ameaças de levantes por todo o Recôncavo. Uma visão, ainda que resumida, das insurreições negras da Bahia, no período em questão, chega a ser atordoante. Não só pela quantidade de revoltas (e de

homens nelas engajados), como pelo seu teor de violência e pela natureza quase que invariavelmente sangrenta dos seus desfechos. Em 1807, por exemplo, vaza a informação acerca de uma conspirata negra programada para eclodir durante as celebrações de Corpus Christi. Conspiradores são executados, ou punidos em praça pública com 150 açoites cada. Dois anos depois, cerca de 300 revoltosos atacam Nazaré das Farinhas. Derrotados, fugindo para as matas, os insurgentes são parcialmente massacrados por tropas enviadas da Cidade da Bahia. Em seguida, fevereiro de 1814, temos a Revolta de Itapoã, que deixa um saldo de armações pesqueiras incendiadas, mais de 70 mortos em combate, rebeldes enforcados, punidos com açoite, “suicidados”, mortos nas prisões e mesmo deportados para colônias penais portuguesas na África. Em 1816, nova insurreição: engenhos incendiados, casas saqueadas, brancos trucidados. Durante a guerra da independência, mais três revoltas: a de Itaparica, a da Vila de São Mateus e a de Pirajá, onde 50 insurrectos foram sumariamente executados. Apesar de tudo, o espírito insurrecional não esmoreceu. Pelo contrário, impressiona a disposição negra para a luta. Em 1826, temos o levante de Cachoeira e a Revolta do Urubu, na periferia da capital. Nesta, capitães-do-mato foram assassinados pelos rebeldes. Mas os soldados saltaram sobre os sublevados, que resistiram enfuriados, “com facas, facões, espadas, lanças, navalhas, foices, lazarinas e uma poucas espingardas” (Reis), aos gritos de morra branco e viva negro. A rebelião foi sufocada. Mas dela se projetou a figura de uma guerreira negra: Zeferina. “Em Urubu foi presa, a muito custo, uma extraordinária mulher, Zeferina, que de arco e flecha enfrentou os soldados. Durante a luta comportou-se como verdadeira líder, animando os guerreiros, insistindo para que não se dispersassem. (...). Zeferina mais tarde declarou que os insurgentes esperavam a chegada de muitos escravos de Salvador na véspera de Natal, ocasião em que planejavam invadir a capital para matar os brancos e conseguir a liberdade”, reconta João José Reis. E as coisas não pararam por aí. “Uma onda de pequenos levantes perturbou o tênue equilíbrio social da Bahia entre 1827 e 1831”, prossegue Reis, em seu definitivo Rebelião Escrava no Brasil. 1827 foi o ano do levantamento dos escravos do Engenho Vitória. No ano seguinte, mais sublevações: em Cachoeira, em Santo Amaro e uma nova Revolta de Itapoã, a mais séria das três, com incêndios em canaviais e instalações pesqueiras – e uma conta de vinte insurgentes mortos. Em 1830, rebelião em Salvador (“18 negros novos foram eliminados por se recusarem a participar daquele inesperado levante”, noticia Reis, acrescentando que “não era incomum a violência rebelde contra escravos que se negavam à rebeldia”). E novamente a conclusão foi desastrosa para os rebeldes, com muitos feridos e cinqüenta deles espancados até à morte. Citemos, uma vez mais, João José Reis: “A rebelião de 1830 nunca teve sua importância devidamente ressaltada. Pela primeira vez uma revolta acontecia no coração de Salvador. Esses rebeldes talvez tivessem chegado à conclusão de que, para vencer, deveriam explodir o centro do poder branco. Até então predominaram as tentativas de atacar a cidade de fora. Desta vez, uma vanguarda ladina mobilizou inexperientes negros novos para, a partir de uma insurreição consumada, atrair os escravos de Salvador para a luta”. Diante desse espetáculo de revoltas sanguinolentas, as autoridades multiplicaram interdições. Distribuíram ameaças. Restringiram a livre circulação extradomiciliar dos africanos forros.

Reforçaram o aparelho militar. Etc. O pânico se instalara. E o fantasma do Haiti rondava monstruosamente os passos da classe dirigente. Havia um verdadeiro pavor de que os eventos sanguinários promovidos pela Revolução Haitiana – uma chacina da minoria étnica dominante – se reproduzissem em terras baianas. Haiti, “esponja... empapada de sangue” – no verso de Nicolas Guillén. E é claro que esta perspectiva de massacre não deixaria de aterrorizar os brancos da Bahia. Num dos textos incluídos em Escravidão, Homossexualidade e Demonologia (“A Revolução dos Negros do Haiti e o Brasil”), Luiz Mott mostrou, com base documental, que os pretos brasileiros tinham, de fato, informações sobre a guerra haitiana. Mott editou um documento onde vemos que, logo depois que o ex-escravo Jean Jacques Dessalines proclamou a Independência do Haiti, o ouvidor-do-crime, no Rio de Janeiro, mandou “arrancar dos peitos de alguns cabras e crioulos forros, o retrato de Dessalines, Imperador dos Negros da Ilha de São Domingos”. Escravos falavam do Haiti na Bahia, no Rio de Janeiro, em Sergipe. Mott divulgou ainda documento referente à presença de pretos haitianos na capital brasileira. Irônico, nosso antropólogo-historiador comenta que, se aqueles haitianos eram mesmo “agitadores”, coube então ao Haiti, antes que a Cuba, a primazia de “exportar Revolução”. O certo é que o temor de uma reviravolta racial, nos moldes da do Haiti, se espalhou por toda a América do Sul. Examinando a situação da Venezuela, por exemplo, John V. Lombardi observou que, ao tempo da Patria Boba, como é chamada a “primeira república” venezuelana, a aristocracia crioula de Caracas começou a ter, diante de gestos mais radicais, “visões do Haiti”. Era preferível renunciar à luta pela independência (e chegar a um acordo com a Espanha) do que encarar a ira negra. E a aristocracia brasileira temia uma grande rebelião negra assim como, no Peru, a elite crioula se arrepiava de medo à simples menção da ameaça indígena. Bem. A Bahia viveu dias ao longo dos quais realmente poderia ter presenciado cenas similares às da revolução haitiana. Estamos nos referindo, obviamente, à mais séria das insurreições do período: a Revolta dos Malês (como eram chamados, na Bahia, os negros muçulmanos – expressão talvez derivada do haussá malam, ‘mestre’, do iorubá imalê, ‘muçulmano’, ou, mais remotamente, de Mali, império da Costa do Ouro), ocorrida em 1835. Um levante de negros africanos (haussás e nagôs, basicamente) convertidos ao islamismo, que aqui deram conteúdo de classe à jihad – a guerra santa muçulmana. Luta étnica, luta de classes, luta religiosa – portanto. E não foram poucos aqueles que, naquela época, se tornaram “malês”, isto é, abraçaram a fé islâmica, dispondo-se a ferir frontalmente a formação social escravista. Depois de montar uma estrutura organizacional forte e eficaz – e de desenvolver uma bem sucedida campanha proselitista –, esses filhos negros de Alá se sublevaram numa noite de Ramadã, janeiro, o mês sagrado dos muçulmanos. Foram os combates mais ousados, árduos e ferozes de que se tem notícia em toda a crônica das insurreições escravas da Bahia. Mas, também, os mais desesperados. Uma retomada, em escala ampliada, do levante de 1830. Delações, ataques-relâmpago, escaramuças, grupos armados correndo por ladeiras e praças, tiroteios, assalto à cadeia municipal, mortes – e mortes. “A cidade entrou no ritmo de uma grande aventura de luta pelo poder”, sintetiza João José Reis. Uma corrida frenética – louca e sanguinária – pelo irregularíssimo desenho topográfico da Cidade da Bahia, desembocando em Água de Meninos, no quartel da cavalaria, onde

se deu o confronto crucial. Setenta malês mortos. E o Islã Negro fracassou. Morreu ali, naquela noite, o sonho da implantação de um Califado da Bahia. Ou, ainda, o sonho de uma Bahia unicamente negra, onde os brancos seriam todos exterminados – e os mulatos, convertidos em escravos. Mas é óbvio que a vida escrava na Bahia não foi feita apenas de rebeliões, nem de seu avesso – a escravaria cabisbaixa, resignada, solícita ou serviçal. Havia muitos matizes no campo do relacionamento senhor/escravo. Na boa fórmula do historiador Eduardo Silva, entre Zumbi dos Palmares (“a ira sagrada, o treme-terra”) e Pai João (“a submissão conformada”), havia a figura do escravo que negociava, manobrando politicamente para alargar os espaços em que poderia se mover de modo mais íntegro e livre. Exemplo definitivo dessa postura de negociação se encontra no tratado proposto a Manuel da Silva Ferreira pelos seus escravos. Eles haviam realizado um levante – e levantados estavam, quando definiram e formularam um tratado de paz. Vejam trechos do texto desse tratado (onde não faltam a nota da hostilidade étnica contra os “pretos Minas” – nagôs, jejes, haussás –, nem a expressão, no último item, da importância da dimensão lúdica, na esfera de suas vidas), por sua clareza e relevância: Meu Senhor, nós queremos paz e não queremos guerra; se meu senhor também quiser nossa paz há de ser nessa conformidade, se quiser estar pelo que nós quisermos a saber. Em cada semana nos há de dar os dias de sexta-feira e de sábado para trabalharmos para nós não tirando um destes dias por causa de dia santo. Para podermos viver nos há de dar rede, tarrafa e canoas. Não nos há de obrigar a fazer camboas, nem a mariscar, e quando quiser fazer camboas e mariscar mandes os seus pretos Minas. Para o seu sustento tenha lancha de pescaria ou canoas do alto, e quando quiser comer mariscos mande os seus pretos Minas. Faça uma barca grande para quando for para Bahia nós metermos as nossas cargas para não pegarmos fretes. (...) Os atuais feitores não os queremos, faça eleição de outros com a nossa aprovação. (...) O canavial do Jabiru o iremos aproveitar por esta vez, e depois há de ficar para pasto porque não podemos andar tirando canas por entre mangues. Poderemos plantar nosso arroz onde quisermos, e em qualquer brejo, sem que para isso peçamos licença, e poderemos cada um tirar jacarandás ou qualquer pau sem darmos parte para isso. A estar por todos os artigos acima, e conceder-nos estar sempre de posse da ferramenta, estamos prontos para o servirmos como dantes, porque não queremos seguir os maus costumes dos mais Engenhos. Poderemos brincar, folgar, e cantar em todos os tempos que quisermos sem que nos empeça e nem seja preciso licença”.

Voltemos, no entanto, ao fogo insurrecional. Foi justamente da série de insurreições antes arroladas que se teceu a fama revolucionária dos pretos da Bahia. Que a reputação rebelde do “negro baiano” se gravou no imaginário senhorial. E isto ao ponto de senhores de escravos do resto do Brasil chegarem a se negar a comprar escravos nascidos na – ou importados da – Bahia. Fato que ocorreu, por sinal, na infância do ex-escravo (futuro poeta – e líder abolicionista) Luiz Gama, autor de Quem Sou Eu?, poema que se tornou conhecido, popularmente, como a Bodarrada. Em sua

famosa Carta autobiográfica, Gama, que aos dez anos de idade fora vendido como escravo por seu próprio pai, relata: “Fui escolhido por muitos compradores... e por todos repelido, como se repelem cousas ruins, pelo simples fato de ser eu baiano”. Comenta Sud Menucci, biógrafo do poeta: “Os escravos dessa naturalidade amedrontavam, na época, o Brasil inteiro. Notabilizara-os... uma série ininterrupta de insurreições negras, na Bahia, que vão de 1807 a 1835, e nas quais a ameaça suprema pesava sobre as cabeças dos brancos possuidores de escravos”. Luiz Gama era mulato. Sobre seu pai, ele mesmo escreveu: “...não ouso afirmar que fosse branco, porque tais afirmativas neste país constituem grave perigo perante a verdade, no que concerne à melindrosa presunção das cores humanas: era fidalgo; e pertencia a uma das principais famílias da Bahia, de origem portuguesa”. Acontece que Gama era também “filho natural de uma negra, africana livre, da Costa da Mina, (Nagô de Nação)... pagã, que sempre recusou o batismo e a doutrina cristã”. Quem era ela? Magra, bonita, altiva, geniosa, “de um preto retinto e sem lustro”, era uma mulher certamente extraordinária – e suspeitíssima de sedições: a hoje lendária Luiza Mahin, que pesquisadores indicam como envolvida em conspirações malês.

A SABINADA 26 de abril de 1833. Quatro horas da tarde. Hasteada por um grupo de presos políticos – e anunciada por “três tiros de peça” –, a bandeira azul e branca do federalismo baiano flutua à brisa que passa, refrescando o Forte do Mar. Da cidade, as pessoas atentam. Surpresas, atemorizadas, curiosas, perplexas. Não são poucos os olhos que se iluminam, especialmente em meio à gente livre de cor, mestiços pobres ou apenas remediados da Cidade da Bahia. Mas o que era mesmo que pretendiam aqueles prisioneiros, com o gesto desafiador de retirar a bandeira imperial plantada na velha fortaleza? E de erguer em seu lugar um novo ponto colorido, bandeira da cor do céu e do mar, listra branca entre listras azuis, na moldura vespertina da Bahia de Todos os Santos? Essa história vinha de antes – e se estenderia por alguns anos ainda. A bem da verdade, a monarquia brasileira viveria desde sempre tensionada por correntes e movimentos de caráter federalista e republicano. Logo cedo, exemplo extremo dessa realidade contestadora, conheceria a Confederação do Equador, proclamada em Pernambuco a 2 de julho de 1824. Cipriano Barata participou da agitação, e foi preso. O objetivo do movimento era reunir, em modo republicanofederativo, as províncias de Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte, Ceará e, quem sabe, o Piauí e o Pará. Mas o levante (urbano e popular) foi derrotado militarmente pelo Governo Imperial. E, na onda punitiva que se seguiu, Frei Joaquim do Amor Divino, o Frei Caneca, acabou sendo fuzilado, já que não houve quem aceitasse o papel de carrasco, para enforcá-lo. Adiante, já na década de 1830, a temperatura continuaria quente. Na Bahia, por exemplo, o clima não era dos mais amenos. Em abril de 1831 – depois da “noite

das garrafadas”, no Rio de Janeiro –, ficou menos ainda. Lusofobia em alta. Dois oficiais do 2º. batalhão foram presos, sob a acusação de planejar um levante. Ato contínuo, soldados e civis ocuparam o Forte do Barbalho, exigindo não só a soltura dos presos, como a demissão do comandante das armas, do chefe de polícia e de todos os oficiais de naturalidade portuguesa. O movimento se espalhou pelo Recôncavo. A Câmara de Santo Amaro foi ocupada militarmente, dezenas de portugueses foram presos em Cachoeira. Em Salvador, os rebeldes foram atendidos. O Visconde dos Fiais, presidente da Província, demitiu o general Crisóstomo Calado, comandante das armas – e se demitiu. Correu então o boato de que um comerciante baiano fora assassinado, na Cidade Baixa, por um português. Novo tumulto. Gritos de “mata maroto”. Lusos linchados, lojas e casas depredadas. Diz Affonso Ruy que a “populaça exaltada” só se conteve com a interferência de Cipriano Barata, que, “valendo-se de sua oratória inflamada, conseguiu dissolver o ajuntamento, sob a promessa de que eles, os defensores do povo, estavam alertas para que a justiça fosse feita e a lei cumprida”. Até que a notícia da abdicação de Pedro I veio para acalmar os nervos, desanuviando o ambiente. Ainda assim, e para variar, Cipriano, solto no ano anterior no Rio de Janeiro, voltou a ser preso. Acusação: perturbar a ordem pública. No mês de maio, mais fuzuê. O presidente da Província e o comandante das armas, Cezimbra e Pirajá, renunciam aos seus cargos. Em agosto, o Corpo de Artilharia se revolta no Forte de São Pedro. Quer alimentação e tratamento melhores. Em 28 de outubro, nova revolta, liderada por oficiais federalistas, no mesmo forte. “Uma sedição filha do atrevimento de uns poucos homens perdidos que cuidavam poder com a canalha preencher seus horríveis fins”, nas palavras do novo presidente da província, Honorato Paim. Vistas as coisas de um outro ângulo, é aí que se começa a pronunciar às claras entre nós, em tom reivindicatório, o vocábulo federação. E a rebelião só não foi adiante porque os oficiais não conseguiram a adesão de um número significativo de soldados. Mas é somente no ano seguinte, em fevereiro de 1832, que vai pipocar, na Bahia, uma revolta federalista. “Embora a idéia não fosse nova, porquanto já tivera em sua defesa, na Bahia, o jornal O Federal pela Constituição, é certo, todavia, que o federalismo somente se definiu no período imediatamente após a deposição do imperador D. Pedro I. A princípio confuso, afinal expôs suas alternativas nas revoluções de 1832 e 1833, comumente ligadas ao nome do capitão Bernardo Miguel Guanaez Mineiro, que as liderou”, escreveu Luís Henrique Dias Tavares. Conta Affonso Ruy que o arraial de São Félix se transformara, por aquele tempo, numa espécie de centro revolucionário, “para onde convergiram indivíduos reconhecidamente afeitos à ilegalidade, com o propósito de imporem, pela força, o separatismo”. Bem, onde se lê “separatismo”, leia-se “federalismo”. Mas vamos ao que importa. A 19 de fevereiro, São Félix se levantou. No dia seguinte, à frente de um grupo armado, Guanaes Mineiro cruzou o Paraguaçu e ocupou a Câmara de Cachoeira, proclamando a Federação da Província da Bahia e instalando um governo provisório. Outros subversivos se amotinaram na vila de Feira de Santana. Mas, com o apoio dos grandes senhores do Recôncavo, o presidente Paim conseguiu isolar os amotinados feirenses e sitiar Cachoeira, por terra e pelo Paraguaçu, prendendo Mineiro e seus partidários, que foram remetidos para o Forte do Mar.

A revolta durou poucos dias – de 19 a 24 de fevereiro. Mas no mês de março do ano seguinte, a flama federalista lampejaria rapidamente, mais uma vez, em Salvador. A narração é de Affonso Ruy, em sua História Política e Administrativa da Cidade do Salvador: “A inquietação popular parecera serenar e os quartéis entregarem-se aos trabalhos de rotina militar quando, inopinadamente, ao cair da noite de 9 de março de 33, o quartel de cavalaria dos ‘permanentes municipais’ foi atacado por sessenta populares armados, dirigidos pelo tenente Alexandre Ferreira Sucupira, do Regimento dos Pardos, implicado no movimento federalista de São Félix, conseguindo, de surpresa, ocupar o aquartelamento logo retomado pelos próprios municipais que puseram em fuga os assaltantes, só cabendo ao reforço solicitado pelo comandante perseguir os atacantes, estrada do Rio Vermelho afora, onde foram presos o chefe e um auxiliar, por se ter dispersado o grupo.” Um mês e meio depois, todavia, toparíamos com a citada cena da bandeira azul e branca do federalismo tremulando no Forte do Mar. Contando com a cumplicidade da guarnição, os presos ali recolhidos se sublevaram. Eram, em sua maioria, subversivos que tinham participado do levante de São Félix-Cachoeira. Na manhã do dia 27 de abril, enviaram um ofício ao presidente da Província, comunicando-lhe a “Aclamação da Federação”. O programa revolucionário retomava, com alterações mínimas, a proposta do levante passado: disposições antilusitanas, princípios liberais em política e economia, reforma administrativa, novo equacionamento do uso da terra, medidas contra a escassez de alimentos, etc. Curiosamente, o penúltimo artigo do programa rezava: Todo cidadão brasileiro fica autorizado a matar ao tirano ex-Imperador D. Pedro I como o maior inimigo do Povo Brasileiro, no caso em que apareça em qualquer parte do território desta Província; a respeito porém de todos aqueles que lhe prestarem socorro de qualquer natureza que seja, ou seguir em o seu atraiçoado partido depois de convencidos do seu crime em o Tribunal competente, lhes será inflingida a pena de prisão perpétua com trabalho.

Ao receber, em resposta, a intimação para se renderem e declararem o que queriam, os sublevados não fizeram por menos. Responderam que queriam a federação – e descarregaram os canhões do Forte do Mar contra a Cidade da Bahia. As autoridades reagiram com presteza. Suspenderam o tráfego das embarcações do Recôncavo. Organizaram as forças repressivas na terra e no mar. Colocaram canhões nas encostas fronteiras ao forte. Enquanto isso, o canhoneio rebelde seguia golpeando o casario do Pau da Bandeira, da Rua Direita, da Ladeira da Montanha. Veio então o revide: “dos pontos altos começou a artilharia legalista a varrer a plataforma do forte com pontarias seguras que iam desmantelando os trens e berços dos canhões externos, ao tempo em que uma esquadrilha de navios e embarcações ligeiras... não só evitava a possível fuga dos amotinados como os isolava de qualquer contato com a terra” (Ruy). No dia 28, o Governo prosseguiu no ataque – e os federalistas já se viam em dificuldades com os seus canhões aleijados. No dia 29, a rendição. E a transferência dos rebeldes para um navio-prisão, a “presiganga”. Mas há um dado que pede para ser destacado. A vigilância marítima das forças governamentais, com a ronda noturna dos escaleres, não impediu que uma canoa deslizasse da cidade ao forte. Levava ela aos rebeldes a mensagem de que resistissem por mais dois dias, tempo necessário para se

organizar, e irromper na cena, a “conspiração da terra”. As autoridades interceptaram a canoa, em seu percurso de volta. Descobriram e apreenderam “uma boa porção de armamento e cartuchame em uma casa à ladeira da Praça”. Proibiram todo e qualquer ajuntamento de gente na cidade, mesmo de dia. Mas os “conspiradores de terra”, como os chamou o presidente da Província, não foram identificados. Teriam de se guardar, em todo caso. De esperar até novembro de 1837, quando, de fato, poderiam entrar em campo. Sim. No dia 6 de novembro daquele ano, começou uma revolta que, aliás, ensaiou ir além do federalismo, para acenar com a constituição, mesmo que estranhamente provisória, de uma Bahia independente. Foi a Sabinada, já devidamente estudada, entre nós, por Braz do Amaral, Luiz Viana Filho e, em especial, por Paulo Cesar de Souza, autor de A Sabinada – A Revolta Separatista da Bahia (1837). Bem vistas as coisas, a Sabinada, como os levantes de São Félix-Cachoeira e do Forte do Mar, se inscreve na maré tumultuária do período regencial (18311840, intervalo entre a deposição de um imperador e a posse de outro), uma das épocas mais confusas e convulsas da história política brasileira, quando até a integridade territorial da nação esteve em jogo. Nesse período, o Brasil atravessou, entre outras, as turbulências da Guerra dos Cabanos (Pernambuco, 1832-1835), da Cabanagem (Pará, 1835-1840), da Farroupilha (Rio Grande do Sul, 1836-1845), da Sabinada (Bahia, 1837-1838) e da Balaiada (Maranhão, 1838-1840). Mas há que fazer uma distinção básica. Boris Fausto assinalou, corretamente, que a Guerra dos Cabanos foi, sob alguns aspectos, uma antecipação da grande revolta sertaneja de Canudos, que seria recriada por Euclydes da Cunha, em Os Sertões. Afinal, os cabanos - os “guerrilheiros do imperador”, como os chamou Decio Freitas – lutaram pela Religião e pelo Império, combatendo as novidades revolucionárias irradiadas principalmente pela França. A Cabanagem amazônica, por sua vez, foi um violento movimento de massas que, como a Guerra dos Cabanos e a Balaiada maranhense, também desborda do enquadramento político-econômico das rebeliões que classificamos, ainda que com ressalvas, como “separatistas”. Neste caso, ficam a Farroupilha (que, em 1838, gerou a República de Piratini, presidida por Bento Gonçalves) e a Sabinada, antecedidas pela Confederação do Equador, que pipocou em Pernambuco, em 1824. Na verdade, o separatismo brasileiro foi sempre ambíguo, provisório, dilacerado e mesmo culpado. O que houve, sempre, foi o confronto com o Governo Central, instalado no Rio de Janeiro, cidade então vista como substituta de Lisboa, em seus gestos e ações para dominar e explorar as demais províncias do país. Revolta contra o Governo do Rio, portanto. E nunca um projeto clara e originalmente centrado na separação. Na fratura da unidade nacional. Os pernambucanos de 1824, antes que buscar o rompimento com o Brasil, sentiam-se expelidos da vida nacional. Não foi por acaso que alguém falou de “separatismo incoerente”, a propósito da Confederação do Equador. Os escritos de Frei Caneca (Typhis Pernambucano) são exemplares a esse respeito. Ele quer manter a integridade do Império e considera que a monarquia constitucional é um regime político superior aos demais. O choque entre o “absolutismo fluminense” e a “liberdade brasílica” é que vai empurrá-lo em direção ao federalismo e ao republicanismo. Ainda assim, o separatismo de Caneca e da Confederação do Equador é contraditório. A revolução é vista como

etapa necessária à configuração de “uma nova ordem de coisas, que há de curar tantas chagas domésticas e sustentar a vida a todo o Brasil”. Coisas semelhantes podem ser ditas da revolução sulina. “Os revolucionários [da Farroupilha] queriam a república, não passando o desmembramento dum meio acidental de conquistá-la. Jamais se obliterou nos chefes do memorável episódio o sentimento da nacionalidade. Bento Gonçalves fala aos deputados da constituinte rio-grandense: ‘Aproxima-se o dia em que banida a realeza da Terra de Santa Cruz, nos haveremos de reunir para estreitar laços federais à magnânima nação brasileira, a cujo grêmio nos chama a natureza, e os nossos mais caros interesses’”, escreveu o gaúcho Rubens de Barcellos, numa conferência incluída em seus Estudos Rio-Grandenses. Ou seja: nem a Farroupilha – cujas fileiras foram engrossadas por diversos revolucionários italianos, a exemplo do célebre Giuseppe Garibaldi, e que teve, em Bento Gonçalves, a sua grande personalidade – chegou a um separatismo radical e irreversível. E provisório foi o separatismo baiano. Coincidentemente, Gonçalves esteve um tempo na Bahia. Ficou preso aqui, no Forte do Mar, de junho a setembro de 1837, quando fugiu – menos de dois meses antes, portanto, da revolta dos “sabinos”. Sua fuga, de resto, não teria acontecido sem a cumplicidade baiana. “Em 10 de setembro, a pretexto de banhar-se no mar, ele nadou tranqüilamente para fora da prisão, e foi recolhido por um barco. Bento Gonçalves era maçom, e seus irmãos da maçonaria baiana desempenharam algum papel nesse acontecimento, em associação com dissidentes militares e civis. (...). Ou talvez os maçons e os conspiradores fossem os mesmos, considerando o caráter político das lojas maçônicas da época. Após uma breve estadia na cidade, onde certamente se encontrou com os que lhe haviam preparado a fuga, ele retornou ao Sul do país” (Paulo Cesar de Souza). Bem. A 6 de novembro, temendo a reação das autoridades, já que notícias da eclosão iminente de uma revolta circulavam pelas ruas e gabinetes da cidade, os rebeldes precipitaram o passo. Um bando de civis e militares proclamou, no Forte de São Pedro, a independência temporária da Bahia, durante a menoridade de Pedro II. Sabino e outros conspiradores se dirigiram para lá. Na seqüência, grupos de soldados rebelados ocuparam as vizinhanças da fortaleza. Era o Corpo de Artilharia se posicionando. Em resposta, as autoridades se articularam para sufocar o “motim”. Passaram a noite e madrugada concentrando soldados e marinheiros, cerca de trezentos homens armados, na Praça da Piedade. Na “hora h”, a surpresa. Em vez de obedecer ao comando de carregar as armas, soldados jogavam balas no chão. Passavam para o outro lado. E, assim, a maior parte da tropa aderiu ao “fatal delírio revolucionário”. Souza Paraizo (presidente da província) e Pinto Garcez (comandante das armas) não tiveram escolha: fugiram para barcos ancorados na baía. E Gonçalves Martins, o chefe de polícia, se mandou de saveiro para o Recôncavo, em busca do Engenho Cajaíba, de Argolo Ferrão. Assim, na manhã do dia 7 de novembro, os rebeldes vitoriosos – civis e militares – saíram do Forte de São Pedro, percorreram a pé o caminho que levava dali à Praça do Palácio, abriram a Câmara Municipal e, a toque de sino, convocaram uma sessão extraordinária da mesma, com o intuito de legitimar o que tinham feito. Isto é, de lavrar a ata da revolução, caracterizando-a como expressão da vontade popular. “Com irreparável clareza, o artigo primeiro [da ata] coloca a província ‘inteira e perfeitamente desligada do governo denominado central do Rio de Janeiro’. Ela

passa a ‘Estado livre e independente’, devendo se organizar uma Assembléia Constituinte para dotar o novo Estado de um ‘pacto fundamental’. A partir da Constituinte seria criada uma nova Assembléia”, escreve Paulo Cesar. Ao contrário da clareza, contudo, a própria ata se revelou reparável: no dia 11 de novembro, nova sessão da Câmara a emendou – a Bahia seria independente, sim, mas até ao dia em que Pedro II, completando a maioridade, pudesse assumir o posto de imperador. A derrota da Sabinada era de certo modo previsível. Como nas épocas da guerra contra os holandeses e da guerra da independência, tratava-se agora, para os anti-revolucionários, de sitiar a Cidade da Bahia. Apoiada pelos senhores rurais, a “aristocracia do açúcar”, a reação se organizou no Recôncavo, para onde se dirigia, levando dinheiro e víveres, o êxodo dos habitantes da capital. O novo presidente da província tomou posse em Cachoeira (mais uma vez, a capital provisória), o arcebispo se transferiu para Santo Amaro, etc. Paulo Cesar: “Igreja, Justiça, Legislativo, Alfândega, bancos: essa transferência representava a reconstituição do arcabouço institucional no Recôncavo, de modo a favorecer a ação contra a capital e minar a legitimidade que a Revolução pretendia assumir”. Havia, em suma, o aspecto de algum replay de uma partida já conhecida. Examinando a guerra da independência, Wanderley Pinho já remetia a estratégia do exército pacificador à campanha contra os holandeses, no século XVII: cercar a capital, apertar dia após dia o sítio, bloquear a saída marítima, reduzir a população à fome, para um dia realizar o ataque geral, tomando a cidade das mãos de defensores exauridos. Agora, com a Sabinada, assistiríamos a novo “repeteco”, ainda segundo Pinho – “a repetição da estratégia e tática antes usada na guerra da independência, isto é: Recôncavo contra Cidade em cerco, com vistas a exaurir seus ocupantes pela fome, com encontros, escaramuças, guerrilhas e combates, freqüentemente nos mesmos campos e sítios, e mais o bloqueio marítimo”. As forças reatoras, ou o “exército restaurador” (como os legalistas chamavam a tropa da legalidade, isto é, anti-sabina), formadas basicamente por cidadãos recrutados na Guarda Nacional, começaram a se concentrar na região de Pirajá. No final de novembro, eram duas brigadas: a de Pirajá, comandada por Ferrão, e a de Itapoã, comandada por Pirajá. O êxodo de Salvador para a interlândia continuava intenso. E o vice-presidente rebelde, João Carneiro, faria, no dia 21 de novembro, uma proclamação aos habitantes do Recôncavo, alertando-os contra o jogo manipulador e a “fraseologia fraudulenta” dos senhores rurais, “uma récua de desprezíveis e fofos aristocratas, que, à custa de vosso [do povo] sangue e de vossa liberdade, só têm em vista a defesa de seus lucros”. Mas o fato é que, como salientou Paulo Cesar de Souza, “a palavra irritada dos rebeldes – indicadora, aliás, do rumo de radicalização que os eventos tomariam – não condizia com sua inação”. Os sabinos pareciam ter cruzado os braços. Não partiam para cima do inimigo. Pelo contrário, deixavam que o sítio da capital ganhasse corpo e estrutura. Que o exército legalista se organizasse e se armasse. Talvez contassem com adesões de outros pontos da província (como, de resto, ocorreu na Vila da Barra, bela povoação à margem do Rio São Francisco). Mas a verdade é que estavam ilhados. Apartados, geográfica e militarmente, do movimento concreto da vida provincial. “Entre Salvador e o interior, o Recôncavo formava uma espécie de cordon sanitaire”. Começaram, então, as refregas. Dia 30 de novembro, os rebeldes atacaram o exército legalista na Campina e no Cabrito.

Perderam. Em início de dezembro, legalistas tentaram desembarcar em Itapagipe. Foram rechaçados. A 14 do mesmo mês, os sabinos investiram contra os legalistas acampados em Itapoã. Apanharam. Sitiados em Salvador, viram se apagar as chamas dos focos subversivos do interior (Feira de Santana, Vila Nova da Rainha, Jequiriçá) e começaram a experimentar os efeitos da escassez de alimentos. As forças da reação, ao contrário, recebiam dinheiro, armas, soldados. Auxílios vindos do Rio, de Pernambuco, de Sergipe. Janeiro. Salvador em plena crise. O fluxo dos retirantes não estanca. A fome aumenta. Um comandante rebelde deserta, passando com o seu barco de guerra, o brigue Trovão, para o lado legalista. Chega o mês de fevereiro. Nada melhora. Em meados do mês, o êxodo se intensifica. Nos dias 17 e 18, os rebeldes tentam mais uma vez furar o bloqueio terrestre do exército restaurador. São 35 horas de combate feroz. Dezenas e mais dezenas de mortos. Os legalistas triunfam. E o revolucionário Gomes de Freitas, chamando a atenção para “a imensidade de mulheres” nos acampamentos rebeldes, ironiza: em vez de Tropa de Marte, aqueles 4 mil homens formavam, na verdade, uma Tropa de Vênus. No final do mês, o exército restaurador conta com 4 ou 5 mil homens e espera reforços. Dezesseis navios fazem o bloqueio de Salvador. Sabino amaldiçoa os “caudilhos da escravidão”, os “infelizes liberticidas”, os “desgraçados escravos de Calmons”. Mas a revolução está encalacrada. Ainda assim, em março, os rebeldes jogam uma cartada atrevida. “Os ‘sabinos’ ou ‘raposas’, cingidos no abraço mortal do sítio, tentam romper a constrição que os asfixiava”, escreve Wanderley Pinho, prosseguindo: “Audazmente iludem o bloqueio dos ‘perus’ [legalistas], varando-o em noite de escura cerração uma flotilha de lanchas e barcos, para desembarcar, em Caboto, uma expedição comandada por Higino Pires Gomes. Em marcha acelerada, os expedicionários atravessam o Recôncavo de S. Francisco e Sto. Amaro para serem batidos em Humildes, nas proximidades da Feira de Santana”. Higino não conseguiu estabelecer uma “base sertaneja” de operações. Perseguido, avançou para o interior, cavaleiro andante, sem norte e sem sorte, perdido e se fazendo perder. Enquanto isso, a Cidade da Bahia sofria o ataque final do exército restaurador. Tudo se deu mais ou menos de improviso. Do outeiro do Bate-Folha – no “ponto em frente do Candomblé”, segundo relato da época –, um canhão rebelde começou a disparar contra a Brigada de Pernambuco, que viera para reforçar os legalistas. Na madrugada de 13 de março, os pernambucanos atacaram o Bate-Folha. Em seguida, São Caetano. E o ataque se alastrou. Teve início “a penetração e conquista da Cidade, bairro a bairro e rua a rua” (Pinho). Legalistas avançavam a partir do Retiro, de Itapagipe, de Itapoã. No dia seguinte, 14 de março, estavam na Lapinha, na Quinta dos Lázaros, em boa parte da Cidade Baixa, no Rio Vermelho. À noite, concentraram-se enfim na Praça da Piedade. Foi “a noite mais triste da história de Salvador”, no dizer de Paulo Cesar Souza. “Incêndios clareavam vários pontos da cidade. O fogo consumia cerca de 70 sobrados, a maioria na Conceição da Praia [mas também na Piedade, nos Barris, na Ajuda, em São Pedro] – provocado pelos vencidos, em desespero e embriaguez, e pelos vencedores, para desentocar inimigos. Soldados rebeldes foram atirados às chamas, e também simples moradores. (...). A cidade nunca vivera tamanha destruição e selvageria. O colapso das normas de conduta, tão comum nos tempos de guerra, manifestou-se em

saques, estupros, assassínios. (...). O célebre major negro Santa Eufrazia matou-se para não morrer pela mão do inimigo”. Na tarde do dia 15 de março, o Forte de São Pedro se rendeu. Em seguida, vieram as rendições das fortalezas da Gamboa e do Mar. Adiante, um outro cenário: “a paixão e a crueldade das punições” (Pinho), enquanto soldados legalistas prosseguiam caçando sabinos ou suspeitos de rebeldia nas matas e nos surbúrbios da cidade. Chegou-se, assim, ao fim da aventura. O sonho transformador fora destroçado. Cruel e cruentamente destruído. Cabem aqui, neste final, umas duas ou três palavras acerca de Sabino e da natureza do projeto revolucionário que levou seu nome. Sabe-se que, antes de se tornar líder do movimento de 1837, o médico Francisco Sabino – um mulato de estatura mediana, olhos azuis, testa alta e larga, crespos cabelos castanhos, leitor de Rousseau, Tocqueville, Pope e Milton – já era figura conhecida na Cidade da Bahia. Participara da resistência à posse de Madeira de Melo em 1822. Lutara na guerra da independência, quando chegou a ser preso, em conseqüência de seu radicalismo, por ordem de Labatut. Apoiara o levante do Batalhão dos Periquitos, em 1824. Candidatara-se ao cargo de cirurgião-mor do Hospital Militar, para ser escanteado por conta de seu “espírito exaltado”. Convertera-se em jornalista, editando o Investigador Brasileiro e, mais tarde, o Novo Diário da Bahia. Virulento, praticou agressões e cometeu assassinatos. De sua primeira vítima, sabemos apenas o nome, mas não os motivos e circunstâncias do homicídio. O assassinato cometido em novembro de 1833, ao contrário, acha-se documentado. Xingado na rua (talvez com referência às suas inclinações homossexuais) pelos irmãos Vicente Ribeiro Moreira (seu adversário político, editor do Jornal do Comércio) e José Joaquim, Francisco Sabino bateu de bengala no primeiro. O segundo jurou então que iria matá-lo. No mês seguinte, final da manhã do dia 7, Sabino se engalfinhou com José Joaquim em plena rua, na frente da Câmara Municipal, matando-o com um bisturi. Foi condenado a seis anos de prisão – mas, depois de um ano de cadeia, conseguiu indulto imperial. Fiz, no parágrafo anterior, referência ao homossexualismo. Sim: o nosso mulato sofisticado e subversivo, exibindo os seus grandes olhos azuis, era homossexual. Ou melhor – em matéria de sexo, nada lhe era estranho. Sabino aceitava homens e mulheres. Foi por isso mesmo (pela “perversão sexual da virilidade”, como disse Luiz Viana Filho) que, pouco antes de assassinar o alferes José Joaquim, viu-se implicado na morte de sua própria mulher, a jovem Joaquina Gonçalves, que então contava com 25 anos de idade. Era noite. Em sua casa, no Castanheda, Sabino, deitado na rede, entregava-se a um homem. Ou, na linguagem do processo depois instaurado, estava ele “servindo-se de um homem preto como se fora mulher”. Foi então que a sua esposa entrou na área, flagrando-o. Surpreendido em plena prática homoerótica, Sabino, que andava pelos seus 37 anos de idade, investiu contra a mulher, empunhando uma faca. Na confusão (e no escuro), ela rolou pela escada, fraturando um braço, que infeccionou. Parece que Sabino fez o que pôde para salvar a moça. Mas ela acabou morrendo de tétano – e ele respondeu a processo. “Subversivo e homossexual: os homens grados da província certamente se apavoraram com a idéia de serem governados por um homem no qual viam esses predicados”, comentou Paulo Cesar. Subversivo, homicida e homossexual, seria mais exato dizer. Aliás, ficou célebre a cena do grande

proprietário Antonio da Rocha Pita e Argolo, que, ao oferecer 60 homens para lutar nas fileiras legalistas, disse: “Dou esta gente não porque não adote a revolução, que acho boa, mas porque não quero ser governado pelo Dr. Sabino”. Cerca de cem anos mais tarde, o próprio Instituto Geográfico e Histórico da Bahia, numa atitude escandalosa para uma instituição de sua natureza, ocultou do público a documentação referente ao homossexualismo, alegando que ela continha “minúcias imorais e desabonadoras da memória de Sabino”. Quanto ao caráter mesmo da revolução, há controvérsia. Da primeira manifestação da Sabinada, no Forte de São Pedro, Sérgio Velloso fala que foi aclamada “a independência desta Província, durante a menoridade do nosso Imperador”. A sessão de 7 de novembro, na Câmara, não fez a ressalva. Anunciou que a Bahia estava “inteira e perfeitamente” desligada do Governo Central. Só. Mas em nova sessão, no dia 11, o “lapso de pena” foi corrigido: a separação iria apenas até à maioridade de Pedro II. E é possível citar mais documentos, falando tanto de separação temporária quanto de separação pura e simples. Paulo Cesar de Souza: “A declaração de fidelidade a Pedro II, em 11 de novembro, dividiu os comentaristas posteriores da revolução quanto à sua natureza. Viram-se diante de algo inusitado: uma revolução suicida, criando um Estado que se abolia no próprio ato da fundação, ao predeterminar seu tempo de vida – seis anos, pois o imperador completaria 18 em 1843. Sacramento Blake se refere à ata do dia 11 como ‘a ata da contra-revolução’. Braz do Amaral toma-a como prova conclusiva de que o movimento não foi republicano. Mas para Luiz Viana Filho, ela representou um recuo tático momentâneo, que não comprometeria o caráter republicano-separatista da Sabinada”. Entre os comentaristas não citados por Paulo, Wanderley Pinho (secundado por Luís Henrique) lembra que os lineamentos da “forma federativa” proposta em 1832-1833, de acordo com a formulação dos próprios rebeldes, se continham em governar-se a Bahia, nos seus negócios internos, “independentemente de qualquer outra Província, fazendo porém aliança com todas as mais, bem como obedecendo ao chefe da Nação, o Senhor D. Pedro II, em os negócios gerais dela”. Teríamos, portanto, um federalismo monárquico. Com relação à Sabinada, especificamente, Pinho sublinha sua lealdade ao imperador e fala de um separatismo provisório. “O separatismo provisório, como o acatamento ao Monarca, é ainda exposto em proclamações, manifestos, ordens do dia, hinos, versos e ‘vivas’ publicados pela imprensa rebelde durante o correr da luta”. Ao mesmo tempo, não é difícil encontrar textos sabinos que falam de república. Como seria algo esdrúxulo um movimento monárquico-republicano, melhor reconhecer que não havia homogeneidade, mas projetos diversos, no bojo da Sabinada. Fala-se de separação e, simultaneamente, de integridade imperial. De monarquia e de república. Está certo Paulo Cesar Souza, portanto, quando diz que aquele foi um movimento “caótico nas ações e contraditório nas intenções”. Mas é claro que havia pontos em comum que costuravam as coisas. De uma perspectiva ampla, pode-se dizer então que a Sabinada foi uma revolta contra o poder central e o governo da província. Radicalizando-se, assumiu, ainda, um discurso violentamente antiaristocracista. A revolta contra o Governo Central significava, no entender dos rebeldes, a luta contra a exploração da Bahia pelo Rio de Janeiro. No Rio estavam os “tiranos do interregno” (a regência); o

Rio representava a “união recolonizadora”. É o que lemos na imprensa dos sabinos. Para eles, Lisboa fora derrotada com a independência do Brasil – mas o Rio ocupara o seu lugar. O revolucionário Veiga Muricy falava, com um toque barroco, do “aurissedento governo central do Rio de Janeiro”. E Francisco Sabino, atacando esse mesmo governo aurissedento, disparava: “o monopólio da corte se conserva; tudo para lá vai; tudo só lá se pode ver; ... dinheiro só circula na corte; a pobreza e miséria das províncias vai em espantoso aumento”. Ou ainda, numa carta: “Não é possível que deixais de reconhecer a marcha franca e patente do governo do Rio em recolonizar o Brasil”. A luta contra o Rio era, por isso mesmo, uma luta anticolonialista. Daí que a Sabinada visse a si mesma, nos termos da formulação do Novo Diário da Bahia, como “uma segunda Revolução da Independência”. Ora, a luta contra o Governo Central passava, necessariamente, pelo enfrentamento do Governo Provincial. Aqui, havia dois aspectos. De uma parte, a submissão ao Rio de Janeiro. De outra, a própria má administração da Província. Sérgio Velloso era claro: o Governo da Província vivia aos pés de “seus senhores do Rio de Janeiro”. Além disso, desde as revoltas de 1832-1833 os federalistas discursavam sobre a urgência de reformas administrativas na Província – especialmente, no que dizia respeito ao poder judiciário. Do mesmo modo, o antiaristocracismo. Os sabinos viam a aliança do Governo Central com os senhores do Recôncavo. Foi essa percepção, de resto, que deu, mesmo que aqui e ali ambiguamente, um conteúdo de classe à revolução. Num editorial do Novo Diário da Bahia, lia-se: “A faculdade que esta classe opulenta [a aristocracia] tem de dispor de todos os meios, a miséria em que vegeta o resto da população, vêm paulatinamente operando tal distinção de indivíduos, que uns constituem a classe dos opressores, quando os outros formam a classe dos oprimidos”. Foi assim que, no dizer de Paulo Cesar, “o que se iniciou sobretudo como rebelião separatista da província [ainda que de um separatismo condicional] foi tomando feições de confronto entre pobres negro-mestiços e ricos branco-mestiços”. Mas a Sabinada não avançou ao ponto de colocar em questão o sistema escravista. É verdade que o governo revolucionário patrocinou uma espécie de alforria coletiva condicional. Isto é, se dispôs, pela necessidade de homens para a luta armada, a libertar escravos. Mas desde que estes preenchessem duas condições. Primeiro, tivessem nascido no Brasil; segundo, pegassem em armas contra os legalistas. Foi uma alforria para crioulos que estivessem dispostos a virar soldados. Mas só para crioulos. Os africanos não teriam chance. Ainda pairava no ar o medo dos malês. Mesmo assim, a medida do Governo provocou reação na tropa sabina. Não só de comandantes, como Gomes de Freitas e Sérgio Velloso. Mas, também, de negros e mulatos livres. Nesse particular, ao menos, a Sabinada ficou aquém da Conspiração dos Búzios.

BACHARÉIS E MULATOS São palavras de Gilberto Freyre, em Sobrados e Mucambos: “É impossível defrontar-se alguém

com o Brasil de Dom Pedro I, de Dom Pedro II, da Princesa Isabel, da campanha da Abolição, da propaganda da República por doutores de pincenez, dos namoros de varandas de primeiro andar para a esquina da rua, com a moça fazendo sinais de leque, de flor ou de lenço para o rapaz de cartola e de sobrecasaca, sem atentar nestas duas grandes forças, novas e triunfantes, às vezes reunidas numa só: o bacharel e o mulato”. É claro que bacharéis e mulatos não foram flores nascidas nos canteiros afrancesados e anglicizados do século XIX. Vinham, obviamente, de muito antes. Ficaram famosos alguns dos nossos bacharéis seiscentistas, criados aqui no colégio dos jesuítas e, posteriormente, polidos e envernizados nas aulas e farras de Coimbra. Gregório e seu irmão Euzébio de Mattos foram bacharéis baianos. Mais tarde, no século XVIII, bacharéis pontificaram nas academias, praticando aquela retórica balofa e ornamental que, por isso mesmo, veio a ser premiada com o rótulo de “bacharelesca”. Foi justamente naquele século XVIII que os bacharéis – e “doutores”, de um modo geral, isto é, indivíduos “formados”, com curso “superior” – lograram se afirmar de fato no horizonte político de nossa sociedade. Militando, frise-se desde logo, não apenas do lado do poder colonial, mas também, e especialmente, nas falanges e fileiras da insubordinação e da revolta, onde cultivaram sonhos e projetos de autonomia nacional e mesmo de liqüidação da monarquia, com a implantação do sistema republicano. Espíritos esbraseados de advogados e de médicos, como Claudio Manoel da Costa e Cipriano Barata, por exemplo. Gente que se alimentou de iluminismo europeu – e desejou esclarecer os trópicos. Do mesmo modo, é antiga entre nós a figura do mulato. Comparece já na armada colonizadora de Thomé de Sousa. E se multiplicou por aqui. Não me refiro, aviso, a mulatos que não se percebiam nem eram percebidos como tais, a exemplo do padre Antonio Vieira. Mas à multidão de mestiços de negro e de branco que, investidos de sua própria mestiçagem, foram ocupando sempre mais espaço em nossa vida colonial. Em princípios do século XVIII, por sinal, o jesuíta Antonil, que fora contemporâneo de Vieira e reitor do Colégio da Bahia, escrevia a seguinte passagem sobre o, digamos, “poder mulato” (poder de sedução, sobretudo; poder sexual) nos trópicos brasileiros: “Melhores ainda são para qualquer ofício os mulatos; porém muitos deles, usando mal dos favores dos senhores, são soberbos, e viciosos, e prezam-se de valentes, aparelhados para qualquer desaforo. E contudo eles, e elas da mesma cor, ordinariamente levam no Brasil a melhor sorte; porque com aquela parte de sangue de Branco, que têm nas veias, e talvez dos seus mesmos senhores, os enfeitiçam de tal maneira, que alguns tudo lhes sofrem, tudo lhes perdoam; e parece, que senão atrevem a repreendê-los, antes todos os mimos são seus. E não é fácil decidir, se nesta parte são mais remissos os senhores, ou as senhoras; pois não falta entre eles, e elas, quem se deixe governar por mulatos, que não são os melhores; para que se verifique o provérbio, que diz: Que o Brasil é Inferno dos Negros, Purgatório dos Brancos, e Paraíso dos Mulatos, e das Mulatas; salvo quando por alguma desconfiança, ou ciúme, o amor se muda em ódio, sai armado de todo o gênero de crueldade, e rigor. Bom é valer-se de suas habilidades, quando quiserem usar bem delas, como assim o fazem alguns; porém não se lhes há de dar tanto a mão, que peguem no braço, e de escravos se façam senhores.” Ao longo desse mesmo século XVIII, conquistando sua alforria com maior facilidade, mulatos foram se distanciando mais e mais dos pretos. Foram avançando na hierarquia social. A rivalidade

entre eles e os negros assumiu, então, aspectos progressivamente ásperos. Vilhena: “Quase todos os mulatos ricos querem ser fidalgos, muito fofos, e soberbos, e pouco amigos dos brancos, e dos negros, sendo diferentes as causas”. De outra parte, os malês pretenderam matar os brancos da Bahia, mas poupar os mulatos – para usá-los como escravos. Mulatos em destaque. Stuart B. Schwartz: “O temor às agitações ou rebeliões escravas foi endêmico na sociedade baiana, mas em fins do século XVIII as apreensões dos senhores de engenho e comerciantes passaram a incluir também a crescente população de cor livre, boa parte da qual abrangia o campesinato rural. O controle da ‘mulatada’ tornou-se cada vez mais uma preocupação entre as classes proprietárias”. E veio a Revolução dos Alfaiates. Nesta, aliás, vamos encontrar um sujeito como José de Freitas Sacoto, mulato que, além de praticante de cirurgia, comerciava com ouro. Era conspirador. Depois do fracasso da reunião do Campo do Dique, tentou ele escapar da repressão. Para isso, manobrou nos “setores altos” da sociedade baiana, conseguindo um passaporte assinado pelo próprio governador Fernando José de Portugal, para viajar para fora da cidade. Ou seja: um mulato com um invejável capital de relações sociais. Mas é no século XIX que doutores e mulatos ganham extrema visibilidade, numa onda inédita de ascensão social e política. Onda que se produz, como os estudiosos não se cansam de repetir, em conseqüência do incremento do processo de urbanização da sociedade brasileira no período imperial. Alguém já disse, corretamente, que bacharéis e mulatos foram, principalmente, produtos das cidades e das plantações litorâneas. É nos centros urbanos que eles discursam, empunham a pena, alojam-se na burocracia, abrem escritórios, engajam-se na imprensa, promovem campanhas políticas. Lembrem-se de que o doutor Sabino, como tantos outros mulatos, foi um reformador urbano. É claro que ganhar projeção era coisa muito mais fácil para um bacharel branco do que para um bacharel mulato. Para este, o estigma da cor, da ascendência imediatamente retraçável ao ambiente infra-humano da senzala, nunca deixou de pesar. Ao contrário, tudo favorecia o doutor branco educado em escolas européias, fosse ele filho de senhor de engenho, de fazendeiro ou de comerciante. Mesmo para o branco pobre, educado com algum sacrifício, o caminho estava aberto. Especialmente se, além de trazer a auréola da educação francesa ou inglesa, conseguisse ele seduzir alguma mocinha rica, de família poderosa, realizando mais que oportuno casamento. Já o bacharel de origem pobre, evidentemente mulato, encontrava, como disse, obstáculos. Quanto mais visíveis os seus traços negróides, mais complicadas as coisas se tornavam. Antes de mais nada, tinha que atravessar dificuldades já para poder estudar. Não raro, era bancado pela mãe, mulata livre, pequena negociante que retirava de sua quitanda o necessário para custear os estudos do filho. Ainda assim, escrevendo na primeira metade do século XIX, Tiburtino Moreira Prates – autor de uma tese surpreendente para o nosso meio, na época, A Identidade da Espécie Humana, onde desmonta preconceitos raciais – informa que 50% dos estudantes da Escola de Medicina da Bahia eram “incontestavelmente mulatos”. Os “incontestavelmente brancos”, segundo sua pesquisa, não passavam de 20%. E aí vemos como se ampliara a faixa do mulato doutor. Outra possibilidade para a ascensão social do mulato – numa época em que o futebol inexistia e a música popular ainda não se convertera em mina de moedas e prestígio – estava na carreira militar.

Fala Freyre: “a farda do Exército, os galões de oficial, a cultura técnica do soldado, a carreira militar – sobretudo a híbrida de militar-bacharel – foi outro meio de acesso social do mulato brasileiro”. E ainda: “É fácil de compreender a atração do mestiço pela farda cheia de dourados de oficial do Exército [a Marinha, até recentemente, quis se fantasiar “ariana”]. Farda agradável à sua vaidade de igualar-se ao branco pelas insígnias de autoridade e de mando e, ao mesmo tempo, instrumento de poder e elemento de força nas suas mãos inquietas”. O título, civil ou militar, “branqueava”. Em graus e circunstâncias variáveis, evidentemente. Ficou famosa, a propósito, uma passagem de Johann Moritz Rugendas sobre o assunto, em sua Viagem Pitoresca Através do Brasil. Depois de fazer uma observação de caráter geral (“Quando a origem, as alianças, as riquezas ou o mérito pessoal permitem a um mulato ambicionar um lugar, é muito raro... que sua cor ou a mistura de seu sangue se tornem um obstáculo para ele”.), narra o pintor e desenhista alemão: “...nada caracteriza melhor o estado das idéias dominantes do que essa resposta de um mulato, ao qual se perguntava se determinado capitão-mor era também mulato. ‘Era, respondeu ele, porém, já não é’. E como o estrangeiro desejasse uma explicação para tão singular metamorfose, o mulato acrescentou: ‘Pois, Senhor, capitão-mor pode ser mulato?’”. Bem casado, ostentando título vistoso, o mulato se tornava, para quase todos os efeitos, branco. Esse branqueamento não era somente conferido pela classe privilegiada, mas ansiosamente desejado pelos mulatos. Na boa definição de Moema Parente Augel, tratava-se de uma espécie de “segunda carta de alforria”. Mas é evidente que isso não abolia, simples e definitivamente, o estigma social. A qualquer momento, o mulato poderia ser fundamente ferido pela flecha racista. Para ele mesmo, a referência racial, a realidade de sua mestiçagem, a densidade da ascendência africana, assumiam o caráter de uma onipresença. Daí a sua insegurança essencial. A insegurança mulata. E todo o elenco de defesas psicológicas que ela produz e desenvolve. Aqui é o mulato que nega a sua origem mestiça ou que renega a mulataria; ali, ao contrário, é o mulato que exibe desafiadora e até agressivamente a sua mulatice. Astúcia, submissão, disfarce, identificação com os brancos e seus preconceitos antimulatos – tudo faz parte desse jogo. E tudo pode acentuar o sofrimento, tudo pode acender a dor. “Mas um ex-escravo, um filho de negra, um – mulato! – E, como hei de transformar todo meu sangue, gota por gota? como hei de apagar a minha história da lembrança de toda esta gente que me detesta?” – pergunta-se a personagem de Aluizio Azevedo, em O Mulato. Gordon W. Allport, que examinou questões dessa espécie em seu The Nature of Prejudice, fala ainda da busca de “símbolos de status”, por parte de vítimas de preconceito. Entre outras coisas, através do domínio ou do suposto domínio da língua. “Um curioso exemplo dessa busca de símbolos de status pode achar-se no uso pretencioso da linguagem. As palavras ribombantes podem parecer, à pessoa privada de status, um meio de elevar-se na escala social. Uma dicção elegante e um vocabulário amplo (mesmo que salpicado de despropósitos) pode ser encontrado em certos indivíduos, que traem assim claramente o seu ardente desejo de um status educacional que em realidade não possuem”. É mais do que célebre, entre nós, a figura do preto ou do mulato pernóstico. Freyre cita anúncios de procura de escravos fugidos, publicados em nossos jornais oitocentistas, que se referem a casos de escravos mulatos “muito poetas no falar”. Antes que mero estereótipo racista, o

“mulato pernóstico” é uma entidade que, sobrevivendo ainda hoje, deve ser examinada em pauta sociológica. A empáfia lingüística nasce no terreno movediço da busca mulata de símbolos-de-status. “Se falasse com demasiada simplicidade, talvez as más línguas denunciassem traços da herança materna [negra] em seus versos”, disse Roger Bastide, a propósito de Silva Alvarenga. O mulato sempre quis “falar difícil”, porque via a classificação social de quem sabia “falar difícil”. Seja como tenha sido, bacharéis brancos e bacharéis mulatos ocuparam espaço. E muito. A Revolução dos Alfaiates já reclamava por uma meritocracia imune ao critério da cor. Um pouco adiante, em 1810, o pernambucano Manuel de Arruda Câmara conclamava, em sua carta-testamento: “...não se importem com essa acanalhada e absurda aristocracia ‘cabundá’ que há de sempre apresentar fúteis obstáculos. Com monarquia ou sem ela, deve a gente de cor ter ingresso na prosperidade do Brasil”. E teve. “Em 1845, já em pleno domínio o segundo Imperador e em pleno funcionamento as Faculdades de Direito do Recife e de São Paulo, à frente da administração das províncias e nas maiores responsabilidades políticas e de governo começaram a só aparecer homens formados”. Apogeu dos bacharéis brancomestiços e negromestiços: o segundo reinado. Mais Freyre: “Porque ninguém foi mais bacharel nem mais doutor neste País que Dom Pedro II. Nem menos indígena e mais europeu. Seu reinado foi o reinado dos bacharéis”. Enfim, não foi por mero acaso que o século XIX viu surgir, no campo da produção literária brasileira, um romance como O Mulato, de Aluizio Azevedo. A personagem principal desse romance é um mestiço, filho de um branco contrabandista de escravos e de uma escrava negra – Raimundo, que “seria um tipo acabado de brasileiro”, não fossem os seus grandes olhos azuis. Com seus cabelos pretos, lustrosos e crespos, sua “tez morena e amulatada”, suas pestanas eriçadas e seus olhos azuis, Raimundo é o típico bacharel mestiço, formado em Coimbra, com anos de viagens por vários países da Europa. Lá, ensaiou versos líricos e se deixou imantar pelas “idéias revolucionárias” então em voga. Bem, Raimundo termina assassinado, na trama de um livro romântico-natura-lista. No mundo real, todavia, o Brasil assistiu ao triunfo dos “raimundos”: dos bacharéis, dos doutores, semidoutores e paradoutores brancos e mulatos. À projeção pública de uma juventude que, ainda na escola, batalhava já pela Abolição e pela República. E o fato é que a mestiçagem continuou, atravessando classes e cores, matizando genes e gentes, aumentando a mulataria.

A PESCA DA BALEIA Vigoravam aqui, pouco antes da chegada dos portugueses, métodos e técnicas de pesca dos colonizadores tupinambás, certamente com traços de grupos indígenas que haviam ocupado anteriormente a região. Para lembrar uma expressão que José Veríssimo empregou, a propósito dos índios amazônicos, os tupinambás da Bahia eram “ictiófagos”, comedores de peixe. E peixes não se ausentavam de nossos litorais. Além da abundância de espécimes, havia a habilidade pesqueira

ameríndia. Resultado: fartura. No diário da expedição de Fernão de Magalhães, primeira viagem ao redor do mundo, o italiano Antonio Pigafetta, ao mencionar a orla brasílica, diz que os índios trocavam, por um espelho ou uma tesoura, “pescado suficiente para comerem dez pessoas”. E eles pescavam, basicamente, com arco e flecha. Jean de Léry: “Começarei dizendo que os selvagens chamam ao peixe, genericamente, pirá, dando nomes particulares às diversas espécies... Quando os vêem assim em bandos, aproximam-se os selvagens de repente e com flechadas certeiras em poucos momentos fisgam muitos peixes. Como, feridos, não podem ir ao fundo, os flechadores os apanham a nado”. Mas os tupinambás conheciam, também, outras pescarias. Sabiam do anzol, do arpéu, do recurso à armadilha, da técnica do envenenamento de peixes. Seus anzóis eram espinhos vegetais ou espinhas de peixe, amarrados ao cabo de linhas de tucum, planta que, conforme Léry, “se desfia como cânhamo e é muito mais forte”. As próprias canoas ameríndias, inclinadas contra a maré vazante, eram usadas como armadilhas. Havia, ainda, as armadilhas feitas com paus e pedras, tapagens no remanso das águas. Eram as chamadas camboas ou gamboas de pescar, barreiras construídas para reter peixes. Além disso, os índios empregavam redes e ervas entorpecentes – como o timbó e o tingui, de onde nos veio o verbo “tinguijar”, que ainda hoje encontramos no falar dos pescadores baianos, assim como na prosa de Xavier Marques –, envenenando a fauna marinha. Enfim, aqueles índios pescavam com instrumentos extraídos do mundo natural. Não confeccionavam artefatos pela submissão de matérias ambientais a procedimentos tecnológicos mais complexos. Esse repertório pesqueiro vai se modificar, radicalmente, a partir do contato com europeus. Assim como trouxeram facões e machados, provocando alterações profundas no modo ameríndio de agricultar, os europeus introduziram o anzol de ferro no meio indígena. Trouxeram também para os trópicos, entre outras coisas, a técnica da pesca da baleia. É certo que os índios conheciam muito bem o peixe imenso, que chamavam pirapuama, mas jamais haviam se aventurado a farpeá-lo. Seu equipamento tecnológico não autorizava tal atrevimento. Na verdade, as atividades baleeiras só foram iniciadas, aqui, no século XVII. Como se sabe, os moradores da Bahia de Todos os Santos aprenderam a pescar baleias com um marinheiro basco, Pedro de Urecha, para cá trazido, em 1602, pelo governador Diogo Botelho. Logo no início do século XVII, a Ilha de Itaparica já contava com as suas primeiras feitorias de pesca, voltadas para a captura e o tratamento do grande cetáceo. E os que se empenhavam nesse mister eram chamados a gente do azeite. “Em 1606, o português João Francisco de Oliveira constrói a sua Armação de Baleias, na Ponta da Cruz”, espaço ilhéu, informa o velho Ubaldo Osório, avô do romancista João Ubaldo Ribeiro, em A Ilha de Itaparica – História e Tradição. Conta Frei Vicente do Salvador que, alguns anos depois, em 1624, os invasores holandeses iam já numa nau à Ponta da Cruz, para “a carregarem de azeite ou graxa de baleia, que aí havia (porque aquele é o lugar onde se faz)”. Segundo o frei, era no mês de junho que as baleias entravam massivamente no golfo azul da Bahia. Entravam em “grande multidão”, parindo filhotes grandes como cavalos. E assim começava a temporada pesqueira, com lanchas e arpões. Ainda Frei Vicente:

seguida-mente arpoada, e ferida por “lanças de ferros agudos a modo de meias luas”, a baleia “dá grandes bramidos com a dor, e quando morre bota pelas ventas tanta quantidade de sangue para o ar que cobre o sol e faz uma nuvem vermelha, com que fica o mar vermelho, e este é o sinal que acabou e morreu”. A baleia era então conduzida, vogando, até Itaparica. E o fato é que, durante séculos, o negócio baleeiro foi fundamental para a economia daquela ilha. Não é sem razão, portanto, que baleias comparecem entre os elementos itaparicanos que freqüentam versos de Gregório de Mattos. Na poesia do Boca do Inferno, como vimos, Itaparica é sinônimo de areias alvas, praias alegres, frutos marinhos, frutas frescas, baleias e putas. Também na Descrição da Ilha de Itaparica, escrita no século seguinte por Frei Santa Maria, a baleia terá todo o destaque. “Baleia vulgarmente lhe chamamos,/ Que como só a esta Ilha se sujeita,/ Por isso de direito a não deixamos,/ Por ser em tudo a descrição perfeita”, redige o frei, continuando (note-se, aliás, o neologismo “brásilo”, que o poeta emprega no sentido de ‘brasil’ ou de ‘nativo’): Tanto que chega o tempo decretado, Que este peixe do vento Austro é movido, Estando à vista de terra já chegado, Cujos sinais Netuno dá ferido, E de todo o preciso prevenido, Estão umas lanchas leves e veleiras, Que se fazem cos remos mais ligeiras. Os Nautas são etíopes robustos, E outros mais do sangue misturado, Alguns mestiços em a cor adustos, Cada qual pelo esforço assinalado: Outro ali vai também, que sem ter sustos Leva o arpão da corda pendurado, Também um, que no ofício a Glauco ofusca, E para isto Brásilo se busca.

O processo de captura e industrialização do peixe, no Brasil daqueles dias, acontecia na Bahia de Todos os Santos, no Rio de Janeiro e em Santa Catarina. Na Bahia, como ficou dito, a indústria da baleia se concentrou, pelo menos até ao século XVIII, em pontos da Ilha de Itaparica, como Ponta de Areia, Gameleira e Amoreiras, onde hoje negros e mestiços de filiação ou opção nagô celebram seus ancestrais, chamados “eguns”. Lembre-se, a propósito, de que, em Viva o Povo Brasileiro, João Ubaldo recria a vida senhorial e escrava numa armação itaparicana, de onde se projeta a figura de Perilo Ambrósio, o Barão de Pirapuama – palavra que, em tupi, como vimos, significa exatamente baleia. E cada baleia rendia, então, entre vinte e trinta pipas de azeite. Dados estatísticos disponíveis indicam que, em 1768, por exemplo, foram farpeadas e processadas industrialmente 146 baleias, safra média, nada saliente. Mas o negócio nunca foi insignificante. Daí a observação de Oliveira Lima, em sua leitura geral do Brasil à época da chegada de D. João VI, de que a riqueza baiana não

provinha, naqueles tempos, somente das “fontes ordinárias” do algodão e do açúcar, mas também “do cultivo do fumo e da pesca da baleia”. “A exploração da indústria de cetáceos era monopólio real, arrendado a particulares mediante pagamento de somas consideráveis... Em 4 de abril de 1801, foi determinado o fim do monopólio e do contrato, incorporando-se as armações no patrimônio do Estado. O fim do estanco ligava-se a uma série de fatores. A ação dos pescadores ingleses e americanos nas ilhas Malvinas e a grande devastação da espécie desmotivaram novos pretendentes ao contrato régio”, afirma José Jobson de Andrade Arruda, em capítulo escrito para o volume O Império Luso-Brasileiro 1750-1822, coordenado por Maria Beatriz Nizza da Silva. Mas o fim do monopólio não fez com que o negócio se tornasse menos lucrativo. Em 1817, foram arpoadas, em águas baianas, mais de 230 baleias. Para que se tenha idéia mais precisa do que isto significava, uma baleia rendia, somente em óleo, sem contar as suas muitas arrobas de carne, o equivalente ao valor de dez escravos jovens e sadios. Se, em um ano, fossem capturadas 200 baleias, a soma resultante da venda do óleo daria para a compra de dois mil escravos. E a atividade pesqueira prosseguiu intensa nas primeiras décadas do século XIX. Em seu livro Brasil, o parisiense Ferdinand Denis, fazendo anotações sobre a Bahia oitocentista, observava que, em Salvador, o viajante estrangeiro podia assistir a “um espetáculo”, que se renovava com freqüência, de que raras vezes alguém chegaria a gozar em outras cidades brasileiras. Era a pesca da baleia. Na descrição de Denis, as águas da Bahia de Todos os Santos eram sulcadas, em todas as manhãs do mês de junho, por dezenas de barcos que, desenrolando as suas velas brancas, saíam em direção aos grandes cetáceos. Cada embarcação levava dez homens, “dos quais oito são remeiros, um patrão [chefe do barco] e um arpoador”. O arpoador ia de pé na proa, tendo ao alcance da mão os arpões. “Vemo-lo com um pé atrás, segurando na mão o ferro que escolheu. Mostra-se a baleia numa posição favorável, ele o vibra com todo o vigor do seu braço, à distância de quinze ou dezoito pés... Já o sangue jorra. O mar fica tinto. Logo que a baleia fica realmente ferida, colhe-se a vela, separa-se da haste o ferro... cada movimento do animal ferido e furioso arrasta então o barco; reparando-se na irregularidade destes movimentos, compreende-se quanta destreza é necessário conservar na manobra para evitar que o barco soçobre. Algumas vezes, perecem nesta luta equipagens [tripulações] completas; e, na época em que estas notas foram escritas [entre 1816 e 1819], três barcos naufragaram com trinta homens que neles iam. O fisgador, sempre em pé na proa, indica os movimentos da baleia ao patrão, que procura governar o barco. A disputa entre o monstro e o frágil batel pode durar de trinta minutos até três ou quatro horas... O fisgador redobra os seus golpes; uma água misturada de sangue jorra por todos os lados; o animal mergulha, e às vezes salta com furor. Com freqüência, o baleeiro é arrastado à distância de duas ou três léguas para o mar alto, e os que assistiram ao começo da luta não podem ver-lhe o fim... O animal finalmente sucumbiu. Uma bandeira anuncia a importante captura aos interessados que aguardam com ansiedade na praia. Um cabo mais forte amarra a baleia, que é conduzida a reboque após ter sido feito de novo a vela, até encalhar na angra do estabelecimento [armação], entre aclamações de toda a vizinhança.” A partir daí, Denis descreve operações na terra firme. “O desmembramento é bastante rápido. Um negro armado de uma faca encaixada num pau de quatro pés faz um corte longitudinal da cabeça até à

cauda da baleia; depois praticam-se outras incisões transversais no sentido das costelas; o preto levanta porções de toucinho, de duzentas a trezentas libras, que outros negros tiram. O autor desta notícia viu despedaçar uma baleia por meio de pás ferradas, com que se levantavam enormes porções de toucinho. A preparação do azeite é muito simples: a gordura, cortada em bocados de pouco mais ou menos duas libras, mete-se em caldeiras de ferro; a ação do fogo a derrete em menos de uma hora. Num estabelecimento que possua vinte e quatro caldeiras de pouco mais ou menos trinta litros cada uma, é possível derreter todo o toucinho de uma baleia no espaço de vinte e quatro horas”. Para finalizar, Denis anota que cada armação equipa, de ordinário, quatro barcos – e que a pesca baleeira “cobre todos os gastos, deixando lucro. Note-se, ainda, que eram diversos os usos do óleo de baleia. A borra do azeite amassada com cal e areia, para formar uma espécie de betume impermeável, tinha largo emprego em nossa engenharia. Em Bahia em Tempo de Província, Cid Teixeira lembra que era muito comum, em Salvador, quando se queria falar da solidez de uma construção antiga, o recurso a um clichê: “isto aí foi feito com óleo de baleia, não vai cair nunca”. Não raro, essas construções, fossem engenhos rurais ou sobrados urbanos, prédios públicos ou edificações religiosas, eram iluminadas com candeias de azeite de peixe. Também a iluminação pública da capital da América Portuguesa foi feita, durante muito tempo, à base do óleo de baleia. Era assim que as nossas ladeiras, ruas e praças coloniais se esclareciam. Antes de agradecer a Deus pelo início da pesca do grande cetáceo na baía e do tratamento do bicho marinho nas armações de Itaparica, Frei Vicente do Salvador faz uma observação interessante: “Era grande a falta que em todo o Estado do Brasil havia de graxa ou azeite de peixe, assim para reboque dos barcos e navios como para se alumiarem os engenhos, que trabalham toda a noite e, se houveram de alumiar-se com azeite doce, conforme o que se gasta e os negros lhe são muito afeiçoados, não bastara todo o azeite do mundo”. Usava-se então uma mistura de azeite doce com azeite de peixe. Se, em vez dessa mistura dos dois azeites, o dono do engenho utilizasse somente o doce, teria um tremendo prejuízo – os escravos negros não perderiam uma só oportunidade de lamber os candeeiros... Frei Vicente aponta, ainda, para o uso medicinal do azeite de peixe, que os pretos ensinaram aos seus senhores brancos: “...dizem [os negros] que os purga e faz sarar de boubas e de outras enfermidades e frialdades, e os senhores, quando eles vêm feridos das brigas que fazem em suas bebedices, com este azeite quente os curam e saram melhor que com bálsamo”.

ARMAÇÕES, INCÊNDIOS E LUCROS No século XIX, quem dominou o negócio da baleia, na Bahia, foi Manuel Ignácio da Cunha Menezes, Visconde do Rio Vermelho. Graças a heranças e transações comerciais bem sucedidas, Manuel Ignácio tornou-se homem rico e razoavelmente poderoso, comandando a pesca do cetáceo entre a Pituba e Itapoã, além de se assenhorear contratualmente de Manguinhos, em Itaparica. Vivia

ele numa casa bela e senhorial na Armação do Saraiva, ali pelo Carimbamba, de janelas abertas para o mar – imóvel de que se faria mais tarde, depois de alguma reforma de sua casa e capela, a sede do Aeroclube da Bahia, até o prédio ser finalmente destruído, no final do século XX, para dar lugar a mais um trambolho arquitetônico em nosso litoral, o chamado Aeroclube Plaza Show, espécie de shopping center de lazer, popularmente conhecido como “Carandiru”. Cid Teixeira, que andou examinando o assunto, nos fornece informações relevantes, do ponto de vista histórico-antropológico. “Na Pituba, Armação do Saraiva, em Itapoã, pescou-se, e muito, baleia que dava em águas baianas. E, porque todas estas armações viviam do trabalho escravo, determinaram, pelo isolamento dos seus sítios, as maiores concentrações de africanos do ‘termo da cidade’, ajuntamentos estes, inclusive, responsáveis pelas sublevações de escravos ali verificadas, das quais a mais importante e a mais sangrenta foi a de 1835. Até bem pouco tempo, antes da febre imobiliária [circa 1970], os grupos de pescadores do Chega Negro, do Carimbamba, do Caxundé ainda testemunhavam o isolamento étnico em que ali se viveu”. Cid está certo. Houve mesmo uma Revolta de Itapoã, em 1814 – um levante de escravos sediados numa armação pesqueira do supracitado Manuel Ignácio da Cunha Menezes. E o relativo isolamento étnico das comunidades do Chega-Nego (local de desembarque clandestino de escravos), do Carimbamba e do Caxundé, ainda que se desfazendo gradativamente, prolongou-se até inícios da segunda metade do século XX. Em dias alegres de minha pré-adolescência, entre os 13 e 15 anos de idade, freqüentei demoradamente aquelas praias, jogando futebol, namorando, pescando peixes miúdos, como o corrococó, a maria-preta e a carapiaçaba, nas pedras do atual Jardim de Alá. Sentei ali em bancos de osso de baleia, ali aprendi o gosto de beber cambuí, a puxar a rede na pesca do xaréu. E a população local puxava decididamente para a cor preta, quase azul, salvo a rara presença de um ou outro “galego”, como se costumava dizer. Mas voltemos ao século XIX. A rebelião de 1814 foi mapeada por Décio Freitas, em seu livro Insurreições Escravas. De acordo com o historiador, a revolta foi organizada de forma paciente e meticulosa. Sua base teria residido nas armações baleeiras da Cidade da Bahia. E o plano era ambicioso. Consistia, segundo Freitas, “em sublevar os escravos das armações, estender o movimento ao Recôncavo e depois, todos reunidos, atacarem a cidade do Salvador”. Para isso, a idéia rebelionária, cultivada por um núcleo de escravos sediciosos residentes no centro de Salvador – alguns deles, negros islamizados –, foi sendo divulgada por terras da capital e de sua interlândia. “O grupo dirigente enviou elementos para as armações, onde se infiltraram e arregimentaram adeptos. O coordenador geral era um certo Francisco Cidade... Francisco dissimulava sua atividade conspirativa como ‘presidente das danças da sua nação, protetor e agente delas’. A pretexto de custear os batuques, coletava dinheiro entre os escravos. Consta que era um negro dotado de grande simpatia e vivacidade, gozando de prestígio entre os demais, que o tratavam como a um superior”. O “rei” Francisco e sua companheira, a “rainha” Francisca, circulavam então pelas armações e pelo Recôncavo, pretextando danças, mas veiculando mensagens subversivas. Todos deveriam convergir para as matas do Sangradouro, onde havia um quilombo, para o qual armas eram enviadas. Finalmente, no dia 28 de fevereiro, o movimento eclodiu.

Os negros partiram de Brotas para a armação de Manuel Ignácio, onde eram aguardados pelos demais rebeldes. Vejamos a narrativa de Décio Freitas. “Estabelecido o contato, os escravos da armação se levantaram como um só homem. Incendiaram e depredaram tudo. Para que as casas ardessem mais facilmente, untaram-nas com azeite. Queimaram tudo que servia para o funcionamento da armação – cordoaria, marrames e linhas. O feitor, sua mulher e filhos foram trucidados. Apossaram-se dos cavalos existentes, que foram montados pelos cabeças... Os revoltosos eram a essa altura em número superior a duzentos e à sua frente marchavam, a cavalo e armados de machados, os negros Caio... Sebastião e Vitorino, os dois primeiros haussás e o último nagô. Caio... três semanas antes fugira do seu senhor e se aquilombara no Sangradouro. Pessoalmente, incendiara quatro casas na armação de Manuel Ignácio. Sebastião fora visto montado a cavalo com uma tocha na mão, pondo fogo em outras casas da armação. Vitorino, que trazia uma grilheta na perna, subira ao telhado da casa principal para lançar fogo... Na armação de Francisco Lourenço [da Costa Lima], os insurretos eram esperados pelos escravos, onde se repetiram as mortes e os incêndios... Seguiram para a povoação de Itapoã, onde ficava a armação de João Vaz de Carvalho. Na marcha, gritavam: morram os brancos e os mulatos e viva a liberdade. Aqui também mataram e incendiaram, dirigindose a seguir em direção ao Rio Joanes, intentando alcançar o Recôncavo”. A essa altura, soldados da cavalaria e da infantaria já haviam partido para bloquear o caminho dos rebeldes. Ainda Freitas: “Manuel da Rocha Lima intimou os revoltosos a se renderem, mas um dos chefes, que montava a cavalo, adiantou-se e respondeu: ‘morrer sim, entregar não’. Em seguida, disparou sobre a tropa uma arma de fogo. Os escravos não esperaram a reação, tomando logo a iniciativa. Não tinham mais que três ou quatro armas de fogo, desvantagem que naturalmente lhes foi fatal. Ainda assim, o combate se prolongou por algumas horas. Os negros não recuavam, só cedendo quando as balas os prostavam. Pelas duas horas da tarde, estavam completamente derrotados e a revolta fora sufocada. O acórdão proferido na devassa declarou que era impossível calcular o número de mortes... Muitos jogaram-se ao rio, morrendo afogados; outros se enforcaram em árvores... Desde o Sangradouro até Santo Amaro do Ipitanga, haviam percorrido quatro léguas... dado morte a quatorze pessoas brancas e ferido um número ainda maior. Haviam incendiado um total de oitenta casas, afora as outras instalações das armações.” Os presos, algemados, foram conduzidos a Salvador. Alguns receberam a condenação à morte na forca; outros foram degredados para Benguela e para as galés de Moçambique. Em março de 1828, uma nova revolta escrava pipocou nos arredores da capital baiana. E mais uma vez as instalações pesqueiras de Manuel Ignácio foram atacadas e incendiadas. Mas o rico senhor continuou em seus negócios. E o certo é que nunca deixou de ganhar dinheiro com a pesca da baleia, produzindo e vendendo arrobas e mais arrobas de carne, litros e mais litros de azeite. Cid Teixeira informa que, na Armação do Saraiva, em 1850, “concentravam-se representantes da maioria das ‘nações’ africanas que o tráfico importou”. Trabalhavam lá, naquele ano, nagôs, cabindas, angolas, jejes, haussás, moçambiques, etc. Os nagôs formavam, segundo o historiador, o contingente mais numeroso daquela escravaria pesqueira. Eram 42 escravos vindos de pontos diversos da chamada Iorubalândia. Fala Cid:

“A especificação dos ofícios e ‘abelidades’ dos escravos da armação permite rastrear, com razoável precisão, o ambiente de trabalho. Além dos aviamentos de pesca com suas lanchas, arpões, há os do ‘engenho de azeite’, com suas fornalhas, ganchos e pás de cortar, são os homens e seus ofícios que recriam a atividade. Desde aquele Joaquim, cabinda, moço, mestre arpoador e mergulhador, cotado em um conto de réis, e de Francisco Julião, ‘maior de setenta’, atador e mestre da rede que, com a idade, ficara senhor dos segredos da ‘puxada’ do xaréu. Desde estes mais valiosos nos seus preços até Manuel crioulo, ‘maior de oitenta’, e Luiz Gonzaga ‘velho’, ambos do ‘serviço da praia’. Homens que já não mais podiam ir ao mar e ficavam ensinando a Bernardo e a Teotônio, ambos moços cabindas e a Onofre, monjolo, o ofício de cordoeiro. Estes e mais as mulheres, como aquela Maria Gertrudes, ‘já moça, que cose costura chã’... ou Joana cabinda... estavam nas praias... arpoando baleias, cuidando das cordas, do cavername das lanchas, das lenhas das fornalhas, das pipas de armazenagem, de tudo quanto fez a fortuna de Manuel Ignácio da Cunha Menezes”. O que impressiona é como tudo isso acabou. Uma armação não era uma empresa pequena. Vejase o caso da Armação do Saraiva. Havia a casa rica, elegante em sua clareza, com o seu oratório de missas. Havia o engenho de azeite, os equipamentos técnicos de beneficiamento do produto, as embarcações, os depósitos, a senzala, as redes, dezenas de utensílios. Em 1850, trabalhavam, ali, cerca de 150 escravos. E isto já num período de franca decadência da indústria baleeira na Bahia de Todos os Santos. Mas é possível imaginá-la em sua fase plena. Décio Freitas diz que as nossas armações chegaram a contar com até seiscentos escravos em labuta permanente, avançando em riste sobre os cetáceos maiores, preando baleotes ou frigindo a gordura para a extração do azeite, destinado, entre outras coisas, a iluminar as ruas sinuosas e o casario baiano. Como tudo isso foi por água abaixo? A resposta é relativamente simples – e voltaremos ao tema adiante. De uma parte, a Bahia ficou para trás, vertiginosamente ultrapassada pela Revolução Industrial. De outra parte, barcos ingleses e norte-americanos, movidos pelo novo combustível civilizatório, lançaram-se a buscas oceânicas, como podemos ver em narrativas estupendas como Moby Dick, obra-prima de Herman Melville, e Gor-don Pym, a whaling voyage tecida por Edgar Allan Poe. E o cetáceo enorme foi praticamente sumindo, desaparecendo das praias baianas. Na primeira metade do século XX, ainda surgia aqui e ali, para depois se retirar de cena. Deixou, no entanto, a sua presença em nossa criação poética, tanto em plano popular quanto em dimensão erudita. Como no seguinte canto de pescadores do xaréu, ouvido e registrado por Carybé (As Sete Portas da Bahia), em suas andanças entre o Chega-Nego e o Carimbamba: A baleia me pediu Aderecô Aninha Pra fazer uma devoção Aderecô Aninha Vou pegar na jangadinha Aderecô Aninha Vou-me embora velejar Aderecô Aninha

O vento pegou de proa Aderecô Aninha Até da volta do mar Aderecô Aninha Vou-me embora que é noite Aderecô Aninha Eu não quero navegar Aderecô Aninha Fazer dos olhos candeia Aderecô Aninha Até hora de voltar

Ou no surpreendente e belo soneto Cetáceo, de Pedro Kilkerry, onde o poeta – na beira do mar, contemplando a paisagem crepuscular de nuvens distantes, num céu atravessado por um pássaro branco, talvez uma gaivota, e com as ondas colorindo os arrecifes e embalando um pescador mulato em sua jangada – vê, de repente, a aparição de uma baleia, que, do seu ângulo de visão, parece vir do sol que se põe, vermelho. Na verdade, uma paisagem comum, marinha quase banal, mas que a linguagem poética de Kilkerry, densa e tensa, submete a uma transfiguração hipnótica: Fuma. É cobre o zenite. E, chagosos do flanco, Fuga e pó, são corcéis de anca na atropelada. E tesos no horizonte, a muda cavalgada. Coalha bebendo o azul um largo vôo branco. Quando e quando esbagoa ao longe uma enfiada De barcos em betume indo as proas de arranco. Perto uma janga embala um marujo no banco Brunindo ao sol brunida a pele atijolada. Tine em cobre o zenite e o vento arqueja e o oceano Longo enfroca-se a vez e vez e arrufa, Como se a asa que o roce ao côncavo de um pano. E na verde ironia ondulosa de espelho Úmida raiva iriando a pedraria. Bufa O cetáceo a escorrer d’água ou do sol vermelho.

ESTALEIROS, PORTOS E MARES Falamos já de papéis e funções do saveiro. Mas havia também outras exigências. Daí a necessidade de construir navios. Navios a remo. Informa Edison Carneiro (A Cidade do Salvador –

1549 – Uma Reconstituição Histórica): “Para estimular a construção particular de navios – o melhor meio de transporte em tal extensão de costa – o rei dava facilidades aos prováveis armadores. Os navios deviam ser a remo e, se fossem de quinze bancos, ‘ou daí para cima, e... tenham de banco a banco três palmos de água [sic]’, as munições e aparelhos necessários para a sua construção não pagariam direitos nas alfândegas reais; e, se fossem de mais de dezoito bancos, os seus donos teriam 40 cruzados de mercê da Fazenda Real, pagos com a renda do Brasil”. Bem, Carneiro cometeu um pequeno deslize em sua transcrição do texto oficial que cita. Não são “palmos de água” e sim “palmos de goa”. Ainda no século XX, os saveiros da Bahia eram medidos em palmos orientais – palmo de Goa, palmo da Índia, palmo árabe. Se, entre um banco e outro do navio, houvesse três palmos de água, a marujada tenderia compulsoriamente ao estado anfíbio, caso a embarcação não afundasse antes. Mas vamos ao que interessa. No entender dos governantes, as atividades baianas de construção naval teriam uma quíntupla função: intensificar a comunicação interna na região; fortalecer o sistema de defesa contra a ação de corsários, principalmente franceses; explorar o interior da colônia, com a feitura de bergantins para subir os cursos do Paraguaçu e do São Francisco; consertar embarcações que aqui arribassem avariadas; produzir navios de alcance oceânico. As obras construtivas – ou oficinais, de um modo geral – seria enormemente facilitadas, é claro, pela fartura de boas madeiras aqui encontráveis – “tantas e tão maravilhosas e formosas madeiras, para se fazerem muitas naus, galeões e galés”, no dizer de Gabriel Soares. Além disso, ainda segundo Gabriel, a Bahia possuía a mão de obra exigida para o cumprimento das tarefas: “...pelo menos quatrocentos serradores escravos muito destros, e duzentos escravos carpinteiros de machado; e ajuntar-se-ão mais quarenta carpinteiros da ribeira, portugueses e mestiços, para ajudarem a fazer as embarcações, os quais se ocupam em fazer navios que na terra fazem, caravelões, barcas de engenho e barcos de toda a sorte”. Na verdade, a Bahia já produzira o seu primeiro navio, a caravela Rainha, em 1550. No ano seguinte, entregaria à navegação o bergantim São Tomé. E foi nesse mesmo ano de 1550 que se deu a implantação oficial de nosso estaleiro ou arsenal, espaço de reparo e fabrico de embarcações, localizado na Cidade Baixa, mais ou menos em frente às pedras onde se ergueria o Forte do Mar. Antes dessa ribeira das naus, o que tínhamos era um que outro estaleiro precário (há quem fale de arranjos oficinais do tempo da aldeia euroameríndia de Diogo Caramuru, o que me parece correto, já que Diogo e os seus socorriam e abasteciam navios oceânicos), empenhando-se na produção de barcos de pequeno porte e se improvisando no conserto de naus que aqui escalavam, em seus cursos e percursos pelas grandes extensões do alto mar. Diga-se, a propósito, que os senhores de engenho do Recôncavo se colocaram de imediato contra o estabelecimento do estaleiro real, argumentando que o seu funcionamento iria inevitavelmente privá-los da madeira necessária às operações da indústria açucareira. Os engenhos precisavam, realmente, de muita, muita madeira – e a madeira era também, naquela época, a matéria-prima essencial da produção náutica. O conflito se instalou então, prolongando-se por séculos. Mas, se o voto senhorial foi ouvido, o seu veto não vingou. As atividades do estaleiro, sob o comando do carpinteiro Francisco Nicolas (ou Nicolau), foram, desde o início, intensas, especialmente no

atendimento técnico a naves da chamada Carreira da Índia (a rota Lisboa-Goa-Lisboa) e de armadas guarda-costas, mas também no setor da construção. “Nascia, por conseguinte, a arquitetura naval da Cidade do Salvador, atividade que se desenvolveria sempre, até o século XIX”, como escreveu Américo Simas Filho, em Evolução Física de Salvador – 1549 a 1800. Mas há que fazer um breve reparo à afirmação do estudioso Simas Filho. Se a última datação é sem dúvida correta, devemos, no entanto, relativizar o marco proposto para o nascimento de nossa arquitetura naval. Por um motivo imediato: jangadas, canoas, saveiros e barcas, cuja produção começou antes do estabelecimento do arsenal baiano, já implicavam arquitetura, design náutico. Como se não bastasse, essa produção principiou sob o signo da cultura naval ameríndia. E nem será excessivo frisar que a influência indígena não se conteve nos limites da fabricação de embarcações menores, destinadas ao âmbito interno do golfo, à cabotagem pelos ancoradouros das ilhas e dos rios do Recôncavo. Não. Ela se estendeu, também, ao campo da produção de naves de alcance oceânico. É o que nos diz José Roberto do Amaral Lapa, em A Bahia e a Carreira da Índia: “É óbvio que, entre as embarcações de longo curso e as pirogas indígenas, havia intransponível distância. Entretanto, a secular experiência e os conhecimentos da flora e da fauna permitiam que se adotassem processos de extração e aplicação das matérias-primas a finalidades quase sempre semelhantes às dos nativos... Os indígenas que tinham então considerável influência na fabricação das embarcações intermediárias empregadas nos rios do Recôncavo para abastecer, municiar e atender direta ou indiretamente aos navios da Carreira da Índia no porto de Salvador, passaram a servir nesse outro amplo campo de aplicação de seu rico cabedal... Sabendo distinguir bem as diferentes qualidades de madeiras, sua maior ou menor resistência aos elementos, sua utilidade para este ou aquele fim, os processos de extração e aproveitamento das embiras, os meios de tirar cascas e entre-cascas, os índios transmitiam esse conhecimento aos profissionais e ‘entendidos’ portugueses... Para uma das marinhas que pelo menos em boa parte dos séculos XVI e XVII foi das mais adiantadas do mundo, cuja técnica de construção naval e arte náutica foram apuradas ao longo dos séculos, de um legado de judeus e genoveses, holandeses e ingleses, a modesta cota indígena assume alta significação, não se limitando ao simples expediente dos remendos ou à utilização da força bruta.” E é fato que as atividades baianas de construção naval prosseguiam firmes à entrada do século XIX. Testemunha Luiz dos Santos Vilhena: “...tanto na Ribeira, como nos estaleiros da praia da Preguiça, é que se têm feito e fazem a maior parte das embarcações da nossa marinha, assim real, como mercantil, por ser estes estaleiros preferíveis a todos os que podem haver no Brasil; e destes há dentro nesta baía tantos, que não será fácil numerá-los... Dos de Itapagipe, distante uma légua da cidade, é que os comerciantes se servem de ordinário para a construção dos seus vasos de maior porte, havendo naquele sítio capacidade para se fazerem muitos ao mesmo tempo.” Não é esta a única referência ao tema, certamente, mas não será preciso acumular exemplos. O que me importa ressaltar, no momento, é que, para muito além da navegação em circuito interno, barcos bordejando por ilhas e vilas, a Bahia de Todos os Santos, pelo menos desde o século XVII, abria-se largamente para o mundo. “Fundada definitivamente, como posto avançado da civilização portuguesa, cincoenta e oito anos

antes de Jamestown e trinta e cinco anos antes de St. Augustine – os primeiros núcleos de população européia dos Estados Unidos – [a Cidade da Bahia] foi um dos mais ricos portos do mundo muito antes que Nova York saísse da infância”, panoramiza o sociólogo norte-americano Donald Pierson, em Brancos e Pretos na Bahia. Concentrando o foco em nosso passado, Pierson prossegue: “Por volta de 1670, era a [Cidade da] Bahia opulenta capital, ufanando-se de ser sua bandeira conhecida sobre os sete mares. Navios vindos do império português do Oriente ali aportavam regularmente, de volta para Portugal. Pelos princípios do século XVIII, era uma cidade de 70.000 habitantes, tendo seu comércio protegido pelo fogo cruzado de quatorze fortes. Edifícios de seis e de sete andares eram comuns; a posse de mobiliário de ébano esculpido tornara-se símbolo de posição social; e sedas, palanquins e as mais finas porcelanas eram importadas da China.” Um quadro que, como veremos, não é desvinculável da Carreira da Índia, muito pelo contrário. Levantamento realizado por Luís Henrique Dias Tavares, incluído em seu livro História da Sedição Intentada na Bahia em 1798 – a Conspiração dos Alfaiates, mostra que, na década de 1790, o porto de Salvador recebeu navios espanhóis, norte-americanos, ingleses, franceses e dinamarqueses, além do bergatim Kannitz, procedente de Gênova, que aqui aportou em agosto de 1794. Note-se de passagem que, entre as dificuldades para o aportamento na Cidade da Bahia, apontava-se sempre, para além dos obstáculos naturais dos ventos e dos baixios, o intenso movimento das embarcações, quase se embaraçando umas nas outras, com riscos de abalroadas, rupturas de mastros, soçobros. E o tráfego marítimo foi ainda mais ativo entre 1798 e 1810. Nas primeiras décadas do século XIX, a presença inglesa já predominava em nossa vida portuária. Para dar um exemplo, o ano de 1821 registra a vinda, até nós, de 52 navios portugueses – e de 95 embarcações inglesas. Também nessa primeira metade da centúria de oitocentos, uma firma inglesa aqui estabelecida, a Shwind Brothers, anunciava a venda, “por preços cômodos, no grande depósito do Trapiche do Sal”, de equipamentos mecânicos para a produção dos engenhos: “máquinas econômicas de vapor de alta e baixa pressão, de 3, 4, 5 e 6 cavalos, moendas horizontais e verticais para água e animais, jogos de tambores e fôrmas para açúcar”. Vigorava, assim, um imenso descompasso. A Bahia recebia embarcações do mundo inteiro, mas não enviava navios seus para águas e portos internacionais. Em 1830, Lino Coutinho protestava na Câmara dos Deputados: “Não temos um só navio no Tâmisa, quando na Bahia, no Rio de Janeiro e em todos os portos do Império têm subido as nossas águas com o peso dos navios da Inglaterra, outro tanto se pode dizer a respeito da França e de mais outras potências estrangeiras”. Na formulação sintética de Cid Teixeira, exportávamos açúcar e importávamos tudo. Mas é evidente que essa brutal inferioridade econômica não nos fazia menos cosmopolitas. Salvador fora, por séculos, a capital do Atlântico Sul. “Da extensa rede de portos, que [Portugal] manterá em sua empresa ultramarina, distribuídos pelas costas européias, africanas, americanas e asiáticas, o do Salvador, na Bahia, terá excepcional papel. Será mesmo uma segunda capital do Atlântico português. ‘Porto do Brasil’, denominavam-no os documentos do tempo, como se não houvesse outro ancoradouro em toda a Colônia”, escreve Amaral Lapa. Entre o apagar do século XVIII e o esclarecer do XIX, o porto da Cidade da Bahia ocupa, como exportador e importador, o primeiro

lugar entre todos os portos portugueses de ultramar. Estaleiro, entreposto, abrigo. Para cá se dirigiam navios em curso pelo Atlântico tropical, em busca do Pacífico, ou dos mares da China e do Japão. Nossa inteira dependência da navegação estrangeira, para as trocas do comércio mundial, fazia com que, em meados do século XIX, recebêssemos navios, mercadorias, técnicas e idéias de Portugal, Inglaterra, Rússia, França, Suécia, Estados Unidos, Dinamarca, Áustria, Alemanha, Espanha, Itália. A fim de fornecer uma visão mais precisa do assunto, vamos seguir passos de José Roberto do Amaral Lapa, falando aqui, em particular, da inserção da Bahia na Carreira da Índia, caminho que atravessa o Atlântico e o Índico, para se constituir, nas palavras do historiador, no “mais complexo e duradouro roteiro marítimo da Idade Moderna”, cuja importância é atestada “pelo montante de capitais que atraiu e muitas vezes esgotou; pela quantidade de vidas humanas que conduziu e muitas vezes aniquilou; pelo conjunto de mão-de-obra especializada que requereu; pelo valor, soma e variedade de riquezas, cuja circulação promoveu; e pelo notável inter-câmbio de idéias, técnicas, usos e costumes que representou, atuando nos aspectos econômicos, políticos, sociais, industriais e religiosos, em nada menos de quatro continentes”. Antes de mais nada, a Carreira da Índia, viabilizada pela assombrosa aventura de Vasco da Gama, certamente a maior de todas as grandes façanhas da Era das Navegações, significou um deslocamento formidável, fazendo do Atlântico o eixo marítimo do planeta. O próprio descobrimento – ou “reconhecimento” – do Brasil foi um episódio da Carreira da Índia: Cabral estava viajando para Calicute – Porto Seguro foi uma escala em seu caminho para o Índico. “Toda a empresa de colonização ultramarina portuguesa esteve nela incluída, vivendo dela e para ela”, escreve Lapa. Abarcando, em toda a sua extensão, a talassocracia lusitana, a Carreira vai ultrapassar o âmbito exclusivo da história marítima, para dizer respeito, também, a “instituições de terra”. É dessa perspectiva que Lapa irá sublinhar a preeminência do porto baiano como escala constante, ainda que tantas vezes legalmente proibida, dos inúmeros navios que percorriam as águas do grande roteiro transoceânico. Significativamente, a Cidade da Bahia vai se projetar, como porto de escala, a partir da segunda metade do século XVI, quando os sinais do declínio da marinha lusitana se tornavam evidentes. Em sua História do Oceano Índico, ao lembrar que Portugal fora a primeira potência marítima a estabelecer “uma indiscutível talassocracia” naquela vastidão oceânica, Auguste Toussaint observa que essa decadência era previsível. Seu principal motivo: a falta de homens. “Dominar sozinho o Oceano Índico era uma tarefa desmedida para o pequeno Portugal”, resume Toussaint. Havia uma desproporção imensa entre a magnitude do projeto e a rareza dos recursos humanos. Eram “escassos milhares de portugueses”, dispersando-se “por um semicírculo de mais de 15 000 milhas, apoiados em pequenas fortalezas, em torno das quais formilhavam centenas de milhões de homens – os núcleos mais densos e numerosos da população de todo o globo”, escreve, por sua vez, Jaime Cortesão, na História da Expansão Portuguesa. De qualquer forma, a empresa correu bem, muito bem até, enquanto o que houve pela frente foi a barreira dos “mouros” – isto é, de “muçulmanos de raça árabe e persa ou mestiçados destes com

indígenas doutros países orientais” (Cortesão). Afinal, apesar de toda a sua flama e perícia, aqueles muçulmanos se viam prejudicados por coisas fundamentais. Antes que se subordinar a uma direção central e superior, por exemplo, andavam fragmentados, competindo entre si. Além disso, em termos estritamente militares, e apesar de seus esforços de assimilação tecnológica, não tinham eles o poder de fogo dos portugueses, nem como fazer as suas embarcações ombrear com os navios lusos. Portugal triunfou, então. Mas a situação mudaria completamente com a agressiva entrada em cena de “rivais europeus empreendedores e audazes” (Toussaint). De holandeses e ingleses, em especial. E Portugal foi perdendo a parada. Lapa: “Ao terminar em Portugal a Era dos Felipes [1640], a hegemonia do Índico estava perdida e o Atlântico era varejado por barcos de outras nações... É justamente nessa fase sombria, quando as tentativas de recuperação de um extinto prestígio faleciam na confusão de interesses, que Salvador se arroga, dentro da empresa ultramarina, uma crescente preeminência nascida em parte de suas relações com a Carreira do Oriente”. Capital da colônia americana, excelente porto, geograficamente bem situada, centro exportador de mercadorias valiosas, rica em matérias-primas, senhora de um arsenal e de um respeitável mercado (brasileiro e mesmo sulamericano), Salvador estava pronta para ocupar esse posto e exercer essa função de ponto de conexão, escala, refresco e mediação comercial, inclusive clandestina, no movimentadíssimo campo do contrabando, onde circulavam especiarias, pedras preciosas, açúcares, sedas e escravos. A presença de Portugal no Oriente não deixou de se traduzir, em contrapartida, numa presença oriental na Europa e na América. Numa presença índica ainda mais viva em território europeu, podese dizer, com a Carreira da Índia superando e marginalizando Veneza. E aí começaram as trocas culturais e os gestos sincréticos. Já em 1503, por exemplo, surgiam, na cidade-reino de Cochim, a primeira fortaleza e o primeiro templo religioso dos portugueses na Índia. E assim como Portugal levava produtos, técnicas e signos para o Oriente, o Oriente enviava produtos, técnicas e signos para o mundo português e europeu, ao qual se vinculavam, obviamente, as terras americanas. Em O Feitiço da Ilha do Pavão, cuja trama se desnovela no âmbito da Bahia de Todos os Santos, João Ubaldo Ribeiro dispõe elementos orientais na origem mesma da história de sua ínsula imaginária: “E, num bando aqui, outro acolá, cada macho com suas variadas fêmeas, nas partes mais secas dos matos, transitam os pavões descendentes dos trazidos por Nuno Pires da Beira, de volta de uma de suas corseadas às Índias ou ao Ceilão, onde abatia imensos infiéis, dilatava a cristandade e rapinava o que podia, de pérolas a criaturas extravagantes”. Era mais do que fascínio – aquela Ásia multifaiscante ofuscava. “Os mercados do Ocidente estavam longe de poder competir em variedade e riqueza com os grandes bazares do Índico. As gemas e os metais preciosos, as drogas e os perfumes, os cereais e as especiarias, as fibras têxteis em bruto e os brocados mais ricos, os manjares e frutos de sabor raro e exótico, as armas e os móveis luxuosos, tudo o que uma terra exuberante, uma fauna e flora riquíssimas e as indústrias dos homens mais pacientes do universo produziam de rico e valioso se amontoava nesses deslumbrantes e imensos mostruários”, sintetiza Cortesão. E essas coisas – cassas, jarras, bengalas, aparelhos de chá, colchas de cetim, bacias de cobre, ouro em pó, sopeiras, chapéus de sol, sedas, escrivaninhas, cravo,

canela, lenços, chitas, arcas encouradas, pimenta, baús, frasqueiras, saleiros, tigelas esmaltadas, incensos, bocetas, leques, porcelanas finíssimas, diamantes, mesas de louça dourada, palanquins, penicos, etc. – vinham parar, também, na Bahia, graças aos aportamentos das naus da Carreira da Índia. O porto baiano, de resto, marcava presença nas duas mãos do roteiro, já que podia enviar açúcar para o Reino e tabaco para o Oriente. Ou seja: era visitado pelos navios tanto na ida quanto na volta da viagem. E o fato é que, de todos os portos brasileiros, o da Bahia era o que recebia o maior volume de mercadorias orientais, para funcionar, inclusive, como entreposto, já que despachava parte desses produtos não só para outras capitanias da colônia, como para a América Espanhola. Para Buenos Aires, por exemplo. “Dos portos brasileiros, particularmente da Bahia, onde a abundância de moedas espanholas de ouro e prata prova essa incidência comercial, da qual o próprio governador chegou a participar, seguiu para Buenos Aires um variegado elenco de riquezas comerciáveis, que iam desde os numerosos contingentes de escravos negros da África até os produtos agrícolas do Brasil e as manufaturas do Oriente, daqui reexportadas”, informa Amaral Lapa. O desembarque de mercadorias asiáticas foi constante, na Bahia de Todos os Santos, através dos séculos. E não devemos nos esquecer de que esses contatos comerciais entre o porto baiano e os navios da Carreira da Índia se deram, em sua maior parte, na clandestinidade. Eram operações realizadas na calada da noite, navios aproando fora da lei. A coroa lusitana muitíssimo raramente deu permissão para a escala e o comércio das embarcações do Oriente em nosso litoral. Mas, como diz Amaral Lapa, essas transações “foram sempre comuníssimas”. O que significa que a relação entre a Bahia e o Oriente se desenvolveu, quase que invariavelmente, sob o signo sedutor do contrabando. Portugueses e brasileiros sempre se moveram com desenvoltura e mesmo ousadia nesse terreno, historicamente habituados aos mecanismos e aos atalhos da burla. Quase que educados no contrabandear, pode-se dizer. “A luta permanente que foi travada, durante séculos, entre a fazenda pública e os descaminhos oferece curiosos aspectos”, anota Lapa, a propósito da Carreira da Índia, para esclarecer: “Revezavam-se ambos [o fisco e o contrabando] no apuro dos seus métodos. Era um jogo secular de ocultar e descobrir, com astúcias de um lado e expedientes aduaneiros de outro. Chega-se mesmo a depreender que as ramificações do comércio clandestino contavam com comparsaria intercolonial, fazendo-lhe vista grossa as autoridades mais imediatas, quando não fossem até partícipes da maroteira, juntamente com os capitães e funcionários da fiscalização”. Em 1766, por sinal, o próprio provedor-mor da Fazenda na Bahia, Manuel Serpa, foi preso por comércio ilícito de tecidos asiáticos. Mas vejamos as coisas de um outro ângulo. É claro que produtos orientais como tecidos, alimentos, móveis ou porcelanas eram objetos de uso. Esse uso, todavia, não poderia deixar de ter implicações outras, tanto no âmbito da semântica social quanto no campo das práticas de cultura. Podemos recordar aqui o que nos diz Roland Barthes, em seu Elementos de Semiologia: “desde que haja sociedade, qualquer uso se converte em signo desse uso”. Quem importa produtos, importa signos – mesmo que para distorcer, falsificar, subverter ou transfigurar valores, condutas e gestos. Assim, quando falamos da circulação e do consumo de mercadorias orientais no espaço da vida

colonial brasileira, estamos falando, também e inevitavelmente, de uma presença cultural índica ou asiática em nossas latitudes tropicais. Gilberto Freyre tocou no assunto, ainda que a vôo de pássaro, em Casa-Grande & Senzala. “Restanos salientar o fato, de grande significação na história social da família brasileira, de ter sido o Brasil descoberto e colonizado – do fim do século XVI em diante o Brasil autocolonizou-se, defendendo-se por si das agressões estrangeiras – na época em que os portugueses, senhores de numerosas terras na Ásia e na África, haviam-se apoderado de uma rica variedade de valores tropicais. Alguns inadaptáveis à Europa. Mas todos produtos de finas, opulentas e velhas civilizações asiáticas e africanas. Desses produtos, o Brasil foi talvez a parte do império lusitano que, graças às suas condições sociais e de clima, mais largamente se aproveitou”, diz Freyre. De entre os elementos que ele cita, vamos destacar aqui, para evitar repetições, “a telha à moda sino-japonesa, o telhado das casas caído para os lados e recurvado nas pontas em cornos de lua”. E os foguetes e fogos-deartifício que, originários da China, acabaram por se tornar característicos de ritos sociais portugueses e brasileiros, da saudação torcedora a times de futebol a festas e procissões religiosas e a folguedos juninos. Em suma, o comércio de produtos orientais teceu um enredo não somente econômico, mas também cultural – peças e práticas semióticas do Oriente em nossa Idade do Açúcar. Durante todo esse tempo, a Bahia permaneceu produzindo navios, que serviam em inúmeros roteiros oceânicos, tomando ora o rumo de portos africanos, ora a direção de portos asiáticos. Entre 1790 e 1793, lançamos ao mar duas fragatas, Princesa Carlota e Vênus, além do navio Santa Teresa, com uma lotação de 300 homens. Com a chegada do século XIX, vieram a nau Princesa do Brasil e as fragatas Príncipe D. Pedro, União (empregada na navegação entre o Brasil e Angola) e Diana. Mas, ainda na primeira metade daquela centúria, as atividades de construção de naves de grande porte cessaram entre nós. O que aconteceu? A resposta é a mesma que demos antes para a questão da pesca da baleia. Nossa produção naval foi simplesmente desbancada e aposentada pelos desdobramentos tecnológicos da Revolução Industrial.

ADEUS MAR OCEANO “A velha capital com o seu aspecto antigo, alteada sobre a montanha, em que embateram por tanto tempo as chusmas dos ‘varredores do mar ’, batavos e normandos; conservando, a despeito do tempo, as linhas tradicionais da antiga metrópole do Oceano; erecta para a defesa, com os seus velhos fortes disjungidos, esparsos pelas eminências, acrópoles desmanteladas, canhoneiras abertas para o mar; com as suas ladeiras a prumo, envesgando pela montanha segundo o mesmo traçado das trincheiras de taipa de Thomé de Sousa; e com as suas ruas estreitas e embaralhadas pelas quais passaria hoje Fernão Cardim ou Gabriel Soares sem notar diferenças sensíveis...” – foram palavras de Euclydes da Cunha, escritas ao apagar das luzes do século XIX.

E Euclydes estava certo. Com seu vocabulário sempre rico, seu gosto barroco pela palavra rara, ele reproduzia verbalmente o que seus olhos viam, deslumbrados, aliás, com a beleza do golfo baiano. No final do século XIX, a Cidade do Salvador da Bahia de Todos os Santos era um centro urbano essencialmente tradicional, com uma imponência de grande monumento e como que parada no tempo. Os baianos da capital e do Recôncavo viviam num mundo agrário e mercantil. Salvador se transformara em pólo meramente regional, especializado em comércio e na prestação de serviços. Para não destoar do quadro geral, tanto a pesca quanto a confecção de embarcações haviam estacionado, em nosso meio, num espaço tecnológico anterior ao dos repertórios configurados ou reconfigurados pela Revolução Industrial. Sim. Não fomos partícipes ativos, mas destinatários passivos da Revolução Industrial. Veja-se o caso da fabricação de embarcações. Os índios sabiam fazer as suas jangadas e as suas canoas. A jangada talvez seja o tipo mais antigo de embarcação que a humanidade produziu – é tronco flutuando, afinal. Mas troncos amarrados entre si, implicando projeto, extração vegetal e produção de cordas, com machados de pedra e dentes aguçados de porcos do mato. A canoa, por sua vez, era escavada num único tronco, fabricada de uma só árvore. Com a chegada dos europeus foi que esse panorama náutico se modificou. Que a tipologia naval brasílica conheceu variações e novidades. Que barcos diferentes foram lançados ao mar. Que surgiram os estaleiros, no sentido ibérico do termo. E que os índios passaram a compor tripulações de embarcações que até então desconheciam. Do saveiro ao navio, passando pela barca baleeira, a paisagem ganhou outras cores. Outro dinamismo. Vimos já que a administração portuguesa não só instalou um estaleiro na Bahia de Todos os Santos, como se dispôs a estimular a construção particular de navios, em nosso meio, através da isenção fiscal e mesmo de doações em dinheiro. A intervenção estatal esteve, portanto, na base mesma da produção baiana de navios – embora, no futuro, não deixasse de freá-la. Seja como tenha sido, o fato é que o arsenal baiano começou a funcionar de vento em popa, não só provocando ciúmes metropolitanos, como atraindo protestos de senhores de engenho, com os quais concorria na devastação de nossas florestas. Nesse caso, aliás, vereadores da Câmara de Salvador reproduziram oficialmente o discurso dos latifundiários do Recôncavo, defendendo que a fabricação de navios fosse feita em alguma capitania vizinha, como a de São Jorge dos Ilhéus ou a de Porto Seguro, de modo que a produção dos engenhos não ficasse sob a ameaça de uma eventual falta de lenha. Mas de nada valeram questionamentos e protestos. Em 1651, por exemplo, o rei de Portugal ordenou que o estaleiro de Salvador fabricasse um galeão por ano. A Bahia principiava a produzir, então, navios destinados a travessias oceânicas. A construir embarcações para a Carreira da Índia. E nossa ribeira das naus contava com braços auxiliares, estaleiros subsidiários, em lugares como Itapagipe, Matoim, Camamu e Ilhéus. A importância dessa fabricação naval foi crescente, especialmente a partir da segunda metade do século XVII e durante o século XVIII. Nessa época, o estaleiro da Bahia não só reparava e construía navios, suas atividades principais, como produzia e exportava, para Portugal, todo um elenco de peças náuticas. Bem vistas as coisas, o que estava acontecendo ali era o estabelecimento das bases de um parque fabril, que, por uma série de fatores (dos problemas financeiros advindos da penúria do

erário régio à drenagem de profissionais qualificados para o trabalho no complexo açucareiro), não logrou se configurar em sua inteireza. “Empresa complexa e de grande amplitude, exigindo instalações numerosas e recursos de diferente ordem, não deve ter o estaleiro demorado em estimular outras manifestações manufatureiras ancilares, domésticas até, distribuídas na própria Cidade do Salvador, em seus arredores e em aldeias indígenas” – escreve Amaral Lapa. Nos séculos XVII e XVIII, as atividades fabris foram realmente intensas, mas a erosão financeira não foi menor. Eram gastos enormes com reparos das naus da Carreira da Índia e com o custeio de suas tripulações durante a estadia baiana. Despesas também relevantes com a construção de navios. E os recursos oficiais minguando. Às vezes, iniciava-se, para nunca concluir, a feitura de uma embarcação de porte. Portugal não incrementava o negócio com a vontade e a força necessárias. Chegava a desestimular, a enfraquecer a disposição construtiva. Centrada em sua mentalidade colonialista, Lisboa temia que um fortalecimento econômico do Brasil pudesse abrir caminho para projetos autonomistas, que fossem desembocar na emancipação política. Amaral Lapa, mais uma vez: “O interesse metropolitano estava na possibilidade de formar uma poderosa marinha mercante, que eventualmente poderia transformar-se em marinha de guerra, com que se assegurariam as rotas comerciais e o domínio de mercados que se colocavam cada vez mais sob a mira da competição das grandes potências navais. Entre estas perspectivas e o risco de promover o desenvolvimento colonial despertando-o para sua emancipação, preferiu Portugal, na maioria das vezes, uma orientação controladora e desestimulante que se limitou a explorar a Colônia, acabando também por não conseguir impedir a Metrópole de passar a ser uma nação de secundária importância marítima, justamente no dilatado momento... em que no mar se fizeram grandes nações, como desapareceram aquelas que não souberam ser grandes.” Apesar de tudo, a Bahia de Todos os Santos continuava, ainda nas primeiras décadas do século XIX, passando pela “abertura dos portos”, pela elevação do Brasil à categoria de Reino Unido e pela constituição da nação soberana, a lançar ao mar embarcações de grande porte. Como a nau Princesa do Brasil, integrante da esquadra que trouxe D. João VI e a corte portuguesa para os trópicos; a fragata Príncipe D. Pedro, do roteiro Brasil-África; ou a fragata União (Ipiranga, depois do grito da independência nacional). Mas, àquela altura, o mundo já estava em outra, vivendo, em termos marítimos, os tempos do barco a vapor. E a realidade náutica baiana seria afetada em profundidade. Salvador, de certa forma, recolheu-se à sua praia. Foi-se voltando, produtivamente, para o seu mar interior. Para o circuito capital-ilhas-Recôncavo. Além da substituição definitiva dos veleiros pelos barcos a vapor, assistimos, em 1869, à abertura do Canal de Suez, via aquática interoceânica, quase retilínea, ligando o Mediterrâneo ao Mar Vermelho, através do território egípcio. Como bem assinala a historiografia baiana, a Cidade da Bahia, diante da navegação a vapor e da perfuração do istmo de Suez, viu esvaziar de vez o que restava de sua antiga função de capital do Atlântico Sul. Em Uma História dos Povos Árabes, Albert Hourani lembra que, no momento da inauguração do Canal de Suez, o quediva Ismail “aproveitou a oportunidade para mostrar que o Egito não fazia mais parte da África, mas pertencia ao mundo civilizado da Europa”. A obra franco-egípcia, feita sob a orientação do engenheiro francês Ferdinand de Lesseps, atraiu de imediato o interesse da Inglaterra,

em função de seu império indiano e de seu comércio marítimo com a Ásia. Daí que, em 1875, os ingleses tenham comprado as ações egípcias da Companhia do Canal de Suez, tornando-se os maiores acionistas daquela empresa. Suez não só gerava novos centros comerciais, a exemplo de Port Said, como encurtava distâncias decisivas. Vapores em viagem da Europa para a Índia passavam agora pelos 200 km do canal. O que significa que havia ficado definitivamente para trás o tempo dos veleiros, dos navios que despendiam seis meses em périplo oceânico, para ir de Lisboa a Goa através do Atlântico e do Índico. E aqui podemos retornar à questão mencionada palavras atrás: não embarcamos como partícipes ativos na grande viagem da Revolução Industrial. Fomos, ao contrário, vencidos e arrastados pelas novas direções civilizatórias do mundo europeu. Houve tentativas modernizadoras, como a de Caldeira Brandt, surpreendendo as nossas águas, em 1819, com o Vapor de Cachoeira, um motor inglês importado montado numa estrutura depositada no estaleiro da Praia da Preguiça. Mas não fomos além disso. Ficamos, de fato, na praia da preguiça. Isto é, a Bahia de Todos os Santos não entrou firme nos mares da Revolução Industrial. Nem fabricávamos máquinas. Pelo contrário, a sociedade baiana, como toda a sociedade brasileira, não se mobilizou no sentido da configuração de um conjunto de fatores que a tornassem industrialmente dinâmica. Ficamos apenas roçando a nova realidade do mundo: sem barcos pesqueiros de longo alcance, sem usinas, sem os novos equipamentos tecnológicos de pesca, e distantes do presente trabalhista europeu, já que mantínhamos o regime da escravidão, bloqueando assim a formação de um proletariado pesqueiro, ou proletariado de cais e convés. Na verdade, passávamos a sofrer a concorrência, em nosso próprio espaço litorâneo, até da cabotagem estrangeira, com a aparição da Companhia Navegação Baiana, sediada em Londres, organizando linhas regulares entre Salvador e os portos baianos. É claro que “a cabotagem das mil pequenas embarcações que trabalhavam sob encomenda em todas as águas da baía continuou se desenvolvendo, densa e flexível, capaz de se adaptar a todas as necessidades e deslizar sobre os caminhos marítimos e fluviais, ao sabor das brisas que os marinheiros do Recôncavo conheciam tão bem”, como disse Kátia Mattoso. É a permanência dessa cabotagem – pequena, mas intensa e colorida, destinada a desaparecer somente nas últimas décadas do século XX – que, de resto, confere uma das bases de realidade ao romance de Jorge Amado. Mas o fato é que estávamos deslocados dos centros mundiais de operações náuticas. Das novas tecnologias pesqueiras. Como se sabe, o maquinismo da Revolução Industrial foi introduzido nos barcos de pesca no século XIX. Começa então a era da pesca empresarial-capitalista contemporânea. Para que se tenha uma idéia da nova realidade, ouçamos Antônio Carlos Sant’Ana Diegues, em Pescadores, Camponeses e Trabalha-dores do Mar: “O aumento constante da capacidade das embarcações e dos instrumentos de pesca, o aumento do consumo do pescado na Europa e o escasseamento dos cardumes levaram os armadores e empresas de pesca européias a vasculhar os mares em outros continentes. Assim, o litoral africano foi invadido por grandes barcos-fábricas e gigantes arrastões europeus e de outras nações industrializadas, especialmente a partir da Primeira Guerra”. O jogo foi tão pesado – a pesca, tão eficaz – que o bicho baleia acabou se vendo sob a

ameaça de extinção, condenado a desaparecer dos mares da Terra, motivo pelo qual a sua caça terminou por ser proibida, já na segunda metade do século do XX – e hoje a Noruega e o Japão se esforçam para liberá-la outra vez. E nós? Tollenare conta que, em 1817, era possível pescar baleias “no próprio ancoradouro da Bahia e até no meio dos navios fundeados diante da cidade”. O cetáceo desapareceu daqui. Além disso, com o declínio e a falência das armações, não conseguimos gerar uma nova organização pesqueira. No século XX, em 1967, para ser mais preciso, o Governo brasileiro tentou colocar nossas práticas de pesca em um outro patamar, modernizando-as. Criou a Sudepe – Superintendência do Desenvolvimento da Pesca –, com o propósito de promover o ressurgimento de um setor pesqueiro em nossa economia. De transformar a atividade pesqueira numa empreitada realmente industrial. Mas os baianos permaneceram artesanais. Para o bem ou para o mal, nunca se sabe, os seus processos de pesca não se modernizaram. Não se forjou, aqui, uma pesca empresarial-industrial. Pelo contrário. Regredimos a um plano anterior ao daquele das armações oitocentistas. Os pescadores da Bahia de Todos os Santos e seu Recôncavo, com a passagem do século XIX e o avançar do século XX, ficaram a pescar, basicamente, como os seus antepassados dos séculos XVI e XVII. Com tarrafa, anzol e tingui. Ou mesmo com a mão, como no caso da pesca da lagosta em nossa orla. Por outro lado, em vez de chegar a produzir vapores, o que tivemos foi uma outra coisa: a passagem do saveiro à escuna. Do trabalho ao lazer. A Bahia optou assim por investir no turismo, no comércio do ócio, nas horas de recreiro, folguedo e folga. No espetáculo e na praia. No espetáculo das águas.

PELAS ILHAS Entre nós, o contexto ilhéu se desenvolveu seguindo os passos do continente. No final do século XVI e em inícios do século XVII, diversos pontos da Bahia de Todos os Santos também já eram habitados por lusos e mestiços, da Ilha de Cururupeba à das Fontes – e assim outras ilhas, que se apresentavam lavradas de canaviais. A Ilha dos Frades pertencia então a “um João Nogueira, lavrador, o qual está de assento nela com seis ou sete lavradores, que nela têm da sua mão, onde têm suas granjearias de roças de mantimentos, com criações de vacas e porcos” (Gabriel Soares). Um engenho de açúcar e a Igreja de Nossa Senhora das Neves se projetavam, por sua vez, do solo da Ilha de Maré – ou da Maré. Uma ilha que, por sinal, ganharia, no século XVII, versos de Botelho de Oliveira, o virtuose que escrevia sonetos, madrigais, epigramas, etc., em nada menos do que quatro idiomas. É dele o texto À Ilha de Maré – Termo desta Cidade da Bahia, celebrando o clima, os pescadores, peixes, plantas e frutas do lugar. Como o próprio poeta esclarece, a Ilha de Maré vem tomada, no poema, como uma espécie de modèle réduit do Brasil:

Esta ilha de Maré, ou de alegria, Que é termo da Bahia Tem quase tudo quanto o Brasil todo Que de todo o Brasil é breve apodo...

Essas ilhas tiveram enorme importância em nossa história social, política, cultural e econômica. Na passagem do século XVIII para o XIX, aliás, Luiz dos Santos Vilhena teve, a seu respeito, uma idéia que fascina. Achou que poderíamos ter construído a nossa capital num agrupamento de ilhas, arquipélago ao sul de Salvador, que de certa forma divide em dois o grande golfo da Bahia. De fato, depois da Ilha de Maré, temos um grupo ilhéu, com a Ilha dos Frades e a da Madre de Deus, separadas uma da outra por um canal, o Boqueirão, e suas ilhas vizinhas, como a de Santo Antônio, a do Bom Jesus, a do Capeta, a das Vacas, a de Maria Guarda. Quase coladas ao continente, a Bimbarra (ou as Bimbarras) e a do Pati – e, depois da Ponta do Ferrolho e da entrada do Rio Paramirim, a Ilha das Fontes, com as suas pontas de São João e do Engenho. Falando desse conjunto de ilhas e de seus canais, próximos às praias do continente, Vilhena não se contém, extasiado, e expõe o seu projeto: “É a sua [do arquipélago] vista tal, que eu não sei se a Natureza em alguma outra parte terá feito um tão aprazível quadro, digno verdadeiramente de ser decantado pelos insignes poetas da antiga Grécia. Dez Venezas juntas não poderiam comparar-se com a cidade que naquele dédalo se fundasse; porque é tal o labirinto de canais, que dividem aquelas ilhas grandes, e pequenas, e tantos os esteiros que por elas rompem, que os mesmos naturais vacilam, e muitas, repetidas vezes se enganam”. Em suma, o nosso Vilhena, criticando a Salvador erguida em acrópole na colina escarpada, a cavaleiro do mar, sonhava com uma Veneza tropical brasílica, saveiros deslizando de praia em praia, com as suas velas brancas, sobre as águas claras dos canais. No rol dessas ilhas baianas, destaca-se historicamente a de Itaparica – do tupi itá-parí, segundo Theodoro Sampaio (O Tupi na Geografia Nacional): cerca ou tapagem de pedras, “em alusão à corda de recifes que lhe protege a costa oceânica”. Foi em Itaparica, nos arrecifes das Pinaúnas, que naufragou o donatário da Capitania da Bahia de Todos os Santos, sendo canibalizado então, pelos tupinambás, na areia clara da praia de Aratuba. Diz Capistrano de Abreu (Capítulos de História Colonial), com base num manuscrito jesuítico, que, em suas lutas contra os índios, o Rusticão mandara matar um morubixaba. Naufragando em Itaparica, caiu ele nas mãos desses mesmos índios – e foi prontamente conduzido à fogueira antropofágica. Vingança: “...foi ritualmente sacrificado por um irmão do finado, de cinco anos, tão pequeno que foi preciso segurarem-lhe a maça do sacrifício”, escreve Capistrano. Com a vinda de Thomé de Sousa, Itaparica foi doada, em regime de sesmaria, ao Conde da Castanheira, seu primo, que nunca pôs os pés no Brasil. Pouco tempo depois, chegaram àquelas praias os missionários da Companhia de Jesus. Na quaresma de 1561, fundaram eles, sob o comando de Luiz da Grã, a Aldeia de Santa Cruz de Itaparica, onde agruparam índios e fizeram uma igreja, que logo estaria promovendo missas e procissões. José de Anchieta andou por ali, missionando e, dizem, fazendo milagres. Na década de 1560, a ilha ganhou também os seus primeiros engenhos e assistiu ao começo da criação de gado bovino, com reses importadas do arquipélago de Cabo Verde. Mas os

ventos nem sempre foram propícios. Em 1563, por exemplo, Itaparica foi largamente castigada pela peste das bexigas. A Aldeia de Santa Cruz viu-se, então, despovoada. E, entre o final do século XVI e meados do século XVII, experimentou o fogo da guerra. Foi atacada por piratas e pelas forças holandesas que tentaram, algumas vezes, dominar a Bahia de Todos os Santos. Escreve Ubaldo Osório: “Em 1587, foi a Ilha de Itaparica abordada pelas naus que, sob o comando de Robert Withrington, infestavam as costas do Brasil... Os corsários de Withrington foram destroçados, nas praias itaparicanas, pelo valente Antônio Álvares Caapara, o que, no assalto à Ponta da Cruz, decepara as cabeças de cinco ingleses, mandando-as, como demonstração da sua façanha, à Junta que havia substituído o governador Teles Barreto”. Enfrentar os flamengos, porém, foi bem mais complicado do que desbaratar discípulos de Francis Drake. O primeiro ataque flamengo a Itaparica ocorreu no finalzinho do século XVI, quando os batavos incendiaram, inclusive, o engenho de um holandês que lá residia. Frei Vicente do Salvador noticia: “...foram [os holandeses] buscar à Ilha de Itaparica, e desembarcando em terra puseram fogo a um engenho, que ali estava, de Duarte Osquier, sem lhe valer ser também flamengo, posto que casado com portuguesa e antigo na terra. Mas logo chegaram os nossos capitães... e os cometeram com tanto ânimo que mataram cinqüenta e fizeram embarcar os mais e recolherem-se à sua armada, que também logo se fez à vela e despejou o porto”. Em 1624, a forte esquadra flamenga comandada por Willekens e Heyn – trazendo a bordo o general Van Dorth, enviado pela Companhia das Índias Ocidentais para nos governar – ocupou a Cidade do Salvador e o mar da Bahia de Todos os Santos. Seus soldados dominaram rapidamente a capital do Brasil Colônia. Itaparica – a Insula Tapesiqua a que se refere Gaspar Barléu, em sua História dos Feitos Praticados durante Oito Anos no Brasil – foi mais uma vez atacada. E mais uma vez se defendeu com êxito. Em 1640, novo ataque. “A Ilha de Itaparica e outras foram postas a saque, para não se mencionarem outros danos, porquanto em parte alguma estorvou ou sustentou o inimigo a nossa violência”, informa Barléu, acrescentando: “Trucidavam-se a ferro os homens e os que podiam pegar em armas. Foram poupadas somente as mulheres e as crianças”. Mas Von Schkoppe, na brutal investida de 1647, não perdoou sequer mulheres e crianças. É o que nos conta Pierre Moreau, em sua História das Últimas Lutas no Brasil entre Holandeses e Portugueses: “Logo de entrada os soldados não pouparam nenhuma vida; mataram até as mulheres e crianças, pilharam tudo e só foram proibidos de provocar incêndios”. Em todo esse tempo, contudo, Itaparica foi conhecendo transformações significativas. Além dos engenhos de açúcar e do gado caboverdiano, viu surgir igrejas como a de Nossa Senhora do Bom Despacho e a bela Capela de Santo Antônio dos Velasquez, com a fachada voltada para o mar, contemplando, da faixa costeira entre a Gameleira e o Jaburu, as águas azuis da baía. Entre as edificações militares, sobressaía o Forte de São Lourenço, levantado sobre as ruínas de uma fortificação construída por Von Schkoppe em 1647. Existiam já as armações para a pesca da baleia. E, além da gente do azeite, havia a gente da birita – nos meados do século XVII, quatro destilarias operavam na ilha, produzindo cachaça, “água ardente”, em meio aos canaviais. Enfim, apesar de todas as adversidades – apesar da doença, da fome e da guerra –, as coisas foram sendo feitas.

O século XVIII correu tranqüilo para aqueles ilhéus. A produção do açúcar continuou rendendo. Novos estaleiros foram instalados, gerando uma considerável frota de saveiros, feitos de madeiras da própria ilha e empregados no comércio com Salvador e portos do Recôncavo. Aconteceu a migração açoriana. Ubaldo Osório: “Diziam os cronistas do seu tempo que D. João V protegia, com engodos especiais, açorianas moças que se dispusessem a vir para o Brasil... No seu reinado, muitas açorianas emigraram para a Ilha de Itaparica”. E a mestiçagem se intensificou. Nesse particular, aliás, Osório exemplifica com o sucedido em Conceição de Vera Cruz: “...deixou fama, entre os praieiros, Manoel de Melo e Castro, o que veio de Portugal em 1721, no governo do conde de Sabugosa, ocupou as terras da Conceição de Vera Cruz, instituindo, nas mesmas terras, a devoção do Divino Espírito Santo. Tendo deixado a família numa Quinta, nos arredores de Lisboa, amancebou-se, anos depois, com uma negra fula cheia de carnes, que povoou de mestiços as terras do seu domínio”. Finalmente, e já na segunda metade do século XVIII, o franciscano Manoel de Santa Maria Itaparica, nascido na Ponta das Baleias, deu à luz, em Lisboa, a sua produção poética. No século XIX, porém, com a guerra pela independência da Bahia, Itaparica voltou a se agitar. E muito. No Recôncavo, Santo Amaro da Purificação, Cachoeira e São Francisco do Conde, agora “vilas confederadas”, haviam se pronunciado pela independência brasileira e partiam para guerrear as tropas portuguesas chefiadas por Madeira de Melo, que ocupavam a Cidade da Bahia. “Em Itaparica se preparava de há muito a propaganda separatista”, observou Braz do Amaral, acrescentando que, ali como em toda a Bahia, “se sublevavam não só os brasileiros, ou filhos do país, como muitos portugueses”, a exemplo de Souza Lima, “um dos mais entusiastas dissidentes”. Na ilha, esses “dissidentes” costumavam se reunir na botica de Batista Massa – “e aí deliberaram se entender com os revolucionários do Recôncavo, logo que souberam do pronunciamento das vilas confederadas”. Impedidos de navegar pelo Rio Paraguaçu, em cuja barra os militares portugueses tinham estacionado uma canhoneira, os subversivos enviados por Itaparica desembarcaram na Saubara, seguindo por terra para Cachoeira. Em resposta à iniciativa itaparicana, Madeira de Melo despachou uma expedição punitiva para a ilha, sob as ordens do capitão Trinta Diabos. A partir daí, os itaparicanos se viram no meio da briga. Souza Lima levou armas de Itaparica para Cachoeira, dando poder de fogo ao primeiro núcleo do Exército Libertador. João das Botas – outro português que aderira à causa da independência – “fortificou a Ponta de Nossa Senhora, para fechar o interior da Bahia e artilhou barcos com peças de vaivém dos engenhos, como rodízios. Na Ponta de Nossa Senhora estabeleceu ele o seu quartel-general”. E os entreveros vieram. A defesa do Funil, por exemplo. O Funil é um canal estreito entre a ilha e o continente, cuja posse era estratégica, já que se tratava de passagem obrigatória para os barcos que traziam gêneros alimentares de Nazaré das Farinhas. Os portugueses, a bordo de barcas canhoneiras, tentaram tomar aquela posição. Mas os itaparicanos não arredaram pé dali. Braz do Amaral: “Escondidos nos matos próximos à praia atiravam a salvo contra a gente das canhoneiras, fuzilando-a de emboscada... A artilharia das canhoneiras, troando sem cessar, atraiu a gente da ilha [Batista Massa, o boticário subversivo, inclusive], que acudiu aos defensores, trazendo-lhes munições... Cada árvore era uma

trincheira e o asilo de um caçador”. Os lusos viram o tempo fechar. Bateram em retirada. E a vitória incendiou o ânimo dos “nacionais”. Note-se, aliás, que o “partido brasileiro”, estruturando-se militarmente no Recôncavo, sabia, através da ilha, o que ia se passando em Salvador: seus adeptos da capital transmitiam informações “por meio de sinais combinados de luzes [fogueiras ou movimentos de archotes, em pontos prefixados] para a Ilha de Itaparica”. Nesta, guarnições permaneciam acêsas. A esquadrilha de João das Botas, por sua vez, continuava infernizando a vida dos lusos, fustigando a frota colonialista que flutuava algo sonâmbula nas águas do grande golfo baiano. Finalmente, os lusos se decidiram a empreender um esforço mais enérgico, com o propósito de dominar a ilha. O ataque se deu a 7 de janeiro de 1823. Com o dia amanhecendo, a frota portuguesa mandou chumbo grosso para a fortaleza de São Lourenço. Da terra, as baterias responderam no mesmo tom. “A ponta da ilha ficou em fogo e a povoação coberta e obscurecida pelo fumo, continuando por toda a manhã as canhoneiras da flotilha a bater fortemente as trincheiras com artilharia grossa e metralha”. Os portugueses desceram então para embarcações menores, na tentativa de alcançar a terra. Ainda Braz do Amaral: “Desde que os portugueses apareceram melhor, enchendo os escaleres e lanchas descobertas, rompeu de terra fuzilaria intensa, regular e incessante, para os alvos certos da gente acumulada nos transportes. As bordas das embarcações baixas não podiam proteger os combatentes, fuzilados em monte... Debalde as canhoneiras crivavam de metralha as moitas, e as vizinhanças dos pontos de desembarque. Passada a refrega da metralha, a fuzilaria dos defensores invisíveis da ilha dizimava os assaltantes”. Ao cair da noite, os portugueses desistiram. Foram embora. Arrasados. Não tomariam aquela passagem, aquele segmento da orla ilhoa do mar. Não controlariam Itaparica. Não teriam como dominar o Recôncavo. Pelo contrário – poucos meses depois do ataque frustrado a Itaparica, o comandante lusitano estaria zarpando de volta para Portugal, derrotado. Itaparica e as demais ilhas da Bahia de Todos os Santos retomariam as suas vidas mais rotineiras. E só voltariam a se agitar no século seguinte, com uma outra leva invasora – desta vez, pacífica –, formada por contingentes heterogêneos de veranistas e turistas, especialmente durante os meses claros do verão. Com isso, as ilhas voltariam a ter o seu cotidiano subvertido e a sua paisagem modificada, sofrendo o avanço de casas, bares, restaurantes, condomínios, pousadas e hotéis, servidos por um sistema de transporte, o ferry boat, que apontaria, para os saveiros do tempo de João das Botas, o caminho da aposentadoria compulsória.

ORIXÁS, CABOCLOS E FESTAS Falamos já do calundu dos inquices, “encantados” que vieram de Angola para abrilhantar festas baianas. “Bahia”, aliás, era como muitos africanos denominavam os reinos porventura existentes em outras margens do Oceano Atlântico. Falamos, também, dos terreiros jeje-nagô, do povo-de-santo

que nos trouxe deuses de Ketu, Irá, Irê, Ejibô, Abeokutá, Oió, Ijexá. E falaremos, a seguir, dos “encantados” que brotaram aqui mesmo, nos campos da Bahia – os chamados “caboclos”. Antes disso, todavia, falemos alguma coisa dessas clareiras que se abriram, na Cidade da Bahia e em sua periferia, para os toques dos atabaques jeje-nagôs. De acordo com o nosso Oju Obá, Pierre Fatumbi Verger, “mulheres enérgicas e voluntariosas, originárias de Kêto”, teriam criado o primeiro terreiro do candomblé jeje-nagô no Brasil. Eram antigas escravas libertas, que faziam parte da Irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte, na Igreja da Barroquinha. O que se conta, de geração em geração, é que Iyalussô Danadana e Iyanassô Akalá, ou Iyanassô Oká – ou, ainda, Iyá Akalá –, auxiliadas por Babá Assiká, foram as fundadoras do Axé Airá Intilê, o primeiro terreiro jeje-nagô do Brasil, situado nas redondezas da Igreja da Barroquinha, nas primeiras décadas do século XIX. Relata Pierre Fatumbi Verger: “O terreiro, situado, quando da sua fundação, por trás da Barro-quinha, mudou-se por diversas vezes e, após haver passado pelo Calabar, na Baixa de São Lázaro, instalou-se sob o nome de Ilê Iyanassô, na Avenida Vasco da Gama, onde ainda hoje se encontra, sendo familiarmente chamado Casa Branca do Engenho Velho, e no qual Marcelina-Obatossí tornou-se a mãe-de-santo, após a morte de Iyanassô”. De acordo com Renato da Silveira – em seu erudito estudo Iyá Nassô, Babá Axipá e Bamboxê Obitikô – Uma Narrativa sobre a Fundação do Candomblé da Barroquinha, o mais Antigo Terreiro Baiano de Ketu – não foi a Irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte que esteve na base do Candomblé da Barroquinha. O relato de Renato diverge do de Verger. “Em meados do século XVIII, um grupo de confrades negros, homens e mulheres, fundou a Irmandade do Senhor Bom Jesus dos Martírios, a qual foi instalada em um altar lateral da velha capela de Nossa Senhora do Rosário das Portas do Carmo [Pelourinho] e, em seguida, na Igreja de Nossa Senhora da Barroquinha. A Irmandade dos Martírios, com o tempo, cresceu tanto a ponto de rivalizar com a do Rosário das Portas do Carmo. Na Barroquinha, foi sob o seu manto benevolente que se fundou, segundo se conta, o primeiro candomblé nagô-iorubá do Brasil”. Ainda nas palavras de Renato, “o terreiro foi assentado em terreno arborizado, situado logo atrás da igreja e arrendado pelos confrades por volta de 1794. Segundo consta, uma mãe-de-santo africana morava na ladeira ou travessa do Berquó e, nos primeiros tempos, o culto funcionava em sua casa”. Esta história, de resto, leva o nosso artistaantropólogo a concordar com a visão de Roger Bastide, segundo a qual as irmandades religiosas negras, criadas para inibir as práticas ancestrais “pagãs” de seus membros, acabaram se convertendo, também, em instrumentos e espaços a serviço da sobrevivência de cultos trazidos da África. Escreve Renato: “Foi exatamente o que aconteceu na Cidade da Bahia, na Barroquinha e provavelmente em outras igrejas onde, invertendo-se a lógica que tornava a organização negra um fragmento do sistema cristão, ritos e ‘fundamentos’ discretos tornaram igrejas e capelas parte do espaço sagrado africano”. Do Ilê Iyanassô, Casa Branca do Engenho Velho, nasceram, por dissidências internas, outros dois grandes terreiros do Candomblé jeje-nagô da Bahia, que ainda hoje ditam cartas e búzios em nossa paisagem cultural e religiosa: o Iyá Omi Axé Iyamassê, localizado no Alto do Gantois, cuja mãe-de-

santo foi Menininha do Gantois (Escolástica Maria da Con-ceição Nazaré), e o Centro Cruz Santa do Axé do Opô Afonjá, criado por uma negra grunci, Eugênia Ana dos Santos, a célebre Obá Biyi, que passaria às mãos da ialorixá Senhora (Maria Bibiana do Espírito Santo, Oxum Muiuá, descendente dos ijebus, um subgrupo do povo nagô-iorubá) e, dessas, às de Stella de Oxóssi, Odé Kayodé, mãede-santo preocupada com o registro e a transmissão do conhecimento, e por isso mesmo autora de livros como E daí Aconteceu o Encanto e Meu Tempo é Agora. Mas, do mesmo modo que a feijoada e a capoeira são invenções brasileiras, também os terreiros do candomblé jeje-nagô só existem entre nós. São um produto do Brasil Tropical Atlântico, que a África não conheceu. No continente africano, na Iorubalândia, deuses são cultuados em regiões distintas – Oxóssi em Ketu, Xangô em Oió, Iansã em Irá, Ogum em Irê, Oxum em Oxogbô, etc. – e dentro da linhagem familiar. Mas, como os iorubanos foram aqui compactados, eles também compactaram os seus deuses. E produziram essa entidade sintética e sincrética que é o terreiro jejenagô de candomblé. Deuses de regiões diversas passaram a condividir o espaço do egbé. E a estruturação familiar se abriu para abrigar as pessoas que chegavam. Foi um processo de reinvenção institucional, de recriação brasileira de formas da sociabilidade africana. Escreve Juana Elbein, em Os Nagôs e a Morte: “O ‘terreiro’ concentra, num espaço geográfico limitado, os principais locais e as regiões onde se originaram e onde se praticam os cultos da religião tradicional africana. Os orixás cujos cultos estão disseminados nas diversas regiões da África Yorùbá, adorados em vilas e cidades separadas e às vezes bastante distantes, são contidos no ‘terreiro’ nas diversas casas-templos, os ilêorixá”. Segundo Renato da Silveira, esta nova face, que o culto assumiu na Bahia, teve a sua origem no Candomblé da Barroquinha. Escreve o estudioso: “O Candomblé da Barroquinha foi o espaço que abrigou um grande acordo político reunindo os nagô-iorubás da Bahia, sob a liderança do Oxóssi de Ketu e do Xangô de Oyó, conforme foi estabelecido pela tradição”. Antes desse “acordo político”, a paisagem cultual era outra. “Os calundus coloniais de que temos alguma descrição eram pequenos cultos de apenas uma divindade, com poucos sacerdotes, e eventualmente dois cultos menores anexos, não mais. Segundo as tradições orais da Casa Branca, antes da grande aliança da Barroquinha, os candomblés baianos eram cultos de uma só divindade. O elemoxó Agnelo [da Casa Branca] cita um exemplo antigo desse proto-candomblé, que continuou do mesmo jeito até hoje, a Casa de Omolu, na cidade de Cachoeira”, esclarece Renato, para fazer, ainda, a observação seguinte: “A considerar o número e a grande diversidade dos orixás cultuados pelos candomblés baianos de Ketu, a aliança [o ‘acordo político’ da Barroquinha] deve ter reunido representantes de muitas ‘nações’ deportadas do golfo do Benim, e não apenas nagô-iorubás”. Inscrito no corpo da terra, o terreiro é o espaço-lugar de uma força, de uma potência, mas, também, marco tópico de uma diferença. É um espaço “diferente” do espaço da etnia dominante. Um lugar que se fez imantar por outros signos. Que por isso mesmo possui uma identidade distinta da dos lugares comuns da cidade e de sua periferia. Ali está o ponto – e a instância – onde o escravo já não é escravo, mas filho de um deus ou de uma deusa. De uma entidade sagrada africana,

extraocidental. De um orixá. Para lembrar Mircea Eliade, no terreiro uma árvore pode não ser exatamente uma árvore, mas uma entidade radiante e irradiadora, franqueada à manifestação do sagrado. Um elemento do “mundo natural”, sim, mas que foi semantizado para a encarnação concreta de uma força estranha e superior, divina. E assim podemos reinsistir numa leitura. Se a Cidade da Bahia fora pensada, de uma perspectiva lusitana, como uma Nova Lisboa, uma réplica tropical da metrópole banhada pelo Tejo, a criação de terreiros de Candomblé, em tal sítio, significou a abertura de espaços relativamente públicos que apontavam para um outro horizonte, um outro universo cultural. E que engendraram aqui, objetivamente, mais um mundo cultural paralelo. O mundo do machado de Xangô, da faca de Ogum, do ofá de Oxóssi, da labareda de Oiá-Iansã e dos espelhos de Oxum. Nas palavras de Muniz Sodré, em O Terreiro e a Cidade, a criação desse templos jeje-nagôs, com as suas casas e as suas reservas vegetais, foi um movimento de “reterritorialização étnica dentro do espaço nacional brasileiro”. As cidades não eram feitas apenas pelos senhores e os grandes negociantes, a partir de modelos urbanístico-arquitetônicos europeus. Segundo Muniz, o Axé do Opô Afonjá, por exemplo, se organizou segundo o modelo do palácio iorubano – afin – de Oió. Escreve o estudioso: “Estrutura parecida [à do afin] foi recriada no Brasil pelo terreiro afro-baiano. A separação do espaço do terreiro (por cerca ou qualquer outro meio capaz de criar analogia com a muralha que cercava todo afin), a presença de um espaço-mato, correspondente à floresta palaciana, evocam topograficamente a área do palácio. Mas a disposição dos templos – e isto fica evidente na organização do Axé Opô Afonjá – segue aproximadamente a estrutura do império Yorubá, procurando representar as cidades-estados, cada uma com hierarquia própria. No Axé, além da hierarquia da casa de Xangô (ancestral divino dos reis de Oió), orixá-patrono, destaca-se a da casa de Oxóssi, com um corpo de seis membros, denominado Aramefá. Oxóssi, divindade da caça, preside à fundação dos três grandes terreiros Ketu na Bahia”. Detalhes à parte, o terreiro jeje-nagô se concebe como um ícone miniaturizado, um “modelo reduzido”, do espaço original iorubano. Tem o espaço das casas, espaço urbano, onde ficam os ilês dos orixás, e o “mato”, a reserva vegetal, simulacro da floresta, de onde são retirados os espécimes vegetais indispensáveis à prática litúrgica. Na Bahia, algumas dessas reservas se localizavam (e se localizam) em sítios externos aos terreiros, como nos Barris e no Parque São Bartolomeu, em Pirajá. Ainda Muniz: “Por meio do sagrado, os negros refaziam em terra brasileira uma realidade fragmentada. O terreiro implicava a autofundação de um grupo em diás-pora. Era grupo construído, reelaborado com novos ancestrais: as mães (Iya) fundadoras dos terreiros”. Ao fazermos referência às grandes mães-de-santo da Bahia, não podemos deixar de chamar a atenção para esse aspecto singular da vida da mulher no Brasil oitocentista. De um modo geral, as mulheres pertencentes aos grupos sociais privilegiados continuaram pálidas e omissas. Nada fizeram de relevante, social ou culturalmente. Salvo raras exceções, como a da nossa primeira imperatriz, Leopoldina, que participou das articulações que conduziram à independência do país, elas permaneceram trancafiadas nos sobrados. Os senhores patriarcais, passando-se dos engenhos para as

cidades, mantiveram as suas mulheres enclausuradas, entregues aos cafunés afrodisíacos das mucamas. Gilberto Freyre lembra, a propósito, que a dominação sexual patriarcal gerou dois modelos femininos típicos: o da senhora gorda, prática e caseira, e o da mocinha franzina, romântica e neurótica, inspiradora de boa parte da má literatura que aqui se produzia, com o seu cultivo do “sexo frágil”, que o ensaísta pernambucano flagra pelo avesso, identificando, ali, o culto narcisista do macho patriarcal. “Nunca, numa sociedade aparentemente européia, os homens foram tão sós em seu esforço, como os nossos no tempo do Império”, sentenciou Freyre. Mas essa sua análise só é aplicável às mulheres da classe dirigente. Bem outra era a realidade entre negros e mestiços, homens e mulheres, todos pessoas das ruas e das praças, com os seus ofícios e os seus “cantos” de trabalho. É aqui que a negra ou a mulata mais se distingue das sinhás e sinhazinhas. Vamos encontrar as primeiras em campo aberto, algumas vezes empenhadas em iniciativas histórico-culturais de relevo. Como no caso das mulheres de Ketu que criaram os primeiros terreiros jeje-nagôs do Candomblé da Bahia. Mas aqui há duas coisas que merecem ser sublinhadas. Em primeiro lugar, a cultura iorubá foi transplantada para os nossos trópicos num momento de apogeu. O século XVIII e o início do século XIX marcam, para os nagôs, o período mais florescente de sua cultura. Para cá vieram personalidades importantes daqueles então poderosos reinos iorubanos. Aqui situados, eles manobrariam para, entre outras coisas, conseguir importar objetos importantes para a realização de suas cerimônias e de seus rituais, incluindo objetos de advinhação e o pano-da-costa, que se tornaria trade mark da semiótica vestual das pretas baianas. Em segundo lugar, os iorubanos souberam se mover – e se mover rapidamente – nos trópicos brasileiros. Constituíram-se, aqui, numa classe média de razoável poder aquisitivo, transmitindo solidariamente patrimônios e ofícios. Em Conversa de Branco: Questões e Não-Questões da Literatura Sobre Relações Raciais, Maria de Azevedo Brandão escreveu que “do segundo quartel do século XIX ao momento que compreende grosso modo as primeiras décadas deste século... indivíduos e famílias de cor parecem ter-se firmado na estrutura econômico-social das velhas capitais do Nordeste e no Rio como detentores de propriedades imobiliárias e bens de produção ou titulares de ‘ofícios’, a salvo da competição do imigrante e dentro de uma economia ainda em grande parte fundada num processo de acumulação em bases regionais”. Em outras palavras, isto significa o seguinte. Os africanos de extração nagô-iorubá não só detiveram postos importantes em seus lugares de origem, em âmbito aristocrático, como vieram para começar a formar a classemédia negromestiça que então principiava a se configurar na Cidade da Bahia e seu Recôncavo. Escreve Muniz Sodré: “Dentro dessa perspectiva, foi benéfica para alguns grupos negros da Bahia a decadência econômica dos senhores-de-engenho... Engenhos endividados, safras empenhadas, economia açucareira estagnada, nada disso prejudicou, muito pelo contrário, a expansão da estrutura de serviços urbanos e pequenas manufaturas, de que se beneficiariam setores mais bem colocados da população negra. (...). O terreiro jeje-nagô constitui-se de elementos que participam ativamente desse processo ascensional”. E o fato é que o terreiro jeje-nagô, espaço negroafricano no espaço urbano brasileiro, acabou se implantando no Rio de Janeiro. Através de

baianos migrados, chegou à Saúde e à Cidade Nova, terrenos do Rio, vivendo ao lado das macumbas dos bantos, que eram majoritários na capital da corte. Ao mesmo tempo, enquanto exportava modelos de culto enraizadamente africanos, a Bahia assistia, dentro de seu próprio território, ao nascimento de uma nova manifestação cultual, com o surgimento da figura mítica do caboclo e do chamado candomblé-de-caboclo. O assunto foi estudado por Jocélio Teles dos Santos, em O Dono da Terra - o Caboclo nos Candomblés da Bahia. É um tema curioso – e Jocélio viu bem as coisas. Porque, de uns tempos para cá, alguns terreiros de Candomblé, no afã de afirmar uma suposta “pureza” africana de suas práticas, com vistas a se diferenciar no mercado dos bens simbólicos, passaram a ocultar a presença do caboclo em seu meio. O caboclo se tornou uma espécie de mácula brasílica a ser dissimulada, em função da exibição da citada pureza. E o mesmo aconteceu entre os estudiosos – o caboclo como “uma pedra no caminho da legitimidade africana dos candomblés”. No entanto, o caboclo, encarado como “encantado” de origem ameríndia, penetrou nos terreiros “de angola” e jeje-nagô e ainda abriu espaço, no sistema religioso baiano, para a definição do candomblé-de-caboclo, onde os pretensos “índios” são festejados com sambas cantados em português. Mesmo numa sociedade secreta vinda diretamente da África, e aqui sobrevivendo no “lessé egum” da Ilha de Itaparica, onde são cultuados os grandes ancestrais do povo nagô, de Babá Alapalá a Babá Canã, volta e meia aparece um ancestral caboclo, o Babá Iaô, exibindo um diadema de penas em suas danças coloridas, para perguntar se a roupa dele está bonita, e ouvir o coro feminino responder entre palmas: “odara, babá”. Pesquisadores informam, ainda, que até uma ialorixá como Olga de Alaketu “tem” o seu caboclo, Jundiara, que festeja todos os anos, no mês de janeiro. Esse culto data do século XIX. É possível defini-lo como uma expressão objetiva, no plano religioso, do modo como as camadas populares da Bahia representaram simbolicamente, para si mesmas, as culturas ameríndias que aqui vicejavam, antes da conquista lusitana dos trópicos. Podemos falar de recriação simbólica da figura do índio pelo simples motivo de que é evidente que os caboclos que baixam, em nossos terreiros, não são entidades extraídas dos sistemas sagrados ameríndios. São uma invenção do povo baiano. “Sou brasileiro, brasileiro sou/ Eu sou do Brasil, brasileiro imperador”– diz, aliás, um canto caboclo. Edison Carneiro, por sinal, defendeu a tese de que a configuração dessa entidade – o caboclo –, foi um reflexo, na mentalidade popular, da valorização da figura do índio em nossa literatura romântica e no processo da independência nacional, quando se passou a idealizar tudo que fosse indígena, em detrimento do que fosse português. Sabe-se aliás que, nessa época, muitos brasileiros chegaram a trocar seus nomes europeus por nomes ameríndios, criando entre nós uma espécie de reviravolta antroponímica – uma curiosa onomástica ideológica, nacionalista. É claro que o povo não é nunca imune a esses jogos simbólicos. Pelo contrário. Mas não acredito que se possa sustentar uma afirmação categórica, e muito menos mecanicista, sobre a matéria. As camadas populares são afetadas pelos signos que as elites colocam em circulação, mas também realizam as suas próprias reinvenções dos símbolos em circuito. Daí que o caboclo Martim Pescador ou o caboclo Ogum Marinho não sejam o Peri dos romances de José de Alencar. E a mistura, aqui, é total, como no seguinte cântico:

Oh Deus vos salve Oh Deus vos salve Deus salve essa aldeia real Gloria in excelsius Caboclo é de vizaura Deus vos salve cruz espada Aê á á Onde Deus fez a morada Aê á á Aonde mora o cálix bento Aê á á E a hóstia consagrada

Que o caboclo tenha se firmado no imaginário baiano é coisa fácil de constatar. Ainda hoje, a comemoração do 2 de Julho, data da independência da Bahia, é um grande evento popular, chamado “Festa do Caboclo”. Nesse dia, o caboclo é personagem central de um desfile cívico-carna-valesco – que retrata a entrada do exército libertador na Cidade da Bahia – e é cultuado em terreiros, além de receber homenagens do Parque São Bartolomeu, em Pirajá, num barracão próximo à Cachoeira de Oxum, onde costumam se banhar, ao som dos tambores, ao cheiro do dendê e do mel, ao sabor da jurema. Indo em busca de origens do fenômeno, conta Cid Teixeira que, um ano após a vitória baiana contra os lusos, o povo saiu às ruas para comemorar: “Lançaram mão de uma carreta tomada aos lusitanos nos combates de Pirajá, enfeitaram-na de ramos de café, fumo, ‘folha brasileira’ (croton) etc. e, sobre a carreta, colocaram um velho mestiço descendente de indígenas. E assim conduziram do Largo da Lapinha ao Terreiro de Jesus o carro e emblema da ocasião... ao som de pandeiros, violas, aclamações delirantes, fanfarras, etc.”. Dois anos depois, o velho mestiço foi substituído por uma escultura. Passamos a ter um caboclo em efígie, que ainda hoje desfila pela cidade, tendo a seu lado, desde 1846, a estátua de uma cabocla, representando a tupinambá Catarina Paraguaçu. A importância popular do caboclo vem resistindo ao tempo. Escreve Jocélio: “Além da relação de sacralidade com o Caboclo, toda uma espécie de civismo genuinamente popular se desenvolve em torno desse símbolo da terra”. O linguajar popular da Bahia não deixou de ser marcado pelo fato – e é por isso que falamos, por exemplo, em “chorar no pé do caboclo”. O historiador João José Reis, por seu turno, trata o 2 de Julho como um mito de origem: “A Bahia tem a personalidade de um país e o Dois de Julho é seu principal mito de origem”. Ainda Reis: “Hoje o Dois de Julho é uma mistura de festa da ordem com festa popular. No início, a festa era só do povo, mas aos poucos as autoridades foram se apropriando de partes dela. A disputa pelo mito nunca foi decidida, é como se o mito estivesse irremediavelmente impregnado de sua origem histórica: o conflito”. No meio da rua, no centro da festa – o caboclo. E o povo festejando “encantados”. Esses entrecruzamentos simbólicos, nas festas populares da Bahia, não se restringem às comemorações do

2 de Julho. O caso deste é especial, pela dimensão histórico-política. Mas são inúmeros entre nós, e bem antigos, os exemplos de festas em que se misturam o “sagrado” e o “profano”. Para não multiplicar tópicos, basta pensar no 2 de Fevereiro, no Rio Vermelho, e na Festa do Bonfim. Talvez até por se acharem diante de algo meio estranho para as suas cabeças, diversos observadores estrangeiros deixaram relatos interessantes de tais festas. Sobre o 2 de Julho, por exemplo, escreveu Adolphe d’Assier, na década de 1860. Na mesma época, o príncipe Maximiliano esteve no Bonfim. D’Assier – depois de se referir a música e foguetório, casas embandeiradas, ruas abarrotadas de negras com turbantes, algazarra geral – conclui: “Já vi muitas festas nacionais na velha Europa, e em parte alguma notei uma alegria tão ruidosa, um regozijo tão franco”. Maximiliano, de sua parte, se impressiona com o “movimento confuso de feira”, os negros em trajes berrantes, o alto consumo de cachaça, a balbúrdia, a “louca alegria” – e, cheio de preconceito, fulmina: aquilo não era um acontecimento religioso, mas um carnaval negro. Mas a verdade é que, historicamente, sempre foi assim. Falamos antes dos festejos cívicos e religiosos do século barroco, com as suas exuberantes manifestações carnavalescas. O que alguns estrangeiros parecem não compreender é que na Cidade da Bahia e seu Recôncavo os deuses não têm sido, tradicionalmente, adversários do prazer. Nem inimigos da alegria. Além disso, o fato da festa baiana ter se convertido em espaço para o entrecruzamento de símbolos de fontes culturais distintas aponta para uma realidade fundamental: aqui, nada, rigorosamente nada, conseguiu preservar uma pureza original, pré-brasileira.

ABOLIÇÃO – REPÚBLICA Acabar com a escravidão não basta – é preciso destruir a obra da escravidão. Era o que Joaquim Nabuco dizia. Nabuco via na escravidão a mancha de Caim que o Brasil trazia na testa. O sinal da maldição fratricida. Daí que o Movimento Abolicionista, considerando que “todas as transações de domínio sobre entes humanos são crimes que só diferem no grau de crueldade”, tenha se lançado tão corajosamente ao combate. E para vencer. Vale a pena citar, a propósito, o que diz o historiador Luiz Felipe de Alencastro: “Nem o mais arguto analista conseguiria então prever os desdobramentos do conflito. Tudo poderia ter acabado num enfrentamento generalizado entre fazendeiros, capangas, polícia, brancos pobres e imigrantes aterrorizados, de um lado, contra abolicionistas, negros livres e cativos desesperados, de outro. No final desse ‘pega-pra-capar ’ em escala nacional, o Exército entrava de sola, instaurando a via brasileira para o apartheid, teorizada pelos ‘racistas científicos’ que ensinavam nas academias do pedaço”. E mais: “tardio ou inconseqüente, o 13 de Maio de 1888 continua sendo o mais estrondoso maremoto que varreu a atribulada sociedade brasileira”. Foi uma grande vitória. Mas os abolicionistas se recusavam a reduzir sua missão ao objetivo de libertar os escravos. “Essa obra da emancipação dos atuais escravos e seus filhos é apenas a tarefa

imediata do Abolicionismo”, pregava Nabuco cinco anos antes da promulgação da assim pitorescamente chamada Lei Áurea. A meta maior do movimento – “a do futuro” – era apagar todos os efeitos de um regime. O Abolicionismo pensava-se então, em termos nabuquianos, como projeto de “reconstituição completa do país”. É verdade que nem todos pensavam como Nabuco – daí que, de resto, a obra da escravidão ainda persista entre nós, acompanhando todos os nossos passos. Mas a abolição se realizou – e, com o 13 de Maio, tudo mudou. De qualquer modo, tanto o abolicionismo (apesar da presença nacional das personalidades de Ruy Barbosa e Castro Alves) quanto o republicanismo foram estrelas tênues, quase apagadas, no horizonte interno da vida baiana. Depois de passar em revista, mesmo que de modo breve e superficial, coisas como as insurreições escravas e as revoltas federalistas da Bahia, somos forçados a reconhecer que a dupla abolicionismorepublicanismo não apresentou, por aqui, brilhos extraordinários. Foram movimentos importantes, sim, mas localmente carentes de fulgurações. Em 1860, plantado “sob o rico e dourado esplendor solar dos trópicos”, o príncipe Maximiliano via a população baiana dividida em negros que eram escravos – “isto é, animais com alma humana” –, e brancos que eram senhores – “isto é, homens com alma animal”. Antes que ele disparasse a sua flecha, todavia, o questionamento da escravidão já começara entre nós. Foi justamente naquela década de 1860, aliás, que Castro Alves e Ruy Barbosa fizeram os seus primeiros gestos abolicionistas. Em 1868, Alves compunha, no rastro do Sklavenschiff de Heinrich Heine, o seu O Navio Negreiro. No ano seguinte, em artigo estampado no Radical Paulistano, o jovem Ruy era categórico: “A abolição da escravidão, quer o governo queira, quer não queira, há de ser efetuada num futuro próximo”. Diz Rômulo de Almeida que, em verdade, desde 1815 já se falava por aqui em superioridade do trabalho livre. Ele argumenta com a Colônia Leopoldina, no Sul do Estado. Mas não dá: a Colônia Leopoldina foi um empreendimento que escravizou imigrantes. Foi com o fim do tráfico e do comércio de escravos da Bahia para outras províncias que realmente se impôs à discussão, em nosso meio, o tema do trabalho livre. Thales de Azevedo: “Nessas circunstâncias o problema dos braços iria constituir a preocupação central dos homens de governo. Desde então a colonização com braços livres passa a constituir a maior esperança para a recuperação econômica da província, todos os projetos de desenvolvimento durante muitos decênios girando em torno desse recurso com a insistência de um estereótipo, que nunca se viria a traduzir em realidade tanto pela falta de recursos como pela resistência das plantations açucareiras em aceitarem alterações no seu esquema de relações entre proprietários e trabalhadores”. Na década de 1850, começaram a surgir, em nosso meio, as primeiras associações empenhadas na luta pela extinção do trabalho escravo. Data de 1852 a primeira delas, a Sociedade Libertadora Dois de Julho, presidida por Almeida Couto. No final da década de 1860, aliás, a data cívica do 2 de Julho começou a ser comemorada com alforrias públicas. Mas Thales está certo ao falar de uma resistência baiana ao fim do regime escravista. Os senhores de engenho do Recôncavo sempre se opuseram a tentativas para extinguir a servidão. E não podemos nos esquecer de que a Associação Comercial da Bahia e o Imperial Instituto Baiano de Agricultura não gostaram nada do projeto

emancipacionista de Souza Dantas (1884), a chamada Lei dos Sexagenários. Por conta do seu engajamento nesse projeto, de resto, Ruy Barbosa foi atacado pela Igreja, “acusado de comunista, incendiário do país, portador da bandeira vermelha”, como bem nos lembra Rejane M. M. de Almeida Magalhães, em seu artigo As Idéias Abolicionistas de Rui. Mais que isso, Ruy não conseguiu se reeleger deputado pela Bahia. Daí talvez que, em discurso imediatamente posterior aos fatos, tenha recordado José Bonifácio, para afirmar que a emancipação dos cativos não poderia sair da cabeça de um potentado rural. Assim, enquanto Castro Alves projetava seus versos rimbombantes, tantas vezes mais próximo de uma retórica tribunícia do que propriamente poética, a resistência baiana prosseguia, sólida, em meio aos poderosos da Província. Se o jovem poeta recordava as agruras dos navios negreiros (anos depois da extinção do tráfico, diga-se de passagem), boa parte dos membros da elite baiana daria tudo para poder estar de volta aos bons velhos tempos do comércio de gente. Outra prova disso é que a forte posição de nossa elite no poder imperial praticamente serviu apenas para adiar o desfecho do processo abolicionista. Como disse Sergio Buarque de Holanda, a Bahia, “que representaria a terra clássica dos oradores brilhantes e dos políticos habilidosos”, foi, durante o século XIX, “o berço privilegiado dos estadistas do Império”. Daí que o historiador possa alargar em muito a fórmula “dias do baianismo”, cunhada por um político carioca para falar dessa hegemonia regional no aparelho central do Estado. E, como anotou Silva Santos, esse predomínio baiano em posições de mando revela, ao estudioso do assunto, “o quanto a manutenção do trabalho escravo era importante para uma área decadente como a Bahia”. Por essas e outras coisas, podemos dizer que a libertação dos escravos da Bahia foi muito mais obra dos próprios escravos do que de nossos intelectuais, artistas e políticos. Da fuga à aquisição de cartas de alforria, os escravos não deixaram de manobrar um minuto sequer para se ver livres da dominação senhorial. Com o avanço social do sentimento antiescravista, melhor ainda. Negros e mestiços continuaram incansáveis em sua batalha pela autonomia pessoal. Não ficaram, de modo algum, esperando pela Lei Áurea. Escravos ainda eram numerosos entre nós em 1870. Mas, a partir daí, eles já aparecem como um contingente populacional em fase de redução progressiva – e cada vez mais rápida. Kátia Mattoso fornece dados significativos a esse respeito. Informa que escravos representavam 66,3% da fortuna dos artesãos na primeira metade do século XIX, mas apenas 12,4%, na segunda: a média de escravos por proprietário caíra de 4 para 1,3. Mais Kátia: “A partir da década de 1870 os escravos figuram em menos da metade dos inventários. Profissionais liberais, padres e altos funcionários já não os tinham para o serviço doméstico. O que restava como escravos domésticos eram mulheres idosas, conservadas em casa por comiseração ou costume. Só proprietários agrícolas, senhores de engenho, alguns negociantes e comerciantes continuavam a ter grande número de escravos, por vezes mais de vinte, em geral trabalhando em plantações ou como auxiliares de comércio. O prestígio antes associado à posse de escravos esfumava-se: passava até a ser de bom tom não os possuir, recorrendo a empregados domésticos assalariados ou simplesmente aos agregados e agregadas que povoavam as casas abastadas”. Em outros termos, quando a abolição chegou à Cidade da Bahia, já não existia por aqui nada que pudesse ser classificado como uma “massa escrava”. Pelo contrário, o número de

escravos era, pode-se dizer, socialmente dispensável: cerca de três mil indivíduos numa cidade de mais de 120 mil habitantes. Isto significa que Salvador funcionava já em outras bases. Era o chamado trabalho livre que movia moedas e moinhos. Quanto ao republicanismo, tudo indica que o Forte de São Pedro e a Faculdade de Medicina foram os centro da agitação e/ou da propaganda antimonarquista em nosso meio. Tivemos aqui clubes republicanos, opiniões divididas, brigas de rua, algumas aproximações ou mesmo conexões entre os ideários da república e da campanha abolicionista. Mas nada de muito especial. Além disso, a propaganda republicana foi prejudicada, em certos círculos baianos, por um marco referencial que, àquela altura, ainda amedrontava: a revolta semi-separatista, se assim se pode dizer, da Sabi-nada, ocorrida em 1837. A propósito, em meio às discussões políticas que afloram nas páginas de O Feiticeiro, de Xavier Marques, uma personagem vai direto ao assunto, trazendo à tona o pavor provincial: “República é revolução, é incêndio, é saque... é sabinada. Eis o que todos temem”. No rastro de Braz do Amaral, costumamos distinguir dois momentos “quentes” na cronologia do republicanismo baiano. O primeiro foi o 15 de junho de 1889. Naquele dia, aportaram na Cidade da Bahia, no mesmo navio, uma encarnação da monarquia e um líder republicano: o Conde d’Eu e Silva Jardim. O pau quebrou entre os partidários de ambos. Jovens republicanos foram agredidos a pedradas e cacetadas por pessoas lideradas por um sujeito conhecido pela alcunha de Macaco Beleza, “indivíduo de origem escrava e partidário exaltado da Monarquia”. Quando, finalmente, chegou à Bahia a notícia da Proclamação da República, autoridades provinciais e membros da Associação Comercial quiseram reagir. Macaco Beleza voltou à cena, comandando apedrejamentos de bondes, assaltos a casas de estudantes, invasões de tavernas. Mas já era tarde. Nos dias 16 e 17 de novembro, o novo regime republicano foi proclamado duas vezes entre nós, como veremos adiante. Em seguida, o candidato de Ruy Barbosa e da velha elite monarquista da Bahia, Manoel Vitorino, assumiu o posto de governador dos baianos. Para entender o que se passou na Bahia, naquela conjuntura, é preciso lembrar que a classe dirigente baiana se opôs, até quando isto foi possível, à mudança de regime político. Para quem não sabe, a Bahia foi a última província do Império a aderir à República. “Com efeito, até à vigésima quinta hora, a maior parte da elite política jurou fidelidade ao Imperador e, abertamente, repudiou a ideologia igualitária da República. Liberais e conservadores uniram-se em protesto contra a mudança do regime. O último presidente da província, o liberal José Luiz de Almeida Couto, recusou o convite que o marechal Deodoro da Fonseca lhe fizera para continuar a chefiar o executivo baiano. Com firmeza, garantiu ao chefe do Governo Provisório que ‘o povo da Bahia permanecia leal às instituições monárquicas’. De igual modo, o Conselho Municipal de Salvador rejeitou solenemente a ditadura militar, através de moção que reafirmava lealdade à Monarquia e solidariedade ao Imperador deposto. Chegou-se a planejar uma resistência armada em defesa das instituições monárquicas”, como nos ensina a historiadora Consuelo Novais Sampaio, em Partidos Políticos da Bahia na Primeira República. Não é difícil explicar as razões que levaram a elite dominante baiana a reagir contra o

movimento republicano e o golpe militar que despachou D. Pedro II para o exílio. Antes de mais nada, havia o seu conservadorismo, que não era de superfície, mas de fundas e contorcidas raízes. Para essa camada socialmente privilegiada, o ideário republicano era sinônimo de anarquia, colocando, em perspectiva, o espantalho da subversão. Mas não só. Tanto a nossa elite política como o nosso empresariado agromercantil achavam que, com a alteração de regime, só teriam a perder. Em termos de prestígio político e em matéria de rendimento econômico. Afinal, a instalação do regime republicano, no Brasil, não é dissociável da expansão centro-sulista da economia do café. Da projeção hegemônica da oligarquia cafeicultora, que então se aliou a representantes de uma indústria ainda embrionária, a profissionais liberais e, claro, a militares. O café era então o principal produto brasileiro de exportação, dominando inteiramente a cena econômica de um país que se definia em termos essencialmente agroexportadores. A Bahia, nesse horizonte, oscilava de mal a pior. Suas exportações significavam muito pouco. E o cacau ainda não havia se imposto na linha de frente de nossas trocas comerciais. Ouçamos Consuelo Novais Sampaio: “Em 1889, no ano da República, o valor total das exportações da Bahia desceu a um nível nunca antes registrado... Além dessa completa estagnação... a Bahia estava a braços com uma dívida externa sem precedentes”. A situação era de crise, acentuada, ainda, pelo fim do sistema escravista, que deu uma boa desorganizada nos negócios senhoriais – “e, aos olhos da elite, a mudança do regime político só contribuiria para agravá-la mais ainda. Era possível antever, pelos interesses envolvidos na implantação da República, que a Bahia não teria, sob o novo regime, a influência política de que gozara no Império”. Resumindo: “...enquanto a República prenunciava prosperidade econômica e renovação política para o Centro-Sul do país, para o Nordeste, e para a Bahia em particular, ela significava, aos olhos das elites, agravamento do marasmo econômico, perda de prestígio político e ameaça de conturbação política e social”. Com isso – e diversamente do que ocorreu em outras regiões brasileiras, como São Paulo e Rio Grande do Sul, por exemplo –, o movimento republicano, na Cidade da Bahia, foi coisa de um pequeno punhado, de um grupúsculo de intelectuais e estudantes, do qual se projetou a figura de Virgílio Damásio, o nosso “republicano histórico”. Ainda em O Feiticeiro, Marques fala de “jovens bacharéis e doutorandos que faziam política idealista, sonhando reformas, federações, repúblicas”. Fala, enfim, de nossa juventude republicana e de seus projetos. “Reunidos, os republicanos da Bahia não chegavam a duas centenas. Eram comerciários, estudantes e professores da Faculdade de Medicina”, anotou Luís Henrique Dias Tavares, en passant, em sua História da Bahia. A elite política local não só tratou de bloquear os caminhos do republicanismo entre nós, como, mesmo depois da deposição de Pedro II, não se dispôs a proclamar o novo regime. Foi, por isso mesmo, atropelada pelos fatos. A iniciativa da proclamação correu, assim, por conta do coronel (republicano) Christiano Buys, comandante do 16º Batalhão de Infantaria. Ele convocou os republicanos Virgílio Damásio e Deocleciano Ramos e, juntamente com vários oficiais militares, proclamou a República, ao entardecer do dia 16 de novembro, no Forte de São Pedro. Pela lógica dos fatos, todos esperavam que o líder e militante republicano Virgílio Damásio fosse escolhido, então, para ser o primeiro governador da Bahia. Nada feito. Ruy Barbosa, empossado

ministro da Fazenda do “governo provisório” de Deodoro da Fonseca, resolveu bater na mesa. Ele não queria que Damásio assumisse o governo da Bahia. Tinha outro nome para o posto: Manoel Vitorino, um monarquista (o próprio Ruy, de resto, fora um adesista de última hora; como ele mesmo disse, batera-se “contra a monarquia sem deixar de ser monarquista”; em suas Cartas de Inglaterra, lê-se que ele não conspirou para a República, tendo “a sua revelação nas vésperas, quando ela já estava feita”). Vitorino demorou a se decidir. Até ele considerava lógica e natural a escolha de Virgílio Damásio. Mas não houve jeito. Damásio ficou cinco dias no cargo, até que Vitorino se dispôs a assumi-lo, para, aliás, renunciar cinco meses depois. Daí a farsa, a encenação teatral que tiveram de fazer, para tirar Damásio da jogada, tomando-lhe oficialmente o título de proclamador da República na Bahia. Sim. Como disse, proclamaram de novo o novo regime. Foi no dia 17 de novembro, por volta de uma hora da tarde, no mesmíssimo Forte de São Pedro. Nossa vida política republicana seria comandada, portanto, pelos velhos monarquistas locais, pelos grupos oligárquicos de sempre, agora convertidos ao sistema vitorioso. “A conversão de liberais e conservadores do Império ao novo credo republicano se deu após o exílio da família imperial para a Europa. Esperavam que o navio que levava D. Pedro II ancorasse na Bahia. Como isso não aconteceu, abandonaram a Monarquia e, cautelosamente, só acolheram o novo regime quando ele se tornou fato consumado. Então, como numa revoada, as adesões partiram de todos os lados”, escreveu Consuelo Novais Sampaio. Em O Movimento Republicano na Bahia, Mario Augusto da Silva Santos chama a nossa atenção para outros dois pontos. De uma parte, relativiza a frieza ou a indiferença da população da Cidade da Bahia com relação ao movimento republicano. Como se sabe, Braz do Amaral enfatizou esse aspecto, contrastando as posturas de nosso povo diante do carnaval e frente ao advento do novo regime político nacional: “O povo assistiu a tudo isto mudo e indiferente, como se não fossem os seus destinos que se mudavam. Havia muita gente na rua para ver a passeata militar, mas o povo que delira em gritos pelo carnaval não gastou as forças nem enrouqueceu em protestos e aplausos, contraste que pode servir para medida do estado do seu espírito pelo que diz respeito às coisas sérias e graves”. Ora, o velho Braz está comparando aí coisas que não devem ser comparadas. (Se quisesse gracejar, diria que posso chegar a uma reunião política importante com um ou dois minutos de atraso, mas jamais me atrasaria meio minuto para um encontro erótico com, digamos, Luma de Oliveira). São energias distintas. É certo que o povo brasileiro, ainda pisando nas brasas do escravismo, não se engajou na viagem republicana. Nem teria uma razão especialmente poderosa para fazê-lo, já que aquela movimentação política não apontava, de modo concreto e imediato, para qualquer mudança mais profunda em sua vida. Está bem. Mas voltemos a Silva Santos. Ele observa que “a presença de segmentos populares no movimento republicano em Salvador é nebulosa”. Mas, ao mesmo tempo, nos fornece dados objetivos de que o povo não permaneceu gelado ao longo dos eventos. Funcionários públicos, artesãos, etc. teriam tomado suas posições. As camadas hierarquicamente subalternas da sociedade baiana tanto defenderam o regime monárquico quanto aderiram ao movimento republicano. E isto pouco tem a ver com indiferença. Consuelo nos deixa ver o mesmo panorama. E mais: mostra-nos

uma atenção popular para os desdobramentos iniciais do regime implantado em novembro de 1889, ao falar de inesperadas agremiações políticas que se formaram logo nos primeiros dias republicanos. Como foi o caso, na Bahia, do Partido Operário, de brevíssima existência, transformando-se, quase que de imediato, numa inócua associação beneficente. Consuelo: “Com o alargamento do direito de voto sob o novo regime, as camadas populares também se manifestaram, tentando ‘intervir mais diretamente nos negócios políticos do país’. Organizou-se, assim, o Partido Operário, com diretório sob a presidência de Gonçalo José Pereira Espinheira e mais nove membros, entre os quais Manoel Querino. Agrupando artistas e operários da capital, que se reuniam na sociedade musical Luso-Guarani, no Pelourinho, o Partido Operário também criou o seu órgão de divulgação. Mas, dirigido a artistas e operários, de limitadas aspirações e em grande parte analfabetos, jornal e partido tiveram vida breve... Na verdade, o Partido Operário surgia extemporaneamente, numa sociedade estruturalmente arcaica e ancilosada, cuja elite dirigente opunha resistência à organização de um partido que pudesse fazer ouvir a voz de uma camada da sociedade até então emudecida”. O Partido Operário foi, assim, mais uma intenção do que uma realidade. Mas, sem dúvida, uma intenção significativa. Quanto às relações entre abolicionismo e republicanismo, Silva Santos é igualmente esclarecedor. É verdade que esses movimentos não foram fenômenos interligados, quer em plano nacional, quer em âmbito regional. Eles só vão se entrelaçar tardiamente, já em meados da década de 1880. Em todo caso, não foram assim tão raras as personalidades baianas que se deixaram energizar, simultaneamente, pelos dois movimentos. Já mencionamos aqui duas delas, por sinal, embora sem explicitar a convergência de vínculos. Virgílio Damásio, por exemplo, apostou em ambas as correntes transformadoras. Outro exemplo pode ser encontrado na trajetória do supracitado Manoel Querino, o pesquisador mulato que nos deu obras como A Raça Africana e A Bahia de Outrora. Personalidade histórica que Jorge Amado transfiguraria em personagem literária, recriando-o no Pedro Archanjo de Tenda dos Milagres, Querino foi, aliás, um caso excepcional – além de abolicionista e republicano, lutou pioneiramente, como vimos, pela formação de um partido operário naquela Bahia de fins do século XIX. De qualquer modo, ainda que sem maiores brilhos, sem faíscas de surpresa e sedução – antes, em clima bem mais próximo do mormaço do que da atmosfera férvida das agitações transformadoras do real histórico – a Bahia acompanhou o movimento geral da nação. Assistiu ao fim do longo período de vigência do trabalho escravo. E ingressou na era republicana.

LETRA E MÚSICA É evidente que este não é um espaço onde eu vá (ou possa) tratar, com o cuidado necessário, de questões relativas à literatura ou à música na Cidade da Bahia e seu Recôncavo, ao longo do século

XIX. Mesmo porque, literariamente, o nosso século XIX, se fica bem aquém das fulgurações do século barroco, supera, obviamente, a inexpressividade do século XVIII. Quero apenas falar um pouco de três escritores que marcaram o período – e de um processo popular. No campo da prosa literária, por exemplo, veja-se o caso de Xavier Marques. Jornalista, historiador e romancista, Marques deixou uma obra de ficção que não pode ficar sem registro, ao menos em âmbito regional. Livros como O Feiticeiro e Jana e Joel, por exemplo. O Feiticeiro é um retrato “realista”, sob certos aspectos admirável, da sociedade oitocentista baiana, captando práticas, valores e costumes de nossa gente – do estrato intermediário da hierarquia social, sobretudo –, nas mais variadas circunstâncias, entre as décadas de 70 e 80 do século XIX: os “concursos de luxo” em festas religiosas; os “oitavários estrondosos do Bonfim”; a cadeira de arruar e o escravo fugido; a repressão policial ao Candomblé e ao clube republicano; os comerciantes estrangeiros; a fraude eleitoral; a “sensualidade crioula” e as batucadas boêmias; os dobrados, a capoeira, os ternos na Lapinha, os bailes pastoris no Maciel de Baixo, a dança da “burrinha” no Pelourinho; os “capadócios gaiatos” tomando conta das praças; negros carreando água dos chafarizes; o culto das aparências; os preconceitos sociais e raciais. Em suma, é a Cidade da Bahia, “mulata velha”, mostrando suas muitas faces. Há ainda um outro aspecto, especialmente importante. A “feitiçaria nagô” atravessa o romance. É o despacho de Exu, a pedra de raio de Xangô, o culto da gameleira sagrada, o amplo circuito de babalaôs e ialorixás, de atabaques e iaôs, de ogãs e de alabês, de gente mascando obi e aviando ebós. Enfim, O Feiticeiro marca o ingresso do mundo dos orixás – da “alma nagô”, como diz o próprio Xavier Marques – no romance brasileiro. Dele descende o Jubiabá de Jorge Amado, por exemplo; e as peripécias de orixás e iaôs em Viva o Povo Brasileiro, de João Ubaldo. Além disso, pode-se dizer que Marques é, ainda, a matriz da ficção praieira de Amado. De Jana e Joel, novela que focaliza em modo romântico a vida comunitária em ilhas e praias da Bahia de Todos os Santos, descende uma narrativa como a de Mar Morto – e Mar Morto é, também, uma das matrizes básicas de Viva o Povo Brasileiro. O que nos permite divisar, portanto, uma conexão Xavier Marques-Jorge Amado-João Ubaldo. Xavier é pai de Jorge. E avô de Ubaldo. No horizonte da poesia, temos o caso incontornável de Castro Alves, o inflamado e sedutor poeta romântico-abolicionista que morreu ainda muito jovem, aos 24 anos de idade, mas já consagradíssimo, coberto e recoberto de aplausos. Tuberculoso, apaixonado, de olhos “profundos e luminosos”, jovem triste e torturado que fora obrigado a amputar um pé, Castro Alves passou pelo país como uma chama de fascínio, tendo a seus pés, como disse Joaquim Nabuco, “uma multidão sensível ao efeito das imagens arrojadas e das palavras ressonantes”. Seu romantismo já não foi, obviamente, o romantismo ecológico-indianista de nossos primeiros cultores da escola romântica. Alves fez parte de uma outra geração, mobilizada por ideais antimonárquicos e mesmo democráticos. Uma geração que se criou com a Guerra do Paraguai e as campanhas pela Abolição e pela República. O próprio Castro Alves, aliás, alistou-se, com colegas seus da Faculdade de Direito do Recife, no Batalhão Acadêmico de Voluntários para a Guerra do Paraguai – e fundou, juntamente

com Ruy Barbosa, uma sociedade abolicionista. É claro que ele não foi somente um épico, tonitruando em partitura victor-hugoana. Foi também, entre outras coisas, um cantor da natureza – um cantor que erotizava a natureza, como no poema A Tarde, onde lemos sobre “as tranças mulheris da granadilha” ou “os abraços fogosos da baunilha”. Quase que se pode dizer que a poesia ambientalista de Castro Alves é mais erótica, mais sexualizada, do que a sua poesia propriamente amorosa. Mas nem por isso deixou o poeta de cultivar um lirismo amoroso que aqui e ali alcançaria esse tom ou feitio mais francamente erótico, como, por exemplo, na visão do corpo da amada que aparece no poema Boa-Noite: “A frouxa luz da alabastrina lâmpada/ Lambe voluptuosa os teus contornos...”. De todo modo, não foi este o Castro Alves que eletrizou os seus contemporâneos; nem é esta a parte de sua obra que vem se impondo a públicos de outras épocas. Castro Alves foi, muito acentuadamente, um filho das grandes tensões da realidade brasileira da segunda metade do século XIX. Filho da cultura urbana e das lutas ideológicas de seu tempo. Daí que tenha se imposto e ficado famoso, sobretudo, como o poeta da palavra libertária, do verso hiperbólico carregado de indignação, que colocou a sua potência oratória a serviço do movimento pela abolição da escravatura no Brasil. Mas falar de Castro Alves, na Bahia, é complicado. Qualquer restrição crítica a seu fazer poético provoca ondas de irritação e repulsa. O rapaz romântico tornou-se um pequeno deus de província – e, por isso mesmo, é intocável. Mas essa intocabilidade do mito não é culturalmente saudável. Mesmo porque o texto castralvesiano é uma montanha-russa de altos e baixos, onde tanto encontramos linhas inesquecíveis (“Não tinham propriedade – um era a fazenda do outro...”, por exemplo, em Gonzaga ou a Revolução de Minas), quanto coisas intragáveis, como aquele “sinto em mim o borbulhar do gênio”, do poema Mocidade e Morte. Um problema de incontinência verbal, de borracheira retórica, do poeta que não hesita em rimar “Dantão” com “canhão”, ou em escrever os seguintes versos em Adeus, meu Canto: “Que babam fel e ironia/ Sobre o ovo da utopia/ Que guarda a ave do porvir”. Ao tempo em que pode nos ofertar belezas em A Cachoeira de Paulo Afonso, depois do momento tenso em que Maria revela a Lucas a identidade do homem que a violou (“É teu irmão!”). Refiro-me, é claro, a Crepúsculo Sertanejo, uma fanomelopéia (música verbal + lances de imagens visuais) castroalvina, que Fausto Cunha (O Romantismo no Brasil – de Castro Alves a Sousândrade) considera, penso que com razão (apesar de um esquisito “açoite” na estrofe da noite, onde o vate não soube conciliar a rima com a adequação vocabular, de um também esquisito “tímido” para falar de aves barulhentas e das duas estrofes que saltei), a obra-prima do poeta: A tarde morria! Nas águas barrentas As sombras das margens deitavam-se longas; Na esguia atalaia das árvores secas Ouvia-se um triste chorar de arapongas. A tarde morria! Dos ramos, das lascas, Das pedras, do líquen, das heras, dos cardos,

As trevas rasteiras com o ventre por terra Saíam, quais negros, cruéis leopardos. ... ... ... ... ... ... ... ... As garças metiam o bico vermelho Por baixo das asas, – da brisa ao açoite; E a terra na vaga de azul do infinito Cobria a cabeça co’as penas da noite! Somente por vezes, dos jungles das bordas Dos golfos enormes, daquela paragem, Erguia a cabeça surpreso, inquieto, Coberto de limos – um touro selvagem. Então as marrecas, em torno boiando, O vôo encurvavam medrosas, à toa... E o tímido bando pedindo outras praias Passava gritando por sobre a canoa!...

Pessoalmente, tendo a concordar com Mário de Andrade, quando diz em Aspectos da Literatura Brasileira, que: a) Castro Alves jamais ultrapassou as “qualidades florais” do gênio, “não se dando ao trabalho de cavocar nas hortas mais alimentares”; b) não se percebe, em sua obra, a “possibilidade de acréscimos futuros” – é obra de jovem, sim, mas já inteiramente realizada; c) “com todo o seu brilho floral, ele [C. Alves] brinca em nossa condescendência como um eterno menino-prodígio”. Além disso, não se deve definir Castro como “o poeta dos escravos”. Ele foi o poeta do liberalabolicionismo. O verdadeiro poeta dos escravos estava em alguma senzala, ou algum quilombo – pouco importando que o seu nome tenha ficado sem registro no cartório da cultura. Outro poeta que merece menção é Luiz Gama, o já citado filho de Luiza Mahin, vendido como escravo pelo próprio pai. Ele só se alfabetizou aos 17 anos de idade, tendo sido soldado, aprendiz de tipógrafo e jornalista, antes de se afirmar como poeta e advogado de negros escravizados. Abolicionista e republicano, fundador do Centro Abolicionista de São Paulo, o mulato Gama, que se definia como um “Orfeu de carapinha”, foi talvez o primeiro poeta literário brasileiro a falar explicitamente como um descendente de africanos, com referência, aliás, à rainha angolana Nzinga (Ginga): Ao rufo do tambor e dos zabumbas, Ao som de mil aplausos retumbantes, Entre os netos da Ginga, meus parentes, Pulando de prazer e de contentes Nas danças entrarei d’altas caiumbas.

Por esse caminho, Gama invoca uma musa até então desconhecida em nossa produção literária:

Ó Musa da Guiné, cor de azeviche, Estátua de granito denegrido, (...............................................) Empresta-me o cabaço d’urucungo, Ensina-me a brandir tua marimba, Inspira-me a ciência da candimba, Às vias me conduz d’alta grandeza.

Celebra a beleza negra fora daquele metaforismo romântico convencional (que levou Castro Alves a cantar o “níveo seio” de uma escrava): Quando a brisa veloz, por entre anáguas Espaneja as cambraias escondidas, Deixando ver aos olhos cobiçosos As lisas pernas de ébano luzidas...

Note-se, ainda, que Luiz Gama retomou, naquele século XIX, a linha satírica inaugurada entre nós por Gregório de Mattos. É o que se vê em Bodarrada, poema escrito em resposta ao apelido racista de “bode” que lhe deram. Eis aqui trechos do texto: Bodes há de toda a casta, Pois que a espécie é muito vasta... Há cinzentos, há rajados, Baios, pampas e malhados, Bodes negros, bodes brancos, E, sejamos todos francos, Uns plebeus, e outros nobres, (..............................................) Aqui, nesta boa terra, Marram todos, tudo berra; Nobres, Condes e Duquesas, Ricas Damas e Marquesas, Deputados, senadores, Gentis-homens, veadores; Belas Damas emproadas, De nobreza empantufadas; Repimpados principotes, Orgulhosos fidalgotes, Frades, Bispos, Cardeais, Fanfarrões imperiais, Gentes pobres, nobres gentes, Em todos há meus parentes. (...............................................) Pois se todos têm rabicho, Para que tanto capricho? Haja paz, haja alegria,

Folgue e brinque a bodaria; Cesse pois a matinada, Porque tudo é bodarrada!

E enquanto Castro Alves e Luiz Gama faziam e aconteciam em São Paulo, outros baianos, por outros caminhos, agitavam o Rio de Janeiro. Eram os sambistas. Como se sabe, foi da trama da vida negromestiça dos migrantes baianos no Rio que se desenvolveu o samba carioca, o chamado “partido alto” das favelas de nosso primeiro “distrito federal”. Além disso, aqueles baianos deram um toque, uma forma de carnaval de rua, que viria a ser uma das fontes que terminariam por desaguar nos desfiles das atuais “escolas de samba”, com os seus enormes e energéticos conjuntos percussivos, ou “baterias”. O processo é conhecido. Ao tempo do comércio interprovincial de escravos, levas e levas de negros e mestiços da Bahia foram vendidos para as primeiras plantações de café no Vale da Paraíba, em território fluminense. E essas levas levavam consigo, entre outras coisas, formas e práticas culturais que cultivavam na Cidade da Bahia e seu Recôncavo. Na década de 1870, já era considerável o número de baianos vivendo no Rio. A caminho da abolição da escravidão, com as migrações negras e mestiças do campo para a cidade, esse número aumentou ainda mais. E para desempenhar um papel decisivo, catalizador mesmo, na vida da gente mais pobre da capital do país. Escreve José Ramos Tinhorão: “Nada mais natural, pois, que tanto os baianos trazidos nas primeiras levas como escravos quanto os migrados após a abolição, já no período republicano iniciado em 1889, aproveitassem a riqueza da sua antiga experiência no Recôncavo para assumir na capital uma espécie de liderança espontânea entre as camadas baixas [da sociedade] a que se integravam”. É certo que devemos desconfiar da adjetivação do historiador de nossa música popular. Não se tratou exatamente de liderança “espontânea”. Mas do caráter estruturador desempenhado por uma comunidade migrante numericamente significativa e culturalmente rica e organizada, com as suas matrizes religiosas, lúdicas e estéticas. No mais, Tinhorão está correto. E foi no meio dessas comunidades formadas por migrantes que as batucadas baianas geraram o “samba raiado”, de partido alto. Era a linguagem da roda de samba de Rita Baiana, a mulata assanhada do romance de Aluizio Azevedo (O Cortiço), saracoteando pela noite o seu “atrevido e rijo quadril baiano”. Esse foi o som que se impôs no ambiente das camadas populares, dos cortiços e favelas do Rio de Janeiro, pois, como disse o mesmo Azevedo, “à viva crepitação da música baiana calaram-se as melancólicas toadas de além-mar”. Desses pagodes povoados de malandros e mulatas, dessas “chinfrinadas ao relento”, projetou-se enfim, para o conjunto da sociedade, um samba remodelado, recriação ou estilização da matriz baiana original: o samba carioca. A passagem se deu nos festivos encontros comunitários realizados nos casarões das “tias” baianas, localizados em áreas pobres da cidade do Rio. Nas casas de Prisciliana de Santo Amaro, Tia Amélia (mãe do célebre Donga), Tia Dadá e, sobretudo, na de Tia Ciata. Nesse novo ambiente de vida, agora já baiano-carioca, o samba se transformou. Tornou-se samba citadino do Rio – para, em inícios do século seguinte, ser reconhecido oficialmente como tal, com o registro, na seção de

direitos autorais da Biblioteca Nacional, da composição Pelo Telefone, assinada por Donga. Quanto ao carnaval, não podemos nos esquecer de que, em Memórias de um Sargento de Milícias, escrito em meados do século XIX, Manoel Antonio de Almeida falava já de uma ala ou rancho de baianas, que abrilhantava a “procissão dos ourives”, no Rio. “Nesse tempo as procissões eram multiplicadas, e cada qual buscava ser mais rica e ostentar mais luxo... especialmente quando el-rei se dignava acompanhá-la, obrigando a corte a fazer outro tanto; a que primava porém entre todas era a chamada procissão dos ourives”, relata o romancista. A razão do sucesso? Simples – a presença das baianas, com as suas saias rendadas, os seus cordões de ouro, os seus torsos e as suas danças. “A causa principal de tudo isto [do sucesso] era... o levar esta procissão uma cousa que não tinha nenhuma das outras... Queremos falar de um grande rancho chamado das – Baianas – que caminhava adiante da procissão, atraindo mais ou tanto como os santos, os andores, os emblemas sagrados, os olhares dos devotos; era formado esse rancho por um grande número de negras vestidas à moda da província da Bahia, donde lhe vinha o nome, e que dançavam nos intervalos dos Deo-gratias uma dança lá a seu capricho”. Outra coisa é que foi também no ambiente popular da vida baiano-carioca que Hilário Jovino, o Lalu de Ouro, resolveu colocar um “rancho de estilo popular negro-baiano” (Tinhorão), o Rei de Ouros, para desfilar na rua não no período natalino, como faziam os ranchos convencionais do Rio, mas durante o carnaval. Conta Jota Efegê, em Figuras e Coisas do Carnaval Carioca, que Hilário juntou seus companheiros baianos de boemia e samba, conseguiu “a adesão de Noela, Gracinda e Chica do Marinho, três baianas famosas, afora mais conterrâneos”, e botou o bloco na rua. Sucesso total. Ranchos proliferaram e se transformaram. E Hilário, passando por diversas agremiações e formando discípulos, converteu-se em figura mítica, pois, como disse Jota Efegê, “foi sob seu comando que um soberano, um Rei de Ouros, entrou no Carnaval carioca dando-lhe música bonita e a graciosidade dos ranchos”. Como se viu, tratamos, ao longo desse tópico, de fenômenos culturais essencialmente urbanos – coisas da nova vida urbana brasileira. De fato, o século XIX, especialmente em sua segunda metade, foi um período digno de nota na história da cidade no Brasil. Aumentou o grau de urbanização do país, graças principalmente à expansão da cultura cafeeira e ao declínio do sistema escravista. O desenvolvimento da cafeicultura provocou o crescimento e mesmo o nascimento de cidades. Aglomerados urbanos germinavam modernos ou, sacudindo a poeira dos anos, se modernizavam, com praças, teatros, hotéis, iluminação a gás, transportes coletivos, serviços telefônicos, etc. Em três décadas (1870-1900), a população do Rio de Janeiro triplicou, enquanto a de São Paulo aumentou sete ou oito vezes, gerando novas formas de convívio. Em Da Monarquia à República: Momentos Decisivos, Emília Viotti dá um exemplo que bem ilustra a nova realidade citadina do país – foi nessa época que os comícios em praça pública fizeram a sua aparição na história política do Brasil. De outra parte, não podemos nos esquecer de que foi também no século XIX que o Rio de Janeiro disparou à frente da Cidade da Bahia. Esta se mostrará, cada vez mais, presa a estruturas tradicionais do viver.

TOQUE AFRICANO Tivemos alguma conversa sobre a chula, o samba de roda, a capoeira. Mas não podemos jamais nos esquecer de que, entre os sons que realizaram a travessia atlântica, veio também a música sacra da África. Ou, mais exatamente, músicas sacras dos africanos. No plural. Porque, apesar de todas as misturas, cada “nação” do Candomblé da Bahia tem os seus deuses, a sua poesia, a sua música. Tem a sua pulsação rítmica, que deve ser alcançada com exatidão. Nesse caso, nos vemos na obrigação de sublinhar, antes de mais nada, um aspecto fundamental. A música sacra de bantos, jejes e nagôs é, além de litúrgica, funcional. Num sentido preciso. É música para induzir ao transe; música para permitir a manifestação energética dos deuses nos corpos humanos de seus sacerdotes. Para falar em termos eliadianos, os crentes, no rito candomblezeiro, no xirê dos orixás, por exemplo, se tornam contemporâneos dos deuses. Estes, “cavalgando” os seus eleguns, comparecem à festa, onde é encenado, em modo poético-musical-coreográfico, o que dizem os seus mitos, dos raios de Xangô, a fera dos olhos bonitos, aos giros de Oxóssi, “oxotokanxoxô”, o caçador de uma só flecha; ou da dança guerreira e rodopiante de Oiá-Iansã, “leopardo que come pimenta crua”, às ondulações sensuais de Oxum, a Afrodite nagô. Essas criações musicais religiosas não atravessaram somente o Atlântico. Atravessaram, também, os séculos. Foram preservadas na Bahia de Todos os Santos e seu Recôncavo. Em Notes sur le Culte des Orisha et Vodoum à Bahia, la Baie de Tous les Saints au Brésil et à l’Ancienne Côte des Esclaves, Pierre Verger registrou a presença de um mesmo oriki de Iemanjá dos dois lados do mar oceano – em Abeokutá e em Salvador. A propósito, o musicólogo e candomblezeiro Jaime Sodré, que estudou no Seminário de Música da Universidade Federal da Bahia e foi baterista de bandas de rock, contou uma experiência fascinante, em depoimento a Jorge Alfredo Guimarães e Mariângela Nogueira, durante a realização da pesquisa Sons da Bahia, que coordenei. Foi quando o pessoal de um terreiro jeje da Bahia, o Bogum, recepcionou, em Salvador, o elenco do Balé do Benim. Eles bateram os tambores em homenagem aos bailarinos africanos e alguns destes entraram em transe, recebendo voduns. E a recíproca foi verdadeira: quando os daomeanos tocaram, os baianos rodaram, caíram no santo, tomados pelos deuses. Sodré ficou impressionado: “Como é que essa célula rítmica de quase trezentos anos ficou intacta assim? Para mim, como músico, esta foi a prova cabal de que uma célula rítmica penetra no seu organismo, permanece em você e até – pode-se dizer um absurdo – passa geneticamente para as gerações que vêm”. No caso da música sacra candomblezeira, o nexo entre palavra e som não pode nunca ser perdido. É preciso dizer o que há para ser dito, no tempo musical certo e no momento exato, ou os deuses não irão baixar no terreiro. A batida para chamar o santo, para o deus dançar, tem que ser executada de modo preciso. Jaime Sodré sabe disso: “Você não pode tocar mais lento, nem mais rápido. Tem que conhecer a pulsação, saber tocar dentro da ritmia. E isso tem a ver com a emissão da palavra. Se você toca num ritmo muito acelerado, você não diz o que tem que dizer para o vodum dançar”. Não se trata exatamente de uma fidelidade fonética, lexical ou sintática – mas da

preservação, no canto, do desenho sonoro ou da Gestalt sônica de uma determinada estrutura sintagmática verbal acoplada a uma frase percutida nos tambores. Daí, aliás, a curiosa distinção de Sodré – a questão não é “oral”, mas sonora. “Porque, se fosse oral, o santo parava no meio do salão e dizia: ‘Não, essa língua eu não conheço. Pega um dicionário aí. Eu só danço se...’. Mas não, o santo vai pela sonoridade. Então, enquanto você tiver uma sonoridade próxima à matriz vibratória, pode cantar, que o santo vem”. Não é diferente quando o sacerdote canta para as plantas. No candomblé jeje-nagô, que se foi firmando na Bahia de Todos os Santos e seu Recôncavo ao longo do século XIX, o conhecimento do mundo vegetal – das propriedades e usos das plantas – é um segredo guardado a sete chaves. Um conhecimento de caráter iniciático. Os iorubanos cultuam um deus da vegetação, senhor das plantas, dono de todas as folhas, cujo nome abrasileiramos para Ossãin ou Ossânim. As ervas lhe pertencem, embora algumas delas estejam vinculadas a configurações semióticas definidoras de outros orixás. Ossânim está intimamente ligado a outros deuses silvestres ou florestais, moradores do mato, como Oxóssi e Ogum. Mas é ele o orixá da flora. Sua enorme importância, como a de seu principal sacerdote, o babalossânim, vem da onipresença das plantas na vida cultual do terreiro jeje-nagô, onde elas são utilizadas com finalidades mágicas e/ou medicinais. Sobre Ossânim, fala o seu sacerdote (e babalaô) Agenor Miranda da Rocha, em Os Candomblés Antigos do Rio de Janeiro: “É o orixá das folhas. Além de seu valor individual, a grande força das folhas está na sua mistura. A arte dessa mistura dá origem ao culto das folhas. Esse culto é secreto e poucos homens têm acesso a ele. Quanto às mulheres, lhes é vedado participar de qualquer preceito de Ossain. É também Ossain que faz os orixás chegarem. O conhecido ‘barravento’, o cambalear das pessoas na hora que o orixá está chegando, mimetiza o movimento do vento nas folhas que também cambaleiam de um lado para outro. Quando Ossain chega ao barracão [local das festas públicas dos terreiros], em dias de festa, dança pulando, porque Ossain só tem uma perna: ele é uma árvore. Daí a forma de seu assentamento: um tronco com sete galhos, seis em volta e um no meio, encimado por um pássaro. Sua cor é o verde das folhas e ele traz na mão um ossain de ferro, ou um peregum... Ossain não fala, quem fala por ele é Aroni ou eyé, o pássaro que voa por todo o mundo, trazendo até Ossain as notícias. Esse pássaro é o dono da cabaça (adô), onde são guardadas as folhas. Um dia, de combinação com Xangô, Yansã fez soprar um vento forte e derrubou a cabaça. As folhas se espalharam e os orixás correram e foram apanhando as folhas que podiam. Por isso cada orixá possui algumas folhas, mas só Ossain conhece todas.” Tradicionalmente, a coleta de vegetais, feita por filhos-de-santo de Ossânim, obedecia a um conjunto de regras rigorosas, para que as folhas não dispersassem ou perdessem o seu axé, no sentido genuíno (e não no turístico-comercial, como em “axé music” e coisas do gênero) da expressão – vale dizer, na acepção de princípio ou força vital, energia mágico-sagrada que sustenta o cosmo e suas criaturas. Antes de mais nada, as ervas a serem usadas em campo ritualísticoterapêutico não podiam ser colhidas em áreas cultivadas. Em roçados, hortas e, muito menos, em jardins. No livro Orixás – Deuses Iorubás na África e no Novo Mundo, depois de informar que os “filhos” (omôs) de Ossânim são também chamados “onixeguns” (curandeiros), “em virtude de suas

atividades no domínio das plantas medicinais”, Pierre Verger escreve: “Quando eles [os curandeirosonixe-gum] vão colher as plantas para seus trabalhos, devem fazê-lo em estado de pureza [de ‘corpo limpo’], abstendo-se de relações sexuais na noite precedente, e indo à floresta, durante a madrugada, sem dirigir palavra a ninguém. Além disso, devem ter cuidado em deixar no chão uma oferenda em dinheiro, logo que cheguem ao local da colheita”. Mais: o onixegum já deve entrar no mato mascando obi e cantando. É evidente que, na Salvador do século XIX e mesmo na das primeiras décadas do século XX, este regulamento mágico ainda podia ser seguido à risca. A Salvador oitocentista foi cidade de vegetação rica, exibindo verdadeiros excessos florais em seus recessos de mato e mata. Era espaços naturais caracterizados por uma profusão barroca de plantas, folhas, flores e frutos, pontuados por rios, regatos, cachoeiras. Diversos observadores da cena baiana deixaram registros escritos e visuais que falam com eloqüência dessa exuberância ambiental. Elementos, signos do sagra-do, eram fáceis de apanhar no mato arisco. Daí que o velho Nina Rodrigues tenha falado da existência de uma “fitolatria jeje-nagô” em nosso meio. Uma visão sacralizadora do mundo natural foi trazida da África para o continente americano. É por isso que, na Bahia e em Cuba, como antes do outro lado do Atlântico, o povo-de-santo prossegue repetindo a frase definitiva, registrada por Lydia Cabrera em El Monte, a propósito da santería cubana: kossí euê, kossí orixá – fórmula que, de resto, é cantada por Maria Bethânia, em sua gravação da composição Salve as Folhas, de Gerônimo e Ildásio Tavares. Sem folha, não há orixá. Sem folha, nada acontece. Sem folha, nada se faz. Para entrar no mato sagrado, como foi dito, a pessoa necessita de uma iniciação, que a capacite a fazer a coleta, despertando ou mobilizando o axé das folhas. Se as folhas tiverem que ser colhidas à noite, e não de madrugada ou de manhã cedo, o iniciado tem que despertar o axé delas, dizendo “acorda, acorda”. Canta-se para – conversa-se com – as folhas. Estas ervas são tão importantes que aqueles africanos antigos que aqui chegaram, embora vivendo sob um regime escravista, não só se lançaram a uma espécie de aprendizado ecológico do Brasil, em busca de virtudes e poderes de nossa flora, como conseguiram importar, por diversos meios, vegetais indispensáveis ao culto dos deuses, como o orobô e o obi. É por isso que ninguém entra no mato desavisadamente. Existe todo um repertório de conhecimentos, transmitidos pessoalmente pelos mais velhos, àqueles que, por sua filiação a um determinado orixá, têm a permissão para aprender. Esta didática vegetal vai da hora certa de colher as folhas aos cantos que devem ser entoados durante as atividades de coleta dos espécimes. Existe, no candomblé jeje-nagô, um gênero poético-musical específico para isso – orin ewe, as “cantigas das folhas”, cujo repertório é ensinado ao onixegum. O assunto foi mapeado e examinado em profundidade pelo biólogo, antropólogo e babalossânim José Flávio Pessoa de Barros, em O Segredo das Folhas – Sistema de Classificação de Vegetais no Candomblé Jeje-Nagô do Brasil. “A palavra cantada ou falada assume um papel relevante: ela é portadora e desencadeadora de axé. Os grãos de pimenta-da-costa que são mastigados à entrada do mato destinam-se a reforçar tanto o poder da fala, quanto o do coletor. Portanto, a palavra deve ser proferida em circunstâncias próprias, para

que a força contida em todas as coisas seja por ela deflagrada. Assim, as ‘cantigas de folha’ – orin ewe – são uma forma especial de detonar o axé potencial das espécies vegetais”, escreve José Flávio, acrescentando: “Cantar ou chamar as folhas pelas denominações corretas em yorùbá não se prende somente ao ritual de coleta das espécies; este mesmo procedimento deve ser seguido em todos os outros momentos ritualísticos nos quais as folhas estão presentes”. No rito da lavagem de contas, por exemplo, quando a pessoa recebe um colar (a “guia”) consagrado ao seu orixá. Ou em rituais de purificação, de “limpeza”. Ainda Flávio: “É interessante notar que, além do emprego de folhas verdes, frescas, as espécies vegetais podem aparecer sob a forma de comidas – acarajé, canjica, acaçá, etc. – assim como podem ser produtos industrializados – feijões, farinhas, fumo (cigarros, charutos), azeites (doce e de dendê), etc.”. Jejes e nagôs tocam os seus atabaques com varetas, baquetas de percussão, chamadas aguidavis. Embora alguns autores digam que o vocábulo é de origem fon, às vezes penso que não é improvável que tenha vindo do iorubá. Posso reconhecer aí uma montagem verbal (o iorubá é uma língua aglutinante, como o tupi e o alemão), com a presença do substantivo igi (árvore, vara, pedaço de pau, vareta) e de dá, verbo ‘bater ’, como em ó dá mi ni ígi (‘ele me bateu com um pedaço de pau’). “Aguidavi, oguidavi” pode vir, portanto, de ò + igi + dá (oguidá, vara ou vareta de bater). O toque banto, ao contrário, era feito tradicionalmente com a mão – e emprego o verbo no passado porque, a partir dos seus novos contatos dos séculos XVIII-XIX, os “bantos” da Bahia foram adotando os aguidavis de jejes e nagôs. Mas Jaime Sodré lembra que, enquanto os bantos acariciavam os seus atabaques, mantendo uma relação de intimidade física, táctil, com os tambores, os jejes guardavam uma distância respeitosa, ritual, dos instrumentos. Essa diferença vai aparecer também fora do âmbito da música sagrada. Na chula, por exemplo, no velho samba de roda do Recôncavo, que é de origem banto. Observa Roberto Mendes, estudioso do assunto, também em depoimento à pesquisa Sons da Bahia: “Você nunca vai ouvir uma chula com aguidavis. Geralmente, a chula está na mão. Na palma da mão, com pandeiro e um dedilhar do violão... Se entrar aguidavis, pode ter certeza: é uma chula nova. Já tem postura ‘sudanesa’ [jeje-nagô]. Os bantos não usavam aguidavis. Era a mão, mesmo”. E aqui devemos fazer uma distinção. Na cultura musical do Ocidente, a música é sacra, não o cravo ou o órgão que a executa. Mas não é isto o que se vê no mundo das músicas sacras dos africanos. Para ficar em nosso exemplo, atabaques e aguidavis do terreiro jeje-nagô são sacralizados. São investidos de uma energia especial. Possuem axé. Até para que possam ter contato com o atabaque, os aguidavis têm que ser feitos de determinadas plantas. O que significa que, na esfera do sagrado jeje-nagô, os instrumentos musicais não são meramente instrumentos musicais, objetos que produzem sons. São peças plenas de energia e encanto. E assim como os instrumentos são submetidos a um processo sacralizador, a pessoa, para tocá-los, tem que passar obrigatoriamente, também ela, por um processo iniciático. O alabê de um terreiro é um sacerdote, um omô-orixá. Depois desta breve excursão, retornemos ao nosso ponto de partida. É bem verdade que, de uns tempos para cá, a criação musical sacra ou cultual africana vem sendo sempre mais estudada – e de perspectivas eruditas, musicológicas. Entre nós, por Angela Lühning (A Música no Candomblé Nagô-

Ketu) e Marcos Branda Lacerda, por exemplo, que defendeu tese sobre criações musicais sagradas do repertório de orquestras bàtá do Benim. Em estudo recente e ainda inédito (Música de Culto NagôIorubá e a Barform), aliás, Branda Lacerda faz distinções estilísticas entre as linguagens iorubá e ewe (“jeje”, para nós) de música cultual para tambores, falando das diferentes visões das peças ternárias e binárias (que, na esfera ewe, não seriam sérias, mas lúdico-frívolas) e da função da linha do tempo, time line, que, entre os iorubanos, não recebe tratamento tímbrico diferenciado, com o emprego de um idiofone estridente, como na música fon ou ewe. Mas a verdade é que não sou musicólogo, nem fui treinado para me mover em tais meandros técnicos, que podem nos levar de Richard Wagner a Babá Alapalá. Retornemos, portanto, ao nosso ponto de partida, para encerrar este tópico: música e transe. Ouvindo, agora, as palavras do compositor e maestro italiano Aldo Brizzi, ainda em depoimento gravado para a pesquisa Sons da Bahia: “No candomblé, se você se concentra na polirrítmica, no toque, no timbre, você abstrai. Eu até experimentei, me abstraí, nem ouvi o ritmo da batida dos três atabaques, ouvindo somente o resultado do espectro do som, que vai se desenvolvendo de uma forma quase paralela ao universo dos ritmos, e a partir desse momento começa a entrar num universo novo que é o universo tímbrico. Você começa a perceber sons mais agudos, mais baixos, mais graves, mais agudos ainda, mais cheios de harmônicos, que criam como que uma forma espectral do som. E, você ouvindo isso, vê que vira uma música que não tem nada a ver com o ritmo. É uma viagem fantástica adentro de um elemento do candomblé, que é o universo não-rítmico – é o universo tímbrico, que ninguém percebe... Você acha que é só a batida, mas, depois da batida, a ressonância do instrumento cria uma outra música, que é uma metamúsica, em relação àquilo que você acha que está ouvindo, porque na verdade você está ouvindo outras coisas também... Algumas vezes, eu percebi que, quando se puxa o santo, é porque o universo tímbrico chegou a um ponto de saturação que precisa de uma coisa que o diferencie. Eu não estou certo se realmente é dessa forma, mas eles [no candomblé] reagem no momento certo.” É claro que, se Brizzi não tem certeza, menos ainda tenho eu. Mas a hipótese de uma conexão entre timbre e transe, entre um desenho espectral do som e a descida dos deuses, entre ponto de saturação tímbrica e ponto de possessão mediúnica, merece, no mínimo, ser registrada.

NASCE UM POVO No final do século XVI, escrevendo acerca das potencialidades baianas para o desenvolvimento de uma indústria naval própria, Gabriel Soares destacou a nossa riqueza de recursos naturais, de madeiras adequadas à produção de embarcações, e a nossa abundância de recursos humanos, de mãode-obra treinada (serradores, carpinteiros, ferreiros), capaz de fazer funcionar estaleiros, para o reparo tanto quanto para a construção de navios. De uma perspectiva socioantropológica, o interessante é observar que essa mão-de-obra não é vista, por ele, como um conjunto homogêneo.

Ele a vê segmentada, reconhecendo a presença, ali, de três trupes distintas: portugueses, escravos e mestiços. Note-se, ainda, que ele não emprega, como signos de identificação, os vocábulos “brasileiro” ou “baiano”. Ao recordar esta passagem do texto quinhentista de Gabriel Soares, o que pretendo é chamar a atenção para o óbvio. Ao contrário do que parecem sugerir as nossas diversas fantasias da “baianidade”, ninguém é ou foi “baiano” por conta de algum decreto divino. “Baiano” é uma categoria histórica, gerada na convergência de determinados processos sociais. O que significa que houve um momento, em nossa trajetória histórica, no qual nossos antepassados começaram a se sentir, a se perceber e a se pensar como uma gente relativamente específica ou um povo algo singular, em comparação com os demais – isto é: como uma comunidade política e cultural. Dito de outro modo, um momento em que, olhando para si mesmos, viram-se como “baianos”. E um outro momento, não necessariamente justaposto ou imediatamente seqüencial a este, em que se reconheceram como “baianos” no interior de uma coletividade mais geral e abrangente, que os englobava sob a denominação de “brasileiros”. Mais. Quando Gabriel Soares divisa a população da então Capitania Real da Bahia de Todos os Santos como um contingente étnica e socialmente heterogêneo, ao distinguir entre portugueses e mestiços e entre ambos e os escravos, ele nos prepara para um outro e futuro reconhecimento, também óbvio. Estas dissimilaridades e assimetrias internas apontam para um horizonte em que a constituição das figuras do “baiano” e do “povo baiano” não poderia ter acontecido por uma só via, de forma linear ou unidimensional. Ela teria que refletir e expressar, antes, a nossa própria heterogeneidade social e antropológica, construindo-se por caminhos diversos e processos múltiplos, em planos não exatamente sincrônicos. Foi o que, de fato, ocorreu. E é justamente isso o que vamos tentar acompanhar nas próximas linhas. Em “Gente da Terra Brasiliense de Nação” – Pensando o Brasil: a Construção de um Povo, o historiador Stuart B. Schwartz informa: “Em 1602, quando membros da Ordem de São Bento [na Bahia] propuseram admitir noviços pertencentes à ‘gente brasiliense de nasção’, a iniciativa foi sumariamente rejeitada. O que interessa neste episódio é, em primeiro lugar, a desconfiança dos beneditinos nas habilidades dessa ‘gente’, mas também o fato de que essas pessoas de origem mista eram definidas pelo lugar em que haviam nascido, no caso, o Brasil, e que esse lugar estava sendo utilizado como critério para definir sua etnicidade. Este é o primeiro momento, tanto quanto me é dado entender, em que se considera o fato de se ter nascido no Brasil como elemento que define a identidade e como elemento precursor da nacionalidade”. Schwartz esclarece ainda que fala de critério definidor de uma “etnicidade” (e não de uma “nacionalidade”) porque, no século XVII, o termo “nação” era usado como denominação de um determinado grupo humano, como nas expressões “nação cristão novo” ou “de nação Angola”. Adiante, nesse mesmo século XVII, veremos que os vocábulos “pátria” e – surpresa – “brasileiro” vão aparecer na criação poética do desabusado putañero Gregório de Mattos, filho da elite açucareira da Bahia. Mas “pátria”, nessa época, não tem ainda o sentido que irá assumir, entre nós, durante o século XIX. Antes que uma sociedade política à qual o indivíduo pertence como

cidadão, designava apenas o ponto de origem, o lugar de nascimento, a “naturalidade”. No caso de Gregório, a Cidade da Bahia. Como no seguinte poema, que escreveu quando se encontrava preso e já condenado ao degredo em Angola (destaques meus): Fica-te em boa, Bahia, que eu me vou por esse mundo cortando pelo mar fundo numa barquinha. Porque inda que és pátria minha, sou segundo Cipião, que com dobrada razão a minha idéia te diz: “non possedebis ossa mea”.

Gregório, na verdade, fez uma adaptação. A frase que Cipião, o Africano, quis que fosse escrita em seu túmulo, publicando o seu exílio voluntário, foi: Ingrata patria, ne ossa quidem mea habes (‘pátria ingrata, não tens nem meus ossos’). E é certo que o exílio gregoriano não foi exatamente voluntário. Mas isso não tira em nada a clareza do texto, com sua rima bilíngüe. O emprego da expressão “brasileiro”, por sua vez, é bastante revelador. Na edição de James Amado, comparece no poema que vem sob a didascália “Embarcado já o poeta para o seu degredo, e postos os olhos na sua ingrata pátria lhe canta desde o mar as despedidas”: Que os brasileiros são bestas, e estarão a trabalhar toda a vida por manter maganos de Portugal.

É claro que seria tentador denunciar, nesses versos, a manifestação de um povo e a expressão de um nacionalismo avant la lettre. Mas não vamos colocar o fauno adiante das ninfas. Quem fala aí não é um “nacionalista”, um “patriota”, na acepção moderna do termo, ou alguém que tivesse uma clara percepção do que o vocábulo “brasileiro” veio a significar para nós. Trata-se, antes, do protesto de um “natural da terra”, de um mazombo, inconformado com o tratamento econômico lesivo que Portugal dispensava ao Brasil. Com os procedimentos de rapinagem que a metrópole aplicava em sua colônia de ultramar. Além disso, Gregório sempre esperneava contra os privilégios e as facilidades de que os reinóis desfrutavam nos trópicos, enriquecendo rapidamente por aqui, em detrimento dos mazombos, invariavelmente obrigados a apertar os cintos. “Se não está naqueles versos [supracitados] o patriota – pelo menos como haveríamos de caracterizá-lo na Independência e no Romantismo da fase inicial – está, todavia, o brasileiro que possui interesses contrários aos da metrópole, e que, insatisfeito, descarrega sobre os ‘unhates’ (aventureiros lusos, não raro cumprindo pena, que vinham ‘fazer ’ o Brasil) uma aversão que não era apenas sua”, como anotou João Carlos Teixeira Gomes, em Gregório de Mattos, o Boca de Brasa. Exemplo (que chama a atenção do leitor

pelo emprego do pronome possessivo numa metonímia, pars pro toto, da Cidade da Bahia, que destaco): Pode haver maior milagre (ouça bem quem tem ouvidos) do que chegar um reinol de Lisboa, ou lá do Minho; Ou degredado por crimes ou por moço ao pai fugido, ou por não ter que comer no lugar, onde é nascido; E saltando no meu cais descalço, roto e despido, sem trazer mais cabedal que piolhos e assobios; Apenas se ofrece a unhate de guardar seu compromisso, tomando com devoção sua regra, e seu bentinho; Quando umas casas aluga de preço, e valor subido, e se põe em tempo breve com dinheiro, e com navios?

“Senhora Dona Bahia,/ nobre e opulenta cidade,/ madrasta dos Naturais,/ e dos Estrangeiros madre” – comenta ainda Gregório, em outro texto. E a verdade é que podemos falar de uma profunda indisposição gregoriana com relação aos imigrantes reinóis, aos métodos metropolitanos, ao colonialismo português. Lembre-se, aliás, do “nativismo” de um outro baiano, Frei Vicente do Salvador, cuja História do Brasil, escrita nas primeiras décadas do século XVII, chegou a ser classificado como “livro antiportuguês”. Para o frei, o Brasil, que sofria o descaso do governo lusitano, poderia tranqüilamente bastar-se a si mesmo. E enquanto ele acena com a auto-suficiência brasílica, Gregório sente a Bahia como coisa ou realidade sua. Como o seu cais. Desse modo, acho altamente significativo que ele tenha identificado seus conterrâneos como brasileiros: marca-se aí, com nitidez, uma diferença que solidariza os naturais diante dos reinóis. E o que vejo, em seus textos, é uma clara expressão do assim chamado “nativismo”. Não ainda um convite aberto à afirmação política de uma comunidade ou à subversão. Mas, certamente, uma fissura no campo ideológico da ordem colonial. Nesse caso, podemos aproximar o discurso gregoriano e o discurso do primeiro nativismo pernambucano, que se estende da expulsão dos holandeses em 1654 à Guerra dos Mascates, já nos primórdios do século XVIII. Na definição de Evaldo Cabral de Mello (Rubro Veio – O Imaginário da Restauração Pernambucana), este nativismo pernambucano, também exprimindo o conflito do mazombo e do reinol, foi, em sua origem seis-centista, “nobiliárquico e açucarocrático”. Mas a

comparação só se sustenta em termos frágeis e passageiros. Não se pode falar, de uma perspectiva geral, acerca do período em tela, da formulação e existência de um verdadeiro nativismo baiano. Além disso, não fomos dominados, de forma duradoura, pelos holandeses – nem tivemos, a marcar as nossas vidas, um “supersigno” como aquele em que Guararapes se converteu. Por fim, o discurso nativista pernambucano apresentou uma continuidade histórica única, em termos brasileiros– veio da “restauração” de 1624, passou pela Guerra dos Mascates e se espraiou em direção ao movimento de 1817 e à Confederação do Equador. Diversamente, o sentimento nativista não foi assim tão forte, em terras baianas, entre meados do século XVII e meados do século XVIII. Nem poderia ter sido. É imediatamente visível o vínculo existente entre a ocupação holandesa e o nativismo pernambucano, discurso político que se articulou no rastro mesmo da vitória sobre os flamengos. Na base desse nativismo, achava-se a tese de que os pernambucanos (a “nobreza da terra” e seus soldados) tinham pago sozinhos o preço da libertação, sustentando, com seus próprios recursos, humanos e materiais, a empreitada bélica restauradora. De fato – e diferentemente do que acontecera na reconquista da Cidade da Bahia, com a “jornada dos vassalos”, a vinda da esquadra comandada por Fradique Toledo Osório –, o peso da guerra de restauração (1645-1654) recaiu, principalmente, sobre os ombros da velha capitania de Duarte Coelho. Antes que contar com o auxílio de Portugal, as tropas pernambucanas descumpriram a ordem de Lisboa: abandonar o campo de batalha e recolher-se à Bahia. Nem devemos nos esquecer de que, em 1648, Antonio Vieira, que chegaria a sonhar com a tomada do Chile por Portugal, produzira um sólido arrazoado em defesa da entrega (ainda que provisória) de Pernambuco à Holanda. Para os pernambucanos pós-restauração, a Capitania não só tinha sido libertada pelos esforços exclusivos de seus antepassados, como estes, num gesto largo de generosidade, a haviam restituído a D. João IV, rei de Portugal. Com base nisso, passaram a reivindicar um tratamento diferenciado, especial, da parte do poder lisboeta. Chegaram a fantasiar, inclusive, um pacto ou contrato firmado entre a Capitania e a Coroa, neste sentido. “Da restauração alcançada ‘à custa de nosso sangue, vidas e fazendas’, tirava-se o corolário da existência de um pacto entre a Coroa e a ‘nobreza da terra’, o qual teria estabelecido em favor desta um tratamento preferencial, um estatuto jurídico privilegiado, um espaço de franquias, que a pusera ao abrigo das ingerências reinóis, legitimando sua hegemonia sobre os demais estratos sociais da capitania e, em especial, sobre o comércio português nela estabelecido”, elucida Cabral de Mello. O pacto nunca existiu. A política colonial era uma só. Pernambuco não era diferente do resto da América Portuguesa. “Desta ferida narcísica – prossegue Cabral de Mello –, surgiu o nativismo do ressentimento”. Os negociantes reinóis retornaram à cena. As disputas entre eles e a “nobreza da terra” se acirraram. Esta não conseguiu as isenções fiscais que pretendia, nem logrou reservar para si os cargos locais de nomeação régia. Em resposta, barrou a entrada de reinóis na Câmara de Olinda. Em inícios do século XVIII, ainda no dizer de Cabral de Mello, a Coroa cortou as asas dos mazombos, para “aliar-se ao comércio reinol, num renversement des alliances que desembocaria na guerra dos mascates”. Pouco mais de meio século, portanto, separam a restauração do confronto de 1710, momento de nova radicalização nativista, que teria

como desfecho a derrota dos “naturais da terra”. Ao longo desse mesmo período – da década de 1620 à de 1720, digamos –, a Bahia experimentou realidades diversas. Salvador não permaneceu sob domínio holandês sequer por um ano inteiro. E as colisões entre mazombos e reinóis, inevitáveis, não descambaram para a guerra civil. Gregório investiu com veemência contra aqueles portugueses que, não tendo onde cair mortos em seus lugares de origem, migravam para cá, onde, entregando-se a transações comerciais, enriqueciam com rapidez e até se tornavam credores do antigo estamento agrário. Mas ninguém pegou em armas para fuzilar mercadores. O caso de Pernambuco, na verdade, foi excepcional. Cabral de Mello: “Se o antagonismo entre a grande lavoura e o comércio português constituiu a forma predominante do conflito horizontal de classes na sociedade colonial brasileira, em Pernambuco ele atingiu uma virulência desconhecida no resto da América Portuguesa”. Na Bahia, ao contrário, as coisas se encaminharam para o arranjo e para o acordo. Prevaleceu a acomodação, não raro se desdobrando em integração. O que vimos, em nosso século XVIII, foi que, para além dos atritos de interesses entre comércio e agricultura, senhores de engenho se envolveram em afazeres mercantis. E mercadores se tornaram, também, proprietários rurais. Com base em estudos de Gonsalves de Mello, Grant Smith e Rae Flory, Cabral de Mello vai comparar exatamente o “modelo pernambucano” e o “modelo baiano” de relacionamento entre senhores de engenho e mercadores. Deixando de parte o “inventário das semelhanças” apontado pelo historiador, vamos ressaltar, de momento, as diferenças. Em tela, a questão da integração desses grupos sociais. Aqui, o casamento foi um importante mecanismo integrador. Mas na Bahia. Enquanto que, no Pernambuco de antes do século XVIII, a “nobreza da terra” resistiu em aceitar, “por discriminação social e preconceito nobiliárquico”, o casamento de suas filhas com negociantes lusos, na Bahia “uma proporção expressiva de comerciantes [escrevem Grant Smith e Rae Flory] casou-se diretamente em famílias já estabelecidas no comércio e na propriedade rural, uma clara indicação de que os mercadores eram considerados aceitáveis e até desejáveis como genros da elite local”. Esta ausência de um cordon sanitaire ou de um apartheid, segregando os grupos em questão, distingue a postura baiana da pernambucana ainda em outros campos da vida social. Cabral de Mello: “enquanto na Bahia os comerciantes portugueses ingressavam nas irmandades religiosas ou na Santa Casa de Misericórdia, misturando-se livremente aos senhores de engenho e funcionários régios que compunham seus quadros, em Pernambuco negou-se-lhes acesso às entidades congêneres... O mesmo espírito de exclusão prevaleceu em Pernambuco até 1710 no tocante aos postos de comando das milícias e aos cargos da administração municipal, vale dizer, às principais posições locais de poder político e de prestígio social. Por volta de 1680, os comerciantes da Bahia ocupavam metade das patentes de ordenanças existentes em Salvador e arredores; em Pernambuco, os casos esporádicos de acesso de mascates a tais postos provocavam o protesto indignado da ‘nobreza da terra’. Na Bahia, os negociantes portugueses logravam penetrar, embora minoritariamente, na Câmara do Salvador, dominada pelos senhores de engenho; mas em Pernambuco, aqueles eram sistematicamente repelidos. Destarte, enquanto na Bahia a grande lavoura adotava uma atitude de relativa flexibilidade, que tendia a reduzir e a absorver o antagonismo sempre

latente, a açucarocracia pernambucana oferecia cerrada resistência à promoção social e política dos comerciantes reinóis, polarizando a rivalidade e só lhe deixando a saída do conflito armado e da repressão régia”. Diante desse quadro – flexibilidade e disposição assimilativa dos senhores baianos; intransigência e aparteísmo dos pernambucanos –, Cabral de Mello extrai, por fim, uma lição de natureza mais geral, teorética: “...a comparação dos modelos baiano e pernambucano indica que uma teoria do conflito entre a grande lavoura e o comércio no Brasil colonial deve partir do reconhecimento da pluralidade de situações que prevaleceram nos principais centros de produção escravista”. É certo, ainda, que esta flexibilidade senhorial da Bahia diluía a linha divisória entre nativos e adventícios, entre “brasileiros” e lusos, adiando assim a demarcação nítida do espaço de constituição de uma gente consciente de si mesma e de sua existência como agrupamento relativamente diferenciado, com fisionomia própria, desenhada na convergência de determinados traços distintivos. Mas vamos voltar o nosso olhar, agora, para outras direções. Apesar de seus reclamos e protestos antilusos, os grupos sociais dominantes, na Bahia seiscentista-setecentista, não deixavam de se considerar portugueses. Fatia considerável de seus integrantes podia ser “natural da terra”, mas, assim como a terra, era parte de Portugal. Pertencia ao círculo da gente lusitana, à “raça” de Vasco da Gama e de Luís de Camões – mesmo que contasse, em sua história biológica, com ancestrais indígenas e/ou africanos. Porque há mestiços e mestiços: o que não são reconhecidos, nem se reconhecem como tais; os que são reconhecidos, mas não se reconhecem (dos mulatos que se dizem “brancos” aos mulatos que se dizem “negros”); os que são reconhecidos e se reconhecem, ainda que não explícita e ostensivamente; os que se afirmam à luz do dia, como o Caetano Veloso do disco Araçá Azul, cantando a sua própria personalidade étnica e política: Sou um mulato nato no sentido lato mulato democrático do litoral...

São os mestiços socialmente reconhecidos e que se reconhecem como tais que passam, agora, a centralizar a nossa atenção. Na verdade, vem se tornando praticamente unânime, entre os estudiosos da vida brasileira, o ponto de vista de que o sentimento de uma diferença, com relação ao “ser português” e a Portugal, foi-se espraiando primeiramente, no Brasil, não no âmbito das elites coloniais, mas em meio à população mestiça de raras posses, que não se instalara nos patamares mais elevados da nossa hierarquia social. A percepção que um “brasileiro” tinha de si mesmo, no período colonial, estava certamente vinculada, de um modo geral, à sua aparência física, à sua formação cultural, ao seu lugar na estratificação estamental ou classista da sociedade. Como bem disse Stuart B. Schwartz, no texto citado, “o Brasil sempre teve significados diferentes em momentos diferentes para pessoas diferentes”. Daí que um exame das percepções do Brasil e de sua gente pelos próprios

“brasileiros” (entre aspas, ainda), no contexto colonial, não deva se limitar a uma leitura do que diz a produção intelectual da época. “Ligados às elites coloniais brancas e vinculados por laços familiares e de interesse a Portugal, esses intelectuais eram os menos aptos a desenvolver uma noção da diferença. Esses sentimentos provavelmente se alastraram mais rapidamente entre os mestiços, os mamelucos e os pardos, que se sentiam pouco ligados a Portugal e os quais, no final do período colonial, constituíam cerca de 40% da população da colônia”. Darcy Ribeiro empregou a propósito, em seu livro O Povo Brasileiro, um neologismo que já vai se tornando célebre: ninguendade. No seu entender, os primeiros brasileiros que tiveram consciência de si mesmos como brasileiros foram, muito provavelmente, os mamelucos e os mulatos, que, impossibilitados de se identificar como os seus ancestrais, viram-se como que obrigados a inventar as suas próprias identidades. O mameluco – “esse brasilíndio mestiço na carne e no espírito” –, desidentificando-se de seus antepassados ameríndios, que desprezava, e não chegando a se identificar com os europeus, que o desprezavam, “via-se condenado à pretensão de ser o que não era nem existia: o brasileiro”. Do mesmo modo, mutatis mutandis, o mulato. Darcy sintetiza – o mameluco e o mulato “existiam numa terra de ninguém, etnicamente falando, e é a partir dessa carência essencial, para livrar-se da ninguendade de não-índios, não-europeus e não-negros, que eles se vêem forçados a criar a sua própria identidade étnica: a brasileira”. Mas não vamos nos mover apenas em terreno genérico. Devemos ter sempre em vista que, entre os séculos XVII e XVIII, esta entidade a que chamamos Brasil vivia, em molduras ecológicas dessemelhantes, processos histórico-sociais igualmente distintos. E a pergunta à espera de uma resposta – aqui – é: quando foi mesmo que nasceu o “povo baiano”? Dito de forma menos ingênua, ou mais empolada, trata-se de indicar quando e como foi que os naturais da Bahia começaram a se perceber como baianos e a pensar assim sobre si próprios, em seu espaço geossocial – isto é, a ter consciência de que configuravam uma gente específica, na contextura da região em que haviam nascido, e do que esta região significava para eles. No Portugal dos séculos XVII e XVIII, a visão que predominava, acerca da realidade ultramarina, pode ser resumida em poucas palavras. O Brasil era um lugar geograficamente rico e humanamente infernal. A Bahia produzia a riqueza branca do açúcar, mas se apresentava infestada de negros – bárbaros e pagãos. Havia a elite, um punhado de bons portugueses – proprietários rurais, grandes comerciantes, funcionários régios, o alto escalão eclesiástico – e a canalha, massa de mestiços e de negros escravizados. Tradicionalmente, a sociedade portuguesa se representava como uma entidade formada por três “estados”: clero, nobreza e povo. Desta perspectiva, o corpo social da colônia era incompleto, aleijado. Na sociedade em gestação nos trópicos, tínhamos uma elite, mas não um povo. Faltava-nos o “terceiro estado”. Schwartz: “O conceito de ‘povo’ enquanto terceiro estado na sociedade de ordens e na base de toda a sociedade não chegou a se estabelecer na colônia. As referências mais antigas falam de ‘pessoas de menor condição’, ‘moradores’ e ‘povoadores’, mas a idéia de um ‘povo’, orgânica e constitucionalmente vinculado ao corpo da política e ao rei estava, em larga medida, ausente”. Porque os escravos eram os escravos – não contavam, nesse caso, para nada. E “aquele que poderia ser chamado de o povo brasileiro era formado, essencialmente, pelas pessoas

de origem mista, e não se confiava muito nelas nem na sua capacidade”. Em síntese, a paisagem social se esboçava nos seguintes termos. De uma parte, ficava a elite, cujos membros se viam como portugueses, vassalos leais da Coroa, que a sorte lançara ou fizera nascer ao sul da linha equatorial. No meio, estava a multidão de mestiços, a mulataria tropical, os mamelucos de prega asiática nos olhos, até mesmo confusos cafuzos, enfim, uma gente considerada inferior, que não era digna de receber o nome de “povo”; na outra ponta, agitava-se a escravaria, formada, em boa parte, de africanos, com os seus modos supostamente brutos, as suas línguas rudes, os seus demônios travestidos de deuses, os seus abomináveis batuques, os seus venenos, o seu despudor, as suas feitiçarias. Logo, do ângulo das camadas sociais dominantes, o que tínhamos, em vez de “povo”, era somente “plebe”. E uma “plebe” que não era apenas pobre, mas preta, mulata, mameluca e cafuza. Ou seja: uma plebe que, além de ser plebe, carregava consigo os mais diversos estigmas, da cor da pele às conexões satânicas. No século XVII, a elite baiana, ainda que em parte obrigada a dissimular a sua origem mista (que a marcava da Torre de Garcia d’Ávila ao palácio do governo), alimentava um forte preconceito contra os mestiços. Gregório de Mattos, por exemplo, abria fogo contra mulatos e mamelucos, inclusive para ferir fundamente a nobreza da terra, na figura do “fidalgo caramuru”, do nobre que descendia de índios canibais. Schwartz acredita que esse preconceito se tornou ainda mais agudo ao longo do século XVIII – e, a julgar pelos escritos de Vilhena, ele está certo. “Quando se sugeriu à Câmara de Salvador que se formassem companhias de índios, cabras e negros do sertão, com a finalidade de coibir o contrabando, a câmara respondeu que pessoas desse tipo ‘abandonariam o comboio em troca de um barril de aguardente’... A eleição de um certo homem para a Câmara de Cachoeira, na Bahia, foi contestada em 1748 porque ‘ele era um homem cuja qualidade de sangue ainda era desconhecida’, e isso a despeito do fato de que tinha diploma universitário”, exemplifica o historiador. Àquela altura, no entanto, a grande maioria da população do Brasil era composta de negros e mestiços. E, do plano biológico ao cultural, eles eram logicamente muito menos presos ou apegados a Portugal, ao mundo peninsular lusitano, do que o contingente burocrático-senhorial branco. Na Bahia de Todos os Santos e seu Recôncavo, o predomínio numérico de negros e mestiços se impunha de chofre ao mais distraído de todos os observadores. Os “brancos” (ou brancomestiços, para ser mais exato), naquela segunda metade do século XVIII, formavam, no máximo, 25% da população de Salvador. E a verdade é que negros e mestiços nunca ficaram esperando por uma autorização para começar a pensar e agir. Foram elaborando, incorporando, adaptando, inventando e reinventando elementos, formas e práticas de cultura, do uso de utensílios ao código lingüístico, da religião à arquitetura, da criação textual à música, da política à dança. Os mulatos, em especial, encontravam-se mais livres do que qualquer outra categoria de gente para fazer esse jogo. Não eram portugueses, nem africanos. E há uma coisa que não pode ser esquecida. Apesar de todos os preconceitos e de todas as discriminações, a sociedade que se ia plasmando, na Cidade da Bahia, suas ilhas e seu Recôncavo, não primava pelo aparteísmo. Era uma sociedade rigorosamente hierárquica, mas, ao mesmo tempo,

francamente informal – o que, de resto, desconcertaria os que a observassem de fora, como desconcertou viajantes oitocentistas europeus. Uma sociedade dada a contatos, trocas, interpenetrações, transfusões, contágios. Com amplos espaços de convívio, do cais à praça e do mercado à cama. Por isso mesmo, negros e mestiços não só engendraram mundos culturais paralelos, entre chulas, capoeiras, calundus, quilombos e cucumbis. Eles também se nutriram do circuito de idéias, técnicas e crenças da chamada “cultura erudita” – da assimilação da tecnologia alfabética às construções ideológicas que a elite importava da Europa. Da França, em especial. E fizeram sentir o seu influxo transformador no próprio repertório senhorial de cultura. De lance em lance, de trama em trama, esses mestiços foram se sentindo, mais e mais genuinamente, filhos da terra em que de fato haviam nascido. Como rebentos da Bahia. E por esses caminhos foi principiando a se configurar, entre nós, um povo. Assim, antes que os estratos sociais dominantes se inclinassem para o reconhecimento da existência local de um “povo”, na acepção de “terceiro estado”, eles foram surpreendidos por seus subalternos. Foi a plebe mestiça que tomou a iniciativa, para se afirmar de modo público e incisivo, expressando-se politicamente como povo. E mais. Empregando a palavra “povo” não em seu significado lusitano tradicional de “terceiro estado”, mas no sentido eletrizante de que o vocábulo se vira investido no contexto retórico-discursivo da Revolução Francesa. Como em L’Orateur des États-Généraux, de Jean Louis Carra, que convocava o povo a assumir e declarar a sua soberania, ou no Discours de Bossy d’Anglas, que fala do “povo francês, levantando-se do sono da escravidão” – textos que, como se sabe, foram traduzidos e divulgados na Bahia, para circular até em meio à “plebe”, e assim chegar às mãos de “um pardo humilde” como Luiz Gonzaga das Virgens e Veiga, soldado do 1º Regimento de linha. Ou às do “mulato trigueiro” Lucas Dantas, democrata enragé. Concordamos, assim, com Stuart B. Schwartz. No século XVIII, o Brasil principiou a ter um povo, configurando-se num processo de auto-criação e autodefinição, ainda que de forma regionalmente fragmentada: “Vários membros da sociedade colonial começaram a reivindicar o lugar de ‘filhos da terra’ e a constituir o ‘povo’ do Brasil, mas agora sob a influência da Revolução Francesa, com um novo significado inclusivo. Nesse aspecto, os autos da devassa do fracassado movimento de 1794 no Rio de Janeiro são instrutivos... Os jovens que participaram desse movimento começavam a se considerar brasileiros e a conceber um Brasil de outro tipo... Mas, enquanto os conspiradores do Rio de Janeiro pertenciam, em sua maioria, às elites coloniais, quatro anos depois, na Bahia, uma conspiração de artesãos e escravos, brancos, pardos e negros também formulou idéias semelhantes. Também eles podiam imaginar um Brasil diferente; um no qual a escravidão seria abolida, os portos abertos, as distinções de cor eliminadas, e a igualdade de hierarquia e de oportunidade estabelecida. Como afirmava um de seus pasquins: ‘Animai-vos Povo bahiense que está para chegar o tempo feliz da nossa Liberdade: o tempo em que todos seremos irmãos; o tempo em que todos seremos iguais’. Essas declarações foram feitas em nome do Povo Bahiense Republicano. Para eles, e para muitos brasileiros do século XIX, não havia dúvida de que o Brasil tinha um povo”. Os “filhos da terra” iam se tornando, enfim, “baianos” – ou “baienses”, assim como já surgiam os mineiros, os paulistas, os pernambucanos. É claro que a Conspiração dos Búzios representou um

momento extremado, radical, de afirmação dessa nova identidade, em nossa história. Mas a tessitura, a definição e a ampliação dessa identidade política coletiva não se restringiria, de modo algum, a uma exposição breve e panfletária, na ponta de lança incandescente da subversão. Pelo contrário, era obra de todos os dias, obra paciente e rotineira, ao mesmo tempo consciente e subliminar, movendose ora por vias explícitas, ora por cursos subterrâneos. Mas com um limite: não transcendia a territorialidade mais imediata e concreta, vale dizer, o âmbito regional. Este é o balizamento em que se encerra nossa primeira identidade. O marco que os mineiros da Inconfidência de 1789 e os baienses da Conspiração de 1798 não chegaram a ultrapassar. Ainda naquele final do século XVIII, ninguém fala genericamente de brasileiros, como Gregório de Mattos o fizera antes, talvez até por ter vivivo e trabalhado, durante muitos anos, em Portugal. “Na verdade, isso não é de surpreender. A força coesiva do conjunto luso-americano era indiscutivelmente a Metrópole, e o continente do Brasil representava, para os coloniais, pouco mais que uma abstração, enquanto para a Metrópole se tratava de algo muito concreto, a unidade cujo manejo impunha esta percepção. É por isso que é correto afirmar que a ‘apreensão de conjunto das partes a que ‘genericamente’ se chamou de Brasil’ estava ‘no interior da burocracia estatal portuguesa’”, como bem observaram István Jancsó e João Paulo G. Pimenta, em Peças de um Mosaico (ou Apontamentos para o Estudo da Emergência da Identidade Nacional Brasileira). Dito de outro modo, não tínhamos, ainda, uma percepção global do Brasil. O Brasil, em globo, existia apenas para Lisboa. Para o olhar metropolitano, que era obrigado a descortiná-lo por inteiro, pragmaticamente, para nele intervir e dele extrair riquezas. Internamente, esse conjunto se fragmentava em diversos brasis e brasileiros diversos, cuja percepção da realidade em que se moviam era, igualmente, fragmentária. “Nos termos dos pasquins [da Conspiração dos Búzios] o povo é o baiense, pelo que é inútil procurar o brasileiro”, escrevem Jancsó e Pimenta. Inútil seria, também, procurar traços de uma ideologia nacionalista entre os conspiradores baianos. O “povo baiense” não havia se constituído em nação, nem se sentia oprimido por uma dominação estrangeira, mas, sim, por um regime: metonimicamente, pelo “trono”, pela Coroa. “O confronto delineado em 1798 na Bahia colocava frente a frente a monarquia absoluta e uma comunidade que afirmava ter configuração específica: o povo baiense”, insistem Jancsó e Pimenta. Não havia Brasil, identidade nacional brasileira. Ainda Jancsó e Pimenta: “A que comunidade politicamente instituída os baianos expressavam seu pertencimento? Temos aí pelo menos duas variantes, agora contrapostas. Por um lado, estão os que se têm por portugueses, no estrito sentido de fiéis vassalos de sua majestade. Por outro, estão os que se têm por baienses, eventualmente republicanos... Em ambos os casos se trata dos que têm por pátria [lugar de origem] a Bahia, uma pátria que ainda não engendrou um patriotismo político a ela referido, e em cujo interior identidades políticas distintas coexistiam e se confrontavam na gestação histórica de alternativas de futuro cujas formas apenas se esboçavam”. A superação objetiva do estatuto colonial com a “abertura dos portos”, a definição do Reino do Brasil (unido a Portugal e Algarve) como entidade política, a formação de uma identidade brasileira e a autonomia nacional viriam depois, já entrado o século XIX, em processos que envolveriam a

transferência da corte lusitana para o Rio de Janeiro, a Revolução Constitucionalista do Porto e a formalização de nossa independência no ano de 1822. De fato, o Brasil se tornou independente entre 1808 e 1820. Mas, como não conseguiu se manter, a partir de então, como sede e centro do império português, subordinando definitivamente Lisboa ao Rio, acabou tendo que se proclamar independente. “Essa circunstância pouco comum [na história mundial das colonizações e dos colonialismos] explica por que em 1820 [na Revolução Constitucionalista] foi Portugal que declarou sua ‘independência’ do Brasil, e só depois, em 1822, o Brasil declarou sua ‘independência’ de Portugal”, assinala, com sagacidade, Kenneth Maxwell (Por Que o Brasil Foi Diferente? O Contexto da Independência), lembrando, numa frase só aparentemente paradoxal, que “a revolução ‘anticolonial’ ocorreu no Porto e não no Rio de Janeiro”. Mas a declaração de setembro de 1822 resultou em guerra na Bahia. E por conta disso assistiu-se à emergência de mais um referencial regional particularizante, já na reta final do primeiro processo de configuração do povo baiano. Claro. Enquanto, no centro-sul da nova nação, a Independência era vista como realização pacífica de um regime monárquico encabeçado por um jovem e destemido príncipe, na Bahia ela surgia como desfecho de um movimento armado vitorioso, em função do qual se havia mobilizado o povo baiano. Assim, se os agora brasileiros do Rio e de São Paulo festejavam a simples declaração ou proclamação da independência, no 7 de Setembro, a Bahia celebrava a guerra da independência, no 2 de Julho. Eram coisas distintas. E, desse modo, se os centro-sulistas, comemorando a ruptura com Portugal, afirmavam a sua identidade brasileira em oposição à identidade lusitana, a situação baiana revelava-se um pouco mais complexa. Afirmava-se, aqui, uma dupla diferença. Diante de Portugal – e diante do Brasil. Para os baianos, a independência não tinha sido fruto exclusivo de um gesto monárquico, mas obra deles, de sua mobilização, que triunfara com pólvora e sangue. Os próprios ritos sociais comemorativos diferiam entre si. O 7 de Setembro era e ainda é um rito oficial. Uma celebração do poder, centrada em palanques, decretos, clarins e continências. O 2 de Julho era e ainda é um evento híbrido ou polissêmico, misto de ritual cívico e de festa carnavalesca, com foliões, batucadas, máscaras e fantasias. E um rito de caráter popular. Aqui, o que se achava no centro das atenções não era a monarquia, a família real ou a espada do imperador, mas a figura não-branca do caboclo, signo emplumado da mestiçagem tropical, desfilando pelas ruas a bordo de um carro alegórico. Nesse rito, que implicava batucada e birita, mas que não ocultava distinções e preconceitos, com as camadas sociais guardando entre si distâncias regulamentadas, do camarote no teatro ao boteco da esquina, da orquestra no baile à chula oitocentista no meio da praça (“O Madeira queria/ Se coroar/ Botou uma sorte/ Saiu-lhe um azar”), os baianos se afirmavam como brasileiros, sim – mas perante Portugal. Perante o Brasil, sublinhavam-se, colorida e sonorosamente, como baianos. Não éramos portugueses – e os portugueses foram, durante décadas, hostilizados no 2 de Julho. Escreve Mello Moraes Filho, em Festas e Tradições Populares do Brasil: “A crioulada e a mulataria, aos magotes, cantando quadrinhas patrióticas e em serenatas locais, desfrutavam a noite [do dia primeiro de julho], prelibando os prazeres da festança. Ao começar da véspera, o comércio

português fechava as portas, em razão dos ataques e violências da turba, não escapando dos desvarios populares as tavernas, onde a capadoçada ínfrene embriagava-se, zombando dos direitos do taverneiro amedrontado, que tudo franqueava, contanto que o deixassem vivo. Nesses dias eram comuns os fecha-fecha, os mata-marotos, de que resultavam reprovadas correrias e freqüentes assassinatos”. Se não éramos portugueses, também não éramos africanos. E a verdade é que houve reações contra a presença negroafricana nas comemorações primeiras da festa autonomista baiana. Preferíamos acentuar a ascendência indígena, romanticamente idealizada, com as pias batismais recebendo peris e cecis. Ninguém, naqueles momentos, discursaria publicamente por oxóssis, iansãs, dandalundas, caiarês, noviches, voduns ou eguns. Éramos brasileiros, sim. Mas, em primeiro lugar, baianos. A velha identidade da “pátria”, como lugar de origem, “naturalidade”, prevalecia, favoneada pela guerra e em outra volta da espiral da história, sobre o mito mais amplo da nação. Mas já não nos podíamos representar somente como aquele “povo baiense” quase ilhéu, ou praticamente ilhado, do discurso mulato dos “alfaiates”, que fizera a glória futura de poucos e o drama presente de muitos. Entrados no século XIX, entráramos em outra órbita, internamente mais larga. Éramos baianos do Brasil ou brasileiros da Bahia. Mas, ainda, com ênfase na referência provincial ou provinciana, antes que na referência nacional. A Bahia, de qualquer forma, encontrava concretudes para entidades abstratas. E foi assim que o 2 de Julho não apenas encorpou e reforçou a identidade política baiana de um modo geral, mas, também, de uma forma específica. Passávamos a nos ver como a encarnação de uma singularidade. E sem abolir os nossos conflitos internos, que significavam, como ainda significam, intervenções diferenciadas no tecido do real histórico, projetos sociais distintos, discriminações dessemelhantes, disputas por uma realização futura. Embora guerras independentistas houvessem existido e se prolongado também em direção ao Extremo-Norte brasileiro, os baianos podiam agora representar, para si mesmos e para todos, a peça que parece que haviam encomendado a Deus. A encenação coletiva de uma situação absolutamente singular: o que agora era o Brasil não só havia nascido aqui, como aqui se fizera independente. Em A Bahia de Outrora, por exemplo, Manoel Querino parte da fundação de Salvador (de uma Bahia que, para ele, amamentou, dirigiu e defendeu o Brasil) para afirmar: “A Bahia sagrou o seu prestígio nas armas, notadamente de 1821 a 1823, levantando o estandarte da liberdade, de modo que somente ela derramou o seu sangue em favor da Independência do Brasil”. Sangue, muito sangue – aumentando em metros cúbicos a cada dia em que aumentava e se enraizava o mito. Na poesia de Castro Alves, com batalhas em que o principal canhão foi o da sua retórica, matando mais gente do que a que vivia por aqui. Ou na prosa de seu conterrâneo e coetâneo Moraes Filho: “...em Itaparica, no Cabrito, em Pirajá, feriam-se lutas titânicas, pelejas encarniçadas, em que os baianos conquistavam palmo a palmo o território pátrio ao poderoso luso que o disputava”. E na boca do povo, em quadrinhas chulas. Tenho para mim, além disso, que o próprio fato do 2 de Julho não ter sido reconhecido nacionalmente, como feriado do novo império ou como signo de uma fundação, no âmbito da sociedade civil ou na esfera do Estado (inclusive obrigando Castro Alves a explicar o que tinha acontecido por aqui, a platéias não-baianas, sempre que ia recitar a sua famosa “ode”), feriu

fundamente o narcisismo local, servindo assim para fortalecer, ainda mais, o mito e a festa. O 2 de Julho como mito de origem, como evento fundador da Bahia e do Brasil. Há um curioso atestado, nesse sentido. Sabemos que, desde a descoberta do ouro no século XVIII, milhares de pessoas foram atraídas para aquilo que hoje chamamos Chapada Diamantina, espaço que então girava sob a influência da vila barroca de Rio das Contas. Escravos, inclusive, foram para lá arrastados. E a região se viu tomada por paulistas e mineiros. Eram os tempos da Chapada Velha. Mais tarde, na década de 1840, teve início o chamado “ciclo do diamante”, responsabilizando-se pelo surgimento de assentamentos citadinos como Lençóis, Andaraí e Mucugê. Novas ondas migratórias, e não mais para a Chapada Velha. Em sua Memória sobre os Terrenos Diamantinos da Bahia, Benedito Marques da Silva Acauá informa que, depois de 1844, em seis meses, 25 mil pessoas haviam chegado ao local, que passara a se chamar, então, Paraguaçu Diamantino. Em meio a esses migrantes aventureiros, recriados em teses e romances, estavam os “baianos”, gente mestiça do Recôncavo. E eles levaram para Lençóis o cortejo do 2 de Julho, transformando-o numa das mais importantes manifestações públicas locais, embora a região não tivesse participado em nada de nossa guerra independentista. O estardalhaço da festa em Lençóis dizia, de resto, da afirmação identitária de um grupo migrado. O 2 de Julho fora o seu denominador comum. E foi por aí que os alvoreceres do mês de julho passaram a ser marcados, não muito longe da Glass, por um cortejo sonoro colocado sob o signo do caboclo. Mas se o 2 de Julho projetava irresistivelmente em patamar até então inédito, para muito além daquele “povo baiense” da Conspiração dos Búzios ou Revolução dos Alfaiates, a identidade política coletiva dos agora baianos, restava entre nós, ainda, um grave e grande problema: os escravos. Ou, mais exatamente, os africanos aqui escravizados. Os crioulos, os negros nascidos no Brasil, já se achavam razoavelmente incorporados ao novo complexo sociocultural, e mesmo participando de sua modelagem. Mas boa parte da escravaria baiana, na década de 1820, era natural da África. Negros que não eram portugueses, nem brasileiros, nem baianos – eram africanos. Não podiam fazer parte, enquanto tais, de um povo baiano. A rebelião dos malês, em 1835, foi uma revolta étnica, classista, religiosa. Mas foi, também, um levante africano. É por isso mesmo muito difícil tentar enquadrá-la no espaço semântico delimitado pelo conceito de “guerra civil”. É claro que africanos iam e vinham impregnando e formando a Bahia e o povo baiano. Mas só depois de 1850 ou 1851, com o fim do tráfico clandestino de escravos, é que os africanos deixaram de desembarcar em grupos por aqui. Mas teríamos que esperar ainda por algumas décadas para poder dizer, tranqüilamente, que o contingente negro não era parte somente de nossa sociedade, mas também de nosso povo. E é também por isso que não estaremos errados em afirmar que a invenção do povo baiano só vai se completar no final do século XIX, limiar do século XX. E aqui não podemos deixar de concordar com Darcy Ribeiro, muito embora fazendo uma ressalva fundamental. Em As Américas e a Civilização, ao elaborar uma tipologia dos povos que se configuraram no mundo, em conseqüência da expansão européia, Darcy distingue entre “povotestemunho” e “povo-novo”. Um “povo-testemunho” é formado por “representantes modernos de velhas civilizações autônomas sobre as quais se abateu a expansão européia”; e “novos” são os

“povos americanos plasmados nos últimos séculos como um subproduto da expansão européia pela fusão e aculturação de matrizes indígenas, negras e européias”. Povos-testemunho são as populações mexicanas, mesoamericanas e andinas que descendem das civilizações asteca, maia e incaica, subjugadas traumaticamente pela conquista espanhola. Povo-novo é o brasileiro. Embora não acompanhe a argumentação geral de Darcy, seu evolucionismo de base marxista ou seu gosto por simplificações forçadas, acho que, no fundamental, ele está certo. Contemplando a realidade mexicana, vejo um povo-testemunho. Mas, ao pensar no Brasil, um povo-novo. A ressalva diz respeito a uma conclusão apressada que se pode extrair da distinção de Darcy – e para a qual o próprio Darcy descamba, em O Povo Brasileiro, num exemplo de excessivo entusiasmo do classificador pela classificação que ele mesmo estabeleceu. É que a formação de um povo-novo, como o brasileiro, não implica a destruição ou o esquecimento completo das matrizes culturais a partir das quais ele se configurou. Em O Povo..., Darcy escreve que “o brasileiro comum se construiu como homem tábua rasa”. Não acredito nisso. Seria mais correto pensar, com o Oliveira Viana de Populações Meridionais do Brasil, que “nós não somos senão uma coleção de almas, que nos vêm do infinito do tempo”. Veja-se o caso baiano. Não é de eclipsamento, de apagamento ou de extinção matricial que nos falam a poesia do samba de roda, o desfile do afoxé, o romance de Jorge Amado, o ritmo de João Gilberto ou a realização do axexê de uma ialaxé no Opô Afonjá. Nem foi por acaso que, numa canção como A Lenda do Abaité, Caymmi compôs uma rima trilíngüe, aproximando ‘batucajé’ (africanismo), ‘quiser ’ (português) e ‘Abaité’ (tupi). E a ressalva é esta: somos um povo novo... formado de povos muito antigos, milenares até.

AQUARELA DA BAHIA Já falamos bastante da Cidade da Bahia e seu Recôncavo em termos de uma configuração especial. De uma totalidade indissociável, formada por uma grande cidade portuária, uma constelação de vilas e o campo, com as suas plantações de tabaco e cana-de-açúcar. Não se tratava meramente de um elenco de elementos autônomos ou relativamente autônomos, embora ligados entre si por vínculos de intensidade variável, ou mesmo somente circunstanciais. Mas, sim, de um complexo de unidades intimamente entrelaçadas – de uma entidade coesa, ou de um conjunto organicamente articulado. Era um caso singular no espaço colonial brasileiro. À exceção planaltina de São Paulo, as cidades brasileiras nasceram como feitorias litorâneas, focos costeiros que foram compondo uma rede urbana marítima, praieira, de costas para o interior. Eram núcleos litorais voltados para o Atlântico e as terras de além-mar. A Cidade da Bahia deveria ter esse mesmo destino. Mas aqui se formou, como disse, um complexo integrado. Um campo magnético, estabelecido entre as plantações, o rosário de

vilas do Recôncavo e a sua capital. É bom sublinhar este aspecto: a Cidade da Bahia era a capital do Brasil Colônia, sim, mas, mais imediatamente, era a capital do Recôncavo. Era uma cidade que não olhava apenas para fora, porto voltado para a imensidão do mar, para o mercado internacional. Ao contrário do Rio de Janeiro, ela se voltava também para dentro. Era a ponta-de-lança de um corpo ecossocial altamente estruturado. Para fortalecer e aprofundar essa teia cidade-vila-campo, havia, ainda, o contraste entre a extrema dificuldade na comunicação com o sertão, que tinha que se organizar em base terrestre, e a extrema facilidade na comunicação capitalinterlândia, fluindo por caminhos aquáticos, fossem eles fluviais ou marinhos. E é claro que tal realidade era em tudo propícia à conformação de uma cultura com traços próprios, nitidamente particulares, brotando de um sistema específico de relações sociais, numa área ecologicamente homogênea. Nessa contextura, que novidades apresentou o século XIX? Em primeiro lugar, foi somente aí que se deu a consolidação de nossa formação etnodemográfica. Entre as últimas décadas do século XVIII e meados do século XIX – até 1851, para ser mais preciso –, desembarcaram aqui aqueles grupos africanos que dariam a definição última de nossa fisionomia biocultural: jejes, nagôs e, em escala bem menor, os haussás. Note-se também que o desenvolvimento e a fixação de uma realidade cultural própria, na Cidade da Bahia e seu Recôncavo, foi favoneada pela – ou antes: esteve embasado na – estabilidade da história etnodemográfica da região. Esclareçamos. Entre o século XIX e a primeira metade do século XX, esta parte da Bahia viveu praticamente ao abrigo daquilo que, do ponto de vista da história geral da população brasileira, chamamos “migrações secundárias”. Costumamos distinguir dois períodos principais na história da imigração para o Brasil, durante o século XIX. No primeiro período, que vai da abertura dos portos à extinção do tráfico de escravos (1808-1850), o Governo tratou de favorecer a imigração, com suíços e alemães se estabelecendo no Brasil Meridional. No segundo período, do fim do tráfico à abolição do regime escravista, com o Governo incentivando a imigração e a colonização, foi a vez dos italianos se distribuirem por São Paulo e pelo Rio Grande do Sul. Se distinguirmos, ainda, um terceiro período migratório, indo da abolição à Revolução de 1930 (que adotou medidas restritivas à entrada de estrangeiros no país), vamos detectar o clímax da imigração européia e o início da imigração japonesa. E o fato é que a Cidade da Bahia e seu Recôncavo não sofreram, em nenhum dos períodos citados, a pressão transformadora de correntes migratórias, viessem elas da Europa ou do Oriente. Não aconteceu por aqui nada de parecido com o que se viu no Rio, com Petrópolis e Nova Friburgo, ou em Santa Catarina, com Blumenau; nem com o que se deu em São Paulo, com italianos tomando a cidade e japoneses se espalhando pelo espaço rural. Essa estabilidade etnodemográfica baiana explica, entre outras coisas, a definição, entre nós, de uma situação lingüística com características próprias. Dito de outro modo, a peculiaridade lingüística de nossa gente – aquele Bahian Portuguese, de que fala William Megenney – é um corolário de nossa história etnodemográfica. Quem desembarcou na Bahia, ao longo da primeira metade do século XIX, foram os negros. Mais negros. E aqui podemos estabelecer um contraste entre a Cidade da Bahia e o Rio de Janeiro.

Com a escapada de D. João VI para o Brasil, o Rio foi submetido a um forte processo euro-peizante. Nem seria para menos. Naquela época, toda uma aristocracia foi transplantada de Portugal para lá. Da noite para o dia, a Guanabara se viu tomada por uma tremenda onda de portugueses. Nada menos que catorze navios superlotados de lusos foram despejados em praia carioca. A bordo, além da corte e do “imenso séquito de funcionários, fâmulos e parasitas que a acompanham” (Sergio Buarque), vinha todo o acervo administrativo da metrópole. E era uma migração completamente insólita. Migração não daqueles desfavorecidos em sua terra natal, que se deslocam para outras partes do mundo à procura de oportunidades de trabalho e alternativas de uma vida melhor. Ao contrário – era a migração de uma classe dirigente. Em vez da tradicional formação da maré de migrantes pobres, a transferência massiva de migrantes nobres. Nas palavras de Oliveira Lima, o desembarque da corte produziu, no Rio, “um acréscimo repentino e avultado de população das classes superiores”. Em Nasce um Povo – Estudo Antropológico da População Brasileira, Michel Bergman diz que quinze mil portugueses desceram da frota para o Rio, naquele ano de 1808. “Vinda tão maciça modificou imediatamente a composição da sociedade carioca, já que, na época, o Rio de Janeiro tinha apenas 50.000 habitantes, na maioria mulatos e africanos”. E como essa migração era a migração do Poder, tanto mais fácil alterar, em extensão e profundidade, a vida cultural da cidade que a recebia. De fato, o Rio se tornou mais aportuguesado, afrancesado e anglicizado. Foi essa, por exemplo, a época da chamada Missão Cultural Francesa e da Academia Imperial de Belas-Artes do Rio de Janeiro, patrocinando, entre outras coisas, a difusão da arquitetura neoclássica, quando jardins europeus e ruas calçadas foram se tornando mais visíveis pela cidade. Mas enquanto o Rio de Janeiro sofria esse formidável impacto europeizante (ou desafrica-nizador), a Bahia experimentava um processo inteiramente diverso. Assistia ao enriquecimento – numérico e cultural – de sua já então poderosa vertente negroafricana, com a chegada de carregamentos anuais de milhares e milhares de jejes, nagôs e haussás. Assim é que o Conde da Ponte, entronizado no posto de governador da Província, reclamava da presença excessiva, em nosso meio, de “negros da pior espécie chamados nagôs”. “Esse foi um período de grande introdução de nagôs, jejes e alguns haussás muçulmanos, grupos que constituíam talvez um terço da população cativa da capitania no início do século XIX. No momento mesmo em que brasileiros especulavam sobre a natureza de sua diferenciação e nacionalidade em relação a Portugal, um mar de estrangeiros africanos boçais, distintos em sua língua e religião, inundava a capitania. Essa situação permitia aos escravos manter fortes ligações culturais e religiosas”, observou Stuart B. Schwartz, em seu Segredos Internos. Aí está um aspecto fascinante de todo esse processo. Chegando em levas sucessivas e em número significativo, esses africanos alargavam o universo que os negros vinham construindo para si desde os primeiros tempos coloniais – e ao qual temos nos referido, aqui e ali, com a expressão mundo cultural paralelo. De outra parte, a coincidência cronológica entre as discussões sobre o caráter nacional e a construção da nacionalidade, por um lado, e, por outro, a chegada de milhares de estrangeiros, falantes do iorubá e do fon, que afetariam fundamente a personalidade de algumas regiões do país, redefinindo-as em graus variáveis, não só nos convida a criticar abstrações nacionalistas, como a

condenar, ao reino das falácias ideológicas, qualquer fantasia monolítica acerca de uma “identidade cultural” brasileira. Mas vamos adiante. Longe das migrações euroasiáticas que atingiram o Brasil Meridional, a Cidade da Bahia foi espaço para a construção de uma cultura essencialmente luso-banto-sudanesa. Em 1714, Frézier a definiu como “uma nova Guiné”. Mais de um século depois, comprovando que a cidade não passara por uma “desafricanização” à carioca, Avé-Lallemant ainda podia declarar que “se não se soubesse que ela fica no Brasil, poder-se-ia sem muita imaginação tomá-la por uma capital africana”. Ainda Avé-Lallemant, em sua Viagem pelo Norte do Brasil no Ano de 1859: “tudo parece negro: negros na praia, negros na cidade, negros na parte baixa, negros nos bairros altos. Tudo que corre, grita, trabalha, tudo que transporta e carrega, é negro”. Em contrapartida, Adolphe d’Assier dizia que, se alguém quisesse conhecer uma cidade que representasse mais fielmente a civilização portuguesa no Brasil, teria que ir à Bahia. Mais recentemente, dissertando sobre a capital baiana em seu Notícias da Bahia – 1850, Pierre Verger justificou a sua escolha historiográfica dizendo que Salvador “era, no século XIX, mais ‘brasileira’ que o Rio de Janeiro, então capital do país, já submetida às influências do mundo exterior”. É fácil encontrar muitos juízos semelhantes. Uns acham Salvador a mais “portuguesa” – outros, a mais “africana”; outros, a mais “brasileira” – das cidades oitocentistas do Brasil. São modos diversos, mas igualmente sintomáticos, de dizer a mesma coisa: a Cidade da Bahia e sua diferença. Com um remoto substrato ameríndio, o que se articulou aqui foi uma cultura de caráter estruturalmente lusitano, mas profundamente subvertida e transformada, em todos os seus aspectos e instâncias – da linguagem à moral, do sexo à estética, da família à religião –, pelos influxos de bantos, jejes e nagôs. Quando falo de uma cultura estruturalmente lusitana, quero dizer que, embora não sejamos somente latinos, mas afrolatinos, o que tecemos aqui foi uma formação sociocultural fundada essencialmente no modelo ocidental de civilização, em sua variante ibérica, tendo a língua portuguesa – o Português do Brasil – como a tecnologia central de pensamento e comunicação. Na base, origem estruturante, a cultura barroca, tal como ela se articulou na Península Ibérica. No campo de extração africana, a predominância, entre nós, da cultura nagô-iorubá, se deixa explicar pela convergência de, pelo menos, quatro fatores. Os iorubanos foram os últimos a chegar – e chegaram em grupos constantes e sucessivos, numa cidade excepcionalmente urbana para os padrões da época, que manteve, durante tempo considerável, intercâmbio com a costa ocidental africana. Esses quatro aspectos, entrelaçando-se, foram indispensáveis à reprodução física e cultural desses negros na diáspora atlântica. E explicam, ao menos em boa parte, porque a cultura nagôiorubá (ou jeje-nagô) se converteu em cultura dominante entre as culturas dominadas. Na Bahia, em ambiente urbano, os iorubanos se sentiram relativamente à vontade. Não se encontravam demasiadamente colados à casa-grande, podendo assim desenvolver com maior facilidade as suas práticas extraeuropéias. Autonomia física e psíquica. Além disso, os nagôs permaneceram contactados. Não foram submetidos à política senhorial de desmembramento ou pulverização das etnias. E se aproveitaram disso. Gilberto Freyre escreveu que foi no escravo preto

que “mais ostensivamente desabrochou no Brasil o sentido de solidariedade mais largo que o de família”. E os nagôs confirmam o sociólogo. Enfim, existiam condições objetivas para ordenar ou reordenar os que aqui estavam e os que chegavam em nova onda de migração compulsória. Finalmente, o relacionamento do estrato dirigente baiano com a África foi aproveitado pelos nagôs em pelo menos três sentidos. Eles se mantinham informados sobre o que acontecia em território africano, viajavam eventualmente à “terra-mãe” e ainda importavam produtos não encontráveis do lado de cá do Atlântico, incluindo aí coisas do culto religioso. Por tudo isso, os nagôs não conheceram aquela profunda e radical “dessocialização”, que Katia Mattoso dá como traumática experiência existencial do escravo desembarcado no Novo Mundo. Ao contrário, o que impressiona, no caso iorubano, é a eficácia ressocializadora. E não é preciso dizer o quanto deve ter implicado, em criatividade e mobilização de energia social, uma reinvenção de práticas e instituições como a que os iorubanos empreenderam entre nós. Insista-se, portanto, na questão urbana. Há contrastes claros entre a escravidão rural e a citadina – entre o cotidiano acanhado do engenho e o rebuliço colorido da cidade. São escalas diferentes, em termos de experiência humana e social. Eram negros menos livres aqueles estabelecidos nos engenhos, pisando o chão de terra nua das senzalas rurais, isolados “do mundo” e ao mesmo tempo excessivamente próximos dos demais edifícios do complexo arquitetônico da economia açucareira. Falando do velho Engenho Freguesia, situado no Recôncavo, Cid Teixeira observou que os seus prédios haviam sido dispostos “de tal maneira que, da cabeceira da mesa da sala de almoço, pode-se ver a capela, a senzala e o engenho”. Na cidade, a vida era outra. O processo era mais rico e dinâmico. Havia maiores e melhores oportunidades para a ação. O padrão dicotômico senhor/escravo não era tão rígido. Escravos desfrutavam de uma razoável liberdade de movimentos. Em O Liberto – o seu Mundo e os Outros, Maria Inês Cortes de Oliveira observa que a divisão da sociedade entre livres e escravos adquiria, nas cidades, matizes que ainda hoje “dificultam o estabelecimento do exato limite entre a escravidão e a liberdade, como no caso das alforrias condicionais”. Inês chega mesmo a defender que a infinidade de formas exibidas pela escravidão, na cidade, pede uma revisão da categoria “escravismo”, para uma melhor compreensão da vertente urbana do sistema. É assim que podemos entender o êxito das associações étnicas urbanas, como as confrarias ou irmandades religiosas e os terreiros de candomblé. E essas instituições permitiram, como bem disse Roger Bastide, “a transmissão das civilizações africanas no continente americano”. Na cidade, o controle se dilui. É impossível manter o escravo sob controle total, constante e imediato. Mas, além de frisar o contraste entre escravidão rural e urbana, é preciso dar ressalte, mais particularmente, às figuras do “negro de ganho” e do “liberto”. O caso dos negros-de-ganho é sem dúvida especial. Regra geral, o “ganhador” (ou a “ganhadeira”) era o escravo que se movia no mercado – como vendedor ou artesão, por exemplo –, repartindo, com o seu senhor, a renda que conseguia. Alguns desses ganhadores chegavam, inclusive, a morar em casa separada da de seu proprietário. O que significava, obviamente, maior liberdade, já a partir do simples direito de ir-evir. Além disso, eles se organizavam em grupos, tendo os seus “cantos” de trabalho na cidade. E cada “canto” exibia a predominância desse ou daquele agrupamento étnico, favorecendo, assim, a

preservação de formas culturais africanas. Mesmo depois de alcançar a emancipação, os africanos continuavam se distribuindo, ocupacionalmente, por esses “cantos” etnicamente delimitados. Em Os Africanos no Brasil, por sinal, Nina Rodrigues nos dá um mapeamento desses pontos étnicos de trabalho, embora já na passagem do século XIX para o século XX, quando essas associações começavam a se dissolver (o que não nos impede, todavia, de imaginá-las vivas, animadas, coloridas e barulhentas): “Não se vá crer no entanto que, isolados da população mestiça e crioula, se fundam todos os africanos em uma colônia estrangeira grande e uniforme. Cada qual procura e vive com os de sua terra e são os sentimentos e as afinidades da pátria que nesta cidade repartem os derradeiros africanos em pequenos círculos ou sociedades. As nações ainda numerosas possuem os seus cantos, sítios da cidade onde, a tecer chapéus ou cestas de palha e a praticar das gratas recordações da mocidade, os velhinhos aguardam fretes. Na cidade baixa, nos Arcos de Santa Bárbara, ficam os guruncis. Passos adiante, entre os Arcos de Santa Bárbara e o Hotel das Nações, alguns velhinhos, cansados e modorrentos, últimos representantes da outrora enérgica, belicosa e aguerrida colônia dos haussás, ali diariamente se reunem. Mais numerosos, são os cantos dos nagôs. No canto do Mercado, rua do Comércio ao lado dos Cobertos Grandes, em mais de um ponto na rua das Princesas em frente aos grandes escritórios comerciais, se congregam velhos nagôs, ainda fortes, robustos, numerosos e faladores. São também de nagôs os cantos da cidade alta. No canto da rua da Ajuda por trás do edifício da Câmara Municipal, no largo da Piedade em frente ao Convento, no da porta da casa que fica junto ao Hotel Paris, na Ladeira de São Bento, se reunem negros desta procedência. Nestes dois últimos cantos estão os africanos que ainda possuem e carregam os palanquins que em tempos passados e no domínio da escravidão foram os carros de praça ou eram os veículos de luxo das classes ricas. No canto do Campo Grande, vindo do Forte de São Pedro, a alguns nagôs se reunem uns três ou quatro jejes. Na rua das Mercês, canto de São Raimundo, reunem-se negros minas, dois ou três. Na Baixa dos Sapateiros, canto da Rua da Vala, reunem-se africanos de diversas nacionalidades.” Diga-se, por fim, que nem todos os escravos, na Bahia oitocentista, desempenhavam atividades exclusivamente braçais ou manuais. Embora em número reduzido, havia os que se entregavam a outras ocupações. Resume Inês de Oliveira: “Esta categoria é representada pelos escravos que possuíam propriedades e/ou administravam pequenos negócios próprios. Dentre as propriedades pertencentes a escravos, a mais peculiar é a posse de outros escravos [grifos meus]. As Cartas de Alforria demonstram que comprar a liberdade dando outro escravo em troca não era episódio isolado. Koster, citado por Conrad, constatou, numa propriedade de monges beneditinos, a existência de um mulato que dirigia a propriedade e era dono de dois escravos. Schwartz cita um documento encontrado em São Francisco do Conde, onde uma escrava crioula comprou, na África, uma escrava nagô, que foi posta ‘no ganho’, na cidade, com a obrigação de remeter ao Engenho Cajipe, onde residia sua proprietária, a renda equivalente ao seu trabalho”. Sobre os “libertos”, especificamente, cabem algumas palavras. Um homem que se tornava liberto não era, de modo algum, igual a um homem que tivesse nascido livre. Era sempre um ex-escravo – e a própria sociedade, fundada no trabalho servil, impedia que o estigma cicatrizasse. Havia, na

verdade, inúmeras restrições ao desempenho social do liberto, que iam de limitações ao exercício de direitos políticos ao impedimento do exercício de altas funções eclesiásticas e judiciais. Além disso – e de todos os preconceitos –, a Constituição imperial era discriminatória. Considerava que os libertos nascidos no Brasil, os “crioulos”, passavam a ser cidadãos brasileiros, enquanto classificava os libertos africanos como estrangeiros, que poderiam requerer a sua naturalização. Mas o fato é que, emancipando-se, o sujeito se tornava dono de seu próprio corpo – e circulava livremente pela cidade. É bom salientar, ainda, que o número de alforriados cresceu significativamente na Bahia, a partir do fim do tráfico negreiro, em 1850. Bem. Apesar de todas as assimetrias existentes entre os elementos em jogo, esse encontro de lusos, bantos, jejes e nagôs teve a sua preponderância na constituição de um novo corpus de cultura – ou na individuação da Bahia no conjunto brasileiro de civilização. E aqui podemos falar de duas outras novidades oitocentistas, na vida de Salvador e de sua interlândia, que certamente favoreceram a configuração última dessa realidade cultural baiana. Além de ter sido o tempo da consolidação de nossa fisionomia etnodemográfica, o século XIX foi um período de progressivo isolamento da região no contexto nacional. Esse processo de insularização começou no século XVIII, com a descoberta das jazidas auríferas em Minas Gerais e a transferência da capital colonial para o Rio de Janeiro. Mas quando o ouro mineiro escasseou, reduzindo-se a brilhos esporádicos, não houve propriamente um retorno. O renascimento agrícola baiano foi um fenômeno fugaz. O que se impôs então, depois de alguma indefinição recessiva, foi uma outra lavoura, com a expansão dos cafezais do Vale do Paraíba em direção a São Paulo. O Rio de Janeiro passou de capital colonial a capital imperial – e capital continuou, quando adotamos o regime republicano. Salvador, por sua vez, ia ficando ilhada. Essa marginalização da Cidade da Bahia e seu Recôncavo, agora deslocados para fora do centro nervoso da vida brasileira, só poderia contribuir para o aprofundamento das particularidades culturais da região – e mesmo para a realização de potencialidades que, de outro modo, talvez jamais tivessem chegado a conhecer a luz do dia. Além disso, quanto mais a cidade e o Recôncavo avançavam em seu processo de insularização, mais cerrada se tornava a comunicação interna entre os diversos pontos desse espaço. Em 1819, surgira o Vapor de Cachoeira, cantado em versos maravilhados na criação poético-musical popular de nossa gente. E, em meados do século, entrava em cena a Companhia de Navegação Baiana, sediada em Londres. Eram as embarcações a vapor, que vinham se somar à tradicional cabotagem baiana, feita à base de saveiros, lanchas, barcaças, canoas, jangadas e do chamado “barco do Recôncavo”. Essa Companhia de Navegação Baiana explorava três linhas: a do norte, indo até Maceió; a do sul, cobrindo os portos de Camamu, Ilhéus, Canavieiras, Porto Seguro; e a do Recôncavo. Nesta, na verdade, havia linhas, no plural. Por volta de 1863, elas levavam a Cachoeira, Santo Amaro, Maragogipe, Nazaré, Valença, Caravelas, em rotas percorridas pelos vapores Dois de Julho, Jequitaia, Paraguaçu e Progresso. Ao lado dessas linhas de água, as últimas décadas do século viram surgir alguns caminhos de ferro, linhas de trem que iam de Salvador a Alagoinhas, ligavam as vilas de Cachoeira, Cruz das Almas e São Gonçalo dos Campos e as de Nazaré e Santo Antonio de Jesus. É

claro que a comunicação terrestre continuava precária, mais do que insuficiente. Mas, ao menos, principiava a existir. E a comunicação aquática, por seu turno, adquirira uma intensidade até então inédita. Assim, em dias de mormaço e isolamento, a Cidade da Bahia e seu Recôncavo estavam agora voltados, intensamente, para si mesmos. Em síntese, aí está. No final do século XIX, a Cidade da Bahia e seu Recôncavo aparecem como uma região relativamente isolada, etnodemograficamente estável e com uma cerrada rede interna de comunicação, somando saveiros e vapores. Assim é que, ao longo desse século, vai se definir a configuração daquilo a que hoje nos referimos com o sintagma cultura baiana. Aconteceu aqui, portanto, um movimento curioso: se, para a economia, o século XIX significou um processo crepuscular, para a cultura, ao contrário, o processo foi matinal. E essa cultura baiana vai estar cristalizada, de forma plena, no final dos oitocentos. Se quisermos defini-la em termos concisos, podemos dizer que o que tecemos culturalmente, nessa faixa cintilante dos trópicos, foi um mundo afrobarroco. Sim. E também os inquices, voduns e orixás se dimensionaram em horizonte barroco – e assim foram relidos, de Gregório de Mattos a Gilberto Gil. Enfim, a sensibilidade que aqui se desenvolveu, nos campos da mestiçagem tropical, foi, essencialmente, uma sensibilidade afrobarroca. Aliás, o barroco desde sempre tratou de incorporar “o outro” – a diferença, a estranheza. De lidar artisticamente com signos africanos, discursos mulatos e crioulos, línguas indígenas. E isto não por “nativismo” ou “nacionalismo” – ensina Octavio Paz, em Sor Juana Inés de la Cruz o Las Trampas de la Fe – “e sim por fidelidade à estética do estranho, do singular e do exótico”. Para Paz, de resto, houve, nas Américas, uma conjunção entre sensibilidade mestiça e estilo barroco. Particularismos culturais africanos e crioulos puderam irromper, nesse horizonte, em conseqüência da própria universalidade da estética barroca. E aqui, desde o início, manifestações barrocas envolveram (e se viram afetadas e enriquecidas por) africanos e mulatos. Das procissões religiosas às obras de arte visual. Mas isso foi facilitado, também, pelas próprias tradições estéticas africanas. Podemos estabelecer uma analogia, no caso, com o que ocorreu no campo da linguagem. A interação entre línguas africanas e a língua portuguesa foi favorecida por semelhanças entre esses sistemas lingüísticos. Yeda Castro destacou duas correspondências de modelo estrutural entre as línguas em questão. Em primeiro lugar, seus sistemas vocálicos são praticamente coincidentes; em segundo, “com exceção da nasal silábica (N) para as línguas africanas, a vogal (V) é sempre centro de sílaba”. Ressalte-se, ainda, a proximidade dos espectros fonéticos do português e do iorubá. Nesse caso, basta comparar a pronúncia dos nomes dos deuses iorubanos na Bahia e em Cuba, como fez Megenney. Os cubanos dizem Yemayá e Ochún porque não existem, no espanhol do Caribe, os fonemas /j/ e /s/. Tenho para mim que, em campo estético, as coisas foram ainda mais fáceis. Pode-se dizer que, de um modo geral, a tradição visual africana não se choca com a forma barroca. Pelo contrário, prima, também, pelo excesso. É uma festa de cores, movimentos, detalhes. Um mundo de procissões e danças multicoloridas, de máscaras e brilhos e insígnias e artifícios, capazes de seduzir de chofre um

temperamento barroco. Apesar da diferença cultural, um homem barroco se sentiria à vontade diante da plástica em movimento dos egunguns, por exemplo. Assim, além da convergência histórica, o parentesco formal facilitaria em tudo a formação de uma cultura afrobarroca entre nós. Para finalizar, resta-nos dizer que, apesar dos acréscimos demográficos, a realidade baiana aqui resumida, esquematizada, permanecerá essencialmente a mesma, em termos econômicos e culturais, com a chegada do século XX.

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Terra em Transe Chegamos, enfim, ao nosso presente. Mas o século XX baiano parece partido ao meio. Até à década de 1950, a Cidade da Bahia e o seu Recôncavo permanecem compondo um espaço coeso, essencialmente tradicional. Ainda é a Bahia do saveiro, do terno branco, da vegetação exuberante, das ruas que se espreguiçam sob o sol. Tempos do chamado “enigma baiano”. Mas, a partir da década de 1960, tudo muda. Surgem estradas e distritos industriais. Avenidas, trevos e túneis. A Cidade da Bahia explode para todos os lados, experimentando problemas e tensões até então inéditos. O observador sente-se tentado a recitar Baudelaire: “...la forme d’une ville/ Change plus vite, hélas!, que lê coeur d’um mortel...”. A vanguarda estética vira a mesa numa vida universitária livre e criativa. Uma nova geração vai criar o Cinema Novo e a Tropicália. Salvador se volta para o litoral norte, divorciando-se do Recôncavo Histórico. Os negromestiços se afirmam como tais. A metrópole preserva a sua memória. E agora, ao ingressar no século XXI, prepara-se para se olhar no espelho — e meditar sobre o seu próprio sentido.

UMA SOCIEDADE AGROMERCANTIL À entrada do século XX, a antiga Província – agora Estado – da Bahia já não se encontra, em termos políticos ou econômicos, entre as principais unidades constitutivas da jovem nação brasileira. Deixando de parte o Distrito Federal – o Rio de Janeiro, uma cidade –, o que de fato conta, na nova realidade do país, são os estados de São Paulo, Minas Gerais e Rio Grande do Sul. Aí está o triângulo, o trio que realmente pesa na balança. Recorde-se, a propósito, a chamada política “café-com-leite”, como se costuma designar o pacto

então costurado entre São Paulo e Minas Gerais. Esse pacto, nunca escrito, foi acertado em 1913 na cidade mineira de Ouro Fino – e estabelecia um revezamento de paulistas e mineiros na presidência da República. Aliás, quando os paulistas descumpriram o acordo, em 1929, com Washington Luís designando um outro político paulista (Julio Prestes), e não um mineiro, para sucedê-lo, houve uma desestabilização política nacional, que foi desembocar na Revolução de 1930. Mas enquanto mineiros e paulistas tinham cacife para fazer um jogo dessa natureza, alternando-se à frente do núcleo mesmo do poder nacional, o que marcava o panorama político baiano? Uma insurreição de “coronéis” sertanejos, historicamente descendentes daqueles velhos “chefes clânicos” que, povoando a solidão imensa dos sertões, foram plasmando, no dizer de Wilson Lins, “uma sociedade de pastores e guerreiros, com costumes próprios, e leis não escritas, que se estribavam em tais costumes”. Para governar a Bahia, naquela época, era preciso estar em boa paz com os “coronéis” do sertão. Foi um desentendimento entre políticos profissionais e “coronéis”, a partir da segunda eleição de J. J. Seabra para governador, que acabou provocando o levante, a “guerra do sertão contra a capital”, no ano de 1920. Os “coronéis” e seus jagunços surraram então as tropas estaduais e ameaçaram invadir Salvador. O presidente da República, Epitácio Pessoa (até hoje, o único presidente do Brasil que nomeou um civil, Pandiá Calógeras, para o Ministério da Guerra), teve que intervir. No final das contas, o Governo Federal e os “coronéis” – o mais famoso dos quais se chamava Horácio de Matos – assinaram um tratado de paz, o “Acordo de Remanso”, que, como bem disse Dias Tavares, mais parece acerto da conclusão de um conflito entre países inimigos. Para que se tenha uma idéia da estranha realidade que os baianos viviam, eis os primeiros artigos do tal acordo: “1. O coronel Horácio de Matos não entregará as suas armas e munições; 2. Conservará a posse dos doze municípios, que ocupou, reconhecendo o governo as autoridades, por ele, Horácio, nomeadas; 3. Serão conservadas, em qualquer hipótese, uma vaga de deputado estadual e outra de federal para o coronel Horácio eleger os seus candidatos”. Parece mentira, aos olhos de hoje. Mas foi o que aconteceu. Sobrevivência dos tempos coloniais em dias republicanos, o mandonismo sertanejo vinha na ponta da faca, no brilho do punhal, no disparo do fuzil. E para se impor. Ampliando a observação localizada de Dias Tavares, o historiador Cid Teixeira observou, em seu depoimento As Oligarquias na Política Baiana, que o coronel sertanejo “se constituiu realmente como titular de estados para-formais dentro de áreas esquecidas”, de zonas rurais que viviam entregues à própria sorte. O coronel típico da Chapada Diamantina, especificamente, se comportaria como “chefe de um Estado encravado no Estado”. Foi (em princípio, é bom que se diga) contra coisas desse tipo que o “tenentismo” ganhou corpo, a caminho da Revolução de 1930. Mas não vamos apressar o passo. Melhor nos concentrar, antes, na Cidade da Bahia e seu Recôncavo. Em inícios do século XX, Salvador nos sugere, sob múltiplos ângulos, uma cidade paralisada. É verdade que os recenseamentos oficiais da segunda metade do século XIX não se pautaram por um rigor digno de nota. Seus números despertam dúvidas, impossibilitando uma reconstituição precisa da realidade demográfica da cidade. Ainda assim, pode-se dizer que a Cidade da Bahia contava com cerca de 110 mil habitantes em 1872 – e que, em 1890, não ultrapassaria a casa dos 150 mil. Daí em

diante – ou melhor, durante toda a primeira metade do século XX –, Salvador será a capital brasileira que irá apresentar as menores taxas anuais de crescimento populacional. Entre 1920 e 1940, por exemplo, ela será 0,20%. Compare-se agora esse quadro demográfico praticamente fixo com a agitação que tomou conta de uma cidade como São Paulo, espaço de convergência das imigrações européias e asiáticas. Entre 1890 e 1900, a capital paulista passou de cerca de 65 mil para cerca de 240 mil habitantes. Um salto formidável. “Em 1890, São Paulo era a quinta cidade brasileira, abaixo do Rio de Janeiro, Salvador, Recife e Belém. No início do século XX chegaria ao segundo lugar, embora ainda muito distante dos 688 mil habitantes da capital da República”, informa Boris Fausto. É evidente que a paralisia ou semiparalisia, antes referida, não se resumia ao sítio de Salvador, nem era exclusivamente demográfica. Em pleno reinado do café centro-sulista, despachado principalmente para os EUA, aprofundava-se entre nós o declínio da economia primário-exportadora do Recôncavo. Tomando-se os dados de Villanova Vilela e Wilson Suzigan, em Política do Governo e Crescimento da Economia Brasileira 1889-1945, a decadência é incontestável. No período que vai de 1898 a 1910, o café representou 52,7% das exportações brasileiras; o fumo, 2,8%; o açúcar, 1,9%. Adiante, a disparidade será ainda maior. Entre 1924 e 1929, temos o café com 72,5%; o fumo, com 2,0%; e o açúcar com apenas 0,4%. No primeiro período, aliás, o cacau já passara à frente do açúcar, para, no segundo, deixar para trás também o fumo. Além disso, aqueles mínimos 0,4% não cabiam totalmente à Cidade da Bahia e seu Recôncavo. Desde a segunda metade do século XIX, a Bahia já não era sequer o principal centro brasileiro de exportação do produto. Agora, são 0,4% repartidos entre o Rio de Janeiro, Pernambuco e, por último, a região açucareira baiana. O caso do cacau, espraiando-se em torno de Ilhéus e Itabuna, pede algum comentário. Jorge Amado fez a verdadeira socioantropologia da região, recriando-a esteticamente em diversos romances, de Terras do Sem-Fim a Tocaia Grande, para não falar da festa de cores e risos de Gabriela, Cravo e Canela. Ainda em primórdios do século XIX, Ilhéus era apenas um pequeno povoado fundado pelos jesuítas. Vieram, então, os cacauais. E, na segunda metade do século, a região deu o salto. Foi como centro gerador de riquezas que ela entrou no século XX. Antropologicamente, é difícil defini-la, em termos esquemáticos. Fronteira agrícola, espaço aberto a migrações, viviam por ali os mais variados tipos humanos, do comerciante árabe ao mestiço de ascendência africana. Mas o fato é que, se a Bahia tivera a guerra “arcaica” de Canudos, tinha também agora, em outro extremo, a lavoura “moderna” das terras sulistas, que exibiam então, em seus núcleos urbanos, agências bancárias, casas de comércio, jornais e, claro, “pensões de mulheres”. Mas tudo isso a muitos quilômetros do Recôncavo. Por falar em migrantes, podemos voltar a contrastar, agora de uma outra perspectiva, a realidade de Salvador e sua interlândia e a de São Paulo. Falamos antes que a ausência de fluxos migratórios europeus ou asiáticos permitiu que a Bahia apresentasse um perfil etnodemográfico historicamente estável – e que isso contribuiu para a particularização de sua cultura. Diversamente, a imigração transformou, em termos radicais, a paisagem sociocultural paulista. Vejam os italianos de Zelia Gattai (Anar-quistas, Graças a Deus) e os japoneses de Oswald de Andrade (A Revolução Melancólica). Os italianos foram ocupando a capital paulista, inclusive para gerar, no futuro, o

samba al sugo de Adoniran Barbosa. E “os japoneses organizavam-se em meetings amarelos que se transformavam em municípios no dia seguinte”, escreve Oswald em seu romance. Migrantes na capital, migrantes na labuta dos cafezais, migrantes diversificando a agricultura. E tudo isso concorrendo para o processo de industrialização daquela parte do país. Em primeiro lugar, porque a riqueza alcançada pela produção agrícola levou a burguesia cafeeira a investir na indústria. Como disse Maria da Conceição Tavares, em Da Substituição de Importações ao Capitalismo Financeiro, o que ocorreu em São Paulo foi a conjugação da urbanização, da implantação de uma infra-estrutura de serviços básicos e do desenvolvimento industrial “tradicional” (alimentos, tecidos, bebidas, mobiliário, etc.), no interior do próprio modelo econômico primário-exportador – e esse processo de expansão e mudança da estrutura produtiva “foi acompanhado com grande sensibilidade empresarial por grande parte dos fazendeiros de café, que se tornaram também industriais”. O capital necessário à montagem de um setor industrial foi assim, inicialmente, uma espécie de subproduto da pujança do café. Quanto aos imigrantes, eles estiveram presentes em todos os planos do movimento de industrialização de São Paulo. Uns poucos percorreram os caminhos da ascensão social, tornando-se, eles mesmos, empresários. Outros operaram indústrias como técnicos especializados. E a maioria deu corpo ao nascente operariado brasileiro. Em Formação Histórica de São Paulo, Richard M. Morse informa: “Entre 1908 e 1920 Santos recebeu 190 000 imigrantes subvencionados, indo quase todos, pelo menos inicialmente, para as fazendas, e 340 000 espontâneos, dos quais 80% arranjaram empregos na indústria, no comércio ou nas estradas de ferro na capital e em outras cidades. Muitos desses estrangeiros supriram a necessidade de técnicos, metalúrgicos e mecânicos, por exemplo, que as escolas de São Paulo não formavam”. Ao tempo em que São Paulo disparava, a Bahia não conseguia se transformar. Fazer-se região ou núcleo industrial. E o estranho é que, de início, a Cidade da Bahia e seu Recôncavo estiveram na vanguarda técnica do Brasil. Nossa agroindústria açucareira não nasceu defasada. Empregava os procedimentos tecnológicos mais avançados da época. Mais tarde, é certo, perdemos o passo. Mas para tentar reencontrá-lo adiante. A última década do século XIX presenciou um esforço de modernização, com a implantação de grandes usinas com turbinas centrífugas, equipamentos comprados de fornecedores ingleses, aqui representados por um certo Penley Cox. O problema é que a sorte do açúcar já estava selada, em decorrência da perda de seu mercado internacional. E não conseguimos consolidar um parque industrial extra-açucareiro. Ainda aqui, a estranheza. Afinal, a Cidade da Bahia e seu Recôncavo deram passos pioneiros em terreno capitalista e industrial. “Salvador terá as primeiras formas institucionais capitalistas no Brasil, e quem diz forma diz função. O Banco da Bahia, primeiramente uma filial do Banco do Brasil, e depois de sucessivas criações de ‘caixas’, finalmente emergindo em 1858 com personalidade própria. A Companhia de Seguros Aliança da Bahia, sua irmã gêmea, também mais que centenária. Para quê? Para segurar os produtos da exportação, tabaco e açúcar, e mais, para segurar os escravos. Dois sinais de um processo de acumulação que começa a se reproduzir por via da moeda, e, pois, do

capital bancário. Um escravo contra um título fiduciário. Embora ainda ancorado na forma escravista, é clara já a emergência de um processo burguês”, comentou o economista Francisco de Oliveira em O Elo Perdido – Classe e Identidade de Classe. Deu-se ainda, como disse, o primeiro passo industrial. Em meados do século XIX, o Brasil possuía poucas fábricas. Elas se concentravam, principalmente, na produção têxtil. E a Bahia comandava o setor. Sua indústria têxtil era “tecnicamente tão avançada quanto a dos países então na liderança”, observa o mesmo Oliveira, acrescentando: “Salvador ou mais precisamente o Recôncavo será o primeiro pólo da indústria têxtil brasileira”. Conhecerá, ainda, a notável experiência de Luiz Tarquínio, fundada em nova concepção trabalhista. Antes do final do século, todavia, ocorreu o deslocamento geográfico. Minas Gerais e o Rio de Janeiro tomaram a nossa frente. Na primeira metade do século seguinte, os três primeiros lugares de nosso ranking industrial eram ocupados pelo Rio, por São Paulo e pelo Rio Grande do Sul. Logo mais, nos anos vintes, São Paulo passaria à primeira colocação. Enquanto isso, a Cidade da Bahia e seu Recôncavo iam se deixando vencer pelo imobilismo e, pior, experimentando um retrocesso, para se converterem em remansoso reduto de uma economia pré-industrial. A Bahia ficou de fora, também, de um momento decisivo, nos primórdios da história industrial do país, quando, aliás, o Estado brasileiro ainda não possuía um projeto industrializante. Refiro-me ao impulso industrialista provocado pela I Guerra Mundial. A industrialização brasileira avançou, nessa época, principalmente pela impossibilidade de continuarmos importando tudo o que costumávamos importar – palitos, inclusive. Como os países que nos vendiam produtos manufaturados achavam-se envolvidos na guerra, enveredamos por um processo a que se deu o nome de “substituição de importações”. Este “modelo econômico” se firmou na década de 1920, período que assistiu, de resto, ao primeiro esforço de superação de um entrave fundamental ao crescimento industrial brasileiro – a carência de uma “indústria de base” –, com o surgimento da Siderúrgica Belgo-Mineira e da Companhia de Cimento Portland, em São Paulo. A partir daí, o setor industrial será cada vez mais significativo no conjunto da economia brasileira. Em Problemas da Industrialização no Século XX, estudo incluído na conhecida coletânea Brasil em Perspectiva, Gabriel Cohn resume: “A década de 30 é especialmente significativa para a definição do processo de desenvolvimento industrial no Brasil, por dois motivos básicos e de grande alcance. Ao nível político, é um período de redefinição profunda da ação do Estado, fruto da rearticulação dos grupos de poder efetuada pela revolução de 30... Ao nível econômico, é marcado pelos efeitos da grande crise internacional de 1929 [a Grande Depressão], que, nessa área, traduziram-se na plena expansão do processo de ‘substituição de importações’, típico da industrialização brasileira”. De fato, em 1920, a produção agrícola representava 79% do valor da produção total brasileira; a produção industrial, apenas 21%. Vinte anos mais tarde, a agricultura ainda estava na frente, com 57% - mas a indústria já alcançava 43%. E a tendência revelada pelas taxas anuais de crescimento não deixava dúvidas para o futuro. Entre 1933 e 1939, a agricultura cresceu 1,7%. A indústria, 11,2%. Mas a Bahia, mais uma vez, dançara. A reorientação estatal, sob Vargas, passou ao largo de Salvador e sua interlândia. Mas não podemos nos esquecer, aqui, de duas

coisas. A primeira é que a elite dirigente baiana foi contrária à movimentação que levou Vargas ao poder. A segunda é que a Revolução de 1930 não trazia uma política industrial clara, sistematizada, de modo que a expansão do setor seguiu seu curso próprio, “espontâneo”, na área onde já se estabelecera. Adiante, quando o Estado começou a se interessar de forma mais concentrada pela questão industrial, a Bahia continuou fora de foco. Falo do período do chamado Estado Novo, a ditadura de Vargas, implantada em 1937. Boris Fausto: “Podemos sintetizar o Estado Novo, sob o aspecto socioeconômico, dizendo que representou uma aliança da burocracia civil e militar e da burguesia industrial, cujo objetivo comum imediato era o de promover a industrialização do país sem grandes abalos sociais”. E quem falava pela burguesia industrial? Aqui, a Federação das Indústrias do Estado de São Paulo, que era dirigida por Roberto Simonsen; ali, a Federação Industrial de Minas. Mas não havia “burguesia industrial” na Bahia. Se, entre 1929 e 1937, a produção industrial brasileira apresentou um crescimento da ordem de 50%, o panorama baiano exibiu, no mesmo período, números de uma retração cada vez mais acentuada. A nossa indústria, já de si tradicional, ia simplesmente sumindo do mapa. Em O Problema da Involução Industrial da Bahia, Luís Henrique Dias Tavares assinala que o que se via, nessa época, era a “impressionante estagnação” das indústrias têxtil e fumageira e a desintegração final do “leque de empresas manufatureiras que se abria multicolorido de esperanças” ao crepúsculo do século XIX. Fraca em capitais, a faixa da classe dominante baiana que se interessava pelo assunto parecia simplesmente perdida. Vivia numa região que, além de carente de transportes e de energia, mergulhara em dias de desprestígio político. E o seu discurso bem poderia ser definido nos termos de uma retórica da lamúria. Resumindo: a Bahia era potencialmente riquíssima, sofrendo com a sua subcapitalização e com a sua espoliação pelo Governo Federal, cuja política fiscal exerceu, no dizer de um estudioso, um “efeito retracionista” sobre a economia baiana, na década de 1930. Como se não bastasse, faltaria capacidade empresarial – “tirocínio industrial” e “espírito de iniciativa e indústria”, nas palavras de Rômulo de Almeida – aos homens ricos da terra. O panorama era realmente desolador, do ponto de vista industrial. O processo produtivo, que se esboçara com algum brilho na segunda metade do século XIX, conhecia agora não o crescimento, mas o aborto. Por quê? Mistério. Desânimo. Sonolência. Era o então chamado enigma baiano. Como explicá-lo? Luís Henrique Dias Tavares foi ao grão da questão, observando que as empresas manufatureiras baianas não se expandiram por conta de nosso próprio sistema econômico, que era “estruturalmente agrário-mercantil”. Em vez de ir criando um espaço próprio, as fábricas se subordinavam ao comércio, ao movimento de exportação/importação, sustentado pelo açúcar e o fumo, ou pelo diamante, o algodão e o cacau. As leituras marxistas batem na mesma tecla. Em sua tese Industrialização e Incentivos Fiscais na Bahia: Uma Tentativa de Interpretação Histórica, José Sérgio Gabrielli aponta logo para o fato de que, aqui, “a indústria e as atividades internas eram extremamente secundárias, subordinadas ao comportamento das exportações e importações”. Ao longo da primeira metade do século XX, nossas

“forças produtivas” conhecem um crescimento meramente vegetativo. O padrão primário-exportador domina a cena – agora, sob a regência do cacau –, ensejando não mais que “uma simples ‘sobrevivência’ dos tímidos ‘pulsos’ industriais” de fins do século XIX, “sem a constituição de interrelações econômicas capazes de garantir o processo de reprodução e acumulação do capital, que permitiria a expansão do capitalismo industrial na Bahia”. Francisco de Oliveira não diz coisa diversa, ao enfatizar que o ensaio capitalista-industrial da Bahia não cortara “a ligação umbilical com o setor exportador”. A queda na demanda externa do açúcar implicava a queda na demanda interna dos produtos da indústria. A decadência da exportação conduzia ao desmantelamento progressivo do nascente parque industrial. Em suma, o que tínhamos eram umas poucas fábricas – e todas elas atreladas aos ramos tradicionais de nossa economia. O simples fato de nossa indústria têxtil ter se concentrado na produção de tecidos grossos para vestir escravos e ensacar mercadorias é um atestado definitivo dessa dependência. Para ler o fenômeno de uma perspectiva ampla, podemos recorrer a uma distinção muito bem exposta por Gabriel Cohn: “A industrialização é um processo: é um conjunto de mudanças, dotado de uma certa continuidade e de um certo sentido. Seu sentido é dado pela transformação global de um sistema econômico-social de base não-industrial (no caso brasileiro: de base agrário-exportadora). É por operar num sistema que a industrialização implica um conjunto articulado de mudanças, e é por essa via que ela se distingue da simples criação de indústrias”. Há que diferençar, portanto, entre esboço industrialista e processo industrializante. A fim de que este se configure, é preciso que a indústria seja capaz de “introduzir uma ‘cunha’ suficientemente profunda no sistema para que a expansão industrial possa ganhar dinâmica própria”. Foi justamente aí que falhou a caminhada baiana. Não conseguimos dar o passo fundamental que levaria do bosquejo industrialista à práxis industrial. Ao contrário, nos limitamos a criar indústrias nas franjas de uma organização econômica estruturalmente primário-exportadora. Podemos afirmar então que, de meados do século XIX a meados do século XX, a Cidade da Bahia e seu Recôncavo conheceram indústrias, sim. Mas não chegaram a experimentar uma verdadeira industrialização, na acepção processual do termo – ou em seu significado sistêmico. “Pelas alturas de 1870, a economia baiana era essencialmente agromercantil e assim permaneceria até 1930”, escreveu Mário Augusto Silva Santos, em Comércio Português na Bahia 1870-1930. Permaneceria além de 1930, na verdade. E o espantoso é que esse “modelo econômico” foi implantado na superação do extrativismo do pau-brasil, atravessou a história colonial e a imperial, estendendo-se além da Primeira República. Veio de Mem de Sá a Getúlio Vargas. Houve, evidentemente, uma alteração revolucionária nas relações trabalhistas, com a Abolição de 1888. Mas o que quero sublinhar é que a arcaica trama produtiva do Recôncavo se manteve. “A Abolição não promoveu grandes transformações sócio-econômicas em Salvador, permanecendo a mesma fiel à sua antiga função de porto e cidade comercial”, observou Jeferson Bacelar, em Negros e Espanhóis – Identidade e Ideologia Étnica em Salvador. Em conseqüência, o sistema ocupacional cruzou praticamente intacto a reviravolta trabalhista. Alguém já disse (Helio Jaguaribe, se não me falha a

memória) que a Revolução de 1930 só vai alcançar o Nordeste na década de 1960. É um exagero, certamente – mas a boutade vale por muitas teses. Na verdade, aquele movimento revolucionário, atingindo terras nordestinas, aderiu ao coronelismo mais antigo. Embora apenas com Juscelino Kubitschek tenhamos superado uma disritmia de décadas, o certo é que o projeto de arquivamento dos emplastros artesanais vinha já da era varguista. O país se mobilizava, desde a década de 1930, em função da ruptura com o seu antigo estatuto de “vasta e esparsa comunidade agrícola”, no dizer do próprio Getúlio Vargas. Foi uma época de gestos decisivos para a atualização histórica do Brasil. Mas devemos relativizar esse processo modernizante. O Brasil que se atualiza, a caminho do meado do século, é o Brasil Meridional. A política econômica de Getúlio Vargas não beneficiou a classe dominante baiana, como demonstrou o banqueiro e político Clemente Mariani, no estudo-projeto Análise do Problema Econômico Baiano. “Madrasta” foi, aliás, a expressão escolhida por Mariani para definir, da ótica da elite baiana, a arregimentação político-militar que colocou Vargas no poder. Em sua opinião, a Revolução de 1930 trouxe duas conseqüências graves para os interesses econômicos da Bahia: de uma parte, “o soçobro do prestígio político do Estado”, cuja liderança destoava do espírito do movimento vitorioso; de outra parte, “a instalação, como fonte legislativa, da vontade discricionária” de Vargas, que excluía a Bahia da elaboração dos princípios desta mesma “vontade legislativa discricionária”. Em todo caso, o que aqui ocorreu, mesmo após o advento do Estado Novo, cabe na fórmula “agromercantil”, com a qual os economistas costumam designar determinado estágio da peripécia sociotécnica dos povos. De fato, como lembra Antônio Sérgio Guimarães, em A Formação e a Crise da Hegemonia Burguesa na Bahia, a política econômica do Estado brasileiro, a partir da década de 1930, passou a dar prioridade a atividades que estavam fora do universo econômico da burguesia baiana. Essa nova conjuntura debilitou, especialmente na década de 1940, as burguesias mercantil, financeira e agrária da Bahia. Estendendo a sua leitura, Antônio Sérgio observa que, ainda na década de 1950, não possuindo um parque de indústrias e impossibilitada de comprar diretamente no exterior os bens de que necessitava, a Bahia se encerrava compulsoriamente no circuito do comércio interestadual, que providenciava a transferência da renda da região para o Centro-Sul. Se juntarmos a isso, prossegue Antônio Sérgio, “o desequilíbrio provocado pela diferença entre a arrecadação federal e os seus gastos e investimentos no Estado [da Bahia]”, teremos decifrado as razões da decadência econômica regional. Nosso papel vinha sendo o de, há decênios, financiar o desenvolvimento do Sul do país. Essa calmaria baiana, espraiando-se preguiçosamente até à década de 1950, é registrada unanimemente nos estudos disponíveis acerca de nossa história econômica e social. Se a Cidade da Bahia foi, na passagem do século XVIII para o século XIX, reduzida de centro do Brasil Colônia a uma função meramente regional, o que aconteceu, na passagem do século XIX para o século XX, foi a desfiguração até mesmo dessa função regional, com Recife assumindo o comando das operações nordestinas e a expansão dos cacauais no eixo Ilhéus-Itabuna. As décadas de 1920-1940 balizam o

momento em que a depressão foi mais funda. Quando, no romance Mar Morto (Jorge Amado, 1936), perguntam à mulata Rosa Palmeirão sobre o Rio de Janeiro, ela comenta: “Uma fartura de luz e de gente que até dói”. A resposta ilustra à perfeição, comparativamente, a situação sombria em que se encontrava a Cidade da Bahia, então a menos desenvolvida, tecnologicamente, das grandes cidades brasileiras. A Bahia simplesmente perdera a oportunidade histórica da primeira fase significativa do processo de modernização nacional.

SOCIALISMO NA BAHIA Foi em meio à campanha abolicionista que o socialismo começou a dar o ar de sua graça entre nós. Como no discurso pioneiro de Vicente Ferreira de Sousa, reproduzido em O Império e a Escravidão (Rio de Janeiro, 1879). Vicente Ferreira (1852-1908), baiano de Nazaré das Farinhas, foi não somente um abolicionista da primeira hora, da primeira leva de militantes do movimento, muito ligado, aliás, a José do Patrocínio, como também um dos pioneiros do socialismo no Brasil. No discurso antes mencionado, com uma ingênua retórica de cariz romântico, Vicente nos diz: “A vitória é nossa, porque somos a razão que é a verdade, que é o futuro; somos o futuro que é a luz; luz que é a redenção predita por essa mártir de tantos séculos e de tantos tiranos, e que, em uma palavra, chama-se a democracia prática, que, amanhã, vestida com os troféus refulgentes da última vitória contra o mal, chamar-se-á socialismo”. Que se saiba, é o primeiro pronunciamento brasileiro a colocar o socialismo como a meta final de nosso processo histórico. Mas, ainda aqui, em luta contra a monarquia, Vicente Ferreira carrega nas tintas da panacéia republicana, coisa que não repetirá logo adiante. Em outro texto seu, A Doutrina Socialista, de 1895, lemos: “Nos decursos seculares que se vão escoando, a observação dos fatos sociais é o critério de análise, que se impõe, irredutível: duas classes verdadeiramente compõem as nações modernas: a dos exploradores e a dos explorados... Pertencem à primeira: monarcas e oligarcas, os plutocratas e os políticos, industriais de governação e de domínio, seja o prolongamento derivado dos tronos, seja o representante da falsa democracia, adornada com o título vão de República”. E aí Vicente investe contra a “república burguesa” e a “aristocracia brutal do capital”, que repousam, no seu entender, sobre o direito de propriedade, as forças armadas e a cobrança de impostos. Graças à sua atuação política constante – basicamente, no eixo Rio-São Paulo –, Vicente Ferreira é citado em livros como A Campanha Abolicionista, de Evaristo de Moraes, e Minha Formação, de Joaquim Nabuco. Ouçamos Nabuco, registrando o seu pioneirismo: “Dentre aqueles com quem mais intimamente lidei em 1879 e 1880 e que formavam comigo um grupo homogêneo, a nossa pequena igreja, as principais figuras eram André Rebouças, Gusmão Lobo e Joaquim Serra... A igreja

fronteira era a de José do Patrocínio, Ferreira de Meneses, Vicente [Ferreira] de Sousa, Nicolau Moreira, depois João Clapp com a Confederação Abolicionista”. Na introdução que escreveu para O Socialismo Brasileiro, Evaristo de Moraes Filho dá o prontuário de Vicente. A partir da proclamação da República, temos: “Funda no Rio o jornal A Democracia (1890) e escreve uma série de artigos sobre o socialismo em A Questão Social, de Silvério Fontes, órgão do Centro Socialista de Santos, em 1895 e 1896... Em 1902, ao mesmo tempo em que funda o Partido Socialista Coletivista, com Gustavo de Lacerda, cria o Centro das Classes Operárias, no Jardim Botânico [Rio], ao qual comparece todas as tardes, para consultas aos trabalhadores e propaganda socialista. Durante esses anos, participa ativamente do movimento operário no Rio e em São Paulo”. O tempo era propício. À entrada do século XX, a situação da classe trabalhadora, no Brasil, era a pior possível: desemprego, miséria, doenças, favelas – as primeiras favelas. A tuberculose tomara conta das camadas mais pobres da população, matando dezenas e centenas de pessoas por ano. Legiões de crianças perambulavam pelas ruas, girando nos circuitos do vício e do crime – outras, de cinco a sete anos de idade, encaravam a dureza dos serviços fabris. O Rio de Janeiro era então uma cidade de desabrigados, de gente doente e faminta, de mulheres operárias trabalhando de pé, em adiantado estado de gravidez, durante horas seguidas. E isto para não falar da prostituição, do alcoolismo, da varíola, do sarampo, da febre amarela. O quadro era tão brutal e entristecedor quanto aquele que vigorou na Inglaterra, nos primeiros tempos da Revolução Industrial. Agravado pelo fato de que a abolição da escravidão não se fez acompanhar, como queriam Nabuco e seus companheiros, de medidas que preparassem os ex-escravos para os desafios da nova realidade que tinham pela frente. Para lembrar a visão lúcida de Ruy Barbosa, na conferência A Questão Social e Política no Brasil (1919), “dar liberdade ao negro, desinteressando-se, como se desinteressaram absolutamente da sua sorte, não vinha a ser mais do que alforriar os senhores” – o que tornava necessária, no seu entender, uma segunda emancipação. Por isso e por aquilo, os primeiros centros e partidos operários e socialistas foram começando a surgir, em todo o país, já na manhã seguinte ao dia da proclamação da república – para não mencionar a interessante experiência da Liga Operária Baiana, criada em 1875, sob a liderança do jovem Manuel Querino. Partidos efêmeros, sucedendo-se ao longo das décadas de 1890 a 1920. Na Bahia, Querino, com mais vagar, voltou a entrar em ação, organizando o Partido Operário. Em Partidos Políticos da Bahia na Primeira República – Uma Política da Acomodação, Consuelo Novais Sampaio relata: “Com o alargamento do direito de voto sob o novo regime, as camadas populares também se manifestaram, tentando ‘intervir mais diretamente nos negócios políticos do país’. Organizou-se, assim, o Partido Operário, com diretório sob a presidência de Gonçalo José Pereira Espinheira e mais nove membros, entre os quais Manuel Querino. Agrupando artistas [artesãos] e operários da capital, que se reuniam na sociedade musical Luso-Guarani, no Pelourinho, o Partido Operário também criou o seu órgão de divulgação. Mas, dirigido a artistas e operários, de limitadas aspirações e em grande parte analfabetos, jornal e partido tiveram vida breve”. O Partido Operário foi mais uma intenção do que uma realidade. Mas uma intenção significativa.

E outras iniciativas vieram. Evaristo de Moraes Filho informa: “A 6 de maio de 1894, publicava A Voz Operária, de Salvador, uma proclamação de Domingos Silva, criando o Centro Operário da Bahia. Diz ele que, logo depois do 15 de Novembro, compreendeu o que é a República, compreendeu o que pode ser e o que pode valer o homem do trabalho em um país livre”. O fim da monarquia e o regime republicano significavam, em princípio, o fim da nobreza e de seus privilégios. A ampliação do direito de voto. A liberdade de pensamento e de organização. E, teoricamente, a igualdade entre os cidadãos. Era nessa direção que os trabalhadores baianos se moviam. E para quebrar a cara, no mais das vezes. Já que a continuidade entre o regime findo e o regime inaugurado era mais real, estruturalmente, do que as aparências levavam a crer. Uma outra personalidade que não pode ser esquecida, na história do socialismo baiano, é a de Agripino Nazareth, jornalista e advogado, que “fez a sua vida de agitador no Rio de Janeiro e na sua terra natal”. Seu nome se tornou conhecido – “com muito escândalo, com processo criminal e prisão”, informa Evaristo – na chamada Conspiração dos Sargentos, ocorrida em 1915, no Rio de Janeiro. A conspiração, liderada pelo socialista carioca Maurício de Lacerda, pretendia, através de uma quartelada conduzida por sargentos, instituir no Brasil uma “república parlamentar”. Não deu certo. E Agripino vai reaparecer em 1917, colaborando, juntamente com o romancista Lima Barreto, no jornal O Debate, cuja direção Astrojildo Pereira assumira. No Debate, a dupla de colaboradores mandou brasa, batendo na mesma tecla: divulgação e defesa da Revolução Russa, que acabara de acontecer. Em novembro do ano seguinte, Agripino Nazareth vai se envolver, juntamente com Astrojildo e José Oiticica, em novo movimento conspiratório. Desta vez, para derrubar o regime e implantar o anarquismo. Mais uma vez, não deu certo. Agripino foi detido e deportado para a Bahia, onde desembarcou em inícios de 1919. Convertido, agora, ao socialismo – conversão que, por sinal, render-lhe-ia polêmicas com anarquistas e comunistas e o transformaria em alvo de ataques de antigos companheiros, como Astrojildo e Oiticica – passou a circular, quase que de porta em porta, pela capital baiana, freqüentando os ambientes mais pobres da cidade e se tornando advogado de associações e sindicatos de trabalhadores, a exemplo do Sindicato dos Pedreiros e Carpinteiros e Demais Classes. Até que veio a greve geral de 1919, da qual foi o líder, a figura central. Vamos acompanhar aqui, resumidamente, a tese Manifestações Operárias na Bahia – O Movimento Grevista – 1888-1930, de José Raimundo Fontes. No dia 31 de maio daquele ano de 1919, o Sindicato dos Pedreiros e Carpinteiros e Demais Classes convidou, através de matéria paga na imprensa, “todas as classes de trabalhadores terrestres e marítimos” a comparecer, na tarde do dia seguinte, à sede da dita agremiação, no Maciel de Baixo, atual “centro histórico” de Salvador, “para se tratar de interesses das mesmas; pois o mundo trabalhista não pode suportar a opressão dos sugadores e detentores do bem-estar da humanidade”. O convite trazia, ainda, uma promessa – “Companheiros: vinde ao Sindicato conhecer o caminho por onde vos haveis de libertar das misérias que nos traz o jugo patronal” – encerrando-se com vivas à “organização operária” e ao “operariado internacional”. A noção de “classe operária”, aqui, carece, evidentemente, de clareza sociológica. Era uma

etiqueta que podia nomear um ajuntamento formado por garçons, costureiras, serventes de pedreiro, empregadas domésticas, vendedoras de acarajé, engraxates, doceiras, amoladores de faca, bedéis, babás e manicures, por exemplo. Um saco de gatos (e gatas, muito provavelmente). A coisa era confusa também para os intelectuais. Silvio Romero, ao falar de “operários propriamente ditos”, no Brasil do final do século XIX, fornece a seguinte lista: “alfaiates, sapateiros, carpinteiros, marceneiros, pedreiros, ferreiros, tipógrafos, encadernadores, etc., etc,”. A propósito, assim como se achava, na Bahia, um Sindicato dos Pedreiros e Carpinteiros e Demais Classes, o Rio de Janeiro tinha a sua Sociedade de Cocheiros, Carroceiros e Classes Anexas. Mas voltemos à Bahia, ao Sindicato e a Agripino Nazareth. Depois da reunião vespertina, reunindo diversos segmentos da massa trabalhadora baiana, o sindicato promoveu uma palestra de Agripino. No dia seguinte, pipocou a greve. De início, na construção civil. Os trabalhadores paralisaram as obras e saíram em passeata pelas ruas principais da cidade, granjeando simpatias, solicitando apoio da imprensa e exibindo faixas que diziam coisas como “8 Horas de Trabalho Bastam” e “Viva o Operariado Baiano”. Ao fim da passeata, mais de mil trabalhadores se reuniram na sede do sindicato, no Maciel. Até aí, a greve era apenas dos trabalhadores da construção civil. Mas o célebre rastilho de pólvora tinha sido aceso. A idéia de uma greve geral ia tomando conta de todos. À noite, em meio a uma assembléia agitada, os grevistas pediram que seu advogado se manifestasse. E Agripino defendeu a paralisação geral. É curioso. De início, ele fora contra a greve dos pedreiros, considerando-a precipitada, sem maiores chances de vitória. Agora, defendia a greve geral. Mas a lógica era simples. “Já que a sorte estava lançada, raciocinava o advogado dos operários, ‘restava prosseguir e procurar fugir do naufrágio iminente e um único recurso se impunha: projetar a greve às demais classes proletárias’, generalizá-la”, escreve Raimundo Fontes, citando o próprio Nazareth. Dito e feito: decretou-se a “greve geral pacífica”. E a greve tomou conta da cidade. Agripino assumiu o comando do movimento, estruturando-o, coordenando as suas ações, representando-o em encontros com o governador e o empresariado, etc. No primeiro encontro com o governador, aliás, falando em nome dos grevistas, no próprio Palácio da Aclamação, Agripino protestou “contra o indiferentismo do Governo, no que é referente aos interesses e ao conforto das classes trabalhadoras”, para acrescentar “que o movimento grevista era pacífico, dentro da ordem e da lei, respeitando as autoridades constituídas e, portanto, o operariado esperava que o Poder Executivo não continuasse quedo, na sua clássica negligência com relação à sorte do elemento mais poderoso do progresso e da civilização”. Reivindicações centrais do movimento: jornada de trabalho de 8 horas, aumento de salário, equiparação salarial entre homens e mulheres, nenhuma punição para os grevistas. A paralisação total vingou. Açougeiros, motoristas, carpinteiros, ferroviários, padeiros, alfaiates, etc., estavam – todos – parados. A Cidade da Bahia ficou sem pão, sem carne, sem transportes, sem serviço telefônico, sem luz. O Comitê Central de Greve distribuiu então o seguinte boletim: “Aos trabalhadores! Aos patrões! À população baiana! Não foi em vão que o nosso advogado Dr. Agripino Nazareth ontem nos disse que o sol hoje iluminaria a vitória proletária. Estamos vitoriosos, com a integralização da greve. Não devemos, porém, generosos que somos, abusar desse triunfo, o

primeiro que nesse gênero a história das classes operárias da Bahia e, talvez, a do próprio Brasil, registra. Convocamos, pois, os senhores industriais, a todos os patrões, a comparecerem amanhã, à hora e em local que serão designados, para tomarem parte na discussão das bases do acordo entre aqueles e os trabalhadores. A essa reunião serão presentes também representantes do Governador do Estado, Chefe de Polícia e de todos os jornais desta Capital. Ainda uma vez cientificamos as autoridades constituídas, às classes conservadoras, aos políticos de todos os matizes e aos operários em geral, que nada nos levará a lisonjear interesses deste ou daquele partido. O nosso lema é tudo pelos trabalhadores e só pelos trabalhadores. Bahia, 5 de junho de 1919 – O Comitê Central da Greve”. Sem saída, o empresariado local aceitou as reivindicações principais do movimento, da limitação da jornada de trabalho à igualdade salarial para homens e mulheres. Uma vitória e tanto – ainda que provisória, pois gradualmente os patrões iriam recuperando pelo menos parte do terreno perdido. Alguns aspectos daquela greve, todavia, ainda hoje impressionam. Em primeiro lugar, a sua extensão, seu caráter totalizante. Mas também o entusiasmo dos trabalhadores para a ação; o grau de organização do movimento; o tirocínio e a capacidade de liderança e articulação de Agripino Nazareth. José Raimundo Fontes está certo ao dizer que a Greve de 1919 “foi o ponto mais avançado e efetivo da consciência sindical do movimento operário baiano na Primeira República”. Mas isto ainda diz pouco: até hoje, Salvador nunca viu greve igual. É claro que a cidade era então bem menor do que hoje. Ainda assim... E embora Fontes não goste de enfatizar a figura do líder individual, é obrigado a reconhecer que o “fator decisivo”, para a eclosão e o êxito do movimento, “foi a presença da liderança do advogado Agripino Nazareth”. E aquela não foi a única greve em que Agripino se meteu na Bahia. Meteu-se em várias outras. Em Salvador e no Recôncavo. Não só em greves, como em diversos esforços de esclarecimento e organização dos trabalhadores baianos, numa luta que, para ele, tinha como perspectiva final a instauração do socialismo. Era um propagandista combativo – e incansável. Em 1920, começou a circular, entre nós, um jornal operário, Germinal, nome que tanto pode ser lido em termos lexicais, no sentido de ‘embrionário’, quanto remete ao título do célebre romance de Émile Zola. Apresentando-o, Agripino escreveu um texto em que, entre outras coisas, diz o seguinte: “Um órgão de propaganda socialista na Bahia? Sim, gordalhufos e assustadiços burgueses; e o que tem isso? Pensáveis que ‘a heroína dos seios titânicos’ continuaria, pelos séculos dos séculos, a aplacar, como um bom e paciente animal de estábulo, a vossa eterna sede das coisas apreciáveis da vida sem um protesto, sem um doloroso mugido de queixa, ao menos?... Podeis, pois, honrados burgueses da ‘minha’ terra, exteriorizar nos vossos trejeitos burlescos, todo o desespero que vos conturba as alminhas, pelo primeiro ensaio de imprensa socialista na Bahia. Reuni, se quiserdes, o vosso grêmio, conclamando-o, a bimbalhos do sino que o barão de Rodolpho Martins [presidente da Associação Comercial da Bahia] chama a postos industriais e comerciantes politicastros e subvencionadores de revoluções à distância, para uma ação em regra contra esse atrevimento em letra de forma, do ‘anarquista’ como me definis, sem que eu o seja ou incomode em ser tido como tal. Enviai mesmo ao palácio da Aclamação, para solicitar do governo a minha expulsão, o sobredito barão de Rodolpho

Martins. Talvez vos não atendam, talvez vos atendam – quem sabe lá?... O proletariado da Bahia, já o devíeis ter notado, não é o mesmo de antes. A GREVE de junho rasgou-lhe as cataratas mentais e atraiu-o para o estudo das grandes questões sociais que só os operários poderão resolver e resolverão, mais tempo, menos tempo. E as idéias que eu semeei entre os trabalhadores, com a serena alegria de quem, como Stefanik, pensa que a inteligência na vida só vale alguma coisa quando posta a serviço da bondade do mundo, essas idéias, como a boa semente na boa terra, germinaram e continuarão a germinar. A minha expulsão, o desaparecimento deste jornal ou a renovação bem sucedida de tentativas da minha eliminação, nada disso impediria que elas continuassem a germinar. Há, pois, um Germinal em cada cérebro de operário consciente na Bahia.” Tentava-se expulsar Agripino da Bahia. Ou mesmo eliminá-lo fisicamente, por meio de algum “acidente”. De fato, no ano seguinte, em janeiro de 1921, ele seria expulso daqui. A história é interessante. Tecelões de fábricas da Companhia Progresso Industrial foram multados por terem faltado a dois dias de trabalho, depois da Festa do Bonfim. A União dos Tecelões intercedeu bemhumorada em defesa de seus associados. Argumentando que um diretor da fábrica também estava se divertindo naquela festa, pediu a suspensão das multas, de modo que assim fosse proclamado “o regime de igualdade perante Senhor do Bonfim”. Mas o caldo engros-sou. De ambos os lados. Logo, os trabalhadores estariam gritando “abaixo os patrões!” – e o delegado Pedro Gordilho, célebre perseguidor de terreiros de candomblé, chegando à sede da União dos Tecelões. Agripino atacou então o Governo e Gordilho o intimou a ir até à delegacia. Agripino disse que não iria. Os trabalhadores aplaudiram. E a polícia cercou o prédio. Diante do impasse e temendo um massacre, Agripino e as lideranças do movimento cederam. O advogado foi conduzido à delegacia. Lá chegando, ficou preso. Boatos enxamearam pela cidade. Finalmente, no dia 29 de janeiro, Agripino foi deportado de volta para o Rio de Janeiro. No porto, na hora de seu embarque, tropas armadas estacionaram para impedir manifestações. E Agripino se foi. Só voltaria à Bahia em 1936, não mais reivindicando, mas implantando a jornada de oito horas, como representante do Ministério do Trabalho, então criado por Getúlio Vargas.

A INVENÇÃO DA PRAIA Uma coisa é a linha do litoral. O lugar onde areia e onda se limitam. Outra coisa é a praia, como a concebemos. A praia se define no momento em que a linha litorânea, o recorte espacial que reúne ou aproxima ou envolve areia e água, ganha um determinado sentido social. Isto é: no momento em que tal limite relativamente instável se converte em território para o exercício de uma determinada forma de socialidade. Assim, quando certo segmento costeiro é investido de uma qualidade sociável característica, que inscrevemos no horizonte mais amplo do lúdico, ele então se transforma em praia.

O que significa que, mais que acidente geográfico ou dádiva ecológica, a praia é uma invenção humana. Uma criação histórica e cultural. É certo que o Brasil, hoje, é um país pleno de praias. Que as praias brasileiras são freqüentadas massivamente. E que o nosso olhar, culturalmente comprometido, tem o dom de metamorfosear em praia qualquer pedaço de litoral com que se depare. Mas nem sempre foi assim. Nem sempre a baliza litorânea existiu como praia. Observadores costumam assinalar que, no caso do Brasil, a praia – “enquanto sítio de ação coletiva multitudinária e específica” (Thales de Azevedo, A Praia – Espaço de Socialidade) – tem somente cerca de um século de existência. É uma entidade fisiocultural que começou a se configurar como tal apenas em inícios do século XX. Antes disso, muitas de suas “funções” (diversão, entrelaçamento grupal, saída do rotineiro, exibição narcísica, paquera e namoro, contato sensual com a natureza) se desenvolviam em práticas como as do piquenique, do “footing”, do passeio, da jornada. Era o que acontecia na Cidade da Bahia até ao século XIX. Mas aqui temos de fazer uma ressalva fundamental, geralmente esquecida pelos estudiosos. Não é que a beira do mar não fosse povoada, percorrida ou visitada desde os primeiros dias coloniais. Era. A diferença é que nossas elites, que construíam seus sobrados de costas para o mar, não freqüentavam a orla para se banhar. Os pobres é que iam à maré. Assim, na Cidade da Bahia e seu Recôncavo, a “praia” foi também, primeiramente, coisa de pobre. Não podemos nos esquecer de que, em Portugal, eram os mais humildes que se lançavam às águas litorâneas, como ouvimos em cantares medievais. Além disso, negros e mestiços pobres herdaram, aqui, a antiga intimidade ameríndia com o litoral. Anchieta: os índios “são... como peixes no mar”. Os jesuítas, aliás, preferiam construir suas igrejas na vizinhança do mar, igrejas litorais, de modo que os índios pudessem se manter com suas próprias pescarias. Mas essa relação com o mar não se resumia aos homens adultos da aldeia ou do aldeamento catequético. Cardim fala dos jogos aquáticos dos curumins tupinambás e do alto desempenho das índias na natação e no remo. Outro jesuíta, Antonio Blasquez, conta de curumins que, desejando seguir caminho com padres da Companhia, engavam os pais dizendo-lhes que iam nadar, o que mostra como o banho marinho era comum entre eles. Escravos e libertos pobres também pescavam e mariscavam para sobreviver, o que, inevitavelmente, se traduzia em intimidade com a beira do mar. Mas o litoral não funcionaria apenas como lugar de onde extrair alimentos – e sim, também, como espaço para o banho higiênico, tiradas recreativas e até para encontros amorosos. O próprio fato de escravos, libertos e pessoas livres pobres não terem, em suas habitações, espaço reservado para o banho higiênico, conduzia-os a se banhar em rios, lagoas, fontes e águas marinhas. “A gente do povo das cidades... se via obrigada a despir-se no meio do mato e daí caminhar nua para a água do rio ou do mar, escandalizando aqueles moradores de sobrado que não compreendiam a vista ou a paisagem que se gozava do alto de suas varandas maculada por manchas pardas, pretas e amarelas de nudez plebéia”, escreve Gilberto Freyre, em Sobrados e Mucambos. Mesmo em minha juventude, presenciei pessoas pobres tomando o seu banho de higiene (ou “de regalo”) em águas doces e salgadas da Cidade da Bahia, em lugares como Abaité, Itapagipe, Areia Preta, Chega-Nego, Carimbamba, Itapoã. Mas, como disse, a beira do mar não era usada apenas com

fins práticos. Desde os primeiros tempos coloniais, ela foi freqüentada com vistas a digressões lúdicas e a jogos amorosos. Em Jana e Joel, a novela que Xavier Marques publicou no final do século XIX, as personagens principais, que dão título ao livro, têm os seus encontros clandestinos de amor à noite, entre barcos pousados na areia, na vizinhança das ondas. E aqui a ficção reproduz o que era relativamente comum na faixa etária mais jovem de grupos sociais pobres da Bahia de Todos os Santos. Desse modo, uma cena sensual como a da atriz Luiza Maranhão deitada nua na areia, no filme Barravento, de Glauber Rocha, não teria nada de muito insólito da vida histórica dos litorais baianos. Voltemos, no entanto, às elites. Para os mais abastados – para os homens mais livres e desimpedidos, ao menos –, o lineamento costeiro tinha outro sentido. Era eventualmente utilizado para fins de espairecimento, passeio, prazer. Como espaço para o espasso. Como recantos para a farra. É o que vemos numas “décimas” em que Gregório de Mattos recria “uma jornada, que fez ao Rio Vermelho com uns amigos”. Uma excursão a cavalo, com a turma partindo para a esbórnia, pândega de música e pasto, que vai ter o seu ponto de descanso na areia, ao abrigo sombreado de alguma folhagem, diante das ondas do mar: Sesteamos no areal onde o mar por mazumbaia refrescando estava a praia com borrifos de cristal; a onda piramidal, que nos ares se desata, descaindo em grãos de nata pedia por bom conselho, que em vez de Rio Vermelho lhe chamem Rio da Prata.

Não sei o que significa “mazumbaia”, com todo o seu jeito de palavra africana. Mas o que importa é que, ao longo de todo o longo poema, Gregório não faz menção a nenhum banho de mar. Ninguém entra na água, ninguém se molha, ninguém mergulha. E o mesmo se dá em outros textos gregorianos. O que conta, para o poeta e seus amigos, são putas e frutos do mar. Aqueles baianos seiscentistas iam à orla e não à maré. Iam à beira do mar, mas não à praia. De qualquer sorte, há duas coisas muito interessantes no poema. Primeiro, a tranqüilidade com que se dorme na areia. A sesta no areal é referida naturalmente, como coisa simples e comum. Uma areal acolhedor, afável, hospitaleiro. Segundo, o jogo litorâneo do mar existe, para Gregório, como fato estético. Como espetáculo visual. O intrigante, historicamente, é que essa visão do movimento marinho como fenômeno plasticamente admirável, vai quase que desaparecer, em meio aos círculos socialmente privilegiados do Brasil, no século XVIII. E permanecerá praticamente submersa também ao longo de boa parte do século XIX. Mais ou menos entre 1750 e 1850, a orla marítima como que vai ser rasurada do horizonte culto de nossa sensibilidade, com as exceções de praxe (Iracema, de José de Alencar, onde o mar brilha como “líqüida esmeralda”, é de 1865). Não terá existência sequer como paisagem.

Cegueira diante da luz, do movimento e das cores do mar. Por influência direta do que havia acontecido entre as elites européias, que passaram a ver o mar como coisa repugnante, sombria, misteriosa e doente – e, por isso mesmo, afastaram-se do litoral. Houve assim um período, na história de nossas elites, em que o litoral deixou de ter existência estética ou paisagística. Quando o assunto era a paisagem nacional, o que vinha à baila eram lagos, florestas, cachoeiras, bosques, montanhas, celebrações do céu azul e das noites estreladas. Foi nesse contexto que nasceu Petrópolis, a corte brasileira voltando as costas à praia tropical, aos incômodos do Rio de Janeiro, cidade mestiça, escravista, ensolarada e marítima. Petrópolis foi a busca de uma vida elegante e civilizada serra acima, longe do mar. É a cultura de uma época e de uma classe que aí se manifestam. No Hino Nacional, de resto, o mar é somente um som. Não existe para a visão. O que conta, para a sensibilidade visual, é o céu. O que fascina Charles Darwin, em sua passagem pela Bahia, é a elegância da relva, a novidade das parasitas, a beleza das flores, o verde luzidio das ramagens. A beira do mar não interessa. Também os baianos abastados ou menos pobres daquela época não tinham olhos para o litoral. No romance O Feiticeiro, de Xavier Marques, cuja ação se passa no século XIX, não há lugar para o litoral. Nem no verão. “Nos dias de estio, a excursão aos subúrbios, de preferência ao campo, era um prazer salutar de que raramente se privava a mediania da população urbana”. Eram excursões ao Cabula, ao Matatu, a São Lázaro, ao Garcia, às margens do Dique, às frutas de Brotas. Segundo Xavier, só desaproveitavam as idas àqueles sítios a gente mais pobre, que “tinha muitos filhos e nenhum feriado”, e as famílias mais ricas, “vítimas da meia aristocracia de últimas modas e lautos almoços a hora certa”. Mas, nesse mesmo século XIX, a orla marítima experimentaria uma alteração em sua semântica social. Ainda no rastro da Europa – mas agora via Rio de Janeiro, para onde já se transferira a corte lisboeta –, a beira-mar baiana também se converteu, nos meados daquela centúria, em espaço terapêutico. O litoral marinho passa a ser visto então, pela elite, como fonte de saúde. Suas águas adquirem o poder de curar as mais diversas doenças. O discurso sobre o mar, que passa a predominar nos meios cultos e ricos da Europa e que vem se refletir aqui, é um discurso talassoterápico – em cuja ponta, de resto, vai brotar, embora bem mais tarde, a célebre “talassoterapia” de Sandor Ferenczi, dissidência da psicanálise clássica. Em resumo, o mar é incorporado ao arsenal terapêutico dos médicos do Ocidente. O próprio D. João VI já tomava os seus banhos salgados medicinais. De maneira bastante pitoresca, encerrado numa caixa de madeira, mas tomava. Os médicos brasileiros da primeira metade do século XIX fizeram uma vigorosa campanha em favor desse banho marinho. E a moda pegou. A água marinha ainda não era aqui, ao menos em princípio, fonte de prazer, mas remédios. Não existia para a relação sensual, lúdica ou erótica, mas como terapia. Ainda não temos banhistas, mas pacientes. Como bem disse um jornalista carioca, a ida ao mar, no Brasil de meados do século XIX a princípios do século XX, não era recreio, mas receita de médico. Na Bahia de Todos os Santos, assistimos, mais ou menos por essa mesma época, ao surgimento de casas-de-saúde localizadas no litoral ou em sua vizinhança mais próxima. Como a Casa de Saúde

da Barra, por exemplo, da qual Pierre Verger (Fluxo e Refluxo...) reproduz um anúncio originalmente estampado na imprensa. Thales de Azevedo observa, ainda, que a terapia pelo método do banho salgado resultou na valorização comercial de imóveis situados na orla marítima ou próximos a ela. Em Salvador como em Itaparica. Somente nessa conjuntura, de resto, foi que Itaparica pôde ser encarada não como um vasto campo de lazer, mas como um... sanatório. Um extenso e eficaz sanatório contra coisas como o béribéri. Mas na Europa, no ambiente das elites (assunto detidamente examinado por Alain Corbin em O Território do Vazio – a Praia e o Imaginário Ocidental), as coisas vão mudando. Com a valorização terapêutica do mar, vem o desenvolvimento de uma sensibilidade estética em relação ao mundo marinho. A linha costeira se afirma como paisagem. Primeiro, as águas quase geladas dos nórdicos. Com o tempo, o litoral cintilante da Sicília e da Grécia. Aos poucos, conforme o mesmo Corbin, “a vista para o mar constitui um argumento fundamental para quem pretende exaltar os méritos de uma estação balnear, de uma casa de veraneio, de uma propriedade”. E é disso tudo que vai resultar a “invenção da praia”. A presença elitista nas águas litorais do mar. No caso do Brasil, podemos dizer que o Rio de Janeiro imitou a França e que a Bahia imitou o Rio, seguindo também um núcleo de estrangeiros aqui residentes, quase sempre moradores do Corredor da Vitória, então uma estrada de vivendas sofisticadas. Senhoras e mocinhas vestiam-se com roupa-de-banho européia. Roupa de lã, calça ajustada no joelho, casaco, sapato raso, gorro. Os homens, ainda na descrição de Thales, calça cortada ao joelho e camisa ou uma peça inteira de malha. O banho de mar exigia então das elites uma tremenda parafernália. Tudo em nome do pudor. As mulheres não deveriam oferecer, aos espectadores que a contemplavam (e Castro Alves era um deles, olhando mocinhas que se banhavam na “nitente espuma” da Tijuca, no Rio), ondulações de sua anatomia. Mas, como pais e maridos costumam ser cegos, elas contavam com banhistas profissionais para metê-las no mar. Eram sujeitos musculosos, “de confiança”, encarregados de carregar as sinhazinhas até às ondas. As moças se arrepiavam, davam gritinhos à proximidade da água fria e das ondas, até que eram atiradas no mar. Um quadro obviamente erótico. Àquela altura, de resto, ninguém mais estava tão preocupado assim com terapias. O prazer começava a predominar. E as mulheres, a se desinibir. Na praia e fora dela. “Cerca de 1910 ou pouco mais adiante, aquelas vestes [femininas] já são mais sumárias e abertas, desnudando, ao menos, pernas e braços e tornando-se menos refolhudas e pesadas”, comenta o mesmo Thales. Até que veio a revolução vestual, explodindo entre as duas guerras mundiais. Naquela época, os decotes se fizeram mais generosos. Era possível contemplar publicamente costas femininas seminuas. Mesmo coxas foram mostradas. E logo, para o banho de mar, veio o maiô, colado à pele, afetando modos de andar e de olhar. Se, à banhista, para além do exibicionismo, o traje propiciava um contato mais sensual com a água, ao banhista ou espectador (porque se tratava, sim, de um novo espetáculo social), por sua vez, ficava mais limpo o panorama das explorações visuais. Nunca antes a praia fora tão erotizada. Corpos se desenhavam claramente sob tecidos colantes. E os homens ficavam, também, cada vez mais desnudos. Em texto malicioso, um cronista do jornal A Luva, publicado na Cidade da Bahia em 1930, escrevia: “O banho de mar na Barra, àquela hora, dava à

Bahia fulgurações momentâneas de terra civilizada, de terra que veste maillot e anda de automóvel, uma Copacabanazinha ainda um tanto medrosa, a temer talvez a eterna vigilância do Forte de Santa Maria, mas que já põe à vela bons dois palmos de perna supra-joelhal. O banho de mar ali é sempre delicioso, tonificante, rejuvenescedor, não só pelas suas qualidades terapêuticas, mas, principalmente, pelas extra-terapêuticas, não só pelas suas qualidades marítimas, mas, especialmente, pelas maritais. Naquele domingo lá estávamos... a esperar a onda quando um grito, um burburinho súbito, nos atraiu a um ponto onde começavam a aglomerar-se os banhistas... Não fora nada; quase nada. O Juca, a poucos metros da praia, fazia o banho com a respectiva menina, havia já duas horas, quando, repentinamente, uma dor aguda o fez gritar. Cãibra. A permanência prolongada provocara-a. Felizmente, um grupo de moçoilas, que perto se banhavam, o acudiu de pronto, levando-o até à praia. Nada mais. Um acidente aquático sem nenhuma importância... O que, porém, me encabulou, por não lhe atinar com a explicação, foi a Marieta – uma das que o foram salvar, pegando-o por braços e pernas – ao passar por nós, ter exclamado para a companheira, sublinhando as palavras: mas que bruta cãibra, a do Juca!” É claro que o texto é uma manifestação de censura. O autor está seduzido pela nossa nova realidade praieira, mas, ao mesmo tempo, o seu escrito deixa transparecer a voz moralista dos círculos médios e ricos da sociedade baiana de então. Para nada. Na passagem da década de 1920 para a de 1930, no rastro do que ocorria no Rio de Janeiro, a praia da Barra já era um ponto consagrado ao desfile de maiôs e automóveis. Mulheres exibiam lá as suas formas corporais – e, para a apreciação delas, moviam-se curiosos de diversos recantos da cidade. A própria Companhia Circular de Carris da Bahia anunciava excursões ao bairro, com vistas ao novo espetáculo público. Foi quando a Barra, de fato, se transformou. Ainda no século XIX, enquanto o Corredor da Vitória se povoava de estrangeiros elegantes, de diplomatas, a Barra permanecia campestre. Era um lugar de sítios, árvores, regatos, cavalos, galinhas e porcos. Anúncios de jornais começavam a falar de suas chácaras. Do seu arvoredo. De repente, como acontecera no Rio de Janeiro, então se despencando em direção a Copacabana e Ipanema, nosso núcleo urbano avançou sobre o campo vizinho. Sobre aquele segmento de sua periferia rural. Em Notícias da Bahia – 1850, Pierre Verger reproduz o seguinte anúncio de um jornal baiano, publicado em 1846: “Vende-se uma rocinha na povoação da Barra com arvoredo que consta de 60 pés de coqueiros, mangueiras, cajueiros e com capim plantado para sustentar anualmente e com fartura dois cavalos; sofrível casa de morar toda reparada de novo, quase toda forrada e soalhada, contendo duas salas, uma varanda, quatro quartos, dispensa e casinha com fogão a vapor; tendo frente da casa um pequeno jardim; cocheira, estrebaria espaçosa para três animais, e casa para pretos; fonte d’água para beber, com casa para banho de bica tudo novo e pintado recentemente”. Como se vê, a Barra era, antes do advento da praia baiana, uma localidade semi-rural, como semi-rural era o encantador Solar do Conde dos Arcos, no Garcia. A praia, entre nós, significou, desde o início, um movimento urbano, não raro predatório, para o litoral norte de Salvador e para as ilhas – em especial, a de Itaparica, onde fica Mar Grande. Mas vamos pousar os olhos, ainda que rapidamente, nas mulheres pertencentes a nossos grupos

economicamente privilegiados. O simples fato de pensar nos trajes de banho dessas mulheres, entre o final do século XIX e inícios do XX, nos deixa, hoje, algo perplexos. Aquelas mulheres poderiam estar na praia para provocar alguma coisa – e é fato que seus banhos de mar vinham carregados de erotismo. Mas elas ocultavam o corpo, encasacadas. Cobriam e encobriam suas formas. Mas, depois, foram, simplesmente, tirando a roupa. Fazendo um strip-tease. Em poucas décadas. Depois do maiô inteiriço, apareceram semidesnudas em “duas peças”. Em biquínis. E o nosso célebre machismo patriarcal não teve como controlá-las. Todos sabem que o biquíni é uma provocação erótica. Uma sugestão, um convite, um oferecimento. É a fêmea se mostrando ao macho. Exibindo-se sem recato. Não contentes com isso, as mulheres brasileiras inventaram a “tanga”, leve e breve cobertura do monte venusiano, dos pelos púbicos (com relação à tanga, de resto, ficou embaraçoso afirmar, à McLuhan, que a roupa é uma extensão da pele). Fora da praia, minissaia; na praia, biquínis e tangas. Mulheres para serem vistas. E a nudez baiana ou carioca não é uma nudez que se nega. Não é a nudez algo estranha das colônias nórdicas de nudismo. Mas uma nudez voltada, explicitamente, para jogos sensuais. Com o maiô, o biquini e a tanga, as mulheres das camadas financeiramente mais favorecidas da população alcançaram uma liberdade corporal pública de que antes só gozavam negras e mestiças pobres. E ao ver um grupo de mocinhas de tanga, caminhando sob o sol, podemos dizer que o que há de mais parecido com elas, em toda a história de nosso litoral, são as jovens índias tupis que encantaram o olhar de Pero Vaz de Caminha. Impressiona como essas mulheres conseguiram mudar tão radicalmente a nossa paisagem, levando-se em conta sua história de sub-missão numa sociedade de senhores de engenho e mercadores senhoriais. Mas foi o que aconteceu. É claro que assistimos, naquela época, a um fenômeno mundial, com a moda ignorando fronteiras entre países (hoje em dia, aliás, fica até estranho falar de “moda” a propósito do biquíni, que já tem mais de meio século de existência). Em quase todo o mundo, as mulheres adotaram o maiô de duas peças, como, posteriormente, a minissaia. É claro que essas coisas não aconteceram no vazio. Resultaram de toda uma movimentação planetária de afirmação feminina, articulando-se desde o século XIX ou um pouco antes, para ganhar vigor e visibilidade nas primeiras décadas do século seguinte. No Brasil, foi a época da conquista do direito de voto para as mulheres (pioneiramente, no Rio Grande do Norte), do aumento da presença feminina no mercado de trabalho, da projeção de personalidades como Bertha Lutz e Patrícia Galvão (Pagu), etc. Mas não é este o nosso tema aqui. Voltemos ao maiô. O biquíni surgiu na Europa, pouco antes que a pílula anticon-cepcional aparecesse nos EUA, e as brasileiras seguiram o passo das européias. Bem. O objetivo das modas vestuais, em última análise, é sempre o mesmo: atrair a atenção do sexo oposto – ou, menos restritivamente, do sexo que se deseja, seja o mesmo ou o diverso. Mas essas modas assumem sentidos diferentes em lugares dessemelhantes. Em nosso caso, a generalização do biquíni foi sinal de fundas alterações na estrutura psicossocial das elites. Via-se ali – na aceitação, pelo homem, da seminudez pública de sua mulher, irmã ou filha – que a moralidade patriarcal estava explodindo. Que a sólida couraça, forjada em tempos coloniais, se desmantelava. Claro: o modo de um grupo se vestir não é destacável da

dimensão da moralidade. E o erotismo brasileiro assumiu então, entre as elites, o seu lugar ao sol. Velha e venerável Cidade do Salvador da Bahia de Todos os Santos – finalmente, as suas sinhazinhas, secularmente reprimidas, tiravam a roupa na beira do mar. Podiam, agora, fazer o que antes só as “nigrinhas” faziam. Mas vamos finalizar. Falamos, antes, que a praia baiana começou como uma invenção de grupos dominados numa sociedade escravista. Caminhamos da praia indígena para a praia mestiça. Para uma praia predominantemente mulata. Mas foi necessário um outro movimento para que a nossa praia se definisse com espaço lúdico coletivo, freqüentado pelo conjunto da sociedade, ainda que com as diversas classes sociais guardando distâncias e distinções entre si (praia sem distinções só numa orla fictícia, como a da Ilha do Pavão, do romance de João Ubaldo). Este outro movimento, principiando ainda no século XIX, veio da elite local, no rastro do grupo de estrangeiros que aqui moravam. Moema Parente Augel, aliás, nos fala desses estrangeiros que, segundo o vice-cônsul James Wetherell, divertiam-se em piquiniques na beira do mar. Lembra-nos, ainda, de Tollenare, negociante de Nantes, “tomando banho na sua enseadazinha da Vitória”. E essa prática do banho de mar hedonístico foi-se disseminando na elite local, para influenciar a classe intermediária e repercutir de volta sobre as camadas populares. Por esses caminhos, configurou-se a praia baiana. Para que, tempos depois, a nossa orla passasse, de espaço quase desértico do período colonial, ao espaço congestionado dos dias de hoje, quando, em fins-de- semana, chega a ser praticamente impossível andar nas praias – das quais, de resto, as elites vêm se retirando progressivamente.

A REVOLUÇÃO DE 1930 NA BAHIA Quando o presidente Washington Luís lançou, para a sua sucessão, a candidatura do paulista Julio Prestes, ele simplesmente fraturou o esquema da política café-com-leite. Ato contínuo, os governos de Minas Gerais, Rio Grande do Sul e Paraíba formaram a Aliança Liberal e se mobilizaram para mobilizar o país. Era uma oposição forte, surgindo em conjuntura propícia, no momento mesmo em que a crise de 1929 atingia em cheio o setor cafeeiro, abalando a sustentação econômica do Governo. Os “tenentes” (um agrupamento de jovens oficiais revolucionários que vinha agitando o país desde a década de 1920) acharam então que era a hora de deixar as conspirações clandestinas, para ocupar o centro da cena. E entraram no jogo para fortalecer a Aliança Liberal. Prestes bateu Getúlio na disputa presidencial. Mas a oposição, em movimento armado, reunindo os políticos tradicionais da Aliança e os tenentes, impediu a posse do presidente eleito e a de seu vice, o baiano (e governador da Bahia) Vital Soares. Esse processo político-militar, que acabou conduzindo Getúlio Vargas ao poder, ficou conhecido, em nossa história, como a “Revolução de 30”. Começava a morrer ali, naquele ano, a velha estrutura republicana brasileira. E tinha início a “Era

Vargas”, que passaria pela implantação da ditadura do “Estado Novo” (uma variante tropical – atenuada – do fascismo europeu), para se estender até 1945. Os tenentes eram a novidade política da época. Haviam promovido já o levante do Forte de Copacabana e a arquifamosa Coluna Prestes, aqui combatida pelos “coronéis” do sertão, a exemplo de Franklin de Albuquerque, que perseguiu os “revoltosos”, como então se dizia, até à fronteira com a Bolívia. Se quisermos definir o ideário do tenentismo em poucas palavras, podemos dizer que os seus temas centrais foram o combate à política oligárquica, o nacionalismo, o industrialismo e alguma assistência social. Pretendiam, em suma, modernizar o Brasil. É assim que se pode afirmar que o radicalismo não estava no programa, mas no método do movimento: a luta armada. O curioso é ver, na Revolução de 1930, a frente formada pelos tenentes, que lutavam contra a oligarquia, e pelos oligarcas da Aliança Liberal. Uma coalizão algo paradoxal, arco heterogêneo de forças, incluindo, ainda, cafeicultores e militares de alta patente. O que os unia era, de uma parte, a oposição à fração da elite política que estava no poder; de outra, o sentimento algo impreciso de que o país necessitava de reformas de sentido modernizante. Além disso, havia os políticos sem projeto, que apoiavam a revolução na esperança de que rivais seus fossem apeados do poder. Políticos nãoideológicos, que agiam em causa própria e não movidos pela necessidade de uma transformação nacional. No centro de tudo, Vargas – um político à moda antiga, escolado no caudilhismo gaúcho. A Bahia não se engajara no processo revolucionário. A elite política baiana era, em sua maioria, claramente antialiancista. Anti-Vargas. Afinal, Vital Soares – homem do Banco Econômico, como Goes Calmon – renunciara ao governo da Bahia, para o qual acabara de ser eleito, a fim de ser o vice de Julio Prestes. E quando os defensores de Vargas se armaram para tomar o poder, pensou-se que era possível reagir, com uma resistência montada na ponte São Paulo-Bahia. Foi para isso que o governo federal despachou para cá o general Santa Cruz, que aqui instalou o quartel-general das “Forças em Operação no Norte da República”, contando com o apoio do encouraçado São Paulo e de mais duas unidades da Marinha de Guerra. A Bahia estava (supostamente) preparada, portanto, para enfrentar, com os fuzis da reação, a marcha dos fuzis da revolução, que vinham descendo da Paraíba. Uma exceção, em nosso panorama, foi a do ex-governador J. J. Seabra. Mas a sua simpatia pelo movimento varguista era suspeita. Seabra era dos que agiam em causa própria. Simples. Seabra significara um corte no antigo enredo oligárquico da política baiana. Havia desarticulado o processo tradicional e montado a sua própria rede de dominação, visível no “seabrismo”. Como diz Cid Teixeira, era uma “oligarquia centralizada na pessoa de Seabra e desdobrada no coronelismo do Recôncavo”. Adiante, Seabra tentou uma composição com a velha oligarquia, lançando Goes Calmon – “o que havia de mais tradicional e conservador na estrutura familiar baiana” (Cid) – para sucedê-lo. Arrependeu-se. Tarde. As águas já estavam divididas entre o seabrismo e o calmonismo. Assim, o que se viu na Bahia, de 1924 a 1930, foi a dura disputa de duas estruturas oligárquicas. Em 1930, o calmonismo está no poder. Mas vem a revolução. Seabra se anima. Como está na oposição a Goes Calmon e Vital Soares, imagina que chegou a sua hora de, aderindo ao movimento revolucionário, voltar a ocupar o palácio baiano. Cid: “Na Revolução, José Joaquim Seabra tenta ser um revolucionário na medida em que a viu somente do ponto de vista baiano: se há uma revolução

para depor os governos, o calmonismo deve cair na Bahia”. Ledo engano, como se verá. Mas vamos por partes. Além de Seabra e alguns seabristas, uns poucos tenentes do 19º B. C. chegaram a se ouriçar na Bahia, mas sem maiores conseqüências. Mais interessante, no caso, é salientar que a população de Salvador simpatizava inteiramente com os revolucionários. Conta Aloysio de Carvalho Filho, em depoimento publicado por José Calasans Brandão da Silva em A Revolução de 1930 na Bahia, que, quando Washington Luís foi deposto, viu o povo soteropolitano “exaltar-se em demonstrações de regozijo”, por ruas da Cidade Baixa. Populares atacaram, com latas e garrafas de gasolina, o jornal A Tarde, sentinela do conservadorismo local. E “procuraram acometer o edifício [da Secretaria da Segurança, na Piedade], sendo impedidos a bala, pela guarda, verificando-se mortos e feridos”. Ainda segundo Carvalho Filho, o chefe da Segurança, Pedro Gordilho – o célebre Pedrito, que invadia terreiros de Candomblé –, teve que se esconder na casa do arcepisbo, no Campo Grande. De qualquer modo, a revolução chegou. Seus soldados vieram marchando do norte para cá, ao longo da via férrea, sem encontrar maior resistência. Apesar da presença do general Santa Cruz e dos “batalhões patrióticos” organizados pelo coronelismo sertanejo, a Bahia cedeu. Fácil. Tivemos apenas o entrevero de Alagoinhas. Três horas de fogo, durante as quais se destacou, por sua bravura, o tenente Agildo Barata. Só. As coisas foram tão fáceis que A Tarde trocou, de um dia para o outro, brados em defesa da legalidade pelo elogio das manifestações populares que aclamavam a revolução. A cidade ficou cheia de gente com lenços vermelhos, signo dos rebeldes que acabavam de triunfar. Vitoriosa a revolução, Seabra esperou o prêmio. Em vão. Getúlio e os revolucionários tinham os seus próprios planos para a Bahia. E, depois de algum sobe-e-desce, Juracy Magalhães, que, além de ser tenente e muito jovem (26 anos de idade), era cearense, foi o escolhido. Seabra viu-se marginalizado, juntamente com o calmonismo. Ressentido, trocou de camisa. Em O Último Tenente, o próprio Juracy conta que Getúlio Vargas o nomeou interventor na Bahia “ao arrepio de todas as forças políticas tradicionais daquela terra”. E que, logo ao chegar, ele conseguiu “o milagre da unanimidade baiana” – todos se uniram contra ele. “Os membros das classes dominantes que aspiravam ocupar altos postos na máquina administrativa, receberam a nomeação de Juracy Magalhães como um insulto: além de não ser baiano, era militar e, mais do que isso, muito jovem, sem qualquer experiência administrativa e sem suficiente conhecimento dos problemas baianos. Pior ainda, havia sido imposto à Bahia, um estado que sempre fornecera ilustres estadistas ao Brasil! (...). Foi essa ‘injúria moral’ que funcionou como fator aglutinador das enfraquecidas facções políticas baianas, dando origem a uma oposição que, sem tréguas, desafiou o governo Juracy Magalhães”, escreveu a historiadora Consuelo Novais Sampaio, em Poder & Representação – o Legislativo da Bahia na Segunda República, 1930-1937. Foram os tempos do chamado “autonomismo”, juntando Seabra, Calmons e Mangabeiras. Discursava-se então contra a ocupação da Bahia por “tropas estrangeiras”. Por forasteiros. Juracy e alguns de seus auxiliares imediatos eram tratados como “invasores holandeses”. Tornara-se necessário, diziam os oposicionistas, livrar a Bahia do “jugo alienígena e militar.”

O chefe do governo local tinha que ser baiano e civil. Foi assim que a chamada “Concentração Autonomista” agregou as facções políticas destronadas pelo movimento revolucionário. E partiu para disputar espaço na Assembléia Estadual Constituinte. Apesar disso, não conseguiu evitar que Juracy fosse eleito governador constitucional, pela Assembléia Legislativa, em 1935. Juracy era sistemática e duramente atacado, ainda, pelo já mencionado jornal A Tarde, de Simões Filho. Conta ele que, num encontro no Rio de Janeiro, o próprio Getúlio Vargas lhe disse: “Juracy, quando o burro começa a escoicear, é bom dar um murro na cangalha, para o bicho ver que tem gente em cima”. Coincidência ou não, Simões Filho foi surrado pouco depois no Corredor da Vitória, onde morava. Apanhou feio. E o feito, claro, foi atribuído ao governador. Getúlio, então, reclamou: “Juracy, eu te disse para dar um murro na cangalha, mas tu deste no próprio burro...”. “Os autonomistas, congregando o que havia de mais tradicional da política baiana contra mim, foram um osso duro de roer”, relembra Juracy, que se aliou então ao arcebispo (depois, cardeal) Augusto Álvaro da Silva, por ele definido como um homem de “senso político bem aguçado”. A aliança entre o interventor e o futuro cardeal era, na verdade, previsível. A Igreja levou, ao governo de Vargas, o apoio da massa católica. Depois da Revolução de 1930, aliás, a relação (colaboração, seria a palavra certa) entre Igreja e Estado se tornou especialmente íntima no Brasil. Não foi por acaso que, em outubro de 1931, inaugurou-se a estátua de Cristo Redentor no Corcovado, no Rio de Janeiro. Era o supersigno de uma aliança. Mas é certo que Juracy não contou apenas com o apoio de Álvaro da Silva. Em sua resposta à elite baiana, o interventor agiu com um misto de firmeza (recorrendo à força, inclusive) e pragmatismo. “Aos poucos foi preparando o terreno para fincar suas bases políticas, evitando deste modo que os políticos do antigo regime readquirissem a força perdida. Ao mesmo tempo, transigiu o necessário para conquistar novos adeptos entre os membros da desorientada classe dominante local”, escreve Novais Sampaio. Entre esses “novos adeptos”, vamos encontrar duas personalidades tradicionais da vida política baiana: o desembargador Pedro Ribeiro de Araújo Bittencourt, pai de Clemente Mariani, e o conselheiro João Pedro dos Santos, pai de Edgard Santos. Edgard e Clemente, de resto, seguiram a opção paterna. Duas coisas devem, ainda, ser observadas. Em primeiro lugar, Juracy quis desarticular a oligarquia dirigente e, ao mesmo tempo, vincular as classes sociais, diretamente, ao seu governo. “Por isso, no plano econômico, seu governo orienta-se no sentido de fortalecer as bases técnicas e financeiras da agricultura, criando, com essa finalidade, o Instituto da Pecuária, o Instituto do Fumo, o Instituto de Fomento Econômico da Bahia [futuro Baneb] e pondo em funcionamento o Instituto do Cacau, e, no plano político, consolida a representação dos interesses burgueses e oligárquicos pela organização do Partido Social Democrático [PSD]”, resume Antônio Sérgio. Em segundo lugar, apesar de toda a disposição antioligárquica e anticoronelista do tenentismo, Juracy vai se transformar, ele mesmo, numa espécie de “supercoronel”, como o definiu Eul-Soo Pang. Essa “coronelização” de Juracy é apontada, de resto, por diversos historiadores. Em Mandonismo e Obediência, Wilson Lins nota que coube a Juracy reabilitar politicamente os “coronéis” baianos,

envolvendo-os na luta contra a Revolução Constitucionalista de 1932, em São Paulo, e fazendo deles a base do “juracisismo” no sertão. E Cid Teixeira chega a dizer que Juracy foi tenente por acidente: “Ele é um oligarca coronelístico, inclusive por herança de natureza vivencial, genealógica e conjugal”. Em O Último Tenente, é o próprio Juracy quem fala: “...a verdade é que apesar desse carinhoso apoio do povo, os tenentes no governo mal sabiam que medidas tomar. Não tinham, a rigor, um programa para mudar a sociedade. Assim, acabariam tendo de adaptar-se à práxis conservadora dos velhos próceres da Aliança Liberal. Um belo sonho revolucionário transformou-se então em rearranjo oligárquico. No fim de tudo, os homens que dominaram o novo regime vinham das mesmas famílias que haviam consolidado a República Velha”.

REFORMISMO E TRADICIONALISMO Quando falamos de “imobilismo”, com referência à Cidade da Bahia e seu Recôncavo, durante as primeiras décadas do século XX, temos em vista o declínio final de uma economia agroexportadora e a irrealização do sonho industrialista. Não queremos dizer com isso, todavia, que a nossa vida econômico-financeira esteve completamente estagnada – ou que o principal núcleo urbano do Recôncavo não se movimentasse. Repito que nosso declínio e isolamento foram relativos. E a Cidade da Bahia conheceu, nessa época, não apenas tumultos e encrespações, mas também transformações em seu desenho urbano. Se o mundo que girava em torno do açúcar achava-se entorpecido, vivendo dias de marasmo e dívidas, o setor comercial de nossa economia prosseguia ativo, inclusive pela ação, eventualmente amaldiçoada, dos comerciantes estrangeiros aqui estabelecidos. De outra parte, Salvador nunca chegou a ser cidade enclausurada ou circunscrita, que se recolhesse escurecida atrás de altos muros. Não chegou a ocorrer, conosco, aquele desligamento radical em que viveu, durante a época colonial, o Extremo Norte brasileiro. A cidade era ventilada e colorida, apenas apartada da rota modernizante que o Brasil Meridional tomara. Além disso, como disse, Salvador atravessou, nesse período, inúmeras agitações. Turbulências promovidas não somente pelo seu povo tantas vezes sentimental e sedicioso, mas também por rivalidades e litígios na esfera do poder público. Como exemplo desses últimos, podemos lembrar a disputa política mais áspera que acabou desembocando no bombardeio da cidade, no dia 10 de janeiro de 1912. Ainda aqui, devemos levar em conta a ruptura seabrista. A velha oligarquia tentou bloquear o acesso de Seabra ao Governo do Estado. Nessa contenda, o prédio da Câmara Municipal foi ocupado pela polícia e um decreto transferiu a nossa capital para Jequié. Os seabristas recorreram à Justiça Federal. Ganharam. Mas o governador, Aurélio Viana, não desocupou a Câmara, nem sustou a transferência da capital. O exército entrou então em cena, para fazer valer a decisão judicial. O

governador não voltou atrás. E veio o bombardeio. Durante cerca de quatro horas, os canhões dos fortes de São Pedro e do Barbalho fizeram fogo contra o centro da cidade, ferindo o Palácio do Governo, o Teatro São João, algumas casas da Rua Chile. A parte atingida do palácio foi justamente aquela em que funcionava a Biblioteca Pública – e, assim, muitos livros foram esfrangalhados. No fim das contas, o exército garantiu a posse de Seabra. Cid Teixeira interpreta: “O bombardeio de 1912 é um grande divisor da vida política baiana... A partir daí, José Joaquim Seabra [corpo estranho às estruturas de poder que vinham do período imperial] empolga o poder baiano... Eu estaria tentado a dizer que a proclamação política da República, na Bahia, ocorre em 1912”. Por fim, a capital do Recôncavo, atingida por uma onda de alcance planetário, experimentou modas e novidades. Como seria de esperar. O século XX foi, em seus inícios, um tempo tenso de inovações. De estranhezas e ineditismos. De mudanças e mais mudanças. No mundo inteiro, é claro – e nas mais variadas dimensões da práxis humana. Modificaram-se radicalmente, naquela época, tanto as estruturas maiores da vida social quanto os padrões mais íntimos da vida cotidiana. Na verdade, os países mais “desenvolvidos” da Europa e os EUA se sentiam imersos no turbilhão de um novo estágio civilizatório. No maremoto de uma transformação sem precedentes na história da aventura humana sobre a superfície terrestre. Era o tempo do automóvel e do antibiótico, da comida enlatada e do petróleo, da escova de dentes e do rádio, do telefone e da máquina de escrever, da anestesia e da lâmpada elétrica, do leite pasteurizado e do cinema, da geladeira e do avião. Assistia-se, em suma, ao movimento veloz e avassalador da chamada Segunda Revolução Industrial. Ao triunfo espetacular e total da Civilização Técnica, que teve como um de seus primeiros e mais fortes supersignos a estetização de estruturas metálicas numa composição que recebeu o nome de Torre Eiffel. E o Brasil foi alcançado, obviamente, por essa revolução global (e globalizante) do mundo. Em meio à realidade rodopiante desse admirável mundo novo, como traço mesmo da sociedade urbano-industrial, a novidade urbana foi encarada não somente como algo desejável. Mais que isso, foi pensada e sentida como uma verdadeira exigência dos novos tempos. Uma cidade que não exibisse, em sua própria configuração urbana, sinais claros de sua inserção no mais recente estágio sociotécnico da história humana, seria vista como um organismo ultrapassado pelo curso evolutivo da civilização. Seria uma cidade tosca, atrasada, perdida no tempo, à margem do movimento vivo do mundo. E, por isso mesmo, motivo de acanhamento, e até de vergonha, para os seus habitantes mais “esclarecidos”. É nesse contexto que se deve apreciar a reforma urbana do Rio de Janeiro, na aurora mesma do século XX. O Brasil não queria ficar de fora do “concerto” das nações modernas. E o Rio era não só a capital do país, o seu maior porto e a sua maior cidade, como o seu principal cartão postal e de visita. A sua vera vitrine. Logo, era necessário modernizá-lo. Afrancesá-lo, mais uma vez – e ainda mais radicalmente, agora. A capital precisava caminhar com o progresso. Fazer parte da civilização. E é assim que o presidente Rodrigues Alves vai dar carta branca ao prefeito Pereira Passos – engenheiro e urbanista diplomado pela École des Ponts et Chaussées, exatamente na época em que Haussmann reformava Paris –, para que ele comande o processo de reurbanização do Rio.

A inauguração da Avenida Central, atual Rio Branco, em 1904, foi o marco desse novo Rio. Um Rio que se pretendia cosmopolita, parisiense. Aliás, a fim de reforçar o “clima” parisiense da cidade, Pereira Passos foi ao ponto de importar pardais, pássaros “típicos” de Paris, para povoar a capital da República – praga ornitológica que se espalhou pelo país inteiro. Mas, enfim, ali estava a imagem de um Brasil pelo qual as nossas elites ansiavam. Sim. Para elas, o Brasil que contava era o Brasil do 14Bis de Santos Dumont, o Brasil das avenidas, dos globos elétricos e dos pardais – ao tempo em que urgia deletar do horizonte e da memória nacionais todo e qualquer sinal de barbárie. Em que era preciso apagar de nosso mapa histórico e social o sangue de Canudos e os tambores do Candomblé. Expressão característica dessa mentalidade, o cronista João do Rio escreveu: “Para o brasileiro ultramoderno, o Brasil só existe depois da avenida Central e da Beira-Mar... O resto não nos interessa, o resto é inteiramente inútil”. Na década seguinte, essa ideologia urbanística chegaria até nós, baianos, com o reformismo urbano carioca sendo tomado como modelo para a remodelação da Cidade da Bahia. O Rio funcionava assim não apenas como palco ou vitrine dos tempos modernos no Brasil, mas também como centro irradiador de informações, generalizando práticas e disseminando valores. Dito de outro modo, a capital se convertera em referência central e modelizadora para todo o país. Ou, como disse Muniz Sodré, em “modelo semiótico-cultural” para os variados processos de modernização ocorridos em território brasileiro. E a Cidade da Bahia seguiria o seu exemplo e as suas pegadas, a fim de também se situar no campo magnético da modernidade. Coincidem, aqui, modernização e seabrismo, pois é no primeiro governo de Seabra que se deflagra o processo modernizante. Seabra fora ministro da Justiça de Rodrigues Alves, quando este bancou a reurbanização do Rio. Eleito governador da Bahia, transplantou para cá a experiência carioca, ditada por Paris. Aliás, Seabra como que renunciou a gerenciar o Estado, concentrando o seu desempenho na Cidade da Bahia. Mais exatamente, deixou a gestão dos municípios interioranos nas mãos dos “coronéis” – e foi, na expressão de Cid Teixeira, um macroprefeito de Salvador. O nosso Pereira Passos. E seguiu direitinho o figurino carioca. O prefeito do Rio demolira os antigos casarões do centro da cidade e colocara as suas fichas numa filha direta dos bulevares parisienses, a Avenida Central, que, na definição de Nicolau Sevcenko, “operava como o principal índice simbólico” da nova realidade urbana. E como isso se traduziu na Cidade da Bahia? Numa campanha sem tréguas contra o “centro histórico” da cidade e na abertura das avenidas Sete de Setembro e Oceânica. O urbanismo seabrista foi, portanto, um urbanismo predatório. Sua meta era dinamitar o “centro histórico” de Salvador, para erguer sobre as ruínas uma cidade moderna. A imprensa e a elite político-administrativa baianas defendiam – como disse Fernando da Rocha Peres, em Memória da Sé – que “o antigo burgo deveria ser convenientemente preparado para entrar, já com certo atraso, na mecânica do século”. Os signos da cidade centenária eram encarados como uma afronta ao “espírito moderno”, vistosa fachada ideológica sob a qual crescia, entre outras coisas, o olho gordo da especulação imobiliária. Na imprensa diária, a Bahia Colonial era qualificada de ronceira, inelegante, sombria, conspurcada pela sordidez dos velhos pardieiros. O ataque, como se vê, era agressivo.

Tratava-se de destruir “a feia e suja e colonial cidade de Thomé de Sousa”, no dizer de um jornal baiano da época, para em seu lugar construir uma “Nova Bahia”. Nessa ofensiva demolidora, a velha e venerável Sé da Bahia, cuja história datava da construção mesma da cidade, tornou-se alvo favorito do seabrismo e de todos os deslumbrados pelo “progresso”. Os adjetivos escolhidos para caracterizá-la iam de “pardieiro” a “trambolho” – de “masmorra” a “aleijão”. Argumentava-se que era necessário extirpar, de nossa paisagem urbana, aquele belo prédio, já que ele não só atrapalhava o tráfego, como era uma monstruosidade estética. Foi uma campanha que durou duas décadas, até que, em inícios da década de 1930, o precioso templo foi demolido a picaretas. Para nada. Puro ato de “vandalismo urbanístico”, para lembrar a expressão empregada, a propósito, por Francisco de Assis Barbosa. Por um lado, a destruição daquela igreja não solucionou nem poderia solucionar o problema do tráfego; por outro, antes que monstruosidade ou aleijão, o templo possuía valor estético indiscutível – e estava encharcado de história. Mas, para a loucura progressista de então, que tentou demolir também o Mosteiro de São Bento, o que realmente importava era destruir o “centro histórico” da Cidade da Bahia. Dar um fim às nossas “velharias inexpressivas”. “Dos púlpitos dessa igreja [da Sé] o padre Antonio Vieira pronunciara com sua voz de fogo os sermões mais célebres da sua carreira”, escreveu Jorge Amado, protestando. Conta Jorge que correu na época a notícia de que o arcebispo, o futuro cardeal da Silva, embolsou gorjeta grande para permitir que a Companhia Linha Circular de Carris da Bahia abatesse o templo. Não há provas do suborno, é certo, mas o fato é que o cardeal, em documento assinado por ele mesmo, deu a sua “inteira aquiescência” à obra destrutiva. A irritação anticlerical de Jorge Amado subiu então ao ponto dele fazer o elogio dos “índios patriotas” que, nos primeiros dias coloniais, haviam realizado uma “experiência culinária” com o bispo Sardinha. Acrescentando ainda que, naquela década de 1930, baiano já não gostava de bispo nem como alimento. Menos incisiva, mais suave e sedutora, nessa conjuntura de progressismo maníaco e demolidor, foi a postura assumida por Dorival Caymmi. Pressentindo o naufrágio, ali mesmo na iminência da destruição planejada da cidade histórica, Caymmi foi tratando de salvar, esteticamente, jóias de uma vida ameaçada. Enquanto a imprensa e o governo usavam a expressão “colonial” como atributo do monstruoso, como sinônimo da deformidade, da sujeira e da feiúra, o poeta praieiro da Bahia cantava: Nas sacadas dos sobrados da velha São Salvador há lembranças de donzelas do tempo do imperador Tudo, tudo na Bahia faz a gente querer bem a Bahia tem um jeito que nenhuma terra tem.

Antes de Jorge Amado e Caymmi, outros protestaram, como Wanderley Pinho, Theodoro Sampaio e Pirajá da Silva. Pinho se manifestou em defesa da “conservação das tradições”. Theodoro negou que a única solução para o tráfego passasse pela derrubada da igreja. E Pirajá da Silva perguntou se o centro de Salvador era o único lugar para se fazer a “Nova Bahia”, já que dispúnhamos de terras livres em torno do município. Ao sugerir, em 1928, que preservássemos o “centro histórico”, erguendo a “Nova Bahia” nas vizinhanças da cidade colonial, Pirajá da Silva revelou, no dizer de Peres, lucidez e “dotes proféticos”. Vale a pena reouvi-lo: “Dentre os monumentos históricos e arquitetônicos da Bahia, destaca-se a velha Sé, um dos mais antigos do Brasil e... um dos poucos edifícios da América em que se notam características muito acentuadas do Renascimento – foi construída em fins do século XVI e sendo também um monumento histórico, devemos protestar contra a sua demolição, tanto mais que o Brasil nenhum edifício possui dessa remota época... Aos remodeladores, não seria preferível traçar na vastidão das terras brasileiras, próximas a esta capital, uma BAHIA NOVA, de avenidas e alamedas retas, numeradas, com todos os requisitos aconselhados pela higiene moderna e arquitetura futurista? Será possível que as nossas aspirações urbanistas só se restrinjam ad eternum ao quarteirão da Sé, forçadamente implantado no cimo desta colina de granito?... Por que não respeitar aquele recanto sagrado da nossa história?” Infelizmente, a idéia da elaboração de um plano para a “Nova Bahia”, tal como entrevisto por Pirajá da Silva, só iria ganhar corpo anos depois, em 1942, com a criação do Epucs - Escritório do Plano de Urbanismo da Cidade do Salvador, sob a regência de Mário Leal Ferreira, especialista na matéria. O plano – que não chegou a ser concluído, em decorrência da morte de Mário Leal – previa que a cidade histórica deveria se configurar a partir da abertura de avenidas em vales praticamente desertos. A expansão e a modernização se dariam, portanto, pelos arredores desabitados da Cidade da Bahia. Mas, ainda aqui, o velho Pirajá da Silva teria que continuar protestando. Leal Ferreira atendia a somente uma das suas reivindicações – construir uma Bahia Nova nas cercanias do antigo núcleo urbano. Mas o centro histórico de Salvador não seria poupado. Muito pelo contrário: se dependesse de Leal, iria por terra. Na verdade, o urbanismo moderno nasceu de costas para o passado, buscando um novo e incontaminado ponto de partida, voltado para o mundo e a humanidade do futuro. Pensava-se não em preservação ou em memória, mas, quase que obsessivamente, na criação do novo. De um espaço radicalmente moderno. E é nesse horizonte que devemos situar o caso do nosso Mário Leal Ferreira. Contratado pela administração municipal de Salvador, ele se empenhou em traçar diretrizes de zoneamento da cidade, incluindo aí as pistas de tráfego, quando concebeu as suas “cintas de cumeadas”, vias centrais de comunicação pensadas para um trânsito mais lento do que o das avenidas de vale. Comentando estas “cintas”, em O Macroplanejamento da Aglomeração de Salvador, A. S. Scheinowitz foi direto ao assunto: “É útil notar que, no modelo [de Mário Leal], a primeira cinta de cumeada sai da Rua Chile pela Avenida Sete de Setembro e passa pela Praça da Piedade, a Avenida Joana Angélica, os bairros do Barbalho e de Santo Antônio, e o Pelourinho, para atingir a Praça da Sé. É igualmente importante sublinhar que, nesse processo de modernização, o Epucs não vacila em

comprometer o núcleo do centro histórico, que considera como pouco interessante para uma sociedade virada para o futuro, a não ser alguns prédios e monumentos marcantes a se preservar; essa atitude sendo habitual, na época, para aqueles que achavam que um homem novo teria que fazer tabula rasa do passado”. Teríamos que esperar por outros arquitetos, também ligados à vanguarda internacional, mas com uma leitura diversa da cidade e da história, para que a arquitetura e o urbanismo coloniais da Cidade da Bahia fossem vistos em sua densidade e significância como fatos de cultura. Teríamos que esperar, ainda, que a consciência em torno do tema se desenvolvesse socialmente (para quem não está lembrado, o traçado original da Avenida de Contorno detonaria o Solar do Unhão, que pertencera a Gabriel Soares de Sousa – e só não foi executado porque atropelaria, também, o Iate Clube da Bahia). Para que, enfim, as coisas se traduzissem em obras públicas iniciais, entre as décadas de 1960 e 1970. Voltaremos ao assunto adiante. Por ora, lembremos que, na euforia progressista da década de 1910, o centro centenário da Cidade da Bahia não encontrou defensores sequer em nosso Instituto Histórico e Geográfico. Intelectuais e artistas – como Xavier Marques, por exemplo – apoiaram o reformismo culturalmente irresponsável. E é em conexão com essa atmosfera, de resto, que devem ser lidas as crônicas que Pedro Kilkerry andou publicando em 1913, sob os títulos pré-modernistas de Quotidianas e Quotidianas-Kodaks. A Cidade da Bahia surge aí em roupagem de metrópole moderna, “inferno da atividade humana, que se eletriza, cinemiza, auto-mobiliza”. Em seu exagero evidente, a anotação kilkerriana, no caso estribada em bondes e cines, está mais próxima de uma poética fantasia citadina – trazendo, ao nosso ambiente provinciano, algum futurismo europeu (o primeiro manifesto de Marinetti, falando já de “corações elétricos”, é de 1909) – do que da exatidão sociológica. Coisa semelhante pode ser dita de um poema como o Noturno Baiano, de Eurico Alves – poeta do grupo da revista Arco & Flexa, encarnação tardia do movimento modernista na Bahia –, onde o “silvo acai-porado das usinas” canta “epicínios a Luís Tarquínio”. A própria referência a Luiz Tarquínio, e não a um novo empresário industrial do século XX, é reveladora. Mostra o quanto a Cidade da Bahia permanecia tradicional – e presa ao seu próprio passado. Se fosse descrevê-la, David Riesman, o sociólogo da lonely crowd, poderia dizer que ali vigorava “uma apertada tessitura de valores” e vivia uma gente que se movia mais por adaptação do que por inovação. Um mundo tradition-directed, em suma. Isto é: a Cidade da Bahia, apesar dos balaços predatórios disparados em nome da “ideologia do progresso”, apresentava uma existência social integrada, recorrente, em relação à qual se podia falar ainda em estilo – e não já em técnica – de vida. Em Brancos e Pretos na Bahia, Donald Pierson vai se deter exatamente na estabilidade dessa ordem social. “Mudança tem havido, mas relativamente pouca”, escreve o sociólogo norteamericano. À chegada da década de 1940, Salvador continuava sendo “cidade velha, bem consciente e orgulhosa de suas antigas tradições” – “o comportamento costumeiro, que originalmente desenvolvera em resposta às necessidades da vida colonial, ainda persistia orientando a vida, quase pelos mesmos e familiares caminhos”. E mais: “Salvador tinha sido, há muito tempo, uma cidade relativamente isolada; o isolamento intensificou as relações pessoais e, assim, promoveu o desenvolvimento de costumes locais, em resposta a circunstâncias e condições particulares”.

Em síntese, as intervenções novidadeiras, em sua trama urbana, não foram ao ponto de fazer da Cidade da Bahia um organismo desequilibrado, subitamente tomado pela maré do “progresso”. Salvador não sofreu um tratamento de choque, nesse sentido. Não passou a experimentar, de uma hora para outra, tensões inéditas. Nem se viu lançada a uma busca vertiginosa de redefinições. Não. Apesar de passar por transformações até ostensivas, ela não tremeu sob o impacto de saltos demográficos ou de sobressaltos urbanísticos. Permaneceu cidade essencialmente antiga, como uma espécie de vagarosa estância da vida urbana típica de um mundo pré-industrial. Podemos revê-la ainda no romance de Jorge Amado, em fotos de Marcel Gautherot, nos contos de Mestre Didi, nas canções de Dorival Caymmi, na antropologia visual de Pierre Verger, nos escritos e ditos de Vivaldo da Costa Lima, nas narrativas de Cid Teixeira, no desenho de Carybé. É a Bahia do terno branco, do porto dos saveiros, dos sobrados coloridos, das “colinas coroadas de conventos”, do pé-de-guiné no vaso de barro, das saias rendadas e da malagueta. Bahia anterior à BR-324, à Petrobrás, à Sudene, ao Centro Industrial de Aratu, às empresas de turismo, ao Pólo Petroquímico de Camaçari, ao inchaço demográfico, à onipresença televisual. Uma cidade imponente, paralisada, mas clara e fresca como o claustro azulejado da Igreja de São Francisco de Assis. Foi assim que Stefan Zweig a sentiu. Não uma cidade moderna, rica e poderosa, como o Rio de Janeiro ou Buenos Aires. Mas antes altiva, presa ao passado, com uma cultura e um estilo de vida próprios. Zweig diz mesmo que a atitude da velha Cidade do Salvador da Bahia de Todos os Santos era a atitude de uma rainha viúva – “uma rainha viúva grandiosa como as das peças de Shakespeare”. Uma rainha, acrescento, tão bem-sucedida em seus convites a idealizações que geralmente conseguia ocultar, dos olhos que a contemplavam, a realidade de sua miséria e de seus conflitos sociais.

O COMUNISMO BAIANO O comunismo chegou com atraso na Bahia. Não participamos de seus movimentos iniciais na vida político-cultural brasileira. Do congresso que constituiu o PCB, por exemplo, em 1922. Compareceu, àquele congresso, um grupúsculo de delegados representando comunistas de Recife, Porto Alegre, São Paulo, Rio de Janeiro, Niterói e Cruzeiro. Em vez da Cidade da Bahia, portanto, Recife é que é, no campo nordestino, participante da primeira hora do movimento comunista em nosso país. “Pernambuco era um grande centro onde os problemas sociais eram tensos; onde a Federação Regional do Trabalho existia desde 1914; onde Cristiano Cordeiro e Joaquim Pimenta eram líderes que tinham evoluído do anarquismo ao comunismo; onde greves eram dirigidas pelos anarquistas e comunistas, entre elas a da Great Western; onde Pimenta [em 1920]... dirigira coligação contra o próprio governador... numa união de anarquistas, comunistas, liberais e conservadores”, escreve, a propósito, Edgard Carone, em Revoluções do Brasil Contemporâneo.

Chega a ser até interessante que Salvador não esteja numa lista de cidades onde aparece a pequena Cruzeiro, entroncamento ferroviário do interior de Minas Gerais, onde, desde 1917, funcionava a União Operária Primeiro de Maio, fundada por Hermogêneo Fernandes da Silva, eletricista da Light. Na Bahia, ao contrário, o que veio a haver, nos anos seguintes, foram alguns gatos pingados, convertendo-se ao materialismo e ao marxismo sem ter lido Marx. Mas o comunismo só viria a ganhar corpo, entre nós, na década de 1930. Curiosamente, graças à implacável perseguição nacional aos comunistas, em conseqüência da chamada “intentona” de 1935, quando os “vermelhos” haviam promovido levantes armados em diversos pontos do país. O que aconteceu foi simples. Não houve levante na Bahia em 1935. Enquanto o Brasil se agitava, a Bahia não saiu de sua maré mansa. Além disso, quem nos governava, na época, era o cearense Juracy Magalhães, que não perseguia comunistas (seus principais adversários estavam no “integralismo”, na ABI), até porque tinha um irmão perseguido pela polícia, escondido no interior do Estado. Escorraçados de tudo quanto era canto, os “vermelhos” vieram circular algo livremente por aqui, época em que a Cidade da Bahia se transformou, no dizer de Carlos Lacerda, em “valha-couto de comunistas”. Esta “migração vermelha”, digamos assim, foi fundamental para o desenvolvimento do comunismo em nosso meio, especialmente pelo influxo então exercido sobre a juventude local, onde se projetavam figuras como as de Édison Carneiro, Carlos Marighella, Áydano do Couto Ferraz, Fernando Sant’Anna, Jacob Gorender e Mário Alves, jovens que dariam outros e novos rumos à esquerda brasileira, da democratização do PCB, com a célebre “Declaração de Março”, à militarização de agrupamentos contestadores, guerrilha/terrorismo urbano no período mais duro da ditadura militar. É evidente que a importação do comunismo, e de princípios e teses marxistas, alteraram, em muitos sentidos, a vida local, da política à cultura. Mas é evidente, também, que a inserção do marxismo, em nosso ambiente eco-sócio-racial, provocou um efeito-de-retorno, alterando o comunismo. Não poderia ter sido de outro modo. Nenhuma ideologia se desloca, geográfica e culturalmente, sem sofrer afetações menos – ou mais – profundas. Os comunistas da Bahia de Todos os Santos, imersos em nossas realidades, tiveram de imaginar modos de tratá-la e de pensá-la. Para tanto, tiveram de inventar leituras e mesmo de deixar de lado pontos básicos da ortodoxia marxista. Às vezes, contrariando frontalmente a cartilha marxista-leninista. Casos exemplares disso estão nas questões sócio-racial e religiosa. O marxismo clássico e suas variações russas não chegaram a realizar um exame profundo da escravidão negra nas Américas. Nem uma leitura de suas conseqüências duradouras na sociedade brasileira. Ou seja: nossos comunistas não receberam uma teoria pronta sobre esses assuntos. Sobre mestiçagem, sincretismo cultural, discriminação racial, relações entre classe e cor, etc. Em depoimento, o escritor Joel Rufino declarou: “Era uma insuficiência do marxismo... A cegueira do Partido [PCB] para a questão racial afastou dele muitos líderes negros do Brasil. Como é possível entender a realidade brasileira desprezando isso?”. E a Cidade da Bahia e seu Recôncavo é um lugar que exige, para a sua compreensão, sensibilidade aguda para o tema. Grande parte dos comunistas da Bahia, aliás, era de mulatos. De negromestiços. A exemplo dos já

citados Carlos Marighella, Édison Carneiro e Fernando Sant’Anna. E dificilmente poderiam negar o seu próprio estatuto mestiço. Tiveram, pelo contrário, de encarar a sua própria situação socioantropológica. Mesmo porque não eram seres livrescos, enfurnados em gabinetes, mas pessoas que circulavam pelas ruas, ao ar livre, vivenciando com intensidade a Cidade da Bahia e suas manifestações populares de cultura. O mestiço Carlos Marighella, de ascendência ítalo-haussá, por exemplo, não poderia deixar de se impregnar por essas práticas, do Candomblé à culinária e da capoeira ao samba. Seus poemas falam do cais do porto, de Salvador contemplada de um saveiro, da escravidão, da capoeira, de Iemanjá. Ele fora criado como um moleque das ruas, apreciando o carnaval e as rodas de samba. O caruru dos ibêjis era um preceito em sua casa, feito por sua mãe Maria Rita. E vêm daí a sensibilidade e o interesse de Marighella pela mestiçagem e pelo sincretismo. É certo que nem todos os comunistas baianos viveram assim a Cidade da Bahia e seu Recôncavo. Ao carnavalesco Marighella, que gostava de cantar, namorar e compor sambas, costuma-se contrapor o sisudo Giocondo Dias, de temperamento algo “jesuítico”. Mas Giocondo não era a regra. Era a exceção. Nas décadas de 1930 e 1940, os jovens comunistas baianos se achavam completamente imersos, como disse, na vida soteropolitana, transitando por seus diversos mundos culturais e por seus vários estratos sociais. Em palavras de Jorge Amado, eles viveram “profunda e intensamente a vida popular da Bahia, na saga de nossa adolescência maravilhosa: atravessávamos os dias e as noites nos cafés de literatos, mas sobretudo nas feiras, nos mercados, nas festinhas juninas, nas pensões de raparigas, nos saveiros, nas moquecas na Rampa do Mercado, no sarapatel nas Sete Portas, nas casasde-santo, nos pejis dos orixás e na luta antifascista, irredutível”. Foi assim que se deu o encontro do comunismo e do Candomblé em terras baianas, apesar de toda a oposição marxista ao fenômeno religioso, que Marx classificava como “ópio do povo”. Os casos de Jorge Amado e Édison Carneiro são bem conhecidos. Em meados da década de 1930, Édison “e vários intelectuais estavam já ligados ao Axé [do Opô Afonjá], freqüentavam suas festas e privavam da amizade de Mãe Aninha. Posso citar, por exemplo, Arthur Ramos, Donald Pierson, Áydano do Couto Ferraz e Jorge Amado”, escreve Mestre Didi, em sua História de um Terreiro Nagô. Jornalista, advogado e etnógrafo, Édison publicou seus dois primeiros livros entre 1936 e 1937: Religiões Negras e Negros Bantos. E não parou mais. Entre esses livros, podemos destacar O Quilombo dos Palmares e Candomblés da Bahia. Para o jovem comunista Armênio Guedes, Édison era “o intelectual máximo do grupo”. Para Jorge Amado, ele “tinha uma estrela acesa no peito, o amor ao povo que dirigiu seus passos e comandou a construção de sua obra”. Nessa época, anos de 1930, não foram poucos os comunistas que Édison conduziu aos terreiros de Candomblé. E esse mundo candomblezeiro se gravou fundamente na produção estética e intelectual da esquerda baiana. De 1935, por exemplo, é Jubiabá, recriação amadiana da vida negromestiça na Cidade da Bahia e seu Recôncavo. Em seguida, o mesmo Amado nos deu Mar Morto, avisando aos leitores, logo na abertura do livro: “Agora eu quero contar as histórias da beira do cais da Bahia. Os velhos marinheiros que remendam velas, os mestres de saveiros, os pretos tatuados, os malandros sabem essas histórias e essas canções. Eu as ouvi nas noites de lua no cais do Mercado, nas feiras, nos pequenos portos do Recôncavo, junto aos enormes navios suecos nas pontes de Ilhéus. O povo de

Iemanjá tem muito que contar”. Adiante, veio Capitães de Areia, peripécias de um bando de meninos de rua perambulando perigosamente pela capital baiana, cidade “negra e religiosa”, onde se projetava a figura da ialorixá Aninha, mãe-de-santo do Axé do Opô Afonjá. Nesses três romances, escritos em meados da década de 1930, Jorge lida com a questão sócio-racial, com ênfase na mestiçagem e no candomblé. Mas as relações dos comunistas baianos com o Candomblé não se limitaram aos planos estético e teórico. Ganharam, também, o campo da prática. Como nos exemplos de Édison e Áydano. Jornalista, Édison pautou para o jornal Estado da Bahia, em 1936, uma série de reportagens sérias sobre o candomblé, fraturando o etnocentrismo da imprensa baiana. Sobre o jovem intelectual e militante comunista Áydano do Couto Ferraz (futuro editor de A Voz Operária, órgão central do Partido Comunista Brasileiro), que, nessa época, escreveu um estudo sobre os negros malês, deixemos a palavra com o Jorge Amado de Bahia de Todos os Santos: “Recordo Áydano do Couto Ferraz rapazola na Península de Itapa-gipe, na Cidade da Bahia, escrevendo poemas sobre o mar... Ao lado de Arthur Ramos e Édison Carneiro, interessou-se pelo estudo dos problemas da contribuição africana à cultura brasileira, freqüentou os candomblés, as rodas de capoeira, os mercados e feiras. Desde moço possuiu senso de responsabilidade e assumiu os postos difíceis... Hoje pululam os ‘africano-logistas’, cada qual mais entendido em candomblé, todos buscando tirar proveito, brilhar em festivais. Nos tempos de Ramos, Édison e Áydano, a coisa era diferente. Significava lutar pela sobrevivência dos bens da cultura africana, pela liberdade de cultos e pela liberdade em geral. O que Áydano cumpriu, de forma exemplar.” Édison e Áydano, ambos militantes do PCB, promoveram a realização, na Cidade da Bahia, em janeiro de 1937, do II Congresso Afro-Brasileiro, que contou com a participação das mais altas personalidades do candomblé da Bahia, a colaboração de estudiosos brasileiros e estrangeiros (de Manoel Diegues Júnior a Melville Herskovits) e o apoio do governador Juracy Magalhães. Enfim, intelectuais, artistas, cientistas sociais, candomblezeiros, capoeiristas e sambistas marcaram presença no evento. “Esta ligação imediata com o povo negro... foi a glória maior do Congresso da Bahia”, no dizer do próprio Édison, em seu livro Ursa Maior. E deu um “colorido único” ao encontro, realizado no Instituto Geográfico e Histórico da Bahia, que Theodoro Sampaio, “o grande indianista negro da Bahia”, franqueara às reuniões. O Congresso ficou como um marco na história social de Salvador, no caminho da afirmação vitoriosa da gente negromestiça na vida baiana. Além disso, o encontro avançou em sentido prático, ao propor a criação de uma entidade que congregasse os terreiros baianos, fazendo surgir a União de Seitas Afro-Brasileiras da Bahia. Assim como os comunistas baianos do PCB se empenharam em fortalecer e valorizar social e culturalmente o Candomblé, por meio de produções literárias e jornalísticas, criações plásticas (como as de Rubem Valentim), textos antropológicos e atitudes práticas, também o Candomblé abriu as suas portas e os seus pejis para acolher e dar proteção aos comunistas. Foi uma espécie de contrapartida candomblezeira ao apoio que vinha da esquerda. Os casos de Édison e do deputado comunista Aristeu Nogueira são bons exemplos disso. Perseguido pela ditadura do Estado Novo, Édison ficou escondido no peji de Oxum do Axé do Opô Afonjá, aos cuidados de uma adolescente

que viria a ser uma das grandes ialorixás do Brasil, Senhora. Aristeu, cassado e caçado pelos militares em 1964, acabou fugindo para o terreiro de uma mãe-de-santo, no interior do Estado. Por tudo isso, podemos dizer que aquela juventude comunista da Cidade da Bahia tinha um pé no “marxismo-leninismo” e um pé na vida popular de Salvador e seu Recôncavo. Um pé no Komintern (o órgão central da Internacional Comunista, ao qual os PCs do mundo inteiro tinham de prestar contas) – e um pé no Candomblé. Como se fosse possível misturar Stálin e Quincas Berro d’Água. Por suas fundas preocupações sociais e sua não menos profunda atenção para a cultura negromestiça e a questão racial, é possível afirmar que aqueles jovens descendiam, de certa forma, do velho Manuel Querino – que tanto criou um partido e uma cooperativa de trabalhadores quanto estudou os orixás e nossos costumes negromestiços – mulato baiano transfigurado literariamente por Jorge Amado, sob o nome de Pedro Archanjo, no romance Tenda dos Milagres. Daí que se possa falar de um “comunismo baiano”. Era inevitável. O marxismo e o comunismo marcaram, de forma extensa e intensa, a história política e cultural do Brasil no século XX. Marcaram em profundidade a Cidade da Bahia e seu Recôncavo. E assim, entre o marxismoleninismo de Moscou e a realidade ecológica, social e cultural da Bahia, gerou-se um comunismo com traços algo específicos. É claro que o marxismo é um discurso universalista, pretensamente científico. Mas, ao chegar aqui (como em tantos outros lugares), ele não teve como ficar imune à nossa história genética, social e cultural. De uma parte, havia o parâmetro constrangedor (burocrático-policialesco, inclusive) do movimento comunista internacional. De outro, a vivência imediata do mundo regional, da militância numa determinada cidade, com os seus ritos e os seus ritmos, as suas crenças e as suas práticas. Nessa encruzilhada, o partido e a militância acabaram assumindo alguma “cor local”. Expressa especialmente, no caso, por uma espécie de olhar estéticoantropológico atento para as nossas manifestações culturais mestiças, de extração luso-africana. Importante assinalar, ainda, que esse olhar daquela juventude irá repercutir em artistas e intelectuais das gerações posteriores, que de alguma forma foram vinculados à esquerda. Em Glauber, Tom Zé, Caetano Veloso, Gilberto Gil, José Carlos Capinan e tantos outros. Do cruzamento de nossa produção etnográfica, dos romances de Jorge Amado, das movimentações em torno da criação da Universidade da Bahia, do surgimento do Centro de Estudos Afro-Orientais consolidouse, entre nós, uma perspectiva sócio-antropológica diante da vida baiana. Perspectiva ainda hoje em vigor.

A CAMINHO DA FONTE NOVA O futebol, ou algo de parecido com ele, isto é, um jogo implicando uma relação direta do corpo humano com uma esfera, é uma coisa bem antiga, tendo surgido, sem troca de informações entre as comunidades envolvidas, em diversos tempos e lugares do mundo. Estudiosos do assunto não se

cansam de fornecer exemplos das diversas invenções históricas de formas aparentadas com o esporte que hoje praticamos, como a que ocorreu na China, durante a dinastia Han (206 a.C.-220 d.C.). Mas foram os ingleses que codificaram formalmente o jogo, na década de 1870, distinguindo-o do rúgbi, que triunfaria nos EUA. Algum tempo depois, em 1894, a bola e os demais equipamentos futebolísticos chegaram ao Brasil. Mais precisamente, a São Paulo, trazidos por um brasileiro de origem inglesa, Charles Miller, que voltava de seus estudos em Southampton, na Inglaterra, onde se destacara como centro-avante de uma seleção do condado de Hampshire. A primeira partida de futebol realizada no Brasil aconteceu no dia 14 de abril de 1895. E a novidade, o chamado “esporte bretão”, não demorou tanto assim a chegar em terras baianas. Foi introduzida aqui por José Ferreira Júnior, o Zuza, que, tendo concluído seus estudos na Inglaterra, voltava para assumir um posto na filial local do Bank of London. Corria, ainda, o ano de 1901. E Zuza e seus amigos escolheram o atual Campo da Pólvora para os seus primeiros ensaios de football association. Em Futebol – Uma Paixão Nacional, o historiador carioca Aquino, torcedor fanático do Flamengo, reconta: “Foi o Zuza... pertencente a uma família de classe média alta baiana, quem incentivou ali a prática do futebol. Em 25 de outubro desembarcou do Clyde... Três dias depois juntou amigos e conhecidos para disputar uma partida de futebol no Campo da Pólvora. Logo formaram-se quatro equipes”. Para, em seguida, fornecer uma informação interessante, revelando que foi na Bahia que se realizou a primeira partida internacional de futebol que aconteceu em nosso país: “Dois anos depois [da chegada de Zuza], vários desses jovens jogadores enfrentaram marinheiros norteamericanos norte-americanos, tripulantes de uma embarcação ancorada no porto de Salvador. Foi a primeira peleja internacional disputada no Brasil”. Deixando de matar a nossa curiosidade, Aquino não informa qual foi o resultado do jogo. Na Bahia, a trajetória do novo esporte não destoou do figurino nacional. Como em todo o país, o futebol foi por aqui, de início, uma prática esportiva de elite. O jogo era praticamente falado em inglês, com o juiz sendo chamado referee; o atacante, forward; e a partida, claro, era match. Só o tempo se encarregaria de abrasileirar os termos e mesmo de produzir uma terminologia futebolística local (hoje praticamente extinta, já que nossos garotos copiam direitinho o vocabulário dos locutores e comentaristas esportivos da Rede Globo, gíria do eixo Rio-São Paulo), com o emprego de expressões como nó, banheira, meia-lua, nó de carroceiro, são-joão, bicuda, banho de cuia. Mas, enfim, que a elite ficasse com os seus teams. Porque logo o futebol se popularizou, em babas e mais babas por toda a cidade. O que foi permitido, evidentemente, pela simplicidade das regras (dezessete, apenas) do novo esporte – e pelo fato de que o seu único elemento indispensável, a bola, podia ser feita de quase qualquer coisa: de pano, de bucho, de papel amarrado com barbante, de bexiga de boi, de uma laranja ou mesmo com uma meia feminina recheada de folhas de jornal. Voltaremos, adiante, a esse aspecto sócio-racial de nossa história futebolística. Os jogos no Campo da Pólvora não demoraram a ser proibidos pelas autoridades municipais. Passaram a ser realizados, então, no Rio Vermelho, em local onde aconteciam corridas de cavalos,

isto é, no derby ou hipódromo da Lucaia. Em 1907, conforme noticia o jornal Diário de Notícias, a Liga Bahiana de Sports Terrestres autorizou a realização do campeonato de futebol no Derby do Rio Vermelho. O texto da reportagem sobre o jogo entre o São Salvador e o Santos Dumont (realizado em junho daquele ano), reproduzida no livro Perfis Urbanos da Bahia – os Bondes, a Demolição da Sé, o Futebol e os Gallegos, de Geraldo da Costa Leal, dá uma boa idéia de como era elitizada a competição esportiva de nossos teams (só mais tarde é que eles virariam times), ao sublinhar a “grande concorrência de cavalheiros e senhoritas” ao espetáculo. Estávamos na época em que as torcidas sugeriam, como disse Nelson Rodrigues, buquês de flores. Dos nossos primeiros times – como o Bahiano de Tênis, o Santos Dumont e o São Salvador – um, ainda hoje, permanece, dando humilhações e glórias ao futebol baiano: o Sport Club Vitória. Graças ao lugar onde foi fundado (uma mansão no Corredor da Vitória, com leões de pedra na entrada) e ao do bairro onde comprou a sua sede, em 1905, o Vitória ganhou o seu nome e o seu epíteto, Leão da Barra. Adiante, novos teams foram se formando, como o Sport Club Ypiranga, “o mais querido”, e o Botafogo Sport Club, ambos menos elitistas, ambos do Rio Vermelho. Times que marcariam a história de nosso futebol, com craques e títulos, só foram se formar bem mais tarde, a exemplo do Esporte Clube Bahia, dito “o tricolor de aço”, que é de janeiro de 1931. Ou do Galícia Esporte Clube, “demolidor de campeões”, criado em 1934 pela colônia espanhola (embora o torcedor mais ilustre de sua história não tenha sido um galego, mas um baiano de Juazeiro, do Vale do São Francisco, que revolucionou para sempre a música popular brasileira: João Gilberto). Para não falar de times cujos nomes já não existem para os torcedores mais jovens de hoje, como o Guarany (do Barbalho), que chegou a ser campeão baiano em 1946, o São Cristóvão ou o Leônico, o “leão grená”, campeão em 1966, com Biguá, Gagé e Armandinho. A prática do futebol no derby do Rio Vermelho durou cerca de quinze anos. Ao longo desse tempo, o futebol não só se firmou em nosso meio, como se tornou o mais popular de nossos esportes, em todas as classes sociais, assim como aconteceu em todo o país. Não tinha cabimento, portanto, que continuasse a ser praticado em local emprestado, feito para patas, crinas e galopes. Era lógico, natural mesmo, que ganhasse o seu próprio espaço, ainda mais que os teams, como foi dito, eram coisa da juventude das classes privilegiadas, de mocinhos bem nascidos, de jovens universitários que, quando faziam falta num adversário, diziam sorry. E foi assim que surgiu o Campo da Graça, local construído especificamente para as disputas oficiais de jogos de futebol. Geraldo da Costa Leal narra a sua inauguração solene: “No dia 15 de novembro, na Graça, deu-se a grande festa do esporte bretão, não mais no ground, derby, prado ou hipódromo, e sim no campo construído naquele local, na esquina da Rua Catarina Paraguaçu com a Avenida Euclides da Cunha e foi um dia de confraternização baiana. Desde cedo os bondes dos ramais da Graça circularam nos dois sentidos, descendo pelo Bom Gosto do Canela, atravessando na frente do Campo da Graça, indo sair no Largo da Vitória, enquanto outra linha fazia o mesmo trajeto em sentido contrário”. Ainda segundo Costa Leal, “as arquibancadas foram se enchendo de senhorinhas”. O hasteamento da bandeira se deu na presença do governador J. J. Seabra, seguindo-se o desfile das agremiações, com as suas bandeiras: Bahiano de Tênis, Vitória, Ypiranga, Botafogo, Santa Cruz, Yankee, Associação

Atlética, Internacional e Fluminense. Aspecto interessante (e sociologicamente revelador): “Os torcedores, como nas regatas... entravam com seus carros com as capotas arriadas e com todos os familiares em número certo, postavam-se em frente às arquibancadas, na sombra, e dali tinham o prazer de assistir às grandes disputas sentados nos seus automóveis.” Os teams, para a elite, da classe média alta para cima; os babas, para a ralé, para as classes média e baixa, para os pobres, pretos e mestiços. Aqui, como em todo o país. Em Os Subterrâneos do Futebol, João Saldanha arrolou (grifos meus): “No Rio de Janeiro, Fluminense, Botafogo e Flamengo não admitiam de forma alguma que negro vestisse sua camisa. (...). Em São Paulo, o Palmeiras resistia. O Paulistano, clube do Jardim Paulista, preferiu fechar sua seção de futebol a ter de aceitar preto em seu time. No Rio Grande do Sul, o Grêmio Porto-Alegrense também era intransigente. No Paraná, o Atlético e o Coritiba não aceitavam os negros. Em Minas, Atlético e América; na Bahia, o Bahiano de Tênis, que procedeu como o Paulistano: fechava mas não transigia. Em Pernambuco, o Náutico; no Ceará, o Maguari; no Pará, o Remo, e assim por diante: em cada Estado da Federação havia clubes aristocráticos que não deixava os pretos jogarem.” Mas a conquista popular dos times e campos de futebol não demorou. Nesse processo, podemos destacar, ao menos, três marcos: o Bangu (no Rio de Janeiro), o Ypiranga (na Bahia) e Arthur Friedenreich, mulato de olhos verdes, em São Paulo. No caso do Bangu, time de uma fábrica do Rio, os operários foram pouco a pouco tomando o lugar dos mestres, engenheiros e técnicos ingleses – e a formação da equipe foi mudando de cor, com a presença de mestiços brasileiros. Na mesma época, o grande craque do Ypiranga (na verdade, do futebol baiano) era o preto Popó, capoeirista do Rio Vermelho, que fazia o que queria com a bola. Sobre Friedenreich, filho de alemão com mulata brasileira, Mario Filho (O Negro no Futebol Brasileiro) escreve: “Um mulato... se tornaria o primeiro ídolo do futebol brasileiro. Não porque, como muita gente pensa, tivesse marcado o gol da vitória do Sul-Americano em 1919. A popularidade de Friedenreich se devia, talvez, mais ao fato de ele ser mulato... O chute de Friedenreich abriu o caminho para a democratização do futebol brasileiro” – involuntariamente, aliás, já que o mulato não gostava de ser mulato: queria ser branco. Mas a grande virada veio mesmo em 1923, com o Vasco da Gama, quando comerciantes portugueses colocaram, na primeira divisão do campeonato carioca, um time de pretos e mulatos, selecionados por sua intimidade com a bola – e o time ganhou o campeonato. Na Bahia, apesar do caso exemplar do Ypiranga, as coisas não mudaram de vez. Ainda na década de 1930, pretos não jogavam no Bahia nem no Vitória. Veja-se o caso do mencionado Popó, a partir do depoimento do jogador Rubem Bahia, publicado no livro Bora Bahêeea! – A História do Bahia por Quem a Viveu, de Bob Fernandes. Popó era a estrela do futebol da Bahia. Jogou na seleção baiana – numa partida em que esta derrotou o Fluminense do Rio por 5 a 1, por sinal, marcou todos os cinco gols baianos. Bem, Popó integrava a equipe do Ipiranga, mas, segundo Rubem, “era doido pra jogar no Bahia”. E por que não jogava? – pergunta Bob. “Porque não tinha lugar para ele, embora fosse um grande craque”. Não havia lugar para ele nem no Bahia nem no Vitória. E por que não tinha lugar? Simples: porque ele era preto. Negromestiços, naquela época, não podiam vestir as camisas daqueles times. “Preto, preto, não tinha nenhum”, informa Rubem. E Popó continuou no Ypiranga.

O Ypiranga era então o melhor e o mais popular dos times da Cidade da Bahia. O time de massas das décadas de 1930 e 1940. O Bahia praticamente não tinha torcida. Era uma moquequinha em meio à multidão de torcedores canarinhos (as cores do Ypiranga eram o amarelo e o preto), entre os quais figurava, de resto, o romancista Jorge Amado. Fala Rubem Bahia: “O Bahia, quando começou, entrava no campo debaixo de vaia... Porque o Ypiranga era o time popular. Entrávamos em campo debaixo de vaia. E saíamos debaixo de vaia. Era assim. O Bahia foi crescendo com os campeonatos que foi conquistando”. E aí aconteceu um fenômeno comum: a migração geracional de torcedores. A garotada que ia nascendo ia, também, vestindo a camisa do clube vencedor. Para dar um exemplo, José Veloso e José Gil eram torcedores do Ypiranga. Já seus filhos, Caetano Veloso e Gilberto Gil, se tornaram torcedores do Bahia. Na segunda metade da década de 1950, o Bahia é o time das massas. E com um plantel de jogadores negromestiços, completamente diferente, em sua fisionomia social e racial, daquele que entrou em campo, pela primeira vez, em 1931. O que tínhamos, em 1931, era um time de jovens “bem nascidos”, brancos, universitários, estudantes de medicina, filhos da elite local. Nos anos cinqüentas, a extração social e a cor dos jogadores é outra. Bem outra. Quem ginga, faz a bola rolar e balança as redes adversárias é uma gente mestiça, mulata, de origem humilde. Como o pretinho Biriba, por exemplo, o veloz e endiabrado ponta-esquerda do time que ganhou a primeira Taça Brasil, em jogos decisivos contra o Santos de Pelé e Zito. Biriba era menino das antigas ruas de Itapoã, filho de pai pescador, daqueles que jogavam a rede no mar e inspiraram as canções praieiras de nosso velho e querido Dorival Caymmi. O Bahia nos deu coisas inesquecíveis. Antes de mais nada, no plano musical. É um caso raro de time que tem dois hinos. Um “erudito” e um “popular”, ambos muito bonitos – especialmente, o “erudito”, gravado já por Caetano Veloso e Gilberto Gil, quando, confinados na Bahia pela ditadura militar, resolveram se despedir do povo baiano, antes de tomar o rumo do exílio londrino, cantando o hino tricolor. Este hino, composto pelo jornalista Adroaldo Ribeiro Costa, nos diz: Somos a turma tricolor Somos a voz do campeão Somos do povo um clamor Ninguém nos vence em vibração Vamos avante esquadrão Vamos serás o vencedor Vamos conquista mais um tento Bahia! Bahia! Bahia! Ouve esta voz que é o teu alento Bahia! Bahia! Bahia! Mais um mais um Bahia Mais um mais um título de glória Mais um mais um Bahia É assim que se resume a tua história

Em matéria de títulos, por sinal, o Bahia não ficou a desejar. Foi o primeiro time a se sagrar campeão brasileiro, empalmando a Taça Brasil de 1959, jogo final no Maracanã, contra o Santos. Era o time de Nadinho, Henrique, Vicente, Florisvaldo, Mário, Marito, Alencar, Leo e Biriba. Na primeira partida, na Vila Belmiro, o Bahia aplicou 3x2 no Santos. No jogo de volta, na Fonte Nova, o Santos devolveu: 2x0. Gols de Pelé e Pepe. Veio, então, a partida decisiva. O time dos Santos com campeões mundiais. O treinador do Bahia, Geninho, liberou a moçada. O Bahia já era, pelo menos, vice-campeão brasileiro. Estavam todos satisfeitos. Logo, nenhuma preocupação com o jogo... A rapaziada se soltou. Caiu na gandaia. Foi para as ruas do Rio. Para a farra. E, no dia seguinte, entrou em campo despreocupada, mais para um passeio que para uma partida decisiva. O Santos abriu o placar. Vicente empatou. E aí o Bahia começou, mesmo, a passear. A tocar bola. A botar o Santos na roda. Leo desempatou. O Santos não pegava na bola. E Alencar fez o terceiro. 3x1. Bahia campeão. Trazendo para cá o troféu, a primeira Taça Brasil, ofertada ao time pelo então presidente da República, Juscelino Kubitschek. Vieram, ainda, outros títulos. O próprio bicampeonato brasileiro. Conquistas que, não raro, contaram com auxílio extra-astral. Com o axé do candomblé. Bob Fernandes, falando da torcida “musical, colorida, mística” do assim chamado esquadrão-deaço: “Torcida que vai ao pai ou mãe-de-santo, ao padre, ao pastor, ao que preciso for, para empurrar o time. Torcida negra, branca, mestiça, de um clube que só tinha brancos – ou assim denominados – no primeiro time, nascido de rapazes da Barra, até ser engolido pela Bahia do Recôncavo. Bahia dos netos, bisnetos, tataranetos, pentanetos dos jejes, nagôs e bantos arrancados de Angola, Congo, Nigéria e Daomé ao longo de 350 anos, arrastados ao Brasil, à Bahia, em navios negreiros.” Naquela época, jogador nenhum era tão evangélico assim. E a macumba corria solta. Gerando, aliás, a célebre frase de João Saldanha: se macumba ganhasse jogo, o campeonato baiano terminava empatado. A essa altura, tempos do Bahia campeão, os jogos já não aconteciam no Campo da Graça, é claro, mas na Fonte Nova. O projeto do novo estádio, cujas obras foram iniciadas em 1943, veio com a assinatura do arquiteto Diógenes Rebouças. E foi um trabalho de engenharia que surpreendeu os baianos. Na descida da Ladeira da Fonte das Pedras, atrás do Colégio Nossa Senhora Auxiliadora, dirigido por Anfrísia Santiago, havia uma colina. Todos pensaram que o novo estádio seria erguido sobre ela. Não foi. As máquinas entraram em ação para escavá-la, desenhando o gramado lá em baixo, já no nível do Dique. As arquibancadas, como prateleiras, foram colocadas de baixo para cima. Mas a obra só foi se completar muitos anos depois, já à entrada da década de 1970, no governo de Luiz Viana Filho, quando reinauguraram o estádio. Com festa e desastre. As pessoas, desconfiadas, diziam que a Fonte Nova não suportaria o peso de mais de cem mil pessoas. A paranóia estava na cabeça de todos. Durante o jogo principal, depois do Bahia derrotar o Flamengo com um gol de Zé Eduardo, quando Grêmio e Vitória disputavam a bola em campo, um refletor pipocou. E alguém gritou: “a Fonte Nova está caindo”. O pânico foi geral. Correria. Gente pulando de cima para baixo. Poeira, pisoteio, confusão e pânico. No meio disso tudo, completamente apavorada, uma militante do MR-8 (Movimento Revolucionário Oito de Outubro) se entregou à polícia. A história foi contada no livro Lamarca, o Capitão da Guerrilha, de Emiliano José e Oldack

Miranda. Representantes da repressão militar voaram para Salvador. E assim acabaram chegando, pelo início da “queda” do MR-8, a Carlos Lamarca, um dos principais líderes da esquerda armada brasileira, fuzilando-o. Mas a Fonte Nova, como todos sabem, não caiu. A bola continuou a rolar. O Bahia chegou ao bicampeonato brasileiro, ao empatar com o Internacional em Porto Alegre, em pleno Beira-Rio, depois de derrotá-lo aqui. O Vitória caprichou, inclusive fazendo estádio próprio. Novos craques não deixaram de surgir. No Bahia e no Vitória, especialmente. De Zé Eduardo a Bobô, de Bebeto a Vampeta e a Dida. E hoje, para falar a verdade, só falta o Ypiranga renascer. Com Y ou com I. Tanto faz. Desde que de amarelo e preto.

ATUALIZAÇÃO HISTÓRICA Compare-se a Bahia caymmiana com o que se passava no Brasil Meridional – em São Paulo, especialmente. Costumo dizer, a propósito, que enquanto o Centro-Sul ia a todo vapor, a Bahia era um barco a vela. Assim é que 1941 é o ano da criação da Companhia Siderúrgica Nacional, mas também o ano em que Caymmi compõe O Mar e A Jangada Voltou Só. O avesso daquela vida baiana – vida estável, ensolarada, carente de disposição metropolitana, desenhando-se entre uma cidade tradicional e uma Itapoã que mal ultrapassava o limiar da economia de subsistência – podia ser encontrado, como disse, numa cidade como São Paulo, reino de urbanitas atirados em levas na poderosa e perigosa maré do progresso. São Paulo vivia então um intenso processo de redefinição das relações humanas e sociais, mapeando com nervosismo elétrico as realidades emergentes. Na visão de Florestan Fernandes, em Mudanças Sociais no Brasil, a cidade experimentava “a desintegração final da ordem social herdada do passado”, ao tempo em que ia ensaiando, fragmentária e vigorosamente, uma nova integração vital, cuja configuração ainda não se oferecia inteira à contemplação. Mas estamos falando aqui, repito, de uma realidade baiana cronologicamente precisa, delimitável no tempo. É a realidade da Cidade da Bahia e seu Recôncavo durante as quatro primeiras décadas do século XX. Passada a primeira metade da centúria de novecentos, tudo vai começar a mudar. O panorama será completamente diferente. Sim: a partir da década de 1950, a Bahia irá ingressando – progressiva, mas decisivamente – na dança do capitalismo moderno. Na expansão nordestina do movimento industrial brasileiro. Basicamente, por dois caminhos: a criação de um setor petroleiro em nossa economia e a política de isenção tributária do Governo Federal, via Sudene – às quais se aliam, de resto, nossos primeiros gestos de planejamento econômico estadual. Assim, a Cidade da Bahia e seu Recôncavo se viriam envolvidos num processo de “redefinição espacial” da economia brasileira, como disse um economista – processo destinado a alterar os padrões de produção e

crescimento da região nordestina. Em seu avanço mais definido, a industrialização centro-sulista passou a se ressentir, seriamente, de uma carência básica. Nas palavras de um estudioso, faltava, à matriz energética brasileira, um elemento central: o petróleo. O Estado tomou para si a tarefa de procurá-lo e, posteriormente, produzi-lo. Nos termos em que as coisas estavam desenhadas – isto é, nos quadros do moderno sistema tecnológico do mundo ocidental –, não era possível conceber, sem petróleo, a existência (e a expansão) de uma verdadeira e forte estrutura industrial. Tornava-se necessário, portanto, investir na prospecção e no refino petrolíferos. Naqueles tempos de agudo e animoso nacionalismo econômico, essa questão do petróleo assumiu altíssima importância. E foi aí que triunfou a proposta do monopólio da exploração e produção do petróleo e da criação de uma empresa estatal, que se chamaria Petrobrás, para concretizar tal projeto. A lei, criando a empresa, foi aprovada em outubro de 1953. E logo a Petrobrás começou a pesquisa (quase que de imediato, a exploração) de petróleo na bacia do Recôncavo Baiano, onde sua fonte fora descoberta – Lobato, 1939. Em meados dos anos cinqüentas, tivemos a instalação de uma pequena refinaria no município de Mataripe. E o que aconteceu, a partir daí, é do conhecimento de todos: durante cerca de três décadas, o Recôncavo foi o único produtor brasileiro de petróleo. O que essas atividades petrolíferas produziram, em nosso ambiente, cabe numa palavra: impacto. A mudança foi profunda. Começou ali um novo tempo para a Cidade da Bahia e seu Recôncavo. De uma parte, porque o que havia de mais tradicional na paisagem produtiva do Recôncavo, a indústria do açúcar, que já vinha agonizando há algum tempo, é despachado com um tiro de misericórdia. De outra parte, porque o que se instala, nessa mesma paisagem de engenhos caducos e canaviais sem viço, é algo de radicalmente novo, inusitado, naquela contextura regional: “uma atividade econômica totalmente estranha à matriz técnica e social da economia baiana” (Oliveira). E esse foi o ponto de partida para a grande transformação socioeconômica da Cidade da Bahia e terras circunvizinhas. Nessa travessia, três ou quatro pontos pedem destaque. Ao se implantar no Recôncavo, a Petrobrás significou nada menos do que um volume de investimentos inédito em toda a história econômica da Bahia. Inédita foi, igualmente, a expansão salarial que aí se produziu. Os salários pagos pela empresa eram superiores aos encontráveis no mercado baiano, chegando inclusive a provocar elevações de preços em áreas de concentração petroleira. Além disso, o volume de investimentos e a massa de salários, numa região marcada pela escassez habitacional, resultou no crescimento da indústria da construção civil e, mesmo, numa certa desfiguração arquitetônica de antigos núcleos urbanos do Recôncavo. A propósito, em seu livro Verdade Tropical, Caetano Veloso, testemunha dessas transformações baianas, comentou: “...operário de capacete era uma novidade que, em Santo Amaro (...), aparecera recentemente com a Petrobrás, para a alegria de muitos jovens que, em comparação com a vida que levariam não fosse por isso, sentiam-se ricos com os salários que lhes permitiam renovar as fachadas das casas, o que destruiu, em pouco tempo, grande parte do tesouro arquitetônico do Recôncavo”. Era a investida descaracterizadora, a desfiguração da “unidade visual” de Santo Amaro da Purificação. Por fim, além de afetar as feições urbanísticas das cidades da região, a Petrobrás provocou a

construção de estradas na área petrolífera e o surgimento de pequenas indústrias, embora não ainda uma articulação com outros ramos industriais, coisa que só ocorrerá mais tarde, como veremos, com a formação do parque petroquímico de Camaçari. Analisando os efeitos da instalação desse setor petroleiro na realidade baiana de então, em seu 30 Anos da Indústria, Comércio e Turismo na Bahia – 1966/1996, Noelio Dantaslé Spinola observou: “Sua implantação afetou o mercado de terras, alterou o mercado de trabalho, drenando os trabalhadores qualificados das indústrias e das manufaturas em operação, e estimulou uma atividade intensa de construção civil, abrindo espaço para a constituição de novas empresas empreiteiras, que adiante passaram a ocupar um lugar central na realização de novos investimentos”. O que se vê, portanto, é que a Petrobrás foi, para a Cidade da Bahia e seu Recôncavo, sinônimo de mudança e enriquecimento. Na época, os baianos quiseram mais. Achavam que o monopólio estatal implicava redução da riqueza possível. Em documento oficial, o movimento pelo monopólio fora caracterizado, pela Associação Comercial da Bahia, em termos de “nacionalismo estrábico”. Lamentando essa exclusão do capital estrangeiro, Clemente Mariani, “intelectual orgânico” da burguesia baiana, escrevia: “Infelizmente, a paixão nacionalista ultrapassou as metas visadas pelo Presidente Vargas e resultou no monopólio estatal, apenas se salvando para a Bahia o pequeno royalty de 5% sobre o valor do óleo”. Não era a única reclamação. Resume Antônio Sérgio Guimarães: “...quando a lei 2004 estabelece em 1953 o monopólio estatal, a burguesia mercantil [baiana] passa a concentrar sua ação política na tentativa de ampliar os efeitos multiplicadores da indústria do petróleo em território baiano e para isso reivindica, entre outras medidas, o aumento do valor do royalty pago ao Governo do Estado, o aumento das inversões e dos gastos da Petrobrás na região, a redução regional dos preços da gasolina e outros derivados, a instalação de indústrias petroquímicas, etc.”. De qualquer sorte, embora as reivindicações baianas nunca tenham sido atendidas em sua inteireza, o fato é que a Petrobrás mudou tudo por aqui. Por outro lado, veio a política industrial compensatória do Governo Federal, com a Sudene apostando em incentivos fiscais. O Plano de Metas de Juscelino, concentrado na aceleração do desenvolvimento brasileiro, acentuou nossos desníveis regionais. Os investimentos foram para o Centro-Sul, apesar da construção de Brasília. Foi nessa época que o economista Celso Furtado apresentou a Juscelino as conclusões do GTDN – Grupo de Trabalho para o Desenvolvimento do Nordeste e, em seguida, o estudo Uma Política para o Desenvolvimento do Nordeste. Nesse estudo, Furtado afirma: “O principal problema econômico do Brasil, na atual etapa do seu desenvolvimento, é o da disparidade regional dos ritmos de crescimento. (...). A escassez de divisas, criada pela política de desenvolvimento, e os maciços subsídios aos investimentos industriais, decorrentes da política de controle das importações, favoreceram amplamente a região Centro-Sul, cujas possibilidades de industrialização eram mais imediatas. Parte da renda gerada pelas exportações nordestinas – aquela parte que é despendida nos mercados do Centro-Sul – sofreu sério processo de erosão. Estima-se que, entre 1948 e 1956, houve uma transferência média anual de recursos correspondente a cerca de 24 milhões de dólares, do Nordeste para o Centro-Sul, causada por esses fatores”. A Sudene, Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste, nasceu quando se chegou à

conclusão de que o atraso tecnoeconômico nordestino não seria superado pelo simples combate à seca através do aumento da oferta de água. Foi nesse momento que, na expressão de Celso Furtado, deixou-se de lado o approach hidráulico do problema regional, em favor de uma nova estratégia, de caráter global. No dizer de José Roberto Mendonça de Barros (A Experiência Regional de Planejamento, em Planejamento no Brasil, de Betty Mindlin Lafer), pensava-se agora “num conjunto mais amplo de medidas que assegurassem o desenvolvimento econômico da região como um todo, tornando-a, assim, menos dependente das variações de precipitação pluviométrica”. O Nordeste não poderia viver eternamente à mercê da formação de nuvens mais densas. Necessitava-se aqui, naquela conjuntura, de uma nítida intervenção estatal, objetivando, em última análise, superar o grande desequilíbrio interregional brasileiro, com sua conseqüente disparidade de níveis de renda. O diagnóstico da região apontava para, pelo menos, três tópicos cruciais. Primeiro, a industrialização do Brasil Meridional promovera uma drenagem da renda nordestina. Segundo, a dependência regional da exportação de produtos primários só seria superada pelo incremento de outras atividades (industriais, de preferência). Terceiro, a ação governamental na região não poderia se limitar ao mero assistencialismo e à construção de açudes. O Governo deveria entrar em cena – e entrou. Partiu para providenciar, através do mecanismo de incentivos fiscais, a oferta de capitais necessários à montagem de um setor industrial na região. Foi justamente com essa política sudeniana de captação de recursos que se iniciou, na década de 1960, a industrialização nordestina. Pessoas jurídicas nacionais poderiam abater 50% do imposto de renda devido, caso este montante fosse investido em empreendimentos no Nordeste. Em seguida, o estímulo foi concedido também a empresas estrangeiras sediadas no Brasil. Escreve Francisco de Oliveira: “Esse amplo movimento inverte a situação anterior: de exportador de capitais, o Nordeste passa a importador. Serão os capitais do Centro-Sul e capitais internacionais que afluem à região beneficiados pela dedução do imposto de renda. A rigor, trata-se de uma transferência de recursos públicos para as empresas privadas, que no limite pode chegar a até 75% do investimento total (compreendidos os empréstimos bancários de investimento dos bancos oficiais)”. Em conseqüência, assistiremos a uma modificação na fisionomia industrial nordestina, com as chamadas indústrias tradicionais (a têxtil, por exemplo) recuando para um plano secundário, e as chamadas indústrias dinâmicas, como a metalurgia, caminhando para o proscênio. O que significa que principiou a ocorrer uma centro-sulização ou uma meridionalização, por assim dizer, da economia regional. Em outras palavras, o pattern industrial antes implantado no Brasil Meridional se impôs e passou a estruturar, também, o espaço econômico nordestino. Se, com relação ao petróleo, a situação da Bahia era especialíssima, no campo da Sudene ela foi, no mínimo, privilegiada. A política governamental de financiamento fez do Nordeste um negócio realmente atrativo. As indústrias aqui instaladas, nessa época, apresentavam taxas de rentabilidade maiores do que aquelas que eram alcançadas em seus locais de origem. E a Bahia foi, de 1960 a 1970, o Estado que mais se beneficiou com essa onda de investimentos. De acordo com os dados fornecidos por José Sérgio Gabrielli, a Bahia absorveu mais da metade dos investimentos feitos no Nordeste, ao longo desse período, nas áreas da metalurgia, da mecânica, da borracha e da química.

Na região de Salvador, ocorreu um notável aumento da oferta de emprego nos setores industrial e terciário. Foram criados por aqui cerca de 260 mil empregos, segundo os especialistas na matéria. E é por isso, também, que esses mesmos especialistas falam de uma desruralização, nessa época, daquilo que então se convencionou definir como a Área Metropolitana de Salvador. A região deixa para trás, arquivada, a sua secular disposição agrícola. Resumindo, a expansão do capitalismo brasileiro para a região nordestina engendrou uma nova realidade baiana. A Petrobrás, a BR-324 (estrada Rio-Bahia), a construção da usina hidrelétrica de Paulo Afonso e a Sudene foram as peças fundamentais dessa transformação. A Chesf, Companhia Hidroelétrica do São Francisco, representou para nós um salto energético. De 1956 a 1962, a produção de energia elétrica para o Nordeste quase chegou a quadruplicar – e a Bahia absorvia parte considerável do que Paulo Afonso produzia. Com relação à BR-324, valem duas observações. Sua construção se deveu, sobretudo, à pressão de grupos industriais centro-sulistas que buscavam intensificar a integração nacional, com o fito de ampliar o circuito mercadológico de seus produtos. A outra observação é, na verdade, um lamento. Infelizmente, o Brasil tem avançado de forma estabanada, jogando fora coisas que, a certa altura, julga dessuetas. Assim, em vez de somar rodovias e ferrovias, passamos simplesmente a desprezar os trens, relegando as vias férreas ao abandono – e, claro, à destruição. Mas vamos adiante. “Salvador começou a sofrer sua revolução industrial [grifo meu] com a descoberta de petróleo em seu hinterland, durante a década de 1950, que levou à construção da refinaria Landulfo Alves; na década seguinte, os incentivos à industrialização do Nordeste, administrados pela Sudene, favoreceram inicialmente o Recife, que domina o mercado nordestino, mas, com a construção da rodovia Rio-Bahia, Salvador passou a receber a maior parte das inversões, acelerando seu crescimento industrial”, descreve sinteticamente Paul Singer, em A Economia Urbana de um Ponto de Vista Estrutural: o Caso de Salvador, estudo incluído na coletânea Bahia de Todos os Pobres. Ressalte-se então que, tanto no caso do petróleo quanto no da providência industrializante, o que vemos, no comando das transformações, é o poder estatal. Numa ponta, a Petrobrás. Em outra, a Sudene – capitais forasteiros atraídos por um programa de facilidades fiscais. Assim, a modernização regional foi patrocinada pelo Estado. Falando especificamente sobre o caso baiano, Dantaslé Spinola observa: “A expansão industrial iniciada na década de 1950 está claramente ligada ao setor público, tanto pela composição das compras em que se apoiou, como pelas diversas modalidades de apoio que recebeu, desde isenção tributária a financiamento preferencial e a trabalhos de apoio, em planejamento setorial e em apoio tecnológico”. Em síntese, aquele foi, para a economia baiana, um decênio que se desenrolou sob o signo dos investimentos públicos. Não só em decorrência de programas e ações desenvolvidos no plano federal. Em termos regionais, o ambiente político e as administrações estaduais foram mais do que favoráveis à industrialização. Já na década de 1940, tínhamos o Plano de Ação Econômica do governador Octávio Mangabeira. A virada de Mangabeira foi, de resto, corretamente situada por Antônio Sérgio. O

governador conseguiu transformar “a forte reivindicação autonomista, federalista e liberal dos anos 30, que contrapunha ao desenvolvimento industrial a legitimidade econômica e moral da vocação agrícola da Bahia, em um discurso que, no mesmo estilo e retórica, baseando-se nos conquistados direitos de uma constituição federalista, defendia as garantias para que também a burguesia baiana conseguisse atingir o estágio industrial”. A postura de Mangabeira, note-se, é anterior ao surgimento da Petrobrás e da Sudene. E a coisa não ficou aí. Regis Pacheco, cujo governo foi classificado como “um grande fracasso políticoadministrativo”, via na industrialização, como um sudeniano avant la lettre, o caminho para o Nordeste superar sua dependência das chuvas. Antônio Balbino, apostando nas idéias de Rômulo de Almeida, criou a CPE, Comissão de Planejamento Econômico. E Juracy Magalhães, retornando ao governo do Estado depois de uma passagem pela presidência da Petrobrás, apresentou o seu Plandeb, Plano de Desenvolvimento da Bahia. Também os empresários, é claro, embarcaram na canoa industrial. É o que lemos em escritos de Clemente Mariani, a personalidade mais influente da burguesia baiana, nesse período. No Relatório de 1951 do Banco da Bahia, Mariani afirma: “Se quiser guardar a sua posição econômica e melhorá-la, a Bahia terá de reivindicar um tratamento equitativo na distribuição dos recursos da União e dos favores cuja distribuição compete a órgãos do Governo Federal, sobretudo no que se refere ao aproveitamento de suas divisas, à participação no imposto sobre combustíveis e à regularização dos seus meios de transporte. Mas o que lhe importa, sobretudo, é preparar-se para a expansão industrial, que enfim se torna possível”. Nessa época, a burguesia baiana divisa um tripé sobre o qual se poderia articular o desenvolvimento industrial: a política do petróleo, o aproveitamento do gás de Aratu e o investimento na energia hidrelétrica de Paulo Afonso. Em seu “Relatório” de 1953, Mariani já descortina a iminência da deflagração de “um poderoso surto industrial” na Bahia. E a Associação Comercial, nas palavras de Antônio Sérgio, vai pressionar o Governo “no sentido de se promover, com rapidez, um surto de desenvolvimento industrial no Estado, lastreado na exploração do petróleo”. Tempos mais tarde, depois da Petrobrás e da Sudene, vem a eleição de Jânio Quadros – e tudo passa a parecer possível. Jânio não apenas se abre para o atendimento das reivindicações baianas, como leva baianos para postos estratégicos da administração. Clemente Mariani, por exemplo, vai para o Ministério da Fazenda. E outros baianos ocupam cargos no comando do Conselho Nacional de Petróleo e na direção da Petrobrás. Mesmo com a renúncia do presidente, baianos permanecem em posições importantes no Governo Federal, seja à frente de ministérios como os de Minas e Energia e da Indústria e Comércio, seja na presidência da Petrobrás. Mas agora já estamos nos tempos tumultuados de João Goulart, quando o cenário nacional se polariza, marchando para a radicalização. Em verdade, desde o início da década de 1960, a chamada República Populista está em crise. Muitos economistas asseveram que, àquela altura, o modelo de “substituição de importações” já tinha esgotado, em grande parte, as suas potencialidades. No plano do sistema político, o Brasil se via como que engessado, numa situação que já foi caracterizada nos termos de uma “paralisia de decisões”. Em 1963, um lúcido San Tiago Dantas afirmava que o país não estava “nem se preparando

para uma expansão capitalista, nem para uma socialização, mas... simplesmente deixando-se ir ao impulso de uma corrente descendente”, que poderia “ancorá-lo numa estagnação a longo prazo ou precipitá-lo na desordem social”. A Bahia reproduz, em seu âmbito interno, a circunstância nacional. Nossas expressões políticas se distribuem, esquematicamente, por três campos. Num extremo, temos as chamadas “forças progressistas e populares”, que agrupam de liberais de centro-esquerda a militantes comunistas. É a frente nacional-populista, bradando a favor da reforma agrária, da estatização e da redistribuição de renda – e contra o capital estrangeiro. Em outro extremo, movem-se aqueles que conspiram contra o regime democrático e vêem, na opção ditatorial, a perspectiva de bloquear o reformismo populista e tocar o barco do desenvolvimento capitalista, projetando-o num patamar francamente multinacionalizado. Entre um extremo e outro ficam os que, como o então governador Lomanto Júnior, se manifestam pela democracia, mas enfatizando os seus vínculos com a burguesia e a sua distância das teses e projetos reformistas. Todos conhecem o desfecho desse processo. Entre os meses de março e abril de 1964, uma intervenção militar, previsível e prevista, encurrala o Governo constitucionalmente estabelecido, depondo, sem encontrar qualquer resistência mais significativa, o presidente Goulart. Sai de cena, então, o bloco nacional-populista. Desintegra-se, a bem da verdade. E começam os tempos da ditadura militar. São outras, agora, as regras do jogo. Progressivamente, os militares vão controlando tudo. Até que, em dezembro de 1968, com o AI-5, amordaçam a sociedade civil, prendem e exilam dissidentes, esvaziam de tal forma o Poder Legislativo que, nas palavras de Celso Lafer, em O Sistema Político Brasileiro, o Congresso, quando não está fechado, cumpre “funções meramente rituais”. Não é este o lugar para uma análise do movimento militar de 1964 e do regime autoritário que se configurou a partir daí. Mas algumas observações de caráter geral podem providenciar um melhor entendimento das coisas. Em princípio, o movimento se armou em termos de contenção e restauração: contenção do avanço popular, da corrupção, do comunismo – e restauração da democracia. Em seguida, desvelou-se o pano de fundo econômico. Tratava-se de promover, sem maiores entraves, salariais ou sindicais, o projeto de desenvolvimento capitalista multinacional, ou “desenvolvimento associado”. Em O Modelo Político Brasileiro, Fernando Henrique Cardoso escreveu: “Substantivamente, esta intervenção [militar] se deu no momento em que eram postas em prática pelo governo medidas políticas de mobilização de massas, demagógicas ou não... em torno de alguns dos objetivos do regime nacional-populista: reforma agrária, ampliação da sindicalização, redistributivismo, regulamentação do capital estrangeiro, crescente estatização etc. A intervenção militar teve, neste sentido, o caráter de um movimento de contenção. Economicamente parecia claro que o sistema estava progressivamente caminhando para um impasse, com a inflação galopando, a taxa de crescimento econômico decrescendo, dificuldades crescentes com a balança de pagamentos e assim por diante. Por estes motivos o movimento de 64 procurou legitimar-se como restaurador da economia e como um movimento favorável à definição de um padrão de desenvolvimento baseado na livre empresa, contra o estatismo econômico que se atribuía ao governo deposto”.

Façamos, no entanto, dois esclarecimentos. Em primeiro lugar, os militares não governaram sozinhos. Havia uma aliança, digamos assim, entre eles e os tecnocratas. Boris Fausto fala de “um condomínio do poder entre os militares como grupo decisório final mais importante e a burocracia técnica do Estado”. No período em tela, destacaram-se figuras como as de Roberto Campos e Delfim Netto. Em segundo, é um equívoco pensar aqueles militares como meros soldados da burguesia. Ainda Fausto: “O regime não correspondeu a um simples instrumento da classe dominante. Ela foi beneficiária – com vantagens desiguais para os diferentes setores – da política do governo, mas por muitos anos não participou da condução da política econômica, nas mãos dos poderosos ministros da Fazenda e do Planejamento e da burocracia do Estado”. Burocracia técnica, bem entendido – e não a velha burocracia reumática de sempre. Prosseguindo, o regime tecnocrático-militar procurou a sua legitimação na esfera da racionalidade e da eficácia econômicas. Nesse caso – isto é, deixando-se provisoriamente de parte os altos custos sociais, políticos e culturais do autoritarismo –, militares e tecnocratas tiveram êxito. O Paeg (Plano de Ação Econômica do Governo), de Roberto Campos e Bulhões, fez a inflação recuar e o PIB subir. Adiante, entre 1968 e 1969, já sob o comando de Delfim Netto, o crescimento do país começou a adquirir um ritmo notável, a caminho do chamado “milagre brasileiro”. Passava-se do esforço de reconstrução econômica do governo de Castelo Branco à política de expansão acelerada do governo de Costa e Silva. Mas voltemos à Bahia. Apesar das posições assumidas por muitos de seus políticos e empresários, a Bahia não foi um cenário relevante para a articulação golpista que levou os militares ao poder. Sabe-se, por exemplo, que o Banco Econômico foi um dos grupos que financiou o Ipes – Instituto de Pesquisas Sociais –, instrumento do empresariado na luta contra Jango, do qual o general Golbery era “executivo”, fazendo a ponte entre empresários e militares. Sabe-se, também, que Juracy e Antônio Carlos Magalhães conspiraram pela derrubada de Goulart. Mas é o próprio Antônio Carlos quem esclarece, em Política É Paixão, que conspirou “com pessoas de menor calibre: militares baianos, coronéis”. O desempenho baiano foi principalmente parlamentar. A trama da intervenção armada esteve nucleada no Centro-Sul. Basicamente, no Rio de Janeiro, em Minas Gerais e em São Paulo. Mas, seja como tenha sido, o regime militar significou, para o empresariado baiano, um largo passo modernizante. Ou, como disse Antônio Sérgio, “um ponto de ruptura decisivo”. Isto é: consolidou-se, de Castelo Branco a Costa e Silva e à “junta militar”, aquele processo de desenvolvimento capitalista que se insinuara a partir do pós-guerra. A associação de grandes capitais brasileiros e internacionais se firmou de forma espacialmente mais ampla no Brasil. E o empresariado baiano pôde, assim, fortalecer a sua posição. No final da década de 1960, por sinal, grupos baianos, como o Banco Econômico e a Odebrecht, ultrapassaram os limites das operações estaduais. A implantação do CIA – Centro Industrial de Aratu – foi um desdobramento lógico desse processo. Desde 1950 falava-se, entre nós, da necessidade de se construir uma cidade industrial entre Aratu e Camaçari. Agora, mutatis mutandis, o projeto se concretizava. Lomanto Júnior iniciou a obra, que seria inaugurada no governo de seu sucessor, Luiz Viana Filho, o autor de O Negro na

Bahia. O que o Estado fez ali foi limpar o terreno e montar uma estrutura para receber indústrias. A fim de atraí-las, ofereceu todas as facilidades. Vendeu terrenos a preços simbólicos. E forneceu a base indispensável às operações industriais previstas: água, esgotamento sanitário, energia elétrica, conexões viárias, um porto. Com isso, o que ocorreu, da Petrobrás ao CIA, foi um alto grau de concentração espacial do setor industrial baiano. Ficou tudo na Cidade da Bahia e seu Recôncavo. E desse modo se completou a integração da economia baiana no conjunto da economia brasileira. Dantaslé Spinola: “O primeiro impulso industrial na Bahia, no último quarto do século passado [XIX], resultou da aplicação de capital formado numa economia escravista internacionalizada, com pouco contato com o sistema produtivo das demais regiões. Passada a estagnação da primeira metade deste século [XX], a industrialização foi retomada no quadro de uma articulação do mercado nacional, comandada pela concentração da indústria no Sudeste, especialmente em São Paulo. As tentativas de desenvolver regionalmente uma indústria, para o mercado local ou para exportar, passaram a ter que se situar no contexto de grandes tendências de um mercado nacionalmente unificado, com o predomínio de grandes grupos econômicos internacionalmente articulados”. Finda por aqui, portanto, o nosso longo período de vida praticamente insular. Por tudo isso, a Bahia de João Gilberto e de Martha Rocha já não é a Bahia de Jorge Amado e Dorival Caymmi. E como as mudanças vão se tornar cada vez maiores e mais rápidas, a Bahia de Glauber Rocha e de Caetano Veloso já não será a Bahia de João Gilberto e de Martha Rocha. A performance da Petrobrás e o desempenho sudeniano, encontrando respostas nas ações do Governo e de empresários baianos, irão forjar a base necessária para uma arrancada industrial da Bahia. Os primeiros governos militares se responsabilizarão pela continuidade e consolidação da empreitada. Para completar o panorama, Salvador se moderniza, experimentando uma verdadeira reforma urbana. E assim a Bahia realiza, entre 1950 e 1970, o seu projeto de atualização histórica.

AVANT-GARDE NA BAHIA Na segunda metade da década de 1940, está em ação, na Bahia, uma geração fundamentalmente modernizadora, herdeira de Cairu, Agostinho Gomes e Caldeira Brandt. É a geração de Clemente Mariani, Edgard Santos e Rômulo de Almeida. Não por acaso junto esses três nomes. Em sua tese Clemente Mariani – Político e Empresário, Daniela Moreau fornece uma informação preciosa. A discussão sobre o destino a ser dado à energia produzida por Paulo Afonso aproximou Clemente e Rômulo. E os dois, juntamente com Edgard, resolveram criar uma “ong”, uma organização nãogovernamental, voltada para a questão do desenvolvimento e da modernização da Bahia. Mas o meu assunto, nesse tópico, é sobretudo cultural. E diz respeito, principalmente, à ação de Edgard Santos, montando a Universidade da Bahia.

Antes de entrar no tema, porém, sinto-me na obrigação de fazer um registro. Em campo educacional, a Bahia assistiu, na primeira metade do século XX, a dois gestos fundamentais – revolucionários, até. De uma parte, com o desempenho de Anísio Teixeira; de outra, com o de Edgard Santos. Anísio liderou nacionalmente o movimento por uma escola nova. Espírito aceso, veemente e apaixonado, bateu-se vigorosamente em defesa de uma política e de um sistema educacionais abertos, de natureza popular e democrática, convertendo-se assim, segundo as palavras de seu discípulo Darcy Ribeiro, na “voz brasileira dos ideais de educação para a liberdade”. Sua ofensiva em favor da escola pública democrática lhe rendeu ataques ferozes da Igreja e da intelectualidade católica, então comandada por Alceu Amoroso Lima. Na verdade, Anísio conseguiu reunir, contra ele, um espectro que ia de Carlos Lacerda a D. Hélder Câmara. Vale dizer, dos privatistas aos que temiam a existência de uma escola livre, fora do controle da Igreja. Mas Anísio (que dizia confiar na natureza humana... taticamente) não recuou, mantendo sempre viva a chama da luta por uma escola primária popular e séria – e por uma educação ao mesmo tempo crítica e criativa, voltada para o desenvolvimento econômico e social. Em seu livro de memórias, Confissões, o já citado Darcy Ribeiro gravou um retrato sintético do seu mestre, colocando-o ao lado do general Cândido Mariano da Silva Rondon, o militar positivista que criou o Serviço de Proteção aos Índios. Fala Darcy: “Anísio Spínola Teixeira representou para mim o que fora Rondon em outro tempo e dimensão. Baixinho, irrequieto, falador, mais cheio de dúvidas que de certezas, de perguntas que de respostas, Anísio me ensinou a duvidar e a pensar. Ele dizia de si mesmo que não tinha compromisso com suas idéias, o que me escandalizava, tão cheio eu estava de certezas. Custei a compreender que a lealdade que devemos é à busca da verdade, sem nos apegarmos a nenhuma delas”. E ainda: “Anísio trazia o ideal de uma escola pública democrática e, como a pensada por Dewey, destinada a abrir uma porta para que o povo brasileiro ingressasse na civilização moderna, fundada numa cultura letrada”. Mas passemos do ensino primário ao superior. Do projeto de Anísio à criação de nossa Universidade por Edgard Santos. Aquele foi, sem dúvida, um momento muito especial nas vidas do Brasil e da Bahia. Entre o final da década de 1940 e o início da de 1960, num país que velejava por mares democráticos, acelerando a sua marcha urbano-industrial, a Bahia se abriu a um considerável fluxo internacional de informações, que iria desembocar, adiante, em movimentos que, como o Cinema Novo e a Tropicália, alterariam definitivamente o panorama cultural brasileiro. Aconteceu ali, no horizonte até então acanhado da província, a coincidência entre o desejo de fazer, a existência de condições objetivas para o trabalho e a presença de pessoas capazes de tocar o barco. Além disso, a movimentação mobilizava levas geracionais diversas, do reitor Edgard Santos ao estudante Glauber Rocha, que então disparava: “está sendo derrotada na província a própria província”. Derrotar a província na província parece ter sido, de fato, a palavra-de-ordem geral. Este é o tempo em que a Cidade da Bahia é marcada, a fogo e brisa, pelas idéias e pelas ações de Koellreutter, Lina Bo Bardi, Yanka Rudzka, Agostinho da Silva, Martim Gonçalves, Pierre Verger, Diógenes Rebouças e outros. Menos imediata, pela distância geográfica, mas nem por isso menos intensamente, por Jorge Amado, Dorival Caymmi e João Gilberto. E este é também o tempo em que principia a luzir,

em nosso ambiente, a geração de Glauber Rocha e Caetano Veloso. Essa agitação cultural baiana se processou ao longo de um período que, na história política brasileira, já recebeu o rótulo de República Liberal. Estende-se ela da “redemocratização” que se seguiu à derrocada do Estado Novo ao movimento militar de 1964. Mais precisamente, a grande farra cultural se deu entre os governos de Kubitschek e Goulart. E num clima único. O Brasil como que se colocara inteiro sob o signo da ação, exalando autoconfiança por todos os poros. Tudo parecia viável. Brasília, Bossa Nova e Poesia Concreta eram os grandes signos culturais da época. E a Bahia, como vimos, ensaiava a sua modernização. No caso que aqui estamos tratando, o destaque, repito, vai para a figura de Edgard Santos. Em sua luta para recolocar a Bahia no mapa do Brasil, Edgard via a necessidade do poder econômico e do poder cultural convergirem, em função da superação de nosso atraso. No cerne do poder cultural, deveria estar um núcleo de ensino superior, concebido como pólo da informação de ponta. E o que Edgard vai fazer é justamente isso. Criar a Universidade da Bahia, projetando-a como plataforma de lançamento de signos e geradora de turbulências culturais. Edgard foi bem uma expressão do momento modernista da história política e cultural do Brasil, em sua vertente tenentista-getulista. Nacionalismo, modernização tecnológica e progresso cultural foram elementos centrais do seu discurso. Como “humanista”, defendia que as realizações culturais estavam no plano mais elevado da vida de um povo – e a ação econômica era subsidiária. Mas, sem uma conjunção de ambas, sociedade alguma avançaria. A Bahia precisava de uma produção cultural de primeira linha, mas também dos meios que permitissem generalizar o processo de cultura. Daí que, para reafirmar “a existência, a unidade e o poderio espiritual da Bahia perante a grande Pátria”, Edgard pregasse a “união fundamental” da cultura e da economia. Nesse contexto, a Universidade é vista como “geratriz do progresso social”. Nela podem se desenhar tanto uma nova fisionomia estética quanto uma nova mentalidade econômica. No fundo, uma visão algo “messiânica”. Descendente do velho magma humanista (revisto no quadro ideológico forjado em âmbito tenentista-integralista-getulista), e atuando numa conjuntura balizada pelos mitos e pelas metas do nacionalismo-trabalhismo-desenvolvimentismo, Edgard Santos via a si mesmo em meio aos membros de uma elite iluminada, responsável pela “redenção das massas” através da cultura. No seu entender, era preciso sacudir a Bahia, célula máter da nacionalidade. Enriquecê-la, material e espiritualmente. E assim reprojetá-la no horizonte brasileiro. É justamente aqui que se funda a sua compreensão da Universidade como instituição vanguardeira, ponta-de-lança ou usina de líderes da sociedade. Era necessário que uma vida universitária livre e criativa se acoplasse ao desenvolvimento econômico regional. Invenção intelectual e prospecção petrolífera deveriam andar de mãos dadas. Sentindo que vive uma “hora nova”, o reitor mergulha na “aventura”, como ele mesmo disse. Quer comandar a grande batalha na luta para que a Bahia retome, de modo profundo e renovador, “o seu dever de liderança geral na comunidade brasileira”. É por esse caminho que a informação cosmopolita – em especial, a avant-garde européia, escorraçada do Velho Mundo pelo nazifascismo e pelo comunismo – vai chegar à Cidade da Bahia e seu Recôncavo. O reitor estava mesmo empenhado em eletrizar a província. Convidou Koellreutter, homem treinado no serialismo dodecafônico da Áustria, para organizar os Seminários de Música da

Bahia. Criou a primeira Escola de Dança de nível superior no Brasil, trazendo para cá a polonesa Yanka Rudzka, uma das pioneiras da dança moderna no país. Entregou a Escola de Teatro a Martim Gonçalves, que foi encenar Brecht. Comprou a idéia do pensador português Agostinho da Silva, montando o Ceao, Centro de Estudos Afro-Orientais. Etc. Para completar o quadro, o então governador Juracy Magalhães trouxe Lina Bo Bardi, filha do industrial design e da vanguarda arquitetônica internacional, para dirigir o Museu de Arte Moderna da Bahia. Na comparação do jovem Glauber Rocha, a Universidade e o Museu se moviam, culturalmente, como dois “tanques de choque”. Koellreutter trouxe, para uma cidade extraordinariamente musical, em termos populares, o repertório erudito, revisto pela ótica da vanguarda, num verdadeiro exercício de estética sincrônica. Uma injeção de Bach, Schoenberg e Cage na terra do samba-de-roda, das claras e refinadas canções praieiras de Dorival Caymmi e do violão de João Gilberto. Lina Bardi, por sua vez, embora plantada no terreno da arquitetura, do desenho industrial e da arte moderna, era portadora de uma reflexão geral sobre a dimensão da cultura, consciência socioantropológica eivada de utopismo socialista. Koellreutter também era socialista e seu ensinamento apontava para a realização futura de uma cultura internacional num mundo igua-litário. Concentrava-se, todavia, na música. É assim que podemos dizer, dele, que o seu ofício era a linguagem musical. E, de Lina, que lançava um olhar essencialmente antropológico em direção ao ambiente ecossocial, arquitetando intervenções práticas no tecido concreto do mundo. Mas ambos eram, sobretudo, corações de vanguarda. De sua parte, Agostinho da Silva, expelido de Portugal pela ditadura salazarista, criou o Ceao Centro de Espaço Afro-Orientais, organismo que daria um novo rumo aos estudos antropológicos baianos e viria influenciar a formulação da política externa brasileira, em busca de uma terceira via entre os EUA e a URSS. Ele trouxe, para a Universidade baiana, a concepção e a prática de uma política para o Atlântico Sul, envolvendo o conhecimento histórico-cultural das realidades da Bahia e da África e intercâmbio entre as duas margens do oceano. Tratava-se de conhecer a África no Brasil e de fazer o Brasil conhecido na África. Com isso, o mundo cultural popular da Bahia se viu não só no centro das atenções, como se fortaleceu. Para dar um só exemplo, o Ceao organizou logo um curso de iorubá. Assim, o Candomblé jeje-nagô, por tanto tempo perseguido, viu a sua língua sagrada passar a ser ensinada na Universidade. Em suma, no período em tela, a informação nova, informação de “primeiro grau”, foi injetada em doses concentradas na corrente sangüínea da cultura baiana. De Lina e Koellreutter vinha a informação vanguardista por excelência. Mas a produção e a socialização desses signos inovadores, na Bahia, não se resumiram à atuação dessa dupla européia. Num sentido mais amplo, a modernidade estético-intelectual teve, em terras baianas, uma rede de irrigação mais vasta e emaranhada, passando por bares, cursos, clubes de cinema, suplementos jornalísticos, etc., etc. Para melhor entender essa circunstância da história da cultura na Cidade da Bahia e seu Recôncavo, devemos levar em conta dois processos fundamentais – e simultâneos. De uma parte, o entrelaçamento da cultura boêmia e da cultura universitária. A prática acadêmica e o nomadismo criativo da inteligência notívaga não eram vistos, naquela época, como coisas incompatíveis. E essa inexistência de um “cordon sanitaire” entre

o campus e a praça, a escola e a rua, o bar e o gabinete, enriqueceu, como não poderia deixar de ser, o circuito diário dos signos. De outra parte, ocorreu o que costumo definir nos termos de uma dialética entre a informação cosmopolita e a realidade local. Uma dialética entre o cosmopolita e o antropológico. Entre a vanguarda européia e a cultura popular. Daqui, dois outros processos se desdobraram. Primeiro, o repertório cosmopolita, a informação internacional nova, passou a circular em meio à juventude baiana. Segundo, o encontro com a cultura baiana, antropologizando ainda mais a postura vanguardista, incrementou a citada dialética no espírito daquela mesma juventude (lembrem-se de Glauber e Caetano: informação de ponta + cultura popular). Com isso – o entrelaçamento entre cultura boêmia e cultura universitária e a dialética entre o cosmopolita e o antropológico –, a cultura pública se fortaleceu. Experimentou um momento de desprovincianização e de desrecalque. Ganhou riqueza e dinâmica. Objetivamente, na conjuntura em que se preparava para deflagrar o seu trabalho, Lina sustentava sobre dois pilares a sua visão da Bahia como centro cultural. O primeiro era a existência, naquele espaço geo-cultural, de uma cultura popular organizada, densa e inventiva. O segundo estava na realidade de uma instituição universitária distante da melancolia e disposta à aventura criadora. Nesta, Lina detectava uma combinação explosiva. Por um lado, Edgard Santos apostando sem assombro em projetos culturais igualmente desassombrados. Por outro, uma juventude desinquieta, contestadora, criativa. Em síntese, a Bahia contava, para fazer a sua revolução cultural, com a base antropológica, a base institucional e uma população estudantil plena de entusiasmo e ávida de invenção. As grandes realizações da geração que aí se formou vieram para comprovar a justeza de sua análise. Glauber estudou na Escola de Teatro e muito aprendeu com as atividades cineclubísticas coordenadas por Walter da Silveira. Do mesmo modo, Caetano declara, alto e bom som, que se vê como uma conseqüência do movimento articulado por Edgard. Graças a esse movimento, a nova geração baiana incorporou e desenvolveu uma determinada disposição para encarar o mundo dos processos e produtos culturais – uma disposição dada, fundamentalmente, pela abertura mental e pelo gosto para a invenção. Foi uma juventude que mergulhou fundo no universo da cultura popular, assimilou criativamente a modernidade estético-intelectual, as faíscas e fulgurações da avant-garde, para produzir uma obra rica e inovadora, alterando significativamente o jogo dos signos nos campos estéticos em que interveio – e afetando em profundidade as estruturas da sensibilidade brasileira. Tivemos assim, na Bahia dos anos cinqüentas, a conjugação de um processo de atualização urbano-industrial e de um processo de modernização cultural. Respondíamos desse modo, com vigor, ao que ia acontecendo nacionalmente. E há até uma coincidência curiosa, a propósito, no campo do futebol. O time de um Brasil que se fazia culturalmente novo terminou por ganhar, pela primeira vez, uma Copa do Mundo. Foi em 1958, em gramados da Suécia. Ato contínuo, a então Confederação Brasileira de Desportos criou o primeiro campeonato nacional, a chamada Taça Brasil, para ser disputada entre os campeões estaduais. E o representante de uma Bahia que se fazia culturalmente nova, o Esporte Clube Bahia, venceu a competição. O país assistiu, surpreso, à vitória do Bahia de Mário, Marito, Alencar e Biriba sobre o Santos de Pelé. Em pleno Maracanã.

Mas não posso encerrar este tópico sem antes observar que o trabalho da Universidade da Bahia conheceu forte oposição, incluindo-se aqui a esquerda universitária, os mandarins culturais da província, a imprensa e, finalmente, o Governo Federal. Edgard, que fora nomeado por Eurico Dutra, deixou a reitoria do Canela em 1961. Jânio Quadros não quis a sua permanência. Irritado, o então deputado Antônio Carlos Magalhães redigiu um telegrama de protesto ao presidente, que os Correios se negaram a transmitir, mas os jornais da época publicaram: “A mesquinharia de seu gesto dá a medida de seu caráter”. A partir daí, começou a degringolada. Sem a sustentação de Edgard, alvo da imprensa reacionária e do esquerdismo universitário, Martim Gonçalves saiu de cena. Sob uma chuva de insultos – chamada, entre outras coisas, de lésbica, “puta”, comunista e corrupta –, Lina Bardi preferiu voltar para São Paulo, onde projetou o Masp. Por fim, em 1963, Koellreutter passou o posto adiante. A mediocridade provinciana triunfara provisoriamente, expelindo da Bahia o refinamento estético-intelectual. Mas, felizmente, os ensinamentos da avant-garde se impuseram. Ultrapassando as barreiras da ignorância, da inveja e da intriga, aqueles mestres souberam subverter e formar uma nova onda geracional, apontando-lhe o caminho da ousadia e estimulando-a à abertura de espaços rebelionários.

SOB O SIGNO DO SINCRETISMO Ao falar de uma dialética do cosmopolita e do antropológico, na Bahia de meados do século XX, devo lembrar que empreguei esses termos para comentar o que se passou, algumas centúrias antes, nessa mesma região. Mais precisamente, no século XVII, o século barroco de Antonio Vieira e Gregório de Mattos. Vimos que aconteceu aqui, entre 1950 e 1960, um diálogo entre as linguagens internacionais da modernidade e a circunstância baiana. Foi um encontro que não só modificou a nossa realidade cultural como também aquele agrupamento de europeus que atuavam em nosso meio. Eles afetaram a Cidade da Bahia – e a Cidade da Bahia os transformou, levando alguns deles, inclusive, ao ponto extremo e delicado da conversão religiosa. Além disso, esse instante-luz da dialética entre o cosmopolita e o antropológico foi se desdobrar, com brilho, no espírito e na práxis da geração de jovens baianos que aí se formou. Glauber – “o grande ideólogo do Cinema Novo, capaz de se fazer notar até quando estava ausente” (Eduardo Escorel) – por exemplo, absorveu o teatro brechtiano, o método de Stanislavski, o cinema de Eisenstein, a teoria e a prática da nouvelle vague – e partiu para a sua leitura do sertão, como se quisesse passar Canudos na cara de Brasília. Coisa semelhante se deve dizer da Tropicália. Podemos verificar facilmente, no desempenho tropicalista, o embasamento na cultura ocidental moderna; as relações mais específicas com o repertório vanguardista; a abertura mental não só no sentido experimentalista, mas em vista da cultura popular e da cultura de massa. Como sempre faço, vamos distinguir, aqui, entre uma

estratégia e uma tática tropicalistas. Estrategicamente, o movimento se apoiou na “antropofagia” de Oswald de Andrade e na bossa-nova de João Gilberto. Taticamente, alimentou-se de Beatles, “jovem guarda” (uma “tradução” brasileira do rock internacional), vanguarda musical erudita, poesia concreta. E assim chegou a uma estética essencialmente sincrética, em poesia e música. Em termos estritamente musicais, tivemos então uma viagem sonora que incluiu, entre outras coisas, o baião, toques stravinskianos, música aleatória, guitarra elétrica, sprechgesang, berimbau. Num disco como Araçá Azul (Caetano Veloso) – cronologicamente, pós-tropicalista, mas, na verdade, expressão extrema do espírito do movimento –, por exemplo, encontramos uma bela e radical leitura avantgarde do espaço antropológico chamado Recôncavo Baiano. É um disco eletrônico-artesanal, cosmopolita e interétnico. No campo da criação visual, o exemplo supremo dessa dialética está no trabalho de Rubem Valentim, que forma, com Alfredo Volpi e Tarsila do Amaral, o trio maior das artes plásticas brasileiras no século XX. Entre o popular e o erudito, o sagrado e o profano, a vanguarda ocidental e o terreiro de candomblé, Valentim – como um Albers ou um Malié-vitch nagô, um espírito mondrianesco encarnando Oió e Ketu – gerou uma obra luminosa, de geometria sensível e cartesianismo mágico, que bem poderá ser vista em termos de um construtivismo ancestral, se assim podemos dizer. Ocorre que já o nosso século XVII assistira ao encontro entre uma linguagem internacional – o barroco – e a contextura eco-sócio-antro-pológica da Cidade da Bahia e seu Recôncavo. E com frutos originais, se comparados aos da matriz européia. Sim. Se, em matéria de arquitetura, o barroco baiano não primou exatamente pela originalidade, é também verdade que a invenção fez folia nos campos da estética verbal, com a poesia barroco-popular de Gregório de Mattos. Do mesmo modo, o sermonário vieiriano, em sua dimensão antropológica, floresceu na encruzilhada baiana do barroco e do trópico. Para que Gregório de Mattos existisse, foi preciso que antes existissem tupinambás, que portugueses e africanos tivessem feito a travessia atlântica e que a estética barroca (cosmopolita, nucleada nas penínsulas Ibérica e Itálica) chegasse e logo se imiscuísse em nossos trópicos. Por isso mesmo é que Araripe Júnior pôde escrever que Gregório “foi a floração da mais híbrida sociedade que tem havido no mundo”. Linguagem internacional da produção estética seiscentista, o barroco cruzou o mar oceano para se deparar com as realidades e linguagens múltiplas das Américas. No caso brasileiro, foi ela acionada para expressar e interpretar uma situação colonial onde se entrelaçavam códigos culturais europeus (predominantemente portugueses), ameríndios (predominantemente tupinambás) e africanos (predominantemente bantos). Desse encontro do barroco internacional com a realidade brasílica sob domínio lusitano, nasceu o barroco tropical ou barroco do sincretismo. Gregório é o momento mesmo da assimilação da linguagem estética ultramarina e da produção de objetos sígnicos inovadores frente ao padrão europeu. Aparece ao nosso olhar como um arquiteto do verso na medida mesma em que o Aleijadinho foi um poeta da imaginação arquitetônica. E dele, do Boca do Inferno, demônio seiscentista dos signos, podemos saltar para o século XX baiano.

Do Gregório barroco-popular e da parenética barroca de Vieira descendem, na verdade, diversas criações textuais baianas. O campo que eles balizaram pode ser resumido, em termos didáticos, pelo sentido/estrutura da forma; a experimentação estética; a proliferação sígnica; a criação/reflexão operando numa encruzilhada historicamente inédita – ou, como foi dito, entre uma linguagem internacional e a realidade antro-pológica dos trópicos, marcada, desde o seu início, pelo sincretismo genético e pela mestiçagem simbólica. Mas é claro que essa descendência de Gregório-Vieira não se dá em linha reta – e muito menos em bloco. Todos os traços acima referidos não comparecem, necessariamente, na obra de um mesmo autor. Veja-se o caso de Jorge Amado, por exemplo. Não há dúvida de que vemos circular, em seus escritos, o sangue gregoriano. Mas de um Gregório, apenas. Não o do Gregório “sintático”, por assim dizer, mas o do Gregório “semântico”. Isto é, não o do poeta “formalista” que conhecia o corpo e a dança das palavras, mas o do poeta destabocado, “rabelaisiano”, imerso na vida popular, distribuindo palavrões e escancarando, sem nenhum pudor, cenas de sexo explícito. Nesse sentido, Jorge descende de Gregório na medida em que é, como ele mesmo costuma dizer, um cantor das putas e dos vagabundos. No pólo oposto ao de Jorge, vamos encontrar o simbolista Pedro Kilkerry (caso curioso, aliás: a renovação da poesia brasileira, entre fins do século XIX e inícios do século XX, vai ocorrer nas províncias, com o simbolismo – o Rio de Janeiro permanece, na época, impavidamente parnasiano). De um ponto de vista estritamente formal, é possível estabelecer relações entre o rigoroso artesanato lingüístico kilkerriano e o “construtivismo” verbal do período barroco. Assim como Gregório, Kilkerry é um poeta da estrutura, da construção, do trabalho com (e não simplesmente na) linguagem. Mas, ao contrário de Gregório, e como todo simbolista, o mulato Kilkerry busca a luz branca e plena do signo, longe das impurezas e das particularidades antropológicas da cultura em que viveu. É por isso que o mar, em sua poesia, é um mar “mallarmaico”, tão diverso do mar afro-luso-ameríndio que vai se espraiar, anos depois, nas canções de Caymmi. Mas vejamos essas relações onde o parentesco é mais direto – e se dá no âmbito da mencionada dialética do cosmopolita e do antropológico. Do barroco do sincretismo ao neobarroco sincrético, portanto. A uni-los, a consciência da arte como linguagem, a postura lúdica diante dessa mesma linguagem, o tripé distintivo da polissemia, da prática sígnica intratextual e da intertextualidade. É o que vamos encontrar, em graus variáveis, em obras de Gilberto Gil, Caetano Veloso, Glauber Rocha, João Ubaldo Ribeiro. Do barroco ao neobarroco, uma linguagem se exibe em sua “transtemporalidade”, modus operandi sígnico atravessando dinamicamente os séculos. Nossos traços africanos já não são somente os mesmos do período de Vieira e Gregório, graças à poderosa intervenção da cultura nagô-iorubá, na virada do século XVIII para o XIX. Mas continuamos afrolatinos. Assim, podemos dizer que uma cultura essencialmente barroca e as ondas culturais africanas que atravessaram o Atlântico estruturaram, em sentido profundo, a sensibilidade baiana. Ou, dito de outro modo, a sensibilidade baiana é uma sensibilidade afrobarroca. Em 1968, editando a obra gregoriana na mesma época em que Caetano Veloso promovia a algazarra tropicalista, James Amado escreveu: “...o Boca do Inferno está em São Paulo... entra caxingando num teatro repleto e sobe ao palco cercado de câmeras de televisão. Está muito jovem e

permanece poeta popular. Pouco mudou no vestido: a cabeleira postiça de quando desembarcou na Bahia... é agora natural mas lembra o lombo sujo de um carneiro lanzudo. (...). Em vez da viola de cabaça ele empunha uma guitarra elétrica... Seu verso é quase o mesmo... e ele repete em voz desentoada que ainda e sempre é proibido proibir a vida. (...). Do alto do seu roko, a sagrada gameleira em Opô Afonjá, Gregório de Mattos, pequeno orixá baiano, observa, sorridente, suas próprias travessuras de Exu cavalgando o menino Caetano Veloso...”. “Desempenhando na sociedade de consumo papel contestador e jogralesco semelhante ao do seu antepassado seiscentista no gran teatro del mundo barroco, o artista-jogador, o artista-síntese de nossos dias também sobe ao palco dos modernos auditórios de massa, exibindo sua arte ou exibindose a si mesmo, sob a roupagem de poeta, cantor e clown no grande happening de um mundo de angústias e desajustes. E razão não faltou ao editor mais recente de Gregório de Mattos, quando pareceu ver na música jovem e inconformada de Caetano Veloso a ascendência remota mas vivificada do Boca do Inferno, ambos falando a mesma linguagem tropical e desmistificadora, poetas e baianos, jograis de viola ou guitarra, retomando o de hoje o mesmo dado com que o outro, há trezentos anos, apostou”, manifestou-se, a propósito, o expert Affonso Ávila, em O Lúdico e as Projeções do Mundo Barroco. No cinema – no filme Sermões, de Julio Bressane –, aliás, Caetano fez o papel de Gregório, recitando a “tradução” gregoriana, em versos, de um sermão de Antonio Vieira. Antes disso, em sua própria obra, o poeta acrilírico de “Santo Amargo da Putrificação” não só homenageou/atualizou Gregório – musicando e cantando trecho de um texto gregoriano, Triste Bahia, colagem poéticomusical onde Salvador e o Recôncavo giram sonoramente sob a ameaça de “estupendas usuras nos mercados”, para citar outro verso do Boca do Inferno –, como explicitou sua inscrição na linhagem barroca, ao declarar, em Outras Palavras: “...quase joão gil ben muito bem/ mas barroco como eu...”. Voltemos, todavia, ao cinema. Se é possível assinalar um parentesco entre o cinema e a ópera – esta, uma criação da Era Barroca –, com base no fato de ambos serem formas artísticas sintéticas, somando técnicas e linguagens de outras artes, o messiânico Glauber Rocha é, ainda por cima, descendente de Vieira, Euclydes da Cunha e Guimarães Rosa. Diante de Terra em Transe, Decio Pignatari exclamou: é uma ópera barroca! Mais recentemente, em Glauber Rocha, Esse Vulcão, João Carlos Teixeira Gomes considerou indiscutível a “vinculação neobarroca” do cineasta baiano. Teixeira Gomes situa Glauber, corretamente, na contextura maior da cultura baiana. “A impregnação barroca é muito forte na Bahia”, escreve o crítico, acrescentando: “O baiano é um povo barroco por excelência, até na excessiva opulência hedonística do seu carnaval. Em certo sentido, nada pode existir de mais barroco do que um trio elétrico com a sua parafernália visual e eletrônica, composta de cores berrantes, paramentos de reprodução musical levados ao infinito da tecnologia do som, e, ainda, palco dos remelexos de mulatas (e louras) de formas redondas, que espalharam no país a glorificação dos traseiros em rotação”. Para Teixeira Gomes, era inevitável que Glauber, “tão profundamente imerso em suas raízes baianas”, realizasse “uma arte excessiva, múltipla, carregada de elementos visuais”. E que fosse “neobarroco na concepção do mundo, das relações humanas, nas

tensões e no dinamismo dos seus filmes, onde nada segue em linha reta e uma surpresa visual se revela em cada cena ou seqüência, num caminho sinuoso como uma coluna torsa ou como as talhas dos retábulos”. O próprio Glauber Rocha, de resto, foi definitivo a esse respeito: “Sou metafórico e barroco e assumo isso”. Também Viva o Povo Brasileiro, de João Ubaldo Ribeiro, é uma obra barroquista, tipicamente neobarroca: invenção, paródia, neologismo, profusão formal, hibridez. O curioso é que também Ubaldo tematiza as invasões holandesas, assunto de um dos mais célebres sermões de Vieira. Mas não se trata somente de coincidência temática e sim de convergência estética e, ainda, ideológica. Quando Ubaldo, afrobarroco, recria a Guerra do Paraguai, construindo uma espécie de Ilíada Negra, com orixás em lugar de olímpicos e orikis como epítetos homéricos, ostenta traços do sermão de Vieira contra os batavos: nacionalismo místico, messianismo, fantasia de nosso povo como o “povo eleito”, nos termos da tradição judaico-cristã. A propósito, Caetano Veloso deixou, em Verdade Tropical, um importante depoimento acerca da presença de um requintado sebastianismo de extração fernandopessoana, na vida cultural da Bahia, na década de 1950. “Uma versão corajosamente livre (e surpreendentemente nada reacionária) desse mito [sebastianista] tinha se apresentado à nossa geração de baianos através do professor português Agostinho da Silva que... fundara em Salvador o Centro de Estudos Afro-Orientais, sempre mirando um horizonte de superação do estágio em que se encontrava o mundo liderado pelo Ocidente protestante (a filosofia alemã, Marx, Freud, os Estados Unidos, etc.), nunca deixando parecer que se tratava de uma mera nostalgia do catolicismo medieval português. Ao contrário: sendo ele tradutor de Hölderlin e dos gregos, seu amor aos sincretismos afro-lusitanos ou luso-asiáticos (e mesmo afro-asiáticos) não se queria uma negação (ou uma desistência) das conquistas da era norte-européia, e seu ecumenismo retomava paganismos vários prevendo uma necessária superação do cristianismo: a era do Filho dará lugar à era do Espírito Santo [a utopia; a perspectiva do “Quinto Império”], com Marx e tecnologia”. Prosseguindo, Caetano diz: “Algo (ou muito) disso está por trás de toda a obra de Glauber – e, em que pesem as ironias e desconfianças, de todo o tropicalismo”. Não por acaso, ao cantar a contestação estudantil e o Maio de 68 francês na composição É Proibido Proibir, Caetano criou um happening em meio ao qual recitou o poema de Fernando Pessoa para D. Sebastião, estampado em Mensagem - “Que importa o areal e a morte e a desventura/ Se com Deus me guardei?/ É O que eu me sonhei que eterno dura,/ É Esse que regressarei”. Caetano reproduz ainda, em seu livro, a seguinte afirmação/revelação de Glauber: “o sebastianismo é o segredo do Cinema Novo”. Para finalizar, lembro que diversos estudiosos vêem um traço comum conectando o barroco e o neobarroco no plano mais geral da história das idéias. Tanto o artista barroco quanto o neobarroco vivem épocas de crise intelectual. Espiritualmente, o pano de fundo do barroco histórico, período de colonização das Américas e de expansão do mercantilismo, apresenta as figuras de Copérnico e Giordano Bruno, abalando estruturalmente a inteligência européia. Tempo de pulverização de dogmas é também o nosso. Sobre o artista barroco, fala Affonso Ávila: “O artista barroco foi,

histórica e existencialmente, um ser em crise; sua arte registrou, como um grande radar, as oscilações das idéias e as linhas cruzadas das formas de expressão em mudança”. Sobre o artista neobarroco, Severo Sarduy: “...o barroco atual, o neobarroco, reflete estruturalmente a desarmonia, a ruptura da homogeneidade do logos enquanto absoluto”. É uma arte “da dessacralização e da discussão” – “barroco que recusa toda instauração, que metaforiza a ordem discutida, o deus sentenciado, a lei transgredida”. Podemos falar, enfim, de uma espécie de “função laboratorial” da Cidade da Bahia e seu Recôncavo, no espaço mais amplo do diálogo intercultural, em cujo interior se inscreve aquilo que, à falta de melhores expressões, trato nos termos de uma dialética do cosmopolita e do antropológico. Isto é, do encontro mutuamente iluminador e transformador da informação internacional e de uma realidade cultural particular. Foi justamente isso o que se viu entre nós, de forma simultaneamente aguda e abrangente, tanto no século XVII quanto no século XX – os dois séculos principais da história estético-cultural da Bahia.

PÓLO PETROQUÍMICO A empresa de atualização histórica, levada a cabo na Bahia entre as décadas de 1950 e 1960, assentou as bases para o desenvolvimento técnico e econômico do Estado, mas não promoveu uma transformação radical de nosso panorama. Se é verdade que o setor industrial cresceu, é igualmente verdade que a agricultura não chegou a ser destronada. Pelo contrário, a participação da renda agrícola, na renda interna do Estado, aumentou. Passou de 34,31%, em 1958, para 36,26%, em 1969. Nem é por outro motivo que Gabrielli arrisca a afirmação de que o “setor mais dinâmico” da economia baiana, no período em questão, foi, ainda, o ramo agrícola. A importância da Petrobrás, na configuração de uma nova realidade baiana, é indiscutível. Mas não podemos nos esquecer do fato de que essa empresa foi, como dizem os estudiosos, uma espécie de “enclave” em nossa paisagem, apresentando um baixíssimo nível de integração na urdidura econômica estadual. Daí a conclusão feita naquela época pelos técnicos do Banco Interamericano de Desenvolvimento: “Na realidade, a atividade petrolífera se desenvolve de forma quase autárquica e com limitada integração com o resto da economia do Estado”. A própria estrutura industrial baiana, composta de unidades pequenas e defasadas, carente de capitais e de dinamismo, dificultava ao extremo qualquer esforço integracionista. As coisas só mudariam para valer com a implantação de um parque petroquímico, antiga reivindicação da elite baiana. Em 1950, Clemente Mariani já falava da necessidade de se construir uma “cidade industrial” em Aratu. No pensamento de Rômulo de Almeida, por seu turno, o desenvolvimento industrial da Bahia não deveria estar assentado na produção de artigos de consumo para o mercado regional, mas sim na siderurgia e na petroquímica, a fim de competirmos no

mercado nacional. O que se queria, então, era que a indústria petroquímica se desenvolvesse, simultaneamente, em São Paulo (Cubatão) e na Bahia. Falamos, antes, da implantação do Centro Industrial de Aratu. Foi o primeiro grande passo transformador: a instalação de um distrito industrial destinado a ampliar o arco de nossa estrutura produtiva para além do exclusivismo petrolífero. Em breves palavras, o CIA pode ser visto como um ponto de amadurecimento de uma política industrial para o Nordeste, inaugurada pela Sudene. Como a sua implantação data do governo de Luiz Viana Filho, pode-se dizer que a Bahia não participou do processo de “substituição de importações”, tão característico da economia brasileira, pelo menos até meados da década de 1960. “O atraso da Bahia no processo de substituição de importações manifestar-se-ia na pouca diversificação de seu parque industrial e, mais tarde, explicaria as razões da elevada concentração dos programas industriais”, lê-se, a propósito, em A Indústria no Estado da Bahia – Uma Proposta de Política Industrial, volume produzido, em 1983, pela Secretaria da Indústria e Comércio. Mas, além do CIA, havia um outro lance, perfeitamente lógico, e sempre aguardado: o desdobramento do setor petroleiro num parque petroquímico. Afinal, o Estado da Bahia era o principal produtor brasileiro de petróleo e praticamente o único produtor de gás natural. No entanto, durante mais de duas décadas, o projeto da montagem de uma indústria química na Bahia não conheceu senão o adiamento. Ao apagar das luzes da década de 1960, o Brasil contava apenas, nesse campo, com o embrionário Pólo Petroquímico de São Paulo. Mas os anos setentas vão assistir ao avanço da reivindicação baiana. Ela se vê favorecida, em especial, pelo fato do general Ernesto Geisel, aceitando um convite do presidente Médici, ter assumido a presidência da Petrobrás. Com Geisel no comando, a Petrobrás ganhou maior autonomia de vôo, abrindo espaço para a sua participação na indústria petroquímica. Por outro lado, políticos, técnicos e empresários baianos não cessavam de se movimentar. Daí que Marcus Alban Suarez possa escrever, em Petroquímica e Tecnoburocracia – Capítulos do Desenvolvimento Capitalista no Brasil, que o percurso para a constituição do segundo pólo petroquímico brasileiro – o da Bahia – tenha sido “acelerado e ampliado pela atuação coincidente [com a da Petrobrás] de um grupo de tecnoburocratas e empresários [baianos]... liderados por Rômulo Almeida”. Ainda nas palavras de Alban, foi no governo de Luiz Viana Filho que a idéia da indústria petroquímica passou a ser “encampada como um objetivo mais concreto e central”. A luta prosseguiu no primeiro governo de Antônio Carlos Magalhães. Em 1972, criou-se a Copene – Petroquímica do Nordeste, encarregada de conceber o nosso pólo. Em seguida, com Geisel assumindo a presidência da República, os ventos se tornaram decididamente favoráveis aos baianos. Finalmente, em 1978, o Complexo Petroquímico de Camaçari – Copec – entrou em funcionamento. É uma história que vem da década de 1950 à de 1970, portanto. Por que a demora? Simples: não interessava, de modo algum, ao empresariado paulista, a existência de um pólo petroquímico na Bahia. Argumentos técnicos em favor do pólo baiano eram prontamente respondidos com argumentos técnicos em favor da ampliação da capacidade produtiva do pólo paulista. E os paulistas faziam um tremendo lobby, jogando pesado. Segundo Rômulo, só o grupo Capuava teria gasto na

época, em “relações públicas”, cerca de 10 milhões de dólares. “A defesa da expansão do pólo de São Paulo não era, entretanto, exclusiva do grupo Capuava [Soares Sampaio e Geyer]. Ela abrangia uma série de grupos privados, principalmente multinacionais, que detinham uma posição hegemônica em vários produtos intermediários e finais... que desapareceria – como de fato desapareceu – com o pólo da Bahia”, relembra Alban. O governo de Luiz Viana Filho, como disse, foi decisivo para viabilizar a implantação de nosso projeto petroquímico. E Viana Filho experimentou na pele a reação centro-sulista. O relato é de Antônio Carlos Magalhães: “...o Luiz Viana foi quem começou a dar os primeiros grandes passos para a instalação de um pólo petroquímico na Bahia. E foi uma luta para conseguir, pois havia uma grande resistência do empresariado de São Paulo. A pressão contra a instalação do pólo na Bahia era tão grande que não se conseguia, naquela época, nem sequer uma nota favorável nos jornais do Sul. Chegamos a promover no Rio, no Copacabana Palace, uma reunião, presidida pelo Luiz Viana, com representantes da Petrobrás e órgãos do governo, sobre o pólo, e não se conseguiu, no Jornal do Brasil, no noticiário econômico, nem uma nota sobre a reunião”. Ainda sobre esse período, há um importante depoimento de Rômulo de Almeida, publicado no Jornal do Economista (Bahia), dando conta da trama tecida para estabelecer uma indústria petroquímica entre nós. Vale a pena transcrever: “Quando entrou a presidência Geisel na Petrobrás, a coisa melhorou... Luiz Viana era amigo de Geisel, reforçou e conseguiu seu apoio e a Petrobrás fechou a situação. Conseguimos formar um comitê misto, onde a Petrobrás era representada por Leopoldo [Miguez] e [Otto] Perrone e o Estado da Bahia, pelo secretário da Indústria e Comércio e por mim. Enquanto isso, fomos insistindo e conseguindo apoio do Ministério da Indústria e Comércio e do Planejamento. Aí a conspiração entrou no caminho militar, e isso, a meu ver, foi decisivo. Consegui um encontro com o coronel Manso Neto, chefe da assessoria especial de imprensa e relações públicas da presidência da República e, através do Manso, terminei conversando com o pessoal do SNI. Ponderei que o pólo em São Paulo estava em uma zona de alta densidade industrial e que, no caso de haver um problema maior, sabotagens, bombardeios, o país simplesmente parava, porque estava tudo ali naquela serra, em torno de Cubatão e Capuava. A usina Light, a indústria química, a refinaria, e agora o pólo petroquímico. Uma concentração muito vulnerável, em termos de segurança para o país. O certo é que quando Luiz Viana obteve a vinda do Médici à Bahia, já o Médici estava informado que deveria dar um apoio”. Assim, Rômulo expôs, no período de Médici, a tese da vulnerabilidade militar do parque industrial paulista. “A entrada de Geisel na Petrobrás, aliando-se à sua tecnoburocracia, e as articulações de Rômulo, aliando uma estratégia de descentralização industrial através da implantação do segundo pólo na Bahia à ideologia de segurança nacional dos militares, acabou por aliar o projeto dessa tecnoburocracia à cúpula militar e, portanto, ao próprio Estado de então. Ao chegar à Bahia, em maio de 1970, o presidente [Médici] deu efetivamente seu apoio ao pólo da Bahia considerando-o em seu discurso como uma realidade irreversível”, sintetiza Alban. O argumento relativo à segurança nacional fora feito sob medida para os militares, que andavam então obcecados pelo assunto. Àquela altura, boa parte da esquerda concluíra que só a luta armada

poderia desmantelar a ditadura. Era a esquerda radical, “terrorista”, que entrava em cena – ações armadas desencadeadas por agrupamentos como a ALN, Aliança de Libertação Nacional (criada pelo baiano Carlos Marighella, e à qual o filósofo francês Jean-Paul Sartre franqueou as páginas da revista Temps Modernes), a Ação Popular (AP), o MR-8, a VAR-Palmares, a VPR. A partir de 1969, essas ações se multiplicaram. Assaltos a bancos, atentado com um carro-bomba contra o quartelgeneral do II Exército (São Paulo), seqüestro do embaixador dos EUA, etc., compuseram um rosário de desafios chamejantes ao governo. Mas enquanto as bombas explodiam no Centro-Sul, a Cidade da Bahia e seu Recôncavo curtiam dias de relativa – e mesmo grande – tranqüilidade. Aliás, em vez de aprontar por aqui mesmo, militantes baianos se deslocavam para o eixo Rio-São Paulo, com o objetivo de se engajar na luta armada. Foi o que fizeram estudantes secundaristas como Sérgio Furtado, por exemplo, viajando para engrossar as fileiras do MR-8. Naquela época, por sinal, alguns defendiam que não seria vantajoso transformar a Bahia em área de ação armada. É verdade que Carlos Lamarca e sua mulher Iara Iavelberg (professora da USP e militante da Polop, que se suicidou em Salvador, com um tiro no peito, para não ser presa) fizeram o percurso inverso, tomando o rumo da Bahia. Mas aí a contestação armada já estava chegando ao fim (restaria, somente, o foco guerrilheiro do Araguaia) – e os planos de Lamarca passavam bem longe da Bahia de Todos os Santos: montar um núcleo de guerrilha rural num ponto qualquer da fronteira de Goiás com a Bahia. Mas voltemos ao projeto petroquímico. A rede antes mencionada, indo de Geisel ao SNI, não foi suficiente para encerrar a disputa. O lobby paulista continuava em campo, manobrando para adiar a decisão sobre o pólo da Bahia. Tanto é que Antônio Carlos Magalhães, assumindo o governo estadual por escolha de Médici, ainda teve que brigar. Data dessa época, de resto, o seu rompimento com Juracy Magalhães, então vinculado à Petroquímica União, adversária do projeto baiano. Mas, seja como tenha sido, o fato é que, em janeiro de 1972, formou-se uma subsidiária da Petroquisa, a nossa conhecida Copene, encarregada de dar o ponto de partida do processo – isto é, de realizar os estudos técnicos e econômicos requeridos para a implantação do pólo. Adiante, em 1974, o Governo baiano concluiu o “plano diretor” do Copec – Complexo Petroquímico de Camaçari –, que orientou as obras de infra-estrutura necessárias à concretização do projeto. Foi com Geisel e Antônio Carlos, portanto, que o Copec se tornou uma iniciativa sem retorno. Economicamente, o pólo baiano se estruturou aplicando, de forma sistemática, um desenho que se esboçara antes, de modo algo “espontâneo”, no pólo paulista. Foi o chamado modelo tripartite. “Com esse modelo, articulou-se novamente na Bahia uma associação física e acionária entre o capital estatal, o privado nacional e o multinacional, só que, desta feita, com uma hegemonia inconteste do primeiro e de sua tecnobu-rocracia”, comenta Alban. De acordo com a revista Química Industrial, em seu número de julho de 1988, a adoção desse “modelo tripartite” restringiu a participação de algumas empresas européias e norte-ameri-canas no projeto, mas não afastou o empresariado nipônico – “Como a indústria química japonesa, naquela época, procurava se consolidar e não havia preconceitos dos empresários japoneses em se associar a grupos locais e ter participação minoritária, houve um predomínio de investi-mentos nipônicos no Pólo de Camaçari”.

Não podemos nos esquecer de que Geisel assumiu a presidência do país em 1974 e, quatro anos depois, inaugurou o Copec. A política econômica de seu governo, fazendo a ênfase recair nos setores de insumos básicos e de bens de produção, apresentava um acentuado caráter nacionalista e estatizante, procurando fortalecer o capital privado local e colocar a empresa estatal no centro mesmo da cena. Fala o próprio Geisel, em depoimento a Maria Celina d’Araujo e Celso Castro: “Como o país não tinha capitais próprios, como a iniciativa privada era tímida, às vezes egoísta, era preciso usar a poderosa força que o governo tem”. Ainda segundo Geisel, certos empreendimentos de interesse nacional (siderúrgicas, hidrelétricas) deveriam ser realizados pela iniciativa privada brasileira. Mas, aqui e ali, o capital multinacional era indispensável. No caso petroquímico, por exemplo. Daí, o modelo tripartite. Sistematizado na petroquímica, esse modelo foi, posteriormente, generalizado para toda a economia. Nesse sentido, o pólo baiano funcionou como uma espécie de “experiência piloto” da política nacional-estatizante do presidente Geisel. É bem verdade que essa política nacionalista não resistiria por muito tempo, cedendo sob o fogo de muitas e múltiplas pressões. Mas é igualmente certo que o Complexo Petroquímico de Camaçari se fez, teve fundas conseqüências transformadoras no conjunto da vida econômica baiana – e repercutiu fortemente em Salvador. Pode-se, de fato, dizer que o Copec produziu um efeito antidepressivo, naquela conjuntura baiana da década de 1970. Foi graças à sua implantação que a Bahia não sofreu com os chamados “choques do petróleo”, provocados pela Opep. Dantaslé Spinola: “Na primeira metade da década de 1970, a Bahia passou comodamente pelas dificuldades do primeiro choque do petróleo, protegida pelas transferências de recursos que viabilizaram a construção do Complexo Petroquímico de Camaçari, que indiretamente sustentaram a continuidade da atividade na construção civil. Houve uma considerável expansão da demanda na região metropolitana, que passou a absorver maior quantidade de recursos do interior do Estado, ativando também o mercado imobiliário”. Passaríamos, do mesmo modo, pelo segundo “choque” da Opep. Na verdade, a industrialização baiana só começaria a perder o ritmo a partir de 1983. Lembre-se, aliás, que a participação da indústria, no PIB baiano, passou de 13,4% em 1970 para 35,3% em 1980. É claro que o processo baiano estava inscrito no contexto maior do processo brasileiro. Quando Geisel lançou o II Plano Nacional de Desenvolvimento, deu enorme ressalte ao campo energético. Seu governo foi marcado por coisas como o avanço na pesquisa petrolífera, o acordo nuclear BrasilAlemanha, o programa do álcool, a construção de hidrelétricas como Tucuruí e, principalmente, Itaipu. “Um dos programas prioritários que tínhamos era realmente o da energia, que é um setor vital do desenvolvimento”, recorda o próprio Geisel. E a construção do Copec se inscreveu, como disse, nesse projeto geral. Mas teve um efeito diferencial específico, fazendo com que a economia baiana apresentasse, naqueles anos, um desenho completamente distinto do desenho global da economia brasileira. O choque do petróleo em 1973, no rastro da Guerra do Yom Kippur, movida pelos árabes contra Israel, afetou seriamente o Brasil, que importava cerca de 80% do combustível que consumia. Em 1979, quando os países árabes produtores de petróleo voltaram à carga, com um segundo choque, nosso balanço de pagamentos entrou em parafuso e os empréstimos externos escassearam. Delfim

Netto foi obrigado a puxar o freio de mão da economia. E veio a recessão de 1981-1983. O PIB brasileiro caiu 3,1% em 1981. E continuou caindo. Nos três anos em questão, seu declínio médio foi de 1,6%. Mas enquanto o Brasil experimentava a então chamada “estagflação” (estagnação econômica + inflação), a economia baiana – graças ao Pólo, repito – prosseguia crescendo. Entre 1981 e 1983, o PIB estadual apresentou, de acordo com o nosso Centro de Estatística e Informação, um crescimento médio anual da ordem de 3,5%. Em síntese, o Copec sustentou a onda baiana por um decênio. De 1973 a 1983. E é óbvio que o Copec não era um sistema fechado – ou, para usar metáfora mais apropriada, “quimicamente isolado”. Sua implantação significou diversas coisas, direta e indiretamente. Influiu no crescimento das indústrias metal-mecânicas e elétricas. Provocou a ampliação de nosso leque de serviços de apoio à produção. Incrementou a mil a construção civil. Agitou o mercado imobiliário. Dinamizou o comércio – o que conduziu à aparição, em nosso meio, das figuras do supermercado e do shopping center. Engrossou o movimento migratório (de baixa e alta rendas). Deu corpo, de repente, à Pituba (com seu correspondente culinário no disparate do acarajé com salada). Contribuiu para a formação de novos bairros, como o Itaigara e o desarvorado Caminho das Árvores. Etc. Falase agora, aliás, não mais de Cidade da Bahia, mas de um lugar onde ninguém mora - a RMS, Região Metropolitana de Salvador. Em suma, o Copec modificou substancialmente a nossa realidade. Colocou em xeque até mesmo, graças ao desempenho de seus trabalhadores, o velho mito da preguiça baiana. No dizer de um dos seus diretores, o Pólo mudou “qualitativamente” o processo de nossa industrialização. De fato, à entrada dos anos noventas, a Bahia vai aparecer como a sexta economia do país e o Estado mais industrializado do Nordeste. “Quando governei a Bahia pela primeira vez, era um Estado monocultor, que tinha 60% da sua renda baseada em um único produto, o cacau”, declarou certa feita Antônio Carlos Magalhães, para assinalar: “Hoje [a Bahia] é um Estado industrial, e isso se reflete na vida, no dia-a-dia dos baianos. Hoje, o Estado tem um dos maiores pólos petroquímicos do mundo, o de Camaçari”. Dos maiores do mundo e o maior da América do Sul, certamente. Mas o fato é que o Copec viveu os seus grandes dias durante a primeira metade da década de 1980, aproveitando-se da reserva de mercado que então beneficiava a indústria petroquímica. Nessa época, chegou a empregar uma média de 20 mil trabalhadores, pagando salários acima do nível do mercado local. Mas hoje – apesar do seu faturamento anual de US$ 5 bilhões, de uma participação de 12% no PIB baiano e de responder por 25% do ICMS do Estado – as coisas não andam lá muito fáceis. A abertura do mercado, a concorrência de pólos petroquímicos sulistas (e mesmo externos, como o da Venezuela e o de Baía Blanca, na Argentina) e a fraqueza da indústria de transformação local – isto é, de fábricas que transformem a produção do complexo em artigos de consumo direto da população – criaram sérios problemas. Assim, o pólo baiano completou duas décadas de existência, em junho de 1998, oferecendo menos empregos e se ressentindo de uma certa incapacidade competitiva. Sofrendo, enfim, com a passagem da fase de reserva de mercado à nova realidade da “globalização”. Aqui chegando, devemos dizer que o Pólo Petroquímico de Camaçari sempre teve os seus críticos, especialmente nos arraiais da “esquerda”. De um modo genérico, estes encetam os seus

protestos contra a concentração da renda – e disparam discursos alvejando o capital multinacional. Nesse plano, a conversa tem muito de supérflua. Convenhamos que seria muito difícil montar um complexo petroquímico na base do artesanato – ou de uma “vaquinha” feita entre assalariados, devidamente inscritos em alguma “cooperativa”. Esse tipo de postura me leva, quase que de imediato, a certas propostas esquerdistas para a área da saúde, com a sua insistência na descentralização, na ação comunitária e mesmo em práticas medicinais populares. Não é que, em princípio, eu fique contra isso. Mas é que há que investir pesado, também. Afinal, como costuma dizer um conhecido médico brasileiro, não se pode tratar um câncer com chá de erva-doce. Há, finalmente, a crítica ambientalista. Não me refiro aqui, aviso logo, às inocências do “fundamentalismo” verde, mas a coisas mais consistentes. Em questão, os “efeitos colaterais” do Copec. E aqui temos que distinguir entre uma crítica conjuntural e uma crítica permanente. A primeira diz respeito à indiferença ou mesmo ao desprezo de nossa indústria petroquímica, durante anos, pelos problemas ambientais. Tenho para mim que a Bahia ansiou, por tanto tempo, pelo “progresso industrial”, que, quando a industrialização chegou, a sua tecnologia foi recebida de braços excessivamente abertos, sem o menor espírito crítico. Era quase como que se se tratasse de uma bênção divina. E a indústria deixou as coisas correrem soltas. A importação de tecnologia “de ponta” nunca significava cuidado ecológico. Pelo contrário, além do desleixo, havia (e ainda não deixa de haver) o descumprimento da legislação ambiental, com fábricas se aproveitando irresponsavelmente da falta de fiscalização. O caso mais escandaloso de delito ecológico foi protagonizado pela Tibrás, atual Millenium. A empresa, de resto, acabou caindo na mira de Jorge Amado, execrada na base do chumbo grosso, sob a denominação de “Brastânio – Indústria Brasileira de Titânio S. A.”, no romance Tieta do Agreste, publicado em 1977. Como todos sabem, a Tibrás poluiu, ao longo de um tempo considerável, não apenas o nosso ar e o nosso mar, como a nossa água subterrânea. Podia-se ver então a extensa mancha venenosa que a fábrica injetava no azul do mar da Bahia – e há fotos aéreas coloridas documentando o crime. A verdade é que só recentemente, e ainda que de modo algo duvidoso, as empresas do parque petroquímico começaram a desenvolver alguma política para lidar com os seus resíduos sólidos. Ainda assim, nossos empresários resistem. Recentemente, o então presidente Fernando Henrique Cardoso declarou que a reação do empresariado brasileiro, perante a poluição, é “rude” (palavra que, no caso, soa até amável) – e que o assunto tem que ser discutido culturalmente. Está certo. Mas, nossos governantes não tem dado bons exemplos nesse campo. A crítica ecológica permanente – ou “estrutural”, se preferirem – é de base geográfica. Critica-se o local escolhido para o assentamento das unidades que compõem o Copec. O motivo é aquático. Argumentam tecnicamente os ecologistas que o Pólo se implantou, de modo perigoso – e prejudicial para a população baiana, na área da chamada Formação São Sebastião. Essa “formação” integra o Sistema Aqüífero do Recôncavo, que é explorado para abastecer o Pólo e o CIA. Com o Copec situado na zona, a água aí existente conheceu um uso predatório. Mais: essa água – de primeira qualidade, água mineral – foi simplesmente monopolizada por aquele aglomerado de indústrias. O que significa que a população deixou de ter acesso à melhor água da região em que vive.

Trata-se de um problema tópico, em pelo menos dois sentidos. E de um problema difícil, já que o argumento ecológico é sempre de longo alcance, questionando, em última análise, todo um modelo civilizatório. Ele nos convida a changer la vie – e isso é extremamente complicado. O astrônomo Carl Sagan, em seu livro póstumo Bilhões e Bilhões – Reflexões Sobre Vida e Morte na Virada do Milênio, ponderou que muitas das predições de catástrofes ecológicas jamais se realizaram, mas que, ao mesmo tempo, não é nada improvável que a civilização industrial tenha sido uma armadilha que engatilhamos para nós mesmos. É um assunto que preocupa (e muito) cientistas e políticos mais esclarecidos. Evita-se levar a discussão desses temas às últimas conseqüências por uma razão muito simples: pensar o “meio ambiente” é algo que questiona a nossa própria maneira de pensar. É “politicamente dispendioso”, como diz o mesmo Sagan. Provoca alta ansiedade. Mas não podemos fazer de conta de que nada está acontecendo. E já que citei Sagan, passo a ele, novamente, a palavra: “Acredito que temos a obrigação de lutar pela vida na Terra – não apenas por nós mesmos, mas por todos aqueles, humanos e de outras espécies, que vieram antes de nós e a quem devemos favores, e por todos aqueles que, se formos inteligentes, virão depois de nós. Não há nenhuma causa mais urgente, nenhuma tarefa mais apropriada, do que proteger o futuro de nossa espécie. Quase todos os nossos problemas são provocados pelos humanos e podem ser resolvidos pelos humanos. Nenhuma convenção social, nenhum sistema político, nenhuma hipótese econômica, nenhum dogma religioso é mais importante”.

O “FIM” DO RECÔNCAVO A escolha de Camaçari, para o estabelecimento do Pólo Petroquímico, resultou de vários fatores. Estudos preliminares para definir a localização do novo complexo industrial examinaram outras possibilidades de sede – em Mataripe e no litoral de Aratu. Mas Camaçari – expressão tupi que, segundo Theodoro Sampaio, significa “a lágrima do peito, isto é, o fio de leite, alusão à matéria leitosa que deita a árvore deste nome, quando ferida”, mas que pode também proceder de caámoçary, a ‘planta que lacrimeja’, de cuja madeira se faziam caixas para exportar açúcar – acabou ficando com a bola. Além de responder a exigências gerais – proximidade da Refinaria Landulpho Alves, de terminais marítimos e da Cidade da Bahia –, a região escolhida apresentava a desejada topografia plana e água em abundância (subterrânea, inclusive). Havia, também, algumas unidades isoladas operando já ali, como a Ciquine Química, que gerou a Ciquine Alimentícia, popularizada pelo lançamento do “Chopp 70”, à época da Copa do Mundo disputada no México. Fala-se, ainda, que a escolha obedeceu a critério político, já que a determinação de uma área no CIA traria um “fortalecimento indesejado”, direto ou indireto, da Dow Química, que lá se encontrava. A Dow, como

se sabe, sonhou com um pólo baiano sob o seu controle – coisa que não teria muito cabimento no quadro da política estatal-nacionalista de Geisel. Bem. A eleição de Camaçari recebeu algumas críticas (na época, não-ecológicas). “Para os técnicos japoneses, a opção foi a pior possível. Na concepção deles, o pólo teria que, necessariamente, ficar no litoral” – informa Alban. Outros objetaram que a escolha atropelou o processo da industrialização baiana, condenando o Centro Industrial de Aratu a uma decadência precoce. É claro que tudo isso é muito discutível. Camaçari não fica assim tão longe da praia, do porto de Aratu ou do terminal marítimo de Madre de Deus. Quanto ao efeito negativo sobre o CIA, o que podemos dizer é que a situação daquele distrito industrial, hoje, nada tem de invejável. Mas o que desejo sublinhar, aqui, é um outro processo. Ao selecionar Camaçari, delineando aí a área da produção petroquímica, a Copene tomou uma decisão que feriu fundamente a realidade baiana, redirecionando-a. A Cidade da Bahia, vendo-se subitamente no centro de uma “Região Metropolitana de Salvador”, teve que alterar a disposição do seu olhar. Teve que desviá-lo em direção ao litoral norte, que passaria a experimentar coisas como o rápido e significativo crescimento da região de Santo Amaro de Ipitanga (hoje tomada por agências bancárias, condomínios fechados, lojas de informática, restaurantes, salas de cinema, lanchonetes e shopping centers), a definição de novos espaços de turismo e veraneio (de Praia do Forte à atual novidade de Sauípe, no além de Arembepe) e a construção de uma estrada litorânea, a Linha Verde, estendendo-se até Sergipe. Acontece que, ao se voltar para as para-gens e paisagens do litoral norte, Salvador deu as costas à sua interlândia mais densa – e íntima. Assim, a implantação do Pólo Petroquímico em Camaçari representou o golpe final no processo de desfiguração de uma realidade quatro vezes centenária – a realidade a que nos referíamos ao pronunciar o sintagma a Cidade da Bahia e o seu Recôncavo. Sim. Os nexos orgânicos Salvador-Recôncavo foram se desfazendo. O tecido se esgarçou ao extremo – e, na maioria dos casos, se rompeu. A entidade integrada se desintegrou. E o Recôncavo sugere hoje uma anciã de mão trêmula, abandonada à sua própria sorte – e à sorte da solidão em sua própria noite. Mas vamos, em homenagem à clareza, delimitar um Recôncavo. Não se incomodem com o artigo indefinido. É que, de certo modo, cada estudioso tem o “seu” Recôncavo. Existe a coincidência básica, fundamental, acerca desse espaço, no que diz respeito às zonas produtivas mais tradicionais, onde surgiram as nossas primeiras vilas e cidades. Mas o mapeamento global varia, com certas reduções ou ampliações de fronteiras. E não é difícil entender os motivos dessas ligeiras contrações e desses ligeiros alargamentos. Como disse Milton Santos, o Recôncavo, área onde se configurou a mais antiga constelação urbana do país, sempre foi “mais um conceito histórico que... uma unidade fisiográfica”. O próprio Milton, aliás, em A Rede Urbana do Recôncavo, apresenta um desenho algo transbordante da região, incluindo em seu espaço Feira de Santana, Irará e Alagoinhas, cidades que, definitivamente, não fazem parte do complexo geocultural em questão – embora não chegue à extravagância do atual mapa do governo estadual, feito pela Secretaria de Planejamento e Tecnologia, que providenciou, sem nos avisar, uma transposição das águas do Paraguaçu e uma transferência, igualmente inesperada, de São Sebastião do Passé.

De minha parte, embora inclinado a reduzir, ao limiar das dunas não muito acima de Ipitanga, o alcance da flecha que sobe o litoral norte, reproduzo o balizamento adotado por Kátia Mattoso: “A hinterlândia de Salvador, o Recôncavo, é uma região essencialmente costeira, uma espécie de retângulo na direção nordeste-sudeste. Situado entre os meridianos 37 e 39 a oeste de Greenwich e no limite dos paralelos 12 e 13 ao sul do Equador, o Recôncavo baiano, com seus pouco mais de 10.000 km2 de terras emersas, limita-se a leste com o Atlântico, ao sul com os municípios de São Miguel das Matas, Laje e Valença, a oeste com os municípios de Antônio Cardoso, Santo Estévão e Castro Alves e, enfim, ao norte, com Feira de Santana, Coração de Maria, Pedrão, Alagoinhas e Entre Rios”. Estabelecido o mapa geral, apesar da pequena ressalva, vamos nos situar na véspera mesma do início do processo de desintegração dessa realidade – processo que tem o seu ponto de partida na chegada da Petrobrás e vai culminar na implantação do Complexo Petroquímico de Camaçari. Ouçamos, por isso mesmo, Maria de Azevedo Brandão, em seu texto Cidade e Recôncavo da Bahia, introdução à coletânea Recôncavo da Bahia – Sociedade e Economia em Transição, por ela organizada: “No começo da exploração do ‘ouro negro’, pelo final dos anos quarenta, a região compreendia quatro sub-áreas: a área do massapê, compreendendo parte de Santo Amaro, São Francisco do Conde, Terra Nova e São Sebastião do Passé, dominada pela produção do açúcar; o alto Recôncavo – os tabuleiros a oeste dedicados basicamente à produção de fumo e de alimentos, demograficamente denso e marcado por um processo de intensa minifundização; o baixo Recôncavo, as terras ao sul e a sudoeste, com maior freqüência de médias e pequenas propriedades, que se ocuparam sempre mais preponderantemente com a produção alimentar – nessas terras eram numerosas as caieiras e as olarias, até à década de cinqüenta exportadoras típicas de materiais de construção para Salvador e cidades próximas; o Recôncavo Norte, demograficamente ralo e marcadamente isolado das demais áreas da região e da própria capital, apesar de sua vizinhança física, então dedicado à produção de subsistência e do coco da Bahia e à pecuária intensiva”. A menção a um Recôncavo Norte costuma, ainda hoje, surpreender o comum das pessoas. Não é para menos. Regra geral, ao ouvir a expressão “Recôncavo”, o que vem à mente de todos são as terras e cidades que ficam, aproximadamente, no interior de uma área desenhada pelos municípios de Salvador, São Sebastião do Passé, Conceição do Jacuípe, São Gonçalo dos Campos, Sapeaçu, Santo Antônio de Jesus, Jaguaripe e Vera Cruz. É o Recôncavo propriamente dito – o Recôncavo uno, tradicional, das cidades históricas e do “mais extenso parque de arquitetura barroca do país”, que tem o seu coração no triângulo formado por Cachoeira, Santo Amaro e São Francisco do Conde. De fato, o chamado Recôncavo Norte, antes tão despovoado e solitário – ou “demograficamente ralo e marcadamente isolado das demais áreas da região e da própria capital”, como disse Maria –, parece não fazer parte desse universo. No entanto, será exatamente essa faixa norte, desvinculada e algo desconexa, que irá centralizar as operações industriais e tecer laços firmes com Salvador, deixando à margem o velho Recôncavo Histórico do barroco, da cerâmica, do tabaco e do açúcar. Lugares de peso praticamente nulo, como Catu, Camaçari e Santo Amaro do Ipitanga (lamentavelmente rebatizado como “Lauro de Freitas”) irão roubando sempre mais a cena de Nazaré das Farinhas, de Nossa Senhora do Rosário do Porto de Cachoeira, de Santo Amaro da Purificação.

Gradual, mas irreversivelmente, a produção e a riqueza se lançam em direção ao norte. Petrobrás, CIA, Copec – as coisas se deslocam do cerne da sociedade do açúcar para as fímbrias e franjas nortistas, descendo de Pojuca e Mata de São João para Camaçari e Ipitanga, à vista das praias claras do litoral. Com isso, cidades outrora opulentas do Recôncavo Histórico perdem o passo e mesmo estacionam ou regridem, à medida que cidadezitas antes insignificantes explodem. Para que se tenha uma idéia da mudança, em 1996, a velha Cachoeira possuía apenas 30 mil habitantes. No mesmo ano, Lauro de Freitas ultrapassava os 97 mil – e Camaçari alcançava a cifra dos 135 mil. No princípio, a Petrobrás. Foi o nosso verdadeiro “choque do petróleo”. Produzindo uma outra paisagem – humana, técnica e social. É o Recôncavo dos capacetes de alumínio rebrilhando ao sol, das torres metálicas se erguendo contra o fundo azul do céu, das estradas e caminhões cortando canaviais. Thales de Azevedo informa, por sinal, que, em fins da década de 1950, as torres de petróleo já se constituíam em “símbolo da região” – “incorporadas inclusive ao grande painel da Virgem, pintado no teto do santuário das Candeias, e às estampas religiosas veneradas pelos romeiros que ali afluem anualmente”. Thales chama a atenção, ainda, para o fato da Petrobrás trazer os seus trabalhadores, milhares de trabalhadores, de fora da região. Massa de homens solteiros, com dinheiro no bolso. E a grana girando, incrementando bares, bilhares e bordéis. Tempos de contratualização das relações trabalhistas e de secularização da vida social, tenta resumir, em linhas gerais, o sociólogo Luiz de Aguiar Costa Pinto. No que aqui mais nos interessa – a segmentação Salvador/Recôncavo –, a Petrobrás significou um deslocamento inicial. Desenvolveu atividades no centro mesmo da antiga zona da produção açucareira, terras de Santo Amaro e São Francisco do Conde. Mas logo foi se encaminhando para o Recôncavo Norte, agitando municípios como Catu, Pojuca e Mata de São João. Essa expansão para o norte se fortaleceu, à frente, com a implantação do Centro Industrial de Aratu. O CIA já estava fora do “âmago cultural” do Recôncavo Barroco. Por fim, veio o Pólo Petroquímico de Camaçari. A nortização radical. O Copec completa o processo de marginalização do Recôncavo Histórico, que mais e mais se arruina, aqui e ali caindo aos pedaços, apesar de alguns focos ativos, a exemplo de Santo Amaro. Como se não bastasse, a abertura de estradas, em função do escoamento da produção baiana, trouxe artigos (manufaturados e agrícolas) centro-sulistas, dando um golpe de misericórdia na economia tradicional da região. Mais: essa nova rede viária não só se desenha inicialmente ao largo da costa, como provoca o desaparecimento do transporte fluvial. A aposentadoria dos caminhos de água. O fim do tráfego aquático. Logo, o vapor de Cachoeira fica a ver navios. Barcos se recolhem. Saveiros somem sob o céu. Maria: “O Recôncavo profundo se fecha”. Entre a instalação do CIA e a do Copec, risca-se em asséptica prancheta tecnoburocrática o traçado de uma “Região Metropolitana de Salvador”. RMS que abarca a Ilha de Itaparica, municípios petroleiros como Candeias e São Francisco do Conde, municípios vizinhos da capital (Água Comprida, Santo Amaro de Ipitanga), Camaçari e Dias d’Ávila. Para lembrar palavras de Costa Pinto, a delimitação dessa RMS, uma cirurgia histórica e culturalmente desastrada, trocou o coração do Recôncavo, a região colonial-barroca de Cachoeira e Santo Amaro, por uma “área adjacente”, entre Lauro de Freitas e Dias d’Ávila. Corte antiantro-pológico que vai se expressar, de resto, numa

curiosa transformação. Em 1967, havia sido criado o Conder – Conselho de Desenvolvimento do Recôncavo. Em 1973, reencontraremos a mesma sigla, mas com outro gênero e significado: Conder – Companhia de Desenvolvimento da Região Metropolitana de Salvador. Passamos, assim, do Conder à Conder. Mapeamento arbitrário. Um recorte territorial tecnoburocrático – a RMS – e as realidades do CIA e do Copec promoveram a separação, o divórcio entre a Cidade da Bahia e o seu Recôncavo. Caso aquela tecnoburocracia possuísse alguma sensibilidade social e antropológica, teria reconhecido, no Recôncavo, a verdadeira Região Metropolitana de Salvador. Uma região metropolitana lógica e natural. Num estudo publicado em 1958, Recôncavo – Laboratório de uma Experiência Humana, o supracitado sociólogo L. A. Costa Pinto tocou, justamente, nesse ponto. Com louvável lucidez, escreveu (grifos meus): “Dois grandes fatores têm operado no sentido dessa unidade [do Recôncavo]: a Baía de Todos os Santos e a Cidade do Salvador. De fato, quer no plano estritamente geográfico, quer no mais largo sentido ecológico, o golfo tem sido o ponto focal de convergência da vida dos núcleos humanos que em torno dele se desenvolveram; de outro lado, a Cidade do Salvador, mercado consumidor, centro político-administrativo, porto e porta de passagem dos contactos e relações com o mundo, é ponto dominante na região que margeia a baía e representa, no plano econômico, social e político, o núcleo de onde partem influências aglutinadoras sobre todo o Recôncavo, que tende cada vez mais a se transformar numa grande região metropolitana cercando a sua capital, com a qual mantém laços crescentes de comércio material, social e psicológico”. Infelizmente, não foi o que aconteceu. Os laços foram cortados. Rompeu-se a antiga e intensa relação capital-interlândia. E o Recôncavo dançou. No dizer de Fernando Pedrão (Novos Rumos, Novos Personagens), “passou a ser sinônimo de região cronicamente pobre”. E, mesmo, de região excluída. Ainda Pedrão: “o Recôncavo, de São Francisco do Conde a Amargosa, dos baixios do Iguape a Belém, configurou-se como o negativo do retrato do progresso da área metropolitana de Salvador”. Recôncavo da carência, da prostração, do marasmo, da emigração de jovens, da esterilização voluntária de mulheres pobres. Recôncavo do sono mais fundo do Rio Paraguaçu.

A FALÊNCIA DAS OPOSIÇÕES Na Bahia – capital e interior –, o leque das oposições a Antonio Carlos e ao “carlismo” (grupo político unidimensional, com forte base empresarial e midiática) foi desmantelado justamente por ter chegado ao poder. Não se trata, aviso, de uma afirmação ditada pelo gosto do paradoxal, mas de uma simples constatação. Antonio Carlos e seu grupo retornaram triunfalmente ao Governo do Estado e venceram, pela primeira vez, uma disputa democrática pela Prefeitura de Salvador, em conseqüência do que Waldir Pires e Lídice da Mata fizeram com as suas vitórias eleitorais em 1986 e 1992,

respectivamente. Waldir, no governo estadual; Lídice, na administração de Salvador. Nas eleições de 1986, o Nordeste (se é que podemos admitir a presença da Bahia neste espaço geográfico) apresentou dois fatos realmente dignos de nota. Em Pernambuco, o triunfo de Miguel Arraes, que havia governado aquele Estado até ser deposto pelos militares, em 1964. Na Bahia, um político ligado a Darcy Ribeiro e mesmo próximo de João Goulart, obteve então o que se pode classificar como uma vitória eleitoral retumbante. Derrotou, com uma frente de mais de um milhão e meio de votos (num universo de cerca de seis milhões de eleitores), o advogado Josaphat Marinho, do PDS, candidato de Antonio Carlos, a principal liderança política do Estado, encastelado no poder local desde o final da década de 1960. Mas se, em Pernambuco, o retorno de Arraes teve um claro sabor de esquerda, o que vimos, no caso baiano, foi outra coisa. Não se tratou de uma vitória ideológica, no sentido mais estrito do termo. Afinal, apesar da diferença de posicionamento político-partidário, Waldir e Josaphat podiam ser vistos, fora daquele momento da conjuntura regional, como farinha do mesmo saco. Liberais tradicionais, “humanistas”, tolerantes, bacharelescos, elitistas, eram personalidades que, em outra circunstância, se sentiriam perfeitamente à vontade de mãos dadas, pontificando num mesmo partido. Não devemos nos esquecer de que, ao ser derrotado por Lomanto Júnior no páreo para o Governo do Estado, em 1962, Waldir fora o candidato de uma coligação liderada pelo velho PSD, uma agremiação política conservadora, que jamais emitiu rosnados, ou exibiu caninos dispostos à luta. Aliás, conta Darcy Ribeiro, em Confissões, que, ao propor o nome de Waldir Pires para a chefia da Casa Civil de João Goulart, o presidente descartou de imediato a sugestão. Motivo: Waldir era do PSD. Na verdade, mais do que uma vitória de Waldir, as eleições de 1986 significaram uma derrota da arrogância e dos métodos autoritários do carlismo. A Bahia queria mudar, viver um tempo de investimentos sociais, de prática democrática, de cordialidade e cidadania. O insuspeito João Carlos Teixeira Gomes, inimigo de Antonio Carlos e chefe da Coordenadoria de Comunicação do Governo do Estado, para a qual foi convidado pessoalmente por Waldir, soube ver, em leitura retrospectiva, o que acontecera: “Waldir Pires possuía uma rica trajetória na vida política da Bahia, mas não teria chegado ao governo apenas pelo peso dos seus méritos pessoais ou pela competência com que soube costurar a coligação que o apoiava. Fundamental para que isso ocorresse... foi a forte disposição do eleitorado em prol da mudança, traduzida em votos que jorraram das urnas com a força das grandes explosões cívicas”, escreveu ele, em Memória das Trevas. Ainda Teixeira Gomes: “Foi o mais impressionante resultado eleitoral jamais registrado na vida política da Bahia, um eloqüente ‘vá embora’ dos baianos inconformados”. Quando Waldir assumiu o Governo, em março de 1987, o carlismo parecia definitivamente liqüidado. Era a vez do Governo Democrático ou do Governo da Mudança, como a nova administração se anunciava, publicitariamente. As expectativas eram imensas. A Bahia se preparava para começar “vida nova”, como se costuma dizer. Mas logo os baianos começaram também a perceber – de início, enevoadamente; em seguida, com crescente clareza – que haviam se enganado. Waldir parecia administrativamente perdido, deixando transparecer a sua falta de vocação para

liderar uma equipe de governo. De fato, nunca chegou a realmente assumir o Governo do Estado. Depois de meses de campanha eleitoral, não aterrissou. Continuou planando no horizonte da retórica, como se elaborações discursivas substituíssem obras, como se o povo fosse permanecer indefinidamente seduzido, ofuscado pelo brilho dos sintagmas, onde reluziam expressões como “transparência”, “mudança” e “cidadania”. Enfim, Waldir nascera para a retórica tribunícia, não para as rotinas do poder executivo, que o entediavam. O já citado Teixeira Gomes observou que, em relação ao comum dos políticos brasileiros, Waldir se distinguia por ter idéias e um discurso. Mas acrescentando que o ideário e a sedução retórica esbarravam “num indisfarçável fastio pelos trabalhos administrativos, na dispersão dos meios buscados para implantar e executar um programa de governo, na lentidão das decisões, na tendência de estabelecer núcleos privilegiados de contato dentro da própria equipe e numa aparente disposição de ouvir, sem dar conseqüências práticas – e muito menos programáticas – às sugestões e ao material recolhido, numa conduta indicativa de autosuficiência, não ostensiva mas real”. Num seminário realizado pelo Instituto Pensar, em outubro de 1990, o ex-deputado federal Marcelo Cordeiro, em análise também retrospectiva, assinalou, ainda, que Waldir Pires terminou por fazer uma escolha, no arco de forças da aliança que o elegera. Como se sabe, aquela fora uma aliança conjuntural, formada por forças heterogêneas, da direita à esquerda, cujo denominador comum não estava numa ideologia político-social ou num projeto geral para a Bahia – mas, sim, no combate ao carlismo. E o que Marcelo denuncia é que, depois de eleito, Waldir foi se aproximando, a cada dia, do que havia de mais conservador no conjunto aliancista: “O que nós vimos depois de 1986? A hegemonia doutrinária se transfere para as alianças à direita, para as oligarquias dominantes, para os velhos modelos corrompidos, para as velhas propostas conservadoras... As forças progressistas que lutaram contra a ditadura, na Bahia, foram relegadas a uma posição subalterna, nem sequer de complementaridade, dentro do governo que então se instalou”. A inércia governamental e o alheamento de Waldir começaram a preocupar – para, em seguida, irritar – muitos dos milhões de baianos que nele haviam votado. Principiava a se desenhar ali a figura da frustração. Ou da decepção. Antonio Carlos não perdeu tempo. Em suas aparições televisuais, investia firme, disparando a frase que se converteu em bordão: “vá trabalhar, governador”. Nessa guerra midiática, Waldir apanhou feio. É claro que Antonio Carlos dispunha, como bem disse Teixeira Gomes, do “porrete tecnológico” da TV-Bahia, transmissora local da programação da Rede Globo, líder de audiência em todo o Estado. A TV-Bahia bombardeava diariamente o governador e seu governo. E Waldir se via encurralado. De uma parte, porque, juntamente com a maioria do seu secretariado, olhava os mass media com um misto de preconceito, desconfiança e mesmo desdém, incapaz de reconhecer a importância e o poder político da comunicação. De outra, porque, mesmo que dispusesse de um setor de comunicação ágil e eficiente, o governo não tinha o que mostrar. Bem vistas as coisas, Waldir – como enfatizou Marcelo Cordeiro – não tinha um projeto de desenvolvimento global para a Bahia. Não elaborou nenhuma estratégia geral, nenhum plano de ação. Se Antonio Carlos viera tocando o seu projeto de “modernização conservadora”, como a esquerda gosta de dizer, Waldir apontava para as questões sociais. Mas só apontava. Nada fazia no sentido da

transformação do quadro que dizia ver, ou que se limitava a contemplar. Assim, durante a sua estadia no cargo de governador, os investimentos industriais caíram (“não encontraram no Estado as condições governamentais propícias para se instalar”, segundo Cordeiro) – e nenhum modelo “alternativo” foi testado. Cordeiro insiste, incisivo: “...todos os indicadores econômicos da Bahia decresceram durante os dois anos do governo de Waldir Pires”. E nenhuma obra de relevo – econômico ou social – foi realizada. Talvez Marcelo exagere ao dizer todos, mas longe da verdade ele não está. De acordo com o Centro de Estatística e Informações do Estado da Bahia (PIB – Bahia – 1975-1991 – Metodologia e Séries Retrospectivas), o governo de Waldir Pires representou um breve período de estagnação, onde o desempenho econômico não foi capaz de dar conta do crescimento demográfico – o que significa que, em termos médios, o que ocorreu então foi um empobrecimento da Bahia. Como se não bastasse, Waldir deu asas então a um antigo projeto seu: ser presidente da República. Volto, uma vez mais, a Teixeira Gomes: “Waldir Pires não queria ver as coisas [a realidade à sua volta]. Aferrara-se à idéia – constantemente expressa – de que ‘era preciso decidir a partir de escalões mais altos’, deixando voejar-lhe em torno da cabeça a mosca azul da presidência, para a qual Darcy Ribeiro, num artigo escrito no exílio, o vira predestinado, dizendo: ‘Eu, cá de longe, olho com orgulho esse meu intrépido e admirável amigo, Waldir Pires, futuro presidente do Brasil’”. Mais Teixeira Gomes: “Não entendeu o governador que esse objetivo [ser presidente da República]... deveria consolidar-se no tempo apropriado, quando lhe seria mais fácil e conveniente colher o fruto da ambição amadurecida. Era preciso, antes, mostrar competência administrativa e capacidade política na Bahia... respondendo às expectativas que o povo baiano lhe abrira em 1986, com a votação consagradora. Tudo, no entanto, precipitou-se imprudentemente, e ele marchou para ocupar a chapa com Ulysses Guimarães, candidatando-se a vice – e ouvindo os cantos de sereia (engrossados por sua máquina publicitária) de que o velho líder, o ‘Senhor Diretas’ amado dos brasileiros pelo papel assumido nas lutas pela redemocratização, mas sem chances eleitorais, compreenderia, no transcurso da campanha, a inviabilidade da sua postulação, deslocando-se para que Waldir assumisse a cabeça da chapa. O candidato a vice Waldir Pires queria, na verdade, a presidência da República, e não foi por outro motivo que passou tão cedo o governo a Nilo Coelho, em 1989”. Nada deu certo. Ulysses não passou a Waldir o comando do navio. E o desempenho da dupla, na corrida eleitoral, foi um fiasco. Ulysses e Waldir ficaram na rabeira, assistindo de longe às decolagens ruidosas de Fernando Collor e Lula. Na Bahia, as conseqüências foram as piores possíveis. No círculo da coligação que o elegera, os assim chamados “progressistas” foram simplesmente nocauteados. Marcelo Cordeiro deu voz pública a essa corrente, acusando Waldir de haver traído uma aliança política feita não apenas para eleger um indivíduo, mas para “enfrentar os problemas da Bahia”. Mas o mais grave é que também o povo baiano, de um modo geral, se sentiu traído. E Antonio Carlos voltou. Tudo foi motivo para que os baianos lhe dessem a vitória já no primeiro turno das eleições para governador, em 1990. No plano municipal, Lídice da Mata, vindo da militância estudantil comunista no PcdoB, deu prosseguimento à obra. Derrotou o candidato carlista, Manoel Castro, encabeçando uma aliança

política que ia da centro-esquerda à esquerda. E fez uma administração pífia, deixando a cidade cair aos pedaços. É certo que Antonio Carlos jogou pesado contra ela, mas também é certo que ela não soube jogar a favor de si mesma. Como Waldir, concentrou-se em processos políticos e não em tarefas administrativas; centrou-se em seu próprio e pequenino grupo, marginalizando (e mesmo bloqueando) as demais forças da coligação; esqueceu-se de realizar obras, urgentes e necessárias; não tinha um projeto para a cidade. Como isso, Antonio Carlos não só fez o seu sucessor, na figura do engenheiro Paulo Souto, como, pela primeira vez, conseguiu eleger um membro de seu grupo, Antonio Imbassahy, prefeito de Salvador, cidade até então tradicionalmente anticarlista. Com as oposições assim desbaratadas (e sem nenhum projeto a não ser o do combate ao carlismo) e Antonio Carlos dispondo então de um poder imenso – estadual e nacional –, esperanças de mudanças e de democratização da vida baiana começaram a convergir para a figura do jovem deputado federal Luís Eduardo Magalhães. Sim: Luís Eduardo era filho de Antonio Carlos. Mas tinha autonomia de vôo e convicções próprias. Ideário e estilo diversos dos do pai. Era um homem essencialmente político e um político essencialmente democrático. Mas sem hesitação ou tibieza. Fernando Henrique Cardoso, que o quis para seu vice e foi o responsável por sua eleição para a presidência da Câmara dos Deputados, escreveu: “Luís Eduardo, como presidente da Câmara dos Deputados e como líder do governo, demonstrou que o trato cavalheiresco e os modos amenos podem ser compatíveis com a firmeza de decisões, com a capacidade de convencer os demais, com a determinação para chegar a resultados... Luís sempre apoiou as reformas: acreditava na necessidade delas para o país e não apenas as apoiava por conveniência política”. Circulando com desenvoltura em meio à frente partidária ligada ao governo de Fernando Henrique Cardoso e em meio aos partidos de oposição, Luís Eduardo era sempre tratado com respeito e admiração. Tornou-se quase um lugar-comum a afirmação de que ele tinha luz própria e olhava para o futuro. “Luís representava uma perspectiva moderna no PFL”, no entender de Fernando Gabeira. E dele disse a petista Marta Suplicy: “Era um homem que tinha a capacidade de se abrir para o novo”. Era esperável, por isso mesmo, que, ao aceitar ser o candidato do PFL a governador da Bahia, ele surgisse como a possibilidade de um novo caminho, atraindo atenções e simpatias democráticas, inclusive entre adversários políticos e ideológicos de Antonio Carlos. Como o PFL seria imbatível naquela disputa eleitoral (e, de fato, elegeu César Borges para o Governo do Estado), Luís Eduardo passou a significar, então, a perspectiva de que o carlismo viesse a ser superado desde dentro. Infelizmente, o deputado morreu em abril de 1998, ainda muito jovem, aos 43 anos de idade, com várias lesões nas artérias coronárias. Bem. Com a morte prematura de Luís Eduardo e o estado de falência eleitoral e penúria ideológica das oposições, a política baiana pareceu estar condenada a se encerrar no círculo de ferro do carlismo. De uma parte, em vez de desenvolver projetos próprios e apresentar opções alternativas, as oposições, como neuróticas obsessivas, não conseguiam tirar Antonio Carlos da cabeça. Só pensavam nele. Em combatê-lo. Em atacá-lo. Não agiam como verdadeiros partidos políticos, mas como meros grupos “anti-carlistas”. Suas “personalidades” eram dadas pela personalidade do Inimigo. De outra parte, o carlismo aparecia como um corrente unida, coesa, sob a regência

autoritária, inflexível e inquestionável do chefe. No entanto, sinais de brechas e fissuras nesse quadro já apareciam aqui e ali, tanto no campo da oposição quanto no campo do carlismo. Para, quase que imediatamente, manifestar-se com mais clareza. Se quisermos dois pequenos marcos para essa perspectiva de alterações futuras no horizonte político baiano, temos. Em plano oposicionista, a candidatura de Jaques Wagner (PT) a governador do Estado, em 2002. Ali, em vez de se concentrar no combate a Antonio Carlos, a oposição esboçou um outro jogo, apresentando-se a si mesma. Já no âmbito carlista, a figura de Antonio Imbassahy foi se deslocando, mais e mais, para uma área de coloração social-democrata. São indícios de que o referido “círculo de ferro” do carlismo, definitivamente, não é mais o mesmo.

O CARNAVAL Sabe-se que, antes que o nosso carnaval começasse a ganhar uma forma, os festejos que antecediam a Quaresma se reduziam à tradição lusitana do entrudo. Mas a algazarra do entrudo, que datava dos primeiros tempos da colonização, foi proibida em meados do século XIX. Motivo: a Bahia, como o Brasil, precisava “civilizar-se”. Por sua violência anárquica, o entrudo passou a ser visto, naquela época, como coisa de bárbaros. Urgia acabar com aquilo – e fazer entre nós um carnaval à européia, nos moldes dos de Nice e Veneza. À proibição do entrudo seguiram-se, assim, a importação dos bailes de máscaras e o estímulo oficial às festas de rua, organizadas em termos de préstitos carnavalescos. Foram os tempos áureos do chamado carnaval de elite. A época dos bailes ricos e perfumados – e dos desfiles das “sociedades carnavalescas”. Na década de 1880, por exemplo, como nos lembra Vieira Filho em estudo incluído na coletânea Ritmos em Trânsito – Sócio-Antropologia da Música Baiana, essas sociedades carnavalescas, rivalizando entre si, faziam “investimentos cada vez mais vultosos, exigidos pelos préstitos progressivamente mais luxuosos”. Os grandes bailes, por sua vez, corriam por conta da iniciativa particular. E o poder público enfeitava as ruas, promovendo bailes mais modestos, populares. Triunfara enfim, e rapidamente, um carnaval que, no dizer de um jornal da época, era “um folguedo deslumbrante e uma festa civilizadora”. Mas é óbvio que as camadas populares da Cidade da Bahia não se contentariam com a condição de simples platéia dos desfiles da elite. Negros escravizados sempre fizeram os seus “batuques”. Nunca deixaram de participar do entrudo. E não seria agora que ficariam de fora da festa. Com isso, assistiríamos a um processo que é sempre interessante: a assimilação e tradução de elementos culturais. No caso, o que aconteceu foi que negros e mestiços incorporaram o “modelo branco”, o padrão das agremiações elitistas, partindo para a organização de seus próprios grupos carnavalescos uniformizados, a fim de partilhar o préstito público. Deu certo. Em pouco tempo, o carnaval da Bahia não teria apenas um Cruz Vermelha, mas também uma Embaixada Africana.

Veio, então, a primeira maré afrocarnavalesca. Testemunha dos fatos, Nina Rodrigues fez o seu registro, em Os Africanos no Brasil: “As festas carnavalescas da Bahia se reduzem ultimamente quase que a clubes africanos organizados por alguns africanos, negros crioulos e mestiços”. Refere-se ele a entidades como a Embaixada Africana, Filhos da África, Chegada Africana, Pândegos da África, etc. Em 1899, por exemplo, o grande sucesso foi o Pândegos da África, com os seus cantos e danças aplaudidos nas ruas. “As danças e cantigas africanas, que se exibiam com este sucesso no carnaval, são as danças e cantos dos candomblés, do culto jeje-iorubano, fortemente radicado na nossa população de cor”. O Pândegos da África, de resto, fez desfilar, pelas ruas da cidade, um carro em que se representava o rei Labossi, cercado de seus ministros, na margem do rio Zambeze. Os clubes uniformizados eram, sem dúvida, as manifestações mais vistosas de um carnaval negromestiço. Mas não eram as únicas, como bem frisa Vieira Filho. Havia, ainda, os batuques, as rodas de samba e os chamados “candomblés”, mais próximos dos terreiros. Na opinião do pesquisador, esses “candomblés” do final do século passado é que teriam se transformado em nossos atuais afoxés. É mais do que provável. “Afoxé”, como se sabe, é uma expressão iorubana. Parrinder faz referência a uma certa “noz de afoxé” – uma noz mágica que os sacerdotes africanos colocavam na boca, para imantar suas palavras. E Olabiyi Yai dá a explicação precisa, decompondo o sintagma (o iorubá, como o alemão e o tupi, é uma língua aglutinante): “a” (prefixo nominal) + “fo” (verbo - pronunciar, dizer) + “xé” (realizar-se, verificar-se). Traduzida literalmente, a expressão significa: a enunciação que faz (alguma coisa) acontecer. Ou, numa tradução mais poética, a fala que faz. Olabiyi: em iorubá, “afoxé” significa “encantamento, palavra eficaz, operante”. Fórmula mágica. Estranho é que, no Brasil, a expressão tenha passado a designar entidades carnavalescas. Olabiyi acredita que a transformação semântica seja explicável pelo fato dos primeiros grupos desse afrocarnaval, em sua rivalidade, terem trocado “afoxés” entre si. Com o tempo, a expressão teria passado a designar os próprios grupos afrocarnavalescos, pela via da metonímia, na figura clássica da sinédoque, onde a parte é tomada pelo todo. Trata-se de um fenômeno lingüístico relativamente comum. Mas não é isso o que mais importa. O que importa é que, numa sociedade como a nossa, o carnaval não poderia ter permanecido como uma cópia desbotada do carnaval da Europa. E não permaneceu. A história do carnaval da Bahia não é uma história cujas conexões nos prendam com exclusividade ao mundo latino. Suas raízes estão, também, no continente africano. Manoel Querino, por exemplo, defendeu a tese da influência do “damurixá” na configuração de nosso carnaval. Era uma festa mascarada que se realizava em Lagos, na Nigéria, no mês de janeiro. Segundo Querino, já em 1897 acontecera, na Bahia, esse mesmíssimo carnaval negro, com a “reprodução exata” do que se passava na África. Mais recentemente, o já citado Olabiyi Yai levantou a hipótese da influência de uma outra festa africana – o “gueledé” nagô-iorubá – na origem de nossa festa maior. São hipóteses, claro. Mas é certo que a africanização do carnaval, na Bahia, data do início mesmo da folia. Note-se, ainda, que as manifestações afrocarnavalescas do final do século XIX não eram vistas por igual pelos porta-vozes da cultura dominante – mas, sim, hierarquizadas. Os clubes uniformizados, que tematizavam “povos cultos” da África, como o Egito, ficavam no topo da

hierarquia. Eram encarados como manifestações “mais adaptadas” à civilização, capazes, por isso mesmo, de contribuir para o brilhantismo dos festejos. E chegaram a conhecer o sucesso. Os “candomblés”, ao contrário, eram condenados ao grau hierarquicamente mais baixo, como expressões de primitivismo e barbárie. Como coisas que envergonhavam a Bahia. E que, por essa razão, eram combatidos – e atacados pela imprensa. Nina Rodrigues cita, a propósito, o seguinte texto, que um professor fez estampar, em 1901, no Jornal de Notícias: “Refiro-me à grande festa do Carnaval e ao abuso que nela se tem introduzido com a apresentação de máscaras mal prontos, porcos e mesmo maltrapilhos e também ao modo por que se tem africanizado, entre nós, essa grande festa da civilização. Eu não trato aqui de clubes uniformizados e obedecendo a um ponto de vista de costumes africanos, como a Embaixada Africana, os Pândegos da África, etc.; porém acho que a autoridade deveria proibir esses batuques e candomblés que, em grande quantidade, alastram as ruas nesses dias, produzindo essa enorme barulhada, sem tom nem som, como se estivéssemos na Quinta das Beatas ou no Engenho Velho, assim como essa mascarada vestida de saia e torço, entoando o tradicional samba, pois que tudo isso é incompatível com o nosso estado de civilização”. No final das contas, a barra pesou para todos. De 1905 a 1914, o carnaval negromestiço da Bahia foi, pura e simplesmente, proibido. Jorge Amado abordou o assunto, em Tenda dos Milagres, ao figurar um agrupamento transgressor, o Afoxé dos Filhos da Bahia, circulando pelas ruas de Salvador, apesar da repressão: “Ousara o Afoxé dos Filhos da Bahia; nunca saíra antes e jamais se concedera e vira afoxé assim de majestade, de figuração tão grande e bela, com batuque igual, maravilha de cores, ordem admirável e Zumbi em sua grandeza”. Adiante, a proibição foi suspensa. Mas o brilho não pôde ser recuperado, ao menos de imediato. O carnaval negromestiço se viu reduzido a pequenos grupos que perambulavam por aqui e por ali. Os clubes uniformizados não voltaram. Restavam, somente, os afoxés. E assim fomos atravessando a década de 1930. Nos anos quarentas, os afoxés persistem. Filhos d’Oxum, Lordes Africanos, Filhas d’Oxum, Filhos de Obá. Mas é em 1949 que vamos assistir ao nascimento de dois marcos fundamentais do carnaval baiano – pólos que irão dar o tom e a fisionomia da festa, tal como a conhecemos ainda hoje, apesar do caráter de transição do momento presente. De uma parte, brota o Afoxé Filhos de Gandhi. De outra, Dodô e Osmar criam o trio elétrico, desfilando pela cidade em cima de uma “fobica”. A mão do preto no couro e a estridência do trio: carnaval negroelétrico da Bahia. Interessante a homenagem negromestiça baiana a Gandhi, num afoxé criado por pessoas ligadas ao Candomblé e ao sindicato dos trabalhadores das docas. Havia assim um enraizamento em solo negromestiço e uma atitude contrária ao colonialismo europeu. Aliás, batizaram o afoxé em homenagem ao Mahatma poucos meses depois do seu assassinato – e num momento em que o porto de Salvador abrigava navios ingleses. Não podemos nos esquecer, ainda, de que não raras vezes o Mahatma se manifestou contra a presença dominadora de europeus no continente africano. Interessante, também, o modo como a efígie do líder indiano foi introduzida no cortejo. Ela passou a substituir a representação tradicional do “babalotim” – do iorubá, “babá” (pai) + “otim” (cachaça), o pai-da-cachaça. O trio elétrico, por sua vez, é mais um produto de nossa disposição para o sincretismo cultural.

Dodô e Osmar eletrificaram o frevo pernambucano, para criar o frevo baiano. Colocaram um trio básico em lugar da orquestra – e instrumentos de cordas em vez de naipes de metais. Sem ter conhecimento da guitarra elétrica – já existente nos EUA, mas inexistente no Brasil –, eles como que inventaram pela segunda vez o instrumento, aqui batizado de “pau elétrico”, que evoluiria para a chamada “guitarra baiana”, de som próprio, característico. Por fim, a idéia de tocar em cima de um carro, passeando pela cidade, gerou um novo modo de brincar o carnaval. A partir dessa época, fica cada vez mais fácil dizer que o Brasil não é “o país do carnaval”, como se lê no título do romance de Jorge Amado – e sim um país de “muitos carnavais”, como se ouve na canção de Caetano Veloso. É verdade que a nossa grande festa popular poderia sugerir, à primeira vista e ao olhar desatento, a falsa homogeneidade que os mais distraídos costumam supor numa noite estrelada. Mas não é bem assim. De cidade a cidade, diferenças razoáveis começaram a ir se fixando. O contraste mais freqüentemente assinalado, com relação a essa variedade de espécimes carnavalescos, é aquele existente entre o carnaval do Rio de Janeiro e o carnaval da Cidade da Bahia. O carnaval carioca foi se convertendo, principalmente, num espetáculo, com uma divisão entre palco e platéia. O que, de resto, contraria o modelo clássico que encontramos na história do carnaval no Ocidente, dos permissivos festejos romanos em honra de Saturno aos carnavais da Idade Média, onde a idéia de uma separação palco/platéia, teatralizando a festa, seria simplesmente impensável. O carnaval baiano se encaminhou justamente para essa fisionomia clássica: uma festa frenética, vivida por todos. Nesse momento de definição, a elite estava recolhida, sem botar os pés na rua. Seguia da sala de casa para o salão do clube. E Caetano Veloso se divertia: “todo mundo na praça/ e muita gente sem graça/ no salão”. Hoje, é claro, as coisas já não são as mesmas. Mas não vamos apressar o passo. Na década de 1970, a festa baiana experimentou diversas e grandes mudanças. No espaço público, os trios elétricos explodiram, tornando-se mais e mais tecnológicos e espalhafatosos. Passaram a repercutir nacionalmente. A ser sinônimo de festa em todo o país. Outra grande mudança pode ser localizada no processo de turistização intensa de Salvador. E a época de maior fluxo turístico se dava, claro, durante os meses do verão. No centro, o carnaval. Nesse período, os turistas experimentavam, inclusive, sérios problemas de acomodação, devido à superlotação do parque hoteleiro. O carnaval passou, evidentemente, a gerar divisas. A ser importante para a economia da cidade. Vale dizer, converteu-se, também, em questão política, administrativa e empresarial. E é óbvio que uma transformação de tal ordem não poderia deixar de afetar a sua forma e a sua estrutura. A terceira grande mudança disse respeito à dimensão negra de nosso carnaval. Depois de um refluxo em que praticamente desaparecera, ela se avivou de vez, com o renascimento do Afoxé Filhos de Gandhi, o surgimento do chamado “bloco afro”, com o Ilê Aiyê, e a formação de uma espécie de neoafoxé, o Badauê. Ocorreu então uma “reafricanização” do carnaval baiano, que, de certo modo, também “reafricanizaria” a Cidade da Bahia. Apesar do prefixo latino “re”, todavia, devemos dizer que o que se teve então pela frente foi um carnaval de cara nova, com as entidades “afrocarnavalescas” dividindo com os trios elétricos o espaço carnavalizado de Salvador. Eram organizações formadas principalmente por nossa juventude negromestiça, ostentando nomes africanos e carreando levas de pessoas cobertas de batas e búzios, exibindo trancinhas variadas e

caprichosas, não raro ao som de cantos que remetiam às culturas negras, especialmente ao repertório iorubano. Lembro aqui que Frantz Fanon costumava dizer que toda comunidade segrega a sua própria luz. Eis aí uma bela metáfora para uma alquimia comunitária que parece resistir às tentativas de investigação empírica. Mas, para além dessa alquimia, duas coisas afetaram diretamente a juventude negromestiça que, criando-se (e se alfabetizando) em meio ao “milagre econômico” brasileiro, lançou-se à formação de novos afoxés e blocos afros. De uma parte, modelos estético-políticos fornecidos pelos negros norte-americanos. De outra, uma nova visão da África, nascida da libertação dos últimos redutos continentais sob domínio branco – significativamente, colônias de Portugal, como nós no século XIX. Eram novos países de língua portuguesa pontilhando o cenário internacional. E isso bateu forte no tambor do Brasil. Da animação norte-americana, devemos destacar a presença da música. Black soul era a senha mágica, num movimento florescendo nas principais cidades brasileiras. Eram milhares de jovens que, reunidos em torno da soul music, celebravam a grandeza da raça negra, autodenominavam-se blacks, achavam que rock era conversa fiada e que o samba tinha se vendido aos brancos. Mas as coisas logo tomaram outro rumo. Do black soul à “negritude” brasileira. E a Bahia, por determinações culturais óbvias, foi o lugar da passagem do soul ao, digamos, ijexá – estilos mesclando-se em algo que bem mereceria o nome de “blackitude” baiana. Além da via musical, havia as movimentações políticas dos negros norte-americanos, vivendo dias quentes de radicalização black power. Embora as notícias chegassem aqui de forma fragmentária, é inegável o fascínio que exerciam sobre a juventude negromestiça. Por outro lado, como disse, a empolgação diante da vitória das guerrilhas africanas era geral. Fechando o circuito, surgia o Movimento Negro Unificado Contra a Discriminação Racial. Em resumo, foi dessa trama de música, poder negro e revoluções negroafricanas – numa vida mestiça fortemente marcada por formas e práticas culturais de extração africana – que nasceram as novas entidades afrocarnavalescas da Bahia. Por fim, a situação atual do carnaval baiano é, como disse, de transição. Num sentido preciso. O que hoje se impõe, acima de tudo, é a questão econômica. Paulo Miguez – autor de uma tese intitulada Carnaval Baiano: as Tramas da Alegria e a Teia de Negócios – chega mesmo a afirmar que Salvador é hoje “uma cidade que tem a sua vida econômica centrada nas tramas da economia simbólica, nas tramas da festa, nas tramas dos produtos e dos bens culturais”. Indo do mercado regional de música às empresas carnavalescas (e afrocarnavalescas, como o Olodum), essa economia, que funciona o ano inteiro, tem, no carnaval, uma expressão especialmente concentrada. Desse ponto de vista, a economia do carnaval, com a sua rede de investimentos e o seu mercado de trabalho, é um caso ou um momento intenso de uma economia do lúdico. O carnaval não pode ser pensado, hoje, fora dessas determinações. É o carnaval-negócio, no contexto maior da economia da festa. E a folia está passando, sem dúvida, por um processo de reconfiguração. Um dos problemas diz respeito à relação entre o público e o privado. Ao se cercar

de cordas, criando um espaço exclusivo para associados, blocos desfilam privatizando a rua, como se fossem salões-de-clube em movimento. Com isso, corre-se o risco de enterrar o velho “modelo participativo” da festa, onde todos tinham lugar. O negócio impõe, também, a mesmice estéticomusical. A ditadura do “mamãe-sacode”. Cantoras de origem e formação diversas se transformam em “clones” umas das outras. E assim por diante. É claro que não posso prever onde isso vai dar. De qualquer modo, em meio à padronização mcdonaldiana da “axé music”, tivemos o salto mestiço criativo dos tambores do Olodum e das timbaladas de Carlinhos Brown. Mas é também verdade que a nossa festa, espremida entre o carnaval-espetáculo do Rio de Janeiro e o carnaval-participação de Pernambuco, pode entrar em parafuso, até mesmo por suas atuais práticas e discriminação social e racial, que querem excluir do centro da cena aqueles que sempre fizeram a sua beleza. SER NEGRO EM SALVADOR Podemos falar de dois momentos cruciais na história das relações sócio-raciais no Brasil, ao longo do século XX. O primeiro se deu na década de 1930; o segundo, na de 1970. Mas com uma diferença fundamental. O primeiro momento se processou sob o signo do chamado “integracionismo”. Aqui, a “integração” do negro (ou do negromestiço), na sociedade brasileira, passava pelo “embranquecimento” cultural. No segundo momento, ao contrário, a participação negromestiça, em nossa vida social, se fundou na afirmação enfática da “negritude”. Vejamos mais de perto. Como disse, os anos trintas foram uma espécie de turning point na história das relações raciais brasileiras. Não há campo do pensar e do fazer, naquela década, no qual não aflore, com intensidade variável, a nossa questão socioantropológica. Foi a época da projeção do Candomblé e da formação do Umbandismo; da expansão e do aprofundamento dos estudos sobre negros e mestiços, com a recuperação da obra de Nina Rodrigues e os trabalhos de Gilberto Freyre, Renato Mendonça, Arthur Ramos, Edison Carneiro; dos congressos afrobrasileiros de Pernambuco e da Bahia; da definição, em pauta barroco-mestiça, da escola brasileira de futebol; do romance de Jorge Amado; da afirmação massiva da música popular brasileira, fundada em elementos negromestiços; do surgimento das “frentes negras”, pregação “integracionista” que desembocaria, em parte, numa leitura nazifascista do mito de Zumbi, então visto como um führer de ébano; etc. O “integracionismo” das frentes negras pode ser resumido em poucas palavras. Reivindicava-se, ali, a superação das assimetrias sócio-raciais brasileiras, com o fito de remover a distância existente entre a nossa realidade jurídica e a nossa realidade social. As elites negromestiças queriam franqueadas, também para elas, as possibilidades democráticas da sociedade capitalista. Tal como previsto em lei. Daí o sociólogo Florestan Fernandes tê-las definido, em A Integração do Negro na Sociedade de Classes, como uma espécie de vanguarda puritana do radicalismo liberal. O negro queria ser “aceito”, esta é a palavra-chave. Só que tal aceitação implicava uma renúncia: ele deveria, primeiro, se negar enquanto negro. A aceitação trazia, colada em si, a sua própria negação. Verdade que em 1937 o golpe estadonovista decretou um cala-te boca geral no país. Mas nem por isso os processos psicossociais antes deflagrados deixaram de encontrar modos de seguir cursos

alternativos, subterrâneos e mesmo subliminares. Para se ter uma idéia do que houve, basta lembrar que, ao tempo em que estourava o Brasil Pandeiro do baiano Assis Valente, em que Caymmi se projetava na cena musical brasileira e em que Leônidas, o “diamante negro”, se firmava até como precursor pop das campanhas publicitárias de Pelé e Ronaldinho, o etnólogo Edison Carneiro, perseguido pela polícia do Estado Novo, refugiava-se no Axé do Opô Afonjá, onde a ialorixá Aninha o escondeu, deixando-o ficar no peji de Oxum, aos cuidados de uma moça que seria a futura Mãe Senhora. Nessa época, começava a ganhar alguma nitidez, na Cidade da Bahia, a existência de um segmento negromestiço nas camadas médias da população. Falamos já de ascensão social do preto e do mulato em finais do século XIX. A miscigenação era, aliás, um mecanismo de promoção social e econômica. A educação, outro. Mas esse embrião de classe média negromestiça só vai ganhar maior visibilidade na década de 1930. Em Etnicidade – Ser Negro em Salvador, Jeferson Bacelar escreve que “a partir de 1930, pelo dinamismo da administração pública, afirma-se a demanda de um novo tipo de mão-de-obra e serviços educacionais. Desta forma, com o sensível crescimento numérico da população empregada, de maneira segura e estável, em ocupações burocráticas, observa-se o fortalecimento de um estrato médio de assalariados. Surgirá, assim, mais uma oportunidade para o negro individualmente, tornando-se a educação um dos mecanismos condicionadores da sua ascensão social”. A “frente negra” apareceu na Bahia, portanto, quando já contávamos com o esboço razoável de uma classe média negromestiça. O tema foi estudado pelo supracitado Bacelar, em A Frente Negra Brasileira na Bahia. Numa cidade cujas organizações de “gente preta” se limitavam a irmandades religiosas e a associações operárias e beneficentes, o surgimento da Frente Negra da Bahia, filiada à Frente Negra de São Paulo, foi, certamente, uma novidade. Idealizada e presidida pela interessante personalidade de Marcos Rodrigues dos Santos, nossa “frente” se colocou na “defesa dos direitos e interesses” dos negros, concentrando o seu trabalho em dois pontos: educação e “levantamento moral da raça”. Em termos educacionais, a Frente dava cursos de alfabetização, datilografia, música e línguas. Quanto ao segundo item, o que estava em tela era não só a solidariedade, como o orgulho racial. Aqui, a proposta da Frente insistia, por sinal, na necessidade de se “trabalhar pela formação da elite da mulher negra”. “Uma das perspectivas alentadas pela organização era a criação de uma nova imagem para a mulher negra”, frisa Bacelar. E nada mais justo. Numa sociedade em que os brancomestiços teimavam em reduzir a fêmea preta a mero instrumento de trabalho – e a mulata, à categoria de objeto sexual –, qualquer esforço em favor do orgulho racial teria que passar, necessariamente, por uma reconstrução social da imagem da mulher negromestiça. Bem. No plano ideológico, não havia qualquer diferença entre as frentes negras de São Paulo e a da Bahia. Ambas se moviam sob o signo do “integracionismo”. Bacelar: “Assim como em São Paulo, a Frente Negra baiana não vai contra a ordem social, política e econômica estabelecida. O que ela pretende é a integração do negro, através da conquista das oportunidades e garantias sociais

legalmente consagradas pelo regime vigente. E essa conquista se daria pela imitação dos exemplos fornecidos pelos próprios brancos”. A grande diferença entre as duas frentes vai estar, assim, na dimensão da repercussão social de suas práticas. Em São Paulo, são os setores médios da população negromestiça que respondem, ativamente, ao apelo frentenegrino. Na Bahia, ao contrário, a incipiente classe média negromestiça não quer saber de conversa – menos ainda, de envolvimento – com um discurso e uma ação que se centram no problema racial. Mais Bacelar: “a Frente Negra de Salvador é inteiramente rejeitada pela elite mestiça, auto-identificada e identificada socialmente como branca, bem como pelos pretos que atingiram alguma prosperidade material”. E ainda: “Ao contrário de São Paulo, a Frente Negra de Salvador é criada por um operário, dirigida por pretos e mestiços de condição bastante modesta e tem a participação exclusiva, ainda que pequena, da classe trabalhadora”. Enfim, o frentenegrismo baiano, apesar do seu ideário tímido e pacato, não conseguiu sensibilizar nossa classe média negromestiça. Pelo contrário, chegou a desagradá-la, como poderia prever qualquer observador treinado em psicologia social. Pretos e mulatos pertencentes à camada média da população reagiram muito mal, por exemplo, quando a Frente organizou um desfile de pretos pobres por uma rua comercial da cidade, com o objetivo de chamar a atenção para a miséria em que vivia nossa população negra. A Frente avivava a ferida que negromestiços classemedianizados queriam apagar, fantasiando-se de “brancos”. De qualquer sorte, a postura do pequeno punhado de frentenegrinos baianos, sublinhando e encarando nossa questão racial, irá repercutir adiante, na década de 1970. Chegaremos lá. Antes disso, porém, ocorreu um outro processo, que exige realce. Em seu estudo O Candomblé da Bahia na Década de Trinta, Vivaldo da Costa Lima chama a atenção, no campo da história social da Bahia naquele período, para o “crescente empenho do negro em sua luta pela identidade cultural e participação política”. Os terreiros de candomblé, em especial, se organizavam e se expandiam – e isto, sublinhe-se, num momento em que praticamente já não existiam africanos entre nós. Assim, no pólo oposto ao da autonegação negromestiça diante do frentenegrismo, vamos encontrar, na mesmíssima época, a vigorosa afirmação etnocultural dos terreiros, onde aliás se agrupavam, sob o manto imponente dos orixás, tanto negromestiços pobres quanto negromestiços classemedianos. Vivaldo da Costa Lima: “Os candomblés cresciam em número e afirmavam-se com a apropriação de valores da sociedade inclusiva. Capitalizavam-se. Compravam terrenos nos limites do centro urbano. Construíam terreiros que se tornariam centros comunitários, com organização hierárquica bem definida e rigorosa, em que a autoridade do líder e a solidariedade intergrupal eram a norma dominante e indiscutível. Criavam-se sociedades dentro dos terreiros, com diretorias executivas que se encarregavam das relações efetivas de cada grupo com o sistema de poder do Estado e, sobretudo, estendiam a rede do parentesco ritual para além das fronteiras étnicas e de classe. E as ‘religiões africanas’ do tempo de Nina [Rodrigues], já eram, para Ramos e Carneiro, ‘religiões negras’. Religiões do povo negro da Bahia”. Adiante, Vivaldo – ele mesmo um mulato refinado, culto, que se tornaria ao mesmo tempo professor universitário e Obá de Xangô –, sintetiza: “Respeito à tradição. Emergência de novas

lideranças. Crescente afirmação social e política das comunidades dos terreiros, a par da recorrente repressão policial. Este, num amplo espectro, o quadro dos candomblés da Bahia na década de trinta”. Na verdade, até mesmo a repressão policial parecia conspirar, a longo prazo, a favor dos terreiros: perseguidos pela polícia (ficou célebre, por comandar a repressão, o delegado Pedro Gordilho, retratado como Pedrito Gordo, em Tenda dos Milagres), esses templos do povo-de-santo foram se deslocando do centro da cidade para a sua periferia rural ou semi-rural, o que acabaria favoneando a preservação de princípios e práticas ancestrais, prontos ambos para reemergirem íntegros, ou quando nada menos corrompidos, em circunstâncias mais propícias. Claro. No isolamento, ficava mais fácil preservar a forma básica das atividades rituais, com a desnecessidade de apelar para disfarces deformantes, que vão submetendo os ritos a uma erosão contínua. Dentre as personalidades fortes do Candomblé, nessa época, sobressaem as figuras de Martiniano Eliseu do Bonfim, o babalaô Ojeladê, e de Eugênia Ana dos Santos, Mãe Aninha, a ialaxé Obá Biyi, que hoje adquiriram uma espécie de estatura mitológica no seio de sua gente, com Aninha se convertendo, inclusive, em referencial dos movimentos ecológicos na Bahia. Vivaldo: “Martiniano e Aninha são atualmente nomes lembrados na tradição oral de todos os terreiros da Bahia, mitificados já, na lembrança da ‘gente de santo’, dos que os conheceram em vida e dos que ouviram contar histórias de seu poder, de seu conhecimento, de seu imenso prestígio. Nessas duas figuras singulares bem que se poderiam identificar as clássicas categorias weberianas da legitimação do poder, no caso, do poder teocrático exercido pelos pais e mães dos terreiros da Bahia: eram eles pessoas que conheciam suas origens étnicas e culturais. Dotados de um superior conhecimento das tradições e reconhecidos por toda a gente como detentores legítimos do saber religioso, dos ‘fundamentos’ como se diz na linguagem dos terreiros; formados nos rigorosos cânones do ritual, dos sacrifícios, do questionamento do destino, das cosmogonias, das teogonias e da ação corretora das normas Martiniano e Aninha eram, ainda, dotados de uma aura carismática emanada de suas personalidades poderosas, plenas de sabedoria e de mistério”. Ojeladê e Obá Biyi foram, juntamente com Jorge Amado e Edison Carneiro, peças fundamentais para o estabelecimento de conexões sólidas entre o mundo dos terreiros e o mundo artísticointelectual, com repercussões profundas na vida social baiana – e brasileira. Bom exemplo desse encontro, cujos efeitos se prolongam até hoje, pôde ser visto na realização do II Congresso AfroBrasileiro, acontecido na Cidade da Bahia, em janeiro de 1937, sob a presidência de honra de Martiniano. Nesse evento, artistas, intelectuais e sacerdotes do candomblé se reuniram para discutir, sob luzes variadas, aspectos diversos da presença negra no Brasil. E todas essas coisas – da expansão dos candomblés ao citado Congresso, passando pela projeção de Obá Biyi – vinham ocorrendo ao mesmo tempo em que Jorge Amado narrava as aventuras de Jubiabá e Caymmi emitia a sua voz grave, ao som de um violão quase percutido, para celebrar a beleza e o poder da deusa dos egbás, Iemanjá, a Grande Mãe, senhora das águas, rainha do mar. A década de 1930 preparou o terreno e assentou as bases, portanto, para a afirmação da cultura negra, pelo fascínio que esta exerceu sobre artistas e intelectuais, pelo fortalecimento e expansão dos terreiros e, também, pelo jogo de cintura do “povo-de-santo” com relação ao sistema de poder.

Quanto a este último aspecto, aquela foi a época em que profissionais liberais, políticos e autoridades policiais passaram a freqüentar, de modo numericamente mais significativo, os templos de orixás. Vivaldo da Costa Lima observa, a propósito, que eram “marcantemente dialéticas” as relações de poder “entre os terreiros e a sociedade inclusiva dominante, como se verifica no caso de Jubiabá [o babalorixá de carne e osso, não o homo fictus de Jorge Amado]. Essas relações envolviam proteção e amizade como discriminação e violência. É certo que os grandes terreiros raramente sofriam a agressão predatória da polícia e do noticiário dos jornais que refletiam, de certa forma, a ideologia da classe dominante”. Nem é surpresa que se constate, nessa nova conjuntura, uma alteração no tom da imprensa, ainda que esta permaneça (e continue, como vimos no caso da criação do Ilê Aiyê, em 1974) predominantemente etno-cêntrica e mesmo racista. Prossegue Vivaldo: a década de 1930 “já mostrava uma certa mudança no discurso repressivo – e catolicamente orientado – do noticiário dos jornais baianos”. O próprio Edison Carneiro muito contribuiu para isso, organizando para a imprensa local uma série de longas reportagens sobre os candomblés. Em suma, a transformação da sensibilidade da sociedade global para a cultura negromestiça já começara – para se consumar na década de 1980, quando, aliás, o culto dos orixás perderia terreno para os diversos pentecostalismos e universais-dedeus, em meio às camadas populares, transformando-se quase que numa religião de elite (da elite negromestiça, basicamente, mas não só, como bem sabe quem conhece nossos terreiros). Entre as décadas de 1970 e 1980, tivemos, enfim, a consolidação de uma classe média negra (ou negromestiça, para ser mais exato) na Cidade da Bahia. Ao que tudo indica, o crescimento desse setor médio negromestiço, durante a década de 1940, foi apenas vegetativo. Na década seguinte – especialmente, após a chegada da Petrobrás –, houve alguma ampliação. Mas a dilatação continuou em ritmo lento, até que ocorreu um aumento na oferta educacional e veio o “milagre econômico” de Médici-Delfim. Bacelar, mais uma vez: “Prosseguia a ascensão social individual dos negros baianos, alargando-se a sua possibilidade de participação na economia e na sociedade. Com a expansão da estrutura educacional e a reforma universitária, gerando explosivo aumento de matrículas, apresentase a instrução como outro mecanismo favorecedor da mobilidade do negro”. O próprio Movimento Negro Unificado Contra a Discriminação Racial é filho do “milagre”, da expansão do sistema educacional e dos mass media. Hoje, a existência dessa classe média negra é uma realidade óbvia da vida na Cidade da Bahia. O economista e sociólogo Luiz Chateau-briand Cavalcanti fornece dados precisos e interessantes a seu respeito. No momento em que escrevo, a Região Metropolitana de Salvador, segundo Chateaubriand, conta com cerca de 100 mil indivíduos cujo rendimento mensal fica entre 10 e 20 salários mínimos. Sociologicamente, essas pessoas integram o estrato médio da população. Pois bem: desses 100 mil indivíduos, 50 mil são negros, somando algo em torno de 7% da população negra (ou negromestiça) empregada. Em sua maioria, homens. E mais – em termos escolares, esses 50 mil negromestiços têm, pelo menos, o segundo grau completo. Como se vê, os números indicam duas coisas. Primeiro, que a grande maioria da população negromestiça empregada (mulheres, em especial) recebe menos de 10 salários mínimos mensais. Segundo, que já é considerável, numericamente, a extensão da classe

média negra em Salvador. Mas voltemos à década de 1970. Ao segundo momento decisivo na história de nossas relações sócio-raciais, quando a questão se impôs definitivamente entre nós. Foi um momento tenso e intenso, uma conjuntura de questionamento geral da imagem do Brasil e dos brasileiros – na política, no cinema, na música popular, na religião, no carnaval –, com vistas à construção de uma sociedade democrática em nossos trópicos. No campo da movimentação negromestiça, todos os empenhos convergiram para marcar uma diferença – a do “ser negro” –, num horizonte tomado, quase que de uma ponta à outra, pela ideologia do pluralismo cultural. Uma observadora estrangeira, Sheila Walker, chegou a comparar aqueles anos ao que a década anterior significara para os “afro-norteamericanos”. Para encetar essa afirmação do “ser negro”, num presente social bem definido, os segmentos mais irrequietos e reflexivos dos negromestiços brasileiros se viram às voltas com um triplo esforço de “apropriação”: apropriação do próprio passado, apropriação do presente africano e apropriação do presente negro norte-americano. De saída, um bom número de negromestiços (especialmente, os mais letrados) teve que se apropriar do próprio passado negro brasileiro, tendo como referências básicas o quilombo e o Candomblé. Era a situação complexa dos que se acharam diante da tarefa de se apropriar de uma tradição, da qual muitos se achavam distantes, em decorrência, inclusive, dos processos de modernização e escolarização, intensificados durante a ditadura militar. No caso do Candomblé, podemos destacar duas cartadas extremas, na conjuntura de demarcação do “ser negro”. Numa ponta, caiu-se na fábula de que só-negro-entende-coisa-de-negro. Era a tal da “metafísica somática” de que falava o escritor (negro) René Depestre, com a sua implicação de que um negro jamais seria capaz de entender o budismo (coisa de amarelo) ou a física quântica (coisa de branco). De outra parte, o “estado maior” das veneráveis ialorixás da Bahia, sob a “mão da doçura” de Meninha do Gantois, chegou a ensaiar uma ruptura com a complexa e centenária realidade do sincretismo religioso. A Igreja Católica foi a primeira a tentar o corte, sob a camuflagem de uma luta pela “depuração” das festas populares da Bahia. A tentativa resultou em fracasso. E veio a reação do Candomblé. A importância histórica do gesto é indiscutível. As mães-de-santo reivindicavam, para o Candomblé, o estatuto de religião independente. Especial – e específica. Mas é claro que, também nesse caso, seria impossível abolir o sincretismo, solicitando ao povo brasileiro uma radical opção de fé. E as ialorixás acabaram tendo que reconhecer que, para além da beleza e da dignidade do gesto ensaiado, era preciso ir devagar com o andor. Havia ainda um outro aspecto, mais teórico, nessa questão. Em A Lógica da Escrita e a Organização da Sociedade, Jack Goody observou que os praticantes das religiões alfabéticas entregam-se comumente a apenas uma forma religiosa e podem ser definidos por seu apego a um Livro Sagrado. As religiões africanas, diversamente, seriam mais flexíveis, em conseqüência da própria flexibilidade e da capacidade incorporativa que tendem a marcar a situação oral. Neste sentido, o sincretismo pode ser visto como uma negação do exclusivismo religioso letrado. O politeísmo extra-ocidental iletrado não é exclusivista. O dualismo ou a pluralidade de cultos, numa mesma pessoa, não é visto como anomalia. A disposição anti-sincretista é, no Brasil como em outros

lugares, mais uma atitude intelectual do que uma postura popular. Não foi por acaso que a investida do Candomblé contra o sincretismo se deu no momento em que a religião dos orixás se firmou no mundo da escrita. Recentemente, aliás, a própria Stella de Oxóssi, ialorixá do Axé do Opô Afonjá, publicou livros como E Daí Aconteceu o Encanto e Meu Tempo É Agora. Em todo caso, a bi(ou tri)religiosidade brasileira não se abalou diante dessas investidas contra o sincretismo. Prosseguem as crenças paralelas, aqui e ali apresentando pontos de contato entre si – e mesmo de intercruzamento. O que ficou de positivo, da tomada de posição do Candomblé, deve ser visto em termos de uma definição de território. Da delimitação nítida de um campo religioso, que pela primeira vez se assumia com tal intensidade, em toda a história das religiões no Brasil. No terreno extra-religioso, a apropriação do passado negro brasileiro gerou outro dado significativo: a instituição do dia 20 de novembro como Dia Nacional da Consciência Negra, em homenagem a Zumbi dos Palmares. Colocava-se assim um marco político-cronológico no terreno de uma história especificamente negra, aqui centralizada na rebeldia quilombola. E tentava-se esvaziar a data do 13 de Maio, dia em que a princesa Isabel assinou o decreto que abolia o trabalho escravo no país. Olhando à distância, hoje, podemos ter um pouco mais de equilíbrio. O maniqueísmo da época produziu uma rejeição total do 13 de Maio, como se a abolição oficial da escravidão não tivesse sido, também ela, uma vitória negromestiça. Mas isso não significa não reconhecer a justeza e a importância política da instauração de um Dia Nacional da Consciência Negra. O 20 de Novembro veio para engrossar o caldo da “negritude”. E engrossou. Já a apropriação de modelos norte-americanos pode ser encarada de dois ângulos. No campo estético, o que ocorreu foi relativamente simples. A juventude negromestiça se apropriou de signos vestuais e gestuais, além de ter incorporado o slogan black is beautiful. Em contrapartida, a conversa se complicou na esfera política. Líderes negromestiços radicalizaram, tentando aplicar, no Brasil, o padrão racial dicotômico em vigor nos EUA (curiosamente, no momento em que surgia, nos EUA, um movimento de reivindicação da bi-racialidade, reagindo contra a regra da descendência). Felizmente, foi por água abaixo, entre nós, o mito da “democracia racial”, há tempos combatido pela sociologia brasileira. Mas a tentativa de imposição do padrão dicotômico norte-americano – a hypodescent rule, classificando como rigorosamente negro quem quer que tenha a mais remota ascendência negra – parecia fadada de antemão ao fracasso. Na verdade, os líderes aludidos adotavam uma postura curiosa, lamentando que entre nós os papéis raciais não fossem tão definidos quanto nos EUA: era uma pena que tivéssemos em nosso passado a bagunça lusitana e não a separação drástica que os britânicos haviam imposto em suas colônias... Daí a dificuldade de delimitação de um “ser negro” em nosso ambiente, ainda que num momento propício, quando a sociedade brasileira aumentava a mil o volume de seus discursos acerca do pluralismo cultural (a propósito, Peter Fry e outros frisam que, entre as décadas de 1960 e 1970, assistimos a uma alteração em nosso campo discursivo, com a substituição do paradigma marxista/desenvolvimentista pelo paradigma do pluralismo). Por isso e por aquilo, a tentativa de dicotomizar à americana o amplo e sutil espectro cromático brasileiro, substituindo o mosaico racial pelo pattern extremista, não teve a eficácia desejada. Mas o que importa, numa avaliação retrospectiva, é que o aceno à regra da

descendência também confluiu para o fortalecimento da autoestima do pretomestiço brasileiro, negritando, como se queria, o diferencial étnico. Por fim, a “apropriação” da África. Houve uma grande mudança em nosso modo de olhar a África e as coisas da África. Examinando o assunto hoje, da perspectiva confortável da mirada retrospectiva, sabemos que se tratava, regra geral, de uma África mítica, encarnação de todo o Bem. De uma espécie de santificação de um espaço geográfico que se supunha culturalmente unidimensional. Ao contrário, a África é, todos sabem, um continente onde vivem povos diversos, que falam línguas diferentes e têm visões de mundo e modos de vida bem distintos entre si. Mas o que ocorreu naquela época, entre nós, foi, quase sempre, uma percepção da África em globo. Um nivelamento total. Antes que um continente vivo, plúrimo, esfervilhante, a África mais sugeria então aquele monólito que aparece no início do 2001 de Stanley Kubrick, como se a vasta sinfonia africana fosse redutível a um samba de uma nota só. Além do monolitismo, havia um panafricanismo naïf. Mas, na conjuntura de que estamos tratando, também essa percepção teve a sua função positiva, aumentando a confiança dos negromestiços em suas próprias forças. Resumindo, talvez seja mesmo correto falar, com relação a toda essa agitação política e cultural dos negromestiços, em “etnocentrismo negro”. Ou em “racialismo”, para relembrar a expressão cara a Sheila Walker. Um “racialismo” que chegou a barrar o ingresso da cantora negro-mestiça Margareth Menezes no Ilê Aiyê, por ela não ser considerada suficientemente negra para fazer parte do bloco. Hoje, isto soa estreito, num tempo em que se dá um tratamento especial ao conceito de “identidade múltipla”, que reconhece que um só indivíduo é capaz de manter relações diversas com o organismo social e ser portador de uma identidade caleidoscópica, envolvendo classe, gênero, faixa etária, etc. Mas, no período em tela, o “etnocentrismo negro” foi mais do que útil. Os negromestiços brasileiros estavam concretamente engajados numa luta para negritar a sua very real cultural specificity. É o que vislumbramos no espaço para o qual convergiram os novos afoxés, os blocos afros, o black soul, a campanha contra o sincretismo religioso, a disposição panafricanista, as iniciativas do Movimento Negro Unificado. Tudo isso, como se viu, integra um mesmo movimento. Uma mesma onda. Configura um momento “racialista” ou “afrocentrista” extremado, na trajetória dos segmentos mais vivos e combativos da população negromestiça (e de seus aliados políticos e culturais) no Brasil – país que hoje assiste, aliás, à consolidação de uma espécie de neo-integracionismo, como o que se expressa na revista Raça, por exemplo. Foi abrindo e alargando essa estrada que os negromestiços conseguiram ampliar, numa escala até então inédita, os seus mecanismos de voice na vida do país. E assim falaram alto nas disputas, nos torneios e nos confrontos discursivos brasileiros do período. A festa carnavalesca foi o principal canal de afirmação étnica da juventude negromestiça. E modificou substancialmente a vida baiana. Diversos estudiosos apontaram já para essa realidade. Fry, Carrara e Martins-Costa, por exemplo, ressaltaram, em Negros e Brancos no Carnaval da Velha República (texto incluído na já citada coletânea Escravidão & Invenção da Liberdade), a importância política dos afoxés e blocos afros, vendo-os como passo necessário para os negros conquistarem a

“cidadania plena” no Brasil. Para isso, foi preciso passar pelo “racialismo”. Ideologicamente, um afoxé como o Filhos de Gandhi parece filho das “frentes negras” e de seu “integracionismo”. Nos anos 1970-1980, estávamos já longe disso. O negromestiço queria ser aceito, sim – mas aceito em sua singularidade, em sua diferença, como carta ostensivamente marcada. Esse foi o caminho da transformação.

A ECONOMIA DO LAZER Entre 1950 e 1980, a economia baiana mudou de cara. Radical-mente. Mas a criação de um distrito industrial em Aratu e de um complexo petroquímico em Camaçari trouxe consigo uma implicação importante, a que não costumamos dar a ênfase – ou, pelo menos, a atenção – devida. É que os centros industriais ficaram localizados fora dos limites político-administrativos de Salvador. Não pertencem ao território soteropolitano. Com isso, a Cidade da Bahia se definiu – pouco importa se por acaso – como um espaço urbano extraindustrial. Se não colocarmos esse fato no miolo mesmo de nossas reflexões, não chegaremos a nos aproximar do entendimento de uma dimensão fundamental do caráter assumido, em nossos dias, pela economia sotero-politana. A indústria baiana pode estar em Camaçari ou no sul do Estado, com o recente desempenho do setor de papel e celulose. Zonas agrícolas relevantes se formaram em Barreiras e no vale do velho Rio do Chico, dos rebentos da soja à fruticultura irrigada. Até um “pólo de informática” vai começando a se esboçar em Ilhéus. Mas nenhuma dessas coisas é achável em Salvador. A Cidade da Bahia, ela mesma, não produz nada disso. Nem matérias plásticas, nem papel, nem soja, nem uvas, nem mangas – e muito menos microcomputadores. O que há, aqui, é uma outra coisa. Para evitar rótulos previamente orientados, podemos então repetir: a Cidade da Bahia é – sem tirar, nem pôr – uma metrópole extraindustrial. A dimensão fundamental da sua vida econômica, a que fiz referência, cabe em poucas palavras. Salvador é, hoje, uma cidade centrada na economia do lazer. Com relação ao seu movimento, em nosso espaço citadino, essa economia do lazer se organiza, basicamente, em três vertentes. Na prática, vamos encontrá-las quase que invariavelmente entrelaçadas. Mas é certo que são também didaticamente destacáveis, ao menos para efeitos de exposição e análise. São elas: a economia do turismo, a economia do simbólico e a economia do lúdico (“uma complexa economia do lúdico que mobiliza milhares e milhares de pessoas, nas mais diversas atividades econômicas”, no dizer de Carlos G. D’Andrea Espinheira). Ao empregar a expressão “economia do simbólico”, tenho em vista o âmbito da produção e da comercialização da “cultura”, no sentido restrito do termo. É o mundomercado artístico-intelectual. Na “economia do lúdico”, fica a festa – ou, de um modo mais geral, a diversão. Como não há quem ignore, os números do turismo na Cidade da Bahia são, para a nossa escala e

contexto, altamente significativos. A preocupação com a matéria data da década de 1950. Em 1968, o Governo Estadual criou a Bahiatursa, mas a empresa cuidava apenas, inicialmente, de animar, via vantagens fiscais, o setor hoteleiro. No ano seguinte, elaborou-se o I Plano de Turismo do Recôncavo (em que deveríamos voltar a pensar, para reativar fogos e fogueiras do Paraguaçu). Mas as coisas só engrenaram na década de 1970, com a formação de uma rede hoteleira, a implantação do sistema ferry-boat, a construção do Centro de Convenções, etc. Entre 1971 e 1975, foi de 300% o aumento do número de aposentos em hotéis ditos “estrelados”. E, em 1975, a Cidade da Bahia recebia já uma safra de 640 mil turistas – brasileiros, em sua quase totalidade. Nos termos da anedota baiana, deixávamos de ser a cidade das 365 igrejas, para ser a cidade dos 365 hotéis. A partir daí, foram dez anos de crescimento. Ininterrupto. De saída, em 1976, o Governo Federal resolveu complicar as nossas viagens para fora do Brasil, presenteando-nos com uma lei que instituía o “depósito compulsório” para quem fosse ao exterior. O turismo interno deu um salto, obviamente. E a Cidade da Bahia saiu na frente, como estação turística favorita de paulistas e cariocas. Pesquisas realizadas naquela época revelam um quadro mais do que favorável à fixação de Salvador como pólo turístico nacional. Os brasileiros queriam viajar para praias e cidades históricas. Quando nada, para lugares que tivessem “comida típica”, “folclore”, “festas tradicionais”. Ora, Salvador era, ao mesmo tempo, praiana e histórica, possuindo ainda a sua culinária, uma cultura popular carregada de “exotismos”, e festas, muitas festas. O que não tínhamos era “vida noturna”, no sentido turístico da expressão. Mas havia o carnaval. E a visão, tecida desde dos tempos coloniais, de que aqui estava uma verdadeira “capital do prazer”. Cidade ensolarada, cidade lúdica, cidade exótica, cidade erótica. Paraíso sensual, que se fazia de sol, de som e de sexo. E o turismo foi crescendo. 1980 – 850 mil turistas; 1983 – 959 mil; 1986 – ponto mais alto até hoje – um milhão e trezentos mil visitantes. Entre estes, 110 mil estrangeiros: alemães, argentinos, italianos e franceses, principalmente. Veio então a crise de 1987-1990. O governo de Waldir Pires (continuado por seu vice) entregou o turismo às traças. O turismo, a cultura e a festa, a bem da verdade – e isto no pólo oposto ao do desempenho de Antônio Carlos Magalhães e sua equipe, que usam em suas performances, como traço midiático diferencial, uma ideologia da “baianidade” que passa, necessariamente, pela dimensão da cultura. Em todo caso, só a partir de 1991 começou a recuperação, rumo à relativa estabilidade dos dias mais recentes. E o que podemos dizer, numa avaliação geral, é que o turismo é um dos fatores centrais de nossa vida econômica, acionando, durante alguns meses, parte considerável da estrutura de gastos da cidade. Além dessa movimentação econômica gerada pelo turismo, temos, como disse, a economia do simbólico e a economia do lúdico. Aqui, é mais difícil separar as coisas. Embora contemos hoje com um razoável mercado para o teatro, por exemplo, e as empresas aqui existentes estejam investindo cada vez mais em “cultura”, o fato é que não é fácil, na Cidade da Bahia, destacar a produção cultural de uma economia da festa. No centro de quase tudo, está o carnaval. Em A Economia do Axé, artigo publicado recentemente na Gazeta Mercantil, o economista Armando Avena escreveu: “O gosto pela alegria e pela música e um certo jeito malemolente de ser forjaram na consciência nacional a imagem de que na Bahia tudo termina em festa e que o povo baiano cultiva, com certo orgulho, uma

preguiça tropical típica. Que na Bahia tudo termina em festa é evidente, o que não é tão evidente assim é a constatação de que a alegria é um dos principais produtos da economia baiana. E que esse produto gera emprego, faz a renda crescer e aumenta os impostos e o PIB. (...). O fato é que a economia do axé vem se disseminando de forma generalizada pelos setores econômicos tradicionais, dando margem a uma constatação irresistível: na Bahia, nunca foi tão lucrativo investir na alegria”. É toda uma vida econômica que se articula no – e a partir do – carnaval. Como o Rio de Janeiro, Salvador é uma cidade onde existe uma espécie de poupança da folia – isto é, as pessoas economizam, não raro se privando de coisas necessárias, com o objetivo específico de gastar no carnaval. Mas o lance, agora, é outro. Escreve Paulo Miguez (Notas sobre a Contemporaneidade Cultural da Cidade da Bahia): “É certo que o carnaval não representa a totalidade do universo da produção cultural da cidade. Mas é evidente que a produção cultural desencadeada pela festa carnavalesca, particularmente no plano da música, ao articular a cadeia trio elétrico-discos-shows, é o que constrói e dá suporte ao exuberante mercado de bens e serviços simbólico-culturais que caracteriza a cidade. Com efeito, é à volta do carnaval que a Cidade da Bahia, realinhando tradição e contemporaneidade, vai assistir, a partir da metade dos anos 80, a um fenômeno novo: a aproximação entre festa e indústria cultural”. Com os trios elétricos, os blocos-de-trio e os blocos afros, o carnaval assumiu um caráter claramente empresarial. A festa passou de três para sete dias. E acabou se espalhando quase que pelo ano inteiro, com discos, shows, ensaios, micaretas, etc., exportados para todo o país. Em suma, a festa se converteu, também, em negócio. Em fonte de renda e emprego. “É nesse cenário que à dimensão cultural da festa vai juntar-se uma complexa e extensa rede de produtores de bens e serviços simbólico-culturais, tanto do setor formal como informal da economia, dando corpo a um mercado praticamente permanente, que já se estende para além da cidade e do seu calendário festivo, configurando, dessa forma, o que pode ser classificado como uma economia do lúdico” (Miguez). Note-se, aliás, que alguns blocos já começam a criar franquias de seus produtos. Enfim, da comercialização de fantasias ao investimento em marketing, o que temos é um fenômeno econômico expressivo. Vamos aos números, convida Avena: “um levantamento preliminar permite estimar a massa de recursos mobilizada atualmente pela economia do axé em cerca de R$ 500 milhões, os cofres do estado e da prefeitura auferem uma receita de R$ 210 milhões, apenas com o Carnaval. Nesse período, cerca de 1,5 milhão de pessoas se envolvem com a festa, incluindo 200 mil turistas, resultando numa ampliação generalizada do consumo, especialmente no consumo de cerveja, que atinge um total de 18 milhões em latas. (...). O faturamento da indústria do axé é proveniente de várias fontes e envolve, além do Carnaval, a venda anual de discos, a comercialização das fantasias dos blocos, as centenas de shows e eventos e dezenas de outras atividades que antes pareciam ter pouco a ver com economia e rentabilidade. Como se não bastasse, é cada vez mais íntima a relação entre o turismo e o axé e calcula-se que cerca de 40% da população turística que visita Salvador vem atraída prioritariamente por sua produção cultural”. A visão de Carla Perez nua no Pelourinho, com trilha sonora afroeletricarnavalesca, pode ser tomada como signo dessa economia.

É claro que a projeção e a consolidação de uma economia do simbólico não são um fenômeno exclusivamente baiano. Dados oficiais do Governo Federal dizem que, em 1997, o “setor” cultural movimentou nada menos que 6,5 bilhões de reais, valor correspondente a 1% do PIB brasileiro. A diferença baiana está, justamente, no entrelaçamento turismo-cultura-festa, em terreno mercadológico (a simples relação cultura-festa, sem turismo e sem indústria, é bem antiga, como vimos a propósito da festa barroca, por exemplo). E com uma novidade, de acordo com Paulo Gaudenzi, atual secretário da Cultura e do Turismo. Atualmente, na Cidade da Bahia, a cultura é mais rentável do que o turismo. Em outras palavras, a Cidade da Bahia não só criou um mercado interno para os seus produtos simbólico-culturais, como passou a exportá-los de modo cada vez mais intenso. Economicamente, o fenômeno é, sem dúvida, altamente importante. Esteticamente, nem tanto. Da enxurrada musical, por exemplo, salvam-se tambores. A força percussiva do Olodum, por exemplo. Ou a Timbalada de Carlinhos Brown. Percussão que foi inclusive retrabalhada recentemente com violas, em plano erudito, pelo jovem compositor e maestro italiano Aldo Brizzi, no disco The Labyrinth Trial. Mas, regra geral, nossos artistas andam muito mais preocupados, atualmente, com os números do mercado do que com a linguagem da arte. É óbvio que a canção popular moderna é um produto comercial. Não é disso que estou falando. Mas, sim, da grosseira e lamentável veneração do deus-mercado, com a instância estética inteiramente submetida à lógica da caixa registradora. Isso é coisa para gerentes de vendas – e não para supostos compositores. Daí a mesmice gustativa do que hoje nos é oferecido. E que já começa a ser timidamente recusado pela própria população local. Prosseguindo, três comentários pedem passagem. O primeiro deles é que toda essa esfera da economia do lazer não parece estar especialmente sujeita ao efeito hoje mais lamentado do processo de informatização da sociedade, que é o chamado “desemprego tecnológico”. Para usar uma expressão técnica, trata-se de uma economia “intensiva em mão-de-obra”. É um setor que precisa de gente, muita gente, trabalhando. No cálculo do Governo Federal, cada milhão de reais investido em cultura gera 160 empregos, diretos e indiretos. Segundo o Ministério da Cultura, a produção cultural empregava, em 1994, 510 mil pessoas, no país. Número bem maior do que o de indivíduos empregados na fabricação de equipamentos e material eletroeletrônico, na indústria automobilística ou em serviços industriais considerados de “utilidade pública”, como energia elétrica, água e esgotos e equipamentos sanitários. Outro ponto é que a expansão da economia do lazer leva a uma revisão da expressão “mercado informal”. Claro. O conceito tradicional de “mercado informal” não pode ser entendido fora de dois marcos: a) ele foi formulado em função de um modelo ou padrão, que é o do trabalho contratualmente regulamentado; b) esse modelo ou padrão é o do trabalho na sociedade industrial. Desse ponto de vista, o mercado informal aparece, necessariamente, como um desvio da norma e, logo, como algo marginal. Ocorre que esse ponto de vista absolutiza um modelo de trabalho historicamente datado. Assim, o que define o mercado informal como uma anomalia é a ideologia industrialista, no sentido mais estrito da expressão. Ao contrário do que essa ideologia estabelece, contudo, o modelo por ela absolutizado não é

eterno. Em vez de ser uma sobrevivência do passado ou um desvio da norma atual, o trabalho informal cresce hoje, nas economias “avançadas” do planeta, justamente nos setores de ponta, como a informática. E sua tendência é crescer sempre mais. No caso baiano, ele se expande no espaço da economia do lazer. Não como disfunção ou desvio, mas como expressão de novos modos e possibilidades de estruturação da economia urbana de Salvador. Falar de mercado informal em nosso meio, historicamente, é falar de algo que vem dos negros-de-ganho do escravismo colonial e chega aos sonorizadores de shows e publicitários autônomos de hoje. Coisa bem diversa, portanto, de uma simples disfunção característica de uma determinada conjuntura urbano-industrial. Para o último comentário, volto a Avena. Na Cidade da Bahia, enquanto há festa, há trabalho. A festa é, de resto, o único meio de sobrevivência de muita gente. Economistas mais sisudos costumam se atrapalhar, aliás, porque, nesse caso, a “ética do capitalismo” pode escorrer pelo ralo – “é que às vezes é possível trabalhar cantando, é possível trabalhar e sorrir, é possível manter a alegria mesmo diante de tanta miséria e dificuldade”. Sim. É possível trabalhar entre gingas e bugigangas, não raro ao som de um assovio malandro.

METRÓPOLE E MEMÓRIA Empregamos algumas vezes, a propósito da Cidade da Bahia, vocábulos como “estagnação” e similares. Para compor uma imagem razoavelmente nítida dessa paralisia, é suficiente lembrar que, no final do século XVIII e no final do século XIX, a população da nossa capital foi praticamente a mesma, girando em volta dos 120 mil habitantes. Com a chegada do século XX, pouca coisa mudou. Houve algum esboço de modernização, com o “urbanismo predatório” das primeiras décadas do século. Mas nenhuma grande alteração. E entre 1920 e 1940 atravessamos anos depressivos. As coisas só começaram a mudar na década de 1940, que pode ser vista como marco inicial do nosso crescimento citadino. Sentiu-se ali, pela vez primeira, a necessidade de um planejamento urbano para Salvador. E surgiu o já citado Epucs. Aquela foi também a época em que se falou, em base algo “impressionista”, de um “enigma baiano”, sinal da tomada de consciência do nosso atraso, no panorama brasileiro. E em que apareceu, por aqui, o fenômeno das “invasões” – arregimentações coletivas de ocupação direta e extralegal de áreas da cidade para, na base do mutirão, transformá-las em zonas de moradia popular. E a cidade se movimentou. No governo de Octávio Mangabeira (19471951), tivemos a construção do Hotel da Bahia, do Fórum Ruy Barbosa, do Estádio da Fonte Nova e da avenida litoral ligando Salvador a Itapuã. Mangabeira rompeu com a rotina das pequenas obras. Com a timidez do administrador público baiano diante do espaço físico aberto. Mas foi só um começo. E insuficiente. Antônio Sérgio Guimarães está certo ao dizer que, quando a energia de Paulo Afonso chegou à Bahia, em 1955, Salvador se achava “totalmente despreparada para o surto industrial que o projeto burguês acalentava”.

Foi sob o comando de um polêmico Antônio Carlos Magalhães (político de extração udenista, retemperado no chumbo grosso da ditadura militar, que, a partir da “abertura” de Geisel-GolberyFigueiredo, projetou-se, ao lado de Paulo Maluf, na linha de frente do populismo brasileiro de direita) e de sua equipe, em administrações mais ou menos sucessivas, que a cidade mudou, realmente, de figura. Em 1967, começaram a surgir as primeiras avenidas de vales (embora não possamos nos esquecer de que já havia sido feita a Avenida Centenário, “dentro dos princípios Epucs”, como frisa Américo Simas Filho). E foi aí que principiou não uma simples “reforma”, mas uma espécie de redimensionamento da realidade urbana da Cidade da Bahia. A opção foi clara – e lúcida. Tratava-se de preservar o centro histórico da cidade, nucleado na área do Pelourinho, e de conduzir a expansão por vales praticamente desabitados, em direção à região de Santo Amaro de Ipitanga. Duas obras foram fundamentais para a tessitura desse novo espaço urbano: a abertura da Avenida Paralela (assim chamada por correr de modo mais ou menos “paralelo” à orla marítima) e a construção do Centro Administrativo da Bahia, o CAB, que envolveu o urbanista Lúcio Costa e o arquiteto João Filgueiras Lima, mais conhecido pelo seu apelido, “doutor Lelé”. Simultaneamente, assistimos às implantações do CIA e do Copec. É toda uma nova Salvador que se articula nessa confluência. Mas vamos por partes. Em primeiro lugar, devemos considerar nosso pulo demográfico. Não há outra expressão. Em 1920, contávamos com pouco mais de 280 mil habitantes; em 1940, quase não ultrapassávamos os 290 mil; em 1950, nos aproximamos dos 400 mil; em 1960, ficava para trás a barreira dos 600 mil; em 1970, a cidade abrigava cerca de um milhão de habitantes. Como se pode ver, o processo foi muito rápido. Itapoã tinha quatro mil moradores em 1950 – em 1970, passou a ter mais de 22 mil. E o crescimento populacional não parou. A Cidade da Bahia foi inchando. E exibindo, obviamente, uma carência crescente em matéria de transportes, saneamento básico, ruas pavimentadas, água, iluminação pública, etc. O centro histórico ficou sobrecarregado e as zonas residenciais transbordaram, sem um correspondente incremento de serviços. A saída foi, então, abrir caminho pelos vales vazios, desocupados, alargando, assim, as nossas fronteiras urbanas. Avenidas penetraram então por esses vales. Túneis e viadutos surgiram para fazer as conexões necessárias, desafogando o centro histórico. Desenhou-se, enfim, uma rede. Um sistema de avenidas de vale, saindo das cumeadas da velha cidade-fortaleza de Thomé de Sousa. Mas esse sistema não poderia, por si só, deslocar o eixo da vida urbana. Em 1974, no texto O Planejador e o Centro Administrativo da Bahia, Mário Kertész escrevia: “Sem dúvida, as grandes avenidas vêm atendendo às funções previstas, na qualidade de vias de penetração para os vales desocupados e de pistas de circulação pela periferia. Consentiram no funcionamento da cidade sob um mínimo de ordenamento, indispensável à continuidade das atividades urbanas. Essencial tem-se revelado, sob esse ponto de vista, o papel que desempenham. Mas é virtualmente mínima a influência que tenham presentemente, ou venham a exercer no futuro, para a modificação da excessiva concentração de serviços no antigo núcleo urbano. Já se pode evidenciar, atualmente, o deslocamento rápido e fácil de um extremo da cidade até o outro, contornando o centro outrora obrigatório de ‘uma cidade de uma só rua’, como a própria gente de Salvador a denominava. As avenidas, entretanto, estão longe de evitar que a

população se veja obrigada a deslocar-se dos bairros periféricos para o centro, em fluxos de tráfego constantes e congestionados, em demanda de serviços essenciais, que ainda ali se aglomeram”. E mais: “O sistema de avenidas surgiu como uma solução válida, mas limitada à estrutura da cidade antiga. Todos os dados, contudo, recomendam presentemente uma solução não apenas urbana, mas de envergadura metropolitana”. Feita a análise, o mesmo Kertész, então ocupando a Secretaria de Planejamento, Ciência e Tecnologia, antecipava: “Surge o CAB [Centro Administrativo da Bahia] como a fixação de um novo pólo urbano, que atrairá e centralizará os serviços de administração pública, levando-os para fora e para o norte da cidade antiga. Não necessariamente uma nova cidade, mas uma influência polarizadora, que orientará a expansão urbana em escala metropolitana, daí devendo resultar o zoneamento residencial, comercial e industrial e a preservação de extensas áreas verdes. Decorrência não menos importante deste novo pólo será, para o presente e para o futuro, a criação de condições para resguardar o valioso acervo histórico e artístico da Cidade do Salvador”. No avesso mesmo do urbanismo seabrista, a “solução metropolitana”, imaginada pela equipe de Antônio Carlos Magalhães, estava, portanto, na construção do Centro Administrativo da Bahia. O CAB foi, assim, contemporâneo da implantação do Pólo Petroquímico de Camaçari. E foi pensado, estrategicamente, como um novo pólo urbano, capaz de, ao centralizar a administração pública, promover um redirecionamento das atividades citadinas. E o fato é que, feitas as coisas, a Cidade da Bahia deu uma guinada radical, voltando-se vigorosamente para o norte. Passou a ser a cidade das avenidas de vale e do CAB – com os seus prédios longos e estreitos, “soltos do solo, como se estivessem flutuando sobre o relevo caprichoso”, no dizer do arquiteto João Filgueiras Lima –, ao tempo em que assistia ao funcionamento do CIA e à instalação do Copec. Com o CIA e o Copec, a Cidade da Bahia passou a contar com o que se pode classificar como uma nova população industrial. É que os quadros técnicos trazidos para os distritos industriais não foram morar nas “cidades satélites”, gerando, inclusive, um interessante fenômeno sociológico, no encorpamento e às vezes inchaço de cidades sem elites. Em vez de fixar residência em Camaçari, Arembepe ou Santo Amaro de Ipitanga, as pessoas escolheram morar em Salvador (hoje, há uma relativa inversão desse movimento: gente que trabalha na capital e mora no litoral norte, especialmente nos chamados “condomínios fechados”, protegidos por barricadas). Mas aconteceu um processo curioso. Esses novos habitantes não elegeram, para a sua moradia, bairros tradicionais da cidade, como a Barra, a Graça ou o Rio Vermelho, por exemplo. Pelo contrário, superlotaram a Pituba – que, por isso mesmo, se converteu numa espécie de corpo estranho a Salvador, em seus hábitos e em suas práticas – e fizeram nascer novos bairros, como o Itaigara e o Caminho das Árvores. Eram lugares mais próximos dos distritos industriais. E como essa população ganhava razoavelmente bem, vivendo quase à margem de avenidas de vale e na soleira do Centro Administrativo, o núcleo comercial e econômico da Cidade da Bahia se deslocou com ela. Daí a localização do Shopping Center Iguatemi e dos vários prédios de escritórios que foram brotando quase que de repente, com uma arquitetura tipicamente noveau riche, dedicada a fachadas graficamente coloridas, alheias ao corpo mesmo das edificações, que permanecem conservadoras e

como que imunes à luz e à brisa do lugar. Para lembrar o Jorge Amado de A Morte e a Morte de Quincas Berro Dágua, começou a viver e a trabalhar, ali, uma gente que pouco tinha a ver com os antigos “ritos de gentileza” do povo da Bahia. Eram os nossos urbanitas repentinos, geralmente incapazes de distinguir entre um erê e um abebé. Com isso, o centro histórico perdeu a sua importância. Felizmente, havia já uma política para ele, desde o final da década de 1960. Antes que o processo de degradação atingisse o patamar da irreversibilidade, coisas começaram a ser feitas. E como a modernização da cidade fora corretamente direcionada para fora do sítio centenário, este ficou lá, à espera de sua recuperação. Casarões se arruinando, paredes enchendo-se de chagas, telhados destelhados, janelas decaídas, cheiro de urina tomando conta de escadas e de esquinas. Mas, ao mesmo tempo, crescia na cidade, da administração pública à chamada “sociedade civil”, a consciência de que Salvador não podia atirar longe o seu patrimônio, o grande conjunto urbanístico-arquitetônico herdado do período barrococolonial. Sabemos – e já muito bem, espero – que não é preciso ficar insistindo na importância fundamental da preservação da memória histórico-cultural de uma gente. Que uma cultura não pode ser concebida como um avanço atropelado em que as coisas vão sendo jogadas fora. Pelo contrário, ela se tece, como estamos vendo, na soma – nas encruzilhadas, nos passes e nos impasses – de todos os atos técnicos e expressivos nos quais se inscreve a criatividade de um povo. E a obra de recuperação de nosso centro histórico foi realizada. É claro que podemos discuti-la, do plano conceitual à minúcia da feitura. Mas o fato está lá, concentrado no Pelourinho. E para a nossa alegria. Graças às políticas públicas para o nosso espaço urbano, temos hoje, diante do nosso olhar, duas cidades. A cidade antiga, histórica, memória do que fomos – e somos. E a cidade moderna, signo do que estamos fazendo e do que queremos ser. Mas a relevância da recuperação de nosso centro histórico não diz respeito apenas ao passado. Fala, também, ao futuro. Ao que vamos ser e fazer. Em A Cidade e o Arquiteto, o italiano Leonardo Benevolo viu corretamente. Se temos, numa mesma área, duas cidades, podemos confrontá-las – e pensar na outra cidade que ainda vamos construir. Ou seja, nenhuma dessas duas cidades, a colonial-barroca e a moderno-capitalista foram inevitáveis. Não caíram do céu. São modelos contrastantes de cidade, podendo apontar para um terceiro modelo, menos caótico e predatório que o da cidade moderna. Modelos que sugerem que podemos – e devemos – sonhar. Diz Benevolo: “Ontem foi possível construir um ambiente diferente e ainda funcionante e amanhã será possível construir um novo ambiente, que respeite os mesmos valores essenciais, dos quais as habitações antigas já fazem parte, de um modo ideal. Por consegüinte, [os centros históricos] não nos interessam porque são belos ou históricos, mas porque indicam uma possível transformação futura de toda a cidade em que vivemos”. É a partir do Pelourinho e do CAB que temos que pensar, hoje, o futuro da Cidade da Bahia. É evidente que não é uma tarefa muito fácil, se quisermos ir um pouco além dos ideologemas sucateáveis, da falsa disposição para o diálogo e dos sofismas lobísticos. A Cidade da Bahia nos apresenta – agora – problemas e mais problemas, da questão da habitação à dos assim chamados “meninos de rua”. Nem poderia ter sido de outro modo, levando-se em conta a história urbana mais

recente do Brasil. Nossas cidades cresceram de forma inesperada, somando-se índices de natalidade e fluxos migratórios vindos de núcleos urbanos menores e áreas do campo. Foi, sem dúvida, um movimento cego, ainda que tateando luzes nem sempre disponíveis. O caso de Salvador é exemplar. A cidade cresceu de um modo enlouquecido. Fizemos verdadeiras acrobacias demográficas. E passamos a conhecer realidades e tensões inéditas. Para evitar dados batidos, lembre-se de que, em 1977, a cidade contava com apenas um “apart-hotel”. Se os “apart-hotéis” proliferaram, proliferaram também as favelas, os mendigos, os esgotos a céu aberto, os sustos e os assaltos. Como lembra Américo Simas Filho, no texto Desenvolvimento Urbano de Salvador, experimentamos, entre 1950 e 1980, um crescimento populacional da ordem de 300%. A vastíssima maioria dos edifícios da nossa cidade foram construídos da década de 1970 para cá – antes dos anos sessentas, eram raros os prédios altos, marcos esparsos no espaço urbano, como o Oceania, a sede da Petrobrás em São Joaquim, ou o Sulacap, mausoléu elefantino erguendo-se entre a Rua Carlos Gomes e a Avenida Sete. Com os seus dois milhões de moradores, a Cidade da Bahia apresenta hoje, em sua própria escala, um painel dos grandes contrastes brasileiros. Dos extremos da pobreza e da riqueza. De reluzentes automóveis importados a crianças esfarrapadas mendigando no raio dos semáforos. Da porta que se abre automaticamente quando vou em sua direção – e da poça de lama que fica à sua frente, à espera dos meus pés. Mesmo assim, temos conseguido tramar meios e modos de viver, de sobreviver e de subviver. Vale para nós, ainda hoje, a sábia observação do velho Jorge Amado: a nossa alegria é maior do que a nossa miséria. Na verdade, o que mais me preocupa, com relação à Cidade da Bahia, é uma outra coisa. Em função do jogo local de poder, dos interesses gerais do turismo, de uma certa ideologia da “baianidade” (que chega a contrariar as evidências empíricas mais chocantes, da situação de miséria de boa parte da população ao cultivo do mito de uma cidade invariavelmente solar, quando Salvador é um dos lugares onde mais chove no Brasil) e mesmo do próprio narcisismo baiano, as pessoas se comportam como se Salvador fosse uma espécie qualquer de ilha da fantasia, imune às questões mais graves que afligem o cotidiano brasileiro. Dito de outro modo, governo e sociedade civil se conduzem como se de fato vivessem num paraíso lúdico-praieiro dos trópicos, onde tudo é festa e espetáculo. Como se as discriminações sociais e raciais, a epidemia de dengue, a violência urbana, o analfabetismo, o desemprego e o narcotráfico, por exemplo, fossem problemas lá do Brasil, mas não da Bahia, esta ínsula bem-aventurada, feita só de música e alegria. Enfim, o quadro é de uma alienação espantosa. Fala de uma fantasia ideológica – e não da cidade real, com os seus extremos de ternura e de tortura, de cordialidade e de agressão. E a própria obsessão pela alegria e pelo prazer – como se aqui inexistissem espaços para a dor, a tristeza, a melancolia, a solidão –, pela festa 365 dias por ano, nos diz de um momento algo patológico de nossas vidas. Salvador não apenas se converteu, de um lugar naturalmente sedutor, numa profissional da sedução. Ela é, hoje, uma cidade maníaca. À entrada do século XXI, dois movimentos grevistas rasgaram esse véu. O primeiro deles foi a greve dos policiais civis e militares, reivindicando melhores salários. O governo perdeu o controle sobre a segurança pública. Saques, assaltos, arrastões e mortes encheram Salvador de tristeza e medo. A fratura ficou exposta: o paraíso não sobrevive sem pólícia. Sem repressão armada. Em seguida,

veio a greve dos estudantes secundaristas, reivindicando meia-passagem nos ônibus. Desde o movimento estudantil de 1967 -1968, não se via nada igual, em tremos de pioneirismo e de disposição para a ação. Agindo dessa forma festiva e criativa, livres da tutela da esquerda, aqueles meninos simplesmente pararam a cidade. Esperavam que o semáforo fechasse nas vias de maior tráfego de Salavador e então se sentavam na pista, impedindo que os veículos andassem. Ou seja: bloqueavam o direito de ir-e-vir dos motorizados, para mostrar o que significava o seu próprio direito de ir-e-vir, suspenso com a suspensão da meia-passagem. Uma greve de crianças, sim. Mas expressando diretamente a situação de seus pais e de suas famílias. Das camadas mais pobres da população de Salvador, para as quais qualquer aumento numa passagem de ônibus é um desastre. Filha de baixa renda, da pobreza, do desemprego e da miséria, a greve atraiu para si a simpatia geral da população. Passado o episódio, no entanto, esta retornou à sua ilha da fantasia, onde tudo é festa e somente festa. Na verdade, no instante mesmo em que digito este escrito, quando uma verdadeira massa de problemas adquire, entre nós, intensidade prática, pedindo a urgência de um tratamento eficaz, o conjunto da população de Salvador parece continuar carecendo de uma consciência mais clara a respeito da sua própria situação existencial e urbana. Da sua vida. Sinais e até projetos dessa consciência não deixam de aflorar, aqui e ali, tanto na esfera do poder público quanto no horizonte da sociedade civil. Mas ainda é pouco. Muito pouco. O que é preciso é que essa consciência ganhe corpo, e se espalhe e se espraie, de modo sensível e vigoroso, por todas as instâncias de nossa vida social. As questões, sabemos, são humanas. Porque a Bahia, ela mesma, ainda pode repetir, para nós, o que falava através de Gregório de Mattos: Meus males de quem procedem? Não é de vós? claro é isso: Que eu não faço mal a nada por ser terra e mato arisco. Louvado Seja o Santo Deus Imprevisto.

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