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Portuguese Pages 311 [313] Year 2020
REVISTA JURÍDICA THEMIS – 31ª EDIÇÃO (2020) CONSELHO EDITORIAL
Bruno de Oliveira Cruz Emily Emanuele Franco Mewes Gabriela Grupp João Victor Vieira Carneiro Julia Tereza Lourenço Renata Martins dos Santos CENTRO ACADÊMICO HUGO SIMAS
Sede: Rua Marechal Floriano Peixoto, 524 Subsede: Praça Santos Andrade, 50 – Subsolo UFPR – Curitiba – Paraná www.cahs.org.br Revista Jurídica Themis [recurso eletrônico] / Centro Acadêmico Hugo Simas (organizador). – nº 31 (2020) – Curitiba: Centro Acadêmico Hugo Simas, 15,5x22,5 cm, 313 p. Publicação periódica Revista contendo artigos científicos escritos por acadêmicos de Direito, selecionados em concurso organizado pelo Centro Acadêmico Hugo Simas. 1. Direito – periódico – Brasil ISSN nº 1983-2036 Editora Íthala Ltda. Rua Pedro Nolasko Pizzatto, 70 Bairro Mercês 80.710-130 – Curitiba – PR Fone: +55 (41) 3093-5252 +55 (41) 3093-5257 http://www.ithala.com.br E-mail: [email protected]
Capa: Antonio Dias Revisão: Rodrigo Martins
Informamos que é de inteira responsabilidade dos autores a emissão de conceitos publicados na obra. Nenhuma parte desta publicação poderá ser reproduzida por qualquer meio ou forma sem a prévia autorização da Editora Íthala. A violação dos direitos autorais é crime estabelecido na Lei nº 9.610/98 e punido pelo art. 184 do Código Penal.
Revista Jurídica
THEMIS Edição nº 31
EDITORA ÍTHALA CURITIBA – 2020
DOCENTES DA FACULDADE DE DIREITO DA UFPR INTEGRANTES DAS BANCAS DE AVALIAÇÃO Profª Drª Heloisa Fernandes Câmara Profº Drº Miguel Gualano de Godoy Profª Drª Angela Cassia Costaldello Profª Drª Katya Regina Isaguirre Torres Profª Drª Larissa Liz Odreski Ramina Profª Drª Tatyana Scheila Friedrich Profª Drª Adriana Espíndola Corrêa Profº Drº Eroulths Cortiano Junior Profª Drª Katie Silene Cáceres Arguello Profª Drª Priscilla Placha Sá Profº Drº Marco Aurélio Serau Junior Profº Drº Paulo Ricardo Opuszka Profª Drª Marcia Carla Pereira Ribeiro Profº Drº Luiz Daniel Rodrigues Haj Mussi Profª Drª Katya Kozicki Profº Drº Cesar Antonio Serbena Profº Drº Ricardo Prestes Pazello Profº Drº André Peixoto de Souza Profª Drª Eneida Desiree Salgado
APRESENTAÇÃO A Revista Jurídica Themis do Centro Acadêmico Hugo Simas (CAHS) publica artigos com variados eixos teóricos e metodológicos, incentivando investigações jurídicas interdisciplinares que abarquem reflexões críticas sobre os diversos temas e ramos do Direito. O perfil editorial não restringe as publicações à dogmática jurídica, pois admite investigações históricas, sociológicas, econômicas, antropológicas e outras abordagens relacionadas às ciências humanas e sociais que problematizam a trajetória do Direito nas sociedades atuais. Trata-se de um incentivo à pesquisa no Direito na busca pela excelência acadêmica, através de mecanismos de discussões que pensem criticamente os desafios da experiência jurídica contemporânea. Nesta 31ª edição, a Revista Jurídica Themis, por meio da Gestão Contra-Atacar (2020) do Centro Acadêmico Hugo Simas, apresenta artigos de diversas matizes teóricas e metodológicas. Cada um dos 14 artigos aprovados para publicação passou pela avaliação de pelo menos duas professoras do Curso de Direito da Universidade Federal do Paraná (UFPR), com formação pertinente à temática de cada artigo. O que expõe um diálogo entre a comunidade discente e docente da UFPR. Objetivando refletir sobre as consequências políticas e jurídicas da globalização econômica e do neoliberalismo, Gabriel Alves Fonseca disserta sobre a substituição do poder de decisão do Estado pelas agências transnacionais. Helena de Paula Wagnitz e Lizz Ester Segala buscam estabelecer um diálogo entre a compreensão teórica da biopolítica, tributária do filósofo Michel Foucault, e da necropolítica, decorrente do filósofo Achille Mbembe, com a finalidade de compreender a realidade dos povos indígenas no contexto do governo Bolsonaro. Visando problematizar as políticas neoliberais dos governos brasileiros recentes, Larissa Rahmeier de Souza empreende uma crítica político-jurídica à reforma da previdência decorrente da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 6/2019, transformada na Emenda Constitucional
103/2019. Giovanny Padovam Ferreira, Luciana Nowicki Giese e Raquel Freitas de Carvalho analisam o conceito de assédio a partir de três perspectivas, que remontam à Convenção de 190 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) e ao Direito trabalhista brasileiro. Propondo um exame periférico do Tribunal Penal Internacional (TPI), Amanda Cristina Botelho e Lincoln Renato Vieira Zanardine discutem sobre a jurisdição do TPI diante de crimes ambientais. Valéria Bubniak Ribeiro proporciona um panorama global da apatridia, bem como identifica medidas que podem ser adotadas pelos Estados para evitar e erradicar tal problemática. Observando o ecocídio iminente na Foz do Rio Amazonas, Matheus Antunes Riguete versa sobre o embate entre a integridade ambiental do ecossistema de corais amazônicos e os impactos ambientais das atividades petrolíferas. Buscando refletir sobre a organização territorial e lutas de classes, Gustavo de Oliveira Correa intersecciona os conceitos de ecossocialismo e necropolítica visando trilhar possibilidades de superação dialética para o movimento popular e anticapitalista na América Latina. Iara Schuinka Bazilio procura discutir a existência e efetividade dos direitos reprodutivos das mulheres, compreendendo a imposição de esterilização a mulheres como uma reprodução da biopolítica de gênero e das práticas patriarcais. Denunciando a ameaça ao Estado Democrático de Direito, Laura de Sá Liston, Nahomi Helena de Santana, Rafaela Chiarelo e Vinícius Fernando Marcolino Filho analisam a polarização política e a crise da democracia brasileira. No campo de discussões jurídicas a respeito do conflito de direitos fundamentais, Felipe Fadanni Teixeira discorre sobre os polos divergentes a respeito do infanticídio indígena. Guilherme Rolin de Ávila da Silva, Laura de Sá Liston, Luize Liebsch Kestring, Stephany Vitória Alves Orgino e Vinícius Fernando Marcolino Filho discorrem sobre os limites da autonomia privada a partir dos conflitos e dicotomias político-sociais da prostituição. Refletindo sobre a Lei Maria da Penha, Luana Torques Cavalli trata da sua aplicação em circunstâncias envolvendo transexuais/transgêneros
e as novas entidades familiares. E, por fim, Jorge Henrique Anorozo Coutinho e Nicolas Bénjamin Wolff de Souza abordam a alienação do poder de controle minoritário nas sociedades anônimas, fundamentalmente no que se refere à obrigação de realização de oferta pública de ações como condição para a eficácia do negócio jurídico. Essa edição da Revista Jurídica Themis evidencia as problemáticas atuais que tocam o Direito na realidade latino-americana, expondo desafios e proposições que colocam o aparato jurídico como objeto de crítica.
ORGANIZAÇÃO
Bruno de Oliveira Cruz Emily Emanuele Franco Mewes Gabriela Grupp João Victor Vieira Carneiro Julia Tereza Lourenço Renata Martins dos Santos
SUMÁRIO AS CONSEQUÊNCIAS POLÍTICAS E JURÍDICAS DA GLOBALIZAÇÃO ECONÔMICA E DO NEOLIBERALISMO.................. 10 Gabriel Alves Fonseca O DIÁLOGO DA BIO-NECROPOLÍTICA E O GOVERNO BOLSONARO NA QUESTÃO INDÍGENA BRASILEIRA.......................... 37 Helena de Paula Wagnitz | Lizz Ester Segala O GOLPE NO BRASIL, A AGENDA NEOLIBERAL E A R(D)EFORMA PREVIDENCIÁRIA............................................................... 62 Larissa Rahmeier de Souza TRÊS OLHARES PARA O CONCEITO DE ASSÉDIO: DIÁLOGOS ENTRE A CONVENÇÃO 190 DA OIT E O DIREITO TRABALHISTA BRASILEIRO......................................................................... 87 Giovanny Padovam Ferreira | Luciana Nowicki Giese | Raquel Freitas de Carvalho POR UMA ANÁLISE PERIFÉRICA DO TRIBUNAL PENAL INTERNACIONAL: O CRIME DE ECOCÍDIO E A PRESTAÇÃO JURISDICIONAL............................................................................................. 106 Amanda Cristina Botelho | Lincoln Renato Vieira Zanardine NACIONALIDADE E APATRIDIA: A VISÃO DE UMA QUESTÃO GLOBAL............................................................................................................ 121 Valéria Bubniak Ribeiro TERRITÓRIO E LUTA DE CLASSES: PERSPECTIVAS ECOSSOCIALISTAS SOBRE O CONTROLE TERRITORIAL A PARTIR DA NECROPOLÍTICA ESTATAL ............................................ 148 Gustavo de Oliveira Correa O ECOCÍDIO IMINENTE NA FOZ DO RIO AMAZONAS: UM EMBATE ENTRE A INTEGRIDADE AMBIENTAL DO ECOSSISTEMA DE CORAIS AMAZÔNICOS E A INVESTIDA DE PETROLEIRAS.......................................................................................... 159 Matheus Antunes Riguete
ÚTEROS VIOLADOS: A IMPOSIÇÃO DE ESTERILIZAÇÃO A MULHERES ENQUANTO REPRODUÇÃO DA BIOPOLÍTICA DE GÊNERO E DAS PRÁTICAS PATRIARCAIS....................................... 184 Iara Schuinka Bazilio POLARIZAÇÃO POLÍTICA E A CRISE DA DEMOCRACIA BRASILEIRA..................................................................................................... 201 Laura de Sá Liston | Nahomi Helena de Santana | Rafaela Chiarelo | Vinícius Fernando Marcolino Filho INFANTICÍDIO INDÍGENA: UM CONFLITO DE DIREITOS FUNDAMENTAIS........................................................................................... 220 Felipe Fadanni Teixeira REFLEXÕES SOBRE OS LIMITES DA AUTONOMIA PRIVADA A PARTIR DOS EMBATES E DICOTOMIAS POLÍTICO-SOCIAIS DA PROSTITUIÇÃO...................................................................................... 235 Guilherme Rolin de Ávila da Silva | Laura de Sá Liston | Luize Liebsch Kestring | Stephany Vitória Alves Orgino | Vinícius Fernando Marcolino Filho ASPECTOS GERAIS SOBRE A LEI MARIA DA PENHA E SUA APLICAÇÃO EM CASOS ENVOLVENDO TRANSEXUAIS/ TRANSGÊNEROS E AS NOVAS ENTIDADES FAMILIARES................ 274 Luana Torques Cavalli A ALIENAÇÃO DO PODER DE CONTROLE MINORITÁRIO NAS SOCIEDADES ANÔNIMAS: OBRIGAÇÃO DE REALIZAÇÃO DE OFERTA PÚBLICA DE AÇÕES COMO CONDIÇÃO PARA A EFICÁCIA DO NEGÓCIO JURÍDICO........................................................ 292 Jorge Henrique Anorozo Coutinho | Nicolas Bénjamin Wolff de Souza
AS CONSEQUÊNCIAS POLÍTICAS E JURÍDICAS DA GLOBALIZAÇÃO ECONÔMICA E DO NEOLIBERALISMO
Gabriel Alves Fonseca
RESUMO
Este artigo objetiva compreender a substituição do poder decisório do Estado pelas deliberações das empresas transnacionais, especificamente no contexto globalizado e neoliberal. Mediante essa diretriz, é possível desvendar as circunstâncias sociais, políticas, econômicas e jurídicas que contribuem para que a democracia perca o seu substrato material, uma vez que se observa, gradualmente, a diminuição da participação política do povo, engendrando uma crescente apatia política, em favorecimento dos interesses dos grandes agentes econômicos. No tocante aos materiais empregados na pesquisa, foram utilizados, prioritariamente, livros de autores estrangeiros e nacionais, bem como artigos científicos. Tais recursos foram usados mediante a adoção do método dialético, de modo a explorar as contradições existentes entre os discursos legitimadores e as consequências práticas das condutas em análise. Relativamente ao marco teórico, dada a interdisciplinaridade do tema, optou-se por cotejar diversificados marcos teóricos sociológicos, econômicos, filosóficos e jurídicos. Sob tal metodologia, a pesquisa possibilitou a identificação das seguintes inferências: a visualização do lado perverso da aliança entre globalização econômica e neoliberalismo, cujos efeitos negativos implicam a derrocada de direitos políticos e sociais dos cidadãos; a observação de como um discurso de choque e de eficiência atua como um agente legitimador da retirada de direitos; a renúncia progressiva dos Estados soberanos – enquanto espaços autônomos de conquista e consolidação de direitos – a seu papel, com a consequente terceirização de sua atuação
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a agentes privados ou organizações privadas da sociedade civil, cujos interesses nem sempre são democráticos. Palavras-chave: Globalização econômica. Neoliberalismo. Participação política. Democracia. Direitos políticos e sociais. 1 INTRODUÇÃO
A globalização é um fenômeno complexo e multifacetado, a qual atinge os mais diversos campos sociais, em um processo progressivo que atinge dimensões globais e intensifica a interconexão entre sociedades e Estados no mundo. Entre os múltiplos aspectos da globalização, é possível destacar o viés econômico como o fio condutor desse processo, em face da abertura das fronteiras nacionais à internacionalização do comércio e da produção. Essa abertura vem a desembocar no próprio declínio gradual do modelo de Estado-nação e de seu plano político-jurídico, visto que a territorialidade e a soberania estatais passam a ceder espaço ao protagonismo das empresas transnacionais e à divisão internacional do trabalho por elas imposta. Como sustentáculo teórico de legitimação dessa globalização econômica, o neoliberalismo prega pela existência de um Estado mínimo, cuja estrutura institucional tutele primordialmente a liberdade de trânsito comercial das empresas – em especial, das empresas transnacionais –, em detrimento do papel historicamente atribuído ao Estado como garantidor de um espaço territorialmente delimitado e favorável à participação política e à defesa dos direitos dos cidadãos. Inclusive, para a concepção neoliberal, em um possível conflito entre democracia e liberdade (em sentido econômico), esta última deveria prevalecer, devendo ser concretizada mesmo em adversidades, especialmente naquelas propícias a um sucateamento estatal. Em meio a esse casamento entre globalização econômica e neoliberalismo, a participação política efetiva dos cidadãos resta comprometida, eis que a esfera pública é progressivamente ocupada pelos interesses pri-
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vados das empresas, em especial das grandes corporações transnacionais. Na medida em que os cidadãos se conscientizam de que suas decisões locais são ineficazes, vão sendo tomados por um conformismo político e pelo consumismo estimulado pelo mundo globalizado. Consequentemente, perdem-se a solidariedade e a identidade sociais e, por conseguinte, os próprios direitos de cidadania, em benefício de um consumismo segregador e desigual e sob a absorção de um ideário neoliberal que é hegemônico, “natural” e “moderno”. Além das mazelas geradas no plano político, a globalização econômica e o neoliberalismo também impactam negativamente o plano jurídico, eis que os ordenamentos jurídicos nacionais passam a secundarizar o interesse público em prol dos negócios econômicos transfronteiriços. Com isso, os direitos políticos tornam-se meramente retóricos, vez que a liberdade e a igualdade são subvertidas como condições da participação dos indivíduos no mercado, e não necessariamente na vida política. A seu turno, os direitos sociais também são afetados, sobretudo por uma desregulamentação que “desonera” as empresas e vulnera os trabalhadores, o que desemboca na criação de um precariado de pessoas sem o mínimo de estabilidade. Então, expor tais realidades, ainda que em linhas sumárias, constitui a grande missão deste artigo. Destaque-se, logo de início, que as linhas subsequentes não pretendem, de modo algum, esgotar a compreensão das noções a serem trabalhadas. Nesse sentido, e diante da necessidade de recorte temático, não serão explorados fenômenos que fogem do escopo proposto, ainda que sejam caros, atuais e paralelos, por exemplo, a crescente explosão de autoritarismos e a afronta às instituições democráticas, no Brasil e no mundo afora. Isso porque o texto se destina a apresentar um quadro panorâmico, ainda que limitado, das consequências políticas e jurídicas diretamente advindas da globalização econômica e do neoliberalismo. Nesse sentido, a relevância da problemática tratada neste artigo cinge-se a tecer um diagnóstico, ainda que sumário, da perda da substancialidade dos direitos políticos e sociais dos cidadãos, em decorrência
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dos subsídios estruturais e superestruturais fornecidos pela globalização econômica e pelo neoliberalismo. Nesse diapasão, a investigação foi orientada pelo objetivo de compreender a substituição do poder decisório do Estado pelas deliberações das empresas transnacionais, especificamente no contexto globalizado e neoliberal – implicando em uma democracia meramente formal, que é reduzida no plano material a um instrumento de homologação jurídica e política dos negócios de grandes agentes econômicos. Quanto a seus pilares de sustentação, a investigação foi estruturada com base em pesquisas bibliográficas, mediante o uso de livros de autores estrangeiros e nacionais e consultas a artigos científicos. Os recursos em tela foram usados mediante a adoção do método dialético, de modo a explorar as contradições existentes entre os discursos legitimadores e as consequências práticas das condutas em análise. Por fim, cabe destacar que, dado à interdisciplinaridade do tema, a bibliografia pediu a análise de marcos teóricos sociológicos, econômicos, filosóficos e jurídicos. Nesse sentido, o caminho adotado pela pesquisa foi direcionado, basicamente, pelo exame bibliográfico da obra de autores que possuem estudos na área do neoliberalismo, da globalização e da apatia política. Porém, os clássicos do pensamento político e sociológico não foram ignorados, haja vista o grande aporte técnico e teórico concedidos por estas obras, até para que assim fosse possível adotar uma postura crítica. 2 A GLOBALIZAÇÃO E O VIÉS ECONÔMICO COMO FIO CONDUTOR
Inicialmente, cabe tratar da globalização, a qual, face à sua complexidade, é um fenômeno que enseja vários enfoques para sua abordagem (LIMA, 2002, p. 124). Sob essa ótica, uma visão dos estudos sobre o processo de globalização mostra, como observa Boaventura de Sousa Santos, “que nos encontramos frente a um fenômeno polifacético com dimensões econô-
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micas, sociais, políticas, culturais, religiosas e jurídicas, combinadas das maneiras mais complexas” (SANTOS, 1998, p. 39, tradução nossa).1 Ao tratar da globalização, David Held entende que esse processo implica ao menos ao menos dois fenômenos distintos: A globalização [...] implica ao menos dois fenômenos distintos. Primeiro, sugere que muitas das cadeias de atividade política, econômica e social estão adquirindo dimensões globais. E, em segundo lugar, sugere que operou uma considerável intensificação dos níveis de interação e interconexão dentro e entre os Estados e as sociedades [...]. O que é decididamente novo no sistema global moderno é a expansão das relações sociais em e através de novas dimensões de atividade – tecnológica, organizacional, administrativa e legal, entre outras – e a intensificação crônica das pautas de interconexão impulsada por fenômenos tais como as redes de comunicação modernas e a nova tecnologia de informação (HELD, 1997, p. 43, tradução nossa).2
Contudo, o viés econômico acaba sendo o fio condutor da globalização, quando o seu advento gerou, em todas as suas dimensões, o fenômeno da globalização, frise-se, este compreendido como uma crescente interconexão em vários níveis da vida cotidiana a diversos lugares longínquos no mundo (LIMA, 2002, p. 139).
1
“En todo caso, un vistazo a los estudios sobre el proceso de globalización muestra que nos encontramos frente a un fenómeno polifacético con dimensiones económicas, sociales, políticas, culturales, religiosas y jurídicas, combinadas de las maneras más complejas.”.
2
“La globalización [...] implica al menos dos fenómenos distintos. Primero, sugiere que muchas de las cadenas de actividad política, económica y social están adquiriendo dimensiones globales. Y, en segundo lugar, sugiere que ha operado una considerable intensificación de los niveles de interacción e interconexión dentro y entre los Estados y las sociedades [...]. Lo que es decididamente nuevo en el sistema global moderno es la expansión de las relaciones sociales en y a través de nuevas dimensiones de actividad – tecnológica, organizacional, administrativa y legal, entre otras – y la intensificación crónica de las pautas de interconexión impulsada por fenómenos tales como las redes de comunicación modernas y la nueva tecnologia de información.”.
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Importa comentar que a globalização da atividade econômica se vale das chamadas cidades globais enquanto articuladoras, como bem explica Saskia Sassen: Quando a atividade econômica se torna globalizada, ela reformula parcialmente as ordens existentes e contribui para a formação de novas ordens. Isso ocorre por meio das práticas de atores econômicos (empresas e mercados globais) e do desenvolvimento de determinados regimes de valor (desregulação da economia). Para investigar essas mudanças, são necessárias novas arquiteturas conceituais; um exemplo é o modelo da cidade global. À medida que a economia global se expandiu [...], assistimos à formação de uma rede crescente de cidades globais, [...] pelas quais a riqueza econômica e os processos nacionais se articulam com uma proliferação de circuitos globais de capital, investimento e comércio. Essa rede de cidades globais constitui um espaço de poder que contém as capacidades necessárias para as operações globais de empresas e mercados. Ela atravessa parcialmente a velha divisão Norte-Sul e constitui uma geografia de centralidade, que atualmente também incorpora as principais cidades do Sul global, ainda que a hierarquia dessa geografia de centralidade seja bastante nítida. Em seu nível mais concreto, essa nova geografia é o terreno em que diversos processos da globalização assumem formas materiais e localizadas (SASSEN, 2010, p. 24).
Nesse diapasão, é possível constatar que a globalização econômica contribuiu sobremaneira para uma crescente interconexão em vários níveis da vida cotidiana a diversos lugares longínquos no mundo, uma vez que os níveis de internacionalização do comércio fizeram com que as fronteiras nacionais começassem a perder sentido (LIMA, 2002, p. 144). A partir deste quadro, é possível observar que a globalização econômica contribui para o declínio do Estado-nação, na medida em que as suas características mais marcantes são a sua territorialidade e poder soberano estatal nele definido e exercido, os quais contribuíram para en-
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gendrar uma crescente participação política e incremento na conquista e defesa dos direitos (LIMA, 2002, p. 145-146). Cumpre destacar que a territorialidade é uma nota distintiva que se encontra em qualquer concepção básica de Estado, o qual, conforme leciona Max Weber (1982, p. 98, grifo no original), “pretende, com êxito, o monopólio do uso legítimo da força física dentro de um determinado território”. Outrossim, o Estado também pode ser compreendido como uma organização cujo conteúdo é formado pelos interesses coletivos, como se pode extrair dos apontamentos de Émile Durkheim: Eis o que define o Estado. É um grupo de funcionários sui generis, no seio do qual se elaboram representações e volições que envolvem a coletividade, embora não sejam obra da coletividade. Não é correto dizer que o Estado encarna a consciência coletiva, pois esta o transborda por todos os lados. É em grande parte difusa; a cada instante há uma infinidade de sentimentos sociais, de estados sociais de todo o tipo de que o Estado só percebe o eco enfraquecido. Ele só é a sede de uma consciência especial, restrita, porém mais elevada, mais clara, que tem de si mesma um sentimento mais vivo. Nada de obscuro e vago como as representações coletivas que se espalham em todas as sociedades: mitos, lendas religiosas ou morais, etc. Não sabemos de onde vêm, nem para onde vão; não as deliberamos. As representações que vêm do Estado são sempre mais conscientes de si mesmas, de suas causas e seus objetivos. Foram concertadas de maneira menos subterrânea. O agente coletivo que as conecta percebe melhor o que faz. Não é que, também nesse caso, freqüentemente não haja obscuridade. O Estado, tal como o indivíduo, freqüentemente se engana a respeito dos motivos que o determinam, mas, sejam suas determinações mal motivadas ou não, o essencial é que sejam motivadas em algum grau. Há sempre, ou pelo menos geralmente, uma aparência de deliberação, uma apreensão do conjunto das circunstâncias que necessitam a resolução, e o órgão interior do Estado destina-se exatamente a tomar essas deliberações. Daí os conselhos, as assembléias, os discursos, os regulamentos que obrigam esses tipos de represen-
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tações a elaborar-se com uma certa lentidão. Podemos então dizer em resumo: o Estado é um órgão especial encarregado de elaborar certas representações que valem para a coletividade. Essas representações distinguem-se das outras representações coletivas por seu maior grau de consciência e de reflexão (DURKHEIM, 2002, p. 70-71, grifo no original).
Contudo, o locus próprio do Estado passou a ser ocupado pelas empresas transnacionais, as quais usufruem de um poder que lhes outorga o papel de protagonistas no mundo da economia globalizada. A nova divisão internacional do trabalho contribui para o reforço desse poder (LIMA, 2002, p. 150-151). Isso porque o processo de produção, ao ser realizado em vários países, em certa medida, torna obsoletas as fronteiras dos Estados, mitigando cada vez mais o poder dos mesmos e consolidando de forma crescente o poder das empresas transnacionais na medida em que a globalização econômica vai se aprimorando (LIMA, 2002, p. 151-152). No seio da globalização econômica, o poder das empresas transnacionais as torna efetivamente protagonistas privilegiados dentro do quadro da economia mundial, conquistando uma autonomia em relação aos Estados, a ponto de limitar a sua política. As empresas globais instauram uma nova forma de produção do trabalho que se dissemina em vários Estados, sobretudo naqueles que lhe propiciam condições atrativas, colocando-os à mercê dos “mercadores sem pátria” (LIMA, 2002, p. 153-154). Esse contexto de globalização do capitalismo alterou profundamente a semântica do Estado-nação, como se depreende das lições de Octavio Ianni: Já é possível reconhecer que o significado do Estado-nação tem sido alterado drasticamente, quando examinado à luz da globalização do capitalismo intensificada desde o término da Segunda Guerra Mundial e acelerada com o fim da Guerra Fria. Algumas das características “clássicas” do Estado-nação parecem modificadas, ou radicalmente transformadas. As condições e possibilidades
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de soberania, projeto nacional, emancipação nacional, reforma institucional, liberalização das políticas econômicas ou revolução social, entre outras mudanças mais ou menos substantivas em âmbito nacional, passam a estar determinadas por exigências de instituições, organizações e corporações multilaterais, transnacionais ou propriamente mundiais, que pairam acima das nações. A moeda nacional torna-se reflexa da moeda mundial, abstrata e ubíqua, universal e efetiva. Os fatores da produção, ou as forças produtivas, tais como o capital, a tecnologia, a força de trabalho e a divisão do trabalho social, entre outras, passam a ser organizadas e dinamizadas em escala bem mais acentuada que antes, pela sua reprodução em âmbito mundial. Também o aparelho estatal, por todas as suas agências, sempre simultaneamente políticas e econômicas, além de administrativas, é levado a reorganizar-se ou “modernizar-se” segundo as exigências do funcionamento mundial dos mercados, dos fluxos dos fatores da produção, das alianças estratégicas entre corporações (IANNI, 1996, p. 48-49).
Destarte, é evidente que a globalização econômica constitui um fator que contribui para o declínio do Estado-nação. Assim, o Estado e suas políticas governamentais ficam reféns desse novo panorama globalizado. Nesse processo, as suas fronteiras tornam-se obsoletas, decorrendo daí a perda da sua soberania e colocando-se em risco as conquistas no plano político-jurídico criadas dentro da esfera pública estatal (LIMA, 2002, p. 155-156). Para se entender como se chegou a esse panorama, Zygmunt Bauman e Carlo Bordoni oferecem uma breve explicação: A confiança na capacidade de realização do Estado se baseava na suposição de que ambas as condições para a gerência efetiva de realidades sociais – poder e política – estavam em suas mãos, supostamente o senhor soberano (exclusivo e indivisível) no interior de suas fronteiras: “poder” significando a capacidade de levar as coisas a cabo; e “política” significando a habilidade de decidir que coisas devem ser levadas a cabo e que coisas devem ser tratadas no âmbito global – onde já reside grande parte do poder efetivo de
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levar coisas a cabo – para serem assim evitadas ou desfeitas. Hoje, porém, o Estado foi expropriado de uma parcela grande e crescente de seu antigo poder imputado ou genuíno (de levar coisas a cabo), o qual foi capturado por forças supraestatais (globais) que operam num “espaço de fluxos” (termo de Manuel Castells) politicamente incontrolável – haja vista o alcance efetivo das agências políticas sobreviventes não ter progredido além das fronteiras do Estado. Isso significa, pura e simplesmente, que finanças, capitais de investimento, mercados de trabalho e circulação de mercadorias estão agora além da responsabilidade e do alcance das únicas agências políticas disponíveis para cumprir a tarefa de supervisão e regulação. É a política cronicamente associada pelo déficit de poder (e portanto também de coerção) que enfrenta o desafio de poderes emancipados do controle político (BAUMAN; BORDONI, 2016, p. 21, grifo no original).
Para resumir a longa história, a presente crise difere das suas precedentes históricas à medida que é vivida numa situação de divórcio entre poder e política. Esse divórcio resulta na ausência de agências capazes de fazer o que toda “crise”, por definição, exige: escolher de que modo proceder e aplicar a teoria reclamada por essa escolha (BAUMAN; BORDONI, p. 21-22). A solução certamente não está no aprofundamento do instrumental econômico que vem sendo utilizado há um bom tempo na realidade global e nos cosmos locais, em um contexto de globalização econômica (LIMA, 2002, p. 156). 3 O NEOLIBERALISMO COMO SUSTENTÁCULO DA GLOBALIZAÇÃO ECONÔMICA
O conjunto das políticas econômicas que se manifestam no âmbito da globalização econômica constituem características do neoliberalismo, uma proposta econômica que dá sustentação ao processo de aprimoramento da transnacionalização da economia, e que também contribui para o declínio do Estado-nação e das suas conquistas no plano político-jurídico (LIMA, 2002, p. 156).
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Acerca de uma definição preliminar de neoliberalismo, vale transcrever as lições de David Harvey: O neoliberalismo é em primeiro lugar uma teoria das práticas político-econômicas que propõe que o bem-estar humano pode ser melhor promovido liberando-se as liberdades e capacidades empreendedoras individuais no âmbito de uma estrutura institucional caracterizada por sólidos direitos a propriedade privada, livres mercados e livre comércio. O papel do Estado é criar e preservar uma estrutura institucional apropriada a essas práticas; o Estado tem de garantir, por exemplo, a qualidade e a integridade do dinheiro. Deve também estabelecer as estruturas e funções militares, de defesa, da polícia e legais requeridas para garantir direitos de propriedade individuais e para assegurar, se necessário pela força, o funcionamento apropriado dos mercados. Além disso, se não existirem mercados (em áreas como a terra, a água, a instrução, o cuidado de saúde, a segurança social ou a poluição ambiental), estes devem ser criados, se necessário pela ação do Estado. Mas o Estado não deve aventurar-se para além dessas tarefas. As intervenções do Estado nos mercados (uma vez criados) devem ser mantidas num nível mínimo, porque, de acordo com a teoria, o Estado possivelmente não possui informações suficientes para entender devidamente os sinais do mercado (preços) e porque poderosos grupos de interesse vão inevitavelmente distorcer e viciar as intervenções do Estado (particularmente nas democracias) em seu próprio benefício (HARVEY, 2008, p. 12).
Como se pode perceber, a visão do espaço da esfera pública, para a concepção neoliberal, é extremamente parca, visto que se traduz em uma proposta de Estado mínimo que se incumba de algumas funções reduzidas, desde que elas garantam a liberdade dos indivíduos comerciarem ou, quem sabe, que garanta uma sociedade de livre mercado em âmbito internacional, contribuindo para o desenvolvimento da globalização econômica (LIMA, 2002, p. 173-174). Assim, a globalização econômica, operacionalizada pela teoria econômica neoliberal, faz com que o Estado deixe de ser um espaço pri-
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vilegiado para participação política e para a conquista e defesa dos direitos dos cidadãos, passando a constituir uma seara que serve de “guardiã” do livre mercado. Nesse sentido, o espaço estatal respaldado pela legitimidade política no âmbito das conquistas do Estado moderno cederia lugar para a legitimação econômica trazida pelo fenômeno da globalização (LIMA, 2002, p. 174-175). Ademais, segundo os corifeus do neoliberalismo, uma das conquistas do Estado moderno, de máxima importância – a democracia –, seria algo de somenos importância, sendo que no embate entre a liberdade e a democracia, vista a primeira sob o enfoque econômico, aquela prevaleceria (LIMA, 2002, p. 176). Essa liberdade econômica deveria ser perseguida a todo custo e tudo o que pudesse ser instrumentalizado para a sua consecução seria útil, inclusive as adversidades, como bem elucida Naomi Klein: Por mais de três décadas, Friedman e seus poderosos seguidores se dedicaram a [...] esperar uma grave crise, vender partes do Estado para investidores privados enquanto os cidadãos ainda se recuperavam do choque, e depois transformar as “reformas” em mudanças permanentes. Num de seus mais influentes ensaios, Friedman elaborou em termos teóricos a tática nuclear do capitalismo contemporâneo, que eu aqui denomino de doutrina do choque. Ele observou que “somente uma crise – real ou pressentida – produz mudança verdadeira. Quando a crise acontece, as ações que são tomadas dependem das ideias que estão à disposição. Esta [...] é a [...] função primordial: desenvolver alternativas às políticas existentes, mantê-las em evidência e acessíveis até que o politicamente impossível se torne o politicamente inevitável”. Algumas pessoas costumam estocar alimentos enlatados e água para enfrentar grandes desastres; os seguidores de Friedman estocam ideias em defesa do livre mercado. Tão logo uma crise se instalava, o professor da Universidade de Chicago defendia que era essencial agir rapidamente, impondo mudanças súbitas e irreversíveis, antes que a sociedade abalada pela crise pudesse voltar à “tirania do status quo” (KLEIN, 2008, p. 16).
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Tal tática vai diretamente ao encontro da clássica estratégia traçada por Nicolau Maquiavel, para o qual o mal deve ser feito “de um jacto, de modo que a fugacidade do seu acre [...] faça fugaz a dor que ele traz” (MAQUIAVEL, 2013, p. 46). Esse modus operandi é bem visível na ordem global atual. Esta, por meio da globalização econômica, fundamentada na doutrina do neoliberalismo, age segundo os interesses das grandes corporações mundiais, colocando as pessoas em segundo plano, desprovendo-as inclusive dos seus direitos políticos, ou seja, a efetiva participação da arena política. Tais direitos políticos são inerentes à cidadania, historicamente consagrados e representam conquistas obtidas no seio do Estado moderno, na medida em que se compreende a política moderna como sendo desenvolvida num espaço territorialmente delimitado (LIMA, 2002, p. 202). Em sentido contrário à concreção de tais direitos, o que há, em verdade, é um verdadeiro falecimento da política em face da expansão das empresas globais, como se extrai dos ensinamentos de Milton Santos: A política agora é feita no mercado. Só que esse mercado global não existe como ator, mas como uma ideologia, um símbolo. Os atores são as empresas globais, que não têm preocupações éticas, nem finalísticas. Dir-se-á que, no mundo da competitividade, ou se é cada vez mais individualista, ou se desaparece. Então, a própria lógica de sobrevivência da empresa global sugere que funcione sem nenhum altruísmo. Mas, se o Estado não pode ser solidário e a empresa não pode ser altruísta, a sociedade como um todo não tem quem a valha. Agora se fala muito num terceiro setor, em que as empresas privadas assumiriam um trabalho de assistência social antes deferido ao poder público. Caber-lhes-ia, desse modo, escolher quais os beneficiários, privilegiando uma parcela da sociedade e deixando a maior parte de fora. Haveria frações do território e da sociedade a serem deixadas por conta, desde que não convenham ao cálculo das firmas. Essa “política” das empresas equivale à decretação de morte da Política. A política, por definição, é sempre ampla e supõe uma visão de conjunto. Ela apenas se realiza quando existe a consideração de todos e de tudo. Quem não tem
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visão de conjunto não chega a ser político. E não há política apenas para os pobres, como não há apenas para os ricos. A eliminação da pobreza é um problema estrutural. Fora daí o que se pretende é encontrar formas de proteção a certos pobres e a certos ricos, escolhidos segundo os interesses dos doadores. Mas a política tem de cuidar do conjunto de realidades e do conjunto de relações. Nas condições atuais, e de um modo geral, estamos assistindo à não-política, isto é, à política feita pelas empresas, sobretudo as maiores. Como essas normas rígidas são associadas ao uso considerado adequado das técnicas correspondentes, o mundo das normas se adensa porque as técnicas em si mesmas também são normas. Pelo fato de que as técnicas atuais são solidárias, quando uma se impõe cria-se a necessidade de trazer outras, sem as quais aquela não funciona bem. Cada técnica propõe uma maneira particular de comportamento, envolve suas próprias regulamentações e, por conseguinte, traz para os lugares novas formas de relacionamento. O mesmo se dá com as empresas. É assim que também se alteram as relações sociais dentro de cada comunidade. Muda a estrutura do emprego, assim como as outras relações econômicas, sociais, culturais e morais dentro de cada lugar, afetando igualmente o orçamento público, tanto na rubrica da receita como no capítulo da despesa. Um pequeno número de grandes empresas que se instala acarreta para a sociedade como um todo um pesado processo de desequilíbrio (SANTOS, 2001, p. 67-68).
Em suma, o quadro apresentado pela globalização é representativo de uma regressão no que concerne às conquistas políticas obtidas no cerne do Estado moderno, colocando em risco o seu próprio futuro democrático e da política (LIMA, 2002, p. 233-234). Isso porque se vai minando a solidariedade que une os cidadãos uns com os outros dentro do território do Estado (LIMA, 2002, p. 234235).
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4 A PARTICIPAÇÃO POLÍTICA EM MEIO À GLOBALIZAÇÃO ECONÔMICA E AO NEOLIBERALISMO
Em um contexto engendrado pela globalização e pelas políticas neoliberais, o processo de elaboração das decisões políticas cerceia o poder de decisão do Estado, permanecendo refém das diretrizes estabelecidas pelos organismos internacionais e pelas empresas transnacionais. Ademais, os cidadãos ficam impedidos de definirem os rumos da sociedade, esvaziando a sua participação política, peculiaridades que expressam o esvaziamento do poder local, representado pelo retraimento da esfera pública, cedendo espaço à esfera privada identificada com o mercado, colocando em risco o futuro da política, da democracia e da solidariedade, ensejando desestruturação e fragmentação social (LIMA, 2002, p. 236-237). A consequência nefasta desse panorama é que os cidadãos, na medida em que se conscientizam, cada vez mais perceberiam que seria estéril o debate e a tomada de decisões políticas no âmbito local, seja ele um país, uma província ou uma cidade. O centro das decisões estaria longe e os cidadãos sentiriam cada vez mais que sua vida está interditada no plano político-participativo. Quanto ao lugar dos cidadãos num mundo globalizado? Ora, as fronteiras tendem a ser derrubadas pela globalização, visando possibilitar o fluxo dos capitais e, notadamente, facilitar a aquisição de produtos. A partir dessa realidade, se constata que, com a globalização, os cidadãos se tornariam meros “consumidores” (LIMA, 2002, p. 237). Na contemporânea sociedade do consumo, como bem aponta Mike Featherstone (1997, p. 109), “em vez de o consumo ser considerado como mero reflexo da produção, passa-se a concebê-lo como fundamental para a reprodução social”. O cidadão-consumidor inserido nesse contexto, uma vez que sua vida política estaria cerceada e, paralelamente, o mundo à sua volta o instigaria a consumir, passaria então a ter como meta a busca da satisfação de suas necessidades consumistas. Sob essa ótica consumista, o indivíduo
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esqueceria a sua condição de cidadão, ou seja, de participar da vida pública. Torna-se um mero súdito, passivo e conformado com a realidade (LIMA, 2002, p. 240-241). A esse respeito, vale destacar a reflexão de Néstor García Canclini: Junto com a degradação da política e a descrença em suas instituições, outros modos de participação se fortalecem. Homens e mulheres percebem que muitas das perguntas próprias dos cidadãos – a que lugar pertenço e que direitos isso me dá, como posso me informar, quem representa meus interesses – recebem sua resposta mais através do consumo privado de bens e dos meios de comunicação de massa do que nas regras abstratas da democracia ou pela participação coletiva em espaços públicos (CANCLINI, 1999, p. 37).
Essa condição de consumidor assumida pelo cidadão no mundo globalizado constitui uma subversão às conquistas políticas obtidas no seio do Estado moderno. Este desagrega a sociedade como um todo, posto que se perdem os elos de solidariedade que uniam os indivíduos uns com os outros, peculiaridade que lhes dava o sentimento de pertencimento a uma nação, bem como de identidade, dentro do seu espaço territorial, substituindo-o por comportamentos de individualismo, egoísmo e apatia política, engendrados pelo consumo (LIMA, 2002, p. 251). Em relação à apatia política, Alexis de Tocqueville alertava para seus perigos ainda no século XIX: Não se deve dizer de maneira absoluta e geral que o maior perigo de nossos dias seja a licença ou a tirania, a anarquia ou o despotismo. Ambos são igualmente temíveis e podem decorrer facilmente de uma só e mesma causa, que é a apatia geral, fruto do individualismo; é essa apatia que faz que o dia em que o poder executivo reúne algumas forças, está em condição de oprimir, e que, no dia seguinte, quando um partido pode pôr trinta homens em batalha, está também [...] em condição de oprimir. Como nem um nem outro podem fundar nada duradouro, o que os faz ter êxito fácil os
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impede de ter êxito por muito tempo. Eles se erguem porque nada a eles resiste e caem porque nada os sustenta. O que é importante combater, portanto, é muito menos a anarquia ou o despotismo do que a apatia, que pode criar quase indiferentemente um ou outro (TOCQUEVILLE, 2000, p. 418, grifo no original).
Já na era contemporânea e acentuadamente, na globalização, o indivíduo viveria num mundo onde as fronteiras dos Estados teriam perdido o significado, onde não haveria discriminação em relação à origem dos indivíduos, onde todos seriam vistos como “iguais”, buscando a satisfação de suas necessidades próprias, cujo ideal seria o consumo e que geraria um mero súdito apático no que tange ao âmbito político-participativo (LIMA, 2002, p. 252). Obviamente, essa condição de igualdade trata-se de mera falácia ideológica, posto que, como seria possível que todos os indivíduos sejam iguais no mundo globalizado, se a possibilidade de acesso ao consumo não é estendida a todos? Em outras palavras, o pré-requisito para tornar-se cidadão no mundo globalizado é ter condições de consumir, peculiaridade que é por si só eloquente para demonstrar seu caráter segregador (LIMA, 2002, p. 252). Esse é um dos componentes estruturais do que se pode chamar de espírito do capitalismo, o qual é descrito por Luc Boltanski e Ève Chiapello: O espírito do capitalismo é justamente o conjunto de crenças associadas à ordem capitalista que contribuem para justificar e sustentar essa ordem, legitimando os modos de ação e as disposições coerentes com ela. Essas justificações, sejam elas gerais ou práticas, locais ou globais, expressas em termos de virtude ou em termos de justiça, dão respaldo ao cumprimento de tarefas mais ou menos penosas e, de modo mais geral, à adesão a um estilo de vida, em sentido favorável à ordem capitalista. Nesse sentido, pode-se falar em ideologia dominante, contanto que se renuncie a ver nela apenas um subterfúgio dos dominadores para garantir o consentimento dos dominados e que se reconheça que a maioria dos
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participantes no processo, tanto os fortes como os fracos, apoia-se nos mesmos esquemas para representar o funcionamento, as vantagens e as servidões da ordem na qual estão mergulhados (BOLTANSKI; CHIAPELLO, 2009, p. 42, grifo no original).
Cumpre atentar que, na medida em que a globalização econômica vai se aprofundando, alicerçada pelo neoliberalismo, as medidas neoliberais vêm sendo acatadas de tal forma que passam a ser vistas como uma espécie de “fenômeno natural”. Nesse sentido, tais medidas acabam por infundir um “pensamento único” na forma de condução das diretrizes governamentais, esvaziando completamente o debate político, dado que, a partir delas, é imposto um “consenso” que se constitui uma espécie de dogma, de fundamentalismo que não admite dissenso ou refutação (LIMA, 2002, p. 255-256). Esse fenômeno, a saber, a ascensão do neoliberalismo ao posto de ideologia hegemônica, se deu sobretudo nas duas últimas décadas do século XX, em que o ideário neoliberal conquistou uma estrondosa vitória teórica e ideológica e se transformou em um senso comum (SPÍNOLA, 2004, p. 104). A razão dessa hegemonização do neoliberalismo é explicada por Vera Spínola: Uma das razões se deve à resistência de uma rede quase maçônica de intelectuais com idéias opostas às políticas keynesianas que dominaram o mundo ocidental nos vinte anos pós-guerra, caracterizados pelo prolongado crescimento econômico dos países industrializados. Os seguidores da corrente neoliberal organizam-se a partir de 1947, sob a liderança do economista Friedrich Hayek, reunindo-se pelo menos duas vezes ao ano por quase três décadas, sem nunca abrir mão de suas convicções teóricas e práticas. Sua trajetória pode ser marcada por três etapas, a primeira, de acordo com o historiador inglês Perry Anderson, a da clandestinidade, tem início nos anos 40; a segunda, a partir dos anos 60, é quando suas idéias começam a ganhar espaço acadêmico, sobretudo nas universidades norte-americanas, com destaque para o trabalho do
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economista Milton Friedman e de muitos outros; a terceira, caracterizada pela passagem do campo teórico para a política quase em efeito dominó, foi inaugurada pela vitória eleitoral de Margaret Thachter em 1979 na Inglaterra, seguida de Ronald Reagan em 1980 nos Estados Unidos, e, em alguns aspectos, pela vitória de Helmut Kohl na Alemanha em 1982 (SPÍNOLA, 2004, p. 104-105).
Nesse diapasão, os princípios neoliberais acabam sendo apresentados como uma panaceia que irá resolver todos os problemas da sociedade e difunde-se a ideia de que não há outra opção senão segui-los. Existe, de forma subentendida, uma mensagem oculta, apregoando que cumprir as políticas neoliberais significa trilhar o caminho “natural” rumo à modernização (LIMA, 2002, p. 262). Ainda assim, em que pese ser importante criticar essas concepções, uma análise mais atenta do neoliberalismo não se limita aos aspectos negativos das políticas neoliberais, isto é, à destruição programada das regulamentações e das instituições, como bem apontam Pierre Dardot e Christian Laval: O neoliberalismo não destrói apenas regras, instituições, direitos. Ele também produz certos tipos de relações sociais, certas maneiras de viver, certas subjetividades. Em outras palavras, com o neoliberalismo, o que está em jogo é nada mais nada menos que a forma de nossa existência, isto é, a forma como somos levados a nos comportar, a nos relacionar com os outros e com nós mesmos. O neoliberalismo define certa norma de vida nas sociedades ocidentais e, para além dela, em todas as sociedades que as seguem no caminho da “modernidade”. Essa norma impõe a cada um de nós que vivamos num universo de competição generalizada, intima os assalariados e as populações a entrar em luta econômica uns contra os outros, ordena as relações sociais segundo o modelo do mercado, obriga a justificar desigualdades cada vez mais profundas, muda até o indivíduo, que é instado a conceber a si mesmo e a comportar-se como uma empresa. Há quase um terço de século, essa norma de vida rege as políticas públicas, comanda as relações econômicas mundiais, transforma a sociedade, remodela a sub-
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jetividade. As circunstâncias desse sucesso normativo foram descritas inúmeras vezes. Ora sob seu aspecto político (a conquista do poder pelas forças neoliberais), ora sob seu aspecto econômico (o rápido crescimento do capitalismo financeiro globalizado), ora sob seu aspecto social (a individualização das relações sociais às expensas das solidariedades coletivas, a polarização extrema entre ricos e pobres), ora sob seu aspecto subjetivo (o surgimento de um novo sujeito, o desenvolvimento de novas patologias psíquicas). Tudo isso são dimensões complementares da nova razão do mundo. Devemos entender, por isso, que essa razão é global, nos dois sentidos que pode ter o termo: é “mundial”, no sentido de que vale de imediato para o mundo todo; e, ademais, longe de limitar-se à esfera econômica, tende à totalização, isto é, a “fazer o mundo” por seu poder de integração de todas as dimensões da existência humana. Razão do mundo, mas ao mesmo tempo uma “razão-mundo” (DARDOT; LAVAL, 2016, p. 16, grifo no original).
Essa racionalidade neoliberal se vincula com um processo o qual, capitaneado pela globalização econômica e pelo neoliberalismo, engendrou um processo de exclusão social, na medida em que a nova divisão internacional do trabalho contribui para a redução progressiva das garantias sociais granjeadas no cerne do Estado moderno. Produz-se e dissemina-se em todo o mundo um desemprego crônico, baixos níveis salariais e supressão das conquistas sociais dos cidadãos, gerando um quadro de pobreza em proporções epidêmicas (LIMA, 2002, p. 303). Tal panorama deixa os cidadãos cada vez mais desamparados, jogados à sua própria sorte, porque não podem recorrer ao Estado para reduzir suas mazelas, pois se encontra fragilizado, em face da sua miniaturização preconizada pelas políticas neoliberais (LIMA, 2002, p. 303). Quem está desempregado, ou mesmo quem está empregado e se sujeita a qualquer salário ou qualquer condição de trabalho em troca de emprego, está no escopo de exclusão da cidadania, uma vez que, no mundo globalizado, o status de cidadania cada vez mais fica identificado com o acesso ao consumo e não aos direitos propriamente ditos. É possível
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inferir, consequentemente, que a exclusão social produzida pela globalização econômica e pelo neoliberalismo é representativa do retrocesso dos direitos da cidadania (LIMA, 2002, p. 303-304). 5 O RETROCESSO JURÍDICO E A PERDA DE DIREITOS NA ERA GLOBALIZADA
Além das mazelas políticas engendradas pela globalização no plano político, há consequências negativas da globalização econômica geradas no âmbito jurídico, representativas da perda das conquistas obtidas no seio do Estado moderno (LIMA, 2002, p. 305). Relativamente ao impacto da globalização sobre as esferas jurídicas, vale transcrever a observação feita por Mauri da Silva e Maurício Gonçalves Saliba: É consensual que a globalização exerce forte pressão sobre o Estado nacional como sujeito da produção e da aplicação do direito, tornando as fronteiras nacionais mais porosas. Sabe-se que a globalização intensificou o fluxo de capital transfronteiriço, todavia, do ponto de vista político-jurídico, num primeiro momento a legislação sobre o direito de propriedade do capital permaneceu sob o jugo das leis internas. Com isto, um infindável número de transações econômicas transfronteiriças continuaram [sic] sendo reguladas pelas normas legais nacionais, atrapalhando, na lógica do capital, a expansão dos negócios internacionais. Disto depreende-se que a constituição nacional, entendida como o acordo político-jurídico estruturante do ordenamento jurídico e da ação do Estado nacional, tornou-se um empecilho aos interesses do capital - liberdade para ir e vir descompromissada com o interesse nacional. Sob a dominância das ideias neoliberais a estratégia em curso foi sujeitar a constituição nacional de diversos países, especialmente aqueles mais vulneráveis em termos econômico e político, para reformá-la e torná-la mais receptiva ao interesse do capital externo (SILVA; SALIBA, 2015, p. 93, grifo no original
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Esse processo de esvaziamento jurídico interno também atinge os direitos políticos, os quais, em face das mazelas políticas geradas pela globalização econômica, tendem a tornarem-se meramente retóricos (LIMA, 2002, p. 308). As razões para essa perda de materialidade dos direitos políticos são bem explicadas por Abili Lázaro Castro de Lima: Primeiramente, [...] a perda do poder do Estado, decorrente do retraimento da esfera pública e da consequente ampliação do espaço do mercado, implicou o declínio da participação política dos cidadãos, uma vez que as decisões políticas encontram-se cada vez mais nas mãos das empresas transnacionais e das organizações internacionais, esvaziando-se o poder local e privando os indivíduos de decidirem os rumos da sua sociedade. Além disso, vamos constatar que os direitos de liberdade e de igualdade garantidos pelos direitos políticos, perderam a significação relevante que possuíam no âmbito do Estado moderno. Ocorre que tais direitos existiam não só em razão do indivíduo, mas também sob a perspectiva da sociedade, ou seja, a igualdade de oportunidades de participação na vida política e a liberdade do exercício dos direitos políticos, máxime no que tange à definição dos destinos da sociedade. A globalização econômica e as políticas neoliberais tornam estéril este último aspecto eis que concebem que a liberdade e a igualdade que devem prevalecer é [sic] aquela que garante ao indivíduo o direito de participar do mercado, seja como produtor ou como consumidor. [...] Portanto, no tocante aos direitos políticos, no âmbito do mundo globalizado, houve um retrocesso na concepção da fruição do direito de liberdade e de igualdade, cingindo-os à esfera meramente individual, perdendo a sua conotação altruísta, no sentido do exercício de tais direitos em prol da definição e da busca dos destinos comuns dos membros da sociedade, bem como da solidariedade que decorre de tais direitos (LIMA, 2002, p. 308-309).
Nesse movimento, a globalização da economia promove a desestruturação das relações sociais e corrói os padrões legítimos de convivência democrática, o que acaba, conforme elucida Susana Maria Gauer
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Vieira (2013, p. 527), “acentuando, ainda mais, a desumanização das relações societárias e a descrença da população nas instituições políticas e jurídicas”. Já no campo dos direitos sociais, em decorrência da desregulamentação no âmbito social, ou seja, com a redução ou a supressão das regras e das normas emanadas no Estado no sentido de tutelar as garantias sociais dos trabalhadores, a globalização econômica põe em xeque as condições sociais para a manutenção da cidadania de forma digna, recrudescendo, desta forma, o quadro de exclusão social, ante a impossibilidade do Estado, debilitado em face à redução da esfera pública, de tutelar as garantias sociais dos trabalhadores (LIMA, 2002, p. 324). Isso porque, em vez dos direitos humanos serem vistos enquanto lutas emancipatórias e de evolução civilizatória, eles passam a ser encarados como uma camisa de força ao desenvolvimento dos mercados (MINAS, 2015, p. 77). Nesse diapasão, os direitos humanos, especialmente os direitos sociais, acabam sendo vistos como ônus pesados, como aponta Rodrigo Marchioli Borges Minas: Nessa toada, os direitos, notadamente os direitos sociais, passam a ser enxergados como medidas caras, que oneram o orçamento público, que obstaculizam a competitividade, e que precisam de ser substituídas por políticas de focalismo, isto é, tendo-se em vista que os recursos públicos são escassos, eles devem ser definidos e distribuídos fundamentados por um corte de miserabilidade (MINAS, 2015, p. 77, grifo no original).
A partir dessa linha, a obrigação estatal para com seus nacionais resume-se a dar um voucher, um ticket, um vale-refeição, um vale-transporte, uma bolsa escola, uma bolsa família ou, em resumo, uma renda mínima de integração, pois os demais serviços já foram privatizados e somente podem ser prestados mediante pagamento (MINAS, 2015, p. 77). Esse processo tem um marco histórico bem definido, assim exposto por Guy Standing:
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Nos anos 1970, um grupo de economistas de inspiração ideológica capturou o ouvido e a mente dos políticos. O elemento central de seu modelo “neoliberal” era que o crescimento e o desenvolvimento dependiam da competitividade do mercado; tudo deveria ser feito para maximizar a concorrência e a competitividade e para permitir que os princípios do mercado permeassem todos os aspectos da vida. Um dos temas era que os países deveriam aumentar a flexibilidade do mercado de trabalho, o que passou a significar uma agenda para a transferência de riscos e insegurança para os trabalhadores e suas famílias (STANDING, 2014, p. 15).
O resultado tem sido a criação de um “precariado” global, que consiste em muitos milhões de pessoas ao redor do mundo sem uma âncora de estabilidade. Eles estão se tornando uma nova classe perigosa. São propensos a ouvir vozes desagradáveis e a usar seus votos e seu dinheiro para dar a essas vozes uma plataforma política de crescente influência. O verdadeiro sucesso da agenda “neoliberal”, aceita em maior ou menor grau por todos os tipos de governos, criou um monstro político incipiente (STANDING, 2014, p. 15). 6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Primeiramente, em que pese a globalização facilitar o intercâmbio entre diferentes povos, esta pode acarretar em resultados perversos às políticas e aos direitos estabelecidos no seio interno de uma nação, visto que, com o advento da globalização – em especial em sua dimensão econômica – e a sua operacionalização pelo neoliberalismo, não são apenas as barreiras econômicas que são quebradas, como também – e, talvez, principalmente – da cidadania material dos indivíduos, os quais paulatinamente vão migrando de um estado de sujeito de direitos para um sujeito de consumo, impotente frente à derrocada dos direitos políticos e sociais mais fundamentais, e à precarização decorrente. Com as medidas impostas pela globalização e pelo neoliberalismo, esse processo de desmantelamento da política e dos direitos sociais dos cidadãos (com a anuência e a participação ativa dos próprios Estados-na-
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ções, que progressivamente vão vendo sua política ser subserviente ao poder das empresas transnacionais e do capital especulativo das finanças) possui sua justificação ideológica em um “espírito” próprio do capitalismo, em eventos de choque que amorteçam a população e, sobretudo, em uma racionalidade que busca legitimar os princípios liberais desde a subjetividade. Ademais, é possível inferir que os Estados soberanos – enquanto espaços autônomos de conquista e consolidação de direitos – vêm cada vez mais renunciando a seu papel e terceirizando sua atuação a agentes cujos interesses nem sempre são democráticos. REFERÊNCIAS BAUMAN, Zygmunt; BORDONI, Carlo. Estado de crise. Trad. de Renato Aguiar. 1. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2016. BOLTANSKI, Luc; CHIAPELLO, Ève. O novo espírito do capitalismo. Trad. de Ivone C. Benedetti. São Paulo: Martins Fontes, 2009. CANCLINI, Néstor García. Consumidores e cidadãos: conflitos multiculturais da globalização. 4. ed. Trad. de Maurício Santana Dias e Javier Rap. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1999. DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. Trad. de Mariana Echalar. 1. ed. São Paulo: Boitempo, 2016. DURKHEIM, Émile. Lições de sociologia. Trad. de Monica Stahel. São Paulo: Martins Fontes, 2002. FEATHERSTONE, Mike. O desmanche da cultura: globalização, pós-modernismo e identidade. Trad. de Carlos Eugênio Marcondes de Moura. São Paulo: Studio Nobel: SESC, 1997. HARVEY, David. O neoliberalismo: história e implicações. Trad. de Adail Sobral e Maria Stela Gonçalves. São Paulo: Edições Loyola, 2008. HELD, David. La democracia y el orden global: del Estado moderno al gobierno cosmopolita. Trad. de Sebastián Mazzuca. Barcelona: Paidós, 1997.
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O DIÁLOGO DA BIO-NECROPOLÍTICA E O GOVERNO BOLSONARO NA QUESTÃO INDÍGENA BRASILEIRA
Helena de Paula Wagnitz Lizz Ester Segala
RESUMO
O presente artigo é um diálogo entre os conceitos de Michel Foucault de biopolítica e Achille Mbembe de necropolítica para compreender a realidade dos povos indígenas brasileiros. Para tanto, é realizado um resgate das ideias dos referidos autores, de modo a dialogar com o histórico de colonialidade do Brasil, construído a partir do racismo. Ainda, aborda-se de forma geral os principais direitos assegurados pela legislação pátria em relação aos indígenas e observa-se sua efetividade prática. Além disso, resgatam-se discursos do presidente Jair Bolsonaro, que propagam ideais de inferiorização dos povos indígenas e refletem na realidade com políticas destrutivas para esses povos. Palavras-chave: Povos indígenas. Bionecropolítica. Governo Bolsonaro. Racismo. Direitos indígenas. 1 INTRODUÇÃO
Com o crescimento do número de mortes de indígenas e suas lideranças no Brasil nos últimos dois anos, como também o aumento de conflitos envolvendo esses povos, faz-se necessário refletir sobre as políticas brasileiras frente aos povos e comunidades tradicionais e o asseguramento de seus direitos mais básicos.
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Ao decorrer do artigo, para fazer a leitura dessa realidade, utilizar-se-ão as bases teóricas de Michel Foucault, assim como seus conceitos de biopolítica e biopoder. Sua extensão, por meio do diálogo com Achille Mbembe e sua definição do que chama de necropolítica, também será realizada neste estudo. Traçar-se-á, ainda, um paralelo entre a relação de colonialidade e racismo, somado à análise do contexto brasileiro. Em seguida, será abordado um resumido histórico dos direitos básicos, no que se refere aos indígenas, desde o período colonial até o direito atual. Dessa forma, observar-se-ão fortes heranças dos ideais eurocêntricos trazido pelos portugueses. Em seguida, serão comparadas algumas declarações do atual presidente Jair Bolsonaro com as garantias do pleno direito pátrio, refletindo o modo com que seus discursos convergem para políticas de soberania dentro do paradigma bionecropolítico apresentado, afastando-se até mesmo das garantias previstas em lei. Por fim, serão resgatadas mais especificamente as táticas de política de morte, de modo a concluir que o que leva aos assassinatos e violações dos direitos fundamentais das populações autóctones no Brasil são essas estratégias, possibilitadas pelos traços de racismo e colonialismo apontados por Foucault e Mbembe, respectivamente. 2 A BIOPOLÍTICA, A NECROPOLÍTICA E O BRASIL
Nesta seção, serão apresentados aspectos teóricos fundamentais de Michel Foucault e Achille Mbembe que darão o suporte para a leitura da realidade indígena dentro do governo Bolsonaro. Para tanto, resgata-se o conceito de biopolítica, principalmente sob o mecanismo de “fazer viver” de “deixar morrer”, e como que essa escolha é pautada em uma hierarquização das pessoas sob um aspecto racista presente na sociedade, construída principalmente desde a Modernidade. Posteriormente, em diálogo com o que fora apresentado, serão resgatadas as concepções de Achille Mbembe, e em como o processo colonizador tem uma profunda relação com essa aparelhagem, inclusive a agravando, na medida em que deságua em seu conceito de necropolítica.
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2.1 A BIOPOLÍTICA E O RACISMO EM FOUCAULT
As concepções de biopolítica e biopoder, derivadas do pensamento de Michel Foucault, são ferramentas pertinentes para se refletir acerca da forma de controle e soberania operadas sobre as populações a partir da modernidade. Entretanto, por meio das considerações do camaronês Achille Mbembe, é possível dialogar com as ideias foucaultianas no contexto mais específico das regiões que passaram por processos de colonização e neocolonização, como é o caso do continente Africano e da América Latina. Isso porque as táticas de controle utilizadas pelos países europeus nesse momento não apenas são marcadas por um processo de controle da vida dos sujeitos, mas principalmente por um processo de definição daqueles que devem morrer, desaguando no conceito de Mbembe de necropolítica. O presente trabalho parte da concepção de Foucault, exposta no último capítulo do livro “A História da Sexualidade I: A vontade de saber”, em que o autor explica sobre como as sociedades contemporâneas exercem o poder e a dominação sobre a própria vida humana a partir de dois aspectos: o primeiro diz respeito ao adestramento dos corpos, como se fossem máquinas, saciando a necessidade de uma população dócil e trabalhadora, para que ocorra “sua integração em sistemas de controle eficazes e econômicos — tudo isso assegurado por procedimentos de poder que caracterizam as disciplinas: anátomo-política do corpo humano” (FOUCAULT, 1988, p. 130). O segundo aspecto é denominado pelo autor de biopolítica e dá início ao seu pensamento acerca do controle da vida e do controle populacional enquanto forma planejada de governo: O segundo, que se formou um pouco mais tarde, por volta da metade do século XVIII, centrou-se no corpo-espécie, no corpo transpassado pela mecânica do ser vivo e como suporte dos processos biológicos: a proliferação, os nascimentos e a mortalidade, o nível de saúde, a duração da vida, a longevidade, com todas as condições que podem fazê-los variar; tais processos são assumidos mediante toda uma série de intervenções e controles reguladores: uma biopolítica da população (FOUCAULT, 1988, p. 130).
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Portanto, antes a soberania era exercida de forma direta com o “poder” de fazer morrer, o controle total sobre a morte, manifestada concretamente na “lei do gládio”. Todavia, agora, em vestes mais cordiais e com um fundamento técnico e científico por trás, o controle sobre a vida exercido a partir do século XVIII se mostra na capacidade de definir quais corpos devem prosperar, como e quais populações devem crescer e quais povos devem ser extintos. Esse poder permite que se considere determinadas populações como raças inferiores, cuja sobrevivência não será garantida pelo Estado e, em algumas vezes, cuja vida será retirada pela ação ou omissão estatal. Vale ressaltar que essa forma de controle foi fundamental para o desenvolvimento do capitalismo, vez que este controla a população até o máximo de sua potência e faz uso do âmbito de usabilidade e docilidade para seu funcionamento (FOUCAULT, 1988, p. 132). Nesse sentido, o racismo deve ser pensado como elemento central, já que foram com as justificativas de que existiam “raças humanas”, em termos biológicos, e a hierarquização dessas raças que embasaram a tentativa de “desenvolvimento social” a partir de concepções evolucionistas. Essas ideias ignoravam a diversidade das concepções de mundo, culminando na crença de que o ser humano estava em uma constante evolução para se tornar socialmente perfeito. Com essas bases, foram construídos diversos alicerces que sustentam nossa sociedade, tais como: a família, o casamento e a transferência de propriedade pela herança. Inclusive, isso tudo era justificado a partir de argumentos genéticos, em que se usava a ciência para legitimar a existência de “um sangue puro”, que levaria a uma sociedade ideal (FOUCAULT, 1988, p 139). Tais apontamentos já eram defendidos por Michel Foucault em “História da Sexualidade”, mas é na obra “Em Defesa da Sociedade” um compilado escrito de um curso ministrado pelo autor no Collège de France, em 1976 - que o autor melhor trabalhou suas concepções acerca do racismo (especialmente na décima e última aula do curso, ministrada em 17 de março de 1976).
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Conforme Foucault, a partir do final do século XVII, a soberania passa a se basear na dualidade do “fazer viver” e do “deixar morrer”. Logo, existiriam indivíduos que merecem toda a atenção governamental para que permaneçam vivos: bom sistema de saúde, técnicas de higiene, baixa mortalidade infantil, alimentação saudável e outros requisitos que aumentam a longevidade. Relembrando dos contratualistas (Hobbes, Locke, Rousseau), Foucault diz que as pessoas firmam o contrato social com o soberano, em última instância, para proteger a própria vida. Destarte, Foucault então se debruça sobre a questão do porquê de um poder soberano, criado essencialmente para fazer viver (diminuir mortalidades, aumentar o tempo de vida, controlar o sexo como uma desculpa de fazer indivíduos geneticamente melhores), vai passar a controlar a vida com o intuito de deixar morrer parte dos indivíduos. A resposta principal para isso, segundo o autor, é o racismo, pois é por intermédio da divisão da sociedade em raças que se justifica que parte dos indivíduos pode ser deixada para morrer, enquanto parte é destinada a viver. Isso vai permitir ao poder tratar urna população como uma mistura de raças ou, mais exatamente, tratar a espécie, subdividir a espécie de que ele se incumbiu em subgrupos que serão, precisamente, raças. Essa é a primeira função do racismo: fragmentar, fazer cesuras no interior desse contínuo biológico a que se dirige o biopoder (FOUCAULT, 1999, p. 305).
Em vista disso, outro motivo para o “deixar morrer” atravessado pelo racismo é definido pelo autor como uma função positiva, de modo que quanto mais se deixa algumas pessoas morrerem, melhor se viverá. Baseado nas teorias científicas eugenistas, em que raças superiores precisam ser a maioria na sociedade para que haja desenvolvimento contínuo, considera-se necessário que parte da população morra para garantir a melhoria da vida da parcela populacional hierarquicamente “superior”. Esse pensamento contém, ademais, a antiga máxima de uma guerra, pois a relação guerreira se baseia em destruir os inimigos em prol da própria sobrevivência. Assim, Foucault explica que o racismo não é só mais uma tecnologia do poder, mas um mecanismo necessário para os Estados
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Modernos definirem quem deve ser deixado para morrer (FOUCAULT, 1999, p. 304). Nesse sentido, nas palavras do autor, em conclusão: “Vocês compreendem, em consequência, a importância - eu ia dizer a importância vital - do racismo no exercício de um poder assim: é a condição para que se possa exercer o direito de matar.” (FOUCAULT, 1999 p. 306). 2.2 A COLONIZAÇÃO E A NECROPOLÍTICA EM ACHILLE MBEMBE
O pensamento foucaultiano, quando trata do biopoder e da biopolítica, demonstra preocupação quanto ao controle da vida, suas práticas discursivas e suas tecnologias, assim como o modo com que o racismo permeia essas questões. Essas reflexões, com efeito, influenciaram profundamente o autor camaronês Achille Mbembe. Mbembe, apesar de fazer uso da base teórica foucaultiana, realiza suas reflexões a partir de um novo cenário: o contexto de colonização e neocolonização Com isso, o autor percebe que, nesses espaços, antes de se falar de uma soberania que objetiva a manutenção de normatização da vida, como propõe Foucault, fala-se de manutenção da morte. Nas palavras de Mbembe, “minha preocupação é com aquelas formas de soberania cujo projeto central não é a luta pela autonomia, mas ‘a instrumentalização generalizada da existência humana e a destruição material de corpos humanos e populações’” (MBEMBE, 2016, p. 125) Nesse sentido, aplicando os estudos de Foucault ao contexto pós-colonial, Mbembe propõe o conceito de necropolítica com o objetivo de dialogar com o conceito de biopolítica, partindo de uma conjuntura africana - e consequentemente também caribenha e latino-americana, por conta dos processos de colonização - em que a morte se faz muito mais presente. Acertadamente sintetiza Fatima Lima, no artigo “Bio-necropolítica: Diálogos entre Michel Foucault e Achille Mbembe”: A oferta que Mbembe nos proporciona a partir das noções de Necropoder-Necropolítica permite alargar as reflexões Foucaultianas de que o poder se situa e é exercido no nível da vida. Sendo o poder a ação sobre a ação do outro como nos diz Foucault, é exer-
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cido também no nível da morte, na possibilidade de matabilidade e na ideia de que qualquer um/a pode ser soberano/a e decidir pela morte do outro (LIMA, 2018, p. 30).
Para chegar a essa reflexão, contudo, Mbembe dá um passo atrás em seu artigo “Necropolítica”, principiando pela reflexão sobre as bases modernas do que seria a política, em contraponto com o modo pelo qual ela realmente se configura: o de trabalho de morte. Para tanto, do mesmo modo que Foucault, o autor relembra a herança do pensamento contratualista, em que se firmaram conceitos de autonomia e capacidade que levam ao mítico “acordo social” de criação do Estado. Em consequência, considerar-se-ia que o Estado e a soberania partem do ideal de igualdade jurídica entre os sujeitos e entre os Estados, ancorados nas premissas de autonomia e capacidade de escolha. Essas ideias estão profundamente conectadas com o direito à guerra, dado que a autonomia e igualdade dos Estados permitem que os governantes, no limite das fronteiras de seus Estados, escolham negociar a paz ou promover a guerra entre si (MBEMBE, 2016, p. 123). Portanto, a guerra é atravessada por crenças de civilidade, dentre as quais aquelas que racionalizam as mortes que inevitavelmente ocorrerão. Todavia, quando observamos os territórios que passaram por processos de colonização, vemos que essas bases principiológicas são suspensas permanentemente. Isso porque, conforme afirma Mbembe, a biopolítica e o direito de matar são acoplados e legitimados com o estado de exceção e estado de sítio nos espaços de investida colonizatória (MBEMBE, 2016, p. 128). Tal fato se relaciona e se ancora profundamente em um artifício racista, pois, para tanto, foi fundamental a criação de um imaginário de “selvageria”, inimizade e terror, criando uma imagem de que a população em processo de colonização, como a africana e latino-americana, seria inimiga. Essa mesma estratégia foi usada pelo estado nazista, no processo de legitimação do massacre judeu. A partir dela, o direito à guerra, com suas premissas de civilidade e necessidade de subjugação às leis e racionalização, é suspenso, abrindo espaço para que, se possa fazer o possível
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para destruir o inimigo que tanto causa terror. Temos, desse modo, o estado de exceção e de sítio, gerando guerra constante contra toda uma população. Não é à toa, portanto, que Lima afirma que “nestes contextos [de colonização forte], a vida (a bios) não foi o lugar historicamente onde as redes de poder encontraram territórios privilegiados, mas a morte e a possibilidade do matável constituiu o organizador das relações sociais.” (LIMA, 2016, p. 22) A criação desse inimigo, sobretudo racializado, é um ponto central das premissas da necropolítica. Não só essa reorganização hierárquica de pessoas foi fundamental para a soberania no processo de colonização, mas também a ocupação dos territórios. Nas palavras do autor: Esses imaginários deram sentido à instituição de direitos diferentes, para diferentes categorias de pessoas, para fins diferentes no interior de um mesmo espaço; em resumo, o exercício da soberania. O espaço era, portanto, a matéria-prima da soberania e da violência que sustentava. Soberania significa ocupação, e ocupação significa relegar o colonizado em uma terceira zona, entre o status de sujeito e objeto (MBEMBE, 2016, p. 135).
Principalmente a partir do século XX, com a ampla disposição de super tecnologias de guerra, a ordem do dia é submeter esses povos ao poder colonizador apesar das consequências, utilizando-se de armas com potencial gigantesco de mortes em massa. Nesse sentido, Mbembe dialoga com Foucault, quando afirma que Se o poder ainda depende de um controle estreito sobre os corpos (ou em sua concentração em campos), as novas tecnologias de destruição estão menos preocupadas com inscrição de corpos em aparatos disciplinares, do que inscrevê-los, em momento oportuno, na ordem da economia máxima, agora representado pelo massacre (MBEMBE, 2016, p. 141).
Por fim, vale mencionar que estratégias relacionadas com o conceito de biopolítica de Foucault também são utilizadas nesse contexto de
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necropoder, quando o autor toma por exemplo a utilização de conhecimento de topografia para indicar os territórios que serão destinado a determinados corpos, de modo que esses locais impossibilitem ou dificultem o acesso a água, transporte, alimentação, entre outros direitos fundamentais. Isso influencia a configuração social, impulsionando essas localidades a se tornarem espaços de violência. Aí, também, o estado de sítio se opera com a presença constante de força policial, o que só contribui para a manutenção dessa política de morte. Apesar do contexto territorial diverso de que falava Mbembe quando tratava da necropolítica, diversos autores e políticos da América Latina e especificamente do Brasil, tão logo Mbembe publicou e teorizou a necropolítica, já foi objeto de estudo para diversos grupos e autores brasileiros, principalmente quando se tratava de compreender as relações raciais no país. A título de exemplo, um dos mais importantes autores dessa teorização brasileira de Mbembe é Eliseu Padilha da Universidade de Brasília. A presença das características notadas por Mbembe em “Necropolítica” são observadas na medida em que aqui há uma herança presente de colonização, que tem sua explicação facilitada pelos diversos mecanismos bionecropolíticos apresentados por Mbembe. 2.3 O CONTEXTO BRASILEIRO DE BIOPOLÍTICA E NECROPOLÍTICA
A construção da história brasileira, a partir da violenta colonização portuguesa iniciada em 1500, baseou-se na coexistência nem um pouco pacífica e extremamente hierarquizada de três povos: os brancos colonizadores e os europeus imigrantes, os escravos negros que eram sequestrados e trazidos para, a princípio, serem escravizados e os povos indígenas, que aqui já habitavam antes do processo de colonização. A similaridade com o colonialismo exercido na África faz com que a necropolítica de Achille Mbembe seja também aplicável ao Brasil e ao contexto da América Latina, já que, para o autor: Qualquer relato histórico do surgimento do terror moderno precisa tratar da escravidão, que pode ser considerada uma das primeiras instâncias da experimentação biopolítica. Em muitos aspectos,
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a própria estrutura do sistema de colonização e suas consequências manifesta a figura emblemática e paradoxal do estado de exceção (MBEMBE, 2016, p. 130).
Considerando que o retrato da construção da sociedade brasileira passa pela escravidão dos povos africanos e pelo genocídio (em maior escala) e também escravidão (em menor escala) dos povos indígenas, a consolidação de uma eugenia baseada na “raça” superior dos brancos em oposição a outras duas “raças” inferiores - negros e indígenas -, fez do Brasil um campo de experimentação da biopolítica desde o período colonial. Desde Foucault, é explicado que o racismo é um mecanismo necessário para a execução da biopolítica e para o poder soberano ditar quem se deve “fazer viver” e quem se deve “deixar morrer”. Logo, no Brasil observa-se que os negros e povos indígenas foram vítimas do “deixar morrer” de diferentes formas durante a história da nação. A proximidade, no aspecto colonial, do desenvolvimento do continente africano com o desenvolvimento social do território brasileiro fez com que a necropolítica fosse estudada no âmbito acadêmico pátrio, tanto na esfera da filosofia e das ciências sociais, quanto no contexto do direito e das análises da psicologia social. São exemplos desse estudo a dissertação de mestrado na Universidade de Brasília: “Necropolítica & Epistemicídio: as faces ontológicas da morte no contexto do racismo”, apresentada por Eliseu Pessanha; e o artigo “Bio-necropolítica: Diálogos entre Michel Foucault e Achille Mbembe”, de autoria de Fátima Lima. Neste último artigo, a autora afirma: À torção que Achille Mbembe faz nos conceitos de biopoder/biopolítica, ampliando o debate para pensar a vida e a morte a partir de contextos coloniais e neocoloniais, bem como na forma como a ideia de necropolítica aparece e se consolida como um território epistêmico e metodológico que em muito contribui para pensar processos atuais no Brasil, bem como nos contextos latino-americanos e caribenhos cujos países carregam, reiteram e atualizam elementos da colonialidade, principalmente traços do processo escravocrata e do sistema de plantation, marcas estas presentes nas relações sociorraciais (LIMA, 2018, p. 22).
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Embora a maior parte dos estudos relacionados à necropolítica no Brasil conectem o conceito de Mbembe com a realidade vivida pelos negros brasileiros, a aplicação para os povos indígenas também é cabível, tanto no Brasil quanto em outros países latino americanos, especialmente porque a raça, na América Latina, baseava-se na dualidade entre “brancos” e “não brancos”. Ora, que: Ao analisar as bases de nossa construção nacional observa-se um pacto inaugural também excludente, que advém de uma estrutura social em que negros e indígenas amargam um processo de luta histórico-social contra diferentes formas de dominação imposto pela intervenção violenta dos portugueses (ARAÚJO, SANTOS. 2019, p. 3034 - 3025).
3 OS POVOS INDÍGENAS NO DIREITO E O DISCURSO DO BOLSONARO
Neste momento, é apontado um breve resgate histórico e legislativo no que tange ao direito brasileiro em sua relação com a questão indígena dentro de seu território. Também é demonstrado como essa relação está profundamente marcada por processos que perpetua a colonização e dá espaço para o capitalismo, trazendo, ainda, heranças de violência que são amplamente marcadas pelo discurso do presidente Bolsonaro. 3.1 O LUGAR DOS POVOS INDÍGENAS NO PERÍODO COLONIAL
Para compreender a relação da biopolítica e da necropolítica com os indígenas brasileiros se faz necessário compreender o lugar que estes ocuparam na sociedade e no direito desde o período colonial, quando foram formados os alicerces de fundação da sociedade brasileira que existe atualmente. Não há, aqui, pretensão de esgotar o tema, mas apenas de realizar uma retomada de marcos históricos importantes para a população indígena brasileira. A partir disso, será utilizado o método de análise do direito posto no período colonial e, atualmente, dos reflexos sociais dele
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provenientes. Será utilizado, prioritariamente, a obra do autor Carlos Frederico Marés de Souza Filho, que retoma os fatores da relação dos indígenas com o direito no Brasil. Algumas características, tais como a marginalização desses povos e a concepção de que suas organizações comunitárias eram inferiores à “civilidade” europeia trazem reflexos ao longo dos séculos, perpetuando discursos e políticas públicas de opressão sob esses povos. A construção portuguesa e espanhola nas terras da América se deu pela expropriação dos recursos disponíveis no continente e pela substituição de uma sociedade que aqui existia pelo domínio trazido pela Europa. A consequência disso foram povos inteiros sendo aniquilados ou abandonando suas tradições, a fim de se assimilar culturalmente com os povos ibéricos. Esse processo, destaque-se, não foi acidental: suas consequências eram desejadas pelas autoridades europeias. Até hoje, parte dos povos tradicionais permanece como se vivesse uma eterna clandestinidade cultural (SOUZA FILHO, 2010, p. 42). A territorialidade possui concepções diversas para os povos indígenas que viviam no continente americano antes do processo colonial. Para alguns, a terra que viviam era um componente sagrado, sendo que alguns povos tinham limitações de seu território, tanto por questões internas quanto por questões externas, referentes a relações com outros povos (SOUZA FILHO, 2010, p. 44). Os espanhóis e portugueses, entretanto, já possuíam o território do continente americano previamente dividido entre si, e tomar conta dessa terra e estabelecer sua jurisdição era uma tarefa dos colonizadores. Explica Carlos Marés que: “a invasão, conquista e colonização das América desconheceram qualquer conceito indígena de territorialidade e investiram contra povos, dividindo-os, impondo-lhes inimizades imaginárias e falsas alianças forçadas” (SOUZA FILHO, 2010, p. 45) Há diferenças profundas entre como foram tratados e organizados os povos indígenas nas terras que estavam no domínio espanhol e português. Nas terras espanholas, existiram as “Leyes de Índias”, ordenamento jurídico relativo às terras recém conquistadas criado pelos colonizadores.
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Com efeito, não foram cumpridas de forma homogênea no território, devido à pluralidade constante na parte espanhola das américas. Os portugueses, por sua vez, nunca tiveram regramento análogo às “Leyes de Índias”: valiam as “Ordenações do Reino”, com muitas mutações e adaptações para a colônia (SOUZA FILHO, 2010, p. 52 - 53). que:
Em relação aos povos indígenas, especificamente, explica Marés Toda a legislação do século XVI é pendular, determina bom tratamento aos indígenas que se submetessem à catequese e guerra, certamente justa, aos que se mostrassem inimigos. A ordem era destruir as aldeias, levar em cativeiro e matar para exemplo dos demais.” (SOUZA FILHO, 2010, p. 53).
A dualidade de tratamento, que impunha aos indígenas a morte e a escravidão e, para os indivíduos superiores, o “bom tratamento”, está de acordo com o exposto pelo filósofo Achille Mbembe, quando este afirma que o processo colonial foi um campo de experimentação da biopolítica, muito antes de processos como o nazismo. Os corpos que se submetessem às tecnologias do poder impostos pelos portugueses (em especial a religião), mereciam um bom tratamento, vez que se tornavam corpos dóceis e úteis para os colonizadores, fato que dialoga com a biopolítica de Foucault. Àqueles que ofereciam resistência e indisciplina cabia a escravidão ou a morte. A construção de uma narrativa universal eurocêntrica, elabora um lugar de superioridade para os europeus e de inferioridade, inclusive racial, para os demais povos. Assim, caberia aos europeus retirar “os outros” do atraso, tendo dois caminhos a civilização e a aniquilação (ARAÚJO; SANTOS, 2019, p. 3032).
3.2 O DIREITO INDÍGENA NO SÉCULO XX E XXI
Desde o final do período colonial houveram diversas legislações, com marcos de avanços e retrocessos relativos aos indígenas, mas tendo
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como regra principal que a tutela desses povos seria feita pelo Estado, com a finalidade de os tornar civilizados e merecedores de direitos individuais, tais como a população em geral. Uma das principais regulamentações da condição dos povos indígenas no século XX no Brasil foi o Estatuto do Índio, de 1967, elaborado em plena Ditadura Militar. Trazia a ideia de que os índios iriam, em algum momento, ser integrados à “civilização”, conforme explica Carlos Marés de Souza Filho: A leitura atenta do Capítulo II, do Título III do Estatuto do Índio “Da Assistência ou tutela”, revela a possível intenção do regime militar neste retorno à tutela orfanológica. Contida neste conceito está a ideia de que os índios em algum tempo não necessitarão mais sequer serem chamados de índio, porque estarão integrados à sociedade nacional, então as garantias a seus direitos estarão equiparadas às garantias de todos os outros cidadãos, e suas terras deixarão de ser suas, para serem devolvidas ao domínio público como terras da União (SOUZA FILHO, 2010, p. 103).
As constituições latino americanas da década de 1980 impuseram um importante marco para os povos indígenas da América Latina, e é a partir delas que estes conquistaram juridicamente a possibilidade de existir e se manifestar enquanto indígenas que são, sem que o objetivo último seja “reintegrar-se” com a sociedade que é legitimada pelo Estado (SOUZA FILHO, 2010, p. 164). A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 está na mesma esteira dos outros países latino americanos: “a partir de 5 de outubro de 1988, o índio, no Brasil, tem o direito de ser índio” (SOUZA FILHO, 2010, p. 107). A Constituição de 88: Reconhece o direito dos povos indígenas tanto de permanecerem na sua cultura, língua e organização social, quanto de ter o direito originário sobre terras que há longo tempo ocupam, a nova concepção é revolucionária, pois finalmente romperá com a lógica integracionista que permanecia no Brasil desde o tempo colonial (SOUZA FILHO, 2010, p. 107).
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Posto o direito indígena na norma fundacional da República, a partir de 1988 a luta indígena se baseou menos em garantir uma Constituição que preveja os seus direitos e mais no sentido da aplicabilidade e concretização de tais direitos, que teoricamente, existem. O conflito pela demarcação de terras, assim como a luta contra o racismo enraizado na sociedade brasileira e o assassinato de indígenas tanto líderes quanto a população indígena no geral - será uma constante depois da Constituição Federal de 1988, sendo essa uma luta inacabada e que se agrava nos últimos anos. 3.3 O DISCURSO DE DESUMANIZAÇÃO DOS INDÍGENAS PELO BOLSONARO
Apesar de alguns direitos terem sido resguardados pela Constituição Federal, bem como pela legislação infraconstitucional, os traços do racismo e do colonialismo são constantes na da sociedade brasileira e, por óbvio, na política brasileira, afetando diretamente a (in)execução desses direitos na realidade concreta. É possível notar a presença desses elementos quando se traz à tona diversas falas do atual presidente Jair Bolsonaro em relação aos indígenas, muitas vezes indo contra, inclusive, o que já está previsto na Carta Magna. Exemplo disso é o caso em que Bolsonaro se afirma desfavorável a novas demarcações de terras destinadas às comunidades tradicionais, quando diz: O índio é um ser humano igualzinho a nós. Quer o que nós queremos, e não podemos usar o índio, que ainda está em situação inferior a nós, para demarcar essa enormidade de terras, que no meu entender poderão ser, sim, de acordo com a determinação da ONU, novos países no futuro. Justifica, por exemplo, ter a reserva ianomâmi, duas vezes o tamanho do estado do Rio de Janeiro, para talvez, 9 mil índios? Não se justifica isso aí” (ÍNDIOS, 2020, grifo nosso).
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Ainda, vale mencionar que, nessa mesma fala, Bolsonaro reproduz um discurso racista, pois afirma que os indígenas, para ele, são “inferiores” a “nós”, que se subentende serem as pessoas brancas. Infelizmente, essa não foi a única vez em que se pôde encontrar falas presidenciais nesse sentido, como se observa em outra declaração do atual chefe de governo: com toda certeza, o índio mudou. Cada vez mais, o índio é um ser humano igual a nós. Então, fazer com que o índio cada vez mais se integre à sociedade e seja realmente dono da sua terra indígena. Isso que se quer aqui (CORRÊA, 2020). Para Mbembe, parte dos mecanismos da soberania no paradigma da necropolítica reside na criação de uma política de inimizade em relação a certos grupos, criando a imagem de selvageria e desumanização para justificar o massacre (MBEMBE, 2016, p. 133). Não obstante, para Foucault, na biopolítica é imprescindível que os corpos sejam submetidos a uma docilidade e utilidade dentro da lógica capitalista (FOUCAULT, 1999, p. 131), e tais traços são diametralmente opostos ao estilo de vida dos povos de comunidades tradicionais. Por isso, quando Bolsonaro fala continuamente sobre uma suposta “integração” dos indígenas à sociedade, pode-se ler da forma apresentada. 4 MECANISMOS DE BIONECROPOLÍTICA NO CONTEXTO INDÍGENA BRASILEIRO
Tendo em vista que os mecanismos bionecropolíticos são amplamente presentes no contexto brasileiro, na presente seção serão abordados aspectos mais factuais e práticos que demonstram a forma com que o Estado brasileiro nos últimos dois anos vem tratando as comunidades tradicionais. A partir dos acontecimentos trazidos a debate, observa-se uma marca profunda de violência na forma com que o atual governo exerce sobre os indígenas que vivem no território brasileiro, que, inclusive, culmina em uma presença direta de mecanismos de morte sobre essas comunidades.
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4.1 MECANISMOS DE BIONECROPOLÍTICA E O “DEIXAR MORRER”
Tanto Mbembe quanto Foucault se debruçam na descrição de diversas táticas utilizadas para o exercício da soberania sobre a vida e a morte dos corpos sociais e anatômicos. Muitas dessas políticas podem ser observadas não somente ao longo da história e do processo de colonização, mas também nos últimos anos, principalmente porque a herança da colonização é o racismo, que tanto se faz presente em nosso contexto. Nesse sentido, interessante mencionar que o governo Bolsonaro foi eleito com um discurso anti-indígenas, quando proferia frases em que afirmava, por exemplo, que não teria mais um centímetro de terras indígenas demarcadas no Brasil ou, ainda, quando mencionava ameaças de colocar o exército “em cima” dos indígenas, forçando uma integralização desses povos. Percebe-se que a questão da territorialidade é muito importante para Mbembe, e que discursos como esse só reafirmam uma estratégia de soberania por bases necropolítica de expansão de assentamentos, pautada também na presença extremamente militarizada desses espaços, típico de estado de exceção. A influência desse tipo de discurso na realidade das comunidades indígenas pode ser observada na prática por meio da declaração dada, por exemplo, pelo líder guarani David Karai Popygua: “a situação dos povos indígenas do Brasil nunca foi boa. Mas, durante 42 anos de trabalho na Amazônia, este é o momento mais perigoso que já vi” (WATSON, 2019, n.p.). Nesse mesmo sentido, pode ser mencionada uma das primeiras medidas tomadas em relação aos povos indígenas durante o governo Bolsonaro, a transferência da Funai - Fundação Nacional do Índio para o comando do Ministério da Agricultura. Com isso, a competência da demarcação de terras passaria para o Ministério da Agricultura, que é chefiado por Tereza Cristina Corrêa da Costa Dias, antiga líder da bancada ruralista. Na prática, a decisão significava deixar a definição de quais terras pertenciam aos indígenas para os ruralistas e latifundiários, grupo que tem histórico de conflito de interesses diretos com os indígenas. O Supremo Tribunal Federal barrou a decisão presidencial, devolvendo a competência para o Ministério da Justiça (SCHEIBER, 2019).
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Vale ressaltar que a pauta ambiental nunca foi colocada como prioridade no governo de Jair Bolsonaro. Sobre as queimadas da Amazônia em 2019, que repercutiram no mundo todo como um símbolo de destruição do meio ambiente, Bolsonaro sempre se posicionou questionando a veracidade das informações, colocando a culpa em ONGs e afirmando que o Brasil não deve nada ao planeta em termos de proteção ambiental. Protestos no mundo inteiro, com a pauta de defesa do meio ambiente, surgiram em meio a essa crise ambiental alarmante na Amazônia. Esse fato é importante, pensando em termos bionecropolíticos, na medida em que as queimadas são usadas como estratégias para sabotar o acesso aos recursos naturais utilizados para a sobrevivência das comunidades da região, como água e terra para plantio de alimentos. Ainda sobre a atuação de grupos de forma a violar o direito à terra pelas comunidades tradicionais, também em âmbito nacional, cabe expor que o diretor do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) foi exonerado em abril de 2020. Na justificativa pela atitude, o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, afirma que o diretor estava “fiscalizando demais”, ou seja: foi demitido justamente por fazer o trabalho destinado ao Ibama de fiscalizar irregularidades em zonas rurais (PRAZERES; FARIA, 2020). A Secretaria Especial da Saúde Indígena (Sesai) já era foco de degradações proporcionadas pelo governo federal, como ocorreu quando o ex-ministro da saúde Luiz Henrique Mandetta afirmou que o país gastava demais com a saúde da população indígena. Com a pandemia de coronavírus, em 2020, os déficits da Sesai se tornaram ainda mais explícitos, tais como a falta de recursos humanos e equipamentos no trato da saúde indígena. Como exemplo, tem-se o caso do Mato Grosso do Sul, em que apenas um médico é responsável por 11 tribos e quase 8 mil vidas indígenas (SANCHEZ, 2020). Dessa forma, torna-se clara a política de “deixar morrer”, visto que tal medida expõe as comunidades a uma situação extremamente suscetível ao contágio e morte pelo novo vírus.
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4.2 OS ASSASSINATOS E A NECROPOLÍTICA DIRETA
No art. 5º da Constituição Federal está disposto, como primeiro direito inviolável, a vida. A Constituição de 1988, em regra, não permite a pena de morte, tampouco a exposição à tortura, visto que a vida dos cidadãos é objeto de proteção integral. Embora a vida seja protegida constitucionalmente, a própria dualidade da biopolítica (“fazer viver e deixar morrer”) explicita que enquanto parte dos cidadãos possuirá a garantia da vida, a outra parte será deixada para morrer. O racismo, como âmago da biopolítica, faz-se necessário e atinge os indígenas brasileiros em um contexto em que os não brancos no Brasil sofrem desafios no passado e no presente. Os dados coletados pela Comissão Pastoral da Terra (CTP), disponíveis em uma matéria publicada no site Pública (DOMENICI; FONSECA, 2020), nesse sentido demonstram a violação desse direito. Há décadas, a CTP vem fazendo um trabalho de coleta de dados envolvendo conflitos de terra que, por exemplo, aponta que desde que Jair Bolsonaro assumiu a presidência em 2018 o número de mortes de lideranças indígenas aumentou de forma alarmante. Conforme o órgão, no ano de 2019 foram reportadas as mortes de 7 (sete) lideranças indígenas em todo o território brasileiro. Em contraposição, no ano anterior, ou seja, em 2018, 2 (duas) lideranças foram mortas, demonstrando um grande aumento (DOMENICI; FONSECA, 2020). Importante pontuar que esses assassinatos foram contra pessoas que se situam na linha de frente das reivindicações dos direitos já previstos nas legislações nacionais e internacionais. Não obstante, o contexto em que esses homicídios ocorreram, segundo os números fornecidos pela CPT (DOMENICI; FONSECA, 2020), em sua maioria envolvem conflitos de terra, o que demonstra uma profunda relação com a exposição realizada acerca do pensamento de Achille Mbembe, na medida em que a inscrição dos sujeitos pela territorialização é de suma importância para o exercício da soberania. Para ele, algumas características do necropoder residem na expansão de assentamentos (MBEMBE, 2016, p. 136), de modo que, no caso brasileiro, aquele está profundamente ligado com a imposição de uma lógica colonial
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e capitalista de “utilidade” das terras em favor do mercado, dialogando, portanto, com o referido autor. Isso porque, por conta da lógica racista que coloca as populações indígenas em situação de “não civilidade”, desrespeitando sua organização social, busca-se adequá-los às estruturas do modo de produção predominante. Ainda, Mbembe menciona táticas da política de morte que muitas vezes são violências praticadas não exclusivamente pelo Estado, mas por segmento de homens armados (MBEMBE, 2016, p. 140). Se de um lado o autor menciona um estado de exceção que muitas vezes opera com a implementação de aparatos militares em certas regiões, de outra o Estado se omite com o objetivo de “deixar morrer”. No caso do Brasil, grupos de garimpeiros e grileiros, por exemplo, investem contra as comunidades tradicionais, aproveitando o descaso do Estado em relação a esses grupos. Exemplo disso é o número de tentativas de homicídio no ano de 2019, que totalizam 9 (nove), ao lado de 39 ameaças de morte, situação que deixa claro o constante atentado à vida dos indígenas pelo território nacional (DOMENICI; FONSECA, 2020). Importante ressaltar que esses assassinatos não são exclusividade do norte do país. No Paraná, há o caso de homicídio de um indígena no município de Guaíra (ARROYO, 2020), que era um dos líderes da aldeia Tekoha Jevi. Ainda não se sabe quem foi o autor do crime, tendo em vista que seu corpo foi encontrado horas depois. O contraste entre a Constituição de 88, que garante vida e igualdade, e a realidade de assassinatos de não brancos revela que: A norma de vida à brasileira enfrenta o paradoxo de que a norma legal garante a todos o direito à vida, mas no campo fático, existem outras normas sociais que assumem um poder real de determinar o critério de aplicação deste “direito” (como grupos de extermínio, milícias, entre outros) (ARAÚJO, SANTOS. 2019, p. 3046).
O aumento do assassinato de líderes indígenas nos três primeiros semestres do governo Bolsonaro, sendo vítimas de crimes de ódio e con-
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flitos de terra, não são uma mera coincidência, mas fazem coro com um discurso presidencial que inferioriza os povos originários e faz entender que, para a sociedade se desenvolver como um todo, é necessário que esses povos deixem de existir ou percam seus direitos fundamentais. Não obstante, algumas medidas de Bolsonaro revelam a política de um governo que pretende armar o campo, especialmente contra invasores não desejados para os latifundiários, como os indígenas e movimentos sociais. Isso pode ser observado por meio do sancionamento, por Bolsonaro, do Projeto de Lei que flexibiliza a posse de armas, deixando que o produtor rural tenha livre exercício da posse em toda extensão de sua propriedade, proposta apoiada pela Bancada Ruralista (BARBIÉRI; MAZUI; RODRIGUES, 2019). Como já é histórico no “racismo à brasileira”, os discursos que apoiam assassinatos e ódio contra os indígenas não são explícitos, como uma incitação da população a matar esses povos Todavia, tanto o discurso quanto às medidas executivas de Bolsonaro dão legitimidade para que latifundiários, posseiros e grupos de extermínio se levantem contra os indígenas, deslegitimando até a vida dessas populações. Em vez de integralizar os índios à sociedade, de forma violenta e anulando tradições, como era do feitio de governos de décadas e séculos anteriores, que a partir disso executavam a biopolítica, agora, conforme colocado por Achille Mbembe, a prioridade das tecnologias do poder é menos a inserção desses corpos dissidentes em uma ordem disciplinar e mais a execução de uma política máxima, representada pelo massacre (MBEMBE, 2016, p. 141). Infelizmente, a perspectiva da necropolítica com os indígenas brasileiros tende a aumentar ainda mais os casos de assassinatos desses povos, tanto quanto por motivo de ódio, quanto por motivo de lutas territoriais no campo.
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5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Conforme apresentado neste artigo, foi possível expor que a política brasileira, por herança do processo de colonização que sofreu, apresenta diversas características que se relacionam com os conceitos de biopolítica e necropolítica propostos por Michel Foucault e Achille Mbembe, em especial no que tange às comunidades tradicionais indígenas. Fruto do racismo enraizado em nossa sociedade, esses povos tiveram e têm constantemente seus direitos fundamentais desrespeitados por conta das imposições da etnia dominante, impedindo que possam manter suas tradições, culturas e organizações sociais. Além disso, por consequência desse mecanismo de “fazer viver e deixar morrer”, os povos não brancos são submetidos por diversas vezes e formas a políticas de morte, vez que ora o Estado se omite quando deveria resguardar os direitos previstos na Constituição Federal de 1988, ora o atual chefe de governo atua em desfavor do cuidado à vida, à dignidade e às terras desses sujeitos. Como demonstrado, como essas políticas de extermínio se acentuaram no governo Bolsonaro, torna-se um desafio para os povos indígenas sobreviver no território brasileiro. Todavia, essa preocupação não se restringe somente a essas comunidades afetadas, mas também à toda a sociedade brasileira, vez que é necessário que essa discussão se torne prioridade, no sentido da defesa desses povos e da manutenção de suas culturas, que resiste nessa batalha que dura mais de 500 anos. Em conclusão, nas palavras de Sônia Guajajara, uma das principais líderes indígenas do Brasil, “vamos resistir. Se formos os primeiros a serem atacados, seremos os primeiros a reagir.” (WATSON, 2019, n.p.). A resistência indígena precisa ser uma pauta dos cidadãos como um todo e espera-se que este artigo, utilizando de potentes ferramentas de reflexão, resumidas nos conceitos de biopolítica e necropolítica, possa contribuir para a compreensão da dura situação que os indígenas vivem atualmente. Em conjunto com esses povos, deve-se pautar o respeito pela Constitui-
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ção Brasileira, assim como garantir que os indígenas permaneçam vivos e, também, que possam residir nos territórios que os pertencem. REFERÊNCIAS ALVARENGA, Rodrigo; AMÉRICO JUNIOR, Elston. Da biopolítica à necropolítica contra os povos indígenas durante a ditadura militar brasileira (19641985). Ciências Sociais Unisinos, v. 55. N. 2, p. 212-222, mai./ago. 2019. ARAÚJO, Danielle Ferreira Medeiro da Silva; SANTOS, Walkyria Chagas da Silva. Raça como elemento central da política de morte no Brasil: visitando os ensinamentos de Roberto Esposito e Achille Mbembe. Revista Direito e Práxis, v. 10, n. 4, p. 3024-3055, out./dez. 2019. ARROYO, Priscila. Guarani de 28 anos é morto a pauladas e pedradas no Paraná. Jornal GGN, Questão Indígena, Violência, Publicado em: 19 nov. 2019. Disponível em: https://bityli.com/Y4H2T. Acesso em: 13 mai. 2020. BARBIÉRI, Luiz Felipe; MAZUI, Guilherme; RODRIGUES, Matheus. Bolsonaro sanciona projeto que amplia posse de arma em propriedades rurais. G1. Publicado em: 19 set. 2019. Disponível em: https://bityli.com/FFztg. Acesso em: 13 mai. 2020. BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Presidência da República, [2020]. Disponível em: https://bityli.com/VoGrV. Acesso em: 13 mai. 2020. BOLSONARO diz que índios vivem “pré-históricos dentro de suas terras”. Jornal Estadão. Publicado em: 27 nov. 2019. Disponível em: https://bityli.com/7zvzY. Acesso em 13 mai. 2020. CORRÊA, Marcello. ‘Cada vez mais, o índio é um ser humano igual a nós’, diz Bolsonaro. Jornal O Globo. Publicado em: 23 jan. 2020. Disponível em https:// bityli.com/TZq0l. Acesso em: 13 mai. 2020. DOMENICI, Thiago; FONSECA, Bruno. Sob governo Bolsonaro, conflitos no campo aumentam e assassinatos de indígenas batem recorde. Pública. Publicado em: 17 abr. 2020. Disponível em: https://bityli.com/iqClF. Acesso em: 13 mai. 2020.
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O GOLPE NO BRASIL, A AGENDA NEOLIBERAL E A R(D)EFORMA PREVIDENCIÁRIA
Larissa Rahmeier de Souza
RESUMO
A profunda crise política e econômica no Brasil a partir do segundo governo Dilma, possibilitou a utilização de mecanismos institucionais e legais para a efetivação do impeachment, ou golpe, como conceituado por autores marxistas utilizados como referencial teórico neste trabalho. Observa-se, na primeira seção, portanto, que o golpe pavimentou os caminhos para a intensificação da agenda neoliberal, pautada na diminuição dos gastos públicos e no enxugamento do Estado. A reforma da previdência ganhou destaque na política econômica do Governo Bolsonaro, como condição para a retomada do crescimento econômico e da geração de empregos. Num primeiro momento, serão observados neste artigo, os dois principais argumentos apresentados: i) o déficit previdenciário, colocando a previdência como onerosa aos cofres públicos; ii) o crescimento demográfico e da população idosa e o alto custo do sistema previdenciário atual. Num segundo momento, analisaremos os quatro principais elementos das alterações trazidas pela reforma previdenciária, a partir das contribuições do Marco Aurélio Serau Jr., sendo eles: i) o rompimento do princípio da solidariedade social; ii) a destruição do conceito de seguridade social; iii) o aumento da idade mínima; e iv) o sistema de gatilho etário. Por fim, concluiu-se que os interesses do mercado financeiro vêm atuando diretamente na devastação dos direitos sociais, colocando os idosos como um mal da ausência do crescimento econômico, atingindo os mais pobres e miseráveis, um ajuste fiscal para os trabalhadores, permanecendo intactos os interesses das elites dominantes.
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Palavras-chave: Golpe. Neoliberalismo. Reforma da previdência. Seguridade social. PEC 6/2019. 1 INTRODUÇÃO
Desde a década de 1970, o mercado financeiro vem impondo aos países uma nova política socioeconômica, retomando os princípios do liberalismo clássico, ao recomendar uma intervenção mínima do Estado, pois um Estado forte é muito oneroso às contas públicas, prejudicando a ações comerciais e a liberdade econômica. Dessa forma, com o advento da crise econômica de 2008, ganhou ainda mais evidência a implementação das políticas de austeridade ao redor do mundo, com a corrosão dos direitos sociais, a privatização dos serviços e empresas públicas e a execução das reformas trabalhistas e previdenciárias. O golpe de 2016 no Brasil possibilitou o caminho para a aplicação dessas medidas de austeridade, como a Emenda Constitucional 95/2016, que congela os investimentos em educação e saúde, por 20 anos, a reforma do ensino médio e a reforma trabalhista, devastando direitos sociais e realizando profundas transformações nas relações de trabalho. Paulo Guedes, atual Ministro da Economia, apresentou a reforma previdenciária como necessária para a retomada do crescimento econômico e criação de novos empregos, pois o próprio sistema previdenciário estaria condenado. É nesse cenário que esta seção se insere na leitura e reflexão crítica das mudanças da situação política e econômica a partir do impeachment e do direito previdenciário, pautado na agenda econômica neoliberal, efetivado na reforma previdenciária do Governo Bolsonaro. Na primeira seção, serão analisadas as transformações no regime democrático brasileiro com o impeachment da Presidenta Dilma, a partir do referencial teórico de autores marxistas, que conceituam esse episódio como um golpe pseudolegal, acompanhando as tendências latino-americanas, em que os interesses econômicos se sobrepõem às representações
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políticas eleitas democraticamente. Concluiu-se, portanto, que o golpe pavimentou os caminhos para a intensificação da agenda neoliberal no Brasil, pautada na diminuição dos gastos públicos e no enxugamento do Estado. A reforma da previdência ganhou destaque na política econômica do Governo Bolsonaro, como condição a retomada do crescimento econômico e da geração de empregos, sendo este objeto da segunda seção. Assim, debruçaremo-nos a analisar a reforma da previdência, a partir do conceito de seguridade social, a partir da bibliografia dos autores Carmelo Mesa-Lago, Marco Aurélio Serau Jr. e Sonia Fleury. Num primeiro momento, serão observados os dois principais argumentos apresentados para a reforma do sistema previdenciário: i) o déficit previdenciário, colocando a previdência como onerosa aos cofres públicos; e ii) o crescimento demográfico e da população idosa e o alto custo do sistema previdenciário atual. Posteriormente, analisaremos os quatro principais elementos das alterações trazidas pela reforma previdenciária, a partir das contribuições do Marco Aurélio Serau Jr., sendo eles: i) o rompimento do princípio da solidariedade social; ii) a destruição do conceito de seguridade social; iii) o aumento da idade mínima; e iv) o sistema de gatilho etário. 2 O CONTEXTO LATINO-AMERICANO, O GOLPE NO BRASIL E A AGENDA NEOLIBERAL
Apesar da disseminação do progresso dos padrões de vida no século XXI, com o desenvolvimento tecnológico, científico e farmacológico, percebe-se que as desigualdades têm assumido diferentes formas no desenvolvimento humano, sobretudo no papel de economia dependente na América Latina, junto a uma maior exploração do trabalhador, como aduz Mauro Marini: A difusão do progresso técnico na economia dependente seguirá, portanto, junto a uma maior exploração do trabalhador, precisamente porque a acumulação continua dependendo fundamental-
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mente mais do aumento da massa de valor — e, portanto, de mais-valia — que da taxa de mais-valia (MARINI, 1973, p. 26).
Os países da América Latina possuem em comum um passado arraigado na colonização, sociedades construídas sob as bases escravocratas com a abolição tardia, a alta concentração de terras economias voltadas à exportação, sobretudo, de matérias primas, processo de industrialização tardio, experiências democráticas descontínuas e mão de obra superexplorada.1 Assim como as profundas desigualdades na América Latina e no Brasil estão intrínsecas a sua formação histórica, veremos a seguir que a história da democracia nesta região também não foi a regra, mas a exceção. A regra ao longo da história das democracias latino-americanas é marcada por golpes de Estado, rupturas institucionais e democráticas, impeachments, golpes pseudolegais, para atender aos interesses do grande capital para a superexploração e a sobreacumulação capitalista, com a agenda pautada nas contrarreformas, como a trabalhista e previdenciária, sendo esta última, objeto de estudo deste trabalho. A superexploração do trabalho se deve a um estágio atual de desenvolvimento capitalista, com profundas transformações nas relações de trabalho, que se materializam em altas jornadas de trabalho, baixa remuneração, aumento da informalidade, flexibilização de direitos, evidenciando, assim, o papel de economia dependente da América Latina na divisão internacional do trabalho. Ricardo Antunes, em “O Privilégio da Servidão”, evidencia essa dinâmica de acumulação capitalista. Internamente, a dinâmica do padrão de acumulação capitalista se baseava na vigência de um processo de superexploração da força de trabalho, intensificados, jornadas prolongadas, combinando uma extração do mais-valor absoluto quanto do mais-valor relativo. Esse padrão gerou altas taxas de acumulação, entre as quais 1
O conceito aqui empregado parte da teoria marxista dependente, presente no Texto “A Dialética da Dependência”, de Ruy Mauro Marini.
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aquelas observadas na fase do “milagre econômico” (1968-1973) durante a ditadura civil-militar (1964-1985) (ANTUNES, 2018, p. 118).
O relatório de desenvolvimento humano de 2019 do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), apontou a América Latina como a região com a maior desigualdade de renda do mundo (ONU, 2019; LISSARDY, 2020). Nesse relatório, aponta que os 10% mais ricos da América Latina concentram uma parcela maior de renda do que outras regiões. Já os mais pobres recebem a menor parcela, de apenas 13%. Em síntese, esses dados recentes colocam que a teoria da economia dependente continua atual e é central na observação do processo mundial de acumulação capitalista. Ao analisarmos a imposição de medidas de exceção e a aplicação de sucessivos golpes nos países da América Latina, confirma-se a hipótese da diminuição dos espaços democráticos e de que a democracia tem atrapalhado os interesses das classes dominantes e do capital financeiro. Desde o final da década de 1970, emergiram restrições rígidas trazidas pela política monetária internacional, para que a emissão de títulos públicos, e o consequente endividamento dos Estados, fosse acrescido de juros e não mais a custo zero. Entretanto, desde o final da década de 1990, o aumento da dívida pública brasileira passou a descontentar os compradores de títulos públicos, ou o grande capital (MALTA, 2019, n.p.). Maria Malta, no prefácio da obra “Políticas de Austeridade e Direitos Sociais”, elenca os motivos das contas públicas que passaram a incomodar o grande capital: Contas públicas anuais a pagar eram geradas por três motivos fundamentais; o pagamento dos juros do estoque da dívida pública, gastos com serviços públicos (saúde, educação, transporte, segurança entre outras), políticas de transferência de renda e previdência social e os capitais privados só estavam usufruindo dos ganhos diretos possíveis com os juros da dívida pública (MALTA, 2019, n.p.).
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Nesse mesmo sentido, no prefácio da obra “Estado de Exceção”, de autoria do Rafael Valim, Jessé Souza elucida como a dívida pública está acima da democracia e da representação política, e como elas são cooptadas e dominadas pelos interesses do mercado. Como diz Wolfgang Streeck, o capital financeiro tende a incorporar uma espécie de “segunda soberania”, infensa aos controles democráticos em todo lugar. Um de seus principais mecanismos é a dívida pública. Atender ao serviço da dívida passa a estar acima da noção de representação política. O “mercado” em abstrato passa a determinar, em grande medida, a política econômica antes privilégio cesso legal é legitimado pelo Tribunal que deveria defender a constituição (SOUZA, 2017, p. 11).
É nesse cenário de crise política e econômica que se impõem os golpes às democracias, para atender aos interesses das elites econômicas, uma agenda neoliberal para espaços de sobreacumulação capitalista (MALTA, 2019), que emergem as políticas de austeridade, como as contrarreformas trabalhista e previdenciária no Brasil. O argumento levantado é de que o Estado não poderia se endividar além do que poderia pagar, pois isso colocaria em risco os rendimentos da financeirização e as condições do pagamento da dívida pública (MALTA, 2019). As soluções apresentadas pelo Consenso de Washington seriam as privatizações, a venda de empresas públicas, retirada de direitos, diminuição do Estado e cortes nas áreas sociais como educação e saúde, substituídas por meio da previdência privada em sistema de capitalização, seguros de saúde, sistemas de créditos ou vouchers educacionais e habitacionais, que vem sendo implementadas ao redor do mundo (MALTA, 2019). Analisar-se-á, a partir de agora, como a intensificação do neoliberalismo se dá em conjunto com as modificações dos regimes democráticos. Depois de um período de sucessivos governos populistas-progressistas na América Latina, vêm se consolidando novos formatos de rupturas institucionais e golpes, não mais com as mesmas características
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da década de 1960-1970, com tanques e fuzis nas ruas, mas com aparência democrática, utilizando-se das instituições e da legalidade, a partir da crise política e institucional. Ivana Jinkings, ao analisar o golpe de 2016 no Brasil, afirma que: Trata-se de uma ruptura de novo tipo, distinta das observadas nos países sul americanos entre os anos 1960-1980. Naqueles tempos aparecia um roteiro que se tornou clássico: as forças armadas se dividiam, um setor se aliava com o grande capital, com os monopólios da mídia e com a embaixada estadunidense. O enredo era previsível: o palácio de governo era sitiado, o mandatário eleito era encarcerado ou expulso do país – quando não assassinado – e triturava-se a institucionalidade vigente (JINKINGS, 2016, p. 11).
O golpe de 2016 no Brasil não foi o primeiro (LOWY, 2016, p. 61). Honduras, em 2009, viu o presidente Manuel Zelaya sendo deposto pela Corte Suprema, por meio de uma intervenção pseudolegal, com apoio do exército. No Paraguai, em 2012, sob a acusação de apoiar os movimentos camponeses (LOWY, 2016, p. 63), o Senado depôs o Presidente Fernando Lugo por intermédio de um impeachment. Na Bolívia, em 2019, Evo Morales foi convidado pelas Forças Armadas a renunciar ao cargo, que se constituiu num golpe de Estado, tendo em vista que o procedimento foi inconstitucional com a interrupção de um governo eleito democraticamente. Ainda, elucidou Michael Lowy que governos direitistas e autoritários substituíram os dirigentes progressistas em ambos os países, com o apoio do imperialismo americano. Outro ponto em comum que presenciamos nas últimas décadas na América Latina são as reformas dos sistemas previdenciários. Juliana Teixeira Esteves afirma que o Brasil vem passando por reformas previdenciárias em consonância com a América Latina, efetuando gradativamente reformas dos sistemas de previdência desde os anos 1980, alinhados às políticas orientadas pelo Banco Mundial:
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(...) a América Latina vêm [sic] reformando os seus sistemas previdenciários desde o início dos anos oitenta, e o Brasil não esteve fora dessas reformas. Além das reformas na previdência dos trabalhadores do setor privado e do público, foram aprimoradas as legislações acerca da previdência complementar, com intuito de regulamentar a atividade das empresas já havidas e atuantes no país e de complementar a renda dos trabalhadores a ser usufruída na velhice ou incapacidade, ou pelos beneficiários na morte do titular. Esse quadro de reformas está em consonância com o esquema de reformas previdenciárias sugerido pelo Banco Mundial e outros organismos internacionais (ESTEVES, 2019, p. 185).
A partir de agora, situar-nos-emos a analisar o caso brasileiro do processo do impeachment que depôs a ex-presidenta, Dilma Rousseff. Diante da crise econômica que assola o mundo desde 2008 e a ofensiva do capital financeiro pela imposição das reformas neoliberais, a estratégia de conciliação de classes dos governos do PT demonstrou-se esgotada, já que a burguesia e o grande capital não estavam mais dispostos a continuar o pacto pela governabilidade, pois desejavam governar diretamente os rumos políticos e econômicos do país para anular as poucas conquistas sociais dos últimos anos (LOWY, 2016, p. 64). Ruy Braga relaciona o agravamento da crise internacional a partir de 2008 com a exigência dos grupos empresariais brasileiros por uma estratégia do governo para o aprofundamento da austeridade e da agenda das contrarreformas trabalhista e previdenciária. Diante do agravamento da crise internacional, os principais grupos empresariais brasileiros, tendo os bancos privados à frente, passaram a exigir do governo federal um aprofundamento da estratégia de austeridade. Em suma, para as grandes empresas, é necessário aprofundar o ajuste recessivo, aumentar o desemprego e conter o atual ciclo grevista, a fim de impor uma série de reformas antipopulares, como a da previdência e a trabalhista (BRAGA, 2016, p. 59).
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Depois de sucessivos escândalos de corrupção envolvendo dirigentes e parlamentares do PT (Partido dos Trabalhadores), associado a pressão do capital financeiro e dos setores dominantes, sob as máscaras do combate à corrupção, percebe-se que o golpe foi pavimentado calcados em interesses políticos e econômicos, para a aplicação das políticas de austeridade, acompanhando as tendências dos países latino-americanos. Apesar dos diversos sinais da Presidenta ao mercado financeiro, como a nomeação do Joaquim Levy, doutor pela Universidade de Chicago e que integrou o quadro do FMI – Fundo Monetário Internacional, para o Ministério da Fazenda, o anúncio do ajuste fiscal e do corte de 10 bilhões de reais na educação, ainda assim, não foram suficientes para a manutenção do seu governo. Em que pese a centralidade da leitura crítica do impeachment da presidenta Dilma e as implicações econômicas impostas pelo neoliberalismo, o qual possibilitou a implementação da reforma previdenciária no Brasil, é importante destacar que, acerca do instrumento do impeachment, parte da doutrina aponta tratar-se de mecanismo importante para restringir os intensos poderes dos Presidentes da República, sendo válvulas de escape contra esse grande poder (BARBOSA; ROBL FILHO, 2018, p. 93). Por outro lado, percebe-se que, após 21 anos de ditadura militar, o Brasil vivencia a curta experiência de uma transição democrática com o pacto constitucional de 1988, experimentando dois impeachments em 31 anos de Constituição Federal, primeiro com o Presidente Collor, por corrupção, e depois, com a Presidenta Dilma, sob a acusação de irregularidade contábil, as chamadas “pedaladas fiscais”, como veremos em frente, mas que trazem preocupações sobre a utilização reiterada desse mecanismo para a jovem democracia brasileira. O processo de impeachment da Dilma baseou-se na acusação de irregularidade contábil, as chamadas “pedaladas fiscais”, que giram em torno da legitimidade dos créditos adicionais do governo Dilma sem autorização parlamentar, cuja função é com cada espécie de crédito adicional, a alteração da Lei Orçamentária Anual vigente.
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Nesse sentido, elucidam os professores Rodrigo Kanayama, Fabricio Tomio e Ilton Robl Filho sobre os créditos adicionais, suplementares e extraordinários: Ao final, serviu como um dos fundamentos jurídicos ao impeachment. Entre os créditos adicionais – os quais são classificados como suplementares, especiais e extraordinários –, dois independem, num primeiro momento, da participação do Poder Legislativo: os créditos suplementares e os extraordinários. Estes são abertos por medida provisória, enquanto que aqueles, por decreto presidencial (KANAYAMA; TOMIO; ROBL FILHO, 2017, p. 324).
Depreende-se ao longo desse processo que as bases da sustentação jurídica para o impeachment da Presidenta Dilma eram voltadas aos créditos adicionais e às pedaladas fiscais. No entanto, na história da Nova República brasileira, os créditos adicionais sempre foram utilizados pelos Presidentes da República, inclusive, como forma de manobra sobre a Lei Orçamentária. Paulo Rocha, em estudos desenvolvidos na sua dissertação de mestrado sobre o processo orçamentário nos anos 1990, retrata como os créditos adicionais eram utilizados pelo Poder Executivo: [A LOA autoriza o] Poder Executivo a abrir créditos suplementares até 20% do valor consignado […] sem prévia autorização legislativa. Entre as fontes de recursos possíveis à suplementação, está o cancelamento de até 20% de dotações indicadas na lei orçamentária. Apenas para o Orçamento de 1997 é que estes limites caíram para 15%, na suplementação e no cancelamento […]. Na prática, este dispositivo permite ao Executivo uma considerável margem de manobra sobre a Lei Orçamentária sem que o Legislativo seja ouvido, à medida que cada dotação pode ser cancelada e acrescida em margem considerável (ROCHA, 1997, p. 92).
As Uniões, na gestão Dilma Rousseff e nos pretéritos governos, utilizaram os créditos adicionais suplementares e extraordinários como instrumentos de ampliação do poder orçamentário (KANAYAMA; TOMIO; ROBL FILHO, 2017, p. 324). Em síntese, o processo do impeachment da
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Presidenta Dilma, tratou-se, formalmente, sob a acusação da utilização indevida dos créditos adicionais, utilizada por diversos governos anteriores como exposto acima. Entretanto, os motivos de sua sustentação, como analisados neste artigo, foram frutos de uma profunda crise econômica, política, social e a imposição das da agenda neoliberal. Com a abertura do processo de impeachment, o vice-presidente Michel Temer, então assumiu o posto da Presidência da República. O Presidente mais impopular da história, chegando a taxa de 82% de reprovação (BOGHOSSIAN, 2018), aproveitando-se do argumento da crise econômica, ascendeu à Presidência, com o compromisso de assumir o poder para destruir as bases dos direitos sociais, desfigurar a Constituição Federal de 1988, com vistas a maior extração de lucro e exploração dos trabalhadores pelo grande capital. Nesse sentido, diante da ofensiva do mercado financeiro, Michel Temer, aplicou os ditames da cartilha neoliberal, com uma série de contrarreformas, desmontando o estado social garantido na Constituição Federal de 1988 e os direitos conquistados nas últimas décadas. Dentre as quais, citamos a aprovação da Emenda Constitucional a Emenda Constitucional 95/2016, a chamada “PEC da morte”, que congela os investimentos em saúde e educação por 20 anos - com exceção do pagamento dos juros da dívida pública - a reforma do ensino médio e a reforma trabalhista, tratando-se da maior alteração da legislação trabalhista e nos retrocessos dos direitos sociais, garantidos pela Consolidação das Leis Trabalhistas e pela Constituição Federal 1988. Portanto, identifica-se que os discursos e as políticas neoliberais seguem presentes desde os anos 1970 para atender as exigências do capital financeiro e do processo de acumulação, interferindo nos governos ao redor do mundo, como a aplicação de golpes e a interrupção de governos eleitos democraticamente, para a implementação das políticas de austeridade e a mercantilização do que estivesse fora do mercado, restringindo direitos sociais, trabalhistas, previdenciários, a preservação do meio ambiente e a privatização dos serviços e empresas estatais.
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Como analisado na primeira seção, o golpe contra a democracia brasileira abriu os caminhos para que o grande capital aprofundasse a retirada de direitos e a diminuição do Estado, implementando as políticas da cartilha neoliberal para a manutenção das riquezas e do processo de acumulação das elites dominantes. A ofensiva conservadora e neoliberal avança ao redor do mundo, emergindo nos últimos anos, governos de extrema-direita, autoritários, ultraliberais e com traços neofascistas como Shinzo Abe (Japão), Modi (Índia), Trump (Estados Unidos), Orban (Hungria) e Bolsonaro (Brasil) (LOWY, 2020, p. 147). Dentro desse cenário mundial, observa-se que o Brasil cumpre papel importante no reordenamento político e econômico internacional por intermédio de um governo que congrega características do neofascismo, diferentes do fascismo da década de 1930, ou o que poderíamos chamar de “o fascismo do século XXI”, conjuntamente com o ultraliberalismo, pautas de caráter radicalmente liberais. Nesse sentido, a Reforma Previdenciária ganhou destaque entre os discursos da política econômica do Presidente Bolsonaro, alegando o necessário equilíbrio das contas fiscais. O suposto progresso dos padrões de vida no Século XXI e o aumento da expectativa de vida no país, justificou a necessidade da reforma previdenciária a partir de dois principais argumentos que serão destacados no decorrer desta seção: i) o déficit previdenciário, alegado como muito alto e oneroso aos cofres públicos; ii) o crescimento demográfico e da população idosa e o alto custo do sistema previdenciário atual. Assim, por meio desses argumentos, o Governo Bolsonaro endossa e propaga a ideia de que o equilíbrio fiscal, a retomada do crescimento econômico e a criação de empregos só serão possíveis com a aprovação das reformas e a supressão de direitos garantidos pela Constituição Federal de 1988. No entanto, não verificamos o alegado crescimento econômica e a criação de novos empregos, conforme apresentaremos a seguir. Os dados apresentados pela Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD), divulgado pelo IBGE, apontam que a taxa média de de-
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semprego em 2019 foi de 11,9%, enquanto em 2018 atingiu 12,3% (UOL, 2020). A mesma pesquisa concluiu que o Brasil atingiu o maior nível na taxa de informalidade desde 2016, atingindo 41% (SILVEIRA, 2019). É dentro desse panorama que este artigo contribuirá na observação crítica e reflexiva dentro da pesquisa jurídica, a partir da situação política e econômica que trilharam o caminho do impeachment e da agenda neoliberal no Brasil, culminando na contrarreforma da previdência. A partir da revisão bibliográfica de Carmelo Mesa-Lago, Marco Aurélio Serau Jr. e Sonia Fleury, por meio do conceito de seguridade social, serão demonstrados os principais argumentos levantados para a aprovação da reforma previdenciária pelo Governo Bolsonaro. Essas justificativas se contradizem no que tange ao alto custo previdenciário devido ao crescimento demográfico, difundido no imaginário social de que a velhice e a aposentadoria como sinônimos de inatividade, como constatado pela Anita Neri. Outra narrativa que se destaca entre os pretextos do atual governo, trata-se do alegado déficit previdenciário. A partir dos estudos desenvolvidos na tese de doutorado de Denise Gentil, sistematizados nesta seção por meio da contribuição de Eduardo Fagnani sobre o tema, em que ambos demonstram um superávit primário nas contas de 2005-2015. Esses autores nos levam a conclusão de que essas mudanças trazidas pela “nova previdência” levarão a um agravamento das desigualdades sociais, principalmente das populações mais vulneráveis. Posteriormente, abordaremos brevemente os quatro elementos presentes na PEC 06/2019, a partir das produções e reflexões do Professor Marco Aurélio Serau Jr sobre o tema: i) o rompimento do princípio da solidariedade social; ii) a destruição do conceito de seguridade social; iii) o aumento da idade mínima; e iv) o sistema de gatilho etário. Primeiramente, cabe destacar a origem da seguridade social moderna que nasce na Alemanha, gerada pelo chanceler Otto Von Bismarck, entre 1883 a 1889, estabelecendo a proteção dos trabalhadores contra os riscos sociais da idade, invalidez e da doença (MESA-LAGO, 2006, p. 17), expandindo-se posteriormente pela Europa e outros países industrializados.
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Todavia, o conceito moderno da seguridade social foi elaborado por Willian Beveridge, evidenciado no Relatório sobre o Seguro Social e Serviços Afins, de 1942. Seis “princípios” eram identificados no documento, incluindo o serviço público único ou a unificação da responsabilidade administrativa, a abrangência e a uniformidade na contribuição e na prestação (BEVERIDGE, 1946; MESA LAGO, 2006, p. 17). Com o fim da primeira guerra mundial, em 1919, foi fundada a Organização Internacional do Trabalho (OIT), a qual estabeleceu o seguro social como instrumento fundamental da proteção dos trabalhadores e de suas famílias contra riscos sociais (MESA-LAGO, 2006, p. 17). Em sua tese de doutorado, Marco Aurélio Serau Jr. discorre sobre como a seguridade social passa a ser considerada e vista como direito fundamental pelos Tratados Internacionais e Recomendações da Organização Internacional do Trabalho (OIT). A Seguridade Social passa a ser considerada um compromisso de garantir a todos os membros da sociedade a cobertura contra riscos pessoais, pautada pelo princípio da solidariedade e na ideia da dignidade, sendo vista como direito fundamental recepcionado pelos Tratados Internacionais de Direitos Humanos e nos Convênios e Recomendações da OIT (SPATOLA, 2001: SERAU, 2014, p. 30-31).
Ademais, é importante destacar que a seguridade social também foi tema da Declaração Universal dos Direitos Humanos, presente no art. 25, em conjunto com a criação da Organização das Nações Unidas, em 1948, pós-segunda Guerra Mundial. Todos os seres humanos têm direito a um padrão de vida capaz de assegurar a saúde e bem-estar de si mesmo e da sua família, inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos e os serviços sociais indispensáveis, e direito à segurança em caso de desemprego, doença, invalidez, viuvez, velhice ou outros casos de perda dos meios de subsistência fora do seu controlo.
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A maternidade e a infância têm direito a cuidados e assistência especiais. Todas as crianças, nascidas dentro ou fora do matrimônio, gozarão da mesma proteção social (DUDH, 1948).
No direito brasileiro, a seguridade social foi introduzida na Constituição Federal de 1988, representando a maior inovação no campo dos direitos sociais no século XX, vinculando-os, pela primeira vez, à condição de cidadania (FLEURY, 2013, p. 1). A seguridade social possui alguns princípios que norteiam e dão a base e a forma da seguridade, como o da solidariedade, irredutibilidade dos benefícios, universalidade, dentre outros. Os princípios da Seguridade Social encontram-se no art. 194, da Constituição de Federal de 1988, sendo eles: I - universalidade da cobertura e do atendimento; II - uniformidade e equivalência dos benefícios e serviços às populações urbanas e rurais; III - seletividade e distributividade na prestação dos benefícios e serviços; IV - irredutibilidade do valor dos benefícios; V - equidade na forma de participação no custeio; VI - diversidade da base de financiamento; VII - caráter democrático e descentralizado da administração, mediante gestão quadripartite, com participação dos trabalhadores, dos empregadores, dos aposentados e do Governo nos órgãos colegiados.
Dentro desses princípios, embora não esteja presente no rol do art. 194, da Constituição Federal de 1988, o princípio da solidariedade destaca-se como um dos mais importantes, consistindo num pacto geracional de solidariedade, de forma que toda a sociedade contribui para a manutenção da seguridade, com responsabilidade tripartite entre empregado, empregador e Estado, para garantia do direito de seguridade social, o direito à velhice, como forma de evitar riscos danosos à saúde, à assistência social e à distribuição de renda.
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Percebe-se que ao longo dos últimos anos, os avanços científicos e tecnológicos propiciaram mudanças econômicas, sociais e demográficas, expandindo as taxas de longevidade humana, trazendo novos paradigmas e desafios nas políticas de seguridade social. A velhice e a aposentadoria vêm sendo difundidas no imaginário social como sinônimo de inatividade, mas não somente em relação ao trabalho, mas em diversas esferas da vida, desqualificando a pessoa idosa para o exercício de atividades produtivas, outras atividades e funções sociais. Os chamados asilos, hoje denominados ILPIs – Instituições de Longa Permanência Para Idosos, são vistos como “depósitos de idosos”, evidenciando um signo de uma velhice inválida, inapta, disfuncional, inativa, que requer o confinamento e exclusão do restante da sociedade. Anita Neri, em “As Políticas de Atendimento aos Direitos da Pessoa Idosa Expressas no Estatuto do Idoso”, publicado na Revista “A Terceira Idade”, traz reflexões sobre a ideologia predominante de que a velhice é um problema médico-social: A ideologia predominante nesse percurso histórico é a de que a velhice é um problema médico-social. Ou seja, há uma crença generalizada no poder da Medicina para definir, compreender e controlar a questão da velhice nos âmbitos individual e social, oferecendo parâmetros para a designação do normal e do patológico e para a alocação de recursos. Ao mesmo tempo, credita-se a atitudes negativas, a preconceitos e estereótipos existentes na sociedade, os problemas sociais dos idosos (NERI, 2005, p. 10).
O Estatuto do Idoso, Lei n.° 10.741/1994, foi elaborado e criado por especialistas, pela área da gerontologia, parlamentares e pela sociedade civil organizada, para o reconhecimento do idoso como cidadão, o direito à velhice, direito de prioridades nos atendimentos, dentre outros. A Lei n.° 10.714/1994 dispõe as normas e diretrizes para a formulação e execução de políticas públicas destinadas à população idosa, com 60 anos ou mais, e afirma a obrigação do Estado, da família e da sociedade como garantidores da tutela desses direitos fundamentais à população idosa, presente no art. 3º do Estatuto do Idoso:
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Art. 3º É obrigação da família, da comunidade, da sociedade e do Poder Público assegurar ao idoso, com absoluta prioridade, a efetivação do direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, à cultura, ao esporte, ao lazer, ao trabalho, à cidadania, à liberdade, à dignidade, ao respeito e à convivência familiar e comunitária.
Nesse sentido, cabe destacar que a velhice não pode ser associada a inatividade, invalidez, inaptidão e ao confinamento, de pena e comoção da sociedade. A velhice deve ser vista como um direito, mas também de respeito e dignidade com a população que trabalhou e contribuiu para a sociedade, a economia e na construção dos direitos conquistados. Ademais, a população idosa movimenta um setor importante também para o mercado financeiro e interno, tendo em vista que é o gasto mais significativo, cerca de 7% do PIB (FAGNANI, 2016, p. 88), sendo também o principal alvo de cooptação do mercado financeiro. É nessa seara que se verifica a construção de um discurso ideológico e preconceituosa com a velhice e a aposentadoria, como se fossem custosos e onerosos para o orçamento público. Portanto, além do discurso ideológico presente no discurso do crescimento demográfico, identifica-se também, a fundamentação pautada na ideologia neoliberal no que diz respeito a alegação do déficit previdenciário. Paulo Guedes, ministro da Economia, em audiência da Comissão e Justiça do Congresso Nacional, afirmou que: “Os gastos públicos subiram ao longo dos últimos anos e atingiram 45% do PIB. O principal componente dessa explosão foram os gastos de pessoal e o elemento do déficit galopante é a previdência (...) A previdência no formato atual já está condenada” (TUPI FM, 2019). Assim, denota-se que o argumento do atual Governo é de que a previdência estaria condenada antes da população brasileira envelhecer (VENTURA, 2019). O Governo Bolsonaro apresentou um déficit previdenciário nas contas públicas de R$ 290 bilhões em 2018.
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Entretanto, os estudos desenvolvidos na tese de doutorado da economista Denise Gentil, da UFRJ, apontam que houve um superávit previdenciário de R$ 957 bilhões no período entre 2005 e 2015, valores atualizados em 2016 (PEIXOTO, 2019). Eduardo Fagnani, em seu artigo “Previdência Social: reformar ou destruir?”, sistematiza alguns desses dados: Os sucessivos governos desde 1989 jamais organizaram a seguridade social, tampouco apresentaram o Orçamento da Seguridade, como ordenam os dispositivos constitucionais. Estudos realizados pela Fundação Anfip e pela economista Denise Gentil (UFRJ) revelam que a seguridade social sempre foi superavitária. O Superávit foi R$ 56,7 bilhões em 2010; R$ 78,1 bilhões em 2012; R$ 56,4 bilhões em 014; e R$ 20,1 bilhões em 2015, apesar da subtração de recursos do DRU (R$ 61 bilhões em 2015) e das enormes desonerações tributárias realizadas nos últimos cinco anos (R$ 142 bilhões em 2015). Na verdade, sobram recursos; mas são utilizados em finalidades não previstas na Constituição da República. Assim, como ocorria na ditadura, a seguridade social continua a financiar a política econômica (FAGNANI, 2016, p. 89).
Dessa forma, compreende-se que a alegação do déficit previdenciário se trata de uma forma de mascarar os reais interesses do mercado para a alterar o sistema de previdência no Brasil, como uma forma de diminuir os custos do Estado, fundamentalmente, com a população idosa. Conforme comprovam os estudos da Professora Denise Gentil, houve um período de superávit previdenciário nas contas públicas nos anos de 2005-2015, desmontando os argumentos do atual Governo do argumento em relação ao déficit nas contas previdenciárias. Apontados os dois principais argumentos para as mudanças recentes nos direitos da seguridade social, agora trataremos das principais propostas e alterações trazidas na proposta original da PEC 06/2019, a partir das contribuições do Marco Aurélio Serau Jr., sendo elas: i) o rompimento do princípio da solidariedade social; ii) a destruição do conceito de seguridade social; iii) o aumento da idade mínima; e iv) o sistema de gatilho etário.
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A primeira delas que analisaremos, dizia respeito ao rompimento do princípio da solidariedade social, consistindo na mudança do sistema de proteção social vigente no Brasil pelo novo regime de previdência social, calcado no sistema de capitalização, um regime de arrecadação individual pelo empregado, com depósitos mensais, vinculado a uma conta bancária, em que um banco iria administrar e aplicar essas reservas em fundos de renda fixa, compra de imóveis e outras opções dentro do mercado financeiro. Essa proposta atacaria frontalmente o regime de solidariedade de repartição, sistema de proteção vigente no Brasil, em que contribuem para a aposentadoria e para a seguridade social, o empregado, o empregador e o Estado. A Organização Internacional do Trabalho publicou no ano de 2018 um estudo apontando que o sistema de capitalização falhou em 60% dos países que adotaram esse regime (MARCHENSEN, 2019). Até o ano de 2018, 18 dos países que adotaram o regime de capitalização, realizaram alguma nova reforma neste ponto. Todavia, a proposta do sistema de capitalização não logrou êxito, devido a pressões políticas, havendo bastante dissenso entre as bancadas parlamentares. A bancada parlamentar do chamado “centrão” levantou preocupações com o alto custo da transição do regime atual para o de capitalização (SENADO NOTÍCIAS, 2019). Já a oposição do governo no congresso apresentou preocupações sobre a mudança do regime previdenciário, o que poderia levar a população idosa a altas taxas de suicídio (como visto em países como o Chile). Isso porque as populações mais vulneráveis receberiam aposentadorias muito baixas, inferiores ao salário mínimo, acarretando em intenso sofrimento psíquico e o agravamento da pobreza, impulsionando as desigualdades sociais, como apontado pelo relatório da OIT. O segundo elemento a ser observado será a destruição do conceito de seguridade social constante no art. 194, da Constituição Federal de 1988, como: “um conjunto de ações de iniciativa dos Poderes Públicos e da sociedade, destinadas a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdên-
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cia e à assistência social”. Nesse sentido, pode-se examinar que o conceito de seguridade social integra um conjunto integrado de ações de políticas públicas do Estado, contemplando a saúde, a previdência e a assistência social. Nessa perspectiva buscada pela PEC 6/2019, a Previdência perderia sua condição de política pública e social, passando a ser um mero sistema de poupança individual (SERAU; COSTA, 2019, p. 214). O terceiro item pretendido pela Reforma Previdenciária (PEC 06/2019) reside na extinção da aposentadoria por tempo de contribuição, pela fixação de idade mínima para obtenção da aposentadoria. Atualmente, a Constituição Federal de 1988 estabelece duas formas de aposentadoria: a) por idade ou, b) por tempo de contribuição. A PEC 6/2019, de certo modo, funde as duas modalidades de aposentadoria e cria um único formato de aposentadoria, que exigirá, ao mesmo tempo idade mínima e tempo de contribuição (SERAU, 2019, p. 7). Essa mudança, trazida pela nova previdência, fixou a idade mínima de 62 anos para as mulheres e 65 anos para os homens, exigindo-se, em ambos os casos, 20 anos de contribuição previdenciária, que foi levada também para a aposentadoria especial, além das possibilidades contempladas pelas regras de transição. Para os professores, ficou estabelecida a idade mínima de 60 anos. Além disso, outra alteração foi realizada no benefício da pensão por morte, que a partir de então passa a ser submetido a um cálculo em que existe uma cota familiar de 50% do valor do benefício, acrescido de 10% para cada dependente do segurado. A idade mínima para a aposentadoria, de 62 e 65 anos, como narrado acima, sofrerá uma elevação sempre que constatado o aumento da expectativa de vida dos brasileiros, conforme dispõe o § 3º, do art. 24: § 3º As idades previstas neste artigo serão ajustadas em 1º de janeiro de 2024 e, a partir dessa data, a cada quatro anos, quando o aumento na expectativa de sobrevida da população brasileira atingir os sessenta e cinco anos de idade, para ambos os sexos, em comparação com a média apurada no ano de promulgação desta
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Emenda à Constituição, na proporção de setenta e cinco por cento dessa diferença, apurada em meses, desprezadas as frações de mês.
Esse é o sistema de gatilho etário previsto anteriormente na PEC 287/2016, o qual é reproduzido na PEC 6/2019, conforme aponta o Professor Marco Aurélio Serau Jr. (2019, p. 9). A quarta e última apresentada nesta seção no que refere as mudanças trazidas pela reforma previdenciária, refere-se ao sistema de gatilho etário, que cria uma regra constitucional que introduz grande insegurança jurídica, visto que uma regra em branco e com grande propensão a ser extremamente variável (SERAU, 2019, p. 10). 4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A reforma da previdência ganhou evidência e tornou-se o principal projeto político no primeiro ano do Governo Bolsonaro. A PEC 06/2019 foi apresentada ao Congresso Nacional ainda em fevereiro de 2019, chamada de “nova previdência” (SERAU, 2019, p. 2). A proposta original trazia alterações profundas, reestruturando o sistema de seguridade social inaugurado a partir da Constituição Federal de 1988, com a adoção do sistema de capitalização, que felizmente não logrou êxito. Portanto, o que se percebe até aqui é que as políticas neoliberais ganham força e legitimidade num período de profunda crise econômica e instabilidade política. A aprovação das reformas e alterações nas legislações trabalhistas e previdenciárias não implicaram na retomada do crescimento econômico e na criação de novos empregos. Os dados apresentados pela Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD), divulgado pelo IBGE, apontam que a taxa média de desemprego em 2019 foi de 11,9%, enquanto em 2018 atingiu 12,3%. A mesma pesquisa, concluiu que o Brasil atingiu o maior nível na taxa de informalidade desde 2016, atingindo 41%. Diante disso, o que se verifica são os interesses do mercado financeiro atuando diretamente na devastação dos direitos sociais, colocando os idosos como um mal da ausência do crescimento econômico, atingin-
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do os mais pobres e miseráveis, um ajuste fiscal para os trabalhadores, deixando os interesses da elite intactos. A defesa deste trabalho é a ideia de que a seguridade social é um mecanismo de proteção aos trabalhadores, garantido constitucionalmente, de modo a serem amparados na doença, num acidente de trabalho, na pobreza, na velhice, no desemprego, sendo um setor portador de crescimento, pois com maior distribuição de renda, aquece o mercado interno, gera renda, empregos, mobiliza a indústria e os serviços internos. REFERÊNCIAS ANTUNES, Ricardo. O privilégio da servidão: o novo proletariado de serviços na era digital. 1. ed. São Paulo: Boitempo, 2018. BARBOZA, Estefânia Maria Queiroz; ROBL, Ilton Norberto Filho. Constitucionalismo abusivo: fundamentos teóricos e análise da sua utilização no Brasil contemporâneo. Direitos Fundamentais & Justiça. Belo Horizonte, ano 12, n. 39, p. 79-97, 2018. BOGHOSSIAN, Bruno. Reprovação aumenta e torna Temer o presidente mais impopular da história. Folha de São Paulo, Eleições 2018, Pesquisas Eleitorais, 10 jun. 2018. Disponível em: https://bityli.com/PEY8t. Acesso em: 09 mai. 2020. BRAGA, Ruy. O fim do lulismo. In: SINGER, André; JINKINGS, Ivana (orgs.). Por que gritamos golpe? Para entender o impeachment e a crise política no Brasil. São Paulo: Boitempo, 2016. Capitalização prevista na reforma da Previdência provoca incertezas. SENADO NOTÍCIAS, Brasília, 14 mai. 2019. Disponível em: https://bityli.com/O3hQT. Acesso em: 30 mar. 2020. Desemprego cai em 16 estados em 2019, mas 20 têm informalidade recorde. UOL Economia, São Paulo, 14 fev. 2020. Disponível em: https://bityli.com/sGVDt. Acesso em: 13 mai. 2020. ESTEVES, Juliana Teixeira. O novo capitalismo contemporâneo e a privatização da previdência. Revista TRT6, Recife, v. 20, n. 37, p. 178-201, 2010. Disponível em: http://www1.trt6.gov.br/emat6/wp-content/uploads/2011/03/revista37.pdf#page=179. Acesso em: 11 mai. 2020.
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TRÊS OLHARES PARA O CONCEITO DE ASSÉDIO: DIÁLOGOS ENTRE A CONVENÇÃO 190 DA OIT E O DIREITO TRABALHISTA BRASILEIRO
Giovanny Padovam Ferreira Luciana Nowicki Giese Raquel Freitas de Carvalho
RESUMO
Diante da relevância do debate da qualidade do ambiente laboral e da necessária preocupação dos Estados em combater a violência neste meio, foi aprovada a Convenção 190 da Organização Internacional do Trabalho, cujo foco é o assédio. Assim, este artigo torna-se relevante ao analisar o conceito a partir de três perspectivas: a do direito pátrio brasileiro, especialmente a partir do Direito do Trabalho; a do direito internacional, com base no texto convencional; e a da compreensão pro persona, resultante do esforço dialético de comparar as primeiras duas noções. A partir da intersecção conceitual, conclui-se que os termos nacionais - ainda que considerem a possibilidade do assédio por omissão, algo que a Convenção 190 não faz - são menos abrangentes, e consequentemente menos protetivos, comparados ao instrumento internacional. O que deve haver, portanto, é uma retroalimentação dos sistemas nacional e internacional, pinçando o que há de melhor em cada um deles. Nesse sentido, cumpre ao Estado brasileiro rumar à aprovação da Convenção 190 da OIT, objetivando, sempre, a maior proteção da pessoa humana. Palavras-chave: Direito do trabalho. Assédio. OIT. Convenção 190. Pro Persona.
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1 INTRODUÇÃO
Em 21 de junho de 2019, a Organização Internacional do Trabalho (OIT) aprovou a Convenção 190 - Convention concerning the Elimination of Violence and Harassment in the World of Work. Tal documento tornou-se o primeiro instrumento internacional de hard law destinado à matéria (HUMAN RIGHTS WATCH, 2019). Em que pese a Convenção ainda não conte com ratificações, o diploma internacional foi celebrado por ONGs internacionais (HUMAN RIGHTS WATCH, 2019, n.p.) e pelo Alto-Comissariado das Nações Unidas para Direitos Humanos (OXFORD HUMAN RIGHTS HUB, 2019, n.p.) como um importante ponto de referência internacional no combate à violência sexual e ao assédio no ambiente de trabalho. Essa também é a primeira Convenção da OIT que trata exclusivamente do tema (OIT, 2019, n.p.), o que revela a evolução da preocupação com o meio ambiente laboral - especialmente considerando que a violência e o assédio têm sido responsáveis por verdadeiras epidemias de doenças mentais (MELO, 2019). Para María Eugenia Montt (2019, n.p.): “la labor diaria desarrollada en un ambiente de tranquilidad y respeto, genera – a su vez - un clima laboral sano que evita la generación de síntomas y efectos perniciosos”. Na esperança de que o Brasil trate com seriedade o debate à ratificação da Convenção 1901, esse trabalho se propõe a comparar a definição do termo assédio utilizado pela Convenção com o já utilizado pela normativa interna brasileira, verificando (in)compatibilidades entre ambas, especialmente no âmbito do Direito do Trabalho. A preocupação com a definição de assédio não se trata de minúcia inócua. Saber se uma conduta se classifica ou não como assédio determi-
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Apesar de ser difícil a perspectiva em curtíssimo prazo. O governo do Brasil se absteve na votação para aprovação da Resolução com o texto da Convenção na 108ª Conferência da OIT e os próprios representantes da classe trabalhadora brasileira na OIT veem como difícil a ratificação no governo atual. (BOCHI, 2019, n.p.)
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nará a adoção de uma ou outra gama de respostas, tendo em vista que a Convenção exige o combate ao assédio de formas específicas. Em busca dessa definição, neste escrito se adota a visão do constitucionalismo multinível. Por ela, a Convenção 190 da OIT, sendo um tratado de Direitos Humanos, uma vez ratificada, integraria o bloco de constitucionalidade na medida em que for mais protetiva à pessoa humana. A elevação da Convenção em patamar materialmente constitucional seria propiciada pela cláusula de abertura do art. 5º, §2º, da Carta Magna brasileira e pelo princípio fundamental da prevalência de direitos humanos no Brasil (art. 4º, II, da CF). Nesse sentido, é o que dispõe Ingo Sarlet, afirmando, na trilha da doutrina de Flávia Piovesan e Antônio Augusto Cançado Trindade, que mesmo os tratados de direitos humanos não aprovados pelo rito do §3º do art. 5º – introduzido pela EC 45/04 – possuem a “hierarquia constitucional material (...) assegurada por força do art. 5º, §2º” (SARLET, 2013, p. 93). O diálogo entre ordens interna e internacional não se faz, contudo, sem balizas. Não se trata de pugnar sempre pela prevalência da ordem internacional, mas tão somente na medida em que ela dispuser marco normativo mais protetivo à pessoa humana2. No paradigma de 1988 e no espírito do Direito Internacional dos Direitos Humanos, o princípio pro persona3 é o que dita a derradeira compatibilidade de uma norma internacional ao ordenamento interno e vice-versa. Deverá prevalecer sempre
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“Falar em diálogo não é mais nenhuma novidade. É uma condição que o atual estado da arte do direito constitucional e o direito internacional dos direitos humanos nos colocam. O fortalecimento de um discurso coeso, porém plural, vem a somar na proteção (i) do sistema internacional, de um lado; (ii) nos sistemas nacionais de outro já que esses se retroalimentam em prol do princípio pro persona” (FACHIN, 2017, p. 28).
Como dispõe Flávia Piovesan, o Direito Internacional dos Direitos Humanos “apenas vêm aprimorar e fortalecer, nunca restringir ou debilitar, o grau de proteção dos direitos consagrados no plano normativo interno”. Por esse motivo, na hipótese de um preceito internacional contrariar um preceito interno, “prevalecerá a norma mais favorável à proteção da vítima” (PIOVESAN, 2012, p. 170-171).
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a norma mais protetiva - e, para os propósitos deste trabalho, buscar-se-á a definição mais protetiva. Com base no exposto, o artigo será dividido em três etapas de desenvolvimento - três olhares: primeiramente, tratará da conceituação do assédio segundo a legislação interna. Em segundo lugar, tratará da conceituação de assédio segundo a Convenção 190. Em terceiro lugar, na dialética entre essas duas perspectivas, comparará os dois conceitos, indicando em quais pontos cada uma se destaca a partir de interpretação pro persona. Em derradeiro, as reflexões finais demonstrarão que o debate para a ratificação da Convenção 190 deve ser levado a sério. Afinal, já pode ser antevisto que a incorporação da Convenção ao ordenamento brasileiro trará melhores soluções normativas para a proteção da pessoa humana no meio ambiente laboral. 2 OLHAR NACIONAL: ASSÉDIO CONFORME O ORDENAMENTO BRASILEIRO
Inicialmente, é preciso destacar que a legislação trabalhista brasileira não possui uma definição explícita do conceito de assédio, a expressão sequer é mencionada na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). No entanto, a ausência de conceituação na seara legal não impede que, popularmente, a utilização do signo seja comum. Tal definição, contudo, representa mais um dos casos em que a significação jurídica se descola da conotação popular. De um lado, o senso comum entende o assédio como qualquer situação de constrangimento - normalmente sexual -, não importando o seu local de ocorrência. Do outro lado, o âmbito jurídico o define como: toda e qualquer conduta abusiva, manifestando-se, sobretudo por comportamentos, palavras, atos, gestos, escritos que possam trazer danos à personalidade, à dignidade ou à integridade física ou psíquica de uma pessoa, pôr em perigo o seu emprego ou degradar o ambiente de trabalho (CONSELHO NACIONAL DO MINISTÉRIO PÚBLICO, 2016, p. 6).
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Assim, são dois os elementos essenciais da diferenciação: o local e a forma de materialização. Enquanto a definição popularmente conhecida remonta a atos sexuais, que podem ocorrer em qualquer lugar; a acepção jurídica reconhece também uma modalidade moral, mas com a ocorrência restrita ao ambiente de trabalho. No âmbito trabalhista, o assédio sexual é concebido como a “conduta de natureza sexual, manifestada fisicamente, por palavras, gestos ou outros meios, propostas ou impostos a pessoas contra sua vontade, causando-lhe constrangimento e violando a sua liberdade sexual” (MINISTÉRIO PÚBLICO DO TRABALHO, 2017, p. 9). A conduta, inclusive, encontra proibição expressa pelo art. 216-A do Código Penal (CP): Art. 216-A. Constranger alguém com o intuito de obter vantagem ou favorecimento sexual, prevalecendo-se o agente da sua condição de superior hierárquico ou ascendência inerentes ao exercício de emprego, cargo ou função. Pena – detenção, de 1 (um) a 2 (dois) anos. (...) § 2o A pena é aumentada em até um terço se a vítima é menor de 18 (dezoito) anos.
Em que pese o tipo penal preveja que o assédio sexual ocorre somente em uma relação vertical de hierarquia entre as partes, a doutrina e a jurisprudência trabalhista possuem uma perspectiva ampliativa e reconhecem que a prática também se verifica em relações horizontais (sem superioridade hierárquica). Ou seja, é possível que o ato ocorra entre colegas de trabalho. Com base nisso, a doutrina classifica duas modalidades de ocorrência do assédio sexual: por chantagem, em uma relação de hierarquia vertical; e por intimidação, em uma relação de hierarquia vertical ou horizontal. Em ambos os casos, o ato é praticado em decorrência do trabalho, ou seja, não se exige ocorrência exclusiva dentro do ambiente de trabalho.
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O assédio sexual se difere do moral pela “conotação sexual presente nos meios utilizados ou fins pretendidos” (MINISTÉRIO PÚBLICO DO TRABALHO, 2017, p. 15), mas ambos possuem um primordial ponto em comum: a insistência e a reiteração da conduta pelo assediador. A Justiça do Trabalho, mesmo sem lei específica, entende que “a teoria do assédio moral se baseia no direito à dignidade humana, fundamento da República Federativa do Brasil, como prevê o artigo 1º, inciso III, da Constituição”, conforme aduz a ministra Maria Cristina Irigoyen Peduzzi do Tribunal Superior do Trabalho (CONSELHO NACIONAL DO MINISTÉRIO PÚBLICO, 2016, p. 10). A ministra acrescenta ao tema a importância do direito à saúde e à honra, previstos constitucionalmente no art. 6º e art. 5º, X, respectivamente. No mesmo sentido, para Maurício Godinho Delgado: A Constituição de 1988 descortinou o universo da pessoa humana na ordem jurídica do País. Sepultando a perspectiva meramente materialista, individualista e até mesmo segregadora vigorante no Direito tradicional, alçou o ser humano ao vértice da estruturação da sociedade política e da sociedade civil, construindo seu Texto Máximo em direção ao reconhecimento e afirmação da pessoa humana na realidade econômica, social e institucional da vida em comunidade (princípio constitucional da centralidade da pessoa humana na ordem jurídica). Nesse quadro, fez descortinar novo espectro de matérias no âmbito da relação empregatícia: o universo dos direitos da personalidade do trabalhador, com seus princípios, regras e institutos normativos (DELGADO, 2017, p. 725726).
A definição do assédio moral pode ser encontrada em cartilha informativa publicada pelo Tribunal Superior do Trabalho, consistindo como “a exposição de pessoas a situações humilhantes e constrangedoras no ambiente de trabalho, de forma repetitiva e prolongada, no exercício de suas atividades.” Assim como no assédio sexual, o ato de ofensa contra a moral poderá ocorrer de forma vertical e horizontal, incluindo-se também a prática mista com a cumulação das duas primeiras modalidades.
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De modo geral, percebe-se que o conceito justrabalhista de assédio, seja ele sexual ou moral, decorre diretamente da manifestação abusiva do poder diretivo do empregador em situações comissivas ou omissivas, resultando em lesões físicas, psicológicas, sociais e/ou profissionais a trabalhadores e, principalmente, a trabalhadoras. Em ambos os casos, denota-se que a legislação trabalhista não adota métodos de prevenção, mas, tão somente, de repressão por meio da seara pecuniária, conforme dispõem os arts. 222-C e 223-E: Art. 223-C. A honra, a imagem, a intimidade, a liberdade de ação, a autoestima, a sexualidade, a saúde, o lazer e a integridade física são os bens juridicamente tutelados inerentes à pessoa física. Art. 223-E. São responsáveis pelo dano extrapatrimonial todos os que tenham colaborado para a ofensa ao bem jurídico tutelado, na proporção da ação ou da omissão.
Sem embargo, percebe-se que a escolha do legislador por um sistema de punição pecuniária a posteriori não resolve efetivamente a coibição da prática de tais condutas, principalmente no tocante ao assédio moral. A Reforma Trabalhista (Lei n.o 13.467/17), inclusive, foi responsável por precarizar ainda mais o mecanismo reparatório com a inserção do art. 223-G, §1o, na CLT, o qual fixou o pagamento de indenizações proporcionais ao salário percebido pelo empregado. Diante disso, necessário se faz o Projeto de Lei n.° 4.742/01, o qual visa introduzir no Código Penal Brasileiro a tipificação do assédio moral no ambiente de trabalho, o que poderá, em certa medida, incitar mecanismos de prevenção à prática do ato. 3 OLHAR INTERNACIONAL: ASSÉDIO SEGUNDO A CONVENÇÃO 190 DA OIT
Compreender o sentido e o alcance de documentos internacionais normalmente demanda exercício de investigação sobre o que os órgãos de supervisão e promoção do tratado, a jurisprudência internacional e a doutrina têm a dizer sobre ele. A Convenção 190, contudo, é recentíssi-
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ma. Até o presente momento, os comentários da doutrina são incipientes, e a Convenção ainda não entrou em vigor4 para que órgãos internacionais de supervisão e promoção emitissem suas opiniões. Nos parágrafos que se seguem, portanto, as conclusões apresentadas serão focadas no sentido literal da Convenção, ao lado de alguns escritos que já foram produzidos sobre ela. A Convenção 190 revela a definição de assédio não somente no art. 1, mas também ao delimitar, nos arts. 2 e 3, o âmbito de sua aplicação. Uma nota preliminar que deve ser feita é que a Convenção não se preocupa em distinguir figuras de assédio sexual e de assédio moral, ao revés do que acontece no direito pátrio. Primeiramente, pelo art. 1 (a) da Convenção, o termo assédio: (...) designa un conjunto de comportamientos y prácticas inaceptables, o de amenazas de tales comportamientos y prácticas, ya sea que se manifiesten una sola vez o de manera repetida, que tengan por objeto, que causen o sean susceptibles de causar, un daño físico, psicológico, sexual o económico, e incluye la violencia y el acoso por razón de género.
Do disposto, percebe-se que a prática do assédio se ancora na condução ou na ameaça de condução de comportamentos e práticas inaceitáveis, de forma reiterada ou não e com o objetivo de causar dano físico, psicológico, sexual ou econômico - ou que causem tais danos ou sejam suscetíveis de causá-lo. Destaca-se que o art. 1(b) da Convenção dispõe que, quando o assédio se fundamenta em razões de gênero, a prática é entendida como violência de gênero. Por um lado, o art. 2 demonstra em favor de quem a Convenção se opera - isto é, demonstra quem pode ser vítima de assédio:
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Segundo seu art. 14.2, a Convenção entrará em vigor 12 meses após a ratificação por dois Estados. Até o momento, o sistema da OIT não registra notificações (OIT, 2019, n.p.).
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El presente Convenio protege a los trabajadores y a otras personas en el mundo del trabajo, con inclusión de los trabajadores asalariados según se definen en la legislación y la práctica nacionales, así como a las personas que trabajan, cualquiera que sea su situación contractual, las personas en formación, incluidos los pasantes y los aprendices, los trabajadores despedidos, los voluntarios, las personas en busca de empleo y los postulantes a un empleo, y los individuos que ejercen la autoridad, las funciones o las responsabilidades de un empleador.
O art. 3, por outro lado, trata do tempo e local para que as práticas referenciadas no art. 2 se caracterizem: El presente Convenio se aplica a la violencia y el acoso en el mundo del trabajo que ocurren durante el trabajo, en relación con el trabajo o como resultado del mismo: a) en el lugar de trabajo, inclusive en los espacios públicos y privados cuando son un lugar de trabajo; b) en los lugares donde se paga al trabajador, donde éste toma su descanso o donde come, o en los que utiliza instalaciones sanitarias o de aseo y en los vestuarios; c) en los desplazamientos, viajes, eventos o actividades sociales o de formación relacionados con el trabajo; d) en el marco de las comunicaciones que estén relacionadas con el trabajo, incluidas las realizadas por medio de tecnologías de la información y de la comunicación; e) en el alojamiento proporcionado por el empleador, y f) en los trayectos entre el domicilio y el lugar de trabajo.
Como se nota, os arts. 2 e 3 têm força motriz ampliativa. Em busca de um viés protetivo (DESIERTO, 2019, n.p.), segundo Shauna Olney (2019, n.p.) - chefe do Gender, Equality and Diversity Branch da OIT - a definição da Convenção para assédio se deu em um viés pragmático e se baseia em dois pilares.
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Primeiramente, em um pilar de inclusividade5, não se exclui qualquer categoria de trabalhador do ambiente de proteção: todos que trabalham são protegidos contra o assédio, independente do status contratual. Não há qualquer distinção, tampouco entre setor público e privado, o que fica claro pela disposição preambular da Convenção que reconhece “que la violencia y el acoso también afectan a la calidad de los servicios públicos y privados”. Além disso, também podem ser vítimas de assédio, segundo os termos da Convenção, as pessoas que ainda estão buscando emprego e os postulantes a uma vaga de emprego6. Uma questão interessante surge da consideração de atos praticados contra terceiros no ambiente de trabalho - isto é, situações em que pessoas como clientes, pacientes e provedores de serviços podem ser vítimas ou perpetradores dos atos mencionados no art. 1 da Convenção. Para Shauna Olney, a aproximação que a Convenção dá a temática do assédio leva essas figuras em conta. O art. 4 da Convenção assim prescreve:
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“The Convention’s focus on inclusivity is very important. It means that everyone who works is protected, irrespective of contractual status, including interns, volunteers, job applicants, and persons exercising the authority of an employer. It applies to the public and private sectors, the formal and informal economy, and urban and rural areas” (INTERNATIONAL LABOUR CONFERENCE, 2019, n.p.)
Isso não impede que a Convenção identifique grupos mais vulneráveis ao assédio. Densificando a leitura do fenômeno a partir do combate à discriminação contra a mulher, as Recomendações que se seguem à Convenção, dispõem em seus par. 9 e 10 que os Estados membros “should adopt appropriate measures for sectors or occupations and work arrangements in which exposure to violence and harassment may be more likely, such as night work, work in isolation, health, hospitality, social services, emergency services, domestic work, transport, education or entertainment.”, bem como “take legislative or other measures to protect migrant workers, particularly women migrant workers, regardless of migrant status, in origin, transit and destination countries as appropriate, from violence and harassment in the world of work” Fifth item on the agenda: Violence and harassment in the world of work - Reports of the Standard-Setting Committee on Violence and Harassment in the World of Work: Instruments submitted for adoption by the Conference. (OIT, 2019, n.p.)
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Todo Miembro deberá adoptar, de conformidad con la legislación y la situación nacional y en consulta con las organizaciones representativas de empleadores y de trabajadores, un enfoque inclusivo, integrado y que tenga en cuenta las consideraciones de género para prevenir y eliminar la violencia y el acoso en el mundo del trabajo. Este enfoque debería tener en cuenta la violencia y el acoso que impliquen a terceros, cuando proceda.
O parágrafo 8 das Recomendações que acompanham a Convenção revela que o envolvimento de terceiros se dá com particular relevância quando eles são responsáveis por aumentar os riscos de as trabalhadoras serem vítimas de assédio: The workplace risk assessment referred to in Article 9(c)7 of the Convention should take into account factors that increase the likelihood of violence and harassment, including psychosocial hazards and risks. Particular attention should be paid to the hazards and risks that: (...) (b) involve third parties such as clients, customers, service providers, users, patients and members of the public.
O segundo pilar que se desprende da lição de Olney foi a tentativa de a OIT fazer com que os Estados partes compreendam que o local de trabalho, hoje em dia, não é necessariamente físico, mas sim bastante fluído8. A proteção contra o assédio deve ser dotada da mesma plasticidade. É por esse motivo que o art. 3 da Convenção busca cobrir ambientes relacionados ao trabalho (e não só necessariamente o ambiente 7
A redação do dispositivo é “Each Member shall adopt laws and regulations requiring employers to take appropriate steps commensurate with their degree of control to prevent violence and harassment in the world of work, including gender-based violence and harassment, and in particular, so far as is reasonably practicable, to: (...) identify hazards and assess the risks of violence and harassment, with the participation of workers and their representatives, and take measures to prevent and control them; and”.
“Convention also takes account of the fact that nowadays work does not always take place at a physical workplace; so, for example, it covers work-related communications, including those enabled by ICT” (OLNEY, 2019, n.p.)
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de trabalho, físico e tradicionalmente considerado9 (HUMAN RIGHTS WATCH, 2019, n.p.) e até mesmo as comunicações que são proporcionadas pelo avanço da Tecnologia da Informação. Ademais, a Convenção reconhece que o assédio pode ser praticado até mesmo em locais de descanso propiciados pelo empregador e nos deslocamentos para o trabalho - aqui, em um sentido notoriamente contrário ao movimento da Reforma Trabalhista que exclui, por exemplo, a jornada in itinere do âmbito de proteção do direito do trabalho. Assim, da conjugação dos arts. 1, 2 e 3, nota-se que há uma definição ampla do que é o assédio sexual. Para Diane Desierto, essa amplitude revela um viés protetivo, pois busca eliminar obstáculos usuais para a caracterização de assédio na jurisdição interna - como “denying the existence of an employment relationship or characterizing the behavior as having taken place outside of the workplace setting thus outside the ambit of the employer’s supervision” (DESIERTO, 2019, n.p.). Em síntese, percebe-se que o conceito de assédio para a Convenção é marcado pelos seguintes elementos: condução ou ameaça de condução de comportamentos e práticas inaceitáveis com o objetivo de causar dano físico, psicológico, sexual ou econômico, causando ou sendo suscetível de causar tais danos. A prática não precisa ser reiterada e não se exclui qualquer categoria de trabalhadores da proteção, tanto em cargos de subordinação quanto de chefia ou supervisão, abrangendo até mesmo aqueles que estão em busca de emprego ou aplicando por uma vaga. Além disso, abrange espacial e temporalmente, os ambientes de trabalho, que tenham relação com o trabalho ou que sejam resultados dele. Destaca-se, ainda, que o art. 1(b) da Convenção compreende como violência de gênero as hipóteses em que o assédio se fundamenta em razões de gênero. O gênero, para a Convenção 190 da OIT, consiste em uma lente para leitura do assédio10 - lente mais do que necessária consideran Para a Human Rights Watch, “The treaty recognizes that violence and harassment go beyond just the physical workplace” (HUMANS RIGHT WATCH, 2019, n.p.)
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Por exemplo, isso é visto no art. 6 da Convenção: “Todo Miembro deberá adoptar una legislación y políticas que garanticen el derecho a la igualdad y a la no discriminación
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do que a própria OIT reconhece o assédio como mecanismo impeditivo de mulheres acessarem o ambiente de trabalho11. Essa leitura por meio de gender-approach12 também deverá ser apreendida pelo ordenamento pátrio por meio da Convenção 190. 4 OLHAR PRO PERSONA: POR UMA DEFINIÇÃO DIALÓGICA DE ASSÉDIO
Dos olhares nacional e internacional, resta buscar uma definição de assédio pautada no diálogo, com fim a uma melhor proteção da pessoa humana. É a efetivação do princípio da dignidade da pessoa humana que permite essa convergência. Nos exercícios anteriores, percebeu-se que, tanto pelo direito interno, quanto pela Convenção 190 da OIT, o assédio abarca uma pluralidade de atos com o objetivo de atingir negativamente as esferas psíquica, moral e sexual do sujeito. Ademais, ambos os olhares, internacional e nacional, já reconhecem que a existência do assédio em relações de trabalho não decorre necessariamente de relações verticais, mas também existe em relações horizontais. Ambos também afirmam que a possibilidade de um ato causar
en el empleo y la ocupación, incluyendo a las trabajadoras, así como a los trabajadores y otras personas pertenecientes a uno o a varios grupos vulnerables, o a grupos en situación de vulnerabilidad que están afectados de manera desproporcionada por la violencia y el acoso en el mundo del trabajo.” Também na seguinte disposição preambular “Reconociendo que la violencia y el acoso por razón de género afectan de manera desproporcionada a las mujeres y las niñas, y reconociendo también que la adopción de un enfoque inclusivo e integrado que tenga en cuenta las consideraciones de género y aborde las causas subyacentes y los factores de riesgo, entre ellos los estereotipos de género, las formas múltiples e interseccionales de discriminación y el abuso de las relaciones de poder por razón de género, es indispensable para acabar con la violencia y el acoso en el mundo del trabajo”. Conta no preâmbulo da Convenção 190: “Reconociendo que la violencia y el acoso también afectan a la calidad de los servicios públicos y privados, y que pueden impedir que las personas, en particular las mujeres, accedan al mercado de trabajo, permanezcan en él o progresen profesionalmente”.
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Referido nos Core Principle da Convenção 190 (art. 4).
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determinadas espécies de dano ou objetivar causá-lo são suficientes para caracterizar o assédio, sendo despicienda a real ocorrência do dano. Todavia, o direito interno, ao se pautar na responsabilidade objetiva dos atos do empregador, permite que o assédio seja, no âmbito brasileiro, também vislumbrado em uma perspectiva de omissão. Essa perspectiva é pouco recolhida pela Convenção 190, revelando um dos aspectos da definição do direito interno como mais protetivo ao trabalhador. Internamente, entende-se que a omissão do empregador, materializada pela permissão da propagação da prática de assédio, implica na responsabilidade trabalhista por esses atos. Isso demonstra que a definição não deve se pautar somente em um sentido comissivo, mas pode incorporar omissões - o que não fica explícito na Convenção 190. No entanto, em geral, a Convenção 190 da OIT mostra-se com potencial para alargar a proteção da pessoa humana. O texto convencional deixa claro que a reiteração do ato não é necessária para que ocorra a prática de assédio - sendo, ao revés, a reiteração um elemento essencial para doutrina e jurisprudência brasileira classificarem assédio na maioria dos casos. A Convenção também rememora que o assédio pode ocorrer em qualquer local relacionado ao trabalho, uma observação bastante relevante que se choca com as mitigações de responsabilidade do empregador trazidas com a recente Reforma Trabalhista, a qual afasta a proteção de empregadas e empregados em horários de descanso e no trajeto de deslocamento ao trabalho. A Convenção contribui para reafirmar que o assédio pode ocorrer em qualquer relação de trabalho, elucidando a dúvida da possibilidade de ocorrência dentro do serviço público13. No que tange os servidores públicos, ao se reconhecer a possibilidade de ocorrência do assédio, a previsão do art. 37, §6º, da CF permitiria que o Estado fosse responsabilizado ci No âmbito interno, a discussão se mostrou relevante. A incerteza na aplicação levou, por exemplo, a tentativa de aprovação do PL 4591/01, hoje arquivado. O Projeto propôs-se a discutir a prática do assédio moral por parte de servidores públicos da União, das autarquias e das fundações públicas federais e seus subordinados. Apesar da improcedência em âmbito nacional, alguns entes federados, como citado na seção 2 deste escrito, possuem leis para proteção de servidores públicos contra o assédio.
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vilmente pelos danos materiais e morais sofridos pela vítima, independentemente de comprovação da culpa estatal. Além disso, o art. 116 da Lei n. 8.112/90 imputa aos funcionários públicos os deveres de “manter conduta compatível com a moralidade administrativa” e de “tratar com urbanidade as pessoas”. Evidencia-se, aqui, mais uma vez, proteção contra a omissão - o que é marca do direito pátrio. O viés protetivo da Convenção, no sentido subjetivo - de quem pode sofrer assédio -, também se confirma com a inclusão até mesmo de estagiários, pessoas em busca de empregos e voluntários como eventuais vítimas das condutas. Isto, contudo, não encontra paralelo tão exaustivo na legislação trabalhista pátria, a qual dedica seu âmbito de proteção aos trabalhadores lato sensu, incluindo-se o momento pré-contratual para empregados, aos aprendizes maiores do que 14 anos, além dos casos excepcionais de permissão do trabalho a menores de 14 anos. A Convenção, por fim, demanda a leitura sob gender-approach, pouco recompilada pelos tribunais e doutrinas brasileiros. O recorte de gênero trazido pelo texto convencional se mostra imprescindível, pois a vítima é, na grande maioria das vezes, mulher. Por ser um instituto que viola a livre disposição do corpo e da liberdade sexual, o assédio sexual volta-se principalmente a elas. Isso porque a mulher ainda ocupa papel de maior vulnerabilidade social do que o homem, estando mais propensa a violações de seus direitos. A Convenção, nesse aspecto, mostra-se preocupada com o debate, dando-lhe um enfoque especial. Em apertada síntese, pode-se afirmar que a Convenção 190 da OIT, ainda que não preveja as atitudes omissivas em situações de assédio perspectiva que é adotada pelo direito interno - não exige o elemento da continuidade; abrange, em sua conceituação de assédio, uma maior pluralidade de trabalhadores; e identifica que o assédio é praticado em qualquer lugar que esteja relacionado ao trabalho. Dessa forma, o texto convencional mostra-se mais ampliativo na proteção à pessoa do que a legislação interna.
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5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Este artigo já partiu de um olhar para um tempo que ainda está por vir. Afinal, tem por pedra torque a possível ratificação da Convenção 190 da OIT pelo Brasil. É a partir dessa hipótese que se confirmaria, sem qualquer questionamento, a possibilidade de os diálogos multiníveis aqui narrados acontecerem. Do olhar interno ao internacional, nos tópicos anteriores, percebeu-se que o assédio, na forma concebida pela legislação brasileira, ainda se dá em termos mais estritos - e menos protetivos - do que o conceito inaugurado pela OIT. Isso, contudo, não impede retroalimentação, revelando-se aspectos em que a legislação pátria é mais protetiva. Aposta-se, portanto, no potencial transformador desses diálogos. Olhar para um futuro com a Convenção da OIT, no entanto, inaugura uma série de questionamentos muito além dos conceituais. Por exemplo, não se pode ignorar o foco excessivo da perspectiva nacional, principalmente após a Reforma Trabalhista, para reparar o assédio com viés monetário e inclusive balizando o valor da indenização com base no salário recebido14. A Convenção da OIT, todavia, visa à reparação integral15, com o que a CLT teria muito que aprender. Além disso, a Convenção clama para o desenvolvimento de políticas cada vez mais robustas dos Estados para prevenção e promoção de um meio ambiente laboral cada vez mais saudável. Há uma leitura de gênero16 que perpassa todos esses comandos, chamando para o centro do debate a necessidade de observância da posição ocupadas por mulheres Art. 58 § 2º CLT: O tempo despendido pelo empregado desde a sua residência até a efetiva ocupação do posto de trabalho e para o seu retorno, caminhando ou por qualquer meio de transporte, inclusive o fornecido pelo empregador, não será computado na jornada de trabalho, por não ser tempo à disposição do empregador.
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Referido no art. 10 da Convenção 190.
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O que fica claro da leitura do art. 4.2 da Convenção: “todo Miembro deberá adoptar, de conformidad con la legislación y la situación nacional y en consulta con las organizaciones representativas de empleadores y de trabajadores, un enfoque inclusivo, integrado y que tenga en cuenta las consideraciones de género para prevenir y eliminar la violencia y el acoso en el mundo del trabajo.” (destacou-se).
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e, por sua vez, mulheres migrantes, mulheres grávidas, mulheres negras, isto é, em vulnerabilidades interseccionais. Esses exemplos evidenciam que não bastam revoluções conceituais. Novos conceitos consistem apenas em um primeiro passo, do qual devem partir reformulações da abordagem do assédio. Esse olhar para o futuro também demonstra que o constitucionalismo multinível é um caleidoscópio de aprimoramentos da proteção da pessoa humana, que exigirão revoluções na forma como a jurisprudência trata a reparação e as perspectivas de grupos vulneráveis. Para atingirmos esse ponto e levarmos direitos a sério17, uma tarefa hercúlea se exige dos juristas: advogar pela ratificação da Convenção 190. REFERÊNCIAS BOCHI, Andrea. Após dez anos de discussões, a Convenção 190 é aprovada na 108ª Conferência da OIT. Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais do Trabalho (SINAIT), 24 jun. 2019. Disponível em: https://bityli.com/Dt0EC. Acesso em: 12 nov. 2019. BRASIL. Consolidação das Leis do Trabalho. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del5452compilado.htm.Acesso em: 12 nov. 2019. CÂMARA DOS DEPUTADOS. Projeto de Lei n.° 4742/2011. Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=28692. Acesso em 11 nov. 2019. CONSELHO NACIONAL DO MINISTÉRIO PÚBLICO. Assédio moral e sexual: previna-se. Brasília: CNMP, 2016. Cartilha disponível em: http://www. mpf.mp.br/sc/arquivos/cartilha-assedio. Acesso em: 09 nov. 2019. DELGADO, Maurício Godinho. Curso de direito do trabalho. 16. ed. São Paulo: LTr, 2017. DESIERTO, Diane. The ESCR Revolution Continues: ILO Convention No. 190 on the Elimination of Violence and Harassment in the World of Work. EJIL:
Para utilizar a expressão de Ronald Dworkin (DWORKIN, 2010)
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Talk, Blog of European Journal of International Law, 28 jun. 2019. Disponível em: https://bityli.com/7SxAO. Acesso em: 12 nov. 2019. DWORKIN, Ronald. Levando direitos a sério. São Paulo: Martins Fontes, 2010. FACHIN, Melina Girardi. À guisa de Introdução. In: GIRARDI, Melina Fachin (org.). Direito constitucional multinível: diálogos a partir do direito internacional dos direitos humanos. Curitiba: Editora Prismas, 2017. HUMANS RIGHT WATCH. ILO: New Treaty to Protect Workers from Violence, 21 jun. 2019. Disponível em: https://www.hrw.org/news/2019/06/21/ilo-new-treaty-protect-workers-violence-harassment. Acesso em: 12 nov. 2011. INTERNATIONAL LABOUR CONFERENCE. Fifth item on the agenda: violence and harassment in the world of work - Reports of the Standard-Setting Committee on Violence and Harassment in the World of Work: Instruments submitted for adoption by the Conference, 20 de junho 2019. Disponível em: https://bityli.com/2gbDU. Acesso em: 12 nov. 2019. MELO, Raimundo Simão. OIT aprova a Convenção 190, sobre violência e assédio no trabalho. Conjur, 12 jun. 2019. Disponível em: www.conjur.com.br/ 2019-jul-12/reflexoes-trabalhistas-oit-aprovaa-convencao-190-violencia-assedio-trabalho. Acesso em: 12 nov. 2019. MINISTÉRIO PÚBLICO DO TRABALHO. Assédio sexual no trabalho: perguntas e respostas. Brasília, maio de 2017. Cartilha disponível em: https://bityli. com/Ci9o0. Acesso em: 11 nov. 2019. MONTT, María Eugenia. Sobre el Convenio 190 O.I.T. Disponível em: http:// www.derecho.uchile.cl/comunicaciones/columnas-de-opinion/155025/sobre-el-convenio-190-oitbrmaria-eugenia-montt. Acesso em: 12 nov. 2019. OIT. Informes de la Comisión Normativa: violencia y acoso en el mundo del trabajo: Instrumentos presentados para su adopción por la Conferencia. Disponível em: https://bityli.com/kN62q. Acesso em: 12 nov. 2019. OLNEY, Shauna. Internacional Labour Organization. ILO Convention and Violence and Harassment: Five key questions, 28 jun. 2019. Disponível em: https://www.ilo.org/global/about-the-ilo/newsroom/news/WCMS_711891/lang--en/index.htm. Acesso em: 12 nov. 2019.
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POR UMA ANÁLISE PERIFÉRICA DO TRIBUNAL PENAL INTERNACIONAL: O CRIME DE ECOCÍDIO E A PRESTAÇÃO JURISDICIONAL
Amanda Cristina Botelho Lincoln Renato Vieira Zanardine
RESUMO
O presente artigo tem como objetivo dedicar-se a uma discussão acerca da jurisdição do Tribunal Penal Internacional (TPI) diante de crimes ambientais. É sabido que a pauta ecológica tem sido objeto de discussão no cenário internacional desde o final do século XX com discussões profícuas, como a Conferência Rio-92. Todavia, com as recentes catástrofes ambientais, é importante trazer à baila a possibilidade de responsabilização por parte daqueles que deliberadamente causam danos ou prejuízos massivos aos ecossistemas e, consequentemente, à vida humana. Por meio de revisão legal e bibliográfica, buscou-se contrapor as duas hipóteses possíveis de apreciação desse crime com vistas à competência complementar e restritiva deste Tribunal, como um quinto crime contra a paz ou como parte de um tipo penal já positivado no Estatuto de Roma, seja o crime contra a humanidade ou o genocídio, e as consequências de sua tipificação aos países periféricos, uma vez que, no sistema-mundo, o direito internacional também se constrói como um instrumento para a manutenção de relações assimétricas de poder. Palavras-chave: Tribunal Penal Internacional. Crimes contra a paz. Ecocídio. Países periféricos. Direito internacional.
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1 INTRODUÇÃO
Conhecido como “a era dos extremos, ou o breve século XX” (HOBSBAWM, 1995, p. 15), o século passado foi marcado por conflitos bélicos de características jamais vistas antes e de grandes transformações no campo jurídico. Motivados por ideologias totalizantes e movidos pela destruição de povos e culturas, os crimes contra a humanidade marcaram esse período e, como não poderia ser diferente, foram levados à esfera jurídica. Inicialmente, a ideia era a criação de uma corte que pudesse processar e julgar os crimes de forma semelhante aos Tribunais de Nuremberg e de Tóquio. Todavia, tal ideia só viria a se concretizar nos anos 1990, quando se buscava formas de evitar que crimes contra grupos étnicos e minorias ocorressem novamente, como ocorrera no pós-dissolução da União Soviética nos países da Europa oriental e na África pós-descolonização (TELLES; MARTINS, 2017, p. 28). A materialização dessa corte se deu por meio da Conferência Diplomática de Plenipotenciários das Nações Unidas, com a aprovação do Estatuto de Roma, que instituiu o Tribunal Penal Internacional (TPI), em 1998 (KLEE; ZAMBIASSI, 2018, p. 151). Em vigor desde 2002, configura-se um órgão jurisdicional permanente que responsabiliza pessoas físicas com mais de 18 anos de idade, nos casos cujos fatos ocorreram dentro das fronteiras de um Estado que reconhece a jurisdição da Corte, isto é, que ratificou o Estatuto de Roma, ou quando se tratam de nacionais de um Estado que reconhece a jurisdição da Corte, em vista do princípio da nacionalidade. Ainda, um Estado que não é parte do Estatuto pode aceitar ad hoc sua competência (TELES; MARTINS, 2017, p. 29). Também se constitui prerrogativa do Conselho de Segurança da ONU encaminhar para a apreciação do TPI os casos que tenham sido cometidos em território de Estado ou por nacional de Estado que não ratificou o Estatuto (KLEE; ZAMBIASSI, 2018, p. 153). Dessa forma, observa-se que essa nova instituição, ao contrário da Corte Internacional de Justiça, a qual julga litígios entre Estados, volta-se
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para a responsabilização de pessoas. Assim, a proposta desse Tribunal seria processar crime cujo bem jurídico a ser protegido seria tão importante que seria necessária uma prescrição legal a fim de proteger toda a coletividade. Na história do direito ambiental internacional, tem-se que este somente foi reconhecido como uma disciplina independente, cuja importância seria inerente à comunidade internacional, a partir da Conferência das Nações Unidas para o Meio Ambiente Humano, realizada em Estocolmo, em 1972. O evento se constituiria como um marco ao estabelecer princípios ambientais internacionais, inaugurar a agenda ambiental e levar à criação posterior da Comissão Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento que, em 1987, publicaria o relatório “Nosso Futuro Comum” (Relatório Brundtland), responsável por assentar a concepção de desenvolvimento sustentável, considerando, pela primeira vez, proteger o meio ambiente como um meio necessário para a garantia de sobrevivência das presentes e futuras gerações (BARBOSA, 2008, p. 2; AVANCI; LUPY; BERNARDO, 2016, p. 3). Nesse ínterim, para que a proteção ao meio ambiente resulte efetiva, frente às contínuas catástrofes naturais que, embora constantemente classificadas como “acidentais”, resultam em consequência direta da ação humana, tem sido debatida, no âmbito do Direito Internacional, a possibilidade de abarcar o crime de ecocídio na apreciação e competência do Tribunal Penal Internacional, seja como crime autônomo, a ser instituído por meio de Emenda, ou como parte do “crime contra humanidade” ou do “genocídio”, previstos no Estatuto de Roma. Por ecocídio, entende-se um dano massivo ao ecossistema, de modo a desestruturar os ciclos da vida ali presentes, nomeadamente, a infertilidade do solo, morte de espécies nativas, contaminação de fontes de água, em razão de ato humano ou outras formas, caracterizando a danificação completa de um ecossistema, com prejuízos significativos à vida humana (GORDILHO; RAVAZZANO, 2017, p. 689).
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2 O PAPEL DO TRIBUNAL PENAL INTERNACIONAL
A partir do Tratado de Roma de 1998 e de sua constituição, o Tribunal Penal Internacional busca, diante de um cenário globalizado, processar e julgar os crimes de relevância para a comunidade internacional, nomeadamente, aqueles considerados de grande relevância para a humanidade. Nesse sentido, os crimes sob a responsabilidade do Tribunal Penal Internacional voltaram-se a basicamente quatro tipos de crime, a saber: crimes contra a humanidade; crimes de genocídio; crimes de guerra e crimes de agressão (TELES; MARTINS, 2017, p. 30). O Tribunal baseia-se em dois princípios norteadores. O primeiro deles é o princípio da complementaridade, o qual aponta que o Tribunal Penal Internacional respeita a soberania dos Estados, tendo em vista que compete às cortes nacionais a responsabilidade para julgamento de crimes de cunho internacional. Nesse ínterim, só caberia a atuação do TPI nos casos em que existisse uma inércia das cortes nacionais. Em segundo lugar, encontra-se o princípio da cooperação internacional, que está ligado à relação de cooperação entre o TPI e os países signatários, a fim de que possa cumprir, com efetividade, seu objetivo (TELES; MARTINS, 2017, p. 34-35). Quanto à complementaridade do Tribunal Penal Internacional, a análise deve ser realizada a partir de sua jurisdição, ou seja, o Tribunal Penal Internacional deve agir quando há ausência de atuação do Estado nacional. Flávia Piovesan afirma que buscou-se construir essa complementaridade a partir da insuficiência das cortes nacionais, citando como exemplo os casos da antiga Iugoslávia e de Kosovo: Indago se imaginam possível, hoje, o Judiciário do Timor ou, ontem, o Judiciário de Kosovo, ou da antiga Iugoslávia, terem condições para responder àquele padrão de conflituosidade. Quando há milhões e milhões de mortos, quando há um conflito entre etnias, grupos, culturas, o aparato estatal, muitas vezes por meio do seu sistema judicial, entra em colapso (PIOVESAN, 2000, n.p.).
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Nessa toada, o Brasil ratificou o Tratado de Roma e tornou-se signatário em 2002, tendo consagrado Sylvia Steiner como juíza do Tribunal Penal Internacional, cujo mandato perdurou entre 2003 e 2009, embora tenha encerrado suas atividades somente em 2016. É importante, ainda, destacar que embora os esforços para a construção do Tribunal Penal Internacional sejam, em grande medida, oriundos dos chamados países centrais; é preciso trazer uma crítica à sua atuação diante dos crimes cometidos por pessoas oriundas de países periféricos, como é o caso dos países africanos. 3 TIPIFICAÇÃO DO ECOCÍDIO: ENTRE SIGNIFICADOS E INTERPRETAÇÕES
Novamente, para que os crimes ambientais pudessem ser julgados pelo Tribunal Penal Internacional, esses deveriam ser enquadrados dentre os crimes mais graves que afetam a comunidade internacional: genocídio, crimes contra a humanidade, crimes de guerra e crimes de agressão. Inobstante, à época de elaboração do Estatuto de Roma, haveria um quinto crime internacional contra a paz a ser reconhecido: o ecocídio, cuja concepção se daria pela “extensa destruição, dano ou perda do ecossistema de um determinado território, seja por ação humana ou por outras causas, a tal ponto que a utilização pacífica daquele território por seus habitantes seja severamente comprometida” (BRUM, 2019, n.p.). Para que adentrasse o âmbito de apreciação do Tribunal Penal Internacional, o crime de ecocídio deveria se configurar, ainda, como “uma ofensa massiva ao meio ambiente, capaz de ocasionar graves danos ao ecossistema e violações à fauna, flora, ao ar e/ou as águas” (GORDILHO; RAVAZZANO, 2017, p. 701), incorrendo na extinção de espécies animais ou vegetais ou tornando impróprio ambientes como o solo, o subsolo, o ar ou o uso da água. A ofensa deve ser de tal grau a ponto de proporcionar riscos ou prejuízos à existência humana.
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Nesse viés, embora quando da ratificação do tratado a tipificação do ecocídio tenha sido retirada da versão final em virtude da oposição e lobby de determinados Estados à sua permanência, este seria observado como um crime autônomo que, na prática, também levaria altos funcionários de empresas a julgamento (BRUM, 2019, n.p.). Não se configurando um crime autônomo, a ser incluído no Estatuto de Roma por intermédio do processo de emenda, que ensejaria a reabertura do debate na comunidade internacional, haveria a discussão sobre a possibilidade de compreendê-lo como um crime contra a humanidade, por se constituir uma grave violação de direitos humanos, ou como uma forma de genocídio. Dessa forma, a escolha pelo Tribunal de uma conduta já tipificada no Estatuto de Roma seria uma escolha política, com a finalidade de não retornar à discussão entre os signatários de tema que já foi controvertido quando da aprovação do texto do tratado (GORDILHO; RAVAZZANO, 2017, p. 696). No Estatuto de Roma, em seu artigo 7º, o crime contra a humanidade seria configurado pela prática de qualquer dos atos elencados na norma “quando cometido no quadro de um ataque, generalizado ou sistemático, contra qualquer população civil, havendo conhecimento desse ataque” (BRASIL, 2002, n.p.), de forma a resultar em um número significativo de vítimas. Resultando em crimes contra a humanidade de uma grave violação dos direitos humanos, haveria a competência do Tribunal para julgar o crime de ecocídio, com fundamento na conduta do artigo 7º, “k”, do Estatuto de Roma, à medida que corresponderia a “outros atos desumanos de caráter semelhante, que causem intencionalmente grande sofrimento, ou afetem gravemente a integridade física ou a saúde física ou mental da população” (BRASIL, 2002, n.p.). O meio ambiente, nesse viés, seria intrínseco à vida, porque todos possuiriam o direito humano ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, sendo que sua violação incorreria em risco à sobrevivência humana (GORDILHO; RAVAZZANO, 2017, p. 696). Nesse viés, para sua adequação ao disposto no art. 7º, “k”, do Estatuto de Roma, também se exigiria que o ato fosse dirigido a uma popu-
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lação civil e praticado em um ataque generalizado ou sistemático, com graves danos a essa população em virtude do dano ambiental causado pelo ataque. Existiria, portanto, um “elemento político” nos crimes contra a humanidade que deveria estar presente na prática do ecocídio, em uma “prova de que esta prática fez parte de uma política engendrada ou inspirada pelo Estado ou por organização similar” (GORDILHO; RAVAZZANO, 2017, p. 698). Não se trataria, ainda, de interpretação extensiva ou analogia, vedadas pelo art. 22 do Estatuto de Roma (BRASIL, 2002, n.p.), que atuariam em desfavor do investigado, mas de uma interpretação declaratória, uma vez que observados todos os requisitos objetivos e subjetivos presentes no tipo (GORDILHO; RAVAZZANO, 2017, p. 700). Quanto à conduta tipificada no crime de genocídio, por sua vez, observa-se que o conceito de genocídio começaria a tomar forma com o fim da Segunda Grande Guerra Mundial, principalmente pelas reflexões trazidas pelo advogado militante polonês Raphael Lemkin ao discutir os crimes praticados pelo Terceiro Reich: Lemkin criou uma palavra que tinha o prefixo grego genos (que significa raça, ou tribo) com o sufixo de origem latina cídio (em inglês, cide), que deriva do vocábulo latino caedere, que significa matar. Ele caracterizou o delito de genocídio como uma velha prática que estava em sua etapa de desenvolvimento moderno, constituída por um plano coordenado que busca a destruição das bases fundamentais da vida dos grupos atacados, destruição essa que implica usualmente a desintegração das instituições políticas e sociais, da cultura do povo, de sua linguagem, de sua religião. A destruição do grupo seria o objetivo principal desse crime (LIPPI, 2011, p. 3, grifo no original).
Nesse viés, nos moldes da Convenção para a Prevenção e a Repressão do Crime de Genocídio de 11 de dezembro de 1948, por genocídio, o Estatuto de Roma entenderia aquele ato “com intenção de destruir total ou parcialmente grupo étnico, racial ou religioso” (BRASIL, 2002, n.p.).
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No caso do ecocídio, nos anos de 1970, o conceito seria trazido pela primeira vez por Arthur Galston ao discutir sobre os crimes praticados pelos soldados estadunidenses em solo vietnamita durante a Guerra do Vietnã (SHORT, 2016, p. 45-46). As conferências de Estocolmo 1972 e Rio 1992 também abordaram a possibilidade dos crimes contra o meio ambiente, mais especificamente aqueles que causariam degradação permanente de um ecossistema, serem enquadrados como uma extensão no tipo genocídio (SHORT, 2016, p. 45-46). Desse modo, seria importante definir o ecocídio diante do genocídio, a fim de distinguir suas ações daquele: Ecocídio é identificado na atuação deliberada ou negligente violação dos direitos humanos ao meio ambiente de acordo com o seguinte critério: (1) dano sério e permanente ao ecossistema, (2) consequências internacionais e (3) desperdício (GRAY, 1996, p. 215, tradução nossa).
A partir da leitura de Gray, é importante voltar-se para o seu primeiro conceito, uma vez que trata de danos sérios e permanentes ao ecossistema local. Assim, entende-se que tais danos devem ter uma estrutura metodológica, ou seja, devem ter sido organizados e planejados. Enxerga-se que esse crime atinge uma série de sujeitos passivos, entre eles, o próprio meio ambiente, a humanidade, que depende do meio ambiente para seu próprio desenvolvimento, e as gerações futuras. Assim, a compreensão do ecocídio, de acordo com Gray, deve ser analisada para além de uma quebra do dever de cuidado, mas também uma violação ao dever de proteger daqueles que detêm o papel garantidor na relação jurídica (GRAY, 1996, p. 218). O autor propõe, ainda, que para a verificação do crime de ecocídio, estabeleçam-se alguns critérios a fim de evitar prejuízos ao princípio da legalidade, elemento balizador do Direito Penal. O primeiro critério seria de cunho objetivo, com a verificação do dano ou grande destruição de uma vasta área geográfica de território e grande prejuízo à saúde e à própria subsistência das pessoas e animais
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afetados. O segundo critério proposto parte uma premissa subjetiva ao analisar o impacto social e econômico ao grupo atingido, como por exemplo a irreversibilidade dos danos de modo a impedir a reconstituição da vida social no local atingido, bem como seus resultados às futuras gerações (GRAY, 1996, p. 250). A partir de uma perspectiva dos Direitos Humanos, é mister destacar que tais ações que causem danos ao ecossistema e a uma comunidade étnica, configuram, ainda, violação aos Direitos Humanos de terceira geração: direito à vida e à saúde; proteção da pessoa e de sua família; direito à comida e padrão de vida adequado. Partindo desse pressuposto, Nieto-Martin aponta que as ações do crime de ecocídio têm como objetivo final dizimar uma etnia, uma raça, ou uma comunidade autóctone (NIETO-MARTIN, 2012, p. 77). Em que pese possa ser uma resposta possível à proteção da natureza e todos os modos de vida a ela inerentes, inclusive a humana, são inúmeras as críticas ao julgamento do crime de ecocídio pelo Tribunal Penal Internacional. Uma delas, no que diria respeito ao crime de ecocídio como uma forma de genocídio, concebe-se que não haveria adequação ao tipo previsto na norma, que seria taxativo, e não protegeria outros grupos além de grupos nacionais, étnicos, religiosos e raciais, além da inexatidão do bem jurídico violado (GORDILHO; RAVAZZANO, 2017, p. 692), de forma que sua proteção seria restritiva e não abarcaria todos os complexos de vida natural existentes na natureza. Outra, quanto ao crime de ecocídio como um crime contra a humanidade, que incorre de graves violações de direitos humanos, demonstra-se que, nesse viés, o meio ambiente somente teria valor enquanto fundamental ao ser humano, em uma visão antropocêntrica na qual a natureza não seria suficiente por si mesma, de modo que somente seria protegida porque necessária à manutenção da vida humana (GORDILHO; RAVAZZANO, 2017, p. 701). Inobstante a isso, é certo que, embora a competência da Corte para o julgamento do crime de ecocídio não seja formalmente reconhecida por ela, em setembro de 2016, houve o reconhecimento, pelo Escritório
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da Promotoria, da possibilidade de cooperação com os Estados signatários do Estatuto de Roma na apuração de delitos ambientais (BROCHADO NETO; ALVERNE, 2018, p. 212; INTERNATIONAL CRIMINAL COURT, 2016), o que já seria um início. 4 A ATUAÇÃO DO TPI E OS AGENTES PERIFÉRICOS: UMA RELAÇÃO DE ASSIMETRIA?
Adentra-se, ainda, outro debate inerentemente econômico quando analisado quais são os grandes agentes que seriam passíveis de ser enquadrados no crime de ecocídio. Dentro da ordem econômica capitalista, para além das relações entre as classes, destaca-se, no estudo da política internacional, a noção de capitalismo dependente, que é o capitalismo desenvolvido em países periféricos às grandes potências (FERNANDES, 1972, p. 44). Pela concepção de Florestan Fernandes, entende-se que o sistema ecológico resta sujeito aos interesses de países centrais. Partindo de uma análise da possível criminalização do ecocídio, esbarra-se naquilo que Fernandes conceitua como depleção, que curiosamente é uma terminologia das ciências naturais para indicar a perda de elementos fundamentais de um organismo: De fato, a economia capitalista dependente está sujeita, como um todo, a uma depleção permanente de suas riquezas (existentes ou potencialmente acumuláveis), o que exclui a monopolização do excedente econômico por seus agentes privilegiados. Na realidade, porém, a depleção de riquezas se processa à custa dos setores assalariados e destituídos da população, submetidos a mecanismos permanentes de sobre-apropriação e sobre-expropriação capitalistas (FERNANDES, 1972, p. 51-52).
A partir da lógica apontada, encara-se o Brasil como inserido no contexto dos países dependentes e periféricos ao centro do capitalismo mundial, onde, em consequência, a relação de dependência do poderio
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econômico é acentuada. Conforme as críticas apontadas ao Tribunal Penal Internacional, questiona-se a efetividade da prestação jurisdicional desta corte diante das ações sistematicamente danosas ao meio ambiente, comum nos países periféricos. Desse modo, não basta compreender qual é a hipótese de cabimento do crime de ecocídio para sua apreciação pelo Tribunal Penal Internacional, também é necessário observar quais serão os resultados desse julgamento internacional, em vista de que o Estatuto de Roma não foi ratificado por todos os Estados e, historicamente, os crimes cometidos por indivíduos que foram analisados no âmbito do Tribunal Penal Internacional eram referentes à nacionalidade ou ao território de países periféricos. Instituir a competência do Tribunal Penal Internacional para a apreciação de crimes de ecocídio, nos termos da lógica internacional vigente, é conceder maior abertura para que o enfoque do tribunal permaneça na periferia. Trata-se, pois, da manutenção do uso do direito internacional como uma forma de subordinação do Terceiro Mundo (KYANI; REYNOLDS; XAVIER, 2016, p. 926). Não se defende, inobstante, que seja mantida a impunidade dos danos ambientais face à abstenção estatal, como reiteradamente ocorre no Brasil, mas tão somente que, frente a uma ordem internacional evidentemente injusta (MUTUA, 2000, p. 36), não se estabeleçam mais formas de controle e manutenção do status quo. Punir a periferia por seguir a lógica que lhe foi e é continuamente imposta pelo centro cosmopolita, porque o centro agora também passa a sofrer as consequências de suas próprias condutas, não apresenta substrato jurídico. Nesse viés, observe-se, a título exemplificativo, que os Estados Unidos não ratificaram o Estatuto de Roma, tampouco apresentam políticas significativas de contenção ambiental, mas é um dos maiores poluidores do cenário internacional. Em razão de seu poderio e por ser um dos membros permanentes do Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas, a despeito de seus danos ambientais, suas condu-
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tas não seriam criminalizadas. Desse modo, tratar o direito internacional sem observar quem profere o discurso e a quem se destina incorre na manutenção das relações assimétricas de poder. 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A emergência da questão ambiental na viragem do século fez repensar o modelo econômico mundial. As conferências do clima, nomeadamente a Rio 92, buscaram conjugar interesses econômicos com a responsabilidade climática e o desenvolvimento sustentável, no entanto, ocorre que essa tarefa tem se mostrado hercúlea diante do jogo político da ordem internacional, nomeadamente os interesses dos países centrais e com economia sólida. Alvo de críticas, o Tribunal Penal Internacional parece seguir a lógica dos países centrais que lhe deram forma, especificamente quando analisada sua jurisprudência diante dos crimes cometidos por pessoas de países africanos e latino-americanos, em relação aos atentados à humanidade cometido pelos líderes de países centrais. Assim, a criação do crime de ecocídio, embora seja importante devido aos atentados massivos ao do meio ambiente diante do contexto de fragilidade do clima e de ecossistemas, deve ser lida com precaução dentro de um cenário internacional marcado por disparidades regionais profundas. Longe de uma resposta definitiva à questão, este trabalho visa trazer considerações ao crime de ecocídio no âmbito do Tribunal Penal Internacional, criado a partir Conferência Diplomática de Plenipotenciários das Nações Unidas, com a aprovação do Estatuto de Roma, em 1998. Por meio de revisão legal e bibliográfica, buscou-se contrapor as duas hipóteses possíveis de apreciação desse crime em vista à competência complementar e restritiva desse tribunal: como um quinto crime contra a paz ou como parte de um tipo penal já positivado, seja o crime contra a humanidade ou o genocídio, e as consequências de sua tipificação aos países periféricos, uma vez que, no sistema-mundo capitalista universal,
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o direito internacional se constrói como um instrumento para a manutenção de relações assimétricas de poder. Considerou-se, assim, que ademais da problemática da tribunalização do direito internacional perante a ordem internacional vigente, o julgamento do crime de ecocídio pelo TPI resultará mais efetivo à criminalização da periferia, seja por meio dos Estados, seja dos nacionais, à medida que esses são os países que mais dependem de seus recursos naturais para a manutenção de seu desenvolvimento, segundo a lógica neoliberal, e cuja dependência lhes é imposta como parte da periferia, a fim de manutenção do status quo. REFERÊNCIAS AVANCI, Thiago Felipe S.; LUPY, Maria Aurélia; BERNARDO, Patrícia Santos. O desenvolvimento sustentável e sua influência no constitucionalismo mundial. Simpósio Internacional de Ciências Integradas. Guarujá: UNAERP, 2016, 17p. Disponível em: http://www.unaerp.br/documentos/1279-o-desenvolvimento-sustentavel-e-sua-influencia-no-constitucionalismo-mundial/file. Acesso em: 23 jun. 2019. BARBOSA, Gisele Silva. O desafio do desenvolvimento sustentável. Revista Visões, vol. 1, 4. ed., n. 4, jan./jun. 2008. BRASIL. Decreto nº 4.388, de 25 de setembro de 2002. Promulga o Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Poder Executivo, Brasília, DF. Disponível em:http://www.planalto. gov.br/ccivil_03/decreto/2002/D4388.htm. Acesso em: 25 jun. 2019. BROCHADO NETO, Djalma Alvarez; MONT’ ALVERNE, Tarin Cristino Frota. Ecocídio: proposta de uma política criminalizadora de delitos ambientais internacionais ou tipo penal propriamente dito? Revista Brasileira de Políticas Públicas, Brasília, v. 8, n. 1, p. 209-226, 2018. BRUM, Eliane. Os desastres da mineração no Brasil podem ser julgados como crimes contra a humanidade. El País. 08 fev. 2019. Disponível em: https://brasil. elpais.com/brasil/2019/02/22/politica/1550859857_043414.html. Acesso em: 01 jun. 2019.
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NACIONALIDADE E APATRIDIA: A VISÃO DE UMA QUESTÃO GLOBAL
Valéria Bubniak Ribeiro
RESUMO
A apatridia é uma questão mundial que ainda não recebe a devida atenção dos Estados e da seara Internacional, nesse sentido, o objetivo do presente trabalho, elaborado por meio do método de análise bibliográfica, é fornecer um panorama geral desse complexo problema. Em um primeiro momento, visa-se realizar uma breve análise histórica da temática e de conceitos e documentos importantes para a compreensão do tema, bem como explicar quais as principais causas da apatridia. Em seguida, será fornecido um panorama mundial, ilustrando os principais focos de apatridia no mundo atual, bem como apontar novos focos que estão surgindo nos últimos anos. Na sequência, analisam-se casos de apatridia que foram solucionados, fazendo com que essas pessoas finalmente tivessem acesso ao seu direito à nacionalidade concretizado, concluindo-se, portanto, que a apatridia é um problema ainda presente ao redor do mundo, mas que possui soluções. Por fim, pontua-se medidas que podem ser adotas pelos Estados para evitar e erradicar esse problema. Palavras-chave: Apatridia. Apátridas. Nacionalidade. Direito internacional. Direitos humanos. 1 INTRODUÇÃO
A apatridia é um problema observado em diversos lugares do mundo e que quase sempre permanece relegado a um segundo plano, a despeito da sua gravidade. Assim, aqueles que se encontram em condição de apátrida permanecem invisíveis, em um território de não direito, pois
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desprovidos de qualquer nacionalidade, que se configura como a porta de entrada para os demais direitos, em suma, um direito a ter direitos. Dessa forma, visando chamar a atenção para essa temática e a importância de sua solução, busca-se definir conceitualmente a apatridia e suas raízes históricas, identificadas na era moderna dos Estados-Nação, para em seguida apontar algumas das principais causas desse problema e investigar alguns dos focos de apatridia que existem ao redor do globo. Finalmente, serão estudados exemplos de situações de apatridia que foram bem resolvidas e algumas medidas que podem ser tomadas para evitar o surgimento de novas situações de condição de apátridas, visando servir de exemplo para a resolução de casos futuros. 2 APATRIDIA: HISTÓRIA E DEFINIÇÃO
O conceito de apátrida está ligado ao conceito de nacionalidade. O moderno conceito de nacionalidade apareceu com o surgimento de uma comunidade de Estados Soberanos e consolidação da Paz de Westphalia (Peace of Westphalia) em 1648. A verdade é que antes de se tornar possível que um número significativo de pessoas realizasse viagens mais longas, esses conceitos raramente se manifestaram de alguma forma (SHEARER; OPESKIN, 2012, p. 2-3). Quanto a uma definição precisa do que seria um apátrida, esta só foi realizada em 1954 com a Convenção sobre o Estatuto dos Apátridas. A apatridia se tornou uma grande e visível questão somente após a Segunda Guerra Mundial. Antes dessa data havia números menos expressivos de apátridas que surgiram como consequência da dissolução da Austro-Hungria, dos Tratados de Paz de 19191 e do estabelecimento dos Países Bálticos (SHEARER; OPESKIN, 2012, p. 8-9). A existência de centenas de apátridas é um enorme desafio para os Estados, pois estes não podem simplesmente deportá-los para o seu 1
Após a Segunda Guerra Mundial, no ano de 1919, foi realizada a Conferência de Paris em uma tentativa de reestabelecer a paz e determinar as condições que seriam impostas aos países derrotados. Em 1919 foram realizados os Tratado de Versalhes e o Tratado de Neuilly, em 1920, o Tratado Trianon e o Tratado de Sèvres e em 1923, o Tratado de Lausanne.
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país de origem, visto que essas pessoas não possuem um país originário. Segundo Hannah Arendt (2016, passim) o período do pós-guerra havia duas maneiras de se resolver a apatridia: a repatriação e a naturalização. Ambas falharam, a primeira porque nenhum país estava disposto a receber os estrangeiros e a segunda porque nenhum serviço público estava preparado para lidar com naturalizações em massa. Além disso, a chegada de mais estrangeiros, refugiados e apátridas prejudicava a condição das pessoas que já haviam sido naturalizadas em diversos países de destino. Em vez de ampliar os direitos para aqueles que estavam chegando, os Estados passaram a restringir os direitos de todos os que fossem considerados estrangeiros, mesmo os naturalizados. Ressalte-se que a condição de apátrida é extremamente excludente e prejudicial, porque o exercício de praticamente todos os direitos está ligado à vinculação jurídica a um Estado. Arendt (2016, passim) expõe que o estado de apatridia é tão degradante que um apátrida somente é tratado com os mínimos direitos de um cidadão no momento que se torna um criminoso, pois dessa forma ele pelo menos tem o direito de defender-se daquilo que é acusado e tomar conhecimento dos trâmites legais do seu processo. Qualquer ser humano que pergunte a si mesmo se seria melhor cometer um crime e encontre como resposta um sim está destituído de seus direitos humanos básicos. Mesmo quando um apátrida não comete um crime ele frequentemente é tratado como criminoso, pois a lei acaba transformando uma anomalia que não está em seu âmbito (apátrida) para uma anomalia conhecida (criminoso). Para tentar resolver o problema da apatridia, em 1954, foi realizada a Convenção sobre o Estatuto dos Apátridas. Essa Convenção estabeleceu em seu artigo primeiro que um apátrida é todo aquele que não é considerado por qualquer Estado como seu nacional. Também é determinado nesse documento que um apátrida deve receber pelo menos um tratamento tão favorável quanto aquele que o país daria a outros estrangeiros em geral. Outro documento de suma importância para a questão dos apátridas é a Convenção para a Redução da Apatridia de 1961, a qual
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propõe diversas medidas para facilitar e reduzir o tempo necessário para que pessoas que ainda não possuam nenhuma outra nacionalidade consigam adquiri-la. Além dessas cartas, ainda existem alguns outros pactos e convenções que também procuram de alguma forma proteger os apátridas, são eles: O Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, determinando que toda criança, independente de “raça, cor, sexo, língua, religião, origem nacional ou social, propriedade ou nascimento”, tem o direito à nacionalidade, além disso, essa mesma carta determina que não cidadãos só podem ser extraditados em observância à lei; e a Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial, a qual declara no seu artigo quinto a garantia ao direito à nacionalidade, independentemente de qualquer etnia que a pessoa possua, procurando evitar a discriminação de minorias (SHEARER; OPESKIN, 2012, p. 7-8). Entretanto, mesmo com a realização dessas convenções, a apatridia é um problema que permanece em segundo plano e desconhecido pela população em geral. Prova disso é a baixa adesão a esses documentos se comparado a outras convenções com propósitos semelhantes, por exemplo, a Convenção de 1951 sobre o Estatuto dos Refugiados engloba muito mais países do que as Convenções sobre a apatridia. Apenas 75 países assinaram a Convenção de 54 e somente 37 são signatários da Convenção de 61.2 Ademais, no âmbito de estudo desta temática, torna-se relevante compreender ainda a diferença entre um apátrida de fato e um apátrida de jure. Um apátrida de fato é aquele que não tem a proteção do Estado no qual possui a sua nacionalidade, por estar, por exemplo, fora do alcance da capacidade de proteção daquele Estado. Crianças e mulheres vítimas de tráfico humano em um país estrangeiro são exemplos de apátridas de fato (SHEARER; OPESKIN, 2012, p. 8-9). Hugh Massey (2010, passim) define a apatridia de fato como a situação que ocorre com indivíduos que estão localizados em outro país, que não aquele no qual possuem a nacio2
Número relativo à Resolução 64/127 da Assembleia-Geral, Escritório do Alto Comissário das Nações Unidas para Refugiados, 18 de dezembro de 2009.
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nalidade, e que por algum motivo não podem ou não querem, por razões válidas, utilizar-se da proteção fornecida por tais países, frequentemente essa condição de apatridia de fato aparece ligada a contextos de repressão estatal. Além disso, a falta de documentos pessoais importantes (e. g. certidão de nascimento) para a prova da nacionalidade, ocorrência comum para indivíduos que fogem de situações conflituosas ou são vítimas de tráfico humano, também podem agir como um fator de causa ou de agravamento da condição de apátrida de fato. Uma boa parte das discussões e críticas que giram em torno da questão da apatridia se referem à falta de amplitude da definição tradicional de apátrida, que negligencia a situação dos apátridas de fato. Já um apátrida de jure, seria aquele que se encaixaria na definição da Convenção de 1954, ou seja, “todo pessoa que não seja considerada por qualquer Estado, segundo a sua legislação, como seu nacional”, conforme define o artigo 1 da referida Convenção. Geralmente é relacionada ao contexto em que a pessoa não adquire uma nacionalidade no momento do seu nascimento ou vem a perder essa nacionalidade sem a aquisição de outra. Quanto às várias causas que levam a esta condição, temos, por exemplo, a sucessão de Estados, que ocorre quando um Estado deixa de existir e surge outro em seu lugar, nessa situação a apatridia acontece quando nem todas as pessoas do antigo Estado recebem a nacionalidade do novo Estado (e.g. União Soviética e a Federação Iugoslava) (ACNUR, 2011, p. 2-3). Leis complexas, lacunas na legislação e outros obstáculos simples são também razões de surgimento de apátridas. Às vezes, o grande emaranhado de leis nacionais e internacionais que determinam quem pode adquirir a nacionalidade de um determinado país acaba excluindo alguns grupos, além disso, em alguns países a nacionalidade é automaticamente perdida quando o cidadão ultrapassa um determinado limite de tempo residindo no exterior. Os obstáculos simples são, por exemplo, a falta de registro do nascimento, o que é relativamente comum em países em desenvolvimento, além disso, também se configuram como obstáculos as altas taxas para a realização do processo de aquisição de nacionalidade e a aquisição de documentos (ACNUR, 2011, p. 2-3).
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O conflito entre as concepções de jus sanguini e jus soli também pode causar a apatridia. A primeira determina que quem possui a nacionalidade é aquele que possui laços de parentesco com algum nacional do país, já o jus soli, concebe que todo aquele que nascer no território do país terá o direito à nacionalidade. Se uma criança, por exemplo, filha de pais que possuem a nacionalidade de um país que adota o jus soli, nascer em um país que adota somente o jus sanguini ela será uma apátrida (ACNUR, 2011, p. 2-3). Outro motivo que pode levar a condição de apátrida é a discriminação de gênero ou contra certos grupos, devido ao preconceito e a falta de interesse dos líderes e grupos dominantes de conceder direitos a esses grupos, além disso, em muitos casos, senão na maioria deles, a atribuição de uma nacionalidade se caracteriza como uma tentativa de fazer com que as minorias sejam culturalmente assimiladas à maioria, que acaba por resultar em uma maior marginalização desses povos. Em relação à discriminação de gênero, em muitos países a mulher não pode transmitir sua nacionalidade para o filho. O ACNUR aponta que em 30 países essa situação ocorre, como a Síria, por exemplo. Vários Estados ao redor do mundo praticam essas formas de discriminação que geram apátridas, seja por meio de distorção e manipulação de leis existentes, no caso de Mianmar, Bangladesh e República Dominicana, por exemplo, ou por meio da promoção de campanhas xenofóbicas, como no caso da Costa do Marfim e da Síria (ACNUR, 2011, p. 2-3). 3 APATRIDIA NO MUNDO ATUAL
Segundo o ACNUR (Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados) existem perto de 12 milhões (ACNUR, 2011, p.1) de apátridas no mundo, embora a própria Organização reconheça que esse dado não é exato devido à grande dificuldade de recolher dados de pessoas que não possuem registro e documentos e estão, por assim dizer, “escondidas”. Os principais focos de apatridia atualmente são: Leste da Europa, Oriente Médio, África e regiões Sudeste e Central da Ásia.
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3.1 LESTE DA EUROPA
Na Europa os casos de pessoas apátridas se devem principalmente à dissolução da antiga URSS e da Federação Iugoslava. Várias minorias russas não receberam nacionalidade depois que a União Soviética se desfez. Embora dos anos 1990 em diante milhares de pessoas tenham conseguido uma nacionalidade em muitos dos países que surgiram, existe uma quantidade expressiva de apátridas, por exemplo, na Estônia há cerca de 104.813 apátridas, na Letônia 344.095, na Lituânia 3.902 e na Ucrânia 52.000 (ACNUR, 2011, p. 7-8). Quanto a ex-Iugoslávia, muitos ex-cidadãos dessa Federação não conseguem provar a sua origem ou sofrem discriminação devido às diversas culturas e etnias que existem na região. Uma das minorias que se destacam dentre os apátridas que estão presentes no território que antes pertencia à Iugoslávia é o grupo dos roma, que são o maior grupo de apátridas presente na Europa. Essa minoria étnica existe em várias localidades da Europa e até mesmo do mundo, sendo que os integrantes desse grupo são popularmente conhecidos como ciganos. Embora sem muita precisão estima-se que existam entre sete e nove milhões (RIBEIRO; NASCIMENTO; VALLE; NEVES, 2013, p. 434) de pessoas que fazem parte do povo roma na Europa. Em média existem de um a dois milhões de ciganos na Romênia, e de quatrocentos mil a um milhão na Hungria, Sérvia, Montenegro, Turquia, Eslováquia e Bulgária. Na Europa ocidental, a maior quantidade de ciganos se encontra na Espanha (aproximadamente 630 mil), França (310 mil), Itália (130 mil) e Alemanha (70 mil) (RIBEIRO; NASCIMENTO; VALLE; NEVES, 2013, apud, RINGOLD; ORENSTEIN; WILKENS, 2005) 3. Essas pessoas se encontram no meio de diversos discursos nacionalistas e até mesmo nas discussões sobre os regimes de nacionalidade na União Europeia. A posição dos roma é fruto de uma exclusão socioeconômica e étnica, já que muitos outros povos apresentam tendência xenofóbicas com relação a esse grupo, e, embora não tenha surgido com a dissolução da Iugoslávia, esse fato resultou em um rearranjo da sua posição. Com a desintegra RINGOLD, D.; ORENSTEIN, M.; WILKENS, E. Roma in an expanding Europe: Breaking the poverty cicle. Washington: Banco Mundial, 2005.
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ção desse Estado, as migrações e deslocamentos dos indivíduos do povo roma por esse território se tornaram mais complicadas e menos pacíficas, além de serem forçados a mudar devido às constantes guerras da região. Somente os roma que já possuíam cidadania da Federação da Iugoslávia conseguiram a cidadania de um dos novos países, muitos outros não foram capazes de provar a sua residência no país por residirem de maneira informal ou por mudarem constantemente de local devido à atividade econômica que exerciam, ligada principalmente ao comércio e ao trabalho autônomo. Outro problema para a aquisição de nacionalidade enfrentado por esse grupo é o requisito “linguagem e cultura” exigido por muitos Estados para se atribuir a nacionalidade. Os roma não são o principal alvo dessa exigência (Na Croácia, por exemplo, a minoria que se busca atingir são os sérvios que habitam o país), entretanto acabam sendo excluídos também por possuírem raízes linguísticas e culturais diferentes. Um terceiro fator que se apresenta como um entrave para a aquisição de nacionalidade é a escassez de recursos financeiros para arcar com os custos dos procedimentos necessários para a naturalização (SARDELIC, 2013, p. 10-13). Além desses três fatores, ainda existe a falha nos registros de nascimento, pois devido à falta de condições muitas mulheres da etnia do povo roma realizam partos em casa e a família acaba não registrando o filho, já que a burocracia e as taxas envolvidas nesse registro também demandam um dinheiro que muitos não possuem (SARDELIC, 2013, p. 10-13). Muitos governos tentam repatriar os roma, entretanto tais atitudes acabam piorando o problema, já que essas pessoas passam a não ser só apátridas, mas também refugiadas. O Comissário para Direitos Humanos do Conselho Europeu sugere que o dinheiro destinado para repatriar os roma seja usado em projetos que procurem integrar os membros dessa etnia à sociedade da qual eles fazem parte. Uma dessas iniciativas que teve um grande impacto promissor foi a “Década de Inclusão Roma”, criada em 2005, na qual participaram governos de vários países e diversas organizações. Segundo um relatório do ano de 2009 a maior conquista
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desse plano foi a elaboração de uma “European Roma Policy”, que busca a criação de uma abordagem comum entre os países da Europa para lidar com a questão do povo roma e planejar a sua inclusão na sociedade (RIBEIRO; NASCIMENTO; VALLE; NEVES, 2013, p. 436). 3.2 ORIENTE MÉDIO
Essa parte do globo apresenta diversos conflitos e etnias, o que é um cenário propício para o surgimento de apátridas. Muitas pessoas se veem privadas do direito de possuir uma nacionalidade por pertencerem a um determinado grupo étnico. Duas das minorias mais discriminadas no Oriente Médio são os palestinos e os curdos. Nesse âmbito, serão analisados dois países: Israel e Síria concernente, respectivamente, as suprarreferidas minorias. Em 1948 foi criado o Estado de Israel, entretanto com a criação desse Estado surgiu um novo problema: a situação dos palestinos que já habitavam essa região. Muitos foram expulsos de suas casas e de sua terra natal, tendo vários direitos negados pelo Estado. A Lei de Cidadania Israelense (Israeli citizenship law) (ISRAEL, 1952), criada em 1952 determina que para que um não judeu seja naturalizado é necessário, dentre outras condições, que a pessoa possua algum conhecimento de hebreu, fixe residência com intenção de permanecer no local e que tenha habitado a região por 3 dos 5 anos precedentes do requerimento do nacionalidade. Outros fatores que dificultam mais ainda a atribuição de nacionalidade são a instabilidade e as disputas da região, pois provocam a incerteza da permanência da ocupação. Além disso, em áreas ocupadas por Israel, muitos palestinos relutam em aceitar a nacionalidade, pois de certa forma isso seria uma legitimação da aquisição de território por eles considerada ilegal (JEFFERIS, 2012, p. 9). Observa-se também que Israel vem tomando medidas para institucionalizar a condição de apátrida dos palestinos. São elas: a política do “centre of life”, restrição de idade para crianças que pretendam pedir a nacionalidade israelense e a emenda “loyalty oath” (juramento de lealdade, numa tradução livre) no processo de naturalização. A primeira medida
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consiste em revogar a nacionalidade de alguém que passou mais do que certo limite de tempo fora do país sob a alegação de que o “centro da vida” (centre of life) da pessoa não seria mais Israel, mas sim outro local, ou então quando não se conseguem provas suficientes para mostrar a sua permanência no Estado (JEFFERIS, 2012, p. 9-19). No que atine às restrições de idade para crianças, essa medida se refere ao limite de 12 anos para que uma criança palestina tenha a possibilidade de conseguir o direito de residir permanentemente em Israel. Em 2005 esse limite passou para 14 anos, no entanto, o Ministro do Interior criou um “período de espera” para que aqueles com mais de 12 e menos de 14 anos obtenham essa permissão. Dessa forma, a criança completa 14 anos e fica impossibilitada de conseguir esse direito. Já a “loyalty oath” determina que quem busca a nacionalidade israelense jure lealdade ao Estado como um Estado “judaico e democrático”. Assim, os palestinos são obrigados a declararem ser leais a uma cultura e passado ao qual não pertencem, sendo, portanto, mais uma vez excluídos (JEFFERIS, 2012, p. 9-19). Quanto à Síria, ela é um dos países do mundo que mais apresenta apátridas, uma das principais causas, como mencionado no início, é a discriminação do sexo feminino, as mulheres não são capazes de transferir sua nacionalidade para seus filhos ou para seus cônjuges que não possuam a nacionalidade síria. O artigo 3 da lei de nacionalidade da Síria de 1969 (ALBARAZI, 2013, p. 7) determina que todo aquele que tenha nascido no país, filho de um pai sírio deverá ser considerado como um cidadão sírio. Em 2008, houve uma votação para decidir se as mulheres poderiam passar a sua nacionalidade para seus filhos. A votação foi contra alterar a lei, pois a Sharia determina que a identidade de uma criança deriva do seu pai. O grande grupo em situação desfavorável nesse país e que merece destaque são curdos, aproximadamente 2 milhões, (ALBARAZI, 2013, apud SYRIA U.S., 2012)4 o que os faz a maior minoria étnica presente no 4
ALBARAZI, 2013, p. 13, apud SYRIA U.S. DEPARTMENT OF STATE, Background Note: 2012. Disponível em: http://www.state.gov/r/pa/ei/bgn/3580.htm.
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Estado da Síria. Enquanto essa região esteve sob o domínio francês, não havia grandes conflitos entre os curdos e outras etnias. No entanto, com a independência do país e a disseminação de uma ideologia Pan-arábica, os curdos passaram a ser um obstáculo contrário às raízes étnicas do Estado (em 1973 a Síria afirmou em sua constituição ser um Estado Árabe), o que abriu as portas para a discriminação e a tomada de diversas medidas que privam os curdos de seus direitos, inclusive da sua nacionalidade. Em 1962, um censo foi realizado na região de Al-Hasakah, sob o pretexto de que estrangeiros estariam se infiltrando nas fronteiras nessa área, assim fazia-se necessário identificar essas pessoas que estavam supostamente “invadindo” o país. Muitas críticas foram feitas a esse censo, como o pouco tempo que havia para arranjar os documentos e apelar das decisões. A despeito de todas as suas falhas, o censo de 1962 dividiu a população em três categorias: nacionais sírios (aqueles que provaram satisfatoriamente a sua residência), ajanib ou estrangeiros (apresentaram provas, mas não conseguiram convencer as autoridades da sua residência na região) e maktoumeen (aqueles que não apresentaram provas ou não compareceram ao censo) (ALBARAZI, 2013, p. 14-17). Decido a esse censo aproximadamente 120.000 curdos perderam a sua nacionalidade, estimativas mais recentes apontam que o número de curdos apátridas na Síria fica em torno de 300.000 (ALBARAZI, 2013, p.14-17). Em 2011, com as pressões de protestos da Primavera Árabe foi aprovado um decreto que concederia a nacionalidade para todos os que fizessem parte da categoria de estrangeiros (ajanib), no entanto o grupo maktoumeen, do qual a maioria dos curdos faz parte, não seria beneficiada (ALBARAZI, 2013, p. 18). Além disso, muitos curdos se mudaram da região devido aos diversos conflitos existentes no país, não sendo capazes, dessa forma, de conseguir a nacionalidade síria. Por esses motivos muitos curdos ainda permanecem apátridas. Assim, devido não somente aos curdos, mas a outras minorias, por exemplo, os palestinos (estima-se que existam mais ou menos 400.000 palestinos apátridas na Síria), a Síria é um dos países que possui um dos maiores números de apátridas no mundo (ALBARAZI, 2013, p.13).
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Uma terceira minoria que sofre com a condição de apátrida e também deve ser mencionada são os biduns (que em árabe significa sem nacionalidade). Essas populações se encontram espalhadas pelos países do Golfo, com maior concentração no Kuwait, assim como os curdos e os palestinos, os biduns são privados de terem uma nacionalidade por causa da discriminação étnica. As classes dominantes dos países nos quais os biduns se encontram não mostram o interesse em tomar medidas que melhorem as condições dessa minoria, pois preferem conservar o status quo vigente para concentrar as riquezas nacionais proveniente do petróleo em suas mãos. Atualmente, aponta-se que existam menos de 500.000 pessoas pertencentes ao grupo dos biduns espalhados pela região do Golfo, sendo que destas, quase 100.000 se encontram no Kuwait (SHIBLAK, 2009, p. 38). 3.3 ÁFRICA
A África, assim como o Oriente Médio, também é palco de diversos conflitos envolvendo vários fatores e motivos, o que propícia o surgimento de focos de apatridia em diversos pontos desse continente. É o caso, por exemplo, da Eritréia e da Etiópia que depois de trinta anos de luta se separaram por meio de um referendo, em 1993, que estava aberto a qualquer pessoa que possuísse a nacionalidade da Eritréia. De acordo com a legislação desse país, qualquer um que atendesse aos requisitos para obter a nacionalidade e desejasse ser reconhecido como cidadão da Eritréia poderia solicitar o documento que concede a cidadania do país. A maioria das pessoas que votaram no referendo foram a favor da independência. Nos primeiros anos, as relações foram relativamente pacíficas entre os dois países, porém em 1998 devido às tensões latentes os dois Estados entraram novamente em conflito, o qual durou até o ano 2000. Durante a guerra a Etiópia expulsou em torno de 70.000 pessoas, as quais segundo o governo haviam adquirido a nacionalidade no referendo de 1993, sob o pretexto de preservar a segurança nacional. A Eritréia também deportou mais ou menos o mesmo número de pessoas que a Etiópia, embora
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sem questionar a nacionalidade das pessoas que foram expulsas do país (SOUTHWICK, 2009, p. 15). Em 2004, foi realizada a Comissão de Reclamações para Eritréia-Etiópia que determinou que todos os que participaram do referendo para decidir sobre a independência da Eritréia possuíam as duas nacionalidades. Entretanto também foi decidido que a expulsão de pessoas e a perda de nacionalidade pelos procedimentos que visavam preservar a segurança da Etiópia eram válidas, mesmo se fossem duras para os afetados. A falta de clareza nas leis de nacionalidade que vigoravam na época da criação da Eritréia e a falta de efetividade das normas sobre a apatridia permitiram que a Etiópia privasse milhares de pessoas de origem eritreia de seus direitos. Entre 2000 e 2004, as autoridades da Etiópia mandaram prender e em alguns casos fizeram o uso da violência em pessoas eritreias acusadas de espionagem para um país inimigo. Enquanto isso, estima-se que vivam de 10.000 a 15.000 etíopes na Eritréia (dados do Comitê Internacional da Cruz Vermelha), das quais a maioria não adquiriu o direito de residir permanentemente no país ou a cidadania. Além disso, famílias mistas não conseguem obter a nacionalidade e tem dificuldade em encontrar emprego e usufruir de serviços sociais (SOUTHWICK, 2009, p. 16). Devido a essas constantes tensões e ameaças da região, centenas de pessoas não veem seus familiares e amigos há anos. O problema de apátridas de origem Eritréia-Etiópia continua sendo uma situação gravíssima no Chifre da África, estudos apontam que e existam em torno de 500.000 pessoas destituídas de nacionalidade nessa região (SOUTHWICK, 2009, p. 15). Outro país que apresenta uma situação preocupante envolvendo a questão dos apátridas é a Costa do Marfim, país que recebeu em torno de 3 milhões de migrantes do oeste da África, muitos deles tinham a possibilidade de obter a nacionalidade marfinense, porém com as campanhas xenofóbicas dos governos do país, tiveram esse direito negado (BLITZ, 2009, p. 11). Em 1961, o “Nacionality Act” inseriu a possibilidade de naturalização na Costa do Marfim, mas logo diversas restrições foram im-
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postas, como em 1972, quando foi negada a possibilidade de se adquirir a nacionalidade para aqueles que nasceram no exterior ou que eram filhos de pais nascidos no exterior (CÔTE D’IVOIRE, 1972). A tensão entre as diversas comunidades políticas da Costa do Marfim aumentou depois do ano 2000, devido à disseminação do conceito de “Ivorite”, realizado pelo então presidente Henri Konan Bedie, que separava aqueles que eram considerados puros cidadão marfinenses, os quais compunham a base eleitoral de Bedie, daqueles que eram filhos de imigrantes e tinham tendências a apoiar a oposição ao governo (BLITZ, 2009, p. 11). Junto à disseminação da ideologia racista de “marfinenses puros”, vieram várias leis e medidas que restringiam direitos daqueles que não estavam incluídos na ideia de “Ivorite”, como a exigência de que todos os migrantes possuíssem uma permissão para residir no país e a imposição de que somente os marfinenses puros podem obter passaportes e carteiras de identidade. No ano de 2002, mais leis restritivas foram promulgadas, dificultando ainda mais a obtenção de documentos para aqueles que não eram considerados marfinenses puros, além disso, o direito ao voto também foi restringido (BLITZ, 2009, p. 11). Em 2003, foi proposto o acordo de Linas-Marcoussis, nele o governo deveria se propor a parar com o uso das permissões para residir no país para os nacionais que não se encaixavam no conceito de “Ivorite” e fornecer proteção a nacionais de outro países e suas propriedades na Costa do Marfim. Com base nesse acordo, o novo governo propôs que todas as pessoas que nascessem no território, ou tivessem nascido no país após a sua independência, poderiam se tornar cidadão do Estado. Entretanto, essa proposta foi rejeitada, pois a assembleia nacional acredita que isso seria fazer uma espécie de liquidação (selling-off) com a nacionalidade marfinense. Com o fim das lutas entre o governo e seus opositores e a assinatura do Acordo de paz Ouagadougou, em 2007, as lideranças do país se comprometeram a resolver as questões que envolviam os apátridas do país, embora esses problemas ainda se encontram pendentes na atualidade (BLITZ, 2009, p. 11).
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Dentre outros grupos que sofrem neste continente por encontrarem-se na condição de apátrida são, os Banyarwanda e os Saharawi. A primeira minoria é formada por tutsis que vieram de Ruanda para a República Democrática do Congo no período colonial, são aproximadamente 300.000 ou 400.000. Embora recentemente tenha surgido a possibilidade de aquisição de nacionalidade, ainda existem diversos obstáculos e restrições para os banyarwanda e muitos ainda permanecem apátridas (GYULAI, 2011, p. 2). Já o grupo dos Saharawi é composto pela população da antiga Colônia do Rio do Ouro (Saara), uma colônia espanhola, que após a independência foi ocupada ilegalmente pelo Marrocos. Até hoje os saharawi não são reconhecidos como um Estado. Vários saharawi procuram refúgio na Argélia, mas continuam vivendo como apátridas (GYULAI, 2011, p. 2). 3.4 ÁSIA
Na Ásia, tem-se como exemplo a situação dos rohingas, uma minoria étnica e religiosa que habita o país Myanmar. Eles seguem o Islã, enquanto que a maioria da população é budista. Essa minoria vem sofrendo cada vez mais com a violência, e a discriminação que lhe é infligida pela maioria da população, tanto que muitos são obrigados a se mudarem para outro país. Essa rixa existe por motivos históricos, pois antes da independência do país, a região era comandada por uma elite muçulmana, com a independência, na década de 1940, essa elite foi embora e o ódio da população budista se voltou para os muçulmanos de origem mais humilde e principalmente os que eram negros. Assim, desde essa época os rohingyas passaram a sofrer diversas restrições de direitos, como por exemplo, prisões arbitrárias e confisco de terras. Em 1982, foi aprovada a Burma Citizenship Law, uma lei que retirou os rohingyas da lista de etnias reconhecidas de forma oficial pelo Estado. Em Myanmar é preciso pertencer a uma dessas “raças oficiais” para ser considerado como um cidadão (Kachin, Kayah (Karenni), Karen, Chin, Burman, Mon, Rakhine, Shan, Kaman ou Zerbadee), como os rohin-
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gas foram riscados dessa lista, tornou-se impossível para essa minoria conseguir a nacionalidade. Já para se tornar um cidadão naturalizado, a pessoa deveria provar de maneira conclusiva que residia no país antes de 1948, a data de independência, ter algum parente que possuísse a nacionalidade de Myanmar (na época Birmânia) também era uma possibilidade. A pessoa que passava pelo processo de naturalização deveria ter mais de dezoito anos, um bom caráter e uma mente saudável, além de falar bem uma das línguas nacionais (chittagonian, o dialeto falado pelos rohingyas, não é uma dessas línguas) (HUMAN RIGHTS WATCH, 2000). Atualmente, segundo a ONU, estima-se que existam um milhão e trezentos mil rohingyas, sendo que desses oitocentos mil são apátridas (BRUM, 2011, p. 47). Myanmar não é signatário nem da Convenção de 1954 sobre o Estatuto dos Apátridas, nem da Convenção de 1961 para a Redução da Apatridia. O que dá ao governo maior liberdade para aplicar políticas que discriminam os rohingyas, como determinar que os integrantes dessa etnia não podem ter mais de dois filhos. Quando tentam melhorar sua qualidade de vida saindo do país, os rohingyas enfrentam novamente a hostilidade e o preconceito. Por exemplo, quando a marinha tailandesa captura um barco usado por rohingyas para chegar à Tailândia, esta, em muitos casos, prende-os para, em seguida, vendê-los no mercado clandestino de tráfico humano. Países como China e Índia não se pronunciam sobre a situação dos rohingyas porque possuem interesses econômicos em Myanmar. Outros como Malásia e Indonésia oferecem uma ajuda apenas como uma solução temporária, o que não resolve de forma definitiva o problema (GUEDES, 2011, p. 48). Além da situação dos rohingyas em Myanmar, também existe a situação das pessoas da etnia nepali em Butão. No ano de 1985 foi introduzida uma nova lei de cidadania neste país, o artigo 3 desta lei determina que um nacional de Butão é “uma pessoa permanentemente domiciliada em Butão antes de 31 de dezembro de 1958, e, cujo nome esteja inscrito no registro do censo mantido pelo ministério de Assuntos Interiores” (THE BHUTAN CITIZENSHIP ACT, 1985). Assim, várias minorias ti-
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veram o seu direito a nacionalidade negada, em especial, a comunidade de nepaleses. Outras exigências que restringiram a possibilidade e o direito de se obter nacionalidade foram à necessidade de escrever e falar fluentemente em dzongkha (butanês), a língua oficial do Reino do Butão, e comprovar a residência no país por 20 anos para aqueles cujos pais não nasceram no país. Dois anos após a promulgação daquela lei, foi realizado um novo censo para definir quem era ou não um cidadão daquele país. Além disso, a lei de 1985 requereu também que ambos os pais fossem nacionais de Butão, e não somente o pai como determinava a lei de antes. Dessa maneira, mais de 100.000 pessoas pertencentes à etnia nepalesa se tornaram apátridas e foram expulsas do país na década de 1990 e os seu direito de retornar a Butão foi impedido pelo governo (BLITZ, 2009, p. 12). Em 2005, um censo declarou que do total de residentes no país 81.976, não possuíam a nacionalidade butanesa. Ao decorrer dos últimos anos, milhares de butaneses que perderam a sua nacionalidade foram reassentados em outros locais, por exemplo, em 2008, aproximadamente 6.000 dessas pessoas chegaram aos EUA (BLITZ, 2009, p. 12). No caso do Nepal, embora a antiga legislação, a qual priorizava a “origem nepali” e a capacidade de escrever e falar no idioma do país, excluído minorias como os grupos Madhesi e Dalit, tenha sido alterada, no período democrático posterior ao ano de 2006, para conceder a nacionalidade a várias pessoas que ainda não a possuíam, muitos indivíduos ainda permanecem apátridas. Isso ocorre pela existência de vários obstáculos como o nomadismo, a destruição de documentos e registros locais ou ainda o próprio desconhecimento ou falta de motivação das pessoas para buscarem a nacionalidade. Além disso, a discriminação contra as mulheres também é causa de apatridia nesse país. A legislação do Nepal impede que mulheres casadas obtenham a nacionalidade sem o consentimento do marido, ou que transmitam a sua nacionalidade a seus filhos caso se casem com um estrangeiro. Um estudo realizado pela Aliança contra o Tráfico de Mulheres e Crianças no Nepal (Alliance against Trafficking in Women & Children
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in Nepal - AATWIN) com mulheres sobreviventes do tráfico humano, mulheres badi (grupo pertencente à casta dos dalits), mulheres que vivem em regime de poligamia e mulheres que moram em regiões ocupadas, concluiu que para lutar contra a apatridia por discriminação de gênero no país, deve ser realizada uma luta contra a miséria e pelo empoderamento feminino. Visando esse objetivo, dentre outras iniciativas, a AATWIN propôs a realização de uma campanha de alfabetização feminina em massa no Nepal. Em 2005, foi promulgada uma lei que determinava que no caso de pai indeterminado ou ausente a criança deveria ser registrada pela nacionalidade da mãe, entretanto muitas autoridades locais se recusam a aplicar essa lei alegando a falta de diretrizes como justificativa. Por último, cabe ressaltar que o Nepal é um dos países como maior número de apátridas de fato, o ACNUR estima que nesse território existam cerca de 800.000 pessoas, nessa condição (WHITE, 2009, p. 28). 4 APATRIDIA: PERSPECTIVAS FUTURAS 4.1 NOVOS FOCOS DE APATRIDIA
Com o desenrolar das décadas novos locais e tipos de problemas e conflitos surgem o que significa que novos casos de apatridia também aparecem no mapa. Nesse momento serão explanadas duas dessas situações. A primeira é o caso de discriminação na República Dominicana, ele foi escolhido porque a América Latina não é um foco de tradicional de surgimento de apátridas, visto que a maioria dos países adota o jus solis. A segunda é o caso de Kiribati e Tuvalu, ilhas ameaçadas pelas mudanças climáticas. Diferentemente de todos os outros apátridas registrados, os possíveis futuros apátridas dessas ilhas surgirão porque o território de seu Estado irá desaparecer no oceano, e não por uma dissolução e sucessão de Estado ou por leis discriminatórias, o qual é o motivo por esse caso ser abordado aqui.
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4.1.1 APATRIDIA NA AMÉRICA LATINA (REPÚBLICA DOMINICANA – HAITI)
No início do século XX, muitos haitianos migraram para a República Dominicana, procurando principalmente trabalhar nas plantações de cana e em outras atividades relacionadas à produção de açúcar, essa migração fornecia a mão de obra barata necessária para o desenvolvimento do país. Além da migração por motivos econômicos também havia refugiados por motivos políticos, já que nos anos 1970 e 1980, vigorava o regime ditatorial de François “Papa Doc” Duvalier e posteriormente do seu filho Jean-Claude “Baby Doc” Duvalier. Embora haja todo esse histórico de migração, existiu, e ainda existe, muita discriminação e racismo por parte dos dominicanos, no ano de 1937, por exemplo, foi orquestrado um genocídio que resultou na morte de mais ou menos 20.000 haitianos (BLAKE, 2014, p. 144). Outro exemplo mais recente e que se tornou um grande problema, pois gerou um novo foco de apatridia, foi a emenda feita, em 2013 pela República Dominicana, nas leis relativas à concessão de nacionalidade. Antes disso, a Constituição de 1929 garantia a cidadania pelo jus solis a todas as crianças que nasciam no país. A nova emenda, no entanto, revogou a nacionalidade de pessoas filhas de imigrantes em situação migratória regular, que foram considerados como pertencentes à categoria “em trânsito” e que eram principalmente de origem haitiana (SHIPLEY, 2014, p. 461-463). Mesmo antes desta emenda os haitianos enfrentavam dificuldades para conseguir registrar seus filhos como cidadão, seja pela falta de documentos ou pela simples recusa dos registros locais em aceitar os documentos como válidas. No ano de 2005, o ministro do Trabalho da República Dominicana fez um anúncio determinado que o país tomaria medidas para “desaitizar” a sua população. Esse período foi caracterizado por mais uma onda de racismo e deportações. Um relatório das Nações Unidas do ano de 2007 sobre racismo e xenofobia delatou que existe um profundo racismo na comunidade dominicana, especialmente contra negros e mulatos, os quais são haitianos ou descendentes de haitianos. Assim, a lei aprovada em 2013 foi mais um dos ápices da manifestação da discriminação na República Dominicana, legalizando o racismo existente no país (BLAKE, 2014, p. 150-151).
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Essa lei viola vários documentos internacionais, como a Declaração Universal de Direitos Humanos, e o próprio costume regional americano, já que praticamente todos os países desse continente adotam o jus solis e a sua negação a um determinado grupo de pessoas vai em direção contrária a essa tradição. A República Dominicana foi condenada pela Corte Interamericana de Direitos Humanos por suas práticas claramente discriminatórias, a Organização do Estado Americanos (OAS) e a Comunidade Caribenha (CARICOM) também se manifestaram sobre as ações do governo dominicano (SHIPLEY, 2014, p. 466). Enquanto isso, a República dominicana simplesmente alegou que cada país possui o direito de determinar quem são seus cidadãos, e fez uma emenda em sua própria Constituição para responder às acusações de que a lei de 2013 seria inconstitucional (BLAKE, 2014, p. 153). Portanto, esse novo foco de apatridia permanece ainda sem solução. 4.1.2 APATRIDIA AMBIENTAL
Um novo problema que está surgindo relacionado à apatridia é a situação das ilhas do oceano Pacífico Kiribati e Tuvalu. Devido ao aquecimento global e a elevação do nível do mar pelo derretimento das calotas polares, essas ilhas correm o risco de serem completamente inundadas e sumirem no oceano. Dessa forma os cidadãos dessas ilhas perderiam a sua nacionalidade porque seus Estados deixariam de existir. Entretanto, diferentemente de outras situações em que ocorre uma dissolução de Estado e surge um novo Estado ou o território da região é anexado a outro país, o território dessas ilhas simplesmente sumiria do mapa. Como o Direito Internacional contempla a dissolução de Estados em apenas três casos, quais sejam, a absorção por outro Estado, a fusão com outro Estado ou, por último, o caso em que haja a sucessão de Estados, a menos que essas ilhas sedam o seu território para outro Estado já existente, o desaparecimento de Kiribati e Tuvalu apresenta uma lacuna no direito existente e configura um desafio futuro para achar uma solução para os habitantes dessas ilhas (MCADAA, 2010, p. 1-5).
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4.2 CASOS SOLUCIONADOS
Considerando a gravidade da condição de apátrida e a importância de uma nacionalidade, a seguir será explanado um pouco acerca dos casos de apatridia que já foram solucionados e daquilo que o ACNUR determina para evitar o surgimento de novos problemas e a resolução dos já existentes. Embora ainda existam muitos casos de apátridas não resolvidos, pode-se listar alguns casos que foram solucionados com a concessão de nacionalidade por intermédio de reformas, ementas e novas leis, é o que ocorreu na Indonésia, em Bangladesh, no Vietnã, no Iraque e no Brasil. Na Indonésia, havia uma lei que revogava a nacionalidade daqueles que haviam passado mais de cinco anos no exterior sem fazerem o registro em uma embaixada da Indonésia. Em 2006, uma nova lei alterou essa condição e permitiu que mais de 100.000 pessoas readquirissem a cidadania do país (ACNUR, 2011, p. 4). Foram ainda realizadas campanhas na Malásia, país vizinho à Indonésia, para levar o conhecimento dessa lei às pessoas que pudessem se beneficiar com as disposições propostas na nova legislação. Essa lei ainda facilitou o processo de aquisição de documentos e naturalização para aqueles que pertenciam a uma etnia de origem chinesa que vivia no país por gerações, essas pessoas encontravam-se em condição de apátrida ou em risco de apatridia e totalizavam em torno de um milhão de indivíduos. Em Bangladesh, a apatridia se devia a discriminação contra o grupo dos Biharis, os quais totalizavam em torno de 300.000 pessoas (BLITZ, 2009, p. 9). Após várias lutas, a Suprema Corte de Bangladesh, no ano de 2008, concedeu o direito à nacionalidade aos apátridas, que tiveram os documentos emitidos e puderam votar nas eleições do país que se realizaram naquele mesmo ano. Quanto ao Vietnã, vários casos de apátridas surgiram porque um grande número de mulheres vietnamitas se casou com estrangeiros e abdicaram da sua nacionalidade para adquirirem a do marido. No entanto, como em muitas situações o casamento terminava, por morte do cônjuge ou por divórcio, antes que a nova nacionalidade fosse adquirida, as mulheres se tornavam apátridas. Para solucionar esses
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casos de apatridia, o governo realizou uma emenda na sua lei de cidadania e em 2009 promoveu campanhas para que essas mulheres obtivessem o conhecimento de como readquirir a nacionalidade. No caso do Iraque, são os curdos Faili a minoria que era prejudicada com a falta de nacionalidade durante o governo de Saddam Hussein. Com o estabelecimento de um novo regime e foi promulgada a Constituição de 2005, que determinava que aqueles que sofreram a desnacionalização poderiam requerer a nacionalidade de volta. Além disso, no ano seguinte foram estabelecidos procedimentos exclusivos para esse grupo de curdos. O Ministério do Deslocamento e da Migração do Iraque afirma que cerca de 100.000 indivíduos deixaram a condição de apátrida e passaram a figurarem como cidadãos iraquianos devido a essas medidas (ACNUR, 2011, p. 6). Já no Brasil, a apatridia se deveu a uma lacuna normativa, pois era requerido que para que uma criança, nascida no exterior e filha de pais brasileiros, adquirisse a cidadania brasileira ela precisaria residir no Brasil. Como muitos países não concedem a nacionalidade pelo jus solis, estima-se que haveria cerca de 200.000 crianças apátridas, devido a essa exigência. Criou-se então, pela comunidade de brasileiros expatriados, composta por cerca de 3 milhões de pessoas, o movimento dos Brasileirinhos Apátridas, que visava uma reforma na Constituição Brasileira (ACNUR, 2011, p.4). Esse objetivo foi atendido em 2007 por meio de uma reforma constitucional vinda com a Emenda Constitucional n. 54/2007, que alterou a redação do artigo 12, inciso i, alínea c, da Constituição Federal de 1988. Ademais, o novo texto foi aplicado retroativamente solucionando os casos que futuramente viriam a se configurar como um problema de apatridia. 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A apatridia, embora seja um problema endêmico e complexo que se traduz como um território de não direito - sequer se encaixando na lógica jurídica do binômio legal-ilegal, pois localizado à margem da lógica
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da nacionalidade concedida pelo Estado - não é uma questão irresolúvel, podendo ao menos ser atenuada ou amenizada. Várias medidas e recomendações são importantes para a diminuição da apatridia. Em uma esfera interna estatal, aponta-se como medidas que os Estados honrem os compromissos relacionados ao respeito aos direitos humanos assumidos em diversos documentos e tratados internacionais supramencionados, além de fornecer uma proteção adequada a abusos que afetam especialmente os apátridas, tais como o tráfico humano, e desenvolver políticas antidiscriminatórias, evitando que pessoas se tornem apátridas devido à discriminação étnica ou de gênero. Além disso, facilitar a naturalização e garantir que todas as crianças que nasçam no seu território possuam uma nacionalidade, por intermédio do jus solis, por exemplo, também são medidas importantes para erradicar a apatridia. No âmbito internacional, assinar tratados como a Convenção de 1961 e a Convenção de 1954, são passos fundamentais para que um país resolva a situação de apátridas existentes em seu território, pois ser signatário desses documentos demonstra um compromisso estatal reconhecido internacionalmente para o tratamento de apátridas, garantindo àqueles em condição de apátrida um mínimo de acesso à proteção do Estado e direitos básico, evitando que os apátridas sejam totalmente marginalizados e excluídos, proporcionando maior estabilidade. Aderir a essas convenções também se caracteriza como um marco para a identificação de pessoas apátridas no território do Estado, evitando o deslocamento de pessoas apátridas, o que pode dificultar a proteção dessas pessoas. Ademais, promove um marco internacional comum para a proteção de apátridas, aumentando, assim, a previsibilidade das respostas dadas pelos Estados com relação à apatridia. Por último, ser signatário das referidas convenções auxilia ainda o ACNUR no processo de mobilização de apoio internacional para a proteção de apátridas.
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TERRITÓRIO E LUTA DE CLASSES: PERSPECTIVAS ECOSSOCIALISTAS SOBRE O CONTROLE TERRITORIAL A PARTIR DA NECROPOLÍTICA ESTATAL
Gustavo de Oliveira Correa
RESUMO
É constante na tradição marxista a dificuldade de entender as novas configurações de classe e de dominação estatal a partir no capitalismo financeiro informatizado. Algumas correntes de pensamento, como o ecossocialismo, buscam uma maior integração entre diversos pontos de opressão do sistema capitalista e da hegemonia cultural. Um dos pontos cruciais se dá na forma de se organizar não mais em torno de setores produtivos e de locais de trabalho, mas sim a partir da luta territorial e de pautas contra a necropolítica estatal nos países periféricos. Este trabalho busca a partir da intersecção do ecossocialismo com o conceito de territorialidade de David Harvey encontrar caminhos que possamos trilhar e amarras que o movimento popular e anticapitalista na América Latina precisa quebrar para que exista uma maior dialética interna a esses processos, logo, um maior sucesso nas táticas. Palavras-chave: Ecossocialismo. Território. Necropolítica. Organização territorial. Método. 1 INTRODUÇÃO
Nas últimas duas décadas, principalmente depois das publicações “O que é Ecossocialismo?’’ (LOWY, 2000) e “A Ecologia de Marx: materialismo e natureza’’ (FOSTER, 2000) e dos processos constituintes do
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Equador e da Bolívia1 (ACOSTA, 2016), começou a se debater com mais seriedade na vanguarda dos movimentos de esquerda radical a questão ambiental dentro da tática e estratégia para o século XXI. Em todo o mundo apareceram coletivos, partidos, correntes e organizações internacionais que têm como estratégia o ecossocialismo. O ecossocialismo coloca em contradição as duas “teorias verdes’’ com maior expressão política no século XX, a teoria do decrescimento econômico e a teoria das ecotecnologias. Ambas possuem diversas reflexões que podem ser utilizadas na criação de um programa de transição (TROTSKY, 2011) e uma estratégia emancipatória, contudo apresentam contradições intrínsecas ao fato de se excluírem mutuamente, além de não se contraporem ao capitalismo. É necessária uma relação dialética entre a teoria do decrescimento e da ecotecnologia. De fato, no capitalismo financeiro, existe um consumo e extrativismo exacerbado, impulsionado pela obsolescência programada e pela falta de políticas de reutilização de recursos. Da mesma forma, referenciar a pesquisa e o “desenvolvimento’’ tecnológico à critérios de preservação ambiental é necessário. No entanto, ambos são impossíveis no capitalismo, com a diminuição da taxa de lucros dos donos do capital nas últimas décadas, cada vez mais são necessárias políticas de achatamento de salário, fim das garantias do Welfare State e implementação da necropolítica por meio dos Estados dos países de capitalismo periférico. A pesquisa e a tecnologia serão sempre referenciadas no lucro, logo, só teremos uma tecnologia emancipatória, que permitirá alternativas para a produção sem destruição ambiental, diminuição da jornada de trabalho, saúde pública e soberania alimentar com um rompimento com o capitalismo. Nesse contexto de urgência da pauta ambiental, com as ondas de calor, enchentes e escassez de água que afetam diretamente as camadas
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Realizados respectivamente em 2008 e 2009, com participação das comunidades originárias que inseriram no ordenamento jurídico conceitos que são muito caros para a luta ecossocialista como o ‘’bem viver’’ e uma outra relação com a natureza, não só como recurso natural, mas como detentora de direitos.
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populares mais fragilizadas, urgem formulações e discussões de temas transversais ao ecossocialismo, que se pretende um método de totalidade, a partir do materialismo histórico dialético. Coloca-se em evidência o território, que não só é essencial para a questão ambiental, mas também se apresenta na centralidade das disputas atuais no Brasil e no mundo: a relação do Estado com imigrantes e refugiados, na demarcação de terras indígenas e quilombolas, no avanço da fronteira agrícola sobre os biomas e no controle das áreas de milícia e do tráfico. Observa-se que os movimentos sociais que são ligados ao enraizamento territorial, como o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST), o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST) e a Articulação dos Povos Indígenas Brasileiros (APIB), conseguem manter a organicidade e até expandir sua zona de atuação frente aos ataques governamentais e investidas dos ruralistas e mercado imobiliário. Da mesma forma que os instrumentos de mobilização da classe trabalhadora que são dissociadas de um enraizamento territorial perdem força e tamanho, como é o caso dos sindicatos, das associações, partidos e entidades, que encontram uma grande dificuldade de mobilizar e se colocar como referência da classe trabalhadora. Nesse sentido, entender o que é território e como disputá-lo é peça chave para os ecossocialistas. Utilizando o método histórico dialético, serão levadas em conta as discussões já postas a respeito de território, em especial de David Harvey (HARVEY, 2014), que discorre profundamente sobre territórios, especialmente urbanos, e a importância deles para a organização da classe trabalhadora, inclusive como fator principal de pertencimento. Autores e autoras, como Michel Lowy, John Bellamy Foster, David Harvey, Angela Davis, Achille Mbembe, Florestan Fernandes e Ernest Mandel, são cruciais para conectarmos discussões acerca de poder, racismo, necropolítica, território e organização de classes por uma perspectiva ecossocialista que coloque a questão ambiental no centro da análise metodológica acerca da conjuntura para o fortalecimento da tática e estratégica ecossocialista.
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O artigo buscará interseccionar formulações já existentes acerca das novas formas de opressão colocadas nos países de capitalismo tardio após a segunda onda de financeirização do capital (MANDEL, 1985) e de extermínio dos corpos matáveis por meio de políticas de controle das camadas populares (MBEMBE, 2016), a fim de relacionar com a noção de território baseada na luta de classes (HARVEY, 2014) que possa ser usado por pesquisadoras e organizações políticas ecossocialistas. Propõe-se a ajudar a solucionar essa lacuna do pensamento ecossocialista. 2 ECOSSOCIALISMO E NECROPOLÍTICA
Para que possamos desenvolver a discussão principal deste artigo, é necessário que se compreenda o conceito de ecossocialismo. O ecossocialismo não é apenas a preocupação com o meio ambiente por parte dos socialistas, muito menos uma forma de agitação e propaganda utilizando o prefixo “eco’’ para que nos remontemos a todo o universo de outras coisas “eco’’ que temos no capitalismo. Pelo contrário, o ecossocialismo é um método de análise de totalidade, que compreende o materialismo histórico dialético como ferramenta e o socialismo a partir do acúmulo de todo o conhecimento da sociedade, no caso, de como a destruição da natureza é estrutural para o capitalismo. O ecossocialismo propõe explorar radicalmente as origens da exploração do trabalho na teoria do valor do trabalho e sua relação com a natureza. Não é apenas uma escola de pensamento, mas sim uma corrente de pensamento e ação (LOWY, 2000) que entende a necessidade de um marxismo que questione sua própria história a partir das experiências de socialismo real do século XX, principalmente no que diz respeito a sua capacidade real de ruptura com o capitalismo. Então, qual seria a diferença em relação ao próprio socialismo? A resposta mais curta seria “nenhuma’’, exatamente por haver o entendimento de que uma análise histórica dialética a partir de tudo que conseguimos acumular de como a exploração da mais-valia se deu nos últimos séculos, nos levam ao entendimento do papel central da exploração da natureza para a manutenção da produção capitalista. Porém, o termo
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“ecossocialismo’’ é uma ferramenta de distanciamento do programa e estratégia em relação aos setores “socialistas’’ que não entendem essa relação, ou que inclusive consideram a questão ambiental como uma pauta “pequeno burguesa’’. Durante toda sua obra, Lowy desenvolve a ideia de “crise civilizatória’’ e como pensar apenas em “crises econômicas’’ ou “sociais’’ na etapa do capitalismo posterior a queda do muro de Berlim é insuficiente, mas sim que é necessário uma disputa com as raízes da construção de “humanidade’’ capitalista e de suas raízes modernas. A partir dessa ideia entende-se o marxismo como um fenômeno romântico e a revolução como um “freio de emergência’’ (LOWY, 2005) na qual os socialistas buscam não uma “locomotiva da história’’ que nos puxaria cada vez mais para os modelos de “progresso’’ modernos e capitalistas e sim uma ruptura radical com a quebra da humanidade atrelada à natureza e, portanto, transformadora e não alienada. Um grande passo do ecossocialismo em seu confronto contra a ideia de “progresso’’ tão enraizada na sociedade e mesmo no próprio marxismo é a não neutralidade dos meios de produção: Os ecossocialistas deviam se inspirar nas observações feitas por Marx a respeito da Comuna de Paris: os trabalhadores não podem tomar posse do aparelho capitalista de Estado e colocá-lo a seu serviço. Eles devem demoli-lo e substituí-lo por uma forma de poder político radicalmente diferente, democrático e não estático. A mesma ideia se aplica, mutatis mutandis, ao aparelho produtivo que, longe de ser “neutro”, traz em sua estrutura a marca de um desenvolvimento que favorece a acumulação do capital e a expansão ilimitada do mercado, o que o coloca em contradição com a necessidade de proteger o meio ambiente e a saúde da população. É por isso que devemos levar a cabo uma “revolução” do aparelho produtivo no panorama de um processo de transformação radical (LOWY, 2009, p. 38).
Entende-se que a mera tomada dos meios de produção não é o suficiente, visto que continuaremos destruindo a natureza e, portanto,
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gerando desigualdades. A título de exemplo, mesmo que em um cenário socialista ideal fosse realizado, que houvesse a tomada de uma usina termoelétrica, com autogestão, e que toda a produção fosse dividida da forma mais equânime possível, em larga escala a poluição de termelétricas irá acarretar em processos de enchentes, chuvas, ondas de calor e escassez de recursos que gerarão uma desigualdade ambiental que também deve ser combatida pelos ecossocialistas2. Com as novas formas de exploração do capital como a uberização (FONTES, 2016) e a robotização, as quais permite que poucas pessoas mais “especializadas’’ façam o trabalho que antes muitas faziam, joga-se para informalidade e desemprego grandes massas de pessoas que não são mais necessárias para o capitalismo financeiro e com produção automatizada. A resposta dos Estados capitalistas para isso, principalmente nos países da periferia mundial e de capitalismo dependente (FERNANDES, 1973), é o extermínio dessas pessoas. A necropolítica (MBEMBE, 2016) é essencial para o controle de insurreições populares que poderiam vir a acontecer caso não se utilize de artifícios para exterminar e isolar essa parcela da população. Empurra-se para as favelas, os morros e para as ocupações pessoas que não terão acesso a água potável, a saneamento, a políticas públicas realidade essa que fica muito evidente na atual crise do Covid-19 na qual as mortalidades das regiões mais pobres chega a ser 10 vezes mais alta em cidades como São Paulo (FIGUEIREDO, 2020) - além de serem locais que podem ser facilmente cercados, invadidos e inclusive destruídos ao bel prazer do Estado, como observado no incêndio criminoso na ocupação 29 de Março em Curitiba no final de 2018. Não é possível analisar essas contradições sem um recorte específico de raça e gênero que caminhe em uníssono com a classe, especialmente Essa ideia é desenvolvida em outros livros que formam o pensamento de Lowy, intitulado ‘’Marxismo Libertário, em especial seu livro ‘’Walter Benjamin: aviso de incêndio’’ (LOWY, 2005) no qual ele destrincha a ideia da revolução como freio da história numa perspectiva ecossocialista.
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com a urgência de se abordar refugiados climáticos e racismo ambiental como política de morte dos Estados na contenção da classe trabalhadora e do descarte das pessoas matáveis. Isso tudo além do encarceramento em massa para a manutenção de um exército de reserva que mantenha o desemprego estrutural independentemente da circunstância, mas sem a possibilidade de levantes populares e de auto organização dessa população marginal. As favelas e os presídios também são territórios e espaços de expressão do poder (DAVIS, 2018). Ainda sobre esse tema, os povos originários e as comunidades tradicionais que bravamente defendem sua pouca terra - espaço de subsistência e muitas vezes de espiritualidade - possuem uma ligação tão intrínseca com a natureza que é possível atacar um prejudicando o outro e vice-versa, sendo que parcelas importantes das matas brasileiras se mantém de pé pela resistência desses povos, em verdadeiras áreas apartadas do capital, sem a destruição daquela parcela o capitalismo está deixando de produzir a mais valia que produziria a partir da exploração daquela terra e dos trabalhadores que de forma alienada a “transformariam’’. 3 TERRITÓRIOS REBELDES
Existem numerosas e diversas correntes de pensamento que vão propor o que é um “território’’ desde a denominação mais simples possível, de um ponto de vista “técnico’’ que vai estabelecer o que é um território a partir da noção de direito internacional e relação jurídica dos países, até outras correntes como a geografia queer que fazem uma análise completamente “política’’ e “ideológica’’ do que é um território. Ambas são importantes em seus espaços e objetivos, mas a que será usada para este artigo e para as conexões necessárias será o conceito que Harvey utiliza na sua obra, principalmente no livro “cidades rebeldes’’ (HARVEY, 2014), que em poucas palavras é a espacialização da desigualdade social. Prima face, quando um marxista como o David Harvey disserta sobre a desigualdade social, está tratando de classes sociais, ou seja, de luta de classes, de exploração e acumulação. Num primeiro momento, em um país capitalista, com uma elite agrária e colonial como é o caso do Brasil,
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todo o território é pertencente a burguesia que exerce poder sobre ele. É exatamente a partir dessa análise que a noção de território de Harvey torna-se tão interessante, pode-se perquirir sobre os territórios nos quais conseguimos nos organizar e exercer um controle, em oposição ao aparato estatal, como um assentamento. Esse para Harvey não é o problema, mas a solução. Com a formação dessa classe de emprecariados3 (HARVEY, 2018), o que conecta trabalhadores não é mais a forma como são explorados como os sindicatos que se dividem por setores produtivos - mas sim o território que ocupam e que sofre o controle estatal direto, noção que se relaciona perfeitamente com a forma de organização proposta no texto “Ecossocialismo e Planejamento Democrático’’ (LOWY, 2009) no qual é apresentada uma forma de entender a democracia socialista a partir de diversas visões locais que permite um entendimento do que pessoas em diversos ambientes necessitam. Essas reflexões levaram Harvey a defender que a tática mais acertada de organização da classe trabalhadora na atualidade é a de transformar territórios e a organização dessa classe, deixando de ser um espaço de poder do capital para ser uma ferramenta de organização subversiva ao Estado, sendo um fator de pertencimento e reconhecimento da classe trabalhadora com suas pautas regionais. As contribuições de David Harvey não colocam na centralidade da análise a questão ambiental, de gênero e raça. Apesar de não ser o objetivo é claramente insuficiente quando observamos as últimas grandes movimentações mundiais que tendem a se referenciar em uma dessas pautas. Principalmente na América Latina em mobilizações como o “nem presa nem morta’’ na Argentina, o “#EleNão’’ no Brasil e os recentes levantes no Equador, Bolívia e Chile que se destacam por serem liderados por mulheres indígenas e/ou universitárias com uma grande centralidade na questão de moradia e do meio-ambiente. 3
Conceito utilizado pelo próprio Harvey para designar a parcela da classe trabalhadora que já não possui nem o que um trabalhador possuiria no século XX, como receber um salário mínimo que garantisse seu sustento, sindicalização, tempo de descanso entre outras coisas.
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Entretanto, esse desfalque pode ser preenchido com as formulações das outras autoras e autores, que fortalecem o método e permitem aproximar essas reflexões da realidade. A necropolítica se instaura no Brasil, mas pouco se fala em como o aumento de mortes no campo e nas periferias se correlacionam com o enraizamento territorial das milícias, da igreja evangélica e dos grupos armados ruralistas. Utilizando o ecossocialismo como base metodológica e as noções de Harvey acerca da centralidade da disputa por território, podemos interseccionar as ideias propondo uma disputa por espaço de exercício de poder a partir da exploração da natureza e dos trabalhadores, sendo essa a forma principal de dominação e retirada da mais valia no capitalismo. Isso permite uma escalada de importância para as questões ambientais das cidades, campos e florestas, visto que esses espaços como territórios de exercício de poder, a partir de lógicas transformadoras e de ações organizadas contra hegemônicas, podem ser a melhor forma de organização desde que propondo modelos e lutas que se oponham a totalidade do “processo capitalista’’ Uma ocupação territorial, seja urbana, rural ou nos biomas, que não rompa com as formas de relação entre humanos e natureza, que mantenha as mesmas débeis formas de democracias liberais e sem projetos de totalidade que visem a substituição do sistema econômico, nada mais significa do que a mudança de governança do território, que não consegue projetar-se como alternativa sistêmica ao capitalismo, de modo que faz parte da mesma “crise civilizatória’’ que, em teoria, almeja subverter. 4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Observa-se que, ao se somar as produções de diversas autoras e autores do marxismo contemporâneo de forma dialética, utilizando o próprio método marxista, é possível criar grandes redes que se completam e se tensionam possibilitando um entendimento mais completo e com referência na realidade, muito diferente da mera reprodução de dogmas e formulações que foram produzidas há décadas.
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O ecossocialismo hoje é essencial para compreender como a necropolítica é aplicada pelo Estado a fim de controlar os corpos da classe trabalhadora, exatamente pela sua estreita ligação com a destruição do meio ambiente, da escassez de recursos naturais e do controle territorial. Teorias como a de Harvey, que permitam um maior entendimento do território como ferramenta de organização e de transformação política serão essenciais para como as mobilizações populares e organizações de classe irão atuar no futuro, ainda mais em uma conjuntura pós-crise do Coronavírus. O ecossocialismo precisa se inserir no campo do Direito, uma das ferramentas principais de hegemonia cultural no controle de territórios (BOBBIO, 1999), de forma ainda mais extremada na América Latina, em que territórios como favelas e ocupações são literalmente cercadas e atacadas todos os dias pelo poder armador estatal a fim de controlar todos os aspectos da vida dessas pessoas e, em última instância, leva-las à morte. O que foi exposto no artigo não pretende ser a solução do problema, mas tão somente mostrar que existe uma relação profunda entre o controle territorial, a destruição na natureza e o aprofundamento da exploração da classe trabalhadora, relação essa que um olhar ecossocialista, nascido nas raízes de uma esquerda internacionalista e contra todas as opressões do capitalismo (LOWY, 2000), possui ferramentas metodológicas suficientes para analisar e criar sínteses que permitam uma estratégia e, a partir dela, táticas que consigam superar essas novas formas de exploração. REFERÊNCIAS ACOSTA, Alberto. O bem viver: uma oportunidade para imaginar outros mundos. São Paulo: Autonomia Literária, 2016. BOBBIO, Norberto. Ensaios sobre Gramsci e o conceito de sociedade civil. São Paulo: Paz e Terra, 1999. DAVIS, Angela. Estarão as prisões obsoletas? São Paulo: Editora Difel, 2018.
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FERNANDES, Florestan. Capitalismo dependente e classes sociais na América Latina. 3. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1981, 3.a ed. [1973]. FIGUEIREDO, Patrícia. Risco de morrer por Covid-19 em SP é até 10 vezes maior em bairros com pior condição social. G1, São Paulo, 29 abr. 2020. Disponível em: https://bityli.com/WiF8B. Acesso em: 12 ago. 2020. FONTES, Virgínia. Capitalismo em tempos de uberização: do emprego ao trabalho. Marx e Marxismo, v. 5, n. 8, p. 45 -67, 2017. FOSTER, John Bellamy. A Ecologia em Marx: materialismo e natureza. Civilização Brasileira, 2000. HARVEY, David. A loucura da razão econômica: Marx e o Capital no século XXI. Editora Boitempo, 2018. HARVEY, David. Cidades rebeldes: do direito à cidade à revolução urbana. São Paulo, 2014. LOWY, Michel. Ecossocialismo e planejamento democrático. Crítica Marxista, n.28, p. 35-50, 2009. LOWY, Michel. O que é ecossocialismo? São Paulo: Cortez Editora, 2000. LOWY, Michel. Walter benjamin: aviso de incêndio. São Paulo: Boitempo Editorial, 2005. MANDEL, Ernest. O capitalismo tardio. São Paulo: Nova Cultural, 1985. MBEMBE, Achille. Necropolítica. Arte e Ensaios, n. 32, dez. 2016. TROTSKY, Leon. Em defesa do Marxismo. São Paulo: Editora Sundermann, 2011.
O ECOCÍDIO IMINENTE NA FOZ DO RIO AMAZONAS: UM EMBATE ENTRE A INTEGRIDADE AMBIENTAL DO ECOSSISTEMA DE CORAIS AMAZÔNICOS E A INVESTIDA DE PETROLEIRAS
Matheus Antunes Riguete
RESUMO
Esta pesquisa tem como objeto a recém-descoberta de um recife de corais na foz do Rio Amazonas e os fatores de risco a essa surpreendente formação natural, a qual se dá em uma área que até então era considerada inóspita pela comunidade científica. Busca-se, a partir deste estudo, apurar a importância ecológica do referido bioma, bem como as suas implicações na vida humana e a proteção jurídica que nele incide, avaliando a possibilidade de se configurar um ecocídio caso haja destruição deste meio. Assim, a problemática se estabelece justamente nesse embate entre a exploração de petróleo na região e a proteção do ecossistema local. O principal elemento que guiará a reflexão acerca do tema é a recente interpretação dada pelo Tribunal Penal Internacional, em 2016, no tocante a priorização dos julgamentos dos crimes contra a paz que envolvam destruição ambiental, demonstrando os esforços supranacionais no que tange a integridade ecológica. Para proceder à investigação proposta foi utilizado o método de revisão bibliográfica de obras e estudos que abarcam a temática do Direito Ambiental, bem como da biologia e da ecologia. Por fim, o estudo conclui que a proteção dos corais da Amazônia encontra respaldo não só na Constituição Federal de 1988, mas também em legislações internacionais, sendo a atuação de petroleiras na foz do Rio Amazonas uma clara ameaça à integridade ambiental - elemento que se dá como uma expansão do direito à vida, saúde e dignidade humana
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- bem como um atentado ao equilíbrio ecológico, que detém relevância regional e global. Palavras-chave: Ecocídio. Corais da Amazônia. Direito Ambiental. Ecologia. Impactos Ambientais de Petrolíferas. 1 INTRODUÇÃO
Em um primeiro momento, esta pesquisa trata acerca da principal ameaça direcionada à integridade das formações biológicas objeto deste estudo, os recifes de coral amazônicos, tendo em vista que a ameaça petroleira é aquela que mais claramente causa preocupação e alerta dos ambientalistas e da comunidade em geral, ameaçando a surpreendente biodiversidade local, a qual, ultrapassando 9 mil quilômetros quadrados de extensão, abriga mais de uma centena de espécies, muitas delas nunca estudadas pelas e pelos cientistas (HOMERO, 2016). Para fazer tal análise, reconhece-se, desde logo, que a perfuração de poços de petróleo na região significaria a incontestável e indubitável liquidação de grande parte da vida biológica existente nas áreas em que se pretende extrair combustíveis fósseis caso as explorações na foz do Rio Amazonas sejam permitidas. O problema teórico dá-se justamente nesse ponto, pois discutir-se-á a contraposição de interesses entre o grande negócio petrolífero e os interesses da comunidade científica, dos ambientalistas, dos defensores da causa pela proteção das formações recifais e da população humana em escala local e global. Assim sendo, o elemento central que norteia o debate e a proposição de uma solução, é a esfera jurídica que tutela o meio ambiente, partindo da Teoria Constitucional e da Filosofia Constitucional, não ignorando as disposições infraconstitucionais e internacionais que legislam sobre a temática, com enfoque na atuação do Tribunal Penal Internacional. Salienta-se a recente determinação do TPI no sentido de determinar que os processos que julgam crimes contra a paz e venham a ser cometidos com uso de meios que causem destruição ambiental sejam apurados com prioridade.
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Em decorrência do reconhecimento do direito ambiental como um direito de órbita constitucional e tutelado pela Carta Magna de 1988, far-se-á uma abordagem acerca da proteção ambiental e o arcabouço teórico que a sustenta. Desse modo, o direito fundamental ao meio ambiente, erigido como direito fundamental de terceira geração, será examinado e descrito por meio de sua eficácia, buscando averiguar as políticas adotadas para concretização de tal direito, bem como a plenitude e preservação institucional dos órgãos responsáveis pela tutela ambiental (como o Ibama, Secretarias de Meio de Ambiente e outros) e a atuação do Ministério Público Federal e Estadual (titular de ações civis públicas para proteção de direitos difusos e transindividuais). Há, portanto, uma análise acerca da contradição entre os interesses de grandes empresas supranacionais petrolíferas em explorar os recursos minerais da região e a proteção à integridade do ecossistema em questão, contrapondo os dispositivos constitucionais da livre iniciativa econômica (art. 1701) e da garantia a um meio ambiente ecologicamente equilibrado (art. 2252). Nessa perspectiva, admite-se a visão antropocêntrica que incide sobre a tutela jurídica ambiental e, dessa forma, esse estudo elabora uma análise acerca da importância socioeconômica do recife de corais, contribuindo com uma apuração acerca dos impactos que a destruição do referido ecossistema causaria no tocante a manutenção do estilo de vida e garantia da dignidade humana das populações amapaense, paraense e maranhense, as quais representam o grupo diretamente ameaçado pelo projeto, contudo, levantar-se-ão perspectivas que contemplam o impacto global do empreendimento petroleiro na Foz do Rio Amazonas. Haveria, portanto, o cometimento de crime ambiental e violação de prerrogativas constitucionais e internacionais ratificadas pelo Brasil? Constituição da República Federativa do Brasil. 1988: Art. 170. É assegurado a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei.
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Constituição da República Federativa do Brasil. 1988: Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao poder público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.
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Para uma acepção apurada e comprometida com o Direito, a análise será feita de forma a compreender os já mencionados dispositivos constitucionais que incidem sobre a tutela ambiental, bem como a legislação infraconstitucional que garante que obras e empreendimentos de elevada magnitude passem por um rigoroso processo de licenciamento, que obriga os idealizadores de tais projetos a elaborar relatórios de impacto ambiental, bem como políticas de redução de riscos e impactos ao meio ambiente. 2 O ECOSSISTEMA RECIFAL AMAZÔNICO: DESCOBERTA E ESTUDOS
A Foz do Rio Amazonas, o maior do rio do mundo (INPE, 2008), é responsável por formar o delta mais caudaloso do planeta Terra, ou seja, aquele que mais deposita água e sedimentos por segundo em um oceano. Dessa forma, as águas da região são turvas e densas, o que impossibilita a fotossíntese local pois os sedimentos barrosos e minerais carregados pelo Rio criam uma camada profunda que impede a passagem de luz. Nesse contexto, até 1977 acreditava-se que a vida marinha na região era inexistente, pois a base da cadeia alimentar oceânica é, quase majoritariamente, fotossintética e, sendo assim, não haveria microrganismos como o fitoplâncton (Chacolnario uicelularius), capazes de alimentar os demais níveis tróficos mais desenvolvidos, como animais invertebrados e peixes. Contudo, no 3° Simpósio Internacional de Recifes de Corais, sediado em Miami em 1977, dois pesquisadores americanos apresentaram um resumo que defendeu a possibilidade de existir peixes, arraias, algas e esponjas na Foz do Rio Amazonas (COLLETTE; RUTZLER, 1977). Mais tarde, em 1999, um navio americano coletou esponjas no fundo do Rio e a efervescência acerca da possibilidade de se encontrar vida marinha foi energicamente elevada quando peixes de águas caribenhas foram encontrados em pontos isolados da Foz. A descoberta em si, datada de 2012, foi possibilitada por meio de uma expedição de pesquisadores a bordo do navio norte americano RV Atlantis, os quais publicaram o artigo An extensive reef system at the Amazon river mouth na revista Science Ad-
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vances e publicaram a descoberta, bem como pesquisas e análises sobre a incrível formação composta basicamente por esponjas e algas calcárias (MOURA et al., 2016). Fabiano Thompson3, professor do Instituto de Biologia da UFRJ e um dos pesquisadores responsáveis pelos estudos, explica que a vida marinha no local foi viabilizada pela presença de determinadas bactérias autotróficas que produzem matéria orgânica por intermédio do processo de quimiossíntese, que utiliza minerais lançados no oceano pelas águas do Amazonas, sendo assim, a fotossíntese não se fez necessária para que houvesse o desenvolvimento de uma contundente formação recifal em uma área antes considerada adversa e inóspita. O Greenpeace, por intermédio de estudos guiados por pesquisadores de 17 nacionalidades a bordo do navio científico Esperanza (HERRERO, 2017), comprovou que a área recifal se estende por mais de 9 mil quilômetros quadrados, correspondendo a uma área ainda maior que a região metropolitana de São Paulo. Hoje, tem-se conhecimento da existência de pelo menos 130 espécies, sendo que 29 nunca foram estudadas pela ciência (incluindo bactérias que podem ser usadas para fins medicinais). A presença de corais e algas rodófitas sustenta até 33% da vida marinha, uma destruição dessas formações ensejaria diretamente em uma aniquilação massiva do ecossistema em questão, fato este que atingiria toda a população da costa litorânea (a qual vive, fundamentalmente, da pesca e do turismo), tendo em vista a supressão da fauna e flora local por meio do comprometimento da cadeia alimentar (FLORESTI, 2018). 3 PROTEÇÃO JURÍDICA CIRCUNSCRITA AO RECIFE: DIREITO A UM MEIO AMBIENTE ECOLOGICAMENTE EQUILIBRADO
Partindo de uma análise embasada pela Teoria Constitucional do Direito Ambiental, o artigo 225 da Constituição Federal é aquele que
O referido autor faz parte da equipe que elaborou os estudos em “An extensive reef system at the Amazon river mouth” (MOURA et al., 2016).
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enuncia e aborda primariamente a proteção ambiental como projeto dos constituintes de 88, o texto enuncia: Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao poder público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações (BRASIL, 1988).
Nesse sentido, o dispositivo constitucional consagra uma série de fatores e elementos inerentes à proteção ambiental e ao direito a um meio ambiente ecologicamente equilibrado, o primeiro que deve ser abordado é a transindividualidade, ou seja, o direito anteriormente referenciado não tem um objeto privado, particular, mas sim um objeto comum, pertencente à coletividade. Significa dizer que a conotação desse preceito não é individual, é transcendental em relação ao indivíduo compreendido em sua particularidade. Rodolfo de Camargo Mancuso, ensina que o dispositivo constitucional acima referido simboliza “interesses que depassam a esfera de atuação dos indivíduos isoladamente considerados, para surpreendê-los em sua dimensão coletiva” (MANCUSO, 2007, p. 43). Essa perspectiva é abarcada pela concepção de direitos difusos, ou seja, essas demandas possuem um titular pulverizado em cada indivíduo que compõe a coletividade, assim, a apropriação característica da visão civilista liberal é, de certa forma, superada pela Constituição Federal no que tange a positivação do direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado. Nesse sentido, é válido ressaltar esforços doutrinários como os de Júlio César Garcia, os quais investigam a definição de bens públicos para além da tradicional dicotomia entre as esferas público e privada, ultrapassa essa distinção e admite uma nova categoria de bens públicos, dotados de titularidade coletiva que se vincula com as privacidade de cada cidadão e cidadã quando compreendidos em sociedade Os referidos bens ambientais, como lagos, rios e o mar, são aqueles que não estão à mercê de limitação por parte de um proprietário, o que significa dizer que nem mesmo à União cabe titularizar esses novos objetos jurídicos, apenas pode-se gerir esses recursos, mas nunca sub-
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traí-los integralmente da pertença metaindividual coletiva (FIORILLO, 2000). Toda a estrutura da norma constitucional que tutela o direito a um meio ambiente ecologicamente equilibrado é definida e delimitada por um fator antropológico, ou seja, a destinação da norma é à própria humanidade, nos termos de Celso Antônio Pacheco Fiorillo (2000, p. 16): “o direito ambiental possui uma necessária visão antropocêntrica, porquanto o único animal racional é o homem, cabendo a este a preservação das espécies, incluindo a sua própria”. O valor último e finalístico das disposições da Carta Magna é, portanto, a garantia de uma sadia qualidade de vida e, sendo assim, compreende-se que a medição qualitativa do padrão de vida da humanidade perpassa o acesso a um meio ambiente preservado e harmônico. Há, sendo assim, uma evidente relação da proteção ambiental constitucional com o princípio da Dignidade da Pessoa Humana, pois a integridade do meio ambiente passa a compor a seara dos chamados fixadores do piso vital mínimo (SILVA, 2003). Assim sendo, surge um novo e importante debate, a proteção jurídica do meio ambiente é limitada ou não pela soberania nacional? A resposta pode ser obtida a partir da compreensão e apuração acerca de quem são os atingidos pela destruição de ecossistemas ou formações bióticas, a dignidade de quem seria afetada pela destruição ambiental? Nesse sentido, a acepção que se impõe é que toda humanidade tem seu bem-estar e garantia de existência digna e saudável comprometida quando se atenta contra os chamados bens ambientais, a magnitude com a qual certos grupos sentem os impactos pode diferir abruptamente. Contudo, os efeitos se expandem por todo o globo e por todo indivíduo que vive e existe nesse planeta, que é preenchido por diversos ecossistemas que não se isolam, mas que estão em constante e contundente interação entre si. Essa noção de que a proteção do meio ambiente diz respeito a humanidade em geral e não se limita à soberania estatal, encontra respaldo no entendimento de que a partir da Segunda Guerra Mundial o ser humano foi colocado, de maneira, inédita, num dos pilares até então reservados aos Estados, deu-se início a um processo de proteção internacional dos direitos humanos contra o próprio Estado (MAZZUOLI, 2008)
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Há, entretanto, uma compreensão adotada por parte da doutrina ambientalista, refletida na obra de Celso Fiorillo (2000), que refuta tal análise e defende que quando a Constituição exaure a tutela jurídica despendida ao meio ambiente, essa se limita a expandir a titularidade ao povo, ou seja, apenas aos brasileiros e estrangeiros residentes no País. Porém, essa acepção ignora o princípio da dignidade da pessoa humana, elencado pelo Artigo 1°, III, princípio este destinado a todos, pela própria condição humana. Essa interpretação, que valorizaria a conotação cultural de povo e do ordenamento jurídico destinado e criado a esse seio social específico, comete um erro veemente ao não vincular a ideia de dignidade da pessoa humana à proteção ambiental, ao fazê-lo, afasta a premissa de que equilíbrio ecológico é causa ideal e imprescindível para a sadia e digna sobrevivência humana. Logo, salienta-se que não se pode desvincular a ideia de proteção local do meio ambiente brasileiro da perspectiva de repercussão danosa global. Compreende-se assim o impacto planetário da destruição ambiental e acolhe-se, portanto, a proteção de interesses difusos em uma órbita comunitária a nível mundial e supranacional. 4 IMPORTÂNCIA SOCIOECONÔMICA REGIONAL DO RECIFE
A partir do momento que entendemos a previsão desses direitos pela Constituição como um triunfo da noção de que o meio ambiente é um bem jurídico a ser protegido e garantido a toda a coletividade, impõe-se pensar sobre quais implicações esses bens efetivamente estabelecem com a humanidade, tendo em vista que o Direito é um conjunto de preceitos destinados à nós, humanos, como já bem explicado por meio da visão holística e antropocentrista que orienta sobre a Ciência Jurídica Ambiental. O primeiro fato capaz de realçar a importância dessas formações biológicas é a quantidade de espécies que vivem e se reproduzem nesse ecossistema, o Instituto do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis estima que uma a cada quatro espécies marinhas encontra sua
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sobrevivência em recifes de coral, incluindo 65% das espécies de peixes (MINISTÉRIO DO MEIO AMBIENTE, 2009). Nessa perspectiva, a importância social e econômica desses ecossistemas é clara no que se refere à manutenção da atividade pesqueira na costa dos estados do Amapá, Pará e Maranhão, que compõe a plataforma continental norte do Brasil (BRITO; AVELAR, 2017). A produção pesqueira do Litoral Norte (estados do Amapá e Pará) representa 20% do volume total de pescado de origem marinha do Brasil e 10% do valor total de produtos exportados dessa origem, ultrapassando US$ 40 milhões/ano (ISAAC-NAHUM, 2006). No estado do Amapá, 8 municípios encontram na pesca sua principal atividade econômica, sendo eles: Oiapoque, Calçoene, Amapá, Cutias, Macapá, Itaubai, Santana e Mazagão, sendo que a principal modalidade de pesca na região é a artesanal e de subsistência, as quais se estabelecem como fonte de renda e sustento de diversas famílias da região, segundo dados de 2007 do Conselho de Articulações dos Pescadores do Amapá - Capa, havia 8594 pescadores e pescadoras no Estado do Amapá (CAPA, 2007), representando uma classe social de elevada magnitude quantitativa e de expressiva evidência econômica para a composição do PIB estadual do Amapá e municipal da maioria dos municípios do Estado. Conclui-se, desse modo, que há uma acentuada relação de dependência entre grande parte da população amapaense e recursos ambientais da região, como o mar, os rios e a fauna. Tal relação implica em uma necessidade veemente de se proteger esses bens ambientais, pois são eles os garantidores da subsistência e existência de uma população que só encontra no meio ambiente ecologicamente equilibrado seus mecanismos de sobrevivência. A dignidade humana desse povo é resguardada e refletida na própria garantia de acesso a bens ambientais minimamente preservados. O sustento, o alimento e a sobrevivência dessa população seriam diretamente afetados se o recife de coral amazônico viesse a ser destruído pela atividade petroleira, seja na própria instalação das plataformas de extração de óleo, seja na maior circulação de navios que seria propiciada pela exploração de petróleo na região, ou ainda caso um acidente viesse a ocorrer.
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Os riscos são elevados. A destruição ambiental é certa e determinada em alguma medida, mas é potencialmente mais contundente quando se analisam as possibilidades de fracasso dos empreendimentos petrolíferos com a ocorrência de acidentes, o que não representa uma possibilidade remota, mas sim uma possível e provável realidade. Thiago Almeida, pesquisador do Greenpeace, argumentou em audiência pública realizada no Senado Federal4 que os repetidos insucessos nas tentativas de exploração evidenciam as dificuldades e falta de garantias no que tange a proteção ambiental (SENADO FEDERAL, 2017). Segundo Almeida, dados estatísticos da Agência Nacional do Petróleo (ANP) mostram que desde a década de 1960 houve 95 tentativas de perfuração e nenhuma obteve sucesso, sendo que 27 foram abandonadas devido a acidentes mecânicos (a última tentativa frustrada é datada de 2011 e foi realizada pela Petrobras). As dificuldades para exploração na região podem ser explicadas por alguns fatores de risco como a instabilidade do solo oceânico e a presença de fortes correntes marítimas na região. Outro fato que aponta para possibilidade de acidentes acontecerem mesmo após a instalação das plataformas de exploração é o histórico de desastres que já foram evidenciados ao redor do mundo, acidentes como o que ocorreu no Golfo do México, foram responsáveis por causar danos ambientais, econômicos e na saúde da população dos estados do Sul norte-americano. O CEO da petroleira francesa TOTAL, uma das empresas que arrematou lotes para exploração de petróleo na foz do Rio Amazonas, argumentou, na mesma audiência pública realizada no Senado Federal em 2017, que, mesmo com o acidente no Golfo do México, esse local ainda é o maior polo pesqueiro norte-americano. Contudo, as circunstâncias são outras: o Golfo do México é caracterizado por uma pesca industrial com emprego de tecnologia de ponta, possibilitando que as grandes indústrias pesqueiras alcancem áreas não afetadas pelo acidente, expandido as fronteiras de atuação, o que não seria possível no litoral norte brasileiro. Os pescadores artesanais sucumbiriam diante do 4
A mencionada Audiência Pública foi realizada pela Comissão do Meio Ambiente do Senado Federal em 06/06/2017, proposta pelo Senador João Capiberibe (PSB-AP) para discutir a exploração de petróleo na Foz do Rio Amazonas.
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derramamento e a área seria explorada pela grande indústria pesqueira, incluindo navios de outras bandeiras, facilitando a evasão de divisas. Outro fator preocupante no tocante à possibilidade de acidente é a contaminação dos peixes e frutos do mar. O óleo se acumula ao longo da cadeia alimentar e, por isso, causa complicações e problemas de saúde nos consumidores ao redor de todo o mundo, como se evidenciou a partir de 2010 com o acidente causado pela petroleira BP no Golfo do México5. O embate principal se dá, portanto, entre o risco de uma população ter seu modo de vida totalmente alterado e perecer nas margens de um mar contaminado e uma fauna biologicamente deformada e a possibilidade de se criar uma gigante área de abastecimento da indústria petroleira. Perpassando essa questão, o princípio da precaução ambiental surge como um importante marco para resolução desse conflito. Já em 1992, quando foi realizada a ECO-92 (ONU, 1992, n.p.), também conhecida como Cúpula da Terra, elencou-se no princípio 15 da Declaração do Rio sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento o seguinte enunciado: Com o fim de proteger o meio ambiente, o princípio da precaução deverá ser amplamente observado pelos Estados, de acordo com suas capacidades. Quando houver ameaça de danos graves ou irreversíveis, a ausência de certeza científica absoluta não será utilizada como razão para o adiamento de medidas economicamente viáveis para prevenir a degradação ambiental.
Nesse sentido, cabe também ressaltar o que ensina Machado: “A precaução age no presente para não se ter que chorar e lastimar o futuro. A precaução não só deve estar presente para impedir o prejuízo ambiental, mesmo icerto, que possa resultar das ações ou 5
Alguns estudos comprovam anomalias na cadeia alimentar marítima do Golfo do México, a pesquisadora na Universidade de Stanford, Bárbara Block, uma das autoras da publicação “Crude Oil Impairs Cardiac Excitation-Contraction Coupling in Fish”, datado de 2014, registrou anomalias encefálicas e cardíacas em atuns (BLOCK, 2014).
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omissões humanas, como deve atuar para a prevenção oportuna desse prejuízo. Evita-se o dano ambiental através da prevenção no tempo certo.” (MACHADO, 2013, p. 31).
A precaução significa, portanto, evitar que algo gravoso aconteça, o princípio cumpre o papel de estabelecer que determinados riscos não podem ser aceitos, pois, caso venham a ser concretizados, seriam responsáveis por sucumbir uma ordem natural protegida, violando preceitos triunfados como fundamentais e causando danos propulsores de enorme destruição e comprometimento à integridade ambiental de ecossistemas. 5 ECOCÍDIO: PERSPECTIVA FILOSÓFICA E JURÍDICA
O teórico ambientalista Patrick Hossay foi o responsável por consagrar o uso do termo “ecocídio” como sendo uma destruição de grande magnitude do meio ambiente, agredindo florestas e ecossistemas diversos (HOSSAY, 2006). Hossay afirma que o cometimento de uma postura ecocida foi primeiramente evidenciado a partir da 1ª Revolução Industrial, quando se deu início a uma veemente jornada em busca de matérias-primas para abastecer a produção capitalista. Nesse sentido, a violência cometida em larga escala e de forma profunda contra o patrimônio ambiental é a definição de ecocídio. O Estatuto de Roma, a partir da publicação do Decreto n.º 4.388, de 25 de Setembro de 2002, passou a vigorar na ordem jurídica brasileira e a jurisdição do Tribunal Penal Internacional (TPI) foi recepcionada, submetendo todas e todos os cidadãos a investigações perante a Corte em circunstâncias nas quais o Estado brasileiro falhar em apurar condutas que possam configurar uma das hipóteses tipificadas pelo TPI. Salienta-se que o Tribunal Penal Internacional foi criado para julgar os chamados crimes contra a paz, sendo eles: crimes de genocídio, crimes contra a humanidade, crimes de guerra e crimes de agressão. Dessa forma, observa-se que o crime de ecocídio não foi tipificado pelo Tribunal, apesar de esforços de algumas correntes ambientalistas que buscam criar um 5°
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tipo penal ou mesmo de outras correntes doutrinárias que defendem a incorporação de ecocídio como crime contra a humanidade. A temática passou a ocupar o centro das discussões contemporâneas na seara ambiental a partir da publicação do Policy Paper on Case Selection, em setembro de 2016, documento este elaborado pela Procuradoria do Tribunal Penal Internacional (INTERNATIONAL CRIMINAL COURT, 2016), órgão que detém poder quase absoluto para instaurar processos investigativos do Tribunal sobre casos que lhes sejam apresentados por Estados-membro ou pelo Conselho de Segurança de Segurança da Organização das Nações Unidas. A publicação expressa as principais diretrizes a serem adotadas pela Promotoria e, nesse sentido, guiam a atuação do Tribunal. Sylvia Steiner explica o que segue: Sobre a maneira de agir, serão levados em conta os meios utilizados para a prática delitiva, de que maneira foram praticados de maneira sistemática ou resultaram de um plano ou uma política organizada, se resultou de abuso de poder, se há elementos demonstrando uma crueldade anormal, inclusive em relação à vulnerabilidade das vítimas, quaisquer motivo que envolvam discriminação, a comissão e estupros ou outras violências sexuais, e – e aqui chamamos a atenção do leitor – a destruição do meio ambiente ou de objetos protegidos (STEINER, 2019, p. 2).
Assim, destaca-se que o conceito de ecocídio não foi tipificado por aquele Tribunal, mas foi interpretado como medição de uma escala prioritária para julgamentos dos crimes contra a paz. Ou seja, crimes de genocídio, crimes contra a humanidade, crimes de agressão e crimes de guerra serão investigados prioritariamente quando em suas respectivas “maneiras de agir” englobarem o dano em larga ao meio ambiente. Relacionando a atuação de petroleiras que almejam perfurar poços de petróleo na Foz do Rio Amazonas com a conceituação de ecocídio têm-se duas perspectivas. A primeira diz respeito ao entendimento teórico de que a exploração de óleo na região comprometeria a existência do recife de coral amazônico, afetando diretamente a sobrevivência de um importante ecossistema, pouco estudado pela Academia e com elevado
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potencial biótico, responsável por manter o equilíbrio ecológico da região e dos oceanos de todo o mundo, bem como garantir a sobrevivência de milhares de famílias da costa litorânea norte brasileira e, assim sendo, haveria um claro cometimento de uma postura ecocida, nos termos estabelecidos por Patrick Hossay. A segunda perspectiva concerne à configuração de um ecocídio apenas quando as perfurações de poços de petróleo virem a atingir a população humana que habita a costa litorânea, podendo a conduta ser levada à jurisdição do Tribunal Penal Internacional para apreciar a ocorrência e a consequente punição aos sócios administradores e gestores das petroleiras por crime contra a humanidade, podendo a conduta enquadrar-se como um ataque a uma população civil ou mesmo deportação ou transferência à força de uma população, conforme conceitua o 6 Artigo 7° do Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional. 6 LEGISLAÇÃO PENAL E PROCESSUAL AMBIENTAL BRASILEIRAS: PRINCIPAIS FACETAS E POSSIBILIDADES DE INCIDÊNCIA NO CASO DOS CORAIS
O dispositivo Constitucional, como já analisado nas seções anteriores, foi o responsável por consolidar a noção de que o meio ambiente ecologicamente equilibrado é uma extensão do direito à vida e, sendo assim, um direito fundamental. Nesse mesmo sentido, infere-se que a violação de um direito expresso constitucionalmente caracteriza um fato antijurídico e ilícito, é nessa perspectiva que foi editada a Lei n.° 9605/1998, conhecida como Lei de Crimes Ambientais, a qual “dispõe sobre as sanções penais e administrativas derivadas de condutas e atividades lesivas ao meio ambiente”. A referida lei, já em suas disposições gerais, determina que pessoas jurídicas devem ser responsabilizadas pelos atos criminosos que atentem contra a qualidade do meio ambiente, as sanções que incidem sobre as empresas que cometem crimes ambientais não podem ser restritivas de liberdade, sendo assim o legislador orbitou entre definir penas restritivas de direitos (como a suspensão das atividades da pessoa 6
Artigo 7º, 1, d) Deportação ou transferência forçada de uma população;
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jurídica), multas ou prestação de serviços à comunidade, incluindo a recuperação de áreas degradadas. Essa regulamentação punitiva por lesão a um bem ambiental pode ser concretizada por intermédio da proposição de ação penal pública (Artigo 129, inciso I, da Constituição Federal. Fundamenta a propositura de Ação Penal Pública), a qual pode ser proposta pelo Ministério Público. O que se extrai da abordagem supracitada é que a atuação das pessoas jurídicas, sendo as petroleiras as maiores participantes das atividades de extração de óleo na foz do Rio Amazonas, pode motivar a punição e responsabilização - segundo o ordenamento jurídico infraconstitucional brasileiro - dos agentes administradores e representantes legais. Contudo, a penalização poderia garantir a dignidade humana à comunidade atingida pelo empreendimento? A resposta é nítida e objetiva: não. A reparação total dos possíveis danos causados pela instalação ou por potenciais acidentes seria impossível e custosa, uma formação biótica de milhares de anos, como é o recife de corais, não pode ser artificialmente reconstruída uma vez atingida. Dessa forma, que outros dispositivos legais podem contribuir para que o meio ambiente seja preservado, bem como as vidas das pessoas que dependem do equilíbrio ecológico do ecossistema em questão? O primeiro instrumento a que se faz referência é a propositura de Ação Civil Pública7, a qual pode ser compreendida como o mecanismo garantidor de direitos transindividuais e difusos, pertencentes à toda a coletividade, como o direito a um meio ambiente ecologicamente equilibrado. Faz-se imperioso ressaltar que este instrumento jurídico é dotado de um triplo caráter legal: protetivo, preventivo e reparatório, pois possibilita a regulamentação de uma obrigação de fazer, uma obrigação de não fazer ou mesmo a condenação em dinheiro, cabendo ao juiz fixar multa diária para que a obrigação seja cumprida, seja obrigação de fazer ou de não fazer. Salienta-se, ademais, que não só o Ministério Público pode propor uma Ação Civil Pública, mas essa capacidade postulatória detém também Regulamentada pela Lei n.° 7347/1985.
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pertence também a União, Estados e Municípios, autarquias, empresas públicas, fundações, sociedades de economia mista e associações que tenham por finalidade a proteção ambiental (MIRRA, 2002), podendo os titulares intervirem nas ações propostas e legitimadas pelo outro. Analisando o caso das explorações de óleo a serem iniciadas na Foz do Rio Amazonas, observa-se que a instauração de Inquérito Civil, primeira fase da propositura de Ação Civil Pública, é fundamental para a coleta de provas e estudos periciais que demonstram o perigo e os riscos apresentados pelo projeto de perfuração de poços de petróleo. Para que haja garantia de efetividade e maior proteção ao bem ambiental de direito material, o legislador possibilitou que a Ação Civil Pública possa ser proposta fazendo uso dos instrumentos da antecipação de tutela e pedidos liminares, pois “já se percebeu ser o tempo um inimigo voraz e implacável do processo, contra o qual se deve lutar de modo obstinado” (TUCCI, 1997, p. 185), atendendo inclusive aos dispositivos internacionais ratificados pelo Estado Brasileiro, como o Pacto de San José da Costa Rica, o qual prevê o julgamento do processo em prazo razoável como princípio fundamental do trâmite dos litígios (GOMES; MAZZUOLI, 2004). A Ação Civil Pública pode ser um instrumento eficaz e pertinente no que tange a proteção ambiental, alguns autores afirmam ainda que outros instrumentos processuais estão à disposição do Ministério Público e da coletividade para garantia das prerrogativas constitucionais, como o Mandado de Segurança Coletivo, a Ação Popular e o Mandado de Injunção (FIORILLO, 2017). Contudo, a conclusão não agrada. Todos os mecanismos abordados são incapazes de evitar que o dano produzido pelas petroleiras na Foz do Rio Amazonas não ocorra uma vez que as explorações forem licenciadas. Esses instrumentos, como a Ação Civil Pública, contribuem para que um dano ambiental presente seja estabilizado ou reparado, evitando assim possíveis degradações futuras a partir de um cenário problemático atual. Não há como instaurar um Inquérito Civil e coletar provas dos danos ambientais se a atividade petroleira ainda não está em funcionamento, sendo assim esses mecanismos não são capazes de evitar o possível
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ecocídio causado pela perfuração de poços de petróleo na Foz do maior rio do mundo. Conclui-se, portanto, que a atuação jurídica deve se dar durante a fase de licenciamento do empreendimento. 7 PROCESSO DE LICENCIAMENTO AMBIENTAL: PANORAMA GERAL E ESTRATÉGIAS DE USO PARA EVITAR CORRUPÇÃO E NEGLIGÊNCIA NO PROCESSO DE CONCESSÃO DE LICENÇA PARA EXPLORAÇÃO DE PETRÓLEO
Para que se dê início ao processo de instalação das plataformas de petróleo e consequente exploração de hidrocarbonetos, os projetos das petroleiras devem passar pelo estágio do licenciamento ambiental. Nas palavras de Flávia da Costa Limmer: “O licenciamento e o estudo prévio de impacto ambiental possuem suma importância para a aplicação dos princípios da prevenção e da precaução, pois objetivam medir a potencialidade de dano das atividades e tecnologias” (LIMMER, 2018, p. 127), sendo assim este se dá como o momento oportuno para se fazer levantamentos acerca das potenciais violações e atentados contra bens ambientais constitucionalmente tutelados. A própria Constituição Federal, em seu Artigo 225, §1, IV, enuncia que compete ao Poder Público “exigir, na forma da lei, para instalação de obra ou atividade potencialmente causadora de significativa degradação do meio ambiente, estudo prévio de impacto ambiental, a que se dará publicidade”. O licenciamento ambiental visa estabelecer a viabilidade do projeto de obra ou empreendimento a ser examinado, é uma incumbência da Administração Pública que pode conceder a licença nos termos do projeto, pode impor modificações, solicitar novos estudos e relatórios, requerer a previsão de mecanismos de atenuação do dano ambiental a ser causado ou pode ainda negar a licença à atividade degradante. De acordo com o disposto pelo Artigo 23 da Constituição Federal, que determina a competência concorrente entre a União, Estados e Municípios, a todos esses entes federados cabe zelar pelos ecossistemas e pela integridade do patrimônio ambiental, assim sendo, o licenciamento pode ser conferido, dependendo da magnitude do projeto, pelo Ibama (ente
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nacional) ou pelos órgãos ambientais de cada Estado e municípios. Faz-se necessário lembrar que, quando o empreendimento for potencialmente causador de alterações significativas na vida da população, deve o órgão ambiental fiscalizador do processo de licenciamento convocar Audiência Pública, garantindo a participação da coletividade nas discussões que implicam em destruição de bens que lhes pertencem, há ainda segundo a resolução 09/1987 do Conama (Conselho Nacional do Meio Ambiente), a possibilidade de o Ministério Público convocar Audiência Pública, ou ainda a própria população por meio da assinatura de abaixo-assinado. Cabe ressaltar, contudo, que o Ministério Público Federal e Estadual pode, com base na garantia de interesses difusos, atuar para garantir que o processo de licenciamento seja uma barreira aos projetos que buscam degradar o meio ambiente sob o pretexto de desenvolvimento econômico, progresso e melhoria na qualidade de vida. Nas célebres palavras de Édis Milaré: A defesa do meio ambiente, hoje imposição de ordem constitucional, é tarefa nobilitante do Parquet. Com efeito, o Ministério Público, nos termos da definição contida no art. 127 da Lei Básica, promulgada em 05.10.1988, é considerado “instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis”. Esta definição, que o delineia nitidamente como instituição voltada à representação judicial dos interesses sociais, veio consagrar uma vocação que levará o legislador, já em 1981, a inserir dentre as suas atribuições na esfera civil a defesa do meio ambiente. Com efeito, a Lei 6.9381/1981 muda o quadro da política do meio ambiente ao instituir duas grandes inovações: a responsabilidade do poluidor, independentemente da existência de culpa, e a atribuição ao Ministério Público da faculdade de propor ações judiciais ele natureza civil com o objetivo de reparar ou evitar danos ao ambiente. (MILARÉ, 2015, p. 2).
Nessa perspectiva, cabe ao Ministério Público, como protagonista da missão de garantir a higidez ambiental, atuar extrajudicialmente
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e judicialmente para que projetos e empreendimentos de alto potencial poluidor e destrutivo não sejam licenciados. Uma das órbitas nas quais o Ministério Público tem atuado e que, de certa forma, se encaixa na problemática do ecossistema recifal amazônico, é o pleito frente ao Ibama e a forças políticas parlamentares no sentido de se evitar a municipalização dos licenciamentos. Salienta-se, no que tange esse óbice à idoneidade dos processos de licenciação, que a corrupção impera mais facilmente em âmbito municipal, pois a quantidade de entes envolvidos é menor, o lobby atua de forma mais intensa e potente e, sendo assim, empreendimentos que não atendem ao interesse público e atentam contra bens ambientais acabam sendo licenciados facilmente, sem grandes estudos e sem a devida investigação acerca dos impactos ambientais, resultando muitas vezes em danos trans municipais ou mesmo trans estaduais. O processo de licenciamento dos empreendimentos apresentados pelas petroleiras TOTAL e BP tem sido realizado pelo Ibama e em dezembro de 2018 a presidente do órgão emitiu parecer contrário ao Estudos de Impactos Ambientais da petroleira francesa TOTAL, negando a licença prévia para início das obras, a fundamentação da decisão se dá no fato de a empresa não ter apresentado, por três vezes consecutivas, um estudo capaz de traçar e formular Planos Emergenciais, demonstrando a inviabilidade do projeto. Contudo, mesmo em cenário nacional pode haver desvio de verba para garantir a aprovação de relatórios ambientais e estudos que não atendam aos reais interesses da coletividade, sendo assim, cabe instauração de Inquérito Público pela Promotoria Geral da República ou, em caso de suspeita em âmbito estadual e municipal, cabe investigação por parte das respectivas promotorias (PINHEIRO, 2018). Cabe aos membros do Ministério Público questionar os atos do licenciamento em juízo quando houver extrapolamento e garantir a suspensão do processo, seja por meio de liminares ou mesmo por intermédio de recursos às Cortes Superiores. Sendo o meio ambiente um bem protegido constitucionalmente e, uma vez que as demandas que o tenham como objeto podem ser apreciadas, inclusive, pelos membros do
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Supremo Tribunal Federal, esta se torna uma via de ação legitima. Emitir pareceres favoráveis ou contrários e buscar apoio de instituições que detém força jurídica postulatória, como organizações civis com finalidade ambiental e a Ordem dos Advogados do Brasil, é essencial para de concretizar a atuação do Ministério Público como titular de interesses difusos ambientais. Admite-se ainda, a necessária participação de promotores e promotoras em Audiências Públicas dos Órgãos Ambientais e de casas legislativas, como a realizada pela Comissão de Meio Ambiente do Senado Federal em 2017. 8 CONSIDERAÇÕES FINAIS
O cuidado com o patrimônio ambiental é necessário e urgente, o Direito apresenta mecanismos capazes de garantir que a vida seja resguardada, assim como a dignidade inerente à condição humana, bens jurídicos que não podem ser protegidos em um contexto de destruição ambiental. Por intermédio da interpretação constitucional do artigo 225, se vislumbra e resta evidente que o meio ambiente é uma expansão do direito à vida e, sendo assim, é fundamental, imprescindível, universal e inviolável. A liberdade econômica e a ordem financeira que se cristalizam sob o prisma do princípio da autonomia privada não são ditados ilimitados, eles devem ser interpretados e sopesados levando em consideração o interesse da coletividade e da humanidade, uma vez que a degradação ambiental nos ameaça a nível global e enquanto espécie. Apesar de o ecocídio não ter recebido, ainda, a tipificação de crime contra a paz, a postura ecocida pode ser assim reprimida. Conforme entendimento do Tribunal Penal Internacional, os crimes contra a humanidade serão admitidos e julgados em regime prioritário, quando estes forem cometidos fazendo uso mecanismos de destruição ambiental. Entretanto, vale destacar que, conforme a própria natureza subsidiária da jurisdição do TPI, o órgão só pode agir diante da inércia ou inaptidão do Estado brasileiro no que tange o não cumprimento aos mecanismos disponíveis pela própria legislação brasileira. Nesse panorama, a responsabilização por eventuais e potenciais agressões ao meio ambiente, come-
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tidas por petroleiras, pode e deve ser devidamente realizada, incluindo a adoção de sanções rígidas como a suspensão das atividades das petrolíferas e despersonalização da pessoa jurídica para fazer com que as penas, sejam elas privativas de direitos, privativas de liberdade ou multa, incidam também sobre os sócios administradores. No cenário do ecossistema de recifes amazônicos, os riscos são conhecidos, e sabe-se que os danos ambientais podem ocorrer em duas esferas: a primeira esfera é aquela já admitida pelos projetos de exploração e a segunda é a esfera que compreende a possibilidade de eventuais vazamentos e acidentes. Sendo assim, a precaução deve incidir como mecanismo de proteção e tutela da vida das muitas famílias que dependem da pesca para sobrevivência. Ademais, o referido princípio deve incidir igualmente para proteger o interesse de toda a comunidade humana brasileira e global, já que o equilíbrio ecológico é estrutural e imprescindível para a manutenção da vida humana em toda a biosfera. Em decorrência de tais entendimentos, atentados contra bens ambientais se traduzem como atentados globais contra a própria humanidade e contra as futuras gerações, tais danos, muitas vezes irreversíveis, não podem ser compreendidos e assimilados sob o pretexto de desenvolvimento econômico, não existe economia quando não há sequer vida, não há de se falar em avanço produtivo e industrial quando este só existe quando sepulta a dignidade humana de pessoas (em sua maioria pobres e habitantes de países em desenvolvimento) e fere o patrimônio ambiental coletivo que nos garante a existência. O entendimento que deve triunfar é o de que a vida humana prevalece. A dignidade humana prevalece. O equilíbrio ecológico prevalece. Os poços de petróleo não podem ser perfurados pois essa atividade significaria uma clara violação de inúmeros dispositivos constitucionais, desde a proteção à dignidade humana, à vida, ao trabalho e ao meio ambiente ecologicamente equilibrado. O ecossistema dos recifes de corais amazônicos deve ser protegido e preservado por todas as forças capazes de fazê-lo, seja mediante a atuação jurídica do Ministério Público, de ad-
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vogados e advogadas organizadas em torno de entidades ambientalistas, seja mediante a pressão política ou o acompanhamento dos processos de licenciamento por instituições comprometidas com a causa. É dever da coletividade, conforme preceitua a Constituição Federal, zelar pelos bens ambientais que garantem a manutenção da vida humana ao redor do globo. Assim, é inconcebível permitir que empresas petrolíferas transnacionais invadam nossas fronteiras e subtraiam o potencial biótico inerente a um dos ecossistemas mais misteriosos e menos estudados do mundo, podendo causar desastres catastróficos que significam a violação de garantias fundamentais. Em caso de inaptidão ou inércia do Estado brasileiro em proteger nosso patrimônio ambiental, compete aos órgãos supranacionais fazê-lo. REFERÊNCIAS BLOCK, Barbara. Crude Oil Impairs Cardiac Excitation-Contraction Coupling in Fish. Proceedings of the National Academy of Sciences. Pacific Grove: Hopkins Marine Station, 2014. BRASIL. Conselho Nacional do Meio Ambiente - CONAMA. Resolução nº 237, de 19 de dezembro de 1997. Diário Oficial da República Federativa do Brasil. Brasília, DF. 1997. BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil: promulgada em 05 de outubro de 1988. 22. ed. São Paulo: Rideel, 2019. BRASIL. Decreto n° 4388/2002 de 25 de setembro de 2002: promulga o Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Poder Executivo, Planalto, 2002. BRITO, Daguinete Maria Chaves; AVELAR, Valter Gama de. Geografia do Amapá em perspectiva. Macapá: Editora da Universidade Federal do Amapá, 2017. COLLETE, Bruce; RUTZLER, Klaus. Reef fishes over sponge bottoms off the mouth of the Amazon River. Miami: 3rd. International Coral Reef Symposium, 1977.
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ÚTEROS VIOLADOS: A IMPOSIÇÃO DE ESTERILIZAÇÃO A MULHERES ENQUANTO REPRODUÇÃO DA BIOPOLÍTICA DE GÊNERO E DAS PRÁTICAS PATRIARCAIS
Iara Schuinka Bazilio
RESUMO
Com base no caso concreto de Janaina Aparecida Querino, mulher em situação de rua forçada ao procedimento de esterilização pela Justiça brasileira, discute-se a existência e a efetividade dos direitos reprodutivos das mulheres em uma sociedade dominada por práticas patriarcais, expostas conforme análise da biopolítica de gênero. A isso, somam-se entendimentos de que a situação atual existe para cercear os direitos das mulheres quando de suas garantias sobre o próprio corpo, em especial daquelas submetidas à intersecção de opressões de raça e classe, além de gênero. Palavras-chave: Consentimento Informado. Biopolítica. Direitos Reprodutivos. Gênero. Patriarcado. 1 INTRODUÇÃO
Em fevereiro de 2018, Janaina Aparecida Querino, mulher em situação de rua, mãe de sete filhos, foi submetida a uma cirurgia de laqueadura forçada, requisição do Ministério Público do Estado de São Paulo deferida em primeiro grau pela Justiça. O elemento essencial para o procedimento, o consentimento informado, não foi alcançado. Janaina manifestou-se pela não realização da cirurgia; porém, seu pedido não foi considerado e a esterilização foi realizada.
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Com três meses de atraso, em segunda instância, o Tribunal de Justiça de São Paulo pronunciou decisão contra a realização do procedimento, que já havia sido concretizado. Apesar de certeiro, o entendimento não produziu efeitos práticos para Janaina, visto a demora de resposta judicial, bem como a ausência de efeitos em outros casos. A solicitação do Ministério Público, porém, a princípio, é a problemática central, pois não deveria ter sido realizada, já que as deliberações relativas ao planejamento familiar de qualquer cidadão, em especial da mulher, não deveriam partir de políticas impositivas. O corpo de Janaina foi violado com base em uma decisão judicial de primeira instância, proferida por um homem, que representa um Estado que designa seus flagelados segundo opressões de gênero, raça e classe. O procedimento cirúrgico em questão não violou somente a garantia conquistada por anos de luta em prol dos direitos reprodutivos das mulheres, mas também a tutela jurídica estabelecida pelo instituto do consentimento informado. Essa violação não ocorreu ao acaso, já que todas as políticas devem ser entendidas como políticas reprodutivas, ou seja, de controle populacional e dos corpos docilizados. Não há espaço para as subjetividades, não existe local para a vontade. Dessa contestação, compreende-se a análise do conceito de biopolítica formulado por Michel Foucault enquanto mecanismo de domesticação dos corpos das mulheres. A biopolítica de gênero é bem recepcionada pelo sistema em que estamos atualmente inseridos, qual seja, um sistema patriarcal e capitalista. Os direitos reprodutivos das mulheres são constantemente cerceados. Contudo, para mulheres na situação de Janaina - pobres, marginalizadas, mães - não existem direitos reprodutivos, nem mesmo tutela estatal. Existe, para essas mulheres, a única obrigação de serem domesticadas pelo Estado patriarcal, o qual as enxerga como úteros ambulantes e não como pessoas, seres humanos dotados de plenas capacidades.
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2 A ESTERILIZAÇÃO FORÇADA DE JANAINA APARECIDA QUERINO
No mês de julho de 2017, em Mococa, cidade localizada no Estado de São Paulo, Janaina Aparecida Querino, de 36 anos, mulher em situação de rua e dependente química, foi submetida à cirurgia de esterilização forçada. O procedimento ocorreu por força de uma decisão liminar do juiz Djalma Moreira Gomes Júnior, que deferiu pedido realizado pelo Ministério Público do Estado de São Paulo (CRUZ, 2018). Entre as justificativas apresentadas na decisão, o Magistrado alegou que Janaína já era mãe de sete filhos e estava grávida do oitavo. Ainda, sendo pessoa em situação de rua, não possuía condições econômicas de manter outras crianças. A decisão obrigou a prefeitura de Mococa a realizar a laqueadura, sob pena de multa diária de mil reais (AGÊNCIA BRASIL, 2018). O Município de Mococa recorreu, mas foi somente em maio de 2018 que o Tribunal de Justiça de São Paulo anulou a decisão a quo, conforme ementa a seguir: AÇÃO CIVIL PÚBLICA. Pretensão do Ministério Público voltada a compelir o Município a realizar cirurgia de laqueadura em dependente química. Legitimidade ativa “ad causam” delineada na espécie Incidência do disposto nos arts. 127, parte final, e 129 da CF. Acolhimento pronunciado em primeiro grau que, todavia, não pode subsistir. Inadmissibilidade, diante do ordenamento jurídico pátrio, da realização compulsória de tal procedimento. Pleno e autônomo consentimento não manifestado pela requerida aos órgãos da rede protetiva. Interdição judicial, outrossim, que não foi decretada a qualquer tempo. Lei nº 9.263/96, que limita até mesmo a esterilização voluntária (v. art. 10). Apelo da Municipalidade provido (TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO, 2018, grifo nosso).
No entanto, a decisão foi ineficaz. Três meses antes, em 14 de fevereiro daquele ano, Janaina passou pela cirurgia de laqueadura, logo após o nascimento do oitavo filho, enquanto ainda estava na Penitenciária Fe-
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minina de Mogi Guaçu. Pouco tempo depois, a polêmica foi instaurada e o consentimento de Janaina, questionado. Segundo a vítima, em entrevista a um jornal de alcance nacional, o procedimento de esterilização não foi desejado. Ainda, mediante ofício, a Assistência Social de Mococa indicou que ela, de fato, não possuía interesse na realização da cirurgia (CRUZ, 2018). 3 OS DIREITOS REPRODUTIVOS DAS MULHERES
Mesmo sem o consentimento de Janaina, o procedimento de esterilização foi imposto sobre seu corpo. Tal caso é um visível retrocesso quantos às garantias conquistadas por décadas de luta pelos direitos reprodutivos das mulheres, como será observado a seguir. Os direitos reprodutivos estão ligados à autonomia que cada pessoa possui sobre como e quando reproduzir e ao acesso às informações e técnicas ligadas à reprodução. Ainda, é um direito à reprodução livre de discriminação, imposição e violência (SECRETARIA DE SAÚDE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO, 2017). A construção da questão dos direitos reprodutivos tem sua gênese no século XIX e está profundamente ligada ao controle de natalidade. O uso de contraceptivos e de métodos voluntários de esterilização passaram por um longo caminho desde o início das discussões sobre o controle de natalidade. Até o século XIX, muitas das precursoras do feminismo moderno acreditavam que a limitação do tamanho das famílias deveria ser conquistada por meio da maternidade voluntária. A contracepção era rudimentar no final do referido século, sendo os métodos mais utilizados pouco efetivos, como o coito interrompido, esponjas vaginais ensopadas de espermicidas e preservativos. As mulheres da classe trabalhadora, sem poder aquisitivo, limitavam-se a evitar a gravidez com remédios caseiros pouco seguros e ineficazes (MCCANN et al., 2019). Durante os primeiros anos do século XX, grupos de feministas radicais norte-americanas e europeias começaram a mudar a visão que possuíam sobre a sexualidade e o controle de natalidade. Essas mulheres defendiam relações sexuais mais livres, ajuda para mães trabalhadoras e
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prevenção da gravidez. O primeiro uso conhecido da expressão “controle de natalidade” ocorreu em 1914, por Margaret Sanger, em um artigo para a “The Woman Rebel”,1 revista feminista radical norte-americana. O movimento pelo direito à contracepção saiu vitorioso em 1918, quando a decisão de um tribunal de Nova York, nos Estados Unidos, permitiu que médicos prescrevessem contraceptivos. Em 1921, foi aberta a primeira clínica de controle de natalidade no Reino Unido, onde mulheres eram aconselhadas e aprendiam a utilizar métodos contraceptivos como o diafragma. Na década de 1930, a indicação pelo controle de natalidade estava se tornando mais aceitável - ao menos para as mulheres casadas, visto que as solteiras estavam sob o véu da moralidade, que as forçava a casar virgens (MCCANN et al., 2019). Quanto ao direito à interrupção voluntária da gravidez, a luta pelo acesso ao aborto legal e seguro ganhou força nos anos 1960, nos Estados Unidos e na Europa. Rachel Fruchter, em sua obra “A Matter of Choice: Women Demand Abortion Rights”,2 enfatizou que as leis restringindo o acesso ao aborto afetavam desproporcionalmente mulheres pobres e não brancas (MCCANN et al., 2019). Já a esterilização consiste em um procedimento de contracepção permanente realizada de forma voluntária. Na mulher, é realizada mediante a ligadura das tubárias, também chamada de laqueadura, na qual as trompas da mulher são amarradas ou cortadas, evitando que o óvulo e os espermatozoides se encontrem (BLOG DO DRAUZIO VARELLA, 2020). Em tese, a luz dos direitos reprodutivos e humanos, não pode ser realizada de maneira coercitiva. Programas de esterilização forçada foram implantados no século XX como parte de políticas eugenistas, de controle populacional, além de discriminação sexual e étnica (BARTHÉLEMY, 2004). De forma concisa, a evolução do rol de direitos reprodutivos no Brasil foi iniciada de forma promissora, mas está atualmente paralisado. No Brasil, durante a década de 1970, o “planejamento familiar” tornou-se 1
A Mulher Rebelde, em livre tradução.
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Uma Questão de Escolha: Mulheres Exigem Direito ao Aborto, em livre tradução.
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um bordão. Em terras tupiniquins, as grandes preocupações eram a pobreza, a violência e a mortalidade infantil. Contudo, ao contrário do que se esperaria da conservadora ditadura militar, a partir de 1975 o governo Geisel intensificou suas ações em prol do planejamento familiar. Em agosto de 1977, o Programa de Saúde Materno-Infantil foi anunciado. Entre seus objetivos, estavam a assistência à maternidade, o tratamento à esterilidade, a suplementação alimentar das gestantes e recém-nascidos e a prevenção de gravidez de alto risco (DEL PRIORE, 2014). No entanto, atualmente, o direito ao aborto no Brasil está longe de ser conquistado e/ou efetivado. A lei não criminaliza nos casos de estupro, risco de vida da mãe ou feto anencéfalo, mas quaisquer outros casos são proibidos e punidos penalmente. Apesar deste fato, o número de abortos realizados de forma clandestina no país tem crescido nos últimos anos (CRUZ, 2018). 3.1 A ESTERILIZAÇÃO DAS MULHERES EM TERRAS BRASILEIRAS: A CPI DE 1993 E A LEI DE PLANEJAMENTO FAMILIAR
A esterilização forçada de mulheres no Brasil compõe o histórico de políticas de descaso com pessoas pobres e negras no país. Notadamente, a partir de 1964, o surgimento de grupos opostos quanto a questão de crescimento e controle populacional trouxe discussões relevantes no plano de desenvolvimento do Brasil. De um lado, estavam os que defendiam abertamente a política de controle demográfico; de outro, aqueles que se preocupavam não somente com a ocupação territorial, mas com questões ético-morais (SENADO FEDERAL, 1993). Em 1993, foi criada uma Comissão Parlamentar de Inquérito para verificar a incidência de esterilização em massa de mulheres no Brasil entre os anos 1960 e 1990. Segundo o jornal The Intercept Brasil, Esses programas eram capitaneados por entidades que, segundo diversos depoimentos, seguiam orientações que constam no chamado Relatório Kissinger, documento norte-americano classificado como sigiloso, mas que pesquisadores tiveram acesso nos anos 90. Era o Memorando de Estudo de Segurança Nacional 200, que
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tratava do crescimento da população mundial e a segurança dos Estados Unidos. Ganhou o nome de Henry Kissinger porque foi concluído em dezembro de 1974, sob sua direção (THE INTERCEPT, 2018).
O denominado Relatório Kissinger foi adotado como política oficial estadunidense em 1975. Essa política defendia que o crescimento populacional dos países menos desenvolvidos era uma ameaça para a segurança nacional americana, pois geraria riscos de distúrbios civis e instabilidade política. Para conter o avanço demográfico, o relatório defendia a promoção da contracepção. Devido às relações amigáveis entre Estados Unidos e Brasil no século XX, a implementação das políticas do Relatório Kissinger foi rápida e fácil (SENADO FEDERAL, 1993). O relatório produzido pela CPI concluiu que a prática da laqueadura era muito alta no Brasil, fora dos padrões mundiais. Ainda, foi apontado que: Está confirmada a esterilização em massa de mulheres no Brasil, pois segundo os dados do IBGE, havia em 1986, 5.900.238 mulheres esterilizadas para evitar filhos, correspondendo a um percentual de 15,8% das mulheres brasileiras de 15 a 54 anos e a 27% do total de brasileiras de 15 a 54 anos alguma vez unidas (união legal ou informal, atual ou passada), percentual pelo menos três vezes maior que nos países desenvolvidos e superior ao da quase totalidade dos países em desenvolvimento. O contexto em que as esterilizações são realizadas é bastante perverso, ausência de outras alternativas contraceptivas disponíveis e reversíveis e desinformação quanto aos riscos, sequelas e irreversibilidade da laqueadura. [...] A maior incidência de esterilização de mulheres da raça negra foi denunciada pelo movimento negro como um aspecto do racismo praticado no Brasil (SENADO FEDERAL, 1993, grifo nosso).
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Essa CPI resultou na Lei n.º 9.263/96, que trata do planejamento familiar. De acordo com a referida Lei, somente é permitida a esterilização voluntária nas seguintes situações: I – em homens ou mulheres com capacidade civil plena e maiores de 25 anos de idade ou, pelo menos, com dois filhos vivos, desde que observado o prazo mínimo de 60 dias entre a manifestação da vontade e o ato cirúrgico, período no qual será propiciado à pessoa interessada acesso a serviço de regulação da fecundidade, incluindo aconselhamento por equipe multidisciplinar, visando desencorajar a esterilização precoce; II – risco à vida ou à saúde da mulher ou do futuro concepto, testemunhado em relatório e assinado por dois médicos (BRASIL, 1996, grifo nosso).
A legislação federal impõe como condição para a realização da esterilização cirúrgica o registro da expressa manifestação da vontade em documento escrito e firmado. Além disso, a mesma legislação não permite a esterilização cirúrgica feminina durante os períodos de parto ou aborto ou até o 42º dia do pós-parto ou aborto, exceto nos casos de comprovada necessidade, por cesarianas sucessivas anteriores (BRASIL, 1996). 4 CONSENTIMENTO, BIOPOLÍTICA E PATRIARCADO
O dicionário Priberam de Língua Portuguesa define o consentimento como: 1. Ato ou efeito de consentir. 2. Manifestação que autoriza algo = AUTORIZAÇÃO, LICENÇA, PERMISSÃO. 3. Manifestação a favor de algo ou alguém = ADESÃO, ANUÊNCIA, APROVAÇÃO. 4. Tolerância. 5. Acordo ou conformidade de opiniões (ex. mútuo consentimento) = CONSENSO. 6. Ordem (DICIONÁRIO PRIBERAM, 2019).
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No direito civil, o instituto do consentimento é essencial quando da realização de procedimentos médicos. À “manifestação que autoriza algo”, nesse contexto dá-se o nome de consentimento informado. Luciana Mendes Pereira Roberto afirma que o consentimento informado é um acordo para permitir que alguma coisa aconteça, com base na completa explicitação dos fatos para que a decisão seja feita de maneira racional e clara (ROBERTO, 2008). Ou seja, o consentimento informado se trata de uma manifestação do paciente de que compreende o tratamento a ser realizado, seus riscos e possibilidades e consente com sua efetivação. No entanto, seria de vazio conteúdo inserir o conceito de consentimento informado no caso de Janaina (e de tantas outras mulheres esterilizadas contra a vontade) sem perceber que a política aplicada e perpetuada pelo poder Judiciário visa controlar e modificar a vida das mulheres em termos macro. Para tanto, é necessário trazer o conceito de biopolítica forjado por Michel Foucault. 4.1 POLÍTICAS REPRODUTIVAS, PATRIARCADO E BIOPOLÍTICA DE GÊNERO: UMA BREVE ANÁLISE
Em linhas gerais, biopolítica é o termo utilizado por Foucault para designar as novas práticas disciplinares, que antes visavam governar o indivíduo e agora tem como alvo o conjunto dos indivíduos, a população (FERNANDES; RESMINI, 2019). É certo que Foucault não dá ênfase à questão da biopolítica de gênero em suas obras. Contudo, o entendimento de autores e análises foucaultianos possibilita a compreensão da biopolítica na questão da opressão de gênero quando da política reprodutiva firmada. A política de igualdade de gênero desempenha papel fundamental na biopolítica analisada de modo contemporâneo. É possível afirmar que o gênero se tornou o bastião para governar corpos, práticas e a reprodução da vida. Penelope Deutscher entende que os métodos reprodutivos, contextualizados pelo sexo enquanto gestão da vida, são políticas de assassinato indireto dentro da biopolítica contemporânea (DEUSTCHER,
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2010). Dessa maneira, as mulheres ficam expostas, direta ou indiretamente, a danos à saúde com base em decisões governamentais (JUNGES, 2017). Marilyn French, ativista pelos direitos das mulheres, alegou que, assim como a burguesia vivia em constante conflito com a classe operária, os homens - tanto burgueses quanto operários - travam uma batalha contra as mulheres, com o objetivo de fazê-las retornar ao estado de subordinação. Adaptando novas tecnologias de controle, o sistema dominado por homens visa, com a guerra, assegurar e aumentar o controle sobre o corpo das mulheres sob as perspectivas sexual e reprodutiva. A autora, inclusive, alude todo o conflito a uma questão obsessiva que os homens possuem em relação à capacidade reprodutiva da mulher (FRENCH, 1992). Aqui, é possível fazer uma relação entre a biopolítica foucaultiana, direitos reprodutivos e supremacia masculina. Dessa combinação tem-se como resultado que toda política é política reprodutiva, e essa política reprodutiva emerge do grande sistema de controle social denominado patriarcado (MCCANN et al., 2019). No Dicionário Crítico do Feminismo, o patriarcado [...] designa uma formação social em que os homens detêm o poder, ou ainda, mais simplesmente, o poder é dos homens. Ele é, assim, quase sinônimo de “dominação masculina” ou de opressão das mulheres. Essas expressões, contemporâneas dos anos 70, referem-se ao mesmo objeto, designado na época precedente pelas expressões “subordinação” ou “sujeição” das mulheres, ou ainda “condição feminina” (DELPHY, 2009, p. 173).
Ainda, a escolha da adoção do patriarcado como contexto de acepção de políticas não é coincidência: O patriarcado é rapidamente adotado pelo conjunto dos movimentos feministas militantes nos anos 70 como o termo que designa o conjunto do sistema a ser combatido. Em relação a seus
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quase sinônimos “dominação masculina” e “opressão das mulheres”, ele apresenta duas características: por um lado, designa, no espírito daquelas que o utilizam, um sistema e não relações individuais ou um estado de espírito; por outro lado, em sua argumentação, as feministas opuseram “patriarcado” a “capitalismo” — o primeiro é diferente do segundo, um não se reduz ao outro. Isso se reveste de uma grande importância política num momento de reemergência do feminismo, em que as militantes são confrontadas a homens e mulheres de organizações políticas para quem a subordinação das mulheres não é mais que uma das consequências do capitalismo (DELPHY, 2009, p. 175-176, grifo nosso).
A opressão sistêmica, que parte de políticas públicas de reprodução, aliada ao capitalismo, afeta as escolhas das mulheres em relação à maternidade. Obviamente, tais escolhas recaem sobre o conhecimento e o ensino de direitos reprodutivos. Loretta Ross, ativista negra norte-americana, sustentou que termos como “pró-vida” ou “pró-escolha” não refletem as opções limitadas de mulheres mais pobres e, especialmente, negras, visto que, historicamente, mulheres pobres negras recebem educação sexual inadequada, realizam abortos inseguros e têm pouco acesso a contraceptivos e a cuidados de saúde pré-natal (MCCANN et al., 2019). Bell Hooks argumenta ainda que problemas médicos de longo prazo, desde cesarianas a histerectomias, não eram assuntos interessantes para a maior parte da população, pois a política médica reprodutiva não interessava à classe dominante: o patriarcado. Dessa forma, é possível dizer que estamos diante de um sistema médico capitalista controlado e dominado por homens - ou seja, pelo patriarcado (HOOKS, 1990). É imperativo, portanto, entender que, sob o viés das políticas de reprodução e opressão das mulheres, o consentimento informado categorizado pelo direito civil é um instituto poroso. Essa porosidade advém do fato de que o direito, por si, é influenciado pelas políticas e contextos sociais sob os quais vivemos. Assim, o consentimento informado, mediante a ótica da biopolítica de gênero e do patriarcado, é facilmente moldável por argumentos ex-
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ternos à vontade da mulher, influenciados pelos gostos, decisões e pelas ambições de homens, com base em um sistema que está muito além do que podemos subjetivamente controlar. 4.2 A ESTERILIZAÇÃO FORÇADA DE JANAINA SOB O VIÉS DA BIOPOLÍTICA DE GÊNERO E PATRIARCADO
No caso analisado, em que a vítima Janaina passou por uma esterilização não consentida, é possível compreender que houve abuso do sistemático poder oferecido ao Estado - este, ente patriarcal - sobre os direitos reprodutivos de uma mulher. Com três meses de atraso, em segunda instância, o Tribunal de Justiça de São Paulo pronunciou decisão contra a realização do procedimento. Apesar de certeiro, o entendimento não produziu efeitos práticos para Janaina, visto a demora de resposta judicial. Ademais, uma única decisão não seria capaz de alterar todo um sistema de opressões com base em políticas reprodutivas. Se nessa situação houve uma aplicação de políticas públicas, quaisquer que sejam, é preciso relacionar as políticas de reprodução com políticas de limpeza social. Afinal, Janaina é uma mulher em situação de rua, pobre, com uma prole de oito filhos. A quem interessa os direitos dessas mulheres? Enquanto a laqueadura é dificultada para muitas, a esterilização é imposta para outras. Outras como Janaina, mulheres cuja capacidade reprodutiva e de maternidade é constantemente questionada pela “sujidade” que traz ao meio social. Não se trata de uma exclusão pura e simples, da contestação de Janaina enquanto mulher e ser humano. É uma evidente demarcação de políticas patriarcais e capitalistas aplicadas ao controle dos corpos, aqui representados por uma mulher. O controle de seu corpo surge da necessidade de haver reprodução e cuidado da prole para manter certas estruturas, inclusive econômicas. A reprodução não deveria ser percebida como algo meramente individual; contudo, em nossa sociedade, os direitos reprodutivos servem a determinados fins. O útero de Janaina, receptáculo essencial enquanto manutenção da vida para o capitalismo e para o patriarcado, foi brutalmente vio-
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lado pelo Estado: “A autonomia não é um postulado jurídico geralmente aplicável às mulheres que vivem no Brasil, especialmente àquelas que estão em situação de vulnerabilidade e sofrem também com o racismo e a miséria” (CAMPOLINA; CAMPOS, 2018, n.p.). Fugir do pensamento patriarcal significa ser cética quanto ao sistema conhecido, analisando criticamente todos os pressupostos, valores e definições apresentados. É necessário resgatar as lutas feministas pelos direitos reprodutivos, conforme ensina Bell Hooks: Como buscamos reavivar as chamas de um movimento feminista de massas, os direitos reprodutivos continuarão a ser um tema central da agenda feminista. Se as mulheres não têm o direito de escolher o que acontece com nossos corpos, arriscamos a renunciar direitos em todas as outras áreas de nossas vidas. Em um movimento feminista renovado, a questão geral dos direitos reprodutivos prevalecerá sobre outras questões. Isso não significa que a luta por abortos legais, seguros e baratos deixará de ser central, mas simplesmente que esse não será o único tema centralizado. Se a educação sexual, cuidados de saúde preventivos e fácil acesso a anticoncepcionais são oferecidos a todas as mulheres, menos de nós teremos gravidezes indesejadas. Como consequência, a necessidade de abortos diminuiria (HOOKS, 1990, p. 54, grifo nosso).
O sistema do patriarcado é uma construção histórica; possui um começo e certamente possuirá um final. É somente uma visão do mundo baseada em críticas de gênero que permitirá que as mulheres - e, consequentemente, os homens - possam ver o mundo livre da dominação das condições reprodutivas (LERNER, 2019). 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
O procedimento de esterilização forçada em Janaina Aparecida Querino ocorreu de maneira precipitada, por força de decisão liminar em primeiro grau que deferiu pedido realizado pelo Ministério Público
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do Estado de São Paulo. Apesar de, em segunda instância, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo entender pela não procedência da cirurgia, por considerá-la inadmissível sem o consentimento informado, a laqueadura foi realizada contra o desejo de Janaina logo em seu pós-parto, em situação irregular em relação à lei. Esse fato ensejou o debate sobre as perspectivas dos direitos reprodutivos das mulheres, visto que foi uma manifesta violação das garantias conquistadas em relação à reprodutividade da mulher. As mulheres brasileiras ainda estão distantes de regozijar de seus direitos reprodutivos em plenitude, seja por desconhecimento acerca dessas garantias, seja pelas decisões tomadas pelo Estado na figura de seus poderes executivo, judiciário e legislativo. É nítido o descaso estatal quando se trata do consentimento da mulher sobre seu próprio corpo. As políticas veladas de esterilização em massa que ocorreram no Brasil no século XX mostram como é necessário entender que o consentimento informado, fundamental para a realização de procedimentos médicos, é simplesmente ignorado frente às políticas governamentais. Este deliberado desconhecimento é primordial no contexto de controle e domesticação de corpos, conforme conceito de biopolítica forjado por Michel Foucault. A biopolítica de gênero, criação pós-foucaultiana que possibilita a compreensão da biopolítica na questão da opressão de gênero, evidencia como as decisões estatais designam seus flagelados segundo opressões de gênero, raça e classe. Os métodos reprodutivos estatais são diretrizes de assassinato indireto quando criadas de maneira abstrata aplicadas de maneira indiscriminada, por meio de políticas públicas de saúde e maternidade. Desta feita, é possível fazer uma relação entre a biopolítica foucaultiana, direitos reprodutivos e supremacia masculina: toda política é política reprodutiva, e essa política reprodutiva emerge do grande sistema de controle social denominado patriarcado. A opressão sistêmica, que parte de políticas públicas de reprodução, aliada ao capitalismo, afeta as escolhas das mulheres em relação à
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maternidade. Obviamente, tais escolhas recaem sobre o conhecimento e o ensino de direitos reprodutivos, em especial daquelas mais pobres e das negras. Conforme Bell Hooks argumenta, estamos diante de um sistema médico capitalista controlado e dominado por homens - ou seja, pelo patriarcado, que detém o poder de decidir quem pode e quem não pode reproduzir. O controle do corpo feminino se dá por causa da necessidade de haver reprodução e cuidado da prole para manter certas estruturas, inclusive econômicas. Os úteros das mulheres – os nossos úteros – são essenciais para a manutenção da vida, mas constantemente violados por um Estado determinado a eliminar determinadas pessoas conforme raça e classe. É possível, portanto, compreender que, sob o viés das políticas de reprodução e opressão das mulheres, o consentimento informado categorizado pelo direito civil é um instituto poroso e muitas vezes ineficaz, influenciado pelas políticas e contextos sociai. No caso de Janaina, compreende-se que houve abuso do Estado - este, ente patriarcal - sobre os seus direitos reprodutivos. REFERÊNCIAS AGÊNCIA BRASIL. Esterilização compulsória de Janaina não é caso isolado, apontam entidades. HuffPost Brasil, São Paulo, 27 jun. 2018. Disponível em: https://bityli.com/5Bv4t. Acesso em: 20 nov. 2019. BARTHÉLEMY, F. O crime da esterilização forçada. Le Monde Diplomatique Brasil, 01 jun. 2004. Disponível em: https://diplomatique.org.br/o-crime-da-esterilizacao-forcada/. Acesso em: 20 abr. 2020. BLOG DO DRAUZIO VARELLA. Laqueadura pelo SUS, 2020. Não paginado. Disponível em: https://drauziovarella.uol.com.br/reportagens/laqueadura-pelo-sus/. Acesso em: 10 mai. 2020. BRASIL. Lei n.º 9.236, de 12 de janeiro de 1996. Regula o § 7º do art. 226 da Constituição Federal, que trata do planejamento familiar, estabelece penalidades e dá outras providências. Diário Oficial [da] República Federativa do Bra-
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POLARIZAÇÃO POLÍTICA E A CRISE DA DEMOCRACIA BRASILEIRA Laura de Sá Liston Nahomi Helena de Santana Rafaela Chiarelo Vinícius Fernando Marcolino Filho
RESUMO
Compreender as relações institucionais brasileiras, sua democracia e conformação social é uma tarefa demasiadamente complexa. A Constituição de 1988 inaugura um novo período que, em menos de 30 anos, já apresenta sintomas de um mal-estar constitucional agravado por crises políticas e econômicas. Ao ser observado a prática do “jogo duro constitucional” e a forma como os agentes públicos tensionam as regras estabelecidas, questiona-se se a crise política brasileira poderia ser considerada uma crise constitucional. Independente dessa problemática, constata-se que o país apresenta um declínio em seus índices democráticos e um aumento de características autocráticas, como restrição da liberdade de imprensa, aumento de protestos com pautas antiliberais e polarização tóxica. Esta, fenômeno sistêmico e acentuado pelas tecnologias modernas, é estudada a partir de seu processo histórico recente no Brasil e sua influência no Judiciário. Como será apresentado, a mudança de entendimento do STF acerca da prisão em segunda instância, partindo-se do caso concreto da prisão do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, permite compreender a influência da polarização política nas decisões judiciais e a insegurança jurídica decorrente desse processo, tanto em 2016 quanto em 2019. Dessa forma, essa polarização tóxica influencia as instituições e ameaça o Estado Democrático de Direito por uma intensa disputa narrativa.
202 | LAURA DE SÁ LISTON | NAHOMI HELENA DE SANTANA | RAFAELA CHIARELO | VINÍCIUS FERNANDO MARCOLINO FILHO
Palavras-chave: Polarização política. Prisão em segunda instância. Apodrecimento Constitucional. Crise democrática. Estado Constitucional. 1 INTRODUÇÃO
Este trabalho almeja analisar os reflexos e possíveis consequências da extrema polarização política para a democracia brasileira, perpassando brevemente por problemáticas de cunho teórico constitucional, análises de índices democráticos, pela compreensão do processo recente de polarização brasileira e pelos posicionamentos do Supremo Tribunal Federal sobre a prisão em segunda instância entre 2016 e 2019. Para tanto, parte-se do pressuposto do Estado Democrático de Direito, ou Estado Constitucional de Direito, como produto do embate entre constitucionalismo e democracia, teorizado e discutido por juristas como o professor Roberto Gargarella. Entende-se dessa forma que o constituinte, legitimado pelo povo enquanto soberano, determinou ao Estado o dever de defender simultaneamente os direitos enunciados pela norma primária e a democracia. Esses conceitos enfrentam uma profunda disputa de narrativas na doutrina e mídia brasileiras por estruturarem as regras de convivência, o que pode ser alterado e, principalmente, aquilo que neste modelo político não está aberto à discussão. É nessa brecha que se acentua a polarização política como estratégia de impor um discurso sobre outro, influenciando a sociedade com uma metodologia que estimula a intolerância. Por essa razão, a disputa não se faz na validade dos conceitos constitucionalmente determinados, mas sim em seus significados, no modo em que os poderes devem interpretá-los, como no caso na presunção de inocência a ser posteriormente apresentado. 2 O JOGO DURO CONSTITUCIONAL EM MEIO À CRISE POLÍTICA BRASILEIRA
Ao longo das últimas décadas, à medida que o jogo democrático tem se tornado cada vez mais polarizado e conflitivo, evidenciam-se
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fragilidades de um sistema político que se pensava consolidado. Nesse sentido, cabe ressaltar a associação necessária entre constitucionalismo e democracia, sendo que esta só se realiza na presença determinadas condições jurídicas, ou seja, dos princípios e regras estabelecidos pela própria Constituição Federal. Tem-se, assim, uma concepção do constitucionalismo como condição de possibilidade da própria democracia, à medida em que a Constituição, a fim de conformar as divergências existentes, delimita as regras do jogo democrático (FRANCO, 2019, p. 8-12). Diante da crescente polarização, no entanto, deixam de ser observadas algumas dessas regras, revelando-se um profundo mal-estar constitucional. A crise da democracia brasileira enquanto crise política é, portanto, inegável, mas seria correto afirmar que essa crise pela qual passamos seja também uma crise constitucional? Esse termo tem sido largamente utilizado para descrever situações de tensão e desarmonia entre os poderes, ou disputas constitucionais acaloradas, acentuadas pela grande polarização. Para Balkin (2017, p. 147), no entanto, uma crise constitucional implicaria necessariamente um risco real e iminente de que a Constituição venha a falhar em seu papel central, ou seja, na manutenção dos desacordos dentro dos limites da política comum. Nesse sentido, ainda: Por vezes, quando as pessoas falam em crise constitucional, elas querem dizer que há uma disputa acalorada acerca da melhor interpretação da lei ou da Constituição e que seus oponentes políticos estão interpretando a lei ou a Constituição da maneira errada. Isso por si só, no entanto, não é uma crise constitucional, porque disputas sobre a melhor interpretação da lei e da Constituição são uma característica normal da política americana. Muitas, mas não todas, dessas disputas acabam sendo resolvidas nos tribunais. Outras são resolvidas através da política (BALKIN, 2017, p. 149, tradução nossa).
Não se deve confundir crises políticas e disputas acaloradas com crises constitucionais. Pode-se dizer que isso por vezes chamado de crise constitucional é o que Tushnet (2004, p. 523) nomeou de constitutional hardball – ou jogo duro constitucional –, que ocorre quando os atores po-
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líticos desafiam as convenções políticas pré-estabelecidas, regras tácitas do jogo político que, apesar de não serem exigidas por lei, costumavam ser observadas. O hardball consiste em apostas bastante altas por parte dos atores políticos e, principalmente quando estes vislumbram oportunidades de transformação ou manutenção de seus status, pode ser utilizado até mesmo como estratégia ofensiva. Assim sendo, o jogo duro constitucional pode ser visto como um jogo de soma zero, corroborando com a própria polarização política. Tushnet (2004, p. 532) sugere uma associação entre as práticas do constitutional hardball e períodos de transformação constitucional, o que implica que essas práticas não deverem ser observadas em períodos da política comum. Justamente, trata-se aqui de um período de crise política e forte polarização. Uma característica presente nesses períodos de transformação seria o questionamento de entendimentos pré-constitucionais que, até então, eram tidos como postos. Isso pode ser observado na discussão acerca da prisão em segunda instância e do princípio constitucional de presunção de inocência, tratados mais adiante. No caso, há uma tentativa de transformação no entendimento da constituição, a fim de substituí-lo por outro, considerando-se que: A associação entre jogo duro constitucional e transformação constitucional explica, finalmente, o fato de que as apostas são altas quando o jogo duro constitucional está em andamento. As apostas são altas, porque aqueles que se beneficiam dos arranjos institucionais em vigor, e que são desafiados por proponentes de arranjos institucionais dramaticamente diferentes, temem que perderão permanentemente o poder político se novos arranjos institucionais forem implementados (TUSHNET, 2004, p. 533, tradução nossa).
Diante desse cenário, em que se excede o uso do próprio jogo duro constitucional para uma manutenção do poder, o constitucionalismo republicano democrático pode entrar em declínio por um processo de constitutional rot – ou apodrecimento constitucional – conforme Balkin (2017, p. 151). Por apodrecimento constitucional entende-se o processo de decadência das características do próprio sistema de governo, tornando-o, à mesma medida, menos democrático e menos republicano.
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Esse fenômeno, diferentemente da crise constitucional, é restrito a constituições de democracias representativas, isto é, repúblicas. Além disso, ao passo em que a noção de crise descreve um momento específico e pontual, o constitutional rot se traduz em um processo lento e gradual, que pode perdurar por anos – acarretando ou não uma crise constitucional. Em qualquer cenário, resulta em um sistema de governo menos justo e menos democrático, seja por enfraquecer a democracia em si, seja por enfraquecer a constituição em seu papel central. Pode-se dizer que as constituições democráticas em um sistema representativo dependem, para além de obediência à lei, do bom funcionamento das instituições e da confiança do povo em seu governo, de modo que o próprio poder seja equilibrado e que as oposições políticas possam cooperar entre si, mesmo quando discordam fortemente. Nesse sentido, segundo Balkin (2017, p. 147), são quatro os fatores que, mutuamente, acabam por acelerar esse processo de apodrecimento constitucional: i) a perda de confiança; ii) o aumento da desigualdade econômica; iii) os desastres políticos1; e iv) a polarização – a ser melhor debatida na sequência, por sua proeminência no cenário brasileiro. Segundo ele, com o avanço do fenômeno, o povo acaba por recorrer a demagogos, que alimentam a divisão, a raiva e o ressentimento. 3 APODRECIMENTO DEMOCRÁTICO
Ainda que análises de crise constitucional devam abarcar esse risco real e iminente à Constituição, o lento e gradual processo de apodrecimento constitucional afeta, primordialmente, a democracia. Ela, que pelo poder constituinte estabeleceu a forma jurídica do político e impulsiona pesquisadores a se debruçarem sobre seu embate com o constitucionalismo, assim como Jürgen Habermas e Francis Michelman num debate sobre a obra “Brennon and democracy” em 1999 (KARAM, GODOY, 2010, p. 159-160):
Falhas graves em tomada de decisão pelos representantes do povo, que fazem com que o povo perca a confiança no governo (STEPHEN, 2015).
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[...] o paradoxo da democracia constitucional assume várias formas. A democracia aparece como auto-governo do povo – as pessoas de um país decidindo por si mesmas os conteúdos decisivos e fundamentais das normas que organizam e regulam a sua comunidade política. O constitucionalismo aparece como a contenção da tomada de decisão popular através de uma norma fundamental, a constituição – law of lawmaking, projetada para controlar até onde as normas podem ser feitas, por quem e através de quais procedimentos. É parte essencial da noção de constitucionalismo que a norma fundamental deva ser intocável pela política majoritária (que ela deve limitar) (MICHELMAN, 1999, p. 01)
Portanto, o Estado de Direito se construiu como produto dessas colisões e, conforme se concretiza na defesa das liberdades e direitos, torna-se condição de possibilidade para a democracia (SOUZA NETO, 2006, p. 57). Evidente que esse caminho, distante da busca por um acordo consensual, traz conflitos a ela inerentes como a necessidade de efetivar a igualdade (DWORKIN, 2002, p. 305-369) para validar a deliberação coletiva (GARGARELLA, 2008, p. 167) e o dissenso característico do próprio processo de decisão (GARGARELLA, 1996, p. 40). A democracia se faz na exigência do respeito às normas autoimpostas pelo povo (GARGARELLA, 1996, p. 128), garantindo os direitos já previstos, e na construção dialógica entre realidade e constituição, impedindo que o ordenamento jurídico se acomode em interpretações e conquistas já existentes. O Estado Constitucional Democrático demanda aplicação e reinterpretação constantes de sua norma fundamental pois é em suas violações, as quais desrespeitam o povo enquanto titular da soberania e legitimador do poder constituinte, que se constatam sintomas da ascensão de governos autocráticos. Essa preocupação com a democracia se faz presente nos estudos do Varieties of Democracy Institute (V-Dem)2, na Universidade de Gotemburgo, que a partir de índices democráticos produz dados de cerca 2
O Instituto integra o Departamento de Ciência Política da Universidade de Gotemburgo, Suécia.
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de 202 países analisando sua trajetória desde 1789. O relatório de 2020 do Instituto aponta uma aceleração no declínio de traços democrático ao redor do mundo, sendo que pela primeira vez desde 2001 as autocracias são maioria, totalizando 92 países e abrangendo 54% da população, no que foi chamado de “terceira onda da autocratização” e foi verificada no Brasil, Índia, Estados Unidos da América e Turquia (V-DEM, 2020, p. 6). Os indicadores de espaço físico e acadêmico mostram que esse fenômeno afeta toda a sociedade diminuindo a liberdade acadêmica, o direito à reunião e protestos pacíficos e impulsionando a polarização tóxica, os protestos pró-autocracia e a violência política, elementos encontrados no Brasil na última década e acentuados nos últimos três anos. Não isolada, a América Latina acompanha esse declínio democrático, atestado pela “medida ponderada pela população” que indica valores registrados pela última vez em 1992 (V-DEM, 2020, p. 6-9). Não obstante, o relatório coloca o Brasil entre os 10 países com maior crescimento de características autocráticas e ressalta que a primeira coisa restringida por esses governos é o alcance da sociedade civil e a liberdade de imprensa, receio acentuado pelo incremento dos vieses midiáticos nos anos anteriores à eleição do presidente populista e de extrema direita Jair Messias Bolsonaro (V-DEM, 2020, p. 16-17). Após essas medidas, percebe-se uma tendência à polarização por parte de diversos atores governamentais e sociais que ultrapassam os limites do “jogo duro” ao usar violência política e mobilizar as massas em favor de uma agenda antiliberal (V-DEM, 2020, p. 20), ou seja, que ataca frontalmente todas as facetas das liberdades reivindicadas nos processos de construção dessas sociedades. Diretamente relacionado, outro indicador do estudo exibe a frequência dos protestos organizados com o objetivo de minar ideais democráticos e suas instituições (Poder Legislativo, Poder Judiciário, Ministério Público, dentre outros) levando ao aumento da violência por atores não estatais.
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A busca pela concentração do poder ocorre em todas as instâncias, agravada pelo apoio de autoridades e por instrumentos como fake news3 e bots4, mas possui enfoque principal na disputa de narrativas ao buscar sobrepor um discurso e por meio dele não tolerar todos os outros. É um processo que vai além das políticas formais e institucionais e age mediante a polarização extrema e tóxica: Como resultado, a sociedade está rapidamente se tornando mais polarizada em países autocráticos quando comparada a outras nações. Governos não estão agindo sozinhos para minar a liberdade e o espírito público de debate, necessários para a democracia. Polarização tóxica, capturada pelo novo indicador V-Dem em polarização da sociedade, vai muito além das disputas benéficas à democracia sobre políticas e corta profundamente a fábrica social da sociedade. Ela racha a sociedade em “campos mutuamente destrutivos de ‘Nós contra Eles’”. Esse é discutivelmente um curso perigoso. Uma vez que elites políticas e seus seguidores não mais acreditam que oponentes políticos são legítimos e merecem igual respeito, ou ainda aceitáveis como família e amigos, eles se tornam menos propensos a aderir às regras democráticas na luta por poder (V-DEM, 2020, p. 21, tradução nossa).
Essa estratégia dicotômica cria um inimigo e se faz tóxica por exponencialmente posicionar indivíduos não apenas em um ou outro lado, mas por impor que todo aquele que não concorda totalmente com um extremo passa automaticamente a integrar o “eles”. 4 POLARIZAÇÃO BRASILEIRA
A disputa de sentidos da constituição pelos grupos de poder se dá de forma tão mais determinante quanto mais equilibrada for a influência
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Notícias falsas que influenciam o pensamento popular e descredibilizam personagens políticos e imprensa.
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Tecnologias que simulam ações humanas de forma padronizada e repetida.
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de cada um desses grupos. Ora, se houver um posicionamento preponderante, a disputa não é realmente dotada de competitividade. Embora em geral seja considerado consenso que o Brasil vive desde 2013 um acirramento da polarização política5, são necessárias ressalvas a essa noção. Em uma análise empírica desse fenômeno, Borges e Vidigal (2018) verificam que a maior parte do eleitorado, em realidade, converge em quesitos ideológicos, tornando possível traçar um perfil que se adequa a maioria dos cidadãos. A mesma tendência foi verificada no comportamento dos partidos políticos durante o governo Lula (ZUCCO, 2012), grande parte em razão da aproximação pelo Partido dos Trabalhadores (PT) do centro do espectro ideológico. A polarização parte, portanto, de grupos menores com vinculação partidária consistente, que garantem o voto da grande massa que desenvolveu simpatias partidárias, sem, entretanto, conquistar plenamente este eleitorado. Por óbvio, qualquer tentativa de classificação precisa de um universo de cerca de 150 milhões de eleitores está fadada ao fracasso. Ressaltamos a heterogeneidade mesmo dentre os grupos elencados. Contudo, podemos identificar na sociedade brasileira duas grandes tendências nas urnas a partir de um conceito central: o petismo (RIBEIRO, CARREIRÃO, 2016). Isso porque os dois blocos principais se formam em antagonismo a partir da afinidade ou aversão à esta corrente. Considera-se o antipetismo uma categoria mais abrangente que o “tucanismo” ou o “bolsonarismo” por exemplo, servindo como identidade que supera estas duas orientações. É possível verificar no segundo turno das eleições presidenciais de 2014 (Anexo A) e 2018 (Anexo B), que há uma manutenção das zonas de influência do grupo petista e do antipetista, com a substituição do
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Embora o presente trabalho se debruce especificamente sobre a polarização do poder politicamente considerado como manifesto por intermédio do Estado, ressalta-se que, no caso brasileiro, conforme demonstram Mariana Piaia Abreu, Rosanna Grassi e Renata R. Del-Vecchio (2019), no artigo Structure of control in financial networks: An application to the Brazilian stock market; o Estado é também o maior player na economia do país. Isto importa dizer que a maior influência sobre a economia brasileira também se desdobra do poder político, contornando uma interdisciplinaridade latente nesta análise.
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maior expoente do segundo, em que o candidato do PSDB dá lugar ao candidato do PSL. Pelos estados, existem quatro exceções, sendo: o Amapá, o Amazonas, Minas Gerais e o Rio de Janeiro6, em que se observou uma guinada para uma maioria antipetista. No período que este trabalho toma por objeto ainda é possível afirmar, por meio dos resultados das mesmas eleições em seu primeiro turno, a discrepância entre o desempenho destes dois grupos e o dos restantes. Em 2014, apenas dois estados obtiveram maioria que não do PT ou do PSDB, sendo ambos (Acre e Pernambuco) fortemente vinculados com os candidatos Eduardo Campos e Marina Silva, que a princípio concorreram juntos pela chapa “Unidos pelo Brasil”. Já em 2018, o estado díspar foi o Ceará, no qual o candidato Ciro Gomes havia ocupado o cargo de Governador. A candidata Marina Silva, que acabou por terminar no terceiro lugar no pleito de 2014, pautou sua campanha em grande parte como alternativa à polarização já percebida no momento. No debate de maior audiência do país (G1, 2014), termos como “Nova Política”, “Polarização”, “Reforma Política” ou sinônimos são recorrentes em seu discurso7. Já por intermédio das eleições municipais de 2016, é possível notar o fortalecimento do antipetismo a partir do avanço da então principal alternativa ao PT, o PSDB. Este foi o partido que obteve o maior crescimento relativo no número de prefeitos eleitos, enquanto o PT foi o que sofreu a maior derrota. Evidencia-se ainda a concomitância deste processo com o aprofundamento da disseminação do uso das redes sociais, dotando-o de novas características. Entre as consequências advindas desta conjugação estão o acentuamento da dispersão de desinformação (fake news) e a personalização do conteúdo recebido pelos usuários, exacerbando as divergências e desenhando uma melhor delimitação dos grupos centrais (SANTOS, 2019), agora com feições de um novo eixo: o bolsonarismo e o antibolsonarismo. 6
O último estado referido foi onde Jair Bolsonaro desenvolveu sua carreira política. Nota-se também que Minas Gerais é o estado natal de Dilma Rousseff.
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Especificamente, aparecem em dez momentos distintos ao decorrer de suas falas.
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O cenário se complexifica quando há o estabelecimento do judiciário em posição central no jogo duro constitucional. Isso pois o judiciário parte da teorização da separação dos poderes e sua caracterização como “a boca da lei”, em 1748 por Montesquieu (1979), para nosso paradigma contemporâneo em que constantemente se argumenta sua politização, sobretudo da corte suprema no caso brasileiro (FRATES, 2009). Esse novo desenho institucional é o que nos permite, inclusive, tratar sobre o jogo duro constitucional. Porém, os alinhamentos partidários internos dos membros do poder judiciário são relativamente inacessíveis empiricamente, quando comparados aos dos membros do legislativo e executivo. A princípio, o poder judiciário é inerte se não provocado, e mesmo quando é, está em teoria restrito ao conteúdo por ela suscitado. Dessa configuração decorre um caráter especial de atuação, que mais se aproxima de uma arbitragem do jogo constitucional, embora incluso nele, dado que suas decisões podem ser descumpridas. Essa instituição, com seu corpo formado de atores que se veem em posição de salvadores, se insere então como a “vanguarda iluminista” do Brasil, com o papel de superar os conflitos vividos até então e levar a nação adiante (LYNCH, 2017). Nesse processo, quanto mais acirrada a polarização e maiores os dissensos do governo, maiores são as lacunas deixadas nos atos legislativos, e por consequência desta abstinência, maior é a margem de atuação do judiciário. Quando, em virtude da totalidade desse arranjo institucional, esse poder toma para si decisões com carga cada vez mais políticas, simultaneamente toma as críticas com o mesmo caráter político. Com a descredibilidade advinda dessa situação, seu enfraquecimento, contornando o processo de apodrecimento constitucional brasileiro. 5 A POLARIZAÇÃO DO JUDICIÁRIO E A PRISÃO EM SEGUNDA INSTÂNCIA
Nesse contexto, cabe constatar que a polarização adentra as estruturas institucionais de manutenção da democracia. A atuação do Legislativo, Judiciário e Executivo não está imune à pressão posta pela socie-
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dade, muitas vezes não conseguindo equilibrar os excessos praticados. Tratar-se-á aqui do Supremo Tribunal Federal, em análise específica do julgamento sobre o art. 5º, LVII, da Constituição de 1988, que prevê a necessidade de trânsito em julgado de sentença penal condenatória para a caracterização de culpa. O STF tem o dever de prezar pelo Estado Democrático de Direito, mas as mudanças na interpretação da possibilidade de prisão após decisão de segunda instância permitem reconhecer a influência da polarização política na Corte, podendo gerar um desvio de sua função. Entre os anos de 2009 e 2016, prevalecia o entendimento de que o réu somente poderia ser preso após esgotados todos os recursos no STF e no STJ, isto é, seguindo o que prevê a Constituição Federal, conforme seu artigo 5º inciso LVII, “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”. É importante salientar que esta interpretação leva em conta diversos princípios constitucionais, tais como o da presunção de inocência ou não culpabilidade, o da ampla defesa, o do contraditório e o do devido processo legal. Nesse contexto, nota-se que o princípio basilar para este entendimento, o da não culpabilidade, está presente, também, no artigo 9º da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, e no artigo 11º da Declaração Universal de Direitos Humanos, que defendem que o indivíduo não poderia ser apontado como culpado sem antes haver uma comprovação definitiva que o incriminasse nas instâncias superiores. Já no princípio do devido processo legal, para o indivíduo ser declarado culpado, necessita-se de um processo justo e com todas as garantias constitucionais, oferecendo uma dupla proteção, a material e a formal, garantindo-se a observância das regras técnicas e a proteção aos bens jurídicos como a liberdade, a propriedade e a vida. Por fim, a Constituição também assegura o princípio da ampla defesa e do contraditório, ambos relacionados ao direito que o réu possui de se defender, apresentando provas e se manifestando no processo.
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Vê-se que a privação de liberdade do réu, já em segunda instância, dificulta e até inibe a efetivação de tais princípios. Dessa forma, por violá-los, interpreta-se inconstitucional um entendimento diverso do supracitado. Em fevereiro de 2016, por sete votos a quatro, no julgamento do Habeas Corpus n.º 126.292, o Supremo Tribunal Federal tornou possível a prisão em segunda instância, considerando o réu culpado sem que se aguarde a decisão em instâncias superiores, contrariando a interpretação anterior. Perceptível que os votos contrários à prisão em segunda instância versaram acerca da defesa dos princípios constitucionais e da segurança jurídica, buscando manter a jurisprudência da casa. Ainda, segundo Lewandowski: Nós estamos decidindo que a pessoa tem que ser provisoriamente presa, passa presa durante anos, e anos, e anos a fio e, eventualmente, depois, mantidas essas estatísticas, com a possibilidade que se aproxima de 1/4 de absolvição, não terá nenhuma possibilidade de ver restituído esse tempo em que se encontrou sob a custódia do Estado em condições absolutamente miseráveis, se me permite o termo (LEVANDOSWKI, 2016, p. 101).
Em contrapartida, os votos vencedores relataram que a culpabilidade do réu já está declarada em segunda instância, e que no recurso extraordinário são verificadas apenas questões de matéria do processo. Como também consideraram problemática a possibilidade de se recursar diversas vezes com a finalidade de adiar a pena, além de, muitas vezes, poder-se chegar à prescrição do processo sem que haja resolução de mérito. O Tribunal conclui afirmando que os princípios constitucionais devem se alinhar com a efetividade da jurisdição, como relata o ministro Barroso: A presunção de inocência é princípio (e não regra) e, como tal, pode ser aplicada com maior ou menor intensidade, quando ponderada com outros princípios ou bens jurídicos constitucionais colidentes (BARROSO, 2016, p. 27).
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Esse foi o entendimento mantido no HC 152.752, de 2018, por meio do qual a defesa do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva buscava impedir a execução provisória da pena diante da confirmação pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF-4). Nesse contexto, Lula foi acusado pelos crimes de corrupção passiva e lavagem de dinheiro, no processo conhecido como “triplex do Guarujá”, em julho de 2017. E, por conta da decisão do STF acerca da prisão em segunda instância, Lula foi preso em abril de 2018. Após dezenove meses preso, foi solto em novembro de 2019 devido a uma nova mudança de interpretação do STF a respeito do tema. Consoante a decisão, o juiz federal Danilo Pereira Júnior decretou a soltura do ex-presidente Lula, o qual vai aguardar o julgamento nas instâncias superiores em liberdade. Em seguida, com o julgamento das ADCs 43, 44 e 45, foram reforçados os entendimentos contrários à prisão em segunda instância. Esses julgados tinham o objetivo de examinar a constitucionalidade do artigo 283 do Código de Processo Penal, que prevê, entre as condições para a prisão, o trânsito em julgado da sentença condenatória. Percebe-se que a mesma mudança ocorreu em 2009, 2016 e 2019, trazendo, por parte do STF, uma enorme insegurança jurídica ao ordenamento brasileiro. Assim, fica claro que essas alterações na interpretação favoreceram politicamente a oposição do partido do ex-presidente, uma vez que durante as eleições o “líder do partido” estava preso. Desse modo, entende-se que o a mudança de entendimento e a decisão prevalecente podem ter determinado os protagonistas das eleições presidenciais. Constata-se que a polarização política influencia também as decisões do poder judiciário, ou seja, este pode vir a extrapolar sua função de protetor da Constituição, indo de encontro à própria Carta constitucional, sua norma fundamental.
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6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Apesar de não vivenciarmos, portanto, um momento de ruptura ou crise constitucional, é manifesto que experienciamos um progressivo apodrecimento constitucional e democrático, com sobrecarga das instituições e aumento da supressão das liberdades individuais. Vê-se que tal fenômeno é fruto de um declínio dos traços democráticos e da ascensão de um governo que não observa os limites ainda existentes no jogo duro, influenciando as camadas sociais e fazendo uso de violência política. Impõe-se uma polarização tóxica perceptível a partir do eixo principal do petismo e antipetismo, e, posteriormente, do bolsonarismo e anti bolsonarismo. Constatado por análises da ciência política em índices que quantificam esses abusos e violações, a proeminência de condutas autocráticas demanda dos poderes um maior comprometimento com as garantias fundamentais ao Estado Democrático de Direito. Não se trata de tolher o debate público ou contorná-lo por acepções do que pode ou não o integrar, mas um reconhecimento do papel educador e responsabilizador que as instituições possuem. Nesse cenário, a polarização política chega a todas as esferas, públicas ou privadas, podendo até mesmo ter efeitos no Supremo Tribunal Federal. Seu papel contra majoritário é prejudicado por tendências políticas, refletidas num descontentamento geral da população que perde confiança nas instituições, evidenciando a necessidade de que todos os poderes se atenham às suas prerrogativas, reconhecendo suas limitações e assegurando os direitos preconizados pela Constituição de 1988. Criou-se um sistema retroalimentado de intolerância e extremismo que ultrapassam as técnicas já conhecidas de controle. À medida que a interpretação do texto da Constituição tem sido transformada, em razão do próprio jogo duro e da influência da polarização em órgãos como a Suprema Corte, o crescente apodrecimento e o profundo mal-estar podem levar a um momento de ruptura, tornando-se, assim, uma crise constitucional.
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O enfrentamento deve pautar-se em um retorno às premissas constitucionais, do pacto firmado para uma sociedade extremamente diversa e que ainda assim possui valores comuns. A dignidade, igualdade, liberdade, vida, honra e tantas outras se sobressaem às discordâncias e rememoram mecanismos de diálogo que constroem a democracia. REFERÊNCIAS ABREU, Mariana Piaia; GRASSI, Rosanna; DEL-VECCHIO, Renata R. Structure of control in financial networks: An application to the Brazilian stock market. Physica A: Statistical Mechanics and its Applications, Elsevier, vol. 522(C), p. 302-314, 2019. BALKIN, Jack M. Constitutional Crisis and Constitutional Rot. Yale Law School Legal Scholarship Repository, 2017. Disponível em: https://digitalcommons. law.yale.edu/fss_papers/5158/ . Acesso em: 23 jul. 2019. BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal: Centro Gráfico, 1988. Disponível em: http:// www.planalto.gov.br. Acesso em: 06 de maio de 2020. BRASIL. Tribunal Federal. Habeas-corpus nº 126.292. Paciente: Marcio Rodrigues Dantas. Relator: Ministro Teori Zavaski. Brasília, DF, 17 de fevereiro de 2016. Disponível em: http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=10964246. Acesso em: 08 de maio de 2020. BORGES, André; VIDIGAL, Robert. Do lulismo ao antipetismo? Polarização, partidarismo e voto nas eleições presidenciais brasileiras. Opinião Pública, Campinas, v. 24, n. 1, p. 53-89, jan./abr. 2018. DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. Trad. Nelson Boeira. São Paulo: Martins Fontes, 2002. ESTADÃO. Quantas prefeituras cada partido conquistou nas últimas três eleições. 2 out. 2016. Disponível em: https://infograficos.estadao.com.br/politica/eleicoes/2016/graficos/evolucao-partidos/?cargo=prefeito&local=brasil. Acesso em 09 mai. 2020. FRANCO, Meliza Marinelli. Constitucionalismo e democracia em Ronald Dworkin: liberalismo igualitário e interpretação da Constituição. Revista Pensamento Jurídico, São Paulo, v. 13, n. 1, p. 126-145, jan./jun. 2019.
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ANEXOS ANEXO A - Mapa do resultado do segundo turno das eleições de 2014
FONTE: GAZETA DO POVO. Relembre a eleição para presidente em 2014. 21 set, 2018. Ilustração: Benett/Arquivo GP. Disponível em: https://especiais. gazetadopovo.com.br/eleicoes/2018/resultados/relembre-2014-votacao-presidente-municipios/. Acesso em 08 mai, 2020. Recorte.
POLARIZAÇÃO POLÍTICA E A CRISE DA DEMOCRACIA BRASILEIRA | 219
ANEXO B - Mapa do resultado do segundo turno das eleições de 2018
FONTE: GAZETA DO POVO. Mapa de presidente: quem ganhou em cada estado no 2º turno. 28 out, 2018. Disponível em: https://especiais.gazetadopovo.com.br/eleicoes/2018/resultados/mapa-eleitoral-de-presidente-por-estados-2turno/. Acesso em 08 mai, 2020. Recorte.
INFANTICÍDIO INDÍGENA: UM CONFLITO DE DIREITOS FUNDAMENTAIS
Felipe Fadanni Teixeira
RESUMO
O presente artigo tem como objetivo analisar o infanticídio enquanto prática de alguns povos indígenas brasileiros e explorar sucintamente os pontos de vista contrários que este desperta. O objetivo é determinar, por meio da contraposição dos argumentos favoráveis e desfavoráveis, se os índios devem ter o direito de exercer irrestritamente suas práticas culturais ou se em algum momento deve haver a supremacia do direito à vida. Palavras-chave: Relativismo cultural. Infanticídio indígena. Eugenia. Direitos humanos. Teoria do direito. 1 INTRODUÇÃO
A questão do infanticídio indígena envolve primeira e fundamentalmente um conflito de direitos fundamentais. De um lado há o direito à vida das crianças indígenas vítimas dessa prática, do outro o direito das tribos indígenas amazônicas à sua livre expressão cultural e religiosa. É evidente que o Estado brasileiro tem um papel fundamental na resolução desse impasse e, portanto, este trabalho pretende modestamente indicar a sua legitimidade para agir em defesa de um ou de outro desses direitos. Essa é uma tarefa difícil que exige a contraposição entre os argumentos de defesa de ambos os lados para determinar qual direito deverá prevalecer e, consequentemente, justificar ou não a intervenção do Estado brasileiro em comunidades tão isoladas. Isso só é possível a partir dos referenciais teóricos de autores que teorizaram exaustivamente acerca da
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figura dos Direitos Fundamentais e a sua proteção por parte do Estado, destacando-se também a legislação já produzida em face da questão do infanticídio indígena no Brasil. Todavia, antes de mais nada, cumpre uma breve conceituação do fenômeno do infanticídio. 2 O QUE É INFANTICÍDIO INDÍGENA?
O infanticídio é uma prática presente em mais de 20 diferentes etnias indígenas brasileiras, dentre elas: os Suruwahás, os Tapirapés, os Ianomâmis, os Madilhas e os Kaimaiurás (ESTEVES, 2012, p. 6). Esse fenômeno atinge predominantemente crianças indígenas nascidas com alguma deficiência, deformidade ou doença genética, além dos gêmeos, das filhas de mães solteiras, que sejam fruto de adultério ou ainda cujo sexo não seja o desejado pelos pais (ROSA, 2014, p. 180-182). Por livre iniciativa dos pais ou por pressão dos líderes das comunidades indígenas, essas crianças são sacrificadas em rituais religiosos, de formas muitas vezes cruéis, o que certamente causa certa comoção na sociedade civil (em alguns desses rituais, as crianças são queimadas, enterradas vivas, afogadas, estranguladas e até abandonadas na mata). Para compreender o fenômeno do infanticídio, é necessário investigar os motivos que levam os povos indígenas a praticá-lo. Para algumas tribos, como os Suruwahás, o nascimento de um deficiente representa uma maldição capaz de trazer o infortúnio a todos os membros da tribo e, portanto, essa criança enquanto permanecer viva ameaçará o bem-estar da comunidade como um todo. Outra justificativa comum para o infanticídio reside na crença de que, nas crianças, a ligação entre a alma e o corpo é muito tênue, podendo ser facilmente desfeita em virtude de um susto ou durante o sono. Sob essa perspectiva, as doenças e deformidades que acometem alguns recém-nascidos e crianças pequenas seriam resultado de um “desligamento” entre o corpo e a alma que por algum motivo não pôde ser revertido e, dessa forma, aquela criança não mais possui uma alma, sendo, portanto, desprovida de humanidade.
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Ser considerado um “verdadeiro ser humano”, na visão das etnias indígenas amazônicas, pressupõe o cumprimento de uma série de expectativas morais, sociais e culturais que permitem o pertencimento da pessoa àquela comunidade. Dessa forma, a não obediência a essas expectativas afasta a humanidade do indivíduo e justifica o infanticídio. A questão do infanticídio, dividiu os ânimos entre aqueles que defendem o direito dos indígenas de praticá-lo enquanto expressão de sua cultura e de sua religiosidade e aqueles que defendem uma intervenção do poder público como forma de garantir o direito à vida das crianças indígenas, acima de qualquer expressão cultural. Este debate pode ser facilmente sintetizado por intermédio da oposição entre a supremacia dos direitos humanos ocidentais e um relativismo cultural radical, que visa erradicar qualquer tipo de visão etnocêntrica acerca da realidade. 3 EM DEFESA DA SUPREMACIA DO DIREITO À VIDA 3.1 A INTERVENÇÃO LEGÍTIMA DO PODER PÚBLICO
Tendo como pressuposto a inafastabilidade do direito à vida, impõe-se o entendimento de que uma postura de relativismo cultural não pode ser admitida quando se discute o infanticídio indígena, visto que um direito fundamental maior do que todos os outros está em jogo. Apesar de o relativismo cultural ter o seu valor metodológico, este é completamente perdido quando a perspectiva relativista é radicalizada, já que faz com que o antropólogo pressuponha que toda interferência de um grupo cultural em outro é necessariamente opressiva e ilegítima. No caso de uma intervenção do Estado brasileiro nas tribos indígenas amazônicas, com o intuito de evitar a prática do infanticídio, a ação do poder público seria completamente legítima, uma vez que teria como objetivo a proteção de um direito universal (direito à vida), acima do direito particular dos indígenas de exercer suas práticas culturais. Outra justificativa no mínimo pertinente para a importância da intervenção estatal como forma de combater o infanticídio, está no fato de
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que esta prática não ameaça apenas a vida de recém-nascidos enfermos, pois algumas crianças saudáveis também são mortas, como já mencionado, simplesmente por não serem do sexo desejado pelos pais ou porque já havia “crianças demais” na família. Além disso, há de se destacar os impactos negativos que a prática do infanticídio possui em relação aos familiares da criança, em alguns casos, por exemplo, após o sacrifício do infante, há relatos de pais que acabam ingressando em um quadro depressão profunda e até mesmo se suicidando. 3.2 JUSTIFICATIVAS CONSTITUCIONAIS À SUPREMACIA DO DIREITO À VIDA
A Constituição de 1988 estabelece no artigo 5°: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida (...)” (BRASIL, 1988). A Convenção Sobre Direitos da Criança (ONU), que entrou em vigor internacional em 02 de setembro de 1990 e foi ratificada pelo governo brasileiro em 24 de setembro de 1990 (conforme o decreto No 99.710, de 21 de novembro de 1990), estabelece: Art. 6.1. Os Estados Partes reconhecem que toda criança tem direito inerente à vida. (...) Art. 37. Os Estados Partes zelarão para que: a) nenhuma criança seja submetida à tortura nem a outros tratamentos degradantes. b) não seja imposta a pena de morte (...) por delitos cometidos por menores de 18 anos de idade (ONU, 1990).
Levando em consideração o fato de o infanticídio contrariar essas normas presentes na legislação brasileira, seria completamente legítima a sua criminalização, assim como seria imprescindível a ação do Estado brasileiro nas comunidades indígenas com o intuito de combater essa prática.
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3.3 O PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE DE ROBERT ALEXY
O princípio da proporcionalidade de Robert Alexy também é um instrumento muito utilizado por estudiosos na defesa do direito à vida como superior a qualquer outro. Enuncia o filósofo alemão: Os direitos fundamentais não precisam alcançar uma homogeneização de cada ordem jurídica fundamental, pois o maior objetivo dela é desvendar todas as estruturas dogmáticas e ressaltar os princípios e valores que estão escondidos atrás de codificações e jurisprudências (ALEXY, 2011, p. 90).
O instrumento teórico mais importante na resolução desses conflitos é o método da ponderação (uma das chamadas máximas parciais do princípio da proporcionalidade). Esse método consiste, resumidamente, em considerar o peso (a partir do princípio da proporcionalidade) de cada um dos princípios em conflito no caso concreto, para então determinar qual deve ser sacrificado naquele caso em específico (CARBONERA; FREITAS, 2014, p. 500-501). Dessa forma em um choque de direitos fundamentais, como ocorre na discussão acerca do infanticídio indígena (direito à vida X direito à cultura), aquele que detém mais possibilidades jurídicas afasta temporariamente o outro. Dessa forma, como o direito de todos à vida é um dos princípios que fundamentam a legislação brasileira como um todo, esse direito poderia afastar temporariamente todos os outros direitos com que entrasse em conflito. 3.4 ASPECTOS MIDIÁTICOS DO INFANTICÍDIO INDÍGENA
Nos últimos anos, a questão do infanticídio indígena tem ocupado significativo espaço nas discussões tanto acadêmicas quanto informais. Isso se deve em grande parte à recente exposição midiática do tema nos grandes veículos de comunicação. Foram noticiados vários casos de crianças indígenas, as quais, embora “condenadas” ao infanticídio pelos membros de suas tribos, so-
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breviveram graças à intervenção de familiares ou grupos externos à comunidade. O caso mais famoso é o de Iganani (PINEZI, 2010, p. 40), uma menina suruwahá que nasceu com paralisia cerebral e deixou de ser sacrificada por intervenção de sua mãe Muwaji, que fugiu com a criança para o Estado de São Paulo, na esperança de que sua filha pudesse receber o tratamento médico adequado. A luta de Muwaji e Iganani foi a principal motivação do Projeto de Lei nº 1057/2007 de trataremos adiante. Outro caso semelhante, que ganhou notoriedade após reportagem do programa “Fantástico” em 2014 (PINEZI, 2010, p. 40), é o de Pituko Waiãpi, que nasceu com paralisia infantil em uma aldeia waiãpi, no interior do Amapá. Pituko não foi aceito por sua família, que pretendia sacrificá-lo, porém foi salvo pela FUNAI, que o retirou de seu lar e permitiu que recebesse os devidos cuidados médicos. O menino voltou à sua aldeia com saúde aos sete anos de idade e lá vive até hoje. A ONG brasileira “Atini – Voz pela vida” (SANTOS-GRANERO, 2011, p. 132), liderada por antropólogos, líderes indígenas, linguistas, advogados e educadores, em sua campanha contra o infanticídio e de apoio à Lei “Muwaji”, produziu um documentário sobre Hakani, uma menina suruwahá com uma história também maculada pelas práticas dos membros de sua tribo. Hakani, assim como seu irmão Niawi, nasceu com uma doença neuromotora causada por hipertireoidismo. O pajé de sua comunidade afirmou que os irmãos haviam sido atraídos pelo espírito da floresta e eram a causa das desgraças que atingiam a tribo. Os familiares da menina foram pressionados a sacrificar os dois. O irmão mais velho de Hakani cedeu à pressão e acabou por matar Niawi. A menina só não foi morta porque o filho do meio da família a levou para fora da aldeia e a entregou a um grupo de missionários evangélicos. Os casos de Iganani, Pituko e Hakani evidenciam que o infanticídio muitas vezes não é aceito de forma unânime por todos os membros das comunidades indígenas e acaba sendo praticado por pressão dos líderes religiosos. Além disso, fica claro que muitas das crianças sacrificadas poderiam vir ter plenas condições de viver uma vida normal se recebessem o devido tratamento médico.
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Inegavelmente influenciados por tal apelo midiático, novos projetos de lei surgiram no âmbito do Poder Legislativo, com o intuito de combater o infanticídio e preservar os princípios fundamentais da Constituição. Um exemplo é o já mencionado Projeto de Lei n.º 1057/2007 (SANTOS-GRANERO, 2011, p. 132), apelidado de Lei “Muwaji” em homenagem à mulher indígena da etnia Suruwahá, que lutou contra os membros de sua tribo para evitar o sacrifício de sua filha Iganani de 8 anos. Proposto pelo deputado federal Henrique Afonso do PT/AC, em abril de 2007, e aprovado pela Câmara dos Deputados em agosto de 2015. O Projeto visa combater o infanticídio e outras práticas culturais indígenas que atentam contra os direitos humanos, criminalizando-as. Assim dispõe: Art. 1º. Reafirma-se o respeito e o fomento a práticas tradicionais indígenas e de outras sociedades ditas não tradicionais, sempre que as mesmas estejam em conformidade com os direitos humanos fundamentais, estabelecidos na Constituição Federal e internacionalmente reconhecidos. Art. 2º. Para fins desta lei, consideram-se nocivas as práticas tradicionais que atentem contra a vida e a integridade físico-psíquica, tais como: I. homicídios de recém-nascidos, em casos de falta de um dos genitores; II. homicídios de recém-nascidos, em casos de gestação múltipla; III. homicídios de recém-nascidos, quando estes são portadores de deficiências físicas e/ou mentais; IV. homicídios de recém-nascidos, quando há preferência de gênero; V. homicídios de recém-nascidos, quando houver breve espaço de tempo entre uma gestação anterior e o nascimento em questão; VI. homicídios de recém-nascidos, em casos de exceder o número de filhos considerado apropriado para o grupo; VII. homicídios de recém-nascidos, quando estes possuírem algum sinal ou marca de nascença que os diferencie dos demais; VIII. homicídios de recém-nascidos, quando estes são considerados portadores de má-sorte para a família ou para o grupo;
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IX. homicídios de crianças, em caso de crença de que a criança desnutrida é fruto de maldição, ou por qualquer outra crença que leve ao óbito intencional por desnutrição; (BRASIL, 2020).
A Lei “Muwaji” foi recebida pela parcela predominante da sociedade como um avanço importante para a supremacia dos direitos humanos, visto que não só se propõe a acabar com tradições consideradas “primitivas” e “desumanas” como o infanticídio, como também garante o respeito às práticas tradicionais indígenas desde que não atentem contra os direitos fundamentais protegidos pela legislação brasileira. 4 EM DEFESA DO DIREITO DOS ÍNDIOS ÀS SUAS PRÁTICAS CULTURAIS 4.1 O RELATIVISMO CULTURAL E O INFANTICÍDIO INDÍGENA
Talvez, o argumento mais comum utilizado na defesa do direito dos índios à sua expressão cultural irrestrita seja aquele que recorre ao relativismo cultural, ou seja, à crença na necessidade de se compreender e respeitar a pluralidade de culturas e visões de mundo, considerando que algumas práticas podem ter um significado diferente dependendo da perspectiva cultural que se adota ao analisá-las (BORGES, 2014, p. 5). Esse relativismo é visto por muitos como um instrumento metodológico indispensável para a realização de trabalhos antropológicos. Quando refletimos a respeito da interferência do homem branco nas comunidades indígenas, inevitavelmente lembramos de todas as atrocidades cometidas desde a época do descobrimento e também dos males que o etnocentrismo causou a um povo tão frágil quanto o povo indígena. Isso faz com que muitos estudiosos recorram ao “relativismo cultural radical”, acreditando que a única forma de proteger os indígenas seja repudiando qualquer forma de interferência no modo de vida desse grupo. Sob essa ótica, devemos abandonar nossa concepção ocidental e etnocêntrica da realidade e tentar compreender o significado do infanti-
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cídio para as comunidades indígenas, que o veem não como uma atrocidade, mas como um ato de amor e desespero, uma forma de evitar uma calamidade maior, proteger o bem-estar da tribo como um todo e evitar o sofrimento de um indivíduo que não teria condições de desenvolver sua personalidade. Para os que defendem o direito dos indígenas ao infanticídio, isso expressa, de fato, o senso de coletividade presente na mentalidade indígena, que faz com que os problemas individuais dos membros da tribo sejam compartilhados por todos e que pode ser incompreensível para nós que estamos acostumados a enxergar tudo sob uma ótica individualista (SANTOS, 2011, p. 13; PINEZI, 2010, p. 35). 4.2 A INTERVENÇÃO DEVASTADORA DO HOMEM BRANCO
Outro argumento muito presente nas teses dos autores favoráveis ao direito das comunidades indígenas de praticar o infanticídio enquanto tradição cultural e religiosa reside no fato de que a história mostra que sempre a interferência do homem branco nas tribos indígenas foi de alguma forma prejudicial para estas últimas. Foi assim à época do descobrimento, em que os nativos do novo continente foram massacrados e escravizados, e é assim até hoje (PINEZI, 2010, p. 35). Não é raro acompanharmos nos noticiários os sangrentos conflitos de terra que se dão entre indígenas e latifundiários, por exemplo. Dessa forma, é de se esperar que a interferência do poder público nas comunidades indígenas se dê de forma violenta e provoque danos mais graves do que os que se propõe a reparar. Assim, projetos de lei que pretendem criminalizar o infanticídio e outras práticas indígenas consideradas desumanas, como a mencionada “Lei Muwaji”, seriam inevitavelmente aplicados de modo violento, trazendo mais prejuízos do que benefícios, além de estarem claramente impregnados pelos interesses, principalmente por parte da bancada ruralista do legislativo, na apropriação das terras indígenas. Esses projetos são defendidos com um discurso civilizador altamente etnocêntrico, um falso humanismo que finge se preocupar com o bem-estar das comunidades indígenas quando, na verdade, pretende impor uma “civilização” extremamente danosa a elas.
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4.3 ESCASSEZ DE RECURSOS E TECNOLOGIA
As tribos indígenas da Amazônia são comunidades “primitivas” que vivem em condições precárias. Muitas dessas comunidades não têm acesso aos médicos, remédios e tecnologia necessários para o tratamento de crianças enfermas ou com alguma deficiência. Sendo assim, essas crianças não teriam condições de sobreviver em um ambiente tão hostil quanto a floresta amazônica, e o infanticídio restaria como uma espécie de “tiro de misericórdia” a quem já nasceu sem nenhuma perspectiva de futuro. Outro problema enfrentado por algumas comunidades é o da escassez de alimentos, que leva alguns casais que já possuem um número considerável de filhos a praticar o infanticídio como forma de evitar que os membros saudáveis da família sejam atingidos pela fome, visto que uma criança enferma nunca terá condições de trazer alimento para casa, enquanto se nutre às custas do trabalho dos outros. Dessa forma, o infanticídio também poderia ser visto como uma forma encontrada pelos índios de controlar a população das aldeias para que esta não ultrapasse um número limite, tendo em vista o problema de escassez de alimentos. 4.4 A ÉTICA HABERMASIANA
Um dos pontos centrais da teoria habermasiana é a relação entre a ação comunicativa e a legitimidade do direito. O direito não pode assegurar-se dos fundamentos de sua legitimidade somente por meio da legalidade. Para que haja legitimidade é necessário que os destinatários das normas sejam os próprios autores. Nesse sentido, afirma Rainer Forst: (...) o processo democrático legislativo se transforma no verdadeiro lugar da integração social, o que significa que aqueles indivíduos sujeitos ao direito têm que ter, ao mesmo tempo, a possibilidade e serem exortados a se verem como autores do direito e, assim, como participantes em uma prática do entendimento (FORST, 2009, p. 181).
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Isso só é possível por meio de uma ação comunicativa voltada ao consenso, que depende da existência de condições iguais de diálogo em relação às partes. Sobre a ação comunicativa e o seu papel na conciliação dos interesses conflitantes, afirma Marcos Nobre: Na ação comunicativa, o objetivo não é o êxito, não é o cálculo dos melhores meios para alcançar fins previamente determinados; a ação comunicativa tem por objetivo o entendimento entre os participantes da discussão (...). Segundo Habermas, esse tipo de ação permite a reprodução simbólica da sociedade, sem a qual o conflito e o dissenso se expressariam unicamente em termos de interesses inconciliáveis, (...), o que levaria a sociedade moderna à autodestruição. (NOBRE; TERRA, 2008, p. 21).
Habermas afirma que a legitimidade do direito se apoia em um arranjo comunicativo que se daria por meio de um processo democrático em que as normas pudessem ser criticadas e justificadas racionalmente, para que pudesse resultar o exercício do poder legítimo. Também é importante destacar que, segundo Habermas, desse processo de legitimação do direito por meio da ação comunicativa decorre que, para confirmar a validade de uma norma, é necessário submetê-la ao “princípio da universalização”, ou seja, à verificação de sua aceitação por todos que por ela sejam afetados. Assim, uma norma que determine a intervenção do Estado brasileiro nas comunidades indígenas de modo a combater a prática do infanticídio não pode ser aprovada ao ser submetida ao princípio da universalização, já que os membros de tais comunidades não têm condições materiais de concordarem livremente com a intervenção estatal, tendo em vista a impossibilidade de um diálogo igualitário entre as referidas comunidades e os demais setores da sociedade brasileira. Em suma, considerando o referencial teórico de Habermas, pode-se afirmar que as normas só possuem legitimidade quando são fruto de um arranjo comunicativo, que se dá por meio de um processo democrático, em que, dotados de iguais condições de diálogo, os indivíduos
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afetados pelas normas vejam a si mesmos como autores dessas normas. No caso da positivação de uma norma que se propusesse a combater por meio do aparato punitivo do Estado a prática do infanticídio, esta não possuiria legitimidade, uma vez que as comunidades indígenas, inegavelmente atingidas por tal norma, não estariam em condições iguais de diálogo em relação ao legislador e aos demais setores da sociedade brasileira, impossibilitadas, portanto, de participar de maneira democrática da elaboração de tal norma. 4.5 JUSTIFICATIVAS CONSTITUCIONAIS AO DIREITO DOS ÍNDIOS À LIVRE EXPRESSÃO CULTURAL
Os antropólogos que defendem o direito dos indígenas à prática do infanticídio argumentam que a legislação brasileira reconhece e protege na constituição de 1988 os costumes e tradições indígenas, bem como assegura o direito dos índios à sua organização social, língua, expressão religiosa e práticas culturais em geral (nas quais o infanticídio também deveria ser incluído). A proibição do infanticídio, na visão desses antropólogos, também contraria o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos adotado pela XXI Sessão da Assembleia-Geral das Nações Unidas em 16 de dezembro de 1966 e que entrou em vigor no Brasil em 24 de abril de 1992, que determina, no artigo 27, que todas as minorias terão o direito de exercer suas próprias práticas culturais. Cabe também citar a Convenção 169 da OIT, que foi um marco na legislação internacional relativa aos povos indígenas, pois esta compilou um gama muito grande de garantias específicas desses grupos, como o direito à autodeterminação, o direito de manterem seus modos de vida e manterem e fortalecerem suas identidades no âmbito dos Estados em que vivem (SANTOS, 2011, p. 11).
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5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A questão do infanticídio indígena é apenas mais uma dentre as que envolvem conflito entre direitos fundamentais, as estratégias utilizadas para a resolução desse impasse podem servir para solucionar diversas outras antinomias existentes no ordenamento brasileiro. Dito isso, é imprescindível estabelecer os motivos pelos quais, embora o direito à vida deva ser protegido pelo Estado brasileiro, não é razoável que se admita intervenções policialescas do poder público nas comunidades indígenas. A constante exploração midiática, de cunho sensacionalista, do infanticídio indígena apenas fomenta a indignação das parcelas majoritárias da sociedade brasileira, que nada ou quase nada compreendem acerca da realidade material e cultural dos povos indígenas, e nutrem o desejo punitivista de uma “vingança institucionalizada” por parte do Estado (SANTOS-GRANERO, 2011, p. 132). A argumentação em favor da intervenção estatal em comunidades isoladas é bastante frágil, na medida em que desconsidera o real significado do infanticídio para os povos indígenas analisando este fenômeno exclusivamente sob a ótica ocidental e etnocêntrica, o que é potencializado pela divulgação midiática de histórias como as de Iganani, Pituko e Hakani. O relativismo cultural deve servir como filtro para evitar que o Estado brasileiro assuma uma postura paternalista e exageradamente moralista, desconsiderando as diferenças culturais existentes entre o povo das metrópoles e o povo das tribos amazônicas. O direito à vida é inegavelmente um direito fundamental que deve ser garantido a todos os indivíduos residentes no país, independentemente de raça, etnia, nacionalidade ou religião e protegido pelo Estado brasileiro, por força do que dispõe a Constituição Federal e as Convenções Internacionais de Direitos Humanos das quais o Brasil é signatário. Todavia, não são legítimas as investidas no sentido da criminalização do infanticídio e da intervenção do Estado enquanto agente repressor nas comunidades indígenas. Esse é o entendimento que se impõe, por exemplo, do ponto de vista da ética habermasiana desenvolvido anteriormente.
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De modo a garantir o direito das comunidades indígenas a sua autodeterminação, além de evitar os prejuízos de uma intervenção estatal repressiva, assim preservando a integridade das referidas comunidades, é importante estabelecer um diálogo intercultural que concilie ética e respeito à diferença, como a “Lei Muwaji”, em tese, se propõe a fazer. Em outras palavras, é importante preservar e respeitar as tradições indígenas, buscando meios alternativos e menos danosos de garantir que estejam em conformidade com os direitos fundamentais protegidos pela nossa constituição, sem, todavia, promover a “homogeneização” das diferenças culturais existentes entre as comunidades tradicionais e a maioria da sociedade brasileira. A título de exemplificação, há inúmeros projetos sociais como a já mencionada ONG Atini, que procuram retirar algumas das crianças, que inevitavelmente seriam sacrificadas em suas comunidades (pois não são tidas como seres humanos pertencentes à comunidade), disponibilizando-lhes o tratamento médico adequado e posteriormente buscando a sua reinserção em um novo lar. REFERÊNCIAS ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. 3. ed. Malheiros Editores, São Paulo, 2011. BORGES, Lara Faria de Pereira. Os limites do direito constitucional à preservação da cultura e o infanticídio indígena. 2014. Faculdade de Direito, UnB, Brasília, 2014. BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 25 jul. 2020. BRASIL. Decreto nº 592, de 6 de julho de 1992. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Poder Executivo, Brasília, DF. Disponível em: http:// www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990-1994/D0592.htm. Acesso em: 25 jul. 2020.
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REFLEXÕES SOBRE OS LIMITES DA AUTONOMIA PRIVADA A PARTIR DOS EMBATES E DICOTOMIAS POLÍTICOSOCIAIS DA PROSTITUIÇÃO
Guilherme Rolin de Ávila da Silva Laura de Sá Liston Luize Liebsch Kestring Stephany Vitória Alves Orgino Vinícius Fernando Marcolino Filho
Em homenagem a Professora Doutora Katya Kozicki
RESUMO
Este artigo tem por objetivo trazer uma pluralidade de perspectivas, teorias, pensamentos e reflexões, agregando sintonias teóricas e práticas e, ao mesmo tempo, apontando divergências entre vários entendimentos, sobre a dicotomia entre autonomia privada e pública – trazendo um encadeamento concernente ao constitucionalismo e democracia – num recorte temático alusivo à prostituição. Desenvolve-se sobre o que diz respeito à interferência estatal nas diversas esferas sociais e privadas, assim como até que ponto e de que modo o cidadão tem liberdade e autonomia em sua vida privada. Faz-se a elaboração de pensamentos com embasamento em múltiplos pensadores e autores importantes os quais contribuíram significativamente nos objetos deste estudo. Conta-se também com pesquisa de campo relevante para a contribuição do entendimento prático do assunto na sociedade. Palavras-chave: Prostituição. Autonomia Pública. Autonomia Privada. Direitos individuais. Vulnerabilidade social.
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1 INTRODUÇÃO
Em uma sociedade diferente ao pluralismo de ideias, a moral coletiva se preconiza e cerceia os interesses particulares, principalmente, das minorias sociais. Tal fato acontece por meio das leis e regras, as quais estabilizam as expectativas de comportamento de pessoas que compartilham diferentes visões de mundo. Diante desse cenário, nota-se o conceito de Liberdade Negativa, do filósofo britânico Isaiah Berlin (1981), que, diferente da Liberdade Positiva, em que existe a presença de condições para que os indivíduos ajam de modo a atingir seus objetivos, denota, por sua vez, a ausência destes impedimentos. Dessa maneira, a liberdade de alguns, em seu sentido irrestrito, precisa depender da limitação de outros. Nesse contexto, surge a dicotomia entre a autonomia pública e privada. Esse embate pode ser ilustrado com temas como: aborto, transfusão de sangue em Testemunhas de Jeová, eutanásia, descriminalização das drogas, casamento gay e, é claro, a prostituição. A partir desse espectro, pode-se debater até que ponto a interferência da autonomia pública, não só nos casos citados, é benéfica e a partir de quando ela transcende seus poderes e começa a ser prejudicial e totalitária. Essa adversidade entre autonomia pública e privada pode ser percebida nos teóricos do liberalismo, ao passo que Thomas Hobbes argumenta a necessidade de ampliar a área de controle e diminuir a do indivíduo, John Locke acreditava em uma harmonização das esferas público e privada, por meio do pacto social. Por tudo isso, vê-se que, ambos são filósofos renomados, mesmo assim não consentem qual área deveria se sobrepor na sociedade. Trazendo esse debate para o âmbito histórico, nota-se que a autonomia privada é um princípio que tem suas bases na sociedade liberal dos séculos XVIII e XIX, marcada por uma ideologia individualista, onde o homem era o centro do direito, sendo a sua vontade livre e respeitada pelo Estado. Todavia, tal princípio vai sendo moldado e relativizado à medida que a sociedade vai evoluindo, principalmente após a I Guerra
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Mundial, quando o Estado assume uma posição mais intervencionista, passando a regular com mais rigor as relações privadas. Nesse contexto, a tensão entre constitucionalismo e democracia fica clara, enquanto a Constituição Federal nos funda como comunidade política, assegurando a liberdade individual de maneira igual e extensiva, vive-se em um sistema de governo democrático, neste, reina o majoritarismo, podendo tornar-se a tirania da maioria, onde a autonomia pública transcende seus limites e passa a ditar regras que regulam a vida individual em sua intimidade, limitando a autonomia privada. Por fim, este trabalho versa sobre a dicotomia entre autonomia pública e privada, no recorte da prostituição feminina, apesar da mesma interferência acontecer no espectro da prostituição masculina e LGBT, não se pretende invisibilizar esses grupos, apenas focar o centro de pesquisa na perspectiva feminina. Assim, procura-se debater sobre os limites do Estado e problematizar sua interferência na vida privada do cidadão. 2 A PESQUISA DE CAMPO
Realizou-se uma pesquisa de campo em duas ruas da cidade de Curitiba-PR, onde frequentemente são encontradas garotas de programa, com o intuito de obter o material fático e real acerca de como a prostituição é vivenciada por essas mulheres. Três prostitutas aceitaram responder um pequeno questionário, por meio do qual encontramos respostas sobre a influência do Estado na vida privada e profissional dessas mulheres e qual a opinião delas sobre esse paternalismo estatal. O questionário foi o norteador para parte da conclusão deste artigo, pois nada melhor que as pessoas que compõem o objeto da pesquisa para responderem sobre as suas realidades sociais, pessoais e psicológicas. As perguntas constantes no citado questionário foram focadas em uma hipotética interferência estatal caso houvesse uma regulamentação da profissão. Também, foram realizadas perguntas acerca das interferências já existentes e praticadas por órgãos estatais, por exemplo, a proibição da cafetinagem e das casas de prostituição.
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Partindo para a exposição das opiniões das entrevistadas, a primeira mulher abordada expressou total contrariedade quando questionada sobre a possibilidade da existência de qualquer interferência estatal. Segundo ela, qualquer interferência por parte do Estado, mesmo que na tentativa de ajudar nos aspectos sociais e de saúde pública, como aposentadoria e contracepção, na verdade prejudicaria a sua livre ação ou em nada mudaria sua vida. Ao ser questionada especificamente sobre a interferência do Estado no âmbito da saúde pública, como nas suas ações contra as doenças sexualmente transmissíveis, a primeira entrevistada se mostrou consciente da sua responsabilidade e afirmou não achar necessário um chamamento ao Estado para o cuidado com a saúde íntima. Essa mulher também informou como ela se sente com a opinião pública sobre a sua profissão, afirmou se sentir coagida com os palavrões que recebe diariamente quando está no seu local de trabalho e com a exclusão social pela qual passa na sociedade e dentro da sua família, com o pai de sua filha. Ao fim da entrevista, a entrevistada deixa claro que se considera dona do seu corpo para fazer com ele o que bem desejar e retirar dele o seu sustento e da sua filha. Portanto, fica ao lado da autonomia privada, meio em que se sente mais confortável e segura para tomar suas decisões sem a interferência estatal. Em outro ponto da cidade abordamos as últimas duas prostitutas que responderam ao questionário e enriqueceram ainda mais a nossa pesquisa de campo. Ambas concordaram no primeiro questionamento sobre a hipotética imposição estatal do uso obrigatório de qualquer contraceptivo para esta profissão, ambas afirmaram ser uma questão particular e, portanto, encaixando-se no âmbito da autonomia privada. Quando questionadas sobre a interferência estatal na profissão no âmbito da saúde pública, as duas mulheres concordaram ser uma ação importante e afirmaram já conhecer projetos sociais que visam à proteção da saúde da garota de programa no bairro em que praticam a profissão. Elas divergem de opinião quando questionadas acerca da intervenção do Estado para captação de impostos destinados à aposentadoria, décimo terceiro salário e direitos trabalhistas, ou seja, caso houvesse a
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regulamentação de tal trabalho como há em outras profissões. A primeira se posiciona no espaço da autonomia pública, concordando com tal interferência, pagamento de tais impostos e regulamentação, e outra no âmbito da autonomia privada, discordando da citada interferência e da regulamentação. A primeira argumenta no sentido de uma possível aposentadoria, e cita a prostituição de idosas. A segunda embasa a sua afirmação na cobrança excessiva de impostos e as consequências que o desemprego poderia gerar para ela. Ambas concordam quando a pergunta se volta para o paternalismo do Estado na questão da cafetinagem e casas de prostituição. Expressam-se extremamente contra a cafetinagem, mas se mostram menos receosas frente à questão das casas de prostituição. Apoiam a autonomia pública do Estado para agir na proibição da cafetinagem, pois veem nessa atuação um grande perigo e exploração. Por outro lado, não apoiam com a mesma veemência a interferência do Estado na proibição das casas de prostituição, pois acreditam existir lá uma proteção física, social e moral para as garotas de programa, principalmente para as que têm famílias. Ainda, citam os motivos que as levaram para a profissão: a dificuldade financeira e o desemprego. Alertam não encontrar outros empregos que aceitem pessoas de baixa escolaridade e paguem tão bem quanto à prostituição, por esse motivo preferem uma regulamentação feita pelo Estado a abandonar a profissão. As entrevistadas não deixam de expor a sua posição dentro do trabalho, de não interferir na vida pessoal do cliente e não os deixar interferir nas suas vidas privadas. Por fim, reiteram que respeitam a vizinhança do local onde trabalham, mas que não deixarão de trabalhar se for vontade da sociedade ou do Estado. Entendem-se livres e donas dos próprios corpos para que deles possam tirar os próprios sustentos e de suas famílias. Apoiam uma regulamentação por parte do Estado e a sua interferência, em algumas áreas e distante de um radicalismo.
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3 SOMOS DONOS DE NOSSOS CORPOS
Baseado no capítulo “Somos donos de nós mesmos?”, do livro Justiça de Michael J. Sandel, pretendemos iniciar nossa explicação de que há diversos pontos de vista acerca da liberdade que o cidadão comum tem sob o seu corpo. De acordo com a política libertária “cada um de nós tem o direito fundamental à liberdade - temos o direito de fazer o que quisermos com aquilo que nos pertence, desde que respeitemos os direitos dos outros de fazer o mesmo” (SANDEL, 2013, p. 78). Logo, a liberdade de cada um para dispor de seu próprio corpo é o ponto principal. Seguindo com essa visão libertária, a forma de Estado que deve ser adotada é aquela com sua mínima expressão, não deve haver paternalismos por parte do Estado e nem legislação acerca da moral. Em relação ao primeiro conceito, o Estado não deve criar leis que protejam as pessoas de si mesmas, o indivíduo tem a total liberdade de assumir quaisquer riscos que desejar, “o Estado não tem o direito de ditar a que riscos eles podem submeter seu corpo e sua vida” (SANDEL, 2013, p. 79). Já o segundo conceito é autoexplicativo, a lei e sua força coercitiva não podem opinar acerca de assuntos que expressam a opinião de uma maioria e suas convicções morais. “A prostituição pode ser moralmente contestável para muitas pessoas, mas não justifica leis que proíbam adultos conscientes de praticá-la” (SANDEL, 2013, p. 79). A prostituição, por esse ponto de vista, deveria ser completamente não deveria sofrer a menor interferência do Estado. O ato da prostituição diz respeito à disposição que a pessoa faz de seu próprio corpo. É ela quem tem liberdade para dialogar com seu cliente e expor suas exigências. Como demonstrado no artigo de Rogério Araújo da Silva (Prostituição feminina em Goiânia: entendendo contextos identitários) e na entrevista feita pelo grupo e exposta no apêndice deste trabalho, a mulher que se prostitui toma diversos cuidados com o próprio corpo, desde a manutenção de uma boa forma física para atrair
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seus clientes, até o constante cuidado médico consigo mesma para garantir que seu instrumento de trabalho continue lhe trazendo renda todo mês. A mulher que se prostitui tem a liberdade de exigir ou não a camisinha no momento do ato sexual, essa decisão é algo extremamente relacionado a sua vontade. De acordo com Silva, 84% das mulheres que ele entrevistou se recusaram a fazer o programa sem o uso da camisinha, no entanto, essa opção é algo que compete a elas, se optassem por não utilizar mediante um maior pagamento do cliente (ato que acontece com alguma regularidade) seria uma escolha dela também. Em conclusão, a forma como a mulher se prostitui hoje em dia, na prática, é uma decisão completamente situada no âmbito privado de sua vida, o fato de estar profissionalmente ligada aquela situação não exclui sua liberdade de optar ou não pelo uso da camisinha. Em um ponto de vista diverso a essa suposta autonomia da mulher perante seu corpo, encontra-se a publicação de Débora Mendonça para a página “Marcha Mundial das Mulheres” (2013), a qual defende que a mulher que se prostitui não está tomando uma decisão por conta própria, ela não é livre de outras variáveis que não são levadas em conta nesse discurso falsamente libertário. Para Mendonça, a prostituição é uma violência que as mulheres em condição de vulnerabilidade sofrem, sem outra opção para se sustentarem precisam recorrer a essa forma de exploração histórica para garantirem o mínimo necessário para a sobrevivência de si próprias e, muitas vezes, sustentam suas famílias dessa forma também. Como declarado na publicação, muitas mulheres não tomaram essas escolhas por conta própria, ou seja, não estamos nem mesmo lidando com sua liberdade de escolha, materialmente, trata-se de um debate acerca das condições forjadas pelo capitalismo e pela construção histórica em que ela se encontrava quando tomou essa decisão. A prostituição não pode ser tratada como uma mera opção profissional de diversas mulheres, devem ser consideradas em conjunto a estrutura na qual estão imersas e que as fizeram aceitar essa condição.
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A questão ética levantada pela prostituição, que envolve a violação dos direitos humanos é dissolvida na vicissitude do vocabulário, substituído pela conotação “trabalhador”, que legitima a ideia superficial de uma profissão como qualquer outra (LEGARDINIER, 1998, p. 01, tradução nossa).
Mudando de perspectiva, se lidarmos com a visão do Estado de Bem Estar Social, a ação estatal deve ser intervencionista e tentar atender da melhor forma possível os interesses de todos. Nessa forma de ver a sociedade, o Estado, estando ciente da posição de vulnerabilidade que diversas prostitutas se encontram, deve fazer algo para as proteger e zelar por seus interesses. Dessa forma, o assunto da prostituição deixa de ser regulado pela autonomia privada e torna-se um assunto relevante para a autonomia pública, que possui o direito e o dever de interferir nessa situação. A prostituição e o tráfico de mulheres são questões exaustivamente abordadas e condenadas por legislação internacional o papel do Estado é fundamental, nem a política de não ingerência nos assuntos privados sem valores e costumes tradicionais podem ser invocados para impedir a luta contra a violência (SILVA, 2008, n.p.).
4 A OPINIÃO PÚBLICA E OS TABUS SOCIAIS RELACIONADOS À PROSTITUIÇÃO
Quando ocorre o contato inicial com a expressão “opinião pública”, automaticamente é realizada uma comparação do termo ao senso comum, algo não científico e, portanto, meramente informal. Apesar de essa visão ser uma concepção relacionada à modernidade, alguns filósofos já tinham uma interpretação parecida. De acordo com o verbete “Opinião Pública” presente na obra “Dicionário de Política” de Norberto Bobbio (1998) escrito por Nicola Matteucci, é possível identificar como ocorreu a caracterização e a interpretação do conceito. Matteucci (1998) informa que o primeiro au-
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tor a tratar sobre o assunto foi Thomas Hobbes, o qual acreditava que a opinião pública ajudava a fortalecer o caos, a anarquia e a corrupção de uma sociedade. Posteriormente, informa que para John Locke a opinião pública era tão somente uma “lei filosófica”, um poder filosófico de julgar ações boas ou ruins. Por outro lado, Matteucci (1998) reconhece que Jean-Jacques Rousseau acreditava que a opinião pública era a verdadeira constituição do Estado, e seria responsável por expressar os juízos morais da população, os quais eram formados pela política vigente e pelos canais institucionais pelos quais eram transmitidos, ou seja, cada grupo social teria um juízo coletivo diferente e a intersecção de todos configurava a vontade geral, a qual formaria a lei da sociedade. Em continuidade à explicação histórica acerca do conceito, Nicola Matteucci (1998) afirma que Immanuel Kant chamava a opinião pública de “publicidade”, e fazia uma ligação direta entre a opinião pública e o uso público da razão. Considerava que a “publicidade” era mediadora entre a política e a moral e tinha como função a permissão da participação política da população. Por fim, Matteucci (1998) cita outros autores que debateram sobre a opinião pública na época de sua desvalorização, entre eles: Hegel, Marx, Tocqueville e Mill. Hegel afirmava que a opinião pública não passava de uma manifestação de juízos de valor. Karl Marx acreditava que a partir da formação do estado político a sociedade civil foi neutralizada e por isso a opinião pública não passava de uma falsa consciência. Alexis de Tocqueville e John Stuart Mill interpretavam, por fim, que a razão não buscava mais uma opinião límpida e universal, mas sim era usada somente para fins mercantis. Segundo Matteucci (1998), a opinião pública é uma atitude racional e crítica. Tem uma característica flexível e não durável, permite discordâncias e é muito comparada com um juízo de valor. Ela nasce do debate público e tem como objeto a coisa pública, e a ação nele, além de ser um fenômeno moderno e se manifestar apenas onde há liberdade de discussões e pluralismo para alimentar a razão. Existe, também, o enten-
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dimento de que a opinião pública pode ser formada nos dois âmbitos da sociedade, de baixo para cima e de cima para baixo. Por isso, a história do conceito de Opinião pública coincide com a formação do Estado moderno que, com o monopólio do poder, privou a sociedade corporativa de todo o caráter político, relegando o indivíduo para a esfera privada da moral, enquanto a esfera pública ou política foi inteiramente ocupada pelo Estado. Mas, após o advento da burguesia, ao constituir-se dentro do Estado uma sociedade civil dinâmica e articulada, foi se formando um público que não quer deixar, sem controle, a gestão dos interesses públicos na mão dos políticos. A Opinião pública foi levada deste modo a combater o conceito de segredo de Estado, a guarda dos arcaria imperii e a censura, para obter o máximo de “publicidade” dos atos do Governo (MATTEUCCI, 1998, p. 843, grifo no original).
Atualmente, verifica-se que a opinião pública é enraizada em costumes morais e tabus sociais, principalmente quando se trata do tema trabalhado neste artigo: a prostituição. Em diretas e indiretas ligações com o exposto nos tópicos anteriores, pode-se ainda acrescentar discussões sobre as diversas construções de moralidade, conduta social, comportamentos coletivos, concepções religiosas e a maneira como afetam o entendimento e o senso comum da sociedade contemporânea em relação à prostituição; isto é o que se procura abordar e desenvolver neste tópico. Entende-se uma devida importância de olhar não apenas para, por exemplo, o Direito ou a Filosofia abordam o tema, mas como de fato a sociedade lida com a realidade evidente, fundamentando-se no conceito de opinião pública de Nicola Matteucci – previamente citado – em seu “Dicionário de Política” (1998, p. 842-845). A opinião pública é, inegavelmente, um relevante tópico de reflexão para compreensão da sociedade e sua compreensão das questões envolvendo os aspectos coletivos e individuais do ser humano.
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Inicialmente é necessário definir, ou ao menos expor ideias, sobre o que são tabus sociais: Como surgiram os tabus, não viria ao caso, mas vale lembrar que se relacionam com a convivência social, com a sobrevivência de grupos e sociedades, e certamente com os preceitos da moral e da religiosidade, estas duas estritamente ligadas ao longo dos séculos. A religião foi ditando os padrões morais às sociedades desde os primórdios das civilizações (RUI RODRIGUES, 2009, n.p.).
Tendo o citado como base mínima de pensamento, é possível ver os tabus sociais como impasses na vida social (individual e coletiva, simultaneamente), divergências de pensamentos em constante mutação, moldadas de geração em geração por padrões morais ou religiosos, perpetuando determinadas convicções e, ao mesmo tempo, desconstruindo outras. Dentro disso, encaixam-se temas como drogas e aborto, cabendo ao recorte deste artigo a contextualização dentro da temática da prostituição e seus embates com os padrões morais mais pertinentes dentro da sociedade, assim como o que foi fruto de composição religiosa nesta. Não há dúvida da existência de uma certa ascensão nos últimos anos não só de debate sobre o entendimento da sociedade acerca da legitimidade da prostituição como profissão e da visão sobre prostitutas de modo geral, como também das políticas públicas fruto dos moldes antigos e novos da moral; as divergências de entendimento são inegáveis e estão em constantes transições. Como já exposto anteriormente, no Brasil a prostituição não é tida como crime, porém, também não é regulamentada como profissão. No senso comum brasileiro, muitos veem prostitutas como pessoas indignas por “escolherem” exercer a profissão; vê-se o(a) brasileiro(a) ter repúdio de prostitutas, sem demonstrar preocupação com compreender suas condições e construção de vida muitas vezes pré-determinada. “Muitas pessoas pensam que a prostituição é crime. Isso ocorre em função de sua comum associação a outras práticas que, estas sim, são cri-
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minosas. Ao passo que prostituição não é crime, a exploração sexual e sua facilitação por dinheiro, por exemplo, são.” (DIREITO BRASIL, 2008, n.p.). É evidente a falta de reconhecimento como profissão trazer uma consequência de vulnerabilidade às prostitutas e, logo, muitos acabam associando a atividade ao crime. A histórica indiferença sobre como abordar a prostituição no direito penal e trabalhista deu espaço à uma visão consideravelmente despreocupada e discriminatória Simultaneamente, a edificação da moral predominante adentra os argumentos e a justificação de debate do tema; é inegável a necessidade de relativa compreensão e respeito à moral prevalecente. Mesmo sendo vista como “conservadora demais”, em todo momento ela representa boa parte de uma população que pode ter voz e lugar na discussão. A “democracia deliberativa” de Jürgen Habermas (2000) se encaixa de maneira perfeita aqui, pois é completamente plausível que diferentes visões religiosas ou morais entrem em discussão a partir do momento que se adaptarem a um discurso plural e compreensível, relevante à construção de novos valores, ou à reformulação deles dentro da sociedade. Sobre o que se pode correlacionar a construção histórica dos direitos humanos com a prostituição, há relativo consenso sobre as mínimas condições sobre as quais qualquer pessoa envolvida na prostituição deveria possuir. Os artigos 1º, 3º e 5º da Declaração Universal dos Direitos Humanos deixam claros a necessidade de busca e mantimento de direitos à vida, à liberdade, à dignidade e à segurança; cabe às sociedades entenderem, dentro de suas realidades, de que maneira isso pode e deve ser desenvolvido: por melhoria das condições de vida e exercício dessa atividade ou, ainda, por priorizar uma reconstrução econômica a longo prazo da sociedade, dando melhores oportunidades fora da prostituição às pessoas envolvidas e vulneráveis. Em se tratando especificamente de legislação e desenvolvimento dos direitos na sociedade brasileira, tem-se a consonância com o artigo 5º da Constituição Federal. Novamente, são os padrões morais trazidos pela religião – sobretudo, no ocidente, pelo cristianismo – como determinantes para a visão
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que a sociedade tem das polêmicas contemporâneas. De modo específico sobre o recorte temático da prostituição: Ao longo do tempo, entretanto, verifica-se uma inversão valorativa referente às mulheres que comercializam seus corpos, principalmente nas sociedades ocidentais, em razão da influência da moral cristã. De deusas, tais mulheres passaram para a condição de decaídas, sendo tratadas de diferentes modos, ora sendo perseguidas e condenadas, ora sendo toleradas ou até mesmo havendo permissividade em relação às suas atividades (SANTOS, 2011, n.p.).
Na contemporaneidade, certamente há maior pluralismo, compreensão e busca de consenso dentro da questão. Há diversos exemplos de instituições religiosas almejando o respeito pela questão – como a Primeira Igreja Batista de Curitiba, que possui um programa anual de saída nas ruas de Curitiba onde há pontos de prostituição para entrega de flores às prostitutas no Dia Internacional da Mulher, levando propagação de amor e respeito às diferenças sociais; ou seja, existe sim uma mudança de mentalidade e uma redução da discriminação histórico-religiosa, sendo gradativamente substituída não só por discurso mais construtivo, como também por ações práticas relevantes à sociedade como um todo. Em contraponto, é irrefutável haver conservadorismo e perspectivas ignorantes e intolerantes, relutantes à deliberação racional e compreensível à sociedade, propagando uma divisão entre entendimentos da prostituição e, sobretudo, divisão entre as pessoas que compactuam com essas perspectivas e as que exercem a prostituição. Por fim, em concordância com o entendimento de Norberto Bobbio sobre laicismo (1998, p. 670-673), em meio a uma contemporaneidade onde vive-se num Estado laico e, mais importante, democrático, as liberdades sexual e religiosa não podem ter limitações estatais, devendo conviver. As perspectivas religiosas sobre os assuntos sociais devem ser colocadas no debate a partir do momento que procurem agregar à sociedade, mostrando-se aplicáveis e compreensíveis por ela como um todo. Concomitantemente, as instituições religiosas podem acrescentar
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grandemente à sociedade com ações sociais que demonstrem tolerância e compreensão dos fiéis em relação aos(às) inseridos(as) numa realidade de prostituição. 5 A AUTONOMIA E O DIREITO
O direito natural em sua tradição católico-tomista, representado aqui por Edward Feser, é exemplificado por Given that we do have an objective end or purpose, however, and that we have moral obligations that follow from this end or purpose, it follows according to the Catholic natural law tradition that we have certain natural rights. But the ground of these natural rights is nothing other than the fact that the recognition of certain rights is necessary if we are to be able to follow our moral obligations and fulfill our natural end. The natural rights we have just are, and can only be, the rights that we require in order to fulfill those obligations and realize that end (FESER, 2005, n.p.).
A partir dessa definição, o desdobramento imediato é de que o direito natural se cala diante a proibição de ações que são imorais. Dentre elas, no imaginário do autor, figura a prostituição. De acordo com a doutrina, o corpo foi concedido por Deus e, portanto, não cabe ao indivíduo dispor sobre ele conforme seu entendimento e vontade. A líder da rede brasileira de prostitutas, entretanto, entende que a discricionariedade de obter renda por meio do sexo está protegida pelo direito natural à sexualidade (DUARTE, 2016). A consequência da dissociação entre vontade humana e direito é o direito que, por não ser claramente definido, está sujeito a contingência da interpretação humana, sendo invocado quando e na forma que convém de modo a legitimar ações. A compreensão de Kant sobre o direito natural como essencialmente racional contribui conforme rejeita quaisquer elaborações metafísicas que infestam o ramo dos princípios jurídicos além do direito positivo, universalmente aceitos e obrigatórios não por estarem em concordância
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com a vontade extramundana, mas por concordarem com a razão humana e suas condições imutáveis, em destaque a liberdade dos cidadãos (UGARTE, 2012). Ilustrativamente, a liberdade contemporânea não é a mesma liberdade percebida pelos modernos, e assim por diante. Mesmo os critérios de realização humana são inconstantes ao longo da história. Ressalta-se que a formulação moral do imperativo categórico como “age de tal modo que possas usar a humanidade, tanto em tua pessoa como na pessoa de qualquer outro, sempre como um fim ao mesmo tempo e nunca somente como um meio” condiciona, sobre uma visão prática, a não adequação atitudes do cliente do serviço sexual ao princípio, ao fazer uso de um ser humano como meio de adquirir a própria satisfação. Países como França, Irlanda e Suécia, estão de acordo com essa visão, tendo em vista que não são aquiescentes com a prostituição, mas combatem a prática por intermédio da proibição do consumo do serviço, e não oferta. Já o pensamento positivista, mesmo a vertente que permita incluir a moral, fornece maior esclarecimento quanto aos casos em que ela é válida, dada a necessidade da norma de reconhecimento que especifique os termos da moral abrangida pela positivação e que está portanto dentro do catálogo de obrigação de defesa pelo aparato estatal. Ao redor do globo, uma breve análise da situação legal da prostituição (Anexo A), em comparação com o de PIB per capita (Anexo B) evidencia a desconexão entre desenvolvimento econômico e legalização ou proibição. O apontamento seguinte é a correlação entre a incidência de status legal nos países que sofreram, ao longo da história, influência ocidental (Anexo C). Não surpreendentemente, é a cultura que prepondera na disposição legislativa. Na específica modalidade do estado de direito ocidental, o princípio de diferenciação do poder postula a autodiferenciação do subsistema político-jurídico em relação aos outros subsistemas funcionais (COSTA, ZOLO; 2006, p. 43). Id est, teoricamente o desenvolvimento da cultura europeia exclui do âmbito jurídico elaborações éticas ou religiosas, mitigando sua influência sobre a legislação. Tradição ilustrada pelo pensa-
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mento de Habermas, em específico: “Em sociedades pluralistas quanto às visões de mundo a única base racional aceitável para uma regulação normativa dos conflitos de ação”. Dessa limitação surge a distinção entre esfera pública e privada, bürgerliche Gesellschaft no vocabulário marxista, que inclui por sua vez o âmbito da privacidade, definido como a faculdade da crença e prática religiosa, o âmbito familiar, comunicação e identidade, expressão artística e, por fim, a experiência sexual. É um fundamento para a supracitada familiaridade entre a cultura ocidental e a permissividade quanto a prostituição. Mesmo coexistindo com valores democráticos e considerado como semelhante a garantias de direitos, o constitucionalismo pode obstruir a realidade de um povo de acordo com as disposições da fração constituinte que o precede. É uma característica concernente ao direito positivo a condição de adequação ao ordenamento jurídico para a legislação. Países diferentes formulam suas instituições e suas atribuições em tipos distintos. O padrão francês, sob a égide do raciocínio de que nenhuma geração deve se submeter aos ditames de outra, proporciona historicamente a seu poder legislativo maior discricionariedade quanto a dispor sobre a constituição. A Alemanha a princípio também oferecia a mesma perspectiva, embora a fonte de legitimidade não fosse intrinsecamente a vontade popular. Em contrapartida há o modelo estadunidense que possui um tribunal constitucional com a atribuição de frear o legislativo, tornando as garantias constitucionais mais sólidas. O modelo foi seguido, designadamente em países que abrigaram experiências fascistas, como Alemanha, Itália e posteriormente Espanha e Portugal. Em última análise, a garantia eficaz do direito positivo está sujeita a um combate político que decresce a sensação de certeza jurídica na temática do Estado ocidental quanto aos limites da atuação do estado e a esfera privada. A literatura ocidental demonstra essa insegurança desde o contrato social defendido por Locke (1998) em sua obra primando pela liberdade negativa e a necessidade de limites à ação do Estado quanto por Montesquieu (1979) em sua definição de divisão do poder que deveria ser seguida de modo a atingir esse fim, até a proposição marxista de planejamento central sobre as relações de produção.
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O reconhecimento estatal da tutela da atividade da prostituição tem ainda como corolário para os fins deste trabalho a verificação de suas normas na sociedade. Quando se propõe a abranger mais da autonomia privada tornando-a responsabilidade pública, a questão se desenvolve de modo a incorporar a capacidade do Estado em efetivar a legislação. A presença do fenômeno da inflação jurídica e a multiplicação da microlegislação também concorrem para que as normas cada vez mais arrisquem-se a se tornarem decorativas. 6 MODELOS LEGISLATIVOS
Há três formas principais de se lidar com a prostituição: o abolicionismo, o regulamentarismo e o proibicionismo. O Brasil lida com o primeiro sistema legal, o abolicionismo, em que as mulheres que se prostituem não são criminosas, ou seja, o ato de se prostituir não é ilegal como muitos pensam. A Legislação brasileira enxerga essas mulheres como vítimas de um sistema no qual foram inseridas por um terceiro. Quem é o verdadeiro responsável legal aqui e será preso se for descoberto é aquele que obriga a mulher a se vender daquela forma, seu agente e explorador de seu trabalho. Essa forma de ver a prostituição foi instituída pelo Código Penal de 1942, um Código antigo que não se adapta às novas necessidades dessas mulheres na sociedade. De acordo com a Consolidação das Leis de Trabalho (CLT) de 2002, a prostituição foi reconhecida como uma ocupação profissional, passível de contribuições previdenciárias e, dessa forma, beneficentes de direitos dos trabalhadores, como aposentadorias. No entanto, não há de fato uma regulamentação. Os entraves para a contribuição são muitos e muitas mulheres preferem trabalhar por conta própria, pois de acordo com elas vale mais a pena, o dinheiro rende mais sem os descontos que seriam necessários se elas se registrassem. A segunda forma é o regulamentarismo, que como já indica o nome, pretende regularizar a situação. Diversos países sul-americanos como Uruguai, Equador e Bolívia possuem regulamentações da profissão. No entanto, são feitas exigências absurdas de exames periódicos para
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que comprovem sua condição de saúde. Esse tipo de imposição não é feito a outras profissões, pelo menos não por parte do Estado, e por isso acaba por invadir o espaço de suas intimidades, ultrapassando os limites da liberdade que o próprio indivíduo possui e a regulamentarização que o Estado precisa fazer nesta situação. Países europeus também apresentam regulamentações para a profissão, como Holanda e Alemanha, mas os exames não são obrigatórios. O objetivo de regulamentar a profissão é garantir um melhor ambiente de trabalho para essas mulheres, oferecer direitos de acordo com as Leis trabalhistas designadas a elas e garantir que sejam tratadas de forma a preservar a dignidade que a elas é dirigida. No entanto, em diversos países que a prostituição foi regulamentada não foi observada essa suposta melhoria de vida. Pesquisas acerca da prostituição são muito complicadas de se fazer, pois lidam com dados obtidos de uma realidade marginalizada e por isso, são difíceis de serem considerados completamente verídicos. Porém, um estudo realizado na Dinamarca demonstra que, após a legalização da prostituição e sua regularização, durante o período de 2000 e 2009 houve um aumento de 40% no número de prostitutas do país (FÁBIO; LIMA, 2016). Outros estudos também apontam que, apesar de um dos principais pontos de a regularização ser a distinção entre a prostituição e a exploração sexual ilegal de mulheres, em países em que foi realizada a regulamentação os números ligados ao tráfico de mulheres aumentaram (FÁBIO; LIMA, 2016). O principal fator internacional conexo com a prostituição é o tráfico de pessoas. Caracterizado pelo deslocamento de profissionais para outros países onde se encontram então em situação de desamparo, habitualmente com passaporte confiscado. Sofrem exploração e margens maiores de lucro, que podem chegar a mais de 16 mil dólares (OPERA MUNDI, 2017). O mercado de tráfico humano para fins sexuais tem movimentação estimada de 150 bilhões de dólares anualmente (OPERA MUNDI, 2017). É estabelecido que países onde a prostituição é legalizada apre-
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senta maiores índices de tráfico humano para exploração sexual (FÁBIO, LIMA; 2016). Essa é uma das preocupações levantadas pelos opositores do projeto de lei Gabriela Leite no Brasil. A terceira forma de lidar com o assunto é o proibicionismo. Pouco países adotam essa legislação, um deles é o Estados Unidos e como possui muita influência cultural sobre o mundo acaba sendo muito conhecido em muitas partes do mundo. Esse sistema proíbe a prostituição em si, dessa forma, as mulheres que são vistas realizando essa profissão podem ir presas. Contudo, há uma discussão sobre o que pode ser considerado prostituição, o pagamento por meio de joias e de outros bens que não sejam dinheiro por uma noite de prazer são considerados presentes ou de fato pagamento por um serviço prestado? Por isso, mesmo com a proibição do ato, é incabível declarar que não existe prostituição no Estado, apenas é feita de uma forma mais escondida e difusa que em outros lugares. Atualmente, a prostituição é aceita como uma ocupação profissional no Brasil, mas não há nenhuma regulamentação. A proposta que existe é o Projeto de Lei Gabriela Leites de 2002, resgatada por Jean Wyllys em 2012. O projeto possui pontos baixos e altos. Diversas pessoas apoiam e o contestam por conta de diversos pontos mal explicados ou que poderiam ser utilizados de uma forma que prejudicasse as profissionais. Um dos pontos mais importantes levantados pelo projeto é diferenciação da prostituição e da exploração sexual. Quem se apropriar de mais de 50% do que foi recebido pela prostituta, ou exigir que ela trabalhe por meio de ameaça física será considerado explorador. No entanto, já nesse ponto surgem críticas, pois 50% é um valor alto a ser cobrado. O ato de rufianismo (cafetinagem) é atualmente proibido, mas com o projeto de lei este seria amplamente permitido e muitos ousam dizer incentivado, 50% do que foi recebido poderia ir para a mão de um cafetão e, por isso, há mais críticas acerca dessa permissão de uma exploração velada por parte do cafetão.
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As casas de prostituição, que são proibidas na atual legislação, também se tornariam permitidas. Mas o cliente dificilmente se importaria em verificar se todas as leis estão sendo cumpridas no estabelecimento e a diferença entre casas de prostituição legais e ilegais não seria visível para o consumidor. Nota-se, portanto, que apesar de existir uma discussão acerca das vantagens e desvantagens da regulamentação da prostituição, o Projeto de Lei Gabriela Leites apresenta muitas falhas que deveriam ser discutidas antes de serem aprovadas. Se o Projeto fosse aprovado da forma como está redigido atualmente seria mais uma tentativa falha, que produz efeitos teóricos, mas que não melhora a vida das mulheres que se prostituem. Outro ponto a se discutir fora dessa lógica acerca dos benefícios e malefícios que a regulamentação poderia trazer para as profissionais, também existe uma impossibilidade de ser posta em votação por conta da composição conservadora do Congresso. Mesmo que melhorada em diversos pontos, o Projeto ainda teria que vencer diversos tabus e preconceitos para ser aprovada, posto em prática e mudar efetivamente a vida de milhares de prostitutas no país. Os objetivos fundamentais da nação brasileira, como previsto no art. 3 da Constituição Federal, visam erradicar a pobreza, a marginalização e o preconceito assim como promover o bem de todos (BRASIL, 1988). Para essas finalidades atua o Estado. Portanto, em suas considerações devem constar os elementos pragmáticos de impactos econômicos, em virtude de sua primazia na composição do bem estar em uma sociedade de mercado. Débora Mendonça (2013) constrói um raciocínio que refuta a liberdade de escolha da mulher, verificando que se exerce a atividade de prostituta, é devido a não encontrar alternativas de menor vulnerabilidade. Sem posse de meios de produção para se prover, ou qualificação de sua força de trabalho, resta sustentar-se a partir do serviço sexual. E nesta área está sujeita, grande parte em consequência do machismo histórico que permeia a sociedade ocidental, violência nas suas diversas manifestações e condições precárias de trabalho, além do estigma. Mas quando o estado ceifa esta última alternativa, o que resta?
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Quando há intervenção no funcionamento do mercado, a consequência é escassez. Mesmo estando disposta a trabalhar nestas condições, a profissional estará impedida pelo Estado sem outras opções. Nesse caso, a escassez de emprego. A parcela da população abandonada que não possui mais sua fonte de renda agora está, inclusive, aumentando a concorrência por outros empregos. A consequência natural em uma economia de mercado é a redução do salário ofertado. Logo, a consequência não é negativa apenas para as profissionais diretamente afetadas, mas também para a sua então concorrência, isto é, todos os desempregados. Deve ser considerado que o desemprego ocasiona ainda danos à saúde, tornando suas vítimas mais deprimidas e propensas a cometer suicídio (CHANG, 2015, p. 289). A conclusão é que não existe melhora na qualidade de vida da prostituta que deixa de exercer sua profissão em decorrência de proibição. Pelo contrário. Inclusive o erário contrai responsabilidades para o custeamento da fiscalização e punição de infratores, impedindo a disponibilização de verbas para outras áreas, tais como o amparo social a elas. Reconhecida a precariedade da situação de uma prostituta, para além da discussão de permissividade em relação à disposição sobre o próprio corpo, está a necessidade social de atingir condições materiais que não determinem à mulher aderir a uma profissão que não lhe agrada. Portanto, a solução adequada de uma perspectiva econômica seria o desenvolvimento social, e não restrição inconsiderada quanto a seus impactos. As ações do poder público enfrentam outros interessados, aqueles que lucram com o mercado altamente rentável, batalhando com o tráfico de armas pela segunda posição de mercado ilegal mais rentável, depois do narcotráfico (CARBAJAL, 2007), e por consequência atrativo. A figura da casa de prostituição, proibida no Brasil, pelo art. 229 do Código Penal, se disfarça nas práxis de casas de massagem, casas de diversões ou semelhantes, como verificado nas etapas iniciais das entrevistas. A empreitada de impedir o rufianismo tampouco tem resultado diferente. O desamparo econômico das profissionais abre margem para a atuação de ditos agentes na reprodução do sistema que explora os indivíduos vulneráveis. Diverge quanto a contribuição específica de prostíbulos, Cida
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Vieira, presidente da Associação de Prostitutas de Minas Gerais. Ela ressalta que os estabelecimentos proporcionam melhores condições sanitárias para o exercício da prostituição, e doravante seriam antes benéficos. Acrescenta-se a segurança contra agressões, a que estão expostas garotas de programa ao trabalhar na rua, notadamente maior quando se trata de transexuais (FÁBIO, LIMA; 2016). A diversidade de condições é determinante quanto ao impacto de tais medidas. 7 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Haja vista a tensão existente entre autonomia pública e privada, percebida não só na abordagem que o trabalho trouxe, no que tange a prostituição, como também nas mais diversas áreas da vida em sociedade, nota-se a dificuldade de delimitar os limites de atuação de cada uma, visto que um equilíbrio entre ambas é essencial, a fim de harmonizar as escolhas subjetivas, tomadas na vida individual, com a moral pública e decisões democraticamente aceitas. Dessa forma, cita-se a teoria dos Paradigmas do alemão Jurgen Habermas. Assim, o paradigma liberal, o qual entende a liberdade como a não intervenção do Estado no âmbito privado, demonstrou-se ineficaz, uma vez que o demasiado poder concedido a esfera privada acentuou as desigualdades sociais. Dessa forma, esse paradigma entrou em crise pelas enormes explorações que gerou, evidenciando que a sociedade por si só não conseguiu se ajustar de modo a prevalecer a justiça em suas relações, seria esse, então, o papel do Estado. Assim surgiu o paradigma do Estado social, o qual entende que a liberdade será assegurada mediante a atuação e a presença do Estado para garantir à grande maioria o acesso a bens e direitos que, sem sua interferência, dificilmente seriam alcançados. Todavia, manifesta-se o obstáculo do paternalismo estatal, ao impor unilateralmente as normas e delimitar o comportamento da sociedade, o Estado acaba por ferir a natureza mutável do indivíduo e do cidadão em nome de um interesse público. Nota-se, portanto, as limitações existentes nos dois paradigmas anteriores, isso é percebido não só na teoria, mas na prática, assim, nossa
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pesquisa de campo demonstra a confusão existente entre as opiniões a respeito da liberdade individual e da interferência do Estado, e o desejo de algumas mulheres, em certos pontos, poderem utilizar de sua liberdade, enquanto em outros gostariam dos benefícios provenientes da interferência estatal. Assim, nota-se a necessidade de um paradigma que concilie essa divergência. Por meio do conhecimento desses dois paradigmas, e diante de suas limitações, nota-se a necessidade não de uma separação, mas uma coesão entre autonomia pública e privada. Pensando nisso, Habermas propôs o Paradigma Procedimentalista, este, por sua vez, expressa-se nos direitos à comunicação e participação que asseguram a autonomia pública dos cidadãos do Estado; e o domínio das leis, nos direitos fundamentais clássicos que garantem a autonomia privada dos membros da sociedade civil. O direito legitima-se dessa maneira como um meio para o asseguramento equânime da autonomia pública e privada. As autonomias privada e pública requerem uma à outra. Os dois conceitos são interdependentes; eles estão relacionados um ao outro por implicação material. Os cidadãos podem fazer um uso apropriado de sua autonomia pública, como algo garantido através de direitos políticos, só se eles forem suficientemente independentes em virtude de uma autonomia privada igualmente protegida em sua conduta de vida (HABERMAS, 2000. p. 137).
As Constituições modernas já demonstram essa preocupação quando reforçam em seus textos o Princípio da Soberania Popular e os Direitos Fundamentais, o que denota que a sociedade é formada por sujeitos que são, ao mesmo tempo, indivíduos e cidadãos, e, segundo a Autonomia Kantiana a moral como expressão da liberdade humana não consiste em obedecer ou desobedecer, mas a liberdade de criar o seu dever ser, refletindo a coesão interna que existe entre a autonomia pública e a autonomia privada. Assim, entendemos que ambas devam coexistir sem que haja prevalência de uma sobre a outra.
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APÊNDICE
Entrevista com garotas de programa na Rua Visconde de Guarapuava e Rua das Carmelitas. 1. Idade de início? 2. Motivo? 3. Como se sentia antes e como se sente hoje? 4. Você sente que é completamente dona do seu corpo e que tem liberdade de agir como quiser? 5. Se o governo quiser que você use camisinha sempre por conta da saúde da população, você concorda que eles estão tentando fazer algo bom, ou você acha que deve fazer o trabalho do jeito que você quer? 6. Caso ocorra uma regulamentação da prostituição você acha correto o governo exigir que você vá ao médico com frequência para fazer exames de DSTS ou acha que você deve decidir quando ir ao médico como nas outras profissões? 7. Se o governo criasse uma “regra geral” da prostituição, por exemplo, um valor máximo que todo mundo deveria cobrar por hora de trabalho. Você acha que seria bom ou ruim? 8. A lei nacional proíbe a “cafetinagem” e as casas de prostituições, para você isso é bom ou ruim? 9. Você prefere ter um auxílio de aposentadoria com um desconto obrigatório do salário ou prefere não ter aposentadoria e ter o dinheiro integral?
• Garota de programa - Visconde de Guarapuava. Entrevistadora — Oi, tudo bom? Tudo bom com vocês?
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Nós somos estudantes de Direito da Federal do Paraná e estamos fazendo um trabalho sobre a interferência do Estado nessa profissão né, e gostaríamos de saber se vocês estão dispostas a responder algumas perguntas, nós não vamos colocar o nome de vocês nem nada assim, caso não queiram, fica a critério de vocês. Vocês que sabem. Garota de programa 01 — Eu não vou querer. Entrevistadora — Não? E a senhora? Também não? Garota de programa 02 Depende, qual que é as perguntas? Esses dias já vieram fazer trabalho. Entrevistadora — Não é nada muito íntimo! Começa por essas daqui. Entrevistadora — Tá, por exemplo: Se o Governo quisesse que você utilizasse sempre algum método contraceptivo, por conta da saúde da população, você concorda que eles estão tentando fazer algo bom, ou você acha que eles estão interferindo demais no seu trabalho e você tem que ser mais autónoma, fazer do jeito que você preferir? Garota de programa 02 — Olha! Para falar a verdade o Governo é merda né, é uma merda né, porque olha.
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Eu vejo eu mesmo que fui começar a trabalhar, precisa de muita coisa, eu tava trabalhando de zeladora e comecei a estudar e a empresa já não permitia, aí larguei e vim trabalhar aqui. É bem difícil. Entrevistadora — Caso ocorra alguma regulamentação, você acha correto o governo exigir uma verificação periódica de exames de DST´S, ou acha que você deve decidir quando deve ir no médico, como é na maioria das outras profissões? Garota de programa 02 — Eu acho que cada um tem que ter sua responsabilidade, tem bastante mulher que tá nem aí. Eu mesmo vou todo ano e tem mulher que mesmo casada não vai, passa ali, tem câncer, tem tudo. E a maioria dos homens fogem né, e às vezes pegam qualquer uma de rua, de balada, daí esquece de usar camisinha. E bastante pessoas criticam as mulheres que trabalham na “zona”, mais não veem situações dos vizinhos, igual pega vizinho assim. Entrevistadora — Você acha que o governo deveria interferir, “tipo” regulamentar, no caso a profissão. Como por exemplo: recolhimento de imposto, 13º salário, aposentadoria, o governo dar esse suporte. Ou você acha uma interferência muito grande do governo em “tabelar”, enfim tirar essa autonomia? Garota de programa 02 — Olha… eles não estão ajudando em nada. Entrevistadora — Mas você acha que seria boa essa intervenção? Garota de programa 02 — Eu acho que não.
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Entrevistadora — Você acha que não ia mudar em nada? Ia acabar piorando de certa forma talvez? Garota de programa 02 — É…porque nós somos bastante julgadas. A gente vê até na internet aí “tem bastante puta”. Eu mesmo me sinto mal porque eu não me acho puta, eu não me acho puta, porque eu to trabalhando aqui e quem vem é os homens, quem me procura é os homens. Puta pra mim é quem é casada e que procura homem casado e vai lá, isso eu acho bastante e acontece bastante nisso. Então, e o governo querendo fazer isso, eu acho não vai resolver nada. Entrevistadora — Qual foi a idade que você iniciou? Se quiser responder. Garota de programa 02 — Ah… faz uns dois anos estou nessa profissão. Entrevistadora — O motivo foi aquele que você tinha falado, né? Garota de programa 02 — Por falta de trabalho. Entrevistadora — Como você se sentia em ter entrado nessa profissão, na época e hoje em dia? Você sente algum bloqueio da sociedade? Alguma coisa assim? Garota de programa 02 — Bastante. Eu mesma não tenho meus pais, né, fui adotada várias vezes. Eu tenho minha filha, eu que sustento minha filha e não dependo do pai dela, então bastante da parte do meu ex marido e se afastaram. Até acho meio estranho, poxa a pessoa julga bastante mas tem uma que eu co-
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nheço e ela tem um cara e o cara mora com a ex mulher ainda, e continua. As pessoas só julgam mas não olham o lado deles. Às vezes passam aqui e começam a xingar, mas a gente não liga. Principalmente mulheres. Entrevistadora — Você se sente completamente dona do seu corpo, sente liberdade de fazer o que quiser, ou você acha que dependendo da pessoa que chega você se sente meio acuada? Garota de programa 02 — É a gente que dá um limite, por que se não dar um limite eles fazem o que quiserem. Entrevistadora — Então é isso, obrigado pelo seu tempo e desculpe qualquer coisa. Garota de programa 02 — Obrigada, tchau. Entrevistadora — Obrigada, tchau. Bom trabalho. • Garotas de programa 03 e 04 - Rua das Carmelitas Entrevistadora — Oi, tudo bom? Garota de programa 03 — Tudo bem. Entrevistadora — Nós somos estudantes de Direito da Federal do Paraná, eu sei que posso estar atrapalhando, mas vocês se importariam de responder algumas perguntas? Estamos fazendo um trabalho sobre a interferência do
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Estado na sua profissão e gostaríamos de saber se vocês estão dispostas a responder algumas perguntas, caso não queiram, é um direito de vocês. Garota de programa 04 — Eu respondo, sem problema, eu também faço faculdade. As vezes eu também tenho que fazer um trabalho (risada) Entrevistadora — Então, é um trabalho sobre a inferência do estado na vida de vocês. Eu vou fazer algumas perguntas aí vocês vão respondendo. Tá? Garota de programa 03 — Sim. Entrevistadora — A primeira é: se o governo quisesse que vocês sempre usassem algum método contraceptivo, por conta da saúde da população, vocês concordam que eles estão tentando fazer algo de bom, ou vocês acham que eles estão interferindo no trabalho de vocês e vocês que tem que decidir sobre isso, se vocês usam camisinha com todo mundo? Vocês que decidem isso ou acha que seria bom uma regra? Garota de programa 03 — Sim, com todo mundo, lógico. A gente que decide porque nem todas a mulheres são iguais. Entrevistadora — Caso ocorra uma regulamentação da profissão, vamos supor que o governo lance uma lei que fale que todo mês ou a cada dois meses vocês têm que ir ao médico para fazer exames contra dsts ou coisas do gênero. Vocês acham que isso ia ser bom, vocês acham que eles iam estar pensando na saúde de vocês e da população em geral ou vocês acham que isso também são vocês quem decidem? Se vão, com qual frequência, e se vão ou não.
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Garota de programa 03 — Seria bom né. Garota de programa 04 — Bom, se tivesse a regulamentação seria bom, com certeza seria bom… Mas, assim.. É que aqui nós temos o pessoal da saúde que vem aqui, que fica aqui todas as terças e as mulheres que querem e decidem ir, vão lá e fazem os exames com bastante frequência. Eu por exemplo faço com bastante frequência! Entrevistadora — Mas vocês achariam legal ter essa interferência do Estado com a regulamentação, com 13º, aposentadoria, e..? Garota de programa 04 — Claro, com certeza! Garota de programa 03 — Será? Ah.... eu já acho que não. Por que tudo que o governo cobra e não pagamos imposto pro governo é crime, eu já acho que não tinha que ter interferência de governo não. Garota de programa 04 — Ah.. eu acho que deveria, seria uma profissão regulamentada. Por isso que você vê esses montes de mulher com 70 anos na rua, e elas falam assim: “eu to aqui desde 20 anos”; “tá fia, tá na hora de se aposentar e deixar a gente trabalhar.” (risada) Garota de programa 03 — Ah.. verdade! Entrevistadora — Ah, então eu acho que é isso.. A lei nacional que agora vigora sobre isso, eles falam que é proibido a cafetinagem e as casa de prostituição, vocês acham que isso auxilia na profissão de vocês ou atrapalha?
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Garota de programa 04 — Olha quanto as casas eu sou a favor, porque muitas pessoas preferem trabalhar nas casas, né. Porque se guarda da família, porque muitas têm famílias, essas coisas.. então se sentem mais protegidas. Mas, a cafetinagem eu, assim, nós somos totalmente contra. Garota de programa 03 — Nós somos contra. Brigamos e tudo. Garota de programa 04 — Nós denunciamos, porque cafetinagem é um crime, literalmente é um crime. Porque se existisse a cafetinagem como as pessoas falam: “ah eu tô ali pra proteger as meninas”. É mentira! Nenhum cafetão protege nós, vem aqui apenas para nos ofender, pra xingar, pra brigar, ameaçar, oprimir e fazer com que a gente exponha o nosso corpo para dar dinheiro para usarem drogas, pra eles comprar armas. Por exemplo, você vai na casa de nós, nós temos filhos, nós temos um monte de coisa e você não acha nenhuma faca de serra boa lá em casa. Mas você vai na casa deles e eles tem armas para mostrar pra nós, pra vim aqui e ameaçar, objeto que compram com nosso dinheiro, nosso trabalho, então isso é crime. Entrevistadora — E qual o motivo do inicio nesta profissão? Garota de programa 04 — Ah normalmente dificuldade financeira e o desemprego, né. E depois que você começa nessa vida é muito complicado, porque não tem, é raras as pessoas que aqui na rua ganham menos de 500 reais no dia, e onde você vai arrumar uma profissão que você ganha isso por dia? Entendeu? Então você chegar num ponto que ganha 500 reais no dia.. Eu pago a minha faculdade, pago a faculdade da minha filha, eu pago meu carro novo, no ano passado terminei meu curso de inglês. Então se você trabalhar assalariada para alcançar esses objetivos,fica complicado. Pra você ganhar
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um salário mínimo aí que eles querem pagar pras pessoas... infelizmente, normalmente, as pessoas que começam nessa vida não tem estudo, né, tem ali um oitavo ano.. e depois que estão nessa vida é que vê a oportunidade de voltar para a escola, de fazer um curso, de fazer alguma coisa. Porque se você não tiver, você não entra no mercado de trabalho. Entrevistadora — Uhum... A idade, faz tempo que vocês começaram? Garota de programa 04 — Eu faz dois anos. Entrevistadora — Dois anos? Garota de programa 04 — Uhum. Garota de programa 03 — Eu faz dez anos. Garota de programa 04 — Viu aí, já tava quase aposentando (risada) Garota de programa 03 — Já tá na hora de eu aposentar já. Garota de programa 04 — Já tá na hora! Você já ia ter quantos 13º você já teria.Viu? No final do ano para ajudar você a comprar o leitinho do seus filho. (se referindo à entrevistadora) - Vocês coloca isso em, vocês fazem o governo… Trabalhe em cima disso, nós vamos adorar (risada) Entrevistadora — Mas então vocês acham legal o Estado ter essa interferência, na regulamentação.. até na questão da proteção?
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Garota de programa 03 e 04 — Sim, achamos legal... Entrevistadora — Quando vocês começaram e hoje, vocês acham que mudou alguma coisa na cabeça de vocês ou nos clientes mesmos? Garota de programa 04 — Mudou, eu quando eu não trabalhava assim eu achava que isso era loucura né, que isso não existia, era loucura. Pensava capaz, imagina, que existe, achava que era coisa de filme né.. Aí quando a amiga falou, “nossa.. mas em rua? como assim… (risada)”. Eu vi e fiquei aqui umas duas semanas, eu pensei: “Não, não dou pra isso não. Eu não consigo, é muito pra minha cabeça!”. Mas daí quando você começa a ganhar dinheiro tudo.. e no início você vê os homens com muito nojo, você pensa: “Nossa como ele é nojento, né? Larga a mulher dele em casa, os filhos dele em casa, né”. Mas depois você vai vendo que não. Eles são tão normais, como nós. E bem pelo contrário, hoje ainda tenho admiração pelo homem que procura uma prostituta, ele não quer uma amante, ele não que encheção de saco, ele vem e tem muitos cuidados, fazem questão de usar camisinha. Raros! Só os mais velhos, às vezes falam, “Ah não precisa, só faço com minha mulher”. Mas daí é uma mentalidade dos mais velhos, né.. e mesmo assim a gente fala: “Não... mas não é por isso. Já pensou se você me engravida homem de Deus” (risada). “Mas eu não tenho doença”(fala do cliente para elas) “Sim! Eu acredito! Mas e se você me engravidar? E a pensão? Já pensou chegar lá eu pedir pra sua mulher um teste de DNA?” (resposta delas para o cliente) “É, é melhor fazer com” (resposta do cliente). (risada) — Então a gente tem que pesar a mente deles. (risada) Tem que ter jogo de cintura.
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Garota de programa 04 — Tem que ter jogo de cintura! Então hoje em dia, a gente vê os homens de maneira diferente. É admirável um homem que sai com uma prostituta e paga pra ela.. Porque a gente.. Nunca uma prostituta vai ligar pra um cara, e falar assim: “Oi amor, tudo bom?” Não! Nós não ligamos, não tem essa de nós ligarmos. Garota de programa 03 — Interferir na vida. Atrapalhar a mulher, o casamento. Garota de programa 04 — Nós não queremos o marido de ninguém! Entrevistadora — A maior parte são homens casados então? Garota de programa 03 — Sim! 98% (outra garota de programa concorda). Garota de programa 04 — E quando pintam alguns que querem casar com nós.. A gente não casa! Porque do mesmo jeito que eles vem atrás de nós, eles vêm largar aqui… (risada) Entrevistadora — A última pergunta para encerrar. Vocês achar que tem a liberdade de usar o corpo de vocês como vocês querem ou acham que os Estado limita isso de alguma forma? Garota de programa 04 — Não limita, temos liberdade! Eu acho que temos a liberdade até demais. Entendeu? Porque tem uns certo horários que as meninas, vem muito assim… Meninas não, as trans (Garota de programa 03 concorda)
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Vem muita vontade.. a gente sabe.. Garota de programa 03 — Respeitamos a vizinhança, tem escola ali embaixo. Garota de programa 04 — Agora mesmo fui fazer um entrevista no cara e ele veio pra tocar em mim e eu respondi: “Olha, por favor, você só não rela em mim, porque aqui é uma rua.” Não tem lógica você conversar comigo me pegando, porque se quer me tocar, você me leva para o quarto e me toca. Então a gente respeita, sabemos que é ruim para eles (vizinhança), é. Mas só que, igual eu tenho dois anos aqui, mas só que isso daqui já existe a mais de 20 anos e não vai ser eu que vou tirar, né. Então não tenho culpa, eu ganho dinheiro aqui e não vou sair. Então, desculpe população, mas é por uma boa causa (risada). Entrevistadora — (risada) Mas então tá bom, obrigada pela entrevista meninas. Garota de programa 03 — Obrigada, Fique com Deus. Garota de programa 04 — Tchau, espero que tenha ajudado. Entrevistadora — Ajudou sim, obrigada! Tchau.
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ANEXOS ANEXO A - Status legal da prostituição ao redor do mundo.
FONTE: Target Map: Legal status of prostitution across the world. Disponível em: https://www.targetmap.com/viewer.aspx?reportId=24073>. Acesso em 15 jul, 2018. ANEXO B - PIB per capita mundial
FONTE: Index Mundi: GDP per capita - World. Disponível em: https://www. indexmundi.com/map/?v=67&l=pt. Acesso em 15 jul, 2018
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ANEXO C - Divisão das civilizações de Huntington
FONTE: CHAUSOVSKY, Eugene. Why civilizations really clash. 10 jan, 2016. Disponível em: https://worldview.stratfor.com/article/why-civilizations-really-clash. Acesso em 15 jul, 2018.
ASPECTOS GERAIS SOBRE A LEI MARIA DA PENHA E SUA APLICAÇÃO EM CASOS ENVOLVENDO TRANSEXUAIS/TRANSGÊNEROS E AS NOVAS ENTIDADES FAMILIARES
Luana Torques Cavalli
RESUMO
Este trabalho possui o intuito de introduzir a Lei Maria da Penha e relacioná-la com a realidade da sociedade atual, a qual vem aos poucos reconhecendo a aplicação da Lei aos casos de violência envolvendo os transgêneros. Busca-se ressaltar as decisões dos tribunais que já aplicaram o estatuto nos casos mencionados e relacionar com o princípio da dignidade da pessoa humana e ainda destacar o dever de intervenção do Estados nos casos de agressão no âmbito residencial e familiar. Ainda, pontua-se, brevemente, o aumento do número de casos de violência doméstica na situação de pandemia e quarentena que guarnece a realidade atual mundial. Palavras-chave: Lei Maria da Penha. Abrangência da lei. Aplicação a transgêneros. Precedentes e divergências. Dignidade da pessoa humana. 1 INTRODUÇÃO
A Lei Maria da Penha, promulgada em 2006, foi elaborada com o intuito de coibir e prevenir a violência doméstica e familiar contra a mulher. A Lei foi criada em homenagem à farmacêutica Maria da Penha, casada com um professor universitário que, além das lesioná-la repetidamente, tentou assassiná-la algumas vezes.
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No que tange à violência doméstica e familiar, a Carta Magna estatui desde 1988 que o Estado assegurará assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações1. Porém, em que pese o texto constitucional, o Brasil só veio a tomar medidas mais drásticas depois que a Organização dos Estados Americanos, a OEA, recomendou a tomada medidas preventivas e indenizatórias pelo Poder Público que fossem realmente satisfatórias ao combate à violência doméstica. Desse modo, restou evidenciada uma necessidade de uma lei específica de proteção às mesmas para diminuir os casos e evitar os futuros. A Lei n.° 11.340/06 (Lei Maria da Penha) foi criada com os impulsos da Convenção de Belém do Pará,2 que foi ratificada pelo Brasil em 1995. Contudo, verifica-se um grande número de violência contra as mulheres e no âmbito familiar se proliferando até os dias de hoje. Os intuitos da Lei Maria da Penha estão descritos em seu artigo 1º, veja-se: Esta Lei cria mecanismos para coibir e prevenir a violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do § 8º do art. 226 da Constituição Federal, da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Violência contra a Mulher, da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher e de outros tratados internacionais ratificados pela República Federativa do Brasil; dispõe sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher; e estabelece medidas de assistência e proteção às mulheres em situação de violência doméstica e familiar (BRASIL, 2020, n.p.).
Porém, não obstante o requisito biológico de “ser mulher” para a aplicação da Lei, os tribunais e os autores já reconhecem a aplicação do estatuto àquelas que se reconhecem como sendo mulher. Artigo 226, parágrafo 8º da Constituição Federal.
1
Em 1994, a ONU adotou a Convenção Interamericana para punir, prevenir e erradicar a violência doméstica. Chamada de Convenção de Belém do Pará, ela foi ratificada pelo brasil em 1995.
2
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O presente artigo tem como objetivo analisar a aplicação da Lei em questão abrangendo as diversidades que acometem a sociedade brasileira na contemporaneidade, levando-se em consideração os novos modelos familiares e também a aplicação à transexuais. Importante destacar, como nota introdutória, as palavras de Carmen Hein de Campos (2011, p. 9) acerca da evolução da Lei Maria da Penha: A Lei Maria da Penha reflete a sensibilidade feminista no tratamento da violência doméstica. Ao desconstruir o modo anterior de tratamento legal e ouvir as mulheres nos debates que antecederam a aprovação da Lei 11.340/2006, o feminismo registra a participação política das mulheres como sujeitos na construção desse instrumento legal e sugere uma nova posição de sujeito no direito penal (...). Não há dúvidas de que a Lei Maria da Penha está provocando deslocamentos discursivos que afirmam cada vez mais os direitos das mulheres relacionados a uma vida livre de violência, rompendo com a ordem de gênero do direito penal.
Destarte, passará a ser exposto as abrangências da Lei em comento, levando-se em consideração os modelos familiares abrangidos pela Constituição e os aceitos pelos tribunais, com amparo nos princípios fundamentais. 2 ABRANGÊNCIA DA LEI
O estatuto em questão abrange, exemplificativamente, em seu artigo 7º, as diversas formas de violência que podem ser cometidas no âmbito doméstico e contra a mulher, ademais, a Lei n.° 11.340/2006 também carregou consigo diversas inovações e avanços para o Direito. Além da proteção da mulher com relação à violência doméstica e familiar, o re3
3
O artigo 7º da Lei Maria da Penha, traz, de maneira exemplificativa as formas de violência doméstica e familiar contra a mulher. Dentre elas possível citar a violência física, violência psicológica, violência sexual, violência patrimonial e a violência moral.
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gulamento abriu brechas para interpretações diversas acerca dos sujeitos passivos e ativos abrangidos por este. De início, conforme disposto na Lei, ela cria mecanismos para coibir a prevenir a violências doméstica e familiar contra a mulher. Ainda, seu artigo 5º dispõe que, “para os efeitos desta Lei, configura violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial [...]” (BRASIL, 2020, n.p.). O sujeito de direitos óbvio a obter a proteção da Lei é a mulher que venha a sofrer violência, física ou moral, doméstica ou familiar. Porém, devem ser levadas em consideração os modelos familiares aceitos pela Constituição Federal, pela doutrina e pela jurisprudência atualmente e também a identidade social dos indivíduos. Depois de 1988, a família deixou de ser vista como instituição, com hierarquia, divergência de sexos entre os cônjuges, e funções atribuídas a cada membro, para ser instrumento. A família como instrumento busca, em primeiro lugar, a felicidade dos seus membros, sem hierarquia, com a cooperação de todos, podendo ser formada de diversas formas. É onde o ser humano encontra o primeiro ambiente de socialização e estruturação, no qual é desenvolvida uma união construída pela afinidade, sem necessidade de consanguinidade, em que os membros que compõem a família recebem os valores culturais e morais que os vão preparar para a realidade e influenciar na sua formação social. 33),
Segundo o magistério de Carlos Roberto Gonçalves (2019, p. 32O Código Civil de 1916 e as leis posteriores, vigentes no século passado, regulavam a família constituída unicamente pelo casamento, de modelo patriarcal e hierarquizada, como foi dito, ao passo que o moderno enfoque pelo qual é identificada tem indicado novos elementos que compõem as relações familiares, destacando-se os vínculos afetivos que norteiam a sua formação. Nessa linha, a família socioafetiva vem sendo priorizada em nossa doutrina e jurisprudência.
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Ato contínuo, a Constituição reconhece três hipóteses de constituição de família,4 quais sejam o casamento, a união estável e a monoparentalidade (comunidade formada por um dos pais e seus descendentes). Porém, com a realidade sociocultural e mundial, entendeu-se como necessário o reconhecimento de demais modelos de família. Incluem-se nesses: a homoafetividade, a pluriparentalidade, a anaparentalidade, a unipessoalidade, entre outros, já aceitos pelos tribunais. Nos dizeres de Campos (2011, p. 4, grifo nosso), As significativas conquistas sociais e jurídicas de gays e lésbicas, por exemplo, desafiam os rígidos limites do gênero. Dito de outra forma, o reconhecimento, por exemplo, da união estável de homossexuais (ou matrimônio) traz inúmeras consequências jurídicas e práticas (possibilidade de adoção, herança, vínculo previdenciário, etc.). Esse reconhecimento rompe com a noção de gênero no direito, que opera a partir do dualismo masculino e feminino e de identidades fixas, produzindo significativa mudança na noção de cidadania.
Com o reconhecimento dos diversos modelos de família, há que se levar em consideração a alternância do sujeito passivo de praxe na Lei Maria da Penha. “Ser mulher”, biologicamente falando, não é requisito indispensável para a aplicação da Lei. Existem precedentes em Tribunais brasileiros que reconhecem a aplicação do estatuto em casos de violência contra o homem cometida pela mulher, em casos de homens que possuem relação homoafetiva e em relações que envolvem transgêneros.
Art. 226, CF. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado. § 1º O casamento é civil e gratuito a celebração. § 2º O casamento religioso tem efeito civil, nos termos da lei. § 3º Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento. § 4º Entende-se, também, como entidade familiar a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes. (...). 4
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Possível citar o seguinte precedente do Tribunal de Justiça do Mato Grosso, que, por intermédio do juiz Mário Roberto Kono de Oliveira, proferiu decisão utilizando a Lei Maria da Penha para a proteção de um marido que sofria violência doméstica.5 Ademais, em 2017, surgiu um Projeto de Lei no Senado que visava alterar a redação do artigo 2º da Lei n.° 11.340/2006. O projeto pretendia aumentar o alcance da norma e, com isso, pretendia também combater a violência contra pessoas que se identificam como integrantes do gênero feminino. Na redação, constaria a seguinte alteração: “para assegurar à mulher as oportunidades e facilidades para viver sem violência, independentemente de sua identidade de gênero.” 6 Porém, conforme possível perceber, o artigo 2º da Lei permanece intacto, mantendo a seguinte redação: Art. 2º Toda mulher, independentemente de classe, raça, etnia, orientação sexual, renda, cultura, nível educacional, idade e religião, goza dos direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sendo-lhe asseguradas as oportunidades e facilidades para viver sem violência, preservar sua saúde física e mental e seu aperfeiçoamento moral, intelectual e social.
Com amparo nas palavras de Carla Marrone Alimena (2010, p. 81), a Lei Maria da Penha não abrange identidades de gênero, tendo sido elaborada limitando-se à proteção da mulher em relacionamentos heterossexuais, deixando em aberto questões envolvendo transgêneros. Veja-se:
5
Informações disponibilizadas pelo Ministério Público do Estado do Paraná na plataforma “jusbrasil”. Disponível em: https://mp-pr.jusbrasil.com.br/noticias/157855/ justica-juiz-usa-lei-maria-da-penha-para-proteger-homem. Acesso em: 18 ago. 2020.
6
Dentre as notícias do Senado de 22/05/2019 estava a seguinte: “Mulheres transgênero e transexuais poderão ter proteção da Lei Maria da Penha”, que abrange a aprovação pela Comissão de Constituição e Justiça do Projeto de Lei para a ampliação do alcance da Lei n.° 11.340/06 aos transgêneros e transexuais.
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A Lei 11.340/06 não parece abranger identidades de gênero, limitando-se a proteger “a mulher” dentro de um esquema de correspondência entre sexo-gênero. Para participar como vítima do rito judicial previsto pela Lei Maria da Penha, a princípio, o sexo que consta no registro civil do indivíduo deve ser o feminino, o que possibilitaria a proteção de alguns transexuais, mas não de travestis e transgêneros registrados como homens. As relações de conjugalidades que podem receber tratamento especial em caso de violência doméstica abrangidas pela Lei Maria da Penha são vinculadas a uma compreensão legal de sexo-gênero-sexualidade como correspondentes (mulher-feminina-heterossexual). É uma lei elaborada para atender, sobretudo, mulheres (vítimas) que se encontrem em relacionamentos heterossexuais com homens violentos (patriarcais) que devem ser contidos pelo Estado (também, patriarcal). A legislação acolhe, de forma não explícita, a violência em caso de conflitos íntimos lésbicos, dando a eles um tratamento especializado em razão do gênero, distinto de relacionamentos homossexuais entre homens, como se nesses não existisse nenhum problema de violência de gênero. Por essa lógica, somente as mulheres podem sofrer violência de gênero. Ainda, a existência dos tra(ns) é desconsiderada pela lei, como se fossem o outro gênero, o não-gênero.
Em que pesem as inúmeras discussões a respeito do tema, já foram proferidas decisões reconhecendo a aplicabilidade da lei àquelas que se consideram socialmente do sexo feminino, o que passará a ser exposto em seguida. 3 PRECEDENTES E DIVERGÊNCIAS
É de amplo conhecimento as dificuldades experimentadas pelos transgêneros que buscam o judiciário visando o reconhecimento de seus direitos. O entendimento dos Tribunais brasileiros ainda não está solidificado. Como dificuldades das pessoas que se incluem nesse grupo de transgêneros ou transexuais, possível citar a falta de inclusão na Lei e o
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conservadorismo dos julgadores e membros do judiciário. Alguns tribunais não permitem as medidas de proteção aos indivíduos que não realizaram a cirurgia de “troca de sexo” ou que não realizaram a alteração no registro civil. Destaca-se aqui a decisão do Tribunal de Justiça do Mato Grosso do Sul, na qual o Desembargador responsável pela análise do caso afastou a incidência da Lei Maria da Penha quando a vítima for transexual que não tenha alterado o seu registro civil. O relator entendeu que mulher é apenas quem assim nasce, ou quem tenha em seu registro civil o sexo feminino.7 No caso supra mencionado, possível observar que a falta de alteração do registro civil, ou o simples fato de a vítima não ter nascido mulher, foram, ao ver do julgador, impasses para a obtenção da aplicação da Lei. Em contrapartida, o Tribunal de Justiça do Distrito Federal possui decisão no sentido de que os transexuais carregam consigo todos os estereótipos de vulnerabilidade e sujeição voltados ao gênero feminino combatidos pela Lei Maria da Penha. Veja-se: O gênero feminino decorre da liberdade de autodeterminação individual, sendo apresentado socialmente pelo nome que adota, pela forma como se comporta, se veste e se identifica como pessoa. A alteração do registro de identidade ou a cirurgia de transgenitalização são apenas opções disponíveis para que exerça de forma plena e sem constrangimentos essa liberdade de escolha. Não se trata de condicionantes para que seja considerada mulher.8
A questão da aplicação do estatuto aos transexuais é ainda muito controversa na comunidade brasileira (e por que não falar mundial) em razão da cultura conservadora que nos rege. Nos dizeres de Caetano Ernesto da Fonseca Costa (2012, p. 173), a atuação do Poder Judiciário não é suficiente, vez que grande parte dos Tribunal de Justiça do Mato Grosso do Sul – autos CC 2006.017235-4/0000-00.
7
Tribunal de Justiça do Distrito Federal – autos 0006926-72.2017.8.07.0020.
8
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magistrados ainda, ao analisar questões de violência contra a mulher, acabam reproduzindo mais preconceitos, em total discrepância com o que da função se espera. Veja-se: a atuação do Poder Judiciário tem se mostrado insuficiente, considerando que parcela considerável dos magistrados, ao decidir causas que envolvem violência contra a mulher, acaba reproduzindo uma série de preconceitos, operando como meras engrenagens do patriarcado, por desconhecerem as questões de gênero e suas implicações jurídicas.
Porém, o que deve ser analisado, além da proteção da identidade do ser humano e dos direitos fundamentais elencados (ausência de discriminação em virtude de raça, sexo, religião, entre outros), é o princípio da dignidade da pessoa humana e a realidade social. 4 O PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA
O Brasil é um dos países em que mais existe violência à população LGBT. A sociedade ainda não evoluiu a ponto de entender os direitos e a necessidade de reconhecimento desses indivíduos. Constitucionalmente falando, todos são iguais perante a lei, porém a tutela dos princípios e direitos fundamentais deve não só ser utilizada na teoria, mas sim concretizada pela sociedade contemporânea. Os princípios inerentes aos seres humanos caminham juntos e devem ser assim aplicados. O indivíduo é livre para ser (pontua-se aqui orientação sexual e identidade social) e escolher o que lhe couber para alcançar realização pessoal, mas para tal, precisa do respeito dos demais para que sua liberdade seja exercida e também seja possível a existência de uma vida digna. Cabe aqui apontar o significado de dignidade, como pilar do Estado Democrático de Direito. Nos dizeres de André Gustavo Corrêa de Andrade (2003, p. 12):
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A dignidade pressupõe, portanto, a igualdade entre os seres humanos. Este é um de seus pilares. É da ética que se extrai o princípio de que os homens devem ter os seus interesses igualmente considerados, independentemente de raça, gênero, capacidade ou outras características individuais. Os interesses em evitar a dor, manter relações afetivas, obter uma moradia, satisfazer a necessidade básica de alimentação e tantos outros são comuns a todos os homens, independentemente da inteligência, da força física ou de outras aptidões que o indivíduo possa ter.
Conforme brevemente mencionado no tópico anterior, o judiciário tem sido protagonista nos avanços que tangem ao reconhecimento dos direitos inerentes aos transgêneros/transexuais, até porque, além da sua orientação sexual e identidade social, são seres humanos. Essa parcela da população é extremamente vulnerável à violência e, diante disso, os operadores do direito aos poucos avançam ao interpretar em petições, pareceres e decisões a aplicação da Lei Maria da Penha às mulheres e àquelas que se identificam como pertencendo ao sexo feminino. Lésbicas, transexuais, travestis e transgêneros, quem tenham identidade social com o sexo feminino estão ao abrigo da Lei Maria da Penha. A agressão contra elas no âmbito familiar constitui violência doméstica. Ainda que parte da doutrina encontre dificuldade em conceder-lhes o abrigo da Lei, descabe deixar à margem da proteção legal aqueles que se reconhecem como mulher. Felizmente, assim já vem entendendo a jurisprudência (DIAS, 2007, p. 58).
A título de exemplo, em junho de 2017 a Lei n.° 11.340/2006 foi efetiva em um caso de violência doméstica em face de uma mulher transgênero cometido pela própria genitora. A Vara de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher de São Gonçalo no Rio de Janeiro aceitou o pedido da Defensoria Pública do Estado e estabeleceu medidas de proteção para a vítima.
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Em resumo, a mãe da vítima não aceitava as escolhas da filha e acreditava que seriam oriundas de más influências e, por isso, decidiu por interná-la em uma clínica, obrigando-a a utilizar vestimentas masculinas. Na clínica, a transgênero teve seu cabelo raspado e foi submetida a um pseudotratamento. No julgamento do caso, o magistrado apontou, entre outras coisas, que a internação e o corte de cabelo forçados violaram a dignidade humana da mulher transexual. Portanto, possível perceber que as medidas protetivas previstas na Lei abrangem todas as mulheres do gênero feminino, sejam aquelas que se sentem ou se identificam como mulheres, ou aquelas que nasceram mulheres. 5 INTERVENÇÃO ESTATAL EM CASOS QUE ENVOLVEM A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR E A APLICAÇÃO DAS MEDIDAS PROTETIVAS
O Brasil é um Estado Democrático de Direito. Nos termos do artigo 1º da Constituição Federal, “A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Município e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: [...] III – a dignidade da pessoa humana. [...]”. Ainda, nos termos do artigo 3º da Carta Magna, constituem objetivos fundamentais, “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”. Pois bem, sendo uma Nação pautada na proteção dos direitos fundamentais e tendo como objetivo promover o bem social sem qualquer tipo de discriminação, é interesse dela a proteção de todas as pessoas independentemente de raça, sexo, identidade social e escolhas simplesmente por serem sujeitos de direitos. Seguindo a linha de raciocínio do tema aqui exposto, o Estado, então, deve zelar pelo bem estar e pela proteção da mulheres, ou daquelas que assim de identificam, que se encontram em situação de violência, não podendo simplesmente ignorar qualquer situação que possa causar risco à integridade física ou moral delas.
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Grande parte da sociedade cresceu com o pensamento que pode ser interpretado e expressado mediante um ditado popularmente conhecido: “em briga de marido e mulher, ninguém mete a colher”, porém, conforme acima exposto, o Estado não pode deixar de intervir em situações de violência no âmbito residencial ou familiar, seja em face de mulheres, biologicamente falando, ou em face de transgêneros. Em outras palavras, o Estado deve interferir nos casos em que existe violência doméstica e familiar, independentemente das características biológicas do sujeito passivo. Destaca-se aqui que o crime de lesão corporal leve, sob os preceitos da Lei Maria da Penha, é de Ação Penal Pública Incondicionada, vez que o Estatuto discorre em seu artigo 41 que não se aplica a ele a Lei dos Juizados Especiais, e também o Superior Tribunal de Justiça, por intermédio da Súmula número 542, dispõe que “a ação penal relativa ao crime de lesão corporal resultante de violência doméstica contra a mulher é pública incondicionada”. Mas o que isso quer dizer? A ação penal pública incondicionada é aquela que independe de iniciativa da vítima e de condições específicas para ser promovida, podendo ser proposta pelo Ministério Público. Assim, desde que existam indícios de cometimento de crime pelo agressor hábeis a tornar verossímil a acusação, o Ministério Público deverá promover a ação penal, sendo irrelevante a existência de oposição pela vítima. Em outras palavras, o Ministério Público, como órgão oficial do Estado, deve intervir em casos de violência que abrangem a Lei Maria da Penha. Confirma-se aqui, portanto, a intervenção estatal em “briga de marido e mulher”. A intervenção aqui mencionada são as denominadas medidas protetivas de urgência, que, segundo Sérgio Ricardo de Souza (2009, p. 133) são tidas como espécies de medidas especialmente cautelares, que objetivam garantir principalmente a integridade psicológica, física, moral e material (patrimonial) da mulher vítima de violência doméstica e familiar, com vistas a garantir que ela possa agir livremente ao optar por busca de proteção estatal.
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Previstas no artigo 22 da Lei n.° 11.340/2006, as medidas protetivas abrangem, dentre elas, a suspensão da posse ou restrição do porte de armas, o afastamento do lar, domicílio ou local de convivência com a ofendida, a proibição de determinadas condutas, a restrição ou suspensão das visitas aos menores dependentes e a prestação de alimentos provisionais ou provisórios. O Estado, pontua-se, tem o prazo de 48 horas para colocar em vigor as medidas acima mencionadas em face do ofensor, porém, ainda, se mostra falho na parte fiscalizatória. Não existe uma estrutura que auxilie o Poder Público no acompanhamento do cumprimento, ou não, das medidas protetivas aplicadas em cada caso, destaca-se que tal é inviável justamente pelo considerável número de casos. Contudo, em alguns Estados brasileiros já estão colocando em prática o monitoramento eletrônico dos agressores. O Projeto de Lei n.° 5.278/2019 (aprovado em 12 de fevereiro de 2020), prevê a tecnologia de monitoramento eletrônico para os casos em que foram aplicadas as medidas previstas no regulamento.9 A Lei Maria da Penha trouxe diversas alterações ao ordenamento jurídico em vigência, porém, ainda existem lacunas a serem preenchidas no que tange à proteção das vítimas e da confirmação da efetividade das medidas protetivas e preventivas que estão sendo aplicadas.
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O autor do projeto é o senador Jorge Kajuru (Cidadania-GO). Atualmente, pela Lei Maria da Penha, constatada a prática de violência doméstica e familiar contra a mulher, o juiz pode aplicar, de imediato, ao agressor, em conjunto ou separadamente, as seguintes medidas protetivas de urgência: suspensão ou restrição do porte de armas; afastamento do lar; e/ou proibição de determinadas condutas, entre elas, aproximação física, contato ou visita à ofendida, familiares e testemunhas. Pelo PL, nos casos de afastamento do lar e de proibição de aproximação ou contato, o agressor fica obrigado a usar dispositivo eletrônico para monitoramento da distância em relação à vítima. Kajuru aponta que vários estados já usam diversos aplicativos e dispositivos eletrônicos para a aplicação da Lei Maria da Penha. Outros impõem o uso da tornozeleira eletrônica. Há, ainda, os que instituíram o chamado “botão de pânico”, que permite à mulher denunciar a violação da medida protetiva. “Reconhecemos que tais medidas são importantes na proteção das mulheres, de seus filhos e, muitas vezes, do próprio agressor, que fica desestimulado a reincidir na violência”, alega o senador na justificativa. Fonte: Agência Senado.
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Não obstante, merece análise a questão que acomete a população mundial no presente momento de crise e de pandemia. Os números de violência doméstica estão crescendo e guarnece destaque a atuação estatal nesses casos específicos. 6 OS CASOS DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA EM MEIO A SITUAÇÕES DE PANDEMIA E QUARENTENA
É de conhecimento de todos que no primeiro semestre do ano de 2020 estourou um novo vírus de fácil transmissão e que em pouco tempo fez com que as autoridades da Organização Mundial da Saúde declarassem a pandemia da doença. Por isso, se faz necessária uma breve pontuação sobre a situação. Dentre as recomendações, a organização internacional aconselhou àqueles que pudessem, para que ficassem em casa para controlar a transmissão da doença. Os países logo se manifestaram e orientaram à sua população as medidas necessárias para diminuir o contágio. Ocorre que, com a recomendação de quarentena, os casos de violência doméstica aumentaram drasticamente. Com o novo Coronavírus, no Paraná, apenas na primeira semana de isolamento social, aumentaram-se em 15% os casos de violência doméstica que foram notificados às autoridades policiais.10 No Rio de Janeiro, as denúncias aumentaram cerca de 50%.11 Além disso, os números se repetem na esfera mundial.12 Os dados aqui trazidos foram fornecidos por Ivan Santos em notícia publicada no site do Bem Paraná no mês de abril de 2020. Violência Doméstica. Disponível em: https://www.bemparana.com.br/noticia/violencia-domestica#.Xq7s1y3OpQI. Acesso em: 13 ago. 2020.
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Desde que as medidas de isolamento social, para quem pode ficar em casa, entraram em vigor, um triste número também começou a subir nas estatísticas, e não de casos da Covid-19, doença causada pelo novo coronavírus. Foram o de denúncias de violência doméstica: o aumento foi de cerca de 50% apenas no Rio de Janeiro, mas a realidade de avanço nos casos aconteceu em todo o mundo. Disponível em: https:// bityli.com/bAr6c. Acesso em: 13 ago. 2020.
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Na China as denúncias de violência doméstica subiram três vezes no período da pandemia. Na França, o aumento foi de 32%. NEXO. Quais os impactos da pandemia sobre as mulheres. Disponível em: https://www.nexojornal.com.br/expres-
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O que foi entendido como contenção do ritmo de contaminação pelo novo vírus, é também um estímulo ao aumento de casos de violência contra mulheres e transexuais no âmbito familiar e doméstico. A Organização das Nações Unidas, no documento “COVID-19 na América Latina e no Caribe: dimensões de gênero na resposta”,13 pontuou que o convívio ininterrupto durante a quarentena das mulheres (e por que não incluir aquelas que assim se identificam), com seus companheiros ou com os demais membros de suas famílias, é fator que contribui para a violência doméstica. Ato contínuo, destaca-se que os casos ainda são muito abrangentes na sociedade. As mulheres e transexuais continuam sendo vítimas de números absurdos de violência, e ainda, a situação atual da comunidade mundial restringe serviços e aumenta a convivência com o agressor (ou o possível agressor), o que vem a dificultar a intervenção nesses casos. 7 CONSIDERAÇÕES FINAIS
É incontroverso que a Lei Maria da Penha foi promulgada com a intenção de diminuir, ou até mesmo cessar, os casos de agressão contra as vítimas aqui discutidas, sejam elas mulheres ou transexuais. Porém, em que pese a teoria, a sociedade ainda é muito fechada no que tange à intervenção/denunciação nos casos de violência. Restou claro que a intervenção estatal não é uma escolha, e sim um dever. O Poder Público, assim que tomar conhecimento de algum dos tipos de violência previstos exemplificativamente dentre os artigos da Lei, deve, por intermédio de seus agentes, aplicar medidas que evitem novos casos e protejam as vítimas de futuras violações.
so/2020/03/24/Quais-os-impactos-da-pandemia-sobre-as-mulheres. Acesso em: 18 ago. 2020. Ainda: LCI. Les violences conjugales en hausse de plus de 30%. Disponível em: https://bityli.com/Z4p2Z. Acesso em: 18 ago. 2020. Gênero e covid-19 na américa latina e no caribe: dimensões de gênero na resposta. Disponível em: http://www.onumulheres.org.br/wp-content/uploads/2020/03/ ONU-MULHERES-COVID19_LAC.pdf. Acesso em: 18 ago. 2020.
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Ocorre que, muitas vezes, as vítimas são agredidas no âmbito familiar e dentro de suas residências, sentindo-se impotentes, muitas vezes, para perceber os atos de violência que lhes são cometidos e também para denunciá-los. A Lei n.° 11.340/2006, por intermédio dos os tribunais e especialistas, vem buscando medidas, além das protetivas já assinaladas, que concretizem a proteção das vítimas, visando assim, evitar casos futuros e fornecer mecanismos legais para lidar de forma mais efetiva com situações de violência. Contudo, ainda são visíveis diversos obstáculos, principalmente a falta de recurso estatais para concretizar as políticas públicas de enfrentamento da violência contra a mulher. O estatuto busca diminuir os números de agressão na sociedade atual, porém essa tem que sentir as mudanças nas raízes. Conforme já mencionado, a sociedade é muito conservadora, tanto no que diz respeito ao tratamento das mulheres quanto ao reconhecimento dos transgêneros/transexuais. A recognição e a alteração dessas questões são fatores principais para que as mudanças nos números e notícias recorrentes de violência doméstica e de gênero comecem a acontecer. Já existem alguns precedentes, mas ainda são poucos os que reconhecem os direitos dos transexuais em relação à aplicação da Lei Maria da Penha. REFERÊNCIAS ALIMENA, Carla Marrone. A tentativa do (im)possível: feminismos e criminologias. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. ANDRADE, André Gustavo Corrêa de. O princípio fundamental da dignidade humana e sua concretização judicial. Revista da EMERJ, Rio de Janeiro, v. 6, n. 23, p. 316-335, 2003. BRASIL. Tribunal De Justiça do Distrito Federal e Territórios. TJ/DF – 000692672.2017.8.07.0020. JusBrasil. Disponível em: https://tj-df.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/569318431/20171610076127-df-0006926-7220178070020. Acesso em: 13 ago. 2020. BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado de Mato Grosso do Sul. CC 2006.0172354/0000-00. Relator: Desembargador José Augusto de Souza.
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CAMPOS, Carmen Hein de. Razão e sensibilidade: teoria feminista do direito e Lei Maria da Penha. In: CAMPOS, Carmen Hein de (Coord.). Lei Maria da Penha comentada em uma perspectiva jurídico-feminista. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011. CDH aprova monitoramento eletrônico de medidas protetivas da Lei Maria da Penha. Senado Notícias, 12 fev. 2020. Disponível em: https://www12.senado. leg.br/noticias/materias/2020/02/12/cdh-aprova-monitoramento-eletronico-de-medidas-protetivas-da-lei-maria-da-penha. Acesso em: 13 ago. 2020. COSTA, Caetano Ernesto da Fonseca. A atuação diversificada e necessária do juiz e a efetividade das leis de igualdade de gênero. Revista da Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro (EMERJ), v. 15, n. 57 (edição especial), p. 173-181, jan./mar. 2012. DIAS, Maria Berenice. A lei Maria da Penha na justiça: a efetividade da lei 11.340/2006 de combate à violência doméstica e familiar contra a mulher. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro: direito de família. v. 6. 16. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2019. LES violences conjugales en hausse de plus de 30%: l’Intérieur propose de donner l’alerte dans des pharmacies. LCI, Newsroom, 28 mar. 2020. Disponível em: https://bityli.com/Z4p2Z. Acesso em: 13 ago. 2020. LIMA, Juliana Domingos de. Quais os impactos da pandemia sobre as mulheres. Jornal Nexo, 24 mar. 2020. Disponível em: https://www.nexojornal.com. br/expresso/2020/03/24/Quais-os-impactos-da-pandemia-sobre-as-mulheres. Acesso em: 13 ago. 2020. MAZZI, Carolina. Violência doméstica dispara na quarentena: como reconhecer, proteger e denunciar. O Globo, Coronavírus Serviço, 01 mai. 2020. Disponível em: https://bityli.com/bAr6c. Acesso em: 13 ago. 2020. MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DO PARANÁ. Juiz usa Lei Maria da Penha para proteger homem. JusBrasil, 2008. Disponível em: https://mp-pr.jusbrasil.com.br/noticias/157855/justica-juiz-usa-lei-maria-da-penha-para-proteger-homem. Acesso em: 23 abr. 2020.
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MULHERES transgênero e transexuais poderão ter proteção da Lei da Maria da Penha, aprova CCJ. Senado Notícias, Redação, 22 mai. 2019. Disponível em: https://bityli.com/w35CD. Acesso em: 25 mai. 2020. ONU. Gênero e Covid-19 na América Latina e no Caribe: dimensões de gênero na resposta. ONU MULHERES, mar. 2020. Disponível em: http://www. onumulheres.org.br/wp-content/uploads/2020/03/ONU-MULHERES-COVID19_LAC.pdf. Acesso em: 13 ago. 2020. SANTOS, Ivan. Violência doméstica. Bem Paraná, Política em Debate, 16 abr. 2020. Disponível em: https://www.bemparana.com.br/noticia/violencia-domestica#.Xq7s1y3OpQI. Acesso em: 13 ago. 2020. SOUZA, Sérgio Ricardo de. Comentários à lei de combate à violência contra a mulher. 3. ed. Curitiba: Juruá, 2009.
A ALIENAÇÃO DO PODER DE CONTROLE MINORITÁRIO NAS SOCIEDADES ANÔNIMAS: OBRIGAÇÃO DE REALIZAÇÃO DE OFERTA PÚBLICA DE AÇÕES COMO CONDIÇÃO PARA A EFICÁCIA DO NEGÓCIO JURÍDICO
Jorge Henrique Anorozo Coutinho Nicolas Bénjamin Wolff de Souza
RESUMO
Este artigo pretende fazer a análise do controverso tema do poder de controle quando exercido por acionista minoritário no âmbito das sociedades anônimas. Para fins de delimitação do tema, optou-se pelo debate acerca da incidência do art. 254-A, Lei n.º 6.404/76, o qual condiciona a eficácia do negócio jurídico de alienação das ações que importem na transferência do controle societário. Para tanto, será desenvolvido o conceito de poder de controle, de sua natureza, assim como identificadas balizas objetivas que permitam seu reconhecimento enquanto elemento completante do suporte fáctico da norma jurídica que leva à obrigatoriedade de realização de oferta pública de ações. Além disso, será demonstrada a ratio legis da obrigatoriedade legal da realização da oferta pública de ações, para se constatar sua incidência em caso de alienação das ações do acionista minoritário que exerça o controle da companhia. Em conclusão, é demonstrada a necessidade de oferta pública de aquisição de ações pelo adquirente, no caso de alienação das ações do acionista minoritário controlador, como condição de eficácia do negócio jurídico. Palavras-chave: Sociedades Anônimas. Poder de controle. Acionista minoritário. Oferta pública de ações. Condição.
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1 INTRODUÇÃO
As constantes oscilações identificadas nos mercados de capitais no decorrer da década de 80 podem ser atribuídas, em especial, à coalizão de duas conjunturas: (i) o limbo normativo, presente em um ambiente ainda atrelado à clássica construção liberal-econômico capitalista, a qual prezava pela menor intervenção estatal como pré-requisito ao fomento da circulação de riquezas; e (ii) os abusos decorrentes da concentração de poder e capital em um único acionista no interior da companhia, controlador totalitário da empresa1. Frente à prejudicial instabilidade que essa realidade trouxe ao funcionamento do mercado de ações, em um natural processo de contrafluxo, encetou-se o preenchimento do vazio jurídico que antes ali se encontrava, dando-se notado enfoque à positivação de mecanismos protetivos aos acionistas minoritários, objetivando, em última instância, fornecer maior segurança jurídica, e, consequentemente, maior atratividade aos investidores. Nesse diapasão, no cenário brasileiro - tipicamente marcado por companhias familiares altamente concentradas2 - destacam-se as seguintes medidas jurídico-administrativas: a) em 2000, a Bovespa criou os segmentos especiais de governança corporativa; b) em 2001, foi aprovada a reforma da Lei n.º 6.404/76, com atenção aos acionistas minoritários; c) criação da cartilha de Governança Corporativa, divulgada pela Comissão de Valores Mobiliários (CVM) em 2002; e d) como ápice, a criação do Novo Mercado, enquanto segmento da atual B3 com os mais rígidos 1
Na década de 80, das 496 companhias abertas cujo patrimônio representava 90% daquelas listadas na bolsa, em apenas 15,13% não havia a figura do acionista majoritário (BIANA; SANT’ANNA, 2016, n.p.)
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Como anota Nelson Eizirik (EIZIRIK, 1984, p. 106), na perspectiva nacional, a abertura das sociedades anônimas é instrumento de capitalização de recursos, e não leva ao que se poderia chamar de “democratização da propriedade empresarial”, pelo contrário, mas há uma nítida preponderância das companhias de caráter familiar (BIANA; SANT’ANNA, 2016, n.p.). Em outras palavras, na economia brasileira, há um claro predomínio da modalidade totalitária e majoritária do poder de controle, ao contrário do que se encontra, a exemplo, nos cenários britânico e norte-americano, nos quais a dispersão acionária atualmente é típica.
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parâmetros de Governança Corporativa, e.g. adoção da política do Tag Along, a manutenção do free float, emissão exclusiva de ações ordinárias. Fato é que as reformas estruturais e paradigmáticas, dirigidas por um maior intervencionismo jurídico, levaram a um sistema de mercado de capitais mais transparente e democrático, que, por sua vez, conferiu maior liquidez às ações, diminuiu os custos de capital e aumentou o interesse por um maior número de investidores. O crescimento da pulverização acionária evidencia o surgimento de novos parâmetros funcionais no mercado de ações brasileiro: em 2015, dentre as 100 companhias cujas ações foram mais negociadas na BM&FBovespa, em 54% inexistia a figura de um acionista com mais da metade das ações com direito de voto (BIANA; SANT’ANNA, 2016, n.p.). A hodierna ausência de um acionista majoritário em grande parte das companhias de capital aberto, contudo, forneceu o ambiente propício para a proliferação da figura do acionista controlador com posse de menos da metade das ações ordinárias. Em outras palavras, ocorrera a dissociação entre os conceitos de acionistas majoritário e acionista controlador3, de sorte que um minoritário por diversas vezes controle as deliberações e direcione a empresa. A esse fenômeno dá-se o nome de poder de controle minoritário. Observe-se, portanto, a notória situação contraditória: de um lado, estruturou-se um sistema normativo pautado em larga medida nos preceitos de governança corporativa e proteção do acionista minoritário, em face do acionista majoritário-controlador; e, no polo oposto, o próprio acionista minoritário passa a assumir a posição que lhe permita exercer o poder de controle e conduzir os trâmites societários e negociais.
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Nos dizeres de Camila Ribeira Martes, o acionista controlador, por sua posição, pode extrair diversos benefícios, como: “(i) obtenção de vantagens desproporcionais na consecução das atividades da sociedade sob controle, por exemplo, por meio da determinação do fluxo de dividendos; (ii) negociação direta em operações de alienação de controle, com possibilidade de pagamento de prêmio de controle; e (iii) realização de operações que resultem na diluição dos demais acionistas (freeze out)” (MARTES, 2014, p. 14).
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Constatada essa situação, tem tomado o âmbito dos tribunais administrativos, do Poder Judiciário e dos debates doutrinários a questão do controle minoritário. Afinal, insta constatar se, de fato havendo um poder de controle exercido pelo acionista minoritário, quais normas, inicialmente pensadas em face do abuso de poder do controle majoritário, devem também incidir a esse novo suporte fáctico (poder de controle minoritário). Para a delimitação do tema, escolheu-se especificamente a análise da obrigatoriedade (Schuld) da realização de oferta pública de ações (OPA) em havendo alienação das ações do controlador minoritário (art. 254-A, LSA4), como condição para a eficácia do negócio jurídico (Heftung). Para tanto, será realizada a construção do poder de controle e identificação dos elementos que permitam sua caracterização, de sorte a demonstrar que hoje o acionista minoritário pode exercê-lo. Ato contínuo, far-se-á estudo da teleologia das normas que impõem a realização da OPA e sua aplicação na alienação pelo acionista minoritário que tenha controlado a empresa. Por fim, apresentar-se-ão as conclusões com os casos de incidência do art. 254-A da Lei das Sociedades Anônimas.
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Art. 254-A. A alienação, direta ou indireta, do controle de companhia aberta somente poderá ser contratada sob a condição, suspensiva ou resolutiva, de que o adquirente se obrigue a fazer oferta pública de aquisição das ações com direito a voto de propriedade dos demais acionistas da companhia, de modo a lhes assegurar o preço no mínimo igual a 80% (oitenta por cento) do valor pago por ação com direito a voto, integrante do bloco de controle. § 1.º Entende-se como alienação de controle a transferência, de forma direta ou indireta, de ações integrantes do bloco de controle, de ações vinculadas a acordos de acionistas e de valores mobiliários conversíveis em ações com direito a voto, cessão de direitos de subscrição de ações e de outros títulos ou direitos relativos a valores mobiliários conversíveis em ações que venham a resultar na alienação de controle acionário da sociedade. § 2.º A Comissão de Valores Mobiliários autorizará a alienação de controle de que trata o caput, desde que verificado que as condições da oferta pública atendem aos requisitos legais. § 3.º Compete à Comissão de Valores Mobiliários estabelecer normas a serem observadas na oferta pública de que trata o caput. § 4.º O adquirente do controle acionário de companhia aberta poderá oferecer aos acionistas minoritários a opção de permanecer na companhia, mediante o pagamento de um prêmio equivalente à diferença entre o valor de mercado das ações e o valor pago por ação integrante do bloco de controle.
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2 O CONCEITO JUSFILOSÓFICO DE PODER DE CONTROLE
A devida compreensão do fenômeno jurídico, entendido como a incidência da norma jurídica sobre um suporte fáctico, imprescinde da identificação precisa das balizas normativas - literais e interpretativas para a precipitação da hipótese de incidência e quais os elementos caracterizadores do fattispecie. Em outras palavras, a matriz para garantir o devido rigor epistêmico para fins da constatação se há ou não a obrigatoriedade prevista no art. 254-A, LSA, na hipótese de alienação de ações do acionista minoritário-controlador, se perfaz na compreensão do conceito do poder de controle das sociedades anônimas no âmbito deontológico positivo do dispositivo, assim como dos requisitos para a identificação dos elementos ontológicos para a construção de seu suporte fáctico. Para tanto, nas próximas linhas, dedicar-se-á à construção do conceito de poder, enquanto existência no mundo dos fatos, em especial como elemento integrante do suporte fáctico do poder de controle. Ato contínuo, será destrinchada a noção de poder de controle no âmbito das sociedades anônimas para fins da aplicação do art. 254-A. Por fim, em conclusão, intentar-se-á, por meio da contraposição das construções pretéritas e do conceito de controle minoritário, a completa formação do suporte fáctico da norma (art. 254-A, LSA), para constatar se há ou não sua incidência quando houver a alienação de ações do minoritário controlador. 2.1 A DEFINIÇÃO DE PODER: O PODER COMO CERNE DO SUPORTE FÁCTICO DO PODER DE CONTROLE
Há muito a questão do poder cerca os debates políticos, filosóficos, sociais e, especialmente, jurídicos. Aos fins que aqui interessa, utilizar-se-á como base para posterior construção do conceito de poder de controle, a clássica e atemporal definição de Weber, na qual poder é a “chance de impor, dentro de uma relação social, a vontade própria mesmo contra relutância, não importando em que essa chance se baseia” (WEBER, 1998, p. 33). Assim, o poder está atrelado intimamente à noção de domina-
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ção (Können/Vermögen) presente em uma relação social. Trata-se de um processo complexo manifesto entre indivíduos interessados. Ao fim e ao cabo, portanto, o poder é um fato social5. Situar o poder na sociedade, entretanto, demonstra-se tarefa de difícil alçada. Está-se no âmbito do extremo abstrato e fluido, que, contrario sensu, só pode ser aferível pela sua manifestação. Tal situação se perfaz justamente porque, como define Foucault, o poder não está em nenhum ponto específico da estrutura social. Ao contrário, ele funciona como uma rede de dispositivos e mecanismos a que nada ou ninguém escapa, a que não existe exterior possível. Assim, ninguém realmente detém poder, tal qual uma propriedade. Rigorosamente, poder não existe, mas apenas relações de poder. O que implica, então, em se concluir que o poder é algo que se exerce, que se efetua, que funciona (FOUCAULT, 2018, p. 17). Essa construção leva a uma importante constatação. Se não há propriedade do poder, mas apenas posições (situações) que permitem o seu exercício, ou seja, aptidão (faculdade) para exercê-lo, ao se tratar da alienação do poder de controle, está-se, em último caso, constatando-se a transferência onerosa ou gratuita de uma posição, ou seja, da situação de fato que faculte ao adquirente exercer o poder6. De tal sorte, para se identificar efetivamente a alienação, há de se concluir se o adquirente, pelas situações que lhes circundam, mediante a compra daquelas ações objeto do negócio jurídico, se estabelecerá nessa nova situação. Feitas essas considerações, pode se conceituar, lato sensu, poder como fato social fluido, complexo, itinerante e de caráter relacional, que consiste na prerrogativa da qual se faz apto determinado sujeito de impor determinada situação arbitrariamente, a despeito de lhe ser oferecida re5
Na tradicional definição de Durkheim, fato social é a maneira de agir, de pensar e de sentir que se projeta para fora das consciências individuais (DURKHEIM, 2007, p. 13).
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Na perspectiva weberiana, a construção de poder já apontava nesse sentido. Mais correto do que assumir que alguém detém a propriedade do poder seria colocar a que determinada pessoa tem a probabilidade de impor a vontade sobre os outros; as condições concretas para se fazer prevalecer sobre o outro, a despeito de eventual resistência.
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sistência. Assim, o poder assume uma dupla feição: (i) uma primeira de caráter positivo, que importa na dominação por si só, que leva à imposição da vontade de forma arbitrária e fiscalização; e (ii) uma segunda de natureza negativa (censura), a qual diz respeito ao impedimento que outros lhe obriguem a tomar certas atitudes, ou seja, que outros imponham seus interesses de forma determinante. Nesse diapasão, há de se constatar que o poder, em si e por si, não adentra ao mundo jurídico, ou seja, ele não será, jamais, um fato jurídico. Seu caráter é eminentemente fático. Entretanto, por outro lado, assume especial relevância, na medida em que se atrela como elemento completante do suporte fáctico - do fato jurídico alienação do poder de controle7 -, que consiste, em última instância, na cessão onerosa ou gratuita de situação (posição) na qual determinado sujeito se situa que lhe permita exercício de poder. 2.2 PODER DE CONTROLE NAS SOCIEDADES ANÔNIMAS: O PODER DE CONTROLE COMO POSIÇÃO (SITUAÇÃO)
Conforme constatado, para fins do art. 254-A, LSA8, o poder de controle, enquanto tipo do poder, será, ao fim e ao cabo, uma situação ou 7
É do fato jurídico alienação do poder de controle que decorrerão efeitos jurídicos (direitos, ônus, deveres, pretensão, obrigação e exceção) (PONTES DE MIRANDA, 2012, p. 23).
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Nesse ponto, cabe importante ressalva, para fins da identificação do poder de controle. Pela sua inadequação, o conceito de poder de controle trazido no art. 116 da Lei nº 6.404/76 não será utilizado para fins de determinação da incidência da obrigatoriedade de realização de oferta pública de ações prevista no art. 254-A (Lei das Sociedade Anônimas). No referido dispositivo, há a definição de acionista controlador, mas não de poder (bloco) de controle, ao qual se refere na sua hipótese de incidência o art. 254-A. Nesse diapasão, também se manifestou a CVM no Processo CVM nº RJ2005/4069 (CDB): “28. Analisando ambas as situações, reconheço que esses dispositivos tratam de situações diferenciadas. O art. 116, juntamente com o art. 117, tem por objetivo definir os requisitos para que um acionista seja considerado como acionista controlador e as responsabilidades que um tal acionista assume, caso aja como tal (...). Já o art. 254-A tem finalidade muito diferente. Ele pretende conferir a possibilidade de uma “compensação” à quebra da estabilidade do quadro acionário, permitindo que os acionistas minoritários alienem suas ações por um preço determinado em lei (...)”. Vale menção ao alerta habilmente colacionado por Nelson Eizirik,
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posição, na qual se permite que determinado acionista exerça relação de dominação no direcionamento da empresa, por meio do controle - direto ou indireto - dos meios de produção e dos fins sociais. Em específico, o poder de controle nas sociedades anônimas diz respeito à formação do interesse da sociedade de forma individual pelo acionista controlador. Nessa perspectiva, inclusive, como exposto por Adolf A. Berle e Gardiner C. Means, as sociedades anônimas apresentaram verdadeira revolução dentro do próprio sistema capitalista, dissociando a propriedade da riqueza produtiva (bens de produção) de seu controle9 (BERLE; MEANS, 1984 apud COELHO, 2016, p. 278), ou seja, tornando passivo o domínio, na medida em que permitiu a desproporção entre o capital aportado e o poder de dirigir a atividade financiada (BERTOLDI, 2004,
que sedimenta a necessidade de conferir distinto tratamento ao conceito de poder de controle (art. 254-A) e ao de acionista controlador (art. 116) (EIZIRIK, 2010, p. 182): “Nesse sentido, vale mencionar a hipótese em que determinado acionista, embora detendo a maioria do capital votante da companhia aberta, não exerce efetivamente o poder de controle, pois não comparece às assembleias gerais nem interfere na eleição dos administradores. Tal acionista não pode ser considerado controlador, para efeitos do artigo 116 da Lei das S.A., visto que não preenche o requisito constante da alínea “b” do referido dispositivo legal. No entanto, a eventual alienação das ações de sua propriedade contemplaria um bloco capaz de assegurar, em caráter permanente, o exercício do poder de controle sobre a companhia, permitindo, inclusive, que o vendedor, mesmo não sendo controlador, recebesse o ágio decorrente da transferência do poder de controle. Ou seja, embora o alienante não exerça efetivamente o controle, ele é titular de um bloco de controle, cuja alienação permite ao adquirente passar a exercer, de imediato e por sua exclusiva vontade, as prerrogativas do controle acionário. Assim, caso o acionista em tela venda a totalidade das ações de sua propriedade, não há dúvida de que ficará caracterizada a alienação de controle da companhia e, consequentemente, o adquirente estará obrigado a formular a oferta pública para adquirir as demais ações com direito a voto”. Tal questão já teria sido identificada mesmo por Marx, no Livro III da obra “O Capital”, (MARX, 1984, p. 332)
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p. 52-55)10 11. Do autorizado magistério de Fábio Konder Comparato, nesse diapasão, é possível extrair a seguinte lição (1976, p. 93, grifo no original): Tal poder, bem conhecido dos juristas, é o clássico jus abutendi, elemento essencial da propriedade. O controle é, pois, o direito de dispor dos bens alheios como um proprietário. Controlar uma empresa significa poder dispor dos bens que lhe são destinados, de tal arte que o controlador se torne senhor de sua atividade econômica.
A constatação dessa nova realidade, atenta ao paradigma contemporâneo das companhias abertas, consagra, inclusive, a dissociação entre as noções de acionista controlador e acionista majoritário, afastando a relação de dependência entre o aporte monetário na empresa e o seu controle. Nessa perspectiva, poder de controle e maioria acionária não mais se confundem. A partir dessa constatação, e do conceito de poder supra desenvolvido, tem-se que o poder de controle será caracterizado como a situação fática que permita o exercício do domínio, enquanto faculdade inconsútil ou inteiriça, dos bens de produção da sociedade, o que leva, em última instância, ao controle da empresa pela formação de sua vontade. Em resumo, incumbe-se de poder de fato (EIZIRIK, 2010, p. 185) oriundo da união da potestas, enquanto força para impor a vontade, de forma coercitiva; e da autorictas, isto é, estar em posse dos meios legítimos para fazer prevalecer suas determinações (SEVILLA apud MUNIZ, 2005, p. 79). “Ele representou uma mudança nos paradigmas da economia clássica. Nesse modelo, empresários individuais eram proprietários dos meios de produção e responsáveis por tomarem as decisões a respeito da produção e do consumo. Mas as grandes empresas, produtoras em massa e grandes tomadoras de recursos, romperam esse modelo, dividindo a propriedade e o controle sobre os meios de produção”. (OIOLI, 2010, p. 31)
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Nesse diapasão, no cenário nacional, também já haviam escrito Comparato e Salomão Filho, reconhecendo como um dos fenômenos básicos da sociedade anônima moderna é a dissociação entre a propriedade acionário e o poder de comando empresarial (COMPARATO, 1976, p. 33-34)
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Destaque-se, nessa perspectiva, que a constatação desta posição para exercício do controle não se dará meramente no plano ontológico (sein), mas no plano existencial (Dasein)12, somente sendo notada pela concentração de poderes jurídicos, sociais, políticos e econômicos do acionista no âmbito da companhia. Em outras palavras, estes elementos deverão ser identificados no mundo dos fatos contrapostos àquela realidade subjetivo-objetivo específica. Nesse sentido, advoga Luiz Gastão Paes de Barros Leães (2013, p. 107): Quer dizer, o controle da sociedade é um poder de fato, não um poder jurídico, visto que, como salientaram Lamy e Bulhões Pedreira, o controlador só o detém enquanto, por circunstâncias fáticas e particulares a cada sociedade, se mantiver titular de direitos de voto em número suficiente para lograr a maioria nas deliberações sociais. O poder de controle, na verdade, nasce do fato da formação do bloco dominante e deixa de existir com o fato de sua dissolução. [...] Lembre-se que o controle da sociedade anônima constitui um poder de fato, não um poder jurídico, que o acionista controlador só o detém enquanto for titular de direitos de voto em número suficiente para obter a maioria nas deliberações assembleares. Ou seja, o acionista controlador não é sujeito ativo do poder de controle, decorrendo o exercício desse poder de uma circunstância fática, motivo pelo qual lícito é admitir a existência de controlador quando os acionistas votarem em conjunto, expressamente, de maneira permanente, a mesma vontade, sendo considerados integrantes de bloco de controle, ainda que não haja pactuado entre si um instrumento jurídico que materialize esse acordo de vontade.
A conclusão pela necessidade de identificação no caso concreto da existência da aquisição onerosa ou gratuita do poder de controle vai ao encontro de disposto no art. 254-A, §1º da Lei das S.A. De fato, diversos Referência à filosofia de Heidegger e sua diferenciação entre o “ser” (sein), de caráter ontológico, e o “ser-aí” (Dasein) de caráter existencial, contraposto a uma realidade específica. (EILENBERGER, 2018, p. 68).
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fatores podem resultar na aquisição do controle, ainda que o alienante não possua maioria das ações ordinárias. Nesse sentido, também entende (COUTO E SILVA, 1989, p. 8): Considera-se como, praticamente, impossível estabelecer as formas como se manifesta o poder de controle, pois ele não resulta somente da participação acionária majoritária, mas, também, de elementos de fato de toda a ordem, como, por exemplo a existência de um credor que detenha um crédito avultado.
A exemplo, há de se considerar, nessa perspectiva, para definir se há ou não poder de controle - não se excluindo outras particularidades: (i) se há absenteísmo; (ii) o comportamento habitual dos sócios nas Assembleias Gerais; (iii) a existência de holdings que exerçam, indiretamente o controle; (iv) a pulverização das ações ordinárias; (v) o poder de controle externo; (vi) existência de fundo de investimento como acionista do qual é quotista acionista da própria companhia; entre outros fatores. A partir desses elementos, para identificação concreta, última e definitiva do poder de controle, faz-se necessária, então, constatação se esses são suficientes para garantir o controle, que se consubstancia pela: a) faculdade de exercer a dominação de forma estável; b) predominância de votos nas Assembleias Gerais; c) eleição da maioria dos administradores. Tomam-se esses pontos como requisitos, pois se entende como determinantes para que o acionista efetivamente forme unitariamente a vontade da sociedade e coordene o desenvolvimento da empresa. Em resumo, o poder de controle se dá pela averiguação do domínio estável na determinação da sociedade, o que pode se dar, a constatarem-se alguns dos elementos supracitados, mesmo pelo acionista minoritário. Logo, ainda que em regra, em especial pela ausência de estabilidade absoluta, o controle esteja a cargo do majoritário, o acionista minoritário poderá estar em posição de exercê-lo pelas situações fáticas específicas daquela sociedade, que se lhe garantam perenidade no controle societário.
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3 DA DISJUNTIVA PODER-DEVER E A OBRIGATORIEDADE DA CELEBRAÇÃO DE OFERTA PÚBLICA DE AÇÕES NA ALIENAÇÃO DO PODER DE CONTROLE: A CARACTERIZAÇÃO DA HIPÓTESE FÁTICA DO ART. 254-A
Realizada análise do suporte fático sobre o qual incidirá a norma jurídica do art. 254-A da Lei das Sociedades Anônimas, incumbe então levantar breve constatação de sua hipótese normativa: alienação do poder de controle. Lembre-se que o Direito acompanha o disjuntivo poder-dever em sua totalidade. De tal sorte, a aquisição da posição jurídica trará a necessidade de realização de Oferta Pública de Ações (OPA) pelo adquirente, como condição - suspensiva ou resolutiva - do negócio jurídico. Nos termos do §1º do mesmo dispositivo, o próprio legislador se incumbiu de definir o objeto que caracteriza a alienação do controle, o qual ultrapassa a mera compra e venda de ações: § 1º Entende-se como alienação de controle a transferência, de forma direta ou indireta, de ações integrantes do bloco de controle, de ações vinculadas a acordos de acionistas e de valores mobiliários conversíveis em ações com direito a voto, cessão de direitos de subscrição de ações e de outros títulos ou direitos relativos a valores mobiliários conversíveis em ações que venham a resultar na alienação de controle acionário da sociedade.
Portanto, não há dúvida quanto ao objeto da alienação que poderá dar cabo à cessão da posição de controle. Vencido ex lege esse ponto, resta ainda análise dos sujeitos da operação e do verbo núcleo do negócio jurídico. Quanto a este último, a mera definição do conceito de alienação basta: “transferir gratuita ou onerosamente a outrem um direito ou a propriedade de uma coisa, que, então, passará a integrar patrimônio alheio” (DINIZ, 1998, p. 164). Quanto aos sujeitos do negócio jurídico, cabe identificar se o adquirente, a partir de suas especificidades subjetivo-objetivas na companhia - pela aquisição das ações integrantes do bloco de controle, de ações
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vinculadas a acordos de acionistas e de valores mobiliários conversíveis em ações com direito a voto, cessão de direitos de subscrição de ações e de outros títulos ou direitos relativos a valores mobiliários conversíveis em ações que venham a resultar na alienação de controle acionário da sociedade -, passará a assumir a situação fática que lhe permita controlar a empresa. Por fim, quanto ao alienante, resta definir não lhe ser necessário ocupar posição de exercício do poder, mas apenas ser detentor de objeto suficiente para que a alienação confira tal situação de fato ao adquirente. Tal construção dialoga ao já apresentado de que não há propriedade do poder, mas mera posição em que se lhe possa exercê-lo. A alienação do poder definida na norma não diz respeito, necessariamente, a transferência da posição jurídica, mas a cessão do objeto do art. 254, §1º. A aquisição do poder é consequência do adquirente, mas não objeto do negócio jurídico, como bem definido no referido dispositivo. 4 DA APLICAÇÃO DO ART. 254-A, DA LEI 6.404/76 NA ALIENAÇÃO DE AÇÕES DO ACIONISTA MINORITÁRIO-CONTROLADOR
Atualmente, a dispersão de capital consubstancia uma mudança de paradigma do mercado de capitais, e põe em xeque institutos criados quando as companhias abertas brasileiras eram estritamente familiares (BIANA; SANT’ANNA, 2016, n.p.) Nesse sentido, pondera-se (SALOMÃO FILHO, 2011, p. 98) que se pode criticar o legislador brasileiro pela falta de idealismo, mas não pela ausência de realismo, porque o sistema foi elaborado em torno da figura do acionista controlador, verdadeiro centro decisório da sociedade. Com a referida pulverização de ações com poder de voto, não se faz mais necessário a propriedade da maioria das ações com direito de voto para o exercício do controle da companhia. Basta, para tanto, que o acionista dito minoritário detenha ações suficientes para que seja capaz de impor sua vontade diante das deliberações assembleares e, com isso, exercer o poder de controle, conforme pondera (EIZIRIK, 2011, p. 671).
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Ocorre que a eventual imposição de vontade não é suficiente para caracterização do poder de controle. É necessário, igualmente, que o direito de voto seja exercido de modo permanente, constante e efetivo. Seguindo essa linha de raciocínio, a CVM já assinalou que: “vencer uma eleição ou preponderar em uma decisão não é suficiente. É necessário que esse acionista possa, fazer prevalecer sua vontade sempre que desejar” (CVM, PA n.º 2005/4069, 2006) Assim, tem-se a caracterização dos requisitos da alienação do controle para fins de incidência do art. 254-A da Lei das S.A, quando o acionista minoritário adquire ações com poder de voto em quantidade suficiente para fazer exercer o controle de fato. Isso se justifica porque o poder de controle não se apresenta como um poder jurídico, mas de fato. Justamente em razão do poder exercido pelo acionista controlador dentro da sociedade é que mecanismos de tutela dos demais acionistas foram criados. Isso porque, na década de 60, com a grande concentração de instituições financeiras, tornou-se escassa e onerosa a obtenção de licenças bancárias para entrada de novos players no mercado. Nada obstante a isso, uma vez que não era vedada a sucessão das referidas licenças, tornou-se comum que instituições financeiras que não detinham as licenças adquirirem o controle acionário de empresas que já as possuíam e, posteriormente, realizassem a sua incorporação. Assim, por uma via transversa, tornavam-se um player do mercado. Nesse contexto, foram comuns operações de incorporação de instituições financeiras, precedidas da compra do seu controle acionário e, juntamente com o preço das ações, era pago ao acionista controlador um ágio correspondente a aquisição das referidas licença. Assim, conforme aponta Chalréo Lgow (2011, p. 7): Parte do valor recebido a título de pagamento pelo acionista controlador, alienante do controle da instituição financeira, equivalia, em verdade, a um ativo – as cartas de patentes – que pertencia não a ele, controlador, mas sim à companhia e, portanto, indiretamente, a todos os seus acionistas. Significa dizer que aos controladores
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era possível obter vantagem patrimoniais imerecidas, recebendo ágios a título de alienação de ativos intangíveis destes bancos.
Ocorre que a referida manobra societária trouxe consigo efeitos colaterais. Isso porque, em que pese a Lei das S.A. de 1940 regulasse os negócios de incorporação e fusão, não disciplinava a aquisição de controle acionário. Vale dizer, a reboque dessas operações societárias, houve uma série de abusos e recebimento de vantagens indevidas, às custas dos demais investidores. Desse modo, houve a necessidade de criar mecanismos por meio dos quais os acionistas minoritários pudessem receber parte da diferença entre o preço da ação do bloco de controle e o valor de mercado das ações. Assim, com a reforma da Lei das S.A, inclui-se a condicionante para a eficácia do negócio jurídico cujo escopo era a alienação do controle das companhias abertas, qual seja, a realização de oferta pública de ações, como meio de garantir um tratamento igualitário aos acionistas minoritários. Posteriormente, esse dispositivo foi alterado, e sua redação atual determina que a oferta pública deve ser realizada pelo adquirente do controle acionário, por valor equivalente a, no mínimo, oitenta por cento do preço pago por ação integrante do bloco de controle. Nesse contexto, a Lei das S.A se afigura relevante marco histórico, tendo forjado as bases do atual mercado de capitais brasileiro. Ocorre que, conforme a doutrina, há diferença entre usar o voto e o direito de gozar e dispor do direito de voto em si (YAMASHITA, 2010, p. 210). Essa controvérsia levou a CVM a editar a Instrução CVM nº 361/02, segundo a qual são destinatários da oferta pública todos os acionistas que possuem ações com direito permanente de voto. Ao enfrentar novamente esta matéria, a CVM editou a Resolução CMN 401/2003 que determina como condição para a eficácia da operação, a realização de oferta pública aos acionistas minoritários, possuidores de ações com direito a voto, para que estes recebam o mesmo trata-
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mento conferido ao alienante do controle. Vale dizer, a resolução CVM nº 401 limitou a obrigação de ofertar a aquisição de ações apenas aos titulares de ações com direito a voto. Outrossim, o colegiado administrativo acrescentou que: “o art. 254-A não parece ter delimitado apenas às ações ordinárias a possibilidade de participação em OPA’s da espécie, referindo-se a Lei unicamente ao direito de voto” (CVM, PA nº 2004/6623, 2005) Assim, atualmente, para que haja a oferta pública, é indispensável, para caracterização da alienação do controle acionário, que surja a presença de um novo acionista controlador, que adquiriu o controle mediante a transferência onerosa ou gratuita de ações pertencentes ao alienante. Essa necessidade de realizar a oferta pública decorre da racionalidade imposta pelo legislador de proteger o acionista minoritário. Nesse sentido, o instituto do tag along foi criado originalmente na lei das S.A como forma de oportunizar os acionistas minoritários a possibilidade de deixar a companhia em caso de alienação. Nessa mesma linha de raciocínio, entende Eduardo Secchi Munhoz (2013, p. 307) que: O objetivo do art. 254-A não é atribuir um regime especial de deveres e responsabilidade ao titular do poder, mas conferir aos acionistas não controladores tratamento igualitário nas operações de aquisição de controle acionário.
Diante disso, é certo que é necessária a realização de oferta pública, mesmo quando a alienação do controle acionário, em razão da pulverização do capital, ocorre por um acionista minoritário. O motivo pelo qual houve a imposição legislativa que tornou obrigatória a OPA se deu em razão da proteção dos demais acionistas, de possíveis condutas lesivas tomadas pelos acionistas controladores, independentemente se são majoritários ou não. Isso porque o poder de controle é um poder de fato, não jurídico. Dessa forma, é possível concluir que incide o art. 254-A da Lei das S.A, mesmo sobre o exercício do poder de controle por acionista que não
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detém a maioria do capital votante, uma vez que o controle acionário é uma situação de fato e não de direito, a fim de ser evitada qualquer patologia nas relações societárias, de modo a oferecer proteções aos demais acionistas. 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Diante do exposto, se constata a aplicação da obrigatoriedade de realização da oferta pública de ações pelo adquirente das ações, ainda que estas envolvam a participações de acionista minoritário controlador. Conclui-se, nesse diapasão, (i) que o poder de controle é um poder de fato e não de direito, podendo ser exercido mesmo por aquele que não possui a maioria acionária; bem como (ii) ser necessária a proteção dos acionistas não controladores, frente às possíveis transformações pela mudança estrutural na sociedade. Assim sendo, pode-se dizer que, uma vez caracterizada a alienação do controle da sociedade anônima de capital aberto, mesmo que este passe a ser exercido por um acionista minoritário, é obrigatória a oferta pública de ações, como condição de eficácia do negócio jurídico. REFERÊNCIAS BERLE, Adolf Augustus; MEANS, Gardiner Coit. A moderna sociedade anônima e a propriedade privada. São Paulo: Abril Cultural, 1984. BERTOLDI, Marcelo M. O poder de controle na sociedade anônima – alguns aspectos. In: Scientia Juris. v. 7/8. 2003/2004. Disponível em: http://www.uel. br/revistas/uel/index.php/iuris/article/viewFile/11102/9815. Acesso em: 9 abr. 2020. BIANA, Higor da Silva; SANT’ANNA, Leonardo da Silva. Alienação de controle de companhia aberta: os entendimentos da CVM e a segurança jurídica. Revista de Direito Bancário e Mercado de Capitais, v. 73, não paginado, jul./set. 2016. Disponível em: https://bityli.com/KRvtM. Acesso em: 20 abr. 2020. BRASIL. Instrução CVM nº 361/02, de 5 de março de 2002. Dispõe sobre o procedimento aplicável às ofertas públicas de aquisição de ações de companhia aberta, o registro das ofertas públicas de aquisição de ações para cancelamento
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de registro de companhia aberta, por aumento de participação de acionista controlador, por alienação de controle de companhia aberta, para aquisição de controle de companhia aberta quando envolver permuta por valores mobiliários, e de permuta por valores mobiliários, revoga a Instrução CVM nº 229, de 16 de janeiro de 1995, a Instrução CVM nº 299, de 9 de fevereiro de 1999 e a Instrução CVM nº 345, de 4 de setembro de 2000, e dá outras providências. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Poder Executivo, Brasília, DF, 5 mar. 2020. Disponível em: http://www.cvm.gov.br/export/sites/cvm/legislacao/instrucoes/ anexos/300/inst361consolidsemmarcas.pdf. Acesso em: 25 jul. 2020. BRASIL. Instrução CVM nº 401, de 29 de dezembro de 2003. Comissão de Valores Imobiliários. Disponível em: http://www.cvm.gov.br/export/sites/cvm/ legislacao/instrucoes/anexos/400/inst401consolid.pdf. Acesso em: 13 abr. 2020. BRASIL. Lei n º 6.604, de 15 de dezembro de 1976. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Brasília, DF, 17 dez. 1976. Disponível em: http://www. planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l6404consol.htm. Acesso em: 22 mar. 2020. BRASIL. Brasil, Processo CVM Nº RJ2005/4069 (CDB), de 11 de abril de 2006. Disponível em: http://www.cvm.gov.br/export/sites/cvm/decisoes/anexos/0002/4788-0.pdf. Acesso em: 02 mai. 2020. BRASIL. Brasil, Processo CVM Nº RJ 2004-6623, de 25 de janeiro de 2005. Disponível em: http://www.cvm.gov.br/export/sites/cvm/decisoes/anexos/0002/4605-1.pdf. Acesso em: 02 mai. 2020. COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito comercial: direito de empresa. 20. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, v. 2, 2016. COMPARATO, Fábio Konder. O poder de controle na sociedade anônima. São Paulo: Editora RT, 1976. COUTO E SILVA, Clóvis V. Grupo de Sociedades. In: Revista dos Tribunais. v. 78, n. 647, p. 7 – 22, 1989. DINIZ, Maria Helena. Dicionário jurídico. v. 1. São Paulo: Saraiva, 1998. DURKHEIM, Émile. As regras do método sociológico. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007. EILENBERGER, Wolfram. Tempo de mágicos: uma década da filosofia 19191929. Trad. Cláudia Abelling. São Paulo: Todavia, 2018.
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