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Portuguese Pages 221 Year 2018
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Capítulo 2 Inflação, um problema sistêmico PARTE 2 OS ANOS 90: GLOBALIZAÇÃO E SUBORDINAÇÃO INTERNACIONAL Capítulo 3 A dinâmica da globalização Capítulo 4 De Collor ao Real – choque, abertura e negociação externa Capítulo 5 FHC e a consolidação do neoliberalismo Capítulo 6 Vendendo o Brasil: o capítulo das privatizações PARTE 3 OS GOVERNOS DO PARTIDO DOS TRABALHADORES Capítulo 7 Lula e os estreitos caminhos da distribuição Capítulo 8 O Governo Dilma e o encontro de todas as crises PARTE 4 RUMO AO NOVO COLONIALISMO Capítulo 9 O golpe de 2016 e o governo do mercado Epílogo Referências Página final Prefácio Retórica e Farsa: 30 anos de neoliberalismo no Brasil interpela o leitor, logo na introdução, ao fazer três perguntas relevantes ao tempo presente: “Mentiras repetidas durante anos seguidos tornam-se verdades? Quem
acredita nelas? É possível falsear a realidade ou as interpretações sobre os fatos?”. Embora a autora, uma professora de História Contemporânea da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, não recorra à expressão “ fake news” , o livro, de certa forma, aborda esse fenômeno. A ênfase no problema da interpretação da realidade e nos mecanismos de construção do senso comum não visam, entretanto, oferecer um manual para identificar dados ou informações mentirosas. Na realidade, o que a autora pretende é mostrar como, nos últimos trinta anos, diversos setores do capital no Brasil, se alinharam aos interesses das potências hegemônicas no cenário internacional e, conseguiram, com o apoio indispensável da mídia corporativa brasileira – que em muitos aspectos se assemelha a um partido político –, construir um consenso em torno das ideias de austeridade, como corte de gastos, Estado mínimo e privatizações e, ainda, como a ideia da ineficiência do Estado foi contraposta à tese do mercado, legitimando a redução dos direitos sociais como única forma de salvar a economia brasileira de sua tradição desenvolvimentista, vista como sinônimo do atraso. O livro de Christiane Laidler, no entanto, não é um manual contra as fake news , nem um livro sobre teoria da comunicação ou sua argumentação baseada apenas na análise de discursos. Trata-se, sobretudo, de uma obra de História Econômica, campo que veio perdendo espaço nas últimas décadas nas graduações em História, e cuja leitura não deve ser habitual aos comentaristas de rádio e televisão. Afinal, muito comumente para eles, os problemas políticos e econômicos brasileiros se resumem a uma lição de casa mal resolvida; o governo, a uma dona de casa perdulária que não sabe controlar o orçamento familiar, que gasta com futilidades e é castigada com os juros excessivos do cartão de crédito e do cheque especial; e a Constituição de 1988, marco da democracia e dos direitos sociais e que representou uma evolução ao criar o Sistema Orçamentário Brasileiro, é reduzida a um monstrengo que precisa ser reformado. Nesta obra , a autora, de forma quase passional, reapresenta ao leitor a grande História, ao mostrar o Brasil no quadro das transformações sociais do século XX e das disputas geopolíticas globais após a Guerra Fria. Em seu livro, reencontramos o Brasil na América Latina, e o que talvez seja para muitos surpreendente, entendemos que a crise da dívida e da inflação nas décadas de 1980 e 1990, que roubou o futuro do país, foi uma crise sistêmica, provocada pelo aumento de taxas de juros internacionais e pelo fim dos financiamentos para a América Latina, o que drenou a riqueza local para os bancos estadunidenses e enterrou o desenvolvimento na região. Não é sem tristeza que lembro as humilhantes visitas das autoridades do FMI ao país naquela época... Este é também um livro que discute a memória daqueles anos, tempos em que o Brasil era o campeão mundial da desigualdade social, em que a mortalidade infantil no Nordeste e a fome eram chagas diariamente esfregadas no rosto dos brasileiros, e a América Latina era notícia no exterior pelos golpes de estado que se sucediam. Tempos que parecem estar de volta...
Christiane Laidler, na qualidade de historiadora, adverte o leitor para o fato de a memória ser uma construção social para a qual concorre toda sorte de mediações, e no caso da memória pública, converge com o maior clamor as questões políticas e as ideológicas. Talvez por isso nos provoque a desconstruir uma certa versão parcial, produzida pela grande mídia, que vem elaborando uma memória que reduz o “espetacular” desenvolvimento brasileiro entre 1930-1980 à inflação, o patrimônio público formado pelas estatais a meros cabides de empregos e os dolorosos anos de FHC – com tempos de cortes, recessão, quebradeira e acordos com o FMI – à vitória contra a inflação. Vale lembrar, como faz a autora, os custos que o real impôs aos brasileiros: moeda supervalorizada, preços congelados em alta e salários desvalorizados, além das privatizações sobre as quais, ainda hoje, restam tantas dúvidas. Mas esse não é um livro que fala apenas do passado e de sua memória, na tradicional e, diga-se, ultrapassada, visão retrospectiva da História. Ao contrário, é sobretudo um livro sobre “a presença do passado incorporada ao presente” ¹ de nossa sociedade, nos marcos do que hoje se denomina História do Tempo Presente. Cabe aqui uma advertência: as rupturas históricas dos últimos cinquenta anos e os colossais saltos tecnológicos vividos nesse período, mudaram nossa forma de pensar o tempo. A relação entre passado, presente e futuro não é mais vista de modo linear. Além disso, o passado é distante e remoto, o futuro é incerto e o presente é, simultaneamente, a “memória das coisas passadas e a espera das coisas futuras” ² convergindo para uma grande continuidade. Tantas transformações e indefinições vêm alterando a forma da escrita da História. Desse ponto de vista, a autora fala do seu próprio presente, contemporânea do tema que aborda, próxima de quem assistiu às transformações históricas narradas, colocando-se como testemunha e assim entrecruzando sua experiência pessoal com a do país. Ela não pretende explicar o passado, mas buscar o sentido do que se vive hoje – a ortodoxia do mercado no Brasil e a demanda pelo Estado mínimo. Para tanto, ela assume riscos, admite publicamente sua subjetividade, deixando claro seu lugar de fala e a intencionalidade da sua escrita. Desprovida dos subterfúgios da objetividade e do distanciamento crítico em relação ao seu objeto de estudo, premissas tão caras ao investigador do passado, Christiane Laidler mergulha nos anos do governo do PT até o ataque fatal do mercado entre 2014 e 2018, socorrendo-se de toda sorte de fontes e, como já foi dito, da própria memória e da memória alheia para, sem faltar à verdade – princípio fundamental do historiador – construir uma história mais fiel ao vivido e, sobretudo, crítica. Pode-se afirmar que este livro possui uma acentuada dimensão pública, atendendo a uma demanda cada vez maior por história sem aderir aos modismos editoriais. Cumpre um dever crítico ao desconstruir as verdades veiculadas pela mídia corporativa sobre a economia brasileira e sedimentadas no senso comum, contrapondo um discurso racional, baseado no exame das fontes, da bibliografia existente e da experiência social.
Cumpre o dever cívico de informar o cidadão e manter a luta por seus direitos e, finalmente, o dever ético de pensar os valores e normas da nossa sociedade. Importante dizer que a autora não entedia o leitor com transcrições intermináveis de autores estrangeiros a fim de mostrar erudição. Citações e notas de rodapé são apenas as essenciais. O que está no livro reflete o pensamento de quem esteve na sala de aula nos últimos trinta anos, ora como aluna, ora como professora, acumulando uma vasta biblioteca de temas econômicos, estudou ciência política, cuidou de filhos, administrou dívidas, viu o país falir, crescer e falir novamente, e como parte da sociedade brasileira nesse momento, vê com assombro os sinais de autoritarismo com que se desenha o futuro em que o mercado é a razão única. Finalmente, gostaria de frisar que esse livro nasceu da indignação com o falseamento da história e, que suas páginas são formas, não apenas, de reafirmar as premissas da verdade e da verificabilidade da crítica histórica, mas de escritos de resistência, na melhor tradição de Lucien Febvre, um combate pela História. Andréa Telo da Côrte , doutora em História Social pela Universidade Federal Fluminense. Notas 1 . Ferreira, Marieta de Moraes. História do tempo presente: desafios. Cultura Vozes , Petrópolis, v. 94, n. 3, p. 111-124, 2000. 2 . Dosse, François. História do Tempo Presente e Historiografia. Tempo e Argumento , Florianópolis, v. 4, n. 1, p. 05-22, 2012. Disponível em: < https://bit.ly/2QA2zbH > . Acesso em: 17 ago. 2018. Introdução Meu tempo de vida coincide com a maior parte da época de que trata este livro e durante a maior parte do meu tempo de vida – do início da adolescência até hoje – tenho tido consciência dos assuntos públicos, ou seja, acumulei opiniões e preconceitos sobre a época, mais como contemporâneo que como estudioso . (Eric Hobsbawm, 1995, p. 7) A história deste livro começa com o mal-estar do golpe de 2016, com o que me parecia ser a nossa incapacidade de compreender as ameaças aos direitos que então se colocaram. Reinava absoluta a agenda de reformas que visavam à diminuição do Estado. Se em 2008 parecia que a retórica da eficiência do mercado seria definitivamente enterrada, em 2016, o que se observava era a sua hegemonia por toda a parte, e avançando sobre os governos populares da América Latina. A última grande manifestação contra o golpe parlamentar aconteceu em abril de 2017, no dia da greve geral. Depois disso, ficou claro que não haveria resistências ou movimentos de amplitude nacional. A agenda de reformas seguia seu curso quase sem obstáculos. O único limite seria a Reforma da Previdência. O que explica essa paralisia? Haveria consenso sobre as reformas previamente projetadas?
Tudo indica que sim. A grande maioria dos brasileiros, de alguma forma, aprova cortes de gastos e diminuição do Estado, incluindo privatizações. Há um conjunto de fenômenos que explicam a construção dessa visão de mundo. Ela é resultado de uma narrativa que se consolidou nas últimas décadas. Uma narrativa míope e interesseira, porém, amplamente difundida no nosso cotidiano. Decidi escrever uma interpretação que demonstre a falsidade de alguns pressupostos do consenso. Trata-se, portanto, da proposição de uma narrativa diferente do tempo atual, que mobiliza memória, pesquisa e inúmeras referências, não apenas acadêmicas. Mas o fundamental é que ela compreende o discurso e a informação como mecanismos da disputa de poder. E, portanto, que os meios de comunicação detêm um poder extraordinário, capaz de doutrinar cidadãos e subordinar o campo político, escolhendo pautas e interpretações de acordo com seus próprios interesses, que podem ser os corporativos ou os políticos em senso estrito, ligados à autopreservação como agentes principais da construção do pensamento hegemônico. Mentiras repetidas durante anos seguidos tornam-se verdades? Quem acredita nelas? É possível falsear a realidade ou as interpretações sobre os fatos? Difícil estabelecer os limites da manipulação de visões sobre a vida real, mas é possível investigar as formas e mecanismos da construção de um senso comum compreendido como um conjunto de verdades que dificilmente são comprovadas pelos fatos da experiência vivida. E também é possível demonstrar, por meio dos fatos, a falsidade de muitas ideias estabelecidas. Muitas questões estão implicadas no fenômeno complexo que é a maneira como os indivíduos, nas sociedades contemporâneas, constroem suas visões de mundo, suas expectativas e as convicções que informam seu comportamento político. Um fato que parece incontrastável, entretanto, é a evidente incapacidade do indivíduo contemporâneo de compreender a teia de interesses que o campo político exprime. Essa incapacidade está relacionada com a alienação, ou seja, o divórcio entre os desígnios da vida privada e as disputas coletivas, mas não só. Ela relaciona-se também com o tempo dos acontecimentos e das narrativas, isto é, a mediação acelerada e superficial das estruturas comunicacionais, que representa um efetivo obstáculo ao estabelecimento de relações permanentes entre os fatos ou à construção de determinadas estruturas e modelos estáveis a partir dos quais o indivíduo possa avaliar os fenômenos tão variados que afetam o seu dia a dia. O volume de informações que, por um lado, ameaça qualquer forma de compreensão mais profunda da ordem coletiva, impedindo o aprofundamento das análises por parte dos profissionais do jornalismo, por outro, permite a construção de narrativas interessadas por meio da seleção das informações e do enquadramento dado a elas de acordo com o interesse das grandes empresas de comunicação (Castells, 2015). O indivíduo mergulhado nos desafios de sua existência privada será informado e conformará sua visão de mundo e suas perspectivas sob a influência do poder exercido soberanamente por essas grandes corporações, que escolhem a informação relevante e a interpretação (quase sempre
única) que lhe é dada. Temos assim uma dinâmica de fatos impossível de ser apreendida e digerida, impedindo, inclusive, o estabelecimento de relações entre passado e presente de forma autônoma, uma vez que a memória se dilui rapidamente com a reposição contínua de novos fatos (mesmo que sejam sempre os mesmos em sua natureza). Essa dinâmica permite uma liberdade muito grande de escolha aos produtores da informação e da comunicação nas sociedades complexas. Eles podem direcionar, de forma circunstancial, porém profundamente refletida e estudada, as percepções e anseios da chamada opinião pública. Trata-se de manipulação, de fabricação da verdade, ou mesmo da chamada pós-verdade. É perfeitamente razoável pensar que essas escolhas editoriais estão fundadas nos mais sólidos credos filosóficos e políticos. Pode-se até acreditar que um desses credos é a democracia e, nesse sentido, meios de comunicação devem ter a mais ampla liberdade e serem plurais. Devem existir casos de pluralismo, mas percebemos com clareza cada vez maior que o paradigma democrático deixou de fazer parte da grande imprensa brasileira. Ela apresenta-se como partido único, sem debate. O jornalismo e a reportagem são tolhidos pela agenda política. Ou seja, não apenas não há discurso plural, como tampouco há informação plural que se preste a contrapor o projeto partidário da mídia. É a expressão da contradição entre os interesses das corporações globais na atual fase do capitalismo e os interesses populares. Está bastante caracterizado no Brasil o alinhamento da grande imprensa às prescrições políticas em favor do mercado, tomadas como verdade científica, evidenciando uma incompatibilidade fundamental do capitalismo de corporações com a democracia. Uma discussão profunda sobre a democracia não pode deixar de fora a questão da imprensa e da comunicação, poder de fato com a atribuição de produzir consensos e não apenas crítica, controles e especulação política, como seria desejável. Na tradição contemporânea, a imprensa livre cumpriu importante papel exercendo exatamente a função de crítica e controle independente das instituições. E a proliferação de publicações garantiu, desde o revolucionário século XVIII, a expressão de diferentes visões de mundo. Não por outra razão, partidos, associações, sindicatos e demais movimentos organizados têm, desde então, seus próprios órgãos de comunicação. O cenário mudou progressivamente ao longo do século XX, com o surgimento da grande empresa de comunicação, da profissionalização de suas atividades e do papel cada vez maior dos grandes órgãos de imprensa na mobilização política dos cidadãos, com destaque para o lugar da televisão, ainda predominante no Brasil a despeito do crescimento da importância da internet. Segundo pesquisa da Secretaria Especial de Comunicação Social da Presidência da República (Secom), realizada pelo Ibope em 2016, 63% dos brasileiros se informam sobre o que acontece no país pela televisão. O segundo meio é a internet, apontado por 26% da amostra. Se somadas a primeira e a segunda opção dos entrevistados, a televisão passa a ser o meio de informação de 89% dos brasileiros. Sendo que 77% assistem à televisão sete dias por semana, e a Globo é a preferência de 56%, e conta com 73% da preferência quando consideradas as duas primeiras opções dos entrevistados . ³ Constata-se, por meio da
pesquisa, o poder de agenda e de narrativa sem paralelo concentrado na Rede Globo, de sorte que não é possível compreender a dinâmica política do país, os conflitos, sobretudo o distributivo, e a disputa de poder sem que se analise a posição dessa grande empresa de comunicação, suas relações com o Estado, seus interesses, e os recursos narrativos de mobilização social, entre os quais está a permanente e diuturna desqualificação de discursos adversários. Elege-se uma “verdade”, a seguir, um batalhão de consultores e especialistas é recrutado para legitimá-la cotidianamente, sem nenhum tipo de constrangimento que os fatos possam impor. Tudo é sólido e constante, porque não há dúvida possível. O que não couber na verdade fabricada é irracionalismo. Atualmente, a desqualificação se dá pelo uso do termo populismo; nos anos 1990, de FHC, depreciava-se a oposição por falta de patriotismo. A reprovação se faz sem argumento ou substância, se limita a uma etiqueta ou adjetivo cujo significado se impõe à opinião pública pela repetição. O populismo do senso comum – bem diferente do conceito polêmico, objeto do debate acadêmico –, de tão repetido, tornou-se apenas instrumento de desqualificação amplamente reconhecido e reproduzido socialmente. Esses recursos propiciaram a elaboração de uma agenda, no mínimo polêmica, como a atual, levada a cabo por um governo não eleito, resultante de uma conspiração parlamentar amplamente sustentada pelas corporações de comunicação. O Brasil precisava de reformas que não seriam aprovadas nas urnas, logo, as urnas podiam ser contornadas, e a agenda se impôs com rapidez sem precedentes, atropelando ritos parlamentares e sem que haja qualquer discussão política pública e aberta, uma vez que os meios de comunicação ignoram os milhares de intelectuais que se expressam por meios ainda marginais ou de pouco alcance, como a academia. Repetiu-se ad nauseam a máxima de que o país “necessitava” de reformas impopulares para superar a crise econômica, e recomendava-se uma “transição” de um governo não eleito para promover o que as urnas não aprovariam, resultando no impedimento da presidenta eleita. Portanto, não é de surpreender que a democracia tenha sido descartada no processo político e nas instituições que promovem as reformas no Brasil de hoje. Nos últimos três anos, assistimos a uma rápida destruição de pressupostos até então aparentemente aceitos pelo conjunto da sociedade. Os direitos sociais básicos estão sob um ataque que parece não encontrar resistência organizada. O Estado, do qual se cobrava, em 2013, a responsabilidade pelos serviços sociais, foi mutilado pelo constrangimento dos próximos orçamentos e a imposição de um limite de gastos e investimentos aos governos futuros, pela nova onda de concessões de serviços, e, em curso, pela restrição à distribuição da renda por meio de benefícios de aposentadorias. Tudo isso corresponde a uma agenda de mercado que, em apenas dois anos, e por meio de um governo que não recebeu o mandato das urnas, está colocando abaixo o edifício constitucional de 1988 que, pela primeira vez no país, garantiu direitos à totalidade dos brasileiros, da cidade e do campo.
Foram dois anos de intensa preparação e ataques, envolvendo uma retórica que atribuiu a expansão dos gastos públicos relacionados àqueles direitos constitucionais ao partido que governava o país – progressista no espectro político nacional e populista na linguagem depreciativa da mídia. Além, o governo foi acusado de alta corrupção, tomado como responsável exclusivo pelo sistema político estruturado na compra de apoio parlamentar. No conjunto, a campanha midiática identificou, sem qualquer comprovação empírica, a crise econômica que se manifestava, em princípio apenas como desaceleração do crescimento, ao gasto público. O corolário foi o agravamento da crise política, com uma disputa pós-eleitoral envolvendo a ameaça permanente de impeachment , o aprofundamento da crise econômica – que passaria de estagnação à recessão – e a destituição da presidenta. No momento seguinte, a queda da arrecadação de tributos derivada da recessão, e o consequente aumento da dívida pública, ampliaram a retórica baseada na farsa, ou no cinismo, se o leitor assim o preferir, de que o déficit nas contas públicas era resultado do aumento deliberado de gastos e não das despesas obrigatórias em face da queda da arrecadação. Os jornais nunca veicularam os valores relativos ao custo do aumento da taxa básica de juros, que ampliava a recessão. Inaugurou-se a histeria por corte de gastos primários. E, em meio ao escândalo de corrupção denunciado pela operação “Lava Jato”, novelizado diariamente em todos os jornais como pauta principal do país, não foi difícil fazer a população associar gasto público à corrupção e a desvios. Não por outra razão foi possível criminalizar o gasto público no processo de impeachment que destituiu a presidenta eleita em 2016. Em 2015, eu ministrava uma disciplina em um curso de pós- -graduação e os alunos da turma não sabiam bem o que eram as “pedaladas fiscais”. Da maneira como foram noticiadas, as pedaladas não eram nada mais do que fraude, trapaça, contabilidade criativa para esconder déficit. Algo, no mínimo, duvidoso. Nunca as operações eram informadas como débitos do governo com os bancos públicos que intermediavam empréstimos com subsídios à agricultura, e depois deviam ser ressarcidos das diferenças dos juros, débitos que não puderam ser cobertos em razão da frustração de receitas desde 2014. No caso de uma informação honesta, muitos cidadãos seguramente prefeririam que o governo cobrisse os gastos enquanto o ciclo econômico fosse de retração. De qualquer forma, coube ao Congresso a decisão de criminalizar o gasto público, amplamente apoiado pela propaganda dos meios de comunicação. Em 2015, primeiro ano do segundo mandato da presidenta Dilma Rousseff, como consequência de tal histeria midiática, houve um corte brutal de gastos num momento recessivo do ciclo econômico, e o resultado do aperto fiscal e monetário foi a queda de 3,7% do PIB. Ainda assim, os comentaristas, analistas e jornalistas continuaram atribuindo a crise econômica ao gasto público. Simplesmente ignoraram todas as vozes que advertiam sobre as consequências desastrosas de cortar gastos e investimentos do principal ator econômico em cenário recessivo. Ignoraram igualmente os reiterados protestos contra a taxa básica de juros, um verdadeiro obstáculo ao investimento produtivo no país. A taxa de juros do BC também era justificada como resultado do descontrole dos gastos públicos nos comentários dos especialistas, embora os patamares fossem
irracionais sob qualquer parâmetro no contexto atual das finanças no mundo. O cenário era absolutamente insólito. Ver e ouvir um batalhão de comentaristas simplesmente ignorar os fatos mais veementes é estarrecedor e leva o observador a desconfiar da credibilidade de cada um dos comentaristas e analistas notoriamente partidários. O clima era de sabotagem no Congresso, e a mídia falava da falta de habilidade política da presidenta. A agenda predeterminada e o partidarismo podiam ser comprovados na editoria dos principais jornais nos dias de votações no Congresso ou de manifestações e, mais especificamente, na sequência do golpe, na militância de comentaristas e apresentadores em favor das reformas antissociais do governo não eleito. O jornalismo deixou de ser jornalismo, e a propaganda política é tudo o que se vê nas televisões amplamente patrocinadas pelo governo do golpe. O espectador não tem informações, apenas a defesa de um determinado projeto e a retórica do convencimento de que o projeto em questão é uma necessidade, sem ele o país “quebra”. O termo usado pela estratégia de terror é este. Trata-se de uma ameaça permanente de que o país quebrará se não houver o corte de gastos. Serviu para aprovar o projeto de teto do orçamento, sem precedentes no mundo neoliberal; e tem servido na campanha em favor da reforma da Previdência Social. O desmonte de direitos está se consolidando também no campo da legislação trabalhista, com a aprovação da terceirização irrestrita e a revisão da CLT. O retrocesso em termos de direitos é inegável e o que surpreende é que tal agenda francamente antipopular seja aprovada com tanta velocidade por um governo sem a legitimidade das urnas. Parece que as estruturas institucionais do país se tornaram amplamente flexíveis e estão se desintegrando na medida em que se impõe o receituário da mídia inscrito no programa “Ponte para o Futuro”, por meio do qual o PMDB se lançou ao golpe associando- -se aos interesses das grandes corporações globais.
Até aqui vimos destacando o poder da mídia e, de alguma forma, denunciando uma farsa que é preciso desmontar. O leitor pode redarguir e afirmar a legitimidade da campanha dos meios de comunicação em favor de um determinado projeto político, pois qualquer coisa diferente disso seria censura e cerceamento à existência da livre expressão e dos meios de comunicação. O tema da regulamentação da mídia é complexo e envolve o fato de que as empresas de comunicação são concessões e é possível que sejam restringidas as possibilidades de que concentrem diferentes meios e exerçam monopólio sobre a comunicação, um bem fundamental das sociedades contemporâneas. Mas, se preferirmos o terreno mais seguro da ampla liberdade, sem regulações que não as do campo magnético da difusão, precisamos destacar que hoje temos oligopólios dominando as comunicações no Brasil e, entre eles, as ideias que traduzem interesses de grandes corporações formam uma unidade ou um único pensamento, enquanto silenciam toda a dissensão. Portanto, para democratas que desejam pluralismo e amplo debate de ideias, será sempre pouco denunciar a concentração de poder que a estrutura atual de concessões dos serviços de radiodifusão permite. Isso não significa, sob nenhuma hipótese, advogar qualquer forma de censura, mas trabalhar em favor do debate político, da mediação de interesses diversos e do pluralismo que possa representar as diferentes opiniões e valores da sociedade. A ideologia que os meios de comunicação promovem no Brasil hoje, e que fundamenta as reformas propostas pelo governo de “transição”, ou ilegítimo, é o que podemos chamar de ideologia de mercado, em que mercado é um ente sem contornos definidos, embora, na maior parte das informações circulantes, seja identificado a um conjunto de agentes do mercado financeiro, também tratados como investidores. Aqui, uma primeira farsa. Mercado não é o livre movimento de pessoas que escolhem o melhor preço, o melhor emprego, a melhor relação custo-benefício em cada decisão de suas vidas. Não. As pessoas escolhem muito pouco. A começar pelo emprego, e terminando por cada item de consumo, as pessoas têm pouca liberdade, e seus movimentos têm influência reduzida sobre as decisões dos grandes agentes econômicos. O poder sobre a política de juros, por exemplo, que pode tirar bilhões de reais da economia real e transferir para rentistas detentores de títulos da dívida pública, afeta a vida de cada pessoa e está muito distante das decisões dos solitários consumidores e de seus movimentos individuais. A desregulamentação das taxas de juros cobradas por bancos e financeiras, que também podem tirar bilhões da economia ao permitirem que consumidores paguem duas ou mais vezes o custo do produto comprado, também é decidida a despeito das escolhas do consumidor ou dos empreendedores individuais. A nossa maior ou menor dependência do petróleo ou de outras fontes de energia tampouco está em nossas mãos ou nossas decisões. Os consumidores podem até decidir deixar de ter carros, mas se as cidades estiverem preparadas para transportes rodoviários, o que não é sua decisão, a dependência do combustível se manterá. A política cambial – cujos impactos estão nos preços de todos os artigos que consumimos, mais ou menos, do pão ao medicamento, do diesel ao automóvel e aos aparelhos digitais que usamos, e no emprego, porque ela determina nossa capacidade de exportação – é, da mesma forma,
estabelecida independentemente das escolhas ou movimentos individuais. Essas são apenas algumas observações sobre um primeiro ponto enganoso da doutrinação do mercado. O mercado ao qual se referem nossos conhecidos comentaristas de economia é o mercado financeiro, aquele que domina as decisões sobre investimentos, as quais o governo decidiu se subordinar voluntariamente. É um conjunto de corporações que decide onde investe e quando, independentemente da vontade do freguês. Em geral, decide investir em países cuja mão de obra é barata, os impostos são baixos e a evasão de recursos é fácil. Este é o mercado! Daí se compreende o discurso de que o país precisa conquistar a confiança do mercado. Trata-se da confiança de CEOs que fazem as apostas que movimentarão a vida de milhões de seres humanos como se estivessem num cassino, projetando unicamente os bônus que os altos lucros lhes garantirão. Imaginemos o que pode representar um mercado como o do Brasil para corporações diante de um capitalismo de baixo crescimento, como nos dias atuais, e as pressões que elas e seus Estados patrocinadores fazem para obterem a desregulamentação do mercado nacional, as concessões dos serviços públicos, a desoneração sobre o trabalho contratado, com o fim dos direitos e garantias. E isso para não falar da reciclagem financeira que nossas taxas de juros campeãs já representam no cassino mundial das dívidas públicas. Essa é nossa fragilidade: somos um país de vastos recursos, sem projeto e dominado por uma oligarquia predadora e subalterna. O liberalismo apregoado é ingênuo na melhor das hipóteses. Na pior, é arma ao serviço dos mais fortes. Nada como indivíduos desprotegidos e sem direitos garantidos por um poder coletivo para servirem às necessidades dos grandes investidores. Existem outros exemplos de desregulamentação, e o que se observa, historicamente, é que ela promove concentração do capital, monopólios e indivíduos cada vez menos livres para tomar decisões sobre suas vidas e seu futuro. Contrariamente, regulamentações dos movimentos dos capitais do mercado permitem maior estabilidade e terrenos mais sólidos para a construção de projetos econômicos, individuais e coletivos, de longo prazo. Do ponto de vista do crescimento ou do desenvolvimento produtivo, o liberalismo serviu à Inglaterra no início do século XIX, quando o país não tinha concorrentes. Antes disso, seu desenvolvimento contou com regulamentações como a que proibiu o comércio em navios fretados, obrigando o país a construir sua própria indústria naval e a que proibiu a importação de têxteis da Holanda. Quando se tornou a locomotiva do mundo, após a Revolução Industrial e dos transportes, com a invenção da ferrovia, o liberalismo contribuiu para que se expandisse pelo globo por meio século, até que os concorrentes chegassem ao nível equivalente de produção industrial e domínio tecnológico. Daí em diante, o liberalismo inglês foi razão de déficit permanente da balança comercial que era amplamente compensado pelo domínio das finanças mundiais e pela tributação colonial da Índia. Nem tudo era liberalismo na hegemonia inglesa do século XIX, afinal (Arrighi, 1996). Para o mundo do século XIX, o liberalismo significou guerras de expansão colonial para abrir mercados e destruição de economias e sociedades tradicionais. Se houve benefícios, é preciso procurar entre as elites coloniais. Mas não os haveremos de encontrar entre os trabalhadores da China, da Índia, do Congo ou do
Putumayo. Por fim, cabe lembrar que a trajetória de desenvolvimento das potências que seguiram os passos da Inglaterra e se industrializaram entre os séculos XIX e XX, como Alemanha, Estados Unidos e Japão, é de protecionismo, cartelização, e Estados promotores dos interesses da empresa nacional nos mercados doméstico e global. No século XX, outros exemplos de atuação decisiva do Estado como promotor de industrialização e desenvolvimento nacional são o Brasil, entre os anos de 1930 e 1980, e não à toa em franco processo de desindustrialização, a Coreia e a China. Mas essa história do Brasil a mídia não vai contar. Apesar do inegável papel histórico dos Estados na indução de desenvolvimento econômico, o programa que o MDB adotou às vésperas da conspiração do “ impeachment ”, começa pela necessidade do ajuste fiscal. A crise fiscal do Estado é a mãe das crises econômica e política, segundo a retórica que passou a predominar na oposição e entre alguns partidos da base do governo, como se consenso fosse, desde 2015, e assim está inscrita no programa Ponte para o Futuro, do mesmo ano. É ela a causa da inflação, altas taxas de juros, pressão cambial, impostos elevados e retração dos investimentos. Todos esses fenômenos do campo econômico têm variadas determinações que não são consideradas. Interessa apenas a afirmação de que o Estado brasileiro é grande, ineficiente, retrógrado e um obstáculo ao crescimento. Portanto, a terapia exclusiva é o corte de gastos. O diagnóstico de um desajuste fiscal crítico e a afirmação da necessidade de cortes, como medida imediata e urgente, considerou o fato de que o aumento dos gastos públicos se devia a razões estruturais e a atribuições que o Estado recebeu da Constituição de 1988, e não apenas a decisões de governo, daí a previsão de alterações constitucionais, com a Previdência como alvo prioritário. O que esse diagnóstico terminal baseado em uma expansão de gastos não avalia é a conjuntura de crise, e afirma uma suposta tendência de aumento de gastos em proporção maior do que o aumento do PIB. Tampouco considera o custo financeiro do Estado, estruturalmente o maior aumento entre as despesas públicas brasileiras. Apesar disso, é terminativo. É preciso cortar. Nada se questiona sobre as razões do baixo crescimento, sobre a perigosa desindustrialização. Muito menos se considera o papel que o Estado brasileiro teve e tem como indutor do crescimento. O resultado dessa inversão que se vendeu como verdade é a mais profunda recessão da história do país a partir dos cortes de 2015, ainda sob o governo da presidenta destituída. E é a partir dela e da farsa do diagnóstico fiscalista que se pretende dar o verdadeiro golpe: mudar a estrutura do Estado brasileiro, diminuir suas atribuições econômicas e sociais e retirar-lhe instrumentos políticos decisivos para a consecução de qualquer projeto nacional de desenvolvimento. A Ponte para o Futuro é um programa de diminuição do Brasil no cenário mundial contemporâneo, um rebaixamento, um passaporte para um país sem soberania e de futuro incerto, à espera dos investidores que aqui queiram fazer suas apostas. Para quem viveu os anos 1980, com a crise da dívida, e os 1990, de reformas neoliberais, parece o retorno do ciclo de horrores das exigências de organismos multilaterais que produziam, naqueles tempos, trágicos resultados sociais e econômicos. E de fato é um retorno, porém mais violento e imperativo, porque converteu nossas elites políticas em agentes voluntários do programa de mercado, adotado como se o mercado fosse a
síntese da prosperidade e bem-estar das sociedades humanas. Nos anos 1980 e 1990, havia dissidências e projetos políticos que circulavam como contraponto. Mal ou bem, os programas eram impostos por organismos multilaterais e havia constrangimentos da elite política em cortar direitos. Hoje, os meios de comunicação calam vozes dissonantes, que são apenas vozes e não se expressam em movimentos ou partidos como grandes projetos nacionais. Não há um grande projeto de resistência que possa catalisar as forças. As esquerdas, perdidas e sem ter muito a oferecer, estão aquém do que representaram nos anos 1990. Parece haver, de fato, um consenso em torno do ajuste fiscal e até uma disputa de quem fez mais ou menos ajuste, como se fora desde sempre um valor universal, uma condição necessária em todas as conjunturas. Parte desse consenso tem relação com as novas gerações cuja memória não alcança o período FHC, de ajustes, desmonte do Estado e aumento do endividamento público ao ponto da insolvência completa. Outra parte se deve à memória construída em torno desse período desastroso da nossa história que é lembrado como o período de conquista da “estabilidade” econômica. Essa percepção corrobora aquelas observações iniciais sobre a dificuldade do indivíduo privado em avaliar de maneira fundamentada a vida coletiva, com parâmetros mais estruturais e não apenas a partir de categorias e adjetivos que compõem as correntes de notícias da conjuntura presente. Quais são, afinal, as promessas dos que vendem o programa do governo ilegítimo? A conquista da confiança do investidor é a principal. O pressuposto dessa promessa é falso, por um lado, e politicamente nefasto, por outro. Supõe que a decisão de investimento depende da confiança e não da projeção de lucros e, portanto, das condições do mercado doméstico, de suas relações com os mercados vizinhos, e da demanda efetiva. Se não é por uma visão pouco lógica que se faz tal afirmação, é por pura desonestidade, porque na verdade o que prepararam para conquistar o investidor, que decidirá baseado em seus cálculos, e em nada mais, foi uma derrubada dos custos da mão de obra e a garantia da estabilidade dos impostos, por meio do teto de gastos. E isso é afirmado claramente nas televisões. Mas, genericamente, eles tratam o arsenal antissocial como medidas de um governo responsável, que, em oposição ao irresponsável, vai conquistar a confiança do mercado. Por outro lado, e que parece mais grave, é ter como projeto de nação um não projeto, ou seja, projetar um futuro que depende integralmente das decisões de investidores, primordialmente as corporações globais. Nós abrimos mão de ter protagonismo sobre a agenda de desenvolvimento do país, de traçar as estratégias segundo nossas condições e necessidades. Isso é uma capitulação. Perdemos antes de lutar. É claro que alguns ganham, mas o país e seu povo perde. Pequenas nações não podem sequer pensar em lutar, mas não o Brasil, com seu tamanho e suas riquezas. Como eu entendo que formulado deste modo o problema muda, ou seja, que a maioria dos brasileiros desejaria tomar nas mãos as rédeas do seu futuro, democraticamente, eu concluo que estamos sendo derrotados pelas corporações que encontraram traidores associados entre nossas elites. Não é novidade aqui e na região. E não pode ser minimizado pela suposição de que alguns ainda acreditam em teoria da modernização ou em vantagens comparativas.
O que o mercado promete após o ajuste não foi alcançado outrora e é evidente, pelos resultados dos últimos três anos, que não o será agora. Não há milagres. O crescimento foi 1% depois de dois anos de queda do PIB, e a taxa de investimento é pífia, o desemprego permanece e deve piorar com a flexibilização, porque o cálculo é o de que a exploração do trabalho seja maior, com menor necessidade de contratações. E haverá mais chantagem a céu aberto sobre a necessidade de retirar direitos do trabalhador, sempre à espera da confiança dos investidores que venham oferecer os empregos que os brasileiros precisam. Pode haver algo mais movediço e instável do que este cenário? Estabilidade para quem? No processo de construção e aprofundamento da crise que já tem quatro anos, desde a campanha presidencial de 2014 e o início Operação Lava Jato, desmontaram-se as bandeiras progressistas que haviam restado ao PT e que ainda representavam uma diferença entre o seu governo e o projeto da oligarquia política tradicional e da sua ala financista, o PSDB. Uma delas, a política externa – de alinhamento sul-sul, fortalecimento da unidade política da América do Sul, ampliação de mercados, negociações multilaterais e a aposta no fortalecimento do Brics – foi rapidamente desmantelada, sem contar a desmoralização das instituições que parecem desvendar ao mundo um cenário de instabilidade típico das “repúblicas de bananas”. Também não se fala mais no fim da miséria, outra bandeira nunca abandonada pelo PT, nas políticas e no discurso. Não resta nada de projeto nacional. Estamos à deriva, aos sabores do mercado. O objetivo deste livro é contrapor à visão hegemônica a uma outra interpretação sobre a história do Brasil recente. Não é um livro de economista, mas um trabalho que se situa entre a pesquisa histórica e a memória, como não pode deixar de ser uma história do tempo presente, do tempo da própria vida. Trata-se, antes de tudo, da necessidade de falar de alguém que tem referências muito discrepantes do consenso que se construiu cuidadosamente com objetivos não declarados. Alguém cujo objeto de estudo é a História Política por acreditar que as transformações históricas dependem das escolhas dos atores que detêm poder nas suas variadas formas. Essas escolhas dependem de valores, da cultura de um determinado tempo, e, portanto, das ideias e das instituições que, em alguma medida, procuram rotinizar essas ideias de acordo com as necessidades de se construir uma determinada ordem para alcançar objetivos que podem ser consensuais entre todos ou apenas entre os grupos de poder. No capitalismo, é impossível separar a política da economia. Todas as decisões ou escolhas que as sociedades fazem sobre as formas de sua organização estão mais ou menos subordinadas ao mercado global e aos processos de acumulação do capital. Durante o século XX, ainda assistimos a uma disputa entre os ideais de planificação da economia e o livre mercado. Hoje, como vemos, o mercado predomina e a autonomia dos Estados parece encolher diante do poder das corporações globais. Mas as consequências desse amplo poder de empresas são indiscutíveis do ponto de vista dos retrocessos do sistema da democracia representativa e da ampliação das desigualdades (Piketty, 2014). Diante desses desafios, os dados e indicadores são necessários para demonstrar os fatos por trás da razão e das interpretações que eu desenvolvo há alguns anos, em sala de aula, e em alguns escritos dispersos. O desafio, entretanto, é estimular a invenção, a
criação de projetos que nos devolvam a autonomia política e um destino por construir. Os significados do pensamento hegemônico sobre os quais eu polemizo têm suas raízes nos anos de 1980 fora do Brasil e ganham força aqui e na América Latina na década seguinte, resultando em um conjunto de reformas neoliberais. Essas reformas simultâneas em vários países não podem ser compreendidas apenas como respostas à exuberância das promessas da globalização. Elas foram impostas como condição para um retorno dos países da América Latina ao sistema internacional de financiamentos e investimentos. E, portanto, só podem ser compreendidas se analisamos a crise da dívida, o fim do modelo de desenvolvimento e os fenômenos inflacionários. É o que proponho na primeira parte do livro. Em seguida, tratei de examinar as reformas empreendidas nos anos de 1990, nos governos Collor, Itamar e FHC, com destaque para o custo do programa de estabilização da moeda com âncora cambial, responsável por déficit crônico da balança comercial, e para o custo fiscal resultante das altas taxas de juros. Também procurei avaliar o processo de privatizações. Na terceira parte, analisei o período de governos do PT, as mudanças e as permanências, as condições de distribuição da renda e os limites impostos pela manutenção da estrutura macroeconômica. A crise econômica que se iniciou no governo Dilma é objeto de muita especulação e precisa de investigação aprofundada, o que parece claro é que, diante da retração do ciclo econômico e da mudança das condições da expansão, instalou-se a disputa hegemônica que reuniu diferentes segmentos das elites econômica e política, com clara influência de interesses globais. Na parte final, eu me permiti fazer considerações sobre o golpe e algumas reflexões sobre a geopolítica global. Escrever é sempre o resultado de muitos processos de aprendizagem, interação e descobertas que vão sedimentando visões de mundo e, também, dúvidas e inquietações. Devo agradecimentos à instituição onde leciono há 16 anos, a Universidade do Estado do Rio de Janeiro, o lugar onde posso preparar cursos e contar com o interesse e a colaboração de alunos muito especiais. Entre eles, agradeço a colaboração e o entusiasmo dos meus orientandos de iniciação científica e mestrado, Filipe Ribeiro Macharete e Carlos Gilberto de Sousa Martins, que integraram um grupo de estudos de História da América Latina. Também devo agradecimentos aos colegas de História Contemporânea, Sydenham Lourenço Neto e Gelsom Rozentino de Almeida. Agradeço ao colega Adriano Freixo, pela interlocução permanente sobre a conjuntura política e os desafios da esquerda. Um agradecimento muito especial devo à Andréa Telo da Corte, amiga e colega de muitos anos que acompanhou o passo a passo do trabalho, leu e releu cada parte, sugerindo questões, apontando dúvidas e insuficiências. Sua contribuição foi essencial. Nota 3 . Brasil, Presidência da República. Pesquisa brasileira de mídia 2016 . Hábitos de consumo de mídia pela população brasileira. Brasília: Secom,
2016. Apesar da tendência de consolidação da internet como meio de informação apontada na pesquisa, prevalece a televisão para a maioria dos brasileiros. Parte 1 Anos 80: o fim de desenvolvimentismo É verdade que somos parte desse todo; utilizando a linguagem de Raúl Prebisch, podemos dizer que nele sempre fomos elementos periféricos, vale dizer, privados de uma visão global. É conhecido o obstáculo que constituiu à criatividade nas ciências naturais a resistência oferecida pelos homens a aceitar a correta colocação de si mesmos dentro do cosmos. A isso chamamos de ilusão ptolomaica. Ocorreu-nos algo similar no plano da cultura: não chegamos a perceber nossa situação estrutural periférica, o que nos inabilita para captar o que é específico em nossa situação. Insistimos em analisar nossa realidade com base em categorias concebidas por pensadores que não captam nossas peculiaridades. Meu ponto de vista é que nossa incapacidade para criar no plano político se deve a esse fato. O gênio político é próprio dos povos que têm lúcida percepção do sentido de sua história . (Celso Furtado, 2014, p. 532) Capítulo 1 A crise da dívida Hoje, a “opinião pública” é informada de que a corrupção é causa primeira do fracasso econômico e político do Brasil. Políticos que têm o poder como o seu único fim, construíram um sistema corrupto de compra de apoios e partidos para permanecer no poder. Sem outro objetivo, usam o Estado para satisfazer o eleitor no curto prazo por meio dos gastos e da irresponsabilidade fiscal. Esta é toda a história e ignora a informação sobre a economia brasileira e os desafios do pleno emprego, da distribuição da riqueza e da construção de uma comunidade de direitos e de desenvolvimento humano. Ignora, sobretudo, a dinâmica competitiva da economia global, a evidente desindustrialização do país e seu retorno à especialização na exportação de primários, não apenas um retrocesso, mas um perigo na medida em que os setores ligados à exportação, sobretudo o agronegócio, incorporam progressivamente menos mão de obra em razão do avanço tecnológico e de produtividade. Não se discute o custo do dinheiro e de financiamentos, que retiram da economia uma proporção indecente de renda via pagamento de juros no mercado livre e sem quaisquer regulações. Nos dois anos de recessão, aumento do desemprego e queda da massa salarial, tivemos anúncios de lucros bilionários dos bancos privados do país. É uma brutal transferência da renda se considerarmos a inflação baixíssima do período. Não se discute os interesses relacionados à concessão da exploração das reservas do pré-sal, nenhuma advertência sobre os perigos de ter uma economia internacionalizada que não será capaz de transferir recursos em dólares como pagamento de importações, juros e dividendos, royalties e compras realizadas intracorporações. Parece que a desinformação é o objetivo fundamental de oligarquias que teriam muitas explicações a prestar se as classes médias fossem minimamente informadas,
além de encontrarem dificuldades crescentes na manutenção do status quo no seu paraíso de privilégios. Nos anos 1980, “o” problema era a inflação. Tratada como causa de desequilíbrio, cumpriu dois objetivos de uma vez: evitou um debate sobre o estrangulamento da dívida pelo aumento de taxas de juros internacionais e fim dos financiamentos para a América Latina e, consequentemente, sobre as alternativas e interesses nacionais; e enterrou a ideia de desenvolvimento, como se o desenvolvimentismo não tivesse promovido uma transformação tecnológica estrutural para o Brasil e apenas tivesse legado ao país a instabilidade dos preços . ⁴ Naquele cenário, a desmoralização dos governos militares servia ao propósito da democratização e constituía justo apelo à sociedade que desejava governos eleitos e instituições livres. Mas o apelo serviu, igualmente, para enterrar a experiência desenvolvimentista e, pior, sua memória. Nos anos 1980, não se falava do ciclo de industrialização e crescimento do Brasil, da infraestrutura de energia e telecomunicações, do avanço da exploração do Petróleo, do Proálcool ou da Embraer. Nenhuma das conquistas tecnológicas ou produtivas do país fez parte da memória ou foi discutida sob o ponto de vista dos desafios do seu avanço e, sobretudo, da autonomia do país no sistema internacional. Só se tratava da inflação, que se transformaria em hiperinflação no final da década. E a ortodoxia monetarista seria o código para a “gestão” de governos. Não se conquistou a democracia para a política, que é a disputa de interesses que envolvem a distribuição dos bens de uma sociedade. O discurso pós-democracia, encerrado o ciclo generoso do debate constitucional, transformaria a política e as escolhas sobre as formas de reprodução da vida material em gestão. O ciclo de desenvolvimento nacional havia se esgotado, é certo, mas por condições externas diferentes daquelas dos anos de grande expansão do capitalismo no pós-guerra, e em vez de se problematizar essas condições, desmoralizaram os governos que enfrentaram a crise da dívida (tanto o último governo militar quanto o primeiro civil), durante a década de 1980 e atribuíram a eles a culpa, já então relacionada à irresponsabilidade fiscal. Uma fórmula tosca: o governo gastava muito, não tinha controle, as instituições eram frouxas, imprimia-se moeda e esta era a causa da inflação. A implicação lógica do argumento era a de que o modelo desenvolvimentista representava uma escolha política que não deveria se repetir. Todo o crescimento e conquistas estão ainda encobertos no discurso hegemônico que desqualifica a atuação do Estado brasileiro como indutor do crescimento. A inflação em progressiva aceleração nos anos 1980 não foi tratada como resultado da asfixia que a crise da dívida impôs aos países da região. Ela figurou como o resumo da questão econômica. Encerrava todo o problema da economia brasileira e era o resultado da desorganização fiscal, ou seja, do excesso de gastos públicos. Um profundo desequilíbrio sistêmico, que provocou a ruptura do padrão de financiamentos internacionais, deixou de ser enfrentado. Como hoje, intelectuais de prestígio na academia debatiam em profundidade os desafios, mas só tinham expressão pública aqueles cujos esforços se voltavam para a solução da inflação.
Em 2011, uma porta-voz da economia liberal globalizada no Brasil, Miriam Leitão, colunista de economia das Grupo Globo com atuação em TV, rádio e jornal, publicou um livro sobre o que seria a “saga” do povo brasileiro na luta por sua moeda, vencida por escolha democrática. Segundo suas palavras, o enfrentamento da estabilidade exigiu que o povo enfrentasse seus “mais agudos defeitos, o erro de suas elites, a vastidão da exclusão, a apropriação do Estado pelos grupos de interesse, a hipocrisia das instituições”. O povo em “grande luta” derrotou “a essência de sua infelicidade” (Leitão, 2015, p. 22). Esqueçamos por um instante a pieguice que é parte do instrumental retórico da mídia e atentemos para os absurdos desse discurso. O pressuposto inicial é de que a vitória sobre a inflação ou a conquista da estabilidade da moeda passou a limpo toda a história, feita apenas de iniquidades. Por um lado, omite a trajetória da industrialização brasileira, espetacular entre os anos de 1930 e 1980, e, por outro, reconhece como efeitos do fim da inflação uma série de conquistas que é absoluta ficção. A exclusão não foi tocada, e o preço da estabilidade implicaria desemprego, queda da renda e explosão da dívida pública, com impactos sobre serviços públicos que são formas de distribuição da riqueza. O Estado continuou dominado por grupos de interesses especiais, ampliando-se a participação daqueles externos, globais na terminologia moderna, e, seguramente, antinacionais. A estrutura do discurso, seu chão, é uma mentira. E não para por aí. Ao criticar as instituições centralizadas do Conselho Monetário Nacional, do Banco Central, tidas como antidemocráticas e sem transparência, e a liberalidade dos empréstimos concedidos pelo Banco do Brasil, a autora desqualifica as tentativas dos governos de criar alternativas de desenvolvimento, como no caso do financiamento do Proálcool, e sonega a informação sobre os desafios que o cenário mundial impôs, particularmente no setor energético. Todos os subsídios são considerados indecorosos no texto (Leitão, 2011). A ideia que estrutura as interpretações é a de que não cabe ao Estado atuar no sistema produtivo porque ele é ocupado por grupos de interesse. Portanto, existe um pressuposto implícito de que as instituições de poder podem ser neutras, excluindo o conflito político e as disputas que são a sua natureza. Mas não é uma abordagem ingênua, na medida em que ela serve para retirar poder do Estado. E desconsidera o fundamental papel que historicamente o Estado desempenhou no desenvolvimento do capitalismo. Não se trata de um discurso superficial por sua natureza jornalística. O fenômeno que se observa não é o jornalismo ou uma parte do jornalismo, é o poder da comunicação sendo exercido, na reprodução e consolidação de uma visão de mundo incontrastável. Ele tem conseguido preservar sua hegemonia nas últimas décadas, apesar de falar em nome de interesses de uma parcela minoritária da sociedade, o mercado financeiro, e excluir os demais agentes. O corolário desse sistema de significados sobre a economia nacional deve ser objeto de profunda crítica. A tarefa não é simples, porque convivemos com ele e aprendemos a naturalizá-lo. Sua base é o mito de estabilidade como conquista histórica, uma construção discursiva cultivada e vigiada por mais de duas décadas, que apagou o alto custo imposto à economia brasileira e a qualquer projeto de desenvolvimento da capacidade produtiva nacional. E o povo deveria, hoje, diante do novo avanço neoliberal, recordar o que foi o desmonte do Estado nos anos que se seguiram ao Plano Real, com baixo crescimento, desemprego e taxas de juros irresponsáveis que
aumentaram muito o endividamento do país. E isso para ficar nos elementos da irresponsabilidade fiscal que os porta-vozes do mercado financeiro reiteram com devoção. Porque poderíamos também enfatizar os custos sociais em termos de precarização de serviços públicos por falta de investimentos. E tudo isso depois da privatização de setores estratégicos do Brasil e do aumento da carga tributária. Com certeza, os anos do governo FHC foram os mais insustentáveis da nossa história. Privatizamos, internacionalizamos, desindustrializamos, aumentamos a carga tributária – o que não havia sido feito nos anos 1980 – e permanecemos submetidos aos programas do Fundo Monetário Internacional (FMI ). ⁵ Apenas dois anos depois do Plano Real, esse custo era notório e objeto de preocupação. Maria da Conceição Tavares, em 1996, em artigo no Jornal do Brasil , afirmou que o real era uma “estória mal contada”, mostrando o problema do balanço de pagamentos, e o custo de seu financiamento. O que o ilustre Ministro e seus colegas insistem em não reconhecer – a crise econômica e financeira provocada pelas políticas monetárias e cambial do governo –, começou a ficar evidente há um ano, para todos os analistas que não usam óculos cor de rosa. No primeiro aniversário do Plano Real, a Comissão de Finanças da Câmara convocou vários acadêmicos e figuras públicas de todas as tendências e a maioria – com as obrigatórias exceções dos economistas ligados ao governo –, reconheceu que o problema do balanço de pagamentos não poderia ser resolvido sistematicamente pela absorção de recursos externos de curto prazo. Além disso, todos deixaram claro que haveria problemas com a sobrevalorização cambial e com o ajuste fiscal enquanto o diferencial entre as taxas de juros, interna e externa, fosse tão aberrante e que o aumento das reservas não era garantia de estabilidade a médio prazo. Posteriormente, as avaliações a respeito do risco Brasil feitas por banqueiros e analistas internacionais de renome continuaram muito desfavoráveis e todos concordam que nossas tão decantadas reservas podem evaporar e que a “âncora cambial” é um instrumento insuficiente e perigoso (Tavares, 1996). Todos os discursos de campanhas eleitorais a partir da estabilização tiveram como base a manutenção dos fundamentos da reforma monetária levada a cabo pelos governos de Itamar Franco e de FHC. Não há campanha de candidato competitivo que não abençoe a fórmula a estabilidade e a estrutura do tripé macroeconômico que a consolidou. Tornou-se dogma. E, é claro, ninguém considera o seu custo, até para não perder votos ao contrariar aquilo que passou a ser consenso, repetido pelos narradores cotidianos da história, na mídia corporativa. Essa reverência só é possível porque existe uma sociedade que ou não lembra ou não compreendeu o que foi o final do governo FHC, com o Brasil insolvente. A narrativa sobre o Plano Real foi criada a partir do endeusamento dos brilhantes economistas da PUC que descobriram a inflação inercial, construíram planos possíveis de desindexação e prescreveram o ajuste fiscal. Ela desconsidera as razões do desajuste inflacionário ligadas às pressões da crise da dívida. Ignora, da mesma forma, que o Plano Real repetiu a solução da âncora cambial prescrita nos demais planos da América Latina, e que a solução só foi possível nos marcos do Plano Brady , ⁶ que
recolocou os países da região no circuito financeiro internacional quando o problema de reservas dos bancos norte-americanos já estava solucionado e restando a Washington o problema das empresas que deixaram de exportar para a América Latina em razão do estrangulamento da região. Enfim, estamos diante de uma narrativa enviesada que resultou numa visão política parcial e completamente alienada dos desafios econômicos do desenvolvimento, se é que ainda podemos falar que os promotores do neoliberalismo pensem nestes termos. Parece que o único desenvolvimento que pode interessar ao Brasil hoje é o do mercado, preferencialmente aquele que nos traga investimentos diretos para enterrar nosso futuro com as contas externas impagáveis que virão. E, uma vez que a história dos anos 1980 e 1990 é contada dessa forma pelo discurso público, com clara doutrinação pró-mercado, resta buscar reconstruir nosso passado histórico, construir novas interpretações e enfrentar o desafio de uma comunicação que permita o debate mais amplo, menos superficial e falacioso dos oligopólios da comunicação do Brasil. Os anos de 1950 e 1960 foram de crescimento expressivo do capitalismo no mundo. Um ciclo de expansão da produção impulsionado por novas tecnologias, pela industrialização de regiões ainda pouco desenvolvidas e pelo consumo de massa (Anderson, 1999). Hobsbawm denominou o período de anos dourados. Segundo ele, os países industrializados bateram todos os recordes anteriores. Na década de 1960, os efeitos da expansão já podiam ser sentidos, e o pleno emprego foi uma realidade na Europa, com a média da taxa de desemprego estacionada em 1,5%. Havia uma reestruturação do capitalismo produzindo uma “economia mista”, em que estados planejavam a modernização econômica. O sucesso econômico da maioria dos países industrializados no pós-guerra resultou de processos orientados e administrados por seus governos, como na França e Espanha, na Europa, e no Japão, Cingapura e Coreia do Sul, na Ásia. A preocupação com o pleno emprego, com a redução das desigualdades e com a seguridade social também foi fator da constituição de um mercado de consumo de massa (Hobsbawm, 1995). Com a ressalva de que, durante o período militar, o Brasil viveu uma fase de arrocho salarial, a história da nossa industrialização é também uma expressão deste ciclo, com o Estado cumprindo importante função de planejamento, administração e produção. Os Estados Unidos financiaram a reconstrução da Europa e do Japão. Não fizeram favores à América Latina, que apenas se tornaria objeto de alguma ajuda com o programa Aliança para o Progresso cujo objetivo era frear supostas ameaças de movimentos camponeses ou operários após a Guerra Fria (Fico, 2008). A Aliança não teve impactos econômicos na América Latina, mas o Brasil teve seus próprios planos e buscou a forma de financiálos, mesmo quando a boa maré da expansão mundial deu sinais de esgotamento, nos anos de 1970. O Brasil estava entre os países que ficaram conhecidos nos anos de 1970 como os newly industrializing countries (NICs). Com exceção da cidade de Hong Kong, todos haviam trilhado o caminho do desenvolvimento econômico sob o planejamento ou o patrocínio do Estado. Ainda segundo Hobsbawm, o modelo gerou burocracias, corrupção e desperdício, mas foi responsável por uma taxa de crescimento de 7% durante décadas, e permitiu ao Brasil e ao
México, com seus pujantes mercados internos, passarem à condição de economias industrializadas. O Brasil foi, durante algum tempo, a oitava economia industrializada do mundo capitalista (Hobsbawm, 1995). As décadas do desenvolvimentismo no Brasil tiveram como padrão de investimento a divisão de papéis entre o Estado e os capitais nacionais e internacionais privados. Partindo de uma base agrária nos anos de 1930, o Estado foi o responsável por criar as empresas do setor de infraestrutura e instituir formas de canalizar subsídios para o setor industrial privado (Mendonça, 1985). O modelo tornou-se concentrador, sobretudo no período da ditadura militar, quando um excedente de lucros para investimentos foi garantido por meio do arrocho salarial e da alta remuneração do capital financeiro garantida pelas Obrigações Reajustáveis do Tesouro Nacional (ORTNs) e da Letras do Tesouro Nacional (LTNs). A dívida pública interna foi, dessa forma, um dos caminhos encontrados para o financiamento do II Plano Nacional de Desenvolvimento (PND), após a primeira crise do petróleo. Mas o Brasil dependia também de financiamentos externos para cobrir as compras no exterior da indústria multinacional aqui instalada – de bens de consumo duráveis –, as remessas de lucros, as compras de insumos, incluindo petróleo, e de bens de capital. Além disso, as empresas tomavam empréstimos no exterior aproveitando as baixas taxas de juros vigentes. Este modelo permitiu um rápido e expressivo crescimento da economia brasileira desde a implantação da indústria automobilística, na década de 1950, até o seu esgotamento ao final da década de 1980. Paulo Roberto Almeida estabeleceu uma comparação dos indicadores de crescimento do Brasil e dos Estados Unidos para mostrar a diminuição da desigualdade entre os dois países ao final do período desenvolvimentista. A expansão do PIB brasileiro entre 1957 e 1986 foi de 594,9%, contra apenas 150,4% dos Estados Unidos (Almeida, 2002). Em contraste, a diminuição do crescimento na década seguinte e a estratégia norte-americana de recomposição de sua hegemonia econômica e política inverteriam essa trajetória. Nos anos 1970, depois das duas décadas de grande expansão produtiva, o capitalismo mundial entrou numa fase de alta financeirização. As corporações norte-americanas já não encontravam mercados para expansão depois da reestruturação da produção e do comércio da Europa e do processo de industrialização de antigas regiões coloniais na Ásia. Os investimentos externos diretos que consolidaram espaços no mercado mundial num processo de intensa transnacionalização do capital estavam diante de mercados saturados. A lucratividade do capital passou a ser buscada em transações financeiras, o que se tornou a tendência predominante da acumulação em escala mundial (Arrighi, 1996). No plano monetário, o padrão de paridades cambiais fixado em Breton Woods (1944) e administrado pelo Fundo Monetário Internacional foi abandonado pela decretação unilateral dos Estados Unidos da inconversibilidade do dólar, em 1971. A ruptura da ordem financeira mundial mostrou a opção norte-americana pela defesa dos interesses nacionais acima das responsabilidades pelo sistema monetário internacional (Batista, 2009). O sistema de taxas de câmbio flutuantes resolvia o problema dos déficits acumulados pelos norte-americanos depois de duas décadas de
liberalidade externa e vultosos gastos militares no contexto da Guerra Fria. O abandono do lastro ouro tornou possível a expansão da emissão de dólares e de sua circulação na economia mundial, aumentando a liquidez do mercado financeiro (Arrighi, 1996). Se antes os países precisavam exportar para ganhar no comércio externo os recursos de que necessitavam para seus pagamentos em moeda estrangeira, após 1971 esses recursos podiam ser obtidos com facilidade por meio de empréstimos. O recurso aos financiamentos externos foi mais utilizado, sobretudo, depois do primeiro choque do petróleo, em 1973, quando os países não produtores foram obrigados a destinar mais divisas, nem sempre disponíveis, para o seu abastecimento. Por outro lado, a extração desses recursos das economias nacionais gerou uma vultosa oferta de petrodólares no mercado financeiro internacional, aumentando ainda mais a sua liquidez. Dessa forma, compôsse um ciclo em que o capital era devidamente remunerado na sua forma financeira pelos países dependentes da importação de petróleo, que tomavam empréstimos para fazer frente aos pagamentos que, por sua vez, voltavam ao mercado financeiro mediante depósitos que renovavam o ciclo, sendo novamente emprestados e devidamente remunerados (Laidler, 2006). O ciclo se repetia e os países rolavam dívidas cada vez maiores, contando com a liquidez que não apenas permitiu, como praticamente empurrou as economias em desenvolvimento a buscar recursos externos para financiar a manutenção de suas indústrias e sistemas de transportes. A rolagem das dívidas para a manutenção dos programas de industrialização não era necessariamente insustentável, consideradas as condições de liquidez que tornaram a moeda uma mercadoria barata. A aposta era a de que o crescimento resultante do amadurecimento dos projetos produtivos e de infraestrutura compensaria o endividamento. Do ponto de vista econômico, a opção pelo recurso à dívida contraída com baixas taxas de juros pode ser considerada melhor do que a espera de investimentos externos diretos (IED), o que também foi comum nos anos de boom , isto porque, uma vez que a dívida tenha sido quitada, lucros e dividendos continuam na economia doméstica, ou, quando investidos fora, convertem-se em divisas que retornam sob a forma de lucros e dividendos remetidos de outros mercados. O Estado brasileiro realizou grandes investimentos, como a criação da Embraer, em 1969, da Telebrás, em 1972, e a construção da hidrelétrica de Itaipu. As duas primeiras foram privatizadas, em 1994 e 1998, respectivamente, na onda de liquidação das empresas estatais que tanto custaram ao Brasil, nos governos de Itamar Franco e Fernando Henrique Cardoso. Neste, a despeito do extenso programa de privatizações das empresas nacionais, houve aumento significativo da dívida pública. Como podem os jornalistas das corporações que também se beneficiaram dos investimentos e concessões do Estado saudarem um período triste como este, com o argumento de que a estrutura fiscal do Brasil havia sido desde sempre uma bagunça, problema que teria sido resolvido com a estabilização do Plano Real? Gastava-se muito com investimentos produtivos e crescia-se muito também. Mas este é um tema que foi apagado na esfera da comunicação empresarial. É a farsa do discurso. Como hoje, quando criminalizam a política, o gasto público, e um partido em especial pela
corrupção para entregar o poder ao histórico fisiologismo corrupto. Hoje, como nos anos 1990, o discurso hegemônico é o poder do mercado, aquele que sob Fernando Henrique Cardoso colocou o Brasil no trilho do retorno à condição agroexportadora da República Velha. A produção siderúrgica brasileira, também implantada pelo Estado na década de 1940, permitiu ao Brasil o desenvolvimento de uma indústria de substituição de importações e a base material capaz de impulsionar o desenvolvimento. Durante o governo militar, por meio da contração de salários, foi possível a extração de excedentes canalizados para a indústria. Manteve-se um ritmo alto de investimentos públicos e a taxa de crescimento acelerada. No período conhecido como o do “milagre econômico”, entre 1968 e 1974, a taxa média de crescimento foi de 10%. Apesar deste crescimento, a distribuição da renda e a desigualdade mantinham o Brasil entre os países mais injustos do mundo. A tarefa, portanto, deveria ser a continuidade do desenvolvimento da base material para garantir a distribuição da riqueza e os direitos sociais para o conjunto da sociedade. Mas a crise que se seguiu à expansão, nos anos 1980, tratada como crise de inflação e irresponsabilidade fiscal, pôs a perder o fio da nossa história de desenvolvimento, apagada aqui, mas admirada por países vizinhos que não tiveram igual projeto. O historiador Mario Rapoport, na colossal História econômica, política e social da Argentina (1880-2003) , comparando seu país ao Brasil, resume de forma muito contundente o avanço econômico brasileiro e a busca de autonomia frente às estruturas política e financeira do mercado mundial. Considerando a opção por uma postura independente em relação ao FMI, Rapoport destacou a forma como o Brasil se beneficiou e os resultados positivos da balança comercial brasileira vis a vis as recomendações do órgão, como o corte de gastos, que significavam a paralisia de investimentos. Entre 1971 e 1978, el gobierno brasileño estimuló de diferentes maneras las importaciones de maquinarias y equipos, recibiendo fuertes flujos de capital extranjero, pero en el marco de medidas de control de capitales. A diferencia de la Argentina, el Brasil no utilizó el endeudamiento externo para promover una política liberal de importaciones de bienes de consumo sino para iniciar un conjunto de grandes proyectos, con el objetivo de fortalecer la infraestructura energética e industrial y el sector de maquinarias y equipos, ampliando la capacidad nacional de producción. Por otra parte, sus relaciones con el FMI desde mediados de los años 70 fueron también considerablemente diferentes que en la Argentina. La dictadura argentina estableció estrechas relaciones con el Fondo, utilizando una importante parte del endeudamiento externo para permitir que grupos económicos llevaran adelante ganancias fenomenales en el circuito financiero, al tiempo que se liberalizaban los flujos de capitales y mercancías en un proceso de desindustrialización de la economía. Por el contrario, Brasil, sobre todo a partir de la crisis del petróleo en 1973, procuró no solucionar sus problemas de balanza de pagos a través del FMI, para lo cual recurrió al mercado europeo de eurodólares. (…) Consecuentemente, mientras las importaciones brasileñas aumentaron a una tasa media del 1% anual entre 1974 y 1980, el monto de las exportaciones creció, en el mismo
período, a una tasa media anual de 10%, con una participación cada vez mayor de los productos industriales. (Rapoport, 2010, p. 689-690) O historiador argentino aponta uma trajetória que os brasileiros desconhecem. As diferenças estruturais em relação à experiência argentina dependeram de um programa de desenvolvimento e das regulações estabelecidas pelo governo para promover a nossa segunda revolução industrial, a infraestrutura e a produção de máquinas. Os brasileiros não são informados sobre isso, e parece razoável supor que a aceitação da abertura e da desregulamentação da economia dependia do esquecimento desses aspectos da transformação da economia brasileira. Do ponto de vista da comparação, é melhor tratar os anos 1970 apenas como ditadura e o período da redemocratização como o período de descontrole inflacionário. Qualquer comparação há de parecer mais razoável com estes parâmetros. O fato é que nos anos 1990, aquelas diferenças estruturais descritas por Rapoport seriam progressivamente diminuídas, com opções de políticas econômicas liberais que acabariam por lançar o Brasil nas mesmas relações de submissão aos postulados do FMI. A crise da dívida atingiu a maior parte dos países em desenvolvimento que precisaram, nos anos 1970, viabilizar seus pagamentos externos recorrendo a novos financiamentos e ao endividamento em moeda estrangeira. Mas, como se pode observar a partir da análise do historiador argentino, havia formas distintas de utilização dos recursos e, sobretudo, projetos econômicos muito diferentes que variavam desde o controle de capitais para o desenvolvimento da base produtiva nacional, como no caso do Brasil, ao uso restrito à rolagem da dívida, em benefício exclusivo dos setores financeiros. Duas importantes observações emergem dessa constatação com vistas a uma avaliação mais correta da história dos anos recentes. A primeira é a de que o Brasil é parte de um cenário global dinâmico, portanto, a compreensão da trajetória política e econômica do país depende da visão ampliada de estruturas do mercado e da geopolítica global. Ou seja, nós funcionamos dentro de um sistema que estabelece as condições para o desenvolvimento dos nossos projetos como nação. Nosso modelo de desenvolvimento com presença central do Estado foi o modelo que predominou no mundo entre os anos de 1930 e 1980 na esteira da crise de 1929 e da descrença absoluta na capacidade de autorregulação do mercado. E vale lembrar que este modelo foi responsável por um vigoroso crescimento da América Latina no Pós-Guerra. A média do crescimento da região entre as décadas de 1950 e 1980 foi de 5,8%, com crescimento per capita de 3% ao ano. O Brasil tem o desempenho mais destacado, passando de uma participação de menos de um quarto do produto da região para um terço no final do período (Cardoso e Fishlow, 1990, p. 311). Foram três décadas de crescimento – até a crise da dívida – sob um modelo intervencionista, ou, para uma melhor conceituação, de planejamento, de restauração do domínio da política sobre a vida coletiva e sobre a ordenação da produção e distribuição da riqueza em sociedade. A atuação política na regulação da atividade econômica ou na produção e distribuição não é uma intervenção no livre mercado. Essa relação de
causalidade não existe. A política é o meio pelo qual as sociedades se organizam, criam suas normas e instituições com o objetivo de garantir estabilidade e previsibilidade à vida humana. É importante destacar isso porque o mercado não é um dado da natureza como a tradição liberal procurou estabelecer ao pretender que a natureza do homem real dos séculos XVII e XVIII seria a natureza do homem universal. Como demonstrou Karl Polanyi, em 1944, o mercado foi um complemento econômico de todas as organizações sociais históricas, desde as tribais até o mercantilismo, e somente na era da máquina, da Revolução Industrial, o mercado se tornaria predominante em relação a todas as demais instituições, subordinando a ordem social (Polanyi, 1980). A segunda observação é a de que perdemos o fio condutor do nosso desenvolvimento tecnológico e industrial e até mesmo a sua memória. O mercado não substituiu o Estado e não pode fazê-lo. Mas o mais dramático é constatar que o cidadão brasileiro sequer guarda a memória de que o país teve um período de extraordinário desenvolvimento no século XX, quando, a partir de uma base agrária, ainda nos anos 1930, iniciou a escalada industrial que o levou a estar entre as dez maiores economias do mundo nos anos de 1970, quintuplicando seu produto per capita (Munhoz, 1997). Em parte, o silêncio em relação a este passado pode ser atribuído ao fato de que um período importante do desenvolvimento da base industrial brasileira ocorreu em pleno governo militar, contra o qual a sociedade civil reuniu forças de resistência política que foram vitoriosas no momento em que a crise desmoralizou o governo. Já não se tratava apenas de um governo autoritário, caracterizado pelos crimes ou pelo arrocho salarial, mas também o responsável pelo fracasso econômico evidenciado pela crise da dívida. Uma compreensão sistêmica da crise seria uma maneira de aliviar a responsabilidade dos militares. Entre 1981 e 1982, o aumento das taxas de juros internacionais tornou insustentável a situação financeira do Brasil. E algumas das apostas de investimento produtivo amadureceriam em plena recessão mundial, na década perdida. Uma outra parte do silêncio tem a ver com interesses. É um silêncio da mesma natureza daquele que apagou a memória de João Goulart. Para os projetos liberalizantes, é mais adequada a memória de um Estado caro, ineficiente e corrupto do que a de um Estado indutor do crescimento ou promotor de direitos sociais e distribuição de riquezas. Chamar atenção para a retórica sobre a década de 1980, que se reduz à questão da inflação identificada ao descontrole fiscal, não significa que não se exista um pensamento crítico e debates sobre o desenvolvimento na sociedade brasileira. O problema é que o debate qualificado não chega à sociedade, massacrada pelos órgãos de comunicação que impuseram ao campo político, nos últimos vinte anos, a agenda única da estabilidade como condição do livre mercado, único caminho para a prosperidade. Tudo o que a ele se opõe é tratado como ideologia, populismo e enganação. Os agentes econômicos que dominam o “mercado” externamente assumiram em definitivo a agenda liberalizante a partir dos anos 1980. Nossas empresas de comunicação, e parte expressiva de nossas elites intelectuais e políticas seguiram os seus passos a partir dos anos 1990. Assim, não foi de imediato que a doutrina Thatcher foi assimilada no Brasil. A agenda dos anos de 1980 foi marcada pelo desafio da construção de instituições
políticas democráticas, ao menos na forma, e, em menor grau – mas muito informada e pressionada pela expressão democrática de intelectuais e lideranças políticas de esquerda –, pela necessidade da diminuição das desigualdades. A Constituição de 1988 é o resultado de embates que terminaram na definição de padrões democráticos de governo e na ampliação de direitos sociais. Institucionalizou-se a concepção de que uma parte da riqueza produzida seria objeto de transferência obrigatória aos trabalhadores por meio de direitos que representassem uma proteção social mínima universal. No manejo da economia, impôs-se a agenda de estabilização, em razão da progressão da inflação. Essa agenda, entretanto, tem nuances importantes que marcam diferenças entre uma visão ainda desenvolvimentista e uma outra, que ganharia força, de reforma ou diminuição do Estado, ajuste fiscal e privatizações. Mas para compreendermos os anos 1980 e o esgotamento do padrão desenvolvimentista de investimentos produtivos no Brasil, é necessário conhecer a “crise da dívida” e, portanto, voltar ao final dos anos 1970. No final da década de 1970, a confiabilidade da moeda internacional de troca estava em risco, assim como a capacidade de controle dos fluxos financeiros internacionais por parte de agentes norte-americanos (empresas e governo). Alguns acontecimentos políticos importantes sinalizaram para o mundo que a potência norte-americana perdia o controle de recursos e de governos no terceiro mundo. A revolução Islâmica no Irã, o segundo choque do petróleo e a invasão soviética do Afeganistão levaram os investidores árabes a fugirem das aplicações em dólares. No último ano do governo Carter (1977-1981), e mais vigorosamente no governo Reagan (1981-1989), os Estados Unidos assumiram uma política de fortalecimento da moeda, com a finalidade de recuperar sua credibilidade após uma década de instabilidades e inflação. O governo norte-americano esperava recuperar a centralidade do seu sistema financeiro, reconduzindo para lá o fluxo de divisas que havia escapado ao longo da década para o mercado europeu (Arrighi, 1996). Paul Volker, presidente da Reserva Federal norte-americana, comandou uma progressiva elevação da taxa de juros, que sairia do patamar médio de 10% para 20%, entre 1979 e 1981. A elevação da Prime Rate determinou um movimento semelhante da Libor, que saiu de uma média de 12% para 18% no ano de 1980. Essa elevação teve efeitos desastrosos para aqueles países que vinham se endividando ao longo da década para viabilizar os pagamentos das contas externas após o primeiro choque do petróleo, em 1973, e se agravaria com o novo choque de 1979, que se seguiu à paralisação da produção iraniana após a revolução. Foi rápida a deterioração das finanças dos países em desenvolvimento e, na sequência da elevação das taxas de juros, eles perderiam a capacidade de pagamento dos compromissos externos. Em agosto de 1982, o México decretou a moratória de sua dívida, dando início à crise. Como resposta imediata, os bancos privados fecharam as linhas de crédito para os países da América Latina, o que significou a transformação da região em exportadora líquida de capitais por uma década, com custos econômicos, sociais e políticos de longa duração. O México era a expressão mais grave de uma situação sistêmica que já se anunciava, com países recorrendo ao FMI para conseguir renegociar suas dívidas com os credores internacionais (Laidler, 2006).
A dívida dos países em desenvolvimento antes do primeiro choque do petróleo era de US$ 100 bilhões, e chegaria a US$ 450 bilhões em 1981 e US$ 500 bilhões em 1982. Uma sangria. Até setembro de 1982, os ingressos externos na América Latina atingiam US$ 1,5 bilhão ao mês, e simplesmente deixaram de acontecer depois da moratória mexicana (Cerqueira, 1997). O que se seguiu na região foi uma década marcada pelo aumento da dívida pública e do pagamento de juros, e pela diminuição dos gastos públicos como forma de viabilizar esses pagamentos (Santos, 1999). E, apesar deles, a dívida aumentava, em função dos juros e da contratação de empréstimosponte ao FMI com a finalidade exclusiva de honrar os compromissos. Foi um período de transferência líquida de renda da América Latina para o sistema financeiro internacional. Os bancos privados, ameaçados pela possibilidade de inadimplência, recuperariam seus ativos com folga. E permaneceriam fechados para novos empréstimos. Foi um arrocho mundial. Segundo Paulo Nogueira Batista, a crise expôs a alta alavancagem dos bancos privados norte-americanos e o risco que corriam, operando sem fiscalização, ao arrepio das normas de regulação. Alguns bancos teriam 60% de créditos na dívida brasileira quando o teto de empréstimos a um mesmo devedor era de apenas 15%. Este cenário levou ao aperto da fiscalização do governo norte-americano. Financiamentos novos só poderiam ser concedidos na modalidade de empréstimos-ponte para garantir a solvência do sistema (Batista, 2009). O resultado foi uma década de recessão – “a década perdida” – e só os bancos ganharam. Tabela 1. Dívida da América Latina Fonte: CAN, 2001. As medidas tomadas visando o incentivo das exportações esbarraram na queda progressiva dos preços mundiais. Além do esforço desesperado para ampliar as exportações, o que incluía a desvalorização cambial com reflexos na inflação no mercado interno, a indisponibilidade para o gasto público e investimentos tornou a situação econômica dramática para os países que acumulavam nesse processo um gigantesco passivo social traduzido no aumento da pobreza extrema. Essas nações perderiam sua autonomia política na medida em que a política econômica somente podia ser concebida a partir da disponibilidade de recursos após os pagamentos externos. Quase todos os países da América Latina estiveram, seguidas vezes, em situação de insolvência a partir de 1982. Apesar disso, por razões políticas, ou porque o cronograma de suas negociações não coincidia, e até pela extrema emergência da situação, cada um renegociou suas dívidas individualmente. O governo do Peru propôs uma iniciativa de negociação conjunta dos diferentes países com o objetivo de forçar uma flexibilização de prazos e comissões, além da abertura de novos créditos. Em reunião realizada em janeiro de 1984, na cidade de Quito, chefes de Estado formularam uma declaração afirmando a necessidade do reconhecimento dos efeitos sociais da crise e da corresponsabilidade da comunidade internacional para um equacionamento das dívidas, o que deveria incluir
uma flexibilização. Mas não passou disso. Dificilmente os banqueiros se curvariam a uma pressão sem a liderança dos maiores devedores – Brasil, México e Argentina. Mesmo em tal hipótese, haveria um difícil processo de retaliações, ameaças e intervenções, de acordo com a prática histórica. A renegociação se daria depois de um longo período de transferências que recuperou a saúde financeira dos bancos. E do esgotamento de muitos países. O Brasil declarou moratória em 1987, em condições que serão abordadas adiante. Os países da América Latina assumiram a tarefa de aumentar suas exportações, e não quiseram arriscar retaliações comerciais que poderiam significar a paralisação dos setores mais dinâmicos das suas economias. Nesse sentido, assumiram, de saída, o compromisso de honrar as dívidas, apesar do aumento unilateral dos juros e da extorsão que a dívida passou a exercer sobre as economias, e de saberem que o risco dos bancos era alto o suficiente para que se sentissem pressionados, havendo uma coordenação dos devedores. Mas o cálculo foi sempre o de que rupturas poderiam aumentar muito o caos econômico. Ao que parece, o Brasil frustrou a expectativa que tinham os demais governos de uma negociação conjunta. Em 1985, o governo do Peru tomou uma decisão unilateral extrema. Um dos países mais afetados pela crise, com queda do PIB de 12% em 1983, decidiu ir além da declaração e limitar seus pagamentos a 10% da receita de exportações. Uma fórmula bem calculada, porque quaisquer retaliações poderiam implicar a suspensão total de pagamentos. Segundo Alan Garcia, que havia assumido o governo naquele ano, a medida permitiu que o Peru não precisasse solicitar novos créditos para pagar dívidas anteriores ou assinar cartas de intenções impostas pelo FMI, e o resultado foi a expansão vigorosa da economia entre 1985 e 1987, com o aumento do consumo interno e sem a tutela internacional (García, 1989). O problema da dívida e dos juros, entretanto, ainda estava lá. Contra os termos dos credores, era preciso continuar a pressão para uma revisão dos valores e a flexibilização de prazos e condições de pagamento. Em 1989, Alan Garcia publicou um livro convocando o desarmamento financeiro do mundo equivalente ao desarmamento nuclear. Acusou o FMI de atuar a favor dos interesses financeiros, na medida em que seus mecanismos impediam uma negociação justa, e convocou os latino-americanos a manterem sua riqueza na região como forma de pressão. Entre 1980 e 1988 a produção total de bens e serviços da América Latina (PIB) cresceu anualmente em 1%. No mesmo período, a população aumentou a uma média anual de 2,5%. A consequência dramática é de que o produto bruto per capita, isto é, o que numa média teórica caberia a cada habitante do continente, foi reduzido a cada ano em 4%. Essas cifras encobrem duas situações. A primeira: com essa deterioração da produção latino-americana, a desigualdade social entre os grupos sociais dentro de cada país se tornou maior. A segunda: o crescimento econômico de 1% anual foi quase que exclusivamente reflexo do aumento das exportações, incrementadas em todos os países num esforço desesperado para obter recursos com que pagar a dívida externa. Entre 1980 e 1987 as exportações da América Latina aumentaram 4% ao ano. Ao mesmo tempo, porém, as
importações também diminuíram 4%. Assim, nesses anos, além de reduzir as importações e diminuir com isso a oferta interna, ainda se carreou grandes recursos da produção interna para incrementar as exportações. Com esse tremendo esforço, a América Latina, que só cresceu 1% anualmente, durante a década, destinou a cada ano 5% de sua produção total para pagar a dívida. Apesar disso, a dívida que em 1979 era de 191 bilhões de dólares, havia aumentado em 1988 para 430 bilhões de dólares. Nesses mesmos anos, a América latina pagou por juros e amortizações 289 bilhões de dólares, o que representa uma vez e meia a dívida de 1979. Hoje, em 1989, com um produto bruto per capita menor, a América Latina enfrenta uma dívida muito maior, cujos juros continuam a aumentar. Por isso, mais que em 1980, o pagamento da dívida externa é uma impossibilidade jurídica e econômica. A América Latina não poderá pagá-la porque alcançou o limite da tolerância social. Por isso, os latino-americanos têm o dever imperativo de enfrentar a dívida externa para lhe dar uma solução ousada e definitiva. Com esse propósito, é nosso direito, mas também nossa obrigação, limitar o pagamento, sem que isso signifique uma recusa ao diálogo. Mas devemos dialogar unidos e dispostos a uma grande decisão. A integração latino-americana se torna assim o projeto a longo prazo mais coerente e seguro para nossos países. Na verdade, é o único. Diante dele, a dívida é uma espada de papel. Se é impossível pagá-la, não há como cobrá-la. É apenas um absurdo. Não existe de fato. É como um velho mito ou tabu que a decisão política e o tempo superarão. E diante de uma espada de papel, só cabe à América Latina tomá-la com as mãos e rasgá-la. É simples assim. (García, 1989, p. 15-16) A citação é longa, porém vale muito, não apenas como manifesto, mas igualmente por constituir uma visão do que significou o dreno financeiro mundial em funcionamento ao longo da década de 1980, determinando a exportação líquida de recursos de uma região pobre do mundo. O problema que atingiu a região, dependente de fluxos financeiros desde a crise do petróleo, era sistêmico e, portanto, é falsa a interpretação que elege o descalabro fiscal e a farra de gastos que estariam como causadores do processo inflacionário e das moedas instáveis. Essas interpretações ainda guardam o sentido de desqualificar o Estado como indutor do desenvolvimento, sonegando informações não apenas sobre a América Latina, mas de diferentes exemplos históricos e atuais. O estrangulamento da América Latina pelo sistema financeiro ao qual recorreu, aprofundando sua dependência a partir da crise do petróleo, é um dado sem o qual não se compreende o fim do ciclo desenvolvimentista no Brasil. Sem conhecê-lo, não se compreende a recessão mundial que se seguiu ao aumento das taxas de juros internacionais. Juros e recessão transformaram alguns grandes investimentos em infraestrutura, como a hidrelétrica de Itaipu, em dívidas de difícil quitação. Mas o ativo está lá. Um avanço permanente da capacidade de geração de energia do país. E não foi fruto de investimento privado, como, de resto, a maior parte da infraestrutura nacional.
Tabela 2. Crescimento da dívida externa dos principais países da América Latina (em milhões de dólares) Fonte: Rapoprt, Mario. História política, económica y social de la Argentina. Buenos Aires: Emecé, 2010, p. 606. Dados do Banco Mundial. A crise da dívida e o estrangulamento do projeto de desenvolvimento por razões externas foram amplamente utilizados como argumento contra o modelo de desenvolvimento que havia prevalecido no Brasil nas cinco décadas anteriores. A partir deste fenômeno, e da compreensão que se construiu dele, as elites locais passaram a adotar as recomendações de Washington com obediência, como se culpadas fossem por um fracasso que absolutamente não podia ser cobrado a elas. Ao contrário dos permanentes apelos de Alan García, os países se encontraram frente a frente com os credores, cada um por si. Ao FMI, coube a coordenação do manejo da dívida no curto prazo, assumindo a intermediação entre credores e devedores e a construção de projetos que exigiam contrapartidas – as chamadas condicionalidades – para a obtenção de empréstimos-ponte. Além do caso do Peru, que menciono para destacar as pressões que o presidente procurou exercer, o da Argentina vale destaque porque foi o país que mais fundo mergulhou no processo de espoliação do sistema financeiro e, portanto, vale relembrar a situação dos anos de 1980 para retomá-la depois das reformas neoliberais. O ano de 1982 foi para os argentinos não apenas o de uma grave crise econômica, mas o ano da desmoralização final da ditadura após a derrota militar na tentativa de retomada das Ilhas Malvinas. O governo havia apostado no sentimento de unidade nacional para superar a insatisfação com o regime e com as perdas econômicas da população. Com relação à dívida externa, existe na Argentina uma percepção de ilegitimidade que se assemelha a que existia em relação às ditaduras africanas. Diferentemente da percepção de que os recursos tomados eram investidos em ativos para a promoção do desenvolvimento, como no Brasil, no país vizinho os militares são responsabilizados por terem endividado estatais que jamais receberam recursos, por contraírem empréstimos não contabilizados pelo Banco Central – a despeito de que a instituição contasse com a supervisão permanente do FMI – e de manterem recursos depositados em bancos internacionais unicamente como reserva internacional extraordinária e desnecessária. A liquidez global havia permitido não apenas o alto endividamento dos países em desenvolvimento, como também a inflação, acelerada após o segundo choque do petróleo. E foi neste cenário que a Reserva Federal impôs o aumento da taxa de juros americana. O primeiro presidente civil da Argentina, Raúl Alfonsín, herdou o problema da dívida além de muitos outros próprios da democratização, como o enfrentamento do passado de crimes dos militares. Tentou endurecer as negociações com o FMI, apostando no apoio de países igualmente estrangulados, sobretudo Brasil e México, os maiores devedores. Diante da dificuldade de uma ação conjunta, uma vez que o Brasil partira para negociações diretas, e considerando a emergência da situação, também iniciou negociações nos moldes costumeiros. Refinanciou a dívida vencida
em 1982, 1983, 1984, 1985 e conseguiu novos fundos para financiar o déficit no balanço de pagamentos. Os acordos implicaram o aumento do endividamento e seus efeitos seriam sentidos logo, na medida em que as parcelas comprometeriam quaisquer planos de investimentos econômicos ou em serviços sociais (Ayerbe, 1998). No Brasil, o déficit do balanço de pagamentos no fim de 1982 foi de US$ 8,8 bilhões de dólares, não cobertos pelas reservas que chegaram a apenas US$ 3,9 bilhões. Como as linhas de crédito haviam sido cortadas para bancos brasileiros, o país recorreu ao FMI e levantou uma série de empréstimos de curto prazo para cumprir os compromissos imediatos. O total de recursos levantados foi de US$ 3 bilhões provenientes do FMI, Tesouro Americano, Bank for International Settlement e bancos privados. O governo anunciou ainda medidas com o objetivo de diminuir a dependência externa, como a redução do déficit público de 6% para 3,5% do PIB, a diminuição do investimento das estatais em 21%, o reajuste da taxa de juros, a eliminação gradual dos subsídios agrícolas, o aumento da produção de petróleo e o reajuste dos preços dos derivados acima da inflação. O FMI exigiu do Brasil o cumprimento de metas que não foram atingidas, o que atrasou o desembolso das parcelas, levando o país à insolvência já no início de 1983. Novas negociações permitiram que se colocasse a situação em dia após um programa de empréstimos de US$ 25,3 bilhões, mas não havia como garantir os pagamentos de 1984. O setor privado absorvia as divisas disponíveis, mantendo seus pagamentos em dia, enquanto o setor público concentrava os atrasos. O programa de financiamento para 1984 foi de mais de US$ 26,9 bilhões. Neste ano, o Brasil conseguiu manter um fluxo de caixa suficiente para cumprir os prazos dos pagamentos. O cenário econômico internacional havia melhorado um pouco com queda das taxas de juros e do preço do petróleo. O Brasil conseguiu então um superávit comercial de US$ 13 bilhões e o aumento das reservas cambiais. Em 1985, tentaria uma negociação duradoura, sem dinheiro novo, mas com prazos maiores e juros menores para os US$ 45,3 bilhões a vencer entre 1985 e 1991. O FMI não recomendou o acordo porque o Brasil não havia feito a revisão do programa de ajuste econômico e financeiro. Havia ainda dúvidas sobre a estabilidade das instituições porque o primeiro presidente civil, Tancredo Neves, falecera antes da posse (Cerqueira, 1997). Naquele ano de 1985, além da declaração de Alan Garcia de que não pagaria mais do que 10% do valor das exportações, o cenário da crise contou com outra novidade. Talvez sob a ameaça de que a clara insustentabilidade de pagamentos podia resultar em outras iniciativas como a do Peru, o secretário do Tesouro norte-americano, James Baker, anunciou um plano de renegociação. Estava claro que a sangria da América Latina não poderia durar muito tempo. Os bancos privados se recuperavam, mas as empresas norte-americanas foram profundamente impactadas pela queda das importações da América Latina. As divisas escoaram para o sistema financeiro na forma de pagamento, os governos viveram tempos de penúria, as condições sociais foram degradadas sem investimentos, e a queda nas importações foi a consequência imediata. A região estava estrangulada, o que determinou a retração dos investimentos que determinam o ritmo de crescimento (Buratto, Porto Jr. 2001). O Plano Baker para o refinanciamento
da dívida da região previa o desembolso de algum dinheiro novo de fontes multilaterais e bancos privados, mas não teve êxito. Serviu apenas como uma demonstração da preocupação do Tesouro norte-americano em buscar uma solução. Contudo, os bancos privados não se associaram à proposta. Na verdade, eles diminuíram a posição na América Latina entre 1982 e 1988, de US$ 250 bilhões para US$ 225 bilhões (CAN, 2001). Tabela 3. Média da taxa anual de crescimento na América do Sul Fonte: Cepal, Badeinso. O processo de negociação repetiria-se ao longo da década, impondo inúmeros constrangimentos à soberania monetária e fiscal do Brasil. Apesar de o presidente José Sarney (1985-1990) ter decidido não entrar em acordos com o FMI que significassem jogar a economia em recessão, o Brasil conseguiu um acordo de reescalonamento com os credores privados e a manutenção de financiamentos comerciais e linhas de crédito interbancário. Mas o cenário econômico de 1987 mudou sob o impacto da expansão de importações para abastecimento doméstico em razão do prolongado controle de preços do Plano Cruzado. O Brasil entrou em moratória e tentou uma nova negociação. O ministro da Fazenda, Bresser Pereira, que assumiu a pasta na sequência do fracasso do plano econômico, levou aos credores a proposta de securitização da dívida, que envolvia a troca da dívida por bônus de longo prazo e juros de acordo com a capacidade de pagamento do país. A proposta nem foi examinada. No final do ano, o Brasil conseguiria apenas os créditos necessários para colocar em dia os pagamentos dos juros daquele ano (Leitão, 2011). Este episódio mostra como os bancos endureciam nas negociações, mas acabavam fornecendo os empréstimos de socorro. Como disse Celso Furtado, eles não tinham interesse em levar o prejuízo para seus balanços. O fato, porém, é que as negociações feitas pelo Brasil a partir de 1982 corresponderam às exigências dos credores, e a situação do país continuava a se deteriorar. A inflação chegou a 366%, o déficit público era de 5,5% do PIB, o crescimento de 2,9 e reservas de US$4 bilhões, insuficientes para os compromissos de 1988. Novos empréstimosponte, aumento das remessas, nova suspensão de pagamentos de juros em 1989. A situação foi a mesma até que o Brasil entrasse nas negociações do Plano Brady, em 1992 (Cerqueira, 1997). A instabilidade da economia tornaria-se dramática, levando a várias tentativas de estabilização, como mencionarei adiante. A inflação se transformou em um imposto pesado para os assalariados e em obstáculo ao crescimento, em função das incertezas que representava para as decisões de consumo e investimentos que movem a demanda. Além disso, o país passou pela fase da Assembleia Constituinte que colocou no centro da pauta política os déficits históricos de liberdades e direitos. Foram tempos novos, conturbados e criativos. Talvez a agenda política tenha obliterado a visão sobre o significado da exportação líquida de capitais, que passaria despercebida pela maioria. Era mais fácil condenar os economistas e o governo que não conseguiam segurar o touro da inflação na unha. Conhecemos as greves, as lutas dos grandes sindicatos paulistas pelos direitos trabalhistas e a ascensão do maior movimento social dos anos 1980, o MST. Mas não tivemos nenhum movimento contra a sangria financeira.
Nada que pudesse nos colocar ao lado dos países massacrados da região para a luta que propôs Alan García. E para não dizer que não falei de flores, Leonel Brizola repetiu incessantemente que o problema de fundo do Brasil era o modelo que gerava as famigeradas “perdas internacionais”. Mas não tinha eco. A grande imprensa sempre tentou representar Brizola num tamanho menor do que a sua grandeza. Como governador do Rio de Janeiro, não podiam esconder suas realizações, mas mostravam- -nas, via de regra, para criticá-las. A despeito dos ataques permanentes das Organizações Globo (atual Grupo Globo), o governador eleito no Rio de Janeiro na primeira eleição direta após a anistia teve seu programa de educação popular em tempo integral revolucionário reconhecido nacionalmente. Isso não foi o suficiente para que ele exercesse liderança nacional, e seu discurso permaneceu isolado. O Brasil voltou-se para as questões internas, para os desafios da democratização, e a competição pelo poder que se seguiu garantiu a responsabilização das elites tradicionais por todos os nossos males. A política brasileira ainda se ressente de uma visão provinciana. Todos os problemas são tratados como resultados de desequilíbrios endógenos, como se não estivéssemos no mundo globalizado. A ascensão do PT ocuparia o espaço político gerado pelas expectativas progressistas represadas. E, em princípio, a agenda era ampla e ditada pela dinâmica da Constituinte. Nos anos 1990, como um partido estruturado nacionalmente, seria o grande opositor das reformas neoliberais no Congresso. Mas no governo, a partir de 2003, seria conciliador, embora elegendo uma política externa que buscava caminhos alternativos. Em 1982, no início da crise, o Brasil começou o processo de negociações que o manteve amarrado ao longo da década. Naquele primeiro momento em que o governo procurou a solução para a solvência imediata e, em seguida, foi às negociações para o acordo de 1983, de US$ 25,3 bilhões em socorro, Celso Furtado fez uma profunda crítica à negociação. Em entrevista ao programa Vox Populi da TV Cultura, defendeu a moratória e denunciou os bancos internacionais que se aproveitavam da fragilidade do Brasil para aumentar seus spreads e comissões. Segundo ele, os bancos faziam seus negócios apenas para apresentar resultados positivos em seus balanços. Este era o papel do mercado financeiro e o que se podia esperar dele. Ao mesmo tempo, afirmou que fora do país ninguém entendia como o Brasil não usava seu peso e não se valia do risco dos credores para endurecer as negociações. Segundo Furtado, maiores que os riscos de uma moratória eram os custos que o Brasil estava pagando. Na prática, o país estava em moratória ao longo daquele ano, mas tratava-se de uma condição desenhada pelos bancos em função dos seus interesses, que seriam consolidados nos acordos firmados nas condições ditadas por eles. O Brasil se transformara em exportador de riquezas e se endividava mais. Transferiria US$ 3 bilhões de dólares em 1983 e maior montante no ano seguinte. De acordo com a maneira como compreendia os esquemas do Fundo Monetário, Celso Furtado projetava que, em quatro ou cinco anos mais, o Brasil estaria exportando US$ 15 bilhões, metade da capacidade de investimento da economia em condições normais de funcionamento! A conclusão era a de que o Brasil estava submetido a uma recessão programada para durar vários
anos, porque havia sido transformado em exportador de riquezas e com todas as linhas de crédito fechadas, salvo as destinadas ao pagamento de juros. Profético. Na defesa da moratória unilateral, considerando os riscos que o país teria de ficar sem reservas para o pagamento de suas importações, Furtado argumentou que o país estava fazendo um enorme sacrifício sem saber para quê. Se decidisse assumir sua soberania e anunciar que não aceitaria as condições dos bancos, haveria riscos, mas o país saberia, ao menos, por que os estaria assumindo . ⁷ Na análise sobre a situação do México, que havia originado a crise, Furtado afirmou que o país tinha boas condições de pagamento porque exportava petróleo e sua balança era favorável em US$ 6 bilhões, garantindo o pagamento das importações. A moratória havia sido decretada porque o México sofreu uma grave fuga de capitais depois do aumento das taxas de juros internacionais. Por isso, anunciou a suspensão dos pagamentos e nacionalizou os bancos, para controlar a sangria. Em seguida, o governo dos Estados Unidos agenciou uma negociação para que o México voltasse a pagar seus compromissos. Com esse argumento, Celso Furtado procurava comprovar que a moratória era o pior negócio para os bancos. Além disso, demonstrava o tamanho do problema causado pela decisão dos Estados Unidos de duplicar o valor da Prime Rate. Nenhum país podia estar preparado para os pagamentos aumentados, e para a fuga de capitais, e a manutenção dos pagamentos teria por consequência a incapacidade de pagar as importações. O Brasil devia, portanto, endurecer naquela data, e se aproveitar da mesma disposição de Raúl Alfonsín, o novo presidente da Argentina. Se não tivesse assinado o acordo, em 31 de dezembro os bancos estariam em apuros. O Citybank, segundo ele, tinha 83% do seu capital no Brasil. A maior economia da região, era também o maior devedor. A posição dos bancos era extremamente vulnerável e, apesar disso, o Brasil vinha fazendo acordos impagáveis, como o de 1981, quando chegou a aceitar, entre juros e spreads, 24% de taxas. “Qual país pode aguentar isso?”, concluiu Furtado (TV Cultura, 1983). Dadas as circunstâncias do estrangulamento, a economia brasileira foi sendo ajustada na medida das necessidades do cumprimento dos pagamentos externos. O Estado diminuiu investimentos, subsídios e patrocinou os interesses de setores exportadores que eram os geradores de divisas. As transformações determinaram um novo arranjo sobre a distribuição do lucro e a apropriação da riqueza, às expensas do Estado. Dois processos com impactos de longo prazo podem ser observados nos anos 1980. O primeiro foi a geração de grandes superávits comerciais, de origem predominantemente privada, e o segundo foi a estatização da dívida externa. O lucro das exportações, ou seja, o excedente financeiro com o exterior, permitiu substituir com folga a retração do investimento público no sentido da manutenção da acumulação interna, que teve prosseguimento a despeito da diminuição do investimento. Mas, na medida em que nem todos os setores eram exportadores, parte do capital privado não tinha instrumentos necessários para contornar a crise e a falta de financiamentos. A saúde financeira das empresas que atuavam no mercado doméstico estava em risco permanente.
A preservação dessas empresas foi uma opção da política econômica adotada desde a estagflação da década de 1970. Por meio de alguns mecanismos, como as linhas de financiamentos concedidos por bancos públicos com juros pré-fixados, sobretudo a partir do II Plano Nacional de Desenvolvimento (1975-1979), ou o aumento das tarifas de serviços públicos abaixo do aumento médio de preços, ou ainda o financiamento externo do investimento público, o governo protegeu a empresa privada dos riscos do endividamento externo enquanto se expôs em proporção maior ao risco deste endividamento a taxas flutuantes. Por outro lado, as sucessivas desvalorizações diminuíram o valor das dívidas do setor empresarial, representando outra forma de estatização dessa dívida. De fato, a saúde das empresas privadas evitou que a recessão dos anos de 1981-1983 tivesse proporções ainda maiores. Mas, o mesmo processo de ajustamento que garantiu o equilíbrio privado acabou por inviabilizar a rentabilidade e o investimento do setor público (Belluzzo e Almeida, 2002). O aumento do déficit público foi considerável no fim dos anos 1970 e início dos anos 1980, sobretudo em função dos subsídios concedidos ao setor privado. A situação foi muito agravada pela recessão, cujo efeito imediato foi a queda da arrecadação, determinando um recuo dos gastos em subsídios e investimentos a partir de 1983. Mas, se por um lado, o déficit podia ser diminuído pela contenção de gastos, por outro, houve um aumento do custo financeiro da dívida interna. O governo conseguiria expurgar algumas vezes esse custo por meio de desvalorizações da moeda e de manipulação de indexadores, o que se repetiu nos planos de estabilização ao longo da década. Ocorre que estes mecanismos tornaram os rentistas mais exigentes com relação aos prazos da remuneração dos títulos da dívida pública por causa de temor da desvalorização da riqueza financeira, como havia acontecido em algumas desvalorizações. De maneira diferente do que passou a ser norma na década seguinte, após o Plano Real, o déficit público não foi equacionado com o corte de gastos primários na medida em que os gastos financeiros aumentavam ao longo do período. Ele era compensado com desvalorizações. Instalou-se um círculo vicioso. Déficit e inflação eram faces da mesma moeda de um desajuste intratável naquelas condições de estrangulamento externo que implicavam a exportação de riqueza líquida. Tornou-se urgente recuperar um patamar mínimo de investimento, o que se afigurava inviável na conjuntura de ajuste fiscal do ano de 1983, com o dreno financeiro da dívida externa e a inexistência de novas linhas de crédito. Os investimentos das estatais, por sua vez, também declinaram acompanhando a transição do déficit para o superávit primário, e o setor privado, saudável financeiramente, retraiu-se diante das incertezas da grave crise (Belluzzo e Almeida, 2002). É notável o papel que as estatais representaram na manutenção do programa de desenvolvimento, ampliando infraestrutura e insumos a preços estáveis. Sua retração somente aconteceu pela determinação da política econômica na conjuntura que transformou o Brasil em exportador líquido de riqueza, subordinando-se às condições dos credores internacionais. De acordo com a tese de Alan García, a dívida expressou a relação internacional entre ricos e pobres como capítulo final da história da dependência. Significou a transferência de riquezas por meio do rentismo
financeiro. A expansão creditícia e os créditos aos países pobres compensaram a dívida petrolífera dos países ricos por meio da centralização financeira promovida pelo aumento das taxas de juros. O processo era, entretanto, insustentável, na medida em que o arranjo desenhado pelo FMI acarretava a retração do mercado mundial ao promover um aumento da reciclagem de capitais por meio de juros e não de investimentos produtivos. Nesse sentido, também se apresentaram os planos Baker e Brady, que consolidavam a continuação do ciclo financeiro. Também profético, o presidente do Peru, na década perdida. Notas 4 . Para séries históricas do crescimento brasileiro entre os anos 1950 e 1980: Ipea. Carta Conjuntura , junho de 2011. Tabela VIII, Brasil: indicadores macroeconômicos. 5 . Os dados econômicos relacionados aos governos das reformas neoliberais no Brasil e aqueles relacionados aos impactos do programa de estabilização da moeda são tratados na Parte 2. 6 . O Plano Brady foi uma estratégia de renegociação das dívidas da América Latina por meio da securitização dos créditos. Era a segunda tentativa do Tesouro norte-americano para solucionar a questão que afetava os bancos e o comércio no continente. A primeira tentativa havia sido em 1985, fracassando porque as instituições financeiras não aceitaram refinanciar os débitos. A segunda, em novos termos, foi o Plano Brady, criado pelo secretário do Tesouro norte-americano no início de 1989 e tornado o meio de renegociação das dívidas de muitos países da América Latina. As condicionalidades para o aval do FMI eram o ajuste fiscal, a abertura e as privatizações. 7 . Todas as referências sobre a posição de Celso Furtado com relação ao desafio da dívida foram retiradas do programa Vox Populi, da TV Cultura, de 1983. Disponível em < http://bit.ly/2LJHYSu >. Acesso em: 20 jul. 2017. Capítulo 2 Inflação, um problema sistêmico O fenômeno da inflação era conhecido na América Latina desde os anos de 1950. A industrialização crescente, a urbanização e a ampliação das necessidades de consumo em economias, em expansão maior ou menor, significaram o surgimento de novos modos de vida e modalidades de crédito e consumo. O crescimento foi acompanhado de inflação endêmica no Brasil e na Argentina, por exemplo. Antes mesmo da crise da dívida, a Argentina passou a ostentar 3 dígitos de inflação, alcançando este patamar em 1975, depois da elevação do preço internacional do petróleo (Neiburg, 2004). A década de 1970 seria inflacionária no mundo, tanto pelo abandono do padrão dólar-ouro, quanto por causa dos choques do petróleo. O fenômeno era desconhecido até então, porque a inflação clássica acontecia em períodos de crescimento e alta demanda, e aquela década foi de estagnação. Chamou-se o fenômeno de
estagflação. Não havia demanda aquecida, ao contrário, o choque do petróleo aumentara custos e restringira investimentos na maior parte do mundo em desenvolvimento, com a exceção do Brasil, que decidiu enfrentar a crise lançando o II PND. Mas havia liquidez no mercado de divisas desde o abandono do padrão ouro pelos Estados Unidos. A estagflação dava razão aos monetaristas que interpretavam a alta de preços como um desajuste ligado ao excesso de moeda na economia, ao contrário dos estruturalistas, que, em geral, trataram o fenômeno até então como sinal de um estrangulamento da produção diante de uma demanda em expansão. Os anos de 1970 foram um desafio para os economistas. E, na América Latina, o campo de debates sobre preços e inflação cresceu com o avanço do problema. A crise da dívida teve um efeito desastroso sobre as economias e, como consequência do estrangulamento externo, o problema do déficit fiscal crônico se impôs, agravando o fenômeno inflacionário não apenas pela emissão de moeda para fazer a roda da economia girar, mas também pelas desvalorizações visando ao incremento das exportações para a obtenção dos dólares necessários ao pagamento das contas externas. De acordo com o embaixador Paulo Nogueira Batista, as tentativas fracassadas de controlar a inflação abalaram a confiança no Estado. Daí ao endeusamento daqueles que estiveram à frente do Ministério da Fazenda e articularam o Plano Real e a estabilidade da moeda a qualquer custo (altíssimo custo, diga-se) foi fácil, e muito útil para as oligarquias financeiras. Golpeado pela crise da dívida externa e pela forma como esta foi tratada, o Brasil, graças a sua base industrial e ao esforço feito pela Petrobras para aumentar substancialmente a produção nacional de petróleo, conseguiria acumular substanciais saldos de balanço comercial, criando condições para honrar o serviço daquela dívida. Em consequência, só lograria fazê-lo à custa do equilíbrio das contas públicas. Sucessivas cartas de intenção ao FMI foram assinadas sem que o país pudesse cumprir as metas acordadas em matéria fiscal e monetária. Para dominar a inflação resultante desse descontrole, gerado em sua maior parte pelo serviço da dívida externa e interna, sucessivos planos, heterodoxos e ortodoxos, foram tentados sem êxito, produzindo um sentimento generalizado de frustração que abalaria a confiança na ação do Estado (Batista, 2009, p. 148) Fenômeno sistêmico – que alterou as relações produtivas, a acumulação de capital e a sua apropriação –, a crise inflacionária das economias latinoamericanas endividadas não pode ser tratada como resultado da incompetência gerencial do Estado patrimonialista. Essa abordagem é falsa e cria uma percepção, por analogia, de que a estabilidade monetária foi uma conquista de tecnocratas dotados de uma ciência imune a críticas. É apenas um passo para a incorporação dos conceitos da ortodoxia liberal como verdade absoluta, para a execração do Estado e, sobretudo, para o desmonte do sistema de investimentos estatal. Na prática, significa a aceitação dos termos do capitalismo rentista que, ao final do processo, recolocou o Brasil na posição de exportador de primários, sua especialização colonial. Mas não é tudo. Se o complexo agroexportador do café, que comandou a economia do país até os anos de 1930-1940, era nacional, hoje, nosso agronegócio é híbrido. Um dos maiores exportadores de grãos e carnes do planeta tem
todos os insumos (defensivos, sementes, máquinas) fornecidos por empresas multinacionais. Corremos ainda o risco de transferir progressivamente a propriedade da terra, uma novidade do governo de mercado que chegou ao poder pelo golpe de 2016. A grande adesão ou alienação (dependendo do ponto de vista) da sociedade em relação às reformas está estreitamente vinculada com a narrativa hegemônica que ignora a história do desenvolvimento nacional, tema que deixou de fazer parte do repertório político e midiático há três décadas, cedendo lugar para as disputas em torno da questão fiscal vis a vis à inflação e, posteriormente, à ortodoxia do Estado mínimo segundo os interesses do capital globalizado. O começo da história da nossa instabilidade monetária, como a dos demais países, está na crise do petróleo, particularmente no segundo choque seguido pelo aumento das taxas de juros internacionais. O Brasil reagiu com uma maxidesvalorização da moeda de 30%, em 1979, seguida da prefixação da desvalorização da taxa de câmbio de 45% para o ano de 1980. Essas respostas significaram a ruptura do padrão da regra cambial seguida até então, o que seria elemento de desorganização das expectativas dos agentes do mercado. O déficit comercial que se seguiu, com o desequilíbrio das contas externas, levaria a uma nova maxidesvalorização de 30% em 1983. O ambiente econômico tornou-se muito instável e, ao longo da década, as taxas de juros e a fixação de índices de correção monetária seriam objeto de manipulação dos governos, em especial nos planos de estabilização. Essa instabilidade levaria os rentistas a se protegerem dos riscos das desvalorizações, aumentando as exigências para a compra de títulos da dívida pública, exigindo prazos mais curtos e realizando operações de arbitragem no mercado do dólar. O segmento empresarial, por sua vez, adaptou-se às súbitas mudanças de padrões de referência e de risco, impondo forte aceleração inflacionária pela defesa da liquidez corrente com a revisão das margens de lucro. O ajustamento promovido entre os anos de 1979 e 1983 não apenas preservou os lucros do setor privado, como permitiu o reequilíbrio do setor externo em conta corrente, com a orientação da produção para a exportação. Mas o custo foi alto. A arrecadação fiscal caiu, comprometendo a capacidade de investimentos do Estado. A receita tributária bruta caiu de 25,2% do PIB em 1975, para 21,8% em 1984. A receita líquida foi de 15,2% para 8,6% no mesmo período. No auge da recessão, o déficit operacional do setor público superou 7% do PIB. O cenário foi de incertezas, inflação alta e aprofundamento da crise fiscal e de financiamento do setor público e das estatais (Belluzzo e Almeida, 2002). Enquanto o setor público estava impedido de investir, por total estrangulamento da capacidade financeira, o setor privado, líquido e devidamente ajustado à custa do Estado, retraiu-se, refugiando-se nas garantias do dinheiro indexado. Diante da crise monetária, o governo decidiu separar as funções da moeda, garantindo a reserva de valor e o padrão de preços por meio da emissão do “dinheiro financeiro” enquanto o meio circulante desvalorizava-se. Esta estratégia evitou que houvesse uma corrida para proteção dos valores em moeda externa forte. Em 1986, foi criada a Letra do Banco Central (LBC),
transformada em Letra Financeira do Tesouro (LFT), no ano seguinte. Até então, os rendimentos dos títulos públicos eram pré-fixados na aquisição de Letras do Tesouro Nacional (LTNs), ou pós-fixados nas Obrigações do Tesouro Nacional (OTNs) de acordo com a correção monetária ou cambial. Entretanto, diante da instabilidade de taxas de juros, das perdas e incertezas, o governo criou a LBC/LFT a fim de garantir rendimentos equivalentes aos obtidos no mercado aberto e liquidez a qualquer prazo. Além do ajuste da remuneração do dinheiro financeiro, o governo instituiu, no mesmo ano, o Bônus do Tesouro Nacional, um indexador diário para cálculo de todos os pagamentos e recebimentos de contratos. Se, por um lado, os agentes econômicos puderam se proteger da desvalorização do meio circulante com as garantias da moeda financeira, por outro, a indexação total da economia criou a condição inercial da inflação. A transformação do mecanismo inflacionário em dívida pública criou, ainda, dois importantes desacertos nos mecanismos econômicos. O primeiro foi que os bancos passaram a gerar sua rentabilidade a partir da operação da dívida pública, tanto na forma de administração de carteiras de grandes clientes, quanto no giro da moeda de troca dos clientes de pequenos recursos. Essa operação segura era mais rentável do que o financiamento da atividade econômica. O segundo foi a dívida pública deixar de servir ao investimento para se transformar em lastro da moeda indexada, daí resultando a vulnerabilidade do governo em relação àqueles setores que tinham acesso privilegiado à liquidez. Tal processo Belluzzo e Almeida chamaram de “ajuste privado”, cujo sucesso significou o comprometimento da situação financeira e patrimonial do Estado para a salvaguarda da riqueza privada (2002, p. 161). Se o ajuste implicou a diminuição do investimento, considerando a incapacidade do setor público, a insegurança relativa do setor privado diante da recessão, e a disponibilidade da opção segura da preservação patrimonial por meio da moeda indexada, ele impediu que houvesse uma fuga de capitais ou a busca do refúgio no dólar. O custo foi a admissão de um grau acentuado de inflação. A conjuntura favorável dos anos de 1984 e 1985, quando o saldo de exportações permitiu ao Brasil um ajuste externo imediato, mostrou que o problema da inflação inercial resultante da indexação não teria fácil solução. E várias fórmulas seriam tentadas a partir de então. Foram 15 anos de inflação alta, chegando ao pico de mais de 80% ao mês, em 1989. A conta deve ser feita ao mês porque, de fato, este era o período de perda do valor de um preço importante da economia, o salário. Os 1782% de inflação anual do ano de 1989 não podem ser usados para uma comparação descabida entre o fenômeno brasileiro e as hiperinflações históricas, como querem alguns manipuladores da nossa memória. A economia brasileira tinha todos os preços e contratos indexados, inclusive os salários. Em muitos casos, na empresa privada, os vencimentos eram pagos quinzenalmente no período da mais alta inflação, entre 1987 e 1990. Eu tenho perfeita recordação deste período, quando entrei no mercado de trabalho, no ano de 1986. Meu primeiro emprego foi no comércio durante o congelamento do Plano Cruzado. As vendas eram ótimas, os preços estáveis
e a empresa pagava os funcionários no dia 5 de cada mês, mas liberava 40% de adiantamento no dia 20. Era uma prática comum. O Plano Cruzado, a primeira tentativa de debelar a inflação, se esgotou com os problemas de abastecimento, a cobrança de ágio em todos os preços e a explosão das importações para abastecer o mercado. A inflação voltou com rapidez e todos os salários eram indexados e reajustados conforme acordos setoriais ou por dispositivos legais. Essa advertência sobre a natureza do processo inflacionário brasileiro é importante, porque, diferentemente de outros processos históricos, foi construída uma engenharia financeira que permitiu que a parte bancarizada da sociedade tivesse proteção e os salários também – sobretudo a partir da criação do dispositivo do gatilho salarial, em julho de 1987. A proteção ao salário era menor porque, afinal, havia um mês inteiro antes da aplicação do próximo reajuste, enquanto nas contas bancárias, os valores eram atualizados diariamente. Em consequência, nos períodos de maior inflação era preciso receber o salário e ir às compras para transformar o dinheiro em mercadorias que já teriam preço majorado nos dias, ou até horas, seguintes. O problema maior para os trabalhadores assalariados era o fato de que o padrão salarial brasileiro era baixíssimo. Mas este era um fenômeno anterior à inflação do final dos anos de 1970. No período da ditadura militar, houve uma política deliberada de arrocho salarial em favor da garantia das margens de lucro do empresariado que devia fazer parte do grande projeto de desenvolvimento. Portanto, entramos no período inflacionário com pouca gordura para ser queimada nos salários. Não parece razoável, portanto, comparar a desordem inflacionária do Brasil dos anos 1980 com as inflações clássicas da Áustria ou da Alemanha após a Primeira Guerra Mundial. Nos dois países, a perda do valor da moeda significou o derretimento de toda a poupança da classe média, na medida em que a remuneração das reservas se dava unicamente pelo valor dos juros da dívida pública, sem qualquer mecanismo comparável à correção monetária no Brasil. Aqui, esses dispositivos atualizaram o valor da moeda financeira diariamente, em aplicações de over night, de sorte que não era sequer preciso manter o dinheiro em poupança para obter remuneração ao mês. No auge do desequilíbrio inflacionário, a competição entre os bancos pela moeda de troca circulante criou a conta remunerada, outro mecanismo de atualização de quaisquer valores em conta corrente ao dia. Uma originalidade brasileira que certamente explica o convívio da população com a inflação sem que houvesse mudanças nas estruturas sociais e no patrimônio das famílias. Mas é claro que a inflação em patamares elevados como os dos anos 1980 era indesejável sob diversos pontos de vista. Além das incertezas que o estrangulamento das finanças públicas provocou, no sentido da manutenção de investimentos e subsídios, a renda financeira do capital permitiu aos agentes privados um recuo da aposta nos investimentos produtivos. O crédito também se tornou uma impossibilidade prática, pois ele só poderia existir na forma pós-fixada, o que era um risco para agentes empresariais e para os consumidores.
O descontrole inflacionário, portanto, era uma anomalia que devia ser corrigida. Essa se tornou a agenda política principal e, desde então, o desenvolvimento e seus desafios deixaram de fazer parte dos projetos políticos de curto ou longo prazo, saindo definitivamente da pauta e do discurso público. No curto prazo, inflação e gasto público – ou ajuste fiscal – passaram a predominar como objetivos de política econômica. Para o longo prazo, o conceito era crescimento, que pouco tinha a ver com desenvolvimento em sentido amplo. O crescimento pode se dar nas áreas exportadoras do agronegócio ou nos serviços internacionalizados, sem que signifique benefícios para a sociedade, plataformas tecnológicas próprias, e autonomia dos mecanismos de políticas econômicas. Nós vivemos, no início do século XXI, uma década de crescimento com desindustrialização, por exemplo. E como vimos demonstrando, perdemos o vínculo com nosso projeto histórico de desenvolvimento nacional. Um elemento fundamental dessa mudança da estrutura do projeto e do discurso da política econômica é o receituário do FMI, repetido como doutrina de ajustamento das economias endividadas. Após a crise da dívida, o FMI desempenhou autoritariamente o papel que lhe cabia desde a sua criação em Bretton Woods, em 1944. A Conferência criou um sistema de regras de política econômica mundial, visando salvaguardar a estabilidade e a sustentabilidade dos mercados, sob a liderança dos Estados Unidos (Schwartz, 2008). O conceito por trás da constituição de uma estrutura institucional de regulação do sistema global era a crença no capitalismo de livre comércio e na sua eficácia econômica desde que protegido dos efeitos de crises conjunturais, depressões ou instabilidades localizadas. Em Bretton Woods, foram criados mecanismos de regulação do sistema internacional de trocas baseados em três fundamentos. O primeiro foi o sistema monetário ou a moeda internacional, o padrão dólar/ouro e a conversibilidade das demais moedas. O segundo foi a criação do Banco Internacional para a Reconstrução e Desenvolvimento (Bird), o instrumento de financiamento da reconstrução do pós-guerra e do desenvolvimento das diversas economias, um mecanismo de planejamento de investimentos que foi instrumento importante de política econômica do sistema. O terceiro foi o FMI, cuja finalidade era o monitoramento dos diferentes sistemas monetários e o socorro a países em momentos de crises sistêmicas ou específicas, o que incluía a participação na restauração de mecanismos econômicos estáveis por meio da aplicação de reformas exigidas como contrapartida aos empréstimos – as chamadas condicionalidades. Nos primeiros anos após o início de sua operação, o FMI cumpriu papel pequeno na estrutura de regulação internacional. Entretanto, todo o sistema entraria em crise quando os Estados Unidos abandonaram o padrão ouro unilateralmente em 1971. O que se seguiu foi um processo acelerado da financeirização do capital, ativado pela liquidez e pela crise do petróleo, que, por sua vez, permitiu a reciclagem do capital financeiro em razão do endividamento das economias não produtoras e de países em desenvolvimento. A financeirização expressa também a ruptura das expectativas do capital, ou da confiança, diante da ruptura do sistema de regulação.
Os anos 1970 são anos de estagnação, aliás, de estagflação. Nesse cenário, o FMI começa a cumprir um papel cada vez maior no financiamento de economias endividadas. A crise da dívida ampliaria muito a sua atuação, marcada sempre por intervenções pró-cíclicas, preconizando ajustes fiscais e restrições monetárias e creditícias, alimentando, em consequência, o ciclo recessivo inaugurado com a subida das taxas de juros internacionais em 1979. Esse receituário contribuiu para a depressão dos mercados internos na América Latina, pois significou a transferência externa líquida de capitais das economias nacionais que cresceram apenas nos setores exportadores, atrasando ainda mais seu desenvolvimento. Ou seja, os ajustes impediam a realização de investimentos novos que pudessem compensar as despesas financeiras no médio e longo prazo, e as economias estagnaram. E, ainda assim, os cortes de gastos não eram suficientes para criar um equilíbrio entre a arrecadação e as despesas do Estado, que se endividou internamente, como vimos mostrando. No caso da economia brasileira, em síntese, havia dois fenômenos altamente inflacionários em ação. O primeiro, comum aos demais países da região, foram as desvalorizações cambiais determinadas pelo esforço de exportação das economias nacionais. O segundo foi a proteção ao capital privado dada pela criação da moeda financeira ou da indexação total dos contratos à custa da dívida pública. Ambos estão referidos à condição sistêmica de estrangulamento externo, ou seja, não têm qualquer relação com gestão nacional de recursos ou escolhas políticas equivocadas, por mais que elas de fato sejam uma marca das sociedades dependentes da América Latina. É importante destacar essa questão porque o sistema financeiro internacional atuou na reciclagem do capital via dívida e o FMI garantiu, por meio da coordenação de acordos de refinanciamentos, o interesse dos bancos e o dreno de US$ 99 bilhões líquidos da América Latina entre 1982 e 1987 (García, 1989). Não faz sentido que brasileiros e demais latino-americanos assumam a retórica externa ou das corporações de que o atraso, o endividamento e a dependência são responsabilidade de elites corruptas e ineptas, e que os povos estão fadados à miséria por incompetência e irresponsabilidade dessas elites. De fato, há elites corruptas e irresponsáveis, sobretudo entre aquelas que incorporam a lógica de espoliação dos mercados externos, assumindo responsabilidades que favorecem a predação de nossas riquezas e, principalmente, manipulando as opiniões e a memória da sociedade. Esses segmentos da elite nacional se beneficiam do atraso e da dependência e, quando hegemônicos, são de fato responsáveis pelo atraso e pelos retrocessos humanos. Mas a história do século XX é a demonstração de que há construções possíveis fora do alinhamento às determinações sistêmicas do centro capitalista e, sobretudo, de que há setores das elites econômicas, políticas e intelectuais dispostos a criar alternativas ao desenvolvimento nacional com base em novas relações multipolares do sistema internacional. Nos ajustes dos anos de 1980, houve ensaios de heterodoxia e tentativas de formular com autonomia soluções para as instabilidades macroeconômicas, tanto no Brasil, quanto na Argentina e no Peru. Todas as tentativas acabavam fracassando em razão do estrangulamento externo. Ensaiaram-se rupturas breves, moratórias, mas o sistema de bancos internacionais
manteve o controle da situação até que o FED criou uma estratégia de refinanciamento das dívidas, o Plano Brady. Foi somente então que a América Latina voltou a receber financiamentos novos e as inflações foram controladas por meio de programas baseados na ancoragem cambial. Não foi mágica dos economistas da PUC-RJ. Foi, da mesma forma que todo o processo, uma reestruturação sistêmica de passivos e da demanda de importação para a indústria americana, com um custo elevadíssimo para as economias nacionais. A âncora cambial derrubou as exportações e os saldos comerciais, gerando déficits permanentes e a dependência da entrada de capitais externos que eram atraídos por altas taxas de juros (dívida pública) e por privatizações de ativos produtivos nacionais. Uma tragédia! Para completar, não recuperamos o pensamento estratégico de Estado sobre o desenvolvimento e sobre as formas e interesses de nossa inserção no mundo globalizado. A reestruturação promovida a partir de 1989 baseou-se na diminuição do Estado e de suas atribuições. E aqueles que assimilaram os discursos reformistas não se deram conta de que a redução do papel econômico do Estado é, da mesma forma, a redução do poder político, da capacidade de coordenar decisões e projetos de futuro. As ditaduras militares e os movimentos pela democratização são parte da explicação sobre as interpretações que responsabilizaram as elites incompetentes e irresponsáveis pela crise, que seria resultado da má condução das finanças públicas, e não do caráter sistêmico da drenagem de recursos a que a América Latina esteve submetida. Essas explicações podiam até fazer sentido nos casos como o da ditadura argentina, em que a política econômica foi de ajuste fiscal, abertura de mercado, internacionalização financeira e concentração do capital industrial, e, portanto, objeto de descontentamento antes da crise da dívida (Ayerbe, 1998). Os anos recessivos de 1981-1983 enterraram as ditaduras do Cone Sul, desmoralizadas pela crise econômica e seus efeitos sociais, e pelas denúncias dos crimes contra a humanidade. No caso argentino, a desmoralização final contou ainda com a dramática derrota na Guerra das Malvinas, uma aposta final da ditadura na mobilização nacional contra o inimigo externo. A derrota acrescentou muita instabilidade monetária ao cenário recessivo, aumentando o drama inflacionário com a desvalorização rápida da moeda, e a dolarização como prática do cotidiano. Uma invasão de turistas dispostos a comprar tudo o que fosse possível carregar na viagem de volta era o cenário argentino. Em maio de 1982, as lojas da Calle Florida pareciam estar em queima total de estoques. Seus vendedores reportavam que havia brasileiros dormindo com suas malas nas ruas por falta de hotéis. Não posso comprovar essa história, mas de fato havia uma quantidade fabulosa de brasileiros. Lá encontrei um colega de escola que eu não via há anos, embora morássemos na mesma cidade, em Niterói. Brasileiros ocupavam Buenos Aires. Eu me recordo que comprei uma blusa rosa que custava incríveis 4.000.000 de pesos locais, que equivaliam a algumas dezenas de dólares. A quantidade de zeros nas etiquetas exibidas nas vitrines era espetacular e assustadora.
Todos os preços eram exibidos em pesos e em dólares. Foi minha primeira experiência do descontrole inflacionário. O Brasil não tinha chegado a esse ponto em 1982. Raúl Alfonsín, candidato da União Cívica Radical, venceu as eleições argentinas de 1983 com 52% dos votos e assumiu a presidência em 10 de dezembro de 1983. A agenda argentina era pesada. Seus compromissos incluíam a punição dos crimes da ditadura, os direitos da massa trabalhadora e a realização de negociações da dívida externa a fim de superar as instabilidades e incertezas econômicas. Alfonsín afirmou, em seu primeiro discurso, a determinação de manter relações independentes com a potência norte-americana e de estreitar relações com a América Latina. Com o tempo, as relações com os Estado Unidos se tornaram predominantes, o que não o impediu de tentar negociar as dívidas de maneira soberana. De início, colocou em prática um plano para controlar os principais preços da economia, promovendo aumento de salário e de tarifas, fixação de câmbio para o primeiro mês, redução de juros e alterações do orçamento para prover fundos direcionados a programas alimentares e de educação. Mas a tentativa de controlar a inflação esbarrou em obstáculos e pressões políticas de setores monopolistas. O déficit fiscal aumentava pelo atraso da arrecadação de impostos e pelas dificuldades na negociação da dívida externa. Os bancos internacionais recusaram negociações e o governo argentino precisou recorrer ao empréstimo Stand By com o FMI, submetendo-se a uma carta de intenções e ao ajuste fiscal que teria impactos negativos na recuperação do PIB (Rapoport, 2010). No início do governo, a estratégia era não recorrer ao FMI ou a novos empréstimos e apostar na ativação da capacidade do mercado interno com aumento real de salários para estimular investimentos e criar um ciclo virtuoso. O projeto foi frustrado em razão da resposta insuficiente do capital privado, forçando Alfonsín a mudar de rota e recorrer a negociações da dívida via FMI. As condicionalidades impostas foram a conhecida receita de diminuição dos salários, corte de gastos e aumento de juros. A inflação permaneceu em alta uma vez que as empresas ajustavam seus preços de acordo com as expectativas de aumentos generalizados na economia. O descontrole permanecia e houve um aumento do endividamento depois do refinanciamento dos débitos de 1982, 1983, 1984 e 1985. Os resultados apareceram nas parcelas de 1985, que impediram os investimentos produtivos e sociais. Não havia recursos para os gastos básicos (Ayerbe, 1998). Depois de quinze meses de governo, o ministro da Economia caiu e se iniciou a fase do Plano Austral. Em junho de 1985, Alfonsín declarou uma “economia de guerra”, com corte de todos os investimentos públicos, congelamento da contratação de servidores, aumento de tarifas e combustíveis e privatizações. Em seguida, anunciou por decreto de necessidade e urgência o Plano Austral. A nova moeda teve três zeros cortados, equivalendo a 1.000 pesos e 15% de desvalorização cambial. Congelaram-se salários, preços e tarifas públicas e criou-se uma regulação estreita das taxas de juros para depósitos e para empréstimos. Além do controle da inflação, o plano visava à redução do déficit público de 11% do PIB estimados para 4% até o fim do ano. O
resultado imediato do choque foi positivo, com elevação de exportações, o aumento da liquidação de divisas em benefício das reservas do Banco Central, o crescimento da arrecadação de impostos e tarifas e a queda da inflação para 2% ao mês (Rapoport, 2010). Uma das fragilidades do programa foi a ausência de mecanismos de estímulo a investimentos, necessários na falta de inversões do Estado. Quando o plano entrou na sua segunda fase, voltada à recuperação econômica, a linha fundamental era a privatização do crescimento. Com poucos resultados e queda nas exportações no biênio 1986-1987, a Argentina recorreu outra vez ao FMI e negociou novo empréstimo em 1987. A economia melhorou, com a elevação do PIB e a diminuição do déficit público, mas a inflação, embora menor, ainda era elevada, de 81% em 1987. O estrangulamento se dava no setor externo. A queda dos preços internacionais, com impactos sobre as exportações, levou a Argentina a atrasar pagamentos da dívida outra vez em 1988. O governo argentino tentava segurar o choque externo preservando o nível de atividade e a renda do setor privado, mas isto se fazia à custa do déficit público. As tentativas de combatê-lo com reforma tributária, diminuição de subsídios e preparação para uma reforma patrimonial do Estado via privatização, encontravam resistência no movimento sindical e na oposição peronista, que cresceu como força política. A derrota contra o déficit significou a subida da inflação, que atingiu o patamar de 20% ao mês no fim de 1987. No ano seguinte, o peronismo ganharia as eleições, e herdaria o problema inflacionário. A história da inflação argentina, como a do Brasil, é visceralmente relacionada ao choque da dívida da década de 1980 e ao desequilíbrio fiscal dela decorrente. Da mesma forma, a saída para a estabilização da moeda, depois de tentativas fracassadas de controle, se deu como parte de um ajuste do sistema financeiro, que reincorporou os países da América Latina ao circuito de financiamentos, transformando o mecanismo de exportação de riquezas, internacionalizando as economias e internalizando as dívidas. Fórmulas novas que levaram a Argentina ao desastre de 2001 e o Brasil à insolvência e ao maior acordo da história do FMI em 2002. Antes do processo de reestruturação das dívidas da América Latina, também no Brasil o governo militar acabou desmoralizado pela crise econômica. Recusando-se a negociar em bloco, o Brasil, com a economia mais poderosa da região e, portanto, o devedor mais ameaçador para o balanço e solvência dos bancos, submeteu-se à extorsão unilateral provocada com o aumento dos juros. É provável que a expectativa fosse de uma estabilização após um ciclo rápido de crise, o que não se confirmou, com a agonia estendendo-se ao longo de toda a década e provocando a queda do produto per capita. Os três grandes devedores – México, Brasil e Argentina – poderiam, juntos, alterar os termos das negociações, exercendo a pressão da ameaça, como parece ter sido a intenção da declaração de moratória do México. Em 1983, a dívida do México era de US$ 86 bilhões, a do Brasil era de US$ 81,3 bilhões e a da Argentina de US$ 45 bilhões; nos cinco anos seguintes, o México pagou U$ 92 bilhões, o Brasil US$ 54,5 bilhões e a Argentina US$ 8 bilhões, mas em 1988 as dívidas atingiam US$ 115,5 bilhões, US$ 114,9 bilhões e US$ 58,3 bilhões, respectivamente. Não há mecanismo de ajuste
fiscal capaz de dar conta desse dreno de recursos que, segundo Alan García, foi da ordem de 5% do produto ao ano em média. O que aconteceu no Brasil após o período agudo do choque externo, entre os anos 1980-83, foi um ajuste “frouxo” do ponto de vista fiscal, e, por isso mesmo, inflacionário, mas esta foi a fórmula para evitar a fuga de capitais e garantir um crescimento mediano diante do estrangulamento que persistiu, com aumento da dívida e sem novos créditos até a década seguinte. Nesse sentido, os mecanismos de endividamento interno e atualização monetária que indexaram a economia foram a fórmula possível de evitar uma profunda depressão. Naquele contexto, a inflação que já era alta na segunda metade da década de 1970, em razão do primeiro choque do petróleo, com uma média anual de 45,6%, subiu para o patamar de 141,7% entre 1980 e 1984 e atingiu a média de 471,7% entre 1985 e 1989, com queda pronunciada no ano de 1986, o ano do Plano Cruzado (Munhoz, 1997). O início do período democrático no Brasil foi de desafios e de expectativas cuja realização era impossível, considerando o estrangulamento econômico. As perdas salariais que oprimiam as camadas mais pobres incidiam sobre padrões muito baixos de remuneração. A ditadura militar promovera o arrocho dos salários a fim de permitir que a massa de lucros fosse suficiente para fazer frente aos investimentos necessários para o cumprimento do II PND. No biênio final do governo militar (1983-1984), diante da moratória de fato e das negociações que se seguiram com o FMI, bem como da aceleração da inflação, o governo promoveu um ajuste tremendamente recessivo. Com o objetivo de reduzir à metade a expectativa de inflação, cerca de 24% do orçamento foram esterilizados, transferidos do Tesouro para cobrir as operações da Autoridade Monetária. Era de um corte brutal que não deixava qualquer margem de gasto ao governo, levando a oposição a protestar contra o drama social provocado pelo ajuste (Macarini, 2009). Havia urgência na elevação dos salários, no aumento da oferta de serviços públicos e dos gastos governamentais. E a expectativa de muitos segmentos progressistas da sociedade era de que essa agenda social fosse consolidada na forma de direitos, o que a Constituição de 1988 consagraria com a criação da Seguridade Social, um capítulo que universalizou direitos básicos à proteção social e à saúde. As forças políticas que defendiam a agenda social afirmavam que o trabalhador brasileiro não podia mais esperar “o bolo crescer” para ser distribuído – o que foi a retórica do período militar. O bolo, afinal, já havia crescido, o Brasil se industrializara, a infraestrutura era exuberante e a crise passaria, cedo ou tarde. Enquanto governos e parlamentos discutiam, sob a lógica da urgência, o equacionamento de pagamentos externos a cada ano, ou o tratamento da questão inflacionária, enterrando, entre nós, o planejamento estratégico sobre o desenvolvimento, o sistema internacional passava por profundas transformações. A financeirização e a alta competitividade das economias nacionais e de seus oligopólios empresariais – incluindo os de novos atores asiáticos na disputa comercial – deixaram a economia brasileira para trás. O primeiro presidente civil do Brasil, José Sarney, era um homem da ditadura. Não havia sido eleito, nem direta, nem indiretamente. Era o vice-
presidente na chapa de Tancredo Neves, eleito pelo Colégio Eleitoral, que viria a falecer antes de assumir o cargo. Embora não tivesse compromissos diretos com as expectativas da democratização, o presidente do acaso tinha compromisso com as forças progressistas agrupadas no maior partido de então, o PMDB. Em 1985, ao assumir o governo, a inflação rodou em 235% ao ano , ⁸ com tendência de alta, e logo se tornou a questão mais importante e imediata a ser enfrentada. O Plano Austral era um modelo da intervenção possível na regulação de preços, compatibilizada com os compromissos sociais fundamentais e sem perder de vista o objetivo do crescimento. Essa foi a orientação do presidente José Sarney e de sua equipe do Ministério da Fazenda, sob o comando de Dilson Funaro. O plano deveria estabelecer controle de preços e não podia ser recessivo. Os protagonistas do primeiro governo civil haviam feito cerrada oposição ao ajuste econômico dos anos finais da ditadura e estabeleceram o consenso de que as negociações com o FMI não podiam se dar nos termos de então. Não seriam aceitáveis exigências com impactos recessivos. O povo estava submetido a sacrifícios e não havia mais “gordura para queimar”. A aposta, portanto, era no aumento real de salários, na dinamização do mercado interno e no crescimento como caminho para ampliar a capacidade do Estado diante de seus gargalos. Ademais, as seis cartas de intenções assinadas com o FMI e descumpridas sistematicamente, apesar do agudo ajuste promovido, mostravam que o caminho recessivo não era solução viável para o problema inflacionário. A ruptura com o ajuste do governo militar representava, também, a afirmação do novo regime e de suas lideranças contra a ditadura, agora também identificada com o fracasso da política econômica. Havia controvérsias entre economistas e tecnocratas que ocuparam postos no novo governo. A composição política que permitiu a transição democrática foi um arranjo em que progressistas contrários às políticas recessivas do FMI repartiram o poder com representantes da ortodoxia e da continuidade. Mas a conjuntura favorável das exportações e de extraordinários saldos na balança permitiu que Sarney se sentisse livre para realizar a política econômica desenhada pelos economistas do PMDB. As reservas deram fôlego ao governo, que nos dois primeiros anos garantiu os pagamentos externos sem precisar recorrer a novos empréstimos e acordos de ajustes com o FMI. Esse intervalo do estrangulamento externo foi o suficiente para uma recuperação da produção que havia sido vítima da recessão dos três anos anteriores. Em 1985, o PIB cresceu 7,8%, com 8,3% da indústria, e a massa salarial foi impulsionada pela expansão do emprego e pelo aumento real dos salários (Macarini, 2009). A conjuntura e a composição do governo permitiriam alguns saltos, tanto de gastos públicos, quanto na execução de um plano de intervenção nos preços e na indexação da moeda financeira para conter a inflação. Na Secretaria de Planejamento (Seplan), João Sayad, quadro do PMDB, era crítico da política econômica recessiva, favorável aos gastos nas áreas sociais e à intervenção nas estruturas de reprodução da inflação inercial. Na Fazenda, a substituição do ministro Francisco Dornelles, indicado por Tancredo, por Dilson Funaro, marcou a virada na visão de política econômica, com a decisão de não mais buscar acordos com o FMI.
Com Funaro, a presidência e a diretoria do Banco Central passaram às mãos de novos economistas, enquanto os cargos de assessoria do Ministério da Fazenda foram ocupados por economistas da Unicamp ligados ao programa econômico do PMDB. Uma vez que Sarney chegara ao governo por acaso, não era do PMDB e não tinha qualquer compromisso ou visão específica de política econômica anteriormente amadurecida, os meses iniciais de seu governo foram de austeridade com controle de preços e mudanças na indexação de títulos que provocaram novas instabilidades e a explosão da inflação represada já nos meses de julho e agosto (Macarini, 2009). Foi neste contexto que se consolidou a política econômica da antiga oposição, não sem divergências internas, sobretudo no que dizia respeito ao combate à inflação, que se transformou em agenda principal de governo. O ajuste feito pela equipe do governo Sarney, ainda em 1985, teve por opção priorizar o corte de juros para manter o equilíbrio fiscal. Apenas 10% do ajuste eram corte de despesas correntes. Propuseram-se mudanças no imposto de renda para aumentar a arrecadação e diminuir as perdas financeiras entre a cobrança, a arrecadação e a devolução. Mantinha-se o compromisso com o aumento dos gastos sociais. No plano da burocracia, a conta movimento, que ligava diretamente o Banco do Brasil e o Banco Central, permitindo a compensação dos montantes de investimentos e subsídios, foi extinta e criou-se a Secretaria do Tesouro Nacional, responsável pelo gasto orçamentário (Leitão, 2011). Como vimos, o mercado de títulos não era apenas o instrumento financeiro de poupadores e especuladores, mas o refúgio de segurança das empresas em geral, de sorte que intervenções na estrutura do mercado de títulos indexados implicava impor perdas aos setores produtivos, que podiam compensar a lucratividade nos preços. Além dessa possibilidade, o choque de oferta de alimentos provocado pela seca do período levou a um aumento vigoroso da inflação nos primeiros meses de 1986. A projeção era de que chegaria ao patamar dos 400% ao ano. Os sindicatos passaram a cobrar que se estabelecesse a trimestralidade dos reajustes salariais e a base do governo estava desencantada, cobrando medidas mais eficazes. Nessa conjuntura, o Plano Cruzado foi encomendado à equipe econômica, com urgência, e preservando o objetivo de evitar políticas recessivas. O presidente queria preservar o crescimento em 1986. Havia grandes incertezas entre os criadores do Plano. Nem todos eram favoráveis a intervenções como congelamento, mas a deterioração da moeda acabou tornando a medida um imperativo. Parte dos economistas queria aplicar as teorias que conhecia para que o congelamento de preços fosse sustentável, mas elas não eram compatíveis com a razão política, que desejava preservar o crescimento e promover distribuição da riqueza em um grande programa que não ignorasse o passivo social do Brasil. Criado pelo Decreto Lei n. 2283 de 28/02/1986, o Plano Cruzado incluiu uma reforma monetária, o congelamento de preços e o reajuste dos salários com ganho real de 8%, sendo de 15% o percentual de aumento real do salário mínimo. Mas não foi feito um reajuste prévio de preços desalinhados e, o mais grave, das tarifas defasadas das estatais, que vinham subsidiando o crescimento e assumindo as dívidas do sistema privado por este mecanismo,
como foi mostrado no capítulo anterior. O custo econômico da fragilização das estatais seria cobrado adiante, com a impossibilidade da realização dos investimentos necessários para garantir o crescimento de todos os demais setores da economia em tempos de expansão fabulosa do consumo. Um exemplo muito lembrado pelos brasileiros é o da inexistência de linhas telefônicas, porque os programas de expansão da rede eram insuficientes para satisfazer a demanda. O ganho salarial foi significativo, não apenas pelo aumento real, mas também pela manutenção das tarifas públicas e pela fórmula de reajuste de aluguéis e contratos de financiamentos imobiliários, que expurgava a inflação. Todos esses eram itens de grande impacto na inflação que atingia os trabalhadores. O congelamento não abrangeu os salários, como ocorrera no plano argentino. Eles continuavam a ter previsão de reajustes de 60% do Índice de Preços ao Consumidor (IPC), acumulado e data-base de negociação. Além disso, foi adicionado ao pacote o gatilho salarial, um mecanismo de atualização que previa reajuste sempre que a inflação acumulada atingisse os 20%. O governo acabou com as ORTNs, que foram transformadas em OTNs, com valor fixo por uma ano e indexação apenas para contratos superiores a esse prazo. As autoridades econômicas anunciavam que se tratava do fim da correção monetária. Mas o FGTS, PIS-Pasep e a caderneta de poupança continuavam a ter indexação. Os contratos pré-fixados tiveram seus valores reais calculados por uma tabela de conversão (tablita), arbitrando-se o fator de redução de 14,63% a.m. ou 0,45% a.d. O câmbio não sofreu congelamento, mas permaneceria inalterado até o mês de outubro (Macarini, 2009). Com benefícios para a população em geral – dos trabalhadores às classes médias, aos empresários e produtores –, o Plano Cruzado teve amplo apoio social e pode ser considerado um momento de reencontro da sociedade com o seu governo, um período de confiança e de otimismo. E tudo isso apesar da obscuridade do presidente José Sarney, que chegara ao poder ao acaso. O ganho da massa salarial resultou imediatamente numa ampliação de 20% do consumo. A recuperação econômica dos anos de 1984 e 1985 ganhou força e parecia haver condições para a reativação do crescimento com novos investimentos dos setores produtivos privados. Segundo Macarini, a indústria de bens de capital cresceu 21,9% e as importações deram um salto de US$ 1.094 milhões para U$ 1.468 milhões somente em 1986 (2009). Entretanto, havia o nó da infraestrutura ditado pela asfixia financeira das estatais. O país não podia crescer no ritmo da demanda interna.
O governo procurou responder ao problema com a criação, em julho, do Fundo Nacional de Desenvolvimento (FND) para financiamento das estatais. Os recursos principais viriam de empréstimos compulsórios sobre combustíveis e automóveis. Além disso, o governo esperava que houvesse a diminuição dos montantes das transferências externas para poder incorporar as dívidas das estatais, permitindo que elas pudessem investir sem proceder à atualização das tarifas. Mas esse cenário não se configurou, ao contrário, a situação das contas externas se deteriorou com o passar daquele ano, e se tornaria gravíssima no ano seguinte, quando o Brasil declarou a moratória da dívida (Salomão, 2016). Diante das dificuldades surgidas a partir do segundo semestre, o grande capital não realizou novos investimentos. Ficou em compasso de espera, como em todos os tempos de incertezas. É importante perceber como a atuação do Estado é estruturante para a decisão de investimento do setor privado, mas nos anos 1980 os governos tinham pouca energia para mobilizar. A América Latina respirava por aparelhos, fazendo um esforço imenso para transferir recursos líquidos para fora e sem conseguir manter a vida em ordem. E o novo ciclo expansivo não aconteceu. A combinação de demanda excitada com a limitada capacidade de expansão produtiva resultou no desabastecimento de alguns produtos a partir dos meses de agosto e setembro, como a carne de boi. Também se tornou comum a cobrança de ágio e a maquiagem de preços, com lançamentos falsos de produtos supostamente novos. O Plano Cruzado exigia correções, mas as eleições estavam próximas e a orientação do governo foi confiscar o boi no pasto e esperar o fim do processo eleitoral. Diante da imobilidade do governo, o Banco Central atuou, aumentando as taxas de juros, num movimento iniciado em julho e mantido nos meses seguintes. A taxa do over subiu de 17% no mês de junho, para 26% em julho, e 33% em agosto. Promovendo uma alta generalizada. O CDB atingiu 40%, os empréstimos para empresas 60% e o crédito pessoal foi para o patamar de 70% a 75%, em média. O aumento dos juros não foi eficaz para conter a demanda e o mercado de créditos se expandiu até o final do ano, mostrando a disposição do consumo represado nos anos de recessão (Macarini, 2009). Mas a inflação do custo do crédito era um bloqueio a mais aos novos investimentos, que teriam de ser pagos por valores maiores, sem a possibilidade do repasse do custo aos preços. Um elemento a mais do desequilíbrio foi a inversão da balança comercial. As exportações caíram e as importações aumentaram, acompanhando o crescimento da demanda interna. Como a oferta de divisas era muito restrita desde a crise mexicana de 1982, o aumento de importações só podia ser financiado pelas reservas, o que culminaria na moratória da dívida externa em 20 de fevereiro de 1987. Tabela 4. Exportações, importações e saldo da balança comercial mensal em US$ milhões Fonte: Ipea. Ipeadata: base de dados macroeconômicos.
Combinaram-se, portanto, diversos desajustes, entre os quais destacam-se o ritmo insatisfatório de investimentos, incapaz de acompanhar o aumento da demanda interna, com o uso da capacidade plena de produção disponível, e o estado dramático de contas externas que expressavam o aumento de importações que o Brasil não tinha capacidade de pagar e que, por sua vez, promovia a expectativa de um ajuste cambial. As correções necessárias foram feitas apenas depois das eleições, no Cruzado II, quando os ajustes já não seriam capazes de solucionar os desequilíbrios e apenas pressionariam a inflação que já se escondia em mecanismos como o ágio. As mudanças ocorridas após o pleito fizeram o povo se sentir enganado. E a crise política se somou aos problemas econômicos que indicavam a insustentabilidade do plano que havia criado tantas expectativas positivas. Novos planos viriam, todos seriam recebidos com ceticismo. Um desgaste enorme conduziria a sociedade à descrença em relação ao Estado e à política. Isso abriria espaço para um personagem pequeno da dinâmica política nacional ascender na eleição seguinte, como um salvador (Fausto e Devoto, 2004). Também foi a condição para a assimilação de uma nova agenda de caráter liberal, que interpretava nossos fracassos como incompetência e atraso, traduzidos pelo modelo estatal – corrupto e patrimonialista – responsável por todos os nossos problemas. Uma manipulação cínica, no mínimo, baseada na ideologia neoliberal, que ganhou terreno a partir do fim dos anos 1980 com amplo patrocínio da grande mídia. O Cruzado II foi um tarifaço que tinha por objetivo transferir recursos do setor privado para o público, da ordem de 4,5% do PIB – o que era absolutamente necessário para evitar um colapso de serviços –, e reduzir o consumo. Além do aumento das tarifas das estatais, houve elevação do IPI de automóveis, bebidas e cigarros, e a redução dos subsídios do açúcar. Mas os acréscimos eram enormes: 60% nos combustíveis, 21% na energia, 80% nos automóveis (Macarini, 2009). O apoio ao plano acabou. A sociedade se sentiu enganada, certa de que o congelamento já não passava de um engodo eleitoral, afinal os produtos já vinham sendo adquiridos com ágio. Havia uma indisposição contra os empresários, como os pecuaristas que haviam retido o boi no pasto, e uma desconfiança em relação à real disposição do governo de enfrentá-los. Todas as narrativas giraram muito tempo em torno disso. Era como se a inflação fosse a tradução da leniência do governo com empresários predadores. Havia, nesse sentido, uma clara percepção da natureza empresarial como uma dinâmica de apostas contra o congelamento com a única finalidade de maximizar os lucros. A responsabilidade, no entanto, era do governo, que havia criado, junto com o decreto do plano, um compromisso com a sociedade. E, nos meses finais do ano de 1986, parecia claro que não podia cumpri-lo. As avaliações eram as piores possíveis. Ou tratava-se de um governo fraco, incapaz de fazer valer o poder do Estado frente aos interesses dos segmentos privilegiados, ou de um governo associado a eles. Segundo as análises mais sofisticadas, o governo era incompetente, pois preparou um programa sem possibilidades de realização, seja pela avaliação equivocada das condições, seja pela incapacidade da gestão da implementação. Em todos os casos, a avaliação era um desastre político. O
Plano Cruzado reuniu a sociedade no esforço de controlar os preços, criou expectativas de crescimento da renda, enfim, mobilizou as esperanças dos brasileiros. E, no entanto, acabou como uma frustração generalizada. O elemento mais relevante desse sentimento foi a percepção da manipulação pragmática dessas esperanças pelo jogo eleitoral e de poder. A confiança no governo ruiu ali. Logo, começaram a surgir os argumentos mais interesseiros dos setores conservadores que procuram se prevenir por meio da mídia dos aumentos de impostos. Eles acusavam o governo de descontrole de gastos, apontando o déficit fiscal como problema central, sem discutir a natureza do gasto público, seu impacto na distribuição da renda ou qualquer argumento honesto sobre esse tema. Essa história nós conhecemos bem. É a mesma de hoje. A inflação dos anos 1980 criou no Brasil uma retórica de desqualificação do gasto público. Hoje é um discurso de verdadeira criminalização. Paradoxalmente, ao mesmo tempo em que a população lutava ou acompanhava a luta por direitos e garantias na Constituinte, também era doutrinada pela grande imprensa de que o Estado não pode gastar. No fim dos anos 1980, a diminuição do Estado se tornaria a prescrição maior da modernização, com a condenação da experiência do Estado de bem-estar social nos países do centro do capitalismo. Na América Latina, entretanto, e no Brasil em particular, o bem-estar era apenas um sonho. Não havia direitos sociais universais. Ingressamos na era dos direitos da terceira geração tardiamente, e sob uma condição esquizofrênica. Queríamos escola e saúde de qualidade, segurança e sistema de seguridade social universal, mas fomos doutrinados a não querer pagar por esses direitos. E, é claro, nenhum governo é bom o suficiente. Depois dessa experiência inicial da Nova República, não se ouviu mais falar do imperativo de não sacrificar o crescimento aos acordos com o FMI ou da necessidade do aumento real de salários e da distribuição da renda. O último suspiro da ala progressista do PMDB na Fazenda foi a decretação da moratória em fevereiro de 1987 em meio à insolvência do país e à decisão de não buscar o FMI. Depois disso, pressionado interna e externamente, Sarney mudou o rumo e o ministro Dilson Funaro foi substituído. Acabava não apenas o Plano Cruzado, mas também a perspectiva de uma agenda minimamente progressista no Brasil até 2003 quando da ascensão do presidente Lula. Luiz Carlos Bresser Pereira, que se manifestara contrário à moratória, ocupou a pasta da Fazenda em abril de 1987. Não havia mais congelamento. Depois do Cruzado II, os preços foram realinhados e a inflação, que havia sido contida formalmente até outubro, voltou a subir. O índice chegaria a 20% em abril. A partir daí o gatilho salarial disparou sucessivas vezes e colocou em marcha a espiral preço/salário. Observou-se uma rápida reindexação, e os empresários se insurgiram, acabando com o congelamento. Para o novo ministro, a situação mais urgente era a da balança comercial negativa. Além disso, as contas externas exigiam a retomada das negociações com os credores. Sua iniciativa de propor a securitização da dívida foi rejeitada e, ao final do seu período à frente da
Fazenda, chegaria à conclusão de que de fato era preciso endurecer as negociações. As opiniões do novo ministro eram conhecidas dos agentes econômicos, o que elevou as incertezas e as expectativas com relação a um novo congelamento e à maxidesvalorização para a correção do câmbio. Nesse sentido, ampliaram-se as encomendas externas e as exportações foram seguradas. A remarcação de preços saltou nos meses de abril e maio. Depois de realinhar o câmbio e reintroduzir as minidesvalorizações diárias e de promover um reajuste dos combustíveis em 30%, Bresser tentou conter a inflação com regras de controles de reajustes. Mas as medidas não funcionaram e a deterioração dos salários, das finanças dos estados e a resistência da inflação levaram o governo a pressionar o ministro a intervir, o que não era sua disposição naquele momento. Bresser achava que era preciso um período de realinhamento dos preços, depois do qual um choque contra o caráter inercial da inflação seria eficiente. Mas naquele momento sua avaliação era de que havia uma inflação de demanda e não a reprodução inercial da inflação (Macarini, 2009). Em junho daquele ano, o ministro anunciaria o novo congelamento, o Plano Bresser. Haveria um congelamento dos preços por 90 dias, seguido por uma flexibilização para segmentos competitivos e controle para os monopolizados. Os salários de junho seriam corrigidos pelo gatilho e, em seguida, seriam igualmente congelados por 90 dias. A nova regra de correção a ser aplicada depois do congelamento era trimestral e baseada na média do índice de preços ao consumidor. O Plano Bresser preservou a indexação dos contratos em geral, inclusive do mercado financeiro. O objetivo era evitar a corrida aos ativos não financeiros como a que se deu após o Plano Cruzado. Para os contratos pré-fixados, havia um deflator de 0.467% a.d. Completavam o Plano Bresser uma desvalorização cambial de 9,5% (com a manutenção das minidesvalorizações diárias) e um reajuste de preços estruturalmente atrasados relacionados ao equilíbrio do setor público, como combustíveis, tarifas de serviços, minério de ferro, aço e tarifas portuárias. As medidas visaram frear a inflação por meio de um novo choque sem os “erros” que o ministro identificara no Plano Cruzado. Não havia ilusões sobre a permanência da inflação, que continuaria pressionada, de saída pelos reajustes de tarifas e, em seguida, pelas desvalorizações cambiais. A ideia, portanto, era disciplinar a inflação e alcançar a estabilidade em longo prazo, com um padrão em que desaparecessem os aumentos preventivos e os reajustes expressassem apenas repasses de custos reais da produção. A administração Bresser teria ainda três pilares: o primeiro era diminuir o déficit fiscal do governo, com a suspensão de projetos de obras públicas e a criação da Comissão de Coordenação Financeira, o segundo foi o controle da base monetária e da liquidez, e o terceiro foi a negociação da dívida externa para que fossem recuperadas as fontes de financiamentos que garantissem ao menos 60% dos pagamentos de juros em novos investimentos, condição sem a qual o Brasil permaneceria refém do estrangulamento do crescimento e da desordem das contas públicas.
A avaliação do ministro sobre a raiz dos desajustes da economia brasileira não deixa dúvida sobre a precariedade de qualquer plano interno de estabilização, uma vez mantidas as condições de transferência de riquezas líquidas aos credores. Obrigada a gerar enormes superávits comerciais para continuar servindo a dívida externa, em condições crescentemente desfavoráveis, a economia brasileira desorganizou-se internamente. Somadas ao aumento dos juros externos, duas maxidesvalorizações do cruzeiro, em 1979 e em 1983, alimentaram a aceleração da inflação e impuseram seus efeitos negativos sobre as finanças públicas; restrições às importações, em face da escassez de divisas, se associaram a taxas de crescimento negativas do produto interno, em parte como causas, em parte como efeitos da recessão. Enquanto o setor externo se ajustava, a economia via seu desequilíbrio interno se agravar, recaindo sobre o setor público a maior parte do ônus do ajustamento. Responsável pela maior parte da dívida externa, o setor público teve de aumentar o seu endividamento interno, à medida que se via obrigado a comprar com moeda nacional os bilhões de dólares gerados pelo setor exportador privado, com os quais o Governo pagava os juros referentes à sua dívida aos credores externos. Como consequência deste processo, os pagamentos sobre os encargos da dívida pública interna (exclusive correção monetária) que, em 1980, representavam apenas 0,7% do PIB, alcançaram 3,7% em 1985. (Bresser-Pereira, 1987, p. 10) O diagnóstico acima confirma a relação entre o estrangulamento externo, o déficit público com inflação e a queda de investimentos na década de 1980. Desconhecer os mecanismos do desajuste e atribuir o déficit público e o descontrole inflacionário à irresponsabilidade de governos corruptos e patrimonialistas é uma interpretação simplista que ignora os fatos. Interpretação muito provavelmente deliberada, para servir a um determinado grupo conservador de corporações que aposta na desmoralização do campo político como forma de exercer hegemonia por meio de chantagem midiática e do discurso moralizador. A posição periférica do Brasil e da América Latina no sistema mundial capitalista é sistematicamente ocultada no discurso público. Negligenciada como fenômeno que determina as possibilidades de ação da economia nacional, e que pode engendrar programas políticos de maior radicalidade, a condição periférica desaparece na grande imprensa. Por outro lado, a sistemática desqualificação do gasto público, tanto na forma de investimento produtivo quanto na forma de investimento social, é uma prática que se aprofundou nos últimos 30 anos não em razão da crise, mas de uma agressiva doutrinação neoliberal que preconiza um Estado mínimo em benefício da empresa privada e de suas estratégias de lucratividade, à custa de serviços e direitos sociais conquistados ao longo do século XX. No mínimo, essa doutrinação tem sido preventiva contra um aumento da tributação do capital e em favor da garantia de privilégios alcançados pelo segmento empresarial no Brasil.
Nos anos de 1980, o debate político incorporava os argumentos econômicos e internacionais. Havia uma enérgica oposição organizada nos novos partidos de esquerda, com lideranças como Lula e Brizola. Mesmo assim, a agenda da inflação, por um lado, e dos direitos sociais, por outro, se impôs ao senso comum, que costuma ser mobilizado por interesses imediatos. As recessões e choques dos inícios dos anos 1980, que determinaram arrocho e perdas salarias, aumentaram as demandas sociais. Em um cenário de instabilidades, tudo era urgência, e esse imediatismo cobrava um preço adicional à sociedade: a impossibilidade de conceber projetos permanentes e parâmetros estáveis a partir dos quais pudesse planejar o futuro desejável. O ministro Bresser Pereira tinha uma visão sistêmica do desajuste da economia brasileira. Por isso, compreendia que o ajuste seria necessariamente de longo prazo, pois dependia de uma redução do déficit público que, por sua vez, estava relacionado diretamente ao fluxo das transferências externas. Nesse sentido, projetou um cenário de ajuste que era incompatível com a agenda das urgências sociais e dos grupos políticos. Com o fracasso das negociações externas, mesmo após um superávit de US$ 11,1 bilhões, e o desgaste político do ministro, o ajuste se tornou inviável. O Plano Macroeconômico de Bresser implicava necessariamente a renegociação da dívida externa para destravar os financiamentos externos. Entre as pressões sobre o governo estavam as perdas salariais do início daquele ano. Durante os meses de congelamento, a inflação foi controlada, em 3% no mês de julho, e 6% na média em agosto e setembro. Mas logo no período de flexibilização, o aumento foi expressivo, e a tendência era de alta. Em outubro, o índice foi de 9,18%, em novembro, 12,8% e em dezembro, 14,14%. A imprensa falava em fracasso da estabilização (Macarini, 2009). Em outubro, o governo daria aumentos para militares e funcionários do Banco do Brasil, o que para Bresser era uma irresponsabilidade fiscal. Houve ainda tentativas de reforma tributária, pois era preciso controlar o déficit público, ou minimizá-lo nas condições da sangria internacional. Essa questão seria ajustada de forma definitiva pela Constituinte e Bresser não contou com apoio do governo para mexer no bolso dos mais ricos. O insucesso da iniciativa e a perda de apoio político do ministro determinaram sua demissão, em dezembro de 1987. O que se seguiu foi uma espiral inflacionária sob a política do novo ministro Maílson da Nóbrega, um ortodoxo. O índice de preços chegou a 1.037,6% em 1988. Em janeiro de 1989, houve mais uma tentativa de controlar os desequilíbrios. O Plano Verão continha um novo congelamento e o anúncio do corte de gastos públicos, incluindo extinção de ministérios e demissão de funcionários não concursados. O cruzado foi desvalorizado em 18% e foi criada uma nova moeda, o cruzado novo, que valia mil cruzados. O congelamento dos preços e do câmbio era por tempo indeterminado. Os preços das tarifas públicas foram reajustados, entre 14% e 35%. Pela primeira vez, os salários foram desindexados depois de uma correção pelo mecanismo da Unidade de Referência de Preços (URP), criado por Bresser. O objetivo anunciado era estimular a livre negociação entre empregados e patrões. Como se pode perceber, iniciava-se a conversão dos tecnocratas aos preceitos de mercado. A política monetária foi rígida, com taxas reais de juros chegando aos 14% no primeiro mês.
Nos primeiros meses, a inflação cedeu, voltando a subir, progressivamente, em seguida. Os primeiros reajustes de preços e salários começaram a ser concedidos já no mês de abril. Em maio, o ágio sobre o dólar chegaria a 200%. O Plano Verão não podia ser mantido no formato inicial. A taxa de câmbio passou a ser desvalorizada acompanhando o Índice Geral de Preços e os salários receberam um novo mecanismo de atualização de acordo com a faixa. Até três salários mínimos a atualização era mensal pela integralidade da inflação do mês anterior. Salários maiores tinham correção trimestral com fórmula de antecipações parciais mensais. Nos meses seguintes, até o fim do mandato do presidente José Sarney, a inflação subiria a níveis sem precedentes, chegando aos 45% no mês eleitoral de novembro. Não pararia por aí. Em março de 1990, atingiu os 80% ao mês, transformando-se, de fato, na questão central de política econômica para a sociedade, o problema real de todos os dias (Leitão, 2011). O descontrole inflacionário foi central no debate eleitoral. O governo foi acusado por sua incapacidade de administrar os gastos públicos, o vilão que nos acompanha desde aqueles anos, concebido indistintamente como um grande mal e associado a parasitismos de grupos políticos e empresariais, que sugavam recursos públicos. Não se tratou mais de desenvolvimento. O crescimento era o que importava, e os números já não diferenciavam o potencial industrial e tecnológico da economia. Também não se falava do custo da dívida externa e de como este custo transformava-se em déficit fiscal. A população foi sistematicamente mal informada sobre as condições da economia, e mais, em nenhum debate foram relacionadas as diversas economias da região, as quais viviam os mesmos constrangimentos. Com toda a certeza, o cidadão brasileiro médio nunca percebeu seu país como parte de uma região que sofreu o mesmo estrangulamento sistêmico nos anos 1980. Embora tenha ouvido falar em dívida externa, ela estava associada à irresponsabilidade, não à ideia de um tipo de exploração. No início da década, a resposta ao aperto monetário internacional foi o corte de gastos, o reendividamento, e o resultado foi a recessão, muito profunda depois da moratória mexicana, marco do final dos fluxos financeiros para a América Latina. Os países tinham que se virar para arranjar divisas para o pagamento de uma dívida que passou a aumentar rapidamente com os novos patamares das taxas internacionais de juros. Os setores exportadores foram incentivados e as energias produtivas se voltaram para o mercado externo. Foram anos de recessão e arrocho salarial, que ampliaram as mobilizações da classe trabalhadora e a oposição política à ditadura. Não apenas o regime era desmoralizado pela crise econômica, mas também a forma antipopular da política econômica que sacrificava os assalariados e, sobretudo, os mais pobres. Esse contexto promoveu a consolidação da oposição parlamentar que elegeria o novo governo com uma chapa que era um arranjo conservador, mas carregava uma grande coalizão progressista forjada pela luta contra a ditadura. O primeiro governo civil rompeu o paradigma recessivo de cortes para apostar no crescimento como lastro para o pagamento das dívidas externas. No primeiro momento, houve melhora do cenário internacional para as exportações, animando o governo que precisava ganhar alguma legitimidade. A economia cresceu nos anos de 1984,1985, mas não sem
produzir uma inflação em ascensão. O Plano Real foi um choque nos preços visando à normalização do sistema. Sua fórmula baseou-se no paradigma da expansão sem recessão, promovendo os reajustes reais de salários e afirmando a prevalência do interesse nacional sobre as negociações externas. O colapso externo e o baixo investimento inviabilizaram o plano e os pagamentos da dívida. Entre os trabalhadores, permaneceu o princípio do interesse nacional contra os ajustes recessivos. A luta política voltou-se para a conquista de direitos sociais inscritos na nova Constituição. Entre os tecnocratas, prevalecia o princípio da responsabilidade fiscal e dos sacrifícios em nome do cumprimento dos compromissos externos. Bresser situa-se no meio do caminho. Queria o crescimento e a recuperação do crédito externo, por isso foi contra a moratória. Seu programa de ajuste promoveu um princípio de recessão e, diante das dificuldades de acordos com os credores externos, condição primeira para romper o estrangulamento e os desajustes dele derivados, o ministro começou a compreender a magnitude do drama externo. Maílson representava a virada ortodoxa, com a incorporação de princípios liberais, o aperto monetário e a recessão. O fato é que, diante dos recorrentes fracassos em conter a inflação nos marcos da política econômica voltada para o crescimento e a preservação dos salários, a descrença e o ceticismo em relação a esses programas prevaleceram. Tabela 5. Indicadores macroeconômicos Fonte: Ipea, Boletim de Conjuntura n. 71, 2006. Os dados macroeconômicos da tabela acima mostram a mudança no padrão de crescimento da América Latina após a crise dos juros internacionais, passando de uma taxa média acima da mundial, para uma taxa menor. Observa-se também que o estrangulamento é regional. Considerando que a transferência de divisas para bancos internacionais é fator da elevação das taxas de crescimento no centro do capitalismo, esse mecanismo de reciclagem do capital por meio da dívida de países em desenvolvimento deve ser compreendido como elemento fundamental da mudança das posições relativas quanto ao crescimento. Note-se que o Brasil optou pelo crescimento até 1987, um ano de inflexão. Depois, cumpriu programas de ajuste fiscal mais e mais recessivos sem resolver o problema na sua raiz, até a renegociação da dívida externa, em 1992. É importante reter este fato porque a renegociação era a condição para a estabilização monetária, alcançada pelo Plano Real a partir de 1994. Sem ela, a espiral de déficit público gerado para comprar os dólares necessários ao pagamento das dívidas, sem a compensação de novos créditos externos, levaria ao fracasso qualquer tentativa, numa repetição dos planos anteriores. Antes das negociações da dívida, a América Latina transferiu aos bancos internacionais duas vezes o valor dos investimentos do Plano Marshall, mais de US$ 190 bilhões (Batista, 2009). Uma sangria que não terminou, embora os mecanismos tenham mudado. Depois da estabilização monetária, tornada possível pelos planos de reestruturação, a fórmula da âncora cambial determinou não apenas a queda das exportações e a desindustrialização
progressiva, como o aumento da dependência de fluxos financeiros externos para compensar o déficit de transações com o exterior, que se ampliou. Isso tem custado ao Estado uma transferência ainda maior de riquezas por meio do pagamento de juros da dívida interna, um mecanismo estrutural de exploração do capital global. O repertório que incluía o ajuste fiscal, a abertura de mercados, a desregulamentação e as privatizações entrou em cena e, em pouco tempo, foi adotado pela mídia hegemônica em uníssono. Não o foi pelos diferentes grupos políticos e atores sociais imediatamente. Era preciso formar uma nova geração descuidada da política, sem grandes arrebatamentos ou causas, como a democracia ou os direitos sociais. Além disso, houve dificuldades com os resultados ruins da primeira fase de reformas neoliberais no Brasil, nos anos 1990. E é preciso levar em conta que o país havia acabado de aprovar a nova Constituição com garantias de direitos universais, portanto, os preceitos neoliberais precisavam conviver com princípios de muita significação política naquele contexto, que ampliariam as atribuições do Estado. Sobre a adoção da cartilha da globalização pela Fiesp e por Collor, Paulo Nogueira Batista descreve a forma como as elites latino-americanas aderiram ao ideário de reformas e incorporaram, no processo, uma responsabilidade histórica que não cabia ao país ou aos seus governantes, ignorando sua natureza. Tudo se passaria, portanto, como se as classes dirigentes latino-americanas se houvessem dado conta, espontaneamente, de que a gravíssima crise econômica que enfrentavam não tinha raízes externas – a alta dos preços do petróleo, a alta das taxas internacionais de juros, a deterioração dos termos de intercâmbio – e se devia apenas a fatores internos, às equivocadas políticas nacionalistas que adotavam e às formas autoritárias de governo que praticavam. (Batista, 2009, p. 117) A ideia de uma política econômica fracassada, ou, na melhor versão, de um modelo econômico esgotado pela interdição de financiamentos ajuda a explicar a conversão de parte de nossas elites políticas ao programa neoliberal ou ao Consenso de Washington, no início dos anos 1990. Não se vislumbravam caminhos, havia um vazio de projetos e muita incerteza. Era como se a única coisa a fazer fosse esperar o ciclo de crise passar. Muitos intelectuais compreendiam a impossibilidade de restaurar o desenvolvimentismo tal como foi concebido, pois não haveria mais a liberalidade de recursos que possibilitou o avanço tecnológico e da infraestrutura do país. Sempre fora um modelo dependente, no primeiro momento das grandes empresas de bens duráveis, e no segundo, após a crise do petróleo, dos capitais externos. Não significa que deva ser um modelo condenável. Todos os países em desenvolvimento seguem estratégias de acordo com os recursos, as demandas, e até as disputas geopolíticas do sistema internacional. Mas é preciso ter estratégias. E na virada da década o Brasil não tinha nenhuma. O país havia perdido uma década se esforçando para superar o impasse da dívida sem assumir uma ruptura com o sistema. No processo, perdeu qualquer ambição de construir um projeto nacional de desenvolvimento. Os economistas de sucesso estudavam o fenômeno
inflacionário. Havia um vazio a ser preenchido, uma condição ótima para a adesão ao programa neoliberal. Nota 8 . IBGE. Séries históricas. Parte 2 Os anos 90: globalização e subordinação internacional O crescimento era levemente aumentado quando o capital ingressava, mas a devastação provocada quando saía, ou quando as taxas de juros que se tinha de pagar para retê-lo, excedia de longe aqueles benefícios temporários. Os países que cresceram mais rápido no longo prazo – mesmo aqueles que atraíram a maior parte do investimento estrangeiro direto – foram os que intervieram para estabilizar esses fluxos. (Joseph Stiglitz, 2003, p. 288) Capítulo 3 A dinâmica da globalização Na década de 1970, a economia mundial sofreu grandes transformações em consequência do abandono do padrão monetário ouro-dólar e das crises do petróleo. Os sinais da perda da hegemonia norte-americana, após a derrota no Vietnã, levaram ao fortalecimento das moedas e bancos europeus. As incertezas quanto ao efetivo poder dos Estados Unidos aumentaram depois da Revolução Iraniana e da invasão do Afeganistão pela URSS, e se refletiram no debate acadêmico que já anunciava a derrocada norteamericana e discutia os atributos da hegemonia (Fiori, 2000). A economia norte-americana entrou nos anos de 1980 sob os efeitos dessa “crise de hegemonia”, com indicadores muito ruins. Entre 1974 e 1980, o crescimento do PIB caiu de 4% para 2,5%, a inflação saiu do patamar de 3% para 12% anuais, e o desemprego aumentou de 4,7 para 7%. O déficit comercial norte-americano foi constante na década anterior, produzindo um endividamento crônico do país (Ayerbe, 2002). Foi neste cenário que o Banco Central aumentou as taxas de juros em 1979. A razão imediata do aumento era centralizar os recursos financeiros internacionais nos títulos americanos e diminuir as pressões inflacionárias, permitindo o financiamento dos déficits do país pela entrada de recursos líquidos que antes giravam em outras praças. Não por outra razão, na sequência, o Banco Central do Reino Unido também aumentaria a taxa Libor, que expressa a média das taxas de empréstimos dos maiores bancos do sistema, mantendoa competitiva. O mecanismo dos juros foi eficiente não apenas do ponto de vista dos indicadores econômicos e das necessidades imediatas da economia doméstica norte-americana, mas representou uma mudança no papel dos Estados Unidos na tentativa de recompor sua hegemonia, ao permitirem uma folga no financiamento do próprio endividamento. O programa do Partido Republicano de Ronald Reagan pretendia melhorar o déficit fiscal e promover o crescimento por meio de uma agenda de cortes de gastos públicos e de impostos com a finalidade de estimular o setor
produtivo. Os Estados Unidos repetiam a receita de Margaret Thatcher, segundo a qual o mercado é a solução para os problemas econômicos, que têm sua origem no Estado e nas atribuições que assumiu. A premissa do novo governo republicano era a de que a redução dos impostos aumentaria investimentos e empregos, diminuindo os gastos públicos com desemprego e assistência. Mas, nem todos acreditam nessa retórica do crescimento pelo lado da oferta. Segundo Stiglitz, ninguém no governo acreditava que os cortes de impostos estimulariam a economia ao ponto de promover aumento da arrecadação. Todos sabiam que “haveria rombos no orçamento e esperavam que esses rombos forçassem uma redução nos gastos do governo. Assim, a verdadeira agenda era forçar grandes reduções no tamanho do governo” (Stiglitz, 2003, p. 75). O governo Reagan melhorou os indicadores econômicos, como desemprego e inflação, mas à custa de um amplo investimento militar, que superou o corte dos gastos, aumentando o déficit fiscal. Houve um salto na demanda quando o governo decidiu ativar a Guerra Fria, lançando o Strategic Defense Initiative (1983), também conhecido como Guerra nas Estrelas. A recuperação econômica observada, portanto, está estreitamente relacionada com o gasto do governo e os programas militares, uma vez que o aumento do investimento privado não foi animador. Isso se explica pelas taxas de juros elevadas cujos efeitos são um desestímulo aos investimentos. Em 1985, Maria da Conceição Tavares percebeu a relação entre a política do dólar forte e a política militar como um projeto norte-americano de retomada da hegemonia amadurecido na década anterior. A partir da sobrevalorização do dólar, em 1979, o crédito interbancário mundial orientou-se para os Estados Unidos, de forma que o Banco Central americano passou a controlar as finanças mundiais e “ditar as regras do jogo mundial” (Tavares, 1985, p. 34). A política monetária vincularia os vários interesses do capital financeiro dispersos nas economias nacionais. Em caso de uma crise global, caberia aos Estados Unidos a reconstrução e a constituição de uma nova arquitetura financeira. Se, de um lado, a política econômica foi parte da recomposição, hoje inquestionável, da hegemonia norte-americana ao longo da década de 1980, seus efeitos na economia doméstica não foram tão auspiciosos, e resultaram no aumento das desigualdades sociais, com o 1% mais rico da população passando a se apropriar de 35% da riqueza, contra os 25% do ano de 1979. A combinação de corte de gastos públicos e juros altos é a receita desse resultado, em qualquer parte. Mas os Estados Unidos aplicaram o aumento dos juros com o objetivo de refinanciar seu passivo e recompor seu poder mundial por meio da centralização dos recursos financeiros aplicados nos seus títulos. A redução dos impostos permitiu compensar a anomalia dos juros. Não produziu o salto nos investimentos imaginado, mas significou um marco poderoso para a formulação das estratégias das grandes empresas. Nos anos seguintes, com a ampliação das fronteiras de atuação dessas empresas após o fim das barreiras do mundo comunista, a guerra fiscal global seria a principal chantagem internacional contra as políticas econômicas soberanas de governos. O padrão de baixos impostos passou a ser a condição para os
investimentos de que a maioria dos países em desenvolvimento precisava, uma vez que todo o mundo já estava ligado às redes comerciais globais, com padrões de consumo também globais. Mas esse processo da guerra competitiva dos grandes oligopólios foi destrutivo também para os países industrializados do centro do sistema. Eles perderam empresas que se deslocaram em busca dos menores custos e maiores lucros, deixando para trás um cenário de abandono em muitas cidades industriais das potências ocidentais, com impactos sobre as relações sociais, sobre a identidade das classes trabalhadoras e, consequentemente, sobre as relações políticas e de representação. O resultado é um desgaste imenso da socialdemocracia como força política, e a polarização entre os que rejeitam a agenda de mercado e o predomínio dos interesses financeiros sobre as políticas dos governos, e aqueles que se refugiam no discurso nacionalista e xenófobo, reconhecendo a raiz dos problemas na imigração em massa. Ambos, com formulações mais ou menos sofisticadas, rejeitam as práticas ultraliberais. O projeto de restauração da hegemonia dos Estados Unidos foi conduzido com base em objetivos conservadores e liberais. A ideia forte era diminuir a participação do Estado na produção e até nas atribuições sociais, eliminando inúmeras tarefas econômicas e sociais ao cargo das competências distributivas do Estado. A partir das administrações de Margaret Thatcher, no Reino Unido, e Ronald Reagan, nos Estados Unidos, assistimos a uma guinada dos paradigmas do pensamento econômico dominante, herdado do após guerra – e, se o observador for mais consciencioso, do entreguerras –, quando o liberalismo e sua civilização construída no século XIX entraram em profunda crise. Naquele contexto, uma nova estrutura de análise dos fatos econômicos e da história do capitalismo compreendeu a necessidade de reformulação da ordem, com a adoção de mecanismos políticos de controle sobre os mercados e de planejamento econômico. A socialdemocracia europeia e o Partido Democrata (qualificado como liberal) nos Estados Unidos assumiram a identidade com a regulação econômica, em oposição aos conservadores que se tornaram minoritários. O mainstream , entre os anos 1950 e 1970, era marcado pela ideia da regulação. Os arranjos do pós- -guerra aceitavam a atuação estatal em favor do pleno emprego, as grandes empresas estatais como forma mais eficiente de organização da produção e a tributação progressiva a fim de promover a distribuição da renda. Contra essa nova engenharia política, um pequeno grupo de liberais, reunidos em 1947, no Hotel Mont Pèlerin, na Suíça, sob a inspiração de Ludwig von Mises e Friedrich Hayek, fundou o que seria a escola do liberalismo econômico, que ganharia expressão no fim dos anos 1970 quando se aprofundou a crise do ciclo de expansão que se seguiu à Segunda Guerra. Contra a hegemonia de Keynes, que justificava a intervenção estatal, contra o fascínio pela União Soviética e o ‘romantismo da Revolução Russa’, contra o desarmamento dos intelectuais e sobretudo dos economistas dispostos a apresentar planos de desenvolvimento nacionais, contra a ‘contra-revolução intelectual’ de que falou Milton Friedman referindo-se ao período posterior à II Guerra Mundial levantou-se um enorme aparato de propaganda
ideológica, de política acadêmica e de coordenação de políticas econômicas. (Santos, 1999, p. 128) O êxito do pequeno grupo de economistas se deu por sua expansão acadêmica, sobretudo a partir da Universidade de Chicago, onde Hayek lecionou. Também pela criação de institutos liberais de análise política, como o Institute of Economic Affairs (IEA), criado por Anthony Fisher, um empresário britânico de sucesso que inspirado pela leitura da obra de Hayek, O Caminho da Servidão , decidiu patrocinar a doutrina de Mont Pèlerin. O IEA travou batalhas contra o trabalhismo inglês, criando o movimento intelectual que foi a base do thatcherismo. O mesmo Fisher patrocinou mais de 60 institutos semelhantes no mundo até sua morte, em 1988, que desenvolveram intensa relação com instituições políticas (Santos, 1999). As gerações que saíram dessa escola de pensamento se ressentem profundamente daquilo que falta à economia, como ciência, as questões chaves sobre o poder político, como a exploração do trabalho, a luta de classes, o imperialismo, a estrutura da dependência no sistema mundial e a luta geopolítica. Muito diferente foi a geração de economistas latinoamericanos formados pela escola cepalina nas décadas do pós-guerra. A Comissão Econômica para a América Latina e Caribe (Cepal), criada em 1948 sob a liderança do argentino Raúl Prebisch, tornou-se o maior centro de reflexão sobre economia e desenvolvimento da América Latina, e, a meu ver, a mais original escola do pensamento latino-americano, com questões de trabalho e visões orientadas pela experiência da região. A ofensiva hegemônica norte-americana teve, portanto, um terceiro pilar além do dólar forte e da corrida armamentista: a ideologia liberal, cuja propaganda passou a constituir parte do arsenal de guerra do império. A abertura de mercados, a desregulamentação das economias nacionais e a diminuição do poder econômico – e, em consequência, político – dos Estados era a síntese da nova agenda a ser imposta nos países dependentes. Diante de Estados com limites de atuação na esfera da produção e da abertura comercial propugnada, o poder das grandes empresas seria muito ampliado. Essa agenda significou um freio ao desenvolvimentismo experimentado na América Latina e se materializou no chamado Consenso de Washington, no ano de 1989. O colapso da União Soviética em 1991, depois de um período de crise envolvendo reformas, foi a primeira grande vitória dos Estados Unidos na ofensiva hegemônica. A potência rival não conseguiu sustentar a corrida espacial, sua economia desmoronou e as reformas permitiram o surgimento de uma oposição que demonstrou, na sequência da desintegração do regime, a irresponsabilidade da adoção das reformas liberais. Segundo Immanuel Wallerstein, o colapso dos comunismos, entre 1989 e 1991, resultou na aceitação temporária dos slogans de uma direita internacional restaurada, a mitologia do mercado livre, por parte dos povos descrentes da libertação e da capacidade de modernização tecnológica (2002). Os resultados foram catastróficos. Privatizou-se a economia sem haver sequer uma estrutura legal que desse conta de normatizar a economia empresarial de mercado. Nada foi planejado ou preparado para uma transição estável e previsível. A
distopia foi o efeito real de um estado de pobreza desconhecido, que funcionou como contraideologia de mercado (Stiglitz, 2003). Entretanto, as empresas ocidentais e seus formuladores estratégicos saudaram a nova (des)ordem da antiga URSS. Os capitais migraram para o Leste europeu. Não havia mais fronteiras que impedissem os investidores de buscarem o maior lucro, onde quer que ele estivesse. Cunhou-se o termo “globalização” nas escolas de administração norte-americanas, uma vez que as barreiras ao capital haviam sido destruídas (Chesnais, 1996). E alguns se apressaram em decretar o fim da história. O ideólogo neoconservador do governo Reagan, Yoshihiro Francis Fukuyama, publicou em 1992 o The end of History and the last man , uma obra que identifica o novo cenário mundial como a era em que a democracia liberal derrotou seu último adversário sistêmico, afirmando-se como o ponto final da evolução ideológica e do governo humano (Ayerbe, 1996). A tese foi compartilhada pelo mundo e muito criticada, mas o fato é que os regimes da Europa Oriental, inclusive o da Rússia, foram refundados nos padrões da democracia liberal. A maioria dos países que antes faziam parte do bloco do socialismo real se incorporou ao bloco europeu, em processo de integração, como sua periferia – a região de mão de obra barata e sem entraves ao investimento de grandes empresas. A Rússia, depois de um período de decadência e grave crise econômica, social e política, começou um programa de recuperação sob o governo de Vladimir Putin, a partir de 1999. A abertura econômica e a privatização da economia russa haviam levado o país ao caos e à extrema concentração da riqueza nas mãos de uma diminuta oligarquia. Oficial da KGB durante o comunismo, Putin ingressou na política após o fim do regime soviético. Dois anos depois da crise russa de 1997, quando o país ficou insolvente, aprofundando os dramáticos efeitos sociais da transição, o presidente Boris Iéltsin renunciou e Putin assumiu o poder. Desde então governa a Rússia por caminhos muito diferentes das doutrinas do império americano com uma visão estratégica que pretende restaurar a economia e o papel da Rússia como potência relevante no cenário mundial. A projeção das escolas de administração estava correta. Não havia mais fronteiras para o capital. O mundo era um único mercado e a globalização se transformou em realidade, com trágicas consequências para os países em desenvolvimento e até para o que se transformou em periferia pobre nas economias mais ricas do sistema. A empresa se desterritorializou, o capital circulou quase sem regras, mas as populações e suas atividades produtivas permaneceram nacionais, sem a mobilidade dos capitais, ao contrário, com barreiras cada vez mais rigorosas aos fluxos migratórios. A ‘globalização’ é assumida como um processo de densificação de redes mundiais, mercantis e financeiras. Modificações na organização produtiva colocam na regência destas redes gigantescas empresas, que operam multiplantas, orquestram sub-redes satelizadas e estão presentes praticamente em todos os territórios. Capitais além-fronteira se movem com desenvoltura. A telemática, combinando eletrônica com informática, interligou, em tempo real, os mercados financeiros numa rede mundial diuturna e instantânea. À liberdade das empresas, capitais e mercadorias,
ampliada nas últimas décadas, corresponde um bloqueio crescente à movimentação interpaíses de população e mão-de-obra. O social permanece nacional. A ‘globalização’ preservou, e amplificou, um sistema mundial heterogêneo, com hegemonia econômica, política, tecnológica, militar e doutrinária, claramente definida e cristalizada num império que, com uns poucos parceiros menores, comanda as redes mundiais. Nestas está, igualmente demarcada, a posição da periferia, cada vez mais subordinada e distanciada dos padrões do centro do sistema. (Lessa, 1999, p. 35) Os efeitos da globalização contrariaram as promessas de seus patrocinadores. As ideias de progresso e modernidade a ela associadas se transformaram em projeções de um futuro que sempre se distanciava mais para ser alcançado, pelo menos para regiões inteiras do mundo. A liderança do processo de globalização veio dos Estados Unidos, a partir do governo Reagan, e garantiu uma ampliação sem precedentes do poder militar, financeiro e tecnológico do país e do capital de suas empresas. O que se observou foi uma renovação do ciclo de acumulação e de fortalecimento do Estado nacional, um processo que caracteriza o sistema mundial moderno desde a sua formação (Fiori, 2009). Uma vez que os Estados Unidos, as instituições multilaterais lá sediadas e seus aliados menores assumiram a liderança do processo de globalização, garantiram para si os maiores benefícios, à custa do mundo em desenvolvimento. Recusaram-se a abrir seus mercados e mantiveram o subsídio à agricultura, dificultando a concorrência para as nações em desenvolvimento (Stiglitz, 2003). Além disso, construíram um mecanismo multilateral de promoção do livre comércio, a Organização Mundial do Comércio (OMC), que acabou por reduzir, em 1995, tarifas que diminuíram o valor que países pobres do mundo recebiam por meio do comércio, encarecendo relativamente o custo de suas importações. No âmbito das negociações multilaterais no Uruguai, o comércio da prestação de serviços foi aberto apenas para setores financeiros e de informação, nos quais os países mais desenvolvidos têm vantagens, permanecendo restritos os serviços marítimos e de construção civil, em que os menos desenvolvidos poderiam competir (Stiglitz, 2003). Estes exemplos confirmam os interesses dos líderes mundiais em proteger seus mercados enquanto propagandeavam a abertura como modernidade, deixando claro que a economia capitalista e a acumulação de capital caminham juntas com o fortalecimento do poder político do Estado nacional que é sua estrutura de poder e expansão. Beneficiados pela desregulamentação financeira, os bancos ocidentais promoveram fluxos de capitais especulativos para países da América Latina e Ásia e o seu escoamento abrupto deixou para trás moedas e sistemas bancários falidos. Por todos os ângulos que se observe, a subordinação ao mercado global aberto transformou as economias nacionais menos competitivas em sistemas mais vulneráveis aos movimentos especulativos e profundamente dependentes de investimentos e capitais externos. Isso aprofundou a diferença entre países ricos e pobres reafirmando as assimetrias do sistema mundial. Segundo Stiglitz, o contraste entre a transição chinesa e a transição russa para a economia de mercado mostra a diferença de uma integração comandada pelos interesses estratégicos do próprio país e aquelas comandadas, em geral, pelos instrumentos
institucionais do Ocidente, como o FMI. No começo da década de 1990, o PIB chinês era 60% do PIB russo, situação que se inverteu no final da década (Stiglitz, 2002). Enquanto a China crescia com planejamento de Estado, a Rússia foi predada no processo da privatização acelerada, e mergulhou em profunda crise. A retórica da globalização foi imperativa desde o início. A globalização era a expressão das energias produtivas represadas por barreiras artificiais construídas ao longo de cinquenta anos. Era tratada como a natureza da vida. As economias nacionais deveriam se adaptar, não restando nada além disso. Havia algumas justificativas racionais genéricas como os benefícios do progresso técnico, ou do aumento do volume dos negócios. Como no utilitarismo inglês, a maior expansão produtiva geraria maior benefício para um maior número de pessoas. Tudo isso era parte da retórica que impôs a adaptação como tarefa de modernização de economias atrasadas. Logo, os países em desenvolvimento não sairiam de sua situação periférica, ou de atraso, sem se adaptarem ao mercado aberto e sem regulações. Essa adaptação os faria competitivos e desenvolvidos, com benefícios para a sociedade em geral. Progresso e modernidade contra o atraso, essa foi – e ainda é – a lógica do discurso farsesco da globalização e da nova ofensiva da hegemonia capitalista do império americano e dos grandes oligopólios. Considerando que a propaganda transformava países protecionistas, que mantinham subsídios e estatais, apresentando-se menos permeáveis e mais fechados às energias naturais do mercado, em incapazes, incompetentes e atrasados, normalmente por razões culturais e históricas ligadas a elites corruptas, era dever de todos fazer parte da onda global e não perder suas oportunidades, mesmo que apenas como afirmação de modernidade. Porém, o processo não era para amadores, e sim uma ofensiva de grandes conglomerados industriais e financeiros que puderam, em tempo real, promover investimentos fusões e terceirização da produção em nível global. As grandes empresas criaram suas redes globais de produção, terceirizando processos de acordo com os custos operacionais, que incluíam mão de obra barata, proximidade de matérias-primas, menores impostos. Países com leis de proteção ao trabalhador e custos sociais passaram a ser desconsiderados como lugares de alto custo. Nós nos acostumamos a ouvir a afirmação de que o “custo Brasil” era muito elevado, contratar trabalhadores no país era caro e nossos impostos pesavam contra os investimentos. E tudo isso a despeito da imensa pobreza e da miséria em que viviam os trabalhadores das periferias das cidades brasileiras. A exploração podia e devia ser maior. E, afinal, podia-se cortar a parcela do Estado: os impostos. E também aqui o argumento ignora o fato de que nossa carga tributária não é alta comparada aos países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). As empresas gigantes que se expandiram pelo mundo tinham projetos estratégicos que incluíam o patrocínio de institutos liberais ativistas para a formação de lideranças locais e campanhas de marketing doutrinário, com o financiamento de iniciativas que pretendiam desde mobilizar estratégias pedagógicas para sistemas educacionais, até a massificação de slogans prómercado por meio das redes sociais. E se os Estados nacionais que
patrocinam suas empresas capitalistas são capazes de financiar guerras, dá para imaginar o quanto é fácil patrocinar a propaganda de massa por diferentes meios culturais e de comunicação. A expansão das empresas globais foi acompanhada pela expansão ainda maior dos grandes bancos, que acabaram por criar bolhas especulativas e capital fictício, sem qualquer regulamentação. No início da década de 1990, o poder dos fundos de investimentos, fundos de pensão e fundos de seguradoras concentrava uma liquidez que atingia 126% do PIB dos Estados Unidos, de acordo com relatório do Serviço de Estudos do FMI. O gigantismo dos agentes financeiros tornou os Estados nacionais vulneráveis às movimentações financeiras que se submetem apenas aos objetivos estratégicos empresariais. E não apenas os Estados menos desenvolvidos. Segundo François Chesnais, com base no mesmo relatório do FMI, em 1993, as administradoras europeias e americanas destes fundos concentravam 8 trilhões de dólares. Mesmo que na época apenas uns 5% dos fundos estivessem investidos sob a forma de carteira de divisas – proporção que se elevaria a 12% em 1995 –, já são 400 bilhões de dólares que podem ser mobilizados só por esse grupo de operadoras. A partir daí, compreende-se por que os 300 bilhões de dólares que o Banco da França e o Bundesbank alemão empenharam conjuntamente para tentar preservar o Sistema Monetário Europeu (SME), em julho de 1993, não foram suficientes para frear os ataques contra o franco e por que os bancos centrais não têm mais meios de punir os especuladores. (Chesnais, 1996, p. 29) Estes fundos e os bancos que operam internacionalmente são aquilo que os economistas do mainstream e os seus repetidores – jornalistas de economia – chamam de mercado. Operam sem barreiras com o objetivo de extrair o maior lucro disponível de atividades produtivas ou de especulação financeira pura e simples. Não só não se pode deduzir que os resultados dessa estrutura sejam bons, do ponto de vista das sociedades e do seu bem-estar, como é possível dizer, pela alta concentração da riqueza observada nos últimos 30 anos, que resultados bons são um ponto fora da curva. Eles aconteceram nos países que mantiveram sob controle a abertura comercial e financeira de acordo com seus interesses estratégicos e seus projetos de desenvolvimento, como a Coreia e a China. A crise de 2008 confirma a tese, uma vez que provocou um desmoronamento de proporções planetárias do setor bancário em função da expansão internacional de derivativos de financiamentos imobiliários sem qualquer controle. A transformação de uma bolha de múltiplos financiamentos sem lastro no mercado americano contagiou o mundo. O setor financeiro havia sido desregulamentado em 1999 nos Estados Unidos com a revogação do Glass-Steagall Act, lei que havia criado normas de funcionamento do setor bancário em 1933, como uma das medidas para evitar crashs como o da Bolsa de Nova Iorque em 1929. As crises financeiras foram o corolário da fragilidade dos governos nacionais diante do poder dos agentes financeiros na busca das oportunidades mais lucrativas. Nos anos 1990, o mundo viveu crises em sequência que
contaminaram os mercados financeiros, afetando, sobretudo, os países mais vulneráveis dos quais os capitais fugiam na busca do refúgio seguro dos títulos americanos. A primeira crise foi a do México, um caso exemplar para se observar os efeitos da abertura e das relações assimétricas. Depois da eleição do presidente Carlos Salinas de Gortari, em 1988, o México começou a adotar o programa de reformas liberais, abrindo mercados comerciais e financeiros. Em 1993, foi criado o North American Free Trade Agreement (Nafta) com a redução de tarifas para o comércio entre Canadá, Estados Unidos e México. O acordo entrou em vigor em 1° de janeiro de 1994. Em dezembro do mesmo ano, o México se viu obrigado a desvalorizar sua moeda diante do imenso déficit comercial. O anúncio da desvalorização levou os investidores internacionais a retirarem dinheiro do país. O resultado foi a insolvência e a quebra das finanças do México. O ano de 1995 foi de recessão, com queda de 5% do PIB, inflação de 50%, desemprego de 25% da população economicamente ativa e perda salarial de 55%. Segundo o comunicado do G 7 de Halifax, de 1995, o México não conseguiu se adaptar bem e, por isso, devia se submeter à tutela do FMI (Chesnais, 1996). Em seguida, veio a crise da Ásia, que contaminaria a Rússia e o Brasil. Depois de três décadas de crescimento, redução da pobreza e estabilidade, os países que viviam o “Milagre do Leste Asiático” foram tragados por uma profunda crise, que começou com o ataque sobre a moeda tailandesa, o baht, que despencou em 02 de julho de 1997. Até então, as nações asiáticas haviam sido bem-sucedidas exatamente por não terem aplicado os preceitos do Consenso de Washington. Um estudo do Banco Mundial, feito apenas por pressão do Japão, expôs o importante papel dos governos no rápido desenvolvimento dos países da região. Essas economias fizeram reformas liberalizantes e abriram seus mercados financeiros progressivamente. Mesmo assim, o ataque à moeda provocou o efeito manada. O FMI recomendou o aumento dos juros. Somente a Malásia decidiu contrariar o Fundo. Os demais países, embora soubessem do perigo, não quiseram contrariá-lo. A recessão foi profunda para todos, com exceção da Malásia. Os países asiáticos receberam do FMI US$ 95 bilhões, que serviram para que as empresas endividadas em dólares cumprissem seus compromissos com o sistema financeiro que, diante da crise, havia decidido não rolar mais as dívidas. Muitos empresários aproveitaram a oportunidade para transformar seus recursos em dólares e promover uma fuga de capitais, repetindo um padrão que havia ocorrido no México e que aconteceria em proporção maior na Rússia, onde tudo parecia desconhecido e incerto. Os dólares não foram capazes de restaurar a confiança ou dinamizar os investimentos. Por fim, os países estavam insolventes e obrigados a cumprir as condicionalidades do FMI, todas recessivas e com custos sociais elevados. O desemprego cresceu, o PIB despencou e bancos fecharam as portas. A taxa de desemprego na Coreia quadruplicou, triplicou na Tailândia e decuplicou na Indonésia, onde 15% dos que trabalhavam em 1997 perderam seus empregos até agosto de 1998. Em 1998, o PIB da Indonésia caiu 13,1%, o da Tailândia 10,8%, e o da Coreia 6,7% (Stiglitz, 2002).
A crise asiática contaminou imediatamente a Rússia e, em seguida, o Brasil, países vulneráveis que dependiam excessivamente de capitais voláteis para manter seus pagamentos. Nos dois episódios, os países recorreram ao FMI. Para cada caso, para cada especificidade, o FMI impôs a mesma agenda. Joseph Stiglitz, o ex-vice-presidente do Banco Mundial que, durante a crise, integrava o Conselho de Assessores Econômicos da Casa Branca, no governo Bill Clinton, concluiu que a liberalização das contas de capital era um risco injustificável. Muitas foram as críticas que registrou em sua obra sobre os efeitos maléficos da globalização, mas nenhuma se compara à que fez ao despreparo do FMI, instituição que traduzia os interesses do governo americano e de sua política monetária. Segundo ele, “repugnava” a forma antidemocrática e ideológica das intervenções do FMI em países que procuravam socorro em razão dos inúmeros desajustes que a globalização promoveu. O sistema global, segundo ele, produzia evidentes injustiças que animavam a reação violenta ao processo. Quando passei para o cenário internacional, descobri que ninguém controlava a elaboração de políticas, principalmente no Fundo Monetário Internacional. As decisões eram tomadas com base no que parecia ser uma curiosa mistura de ideologia e má economia, dogma que, às vezes, mal encobria interesses específicos. Quando as crises assomavam, o FMI prescrevia soluções antiquadas, inadequadas, muito embora fossem ‘padrão’, sem considerar os efeitos que elas teriam sobre as populações dos países orientados a seguir tais políticas. [...]. Em raras ocasiões, pude perceber discussões e análises cuidadosas das consequências de políticas alternativas. Havia apenas um único preceito. Não se buscavam opiniões alternativas. As discussões abertas e sinceras eram desencorajadas – não havia espaço para isso. A ideologia orientava a formulação das políticas e esperava-se que os países seguissem as diretrizes do FMI sem contestação. (Stiglitz, 2002, p. 16) Para o economista, era uma sorte perceber naquele momento que quase ninguém mais defendia a “hipocrisia” de que a abertura de países em desenvolvimento às mercadorias dos desenvolvidos era uma ajuda, enquanto as nações mais poderosas protegiam seus mercados. O “quase” do Stiglitz se alterou muito nos últimos anos, e paradoxalmente depois da crise de 2008. A nova ofensiva neoliberal parece corresponder ao aumento da competição global e aos desafios geopolíticos da ascensão chinesa. Mas os impactos deste processo em curso ainda não permitem conclusões definitivas. Além da vulnerabilidade decorrente da abertura dos mercados financeiros nacionais, incapazes de reagir diante do poder dos grandes agentes do mercado, a globalização promoveu profundas transformações sociais em razão dos impactos da mobilidade das plantas produtivas, que deixou populações desempregadas e com menor proteção social. A abertura e a desregulamentação de mercados promoveram a guerra fiscal global, por meio da qual as empresas forçaram Estados e regiões a oferecerem isenções tributárias como condição de receberem investimentos. A arrecadação de impostos global diminuiu e a capacidade de investimentos dos Estados nas áreas sociais também, fragilizando ainda mais a sua capacidade de responder às necessidades da sociedade.
Paralelamente, outro critério estabelecido para o investimento externo das gigantes produtivas foi o custo baixo da mão de obra, o que da mesma forma promoveu uma competição entre países pela desregulamentação das relações de trabalho. O resultado é o achatamento da massa salarial sem nenhuma possibilidade de compensação por mecanismos distributivos do Estado, como os direitos sociais. O que o mundo assistiu nas últimas décadas foi o aviltamento dos direitos dos trabalhadores em todas as partes do mundo, com um inquestionável avanço da concentração da riqueza. O desenvolvimento da manufatura nas maquilas e nas zonas de exportação, localizadas imediatamente ao sul do Rio Grande, na fronteira entre Estados Unidos e México, foi acompanhado, durante os anos 80, pelas demissões e pelo desemprego nos centros industriais dos Estados Unidos e do Canadá. Sob a égide da área de Livre Comércio da América do Norte (Nafta), esse processo estendeu-se a toda a economia mexicana. Do mesmo modo, as transnacionais japonesas estão transferindo suas indústrias de manufaturas para a Tailândia ou as Filipinas, onde os trabalhadores podem ser contratados a US$ 3 ou US$ 4 por dia. O capitalismo alemão está se expandindo para além da Oder-Neisse, de volta a seu Lebensraum de antes da guerra. Nas linhas de montagem da Polônia, da Hungria e das Repúblicas Tcheca e Eslovaca, o custo do trabalho (da ordem de US$ 120 mensais) é substancialmente mais baixo que o da União Europeia. Já os trabalhadores das fábricas de automóveis da Alemanha recebem salários de U$ 28 por hora. (Chossudowsky, 1999, p. 71) A percepção do observador, informado pelas corporações de comunicação, pode levá-lo a compreender que está de fato havendo uma ampliação das cadeias de produção, com emprego de mais gente pelo mundo e benefícios para sociedades antes marginalizadas do mercado. Porém, essa expansão está sendo regulada por uma guerra de custos que avilta o preço do trabalho globalmente, cria desemprego estrutural nas periferias dos centros do capitalismo, e amplia a acumulação por meio da maior exploração do trabalho, normalmente em regiões onde há poucas políticas efetivas de proteção social. Ou seja, a expansão da produção aprofunda a exploração do trabalho e a pobreza, e não distribui a riqueza. Esta se acumula em alguns segmentos. Os benefícios não são, de nenhuma forma, o desenvolvimento em sentido amplo. As tecnologias avançaram, o trabalho foi precarizado e a humanidade é mais desigual, injusta e violenta.
Os impactos sobre os processos políticos e a democracia representativa também são graves e notórios. As gerações mais velhas das economias centrais têm a memória do que perderam, as mais novas não têm memória alguma, não reconhecem a luta de classes e nem o repertório da socialdemocracia ou do trabalhismo, porque já nasceram precarizadas e apenas identificam a ausência de representação política dos seus interesses nos partidos tradicionais. Um elemento a ser observado nessa forma de expansão que se processou nas últimas décadas é a permanência da concentração territorial da riqueza no centro do capitalismo, onde se situam as sedes das empresas e a classe abastada que vive da renda e de serviços altamente especializados que agregam valor às mercadorias, não raro apenas valor simbólico. Nesse rol de serviços encontram-se os criadores de marcas e do marketing, as redes de shoppings, e a criação de tecnologias (Chesnais, 1996). Uma tabela sobre a composição do custo de um exportador de roupas do terceiro mundo, baseada nos preços de uma fábrica de Bangladesh, em 1992, feita por Chossudowsky, ilustra como a transferência das plantas industriais em nada altera as assimetrias do capitalismo. Mas, com certeza, diminui os ganhos globais dos trabalhadores. Tabela 6. Custo do exportador de roupas (US$) Fonte: Chossudowsky, 1999, p. 71. A tabela acima mostra a apropriação concentrada pelo centro do capitalismo da riqueza produzida na periferia. Os maiores beneficiários são os agentes envolvidos na administração, marketing e comercialização do produto. A terceirização internacional da manufatura dos produtos de grandes marcas é uma estratégia empresarial que visa ao aumento da apropriação da riqueza e da acumulação e, por isso, não tem como efeito usual distribuir a riqueza pelo mundo por meio das cadeias globais de produção, ao contrário. Esse fenômeno explica a corrida pela flexibilização de normas que regulamentam o trabalho e pela diminuição dos custos da mão de obra no mundo. Um desafio político, sobretudo para as regiões da periferia. O discurso da tradição liberal, que defende esse movimento considerando que a empresa pode ter maior produtividade com o mesmo investimento, aponta o consumidor como o beneficiário final do processo por ter acesso a produtos mais baratos. É estranha a perspectiva que reconhece um homem consumidor separado do homem trabalhador. De onde virá a renda? Parece miopia não enxergar a diminuição da massa salarial e da capacidade de consumo no país de origem, isso apenas para abordar o problema estritamente econômico e não o social, uma vez que para os liberais “só existem indivíduos e famílias”, como disse, certa vez, Thatcher. Thomas Piketty, no seu livro O Capital no Século XXI , mostrou a ampliação da concentração da riqueza nos Estados Unidos nos últimos trinta anos. A parcela da renda nacional apropriada pelo décimo superior da população passou de 35% em 1970 para 50% entre 2000 e 2010, com pico no ano da crise, em 2008, repetindo com alguma vantagem o padrão de concentração anterior à crise de 1929. A evidência levou Piketty a questionar a relação entre a concentração da riqueza e as crises financeiras norte-americanas
ocorridas em 1929 e 2008. Segundo o autor, não restam dúvidas de que o aumento da desigualdade fragilizou o sistema financeiro, na medida em que produziu a “quase estagnação” do poder de compra das classes populares e médias nos Estados Unidos. Combinado com um sistema de instituições de intermediação financeira com pouca regulação e ávido por rendimentos para a enorme poupança financeira injetada pelos ricos, o resultado foi o endividamento crescente das famílias. Reflexo da transferência de 15% da riqueza dos 90% mais pobres para os 10% mais ricos, desde 1970. Em termos de apropriação do aumento da riqueza no período, os 10% mais ricos se apropriaram de três quartos e o 1% absorveu nada menos que 60% do crescimento total da renda nacional (Piketty, 2013, p. 289). A pergunta aos liberais é: quem são os consumidores? Apenas o décimo superior? Se sim, qual o papel dos demais 90% dos humanos neste seu sistema de consumidores? Se a resposta for todos os indivíduos, porque o consumo se tornou mais acessível, ela não esconde o empobrecimento e precarização das camadas de trabalhadores do mundo, um retrocesso em comparação com os avanços das décadas de 1950 e 1960. Mas o problema é ainda mais grave porque assistimos à crescente automatização dos processos produtivos e a diminuição da incorporação da força de trabalho na produção das riquezas. Como lidaremos com isso? Com a marginalização pura e simples? Com polícia? Quais são as respostas para a instabilidade das relações sociais provocada pela ampla liberalização da economia empresarial? Depois de uma década em que sinais de decadência colocaram em dúvida a efetividade da hegemonia norte-americana, a retomada da iniciativa imperial nos anos 1980, com a política do dólar forte, a reativação da Guerra Fria e a ofensiva ideológica liberal, foi largamente eficaz. Fragilizou o bloco rival até a sua desintegração, promoveu um avanço sem precedentes da transnacionalização de empresas e da formação de oligopólios, permitindo um salto da acumulação capitalista e da concentração da riqueza, ampliando também a dependência de países que se industrializaram tardiamente, contando com financiamentos e regras comerciais favoráveis ao seu desenvolvimento. Depois de uma década de sangria e transferência líquida de riquezas, a América Latina foi persuadida a mergulhar no padrão liberal conservador da globalização por meio da adoção integral do receituário do Consenso de Washington e do mecanismo de renegociação das dívidas do Plano Brady. Abandonou-se definitivamente a industrialização por substituição de importações, o modelo de Estado indutor do desenvolvimento e o pensamento cepalino. Os anos 1980 já haviam antecipado essa virada, mas não por princípio ou pela adoção de um novo conceito de política econômica, mas pelo fim do fluxo financeiro que significou o estrangulamento da dívida e a necessidade da administração da questão imediata da manutenção do crescimento com os choques necessários para o tratamento dos efeitos colaterais do déficit público e da inflação. A década de 1990, por sua vez, é o marco da adoção de uma nova estratégia ou concepção de política econômica voltada para a abertura ao mercado global, muito mais por necessidade do que por
convicção. Ou seja, determinada mais pelas intervenções do FMI e pelas diretrizes sistematizadas do Consenso de Washington do que pela formulação de estratégias nacionais de integração ou pela opção democrática dos povos. A política de curto prazo já havia se estabelecido como norma mesmo antes da democratização em razão do desequilíbrio permanente causado pela crise da dívida. A sequência foi a adoção de um programa coerente de reformas, ao longo da década, que parecia menos conjuntural porque se anunciava estruturante para novas bases econômicas que supostamente garantiriam estabilidade. Escondia, entretanto, a ausência absoluta de um planejamento da integração que considerasse os interesses e especificidades da economia nacional e as necessidades das sociedades da América Latina. Perdemos a agência política tanto sobre projetos nacionais, quanto sobre a política econômica, definida por receituário externo. A retórica do discurso público transformou o programa de reformas que promovia e resguardava os interesses imperiais em princípios científicos, retirando da política a autonomia para a deliberação sobre a agenda econômica da produção e distribuição da riqueza. A política desidratou, se tornou um pouco administração, ou “gestão”, um pouco mediação de direitos de minorias, e perdeu os instrumentos de poder, aqueles que dizem respeito aos mecanismos de apropriação e redistribuição dos meios de reprodução da sociedade. A oposição foi vigorosa, nos meios políticos ligados a movimentos sociais em ascensão e nos meios acadêmicos que resistiram à fragmentação dos objetos ou às análises de categorias meramente formais e funcionais das democracias. Essa oposição ganharia espaço e, por fim, o poder, após o fracasso e as crises resultantes das reformas neoliberais. Mas os meios de comunicação, uma vez convertidos, formaram consensos sociais a respeito da neutralidade da agenda econômica de mercado, que não mais abandonariam. Tornaram-se peças de propaganda, com maior ou menor sucesso em cada país. No Brasil, o êxito foi incontestável, a despeito das contradições cada vez mais evidentes entre o dogma e a vida real. O que venho chamando de reformas não são abstrações ou princípios genéricos que se impuseram como consequência lógica dos fracassos de receitas opostas. Não. São exigências sistematizadas por três diferentes mecanismos internacionais de poder. O primeiro foi a institucionalização de regras multilaterais de abertura comercial no âmbito do Acordo Geral de Tarifas e Comércio (Gatt), o segundo foi o plano de renegociação de dívidas e, o terceiro, a organização intelectual (ou técnica) da agenda política. Em 1986, iniciou-se a chamada Rodada Uruguai, do Gatt, a oitava rodada de negociações multilaterais desde a criação do fórum, em 1947. Esta rodada significou uma profunda mudança nas diretrizes até então estabelecidas em relação aos países em desenvolvimento. Desde a primeira rodada, em 1948, até a Rodada Kennedy, em 1967, as negociações se limitavam à redução de tarifas do comércio de manufaturas, beneficiando todos os países. Na Rodada Kennedy, o caráter multilateral foi flexibilizado por um código antidumping apenas para os signatários. Mesmo assim, os países em desenvolvimento continuaram a obter os benefícios dos acordos tarifários
sem a obrigação de uma contrapartida (Almeida, 2002). Na Rodada Uruguai, a abertura de mercados dos NICs se tornou objetivo fundamental dos Estados Unidos, com esses países sendo instados a realizá-la de uma só vez, sob pena de não participarem do acordo e de seus benefícios. Parece claro que os Estados Unidos procuraram ajustar o comércio internacional aos seus interesses, com o objetivo de conter a penetração comercial dos países em desenvolvimento (Batista, 1992). Os acordos envolveriam ainda a propriedade intelectual, normas de tratamento igual ao capital nacional e ao estrangeiro, e abertura de investimentos diretos também em serviços. Lançado em 1988, o Plano Brady foi a segunda iniciativa do Federal Reserve com o objetivo de promover uma renegociação das dívidas dos países em desenvolvimento. A primeira foi o Plano Baker, que, sem a concessão de novos empréstimos por bancos privados, como previa a engenharia de reestruturação, não obteve resultados. Entre um e outro plano, a situação de endividamento dos países se agravou muitíssimo, com a relação entre dívida e exportações passando de 185% para 278% (Batista, 2009). Por outro lado, a liquidez dos bancos havia sido recomposta pelo fluxo extraordinário de pagamentos sem novos empréstimos. Foi por essa razão que o governo norte-americano passou a considerar com maior atenção os setores produtivos exportadores que foram fortemente prejudicados pela crise dos países em desenvolvimento. Salvos os bancos, que diminuíram sua posição na América Latina, era hora de dar maior atenção às demais empresas e à balança comercial. Além disso, é necessário considerar que os riscos de default envolvidos no esgarçamento da crise social e política por que passavam os Estados aviltados pelo estrangulamento da dívida externa aumentaram muito. Na América Latina, suspensões de pagamento, acordos impossíveis de serem cumpridos com o FMI e a acumulação de empréstimos--ponte, que apenas aumentavam o endividamento, davam conta de uma situação de alto risco para o sistema. A solução interessava aos dois lados. Mas é claro que quem dava as cartas era o governo americano por meio de seus mecanismos financeiros, que incluíam as instituições multilaterais – o FMI e o BM (Laidler, 2006). Tabela 7. Acordos de empréstimos-ponte com o FMI entre 1982-1989 Fonte: IMF. Disponível em: < http://bit.ly/2OnmZUj >. Acesso em: 20 jul. 2017. O Plano Brady propôs consolidar a dívida dos países com até 35% de redução, alongamento dos prazos, a taxas fixas e juros menores. A coordenação dos acordos de novos empréstimos era do Banco Mundial, como estava previsto inicialmente no Plano Baker, e a instituição introduziu a condição da abertura comercial unilateral para a concessão de novos recursos. O FMI passara a década monitorando governos para garantir o pagamento dos débitos internacionais. Foi praticamente o cobrador oficial do sistema financeiro privado, exigindo ajustes fiscais que não eram nada mais do que cortes progressivos de gastos públicos, mas não determinou a abertura comercial e, ao contrário, cuidava da promoção das exportações e da balança comercial favorável, como meio para a obtenção de divisas. O Plano
Brady e o Banco Mundial introduziram a novidade da década de 1990 – o estrangulamento das contas externas via balança comercial deficitária. A nova fórmula garantiria a mesma transferência de recursos, uma vez que os países necessitariam de capitais externos os quais remunerariam com juros altos, mantendo a ciranda da transferência financeira, e também seriam o mercado de realização de lucros da indústria exportadora. Além de exportadores de riqueza líquida, os países da América Latina entraram em processo de desindustrialização. Se na década anterior, a escassez de divisas os havia levado a restringirem as importações, preservando seus parques produtivos, na década de 1990 teriam que abrir mercados e se arriscar a produzir déficits comerciais e falências das empresas de segmentos menos competitivos. O Plano Brady, com sua consequente reabertura de fontes de novos financiamentos para a América Latina, conseguiu impor uma agenda de concessões permanentes em troca de recursos financeiros transitórios. O terceiro mecanismo foi a consolidação da agenda de reformas em 1989. Naquele ano, reuniram-se em Washington, para um seminário organizado pelo Institute for International Economics, funcionários do governo norteamericano, representantes dos organismos multilaterais (FMI, Banco Mundial) e economistas latino-americanos para avaliar a situação da América Latina e a necessidade da adoção de políticas de ajuste. O resultado do encontro foi a adoção do receituário de medidas de política econômica que devia ser seguido pelos países da região. Mas a ideia de uma discussão sobre os problemas da região é um engano. O receituário estava preestabelecido. O encaminhamento do tema teve por base o texto de John Williamson – economista inglês com passagem pelo FMI na década de 1970 – que preconizava o conjunto de reformas consideradas necessárias. Estabeleceu-se, segundo Williamson, um “consenso” em torno da excelência das reformas liberais que já vinham sendo propagandeadas pelos Estados Unidos desde o início do governo Reagan. O suposto “consenso” sobre as reformas era a condição para a cooperação financeira, ou seja, para a regularização dos fluxos de financiamento para a América Latina. Uma complementação do Plano Brady. Os países que promovessem as mudanças exigidas poderiam obter acordos de renegociação, os recalcitrantes permaneceriam estrangulados, enviando recursos de curto prazo, aumentando dívidas e pagando altas comissões por empréstimos-ponte sem receber qualquer alívio para investimento interno na forma de novos financiamentos. Este é o contexto evidente que explica a conversão de todos os países da América Latina à agenda neoliberal, mais ou menos ao mesmo tempo. Não é possível tratar da história de outra forma que não considerando esse contexto que é sistêmico, e não brasileiro. O Consenso de Washington pode ser resumido em três grandes eixos: ajuste fiscal com diminuição de despesas e subsídios; liberalização da economia, com abertura comercial e do mercado de capitais, desregulamentação e eliminação de diferenças entre capital nacional e estrangeiro na ordem legal; e privatizações, com a transferência de bens de produção estatais para as mãos privadas. Justificou-se que a privatização geraria recursos, permitindo o equilíbrio das contas públicas e, na outra ponta, os bônus das dívidas negociadas poderiam ser usados para a compra de estatais, diminuindo o endividamento (Ayerbe, 1999). Ou seja, os países venderiam
suas empresas para garantir a entrada em caixa de recursos uma única vez e teriam o patrimônio perdido para sempre e, além disso, ampliavam o compromisso com a remessa de lucros para o exterior. No longo prazo, dependendo do tamanho da economia estatal, era um verdadeiro suicídio. Isso sem considerar o fato de que a entrada em caixa era muito diminuída, uma vez que os bônus eram aceitos como pagamento, ou seja, parte do pagamento não era dinheiro novo, mas moeda podre. Na prática, entrava uma parcela de recursos novos e não havia ampliação necessária de investimentos nas empresas adquiridas. Empresas estatais, instrumentos de políticas de desenvolvimento, geradoras de receitas ou meios de subsidiar a empresa privada em tempos de crise, enfim, uma fonte de soberania de políticas econômicas nacionais, simplesmente mudavam de mãos para grupos privados cujos objetivos estratégicos não podem ser nada além do lucro. Um grande negócio para oligarquias políticas locais e para grandes grupos econômicos que adquiriam bônus da dívida de longo prazo com alto deságio e aplicavam na compra de estatais arrematadas, muitas vezes, a preços vis. Em alguns casos, o governo fazia um alto investimento saneador em empresas para vendê-las por preços que não pagavam as dívidas assumidas pelo Estado para saneá-las, como foi o caso do Banco do Estado do Rio de Janeiro (Banerj). Como tudo isso pode ser feito a céu aberto com apoio da sociedade? Primeiramente, é preciso compreender o custo da crise dos anos 1980 para essas sociedades, o descrédito da política econômica, o ambiente de insatisfação. Havia um desejo de mudanças. No Brasil, isso se expressaria na popularidade de novos partidos e no ceticismo em relação ao partido que encarnou a Nova República e a Constituição, o PMDB. O Partido dos Trabalhadores cresceu, ocupando o campo da esquerda e eliminando Brizola da competição nacional; no campo da direita, diminuíram tanto o PFL, antiga Arena, da ditadura, quanto o próprio PMDB, atropelado pela crise; no centro, a novidade foi o surgimento do PSDB, fruto da cisão do PMDB que apareceu aglutinando as lideranças mais progressistas da grande frente democrática que o antigo partido representou. Este cenário movediço, em que a ascensão de um partido operário representava ameaça real para grande parte de uma sociedade de acentuada tradição hierárquica, de formação colonial e escravista (o que tem implicações sociológicas de alto custo para o idílio democrático), polarizou a primeira campanha eleitoral para eleições presidenciais com voto direto. A grande imprensa procurava pautar os processos, criando as narrativas que explicavam as crises, diagnosticavam os fracassos dos governos e afirmavam necessidades prementes. Ainda não havia um consenso sobre o receituário neoliberal, mas o acordo sobre a relação entre gasto público, a má-gestão, privilégios e arcaísmos e inflação era incontornável. É possível supor que o governo e outros segmentos políticos nunca se empenharam em explicar a natureza da crise externa porque, de alguma forma, a compreensão do que se passou redimiria os militares, que saíram amplamente desmoralizados do governo justamente pelo aprofundamento da crise econômica. Por uma razão ou por outra, o fato é que nunca tivemos uma narrativa nacional pública que identificasse no estrangulamento externo e na sua natureza
global a razão da crise. Prevaleceu a interpretação de que nossa dívida externa havia sido uma irresponsabilidade de governantes e, ao final da década, a inflação era atribuída à mesma causa, sem relação com a dívida. Seria fácil, depois da adesão de empresários e dos meios de comunicação, convencer a população de um novo receituário, tanto pelo descrédito geral do governo Sarney em seu final, quanto pela mensagem propriamente, que significava mudança e modernidade porque eliminava o peso do Estado naquilo que conservava de privilégios e benefícios oligárquicos próprios de arranjos patrimonialistas. O discurso do Estado pequeno e da sociedade com mais recursos porque paga menos impostos, onde todos produzem mais porque competem e cada um se beneficia daquilo que merece, tem seu charme, sobretudo quando a estrutura oligárquica e patrimonialista é muito ostensiva. O problema é que essa retórica esconde a estrutura dos oligopólios e a impotência do indivíduo sem proteções nessa fase capitalista, e ignora absolutamente o fato de que no capitalismo, acumulação e desempenho econômico dependem de Estados fortes com agenda expansionista. Foi nessa encruzilhada política e econômica que chegamos ao final do primeiro governo civil e à nossa primeira eleição direta para a presidência da república. De um lado, Lula da Silva, candidato do Partido dos Trabalhadores, do outro, Fernando Collor, um político desconhecido de um pequeno estado nordestino, de família tradicional, proprietária da empresa afiliada à Rede Globo em seu estado. Collor era um jovem governador a quem o Brasil foi apresentado por meio de um programa nacional de televisão chamado Globo Repórter. Quando conto essa história para alunos percebo que é preciso frisar que não havia internet e nem TV por assinatura nas casas. As pessoas assistiam a alguns poucos canais de televisão e a Globo era como as badaladas dos sinos medievais que marcavam os compassos do cotidiano. Marcavam--se compromissos depois da novela, ou do futebol. Todo mundo assistia, um pouco mais ou menos, a programação que essa empresa de comunicação produzia. Assim nasceu o Collor nacional. Seu atributo? Era o “caçador de marajás”! Uma maravilha! Precisávamos, afinal, reformar o Estado e diminuir os privilégios das oligarquias. Collor foi eleito pela Globo como o nosso salvador. No último debate antes do pleito, encerrando o período de campanha, Lula e Collor disputaram os últimos votos nos estúdios da Globo. O Jornal Nacional da véspera da eleição teve como pauta principal uma grande reportagem que reproduziu os melhores momentos de Collor no debate, contra um Lula patético, entre falas, nos seus piores momentos. Uma edição partidária antológica, inscrita nos anais da história da comunicação no Brasil. Collor assumiria a presidência em 15 de março de 1990. Sem articulações políticas, sem vínculos populares, e sem agenda. Era apenas o salvador eleito pela maior empresa de comunicação do país que, dois anos depois, decidiria apoiar seu impeachment . Capítulo 4 De Collor ao Real – choque, abertura e negociação externa A década de 1990 foi profundamente marcada pelo Consenso de Washington e pela estabilização monetária que ocorreu após a renegociação das dívidas
nacionais nos marcos do Plano Brady. A América Latina foi pautada por uma agenda comum, oferecida como contrapartida ao refinanciamento de dívidas e seu retorno ao circuito financeiro internacional. A abertura econômica e as privatizações são as marcas mais reconhecidas dos anos 1990 para a maior parte dos países da região, senão do mundo, considerando a integração da Rússia e do Leste europeu ao mercado global. Os mecanismos de ajuste e os seus efeitos, imediatos ou duradouros, são comparáveis e impedem que os fenômenos sejam compreendidos isoladamente, como histórias nacionais atribuídas à genialidade política de uns ou à incompetência de outros, de acordo com os interesses em disputa por meio da retórica de viés necessariamente partidário. A reestruturação das dívidas externas dos países do continente foi iniciada pelo México, no ano de 1989, seguindo-se as negociações do Uruguai, em 1990, da Argentina e do Brasil, em 1992, do Equador em 1995 e do Peru, em 1997. As dívidas puderam ser trocadas por bônus de longo prazo com descontos desde que os países se comprometessem a realizar as reformas estruturais que haviam sido definidas no Consenso de Washington. Cada país negociou seu acordo com a mediação do FMI e do Tesouro americano, os organismos que garantiriam os novos bônus emitidos (Laidler, 2006). As reformas foram implantadas de acordo com as condições políticas locais e, em todos os casos, com amplo apoio de uma máquina de comunicação para legitimar programas, no mínimo, questionáveis. No balanço do comércio externo, a abertura representou a inversão da balança comercial até então favorável em relação aos Estados Unidos, que sairiam de um déficit de US$ 11,2 bilhões com a América Latina, para um superávit igual. O Brasil seria dos poucos a manter saldo positivo, reduzido de US$ 3,6 bilhões para US$ 1,5 bilhão (Batista, 2009). Mas não se pode minimizar o ambiente de pessimismo e a sensação de fracasso que haviam tomado conta de sociedades que não conseguiam sair do atoleiro do pagamento de juros, da necessidade de novos empréstimos, do desajuste permanente das contas públicas, da inflação, e do estrangulamento da capacidade de investimento. Um círculo vicioso de uma década que não se conseguia romper. Esse ambiente fertilizou ideias proclamadas como o caminho da modernização e da superação dos entraves de Estados que não conseguiam cumprir com as atribuições assumidas ao longo dos anos, tanto pelo seu tamanho, quanto pela sua natureza pouco dinâmica e competitiva. O Estado foi desqualificado como ator econômico, como indutor do desenvolvimento e como meio de institucionalização da distribuição da riqueza. A década de 1980 havia apagado, em alguma medida, a história do crescimento e da industrialização na América Latina. Uma história que teve o Estado como ator fundamental, como planejador e produtor direto por meio de empresas estatais. No livro da jornalista Miriam Leitão, Saga Brasileira , a crise é resumida à inflação e compreendida como irresponsabilidade de elites locais, reflexo do desgoverno dos gastos públicos. Colunista de economia de O Globo e comentarista de televisão e rádio, a jornalista analisa cotidianamente os fatos da política econômica e as reações do mercado, divulgando para o grande público a avaliação que os agentes financeiros fazem sobre políticas e cenários. O “mercado gostou”, o “mercado está preocupado”, o “mercado
está nervoso”. Por meio da jornalista, o mercado dita o que é preciso fazer, como “a” reforma da previdência, o mercado faz chantagem todos os dias. A moeda de troca é o investimento. “Sem reforma o mercado não tem confiança para investir”! O livro da jornalista é uma peça desse trabalho de propaganda. Ele desvenda a origem dos problemas brasileiros no Estado desorganizado institucionalmente, patrimonialista e gastador. A moeda é a economia e a economia é a moeda, portanto, havendo controle de gastos há moeda suficiente, não há impressão de cédulas e inflação; simples assim, todos os problemas da humanidade estão resolvidos pelo moralismo da gestão. A narrativa não comporta conflito de interesses ou conflito de classes, e muito menos os mecanismos de transferência de riqueza criados como compensação para o déficit americano dos anos de 1970. Só há um tipo de interesse fora da caixinha mágica das leis do mercado: o de oligarquias que querem manter privilégios patrimonialistas, sobrecarregando o Estado. Essa síntese simplória, além de fácil assimilação para uma população cansada da inflação, da instabilidade econômica e da paralisia que este cenário econômico causou, trabalha com significados bastante compreensíveis para um país onde desigualdade e privilégios são a norma. Ao condenar o Estado, supõe a superação dos males se as forças do mercado atuarem livremente, em benefício da competição e dos consumidores. É uma farsa no mundo de assimetrias, comandado por investidores dos grandes fundos (o mercado), com ampliação das desigualdades, da concentração da riqueza e de elevado desemprego. Quais consumidores? Fernando Collor de Mello assumiu a presidência do Brasil em março de 1990. Era um representante direto das oligarquias alagoanas apresentado pela TV Globo aos brasileiros como o “caçador de marajás”, nada mais simbólico do ímpeto moralizador que tinha o Estado como alvo. Sua primeira tarefa era debelar uma inflação que chegou aos 80% ao mês. Todos os agentes da economia esperavam por um choque, e alguns imaginavam a possibilidade de um calote da dívida interna, porque a existência da moeda indexada havia concentrado todos os saldos monetários, ou seja, na prática, todos os depósitos tinham, em alguma medida, caráter especulativo. Se fosse decretado, como nos planos anteriores, um novo congelamento e a diminuição dos rendimentos financeiros, seguramente haveria uma corrida para o consumo ou para a moeda estrangeira. Nos dias que antecederam a posse do novo presidente, as posições financeiras haviam mudado para a poupança, cujos valores o presidente eleito havia se comprometido a preservar de quaisquer medidas de desindexação ou confisco (Belluzzo e Almeida, 2002). No dia 16 de março, Collor anunciou um pacote econômico com uma reforma monetária mais radical do que as piores previsões. O pacote era amplo. Instituiu um congelamento temporário, que começaria a ser flexibilizado a partir do primeiro mês; reviu a indexação dos salários, preservando apenas o reajuste de fevereiro, deixando a alta inflação de março descoberta pelo novo índice que passou a ser fixado pelo governo mensalmente; estabeleceu o câmbio livre, acabando com as minidesvalorizações fixadas pelo governo, que vigoraram durante vinte anos e preservavam a competitividade dos setores exportadores; promoveu uma
reforma administrativa que incluiu demissão de servidores, venda de bens da União e o início do programa para privatizações, que previa uma arrecadação de U$ 1 bilhão ainda em 1990; e uma reforma fiscal com a previsão de aumentos do imposto de renda e a redução de gastos públicos. O ajuste pretendia ser da ordem de 10% do PIB, para encerrar o ano com um superávit de 2%. Não há precedentes de uma meta tão radical, e deve-se considerar que o problema da dívida externa permanecia no mesmo estado. O mais radical, entretanto, foi a reforma monetária, a reinvenção do cruzeiro com o corte de três zeros, mas com a conversão de um limite de 50.000 cruzados dos saldos bancários e 20% das aplicações do open market . O restante dos depósitos, em quaisquer contas ou fundos, só seria convertido após 18 meses, em 12 parcelas, com valores corrigidos pelo Bônus do Tesouro Nacional (BTN) e mais juros de 6% ao ano. A concepção da reforma monetária era a de que uma parcela em torno de 90% dos recursos em aplicações eram motores da estrutura especulativa da moeda indexada. Ou seja, a maior parte dos agentes buscava não apenas se resguardar das incertezas e da espiral de preços, mas ganhar com as aplicações financeiras, pressionando a dívida pública e a indexação. Todos os setores produtivos transformavam recursos líquidos em aplicações especulativas, e o plano do governo, portanto, calculou que uma liquidez de 10% seria o suficiente para manter as transações normais da atividade econômica. Além disso, o bloqueio da riqueza impediria a explosão do consumo observada após os congelamentos anteriores. O que se verificou no primeiro mês foi uma imensa paralisia de todos os setores porque a distribuição da liquidez, determinada de forma neutra, prevendo um limite de conversões para famílias e outro para empresas (os 20% do open market ), não atendeu a inúmeros setores que precisavam pagar folhas de salário, isso para não mencionar os inúmeros compromissos particulares que seriam frustrados pelo sequestro do dinheiro das famílias. O governo abriu torneiras de liquidez com o intuito de promover ajustes até o mês de maio. Os depósitos em cruzados novos poderiam ser usados para pagamentos de dívidas públicas e havia a possibilidade de transferência de titularidade destes. Isso permitiu um aumento da liquidez para 12,6% do PIB. A restrição da circulação foi real, apesar das denúncias de que havia uma liberação seletiva para alguns segmentos e que esta seria a razão do fracasso do plano. Os índices de inflação despencaram de 81,3% em março, para 11,3% em abril, e 9,1% em maio. Para conter as pressões inflacionárias após o fim do congelamento, totalmente suspenso até julho, o governo promoveu a ampla abertura do mercado às importações e a austeridade fiscal. Se consideramos que uma torneira de liquidez importante foi direcionada ao governo, na forma de pagamento de dívidas, uma parte da liquidez total foi objeto de mais restrição e não de qualquer política de estímulo à produção. Para complementar, além de sinalizar com a austeridade fiscal e reafirmar a disposição de congelar a indexação, o governo praticou taxas de juros elevadas entre setembro e dezembro. As taxas de juros, por sua vez, podem
aumentar muito a pressão sobre os preços na medida em que aumentam os custos do financiamento. O que se observou ao final do ano de 1990, com essa receita, foi uma recessão sem precedentes. O PIB caiu 4,6%, com 9% de queda do setor industrial e 15% do setor de bens de capitais. O desemprego subiu de 3,3% para 5,2%. Os resultados eram muito piores do que os observados na profunda recessão do período de 1981-1983 (Belluzzo e Almeida, 2002, p. 349). De acordo com Belluzzo e Almeida, monetaristas costumam atribuir o fracasso do Plano Collor a um ajuste fiscal aquém do necessário, mas o argumento é insustentável, na medida em que desconsidera a sequência de superávits primários obtidos pelo governo em 1990, sem paralelo, em qualquer outro período desde o início da crise. Os autores chamam a atenção para a reversão de expectativas que se impôs a partir de setembro, com o colapso da balança comercial, relacionado não apenas à abertura, mas ao aumento do petróleo e às instabilidades geradas pela Guerra do Golfo. Ou seja, chamam a atenção para o estrangulamento externo em um contexto no qual o Brasil não tinha acesso a financiamentos. Esse é um aspecto relevante a ser considerado. O único plano de estabilização que contará com a elasticidade de financiamentos para equilibrar custos externos regulares e de períodos de crise será o Plano Real, posterior à renegociação da dívida. Na segunda metade de 1990, a situação era de choque de custos, com aumento do petróleo, tarifaço, para compensar a inflação dos meses anteriores, e uma safra ruim. O cenário foi de estagflação, aumento de preços e recessão combinados (Belluzzo e Almeida, 2002). Nos primeiros meses de 1991, o governo negociaria com um Congresso insatisfeito os ajustes do Plano Collor II: um congelamento, que seria seguido por regulação de preços pelas câmaras setoriais e uma reforma financeira que taxou os investimentos de curto prazo e criou prazos longos para a aplicação da TR como indexador. Com isso, algum controle foi possível e a espiral recessiva foi sendo revertida. Mas o custo político das iniciativas do governo era altíssimo e se acumulava. Houve perdas salariais e de empregos, os setores médios tiveram seus projetos inviabilizados pelo bloqueio dos recursos, empresários quebraram, setores públicos foram extintos, como a Embrafilme, e as negociações da dívida ainda estavam travadas. Além de todas essas insatisfações acumuladas, a condução política do governo foi centralizada e unilateral. Os programas do governo foram concebidos sem negociações com quaisquer segmentos políticos, econômicos ou dos setores públicos. Na estreia da democracia com voto direto, tivemos um governo encastelado, de modo autoritário e intervencionista do ponto de vista econômico, contrariando o discurso de modernização liberal tão simbolicamente afirmado pelo presidente quando depreciou a industrialização brasileira ao chamar o nosso automóvel de carroça. Os resultados transformaram as frases de efeito e os modos de herói exibidos por Collor em caricatura do absurdo. Quando surgiu o escândalo de corrupção envolvendo o financiamento de campanha, o presidente não tinha aliados ou apoiadores em nenhuma parte. Pediu que a população saísse às ruas em verde e amarelo, mas ela foi à rua de luto, em protesto. A Globo,
que havia construído a personagem e apoiado a candidatura, ajudou a pautar seu impeachment . Seria apenas sua primeira vez a destruir presidente e mandato após a democratização. Collor foi impedido em dezembro de 1992, quando assumiu o poder em definitivo, o vice-presidente, Itamar Franco. O governo Collor foi também um período de avanço da ideologia neoliberal no Brasil. Apesar das intervenções e choques, que ao fim e ao cabo eram esperados por todos em função dos níveis inflacionários, a abertura comercial e o Plano Nacional de Desestatização simbolizaram a adoção de um projeto de transformação do modelo econômico que vigorou no país e que, de acordo com os economistas liberais, os anos de 1980 haviam demonstrado estar condenados por sua ineficiência. Apesar da desqualificação do modelo anterior, uma comparação superficial é suficiente para comprovar que nenhum programa dos anos 1980, por mais malsucedido que possa ter sido, produziu a tragédia do Plano Collor, com recessão, desemprego e a permanência da inflação. É fundamental que esse fato seja considerado porque houve ajustes calibrados, como os do Plano Bresser, que precisava de maior apoio do governo e de prazo mais longo para atingir os objetivos. Havia pouca margem para reestruturações e percebe-se, em cada plano contra a inflação, uma preocupação em preservar os segmentos mais vulneráveis da população, tanto no que se refere ao emprego, quanto à preservação do valor do salário. Essa preocupação perdeu centralidade na década das reformas neoliberais. No governo Collor não houve ganhadores. Depois disso, os governos neoliberais aprenderam a compensar, por meio do sistema da dívida pública, empresariado e rentistas. A conversão à ideia do Estado mínimo foi grande a partir do Consenso de Washington. Havia uma onda mundial propagando o repertório de argumentos em favor da integração ao mercado global. E é possível que o empresariado brasileiro tenha sido o primeiro segmento a aderir por considerar os benefícios da diminuição dos impostos aos setores produtivos que o modelo norte-americano de Ronald Reagan instituiu. Não existe outra explicação possível para a adesão de um setor industrial pouco competitivo, que contou com subsídios estatais para a sua sustentação ao longo dos anos 1980, e que não investia em tecnologia uma vez que a proteção financeira do capital havia se tornado mais segura e rentável do que qualquer plano de investimento. Em agosto de 1990, a Fiesp lançou um manifesto na linha das reformas neoliberais, cujo título era Livre para crescer – proposta para um Brasil moderno . A agenda, igual à de Washington, incluía a recomendação do Banco Mundial, de 1989, de revalorização da agricultura de exportação, o que deixa antever nossa desindustrialização e a volta ao passado agroexportador (Batista, 2009). Se a crise da dívida externa havia freado o projeto industrial brasileiro, o discurso da globalização e a adoção das reformas neoliberais, no início dos anos de 1990, acabaram de vez com ele. As exigências dos agentes externos que se aproveitavam da vulnerabilidade que eles próprios criaram em países em desenvolvimento foram atendidas e assimiladas como “dever de casa”, segundo as palavras repetidas pelos economistas e comentadores na nossa
grande imprensa. Dever cumprido disciplinadamente por países que precisavam voltar ao circuito de financiamentos internacionais. De imediato, o resultado da abertura comercial foi uma reversão do superávit comercial da América Latina, dos US$ 30 bilhões registrados em 1989, para um déficit de US$ 18 bilhões, em 1994, segundo dados da Cepal (Ayerbe, 1999). Em 1992, com o impeachment do presidente Collor, Itamar Franco, o vicepresidente do PL, porém historicamente ligado ao PMDB, assumiu a presidência e deu continuidade ao processo de abertura e privatizações. O maior problema da agenda política, entretanto, seguia sendo o controle da inflação. Mas Itamar teve as condições que nenhum outro mandatário antes dele teve, uma vez que a dívida externa estava finalmente sendo renegociada, por meio do Plano Brady, o que permitiria ao Brasil contar com uma flexibilidade de financiamentos para sustentar os ajustes. Ao promover a troca da dívida por bônus de longo prazo e descontos, a renegociação da dívida reabriu os canais de financiamento externo. A contrapartida era o compromisso com a realização das “reformas estruturais” exigidas pelo FMI e pelo Banco Mundial. O governo americano estava diretamente empenhado nas negociações, garantindo com títulos os bônus emitidos pelos devedores aos bancos credores. Parte das garantias era financiada também pelo FM, pelo Banco Mundial e pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento. Essa engenharia permite que se tenha clareza sobre o poder que os Estados Unidos passariam a exercer a partir da tutela que dividiu com as instituições financeiras multilaterais. O elemento essencial de acordos desse tipo [Iniciativa Brady] é a novação da dívida objeto de reestruturação, mediante sua troca por bônus de emissão do país devedor, cujos termos envolvem abatimento do encargo da dívida, seja sob a forma de redução do seu principal, seja por alívio da carga de juros. Para estimular a adesão dos credores, os bônus contam com a garantia integral ou parcial de pagamento de principal e/ou juros. A garantia de principal é dada, no mais das vezes, sob a forma de caução de títulos emitidos pelo Tesouro americano, cujo montante de resgate, quando de seu vencimento, pode ser utilizado no pagamento de principal dos bônus por ele garantidos. A garantia dos juros, por sua vez, toma a forma de um depósito efetuado em conta especial, em montante que é reinvestido de forma previamente acordada e computado como parte integrante das reservas internacionais do país. Na aquisição das garantias, o país devedor conta normalmente com financiamento oriundo dos organismos multilaterais – Fundo Monetário Internacional, Banco Mundial e Banco Interamericano de Desenvolvimento. (Cerqueira, 1997, p. 73)
Se, por um lado, os ajustes da estabilização poderiam ser garantidos a partir de então por financiamentos de importações, quando fosse necessário, por outro, os fluxos de pagamentos foram suavizados com diminuição real da dívida e alongamento dos prazos. O conforto da situação externa trouxe também o compromisso com a estabilização da moeda, a abertura econômica, a desregulamentação dos mercados e o programa de privatizações. Muitas novidades e desafios para um governo interino que, num curto período, teve nas mãos a oportunidade de pavimentar caminhos para a mudança. A sociedade esperava transformações, estava em busca de caminhos para sair da paralisia e do caos da instabilidade. Não havia certezas sobre para onde se caminhava, e a receita que se apresentava em tons róseos foi se consolidando como esperança, na repetição de alguns falsos dogmas como o do Estado ineficiente, o das empresas estatais como ralos de recursos, ou o dos funcionários públicos acomodados e pouco produtivos. Eram, enfim, inúmeras certezas que simplificavam as circunstâncias, ignoravam a história e prometiam uma solução mágica para um sistema econômico que nunca foi apresentado ao povo brasileiro, com suas características assimétricas e espoliadoras. A pauta da inflação havia feito submergir a questão das negociações externas e o debate sobre os interesses e desafios nacionais. De início, Itamar Franco parecia perdido. Nomeou três ministros da Fazenda nos primeiros meses de governo. Cada um passou pouco mais de dois meses no cargo sem ter qualquer resposta para o problema inflacionário. Fernando Henrique Cardoso, então ministro de Relações Exteriores, foi convidado para assumir a Fazenda, em maio de 1993. Reconstituiu a equipe econômica original do Plano Cruzado, economistas que haviam por muito tempo discutido a questão da inflação inercial, que divergiam em relação a algumas medidas como o congelamento, mas que estiveram empenhados intelectualmente com o estudo e análise do problema da inflação brasileira. Esses economistas jamais propuseram ou protagonizaram qualquer debate público sobre desenvolvimento, fundamentos produtivos da nossa economia, ou sobre o sistema internacional. Na sequência do plano Real, alguns desconsiderariam completamente o custo da âncora cambial para o país em termos de déficit crônico, pago a peso de ouro com altas taxas de juros. Para eles, se a inflação estivesse comportada, estava tudo resolvido, não importando o custo em déficits, novo endividamento, dessa vez interno, desindustrialização, desemprego e crescimento pífio. Se a inflação saísse do eixo, ou da meta, era por causa dos gastos públicos, objeto permanente de cortes que, irracionalmente, não atingiam os pagamentos de juros. Na vigência do Real, o Brasil aumentou impostos, privatizou empresas estatais e, ainda assim, aumentou seu endividamento e se desindustrializou. Os anos de 1990 foram, para o Brasil, um ciclo pior do que a década anterior, que havia sido chamada de “década perdida”. O Brasil construiu um novo dreno de riquezas, a dívida interna, e permaneceu refém de capitais externos que, até aqui, não garantiram ao país uma taxa de investimentos suficiente para manter o crescimento mínimo necessário à garantia de bem-estar e à diminuição da desigualdade.
O Plano Real teve sua genialidade com a criação de uma moeda estável antecedida por uma moeda paralela, a Unidade Real de Valor (URV), o que permitiu a previsão de um período de tempo para o realinhamento de preços. A ideia foi resgatada de um estudo anterior ao Plano Real, dos economistas Pérsio Arida e André Lara Resende, e aprimorada pelas experiências fracassadas dos planos passados. O mecanismo do congelamento era objeto de profunda desconfiança da sociedade e contrariava, desde o início da elaboração dos planos heterodoxos, muitos economistas. Congelar todos os preços ao mesmo tempo implicava a paralisação de todos os reajustes para todos os agentes, independentemente da defasagem de alguns preços em relação àqueles que foram reajustados por último, independentemente da defasagem em relação aos custos, por exemplo, quando os congelamentos eram acompanhados por realinhamento de tarifas públicas. Para evitar tal distorção e as pressões inflacionárias que se seguiam aos congelamentos, a equipe do Plano Real imaginou o mecanismo de uma moeda estável paralela, que, embora não pudesse ser uma moeda, por impossibilidade legal, funcionaria como uma unidade referencial de valor, ou seja, uma função que a moeda corrente havia transferido há muito às unidades de indexação do Tesouro. Haveria um período de “otenização” (uma referência à OTN) em que os preços se adaptariam à unidade de valor cuja cotação na moeda inflacionária era ajustada diariamente. Depois deste período, a unidade de valor se transformaria em nova moeda estável, substituindo a anterior e se mantendo com valor fixo. Assim, em março de 1994, uma Medida Provisória instituiu a URV. Em julho do mesmo ano, a URV se transformou em moeda de circulação, o Real. Tudo de acordo com um plano estabelecido, divulgado e amplamente conhecido da população. Um aprendizado em relação aos demais planos e às instabilidades que causaram, além de um mecanismo mais inteligente de tornar a sociedade parceira do empreendimento da mudança. Os objetivos eram comuns, afinal, governo e sociedade (todos os atores) queriam estabilidade monetária e previsibilidade. Publicizar o passo a passo do Plano Real foi uma forma de garantir a adesão de todos os atores sociais e econômicos no processo de desindexação e criação de uma nova moeda. Essa adesão, entretanto, era apenas um elemento de diminuição de pressões inflacionárias e especulativas, que mesmo assim ocorreram, com grandes remarcações na véspera da mudança da moeda. O mais importante foi o conjunto de mecanismos que permitiram a manutenção dos preços, ou, pelo menos, a desaceleração da inflação, muito parecidos aos utilizados nos demais processos de estabilização da América Latina, e estreitamente identificados com a agenda de abertura da economia tal como condicionada pelas instituições financeiras internacionais que avalizaram o acordo da dívida externa. O primeiro foi a âncora cambial que, além de impedir flutuações de preços, manteve a moeda nacional valorizada, permitindo um aumento sem precedentes de importações, ao ponto de muitos empresários nacionais considerarem como alternativa a opção pela importação em lugar da produção de bens. O segundo foi a política monetária contracionista.
Inicialmente, as taxas de juros mantiveram-se elevadas para conter o consumo e a pressão sobre os preços, mas na sequência passaram a ser essenciais para atrair capitais que pudessem compensar o déficit comercial em expansão. O controle da inflação deu a Fernando Henrique Cardoso expressão nacional, garantindo sua vitória nas eleições de 1994. Não apenas a inflação havia se transformado em agenda pública número um nos anos anteriores, como, de fato, a única mudança que pareceu ter impacto em um cenário de tantas expectativas foi o sucesso do plano de estabilização. A credibilidade do ministro da Fazenda e de sua equipe foi alcançada tanto pelos resultados imediatos da redução da inflação quanto pela adesão política ao ideário de mercado sustentado por eles. Os custos da vitória contra a inflação apareceram desde o início e eram destrutivos para a indústria nacional. A economista Maria da Conceição Tavares avaliava como preocupantes as primeiras reações da economia ao plano. Para os grandes exportadores e alguns complexos multinacionais, a tendência foi buscar crédito no exterior para compensar, com o diferencial de juros, a perda derivada da sobrevalorização cambial. Para o capital especulativo nacional e internacional, o atrativo das altas taxas de juros era irresistível desde a queda da taxa de juros americana no mercado internacional. Assim entraram mais de trinta bilhões de dólares e calcula-se que o smart money financiou mais de quinze bilhões de acumulação de reservas até fins de 1994. O modelo de estabilização adotado pelo governo com a implantação do Plano Real seguiu as linhas gerais da política neoliberal, generalizada a partir da experiência mexicana. A sobrevalorização cambial e a abertura comercial foram mais bruscas no Brasil, tendendo a provocar rapidamente déficits na balança comercial, que o governo supunha continuariam a ser financiados pela entrada de capitais. (Tavares, [1995] 1999, p. 79) Logo se verificou que as condições para a manutenção do fluxo de capitais estavam absolutamente fora do controle governamental, ou seja, os fluxos internacionais independiam de mecanismos de política econômica internos e respondiam aos movimentos de múltiplas determinações do mercado global de capitais. A crise mexicana expôs a vulnerabilidade desse modelo de financiamento do déficit da balança comercial. E foi apenas o primeiro sobressalto. O Brasil seria profundamente impactado pela crise asiática e da Rússia, que o levaria à ameaça da insolvência em 1998 e à desvalorização cambial em 1999. Em 1995, entretanto, sob os efeitos da queda da inflação e da expansão do consumo, sobretudo de bens duráveis, a atividade industrial cresceu, o que foi um sinal positivo embora com impacto no nível de poupança e de importações. Essa tendência seria revertida nos anos seguinte, com um processo progressivo de desindustrialização. O que estava evidente desde o início era a crise fiscal que ocorria apesar da elevação da arrecadação relativa ao ciclo de crescimento. O desequilíbrio fiscal foi determinado pelo endividamento interno que resultou da necessidade de garantir o balanço de
pagamentos impedindo a fuga de capitais especulativos com altas taxas de juros. A mencionada conjugação da apreciação do câmbio no início do plano com a abertura comercial acarretou, por um lado, drástica redução da inflação, mas, por outro, esteve associada à deterioração expressiva das contas externas do país no primeiro governo Fernando Henrique Cardoso. Em particular, os megassuperávits comerciais da segunda metade da década de 80 foram transformados em déficits importantes a partir de 1994. Essa transformação foi desencadeada, em especial, pelo rápido crescimento das importações, uma vez que a expansão das exportações brasileiras não foi suficiente para compensar o aumento de suas compras externas. Enquanto as importações cresceram 77%, no comparativo 1988-1994, as exportações aumentaram apenas 17%. (Pinheiro et al., 1999, p. 24) Capítulo 5 FHC e a consolidação do neoliberalismo No balanço do primeiro governo de Fernando Henrique Cardoso, constata-se a queda da inflação e sua permanência em patamares baixos, as contas públicas com elevado desequilíbrio, o câmbio apreciado e a deterioração dos resultados da conta corrente. Apesar do propósito afirmado de cortar gastos públicos, as transferências para famílias, via aposentadorias, aumentaram e foram incrementadas pelo aumento real do salário mínimo em 1995. Também é possível verificar uma piora da situação fiscal dos estados. Os problemas do modelo de estabilização com abertura comercial, câmbio valorizado e juros altos se traduziram na queda do crescimento até a estagnação que se verificou no contexto da crise de 1998. Contra uma média de 5,4% no biênio 93/94 e 3,6% no triênio 95/97, em 98 o resultado do PIB brasileiro foi 0%. Entre 1994 e 1998, as exportações cresceram 4,1% ao ano, enquanto o comércio mundial cresceu 7,6%. O déficit em conta corrente, que inclui remessas e pagamentos ao exterior além do comércio, de 0,3% do PIB, em 1994, saltou para 4,5% em 1998. Internamente, a situação não foi melhor, como vimos, graças ao endividamento que a política monetária provocou. O déficit fiscal de 0,4% do PIB, em média, entre 91-94, elevou-se para 5,2%, entre 1995-98; as despesas com juros passaram de 3,3% do PIB para 5% do PIB. Quanto ao resultado primário, que foi de 2,9% do PIB entre 91-94, houve queda para -0,2%. O desempenho econômico sob o Real foi muito ruim e de clara retração nos primeiros cinco anos (Pinheiro; et al., 1999). É evidente que o custo da estabilização foi altíssimo para a economia brasileira. Comparando-se a dívida líquida do setor público brasileiro em diferentes períodos desde 1981, ano do ajuste recessivo em resposta ao início da crise da dívida e do efeito das altas taxas internacionais de juros, a dívida saiu de 23,7% do PIB para 53,4% do PIB, em 1984, começou a cair para chegar a 26% do PIB, em 1994, e atingiu 38,3% em 1998. E saltou em trinta dias, no auge da crise cambial, para 48% do PIB, um aumento de 10 pontos em apenas um mês (Averburg e Giambiagi, 2000). Não há, portanto, justificativa para uma avaliação positiva em relação à responsabilidade fiscal do governo de Fernando Henrique Cardoso, o que quer que essa
responsabilidade signifique genericamente, porque, via de regra, os custos financeiros da estabilização não foram considerados pelas medidas de ajuste fiscal. Como era previsível, considerando os números, o governo terminou seu primeiro período preconizando um grande ajuste fiscal, do qual resultaria a aprovação, em 2000, da Lei de Responsabilidade Fiscal, sem que o modelo dependente de capitais externos e de altos juros fosse questionado. O ajuste positivo, entretanto, foi a liberalização do câmbio, que permitiu, no segundo período de governo, a recuperação da balança comercial e a melhora das contas públicas por um breve período. Um dos indicadores mais negativos das políticas neoliberais foi o desemprego, que avançou. O problema era central para o debate político e, sobretudo, eleitoral, e permitiu que a oposição se beneficiasse por meio de sua identificação aos trabalhadores. A centralidade da questão mobilizou também o empresariado que, assumindo os termos da competição global predadora, passou a afirmar que o custo da mão de obra era excessivamente alto no Brasil e, portanto, era preciso mudar as leis trabalhistas. Essas leis, entretanto, não haviam se alterado em relação aos períodos anteriores, de sorte que a reclamação não procedia, ou seja, elas não podiam ser apontadas como causa do aumento do desemprego. Essa discussão seria retomada em momentos de crise, até ser apresentada em forma de projeto de lei que foi aprovado após o golpe de 2016. Na comparação, a década de 1990, apesar do Plano Real, foi pior do que a anterior, conhecida como a “década perdida”. Do ponto de vista do estrangulamento da capacidade de investimentos, o Brasil perdeu, apesar de toda a propaganda em favor da privatização e da abertura aos investimentos estrangeiros. Os ativos privatizados apenas migraram de mãos, não resultando em expansão de investimentos novos que superassem os números da década anterior. As privatizações, na verdade, significaram a entrada de recursos para o ralo do déficit público reproduzido pela remuneração dos capitais financeiros. A extorsão dos juros da dívida externa foi substituída pela remuneração da dívida interna, que significou uma dependência pronunciada da entrada de capitais e de saldos comerciais dos setores tradicionais de exportação. O Brasil entrou num processo de reprimarização de sua economia. Tabela 8. Indicadores: PIB, investimentos, exportações e desemprego Fonte: Pinheiro, Armando Castelar. O desempenho macroeconômico do Brasil nos anos 90. 1999, p.13. A pior situação foi a observada com a crise da Argentina de 2001. A âncora cambial levou o país à escalada do endividamento, à insolvência e ao defalut, depois de inúmeros ajustes com cortes de gastos e a privatização do patrimônio público. Em síntese, o cenário na América Latina foi o de um conjunto de governos adotando a âncora cambial (alguns adotaram o dólar como moeda, como o Equador) e a abertura comercial simultaneamente. Todos eles assumiram a valorização cambial em prejuízo de suas exportações, gerando déficits que engoliram as receitas de privatizações e os levaram a riscos graves de insolvência. Venderam o patrimônio público,
perderam mecanismos soberanos de política econômica e faliram. Na sequência, os governos neoliberais entrariam em descrédito e perderiam eleições para oposições identificadas ao campo político da esquerda, que cresceram na esteira dos fracassos neoliberais. Para Batista (2009), o Consenso de Washington foi uma reedição do open door colonialista, sem canhoneiras e em contradição com as práticas dos Estados Unidos. Os resultados se limitaram à estabilização monetária, e foram trágicos quando considerados o desemprego e a crescente miséria. O primeiro mandato do presidente Fernando Henrique Cardoso começou com a euforia após o Plano Real, que permitiu o aumento imediato do poder de compra e do consumo. A manutenção dos preços e a quebra da inflação inercial – que projeta nos preços a inflação passada numa espiral de aumentos – foram possíveis em grande medida pela âncora cambial que promoveu uma expressiva ampliação das importações. Sob concorrência, os preços que foram alinhados previamente pela URV permaneceram estáveis. O índice de preços de 1995 ficou em 22,41% e começou a cair, mantendo-se em um dígito até o ano eleitoral de 2002, quando o dólar disparou diante da possibilidade de mudanças nos rumos da política econômica com a perspectiva da vitória de Lula. Antes de 2002, os preços oscilaram em função da variação cambial, com queda da inflação até a crise de 1998, quando o câmbio passou a flutuar e houve imediata recomposição de preços. A resposta do Banco Central à inflação resultante foi a elevação da taxa de juros e a inflação voltou a patamares relativamente baixos. O mesmo processo se repetiu após no ano eleitoral. No governo de Luiz Inácio Lula da Silva, mantiveram-se altas as taxas de juros e o câmbio voltou a patamares compatíveis com a estabilização de preços dos insumos e produtos importados.
Gráfico 1. IPCA, Selic*, PIB 1996-2003 Fonte: Ipea, Boletim Conjuntura, 67, 2004; Banco Central. • Selic anualizada. As taxas de juros praticadas pelas autoridades monetárias no Brasil têm sido elevadas desde a década de 1990 com a justificativa de conter a inflação,
inibindo o crédito e o consumo. A retração da atividade econômica e do investimento produtivo é a consequência direta e inequívoca, o que implica a necessária calibragem do remédio. O que se percebe no exame do governo Fernando Henrique Cardoso (FHC), entretanto, é o uso da taxa de juros para atrair capitais necessários ao financiamento no rombo da conta corrente do país. O índice de preços caiu vigorosamente entre 1995 e 1998 e a taxa de juros subiu significativamente. O orçamento público passou a financiar uma conta insustentável de juros enquanto as condições de investimentos eram deprimidas. Com o abandono da âncora cambial, em 1999, o Comitê da Política Monetária (Copom) passou a definir os juros com o objetivo de garantir a meta de inflação estabelecida pelo Conselho Monetário Nacional. A âncora dos preços passou a ser a meta, que é um desejo, nada mais. Um parâmetro com essa natureza não pode garantir que a maioria dos agentes econômicos se comporte de acordo com ele, porque não pode fixar as variações e a estabilidade de preços nacionais e internacionais. Os preços passaram a oscilar de acordo com as conjunturas, sensíveis ao dólar, ao maior ou menor aquecimento do mercado, e, é claro, à própria taxa de juros, que encarece o crédito e é um parâmetro para a tomada de decisões sobre o lucro. Ou seja, uma taxa de juros cronicamente elevada é também um elemento de formação de preços. E essa relação nunca é mostrada pelos analistas econômicos dos meios de comunicação. As taxas de inflação no Brasil são cronicamente altas também porque o preço do dinheiro é excessivamente caro e o cálculo sobre a lucratividade do investimento considera a remuneração financeira do capital uma alternativa atraente para o investidor. Uma observação dos anos de 2015 e 2016 desautoriza a tese dos especialistas do Copom sobre a eficácia da taxa de juros no combate à inflação. A inflação só abaixou quando a atividade econômica já vivia uma depressão de longo prazo e sem precedentes. Somente depois de três anos de retração econômica, em 2017, os preços deixaram de subir. Todos os economistas preocupados com a recessão observavam que o aumento dos preços estava relacionado ao aumento de tarifas de serviços de 2015 e a pressões cambiais. Não havia inflação por excesso de demanda que pudesse ser contida com aperto monetário. É importante, além disso, que esses economistas passem a considerar também o efeito dos juros, porque ele pode ser contrário ao que se anuncia. Não há como evitar a desconfiança em relação ao fato de que qualquer inflação tenha se transformado em justificativa para garantir a remuneração do capital. O Brasil alimentou uma cultura de juros altos desde o Plano Real, e ela perdurou mesmo quando a economia deixou de depender da entrada de capitais de curto prazo com o abandono da âncora cambial e a melhora dos resultados da balança comercial. Embora o problema da conta de serviços tenha se mantido, o boom de exportações de commodities que ocorreu entre 2002 e 2009 havia garantido ao país um confortável nível de reservas cambiais. O primeiro mandato do presidente FHC foi um período de queda contínua da inflação, comemorada por analistas econômicos que identificaram a baixa inflação à “estabilidade”, uma palavra que permaneceria como legado daquele governo. A “estabilidade” do discurso dos analistas esconde ainda
hoje a alta do desemprego, a dívida pública e a trajetória de desindustrialização do país. O problema da balança comercial foi detectado imediatamente após o Plano Real. O Brasil perdia reservas, precisava de taxas de juros convidativas para garantir um fluxo de capitais que financiasse o déficit de transações correntes e, em razão desse desequilíbrio, foi aprovada a Lei Kandir, em 1996, na tentativa de estimular as exportações. A medida desonerava da cobrança de ICMS (imposto sobre circulação de mercadorias arrecadado por estados) os produtos primários e semielaborados para exportação. Os estados tiveram suas receitas diminuídas para tentar viabilizar as exportações, sem os efeitos esperados . ⁹ A moeda valorizada impediu a reação das exportações brasileiras e o déficit comercial do país se manteve até 2001. Somente a partir de 1999, com o abandono da âncora cambial, as exportações começaram a reagir. Tabela 9. Déficit da balança comercial em US$ (milhões) Fonte: Ipea. Boletim de Conjuntura, 57, 2002. A conta de serviços e rendas do Brasil, que inclui gastos de turismo, fretes, seguros e transferências de juros e dividendos é historicamente deficitária e precisa ser compensada pelas exportações que auferem as divisas necessárias ao pagamento das contas externas. Quando elas se tornaram insuficientes para cobrir a diferença e as importações aumentaram a conta externa a ser paga, em razão da abertura comercial e da elevação do câmbio, o país ficou refém dos investimentos externos, diretos ou de portfólio, os quais precisou remunerar em patamares extravagantes. A atração dos recursos externos determinou a alta de juros e o dreno da riqueza nacional, ou seja, “as entradas de ‘investimento de portfólio’ financiaram a saída líquida de capital produtivo” (Belluzzo e Galípolo, 2017, p. 45). O país trocou o estrangulamento da dívida externa dos anos 1980 pelo estrangulamento da dívida interna, remunerando os mesmos interesses financeiros e ainda mais tolhido para a tomada de decisões sobre política econômica e desenvolvimento. Uma vez que o processo de “estabilização” foi anunciado como uma conquista e, dessa forma, passou a ser comemorado pelo discurso tanto do governo, quanto dos meios de comunicação, a despeito de seu custo para a economia, para o emprego e, sobretudo, para o desenvolvimento tecnológico do país, os partidos políticos adotaram a fórmula da submissão aos ditames da estabilização, empenhando–se na defesa do legado do governo FHC. O espaço para a afirmação de programas de desenvolvimento da economia nacional é muito menor hoje do que foi nos anos de 1980. Não se trata apenas da estrutura financeira da globalização a manietar os instrumentos de política econômica. Existe uma adesão de parte da elite ao projeto neoliberal. Ela caiu, com os fracassos dos anos 1990, e voltou a aumentar após 2014. E é preciso investigar que fatores determinam esse movimento. A economia brasileira não é a de uma pequena nação e tem a dimensão e os recursos necessários para permitir a negociação dos termos da integração global do país. Se comparada à China, a economia brasileira parou nos anos 1980, quando sua participação no mercado internacional equivalia à
chinesa. Outro exemplo de retomada das decisões de política econômica contrariando os preceitos do mercado é a Rússia, a partir da crise de 1997. Mesmo países pequenos e completamente dependentes do mercado internacional procuram, por meio da disputa de projetos alternativos, negociar os termos de integração em benefício dos interesses do seu povo, como na América Latina os exemplos do Equador, no governo de Rafael Correa e da Bolívia, no governo de Evo Morales. É claro que as pressões sobre o Brasil são maiores em razão da imensa riqueza e do tamanho do mercado que representa, mas as decisões dos anos 1990 transformaram o país no paraíso da reciclagem de capitais a altas taxas, basta observar as taxas de juros do mundo após a crise de 2008 e as praticadas no Brasil. O processo de “estabilização” da moeda foi caro e destruidor da trajetória de industrialização e desenvolvimento do país, tanto em termos da economia real, quanto em termos ideológicos. Durante o seu curso, a propaganda neoliberal construiu uma narrativa de modernização com exclusividade nos meios hegemônicos de comunicação, criou mitos e sonegou informações à população sob o manto do jornalismo das corporações. Em A Grande Transformação , demonstrando a construção histórica do mercado autorregulável, Polanyi identificou a necessária separação entre economia e política (1980). Os mecanismos econômicos ganhavam liberdade e vida própria, protegidos das intervenções dos governos, embora essa proteção significasse, ela mesma, uma ação permanente do poder político. O mercado se impôs novamente nas últimas décadas, e sua propaganda institucionalizada continua promovendo o mito da sua naturalidade e do atraso das políticas econômicas de desenvolvimento. Foi durante o período das reformas do governo de FHC que esse discurso se tornou hegemônico no Brasil. Apesar da evidente centralidade dos economistas e das decisões políticas para reestruturar a economia em termos absolutamente diversos dos historicamente estabelecidos no capitalismo brasileiro, das gravíssimas decisões políticas como vender patrimônio público de setores estratégicos e de infraestrutura, e dos planos e intervenções econômicas de todo tipo para tentar salvar o país do caos do mercado globalizado, advoga-se a neutralidade da economia e o Estado apenas como gestor de recursos públicos! Farsa e o esquecimento proposital contribuíram para a construção de uma memória mitológica sobre os anos recentes, com participação de partidos e líderes políticos. Na sequência da domesticação da hiperinflação feita pela engenharia política, outra grande intervenção mostrou a imperfeição do mercado e a necessidade absoluta de regulação da empresa privada. O Programa de Estímulo à Reestruturação e Fortalecimento do Sistema Financeiro Nacional (Proer), foi criado para salvar instituições financeiras da ameaça de quebradeira e evitar uma crise bancária após o fim da indexação da moeda. Muitos bancos tinham a rentabilidade garantida pelas operações de títulos que garantiam depósitos com atualização monetária. E podiam compensar ineficiências e mesmo operações de crédito de liquidação duvidosa por meio da remuneração dos depósitos à vista e de recursos em trânsito. Com o fim da indexação, os depósitos diminuíram, bem como sua rentabilidade. Os bancos perderam em torno de R$ 19 bilhões em receitas inflacionárias
(Barros e Almeida, 1997) e foram forçados a uma adaptação, com aumento da oferta de créditos ao consumo. Além dos desafios dessa transição, havia mecanismos de fraude encobertos pela dinâmica da remuneração financeira, como foi constatado no Banco Nacional, um dos grandes bancos brasileiros. Depois do Econômico, outro grande banco, a quebra do Nacional indicava a possibilidade de risco sistêmico, crise de confiança e corrida bancária. Na medida em que os empréstimos interbancários funcionam como um seguro que os bancos fazem para suas operações, diante da quebra de dois dos maiores bancos brasileiros, havia o risco de contaminação de todo o sistema, de sorte que a intervenção se apresentava como uma necessidade. Era preciso empreender uma operação de salvamento do sistema e de garantia dos depósitos dos bancos quebrados. O Proer regulamentou a aquisição de bancos com problemas patrimoniais e de solvência, criando estímulos fiscais e linhas de crédito para as operações. De acordo com os dados do Banco Central, foram gastos R$ 20,4 bilhões no programa, destinados aos bancos Econômico, Nacional, Crefisul, Banorte, Mercantil, Pontual e Bamerindus. Também a Caixa Econômica recebeu recursos do programa para a aquisição das carteiras hipotecárias dos bancos Econômico, Banorte e Bamerindus. Os bancos foram divididos em duas partes, uma boa e outra ruim. A boa foi vendida com recursos do programa, a ruim liquidada. Com o Proer, começou um processo de concentração do capital bancário que foi continuado depois com novos processos de fusões e aquisições, originando um sistema altamente monopolizado. O número de instituições bancárias, caiu de 241, em 1993, para 201, em dezembro de 1998. A parte boa do Banco Econômico foi vendida ao Excel, em 1995, e este foi vendido ao Bilbao Vizcaya, em 1998. A parte saudável do Banco Nacional foi vendida ao Unibanco, que depois seria incorporado em processo de fusão pelo Itaú. A parte boa do Bamerindus foi comprada pelo HSBC, em 1997. O BCN foi comprado pelo Bradesco, em 1998. E o Banco Real foi comprado pelo ABN Amro, em 1999. Estava em curso não apenas de concentração de capital, mas também a internacionalização do sistema financeiro do Brasil. O sistema ganhou solidez, o que se comprovou durante a crise de 2008, mas a concentração que permite aos grandes bancos uma real competitividade no sistema global é também um elemento fundamental da hegemonia da alta finança sobre os projetos nacionais. Bancos e fundações a eles ligadas ou por eles patrocinadas estão na origem do credo neoliberal que alimenta a inteligência brasileira hoje. É um poder incontrastável, no campo das ideias, dos projetos de educação e, é claro, no campo da política econômica e monetária. Hoje, Ministério da Fazenda e Banco Central estão sob comando de agentes oriundos do sistema financeiro implementando políticas que são anunciadas como neutras e sobre as quais não são toleradas interferências políticas. Até o debate é interditado nas diversas sessões parlamentares convocadas para aprovar reformas pautadas pelo “mercado”.
As aquisições no sistema bancário e o fortalecimento das grandes instituições financeiras foram ampliados ainda mais com a reestruturação dos bancos estaduais, por meio de um programa próprio, criado em 1996, o Programa de Incentivo à Redução do Setor Público Estadual na Atividade Bancária (Proes). Durante o período inflacionário, os bancos estaduais cumpriram um papel fundamental para a receita dos estados, beneficiandose dos lucros inflacionários dos depósitos, inclusive os relativos aos pagamentos dos próprios estados. Em 1996, segundo dados do Banco Central, os bancos estaduais detinham 17,6% dos ativos do sistema bancário, contavam com 3.900 agências e 134 mil funcionários, o que representava 22,4% do SFN. Com exceção dos novos estados, Mato Grosso do Sul e Tocantins, todos haviam criado seus próprios bancos. Eram 25 bancos comerciais, 2 caixas econômicas, 5 bancos de desenvolvimento e mais 32 empresas financeiras de outras naturezas, totalizando 64 instituições financeiras estaduais (Salviano Jr., 2004). Apesar das críticas que os apologistas do mercado fazem aos bancos públicos e às especificidades da administração dessas instituições que implicam, por óbvio, decisões políticas, os bancos estatais permitem que a atividade comercial bancária, altamente lucrativa, subsidie a atividade de fomento. Ao contrário dos bancos privados, cujo lucro é apropriado por acionistas e depende da decisão exclusiva destes se os recursos serão aplicados em atividades financeiras ou produtivas, os bancos públicos são importante instrumento de financiamento de políticas públicas e programas de investimentos produtivos. É preciso lembrar também que os bancos privados não estão imunes à corrupção que é frequentemente atribuída à gestão política de empresas. O caso do Banco Nacional evidencia a grossa corrupção que é parte da gestão privada tanto quanto da pública. A diferença que se deve ressaltar é o fato de que a empresa pública tem compromissos com objetivos políticos, ou seja, com a agenda de realizações de um determinado projeto coletivo, enquanto a empresa privada está comprometida com a distribuição de lucros e dividendos aos acionistas, o que pode passar bem longe de qualquer resultado benéfico para a sociedade. É claro que isso não isenta os bancos públicos de regulação e fiscalização. O maior problema dessas instituições, entretanto, se deve à falta de objetivos estratégicos, uma vez que as administrações correspondem, em geral, aos ciclos eleitorais e, portanto, a resultados de curto prazo. Diante do estrangulamento de financiamentos externos e federais dos anos 1980, os bancos estaduais assumiram as operações de créditos para os seus governos controladores, colocando-se em posição de risco. Em 1992, segundo dados do Banco Central, essas operações representavam mais de três vezes o valor do patrimônio líquido dos bancos: o patrimônio real, descontando-se as provisões de operações em atraso e operações liquidadas era negativo. Havia um grande rombo nos bancos estaduais mesmo antes do fim das receitas inflacionárias. Na verdade, esses bancos passaram uma década criando moeda sem lastro para manter investimentos e serviços dos estados. Não podiam ter outra situação que a de um grande endividamento a ser equacionado. O Banco Central tentou, sem sucesso, controlar a situação por meio de resgates, perdões de encargos e regulações. Em 1987, foi criado o Regime de Administração Especial Temporária (Raet),
regulamentando a forma de intervenção pela administração temporária de instituições financeiras com problemas. Imediatamente após a criação do dispositivo, 28 instituições financeiras estaduais sofreram intervenção com Raet e, mais tarde, outras 8. Três bancos de fomento foram liquidados. Depois do Plano Collor e do aperto de liquidez, mais uma rodada de problemas, mais socorros e novas condições e normas mais rígidas. O custo dos diversos programas de saneamento destinado aos bancos estaduais entre 1983 e 2001 foi de R$ 61,5 bilhões de reais (Salviano Jr., 2004). A cifra parece espetacular, mas comparada aos R$ 20,4 bilhões do Proer em apenas dois anos, não é significativa se considerarmos que os bancos estaduais financiaram os estados durante uma década de crise de financiamentos da economia brasileira. Mesmo assim, o governo federal, durante o mandato de Fernando Henrique Cardoso, decidiu enquadrar o sistema de bancos estaduais no receituário das privatizações, retirando dos estados os seus instrumentos de financiamento e fomento. A receita inflacionária havia secado e o ajuste fiscal se impunha diante das dificuldades e custos para a manutenção da moeda. O tratamento da questão dos bancos estaduais começou a mudar ainda no governo Collor. A função social dessas instituições deixou de ser considerada e elas passaram não apenas a ser criticadas, como tiveram sua viabilidade econômica questionada. Ou seja, passaram a ser vistas e avaliadas pelo Banco Central como empresas comerciais, sustentáveis ou não, e nada mais. A agenda de ajuste fiscal imposta pelo Consenso de Washington, e adotada a partir de 1990, foi decisiva para a sorte dos bancos estaduais.
No governo de Fernando Henrique Cardoso, com a sustentação de um plano de estabilização monetária que na aparência parecia um sucesso, o programa neoliberal seria realizado. Compreendido e adotado como o caminho da modernização contra o Estado “paquidérmico” e pesado demais para se mover com desenvoltura no mundo globalizado, o programa foi incorporado como racionalidade absoluta pelos setores médios da sociedade, com impactos de longo prazo que sobrevivem na repetição dos mesmos clichês do Estado mínimo. Essa é uma parte fundamental da história porque é o momento em que se extirpa do Estado e de seus entes federativos patrimônio construído com dinheiro público e instrumentos de política econômica fundamentais para o desenvolvimento e a soberania. O uso da palavra extirpar não é retórico. As atividades subtraídas às instituições públicas passaram às mãos da iniciativa privada a preços vis e os recursos obtidos nessas transações foram rapidamente gastos, cobrindo rombos deixados pelos permanentes déficits. A dependência da entrada de capitais externos atraídos pelas taxas de juros havia levado o país a uma situação fiscal insustentável. O aumento da dívida desse modelo impede permanentemente que o país volte a pensar em investimentos e em uma atuação consistente na promoção do desenvolvimento econômico, de sorte que a venda do patrimônio público não apenas não era razoável do ponto de vista da diminuição do poder de agenda do Estado, como também do ponto de vista do equilíbrio das contas públicas para o investimento nos serviços sociais. As privatizações não representaram nenhuma ampliação da capacidade dos governos de cumprirem suas atribuições. Na década de 1990, o que se observou foram Estado e demais entes da federação asfixiados pelo endividamento. Estrangulados pelos créditos aos governos locais e pelo fim das receitas inflacionárias, alguns bancos estaduais fecharam o ano de 1994 com débitos bilionários junto ao Banco Central, como foi o caso do Banespa, o maior dos problemas, e em menor grau os bancos do Rio de Janeiro, Minas Gerais e Rio Grande do Sul. A equipe econômica tinha clareza de que a meta do Brasil era a moeda estável e de que sua manutenção dependia de ajuste fiscal, portanto não tinha dúvidas sobre a necessidade de separar os estados de seus bancos financiadores para garantir a imposição do ajuste fiscal. O final do processo de subordinação dos estados ao programa de ajuste fiscal seria a aprovação da Lei de Responsabilidade Fiscal, em 2000. Quando a maior parte dos bancos já havia sido privatizada, a LRF impediria que bancos públicos emprestassem recursos para os seus controladores, assim como criaria limites para o endividamento de estados, municípios e empresas públicas, com penas que vão da cassação de mandatos à prisão dos gestores públicos. Em dezembro de 1994, na sabatina do Senado Federal, Pérsio Arida, indicado pelo presidente eleito Fernando Henrique Cardoso para a presidência do Banco Central, anunciou o seu propósito de privatizar os bancos estaduais. A deterioração do Banespa e do Banerj era evidente. Os bancos necessitavam de créditos diários de liquidez quando, naquele mês, o Banco Central suspendeu essas operações e decretou o Raet nos dois bancos. Essa medida marcou uma ruptura no tratamento dos bancos estaduais pelas autoridades monetárias do país. E só foi possível pela conjuntura política de afirmação da agenda de estabilização junto à
sociedade, traduzida na vitória eleitoral de FHC e de governadores que o apoiavam. Nos dois meses seguintes, mais 3 bancos estaduais foram submetidos ao regime de Raet. A solução definitiva para o Banco Central era a privatização dos bancos. O governador do Rio, Marcelo Alencar, do partido do presidente, não criou oposição, mas em São Paulo a reação foi fortíssima. O governador Mário Covas, também do partido de Fernando Henrique, não queria aceitar que o estado ficasse com a dívida pública que tinha junto ao Banespa sem um refinanciamento de longo prazo. As negociações foram demoradas e a dívida paulista teve um grande aumento enquanto não se decidiam os termos de um acordo. O impasse diante do maior estado e da maior dívida do Brasil, cruciais para qualquer plano de ajuste, levou o governo federal à edição do Programa de Incentivo à Redução da Presença do Estado na Atividade Bancária (Proes). O programa estendia a todos os estados a possibilidade de refinanciamento de dívidas, induzindo os governadores a privatizarem os bancos estaduais. Pouco depois da criação do Proes, em dezembro de 1996, o governo criou uma Medida Provisória regulamentando o refinanciamento das dívidas dos estados em até 30 anos, com juros de 6% ao ano mais IGP-DI, limitando as parcelas a um percentual das receitas líquidas. Os estados estavam em situação de endividamento e sem capacidade de refinanciamento. Apenas 6 dos 27 entes da federação tinham o Indicador de Meta Fiscal (IMF), que mede a relação entre a dívida e o PIB, igual ou menor que 1. A média era de 1,89, e 6 estados tinham IMF maior que 2: Piauí, Minas Gerais, São Paulo, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul e Goiás (Gama Neto, 2011). O desequilíbrio era sistêmico e derivado do longo período de estrangulamento financeiro do país. Nessa conjuntura de extrema fragilidade, criou-se a estrutura institucional para saneamento dos estados por meio da abertura de novos créditos e de incentivo às privatizações como forma de antecipação dos créditos. O aceno com recursos a governos sem saída foi instrumento para fazê-los aceitar os compromissos do ajuste macroeconômico. No âmbito do Proes, de 64 instituições financeiras estaduais, 14 foram extintas e 27 foram privatizadas durante o governo de Fernando Henrique Cardoso (Salviano Jr., 2004). O programa disponibilizou novos créditos nas mesmas condições do refinanciamento de dívidas, com pagamentos em 30 anos atualizados pela variação do IGP DI e mais 6% de juros. Essas taxas eram menores do que as do financiamento do próprio governo federal, que mantinha juros elevados, mas caríssimas, sobretudo se considerarmos o longo prazo e o fato de que os estados haviam perdido importantes instrumentos de financiamento. Foi uma ruptura do padrão de financiamento do setor público feita num contexto de alto endividamento em razão dos planos recessivos de estabilização e do longo período de isolamento financeiro. Perdidas as receitas inflacionárias, os maiores bancos estaduais estavam, de fato, insolventes. O governo federal contou com essa circunstância para transformar os estados em atores passivos do ponto de vista da capacidade de investimento e endividamento. Tiveram suas dívidas consolidadas e, muitos deles, perderam seus bancos.
O acordo nos marcos do Proes tomava os repasses federais e as receitas próprias dos estados como garantias, permitindo que o governo federal bloqueasse as contas estaduais em casos de inadimplência. Com a Lei de Responsabilidade Fiscal, o ciclo estaria completo. O programa fiscal de FHC se impôs a todos os entes da federação e o governo federal pôde reunir as condições para realizar políticas macroeconômicas de abrangência nacional. No longo prazo, estados com uma pesada dívida deixaram de ter capacidade de atuar como investidores. Na dependência do investimento privado, estavam lançadas as bases para que as empresas impusessem a guerra fiscal global. As linhas de financiamento abertas pelo Proes permitiam aos estados escolherem entre a extinção dos bancos, a privatização, a transformação em agências de fomento (sem atuação comercial), a federalização para a privatização e o saneamento. Nesta última modalidade, o estado podia receber apenas 50% do total necessário para a recuperação e permanecia com o banco. O programa foi eficiente no que interessava prioritariamente à equipe econômica que era privatizar os bancos estaduais e promover uma ruptura com o modelo de financiamento de estados. As dívidas dos estados têm um histórico que precisa ser analisado não apenas nos marcos institucionais ou políticos, mas considerando o sistema econômico global, assim como o estrangulamento das economias da América Latina. De outra forma, estaremos no mesmo caminho de miopia e manipulação de informações que vigora na avaliação das políticas econômicas e de desenvolvimento segundo a qual o gasto público é sempre o fator desestabilização, relacionado a uma renitente irresponsabilidade dos atores. Como os problemas são sistêmicos e afetaram todos os estados, chegaríamos à conclusão óbvia de que não existem atores responsáveis e capazes e, portanto, não há caminhos a percorrer. Se nos anos do governo Fernando Henrique Cardoso instituições foram criadas para disciplinar e controlar os gastos em todos os níveis da federação e eles continuam a ser um problema, é porque a fórmula estava errada, no mínimo. Durante a década de 1970, o orçamento era centralizado e dava pouca autonomia política aos estados, fato que era reforçado uma vez que as agências de financiamentos eram controladas pelo governo federal, Os investimentos, mesmo nas empresas estaduais, eram subordinados aos interesses e planos do governo federal, que, como se sabe, tinha um programa de desenvolvimento que envolvia grandes projetos de infraestrutura em energia e comunicações. Os estados podiam, no entanto, buscar financiamentos externos, além daqueles obtidos no sistema financeiro nacional. Antes da subida dos juros internacionais, em 1979, os créditos externos estavam baratos porque serviam à reciclagem dos petrodólares em cenário de estagnação e poucos investimentos. Quando a crise da dívida se impôs, os débitos foram pagos pelo governo federal com o apoio de inúmeros acordos com o FMI, que exigia ajustes fiscais. O primeiro deles foi entre 1981-83. Mas a conjuntura da crise afetou a economia brasileira por mais de uma década com o fim dos financiamentos e a dependência das divisas do setor exportador para pagamentos externos que significaram a transferência líquida de riquezas.
Os estados são parte desse sistema e sofreram, a partir de então, com enorme restrição orçamentária. A gestão financeira era a principal agenda e a rolagem de dívidas externas se dava por meio de empréstimos-ponte do Tesouro Nacional. O endividamento interno se dava no contexto da redemocratização, com o aumento das demandas populares reprimidas por duas décadas de ditadura. Lideranças políticas lutaram pela descentralização orçamentária e por autonomia na realização de projetos, o que foi a base para o novo desenho institucional consagrado na Constituição. Entretanto, o orçamento dos governos subnacionais já nasceu comprometido com os pagamentos de dívidas e a situação se agravou nos anos subsequentes. Em 1993, o governo federal reescalonou dívidas anteriores e, por meio da Emenda Constitucional 3/93, proibiu a emissão de novos títulos da dívida pública pelos estados até 31 de dezembro de 1999, exceto para o refinanciamento do principal. A dívida mobiliária dos estados não foi renegociada no pacote e o que se seguiu foi um aumento contínuo da dívida líquida justamente em razão dos títulos, mesmo sob restrição de emissão, o que significa que o custo da rolagem foi alto e resultou numa espiral de endividamento sem efeitos em investimentos. Em 1996, a dívida líquida era 85% superior ao total de 1990, e o aumento se deveu justamente à explosão da dívida mobiliária. As elevadas taxas de juros, sobretudo a partir do Plano Real, tiveram reflexos graves nas finanças públicas dos estados. Uma vez que a rolagem das dívidas se dava pela emissão de títulos, os juros que chegaram a 30% a.a. em 1995 determinaram o grande aumento do endividamento. Segundo Mônica Mora, em 1995, alguns estados, como Minas Gerais e Rio Grande do Sul, comprometeram mais de 35% da renda líquida apenas para capitalizar os juros ao principal (Mora, 2002). Com a limitação da emissão de títulos em 1993, os governos estaduais financiaram os seus déficits por meio dos seus bancos. Estes, em 1994, ano do Plano Real, perderam as receitas inflacionárias, o que lhes garantia algum fôlego diante da grave situação de suportarem as operações de crédito de estados falidos. A tabela abaixo mostra que o componente principal da dívida não era um desajuste fiscal e o seu financiamento por meio dos bancos estaduais, mas sim o custo financeiro da rolagem da dívida mobiliária. A situação dos estados após o Plano Real foi de agudo desequilíbrio financeiro, o que permitiu que o governo federal pudesse impor a agenda do desmonte do modelo de bancos estaduais. Apesar da clareza sobre o custo do Plano Real, prevaleceu a retórica da irresponsabilidade dos gastos públicos, que se traduziu na Lei de Reestruturação Fiscal e Financeira, 9.496/97, e, mais tarde, na Lei de Responsabilidade Fiscal. A reestruturação projetou o pagamento de até 15% das receitas líquidas por um período de 30 anos com juros de 6% a.a. e com as contrapartidas condizentes com o projeto do governo federal, entre as quais estavam a obtenção de superávit primário, a limitação da relação entre dívida e receita, o teto de despesas com o funcionalismo, a privatização e concessão de serviços, além de reformas administrativa e patrimonial. (Em milhões de reais de dezembro de 2000)
Tabela 10. DLSP: dívida dos governos subnacionais 1991-1996 Fonte: Mora, Mônica. Federalismo e dívida estadual no Brasil. 2002, p. 13. Dados do Banco Central. A autonomia que a Constituição procurou dar aos estados foi gravemente afetada pelo modelo econômico nacional de altas taxas de juros e pelo desmantelamento do sistema financeiro de bancos estaduais. As receitas próprias estão desde a década de 1990 gravemente comprometidas com o refinanciamento e os limites de endividamento e gastos foram engessados por lei. A dependência de programas e financiamentos da União permanece. Os estados são apenas partes de um todo que adoeceu pelo desajuste das políticas monetária e cambial. Os desequilíbrios da União eram igualmente graves, como apontei anteriormente. A diferença é que, em tese, a União não tem limites de endividamento e emissão de títulos. Mas o limite externo é implacável. Um país que opta pela importação, pela privatização e internacionalização de seu parque produtivo e de infraestrutura em detrimento do desenvolvimento local precisa de divisas, e elas têm de chegar por meio de exportações ou de investimentos. É a dependência do mercado dos investimentos externos. Esta foi a escolha que os governos brasileiros dos anos de 1990 fizeram. E não estavam sozinhos. Muitos governos no mundo promoveram a abertura comercial, as privatizações e valorizaram o câmbio para estabilizar a moeda. As crises começaram em seguida. Em 1994, no México. Depois da desvalorização da moeda ocorreu a corrida aos bancos. O país estava em apuros após ter valorizado a moeda e passado a integrar o Nafta, desde janeiro daquele ano. O aumento das taxas de juros nos Estados Unidos e o déficit da conta corrente acabaram com as reservas mexicanas. Os efeitos eram sentidos no mundo. A cada crise, como já foi assinalado, se repetiria o repertório da fuga de capitais dos países mais vulneráveis em busca do refúgio seguro dos títulos americanos. Em 1997, na Ásia, em seguida na Rússia, depois seria a vez do Brasil e, fechando o ciclo, a crise argentina. A solução necessária e urgente em todos os casos era abandonar a recomendação da âncora cambial e recuperar as exportações. No Brasil, o desajuste provocado pelo câmbio valorizado foi percebido desde o início do Plano Real. A deterioração das contas externas foi rápida, com ao aumento das importações e o comprometimento das exportações mudando a posição da balança comercial, que até então financiava o déficit em transações correntes. A Lei Kandir tentou estimular as exportações e a isenção fiscal das remessas de lucros buscou atrair investimentos de plantas exportadoras para o Brasil. Mas a conta não fechava. O problema das exportações era o câmbio valorizado. Embora o investimento externo direto tenha aumentado, não houve impacto sobre as exportações. O que passou a financiar a conta externa foi a entrada do investimento de curto prazo remunerado pelas taxas de juros que, por isso, precisavam ser atraentes. Esse verdadeiro dreno da renda nacional consumiu todos os recursos das privatizações e aumentou o endividamento público de 26% do PIB, em 1994, para 38,3% em 1998 (Pinheiro, 1999). Adicionalmente, o investimento de curto prazo que financiou a conta externa e do qual o país se tornou
dependente o deixava vulnerável à fuga de capitais nas situações de crise. Essa armadilha perigosa era a única justificativa para as altas taxas de juros que afundaram o país na ciranda da despesa financeira improdutiva. A necessidade absoluta de reter capitais levou à permanência da transferência de riquezas líquidas via pagamentos de juros, mas nessa nova conjuntura não havia investimentos produtivos por detrás do endividamento. Uma situação muito diferente, comparativamente, ao endividamento dos anos 1970. Tabela 11. Balanço de pagamentos de 1993 a 2000 (em US$ milhões) Fonte: Ipea. Boletim Conjuntura, n. 57, 2002. As transações correntes do Brasil, que incluem a balança comercial, os serviços – como fretes e seguros – e as transferências unilaterais – que são em geral recursos enviados por migrantes – se deterioraram rapidamente na sequência da adoção da âncora cambial do Plano Real. A entrada de investimentos, incluindo os valores para a compra de estatais (que só entram uma vez, para depois constituírem mais um compromisso de envio de recursos) compensou a perda no comércio internacional apenas até 1997, ano em que o Brasil começou a queimar reservas perigosamente. Neste ano, a crise asiática havia afugentado os investidores de mercados instáveis e a conta dos juros subiu para premiar os mais corajosos. Não faltaram avisos da oposição e mesmo de dentro do governo de que era preciso desvalorizar o câmbio (Averbug e Giambiagi, 2000). Mas Gustavo Franco, presidente do Banco Central, foi intransigente quanto à manutenção da âncora cambial. Fernando Henrique Cardoso, por sua vez, estava de olho na reeleição que havia aprovado no Congresso por meio de tratativas e favores que até hoje não foram bem elucidados, incluindo os termos de negociação de dívidas dos estados. Importava manter o poder e o único ganho a propagandear era a estabilidade da moeda. Por essa razão, o presidente deixou o país sangrar até a vitória eleitoral. Depois disso, demitiu o presidente do Banco Central e abandonou a âncora. Note-se que o controle da inflação se tornou um valor acima de qualquer outro, um fetiche. Tudo foi sacrificado. E até os ajustes fiscais que se aprimoraram ano a ano eram explicados à população como garantia da moeda. A sociedade brasileira era lesada duplamente. Perdia riquezas para a rolagem de dívida e fazia maior dívida sem lastro produtivo. Mas, ainda assim, acreditava no patrimônio da “estabilização”. Questão de fé que a doutrinação midiática se encarregou de consolidar. O discurso antiinflação que nos domina até o presente é a retórica dos credores. Agentes financeiros que passaram a sangrar economias nacionais com as facilidades de deslocamento de capitais que a globalização produziu. Em fevereiro de 1998, na sua coluna da Folha de S. Paulo , Maria da Conceição Tavares condenava essa política, demonstrando a armadilha que o Brasil havia criado para as contas públicas e para o desenvolvimento econômico. Segundo a economista, o modelo já havia sido criticado pela maioria dos analistas pela instabilidade associada à absorção de recursos externos a qualquer preço e prazo, pelos impactos destrutivos em termos sociais e econômicos e pela alienação de patrimônios nacionais de empresas públicas e privadas. E a situação se agravara com a crise internacional que significou a retração de investimentos e dos preços.
Dada a armadilha juros/câmbio, podemos afirmar que os desequilíbrios financeiros interno e externo da economia brasileira já ganharam autopropulsão vis-à-vis aos resultados primários de natureza fiscal e comercial. As exportações não têm condições de melhorar com a desaceleração da economia mundial acompanhada de deflação de preços internacionais, mas, mesmo que as importações caíssem bastante, a hipotética redução do déficit comercial seria irrelevante frente ao déficit na conta de serviços (juros, lucros, viagens etc.). Por outro lado, a entrada de investimentos diretos, sobre a qual o governo deposita tantas esperanças, tende a ser esterilizada pelas crescentes remessas de lucros que, em 1997, já atingiram, em termos líquidos, quase US$ 6 bilhões e pela paralisação dos grandes projetos asiáticos. Restam as privatizações com as quais o governo pretenderia arrecadar US$ 10 bilhões em 1998, cifra inferior ao montante de títulos cambiais que vencem ao longo do ano. Logo, a presunção de que se possa diminuir o montante do endividamento interno e externo de curto prazo, necessário à rolagem da dívida global, pertence ao terreno das fábulas que têm sido impingidas à opinião pública a título de previsões macroeconômicas, todas furadas, desde 1995. [...] Em resumo, a equipe econômica está torrando o patrimônio público na fogueira das cirandas financeiras nacional e internacional sem diminuir um dólar na dívida externa ou um real na dívida pública, senão que expandindoas explosivamente e reduzindo à impotência o Tesouro Nacional e o Banco Central para operar políticas fiscal e monetária dignas deste nome. (Tavares, 1999, p. 110-11) Apesar do ambiente internacional de crise, o governo decidiu fazer apenas minidesvalorizações para atingir efeitos nas contas externas de maneira gradual. A aposta era de que o Brasil não tinha as mesmas vulnerabilidades dos países asiáticos cujos bancos estavam alavancados e entraram em apuros depois da desvalorização e da fuga de capitais. A taxa de juros, que chegou aos inacreditáveis 45% ao ano em dezembro de 1997, reduziu-se ao patamar de 19,25% em julho de 1998. Mas, em seguida, começou a subir na esteira dos abalos do default da Rússia, em agosto. O mercado financeiro internacional se retraiu e houve uma retirada massiva das aplicações em países emergentes. Os efeitos no Brasil, altamente dependente da entrada de recursos para financiar a conta externa, foram devastadores. A fuga de capitais foi espetacular. Na primeira semana de agosto, após a liquidação financeira da primeira parcela da venda da Telebrás, o Brasil tinha US$ 75 bilhões em reservas. No fim de setembro, no que ficou conhecido como “setembro negro”, o Brasil perdeu US$ 30 bilhões de reservas. Poucas semanas antes das eleições, o governo anunciou um acordo com o FMI que incluía ajuste fiscal, política monetária austera, US$ 42 bilhões em ajuda e a manutenção da política cambial. Apesar da crise, ou, talvez, por causa dela e da crença na equipe econômica para controlar o pânico preservando a moeda, o eleitor brasileiro reelegeu o presidente Fernando Henrique para mais um mandato. O anúncio do apoio externo acalmou o mercado e estancou a fuga de capitais (Averbug e Giambiagi, 1999). O custo foi mais uma vez imenso. A Selic chegou a 42%.
Mas a equipe do governo não podia dobrar o país com a fórmula de ajustes sem fim e alta taxa de juros. O governador recém--eleito de Minas decretou moratória da dívida do estado e o Congresso se mostrou rebelde em aceitar o remédio amargo do ajuste. A equação era impossível, pelo menos em tempos de democracia. Como o governo podia compensar um gasto com juros de 30% nos gastos primários? A dívida pública do Brasil já havia aumentado de 26% para 38% do PIB entre 1994 e 1998. E com a venda de ativos importantes da infraestrutura brasileira. Era um descalabro. O Brasil não tinha como cumprir as metas ajustadas com o FMI e precisava de reforço no caixa. As contas de 1999 não fechariam sem a liberação dos créditos. A descrença do mercado financeiro na capacidade de pagamento do governo, na manutenção do câmbio e da política econômica levou a uma nova rodada de fuga de capitais. O Brasil perdia US$ 1 bilhão das reservas ao dia e FHC finalmente se convenceu da inutilidade dos esforços para estancar a sangria. Demitiu Gustavo Franco e convocou Francisco Lopes, que preconizava uma fórmula cambial em que o dólar flutuaria dentro de uma margem mínima e uma máxima. O novo ministro não chegou a tomar posse, por suspeita de dar informações privilegiadas aos bancos Marka e Fonte Cindan. Tampouco sua fórmula de bandas para a flutuação do câmbio sobreviveu. Em 48 horas, foi substituída pela flutuação pura e simples. Antes da mudança cambial, a taxa era de R$/US$ 1,21, no dia seguinte, R$/US$ 1,32, o teto da banda. A liberação elevou a taxa a R$/US$ 1,98 no final de janeiro e R$/US$ 2,16 em março (Averbug e Giambiagi, 1999). Nos dois anos da crise, o aumento do PIB foi de 0,13% e 0,79%. Surpreende que a queda não tenha sido ainda maior. A instabilidade, entretanto, diferentemente das crises asiática e russa, não ameaçou o sistema bancário. A dívida pública foi o maior custo, havia saltado mais 10 pontos em janeiro de 1999, elevando-se a 48% do PIB. O resultado da balança comercial melhorou, mas só deixaria de ser deficitário em 2001, e a conta corrente permaneceria com déficit até 2003. O Índice de Preços ao Consumidor (IPCA) subiu para 8,94% em 1999 para depois recuar nos dois anos seguintes. O câmbio também recuou para o patamar de R$/US$1,65. Em 2002, ano eleitoral, haveria uma escalada do dólar e da inflação, o que demonstra a vulnerabilidade em que a economia do país se encontrava. Diante da perspectiva da vitória do candidato Luiz Inácio Lula da Silva, do Partido dos Trabalhadores, e da mudança da política econômica, o medo de uma ruptura dos compromissos do endividamento levou o mercado a mais um ano de turbulência e instabilidade. E a mais um acordo desesperado com o FMI. O Brasil não recuperou sua atividade e a capacidade de crescer e incorporar a população ao processo de produção. A economia teve recuperação em 2000, crescendo 4,36%, mas nos anos seguintes teve crescimento pífio de 1,31%, em 2001 e 1,93%, em 2002. O baixo crescimento se repetiu no primeiro ano do governo Lula, quando o PIB aumentou irrisórios 0,54%. Era o resultado da fórmula neoliberal de abrir as portas e esperar os investidores, que só chegavam quando o prêmio era fora do comum, como juros de 20% ou uma estatal com direito a monopólio. Depois da desvalorização de 1999, a âncora cambial foi substituída pelo regime de metas de inflação. Junto com a meta de superávit primário e de câmbio flutuante, compôs o chamado tripé macroeconômico, que sustentaria
a inflação em patamares baixos. E só. Porque é só este o benefício dos últimos 20 anos. O custo, como observamos, foi altíssimo. O país não conseguiu sair das taxas de juros espoliadoras, com o consequente crescimento da dívida, apesar do superávit primário tão custoso do ponto de vista da efetividade das políticas públicas. Mantém baixo crescimento e uma valorização cambial que vem desmontando a indústria brasileira na medida em que estimula a compra de bens manufaturados, máquinas e equipamentos no exterior. A reprimarização da economia é uma realidade e a dependência mais acentuada dos mercados de bens e financeiro externos foi ampliada, como na maioria dos países no contexto da globalização. No fim dos anos 1990 e início do novo século, a China iniciou o seu salto espetacular de crescimento, industrialização e desenvolvimento tecnológico. O Brasil e o mundo se beneficiariam muito do salto chinês. A aceleração da atividade produtiva de escala de um país da dimensão da China criou uma demanda mundial com potencial para agitar as forças produtivas de todos os cantos do planeta. A indústria chinesa, desde os anos 1990, se beneficiou da globalização, atraindo capitais de países com maiores custos de produção e lançando um enorme desafio competitivo ao mercado internacional. Nas últimas duas décadas, desenvolveu marcas globais de bens de tecnologia, abrindo novos campos de competição. Seu desenvolvimento é planejado e conta com câmbio desvalorizado e escala de produção. O custo da mão de obra, que a princípio atraía os investidores globais, já não é tão competitivo. No percurso do desenvolvimento, a China foi elevando o padrão de vida do trabalhador. Para o Brasil, tão pouco apto para a competição global após ter se tornado menor e mais dependente, com câmbio inadequado às exportações e altas taxas de juros que inibem o investimento interno, a China significou não apenas um competidor imbatível na indústria, como um estímulo à especialização da produção de bens primários para a exportação. Nas últimas três décadas, o mundo ficou mais dinâmico, as tecnologias se desenvolveram rapidamente e o Brasil ficou para trás. Faltou planejamento, objetivos de longo prazo, participação da sociedade no debate e nas decisões políticas e a compreensão de que somos parte do mundo em movimento, e do próprio movimento. Qualquer observador das décadas de 1980 e 1990 pode perceber o quanto a aposta no ajuste fiscal e nas recomendações do Consenso de Washington roubou de vitalidade da economia nacional, que passou a uma condição de dependência absoluta dos investimentos e, portanto, das decisões dos investidores globais. A propaganda da modernização e de uma economia competitiva foi, e ainda é, uma grande farsa. Alguns panfletários da globalização ainda repetem dogmas como o das tecnologias que o Brasil passou a ter à disposição para consumo, sem perceberem que o avanço tecnológico é recente, ou seja, a massificação dos novos meios de comunicação digitais não aconteceu por causa da abertura, porque aconteceu no mundo depois dela, e que o Brasil não produz ou domina nenhuma das marcas globais. A modernização para o consumidor é paga com dólares obtidos por meio da venda de produtos nacionais majoritariamente primários, ou da venda da própria nação. A abertura e a decisão de abrir mão de uma estratégia planejada de integração econômica à globalização não deixou o Brasil mais moderno nem mais competitivo.
Deixou o Brasil mais dependente, especializou o Brasil na produção de baixo valor agregado e, é claro, diminuiu a capacidade do Estado, portanto do mecanismo de poder coletivo da sociedade, de estabelecer seus objetivos econômicos e sociais e administrar seu desenvolvimento e seu futuro. Em síntese, diminuiu a política e esvaziou o projeto de democracia. Nota 9 . Apesar da previsão legal, os estados não foram ressarcidos dos prejuízos causados pela Lei Kandir. Capítulo 6 Vendendo o Brasil: o capítulo das privatizações Após a década de 1970, das crises do petróleo e do aumento das taxas internacionais de juros, o modelo de desenvolvimento do Brasil se tornou insustentável. Durante aquela década, na tentativa de manter o projeto de desenvolvimento como forma de enfrentar as restrições mundiais aumentando a capacidade energética e produtiva do país, o governo Geisel lançou o II Plano Nacional de Desenvolvimento (II PND) e ampliou a aposta de investimentos em infraestrutura contando com a liquidez do mercado de petrodólares. O aumento dos juros internacionais deixou o Brasil e outros países que se industrializavam em situação de grave endividamento. Mesmo que o programa de desenvolvimento não tivesse sido ampliado, a conta externa cresceria com o custo elevado do petróleo. Tanto os países que fizeram mais investimentos, quanto os que os paralisaram ou deixaram de promover novos projetos, ampliaram seu endividamento porque o custo do insumo de que dependiam quadruplicou e as taxas de empréstimos eram baratas, permitindo seu financiamento. A aposta era não frear o processo de desenvolvimento e pagar a conta com o seu produto. Mas o déficit americano encurtou o tempo de maturação dos grandes investimentos desse período. Durante a crise que se seguiu ao aumento dos juros, entre 1979 e 1981, e no período seguinte, o governo brasileiro transferiu as dívidas das empresas privadas para o setor público a fim de salvar o parque produtivo nacional e a atividade econômica. As estatais subsidiaram tarifas e insumos, captaram empréstimos externos, ficaram endividadas e com pouca capacidade de investimento. Mas eram a base de nossa infraestrutura, construída ao longo de décadas pelo Estado em razão da falta de poupança privada com capacidade para realizar investimentos na grande indústria de bens de capital e na infraestrutura de energia e comunicações. O endividamento e a incapacidade de realizar investimentos era a real situação das empresas públicas quando o ideário neoliberal se impôs por meio do Consenso de Washington. Os credores vampiros da América Latina, que retiraram riqueza líquida do continente por uma década, queriam as empresas estatais como parcelas para a quitação de uma dívida que aumentou, apesar da sangria de pagamentos.
Mas, se as empresas estatais interessavam ao empresariado é porque não eram ruins. Tinham patrimônio, mercado e estrutura pronta. Diante da crise da dívida, que não se resolvia e levava os países a processos inflacionários descontrolados como meio de fazer frente a compromissos crescentes e estimular exportações desvalorizando a moeda, foi fácil criar uma estrutura de compreensão do problema das economias nacionais que relacionava a crise ao gasto público, à irresponsabilidade fiscal e ao modelo vigente de participação estatal na atividade produtiva. Segundo a narrativa das corporações de comunicação, a moeda estável foi uma grande conquista do Brasil, e precisava ser complementada pelas reformas do mercado porque só a retirada do Estado da atividade produtiva poderia assegurar a diminuição do gasto público e a estabilidade da moeda. Por outro lado, uma economia de mercado era condição necessária para o crescimento, pois a competitividade asseguraria a modernização e os investimentos. A condição necessária para essa conquista era que o Estado não retirasse o vigor da economia com seus mecanismos corruptos e ineficientes. Essa interpretação é uma verdadeira inversão da história do desenvolvimento econômico brasileiro! Entretanto, ela foi capaz de apagar a memória histórica dos avanços do país no século XX, no período em que o capitalismo foi caracterizado pelo planejamento dos Estados nacionais depois da crise do sistema de mercado liberal, no início da década de 1930. Mas não só. O problema da valorização cambial, dos déficits e do dreno de riquezas por meio do pagamento da dívida interna alimentada por juros obscenos não é motivo de questionamento ou de condenação. Ele é narrado, reconhecido e tratado não como problema, mas como uma questão técnica, e sem nenhuma relação com o desajuste fiscal tão cobrado quando se trata de gastos sociais e em políticas públicas. No livro da jornalista Miriam Leitão (2011) sobre a inflação, há um sistemático falseamento dos problemas quando as crises de insolvência derivadas da dependência estrutural de fluxos externos são identificadas como crises cambiais, refletindo fenômenos externos. Neste tipo de abordagem, parece não haver responsabilidade do governo sobre a fragilidade do país ou sobre a sua exposição a riscos. Nem mesmo o caráter eleitoreiro da decisão de manter o câmbio, também reconhecido, é motivo para uma avaliação crítica. O livro é uma apologia do Plano Real, da abertura comercial e do desmonte do Estado pelas privatizações como o marco zero da economia moderna e competitiva. Uma típica narrativa descolada da realidade. Não apenas a economia “competitiva” caminhou para a especialização agroexportadora, como a dívida pública que devia ser abatida cresceu, exigindo um permanente esforço de cortes em investimentos públicos e maior atraso social e econômico. Essa foi a realidade da “estabilização” que deixou o país duas vezes insolvente e pedindo ajuda, em desespero, ao FMI. O argumento que opõe o Estado ao mercado e à eficiência foi analisado por Jessé de Souza, no livro A Tolice da Inteligência Brasileira ou Como o País se Deixa Manipular pela Elite. Nele, o autor mostra como se construiu um repertório de manipulação com o qual o mercado foi idealizado e se
transformou no “reino de todas as virtudes”, enquanto o Estado foi “demonizado como o reino de todos os vícios”. Na medida em que a compreensão dos mecanismos complexos que levam à injustiça e à desigualdade é difícil para a maioria da população absorta em seus afazeres cotidianos, “a tese do patrimonialismo e da corrupção apenas estatal resolve toda essa complexidade de uma tacada” (2015, p. 91-92). A retórica contra o Estado, além de agressiva no diagnóstico dos problemas de vícios e corrupção, e mentirosa no uso do argumento de que as estatais eram deficitárias, precisava acenar com a promessa de grandes resultados para a economia nacional, que não chegaram, como sabemos, naquele governo. Ao contrário. Houve apagão e racionamento em função da falta de investimentos no setor de energia. E não foi o setor privado que resolveu investir para que o Brasil pudesse ter o bem básico da energia. Foi a Eletrobrás e, sobretudo, a Petrobras que investiram nas térmicas. Mais uma vez, no Brasil, os grandes investimentos, mesmo aqueles com demanda garantida, foram realizados pelo Estado, o ente que tem que prestar contas de diversas formas aos diferentes segmentos sociais, e se move pela lógica da necessidade. Já a lógica do lucro das empresas privadas não proveu o país de desenvolvimento tecnológico ou de infraestrutura. Retomando os argumentos em favor da privatização, compreende-se como as sensibilidades são manipuladas com a geração de expectativas irreais. As estatais arruinavam as contas públicas porque eram centros de prejuízos e ainda mantinham as empresas privadas numa dependência química do Estado. Para estabilizar era preciso tornar a economia mais eficiente; para aumentar a eficiência era preciso tirar o Estado de setores-chave. (Leitão, 2011, p. 241) Fernando Henrique assumiu propondo um ataque às quatro ideias sagradas. Enviou ao Congresso uma emenda para reformar o capítulo econômico da Constituição, acabando com o monopólio da Petrobrás, com o monopólio da Telebrás, eliminando a diferença entre empresa de capital nacional e empresas estrangeiras instaladas no Brasil. Avisou que venderia a Vale e a Telebrás. Tudo herético. [...] O governo acabou aprovando tudo... [...] O que tudo isso tem a ver com a estabilização? Era preciso continuar o processo de aliviar o Estado de obrigações, pesos e interferência política que acabavam gerando déficit público. O Estado não teria recursos suficientes para os investimentos necessários ao salto que haveria nos anos seguintes, principalmente nas telecomunicações. (Leitão, 2011, p. 310) Não teria mesmo, nem para o salto tecnológico, nem para a educação, nem para a saúde. Os serviços públicos foram precarizados, só se ouvia falar sobre a agenda de cortes e um ajuste que não tinha fim. O gasto público nunca se adequava, por mais que se fizessem contingenciamentos e cortes e por maior que fosse a arrecadação. A conta não fechava, a dívida aumentava pela ciranda dos juros que financiaram a principal “desvantagem” competitiva do Brasil: o câmbio valorizado por decisão do governo. A âncora contra as marés inflacionárias era também âncora do dinamismo econômico e do desenvolvimento.
Entre as perdas resultantes do processo de estabilização, talvez a mais grave seja essa separação enunciada entre economia e política. O Estado não pode ser protagonista porque a “interferência política” gera déficit. O Estado construiu, ao longo de décadas, os meios para o desenvolvimento, o patrimônio era público, e não podia ser objeto de decisões políticas, ou seja, de decisões sobre gastos e alocação de recursos segundo objetivos coletivos. Por quê? O que é a política? Se não é a disputa e a negociação de interesses conflitantes e o exercício do poder de tomar decisões sobre a ordem coletiva, incluindo a apropriação e a distribuição dos bens necessários à reprodução da sociedade, o que é? O mercado competitivo é a natureza? Não é institucionalidade construída? Não subsiste por ordenamento jurídico que é resultado do acordo político? Essas afirmações irrefletidas e ilógicas, que demonstram um mínimo de reflexão sobre a vida social e política, sobre a história do mundo contemporâneo e do capitalismo nos leva à questão de mais difícil resposta. Será a afirmação do mercado uma ingenuidade tributada à ignorância e a fé em clichês massificados ou má-fé? Quando vem da editoria da grande imprensa é possível afirmar a má-fé. Como grandes corporações de interesses globais, elas têm sido porta-vozes das estratégias empresariais do capitalismo de corporações. Não obstante a defesa do mercado, no Brasil, as empresas de mídia vivem de alto parasitismo no Estado, seu maior patrocinador, que, infelizmente, em democracias de massa, depende da boa vontade dos meios de comunicação para garantir apoio popular. Quanto aos cidadãos isolados da pós-modernidade, a resposta é mais difícil. O quanto são inocentes e manipulados contra seus próprios interesses ou o quanto são de fato interessados não é questão fácil de avaliar. Por um lado, a retórica do mercado pode ser assimilada como uma avaliação justa, apontando para uma saída eficiente quando se olha para os lados e se vê precariedade e corrupção. Isso vale para classes populares, nos lugares onde os serviços nunca chegam e a vida é sempre difícil, ou para classes médias, que pagam impostos e serviços particulares, carregando um peso grande sobre seus rendimentos. Mas pode também ser fruto de ingenuidade e manipulação. Nos anos 1990, era muito comum ouvir a repetição de algumas máximas sobre o projeto de privatizações, como a de que as empresas estatais não eram eficientes porque funcionários públicos eram preguiçosos, não precisavam trabalhar ou mostrar serviço porque não eram demitidos. Mobilizava-se um ressentimento com relação ao privilégio da estabilidade dos servidores. Também se ouvia a repetição de que as empresas privadas são mais eficientes e o Brasil era atrasado, como se a estrutura das empresas estatais determinasse esse atraso tecnológico em relação ao paradigma ocidental, os Estados Unidos. Nenhum argumento considerava nossa situação periférica no sistema capitalista e o seu custo para desenvolvimento brasileiro. Nenhum considerava a necessidade de grandes empresas como estrutura fundamental para a competição internacional. O único líder político com presença e espaço no diálogo público que tratava dos problemas do Brasil sob estes parâmetros era Leonel Brizola. Do PT, senadores e deputados que faziam a oposição no Congresso falavam nestes termos, mas seu público era mais restrito porque tinham muito menor presença nos meios de comunicação e nem sempre os argumentos eram acessíveis à maior parte da população. As pessoas no seu cotidiano não
costumam pensar no tamanho das empresas, nas mudanças de suas características ou nas suas estratégias competitivas. Elas sequer reconhecem as marcas como pertencentes a oligopólios. Toda essa discussão simplesmente não é trivial. Em maio de 1995, a economista deputada Maria da Conceição Tavares publicou mais um de seus artigos vigorosos na Folha de S. Paulo . Ao tratar do fim dos monopólios das estatais e do fetiche da transnacionalização do capital no Brasil, ela chamava a atenção para a estupidez dos argumentos sobre concorrência no estágio que o capitalismo global havia atingido. Os aspectos mais notórios do processo de globalização são os financeiros, que têm ocupado as manchetes da grande imprensa desde os desastres do México e do Banco Barings. O que parece não estar claro é o aspecto central da globalização produtiva, a partir do qual se podem entender os problemas da inserção internacional competitiva da economia brasileira. Do mesmo modo que o mundo, as regras da concorrência também mudaram, embora pareça que os que mais utilizam este conceito ainda não perceberam isso. A Concorrência se dá em três níveis: no das economias nacionais, onde os países mais poderosos tendem a proteger-se com medidas que não são apenas tarifárias; no nível dos blocos onde os países centrais tendem a impor a sua hegemonia aos países da sua periferia imediata; e, finalmente, entre as grandes empresas oligopolistas transnacionais cuja arena é, por excelência, o mercado global, onde a luta é cada vez mais acirrada. A oligopolização implica escala de produção, flexibilidade operacional, conglomeração e concentração de capital. Portanto, ao contrário da noção vulgar de concorrência, não é o número de empresas, mas sim a sua força e a sua capacidade de atuar e comandar processos de expansão estratégica o que caracteriza o processo de globalização produtiva. Uma segunda característica relevante deste processo é que as grandes decisões estratégicas de produção, investimento e incorporação de tecnologia respondem a uma política global das empresas transnacionais, inclusive de repartição de mercados regionais, definida pelas matrizes. As filiais destas empresas na periferia só têm capacidade de atuação limitada aos mercados internos, dependendo de sua dimensão, tendendo para operações em espaços regionais próximos, como é o caso, por exemplo, da indústria automobilística no México e no Brasil. (Tavares, 1999, p. 126-127) As críticas da deputada não teriam efeitos sobre o governo ou sobre os meios de comunicação que apoiaram o programa neoliberal desde o início, em 1990. Primeiramente, as privatizações eram exigências das instituições financeiras internacionais que garantiram os bônus brasileiros de renegociação da dívida. Bônus que, inclusive, eram aceitos no pagamento de estatais, de sorte que as privatizações poderiam abater dívidas. Não era o ideal porque o segundo motivo para a venda do patrimônio era a necessidade permanente da entrada de dólares para cobrir o rombo da conta corrente. Ou seja, a discussão teórica sobre competitividade, eficiência, incorporação de tecnologia, as características da competição global ou sobre impacto fiscal das estatais era puramente retórica. Nada
tinha a ver com a realidade, pois o fato é que o governo venderia as principais estatais do país mesmo sob a ameaça de uma guerra social. O que, obviamente, não aconteceria. A população foi devidamente preparada com argumentos que encontravam acolhida na medida em que faziam sentido por se articularem às suas experiências recentes sobre a crise das empresas, a incapacidade de expansão de serviços (como a telefonia) e a obsolescência das tecnologias. O processo de privatizações como programa de governo começou no mandato de Fernando Collor. No discurso de posse, em 15 de março de 1990, o presidente afirmou o objetivo de realizar privatizações a fim de aumentar a eficiência administrativa e produtiva e promover novos investimentos. Privatizar não seria uma ação limitada à venda de empresas estatais, mas se estenderia a concessões ao setor privado da exploração de serviços públicos (Piccolo, 2013). Em 12 de abril de 1990, Collor lançou o Plano Nacional de Desestatização. Entre os princípios anunciados para dinamizar a atividade econômica, ampliar investimentos produtivos e diminuir a dívida pública, estavam o fortalecimento do mercado de capitais com a maior oferta de valores mobiliários e a democratização do capital das empresas que integrassem o programa. Parte de um projeto de reestruturação do Estado, ou da revisão de suas atribuições, o programa de privatizações anunciava benefícios como o saneamento das contas públicas e o aumento do investimento produtivo. O pressuposto, portanto, era o de que empresas estatais eram onerosas ao Estado e não ativos lucrativos com potencial de geração de renda. Mais uma vez se desqualificava a gestão pública desonestamente. Os balanços deficitários e a incapacidade de realizar investimentos naquela conjuntura foram tratados como resultado de má gestão ou gestão ineficiente, própria da estrutura pública. Por outro lado, atribuía-se aos interesses empresariais de mercado uma superioridade que só podem ter do ponto de vista da lucratividade das empresas e não do desenvolvimento econômico global de uma economia nacional, o qual depende de objetivos estratégicos nacionais, como, por exemplo, a decisão tomada nos anos 1980 de subsidiar as empresas privadas com a transferência da dívida externa para as estatais. O exemplo pode ser discutido como decisão mais ou menos acertada, mas é evidente que, naquele momento, o governo tinha instrumentos para definir objetivos de sustentação da economia nacional. A ruptura privatizante dos anos 1990 retirou do Estado estes mecanismos e é possível que o cidadão avalie que foi positivo, pois o dinheiro público, do Tesouro, não seria desviado para empresas por meio de subsídios e geração de déficits. O argumento, no entanto, é um engano. As empresas geravam sua receita, não eram dependentes de investimentos e recursos públicos, ao contrário, cumpriram importante papel na sustentação dos níveis da atividade econômica, com autonomia financeira. O que aconteceu foi que se endividaram e perderam, naquele contexto, a capacidade de investimento. Naquela conjuntura, não era de interesse do governo promover a discussão sobre seus mecanismos de atuação. Tampouco as condições da competição global a que Maria da Conceição Tavares se referia e que apontavam para as
vantagens das grandes empresas e dos monopólios. De forma terminativa, a adoção da fórmula do livre mercado garantia a interdição de qualquer debate sobre as estatais e sobre seu valor na estrutura global de concorrência. Engana-se, entretanto, quem identifica a campanha em favor da abertura e das privatizações como a adesão racional a uma opção pelo desenvolvimento. Como afirmei, havia um acordo no processo de negociações da dívida externa. As tarefas da abertura eram condições. Vários países começavam a fazer reformas no mesmo sentido, uma onda de abertura e privatizações tomou conta do continente. Por um lado, parecia uma necessidade para a modernização. E se desse certo e gerasse extraordinários investimentos externos, depois de uma década sem fluxo de capitais? O país ficaria de fora? Era uma aposta nova, preconizada pela potência hegemônica e realizada em países do centro do capitalismo, inicialmente no Reino Unido. Mas, sobretudo, foi uma exigência dos organismos financeiros internacionais. Por ser ilógica e arriscada – afinal, se os investidores tivessem apetite poderiam investir em novas empresas mais competitivas e eficientes, e o Estado tomaria conta do que foi construído como patrimônio público ao longo de décadas –, havia resistências em partidos, sindicatos e organizações sociais e de classe. Já os investidores queriam comprar a preços vis as estruturas já prontas e em funcionamento. Como ativos, as estatais não eram, afinal, tão desvantajosas assim. Quem enxergava o contexto com clareza e compreendia as pressões das corporações que levaram à globalização, resistia. Por isso, para os governos alinhados ao dogma do Estado mínimo e às exigências do FMI e do Banco Mundial para a renegociação de dívidas, era necessário construir a retórica da ineficiência, do favor e do clientelismo como práticas de gestão, dos privilégios, ou, no jargão atual, do “capitalismo de amigos”. Hoje, a ideologia vendida e comprada nos anos 1990 permanece. Criminaliza até as grandes empresas nacionais privadas que cresceram e ganharam mercado internacional por terem sido subsidiadas pelo BNDES, banco para o financiamento do desenvolvimento que tem, assim, sua própria finalidade questionada. Essa doutrina de mercado vem vetando o desenvolvimento do Brasil como economia competitiva e soberana. A Lei n. 8.031 definiu a forma de operacionalização do programa de privatizações estabelecendo a preferência pela pulverização de ações, o que não aconteceria na prática. Uma Comissão Diretora, criada pela lei e nomeada pelo presidente, determinaria as empresas que seriam incluídas no programa, um órgão gestor do processo, o cronograma de execução, as condições de venda e o preço mínimo das empresas. À comissão também caberia a publicação de relatório anual com um balanço do programa e a inclusão de novas empresas a serem privatizadas. Por meio do Decreto n. 99464 de 1990, o BNDES foi designado como gestor do Fundo Nacional de Desestatização. O processo de privatização era longo, incluía o trabalho de avaliação e estruturação dos leilões por duas consultorias independentes em um prazo
médio de 9 meses. Em 1990, dezoito empresas foram incluídas no PND, além de participações acionárias da Petroquisa e Petrofértil, mas apenas quatro foram privatizadas até o fim de 1991: Usiminas, Celma, Mafersa e Cosinor. A Usiminas Mecânica foi incorporada à Usiminas antes da transferência do controle acionário desta (BNDES, 1991). E, contrariando a retórica da farsa da ineficiência, a privatização começou por uma empresa siderúrgica lucrativa. É isso mesmo, lucrativa! Foi o começo do desmonte do setor siderúrgico e da holding nacional – a Siderbrás. O PND do Collor previa a oferta de um percentual de ações para os trabalhadores das empresas, mas a pulverização aparentemente desejada simplesmente não aconteceu. Quanto às ações ofertadas aos trabalhadores, somente as da Usiminas foram arrematadas. Das 10% de ações da Celma, somente 3% foram adquiridas, e nenhuma da Mafersa e da Cosinor. O processo de privatizações cresceu sem grandes obstáculos, tanto no Congresso quanto na sociedade civil. Apesar das diversas iniciativas judiciais de grupos organizados, a transferência do patrimônio público para grupos formados por grandes empresários e especuladores detentores de títulos do governo – usados para o pagamento – foi um sucesso. A doutrinação da grande mídia corporativa que a sustentou se mantém até hoje, desqualificando a atuação do Estado no setor produtivo, mesmo como agente de financiamento. De acordo com os relatórios do BNDES, resumidos na tabela abaixo, as ações leiloadas ficaram concentradas em consórcios de grandes grupos financeiros ou com grandes empresas. Por ter sido lançado na conjuntura do aperto de liquidez do Plano Collor, o programa aceitava o uso de títulos de dívidas e da moeda retida como formas de pagamento das operações de compra das estatais – as chamadas moedas podres. A regra correspondia, em alguma medida, ao objetivo de diminuição do endividamento do governo, mas de nenhuma maneira podia ser compreendida como forma de capitalizar o governo para as ações sociais essenciais que apareciam como justificativas do programa. Pouco dinheiro novo entrou na compra de estatais do período Collor. Na primeira etapa, em 1991, do total de US$ 1,6 bilhão do valor arrecadado, apenas 2,4% foram pagos na moeda corrente, o cruzeiro, e 0,7% em cruzados novos: justamente a parcela de trabalhadores e pequenos investidores; enquanto 96,1% foram pagos em papéis, não tendo qualquer significado em termos de caixa para o governo (BNDES, 1991). Em 1992, foram transferidas ao setor privado 14 empresas estatais cuja venda somou US$ 2,4 bilhões. Apesar da conjuntura política de instabilidade que se instalou com o processo de impeachment do primeiro presidente eleito, as privatizações caminharam de acordo com os editais que haviam sido lançados e mais empresas foram incluídas no PND, totalizando 32 controladas pelo governo e 34 participações acionárias da Petroquisa e da Petrofértil. A entrada de moeda corrente no Tesouro foi ainda mais irrisória do que no ano anterior, apenas 1% em cruzeiros e 0,3% em cruzados novos. Em 1993, em razão do Decreto n. 724, que alterou o PND, houve o aumento do pagamento em moeda corrente para 72%. O Decreto, no entanto, foi revogado em 1994.
Privatizado o setor siderúrgico, 1994 seria o ano da transferência patrimonial dos setores de fertilizantes e petroquímico. Nestas privatizações constata-se o potencial das empresas leiloadas com participação societária da Petroquisa e da Petrofértil, uma vez que foram arrematadas pelos próprios sócios. Ainda naquele ano, iniciaram-se os procedimentos para avaliação de dois setores estratégicos: o de distribuição de energia elétrica e a Rede Ferroviária Federal S.A. O relatório do BNDES destacou como um avanço a eliminação da discriminação ao capital estrangeiro. No contexto em que a estabilização dependeria de massiva entrada de capitais externos para financiar o déficit da balança comercial, a venda das empresas estatais seria um importante mecanismo para custear as importações e a conta corrente. Depois da venda das estatais, no entanto, a conta das remessas aumentaria, agravando o déficit estrutural da conta corrente. A primeira operação internacional de empresas do PND foi a venda de lote de 12,2% de ações remanescentes da Usiminas. O preço alcançado foi 2,2 vezes maior que o obtido no leilão original de 1991. A partir dessa experiência bem-sucedida, os gestores passaram a considerar o interesse do governo em fatiar os leilões, mantendo ações para uma venda posterior à primeira. Em 1995, primeiro ano do governo FHC, o processo de privatizações foi ajustado, ganhando centralidade. A Comissão Diretora foi substituída pelo Conselho Nacional de Desestatização integrado por ministros de Estado para agilizar as decisões. Iniciativas legislativas também favoreceram o processo de privatizações, adequando a norma brasileira à exploração da empresa privada em todos os setores, passando dos produtivos aos de serviços. Também foi favorecida a entrada de capitais externos, o que passou a ser essencial em razão da dependência de divisas após o Plano Real. A abertura do setor de gás canalizado à iniciativa privada, a equiparação da empresa estrangeira à nacional, a licença de empresas com sede no país para explorar a atividade de mineração, a autorização para que a União contratasse companhias privadas para a exploração de petróleo e a permissão da atuação de empresas privadas no setor de telecomunicações foram as medidas do governo que possibilitaram a ampliação do programa de transferência do patrimônio público para a iniciativa privada . ¹⁰ Segundo o discurso da época, ao governo cabia apenas fiscalizar e regular a prestação de serviços que até então eram de sua exclusiva atribuição.
A venda da Escelsa inaugurou a fase da privatização de serviços públicos. No interesse dos detentores de bônus da dívida externa recém-renegociada, o Banco Central eliminou o desconto de 25% no uso desses papéis no programa da privatização. Até 1995, o uso desses títulos somou apenas 0,7% do total de meios de pagamentos da compra das estatais e suas participações acionárias. Mas, apesar dos estímulos, o capital estrangeiro representou apenas 0,4% das vendas de 1995. A inclusão da Vale do Rio Doce – uma empresa de atuação global – no PND daria ao programa a dimensão internacional que o governo desejava. A partir da privatização da mineradora, que passou para o controle acionário de um grupo nacional, a participação de capitais externos nos consórcios começou a aumentar. No quadro abaixo, é possível observar os grupos diretamente beneficiados pelas privatizações – os fundos de pensão, bancos de investimentos e grandes empresas – e a parcela reduzida de participação dos trabalhadores. As privatizações iniciadas pela União foram replicadas nos estados da federação, com destaque para os bancos, como apontado no capítulo anterior. A renegociação das dívidas teve como contrapartida o compromisso com a mesma agenda de reformas que era implementada em âmbito federal, incluindo a privatização de empresas de serviços públicos. A transferência da atribuição da prestação de serviços públicos essenciais para companhias privadas teve, dessa forma, abrangência nacional, estendendo-se aos serviços municipais, como o de coleta de lixo, e estaduais, como abastecimento de água e saneamento. Tratou-se da construção de um novo modelo cujos resultados são ainda objeto de controvérsias. Em 1998, no auge da crise que ameaçava a sustentação da moeda e a reeleição, com a taxa de juros a 45% para evitar a fuga de capitais, realizouse o leilão da Telebrás, que salvou momentaneamente o governo. Fatiada em 12 empresas que incluíam a telefonia móvel, o leilão arrecadou R$ 22 bilhões. Foi a maior negociação do processo de privatizações, e a mais instrutiva. O dinheiro rapidamente evaporou na conta de pagamentos de um governo preso à armadilha dos juros altos para atrair capitais. Não houve investimentos em áreas prioritárias como havia sido prometido. Os recursos obtidos pela venda do patrimônio público foram queimados na ciranda dos juros.
A campanha em favor das privatizações teve como argumento central a ideia de que o Brasil vivia em crise porque o Estado era grande demais, atuando em áreas em que era ineficiente e deixando a desejar nas áreas sociais, em que o atendimento das necessidades da população eram um imperativo. O pressuposto, portanto, era de que, deixando de atuar nas áreas não essenciais, sobrariam recursos para que os governos cumprissem suas atribuições sociais. O argumento não é razoável se consideramos que o patrimônio produtivo gera rendas e não obrigações. Via de regra, as estatais investem seus próprios recursos e, como é possível observar, seu endividamento foi o resultado do subsídio ao setor privado, portanto, um fator de promoção da produção de riquezas. Algumas estavam endividadas e, na falta de recursos para investimentos, ficaram obsoletas. Os prejuízos para os serviços podiam ser cobertos por investimentos novos de companhias privadas, não necessariamente por meio da privatização. Por outro lado, se não fossem lucrativas ou não dispusessem de patrimônio produtivo estruturado, não seriam adquiridas. Fernando Henrique Cardoso, em campanha, elegeu cinco áreas prioritárias para a atuação do seu governo. Em campanha, mostrava os cinco dedos das mãos e afirmava que ao Estado cabia se dedicar a essas áreas: saúde, educação, empregos, agricultura e segurança. Todas têm elevado custo e o governo não as atendeu. No entanto, o Estado gastou os recursos obtidos pelas privatizações e aumentou a sua dívida para segurar capitais especulativos dos quais passou a depender em função do enorme déficit da balança comercial resultante do câmbio valorizado – a âncora do Real. Um segundo ponto a ser destacado foi a corrupção envolvida nos negócios das privatizações, nas informações privilegiadas, na montagem dos consórcios e nos financiamentos das operações pelo próprio governo por meio do BNDES. A maior de todas as privatizações envolveu escândalos nunca elucidados que envolveram agentes do governo em benefício do consórcio liderado pelo banco Opportunity, do empresário Daniel Dantas, no leilão da Tele Norte Leste. Depois de 11 anos, os 15 acusados, entre eles o ministro das Comunicações e o presidente do BNDES, foram absolvidos por falta de provas . ¹¹ Quando olhamos o quadro das empresas que adquiriram o controle das estatais, vemos uma participação expressiva de bancos, fundos e consórcios formados por eles. Também a participação de grandes companhias de cada setor de atividade. Havia interesse na maioria das estatais, notadamente com objetivos rentistas. Não poderia o Estado ter feito oferta de ações para a capitalização das empresas, mantendo o controle sobre elas e os rendimentos das atividades? Nos setores estratégicos de energia, comunicações e transportes, o governo precisa ter formas de controle que lhe garantam instrumentos essenciais para a alocação de recursos em projetos de interesse coletivo. Esses setores não podem se subordinar aos interesses imediatos de rentabilidade de acionistas que apostam nos mercados de capitais. Boa parte da opinião pública que aprova as privatizações dos anos 1990 repete clichês que asseguram a incompetência da gestão do Estado vis a vis a eficiência da empresa privada. O exemplo de referência é, muitas vezes, o
da telefonia, que remete à memória de que até o final da década de 1980 o telefone era um patrimônio de alto valor em razão da escassez da oferta de linhas. A telefonia representava o estrangulamento de um setor para o qual havia alta demanda insatisfeita, simbolizando, por isso, o nosso atraso. Para completar o quadro, no contexto das privatizações surgiu a telefonia móvel, que em poucos anos permitiria uma enorme expansão e acesso à maioria das populações urbanas, dada a tecnologia mais ágil e barata das torres de transmissão. Assim aconteceu em todas as partes do mundo e, na década seguinte, essa mesma tecnologia foi o meio de popularização do acesso à internet. No Brasil, entretanto, ela é propagandeada como resultado do investimento privado contra o atraso do modelo estatal. O telefone, como um bem de facilitação do cotidiano de amplo acesso, tornou-se síntese dos benefícios da privatização para o cidadão tornado consumidor. Depois de duas décadas, o processo de privatizações merece estudos aprofundados sobre seus impactos sistêmicos, considerando não apenas a eficiência e lucratividade das empresas, mas o emprego, o padrão das relações de trabalho, a contribuição para a arrecadação de impostos e a magnitude do passivo externo resultante da internacionalização de empresas de serviços públicos, que ao não atuarem como exportadoras não geram divisas para o país. Essas análises são parâmetros importantes porque permitem a comparação com o modelo estatal ou misto que, possivelmente, é instrumento importante na competição global, como no segmento do petróleo. Tabela 12. Distribuição das ações transferidas no PND (%) Fontes: BNDES, Relatórios de Atividades. 1991-2002; Biondi, Aloysio. O Brasil Privatizado; ANTT; Eletrobrás: < http://bit.ly/2mM6xjy >. Acesso em: 20 jul. 2018. Obs.: Os percentuais são relativos ao total de ações ofertadas. A tabela não inclui a venda de empresas estaduais. Os bancos estaduais da lista foram federalizados antes da privatização. Notas 10 . As leis 8987/95 e 9074/95 estabeleceram as normas para a concessão de serviços públicos, as formas de contratação e prorrogação dos contratos. 11 . G1, 1 de maio de 2010. Parte 3 Os governos do Partido dos Trabalhadores O diagnóstico do ‘fracasso’ da ‘era keynesiana’ é valioso porque assinala de uma perspectiva conservadora a inconformidade com os conflitos gerados pelas tentativas de ‘democratização do capitalismo’. Não há como discordar de Jürgen Habermas quanto à indissolúvel tensão que atravessa permanentemente as relações entre capitalismo e democracia (Luiz Gonzaga Belluzzo e Gabriel Galípolo, 2017, p. 93)
Capítulo 7 Lula e os estreitos caminhos da distribuição Em 2003, quando Lula chegou ao poder, parecia ter chegado ao fim a era neoliberal no Brasil. O desgaste do governo FHC ao longo dos dois mandatos em que implementou um programa de austeridade e cortes de gastos públicos foi imenso. A economia não cresceu em patamares suficientes para incorporar os brasileiros ao mercado de trabalho, os serviços públicos deterioraram-se, e a cada nova crise internacional o Brasil era sacudido pela ameaça da insolvência. Apesar do abandono da âncora cambial em 1999 ter diminuído o déficit comercial e a vulnerabilidade externa do país, o custo da estabilidade ainda se refletia na alta taxa real de juros que mantinha a economia desaquecida e sem força. Depois de um início de recuperação em 2000, com queda da taxa Selic para o patamar ainda elevadíssimo de 15% ao ano, e crescimento do PIB de 4,36%, veio a gravíssima crise argentina, seguida do default da dívida do país vizinho em moeda estrangeira. Nova turbulência, com retração de investimentos externos, seguida de subida de juros, aperto fiscal e a ameaça de secarem as reservas para pagamentos externos. Um novo e gigantesco acordo com o FMI foi feito, mais exigências de ajuste e restrições foram impostas, e, em meio ao novo caos dos mercados, as pesquisas eleitorais indicavam a preferência do eleitorado pelo candidato do PT. A situação era tão grave que o candidato Lula decidiu assumir um compromisso público de que honraria todos os contratos na conhecida “Carta aos Brasileiros”. O fato tornou-se simbólico definindo bem o governo Lula como um compromisso de conciliação. Como fazer um balanço do governo Lula? Se o olhar tiver como referência as lutas tradicionais do trabalhismo e dos partidos de esquerda, foi, no máximo, um “reformismo fraco” (Singer, 2012). Se forem consideradas as barreiras sociais tradicionais da sociedade de origem escravista, a extrema pobreza, a elitização do ensino superior e os patamares salariais dos segmentos de baixa renda desde o arrocho do governo militar, o governo Lula foi promotor de avanços incontestáveis na elevação da renda e inclusão de trabalhadores no mercado de consumo. Os dois pontos de vista têm muita influência entre pensadores, ativistas e setores que se posicionam como progressistas e de esquerda no Brasil. Houve uma ascensão social amplamente reconhecida por toda a sociedade, causando, inclusive, feroz oposição daqueles que, amparados por clichês “pseudoliberais” e meritocráticos, não aceitam a promoção da igualdade por meio de políticas públicas. Porém, nenhuma das mudanças que levaram a essa ascensão é perene ou, ao menos, estruturante. Não houve, na verdade, nenhum ajuste na distribuição da riqueza, nem reforma tributária ou fiscal que garantisse a continuidade do processo e a diminuição dos privilégios tradicionais. Houve, sem dúvida, uma onda de crescimento econômico em que ganharam todos os segmentos sociais, e o fortalecimento do mercado interno permitiu a inclusão efetiva dos trabalhadores, a diminuição da pobreza e a erradicação da fome.
Entre as dificuldades do governo do Partido dos Trabalhadores estava a composição das maiorias parlamentares que garantissem a governabilidade. Neste tema está o ponto mais controverso da avaliação do governo. As formas de construção de maiorias foram negociadas por todos os meios, desde a tradicional distribuição de cargos no governo, ou a partilha do poder, até a compra pura e simples de partidos pequenos ou grandes. Este instrumento foi responsável pela transformação do sistema partidário em um verdadeiro balcão de negócios, com grande fragmentação partidária e a efetiva destruição da representação política como consequência. O tema é polêmico porque, ao longo do período de governo do presidente Lula, boa parte dos analistas políticos elogiava o chamado “presidencialismo de coalizão”, um sistema em tese mais democrático ou consensual, com compartilhamento do poder por diferentes partidos (Lijphart, 2003). Não se discutia, no entanto, a fraude da representação que essa construção política tão eficiente passou a significar, tampouco o isolamento do poder em relação à sociedade. Hoje, depois das operações judiciais que se tornaram o espetáculo novelizado do Brasil, nós sabemos que, no processo, além de um sistema partidário sem qualquer relação com projetos nacionais ou representação de interesses em que os diferentes grupos sociais pudessem se reconhecer, as empresas privadas que financiaram os negócios das alianças partidárias dominaram o Congresso e a agenda política do país. Ou seja, as coalizões de governo foram financiadas por empresas que, em troca, cobraram leis, decretos e medidas variadas que fossem favoráveis aos seus objetivos corporativos. Hoje, essas empresas prevalecem sobre os interesses dos indivíduos e grupos, mesmo os mais organizados. Da atual distopia, que se formou a partir da grande crise pós-eleição de 2014, o único patrimônio que sobrou na política brasileira foi um Congresso com baixo comprometimento em relação às demandas populares e subserviente aos interesses empresariais. A questão do financiamento de campanhas em democracias de massa por empresas e a captura dos partidos por interesses econômicos não é uma invenção brasileira e, menos ainda, dos governos do PT. O fenômeno é observado na democracia liberal contemporânea e destaca-se na última década pela incapacidade de os partidos socialistas construírem alternativas à agenda do mercado que se impôs, surpreendentemente com mais força após a crise de 2008. Contudo, quando o arranjo foi reproduzido no ciclo de poder do PT, de maneira abrangente e capaz de cooptar partidos de perfis conservadores, perdeu-se no Brasil o debate político, ou seja, a expressão pública do conflito de interesses. A isso se chama, genericamente, conciliação. Ela resulta na despolitização da política, resumida ao marketing eleitoral. O período dos governos Lula é controverso e capaz de gerar intensa discussão. É rico em experiências e, certamente, um momento de inflexão. Coincidiu com a maior crise financeira global, a escalada da competição das corporações globais, o avanço sem paralelo da China, a nova ascensão russa e a polarização política no mundo. Não é fácil avaliar um governo que, em meio a tantos movimentos capazes de gerar rupturas extraordinárias, promoveu, ele próprio, suas contribuições originais à experiência
econômica, social e política da América Latina e do mundo. É preciso, portanto, escolher o foco da análise para criar os critérios sobre avanços, recuos e até mesmo para reconhecer as dúvidas sobre as possibilidades de manutenção de determinadas escolhas em face de tantos constrangimentos do sistema capitalista no cenário atual. Como estou tratando desde o início dos retrocessos que o Brasil viveu desde a crise da dívida em razão das transformações na economia mundial a partir do avanço neoliberal no final da década de 1970, considerando como premissa que a democratização e a emancipação popular dependem de desenvolvimento econômico e base material capaz de garantir os direitos – desafio complexo para economias periféricas –, é sob esta perspectiva que proponho olhar os governos Lula, avanços e permanências, conquistas e desafios. Quando Lula assumiu, em 2003, os indicadores macroeconômicos eram muito ruins. O ano eleitoral abriu mais uma crise profunda que expôs as entranhas da vulnerabilidade externa do país. A inflação subiu para 12,53% e os juros fecharam o ano em 25%. No discurso de posse, Lula falou em mudança, em esgotamento de um modelo de estagnação, desemprego e fome, mas anunciou que a mudança exigia cuidado, devia ser o resultado de um progresso gradativo. Uma longa caminhada, que começaria ali. A prioridade anunciada era a erradicação da fome. “Se, ao final do meu governo, todos os brasileiros tiverem a possibilidade de tomar café da manhã, almoçar e jantar, terei cumprido a missão da minha vida”, disse o presidente . ¹² O início do governo Lula, no entanto, foi de desencanto para os setores progressistas cujas expectativas eram de mudanças profundas nas políticas neoliberais. Não promoveu rupturas ou reformas, nem mesmo as anunciou, ao contrário, incorporou ao governo figuras emblemáticas do mercado. O Ministério da Fazenda não foi para economistas desenvolvimentistas ou formuladores tradicionais do PT, mas para o médico e ex-prefeito Antônio Palocci, o homem que havia cuidado da campanha e da transição, aproximando-se de Armínio Fraga, o presidente do Banco Central do segundo mandato de FHC. Os setores mais importantes da economia e do mercado foram incorporados aos ministérios, com Luiz Fernando Furlan, presidente da Sadia, uma das maiores empresas exportadoras do país, no Ministério do Desenvolvimento, e Roberto Rodrigues, presidente da Associação Brasileira de Agrobusiness (Abag), na Agricultura. Até aqui, o observador podia compreender a importância dos segmentos exportadores e da sua centralidade para o Brasil naquele estágio, embora, é claro, a avaliação de que o governo poderia estabelecer programas e integrar esses setores a processos políticos coordenados por agentes políticos ou técnicos articulados ao partido era a mais natural. O espanto, entretanto, dado o simbolismo e a centralidade da política monetária no modelo neoliberal, foi a escolha do presidente do Banco Central, Henrique Meirelles, executivo do mercado financeiro filiado ao PSDB. O mercado deu graças a todos os deuses. A revista Veja publicou a notícia do anúncio da indicação de Henrique Meirelles, em 13 de dezembro de 2002, com a seguinte manchete, longa e explicativa: “a cúpula da economia do governo do PT será formada por um “ex-trotskista” e um financista internacional. É incrível, mas o pensamento deles é muito parecido”. A imprensa já reconhecia Palocci como um petista confiável, “ex-trotskista” e, naquele momento, próximo ao
representante da finança internacional. O mercado estava tranquilo, segundo a reportagem, porque Lula, com seus primeiros gestos, parecia enterrar ali os significados de sua militância: Quem diria que o presidente eleito, Luiz Inácio Lula da Silva, um homem de origem sindical e cuja vida foi dedicada a mudar ‘tudo isso que está aí’, escolheria um banqueiro internacional e deputado tucano para dirigir o Banco Central? Pois Henrique Meirelles, o escolhido por Lula para o BC, é exatamente isso. O mesmo presidente, que demonizou o neoliberalismo e o belicismo americanos, visita o presidente George W. Bush e volta dos Estados Unidos dizendo que agora tem um ‘aliado’ no morador da Casa Branca. Na mesma semana, Antônio Palocci, um médico, ex-trotskista que foi prefeito de Ribeirão Preto, é entronizado no Ministério da Fazenda e o mercado acha a coisa mais normal do mundo. Na arena política, Lula, que descrevera a Câmara Federal como um bando de ‘300 picaretas’, bordão que virou até música do grupo Paralamas do Sucesso em 1996, agora está em franca negociação com os deputados e senadores. O petista oferece alguns cargos ministeriais em troca de sustentação política com uma desenvoltura só vista em tempos mais acalorados do ‘toma-lá-dá-cá’ das presidências anteriores. Está tudo muito estranho. Mas, por incrível que pareça, pode ser a coisa certa a fazer neste momento. (Veja, 13 de dezembro de 2002) Do outro lado, no mercado, parecia não haver nada melhor do que garantir a manutenção das políticas liberais de abertura, desregulamentação e ampla internacionalização da economia com a colaboração do líder do maior partido popular das décadas de 1980 e 1990. No contexto de desmonte de sindicatos e do movimento operário, o PT foi o maior movimento político de trabalhadores e intelectuais de esquerda no mundo nos anos 1980 e 1990. A década da democratização foi de luta intensa numa economia bastante industrializada e em profunda crise externa. Os trabalhadores também se organizaram no campo por meio do MST, outro grande movimento popular. Ambos foram vitoriosos ao pautar os direitos dos trabalhadores que seriam inscritos na Constituição democrática de 1988, e conferiam a Lula a legitimidade que as lideranças oligárquicas haviam perdido junto ao povo nos governos de Sarney e FHC. Lula, portanto, era um líder desejável se fosse capaz de traduzir a razão da doutrina liberal e a sua suposta justificativa, divulgada por think tanks e mídia corporativa ao longo de duas décadas: There is no alternative . O governo Lula nasceu nesta encruzilhada e, entre a confiança do mercado e as promessas de emancipação da pobreza e da miséria, Lula se movimentou nos limites da conciliação de classes. Contou com um período de bonança internacional, com uma ativa política externa que vetou o projeto da Área de Livre Comércio das Américas (Alca), alavancou a integração regional e procurou alternativas de parcerias políticas e comerciais. Além disso, promoveu a incorporação de alguns elementos desenvolvimentistas ao modelo macroeconômico herdado do governo neoliberal de FHC. Manteve o tripé macroeconômico, aquela plataforma adorada, propagandeada e cobrada diariamente pelos agentes do mercado, incluindo a mídia de massas: câmbio flutuante, meta de inflação e superávit primário. Exatamente a fórmula que determinou a vulnerabilidade da economia
brasileira, com juros elevados, superávits deprimindo investimento e crescimento e a valorização cambial impedindo a competitividade da indústria. Do ponto de vista estrutural, portanto, o Brasil não avançou. Mas houve uma expressiva melhoria de indicadores econômicos e sociais no período. No plano político, o governo Lula representava a superação de um obstáculo gigantesco em um país de passado colonial escravista, com hierarquias sólidas, elites coesas e a subordinação histórica de uma maioria de excluídos de todo capital social e simbólico que garantem a distinção da minoria do “andar de cima”. Esse abalo da estratificação aconteceria simultaneamente em outros países da América Latina, igualmente devastados pela crise da dívida dos anos 1980 e pela abertura neoliberal após os processos de renegociação de dívidas dos anos de 1990. Uma onda de governos de esquerda se seguiria à ascensão de Lula. Néstor Kirchner, na Argentina, em 2003, Evo Morales, na Bolívia, em 2005, Michele Bachelet, no Chile, em 2006, Rafael Correa, no Equador, em 2007. E antes de Lula, a Frente Ampla já havia conquistado o governo no Uruguai e Hugo Chavez – o primeiro governante nacionalista e ativista do anti-imperialismo na América Latina – enfrentava o neoliberalismo na Venezuela, ambos a partir de 1999. A primeira década do século XXI foi um tempo de esperanças populares. As expectativas eram de que avanços decisivos transformariam as arcaicas estruturas oligárquicas da América Latina e a subordinação periférica do continente. Não tardou para que essas novas forças políticas colocassem em pauta um projeto de integração capaz de transformar a região em um bloco político e econômico que pudesse se tornar relevante nas relações internacionais. A Unasul, criada em 2008 na Cúpula Sul-Americana, em Brasília, era a materialização dessa construção política. Para a ordem estabelecida, todas essas novidades e projetos representavam ameaças, sobretudo se consideramos a parceria cada vez mais estreita do bloco sul-americano com a China, o crescimento econômico que o aumento das exportações permitiu e a distribuição de renda seguida da ascensão das classes populares que, por sua vez, consolidavam a lealdade eleitoral a essas forças políticas. Um elemento importante da ameaça estratégica, ou contra hegemônica, é o petróleo, capaz de financiar algum desenvolvimento e o aumento do peso político da região. A Venezuela, com a maior reserva de petróleo do mundo, nacionalizou a exploração e passou a financiar a política de integração, contribuindo para a independência de países como Cuba e Argentina, que precisou de parcerias depois do default de parte das dívidas pelos Kirchner. A independência energética era um garantidor da integração, além de representar prejuízos para as grandes corporações globais de petróleo e seus projetos estratégicos. O Brasil fez a maior descoberta de reservas de petróleo deste período, em 2006, na camada do pré-sal, surpreendendo o mundo e atraindo os interesses internacionais. A confirmação da existência das reservas e a primeira extração de óleo leve vieram em 2008, o que transformou o setor de produção de petróleo brasileiro em objeto de disputa para a exploração das corporações multinacionais. Todas as iniciativas do governo no sentido de proteger da arbitragem do mercado a cadeia de
produção do petróleo, criando regulações com vistas ao desenvolvimento de tecnologias e indústrias nacionais, também foram razões para intensa pressão internacional, que se manifestou no Congresso, já no governo Dilma, por meio da oposição associada aos interesses das empresas americanas, com impactos claros no processo político que levou ao golpe de 2016, como mencionarei mais adiante. Este é um pouco do panorama de expectativas, desafios e obstáculos ao desenvolvimento. As dificuldades que se apresentaram ao Brasil, tanto do ponto de vista das pressões políticas, quanto por meio dos mecanismos do mercado, também se apresentaram aos demais países, com impactos variados segundo as especificidades econômicas e a maior ou menor presença dos interesses externos. Com tal quadro, é possível dimensionar a importância do cenário internacional para a consecução dos projetos políticos. O sistema global é hierárquico e sua dinâmica é a da competição expansiva de economias nacionais e empresas globais juridicamente (e até militarmente) apoiadas por seus Estados nacionais de origem, mesmo quando estão atuando fora de suas fronteiras (Fiori, 2014). Na América Latina, apresentaram-se claramente dois paradigmas: o confronto chavista e a conciliação dos governos do PT, cada um contou com sucessos e fracassos. Em nenhum dos dois casos, e apesar das diferenças que as estruturas econômicas dos respectivos países apresentavam, houve avanços do ponto de vista do desenvolvimento econômico e tecnológico capaz de emancipá-los da condição periférica. A Venezuela manteve-se como economia monoexportadora, dependente exclusivamente das receitas do petróleo e altamente vulnerável às oscilações do mercado externo, entrando em colapso quando o preço internacional despencou no fim de 2014. O Brasil, por sua vez, continuou no processo de reprimarização da economia, e embora contasse com uma pauta de exportação mais variada e uma estrutura produtiva mais complexa que a do país vizinho, permaneceu dependente de investimentos e tecnologias externas, em condição subalterna no sistema global. As exceções são a cadeia do petróleo, que permitiu ao governo construir um projeto para o desenvolvimento de tecnologia local e de produção de maior valor agregado, e a indústria automobilística que conta com proteção capaz de manter um percentual relevante da indústria na produção global da riqueza. Mas depois do golpe de 2016, também o projeto nacional ligado à cadeia de petróleo e gás foi interrompido e, possivelmente, inviabilizado. O confronto venezuelano e a conciliação brasileira foram até aqui derrotados como projetos de emancipação democrática e soberana, apesar dos períodos de boas condições comerciais e políticas no plano internacional. Deixam heranças diferentes, entretanto. No caso do modelo chavista, observa-se a maior politização das camadas populares, traduzindose em lealdade ao projeto bolivariano, de caráter popular e nacionalista, apesar das imensas insatisfações que as condições de deterioração da economia e da dinâmica das relações sociais produzem neste momento. No caso da conciliação brasileira, uma alienação imensa de segmentos populares que não sabem se situar dentro da ordem vigente em meio à confusão de partidos e alianças que pouco se diferenciam nas representações da mídia retratam a perda quase completa do vínculo entre
o Partido dos Trabalhadores e as classes populares que foram a sua base política e eleitoral, como se verificou nas eleições municipais de 2016. Observa-se, ainda, uma tentativa de desmoralização da esquerda, não apenas por escândalos de corrupção, mas também pelas fragilidades econômicas que, embora associadas às vulnerabilidades do modelo macroeconômico neoliberal que foi continuado e aprofundado no ciclo recessivo, têm sido instrumentalizadas por segmentos oligárquicos pela condenação daquilo que chamam de “populismo fiscal”. Resta, entretanto, a liderança de Lula que, apesar da campanha da mídia e dos inúmeros processos relacionados a indícios de corrupção, cresce diante do desmonte de direitos promovido pelo golpe e da perseguição judicial sem paralelo. Avaliar os benefícios desse período e os seus resultados, ou seja, compreender os avanços e os atuais obstáculos ao desenvolvimento – segundo os parâmetros de crescimento e distribuição da riqueza com vistas a garantir, a todos os brasileiros, emprego, renda e direitos sociais – requer a análise da economia e dos avanços sociais e, igualmente, das condições políticas que resultaram dos treze anos de governo do PT, ou seja, das expectativas e interesses que podem compor os projetos para as próximas décadas. Nesse sentido, trata-se de avaliar não apenas a distribuição da renda e a diminuição das desigualdades, mas também o funcionamento da democracia e a representação política. Para este critério, os resultados não são animadores. O início do mandato de Lula foi um aviso claro ao mercado de que o novo governo seria obediente ao modelo macroeconômico. Como apontei anteriormente, os efeitos da crise de 2002, com a subida do dólar e da inflação, haviam levado o Banco Central a aumentar a taxa de juros de 18% para 25%. Depois da mudança de governo, a taxa ainda foi elevada duas vezes, para 25,5% em janeiro, e mais um ponto percentual em março, chegando a inacreditáveis 26,5%. E não foi só. Em fevereiro, o governo determinou o aumento do depósito compulsório dos bancos provocando um aperto de algo em torno de 10% da liquidez (Paulani, 2003). Apesar da redução gradual da taxa básica de juros a partir de julho, fechando o ano de 2003 em 17,5%, a dose do choque recessivo havia sido tão alta que a economia não se recuperou, fechando o ano com o crescimento de 0,54%, um resultado trágico se comparado ao do turbulento ano anterior, de 1,93%, e, sobretudo, considerando-se o aumento expressivo de exportações numa conjuntura externa favorável. Retrospectivamente, não há dúvidas de que o governo e sua equipe prómercado não queriam apenas sinalizar para os agentes econômicos que não haveria rupturas, mas assumiriam o arranjo macroeconômico forjado pela política neoliberal da década anterior, contrariando as diretrizes aprovadas pelo partido em 2001, que afirmavam o programa de ruptura com o modelo econômico. O tripé macroeconômico foi mantido ao longo do período do governo Lula, e o discurso da responsabilidade fiscal e do ajuste econômico do presidente só foi relativizado a partir da crise de 2008, quando a crítica à estrutura financeira global adicionou ao debate elementos de diferenciação da América Latina. Naquele contexto, Lula passou a atribuir importância a ações de seu governo que permitiriam atravessar o tsunami da crise mundial
como se fosse uma “marolinha”. O tom era de certeza de que o consenso estabelecido internacionalmente estava definitivamente desmoralizado pela devastação causada por movimentos especulativos após a desregulamentação dos mercados de capitais na maioria dos países do mundo. Não foi o que aconteceu. Por mais incrível que possa parecer ao observador, o consenso neoliberal se aprofundou e a violência especulativa e predatória das corporações globais aumentou a partir da crise. Provavelmente, a necessidade de recompor o patrimônio perdido e de convencer governos e elites partidárias a salvar bancos foi decisiva para um aumento sem precedentes da propaganda midiática e da compra de governos e parlamentos pelo mundo. A ofensiva do capital se concentrou contra todas as formas de apropriação social da riqueza por meio do desmonte de direitos sociais consagrados. No Brasil, o programa de destruição viria após o golpe de 2016 em um ataque sem precedentes. Mas a campanha foi anterior, e se aprofundou acompanhando a espiral da crise política e da estagnação seguida de recessão da economia. Apesar do discurso mais flexível e do aumento de gastos, num movimento anticíclico, Lula manteve até o final do seu mandato o câmbio flutuante, metas de inflação e o superávit primário. A manutenção do tripé não foi suficiente para garantir a grande conciliação nacional. Escândalos de corrupção mostravam, desde o primeiro mandato, a disposição de atores econômicos, instituições do Judiciário e mídia, de punir as práticas políticas que sempre foram, de alguma forma, ignoradas, de acordo com os interesses oligárquicos. Não houve trégua na perseguição moral e midiática ao PT que, como resposta, maximizou sua aposta na conciliação, ao ponto de perder qualquer constrangimento. Os indicadores econômicos do período, no entanto, foram muito bons e sustentaram o aumento de investimentos sociais e dos serviços do Estado, numa progressão que representou significativa ruptura com o desmonte das instituições públicas deixado pelo governo anterior. Esses investimentos foram acompanhados da elevação substancial do salário mínimo e de um aumento do crédito ao consumo, elementos que dinamizaram o mercado interno e constituíram um círculo virtuoso de crescimento. À exceção de 2009, quando houve um recuo de 0,6% do PIB (com recuperação no ano seguinte), os governos de Lula constituíram um período de crescimento constante do produto per capita, com estabilidade de preços e distribuição de renda. Um período de notórios e indiscutíveis avanços sociais. Os indicadores mostram uma média de crescimento de 4,2% a.a., contra os 2% do período anterior; a taxa de investimento subiu de 16,23% em 2003 para 20,1% em 2008; o desemprego caiu de 11,3%, em 2003, para 6,1%, em 2010, e com aumento real dos salários. O índice de Gini, que havia piorado entre 1981 e 2001, quando passou de 0,58 para 0,60, indicando a persistência da desigualdade e da pobreza no Brasil, em 2009, foi 0,54, revertendo a tendência histórica e traduzindo a efetiva diminuição da pobreza e da miséria. Entre 2005 e 2009, o número de brasileiros extremamente pobres caiu de 11,49% da população, para 7,28%, e o de pobres, de 30,82% para 21,42% (Curado, 2011).
A polêmica em torno da manutenção da política econômica do governo anterior gerou um debate interessante dentro e fora do PT. Deste debate resultaram algumas propostas neodesenvolvimentistas. Os economistas dessa corrente compartilhavam críticas às políticas neoliberais por serem incompatíveis com políticas industriais e de transferência de renda consideradas fundamentais para o crescimento com diminuição da desigualdade. Eles observavam que a defasagem tecnológica e a desigualdade, obstáculos para o desenvolvimento, se aprofundavam com as políticas neoliberais que, até então, produziram apreciação cambial, vulnerabilidade externa, baixo crescimento e um custo fiscal elevadíssimo em função da política monetária (Morais e Saad Filho, 2011). Um consenso estabelecido entre os neodesenvolvimentistas, tanto os de inspiração neokeynesiana, quanto os neoestruturalistas cepalinos, era a complementaridade entre Estado e mercado. A condição para a redução da desigualdade e a distribuição da riqueza era o crescimento duradouro e sustentável, o que, por sua vez, dependia de um mercado forte. Por princípio, não há mercado forte sem Estado forte, portanto, se o crescimento dependia de um mercado forte, era preciso que se compreendesse o Estado como articulador central de políticas adequadas para este fim, as quais deviam obedecer à racionalidade de um projeto de desenvolvimento associando crescimento e equidade. Um mercado forte é aquele que permite a concorrência, que gera oportunidades e que é capaz de sustentar um nível estável de demanda. Para que essas condições sejam alcançadas, sua regulação é imprescindível, pois um mercado sem regulações não tem proteções à concorrência, eliminada pela concentração do capital, e não pode garantir o padrão de renda necessário para a manutenção da demanda. Depois dos três primeiros anos de ajuste fiscal, sem crescimento do emprego e da renda e, tampouco, de abertura de espaço fiscal expansionista, a partir de 2006, Lula incorporou parte da agenda desenvolvimentista, sem abandonar os princípios do tripé macroeconômico, constituindo uma política econômica híbrida (Morais e Saad Filho, 2011). A equipe econômica foi substituída por outra que defendia o maior ativismo do Estado na economia por meio de estímulos fiscais e monetários, visando à aceleração do crescimento, o aumento das transferências de renda e a elevação do salário mínimo, e a ampliação do investimento público e do papel do Estado no planejamento de longo prazo (Barbosa e Souza, 2010).
É possível atribuir a virada do governo Lula a razões pragmáticas. Depois de um ciclo de governo comportado nos padrões fiscais estabelecidos, o crescimento era pequeno, sem impactar o emprego e a renda. Chegava o ano eleitoral e Lula teria alguns obstáculos no debate quando seria evidenciada a continuidade em relação ao governo anterior e a falsidade do discurso de campanha. Além disso, os tradicionais donos do poder puderam se beneficiar da exploração do escândalo do “mensalão”, que tornou público o mecanismo de compra dos pequenos partidos que formavam a coalizão de governo. Lula precisava se legitimar e estabelecer uma base popular sólida. É nesse contexto que se dá a mudança da política econômica para um expansionismo fiscal exitoso que seria aprofundado após a crise de 2008. Por outro lado, a redução do endividamento externo entre 2003 e 2005, permitiu o pagamento da dívida junto ao FMI e deu liberdade ao governo em relação às pressões internacionais. Em 2006, os salários passaram a impulsionar o fortalecimento do mercado interno, com aumentos substanciais. A medida mais importante foi o reajuste do salário mínimo em 16,7%, o que significou um aumento real de 14,1%, o maior de todo o período de governo. Além disso, o governo ampliou o gasto público e reestruturou carreiras de Estado reajustando também os vencimentos dos servidores. Nos anos seguintes, o salário mínimo continuaria a receber aumentos reais, calculados a partir de um índice que considerava a recomposição da inflação e o crescimento do PIB. O Programa Bolsa Família complementou a política de distribuição de renda na medida em que seu objetivo foi alcançar uma parte da população que vivia em situação de pobreza e extrema pobreza. Tratava-se de uma política pública de foco, nos moldes da Terceira Via do trabalhismo inglês, ou seja, um programa de transição até que o beneficiário se integrasse ao mercado. Entretanto, o seu contínuo crescimento traduzia o desafio que se impunha para vencer a fome e a miséria no país, e permaneceu constante até o fim do governo Dilma. No período Lula, o programa saiu de um valor de 0,1% do PIB, em 2003, para 0,4% em 2008. As transferências do Bolsa Família e a valorização do salário mínimo ativaram o crescimento do mercado de consumo e a demanda agregada ao retirarem milhões de famílias da situação de pobreza. No mesmo contexto, foi anunciada a orientação para o investimento em infraestrutura, começando um programa ainda acanhado de melhoria das estradas, a “Operação Tapa Buracos”. Em 2007, entretanto, as ações seriam organizadas por meio de um programa de maiores ambições: o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). Uma das virtudes do programa foi induzir o investimento público e apoiar a formação de capital privado. O investimento público aumentou, mas o programa mostrou os gargalos da administração para formular e executar projetos depois de muitos anos de ajustes e pouquíssimo investimento. A ampliação do gasto do governo foi quase totalmente financiada pelo aumento do PIB. O superávit primário caiu apenas 0,2%, passando de 2,5% no período de 2003-2005, para 2,3%, no período 2006-2008. Continuou, portanto, mais elevado do que a média do governo anterior de 1,9% do PIB, entre 1999-2002. Ressalte-se, ainda, que houve espaço fiscal para isenções visando estimular a produção (Barbosa e Souza, 2010). Incentivos, subsídios e crédito por meio da ação de bancos públicos foram estratégicos para a manutenção dos investimentos no âmbito
do Plano de Sustentação do Investimento (PSI) e da Política de Desenvolvimento Produtivo (PDP) após a crise de 2008. A adoção das políticas advogadas pelos neodesenvolvimentistas sociais – de distribuição da renda via salários e crescimento baseado no mercado interno – teve resultados expressivos. Houve crescimento e inclusão persistente entre 2004 e 2012. A vulnerabilidade externa e a conta corrente foram compensadas pelo aumento do preço das commodities em um cenário ótimo do comércio mundial. O crescimento espetacular da China produzia uma demanda continuada de commodities que o Brasil produzia. No plano fiscal, a expansão dos gastos foi praticamente quitada pelo crescimento. Mas, apesar dos indicadores incontestavelmente positivos, a crônica valorização da moeda, ou doença holandesa, apontada por Bresser Pereira e neodesenvolvimentistas industrialistas, se manteve. Era um resultado observado em economias exportadoras de commodities, que, ao se beneficiarem da entrada de divisas, passavam a gerar uma valorização da moeda local nefasta para a competitividade da indústria. O fluxo de dólares a preço desvalorizado em relação à moeda doméstica tornava as importações de manufaturados mais atrativas do que o desenvolvimento da indústria doméstica, desviando a demanda interna para as importações e não para a dinamização do parque produtivo nacional. Esse fenômeno seria responsável pela progressiva desindustrialização do país, o que levou Bresser, no debate desenvolvimentista, a recomendar uma política de controle cambial por meio de um duplo mandato do Banco Central, que deveria atuar tanto para manter o controle da inflação, quanto para garantir o equilíbrio da balança e a competitividade das empresas brasileiras. Entretanto, o custo de uma valorização cambial tem impacto imediato na inflação, o que implica a necessidade de contar com apoio de uma sociedade bem informada que compreenda o esforço de desenvolvimento nacional. Essa informação, que não havia e não há no Brasil, permite que a histeria anti-inflacionária dos monopólios de comunicação seja usada em casos de qualquer desvio mínimo da inflação, como arma política contra o governo. O debate público nunca foi travado nesses termos, e consolidou-se o consenso em torno do discurso do mercado resumido ao controle da inflação. Além da desindustrialização resultante da apreciação cambial, que fez a demanda interna escoar para as importações, outros indicadores revelam a permanência dos problemas do modelo macroeconômico que foi mantido. O custo fiscal da política de meta inflacionária com conta de capital aberta, que manteve alta a taxa dos juros reais, se traduzia na incapacidade de acabar com o déficit nominal das contas públicas mesmo com o novo patamar de crescimento e superávit primário. Até o festejado nível das reservas cambiais, que em tese garantem a autonomia de um país ao tornálo menos vulnerável a movimentos especulativos, é enganador, porque é compensado por um volume equivalente de passivos estrangeiros de portfólios de grande liquidez. Não há dúvida de que a política econômica do governo Lula foi exitosa porque contou com um cenário internacional favorável. Alguns analistas, entretanto, recusam essa relação direta e chamam a atenção para o fato de que, depois de 2009, com a crise internacional em curso, os resultados da
política econômica permaneceram positivos, assinalando que o ganho de produtividade verificado durante os anos anteriores permitiu que se mantivesse a confiança e os investimentos por algum tempo. Morais e Saad Filho fizeram essa avaliação em 2011 e profetizaram que a confiança na condução da política econômica se mantivera, apesar das vulnerabilidades, mas não deveria ser imune à mudança de governo. De fato, o ciclo Dilma seria de retração progressiva do investimento e do crescimento. Mas os autores deixaram de considerar que a desaceleração da China, que havia se tornado o principal parceiro comercial do Brasil, foi também retardada em relação à crise e o preço das commodities se manteve alto. A China se movimentou contra o ciclo de recessão, ampliando investimentos em 2009 e mantendo o crescimento no patamar de 10% do PIB em 2010, em seguida desacelerou para chegar a um crescimento projetado de 6,5% em 2017. Esse movimento de contração reduziu muito o comércio e os preços internacionais. Ademais, uma decisão do cartel petroleiro de derrubar os preços internacionais do barril, em 2014, apontando como causa a concorrência do gás de xisto, teve impactos ruinosos para os projetos políticos de países como Brasil, Rússia e Venezuela, afetando não apenas as contas do comércio, como os projetos de desenvolvimento nacional que, no caso brasileiro, foram planejados a partir da descoberta das reservas do pré-sal e envolviam toda a cadeia produtiva dos combustíveis. Não é fortuito o desmonte da Petrobras após o golpe parlamentar de 2016. Sob o pretexto de endividamento por gestão ruinosa, apesar de todas as petroleiras do mundo estarem em situação financeira difícil depois da queda dos preços internacionais, a empresa sofre um desmonte com a venda de ativos e perde a exclusividade na operação das reservas do pré-sal. A fim de desmoralizar a gestão da Petrobras nos governos petistas, ocultou-se o fato de que a alavancagem e o endividamento relacionavam-se a vultosos investimentos após a descoberta do pré-sal, com expectativas de amplas compensações no médio e longo prazos. Talvez a maior inflexão do período de governo de Lula tenha sido a política externa, baseada em uma visão de mundo e do cenário que rompia com o pressuposto de desenvolvimento associado aos Estados Unidos, visão que prevaleceu na compreensão de dependência de Fernando Henrique Cardoso. Essa visão de que os países que se desenvolveram no século XX puderam fazê-lo associados ou “a convite” da potência hegemônica, como a Alemanha, o Japão, a Coreia e até mesmo a China, nos anos 1970, pode ser objeto de crítica à medida que as contradições sistêmicas de um ciclo hegemônico resultam em alterações significativas de poder. Não à toa os Estados Unidos iniciaram uma ofensiva militar e financeira para retomar a controle do sistema nos anos 1980. Essas contradições apareceram no terceiro mundismo, com resultados permanentes em relação ao desenvolvimento de regiões da Ásia, mas foram superadas pela recessão e posterior desregulamentação e abertura de mercados dos anos 1980 e 1990 – armas da retomada de poder hegemônico dos Estados Unidos. Ou seja, a estrutura hierárquica de poder no sistema internacional é dinâmica, permitindo movimentos contra-hegemônicos nas suas brechas por meio do uso dos conflitos de interesses entre diferentes polos de poder, sobretudo por meio de alianças. Outro aspecto fundamental do desenvolvimento
associado, ou “a convite”, é que ele se deu como parte da disputa da Guerra Fria, na Europa e na Ásia, sem qualquer iniciativa similar na América Latina, região que, para os Estados Unidos, é melhor controlada quanto maior for a sua dependência econômica. Em outras palavras, o desenvolvimento da América Latina em nenhum momento foi interesse estratégico dos Estados Unidos, como haviam sido os casos da Alemanha, do Japão, da Coreia e posteriormente da China. No discurso de posse em 2003, o presidente Lula também afirmou a importância da política externa a serviço do desenvolvimento nacional. Os principais instrumentos de uma política externa ativa com este objetivo seriam a busca de parceiros comerciais e investimentos produtivos, estratégias que permitissem transferência e capacitação tecnológica, e negociações comerciais visando suprimir barreiras e subsídios mantidos por diversos países em prejuízo das exportações brasileiras. Ou seja, exigir dos países a mesma liberalidade comercial que era exigida do Brasil, endurecendo as negociações, como se veria nas rodadas da OMC. A agenda anunciada destacou ainda a prioridade do fortalecimento das relações entre os países da América do Sul e do Mercosul. Enfraquecido pela crise dos seus membros e por uma visão estreita quanto à sua importância estratégica, o Mercosul devia ser objeto de fortalecimento não apenas como bloco comercial, mas como ator político, dotado de maior poder nas negociações multilaterais. A escolha do ministro das Relações Exteriores apontava para a opção pelo grupo desenvolvimentista do Itamaraty, formulador da política externa inovadora que vigorou durante o governo Lula, retomando uma tradição da Política Externa Independente (PEI), dos anos de 1961-64. No balanço dos cem primeiros dias do governo, o ministro Celso Amorim reafirmou os princípios do discurso presidencial de posse, estabelecendo os objetivos prioritários da agenda internacional. Eram eles a América do Sul, o multilateralismo na construção da paz, uma agenda comercial afirmativa e parcerias diversificadas com países desenvolvidos e em desenvolvimento (Silva, 2011). Secretário-Geral da pasta de Relações Exteriores e ministro da Secretaria de Assuntos Estratégicos (SAE), o embaixador Samuel Pinheiro Guimarães é autor de ensaios que traduzem a visão de mundo que informou a nova agenda externa brasileira a partir de 2003. Em Quinhentos Anos de Periferia e Desafios Brasileiros na era dos Gigantes, sintetiza a estrutura do sistema internacional e a vulnerabilidade externa do Brasil . A concentração de poder no país, segundo sua perspectiva, está historicamente alicerçada na desigualdade social, na violência e na desmobilização da massa de trabalhadores. A naturalização das desigualdades, a desqualificação da política e do intervencionismo estatal por parte dos meios de comunicação, ampliando o individualismo e o consumismo, e ainda a proliferação de seitas que contribuem para a persistência da aceitação de injustiças e a canalização dos esforços para a “salvação” individual são instrumentos de permanente despolitização. Além deles, é preciso considerar o caráter racial que estrutura as desigualdades. Essas contradições e desigualdades são indissociáveis das vulnerabilidades externas que se manifestam na incapacidade de gerar tecnologias e de superar a função de exportador de
produtos primários – histórico do corolário liberal das vantagens comparativas que prevaleceu desde a independência. As relações econômicas no mundo pós-globalização fortalecem as estruturas de concentração de poder, o império americano e suas visões de mundo, na medida em que se tornam incontrastáveis por meio de um amplo monopólio dos meios de comunicação. Identificada a um projeto contra-hegemônico, a agenda apontada por Guimarães reúne a redução das desigualdades sociais, a eliminação das vulnerabilidades externas, o desenvolvimento do potencial brasileiro e a consolidação da democracia. Desenvolvimento tecnológico e industrial e desconcentração do poder dependem de políticas públicas e, portanto, da ação coletiva, que somente pode ser levada a cabo por meio de instrumentos do Estado. O modelo neoliberal ao qual o Brasil se subordinou nos anos de governo FHC restringiu os instrumentos disponíveis e contribuiu para a transferência de recursos da periferia para o centro do sistema, ampliando as desigualdades e fortalecendo as estruturas oligopolistas tanto na economia quanto na política. A desregulamentação privilegiou o capital estrangeiro, a abertura comercial foi imprudente, o câmbio foi valorizado e os juros se mantiveram altos em razão da crescente necessidade de capitais externos. O resultado foi o aumento da vulnerabilidade externa, baixo crescimento, desemprego e inquietação política e social. Guimarães observou, ainda, que o aumento do superávit comercial a partir de 2003 não devia ser comemorado, uma vez que era efeito do aumento de preços de produtos primários no mercado internacional. Em síntese, o processo de globalização manifestava-se excludente, assimétrico, com impactos negativos de largo alcance, como a subordinação econômica e política, em prejuízo da soberania. Os desafios para o desenvolvimento do Brasil eram, portanto, enormes, pois o país manteve-se com índices alarmantes de desigualdade e pobreza, beirando a ameaça ao convívio social, e não teve políticas que visassem à integração de mão de obra ao sistema produtivo, caracterizado pela baixa inovação e dependência de importação de bens e tecnologias, o que exigia um esforço crescente de exportação de commodities (Guimarães, 2006). Em tal cenário, o Brasil precisava de política comercial e tarifária seletiva, política tecnológica e industrial, e planejamento estratégico. Em conjunto com a América Latina, devia buscar uma posição de maior relevância no sistema internacional com o objetivo de influir em um desejável processo de reordenamento mundial. Dois eixos igualmente importantes mereciam trabalho incessante de uma política ativa para a emergência do sistema multipolar no qual a América do Sul pudesse constituir um dos polos. O primeiro era o fortalecimento da América do Sul por meio da articulação de um bloco econômico e político, com mecanismos de compensação que pudessem reduzir a desigualdade entre os membros, “a partir de um Mercosul reformulado, e em coordenação essencial com a Argentina e a Venezuela”. O segundo, a aproximação política e econômica com os grandes Estados periféricos que tivessem interesse em promover a multipolaridade do sistema mundial (Guimarães, 2006, p. 294).
Essa visão geral dos mecanismos globais de poder e das necessidades do Brasil para superar suas vulnerabilidades externas e desenvolver suas potencialidades de forma autônoma pode ser amplamente reconhecida nas opções feitas, durante o governo Lula, de diversificação das relações comerciais e de cooperação internacional, de fortalecimento do Mercosul e da integração regional, e, ainda, das exigências do fim dos subsídios agrícolas no âmbito das negociações da OMC. A suspensão das negociações em torno da Alca – importante inflexão da política externa – materializou esse programa, ainda no início do governo. Os países do Mercosul, na cúpula de Mar Del Plata, em 2005, adotaram em bloco uma nova postura, exigindo condições como o fim dos subsídios agrícolas nos Estados Unidos para a retomada das negociações. Dos 34 países reunidos na 4ª Cúpula das Américas, os 4 do Mercosul e a Venezuela rejeitaram a implementação do cronograma das negociações e decidiram esperar as negociações da OMC. O impasse resultou no abandono do projeto e, desde então, os Estados Unidos passaram a negociar unicamente acordos bilaterais (Laidler, 2014). A ênfase na política externa é fundamental porque aqui está um diferencial profundo entre os governos do PT e a alternativa eleitoral do PSDB. São duas visões de mundo traduzidas em opções radicalmente diferentes de integração do país na ordem global. O primeiro concentra esforços de fortalecimento regional para a construção de posição defensiva perante a competição internacional, visando, no limite, alterações do status quo . O outro, liberal e associado à potência hegemônica, não se sabe muito bem esperando que tipo de benefício, pois fala de um suposto crescimento – sem qualificações do ponto de vista do desenvolvimento – que, no entanto, durante os anos de governo FHC, foi baixo e de alto custo financeiro e social. Está claro que, apesar da adoção dos paradigmas macroeconômicos de alto custo herdados da construção institucional do governo FHC, havia uma diferença qualitativa entre os governos do PT e os do PSDB. As políticas de transferência de renda, iniciadas nos anos 1990, ganharam abrangência atingindo dezenas de milhões de brasileiros. O aumento real do salário mínimo ampliou a massa salarial fortalecendo o mercado interno, e a expansão do crédito complementou a estratégia de crescimento pela via do consumo das famílias. Havia, também, uma clara diferença nos objetivos de integração ao mercado global com vistas à aquisição de um maior poder de barganha nas relações externas.
Avaliando aquilo que nomeou como um “reformismo fraco”, o cientista político André Singer procurou demonstrar que houve um realinhamento eleitoral no Brasil a partir de 2006, ou da virada do governo Lula após o escândalo do “mensalão”. De acordo com os dados eleitorais analisados pelo autor, na eleição de 2006, a classe média que havia dado seu voto ao PT em 2002 se afastou do partido enquanto os pobres se aproximaram, reconhecendo os benefícios do primeiro mandato. A confiança dos eleitores de baixa renda, cujo conservadorismo anterior seria explicado por sua permanente insegurança, teria alterado o cenário político brasileiro ao ponto de garantir uma ampla base eleitoral para sustentar a agenda do “lulismo” por décadas (Singer, 2012). Essa conclusão explica não apenas a aprovação de Lula ao final de seus dois mandatos, mas a eleição de sua candidata, Dilma Rousseff, e o desafio que se colocou para a oposição. Depois da vitória de Dilma nas eleições de 2014, estava claro que o PT poderia governar o país por até um quarto de século, com a volta de Lula em 2019. A campanha de desmoralização do partido e a criminalização seletiva do sistema de financiamentos eleitorais e coligações partidárias, movida pela mídia, entraram em cena em um momento de baixa de ciclo econômico, gerando uma profunda crise que afetaria todas as instituições, incluindo o sistema produtivo. Antes de chegar a este ponto, que procuro descrever adiante, é importante salientar duas questões relacionadas entre si a serem consideradas na análise do governo Lula e que podem explicar a fragilidade observada diante do golpe de 2016. A primeira diz respeito à politização dos cidadãos, a segunda, já referida anteriormente, ao sistema de coalizão de balcão. Depois das manifestações de 2013, a cobrança quanto a uma necessária politização do povo, descuidada pelo governo que promovera apenas o cidadão consumidor, foi um consenso entre os analistas mais progressistas. Em geral, percebiam que o trabalhador pobre que aumentara sua capacidade de consumo atribuía esse avanço a seus esforços e não às políticas públicas ou ao empenho do governo em manter um avanço progressivo do valor real dos salários. De fato, o medo de que aquelas manifestações de insatisfação que expressaram o divórcio entre o povo e o sistema de representação fossem capturadas pela direita fazia todo o sentido. E os militantes do PT reconheciam o fato de que o partido se distanciara de suas bases e, sobretudo, não conseguira politizá-las. O processo vinha de longe, porque, desde o início do governo Lula, o discurso da integração da base da sociedade foi o do mercado. Seria injusto não mencionar a educação, pois juntamente com a repetição de que o pobre podia comprar mais e todo mundo saía ganhando, o presidente Lula sempre afirmou seu objetivo de que o pobre tivesse acesso à universidade. E, de fato, uma entre as políticas públicas mais relevantes do governo foi a ampliação das vagas em universidades públicas e o financiamento estudantil. Mas tratava-se também de um projeto cuja expressão era condizente com a integração ao mercado de consumo, reiterando a possibilidade de ascensão social como uma forma de participar do jogo, sem alterá-lo.
Foi apenas em 2013 que, no contexto explosivo que descrevo adiante, o PT parece ter se dado conta de que se afastara de sua origem e do trabalho de base para se transformar em partido burocrático, em máquina eleitoral, que não podia ser identificado por um projeto original pela sociedade, sobretudo pela geração jovem que não podia comparar os governos do partido com os anteriores. Essa comparação nunca foi feita em detalhe pelo PT. Alguns pontos podiam ser afirmados, como o avanço de programas sociais ou o fim das privatizações, mas nada havia para defender no campo do desenvolvimento e da industrialização, na dinâmica de aumento de empregos de baixos salários, ou com relação ao patamar dos juros – um legado que, afinal, o PT incorporou e reproduziu. E, talvez por isso, 2013 não foi um divisor de águas para o partido. Mas havia outra razão, relacionada igualmente à despolitização. Não apenas o PT havia adotado a estrutura do sistema neoliberal, com a manutenção de juros e câmbio favoráveis ao rentismo e às corporações internacionais, como havia criado uma coalizão onde tudo cabia, da extrema direita à esquerda. Coube Maluf e Bolsonaro, e também evangélicos com pautas conservadoras. Ao invés de garantir uma base sólida, a coalizão de a a z se mostrou frágil, movediça e, no processo, impediu que o PT afirmasse objetivos importantes para os setores progressistas. O exemplo claro é a pauta LGBT e a questão de gênero vetada do Plano Nacional de Educação. Talvez menos visível, porque menos suscetível de ser questionada por uma população desinformada – ou manipulada pelos porta-vozes do mercado corporativo – estava a pauta propriamente econômica. As alianças a qualquer preço na verdade significaram um importante sistema de vetos, como concluiu Marcos Nobre (2016). Com tantos compromissos, o governo tinha pouca margem de manobra. Nesse sentido, Lula foi de alguma forma beneficiado pela crise internacional de 2008, que permitiu maior liberdade na promoção de gastos públicos e do crédito, enquanto podia publicamente criticar o mercado e as consequências nefastas da desregulamentação. O ano de 2010 foi de crescimento excepcional, recuperando o tempo perdido na pequena recessão de 2009. A estrutura do nosso sistema financeiro monopolizado estava sólida, não houve abalos, e sim expansão do crédito. Os atores econômicos responderam com confiança e aumento dos investimentos. E o Brasil de fato parecia atravessar o tsunami como quem enfrenta uma marolinha.
O ano de 2010 foi o auge do sucesso do governo Lula. Havia crescimento expressivo e distribuição da riqueza na base da pirâmide. O programa de transferências ampliado, o aumento real do salário mínimo e a expansão do crédito, com destaque para a modalidade de empréstimos consignados, com juros muito abaixo da média do mercado, permitiram o aumento do consumo e, por consequência, dos investimentos. A experiência do governo Lula demonstra que o motor principal do investimento é a demanda. Desonerações do capital, aumento das margens de lucro ou poupança nada significam se não há demanda. Por essa razão, os aumentos de transferências às famílias e dos salários entre os segmentos de renda mais baixa, com maiores necessidades de consumo imediato, sempre estimulam a expansão econômica. Já as desonerações de empresas e aumento das margens de lucro não garantem a ampliação dos investimentos e empregos, sobretudo no contexto de alta financeirização do capital, no qual parte dos lucros das empresas resulta de aplicações financeiras. Lula encerrou seu mandato com uma avaliação recorde: 80% de aprovação de seu governo e 87% de aprovação pessoal, de acordo com a pesquisa do Ibope, divulgada em 16/12/2010. Um ativo político sem precedentes que garantiu a vitória da candidata do Partido dos Trabalhadores, Dilma Rousseff. A primeira presidenta do Brasil foi alçada à candidatura presidencial sem ter concorrido a uma única eleição majoritária anterior. Ocupou cargos na administração em Porto Alegre e, no governo Lula, foi ministra de Minas e Energia e da Casa Civil, quando foi escolhida para a sucessão presidencial. A identidade da candidata, apresentada por Lula, era a de “mãe do PAC”. Não havia dúvidas de que Lula seria o eleitor por excelência em 2010. Ainda assim, a oposição reunida em torno do PSDB de Fernando Henrique Cardoso conseguiu levar a disputa para o segundo turno, quando Dilma Rousseff obteve 56% dos votos. O ciclo de governos do PT teria continuidade, mas em condições muito diferentes daquelas em que governou o presidente Lula. Nota 12 . Discurso de posse 1 de janeiro de 2013. Disponível em: < http://bit.ly/ 2LtCtbu >. Acesso em: 15 jul. 2017. Capítulo 8 O Governo Dilma e o encontro de todas as crises
Dilma Rousseff governou o Brasil de 2011 até o seu afastamento, em maio de 2016 ¹³ , quando o vice-presidente assumiu o governo após um golpe parlamentar. Michel Temer, que fez parte da conspiração que depôs a presidenta eleita, assumiu interinamente, adotando uma agenda contrária à da reeleição e detalhada por meio de projetos prontos para serem votados pelo mesmo Congresso que, da noite para o dia, havia mudado de lado. Todo o plano de governo estava preparado, não havia dúvidas, incertezas ou espaço para negociações. O PT deixou o poder em um dia e, no dia seguinte, o Brasil tinha uma nova agenda, antes mesmo da concretização do impeachment pelo julgamento do Senado. Um cenário que não deixa dúvidas sobre o preparo e amadurecimento do golpe por parte de atores que, em circunstâncias determinadas, conseguiram tutelar uma maioria no Congresso. Essa introdução antecipa respostas intuitivas à questão fundamental sobre o governo Dilma, qual seja a das razões que explicam a ruptura institucional por meio de um golpe. De um lado, um governo com dificuldade de manter os compromissos sociais e os ganhos do empresariado, e, de outro, um sistema político transformado em negócio de compra e venda de maiorias parlamentares. Um sistema que já não era a representação de quase nada além dos interesses eleitorais imediatos de partidos que fizeram dos mandatos uma mercadoria, um círculo vicioso do poder que gerava recursos para candidaturas que deveriam alcançar mais poder; cargos que significavam financiamentos, que, por sua vez, garantiam mais cargos. O primeiro mandato do governo de Dilma Rousseff foi marcado por uma inflexão na política econômica. Diferente do cenário favorável, de aumento do preço de commodities, do período de governo de Lula, entre 2011 e 2014 a desaceleração do crescimento da China e a queda dos preços internacionais tiveram impactos profundos na economia do Brasil e da região. A China havia se tornado o principal parceiro comercial e motor da expansão das exportações da América Latina, enquanto a leve recuperação da economia dos Estados Unidos e a crise na União Europeia determinavam a trajetória de queda das economias latino-americanas. O quadro abaixo mostra essa relação. Tabela 13. Crescimento do produto interno bruto (PIB). (em %) Fonte: WEO/ FMI. Elaboração: Ipea/ Dimac/ Gecon. Carta Conjuntura, 2015, p. 95. O comércio mundial teve uma forte queda no período imediatamente posterior à crise de 2008, entre 2009 e 2011, mas a China desacelera pouco até 2012, quando seu crescimento caiu em dois pontos percentuais. No Brasil, a crise provocou uma breve recessão em 2009, com recuperação extraordinária no ano seguinte. Entretanto, nos anos seguintes, durante o governo Dilma, os efeitos da depressão do mercado mundial e da desaceleração da China se fariam sentir na América do Sul. Na tabela abaixo, é possível comparar o crescimento do PIB nos anos dos governos do PT e a inflexão do ano de 2012, quando o Brasil começa a viver o desafio do baixo crescimento, que dificultaria a continuidade de programas sociais, de investimentos, manutenção dos índices de emprego e do superávit primário.
Tabela 14. Crescimento do PIB Fonte: IBGE. Diante do novo cenário, o governo Dilma decidiu travar o enfrentamento da estrutura macroeconômica que minava as chances de competição da indústria nacional. O debate sobre o desenvolvimento industrial estava presente entre economistas do PT e também entre empresários que, diante do baixo crescimento de 2011, ano de ajuste fiscal do governo e de apenas 0,9% de crescimento da indústria, enumeraram as dificuldades do setor e as responsabilidades do governo. Em dezembro de 2011, Paulo Skaf, presidente da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp) manifestou-se em tom de cobrança em nome da indústria. O presidente afirmou que não adianta o industrial brasileiro se equipar, investir em tecnologia, treinamento de mão de obra e manter-se competitivo da porta da fábrica para dentro se o país não dá condições mínimas de competição com o produto importado. ‘Temos um câmbio que nos faz exportar empregos, uma carga tributária elevada e injusta, juros altos, infraestrutura deficiente, custos de energia que estão entre os maiores do mundo e ainda vemos estados concederem incentivos fiscais a produtos importados por meio da guerra dos portos. O que temos a comemorar? ¹⁴ A agenda da Fiesp, assim sistematizada pelo seu presidente, foi, sem dúvida, um dos fundamentos da decisão do governo Dilma de enfrentar questões estruturais da indústria e da competitividade do setor. A crise internacional e a desaceleração cobravam estratégias novas e o apoio do empresariado era um sinal de que mudanças de impacto poderiam ser implementadas. Os juros, responsáveis não apenas pelo baixo investimento privado e por um enorme custo fiscal, mas também pela apreciação do Real que favorecia as importações, reduziram-se drasticamente a partir de agosto de 2011, chegando a 2% em termos reais, descontada a inflação. A Selic caiu para o seu mais baixo patamar, de 7,25%, em outubro de 2012, mantendo-se até abril de 2013, quando voltou a ser elevada. Foi um período curto de tempo em que pareceu ao observador que era disposição do governo enfrentar as distorções associadas da alta taxa básica de juros e do câmbio apreciado, como afirmou o próprio ministro da Fazenda, Guido Mantega. Encaminhada a nova orientação da política monetária, em dezembro de 2012, o secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda, Marcos Holland, usou, pela primeira vez, a expressão “nova matriz econômica”, para justificar o relativamente baixo crescimento daquele ano, por meio da mudança ou ajuste que o governo promovia. Segundo Holland, os juros baixos, o câmbio competitivo e a consolidação fiscal, com o aumento do superávit primário, determinariam um ambiente amigável aos investimentos, o que foi reafirmado por Mantega em artigo no Valor Econômico no qual tratava “a nova matriz econômica” como uma mudança estrutural, que colocava as taxas de juros em níveis normais de uma economia de baixo risco (Schymura, 2017).
Como era de se esperar, uma mudança estrutural com o objetivo de transformar a dinâmica dos investimentos precisava de um tempo de maturação para que os agentes econômicos reorientassem suas iniciativas. O capital teria que migrar dos ganhos de tesouraria para a produção e, em muitos casos, das maquiadoras e importadoras, para a produção industrial local. Não se tratava de uma reestruturação que pudesse ocorrer da noite para o dia. Cada setor deveria procurar seu melhor desempenho e a resposta ao estímulo à atividade industrial devia ser esperada no médio prazo, para uma consolidação no longo prazo, por meio de ajustes setoriais de uma política industrial efetiva e permanente. No entanto, parece que o curto prazo é tudo o que interessa a um empresariado associado ao rentismo financeiro, incluindo aqueles que reclamaram e receberam todos os benefícios – além da queda dos juros e a desvalorização cambial, também o controle de preços da energia e desonerações fiscais . ¹⁵ Esse bloco monolítico tem na mídia corporativa a expressão de um consenso absoluto e cada dia mais distante dos desafios econômicos colocados ao sistema global capitalista após a crise de 2008. A “nova matriz econômica” logo foi taxada como intervenção estatal indevida. Qualquer erro ou resultados econômicos ruins era motivo para uma batalha midiática contra o governo. E, como não podia deixar de ser, a depreciação da moeda – um preço fundamental para a competitividade da indústria nacional – produziu pressões inflacionárias que se tornaram objeto de uma histeria orquestrada na grande imprensa. No Brasil dos últimos 5 anos, o povo pode ficar desempregado, morrer de fome, a violência pode ser alarmante, tudo pode desmoronar, mas a inflação não pode subir um ponto. É quando o exército mercenário de comentadores dos panfletos publicitários do mercado entra em cena em nome do poder de compra do pobre. Uma hipocrisia impossível de ser tratada sem indignação! Os juros podem consumir a metade do orçamento e inflar o endividamento, retirando dinheiro de todos os setores de serviços públicos e de transferências de renda, sem qualquer censura. O regime de metas de inflação que deu poder ao Banco Central para promover uma sangria dos recursos públicos no Brasil é absolutamente naturalizado, como um mecanismo técnico. Como se as decisões de todos nós não fossem escolhas ou atos políticos. Se há decisão, há opção, e cada escolha é política. E assim se dá no discurso jornalístico, que vem naturalizando uma esquizofrenia sem tamanho, com o Brasil ostentando as taxas de juros mais altas do mundo, frente a economias muito mais frágeis e às taxas negativas das grandes economias em busca da recuperação após 2008. Não há qualquer outro elemento mais importante para explicar o desastre econômico brasileiro nos anos após 2014 do que as altas taxas de juros. Isto quer dizer que, sendo esse preço macroeconômico cronicamente alto, inclusive antes do governo Dilma, é preciso buscar razões extraordinárias para o crescimento do período Lula e nada é mais notório, neste aspecto, do que o espetacular cenário externo de ampliação do comércio internacional e alta dos preços de nossos principais produtos de exportação. Mas o ciclo expansivo acabou e o Brasil decidiu, por meio de seu governo, enfrentar as mudanças estruturais e de longo prazo necessárias para o crescimento da produção nacional.
O corte dos juros afetava diretamente quem se beneficiava dessa remuneração. Pequeníssima parcela da população, empresários e bancos, possivelmente o setor mais monopolizado do Brasil. Um cartel de três grandes bancos privados que ainda hoje lucram mais com papéis do governo do que intermediando transações. Essa é, aliás, a razão dos juros proibitivos das transações comerciais e de empréstimos pessoais, e da histeria contra a inflação e a perda do valor da moeda quando as taxas de juros deixam de ser tão compensadoras. A “batalha do tomate” ilustra bem a campanha midiática contra a “nova matriz econômica” e o ajuste que se pretendeu iniciar na economia brasileira. Naquele momento, mais uma vez ficava claro que o governo perdia a guerra da comunicação. Já havia perdido em 2012, durante a AP 470, e perderia definitivamente depois das Jornadas de Junho de 2013. Em abril de 2013, o tomate foi o personagem central da campanha. Apesar de ser um produto sem relação com o câmbio, seu aumento foi tão espetacular na entressafra que acabou sendo eleito pela mídia como símbolo da escalada inflacionária. Os jornais vaticinavam o aumento da taxa básica de juros. “Inflação em março estoura meta do governo; tomate sobe 122%”, foi a manchete do Portal UOL no dia 10 daquele mês. A inflação estava em todos os telejornais e manchetes para pressionar o aumento dos juros. Inacreditável a forma como o governo se rendeu, sem fazer a disputa de discurso. Era preciso informar didaticamente a população sobre a reestruturação, a estagnação mundial, o impacto da taxa de juros sobre o câmbio e deste sobre a inflação, e o objetivo final de aumento da competitividade da nossa indústria e dos investimentos. A população ouvia a versão do exército de economistas e comentaristas dos meios de comunicação de que os salários perdiam poder de compra porque a política econômica gerava inflação, sem ter informações menos superficiais sobre os planos de médio e longo prazo do governo ou sobre seus objetivos. Ao baixar a taxa básica de juros, havia aumentado a demanda e o resultado era a inflação. A guerra da inflação, entretanto, não se deu a partir de qualquer descontrole ou de uma crise aguda, como se pode ver na tabela abaixo. Os números, em retrospecto, evidenciam a natureza da campanha midiática – uma histeria desproporcional e partidária que se tornou a forma de desmoralização da política econômica. Envolvia grandes interesses contrários aos do governo: o dos rentistas acostumados a uma remuneração generosa do seu capital, e os da oposição. Tabela 15. IPCA Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (em %) Fonte: IBGE.
A partir de abril de 2013, o governo Dilma se rendeu às pressões e o Banco Central começou a elevar a taxa básica de juros. O patamar mais baixo havia sido atingido em outubro de 2012, e apenas seis meses depois voltava a subir, saindo de 7,25% para 10% em novembro de 2013, 11,75%, em dezembro de 2014 e os espantosos 14,25% em julho de 2015. Não é difícil imaginar a oposição dos setores rentistas a uma taxa de 7,25% com inflação projetada na casa dos 6%, como ocorreu em 2013, apesar de ser esta a realidade da maioria das economias do mundo, quando as taxas eram negativas, a fim de estimular os investimentos. O Brasil tem sido bombardeado com campanhas anti-inflacionárias que inviabilizam qualquer forma de ajuste no câmbio e, de forma irracional, admite-se a transferência líquida de recursos públicos para setores rentistas de proporções cada vez maiores do produto interno. É inexplicável que o Brasil, com reservas de divisas folgadas, tenha, nos anos da década de 2010, premiado o capital rentista de maneira tão acima de qualquer outra economia do mundo. No ciclo de baixo crescimento que se instalou a partir de 2012, o custo dessa sangria tornou-se absolutamente insustentável. Entre 2014 e 2015, o endividamento público começou a subir, não por investimentos e gastos anticíclicos, mas pelo aumento voluntário do custo da rolagem da dívida, em nome do controle inflacionário, que, como demonstrou o IPCA, não teve efeito, mas mergulhou o país na depressão de 2015/2016. Não sendo o meu objetivo fazer considerações em torno do debate teórico sobre a inflação – sobretudo considerando que as justificativas teóricas e as demonstrações empíricas para fenômenos de inflação deveriam ser tão diversas quanto os próprios fenômenos e contextos, determinados por diferentes fatores –, é lógico supor que o alto custo do dinheiro leve o investidor a buscar uma remuneração do capital acima deste custo, o que implica uma relação direta entre taxas de juros altas e aumento de preços. Este é um raciocínio lógico. Mas o consenso ortodoxo monetarista é exatamente o oposto, de que a contenção monetária, ao afetar a demanda, reduz a inflação (independentemente de sua natureza). Ele está baseado na teoria quantitativa da moeda, que parece definitivamente enterrada depois que o FED ampliou a base monetária em mais de 60 vezes após a crise de 2008 e a inflação se manteve estável (Resende, 2017). Isso elevou o debate em torno da questão monetária e da inflação, mas parece que as novidades não interessaram aos comandantes da macroeconomia no Brasil. A questão da inflação se tornará mais relevante em 2015, quando do desajuste completo da economia após a mudança da política econômica no segundo mandato de Dilma. Cabe lembrar a intensa campanha midiática feita contra a condução econômica no início do ajuste desenvolvimentista chamado de “nova matriz econômica”, naufragado no início da viagem. Desde então, a política econômica do governo foi uma coleção de medidas pragmáticas visando proteger a rentabilidade das empresas e o nível dos empregos. No longo prazo, a luz no fim do túnel era a promessa de rendimentos extraordinários da exploração do pré-sal, com reserva de mercado para a cadeia do petróleo e indústria naval, por meio da política de conteúdo nacional. A Petrobras se transformara em ativo político fundamental para o governo e, portanto, central para a disputa pelo poder.
Se a economia deixou de ser um céu de brigadeiro para a sucessora de Lula, o cenário político se deteriorou de maneira imprevista, com uma violência tão surpreendente que só pode ser compreendida como uma confluência de interesses de diferentes atores. Pode-se dizer, de início, que o novo cenário de restrições econômicas que recolocaria no jogo político o conflito distributivo, contribuiu para acirrar a disputa pelo poder. Mas não só. No cenário externo, em tempos de baixo crescimento, a competição entre as corporações globais se tornou ainda mais predatória, com o aumento da capacidade de barganha dos investidores em tempo de estagnação e crises. Por outro lado, a escalada da China e sua articulação de cooperação com a Rússia e outros emergentes no Brics também é fator de instabilidade e de apoio norte-americano às iniciativas de desestabilização de governos. O aumento das exigências dos investidores em relação aos custos de produção seria um ataque aos direitos dos trabalhadores, à arrecadação tributária e um aprofundamento do processo de reformas desencadeado nos anos de 1990. Na América Latina, depois das privatizações, abertura e desregulamentação, chegava a hora do fim dos direitos sociais e das políticas públicas redistributivas. Todas essas reformas dependiam de condições políticas que estavam interditadas por governos progressistas, entre os quais o do PT no Brasil. Embora um governo de conciliação, aberto a acertos com interesses variados, a disputa política interna envolvia uma fração da oligarquia afastada do poder por três mandatos, com chances eleitorais em progressiva diminuição e com interesses associados aos Estados Unidos. O início do processo de deterioração do ambiente político pode ser fixado pela Ação Penal 470, em 2012. Uma excepcionalidade em forma e conteúdo que foi acompanhada pelo público como uma novela, em capítulos transmitidos ao vivo. O julgamento do suposto mecanismo de compra de votos de parlamentares levou um conjunto de réus, entre políticos, banqueiros, publicitários e demais envolvidos a serem reunidos em um único processo e condenados pelo STF. A premissa da ação era a existência de uma organização criminosa atuando permanentemente para desviar recursos públicos por meio de contratos publicitários para o pagamento de deputados em troca de votos. O processo envolvia, ainda, lavagem de dinheiro, com empréstimos forjados que nunca teriam sido pagos pelo PT. As evidências de pagamentos feitos a parlamentares, bem como a confissão de Roberto Jeferson, líder do PTB, sobre o repasse de dinheiro não contabilizado para a campanha eleitoral permitiram que se reconstituísse a forma como a coalizão de governo era montada, a partir de um grande negócio de financiamento de campanhas. Na prática, aqueles representantes não representavam eleitores, mas se vendiam na intenção de financiar suas próximas campanhas, independentemente de compromissos eleitorais assumidos. Embora o caixa 2 para campanhas eleitorais e o pagamento de mesada por voto, como queria a acusação, juridicamente sejam distintos, pois apenas o segundo constitui corrupção, ambos significam compra da mesma forma, uma antes, outra depois da eleição. Para aqueles que minimizavam as denúncias por tratarem-se de caixa 2, cabe perguntar se houve repasses para candidatos não eleitos. Os repasses de caixa 2, segundo as informações, eram feitos aos
partidos, e havia outras transferências comprovadas, em períodos não eleitorais, mas de importantes votações no Congresso. Duas observações devem ser feitas, a primeira, relacionada à excepcionalidade do julgamento. Por mais graves que parecessem as denúncias, o julgamento de um partido político como organização criminosa por meio de uma única ação envolvendo diversos atos ilícitos de corrupção pelo STF foi um julgamento de exceção, sem precedentes na história do país. E tanto é assim que, depois dele, um igual esquema que teria sido a sua origem, inclusive com o mesmo publicitário e a mesma agência de propaganda – o mensalão tucano do estado de Minas Gerais –, foi desmembrado e enviado como processos individualizados para as instâncias inferiores. Foi também o primeiro julgamento televisionado, como uma novela, ao longo de mais de quatro meses. A população assistiu ao julgamento ou a sua edição nos jornais televisivos, e passou a conhecer os juízes do STF pelo nome. O destaque era o relator Joaquim Barbosa, cuja carreira era de procurador e na AP 470 atuou como acusador. Encarnou o espírito anticorrupção que os meios de comunicação alimentavam diariamente, minuto a minuto. É lícito dizer que esse espírito era muito mais contra o PT do que contra a corrupção, na medida em que os casos de corrupção ou denúncias contra os governos tucanos em São Paulo ou Minas Gerais não recebiam cobertura similar (quando eram tratados). A segunda observação importante é o efeito que esse processo compartilhado e pedagogicamente explicado por comentaristas e especialistas todos os dias produziu na população, que participou do julgamento. Opinou, se indignou e, genericamente, se desencantou do sistema partidário e da representação política. Lideranças históricas do PT foram condenadas, como o ex-ministro José Dirceu e o deputado José Genoíno. Nas conversas corriqueiras, o julgamento foi assunto amplamente debatido, como as novelas ou as séries. Um espetáculo midiático que unia a nação em uma experiência comum. O resultado era o desejo compartilhado da punição, sem atenuantes. Nesse sentido, o processo de corrupção e de compra de votos, embora modesto em termos de valores, passou a ser o maior escândalo de corrupção nacional, porque se tratava de um partido que atuou como organização criminosa. A compra de votos, embora conhecida desde a aprovação da reeleição, no governo FHC e, posteriormente, em 2004, quando apareceu o escândalo do “mensalão”, produziu seus maiores impactos em 2012, durante o governo Dilma, deslegitimando o sistema político e seu funcionamento perante a opinião pública.
Não seria de todo ruim se fosse razão para uma renovação do sistema, um aperfeiçoamento da democracia representativa e, talvez, até um estímulo para experiências de uma democracia participativa. O pior do processo foi ter engendrado a negação não do sistema político ou do seu mau desempenho, mas a negação do Estado. Um sopro de vida para as ideologias de grupos ultraliberais que surgiriam nos anos seguintes, em total consonância com as necessidades da competição predatória das corporações globais. No processo em que foi deslegitimada a democracia representativa, a renovação política não veio nas formas democráticas de expressão ou organização, mas nas superpatrocinadas formas da extrema direita, reunindo desde o credo liberal, a censura e o moralismo conservador, até a organização de milícias antiesquerda. Os desdobramentos políticos da grande crise do governo Dilma foram inesperados e reuniram, numa confluência destrutiva, preocupações de uma população que queria mudanças, da oposição que não conquistava sucesso eleitoral e de agentes econômicos internos e externos mais agressivos diante das condições do mercado global depois de 2008. Esses interesses cresceram e se articularam, ganhando força a partir de 2013 e chegaram ao ponto de produzirem uma grave destruição das instituições políticas, jurídicas e sociais do Brasil, sobretudo depois do golpe de 2016. 2013 começou sob o espectro das condenações do “mensalão”, da desconfiança do sistema político e da “ameaça” da inflação. O governo negociou com sucesso a postergação do aumento das passagens de transportes urbanos, normalmente aplicados em janeiro a fim de evitar a alta do índice de inflação. Quando os novos valores das passagens foram anunciados, em junho, uma onda de protestos tomou o país, assustando as elites, os meios de comunicação e os governos nas diferentes esferas da federação. O início dos protestos, também nomeados como Jornadas de Junho , é bem conhecido e tem a assinatura do Movimento Passe Livre (MPL). O MPL é um movimento apartidário que sustenta a luta por transporte público e gratuito para que o conjunto dos cidadãos tenha acesso a bens públicos, como escola, saúde e equipamentos culturais das cidades. Sua existência é anterior aos governos do PT, contando com participações na Revolta do Buzu, em Salvador (2003), e nas Revoltas da Catraca, em Florianópolis (2004 e 2005). No dia 6 de junho, o Estadão noticiou a primeira manifestação contra o aumento dos transportes sem mencionar o MPL, tratando de uma manifestação de estudantes nas ruas do Centro de São Paulo, e da repressão policial que se seguiu. A notícia trazia os números de bombas, tiros de balas de borracha, feridos e presos. No dia 11 de junho, aconteceu a terceira manifestação em São Paulo, e as notícias davam conta do crescimento do movimento, mas a cobertura era ainda conservadora, chamando atenção para a depredação do patrimônio e desqualificando os manifestantes e a própria revolta, afinal o que significavam R$ 0,20? No O Globo , a manchete foi “Protesto contra tarifas tem confronto, depredações e presos em São Paulo”. No Estadão , “A Paulista virou praça de guerra. Dezenas de pessoas ficaram feridas incluindo 3 policiais militares e 20 foram presas”.
O aumento explosivo dos protestos por todo o país e o surgimento da mídia alternativa, com coberturas em tempo real por streaming , deixaram os meios de comunicação assustados pela perda completa da compreensão dos fatos e do controle da informação. Nos dias 17 e 18 de junho, O Globo registrava uma rodada de protestos em todo o país e trazia como manchete de capa “O Brasil nas ruas”, ilustrada pela foto da Avenida Rio Branco, no Centro do Rio de Janeiro, tomada por manifestantes do início ao fim. Começou então uma virada completa na cobertura. Hostilizada por manifestantes, acusada de manipulação de informações e sob protestos em sua sede no Rio, a principal empresa de comunicação do país passou a disputar o controle da narrativa das manifestações e a utilizar o movimento contra o governo federal. No dia 17 de junho, era divulgada uma pauta de reivindicações pelo grupo Anonymos do Brasil – que ninguém até então conhecia como ator relevante, muito menos quem eram seus líderes e de onde tinham saído. O teor das reivindicações era absolutamente estranho às manifestações. Todos os itens estavam relacionados à corrupção. Como as manifestações foram convocadas por mídias sociais, é provável que esses meios tenham sido usados pelos atores políticos tradicionais para manipular e liderar o movimento, ocultando suas identidades. A partir deste momento, todas as interpretações e certezas seriam parciais, porque não havia mais possibilidade de identificar os atores e os propósitos por trás das informações. Nas ruas, entretanto, os manifestantes pareciam os mesmos, com o acréscimo dos grupos de black blocs , cujas lideranças e origens aqui também são desconhecidas. As repercussões das Jornadas de Junho foram profundas, mas, do ponto de vista da democracia e da renovação do sistema político, inócuas. Por isso, a disputa em torno do fenômeno permanece entre politólogos e, especialmente, entre ativistas do PT, há um consenso de que todo o processo foi uma urdidura da direita. Não foi. As manifestações surgiram espontaneamente, a partir da organização de estudantes pelo direito ao transporte e à cidade. Mobilizaram mais na medida em que a repressão revoltava a opinião pública e os meios de comunicação depreciavam a causa e condenavam os manifestantes. O caso mais ilustrativo foi o do comentarista de ultradireita do Grupo Globo, o ex-cineasta Arnaldo Jabor, que chamou os manifestantes de filhinhos de papai e afirmou que vinte centavos não significavam nada . ¹⁶ Aliás, a crítica pegou, pois a classe média foi para as ruas e repetiu que não era por vinte centavos, o que demonstra a invisibilidade da periferia e do custo de uma família trabalhadora para manter filhos nas universidades, deslocando-se da periferia para os centros. No entanto, o comentarista teve que se desculpar dias depois quando a empresa decidiu mudar a linha editorial, utilizar o movimento e se associar a ele com a intenção de influenciar em seus desdobramentos, contra o governo federal. Com a generalização das manifestações, ocorreu também a ampliação das demandas. As ruas eram ocupadas por indivíduos, raramente por grupos, e cada um levava seu cartaz, com sua demanda ou seu protesto, numa reunião de diferentes energias represadas que produziam uma polifonia de insatisfações e ressentimentos.
As disputas em torno daquele momento continuarão, afinal muitos fenômenos diferentes emergiram daquela explosão. E ali nas ruas, em junho de 2013, havia alguns significados evidentes e incontornáveis, que evoluiriam em sentidos imprevistos. O primeiro deles, passado o momento inicial das tarifas, era a denúncia de serviços públicos insuficientes em um momento em que o Estado construía grandes arenas de futebol. Era a indignação contra o pão e circo, mas não só. Também contra os grandes negócios que envolviam a Copa do Mundo, sem benefícios para a população, afinal, obras e melhorias urbanas que haviam sido prometidas foram sendo abandonadas no caminho. Portanto, em 2013, as manifestações pediam mais Estado e mais investimentos. Nos cartazes, apareciam como “queremos hospitais padrão FIFA”. Um outro significado era traduzido na máxima “ninguém me representa”, por meio da qual os manifestantes rejeitavam partidos expressando o ressentimento contra o sistema de representação política. Havia ainda outros protestos, como a crítica à Comissão de Direitos Humanos que estava sob a presidência de um líder religioso fundamentalista contrário às pautas das minorias. A agenda que emergia dos protestos nas ruas era toda progressista. Para alguns politólogos, entretanto, um movimento que negava os partidos era caracteristicamente uma negação da política. Não é minha interpretação. Partidos são uma construção institucional histórica. Podem ser superados, podem ser transformados, e mais, precisam ser. Nas últimas décadas, os partidos de esquerda se burocratizaram, aderiram às agendas empresariais e diminuíram muito a sua capacidade de atuar na representação do interesse das maiorias de trabalhadores. No Brasil, o negócio eleitoral transformou os partidos em verdadeiras agências de poder, sem qualquer conexão com movimentos sociais e com a representação de interesses fora do universo dos detentores da riqueza. Era legítimo desejar a superação dessa estrutura política, ou sua democratização e renovação. De igual forma não se pode negar que o vazio de legitimidade fosse espaço para uma disputa desigual, uma vez que não havia lideranças políticas capazes de catalisar um processo de transformação. Enquanto os jovens se reuniam em coletivos com pautas identitárias, culturais e ecológicas, sem nenhum vínculo com recursos públicos ou instituições capazes de traduzir seus interesses em políticas públicas, as oligarquias disputavam entre si o domínio do Estado. As reivindicações das ruas nada tinham a ver com o Estado mínimo da direita que se fortaleceu nos últimos anos, a partir da campanha eleitoral. Mas alguns analistas apontam, e com mais razões hoje do que em 2013, que o movimento foi orquestrado pela direita contra o PT. Não há dúvidas de que muitos atores disputaram o movimento de forma oculta, desvirtuando sua trajetória. Isso ficou claro com o anúncio das “cinco causas” pelos meios de comunicação em 17 de junho, atribuindo-se a autoria ao Anonymous Brasil. Ninguém sabia bem o que era o Anonymous, mas de fato o grupo de hackers convocava protestos pela internet. E as tais cinco causas eram absolutamente estranhas às ruas, embora tenham começado a aparecer sem muita expressão nos protestos seguintes, como é possível comprovar pela pesquisa do Ibope realizada em 7 capitais e no Distrito Federal no dia 20 de junho . ¹⁷
A ampliação das manifestações pelo país a partir do dia 13 de junho e a vitória conquistada com o cancelamento de aumentos das tarifas em muitas capitais haviam alargado o escopo das reivindicações, mas elas absolutamente nada tinham de específicas ou relacionadas às chamadas “cinco causas”. E é preciso destacar este fato à medida que se evidencia o uso das manifestações na direção de uma cruzada contra a corrupção que acabará por criminalizar os gastos públicos e condenar o Estado como razão do insucesso econômico, contrariando o desejo evidente dos manifestantes de melhores serviços públicos. Entre as “causas”, absolutamente ignoradas da maioria, estava, primeiramente, a rejeição à PEC 37, um projeto que de Emenda Constitucional que regulamentava as investigações criminais como competência exclusiva das polícias federal e civis dos estados, retirando, portanto, a liberdade que até então o Ministério Público vinha tendo de investigar. Isso nunca havia sido tratado nas ruas, incendiadas pelo problema do transporte urbano, da exclusão das periferias e, na sequência, pela violência policial contra a liberdade de manifestações. Outra “causa” era a saída de Renan Calheiros da Presidência do Congresso, mais um tema estranho às ruas, que a princípio se manifestavam contra os governantes locais, municipais e estaduais, responsáveis pela gestão da mobilidade urbana, das polícias, das escolas e hospitais, e até das obras da Copa. Essa causa sinalizava para uma disputa de poder específica e ignorada dos manifestantes. A terceira “causa” era a investigação pela Polícia Federal e Ministério Público Federal das obras da Copa, também estranha, porque os manifestantes se indignavam com os gastos porque poderiam ser destinados aos serviços sociais precários. A quarta “causa” era a aprovação de lei considerando a corrupção um crime hediondo, e a quinta, o fim do foro privilegiado. Ora, em retrospectiva, e tendo eu frequentado todas as manifestações, parece transparente o plano para utilizá-las em benefício de um grande ataque ao sistema político. As medidas são tão específicas e determinadas quanto os projetos de lei e emendas constitucionais prontos e acabados para serem votados no dia seguinte ao golpe de 2016. Se naquela ocasião o anúncio da agenda atribuída ao Anonymous me deixou com a certeza de que o movimento das ruas estava sendo capturado, hoje não há como ignorar a linha de continuidade entre aquelas “cinco causas” e o ataque ao Estado feito por meio do protagonismo do Judiciário e do Ministério Público a partir de 2014, com a Lava Jato – outro processo de exceção. Nos dias subsequentes, o grupo Anonymous negou a autoria do vídeo das “cinco causas”, mas a grande imprensa não publicou o desmentido. O Congresso rejeitou a PEC 37, aprovou a proposta que transformou a corrupção em crime hediondo, ampliando as penas, e a Lei n. 12850, tipificando organização criminosa – uma lacuna apontada pelos juízes da AP 470 – e estabelecendo meios para obtenção de provas, entre os quais a delação premiada. Não se pode acusar o governo e sua ampla base de não terem colaborado na montagem de instituições contra a corrupção. O problema é que nada foi discutido ou amadurecido. O Congresso passou a votar projetos de forma desorganizada nas madrugadas de junho. Os projetos estavam prontos e é difícil que alguém se lembre de discussões sobre eles. Passada a ressaca de 2013, tudo estava preparado para o que
viria a ser o novo espetáculo midiático e de exceção no ano eleitoral – a Lava Jato . ¹⁸ As características dos manifestantes detectadas por meio de pesquisas contribuem para compreender os fenômenos que se seguiram, incluindo o ataque da direita e seu fortalecimento. Em 17 de junho, o Instituto Datafolha realizou uma pesquisa para identificar o perfil dos manifestantes do Largo do Batata, em São Paulo. O protesto havia reunido 65 mil pessoas, de acordo com as estimativas da polícia. Segundo a pesquisa, a maioria era do sexo masculino (63%), tinha até 25 anos (53%) e possuía nível superior completo ou incompleto (77%). 71% dos entrevistados participavam pela primeira vez de uma manifestação. Apenas 3% dos entrevistados estavam desempregados, e a maioria, 78%, era de assalariados registrados. No dia 20 de junho, o auge do movimento, 1 milhão de pessoas saíram às ruas por todo o país. Pesquisa do Ibope, realizada nas cidades de São Paulo, Rio de Janeiro, Recife, Porto Alegre, Belo Horizonte, Fortaleza, Brasília e Salvador, revelou que as mulheres eram 50% do total de manifestantes, 43% tinham até 24 anos, e outros 20% entre 25 e 29 anos; 43% tinham ensino superior completo e 49% ensino médio completo ou superior iniciado; 30% tinham renda familiar entre 2 e 5 salários mínimos, 26% entre 5 e 10 mínimos, e 23% com renda superior a 10 salários mínimos; 76% trabalhavam e 24% não trabalhavam. As pesquisas revelam a prevalência de jovens de até 35 anos, com acesso à educação e ao emprego e com renda compatível com os critérios da classe média. O perfil dos manifestantes tem relação com as mudanças na escolarização nas últimas décadas e com a ampliação do acesso ao ensino superior. Os jovens estão, portanto, munidos de mais ferramentas para avaliar o mundo em que vivem, e estabelecem relações fora de suas comunidades de origem, ampliando a visão de mundo. Eles têm expectativas e projetos maiores. Embora a maioria estivesse empregada formalmente, é legítimo supor que também questionasse suas possibilidades de ascensão e integração, considerando os empregos, os salários e a alta rotatividade verificada no mercado para os jovens (Ipea, 2013). O aumento do salário mínimo e a inclusão social por meio do consumo foram responsáveis por criar maiores expectativas em uma geração mais escolarizada que entrava na vida adulta. Diferentemente das gerações anteriores, cuja memória alcança os anos 1980 e 1990 como referência, a nova geração tem como paradigma político e econômico os governos do PT, o que impede uma comparação e o reconhecimento de avanços. Ao contrário daqueles cuja memória alcança a ditadura e compreendem os últimos anos como um período de conquistas democráticas e sociais, mesmo que tímidas, ou daqueles que chegaram à vida adulta nos anos 1990 e presenciaram o desmantelamento do Estado e a tendência de privatização dos serviços públicos, como saúde e educação, além da dependência externa e do alto endividamento de um Estado que acabara de vender boa parte do patrimônio público, e que também enxergam os governos do PT como uma virada, os jovens só podem estabelecer avaliações a partir dos anos recentes que conhecem. E a realidade não lhes parece tão benéfica quanto pode parecer às gerações
anteriores, embora mesmo para estas as insatisfações e as expectativas de avanços maiores estejam presentes. Essa perspectiva geracional é fundamental para a compreensão da explosão política de 2013. Sem ela, é fácil classificar os movimentos como reacionários por colocarem em risco a legitimidade de um governo que, em perspectiva, foi o que de mais popular e progressista a história deste país, vocacionado à colônia, conheceu. Além disso, não é possível ignorar o questionamento mais profundo ao sistema capitalista e à captura da representação política, financiada pelos interesses de corporações e divorciada do povo. Nas Jornadas de Junho, as novas formas de mobilização e agitação política do mundo digital entraram em cena, com suas virtudes e problemas. Como havia acontecido nas Primaveras Árabes, no movimento Occupy Wall Street, no Indignados, da Praça Tahrir, no Egito, ao parque Zuccotti, nos Estados Unidos, da Praça do Sol em Madri à Syntagma, na Grécia (Castells, 2013), ou na Turquia, na Praça Taksim, pouco antes dos protestos no Brasil, também aqui os jovens se mobilizaram de maneira autônoma por meio de redes sociais, sem articulação partidária ou institucional e sem lideranças ou comandos. Em todos os casos, as mobilizações foram movidas por estopins, como a morte de Mohamed Bouazizi depois de atear fogo ao próprio corpo na Tunísia, ou a violência inaceitável da polícia de São Paulo contra as primeiras manifestações do MPL, e levaram a grandes protestos que culminaram com ocupações de espaços públicos por tempo indeterminado. Todos acabaram com grande repressão policial. Alguns derrubaram governos, outros deram origem a novos partidos-movimento horizontais, outros apenas deixaram uma memória de derrota e impotência. No Brasil, os jovens não adentraram os canais institucionais, que permaneceram intocados em sua normalidade, cheia de anomalias do ponto de vista da representação política democrática. Os ativistas mais aguerridos estavam no Rio de Janeiro, e se mantiveram em luta contra o governador Sérgio Cabral, ocupando a área nobre da praia do Leblon em frente à sua casa e, em seguida, a praça da Cinelândia, onde foram presos e acusados por formação de quadrilha armada. Posteriormente, o governador também seria preso e condenado em vários processos de corrupção e lavagem de dinheiro. O governador do Rio era um aliado do governo do PT, o que contribuiu para que no estado o partido do governo perdesse muito de seu eleitorado, afinal, antes mesmo das denúncias e das condenações, o governador perdeu popularidade e respeito, pois era um símbolo dos grandes negócios da Copa, notadamente das obras superfaturadas do Maracanã e do metrô, do deslocamento de populações pobres e da agressão desmedida contra os manifestantes de junho. O destino dos manifestantes diz muito sobre a forma como o Estado respondeu aos protestos. Mas algumas iniciativas pareceram avanços. Da parte da presidenta Dilma Rousseff, perplexa como toda a elite política, houve o anúncio da convocação de uma Constituinte exclusiva para tratar da reforma política. Dilma desistiria da ideia no dia seguinte. O episódio dava conta da maneira de ser desarticulada da presidenta. Ela não havia tratado do tema com ninguém que pudesse apoiá-lo no Congresso. Como no caso do corte dos juros, mais uma vez capitulou. Já o Congresso votou a toque de caixa uma série de medidas contra a corrupção que reforçaram a pauta
plantada pelos meios de comunicação, não se sabe com que origem, mas não moveu iniciativas na direção de uma reforma política que eliminasse o financiamento eleitoral por empresas, que tratasse da ampliação de formas participativas e inúmeras outras questões polêmicas, incluindo a prerrogativa de foro. Uma resposta importante da presidenta foi vincular a receita de royalties do pré-sal a investimentos em saúde e educação. A maior promessa de prosperidade da economia brasileira e aumento da riqueza bruta do país, portanto, a única área em que era possível ancorar qualquer projeto de expansão de investimentos públicos, foi vinculada por lei ao gasto social. Dilma atuava na direção dos anseios dos protestos, mas na contramão das expectativas das oligarquias locais e das corporações globais, ávidas por apropriarem-se de novas riquezas. Os custos seriam altos. Do ponto de vista do combate à corrupção, a resposta foi a Lei n. 12.858, sancionada em setembro de 2013. No mais, o campo político não produziu respostas e atuou no ano eleitoral de 2014 da mesma maneira, com as mesmas práticas de grandes coligações negociadas por meio de financiamentos de campanha e compromissos de partilha de cargos. O ano de 2014 seria de desafios políticos imprevistos e de estagnação econômica. Havia um sopro de renovação política resultante das manifestações, com o crescimento da popularidade de Marina Silva, da Rede Sustentabilidade e o lançamento da candidatura de Eduardo Campos, governador de Pernambuco. Os dois nomes tinham origem no campo progressista e mantinham expectativas legítimas de lançarem candidaturas, mesmo rompendo a aliança com o PT, que parece nunca ter pretendido dar espaços aos líderes dos partidos aliados. Marina Silva tinha um capital político importante conquistado por sua história pessoal e pela militância em favor das pautas ambientais. Eduardo Campos era um jovem governador do Nordeste muito bem avaliado e que vinha da tradição da esquerda combativa de seu avô, o ex-governador deposto pela ditadura, Miguel Arraes. Ambos representavam o que parecia ser um desejo expressado em 2013, mudanças. Marina criticava o sistema político e as formas do fazer político. O discurso era moralizante, adequado aos anseios genéricos da população descrente, e anunciava uma construção partidária horizontal, participativa e em rede. Teve muita adesão de manifestantes de 2013, quando pesquisa Datafolha indicou a preferência por Joaquim Barbosa, relator do “mensalão”, seguido pela ex-senadora. Estava claro que os protestos ampliaram a centralidade da questão da representação política relacionada à corrupção. A candidatura de Marina Silva, no entanto, dependia de uma legenda, pois o seu partido não conseguiu o registro a tempo de concorrer às eleições. Em outubro de 2013, quando o TSE negou o recurso da Rede, a atmosfera era a de uma perseguição para evitar a sua candidatura. Marina Silva falava que seu partido era o primeiro partido clandestino depois da redemocratização, afirmando sua existência e atuação a despeito da recusa do TSE em conferirlhe o registro. Em resposta, aliou-se a Campos, filiando-se ao PSB, e em 2014 foi confirmada a candidatura da chapa Campos-Marina.
Eduardo Campos surgira como uma esperança desenvolvimentista, resgatando alguns projetos de iniciativa estatal na infraestrutura, embora com um cauteloso discurso de respeito aos contratos e ao tripé macroeconômico. O candidato faleceu em agosto de 2014, vítima de um acidente aéreo, e Marina foi alçada à candidata à presidência num contexto de comoção e homenagens ao governador. A candidatura de Marina logo decolou, ensejando uma expectativa real de sucesso eleitoral. Diante disso, as articulações e compromissos da candidata mostraram sua perfeita incorporação aos interesses do mercado financeiro e dos setores empresariais. No discurso, a candidata dizia que era preciso trabalhar com os melhores e reconhecer o melhor de FHC, referindo-se à custosa estabilização transformada em patrimônio nacional, e do PT, que era a inclusão social. Estado mínimo não era elemento do discurso político em 2014. Havia cuidado com o tema e todos os candidatos assumiram a continuidade dos programas sociais. Os ataques à política haviam começado, mas a campanha eleitoral era um obstáculo às afirmações mais contundentes ou a um discurso claro em favor do mercado como regulador autônomo da dinâmica econômica e social. Por isso, o PSDB, que era o dono da marca Estado mínimo, parecia ter desidratado o suficiente para não participar como ator decisivo no pleito. Mesmo com um candidato mais jovem, na largada da campanha o partido parecia um velho competidor sem chances diante das expectativas de renovação. Mas o candidato Aécio Neves seria beneficiado pelo enfraquecimento de Marina Silva ao longo do embate eleitoral. Diante de suas inconsistências e tergiversações, além da deficiente máquina eleitoral partidária, os eleitores da mudança migraram para Aécio, confirmando de um outro ângulo a proximidade maior de Marina com o eleitorado da direita liberal. O segundo turno acabou por reeditar o confronto entre o PT e o PSDB. A candidata derrotada, depois dos duros golpes da campanha, decidiu imediatamente apoiar Aécio Neves. Valia tudo para tirar o PT do poder, até abraçar a direita e o mercado de uma forma mais direta, sem pejos. Essa decisão teria um alto custo para Marina e para a sua Rede Sustentabilidade. Primeiramente, porque estava claro que pelo poder valia qualquer aliança, o que contrariava absolutamente o discurso da nova política afirmado pela exsenadora. E, de saída, muitos militantes rejeitaram a posição tomada por ela. Quando o partido finalmente recebeu seu registro, já estava mutilado, sem expressão, porque, para piorar a situação, Aécio perdeu e não havia cargos a distribuir ou poder a compartilhar. Ali morria a recém-nascida Rede, como veículo de renovação e democratização. Hoje é apenas mais uma legenda, tendo incorporado no processo de crise de 2015 alguns parlamentares do campo da esquerda que estiveram sempre em desacordo com as posições de Marina Silva em relação ao golpe de 2016 e acabaram por abandonar o partido em 2018. No entanto, o capital político da exsenadora ainda é alto. A campanha eleitoral, a estagnação econômica e o enfraquecimento de Dilma e do PT após as Jornadas de Junho fizeram de 2014 um ano de radicalização política. Para se manter no poder, o PT precisou travar
batalhas mais duras. Apesar do grande arco de alianças partidárias, as dificuldades se avolumaram. Mensalão, manifestações de rua, candidaturas viáveis saídas da aliança ou do próprio PT, tudo indicava que as condições para vencer o PT estavam maduras. É neste cenário que se instala a Lava Jato, operação que reuniu a Polícia Federal, o Ministério Público Federal e a Vara Federal de Fazenda Pública do Paraná para investigar, processar e punir os responsáveis pelo que seria o maior esquema de corrupção da história da República, envolvendo pagamentos de propinas a agentes públicos em troca de contratos com a maior estatal brasileira, a Petrobras. Os recursos serviriam para suprir as necessidades de financiamento de campanhas eleitorais, sendo distribuídos por meio das diretorias da empresa aos partidos políticos da base do governo, responsáveis pela indicação dos diretores. Pelo valor dos contratos e da propina, que podia chegar a 3%, segundo depoimentos dos envolvidos, pode-se perceber a desproporção de meios para campanhas dos partidos da base em relação aos partidos que pretendiam construir sua atividade política com autonomia ou na oposição. Considerando que as práticas demonstradas pelo processo não são desconhecidas dos governos do principal partido de oposição no estado mais rico do país, apenas alguns partidos mais ideológicos e menos pragmáticos ficaram de fora do grande negócio da atividade partidária envolvendo financiamento eleitoral e compra de apoio. Esses partidos, sem os mesmos recursos de campanha, tendem a permanecer em seus pequenos nichos eleitorais, com pouca visibilidade. Por outro lado, se o partido da oposição era conhecedor do jogo, compreendia o tamanho do ativo político e a centralidade da Petrobras como fonte de poder e articulação com o empresariado, e como fonte de financiamento. Nesse sentido, é razoável supor que a disputa de poder deveria envolver, necessariamente, o desmonte da estrutura de financiamento a partir dos contratos da estatal. O ataque da Lava Jato foi, portanto, contra a principal fonte de energia do sistema, sem preocupação com a sua destruição. Cabe ressaltar que o Judiciário, a Polícia Federal e o Ministério Público Federal podem ter sido extensivamente usados no jogo político, interno e externo, mas não são a origem da desarticulação do sistema. Ainda que muitos de seus membros mais proeminentes tenham incorporado a visão de mundo do golpe ultraliberal, e que tenham se constituído em salvadores da nação, eles só puderam ocupar espaços que foram deixados vazios por um sistema político que se desarticulou totalmente, fragmentando-se em uma multiplicidade de partidos sem vínculos com movimentos sociais ou com demandas de segmentos sociais específicos. O vácuo deixado permitiu a ampla formatação de um consenso em favor das reformas de “Estado mínimo”, contra direitos sociais, e pelo interesse de grandes corporações. É bom lembrar que este processo vem acontecendo no mundo, não é uma particularidade brasileira. Os partidos políticos se burocratizam, e passam a girar em torno do pragmatismo da disputa do poder, tornando-se facilmente presas dos interesses empresariais que os financiam. Quando se observa a concentração do capital e o poder das grandes corporações nas últimas décadas, compreende-se os limites, e talvez o fim, da democracia representativa hoje.
Procuradores e juízes não são pagos nem formados para fazer cálculos políticos. Alguns podem chegar a ter uma visão política e sociológica mais consistente com relação ao que seriam interesses nacionais, mas não é esse o seu papel. Se o Judiciário cresceu e ocupou espaços que não são os seus, a razão está na crise do sistema político, na sua incapacidade de produzir respostas às demandas sociais, de canalizar projetos e interesses de grupos, de aperfeiçoar os mecanismos representativos, e de ir além, aprimorando as instituições. A razão está, sobretudo, na forma generalizada de compra de representação política por meio de patrocínio empresarial ilícito. Os procedimentos da operação policial, judicial e midiática foram partidarizados, instrumentalizados, não há dúvidas, mas o fenômeno aconteceu em face da perda total da consistência das instituições políticas. Eduardo Cunha, o presidente da Câmara que patrocinou o golpe com sua bancada pessoal de parlamentares financiados, simboliza com perfeição a destruição do sistema. Junto com a polarização política e a crença da oposição de que era possível afastar o PT, a crise econômica foi o fator mais contundente para a grande mudança de ventos. Ela permitiu a construção de um discurso que responsabilizava o gasto público pela baixa do ciclo econômico e fortaleceu a agenda de Estado mínimo. Além de ser lugar de corrupção, o Estado e o gasto público seriam transformados em razão do nosso fracasso econômico. Essa conjugação fazia do Estado a encarnação do mal a ser combatido. Essa é a essência do discurso da mídia, depois da derrota eleitoral do candidato da oposição. A partir do fim de 2014, a agenda ultraliberal foi assumida e o gasto público literalmente criminalizado. O auge dessa campanha seria o processo de impeachment da presidenta reeleita. A crise econômica foi atribuída ao chamado “populismo fiscal”, o gasto excessivo de um governo que não cumpria as regras da responsabilidade fiscal. Os especialistas – macroeconomistas ligados a instituições do mercado e think tanks liberais – e seus repetidores da grande imprensa condenaram o governo, a “nova matriz econômica” que já havia ficado para trás e o intervencionismo estatal na economia, ou seja, qualquer perspectiva que se relacionasse ao novo desenvolvimentismo. Este discurso foi combinado, nas narrativas cotidianas da imprensa, à crise moral e política que atingia um arco cada vez maior de partidos. Sem essa combinação, é impossível compreender o golpe de 2016 e os interesses dos atores que o promoveram como uma conspiração imprevisível se considerada a ampla coligação eleitoral e a base parlamentar formada a partir dela. Antes de uma descrição da crise econômica, e da tentativa de ressaltar o que foi minimizado ou encoberto pelo discurso hegemônico, é preciso retomar alguns aspectos da crise política que paralisou o país, suas elites, suas instituições, e que engessou a oposição e qualquer potencial resistência contra o violento saque aos direitos históricos dos trabalhadores. A operação Lava Jato foi em tudo excepcional. Funcionou como uma forçatarefa, com membros do Judiciário e do Ministério Público atuando exclusivamente no processo noticiado como operação para desarticular uma organização criminosa especializada em lavagem de dinheiro. Residente em
Londrina, no Paraná, o doleiro Alberto Yossef, que havia sido condenado em 2004 por fraudes na venda do Banestado, foi preso em 17 de março de 2014, iniciando a novela nacional do combate à corrupção. A partir daquele momento, a operação se desdobrou em várias fases, sempre coordenadas por um grupo de investigadores da Polícia Federal e do Ministério Público Federal, e em estreita relação com o juiz Sérgio Moro. A equipe do Ministério Público foi liderada por um jovem procurador de tom messiânico e o juiz do processo repetiu o papel de Joaquim Barbosa na AP 470. Como o antecessor, atuou publicamente muito mais como parte do que como juiz, utilizando a mídia para convocar a opinião pública a apoiar a operação que deveria limpar o país. Outra excepcionalidade foi a novelização ou publicização de cada etapa da operação. Não era original. Repetia o sucesso da ação do “mensalão”, desta vez com tom de ação policial. A cada fase os telejornais matutinos faziam cobertura ao vivo de prisões, buscas e apreensões e conduções coercitivas. Este último mecanismo, que se tornou uma rotina da operação, foi usado ao arrepio das normas, sem convocação prévia para depoimentos, como determina o Código de Processo Penal. Tudo autorizado pelo juiz, cujo poder não foi, em nenhum momento, cerceado por qualquer órgão de controle, mesmo quando decidiu dar publicidade a escutas ilegais da Presidência da República, fato que seria crime gravíssimo em qualquer república com instituições funcionando. Prisões, conduções coercitivas e vazamento de áudios como o da presidenta, passaram a ser usados de maneira combinada à agenda política, desestabilizando o governo, destruindo sua popularidade com denúncias que se associavam ao desastre do segundo mandato, à desintegração da base parlamentar, e, até, à profunda recessão, que tinha na Petrobras um de seus elementos. Nos noticiários, a crise na estatal não foi relacionada à espetacular queda dos preços internacionais do petróleo, ou à alavancagem que permitiu vultoso investimento para a exploração do pré-sal. Não. A crise foi narrada como resultado da corrupção. Nada mais mentiroso e interesseiro, como é possível observar hoje. Na atual gestão do golpe, a principal empresa nacional – competitiva internacionalmente e detentora de monopólio de operação da exploração do pré-sal – vendeu ativos lucrativos, perdeu o monopólio e entregou, em acordo, indenização de US$ 2,95 bilhões a investidores americanos, também conhecidos como abutres. Conforme as fases da operação midiática judicial e ativista foram se desdobrando, mais a opinião pública foi sendo informada dos mecanismos de financiamento ilegal de campanhas eleitorais, ou compra de apoio parlamentar, baseados em propinas de contratos fechados pelas principais diretorias da Petrobras, distribuídas entre o PT, o PP e o PMDB. E mais políticos apareceram nas delações de empresários, operadores do esquema e dos próprios diretores indicados pelos partidos. Também começaram a aparecer contratos de grandes obras fora do escopo inicial do esquema da Petrobras. Executivos e donos de empreiteiras punidas com multas vultosas e impedimento de atuar nas obras públicas começaram a colaborar com a Justiça, oferecendo informações e provas dos esquemas de corrupção. Com inúmeros deles presos preventivamente – outra excepcionalidade da Lava Jato –, a chamada delação premiada foi obtida por meio de verdadeira
chantagem aos denunciados que não tinham as prerrogativas de foro dos parlamentares caciques de partidos. No caso do empresário Léo Pinheiro, a sentença condenatória o fez mudar a versão de seu depoimento em delação, responsabilizando o ex-presidente Lula no processo envolvendo um apartamento tríplex no Guarujá. Os processos envolvendo partidos e parlamentares com prerrogativa de foro foram para o STF sob a responsabilidade do ministro Teori Zavascki, morto em um acidente aéreo, em janeiro de 2017, às vésperas de homologar a colaboração dos executivos da Odebrecht, incluindo a de seu presidente preso, Marcelo Odebrecht. O mesmo ministro havia quebrado o modelo de blindagem parlamentar levando a plenário a tese que permitiria a prisão do senador Delcídio do Amaral e, em 05 de maio de 2016, determinou o afastamento de Eduardo Cunha das atividades parlamentares. O sistema parecia romper-se, mas a blindagem de parlamentares seria restaurada, com a divisão do STF e o aprofundamento da fragilidade institucional do país. Assim como no caso da Petrobras, cuja crise se agravou com a Lava Jato, mas não foi causada por corrupção, a economia do país sofreu os impactos da crise política e, sobretudo, da crise da Petrobras, sem que se possa relacionar a corrupção como sua causa direta. É inquestionável, entretanto, que a persistência de um sistema de financiamento eleitoral baseado na compra de partidos e parlamentares tem consequências econômicas gravíssimas, como a ausência de projetos de desenvolvimento de longo prazo em função da necessidade de qualquer composição política que assegure resultados eleitorais imediatos. O segundo mandato da presidenta Dilma Rousseff se iniciou sob a chantagem de uma maioria congressual que, embora beneficiada pela coligação eleitoral liderada pelo PT, decidiu aumentar muito o preço do apoio político. A fragmentação partidária estimulada pelo partido do governo havia aumentado ainda mais o custo da liderança dessa maioria pragmática. Derrubar a presidenta foi uma consequência da inflação do sistema imposta por alguns caciques com projetos autônomos de poder, da necessidade de controle da Lava Jato, de interesses empresariais representados pela oposição, marcadamente financeiros, e da contrariedade dessa oposição diante do longo ciclo de poder do PT e da diminuição de seu poder eleitoral em 2014. O apoio de 60% da população, após dois anos de intensa campanha da mídia desmoralizando o Estado, atribuindo a crise econômica ao aumento do gasto público, e, por fim, criminalizando o gasto público na gestão da presidenta reeleita, garantiu à oposição a sustentação popular necessária para a aventura do golpe parlamentar. Entre os interesses de mercado associados à aliança PSDB/DEM são notórios os de origem externa, ligados à Petrobras – espionada durante o governo Dilma pelos Estados Unidos –e ao enfraquecimento dos acordos do Brics e da cooperação entre os países da América do Sul. No entanto, acentuar a motivação de agentes internos que efetivamente realizaram o golpe do mercado como a determinação da grave crise brasileira após as eleições de 2014 implica a compreensão de que seria possível resistir às investidas de desestabilização externas, como têm feito a Rússia e a Turquia. Dessa forma, destaca-se a responsabilidade das elites nacionais
pela desestabilização política, institucional e econômica do país, e o objetivo claro de associação aos interesses do mercado financeiro internacionalizado e das corporações globais. Nos dois primeiros trimestres de 2014, o fantasma da recessão apareceu no cenário econômico com a queda do PIB. No primeiro trimestre, uma estagnação, com valor de -0,2%, e no segundo trimestre uma queda, -0,6%. O ministro da Fazenda rebatia a interpretação de que havia uma recessão. Ele lembrava da estagnação europeia para mostrar que o Brasil vivia uma parada, mas que era preciso considerar que não havia aumento de desemprego ou queda da renda para caracterizar uma recessão. A explicação para a “parada” estava na queda de investimentos, de 5,3%, com impactos, sobretudo, no setor industrial, que caiu 1,5% somente no segundo trimestre. A partir de então, como parte da estratégia eleitoral, consolidou-se uma interpretação da crise que explicava a redução dos investimentos privados por um processo de perda de confiança dos investidores em face de um governo que não tinha controle sobre os gastos. Em nenhum momento mencionava-se que a impossibilidade de cumprir a meta fiscal e o superávit primário devia-se à queda da arrecadação prevista em razão da estagnação da atividade econômica e das desonerações fiscais. Os juros estavam irresponsavelmente altos, se comparados aos juros próximos de zero da Europa, Estados Unidos e Japão. Como conter gastos obrigatórios? Como não aumentar a dívida pública pagando juros reais de 5% em plena recessão? Esses eram argumentos desconsiderados pelos comentaristas da grande imprensa. O governo Dilma havia preparado uma armadilha para si próprio. Desde 2012, promoveu desonerações fiscais para garantir a taxa de investimento e de emprego em cenário de baixo crescimento e diminuição dos lucros das empresas, comprometendo a arrecadação. O empresariado recompôs a lucratividade, mas não ampliou os investimentos, o que parece razoável diante da possibilidade de uma rentabilidade líquida razoável na aplicação em títulos do governo a partir do aumento da taxa de juros. Por outro lado, o governo diminuiu sua capacidade de investir, o que seria a forma de compensar o ciclo de baixa atividade. A retração da economia se deveu a um conjunto de fatores, entre os quais a diminuição dos preços das commodities, a compressão do crédito – com especial destaque para o custo do dinheiro no Brasil com a elevação dos juros – e os objetivos políticos do segmento rentista e das corporações, que estimularam a disfunção do sistema político, o golpe e o desajuste das instituições. Não há entre os fatores o gasto público, simplesmente porque esta é uma falsidade repetida pela imprensa ad nauseam . Sua repetição, entretanto, não a torna verdade por mais que seja assimilada pela “opinião pública”, ou senso comum. O que se acredita por deformação de informação é desmentido por dados que estão disponíveis. De acordo com o relatório de despesas primárias do Ministério da Fazenda, os gastos com pessoal diminuíram no governo Dilma e as despesas correntes apenas demonstram um aumento em relação ao PIB em 2014, quando começa o processo de estagnação e recessão. Em 2015, o impacto do ajuste já pode ser sentido no
investimento do governo, que diminui de 1,4% para 1%. Neste ano, os gastos correntes tiveram grande aumento em relação ao PIB, apesar do ajuste Levy, e relacionavam-se, também, segundo o relatório, a pagamentos das chamadas “pedaladas fiscais” de 2014. Ou seja, havia restos a pagar de 2014, ano em que a meta fiscal foi ameaçada pelo início da recessão. No total de gastos, o aumento foi de 2,3% em relação ao ano de 2013, quando houve crescimento de 2,7%. Mas com a queda do PIB de 3,8% em 2015 e o consequente impacto sobre a arrecadação, o déficit era inexorável apesar da contração das despesas. Os resultados fiscais de 2015 mostram o erro da aposta do ministro do mercado, Joaquim Levy. A depressão econômica neutralizou os cortes e as despesas aumentaram em relação ao produto deprimido. Da mesma forma, a trajetória das despesas denominadas transferências às famílias – aposentadorias, pensões, Bolsa Família e seguro desemprego – aumentou em relação ao PIB, tanto no baixo crescimento quanto na recessão. Essas despesas, porém, não são uma escolha política, à exceção do reconhecido programa de combate à miséria, o Bolsa Família, que consome apenas 0,4% do PIB. Os gastos restantes são direitos, portanto, estão fora do poder de decisões discricionárias da Presidência da República . Tabela 16. Evolução dos gastos primários (% PIB) 2006-2015 Fonte: Ministério da Fazenda, Relatório de Análise Econômica dos Gastos Públicos Federais. Maio de 2016. Diante desse quadro, havia três alternativas possíveis. Ou se desenvolvia um projeto nacional de desenvolvimento estratégico, porque não é possível competir na economia global sem essa condição, perseguindo um crescimento econômico que permitisse sustentar os gastos públicos. E, neste caso, não haveria necessidade de rever a estrutura tributária ou aumentar os impostos para garantir a consolidação dos direitos; ou o país se comportava de acordo com a imposição das conjunturas do mercado e aumentava tributos para manter todos os direitos sociais; ou, ainda, o país podia se largar ao mercado, exposto às pressões e interesses dos donos do jogo, cancelando os direitos sociais, para garantir superávit primário e demais exigências do dos atores econômicos. O golpe nos tirou as duas primeiras opções. Quando Temer assumiu interinamente a presidência em 2016, tinha projetos prontos para resolver o problema do déficit, cortando os gastos públicos e os direitos que eles asseguravam. Começou pelo Novo Regime Fiscal, que criou um teto de gastos somente para essas despesas primárias, enquanto as despesas financeiras – igualmente pagas pelo contribuinte – não sofreram restrições. Quem pode achar essa decisão razoável? O que se pode esperar dessa visão de mundo, pronta para escravizar a maioria? São os retrocessos contemporâneos de um país que se torna pequeno diante dos desafios. A trajetória dos gastos foi amplamente usada pela mídia ao longo do ano de 2015 para desqualificar o governo. Os jornais de grande circulação apoiavam o ministro da Fazenda – executivo do segundo maior banco privado brasileiro –, apesar do desastre econômico que se anunciava e da irracionalidade da opção pela depressão dos gastos que podiam compensar
a demanda no cenário de contração. Nossa recessão se transformou em depressão. E, contrariando os fatos, foi neste ano de 2015, com um ajuste fiscal que provocou uma depressão sem precedentes da economia brasileira, que cresceu o discurso de Estado mínimo. Segundo o discurso hegemônico, o ajuste nunca era suficiente para a “confiança” dos investidores. E todas as promessas de retomada de investimentos foram frustradas até o ano de 2018. O Brasil diminuiu de lá para cá, e o ajuste serviu para destruir direitos, consolidar grupos bem financiados de direita em favor do Estado mínimo e vender patrimônio público. Há muitos elementos que ajudam a compreender a fragilidade da economia brasileira, o baixo crescimento e a crise que se instalou com impacto imprevisto a partir de 2014. Não é honesto estabelecer a preponderância de apenas um deles, como faz o discurso do mercado apontando o gasto público. As atividades econômicas e o funcionamento sistêmico das economias nacionais dependem de uma complexa rede de decisões políticas, internas e externas, privadas e estatais. Quem anuncia que todas as variáveis cabem nos modelos matemáticos de uma pseudociência neutra, ou age de má fé ou foi doutrinado e acredita numa impossibilidade real, e daí se explica o déficit de sucesso das projeções do mercado. Basta lembrar da classificação de risco dos bancos americanos às vésperas do colapso de 2008. Há muitos intelectuais que de fato são doutrinados e não enxergam que a economia é política e que cada contexto tem uma disputa de poderes e contradições próprias sobre as quais é preciso duvidar, conjecturar e explorar com a certeza de que as condições e cenários são complexos e dinâmicos. A abordagem que tento desenvolver aqui reflete a visão de um mundo global, de gigantescas corporações em disputa, de nações capazes de promover conflitos para assegurar o s tatus quo e de imprevisibilidades, portanto, probabilidades muito altas de erros. É certo que a presidenta Dilma Rousseff imaginou ser possível desencadear um novo desenvolvimentismo para o Brasil, alterando a perversa remuneração do capital ocioso, apostando na cadeia do petróleo e na política de conteúdo nacional para uma retomada industrial e tecnológica. Capitulou após pequeno suspiro e percebe-se a difícil disputa política que envolve a mudança do modelo primário-exportador. Mas é preciso reconhecer que a batalha política não foi travada. O governo do PT foi sempre de acomodação e recuos diante dos vetos da sua complexa base. Após o período de expansão de crédito e de euforia de empresas e consumidores, o aumento do endividamento das empresas e famílias é uma das consequências esperadas do ciclo econômico. Não quer dizer, necessariamente, que haverá uma recessão, mas é esperado que ocorra uma desaceleração ou uma parada nos investimentos e no consumo. Neste momento, a demanda externa ou do governo podem reequilibrar a dinâmica do mercado e do investimento, até o amadurecimento de um novo ciclo de expansão. Em 2012, a China começou a desacelerar o seu crescimento, determinando uma baixa de preços internacionais de produtos primários exportados pelo Brasil, como minério de ferro e alimentos. As commodities também haviam atraído investimentos especulativos após 2008, pois pareciam um refúgio
seguro em meio às turbulências financeiras. Essas condições desapareceram. A demanda e a especulação dos preços se retraíram, afetando diretamente setores vitais da economia da América Latina e o balanço de pagamentos dos países da região. No fim de 2014, seria a vez da queda do petróleo, responsável por investimentos fundamentais para o crescimento do Brasil. A crise do setor seria, segundo a Secretaria de Política Econômica do Ministério da Fazenda, responsável por 2,0 pontos de retração do PIB de 2015, após redução de 40% dos investimentos em relação ao ano anterior, e sem que o governo pudesse compensar com aumento de investimentos, engessado pelo ajuste fiscal. O endividamento de famílias e empresas aumentou durante o período dos governos do PT. A expansão do crédito no Brasil demonstra que este era um mecanismo subutilizado, pois, mesmo depois do grande aumento, o Brasil continuava muito atrás de outros países emergentes. A perspectiva de Estevão Kopschitz Bastos, em análise da conjuntura de crédito de 2016, é a de que a expansão do crédito maior que a do PIB se deu com muita rapidez, resultando em famílias endividadas, as empresas com capacidade ociosa e os bancos mais prudentes na concessão de novos financiamentos . ¹⁹ Entretanto, é preciso ressaltar que ao final de 2013, com a retomada do aumento dos juros, as condições foram alteradas para consumidores e empresários. Não apenas o crédito estava mais caro, mas os bancos encolheram a oferta. As taxas de endividamento subiram consistentemente entre 2013 e 2015, de acordo com dados do Serasa Experian ²⁰ . A diminuição da oferta de crédito deve ser explicada pela possibilidade de remuneração de capital ocioso pelos títulos do governo. Na ponta da intermediação financeira, que envolve risco, os bancos brasileiros – setor monopolizado, com enorme concentração de capital – voltaram a fazer operações em patamares proibitivos. Reproduzia-se o estrangulamento histórico da economia brasileira. A falta de um sistema nacional de financiamento da produção nacional constituiu, até em momentos de crescimento, um gargalo para o desenvolvimento do país. O preço do dinheiro no Brasil, os juros cobrados pelos bancos nas operações comerciais, são um obstáculo ao investimento e ao consumo. No curto período entre 2012 e 2013, em que a presidenta usou os bancos públicos para competir nas operações do varejo com juros baixos, houve um recuo dos bancos privados que precisavam competir pelas operações, uma vez que as operações de títulos do tesouro chegaram a se reduzir a um patamar de 2% de juros reais. Mas, como mostrei anteriormente, a política não sobreviveu à histeria anti-inflacionária que se seguiu à desvalorização do câmbio e à pequena alta da inflação. O ano de 2012 foi crucial para a determinação política de mudança de modelo. A recuperação de 2010 não apontava para a estabilização de um padrão de crescimento sustentável suficiente para dar continuidade aos compromissos sociais e de desenvolvimento do Estado, tanto pela queda da demanda externa e dos preços internacionais, quanto pelo movimento do ciclo interno de consumo, que sofreria com o estrangulamento do crédito. Os investimentos privados começaram a decrescer, preocupando o governo e o levando às desonerações e à fixação de tarifas de energia e combustíveis. Não foi o suficiente.
A opção pela política industrial de longo prazo, com o ajuste de juros e câmbio iniciado gradualmente no segundo semestre de 2011 ²¹ seria uma alternativa caso houvesse as condições de um pacto nacional nesta direção. O PT fizera uma grande coligação sem exigências e, no entanto, não tinha capacidade para articular esse pacto ou disposição para defendê-lo. Depois de 2013, a oposição viu a possibilidade real de voltar ao poder e a degradação da atividade econômica ajudaria no sentido de alimentar um discurso atribuindo a responsabilidade do fracasso à “nova matriz econômica”. O projeto da oposição era o mesmo velho neoliberalismo dos governos do PSDB, e representava os mesmos segmentos e interesses. Não havia novidades, era somente um retorno ao passado. Mas não para os jovens que não têm o parâmetro de comparação dos anos 1990, segmento no qual cresceram grupos de direita e extrema direita. A crise econômica ressuscitou o Estado mínimo como ideia forte, não apenas no campo político, mas na disputa das almas. O eixo da propaganda é a compreensão de que o peso do Estado é um obstáculo ao empreendedor que existe em cada indivíduo. Uma farsa. O papel dos meios de comunicação tem sido fundamental na doutrinação em favor do livre mercado. Em consonância com o grande escândalo de corrupção da Lava Jato, empresas estatais passaram a ser condenadas como lugar da ineficiência e dos arranjos políticos, sinônimo de incompetência, desperdícios e prejuízo para a sociedade. O Estado é tratado como o lugar do mal, em pauta seriada cujo enfoque são os acordos palacianos em torno de cargos e recursos desviados de contratos para alimentar grupos políticos. A dimensão das estatais e do investimento público no desenvolvimento econômico do país foi desonestamente camuflada e, no limite, teríamos comentaristas como Carlos Alberto Sardenberg, do Grupo Globo, advogando a venda da Eletrobrás, por exemplo, para cobrir despesas correntes, com a justificativa de que o único interesse em manter a empresa seriam os cargos dos políticos da vez. Esse discurso leva o público a imaginar que vender um patrimônio produtivo, lucrativo e de infraestrutura essencial para cobrir déficit é um grande negócio, uma conquista. É propaganda, pura e simples, em benefício de grandes corporações. Os interesses essenciais da vida da sociedade desaparecem. E essa construção ocorre num momento em que o empresariado não investe, ou seja, não se apresenta como solução para um vazio aberto pela fracassada política de austeridade fiscal. Um dos erros cometidos por Dilma que tem maior consenso entre economistas é o das desonerações fiscais, ampliadas entre 2012 e 2014. O mecanismo é típico da competição predatória da economia global que se traduz em guerra fiscal e chantagem do capital privado sobre governos. Dilma tentou manter o nível de atividade e de emprego com apostas difíceis de serem revertidas com o agravamento da crise. Ou seja, em cenário de estagnação, seria improvável revogar desonerações sem impacto imediato sobre os níveis de emprego e de endividamento. Entretanto, essa política não apresentou resultados efetivos e caberia ao Estado compensar a falta do investimento privado, que supostamente se recuperaria apenas com o aquecimento da demanda, que, naquele contexto, estava em retração tanto externa quanto internamente. Mas, quando a recessão se estabeleceu, o Estado não tinha capacidade fiscal. As desonerações enfraqueceram sua capacidade de ação.
Os maiores erros que levariam ao colapso devem ser procurados, no entanto, em 2015, quando, sob pressão, a presidenta reeleita adota um ajuste fiscal punitivo ao investimento. Além dos cortes de gastos públicos, determinando a retração da demanda, o governo aumentou as taxas de juros e promoveu o reajuste de tarifas de serviços. Aqueles empresários que não tinham disposição para investir em razão da retração do mercado, tiveram seus custos aumentados, os financiamentos encarecidos e a possibilidade de buscarem a remuneração do capital nos títulos públicos. O que impressiona o observador é o fato de que essa receita era preconizada pelos agentes do mercado. Não queriam crescimento, recuperação, queriam remuneração de capital ocioso, o ajuste fiscal e, no limite, a restrição dos serviços públicos. Quem observa 2015, desconfia para sempre do saber econômico e de seus repetidores. O corte de gastos se fez sentir em todas as esferas governamentais. Contratos foram reduzidos, descontinuados, ou atrasados, com impactos diretos na taxa de desemprego e no consumo. E tudo isso em meio à crise do setor do petróleo. 2015 foi um ano para entrar nos anais dos fracassos da agenda de ajuste fiscal. Antes da posse para o segundo mandato, a imprensa noticiava a indicação de Lula de um ministro da Fazenda oriundo do mercado. Uma frustração para os eleitores de Dilma. O nome sugerido era o de Luiz Carlos Trabuco, presidente do Bradesco. O anúncio sinalizava ao mercado o fim da “nova matriz” e de qualquer ranço desenvolvimentista ligado à gestão de Guido Mantega na Fazenda. Em situação frágil politicamente, Dilma decidiu se alinhar ao mercado de acordo com Lula, cuja notória habilidade política em negociações com o empresariado não podia deixar de ter peso fundamental no partido e nas decisões da presidenta reeleita por pequena margem de votos. Com a recusa de Trabuco, Dilma acabou confiando a missão de comandar a economia a outro executivo do Bradesco, Joaquim Levy. A condução da economia foi baseada no clássico receituário de ajuste fiscal com cortes de gastos e política monetária contracionista, resultando na depressão de 2015-2016. Em maio de 2015, o governo anunciou um corte de despesas de R$ 69,9 bilhões, atingindo todos os setores, desde os investimentos até os serviços sociais. O PAC perdeu R$ 25,7 bilhões, o Ministério das Cidades 17,23 bilhões, o da Saúde R$ 11,77 bilhões, e na Educação o corte foi de R$ 9,42 bilhões. Em 2014, a taxa básica de juros havia partido de 10,5% em janeiro, para 11,25% em dezembro. Apesar de elevada, houve aumento moderado da inflação, se comparada ao ano anterior. Em 2015, a taxa subiu 3 pontos percentuais e a inflação não foi domada, ao contrário, aumentou mais de 4 pontos, comparada à taxa de 2014. A política monetária não tinha impacto sobre a inflação, aprofundava a recessão e aumentava muito o déficit nominal do governo, elevando as despesas financeiras. A taxa de juros só começou a cair muito timidamente em novembro de 2016. Até lá, o Estado brasileiro sangrou remunerando o capital ocioso durante a recessão mais profunda e prolongada de sua história. Em 2016, com golpe e agenda arrasadora do mercado, o PIB teve queda de 3,7%. Havia uma crise de endividamento de famílias e empresas, com retração da demanda, e o governo promoveu um choque de juros que contraiu ainda mais a capacidade de consumo. O empresariado não contava com demanda
externa, nem das famílias, nem do governo. Seu endividamento aumentava e o custo do crédito também. Uma economia com balanços esgarçados foi simplesmente jogada no precipício. De onde sairiam os investimentos? De acordo com a racionalidade econômica básica, de lugar nenhum. As empresas tinham retorno negativo e capacidade ociosa. Enquanto isso, repetidores dos interesses do mercado falavam que os ajustes aumentariam a confiança do investidor. O resultado foi a queda expressiva do PIB, o aumento da dívida pública pelo pagamento de juros, o desemprego de 14% e o aumento da pobreza. Estes dois últimos parâmetros não importam aos repetidores das ideias do mercado, mas com relação aos demais, nada do que anunciaram se concretizou, e ainda assim mantiveram a fábula, demonizando o gasto público como o vilão do drama que se abateu sobre a economia. A inflação de preços administrados, incrementada pelo ajuste dos preços no início do governo, nada tinha a ver com demanda aquecida, o que se comprova claramente pela capacidade ociosa das empresas. Ainda assim, a terapia preconizada levou o Brasil a pagar a maior taxa de juros do planeta, contrariando a tendência global de estímulo aos investimentos com taxas próximas a zero. Havia o que comemorar para esses agentes que propagandeiam as exigências do mercado, ou, dos “investidores”. Os bancos faturaram alto ao longo da crise. Tabela 17. Lucro dos bancos privados (em bilhões R$) Fonte: G1. Em 2015, os três maiores bancos privados do país – um verdadeiro oligopólio financeiro – lucraram 47 bilhões de reais, e em 2016, 44 bilhões. Esses lucros mostram a estrutura de um sistema que funciona para distribuir lucros de títulos, sem financiar a economia. O aumento da inadimplência de empresas foi amplamente compensado pelas operações com títulos públicos e pelo encarecimento do crédito. O sistema da dívida pública garantiu esses balanços generosos para os bancos, que deixam de cumprir o papel de financiadores da produção e do consumo para se transformarem em agiotas do governo e dos consumidores do varejo. Aquela transferência líquida de riqueza para o setor financeiro internacional que aconteceu nos anos 1980 foi apenas deslocada para o setor financeiro doméstico, e permaneceu desde o Plano Real. Há um verdadeiro dreno da riqueza produzida no país via dívida pública para bancos e rentistas. É uma distorção estrutural. Por um período de mais de três décadas, o país se mantém como fornecedor líquido de riquezas para o setor financeiro, reciclando o capital ocioso de origem interna e externa. Mas as vozes do mercado não se dobram, porque expressam seus patrocinadores.
A crise econômica de 2015 teve um efeito devastador na popularidade da presidenta, tanto entre os seus eleitores, decepcionados com a austeridade fiscal, quanto entre os opositores, que a interpretavam como resultado de incompetência, descontrole de gastos e corrupção. Isso permitiu que os meios de comunicação atuassem no sentido de estimular as grandes manifestações contra o governo, e trabalhassem de maneira coordenada com novos movimentos de direita de origem desconhecida e com a Lava Jato, compondo o cronograma do golpe. Apresentadores convocavam as manifestações em coberturas ao vivo, pautavam o Congresso em seus programas televisivos e anunciavam a tramitação do processo de impeachment com previsões de data e um tom de cobrança, na medida em que afirmavam a necessidade de respostas ágeis para que o país retomasse a normalidade. Ao mesmo tempo, grandes operações da Lava Jato, com um festival de prisões, buscas e conduções coercitivas, antecediam as manifestações e as datas importantes do cronograma do golpe. Os parlamentares seguiram o cronograma da mídia e a base ruiu em meio a ameaças cada vez mais próximas dos parlamentares. Derrubar a presidenta passou a significar não apenas o atendimento ao anseio construído de uma parcela majoritária da população, como uma urgência para circunscrever a Lava Jato, impor-lhe um limite, ou, como afirmou o senador Romero Jucá, “estancar a sangria”. No início de 2016, o Brasil viveu a confluência de todas as tempestades. A crise econômica justificava as avaliações negativas do governo, a crise política o paralisava e a oposição sentia-se fortalecida para se lançar à aventura de derrubar a presidenta isolada politicamente. A base aliada, entre amedrontada com a Lava Jato e percebendo o risco de ficar sem cargos em caso de sucesso do golpe, mudou de lado. Destacou-se o consenso sobre a agenda do livre mercado e da diminuição do Estado, que cumpriu duplo papel, de um lado, de desqualificação da experiência dos governos petistas e, de outro, da normatização do ideal de diminuição das atribuições do governo em favor do lucro empresarial. Notas 13 . Dilma Rousseff governou o Brasil de 2011 até o seu afastamento, em maio de 2016 e, afastou-se definitivamente da presidência da república, em agosto de 2016 com a aprovação de seu impeachment. 14 . Para Skaf, Brasil “marcou passo” em 2011 – Fiesp, por Cesar Augusto. Disponível em: < http://bit.ly/2AbN9pT >. Acesso em: 13 dez. 2017. 15 . No artigo Cutucando onças com varas curtas , de 2015, André Singer trata do que chama de “ensaio desenvolvimentista” do governo Dilma apontando seu caráter breve e inconcluso e a unidade antidesenvolvimentista que se formou em oposição a uma suposta coalizão produtivista. Segundo o autor, está claro que o setor financeiro se sentiu ameaçado e reagiu e os empresários da indústria mudaram de lado. 16 . Comentário no link: < https://glo.bo/2Aiy85G >. Acesso em: 1° dez. 2017.
17 . Disponível em: < https://glo.bo/2Aiy85G >. Acesso em: 1 dez. 2017. 18 . Câmara rejeita PEC 37; texto será arquivado – Câmara Notícias – Portal da Câmera dos Deputados, por Pierre Triboli. Disponível em: < http://bit.ly/ 2mMNjuc >. Acesso em: 15 dez. 2017. 19 . Carta de Conjuntura , n. 31. Por Estêvão Kopschitz Xavier Bastos, Moeda e Crédito. Disponível em: < http://bit.ly/2LJkXPJ >. Acesso em: 27 jul. 2018. 20 . As planilhas com séries sobre a inadimplência de consumidores e empresas estão disponíveis no site serasaexperian.com.br, indicadores econômicos. 21 . Variação da Selic – Banco Central do Brasil: < http://bit.ly/2mJH4HA >. Acesso em: 20 jul. 2018. Parte 4 Rumo ao novo colonialismo Por onde começar a abordar a marcha da insensatez que avança sem produzir os resultados pretendidos por aqueles que embarcaram nessa nau errante e que não nos leva a porto algum. (…) O impeachment não resolve a crise, aprofunda-a. Convenhamos, trata-se de uma encenação grotesca para encobrir nossa falta de cultura democrática. (…) A pantomima vai nos custar os olhos da cara enquanto sociedade. E quem vai saldar o passivo financeiro desse atraso? Os de sempre, claro! Os de sempre . (João Capiberibe, Senado Federal, 09 de agosto de 2016) Capítulo 9 O golpe de 2016 e o governo do mercado A posse de um presidente eleito diretamente é, em geral, o momento de maior vigor da sua legitimidade. É a renovação do pacto com o eleitor, que dá o seu aval para o governante. Entretanto, o que ocorreu após a eleição da presidenta Dilma Rousseff foi o exato contrário. O país saiu dividido e radicalizado da eleição, a base parlamentar aumentou o seu preço, ou a chantagem sobre a presidenta, a crise econômica se agravou, a Lava Jato se transformou em instrumento de enfraquecimento do governo pela mídia empresarial, e a campanha de grupos de extrema direita, também associada à mídia, levantou grandes manifestações advogando o impeachment . Foi uma avalanche. O governo parecia destituído de qualquer mecanismo de condução do campo político e refém no plano econômico. Assumiu a agenda do mercado e fechou o ano com a queda de 3,8% do PIB. A popularidade da presidenta desabou, o clima político tornou-se mais instável e a coalizão de governo menos responsiva. O sistema político deixou de responder à tomada de decisões ou às negociações encaminhadas pelo Palácio do Planalto, impondo-se um boicote congressual permanente ao governo. Essas eram as condições do impeachment , o qual compreendo como um golpe de Estado tanto pela inexistência das exigências legais, quanto pela agenda do governo ilegítimo, que embora tenha sido derrotada nas eleições, se impôs como uma
avalanche sem escrutínio popular e antes ainda de terminada a farsa do julgamento definitivo da presidenta no Senado. Há uma confluência de fatores que levaram ao impeachment da presidenta eleita do Brasil. Qualquer observador identifica a notória articulação entre a oposição, o Judiciário e a mídia no desencadeamento de uma campanha arrasadora contra o PT e seus governos. Uma estrutura discursiva foi criada para dar solidez à ruptura institucional por meio da criminalização sem precedentes do gasto público, da desqualificação das políticas públicas de distribuição de renda e da atribuição da responsabilidade pela crise às políticas anticíclicas do governo Dilma Rousseff. É nessa campanha discursiva que estão os objetivos do golpe e a possibilidade de compreender suas razões. É também aí que podem ser encontrados os autores incógnitos que manipularam a mídia, os partidos, os novíssimos e bem financiados movimentos de direita e a “opinião pública”. Esta, comparecendo às manifestações convocadas pelas maiores empresas de comunicação, batendo panelas ao chamado dos movimentos imberbes e de origem desconhecida da direita e somando 60% em apoio ao golpe, segundo pesquisas de opinião, deu a senha para a mudança de patrão da base parlamentar do governo. Se a campanha tinha como centro o gasto público e a crise fiscal, relacionados à manutenção da máquina administrativa, pagamentos de direitos, investimentos e corrupção, não se mencionava o custo da política monetária adotada pelo ministro oriundo do Bradesco, do seu caráter recessivo, inviabilizando o investimento privado, do custo financeiro para o Estado com o aumento da dívida pública, e da decorrente queda da arrecadação. Uma política flagrantemente punitiva ao investimento foi a responsável pelo aumento do gasto com juros em cenário de queda de arrecadação, e, ainda assim, era brindada pelos comentaristas de plantão como necessária, enquanto a crise, que entrava em estágio de queda livre, era atribuída ao colapso fiscal por ampliação de gastos primários (não financeiros) ao longo do governo Dilma. Essa compreensão indica a falta de preocupação real com o déficit fiscal, uma vez que ela ignora a trajetória do gasto financeiro, que é o maior custo do governo. É o gasto primário o alvo da campanha do golpe. Trata--se do conflito distributivo ou da luta de classes às avessas, na qual o capital está armado como nunca para chantagear todos os atores, na medida em que conta com ampla liberdade de ir e vir, de chegar e ficar, ou de nem passar por essas bandas. E quanto mais vulnerável e dependente é a economia nacional, maior será sua vassalagem em relação a essas pressões. O Brasil, como a América Latina, viveu um período de expansão na primeira década do século XXI, movido pelo boom do mercado mundial de commodities que respondia ao crescimento chinês. A desaceleração da China e a queda dos preços internacionais dos produtos dos quais dependiam os bons resultados da região logo começariam a mover o moinho do conflito distributivo, que não é apenas interno. Diante das obrigações dos Estados, com aposentadorias e sistemas de saúde, educação e infraestruturas produtivas, era previsível que na ausência de crescimento econômico que pudesse gerar excedente e aumento de arrecadação, a carga tributária teria que aumentar. A alternativa seria diminuir ou cancelar as obrigações do Estado, o que pode
ser feito por meio de alterações constitucionais que dificultem as aposentadorias, criando mais exigências e novas formas de vínculos entre empresas e trabalhadores. Esse conjunto de alterações de direitos dos trabalhadores estava na agenda do golpe. Mas o conflito distributivo tem maior amplitude. Ele é global e se beneficia das estruturas criadas pelo neoliberalismo, que enfraqueceram os Estados e os tornaram reféns da guerra fiscal global, da evasão de divisas e da reciclagem do capital por meio dos sistemas de dívidas públicas. Após a crise de 2008, as empresas globais têm atuado em um ambiente de baixo crescimento, maior competitividade e Estados mais fragilizados. Este cenário explica o interesse em ocupar as posições do Estado na oferta de serviços públicos, ou na sua transformação em mercadorias. O Brasil, com o tamanho de sua economia, não é um mercado desprezível na disputa internacional, e se transformou em alvo ainda mais importante depois das opções de política externa de articulação ao Brics e fortalecimento regional, e da descoberta das reservas do pré-sal. A centralidade do Brasil na competição global é o que dá sentido ao golpe. Trata-se da predação das receitas do Estado, da garantia da lucratividade das empresas, com baixo custo tributário e de mão de obra, do desmantelamento da política externa autônoma e da livre exploração das reservas de petróleo. Para alcançar o objetivo, o Estado e a estrutura de direitos sociais precisavam ser desmontados, com a anuência de um parlamento passível de ser comprado. A construção de um consenso sobre a ineficiência e a corrupção do Estado e sobre as virtudes do mercado era a condição necessária para a arregimentação dos partidos e seus deputados que, por sua vez, são dependentes das boas graças da mídia, elemento imprescindível para a sobrevivência na democracia eleitoral de massas. Em março de 2015, no início do segundo mandato, a polarização política foi alimentada pela primeira grande manifestação contra a presidenta Dilma Rousseff. A manchete do site Folha de S. Paulo/UOL, de 15 de março, noticiou que os protestos contra o governo, ocorridos naquele domingo, haviam reunido quase 1 milhão de pessoas e haviam sido convocados por pelo menos cinco grupos de direita, dois deles com nomes plagiados das manifestações de 2013. O MBL, com sonoridade parecida ao combativo MPL, do passe livre, e o Vem Pra Rua, cujo nome foi o grito de guerra dos manifestantes para chamar a população para as ruas nas Jornadas de Junho . Esses usos de nomes e comandos reconhecidos como a identidade dos movimentos de jovens apartidários que se mobilizaram em 2013 em busca de alternativas mostram a manipulação estratégica dos grupos que surgiram no cenário político (não se sabe bem de onde) e se projetaram pelo uso intensivo de canais de redes sociais a partir de 2014. Nas manifestações contra o governo do PT, o aparato de carros de som mostrava uma organização profissional absolutamente distinta se comparada a 2013, quando não havia carros, lideranças ou comandos. Ainda de acordo com a Folha/UOL, “o discurso hegemônico da manifestação pedia o impeachment da presidente e acusava o PT de ser responsável pelo escândalo de corrupção na Petrobras”. Ora! Não havia ainda qualquer pedido de impeachment ou consideração institucional sobre essa
possibilidade. Um pedido de impeachment só seria aceito pelo presidente da Câmara em dezembro de 2015, mas a ideia de derrubar a presidenta, independentemente de haver ou não condições jurídicas, já estava sendo semeada pelos organizadores das manifestações. Isto significa que, em março, apenas dois meses após a posse, a oposição (incluindo o grupo político do vice-presidente, liderado por Eduardo Cunha e associado ao MBL) e os movimentos de origem desconhecida já haviam decidido trabalhar pela deposição. A Lava Jato teria fundamental importância para construir junto à opinião pública a vinculação do governo ao esquema de corrupção da Petrobras. Para isso, estabeleceu-se uma relação íntima entre as ações do “Tribunal de Curitiba” e a imprensa. As operações foram todas televisionadas como uma série de TV, e coincidiram com as datas próximas às convocações de manifestações. O ano de 2015 foi uma avalanche. Oposição e consórcio judiciário/mídia fizeram campanha de desmoralização do PT tanto por meio de uma ação no Superior Tribunal Eleitoral, quanto da evolução da operação Lava Jato. No Congresso, a base aliada chantageava a presidenta, sem entregar o apoio necessário ao governo. Ou seja, a base tornou a presidenta refém. O PMDB (hoje, MDB) do vice--presidente exigiu tudo o que podia até decidir mudar de barco. Numa tentativa de garantir a lealdade do grupo forte do partido, a presidenta decidiu entregar a Secretaria de Relações Institucionais, responsável pela articulação política, a Eliseu Padilha, um dos golpistas do grupo do vice-presidente, então ministro da Aviação Civil, e diante da sua recusa, Dilma convocou o próprio Michel Temer. Era o mês de abril e a presidenta já estava se ajoelhando. Parte do PMDB, entretanto, não seria domesticada, pois junto com um grupo de deputados conservadores financiados por esquemas de corrupção do deputado Eduardo Cunha, respondia diretamente a ele. O deputado havia vencido o candidato do PT na disputa para a presidência da Câmara, demonstrando o seu poder pessoal e o controle de sua própria base de deputados. Além disso, o novo presidente da Câmara deixou claro que agiria com autonomia em relação ao governo. Ele tinha o seu próprio projeto de poder. O sistema de financiamento eleitoral por meio do desvio de verbas em contratos de obras e serviços públicos havia gerado seu primeiro monstro, indomesticável. A ambição do novo presidente da Câmara parecia ser a de um poder sem precedentes no uso do cargo. Ele sabia controlar seus deputados, chantagear, usar os meios de comunicação, agradar empresários pautando suas demandas e até usar horário gratuito de televisão para afirmar à população a autonomia da Câmara em relação ao Executivo. Na semana deste pronunciamento, em julho, o nome de Eduardo Cunha começou a aparecer em delações premiadas e a estratégia de defesa do parlamentar foi acusar o governo de querer quebrar sua liderança e se declarar em oposição. Frente a inúmeras acusações, sua resposta passou a ser o ataque. A chantagem aumentou. Eduardo Cunha passou a usar pedidos de impeachment que chegavam à Câmara como moeda de troca para exigir que o PT o blindasse na Comissão de Ética e em um possível processo de cassação. O jogo parlamentar passou a ser uma novela que tinha por enredo o crime e a chantagem.
A escalada da instabilidade estava garantida pela amplitude que a operação Lava Jato ia alcançando. Todo o espectro político estava sendo literalmente atropelado, com a estranhíssima exceção do PSDB. Estranhíssima porque o esquema era anterior ao governo do PT, quando Nestor Cerveró e Delcídio do Amaral foram diretores da empresa, e, afinal, a maior estatal brasileira já cumpria seu papel no jogo do financiamento eleitoral. Mais tarde, em 2017, o procurador messiânico Deltan Dallagnol, explicaria, em entrevista à BandNews, que a operação se circunscrevia ao período do governo do PT, por isso não pegava ninguém da oposição. O marco era 2003, e o entrevistador não lhe perguntou sobre a razão de se estabelecer aquele marco cronológico. Talvez porque fosse evidente – a operação era contra o PT . ²² No fim de 2014, a operação chegou às grandes empreiteiras, prendeu um diretor da Petrobras e começou a receber informações de operadores sobre o esquema de financiamento da eleição de 2010, envolvendo o PT e o PMDB. Era só o começo. Todos os diretores seriam presos e, na sequência, também os donos das maiores empreiteiras. Começariam então as condenações. Os políticos sem foro privilegiado também foram alcançados e condenados. No mês de fevereiro de 2015, a crise derrubou a diretoria da Petrobras e sua presidenta, Graça Foster. João Vacari Neto, tesoureiro do PT, foi conduzido coercitivamente para prestar depoimento. No mês seguinte, seria preso. Em março, o Procurador Geral pediu ao STF para autorizar a investigação de políticos, o que foi concedido pelo ministro Teori Zavascki. No mesmo mês, um dos sócios da Queiroz Galvão foi preso. Os presidentes da Camargo Corrêa e da Odebrecht o seriam em junho. As primeiras condenações aconteceram ainda em abril e a rapidez com que os processos e as condenações tramitaram na Justiça Federal de Curitiba assustou o campo político. O poder da Força Tarefa da Lava Jato tomava forma não apenas para os envolvidos, que se viam encurralados, mas também no imaginário popular, que passou a considerar o juiz Sergio Moro um herói. O retrato do juiz passou a representar seus admiradores nos perfis das redes sociais. Em maio, apareceram as denúncias contra José Dirceu, símbolo do PT e do mensalão que se tornaria réu no mês de setembro. Sua condenação a mais de 20 anos de prisão aconteceria em maio de 2016, depois do afastamento da presidenta. Mas as acusações eram suficientes para marcar o PT por meio de um de seus mais conhecidos representantes históricos. Uma grave ameaça, não apenas para o PT, mas para os partidos da base, foi a prisão do senador Delcídio do Amaral, primeiro senador preso no exercício do mandato, em novembro de 2015. O STF tomou a decisão sobre sua prisão por meio do entendimento de que seu crime era continuado, o que garantia o preceito constitucional do flagrante como única justificativa para a prisão de um parlamentar. O Senado aceitou, possivelmente a fim de manter uma imagem pública de idoneidade. Depois do golpe e do afastamento de Eduardo Cunha, o Congresso ficou muito desgastado pelas inúmeras provas que surgiram contra parlamentares em geral, por isso deputados e senadores compreenderiam a necessidade do enfrentamento como única forma de garantir a sobrevivência.
A prisão de Delcídio teve impacto violento. O senador havia sido diretor da Petrobras no governo FHC e ingressou no PT no governo Lula. Conhecia a empresa, diretores e inúmeros esquemas, incluindo os do presidente da Câmara e o conflito que seus esquemas em Furnas causaram com a presidenta, que desmontara a diretoria da empresa. Delcídio tornara-se líder do governo no Senado, portanto, o homem mais próximo da presidenta naquela casa. Quando foi acusado de montar um esquema para dar fuga ao ex-diretor da Área Internacional da Petrobras, Nestor Cerveró, já condenado, era natural supor que a presidenta e o PT fizessem parte da tentativa de sufocar as investigações. Foi assunto para a novela midiática por um longo tempo, sobretudo, porque, sentindo-se abandonado, o senador logo se dispôs a fazer a delação premiada. Nesta avalanche anticorrupção, também o presidente da Câmara foi levado às cordas. Além da denúncia de uma cobrança de propina de R$ 5 milhões para a contratação de navios sonda, no mês de julho, e da denúncia do Procurador Geral em seguida, autoridades suíças confirmaram a existência de contas secretas do deputado. A conjuntura foi de tensão crescente no campo político e o PT decidiu votar, no Conselho de Ética, pela continuidade do processo que podia levar à cassação de Cunha. Como retaliação, o presidente da Câmara decidiu aceitar um pedido de impeachment contra a presidenta. O STF manteria Cunha no exercício do mandato até o fim do processo de impeachment . O recesso de final de ano foi um alívio. Era preciso arrumar a casa, o país. Mas já não havia arranjo possível. A pausa nos trabalhos do Judiciário e do Legislativo foi apenas uma breve interrupção da novela do caos. E os números da economia do turbulento ano de 2015 acabaram de destruir a imagem e a credibilidade da presidenta. A economia havia despencado 3,8%, um número sem precedentes. Numa economia em marcha lenta, com famílias e empresas endividadas, a opção do ministro do mercado financeiro incorporado ao governo foi um choque recessivo. Além do aumento de tarifas de serviços, que haviam sido contidas para estimular o investimento, a política econômica promoveu um contingenciamento enorme dos gastos, e um choque de juros, o remédio muito suspeito preconizado para conter a inflação, que ameaçava chegar aos “dois dígitos!”, uma verdadeira tragédia, segundo a histeria dos comentaristas da Rede Globo. O resultado foi percebido ao longo do ano. Não havia investimentos, o desemprego aumentava, a inflação não cedia (porque não tinha nada a ver com demanda, e sim com preços administrados e ajustados ao câmbio) e o investimento foi interditado pelo custo do dinheiro, pela queda da demanda agregada e pela remuneração do dinheiro ocioso por meio de títulos. Mas, ainda que tudo isto pareça muito racional, a população era informada de que a crise era resultado do gasto público e da irresponsabilidade fiscal. Discurso que ainda perdura e foi a justificativa subjacente à deposição da presidenta. Ele permitiu não apenas a composição de uma linguagem comum de palanque, mas a recepção de um programa de desmonte dos direitos que estava pronto quando o golpe assumiu o poder. E este discurso se tornou ainda mais poderoso na medida em que o processo de impeachment , na ausência de efetivos crimes da presidenta, criminalizou o gasto público corrente não coberto pela arrecadação – as chamadas pedaladas fiscais.
Se a população estivesse atenda e informada, consideraria no mínimo estranho que a manutenção de subsídios ao crédito rural, apesar da queda da arrecadação, tenha sido considerada crime. Foi o que aconteceu. O subsídio ao crédito agrícola deixou de ser pago pelo governo ao banco público que faz a operação. A presidenta ou seu ministro da Agricultura podiam ter cortado o subsídio, causando prejuízo às exportações do setor que paga nossas contas externas. O governo do golpe não cortou os subsídios, ao contrário, perdoou dívidas, e desde que assumiu aumenta a dívida pública ampliando o limite de déficit com apoio de um Congresso que lhe é subserviente. Tudo que foi criminalizado deixou de ser. O que aconteceu no Brasil entre 2015 e 2016 tem ares, cheiro e jeito de insanidade. E isto se deve a uma infame manipulação de informações. Em 2015, houve quatro manifestações. A de 13 de dezembro foi a menor delas, apesar da escalada dos escândalos da Lava Jato. A polícia falou em 83 mil manifestantes, enquanto os organizadores estimaram 407 mil. O povo estava anestesiado. Mas em 13 de março de 2016, na última manifestação antes do impeachment , foram 5 milhões de manifestantes às ruas. A manchete do El País destacou a derrota de Dilma: “maior manifestação da democracia brasileira joga Dilma contra as cordas”. Naquele dia, o destino do governo foi selado. Quatro dias depois, os jornais anunciaram o desembarque da cúpula do PMDB do governo. Dividido, o partido somente sairia em bloco no dia 29 de março. Entre os protestos mornos de dezembro e a grandiosa manifestação de março, o poder de convocação da mídia aumentou, apesar do recesso e do tempo que seria, em tese, de uma volta à calma. A volta dos trabalhos do Legislativo e do Judiciário foi marcada por uma espiral violenta da campanha pelo impeachment . Foi o momento em que ficou clara a articulação entre mídia, Lava Jato e manifestação popular. No dia 4 de março, em mais uma operação espetacular transmitida pela televisão, o expresidente Lula foi conduzido coercitivamente a depor pela Polícia Federal, na 24ª fase da Operação Lava Jato. O primeiro noticiário da manhã da Rede Globo tinha um helicóptero a postos, transmitindo imagens do prédio da Polícia Federal. Também havia imagens do Instituto Lula, onde houve busca e apreensão de documentos. As investigações envolviam supostas propinas recebidas de empreiteiras por meio de obras realizadas em imóveis supostamente de propriedade do ex-presidente. A temperatura política subiu. Lula passou a ser representado por grupos pró impeachment nas redes sociais com uniforme de presidiário. Nove dias depois, ocorreria a grande manifestação de março. Também com cobertura direta e permanente das redes de comunicação, notadamente a Globo e a Globo News, que anunciaram os protestos como mobilização a favor do impeachment e da Lava Jato. A operação havia sido alvo de críticas por uso excessivo de métodos não previstos no Código Penal, como a condução coercitiva sem anterior convocação para depoimento de testemunhas ou investigados. Dois símbolos da manifestação na Avenida Paulista se tornaram populares: o boneco do Lula vestido de presidiário e o pato amarelo da Fiesp. O pato queria significar que os brasileiros – na verdade os empresários representados pela entidade – não aceitariam pagar mais impostos para salvar o Estado quebrado pelos “erros do PT”.
A crise econômica tinha efeitos políticos profundos, sobretudo porque permitia a construção de uma compreensão geral de que o governo Dilma havia quebrado o país. Não porque promoveu um tarifaço simultâneo ao aumento de juros e ao corte de mais de R$ 69 bilhões em gastos, inviabilizando investimentos e atirando o país em profunda recessão com a política do ministro Joaquim Levy. A hipocrisia do discurso hegemônico era tanta que simplesmente ignorava os efeitos diretos e evidentes da política econômica de 2015 e atribuía a crise aos gastos e à “nova matriz econômica”, que, como mencionei, não havia durado tempo suficiente sequer para maturar um ambiente de investimentos. Toda a política econômica determinada pela agenda da grande mídia estava sendo aplicada em Dilma II, e o discurso manteve a interpretação de distorção absoluta da realidade, sem constrangimentos. Desemprego, queda de 3,8% do PIB, queda brutal de arrecadação de impostos, crise fiscal de estados e municípios, espiral crescente da dívida pública, tudo era resultado do “intervencionismo” da “nova matriz econômica” (de 2012), do “populismo fiscal”, um arsenal de termos de significados pouco explicados, cuja função era condenar a administração do PT anterior ao ajuste, criminalizando o gasto público, em uma radical postura fiscalista. Neste paradigma, serviços públicos essenciais ou direitos sociais inscritos na Constituição simplesmente deixam de ter sua obrigatoriedade reconhecida. Todos se subordinam ao equilíbrio fiscal, inegociável independentemente do ciclo de queda e, sobretudo, do espantoso gasto financeiro do Estado, este intocável segundo uma ortodoxia restrita a iniciados. A impressão que se tem é a de que a política acabou, não há repactuações possíveis sobre as formas de financiar os direitos, não há discussão sobre o papel do Estado como indutor do crescimento necessário para financiar o bem-estar. O tema do desenvolvimento humano é utopia. O povo só existe, na equação dos iniciados, para o trabalho precário, que garanta lucros maiores sem custos, compromissos ou responsabilidades. Buscava-se naturalizar um papel novo para o Estado, diferente de toda a experiência histórica brasileira, investimentos públicos e subsídios eram intervenções que maculavam o perfeito funcionamento dos mercados, e gastos sociais eram “populismo”, independentemente da sua obrigatoriedade constitucional. Tudo o que não fosse mercado era indevido. O governo era apenas gestor, um administrador de condomínio. E as decisões sobre o orçamento público, sobre sua disponibilidade ou não para pagar os juros arbitrados pelo comitê do mercado financeiro que tem assento no Banco Central, por exemplo, não eram tratadas como decisões políticas, mas técnicas. É pura desonestidade. Um dos principais comentaristas econômicos do Grupo Globo, com atuação em canais abertos e por assinatura, apresentador da rádio CBN , Carlos Alberto Sardenberg, é um doutrinador diário. Em todas as trincheiras do livre mercado ele está pela manhã, à tarde e à noite. Não há nada que mereça análise ou questionamento, nenhum fato parece extraordinário. Tudo cabe no seu evangelho dogmático. Só há uma verdade possível, e ela é perene, independentemente das circunstâncias. O importante é que não reste dúvidas ao público sobre a verdade definitiva que reúne a ideia de Estado como mal, a “nova matriz econômica” como a causa dos males do
Brasil, e o PT como o partido responsável pelo inchaço da máquina pública e pela afirmação de interesses pouco republicanos. Em 12 de maio de 2016, um dia antes de Michel Temer assumir a Presidência interinamente, o apresentador escreveu um artigo com as recomendações a serem cumpridas com rapidez e homenagens ao novo presidente do Banco Central, o executivo do Banco Itaú, Ilan Goldfajn. O recado do mercado estava dado. O governo Temer precisa demonstrar logo de cara que está empenhado na busca do equilíbrio das contas públicas. Não basta anunciar um programa de reformas de médio e de longo prazo, incluindo a da Previdência, embora isto seja necessário. A nova administração tem que mostrar ação praticamente imediata no combate ao déficit que vai herdar do governo Dilma. Tem como fazer. Aliás, há uma semana, o economista chefe do Banco Itaú, Ilan Goldfajn, divulgou um relatório com propostas e cálculos interessantes e viáveis. (…) A primeira coisa a fazer é um esforço de corte de gastos do governo federal. Dá pra fazer em três áreas: pessoal, custeio e investimentos . ²³ Depois de uma profunda recessão e da queda do produto, resultante entre outras razões do caráter recessivo dos cortes de gastos do ano anterior, o comentarista receita mais cortes. Não satisfeito, elege o agente do sistema financeiro como a inteligência capaz de melhor compreender e solucionar a questão fiscal do país, a gestão pública, o orçamento e a administração, atropelando inúmeros servidores de órgãos técnicos capacitados para tal função. Não é outra coisa que não um ataque ao Estado e às suas estruturas burocráticas pelos interesses diretamente saídos do mercado financeiro. É a imposição de uma visão de mundo própria de um segmento muito restrito e privilegiado da sociedade. E apesar do desastre econômico que a agenda do setor tem representado, desde 2015, não há espaço para reavaliar. Porque, na verdade, não se trata de recuperar a economia, mas de garantir os interesses das grandes corporações globais, notadamente as corporações financeiras, que atuam no mercado de capitais. Em outubro de 2017, sem perspectiva de recuperação, com investimentos patinando depois do suspiro de crescimento da supersafra do começo do ano, o apresentador e comentarista volta à carga, explicando de quem é a culpa, no artigo intitulado “Quem atrasou o Brasil”. A resposta é óbvia: o PT, especialmente a “nova matriz econômica”. Enquanto demais países faziam ajustes pós- -crise, “o Brasil de Lula e Dilma meteu-se na aventura da ‘nova matriz econômica’, que era o velho populismo latino-americano” ²⁴ . A crise econômica deixou parte da população insegura, procurando as explicações para a catástrofe que parecia não ter fim. A mensagem reiterada sobre os “erros do PT”, em todas as manchetes e colunas, com o veto total do debate entre as diferentes visões da crise, tem sido a estratégia da grande mídia. Nenhum economista acadêmico é chamado a opinar e debater em meios de grande circulação. Suas opiniões ficaram confinadas a programas marginais, a blogs de esquerda, e a algumas audiências públicas no Senado, já durante as discussões dos projetos do governo do golpe.
O empresariado, endividado ou não, apoiou o golpe e assimilou a doutrina do Estado mínimo, repetindo que o Estado era o peso em suas costas. Isso pode ser visto nas manifestações dos seus representantes no Congresso durante o processo de impeachment ou em pesquisas de entidades patronais, como as que são periodicamente realizadas pela Firjan. Nas pesquisas, a maioria se queixa do custo dos impostos e também dos juros, mas só atribuem a queda de lucratividade à carga tributária, e suas expectativas se vinculam diretamente às reformas do governo do golpe. O segmento parece não ser capaz de compreender o efeito multiplicador do gasto público, a desejável capacidade de uma regulação anticíclica que o Estado pode ativar, e a importância do financiamento de bancos públicos, como o BNDES. Apoiaria o novo regime fiscal e a reforma trabalhista porque ambos o beneficiam diretamente, garantindo que não haveria aumento de impostos e que o custo do trabalho podia ser rebaixado. Uma caça às bruxas estava instituída, e a fogueira era para o PT. Ninguém falava no que viria depois. Ninguém falava do PMDB, de Temer, do seu grupo político e de seu passado. Muito menos dos envolvimentos nas investigações da Lava Jato. Bastava o plano já anunciado pelo partido, em outubro de 2015, supostamente a data em que parte do partido havia se decidido a derrubar o governo, restando a Cunha decidir, de acordo com seus interesses, o momento certo para acolher o pedido de impeachment . A peça acusatória do processo foi redigida pelo ex-ministro da Justiça do governo de FHC e filiado ao PSDB, o jurista Miguel Reale Jr., em conjunto com sua pupila da USP, Janaína Paschoal, uma jurista de discurso neoconservador e comportamento descontrolado que representou um verdadeiro teatro em nome da responsabilidade fiscal, com uma retórica que sempre unia o gasto público acima da meta à corrupção. As suas manifestações públicas misturavam as duas coisas. Como nos jornais televisivos, quando a pauta criminal e de corrupção era seguida pela econômica, cujo foco era a irresponsabilidade fiscal na origem da crise. Apesar de ter recebido R$ 45 mil reais do PSDB para a formulação do parecer sobre o impeachment , a professora da USP parecia acreditar que o teatro para o qual foi paga para representar era real. Sua ignorância em relação à administração pública, à arrecadação, aos gastos obrigatórios e financeiros, à economia, à história e, sobretudo, ao sistema político, com seus partidos em maioria envolvidos em esquemas fraudulentos de financiamentos de campanha, levam a crer que, naquele cenário construído, ela era a única que parecia acreditar no processo, na sua legalidade e legitimidade, ignorando por completo o mundo real. Assim como Janaína, uma maioria se formou a favor do golpe, pensando que era efetivamente um processo de limpeza do país contra a corrupção, sem pensar no dia seguinte. Há muito de arrependimento no ar nos dias em que escrevo. O próprio Miguel Reale Jr. anunciou sua desfiliação do PSDB, em junho de 2017, porque o partido não deixou o governo apesar de todas as denúncias contra o presidente Temer e seu grupo. Uma vez conquistado o apoio incontestável da maioria da população, segundo pesquisa do Datafolha publicada no dia 19 de março, as
articulações em Brasília foram rápidas. Jantares e convescotes reuniam os golpistas – da oposição e da base do governo. Temer perdeu a vergonha de conspirar e passou a circular nesses eventos negociando os cargos e acordos que lhe dariam a maioria do Congresso para derrubar a presidenta legítima. Dilma, acuada, tentou uma última cartada, nomear Lula ministro da Casa Civil, num episódio que escancarou a participação ativa do Poder Judiciário no desenrolar do processo de impeachment . Lula era objeto de investigações e tinha escutas monitorando suas atividades. O juiz Sérgio Moro divulgou em TV aberta uma conversa entre ele e a presidenta, tratando de sua nomeação. Como ela enviaria o termo de posse para que ele pudesse usar “em caso de necessidade”, o que supostamente se referia a uma prisão, dado o clima de perseguição que havia se instalado depois de sua condução coercitiva, foi fácil atribuir a nomeação à intenção de proteger Lula com a prerrogativa de foro. Gilmar Mendes, o ministro de causas tucanas, indicado ao STF por FHC e costumeiramente articulado aos golpistas, cassou o direito da presidenta de nomear Lula, em decisão monocrática depois da qual saiu em viagem para Portugal. E assim foi feito. Gilmar começou um golpe judicial contra as prerrogativas da presidenta antes mesmo do golpe parlamentar. O STF omitiu-se, assim como se omitiu em relação ao crime cometido pelo juiz ao divulgar a escuta telefônica da presidenta. No fim do mês de março, o PMDB deixou o governo em bloco. Faltava a garantia do voto dos demais partidos da base para que se marcasse a sessão que acataria a abertura do processo, que ocorreria em 17 de abril. O placar da votação, de 367 votos favoráveis ao impeachment contra os 137 votos contrários, mostrou a fragilidade do sistema político e dos mecanismos de formação da base parlamentar. Não é preciso retomar a discussão sobre a forma de negociação dessa base, a fragmentação de partidos e a ausência de compromissos programáticos. A lealdade da base dependia das prebendas oferecidas pelo governo. Quando a destituição da presidenta se transformou em possibilidade real, a base iniciou negociações para continuar com cargos e benefícios (Miguel, 2016). As manifestações de deputados e senadores durante as votações na Câmara e no Senado são um retrato da desestruturação não apenas do sistema político, mas da política. Parlamentares da coalizão do governo repetiam o discurso fiscalista assimilado nos últimos dias, em contradição com os treze anos de apoio aos governos do PT. Era uma repetição dos mesmos termos que igualava a todos, base e oposição. Depois da votação que afastou a presidenta, veio a aceitação do processo pelo Senado e Temer, que havia conspirado intensamente no mês final, negociando cargos com a base de Dilma, assumiu o poder. O vice já havia abandonado a presidenta por meio de uma carta queixosa a qual deu publicidade em dezembro de 2015. Ele estava com Cunha desde antes da aceitação do pedido de impeachment pela Mesa da Câmara, seguramente desde o lançamento de Uma Ponte Para o Futuro, o programa que é a base do seu governo e que foi desenhado com o objetivo de promover profundas reformas, no âmbito fiscal e econômico. Sua rápida implementação sugere que o plano estava amadurecido e lançaria mão da alternativa Temer para ser executado, como de fato ocorreu. Talvez tenha sido concebido desde
2013, ou do ano eleitoral de 2014. Em retrospecto, a desordem de 2015 – com boicote liderado por Eduardo Cunha no Congresso, intensificação da Lava Jato, surgimento de movimentos de direita em redes sociais e uma campanha política sem precedentes comandada pelo Grupo Globo – não parece fortuita. O documento lançado pelo PMDB não tem a sua marca, que é a da negociação, do acordo, da fragmentação e da rebeldia, e, sobretudo, da ocupação do poder sem compromissos programáticos. É um manifesto ao excepcionalismo! É dramático, apelando para a suposta urgência da situação. Convoca a nação a produzir respostas em curto prazo com base em uma maioria circunstancial que se comprometa emergencialmente com o futuro. É um chamado ao sistema político para a ruptura da ordem. A receita preconizada é o Estado para poucos e as reformas que vimos ser apresentadas sem debates e, sobretudo, sem serem referendadas por um processo eleitoral. Todas as iniciativas aqui expostas constituem uma necessidade, e quase um consenso no país. A inércia e a imobilidade política têm impedido que elas se concretizem. A presente crise fiscal e, principalmente econômica, com retração do PIB, alta inflação, juros muito elevados, desemprego crescente, paralisação dos investimentos produtivos e a completa ausência de horizontes estão obrigando a sociedade a encarar de frente o seu destino. Nesta hora da verdade, em que o que está em jogo é nada menos que o futuro da nação, impõe-se a formação de uma maioria política, mesmo que transitória ou circunstancial, capaz, de num prazo curto, produzir todas essas decisões na sociedade e no Congresso Nacional. Não temos outro caminho a não ser procurar o entendimento e a cooperação. A nação já mostrou que é capaz de enfrentar e vencer grandes desafios. Vamos submetê-la a um novo e decisivo teste. O sistema político brasileiro deve isso à nossa população. ²⁵ A queda do governo Dilma Rousseff tem relação com a perda de popularidade, de credibilidade, com uma intensa campanha política e de mobilização popular levada a cabo por meios de comunicação e por movimentos que apareceram no cenário político naquele contexto, financiados para o ativismo digital em favor do impeachment . Mas, o que explica que o sistema político tenha se atirado ao golpe? Quais as motivações dos políticos que, em tese, dependem do voto, para destituir uma presidenta eleita? Por que os políticos da base aliada mudaram de posição, depois de terem sido financiados pela coligação liderada pelo PT? É certo que esses políticos mudaram sua agenda. Mas a presidenta também já havia mudado a política econômica, aceitando implementar um violento ajuste fiscal. Já havia inclusive negociado o modelo de partilha do pré-sal e anunciado uma reforma da Previdência. Como explicar o golpe? O empenho da oposição diante da possibilidade de 24 anos de governo do PT não explica, a não ser se consideramos que a agenda da oposição não ganharia eleições. Havia um processo de inclusão e de distribuição de renda em curso. Por um lado, ele foi responsável pelo alinhamento eleitoral de que falou Singer (2012). Por outro, ele aumentou o custo do Estado, mediador da transferência de renda, por meio do sistema previdenciário, dos direitos
básicos à saúde e educação e, em menor parte, do programa Bolsa Família. Um programa como o sustentado por parlamentares do PSDB e do DEM, de diminuição das atribuições do Estado, ou como o Uma Ponte para o Futuro, formalmente do PMDB, não ganharia eleições democráticas. Daí a articulação dos segmentos representativos do capital corporativo e financeiro para deslegitimar o governo do PT com os instrumentos disponíveis. É possível que o PT estivesse disposto a negociar muita coisa, mas havia sinais de que, depois da crise de 2015, Dilma pretendia resgatar algum protagonismo do Estado. No apagar das luzes, em dezembro, Dilma substituiu Joaquim Levy por Nelson Barbosa, de perfil desenvolvimentista. Segundo o editorial de O Globo , o país devia se preparar para novos riscos, uma vez que a substituição de Levy significava que a ministra era a própria Dilma. Também justificava o fracasso estrondoso de Levy no comando da pasta, afirmando que ele nunca havia conseguido exercer de fato o comando do ministério. ²⁶ Em retrospecto, é errado supor que o empresariado brasileiro estivesse dividido entre industrialistas, cujos interesses se aproximavam da agenda Dilma de 2011/12, e o setor financeiro. Ambos os segmentos, produtivos e financeiros, estiveram unidos ao golpe. A chamada “agenda Fiesp”, que Dilma procurou estabelecer, com a diminuição dos juros, e o uso dos bancos públicos para derrubar o spread bancário determinado pelo monopólio financeiro, e a consequente desvalorização do real, rapidamente mostrou que não tinha apoio, ou seja, não havia nenhum setor comprometido com a indústria, a produtividade e a competitividade das exportações de produtos de maior valor agregado. A elevação do consumo interno nos anos entre 2006 e 2010 provavelmente desviou a demanda para a indústria estrangeira, tornando os empresários brasileiros importadores e, quando muito, maquiadores. Queriam, de fato, o real apreciado e os juros altos, para captar empréstimos na moeda estrangeira e se beneficiar de importações baratas e do mercado de títulos públicos com boa remuneração. Como esclareceu Belluzzo, parte dos lucros das empresas é, atualmente, obtido em operações financeiras (2016). A indústria nacional não foi alavancada pelo aquecimento da demanda e, na sequência, os porta-vozes da elite empresarial voltaram ao discurso do terror inflacionário, quando a moeda desvalorizada prejudicava as importações. E mesmo quando receberam desonerações, ao longo dos anos entre 2012 e 2014, sustentaram o discurso que atribuía a inflação ao desajuste fiscal. Condenaram o governo por gastar e pelo aumento da dívida pública, quando boa parte do desequilíbrio foi resultado das desonerações em seu benefício. Ao final do processo, aderiram à campanha pelo impeachment quando Dilma, diante das cobranças em relação ao orçamento deficitário para 2016, decidiu propor a volta da contribuição sobre operações financeiras (CPMF), em vez de cortar mais gastos. Temer e o PMDB eram a alternativa para dar uma feição de normalidade institucional ao golpe. A fragilidade do sistema político de balcão ajudou, não apenas na garantia de uma maioria de ocasião, como propôs o programa Ponte para o Futuro, como na criminalização da política. Um bom fundamento para uma interesseira demonização do Estado. Não é preciso muita teoria para compreender que a democracia eleitoral, por pouco que
signifique em termos de participação política e soberania popular, tornou-se incompatível com a agenda econômica hegemônica, traçada por operadores de mercado (sobretudo, financeiro) e reproduzida nas escolas de formação de administradores e burocratas. Agenda que traduz os interesses e necessidades competitivas das grandes empresas globais, para as quais o Brasil é um amplo mercado, dotado de um generoso orçamento público, capaz de garantir os ciclos de valorização do capital – não apenas por meio da dívida, mas pela operação e exploração de serviços –, além de um reservatório mineral e energético. Para completar, nada como a mão de obra com preço competitivo globalmente, o que seria garantido pela reforma trabalhista. No programa Ponte para o Futuro, o diagnóstico sobre a recessão iniciada em 2014 aponta para a crise fiscal, o aumento do gasto acima da renda que gerou déficits nominais de 6% em 2014 e 9% em 2015 e uma trajetória “insustentável” da dívida pública. Após resgatar a memória do crescimento do país no século XX, desvirtuando a verdade ao não apontar os diferentes ciclos e o explosivo crescimento do período de industrialização modernizadora, entre os anos 1930 e 1980, sugere que o programa que se apresenta irá reproduzir o crescimento médio anual de 2,5% a.a. Para isso, seria necessário reconstituir o Estado brasileiro, para que fosse instrumento de desenvolvimento. Entretanto, de acordo com o programa, o Estado moderno não é aquele capaz de investir – como em todos os casos históricos de capitalismos tardios, incluindo a China –, mas aquele que mantém instituições do Estado de Direito e economia de mercado. O maior obstáculo ao crescimento, segundo o documento, reproduzindo o discurso hegemônico, é o endividamento do Estado. O gasto público seria responsável pelo aumento da inflação, dos juros, das incertezas e, possivelmente, dos impostos, levando à pressão cambial e à retração de investimentos. Nenhuma dessas relações é explicada, embora todas sejam pouco convincentes. A questão da relação entre juros e inflação é absolutamente controversa, isto sem considerar que o aumento da taxa de juros no ano de 2015, visando diminuir a inflação por meio da restrição monetária, mostrou-se absolutamente inócuo, pois a inflação não era resultado de excesso de demanda. Na verdade, a relação entre dívida pública e crescimento econômico é historicamente inversa ao que propõe o discurso atual de ajuste. O Brasil cresceu e desenvolveu infraestrutura e tecnologias com participação majoritária de investimentos do Estado. É claro que o gasto público se traduz em crescimento nas circunstâncias em que a dívida não serve ao rentismo, e sim ao investimento. Apesar de reconhecer o gasto financeiro do Estado brasileiro como um desafio estrutural – na medida em que se reproduziu nas últimas décadas, sem diminuição da dívida mesmo nos períodos de cumprimento de metas de superávit primário – o programa aponta para um ajuste recessivo, com cortes de gastos e privatizações. Ao longo do texto, a aguda crise fiscal que se instalou é atribuída à progressiva elevação das despesas primárias. Elas é que desencadeiam, em tese, a desconfiança e as taxas de juros que imobilizam a economia.
Para o observador da realidade, os clichês econômicos da mídia, que se reproduzem no documento do PMDB, são uma falsificação inquietante. A fraude da informação e o abandono do jornalismo não são engano, falta de formação ou ideologia, mas representam a consecução de um objetivo preconcebido: diminuir o Estado, abrindo mercados de serviços e perpetuando desonerações fiscais. Nos anos de 2014 e 2015, a pauta neoliberal voltou ao Brasil com força, por meio de diferentes formas de comunicação e propaganda. O programa do PMDB é uma tradução dessa maré. E se o passado do partido não parece se adequar ao novo ideário, são os cargos na linha de sucessão da Presidência que podem explicar o surgimento dessa agenda na agremiação de feição fisiológica e patrimonialista. Diante do diagnóstico apresentado no programa, o receituário é o ajuste fiscal. Dilma estava fazendo um ajuste grande com consequências profundamente recessivas, agravando muito a situação fiscal do país em razão da queda da arrecadação. Talvez por isso mesmo, porque naquele contexto o gasto público não cabia no orçamento, o programa golpista pedia mais, um esforço legislativo para eliminar desequilíbrios estruturais, mudando leis e até normas constitucionais, sem, é claro, aumentar os impostos, já muito elevados no Brasil nos últimos 25 anos. Uma realidade que, mais uma vez, oculta nosso mais grave problema estrutural desde o Plano Real: as altas taxas de juros, ou o escoamento de parte do nosso excedente para remunerar o capital financeiro, sem retorno em investimentos. Diferentemente do discurso da mídia, que tinha como finalidade atingir o grande público e deslegitimar o governo, criminalizando gasto em geral, mas especialmente a gestão “populista” do PT, o documento do PMDB foi direto ao ponto do golpe ao indicar os direitos previstos na Constituição como a fonte estrutural da elevação do gasto acima do aumento do PIB. Era preciso mexer ali.
Adiante, com o golpe em curso, a mídia incorporaria essa mesma agenda. “O crescimento automático das despesas não pode continuar entronizado na lei e na Constituição”, afirma. E a questão fundamental dentro dessa lógica “provém da previdência social” (PMDB, 2015, p. 7). A primeira prescrição é acabar com as vinculações constitucionais do orçamento. Um novo regime fiscal exige um “novo regime orçamentário, com o fim de todas as vinculações e a implantação do orçamento inteiramente impositivo” (PMDB, 2015, p. 9). Ele deve ter autonomia e estar livre. Isto significa acabar com os mínimos constitucionais de saúde e educação, exemplo dado no texto, ou com a previsão de vinculação dos royalties. Imaginemos uma bancada de deputados financiados por grandes corporações de educação privada, articulados com bancadas ligadas a empresas de planos de saúde, negociando o orçamento dos setores em questão. O orçamento deveria, ainda, acabar com as indexações de salários e benefícios. Essa prescrição tem a finalidade de desvincular benefícios do salário mínimo, justificando a medida para conter a injustiça com os mais pobres. No entanto, a maior parte dos beneficiários é a população pobre que recebe o salário mínimo, portanto, a desvinculação afeta diretamente o poder de compra dessa população, que teve seu padrão de consumo elevado nos últimos anos justamente em razão da valorização real do salário mínimo. O ataque, em seguida, se dirige aos programas de governo, por meio da previsão de orçamento de base zero. A cada ano, todos os programas seriam avaliados e discutidos, podendo ser extintos. Para garantir o bom cumprimento dessa nova estrutura orçamentária, o programa propõe a criação de uma Autoridade Orçamentária incumbida de avaliar programas e gastos com o objetivo de garantir o equilíbrio fiscal. Como a política monetária, que hoje está nas mãos de agentes do mercado financeiro, a proposta subordina o orçamento a um poder autônomo em relação à ordem política democrática. Na sequência, estabelece a necessidade de ajuste no sistema de aposentadorias, a determinação de uma idade mínima e a desindexação dos benefícios. A justificativa é a mudança da pirâmide demográfica. A questão dos juros é tratada como um resultado do problema fiscal que gera a insegurança dos agentes financeiros. Não condiz com a história de dependência de capitais externos, mas, curiosamente, ao tratar o problema como estrutural, que perdura ao longo das últimas décadas, dissocia a questão da controversa fórmula de combate à inflação. De acordo com o texto, “este é um tema ainda não totalmente compreendido”. Além disso, questiona as operações de swap cambial , e a autoridade de um órgão não eletivo de impor à sociedade este custo (PMDB, 2015, p. 14-15). Essa é a crítica mais racional contida no programa, mas não teve aplicação, permanecendo a autoridade autônoma do Banco Central, sem mandato político. O documento trata do crescimento como um imperativo, o Brasil precisa aumentar sua renda per capita. Mas tudo o que propõe é recessivo e tem por efeito diminuir o principal motor de crescimento estabelecido no ciclo de governos do PT, o consumo das famílias. Considera que o ciclo movido pelos ganhos do setor externo e do consumo das famílias se esgotou e o novo período de crescimento deve se apoiar no investimento privado, e em
ganhos de competitividade do agronegócio e da indústria. Contudo, se consideramos que Dilma cumpriu uma agenda de desonerações e subsídios a fim de preservar a lucratividade das empresas e manter a taxa necessária de investimentos para o crescimento sustentável e não obteve resposta, não se pode fugir à percepção de que as empresas não respondem aos imperativos da razão política e da necessidade social. As desonerações aprofundaram o problema fiscal e impediram o governo de realizar investimentos diretos, forçando-o a buscar saídas em programas de concessões. Mas o programa do PMDB repete essa estratégia, recomendando uma reforma tributária que desonere investimentos, concessões de serviços e privatizações. Também prevê a flexibilização das leis trabalhistas, apontando para a prevalência das negociações sobre a legislação. Parte do programa está na base das medidas do governo do golpe, presidido por Michel Temer. O Novo Regime Fiscal não transformou ainda o orçamento em peça de base zero e sem vinculações, como preconiza o programa Ponte para o Futuro, mas estabeleceu o seu congelamento por 20 anos. Foi justificado pela necessidade de alcançar o equilíbrio fiscal de longo prazo. Por meio de reforma da Constituição, estabeleceu que os gastos públicos serão congelados, reajustados apenas pela inflação. O congelamento atingirá somente os gastos primários, as despesas financeiras permanecem livres, bem como o Banco Central, que dispõe dos recursos públicos segundo suas decisões, sem prestar contas ao povo ou a qualquer ente representativo. Os “técnicos” do mercado que comandam o Banco Central continuam controlando o ritmo do desinvestimento do país. Tem sido assim desde 1994, com o Plano Real, passando pela ditadura do regime de metas de inflação. O resultado não é desenvolvimento, mas um país refém de uma dívida sistêmica de custo muito elevado e prazos curtos. O regime fiscal do governo do golpe é uma medida sem precedentes no mundo, e tirou dos próximos cinco presidentes a iniciativa do gasto público e do investimento, constrangidos pelo teto, sem que as vinculações sobre este valor fixo tenham sido alteradas. Mas o problema não são as vinculações, e sim o teto, diante das necessidades de investimentos e de crescimento da economia brasileira. O Estado é um player central e deprimir sua capacidade de investimento em todas as áreas é condenar o país à recessão permanente, ou ao baixo crescimento, às instabilidades do mercado e às necessidades de valorização do capital privado. Se o PIB crescer nos próximos 20 anos nada será convertido em investimentos. Se a exploração do pré-sal garantir recursos vultosos, também estes não se traduzirão em desenvolvimento e, na prática, sua vinculação às áreas de saúde e educação, como estabeleceu Dilma, deixa de ter efeito. Ou seja, a população pode crescer, as necessidades podem aumentar, mas os serviços sociais estarão estagnados e em deterioração por duas décadas, garantindo o aumento do mercado desses bens, embora um mercado muito pouco elástico. O teto impede, da mesma forma, que o Estado amplie sua atuação e se transforme no promotor da demanda necessária para um novo ciclo expansivo. Quem ganha de fato são as corporações que têm certeza de que não haverá elevação de impostos, mas, em caso de crescimento, espaço para maiores desonerações.
O estabelecimento dessa medida, de natureza constitucional, contou com a aprovação das duas casas legislativas em dois turnos de votações, com maioria de três quintos de votos. Foi uma vitória avassaladora do golpe, em dezembro de 2016, menos de quatro meses depois do impedimento da presidenta pelo Senado. Uma tramitação de rapidez extraordinária para uma medida esdrúxula, que retirava poder do Estado e, portanto, da política. Se considerarmos que um ano antes a presidenta ainda tinha base parlamentar, o elenco de razões que explicam um Congresso convertido a uma nova dogmática nunca antes mencionada, e muito menos debatida, é um enigma. Só duas razões conhecidas podem explicar o comportamento de deputados e senadores. A primeira diz respeito ao despreparo técnico e baixíssima formação dos representantes, o que facilmente se comprova assistindo aos seus debates. A repetição de clichês midiáticos sobre os quais não existem argumentos e a dedicação a pautas únicas de caráter conservador e distantes do debate sobre o desenvolvimento são a normalidade no Congresso, especialmente na Câmara. Essa fragilidade transforma grande parcela dos parlamentares em marionetes das lideranças de bancadas. A lógica é a necessidade de manutenção da cadeira na próxima eleição, o que exige financiamento e vínculo estreito com os caciques. A segunda razão, indissociável da primeira, é o sistema de financiamento eleitoral que envolve alto grau de corrupção e patrocínio de bancadas por meio de empresas. O golpe mostrou a pior das características da democracia brasileira, qual seja a desqualificação e ineficácia política do sistema de representação, funcional apenas com relação à disputa eleitoral. Da mesma forma, os partidos reduziram seu papel à agência de poder. Mesmo com traços de ideologia como reminiscências, tudo é negociável. Entre os novos partidos, qualquer identificação a um projeto político é uma excentricidade. Para o eleitor, tudo faz parte de uma mesma massa indistinta. O debate político é pobre, radical, e informado pela mídia, que retomou, nos últimos anos, o controle da pauta política. Além do veto do uso do orçamento como instrumento de desenvolvimento por meio do Novo Regime Fiscal, o governo do golpe também atuou para a extinção da taxa de juros diferenciada do BNDES, a TJLP. Sob o argumento de que o Estado subsidiava empresários com custo para o contribuinte, mais uma vez contou com o apoio da mídia para aprovar, por meio de Medida Provisória, a extinção da taxa. E, no cenário em que a economia não dava respostas e a recessão se aprofundava, o governo retirou R$ 100 bilhões do BNDES em 2016, R$ 50 bilhões em 2017 e anunciou que retirará mais R$ 130 bilhões em 2018. Os valores são devidos ao Tesouro, que capitaliza o Banco e recebe em prazos suficientes para gerar um ciclo de investimentos. O Tesouro (impostos) não dá dinheiro ao BNDES, mas é dessa forma que a mídia e economistas pró-mercado tratam a questão. Com essas antecipações de pagamentos, o BNDES foi levado à impotência como banco de fomento ao desenvolvimento. Os meios de comunicação repetiram que subsídio era favorecimento, ou, na linguagem didática, um “capitalismo de amigos”, relacionado com apadrinhamento, proteção e corrupção. Como se não fosse instrumento de política econômica. Afirmaram inúmeras vezes que a política das campeãs nacionais se resumia a este círculo patrimonialista de favorecimentos, em
prejuízo dos contribuintes. As campeãs, afinal, são as empresas brasileiras globais que os governos do PT pretenderam estimular, hoje reconhecidas por suas vinculações com o sistema de financiamento eleitoral, como a Odebrecht e a J&F, e tiveram as suas operações deprimidas. Nunca se informou a população sobre a necessidade de expandir empresas globais brasileiras. Afinal, são elas que podem nos trazer a moeda internacional que necessitamos para satisfazer um padrão de consumo tecnológico que importamos. Com a Lava Jato e o golpe, o Brasil saiu muitíssimo menor no cenário global da competição capitalista. E ainda há que considerar a questão da Petrobras, e do pré-sal brasileiro. Em síntese, é possível dizer que, no atual cenário, o Estado brasileiro e seu governo não têm soberania sobre a política monetária, sobre o orçamento da União e não podem fazer política industrial com seu banco de desenvolvimento. É um Estado engessado. Para que serve uma democracia se os instrumentos de articulação de projetos para o bem-estar coletivo, objeto da negociação e da disputa política, já não estão mais nas mãos dos governos? Em uma comparação básica, hoje, o Copom do Banco Central tem total soberania sobre o gasto financeiro que impõe ao Tesouro e o governo não tem nenhuma, ou quase nenhuma. Se o que estamos tratando é o uso de parte do excedente da produção social (a parcela dos impostos) e a forma como será alocada e distribuída na forma de bens, serviços, renda ou investimentos, é claro que tem alguma inversão muito séria na relação entre Estado e sociedade civil, em prejuízo da democracia. O Estado, sem soberania de fato, está dominado por uma pequena fração da sociedade civil, a empresarial. Essa relação precisa ser estudada e enfrentada, porque os pactos constitucionais democráticos estão sendo alterados em função dos princípios e prioridades da empresa capitalista. E não se pode falar sequer em empresas nacionais, com vínculos e projetos medianamente associados ao desenvolvimento social local ou regional. Estamos falando da soberania das empresas globais, contra o que nem mesmo as maiores empresas brasileiras conseguiram proteção. Sob este prisma, a conclusão é que vivemos um novo colonialismo. Arranjado o mecanismo legal para impedir o Estado de manejar os recursos, o plano do governo se completava com a retirada de direitos, impositiva pelos interesses que apontei e, complementarmente, pelo próprio teto de gastos. A progressão dos gastos previdenciários, por exemplo, considerandose uma população em processo de envelhecimento, é natural, literalmente. Se há um aumento da proporção de velhos, ou haverá uma elevação do percentual da riqueza distribuído entre estes indivíduos ou um empobrecimento da população de velhos. A forma de financiamento das aposentadorias neste novo cenário necessita profundo estudo e ampla discussão na sociedade. Se será paga com mais anos de trabalho, com aumento de contribuições, com aumento de impostos ou com fórmulas mistas. Mas já não há ambiente democrático, nem discussão. Impõem-se fórmulas. Neste caso da Reforma da Previdência, entretanto, o governo do golpe encontrou obstáculos intransponíveis. E essa discussão terá que ser feita em algum momento.
O projeto de reforma foi concebido pelo secretário da Previdência, Marcelo Caetano, em 2016. Quando apresentado na forma de PEC, a imprensa alternativa fez circular os compromissos da agenda do secretário entre os meses de julho e dezembro. A maior parte dos compromissos e reuniões foi com representantes de fundos de pensões privados e do setor financeiro. Não há nada mais transparente quanto à relação entre a pauta empresarial do mercado e as reformas do governo do que a agenda de compromissos do secretário. O projeto de privatizar parte da poupança das aposentadorias futuras e excluir a maioria da dignidade na velhice está ali. A aprovação da PEC 287/2016 precisava de três quintos de votos nas casas legislativas. Não aconteceu. Foi uma derrota do governo diante de seus patrocinadores empresariais. Mas foi uma derrota ainda maior da grande imprensa, que pautou a reforma, criou cronogramas e expectativas, e tratou do tema diariamente por mais de um ano. Essa reforma talvez fosse de fácil digestão se não envolvesse os servidores públicos, com alguma capacidade de mover a opinião pública em favor dos direitos, e os interesses dos próprios parlamentares. O aumento da idade mínima e do tempo de contribuição certamente foi compreendido por grande parte da população como uma conta a ser paga injustamente, mas somente nesta reforma a reprodução das críticas por meio de blogs e redes sociais foi mais ampla, formando uma corrente contrária à sistemática campanha das empresas de comunicação. A PEC do teto de gastos e a reforma trabalhista não contaram com resistência comparável. O resultado foi a postergação da reforma, o abrandamento dos critérios de aposentadoria e a promessa da negociação de regras de transição. Ainda assim, o governo não conseguiu os votos necessários para mais uma reforma constitucional, e o ano eleitoral de 2018 começou aumentando a dificuldade para a sua aprovação. A desistência veio com a criação de uma nova agenda midiática: a segurança pública, também fracassada. Não houve dificuldade para a aprovação de uma reforma trabalhista com os princípios inscritos no programa Ponte para o Futuro. Entre as mais de cem alterações na legislação em vigor destacam-se a prevalência do negociado sobre o legislado e a aprovação do trabalho intermitente. Na prática, os patrões ganham poder para negociar jornada e salários independentemente da legislação, inflexível apenas em relação ao direito a férias e ao décimo terceiro salário. A contratação de trabalhadores por períodos intermitentes significou a possibilidade de empregar trabalhadores que ganharão menos do que o salário mínimo e não poderão pagar a contribuição previdenciária. Essas novas condições de precarização foram aprovadas com a justificativa de que aumentariam as contratações de trabalhadores. Após a reforma, entretanto, houve uma onda de demissões e reestruturações. Empresas de educação, do setor financeiro, e redes de varejo demitiram e retiraram pagamentos de horas extras por meio de alterações da jornada. Verificou-se uma expansão do trabalho por conta própria nas pesquisas que se seguiram, o que foi responsável por um pequeno recuo da taxa de desemprego, que permanece em patamar elevado. Antes da reforma, a terceirização em todas as áreas de uma empresa também havia sido aprovada, significando o rompimento das relações diretas entre empregados e empresa, e, de acordo com os dados sobre esse modelo de contratação, ele produz maior rotatividade no emprego e menores salários.
Dos pontos positivos do projeto do PMDB, como a questão da restrição da autonomia da autoridade monetária e o investimento em ciência e tecnologia, tudo foi abandonado. O golpe significou a permanência por mais um ano de taxas de juros escandalosamente altas e o corte sistemático de verbas da ciência e tecnologia. O produto caiu mais 3,6%, em 2016, configurando a maior depressão da nossa história, com grave impacto sobre a arrecadação de impostos e prestação de serviços públicos, além do aumento do déficit e da dívida pública. O teto de gastos implantou-se a partir de um orçamento já rebaixado pela depressão. O cenário é de fragilidade econômica, mas não só. O projeto político que se implementa significa colocar nas mãos dos interesses e decisões dos investidores privados o futuro do país. O Estado abriu mão, sem disputa, do protagonismo político, da decisão sobre um projeto de longo prazo de desenvolvimento econômico e social. Setor fundamental para o projeto de desenvolvimento no qual apostaram os governos do PT, a cadeia de petróleo e gás foi afetada tanto pela queda dos preços internacionais, quanto pelo conflito político. Como as demais commodities, o petróleo sofreu uma queda abissal de seu preço em 2014. Entretanto, houve uma decisão política por trás da derrubada do preço, uma vez que resultou de uma decisão do cartel internacional que reúne os principais produtores, a Organização dos Países Exportadores de Petróleo (Opep), de não diminuir a produção para conter os preços, decisão que seria tomada apenas no início de 2016. A estratégia de manter a superprodução foi justificada como uma forma de impedir a concorrência do gás de xisto dos Estados Unidos. No entanto, ela ocorreu depois do grande acordo de fornecimento de gás celebrado entre a Rússia e a China, em maio de 2014, que permitia ao governo russo sair de uma situação econômica grave diante das sanções impostas pelos Estados Unidos e UE em razão do conflito da Crimeia, reocupada pela Rússia. Os preços caíram 60%, entre junho de 2014, quando o barril era cotado a U$ 114, e janeiro de 2015, quando chegou a U$ 46. Neste período, houve uma queda geral dos preços internacionais, mas o petróleo cairia ainda mais, chegando aos U$ 30 em janeiro de 2016. Tal queda teve efeitos nefastos sobre economias de países que, de alguma forma, desafiavam ou confrontavam o projeto de hegemonia internacional dos Estados Unidos, como a Rússia, a Venezuela e o Brasil. A autonomia energética da América Latina, a expansão dos investimentos na região e a parceria com a China e com o Brics representavam uma mudança geopolítica com impactos sobre a supremacia norte-americana. A Petrobras estava extremamente alavancada em 2014, com inúmeros investimentos em andamento, tanto na construção de novas refinarias, quanto na exploração do pré-sal, incluindo contratos de sondas e construção de plataformas de exploração. O plano de negócios anunciado para o período entre 2014 e 2018 era ambicioso, prevendo o investimento de mais de R$ 220 bilhões. Com os preços elevados desde 2011, o objetivo era ampliar investimentos para aumentar a produção, garantindo uma fonte extraordinária de recursos a serem aplicados em projetos de desenvolvimento. A exploração do pré-sal parecia garantir um futuro próspero para o país. Além de movimentar uma grande cadeia produtiva, e transformar a Petrobras em uma das cinco maiores empresas integradas de energia do mundo, o pagamento de royalties injetaria em estados e
municípios produtores recursos substanciais. Já as parcelas que caberiam à União seriam destinadas a investimentos em saúde e educação, projetandose aplicações de aproximadamente R$ 500 bilhões nos próximos 30 anos. Que diferença da política do teto! E o pré-sal ainda está lá, garantindo recordes de produção todos os dias. Do ponto de vista político, entretanto, um salto econômico e social como o projetado com a receita de royalties significaria um ativo impossível de ser confrontado pela oposição. Não à toa a Petrobras tornou-se objeto do principal conflito que desencadeou a crise política. A partir da Lava Jato e da queda dos preços internacionais, o plano de investimentos foi cortado. Em seguida, obras foram paralisadas e contratos suspensos, tanto pelas dificuldades financeiras da Petrobras e das empresas envolvidas na Lava Jato, quanto pelas dificuldades jurídicas dessas empresas, quando consideradas inidôneas. Como o setor do petróleo representa em torno de 13% do PIB, o impacto da queda dos preços internacionais e da crise da Petrobras, segundo analistas, pode ser calculado entre 2% e 2,5% na queda do PIB, em 2015 . ²⁷ É importante destacar que a Petrobras tinha um plano arrojado de investimentos, abrindo mão do lucro imediato para perseguir o objetivo da produção de 4,5 milhões de barris por dia em 2020. No cenário de preços altos anterior a 2014, o projeto era sustentável. Com a queda dos preços, a empresa se viu com um endividamento de curto prazo difícil de manejar. Já em 2014, diminuiu os investimentos previstos. Mas a narrativa da grande imprensa foi a de que o PT havia quebrado a empresa, tanto por uma gestão temerária, que a endividara, quanto pelo uso da empresa como fonte de propina e financiamento de partidos. A Lava Jato mostrou os fatos. A empresa era, na realidade, uma fonte generosa de recursos para partidos da base aliada e para o próprio PT. Mas nada disso tem relação com a crise da empresa e de todas as empresas do setor de petróleo do mundo. A magnitude dos valores é diminuta diante do tamanho da empresa e de seus investimentos na economia do país. Mas foi assim que a população foi informada sobre a crise da estatal. Três pontos chamam a atenção pela falácia do discurso. O primeiro de se imaginar que o problema da corrupção em contratos públicos é brasileiro e se deve exclusivamente a um governo. Trata-se de um problema global. As empresas compram os legislativos no mundo todo, patrocinam partidos, fazem lobby, constituindo uma prática do capitalismo global que vem minando a democracia liberal. Em outros países, as pessoas envolvidas em irregularidades são punidas e as empresas e seus negócios permanecem. O segundo ponto diz respeito à atribuição de nosso patrimonialismo oligárquico, essa espécie de tradição brasileira, ao PT, que chegou anteontem no poder. É contar com a pouca memória e com a desinformação total da população. O terceiro é o silêncio em relação à crise global do setor, a sonegação da informação, a mentira. O jornalismo brasileiro praticado pelos grandes meios de comunicação no período de gestação e execução do golpe teve tom de estelionato. As editorias se transformaram em órgãos partidários, selecionando a pauta panfletária a serviço do golpe. Os custos para a Petrobras e para o Brasil são incomensuráveis. O “desinvestimento”, ou a venda de ativos, vem diminuindo a empresa em setores lucrativos e de fundamental importância
para a regulação de preços, como o da distribuição de gás. Mas este foi precisamente um dos objetivos centrais do golpe, diminuir a importância e o poder da Petrobras, da produção brasileira, e da parceria que a empresa estabeleceria com os interesses chineses a partir da exploração do campo de Libra. Depois do golpe, além de ampliar o programa de desinvestimento, a Petrobras, sob a presidência de Pedro Parente, inverteu a estratégia anterior de estímulo à indústria nacional. Para dar continuidade às obras do Comperj, um polo de refinarias que estava sendo construído em Itaboraí, no Rio de Janeiro, a empresa convidou 30 empresas estrangeiras para participar da licitação das obras, anteriormente sob a responsabilidade da construtora Queiroz Galvão. A justificativa era a corrupção que havia marcado os negócios da estatal com as empresas nacionais. Também a compra de plataformas foi desviada para o exterior, o que compromete o setor da indústria naval, alavancado a partir do governo Lula exatamente pela preferência de investimentos na produção nacional, com impactos no desenvolvimento industrial e sobre o mercado de trabalho. O setor perdeu quase 50 mil postos de trabalho entre 2014 e 2016, segundo o Sindicato Nacional da Indústria de Construção e Reparação Naval e Offshore (Sinaval ) ²⁸ . O plano de desinvestimento da empresa para 2018 é de U$ 21 bilhões, incluindo a venda de 51% das ações da BR Distribuidora. A Petrobras e a riqueza do pré-sal eram instrumentos de desenvolvimento nacional que o governo do golpe loteou aos interesses privados. Não há planos de desenvolvimento no Brasil de hoje que não o de esperar pelas decisões e desejos de investidores privados e, é claro, atender às suas exigências, como no caso da desoneração de impostos às empresas do setor de petróleo, uma renúncia fiscal escandalosa aprovada pelo Congresso nacional no ano de 2017. Que sorte de racionalidade pode explicar o que o Congresso Brasileiro está fazendo com o país? Que espécie de relação entre empresas e Estado foi capaz de destituir o povo de representação? Em todo o processo que venho narrando, não houve discussões públicas, com entidades de classe, organizações da sociedade civil e especialistas das diferentes áreas da academia. Nada. Nas reformas da educação não houve professores envolvidos. Como explicar esse divórcio absoluto entre o Congresso e a sociedade? Durante o ano de 2016, o governo do golpe estava ameaçado por uma ação de cassação da chapa Dilma/Temer de 2014. Diante dos indícios de financiamento irregular da campanha, o PSDB, por meio de seu presidente e candidato derrotado, o senador Aécio Neves, entrou com o processo no Tribunal Superior Eleitoral logo após as eleições. Arquivado em março, o PSDB recorreu, e depois de meses de manobras e pedidos de vistas, o processo foi reaberto em outubro de 2015. A ação foi uma das iniciativas que demonstravam a disposição da oposição de derrubar a presidenta por quaisquer meios possíveis. Uma vez que a solução do impeachment foi coordenada no Congresso, o processo no TSE – apoiado por 5 votos em outubro de 2015 – teve como resultado a absolvição da chapa, em 2017, apesar das provas de que a campanha fora irrigada com recursos da Odebrecht desviados ilegalmente de contratos da Petrobras. O ministro Gilmar Mendes, defensor do golpe e ferrenho opositor da Lava Jato, afirmou
que os recursos usados pelos partidos eram de caixa 1 e não havia provas de que teriam origem em propinas. Presidente do TSE, o ministro que havia votado pela reabertura do processo, julgou em 2017 para salvar o governo Temer. Aparecia, então, uma clara divisão entre o campo político e a Lava Jato. As denúncias de ilícios não pararam de aparecer após a mudança de governo. O governo sangrou, e o campo golpista se desintegrou. De um lado, o Judiciário moralizador e o Grupo Globo, de outro, a equipe de governo e sua maioria no Congresso, lutando pela salvação de mandatos e da própria liberdade. O auge desse processo aconteceu em maio de 2017, quando um colunista do jornal O Globo noticiou o acordo de delação de Joesley Batista e os subsequentes flagrantes gravados envolvendo diretamente o presidente Temer. Imediatamente, comentaristas da Globo News e CBN começaram a cobertura sem trégua sobre os ilícitos do presidente. As imagens dos flagrantes e o áudio de uma conversa ente o empresário e Michel Temer começaram a circular. A mídia falava em renúncia, como se fosse possível destruir por golpe de propaganda os grupos corruptos que colocaram no poder. Nitidamente, o Grupo Globo procurava se distanciar do presidente e resguardar seu discurso moralizador, afinal, a credibilidade da qual dependia o programa do mercado estava permanentemente em xeque pelo apoio a um governo de tantos e tamanhos escândalos. O governo não caiu a golpes de mídia, mas o Procurador Geral da República, que deixaria o cargo em setembro de 2017, igualmente desmoralizado pela colaboração com o golpe, decidiu que era preciso denunciar o presidente. Duas denúncias baseadas nas provas obtidas por meio da colaboração do megaempresário dos frigoríficos foram encaminhadas à Câmara, que poderia aceitar ou não a investigação do presidente pelo STF. Caso fossem aceitas, Temer seria afastado do cargo. A Câmara rejeitou as duas denúncias antes de outubro de 2017. Protegeu o presidente. Estava definitivamente exposta a fratura entre o discurso midiático moralizador e os atores diretos do golpe. A autodefesa de grupos políticos clientelistas e corruptos descortinou, também, a incapacidade das oligarquias tradicionais de apresentarem um nome viável eleitoralmente para a disputa presidencial de 2018. Para manter a aparência da normalidade democrática, as eleições de 2018 sempre estiveram preservadas no discurso dominante. Mas era preciso chegar até lá com um representante do mercado que pudesse manter o programa de governo implantado contra a maioria eleitoral. Entretanto, na medida em que indícios e provas da corrupção do grupo que ascendeu ao poder se tornavam públicos, e que a economia não saía da depressão, o expresidente Lula cresceu nas pesquisas de opinião. De candidato com maior rejeição passou a ostentar a primeira posição em todas as pesquisas de opinião, com vitória tranquila em segundo turno com todos os possíveis opositores. Em segundo lugar, aparecia um pária do Congresso, o deputado ex-militar Jair Bolsonaro. Com 26 anos de vida parlamentar, o deputado tinha apenas um projeto de lei aprovado, sempre esteve em pequenos partidos da base de governo e, mesmo assim, jamais teve qualquer articulação política. Desconhecedor completo da política, da história e da economia, reproduz um discurso da Guerra Fria contra o comunismo, pela moralidade e família, associando-se à bancada religiosa. O discurso de ódio, a apologia à Ditadura de 64 e o despreparo renderam-lhe, no entanto, o
apoio de uma parcela da população que busca o “novo”, ou o que possa representar sua hostilidade contra tudo que está posto. A grande mídia contribuiu decisivamente para destruir a política e desmoralizá-la. O efeito é devastador. E a saída parece ser apostar em outsiders que possam se credenciar eleitoralmente para servir aos propósitos de um governo do e para o mercado. Envolvido em processos na Lava Jato, o ex-presidente Lula foi condenado em primeira e segunda instâncias, tonando-se inelegível, de acordo com a Lei da Ficha Limpa, uma norma que teve origem em iniciativa popular e foi promulgada em 2010, durante o seu governo. O julgamento é objeto de uma disputa política que inebria a esquerda. Claramente, apesar de todos os fatos inequívocos de corrupção que envolveu o financiamento de partidos e a formação das coalizões de governo, o primeiro processo contra o expresidente é, no mínimo, absolutamente controvertido, pois o condena pelo recebimento de um apartamento cuja posse ele nunca teve, que permanece no nome do empreiteiro e, mais surpreendente, foi supostamente recebido depois que ele deixou a presidência, portanto, sem possibilidade lógica de que se estabeleça o nexo necessário de corrupção. Apesar disso, a Lava Jato, atuando como um corpo no qual procuradores, juiz de primeira instância e desembargadores da segunda instância formavam uma equipe que tinha por objetivo “limpar o país”, o condenou, e era de se esperar que os seus partidários denunciassem o caráter político da decisão e o objetivo de tirar o ex-presidente da corrida eleitoral de 2018. A própria rapidez da tramitação do processo evidenciaria seu objetivo. Lula foi preso em 7 de abril de 2018, mas manteve sua candidatura. Há um ponto, entretanto, que parece estar claro e serve para Lula e para os golpistas que governam. Todos têm tantas denúncias, acumuladas pelos anos de funcionamento de um sistema de coalizões negociadas em dinheiro – envolvendo percentuais de contratos públicos em propinas, superfaturamento e aditivos de contratos, licitações fraudadas e formação de cartéis – que parece que o único motor desses atores do campo político, incluindo o ex-presidente, é a salvação do próprio pescoço. Nesse sentido, apesar do discurso dos parlamentares do PT e demais partidos progressistas afirmar que houve o golpe, com a manipulação de normas e agentes públicos e a ruptura institucional, o PT passou os anos de 2016 e 2017 em função dos processos do ex-presidente, em campanha pela eleição de 2018. Não houve resistência, campanha por eleições diretas, ou mobilização pelo afastamento do presidente golpista quando de sua denúncia.
Da mesma forma, não vimos campanha contra o teto de gastos ou a reforma trabalhista. Neste caso, ao contrário, havendo mobilização inicial de frentes de esquerda e sindicatos, o que se seguiu foi um acordo entre estes sindicatos e o governo. Depois de uma grande greve geral no dia 28 de abril de 2017, quando houve forte mobilização dos trabalhadores, paralisando os sistemas de transportes nas maiores capitais do país, uma negociação de gabinete suspendeu o cronograma de greves e manifestações e rifou os direitos trabalhistas. Uma indignidade, e comprovadamente havia um poder de convocação de trabalhadores. Para onde foi? Onde esteva a CUT, a central ligada ao PT? Em troca do que se abriu mão da resistência? Essas respostas terão que esperar pela publicação das memórias dos atores envolvidos. O fato incontornável é que o PT, apesar do golpe, atuou tão somente em defesa da candidatura do ex-presidente Lula, confirmando em ações a narrativa de que as instituições estavam funcionando normalmente, como se a conspiração contra o governo não tivesse envolvido a quebra da institucionalidade, tanto do ponto de vista das exigências para o impeachment , quanto da agenda política e econômica reprovada nas urnas. Nesse sentido, vem consolidando a percepção de normalidade e se omite no enfrentamento do rolo compressor antipopular do governo ilegitimamente instalado no Brasil em 2016. Como é possível disputar a batalha da comunicação desta forma, com os partidos e sindicatos com poder de convocação, participando do teatro e aceitando a destruição dos direitos, elegendo a perseguição ao presidente como pauta única? Nem mesmo do ponto de vista da defesa do ex-presidente essa parece uma estratégia razoável, porque os atores que o estão punindo têm todo o poder e legitimidade para fazê-lo se aceitamos que as instituições estão funcionando e a normalidade democrática está preservada. Por outro lado, a agenda personalista afigura-se pequena diante dos desafios que o golpe de 2016 e o avanço dos interesses das corporações sobre os recursos brasileiros impõem. Todo esse processo nos mostra uma esquerda em profunda crise. E não apenas pela corrupção apropriada pelos partidos que participaram dos treze anos de governo do PT. Como os socialistas na Europa, a esquerda brasileira não tem respostas para o país que não a adoção da estrutura da macroeconomia desejável aos interesses de corporações globais, esperando contar com migalhas para repartir. No Brasil, com a nossa dívida social histórica, repartir a sobra em tempos de bonança foi uma conquista inquestionável. Entretanto, uma vez acirrada a competição global – após a crise de 2008 e o início de um período de baixo crescimento nos países desenvolvidos –, com a guerra fiscal global e o aumento das exigências dos investidores em relação ao custo do trabalho e do Estado, as sobras acabaram e apresentaram-se as demandas adicionais do mercado (investidores) sobre os recursos do orçamento público, sobre os mercados de serviços públicos, sobre os salários e sobre os recursos naturais do país. E como a esquerda responde a isso? Como constrói sua linha de resistência no combate da comunicação? O que temos observado é apenas uma retórica defensiva visando ao restabelecimento do programa político do período de governo de Lula, quando o aumento do crédito, do gasto público e do
consumo das famílias garantiu um ciclo de investimentos e de crescimento, possibilitando a progressão das políticas de distribuição da riqueza. Mas o que está por trás da queda do governo Dilma, a mudança do cenário global, a pressão geopolítica sobre o Brics e sobre a cadeia do petróleo, a insuficiência do capital nacional e, sobretudo, do sistema financeiro como intermediador do investimento, a desindustrialização, a necessidade do crescimento para sustentar os compromissos sociais constitucionais do Estado, enfim, os desafios colocados por uma dinâmica global hostil precisam de respostas novas. E quais serão os paradigmas? O Brasil precisa crescer para distribuir um mínimo de bens sociais. Para isso, é necessário ter uma estratégia autônoma e menos dependente do mercado global para construir seu desenvolvimento social. Nossas elites políticas de hoje estão muito aquém desse desafio, apequenadas pelo negócio eleitoral como um fim em si mesmo. E à esquerda faltam respostas claras aos desafios atuais e alternativas para o enfrentamento das estruturas do capitalismo global e para a promoção do desenvolvimento humano. O desafio da esquerda no Brasil não se resume a retomar o poder para dar continuidade a um programa de crescimento pela via do consumo. Não há dúvidas de que a economia cresceu com o impulso ao crédito e ao consumo, e tampouco se pode ignorar o caráter inclusivo desse crescimento, ainda que insuficiente para o tamanho do problema da desigualdade e exclusão no país. Entretanto, diante do ciclo de baixa, quando o Estado devia entrar como investidor para estabilizar a demanda e impedir uma queda da atividade produtiva, as pressões de atores que tinham interesses na ampliação da valorização de seus ativos impediu que o Estado atuasse de forma a manter o crescimento inclusivo. Do conflito distributivo, a esquerda saiu perdedora e sem projeto claro. Mas podemos compreender, de acordo com o desencadeamento do golpe, e das medidas que se seguiram, que, não apenas o conjunto de empresários de setores produtivos e financeiros se uniu para evitar aumento da tributação e garantir ganhos na flexibilização de direitos trabalhistas, como se lançaram a uma estratégia recessiva que, embora punisse os menos estruturados em rendas financeiras, poderia garantir a conquista de novos mercados de serviços públicos, contando com a falência da prestação de serviços por um Estado sem nenhuma capacidade de investir ou de ampliar gastos. O objetivo é o Estado mínimo e o desmantelo da ordem que garante direitos universais. O Estado estava capturado, sem alterações estruturais em relação ao arranjo fiscal-financeiro construído nos anos 1990. Para Dani Rodrik, crítico da globalização e, mais recentemente do papel dos economistas, as experiências do sul da Europa e da América Latina mostram uma profunda debilidade da esquerda, incapaz de formular “um programa claro para remodelar o capitalismo”, ou seja, há um vazio para além das políticas de transferência de renda, que são apenas paliativos para as necessidades básicas (Rodrik, 2016). No vazio de projetos e de agenda nacional de desenvolvimento, impõe-se a verdade do mercado. Tudo o que se afasta dela é populismo. Gasto público é populismo, defesa de direitos conquistados historicamente é populismo, Estado indutor de desenvolvimento é populismo. Ninguém precisa explicar o que é populismo, seus sentidos múltiplos brotam nas diferentes condenações
do Estado, como empreendedor ou promotor da igualdade e da dignidade do cidadão. O Estado deve ser unicamente um facilitador dos negócios, seja garantindo os contratos, a segurança, e até a rentabilidade do capital aplicado em dívida pública. Na falta do paradigma contrário, com a defesa do governo legítimo baseando-se na responsabilidade fiscal e na afirmativa de que os ricos nunca se beneficiaram tanto, o que há é a conclusão de que algum erro fatal foi cometido pela presidenta, que mergulhou o país na crise por inaptidão e por corrupção. O senso comum assim construído destrói o Estado, sua legitimidade e a política. Resta, no entanto, o problema de que o mercado não ganha eleições, logo, pode-se supor que, para o discurso hegemônico, a própria democracia eleitoral no Brasil é populista. E não apenas supor, porque, na campanha pelo impeachment , comentaristas e politólogos advogavam um governo não eleito para fazer as reformas que “tinham que ser feitas”. Ainda assim, por maiores que tenham sido os investimentos e a doutrinação que os meios de comunicação fizeram para formar os conceitos equivocados básicos sobre gasto público e sobre a ideologia do capital humano, do cada um por si, empreendedor de si, e responsável pelo próprio fracasso, não foram suficientes para reverter as expectativas populares quanto às atribuições do Estado e quanto aos serviços públicos, o que nos colocou em um dilema eleitoral, e num cenário de incertezas. A esquerda não apresenta um programa de unidade que enfrente os problemas colocados durante os governos do PT, tanto em relação ao sistema político quanto em relação à necessidade de assegurar direitos, mesmo que seja necessário mexer na estrutura macroeconômica herdada do tempo de FHC; e a direita não sabe o que fazer com as eleições, sem candidato viável eleitoralmente e com inúmeras disputas internas, como entre um Judiciário messiânico e o que sobrou do sistema político, ou entre o racionalismo de mercado propagado pelos meios de comunicação e o crescimento assustador do projeto fundamentalista evangélico e da nova direita. Tudo é movediço. Notas 22 . Boechat conversa com Procurador da Lava Jato Deltan Dallagnol. Café com Jornal . Disponível em: < http://bit.ly/2uRXims >. Acesso em: 20 jul. 2018. 23 . Começando o ajuste – Sardenberg: < http://bit.ly/2mPq9U8 >. Acesso em: 20 jul. 2018. 24 . Quem atrasou o Brasil – Sardenberg: < http://bit.ly/2NQ6M8Y >. Acesso em: 20 jul. 2018. 25 . PMDB. Uma ponte para o futuro. Fundação Ulysses Guimarães, 2015, p. 2. 26 . Jornal O Globo. Dilma assume a Fazenda e nomeia Barbosa .. Disponível em: < https://glo.bo/2OkNPw5 >. Acesso em: 20 jul. 2018. 27 . Economia. Efeito Petrobras pode explicar queda de 2 pontos no PIB, diz Fazenda. Disponível em: < https://glo.bo/2uViEzs >. Acesso em: 20 jul. 2018.
28 . Portos e Navios. Setor naval demite quase 50 mil trabalhadores em dois anos . Disponível em: < http://bit.ly/2Ah84I6 >. Acesso em: 20 jul. 2018. Epílogo Não há como fazer projeções sobre os rumos que o Brasil vai seguir a partir da encruzilhada em que as crises política, econômica e moral se entrelaçaram. As instituições não produzem respostas seguras, seja do ponto de vista de um programa político reconhecido e consensual, seja do ponto de vista exclusivamente jurídico. Tudo se move, parecendo não haver quaisquer estruturas sólidas. A sociedade vive em perplexidade assistindo ao desmonte das conquistas democráticas e à crescente polarização, em meio a uma rápida profusão de ódio e violência. O que se pode fazer é avaliar o momento histórico que vivemos, interna e externamente, refletir sobre o que funcionou ou não, o que é sustentável, o que é efêmero, e qual é a nossa disposição para a permanência ou para a transformação. Até aqui, o objetivo deste livro foi construir uma interpretação dos fatos, uma narrativa da memória e das análises que li e sedimentei ao longo dos últimos trinta anos, desde a minha chegada ao mercado de trabalho em uma conjuntura de crise crônica, nos anos de 1980. As interpretações são tão profundamente contrárias àquelas do discurso hegemônico veiculado por meio da grande imprensa, estabelecido como a estrutura de debate público, que escrever e registrar as inconsistências e os interesses que estão na base da manipulação diária de informações, ou no veto ao debate, acabou por se transformar em uma obrigação. Mesmo considerando que este livro possa ser completamente ignorado, escrevê-lo é a única forma que encontro de resistir ao golpe contra os poucos avanços civilizatórios que o Brasil conquistou. Ainda que o objetivo seja o registro da memória e das interpretações sobre o meu tempo, não me sinto desobrigada de explicar, ao menos em linhas gerais, a visão de mundo e os conceitos que informam a abordagem crítica que desenvolvi. Os fenômenos da história recente do Brasil, assim como os de nossa formação histórica, são condicionados pelo funcionamento de um sistema mundial que vem se construindo desde o século XV com a formação dos Estados nacionais, o mercantilismo e o colonialismo europeu, e a subsequente integração das regiões produtivas do mundo em um mercado global. Muito além das ideias e matriz cultural ocidental cristã que nos formou, a estrutura dos arranjos sociais da nossa vida na produção, no consumo e nas relações de poder moldam a nossa história em um determinado universo de possibilidades, que, por sua vez, está subordinado a um sistema de relações de poder que é global. Para compreender esse universo, e, sobretudo, para imaginar e inventar as formas de se mover dentro dele, é preciso conhecer seu poder e suas pequenas brechas. Mas importa, da mesma forma, reconhecer seu dinamismo e as forças que atuam no sentido da mudança. Nossa fundação como experimento civilizacional foi subordinada a interesses de uma metrópole mercantilista. Pela primeira vez, no século XVI, a escravidão em massa se disseminou como base da produção de mercadorias com fins de obtenção de lucros, com efeitos devastadores para
povos africanos e para a formação hierárquica das sociedades nas Américas. Após a industrialização, no final do século XVIII, e de sua expansão na primeira metade do século XIX, permanecemos especializados na produção de primários para o mercado internacional. E nossa especialização cresceu na era das ferrovias, com o café como principal produto de exportação. Neste modelo, nações como o Brasil importavam tudo o que o progresso técnico do século XIX havia criado e pagavam com a receita de suas exportações de bens primários. O século XIX foi a era do ferro, da navegação a vapor e do telégrafo, inventos que integraram o mundo em um único mercado. O padrão ouro disciplinava as moedas nacionais que se mantinham subordinadas ao mercado. De outra forma, seria impossível participar dos benefícios do progresso técnico. O Brasil e demais países não industrializados participaram do progresso como consumidores, e, no entanto, suas elites não cansavam de exaltar os progressos da navegação, da iluminação urbana, dos sistemas de bondes, das ferrovias e de todos os avanços que importavam. Estes bens permitiram uma grande ampliação das exportações e, neste sentido, a ampliação da dependência do modelo agroexportador. Parecia indiscutível a nossa vocação agrícola, ou a ideia de que cada nação devia investir apenas em suas vantagens comparativas para se integrar ao mercado internacional. Como possuíamos na região uma ampla fronteira agrícola a explorar e riquezas naturais, a tese de que este modelo se sustentaria parecia aceitável. Mas não devemos perder de vista que a concentração da propriedade da terra e a relação entre a propriedade e o poder político sempre constituíram obstáculos a iniciativas de Estado que não fossem no sentido de proteger a lavoura de exportação. Em outras palavras, a elite política brasileira, desde a formação da nação, beneficiou-se de um modelo de integração ao mercado que lhe garantia o domínio das terras, dos homens e das riquezas. No século XIX, a industrialização, a ferrovia e a subsequente ampliação das trocas comerciais no mundo fortaleceram o modelo herdado da colonização e aprofundaram a dependência econômica do Brasil e da América Latina. Apesar da relativa facilidade e dos benefícios da expansão do comércio mundial para as antigas colônias das Américas, os custos e ameaças também se apresentaram no final do século XIX e no início do século XX. Se a região viveu, até os meados do século XIX, em situação de instabilidade e conflitos, sem recursos que garantissem a ordem política dos Estados recémindependentes, no fim do século passou a conviver com intervenções norteamericanas e, em seguida, com as ameaças de intervenções europeias, bloqueadas pelos Estados Unidos com a sua atualização da Doutrina Monroe. É importante registrar que esse modelo se consolidou como escolha, porque havia vozes contrárias, e, contudo, os interesses ligados à manutenção da ordem tradicional da propriedade e do domínio político das oligarquias regionais no Brasil sempre se sobrepôs às vozes dissidentes, que não chegariam a ser ouvidas até a grave crise global desencadeada a partir de 1929, quando se iniciaria o processo de industrialização por substituição de importações e o abandono da rigidez do padrão ouro em resposta à queda do comércio internacional e ao estrangulamento financeiro dos países exportadores. A expansão do capitalismo havia dividido o mundo em países poderosos e países fracos, de economias tradicionais, conquistados, destruídos ou
desintegrados diante da potência militar dos industrializados (Hobsbawm, 1989). O domínio da Índia e a destruição de sua manufatura, a derrota da China e sua desintegração, a derrota russa na Crimeia e a abertura forçada do Japão foram os primeiros sinais de que a soberania estava definitivamente ligada à industrialização e às novas tecnologias aplicadas ao poder militar. Países de industrialização tardia como a Alemanha e o Japão são exemplos de projetos políticos de desenvolvimento industrial e armamentista visando à soberania nacional e à competição com as potências industrializadas, o que pressupunha a conquista colonial. A competição global desencadeada na segunda metade do século XIX se traduziu no imperialismo – o novo colonialismo – com a divisão do mundo entre os impérios europeus, notadamente o britânico e o francês, e com intensas disputas que envolviam interesses expansionistas também de norteamericanos, alemães e japoneses. Tratar o século XIX e a expansão capitalista como resultado do liberalismo e de uma suposta economia de mercado não é razoável. A economia capitalista se consolidou a partir da expansão dos mercados coloniais, na medida em que eles garantiram o aumento dos fluxos de mercadorias e da demanda que viabilizou os investimentos na manufatura (Hobsbawm, 1983), e a dinâmica do desenvolvimento do capitalismo tem na sua base a competição militar de nações colonialistas, protecionistas e altamente belicistas, no interesse da expansão de seus mercados exclusivos (Kennedy, 1989; Fiori, 2014). Mesmo a Inglaterra, livre-cambista ao longo do século XIX, constituiu o maior império colonial e, portanto, contava com mercados cativos protegidos pela maior e mais poderosa armada do mundo. Berço do liberalismo, entre o fim do século XVII e o século XVIII, contou com leis de navegação que fomentaram a indústria naval no século XVII e protecionismo tarifário no início do século XVIII, período inicial do seu desenvolvimento manufatureiro. O livre-cambismo se impôs como doutrina no contexto de ampla superioridade produtiva inglesa e com o objetivo de abrir mercados. Considere-se, ainda, que setores da burguesia atuaram, via de regra, no sentido de ocupar espaços nos negócios abertos pelo Estado, depois de cumprido o papel de conquista da Companhia das Índias (Arrighi, 1996). Essa busca das oportunidades de atividades lucrativas pelos indivíduos privados traduziu-se no pensamento liberal, significando a necessidade da diminuição da atuação econômica estatal e, sobretudo, das suas regulações. A dogmática liberal, entretanto, é absolutamente incompatível com as necessidades da competição global, desde o seu nascimento. E tampouco pode ser relacionada a uma utopia de pequenos proprietários bemintencionados que desejam a prosperidade de todos em plena liberdade. Se a característica do capitalismo britânico, em seu momento inaugural, foi a pulverização da propriedade de empresas familiares ligadas a redes de inúmeras outras empresas que realizavam diferentes tarefas das cadeias de produção e distribuição, logo ela seria superada pela grande empresa de capital concentrado, em razão da necessidade de maior volume de capitais para indústria de bens de produção e da racionalização e integração de segmentos da produção depois da depressão de 1873. O capital privado, desde o fim do século XIX, está concentrado em grandes corporações que determinam a dinâmica dos investimentos e dos negócios
no mundo. Portanto, nem mesmo em se tratando do século da institucionalização do mercado global, existe a possibilidade de falar em liberalismo de forma honesta, uma vez que as grandes empresas que dominavam segmentos produtivos e financeiros e ditavam a dinâmica do mercado transformavam-se em oligopólios cuja tendência era a maior concentração do capital, e não a sua pulverização e a competição. E isso lhes conferia grande poder, não para diminuir o Estado, cujos gastos e funções militares foram suas garantias, mas para comandar suas práticas e regulações no interesse da competição global. Hoje, ademais, as empresas globais atuam para se apropriar de uma parte substancial da riqueza coletiva que foi alocada no Estado em razão do aumento de suas atribuições sociais ao longo do século XX. Entre um momento e outro, a história do século XX foi marcada pelo aumento da atuação estatal e multilateral nos mercados domésticos e global, em resposta às agudas crises econômicas e às suas nefastas consequências sociais, incluindo as guerras. No início da Revolução Industrial e na sequência da expansão do modelo de organização das sociedades industriais com trabalho assalariado, as condições de vida dos operários eram degradantes. As cidades atraíram milhões de indivíduos em busca dos empregos abundantes da indústria. No campo, as relações assalariadas e a transformação da terra e da produção em mercadorias tornaram a subsistência precária para a maioria dos camponeses que não dispunham de lotes suficientes para garantir a sobrevivência da família. O resultado foi a perda definitiva dos meios parcos de subsistência para a maioria dos indivíduos. Tornaram--se, também os homens, mercadorias, disponíveis no mercado de trabalho, ao sabor dos ciclos econômicos e da necessidade ou não de contratações. Não sem a intervenção estatal, por meio de leis que obrigavam ao trabalho e puniam os desocupados. E como nada, nenhum direito, lhes garantisse a subsistência, a moradia, o cuidado dos filhos e a mínima dignidade, sobreviviam em condições muitas vezes degradantes (Engels, 1985). No universo da fábrica, e fora dele, trabalhadores, filantropos, humanistas e intelectuais se organizaram, exigindo condições de vida decentes e dignas para os trabalhadores. Sindicatos, partidos, radicais e socialistas organizaram lutas que incluíram greves e movimentos pela participação política efetiva dos trabalhadores. A história do século XIX está marcada pela luta para expandir os limites da representação política e garantir mínimos direitos aos cidadãos. A ampliação da participação eleitoral por meio da democracia representativa foi a solução de domesticação do conflito de classes que se constituiu na passagem das sociedades tradicionais para as sociedades capitalistas modernas. Mas as relações de mercado persistiam e os mínimos direitos, como a jornada de trabalho limitada ou a regulamentação do trabalho infantil, foram conquistados por meio de muitos enfrentamentos, envolvendo organizações sindicais cada vez mais poderosas, partidos anarquistas, radicais e socialistas, que ampliaram sua representação. Coube às instituições democráticas domesticar, por meio de negociações, o conflito de interesses definitivamente estabelecido. Muitas vezes, o nacionalismo foi ativado para canalizar energias contra inimigos externos, aparando as arestas da luta política interna, como é possível observar na Alemanha, no fim do século XIX, e na Rússia Czarista, em processo de industrialização, no início do século XX.
Foi neste contexto que, uma vez expandidas a industrialização e a produção de bens de produção, por grandes empresas de sociedades por ações, a competição entre as nações industrializadas por mercados de consumo e investimentos e por matérias-primas se acirrou. Os lucros caíram e os agentes econômicos conviveram com um longo período de depressão, entre 1873 e 1896 (Arrighi, 1996). A recuperação dos lucros aconteceu a partir de grandes transformações nas regras do jogo econômico, que incluíram o protecionismo, já adotado pelos Estados Unidos, e uma das razões fundamentais do embate entre o Norte e o Sul, o expansionismo colonial, e a nova organização monopolista do capital por meio de cartéis e trusts. A indústria de armas, com destaque para a grande indústria naval, estava no centro da recuperação e, é claro, seu principal cliente era o Estado nacional. A corrida armamentista era, por sua vez, corolário da disputa entre os velhos impérios e as novas potências que desejavam seu quinhão no mundo colonial, ou seu “espaço vital”. A ascensão da Alemanha é o modelo de industrialização tardia subordinada a um projeto militar justificado pela necessidade da manutenção da soberania e, na sequência, da expansão (Kemp, 1985). As guerras mundiais – ou, a grande guerra de trinta anos – foram o resultado dramático do sistema interestatal de economias nacionais ultracompetitivas que, historicamente, têm na guerra o seu motor. A guerra de 1914 destruiu os antigos impérios e, inesperadamente, permitiu que a facção bolchevique do pequeno partido socialdemocrata russo conquistasse a liderança da revolução depois das seguidas crises do governo provisório em 1917. A Revolução Russa, a primeira revolução a consolidar um Estado comunista, marcaria a história do século XX. Para Hobsbawm (1995), o “breve século XX” começou em 1917 e terminou com o fim da URSS, em 1991. A revolução, ao constituir um polo de poder fora do mercado capitalista e, sobretudo, ao projetar uma alternativa à ordem capitalista, teria influenciado decisivamente o mundo capitalista no sentido dos avanços do bem-estar social, como forma não apenas de prevenir a revolução, mas também de competir com ela, mostrando que o progresso capitalista poderia garantir uma vida segura e próspera para a totalidade dos indivíduos. Neste sentido, os direitos sociais consolidados no século XX seriam um contraponto àquilo que a revolução podia apresentar como avanço. Em consequência, o fim da alternativa ou a falência do Estado que se constituiu como paradigma, afetaria diretamente o avanço dos direitos, e até a sua manutenção. Não por acaso, o fim da URSS é o contexto em que o pensamento neoliberal se impõe como pensamento hegemônico. Seria o “fim da história” de Francis Fukuyama, nenhuma alternativa restaria, senão a democracia liberal. Depois da guerra total, cujo alcance e destruição sem precedentes colocaram em xeque a crença no racionalismo e no progresso, o crash de 1929 foi o golpe de morte no liberalismo, como doutrina e como prática econômica. As controvérsias em torno das razões da crise ainda perduram, mas, antes mesmo de estabelecidas as interpretações, as práticas de política econômica foram alteradas, em maior ou menor grau, em toda parte. A emergência desencadeada pela queda da produção, do comércio internacional e o desemprego obrigou os governos a abandonarem o padrãoouro e, com o agravamento da crise, entre 1931 e 1933, a adotarem medidas pragmáticas visando conter os seus efeitos. Nos Estados Unidos,
economistas defensores da estabilização, ou seja, da atuação do Estado para restaurar as condições do bom funcionamento da economia, tornaram-se os principais formuladores do New Deal (Prado, 2009), convergindo, sobretudo, no sentido da necessidade de que os salários pudessem gerar um mercado consumidor suficiente para o nível estável da produção. Nos “Cem Dias”, de 1933, após a posse de Franklin Delano Roosevelt, foram criados programas de emergência para os desempregados, evoluindo para o Work Project Administration, em 1935. A crise financeira foi respondida com o Emergency Bank Bill e o Glass-Steagall Act. Ambos permitiram maior controle do Federal Reserve sobre o sistema bancário e facilitaram a renegociação de dívidas. Significaram a centralização do sistema e a maior regulação do Estado (Belluzo e Galípolo, 2017). O Glass-Steagall proibiu a atuação dos bancos comerciais no mercado de capitais e imobiliários, e seria revogado em 1999, mais de seis décadas depois, por pressão do lobby do sistema financeiro contra a regulamentação do setor. Entre os new dealers havia a percepção de um claro desequilíbrio entre a capacidade técnica e produtiva e a demanda agregada, o que significava, necessariamente, o questionamento sobre a concentração da renda que acompanhou o espetacular desempenho da indústria nos anos de 1920. Neste sentido, o chamado segundo New Deal criou as regulações do mercado de trabalho que garantiram a federalização dos custos de programas de pensão e auxílio desemprego, por meio do Social Security Act e o poder de negociação aos sindicatos, com o National Labor Relations Act. Ao legalizar a atuação dos sindicatos, o governo tinha por objetivo promover o aumento da remuneração do trabalho, a desconcentração da renda e o equilíbrio entre a produção e a demanda. Na Alemanha, o desamparo de milhões de trabalhadores com o agravamento da crise determinou a ascensão do nazismo em 1933. O regime de Hitler conseguiu incorporar os 44% da mão de obra desempregada (Hobsbawm, 1995) ao processo produtivo ou ao serviço do Estado, notadamente o serviço militar. Tudo por meio do programa de remilitarização, que envolvia a ativação da indústria pesada e o gasto do governo numa economia autárquica. A nova ordem nazista foi responsável pelo único caso no Ocidente em que o desemprego foi eliminado . ²⁹ Se as políticas econômicas dos Estados Unidos e da Alemanha haviam mudado de rumo no sentido da regulação e do planejamento, a economia soviética, que pareceu imune à crise, sendo menos vulnerável às oscilações do mercado em razão do seu isolamento e do planejamento central, foi outro modelo que confirmou a compreensão de que o mercado era falho e precisava, no mínimo, de regulações. As respostas à crise dependiam da atuação estatal urgente e, naquele contexto, constituiu-se uma nova burocracia empenhada no planejamento de ações que restaurassem a atividade econômica e recuperassem o emprego, normalizando a vida social. Os parâmetros não podiam ser os da economia clássica ricardiana, segundo os quais o comércio, a divisão do trabalho e a invenção da maquinaria elevariam o montante de mercadorias, contribuindo para a satisfação e felicidade de toda a humanidade (Fiori, 1999). Embora sempre tenha havido vozes dissonantes em relação ao livre mercado, como Georg Friedrich List,
que em 1841 o tratava como política vantajosa apenas para as nações mais avançadas e preconizava o protecionismo para países que buscavam a industrialização e a acumulação de riquezas, um papel de maior peso para o Estado, como regulador do mercado, só se consolidou como compreensão e pensamento hegemônico no contexto dos anos de 1930 diante da emergência da depressão. Foi apenas em 1936, como resultado das observações, experimentos econômicos e debates que a Teoria Geral do Emprego, Juro e Dinheiro , de J. M. Keynes, surgiu como a teoria alternativa ao livre mercado. A obra de Keynes seria a mais influente no mundo capitalista nos quarenta anos seguintes. Segundo a teoria proposta, uma vez que a demanda agregada não era uma resultante espontânea da economia, cabia ao Estado garantir que o seu nível fosse compatível com o nível de produção a pleno emprego (Carvalho, 2009). A recuperação do capitalismo – da produção e do emprego – foi resultado da guerra de 1939, mais do que das políticas do New Deal, que embora tenham lançado os marcos regulatórios do pós-guerra, não foram eficientes para promover um novo ciclo de crescimento. Mais uma vez, a indústria militar e o conflito entre nações foram o motor do salto tecnológico e da produção. É a permanente destruição e reconstrução que garante a reciclagem do capital. No final da Segunda Guerra Mundial, em 1944, Friedrich Hayek escreveu o clássico O Caminho da Servidão , pedra fundamental do neoliberalismo, contrariando o que lhe pareciam ser as opiniões dominantes sobre a economia, marcadamente intervencionistas e socialistas. Identificou o planejamento econômico aos totalitarismos, com a certeza de que cada intervenção suspendia uma parcela das liberdades dos indivíduos, uma vez que “o controle econômico não é apenas o controle de um setor da vida humana que possa ser separado do resto. É o controle dos meios que devem contribuir para a realização de todos os nossos fins” (Hayek, 1977, p. 86). Além disso, possuir o controle dos meios significaria também determinar os fins. A tese de Hayek relacionava a liberdade de mercado à liberdade genérica dos indivíduos. Mas a crise da civilização liberal e do capitalismo parecia bastante clara para a geração do pós-guerra. Enquanto Hayek escreveu o seu clássico em favor da liberdade, Karl Polanyi escreveu A Grande Transformação, também em 1944, mostrando o processo histórico de construção do mercado autorregulável no século XIX, sua artificialidade e a capacidade de desorganizar a vida humana. O “moinho satânico” levaria necessariamente a movimentos em favor da proteção das sociedades. Nesse sentido, contrariando a tese da liberdade de Hayek, para Polanyi, a desorganização da vida humana provocada pelo livre mercado estava na origem de movimentos como o nazismo (1980). O intelectual que teve maior influência no período que se seguiu às guerras mundiais foi, sem dúvida, John Maynard Keynes. Crítico da imposição de indenizações de guerra à Alemanha nos termos do Tratado de Versalhes, interpretando o acordo de paz como fonte de novos desequilíbrios, o
economista foi observador privilegiado do período entreguerras e da depressão que se seguiu ao boom norte-americano dos anos 1920. Suas ideias contrariavam os princípios da autorregulação dos mercados, demonstrando que era possível alterar o comportamento dos agentes do mercado e os níveis da atividade econômica sem que fosse necessário controlar os meios de produção. Ou seja, o Estado era capaz de determinar a quantidade de recursos destinados a aumentar a remuneração dos proprietários. Para Keynes, em um ciclo econômico, a expectativa positiva acompanhava o período de boom e os investimentos prosperavam; às vezes, em intensidade e rapidez maiores do que a utilidade e a capacidade de absorção do mercado consumidor. Quando os resultados se mostravam inferiores às expectativas, os períodos de declínio se iniciavam com a retração de investimentos. Em caso de elevação das taxas de juros, o declínio se acentuaria e o investidor optaria pela liquidez. Também o consumidor reduziria sua propensão ao consumo. Baixo investimento e baixo consumo eram comportamentos que se retroalimentavam, daí a necessidade de que a política pública entrasse em cena, garantindo a demanda efetiva (Prado, 2009). Defensor da criação de um sistema internacional com mecanismos de regulação após as guerras, Keynes foi um dos artífices do sistema de Brettom Woods. Porém, sua ideia de criar um banco central universal que impedisse o controle da liquidez da moeda internacional por uma nação específica não foi colocada em prática e coube ao Federal Reserve o papel de regulação da liquidez internacional. Durante mais de duas décadas – “os anos dourados”, como chamou Hobsbawm (1995) – a estrutura que permitia o controle dos sistemas financeiros, a prevalência do crédito bancário sobre a emissão de títulos e a restrição ao livre movimento de capitais resultou em rápido crescimento, ganhos de produtividade, baixa inflação, emprego e elevação de salários reais. Havia, ainda, a possibilidade de implementação de políticas nacionais de desenvolvimento, industrialização e progresso social (Belluzzo e Galípolo, 2016). Nesse período de expansão, desencadearam-se processos de industrialização no mundo periférico, entre eles os da América Latina, com destaque para o Brasil. Sob a hegemonia do pensamento desenvolvimentista, muitos países usufruíram de financiamentos e mercado consumidor contando com os interesses em jogo na Guerra Fria, uma disputa geopolítica que envolvia a periferia, sobretudo os territórios recém-independentes do jugo colonial. “Criar infraestruturas, modernizar instituições e incentivar as industrializações nacionais passaram a ser as palavras de ordem do mundo político”, e os temas centrais da academia, no centro e na periferia (Fiori, 2012, p. 23). A liderança econômica dos Estados Unidos permitiu a reconstrução da Europa e do Japão e a expansão de suas corporações. Financiamentos e mercados para as exportações dessas regiões viabilizaram sua recuperação e crescimento. A um só tempo, os Estados Unidos eram fonte de crédito e de demanda, e colhiam o benefício da expansão dos negócios de suas empresas no processo. No fim dos anos de 1960, o déficit do balanço de pagamentos dos Estados Unidos era preocupante. Além das despesas militares da Guerra Fria, empresas haviam se deslocado para a Europa e para a Ásia, diminuindo o fluxo de recursos para importações de bens americanos. Os europeus, por sua vez, passaram a depositar seus
excedentes em divisas no euromercado, pressionando as reservas de ouro dos Estados Unidos, e levando Nixon a decretar a inconversibilidade da moeda americana em ouro, em 1971. Eram os primeiros sinais da mudança da ordem virtuosa do pós-guerra. A crise do petróleo, em 1973, a aceleração da inflação norte-americana e as baixas taxas de crescimento estão na base da dissolução do consenso keynesiano. Mas a derrota no Vietnã foi fator decisivo para estimular a desconfiança internacional em relação à hegemonia dos Estados Unidos. Neste sentido, o governo de Nixon se moveu com habilidade a fim de manter a supremacia do dólar mesmo após o abandono do lastro metálico. Por meio de um acordo com o rei Faysal, da Arábia Saudita, depois estendido entre os demais países da Opep, garantiu que o comércio de petróleo fosse realizado em dólares que seriam posteriormente reinvestidos em títulos do Tesouro dos Estados Unidos. Dessa forma, a reciclagem de dólares estava garantida, bem como o financiamento do déficit norte-americano (Bandeira, 2016) . ³⁰ Embora não tenha perdido a centralidade no sistema de trocas e financiamentos internacionais, a inflação mais aquecida pelo aumento do preço do petróleo desvalorizou a moeda internacional de trocas, levando os europeus a tentativas de substituí-la por outros ativos, como os Direitos Espaciais de Saque, emitidos pelo FMI com base em uma cesta de moedas (Belluzzo e Galípolo, 2017). Apesar das incertezas do mercado, a liquidez do sistema financeiro, abarrotado de petrodólares, permitiu a continuidade do financiamento (e do endividamento) das economias da periferia, como a do Brasil, apesar do custo do petróleo . ³¹ Mas em 1979, repentinamente, impôs-se um freio aos diferentes processos de industrialização e modernização no chamado Terceiro Mundo. A Revolução Iraniana promoveu mais um abalo de grande intensidade na credibilidade da hegemonia dos Estados Unidos. Diante de pressões internacionais e de uma inflação de 13%, Paul Volker deflagrou o choque de juros que levaria boa parte do mundo em desenvolvimento à bancarrota. Os Estados Unidos se livraram da inflação e conseguiram manter o dólar como moeda de reserva, embora mantivessem déficits extraordinários. Ao tornarem-se devedores em sua própria moeda, por meio da emissão de títulos, permitiram que os bancos substituíssem os financiamentos e dívidas de países em desenvolvimento por títulos do Tesouro (Belluzzo e Galípolo, 2017), o que significou mais um fator para o total estrangulamento do financiamento externo da América Latina. A crise espalhou-se rapidamente, criando a oportunidade de deslegitimação de toda a estrutura construída no pós-guerra. As questões eram imperativas. Por que a economia havia perdido o vigor? O que poderia explicar a estagnação com inflação? Foi nesse ambiente de incertezas que os liberais que viveram à margem do sistema político e em pequenos círculos do debate acadêmico ressurgiram com seu arsenal ideológico travestido em receitas de estabilização, abertura e desregulamentação das economias nacionais. Margaret Thatcher iniciaria as reformas no Reino Unido em 1979 tendo o Caminho da Servidão de Hayek como seu evangelho. A liberdade serviria não apenas como promessa de recuperação do vigor de economias débeis, mas como arma contra o comunismo nos anos de 1980. A profunda crise daquela década, a qual maltratou com intensidade as economias endividadas
da periferia, foi o cenário perfeito para a pregação de reformas e de visões de novos (velhos) horizontes possíveis. Claro está que a recuperação da ordem capitalista ocidental após a Segunda Guerra Mundial não se deu por meio de uma ordem econômica de mercado autorregulável. Por isso mesmo, e apesar do extraordinário crescimento com efetiva ampliação de direitos sociais, a crise podia ser atribuída ao excesso de regulações. Havia uma alteração em curso nas relações internacionais, incluindo ameaças de autonomia e insubordinação de países da periferia, a expansão de regimes comunistas na esteira das independências e o gasto militar insustentável da superpotência ocidental. Esses desafios à ordem permitiram interpretações interesseiras que afirmavam responder aos autênticos anseios de liberdade e prosperidade dos povos contra as diferentes formas de regulações e amarras do Estado. E Margaret Thatcher estabeleceu o novo paradigma individualista: “there is no such thing as society. There are men, there are women, and there are families”. ( The Sunday Times , 31 de outubro de 1987) Em 1974, Hayek recebeu o Prêmio Nobel de Economia, um sinal de que as crises do início dos anos de 1970 promoveram estímulos aos segmentos do baronato mundial favoráveis a reformas. Depois de trinta anos, sua tese começaria a ganhar mais adeptos, mas em contexto diferente daquele dos totalitarismos que pretendeu combater. Restava a URSS, cujo vigor não estava em dúvida, mas no Ocidente as democracias estavam consolidadas depois de duas décadas de prosperidade, com planejamento, regulações dos mercados e bem-estar. Portanto, o perigo de que o planejamento levasse a regimes totalitários estava descartado. Entretanto, o esgotamento do ciclo de expansão e a conjuntura marcada por estagnação, inflação e o abandono do padrão dólar-ouro pelos Estados Unidos encorajou os institutos liberais filiados às ideias de Hayek . ³² O resgate do pensamento liberal não deixa de surpreender, porque significa que as lições das guerras e da crise dos anos de 1930 foram superadas. Esse processo, no entanto, tem relação não apenas com a crise do ciclo, mas também com um intenso investimento na formação dos quadros liberais que levariam adiante as reformas de desmonte do Estado de bem-estar a partir do final daquela década. Ronald Reagan, presidente dos Estados Unidos entre 1981e 1989, e Margaret Thatcher, primeira ministra do Reino Unido entre 1979 e 1990, abriram a temporada de reformas liberais. Ao fim deste período de governo, o novo consenso estava formado. Desregulamentação da economia, privatizações e diminuição das atribuições do Estado, austeridade fiscal permanente e abertura econômica, incluindo ao livre trânsito de capitais, eram os novos paradigmas da relação entre Estado e mercado. É um engano pensar, entretanto, que estes dois países abriram mão do Estado forte e capaz de proteger os interesses de suas empresas. A atuação decisiva dos Estados Unidos e do Reino Unido para promover as reformas no Leste europeu e na URSS em favor dos interesses de suas empresas e bancos, é emblemática. A administração Reagan cortou impostos das empresas com base na tese de que o aumento da poupança privada resultaria em maiores investimentos que compensariam os déficits fiscais, e, por outro lado, ampliou os gastos
militares reativando a Guerra Fria. Os resultados foram déficits extraordinários, financiados pelo Japão, Coreia e asiáticos emergentes por meio dos títulos públicos americanos. Não havia qualquer compromisso com o Estado mínimo ou a responsabilidade fiscal quando se tratou de manter a hegemonia no Ocidente. Já com relação à política monetária, mantiveram-se as altas taxas de juros que elevaram o desemprego. Essa contradição aparente nos leva aos primeiros sinais dos reais objetivos das reformas: ampliar a participação das empresas em serviços que haviam sido incorporados pelos Estados como sua responsabilidade, entre os quais estão saúde, educação, energia, abastecimento de água, infraestruturas e até os sistemas de aposentadorias – a mais cara e fundamental conquista dos trabalhadores. A crise do final da década de 1970 foi a oportunidade de ativar uma grande onda de propaganda sobre os benefícios do mercado, sobre o quanto os Estados custavam e o quanto estes custos poderiam significar em termos de riqueza nas mãos dos cidadãos. A mensagem parece dotada de alguma razoabilidade, sobretudo quando se utiliza das imagens das burocracias, seus custos e privilégios. Mas ela é mentirosa quando insinua que todos são empreendedores de si próprios e que os recursos que deixariam de ser transferidos para os Estados seriam sobras nos bolsos de cada indivíduo. Não há sobras para trabalhadores ou desempregados. Todos os direitos ou custos da mão de obra foram obtidos por meio de lutas e leis, e nada do que seria retirado das leis se transmutaria em renda de salários, mas sim em aumento de lucros. Para ter certeza de que assim se daria em quaisquer cenários, basta pensar na migração de empresas em busca da mão de obra mais barata dos países sem regulamentações e direitos estabelecidos. A diminuição de impostos (para os proprietários) nos Estados Unidos não significou menores gastos dos governos. As taxas de juros altas e os gastos militares foram financiados com títulos, dívida pública, que acabou por se transformar em nova fonte de reciclagem do capital para bancos e empresas. Ou seja, o Estado, o seu custo, não diminuiu, mas certamente os gastos migraram dos bens sociais para o sistema financeiro. Belluzzo e Galípolo chamam atenção para o aumento do poder do sistema financeiro e para o fato de que, neste cenário, a participação dos empréstimos às empresas e às famílias diminuiu nos bancos de depósitos. A desregulamentação permitiu a criação de novas formas de gestão da poupança coletiva e o surgimento dos fundos de pensão, em 1981, promoveu uma explosão dos mercados de ativos, ao mesmo tempo em que reintroduziu a insegurança quanto ao valor das aposentadorias dos trabalhadores. O crescimento das emissões de títulos de dívidas públicas e dos fundos mútuos, que alcançaram 120 milhões de cotistas em 1990, estabeleceu a centralidade desse mercado de títulos e as expectativas sobre os seus valores como referência dos investidores. Quando da liberalização dos demais mercados de capitais, ao longo da década, a chamada globalização financeira estabeleceu o controle da riqueza líquida por meio dessas instituições financeiras (2017). No Reino Unido, Thatcher cortou gastos, promoveu recessão e desemprego, privatizou as principais empresas de infraestrutura, exterminou os subsídios da indústria de carvão – que gerava milhares de empregos – e promoveu o
desmonte do poder dos sindicatos. A organização política dos trabalhadores recebeu um golpe de morte. E restaram os indivíduos à mercê das decisões dos investidores, cada vez mais centralizadas nos fundos globais e, portanto, autônomas em relação a quaisquer interesses coletivos que pudessem colidir com a melhor performance dos lucros. Essa nova racionalidade implicava a possibilidade de que os investimentos fluíssem apenas para regiões emergentes que vendiam ativos em seus processos de privatizações ou subsidiavam novos investimentos produtivos. Ao final da década de 1980, o Consenso de Washington estabeleceu a agenda de reformas para um mundo que se abria às novas ondas de investimentos. O fim do mundo comunista – com a democratização da Polônia e a queda do Muro de Berlim, em 1989, e as reformas de Gorbachev, que abriram as brechas para o fim do regime soviético e a ascensão do reformismo de Boris Yeltsin, em 1991 –, inaugurava um novo ciclo de ampliação e concentração de capitais, agora aparentemente sem fronteiras. A liberalização e desregulamentação de mercados acontecia por toda parte e as consequências mais imediatas foram os fluxos de capitais que se estabeleceram para todas as partes do mundo e a transferência de parte da produção industrial para países com mão de obra barata e desprotegida. A competição global se estabeleceu conferindo enorme poder aos “investidores” – os grandes fundos, bancos e empresas globais. A guerra fiscal se estabeleceu globalmente, os “investidores” passaram a contar com enorme poder de persuasão junto a governos para diminuir impostos e alterar legislações domésticas. Em caso de atrasos nas reformas, permanência de empresas estatais, e, sobretudo, instabilidade de preços, os governos eram cobrados e punidos, com fugas de capitais. A agenda de diminuição do Estado, privatizações, desregulamentação (inclusive trabalhista), isenções tributárias e moeda estável passou a estruturar a linguagem dos meios de comunicação de massa, também eles empresas globais. Na década de 1990, durante o governo de Bill Clinton, o poder de agenda do sistema financeiro aumentou. A chegada dos democratas ao poder, com promessas de recuperação do emprego e de gastos sociais, não significou um freio às determinações de Wall Street, mas o contrário. Eles incorporaram as razões do mercado e promoveram o avanço das reformas no mundo. No âmbito doméstico, adotaram a austeridade e assumiram uma postura responsável em relação ao déficit público. Como o período foi de extraordinário crescimento, na sequência de uma recessão que havia derrubado o presidente Bush, legitimou-se a política econômica de austeridade fiscal e o Consenso de Washington. Havia, é claro, uma mudança política estrutural no mundo que assistia à crise terminal da economia comunista. Mas a recuperação econômica dos Estados Unidos cumpriu um papel importante. Houve uma expansão de investimentos que surpreendeu a todos no governo. De acordo com Stiglitz, a política de juros altos do período anterior e as regulações criadas quando houve insolvência de bancos permitiram a capitalização do sistema e a ampliação da capacidade de investimentos. Portanto, as razões não estariam vinculadas necessariamente à diminuição do déficit e das taxas de juros de longo prazo (2003).
Apesar das explicações de Stiglitz, é importante salientar que a abertura comercial de muitos países, notadamente na América Latina, criou um grande fluxo de negócios e de importações de produtos americanos, movimento que seria estagnado no final da década com as crises cambiais e a fragilidade das economias latino-americanas. Na sequência, vieram as grandes inovações da tecnologia da informação, telefonia móvel e internet, permitindo os vultosos investimentos em novas plataformas de comunicações e negócios. E deu-se o boom. E depois, o estouro da bolha das empresas ponto-com. A instabilidade e as crises financeiras ao redor do mundo foram a marca dos anos 1990 e da globalização. Retomar a narrativa de Joseph Stiglitz ajuda a desvendar o sentido das reformas de mercado, os interesses que as moveram e os grupos que assumiram o comando das diretrizes da política econômica no mundo. Stiglitz foi presidente do Conselho de Consultores Econômicos da Casa Branca. Nesta condição, foi participante da discussão política e dos termos envolvidos nos processos de barganha e tomadas de decisões. Sua interpretação é profundamente crítica e revela como os reais sentidos das reformas se escondiam atrás do discurso econômico pretensamente racional e fundamentado. Seu maior desconforto foi participar de uma equipe de governo eleita com a promessa de gerar 8 milhões de empregos e, na chegada à Casa Branca, adotar a redução do déficit deixado por Reagan como pauta prioritária. Ele sabia que a redução do déficit poderia significar recessão e a impossibilidade da criação de empregos, objetivo que deveria pautar o mandato, segundo sua perspectiva. Mas Clinton havia herdado o extraordinário déficit público iniciado com Reagan e sua supply side economics, cuja racionalidade era a de que a redução de impostos e a desregulamentação acelerariam o crescimento, compensando a queda da arrecadação. Mas passou a década e o crescimento chegou apenas à metade do registrado nas décadas de 1950 e 1960. E pior, o crescimento ocorrido beneficiava os mais ricos, ampliando a desigualdade. Quando Clinton enfrentou o déficit, com cortes de gastos e a recomposição de impostos, os republicanos foram unanimemente contra, o que o levaria a perceber que eles nunca acreditaram de fato na supply side economics, sabiam que haveria rombos no orçamento e, portanto, a verdadeira agenda era forçar o corte de gastos e a diminuição do tamanho do Estado. Da mesma forma, Stiglitz critica os falcões da inflação que procuraram vincular a sua queda à diminuição do déficit e das taxas de juros. Na verdade, as pressões inflacionárias estavam caindo em toda parte (inclusive na América Latina) em razão da grande competição global e do enfraquecimento dos sindicatos e das pressões sobre os salários. Além, é claro, do aumento da produtividade a partir da incorporação de novas tecnologias. Nesse sentido, as taxas de juros já estavam em queda mesmo antes do governo Clinton. Segundo o autor, diversos países e regiões cresciam apesar de um endividamento muitas vezes maior do que 100% do PIB e o único argumento que relaciona a austeridade ao crescimento é o da confiança. No Brasil, conhecemos muito bem este argumento. Em tese, a diminuição do déficit levaria a uma redução das taxas de juros de longo prazo encorajando os investidores. Para Stiglitz, no entanto, falar em confiança significa que o interlocutor não dispõe de nenhum argumento objetivo. Confiança seria algo no universo mítico (2003, p. 78).
Se consideramos que o investidor deste cenário financeiro busca lucros rápidos, muitas vezes em títulos e derivativos de preferência a investimentos produtivos, sobretudo os de longo prazo, o argumento da confiança cai por terra. E, também por isso, a diminuição da participação do Estado na demanda agregada é a antessala da depressão. Este é também o pensamento de Stiglitz, para quem a austeridade fiscal não apenas não é uma solução porque compromete a atividade no curto prazo, como, em condições normais, não levará à recuperação no longo prazo, uma lição a ser aprendida pela Europa. O problema daquele contexto dos anos 1990 foi que o sucesso da economia americana levou muitos socialdemocratas a aceitarem a austeridade como condição necessária para o crescimento, o que, por sua vez, demonstra o poder de persuasão dos investidores que sustentam essa condicionalidade, embora suas decisões sobre a alocação de investimentos dependam de diversos fatores difíceis de controlar. Os mesmos “falcões do déficit” exerciam pressão para que o mandato do FED fosse exclusivamente relacionado ao controle da inflação. E, enquanto isso, Stiglitz se perguntava por que razão não se diminuíam os juros, uma vez que comprometiam o déficit público. Mais uma vez, a agenda escondida era a resposta: diminuir o Estado. Como a expansão havia estimulado a criação de empregos e a taxa de desemprego caíra muito abaixo da equação dos “falcões”, a Nairu, segundo a qual uma taxa de desemprego abaixo de 6% cria pressões salariais e de demanda inflacionárias, ele temia que o FED começasse a subir os juros impondo um freio à atividade. E o aumento veio, mas surpreendentemente a economia continuou a crescer. Era a euforia das empresas de tecnologia que queriam chegar primeiro e dominar mercados. No final do ciclo, havia uma quantidade imensa de investimentos absolutamente jogados fora. Mas o aumento preventivo das taxas de juros, sem sinais de inflação e apenas pelo aquecimento da atividade levou Stiglitz a refletir sobre a questão da inflação de um ponto de vista profundamente crítico, afinal, 3,8% de desemprego era o maior programa contra a desigualdade que o governo podia levar a cabo. Contrariamente, perseguir maior desemprego, na faixa de 6%, para se assegurar contra as pressões inflacionárias só atendia aos interesses de Wall Street, cujos títulos perderiam o valor. Além disso, uma retração de 2% na economia significava 200 bilhões de dólares a menos em arrecadação que poderiam ser investidos. Em conclusão, parecia claro que várias ideias ganharam terreno e foram colocadas em prática graças à independência do FED (2003, p. 102). Esse mecanismo só foi possível porque a política macroeconômica foi considerada especializada demais para fazer parte do debate político, sendo atribuição exclusiva de tecnocratas treinados. As decisões sobre a alocação das riquezas da sociedade foram interditadas aos governos, saindo das mãos dos representantes populares por meio de um processo que vem drenando a substância da democracia representativa, diminuindo o poder dos governantes e transformando o sistema num mecanismo de disputa eleitoral para a gestão de políticas previamente estabelecidas pela tecnocracia financeira. A globalização – terminologia que se impôs para designar o processo de abertura e integração de mercados após o fim da URSS – foi tomada como
um destino inexorável em toda parte do mundo. Como tal, implicava ajustes obrigatórios. A pauta impositiva, popularizada pelos meios de comunicação, consistia na necessária abertura e desregulamentação das economias nacionais como forma de participar o quanto antes dos benefícios do livre mercado e da expansão dos fluxos de mercadorias e dinheiro pelo mundo. O ajuste realmente necessário, entretanto, seria a adequação ou adaptação das economias nacionais à ordem em mutação de forma que cada arranjo nacional pudesse extrair os melhores benefícios dessa nova onda de investimentos e da mobilidade de recursos. Assim fez a China. Assim fizeram países do sudeste asiático depois que enfrentaram a crise financeira. A maioria dos países que soube se proteger dos efeitos nefastos da globalização e encontrou a sua própria agenda de adaptação, articulando interesses e atributos da economia nacional à nova dinâmica internacional, o fez apenas depois da primeira década e das graves crises que se seguiram à abertura no México, no sudeste asiático, na Rússia, e também no Brasil e na Argentina, países especialmente aplicados nas reformas do Consenso de Washington. Isto porque o boom norte-americano naquela década ajudou a criar uma fantasia de expansão que somente mais tarde se mostraria enganosa e, pior, portadora de gravíssimas instabilidades. Países abriam seu mercado de capitais, eliminavam tarifas e não tinham mais qualquer controle sobre a sustentabilidade de seus pagamentos, dependendo dos fluxos de capitais que, ao menor sinal de incertezas, ou respondendo ao aumento das taxas de juros dos Estados Unidos, debandavam, criando crises cambiais e ameaças de default . Nenhuma das crises foi mais grave do que a que ocorreu na Rússia. O país mudou todo o seu sistema num curto período sem transição ou o mínimo preparo de uma nova estrutura institucional. A abertura e as privatizações concentraram a riqueza e arruinaram a renda e o bem-estar social. Ao final da década de 1990, a Rússia era mais pobre e enfrentava o desafio da desigualdade e da miséria (Stiglitz, 2002). Como nos demais países, incluindo o Brasil, a superação do colapso começou quando as determinações do FMI foram finalmente abandonadas e a moeda foi desvalorizada, invertendo a dinâmica comercial e garantindo os pagamentos externos. A Argentina não tomou essa iniciativa antes da falência total, levando às últimas consequências as recomendações do FMI que propugnava a manutenção da valorização da moeda em nome da contenção da inflação. Em nenhum dos casos a inflação disparou após a desvalorização e em todos eles a balança comercial tornou-se sustentável. A quem interessava, portanto, a valorização cambial que destruiu as economias? Apenas aos investidores e exportadores estrangeiros. Mas o FMI e as autoridades econômicas propagandeavam a estabilidade da moeda utilizando a retórica do poder de compra dos trabalhadores. Um discurso hipócrita sustentado em circunstâncias em que os trabalhadores perdiam seus empregos e as economias nacionais e os salários se deprimiam. De que renda falavam? No Brasil, o que pode explicar que o senhor Gustavo Franco tenha mantido o real sobrevalorizado até a beira do precipício, sem escutar a quase totalidade dos economistas, incluindo os de dentro da equipe de governo? Como explicar que não tenha tido qualquer responsabilidade em salvar as nossas contas externas? Afinal, para quem trabalhava? A pergunta é
fundamental para todos os tecnocratas que colocam o valor da moeda acima do emprego. Esse economista que hoje fala em responsabilidade fiscal e continua advogando a agenda neoliberal teve que ser afastado do governo para que a sanidade tivesse lugar. O saldo da primeira década de globalização foi um cenário de instabilidade e aumento das desigualdades, tanto em países desenvolvidos quanto nos emergentes. Também se ampliaram as assimetrias entre eles. Com a duplicação do comércio e o poder de transferência de fluxos de capitais dos grandes fundos, também migravam as empresas e suas plantas industriais, deixando um desemprego estrutural nos países desenvolvidos. As decisões de investimentos dos grandes fundos tornaram-se o verdadeiro poder sobre o futuro das economias nacionais. Como consequência das crises e da concentração de riqueza e poder, surgiu um grande movimento antiglobalização, que mostrou toda a sua revolta pela primeira vez em 1999, em Seattle, na reunião da OMC que anunciava a pauta do milênio – o fim das barreiras do comércio global. Lá se reuniram dezenas de milhares de estudantes, sindicalistas, ecologistas e intelectuais contra a globalização neoliberal. A agenda da OMC não prosperaria, porque os Estados Unidos e a União Europeia não estavam dispostos a abrir mão de seus dispositivos protecionistas, o que emperraria as negociações da rodada Doha. O estouro da bolha de tecnologia nos Estados Unidos, na sequência de diversas crises cambiais e de um generalizado descontentamento com os resultados de uma década de reformas, indicava a falsidade das ilusões e promessas do discurso da globalização. Naquele contexto, países importantes recuperavam suas economias porque haviam abandonado as prescrições do FMI, havia resistências em relação à total abertura e ao fim dos subsídios, e a Rússia se recuperava depois da desvalorização da moeda e da reestatização de sua principal indústria, o petróleo. E a China caminhava por conta própria com planejamento bem estruturado que permitia a abertura em setores de seu interesse, com transferência de tecnologia, e a manutenção de estatais de vila e das formas mais tradicionais de emprego. Foi exatamente neste ponto da história que aconteceram os ataques de 11 de setembro, que mudariam a dinâmica das relações internacionais, iniciando uma nova etapa do poder militar americano. É claro que as mazelas da globalização podem ter levado a um aumento das atividades dos grupos extremistas no mundo, mas o fato é que, depois dos atentados, os Estados Unidos reconstruiriam a sua legitimidade de polícia do mundo em função da guerra ao terror. E o foco foi o Oriente Médio. A financeirização e a concentração do capital seguiriam a mesma dinâmica anterior, agora ajudados por intervenções militares. Como reação ou descrença, países democráticos substituíam governos neoliberais por governos mais responsáveis, cujos objetivos eram promover crescimento econômico para garantir empregos e benefícios sociais. Na América Latina, a esquerda chegou ao poder em diferentes países nessa conjuntura de descrédito das fórmulas neoliberais, promovendo reformas mais profundas em uns e menos em outros, sem, no entanto, conseguir reverter a trajetória de reprimarização e de dependência tecnológica das economias da região. O crescimento espetacular da China dinamizou o
mercado mundial de commodities e permitiu que o aumento do fluxo comercial favorecesse a economia da região, a ampliação da renda, e alguma distribuição, contribuindo para a diminuição da miséria e da pobreza. O Brasil, com sua dimensão continental e mercado não desprezível, sempre teve relativa importância como interlocutor regional. Seu crescimento na primeira década do século e a maior descoberta de reservas de petróleo do período colocaram o país no centro das ambições internacionais. Em setembro de 2008, a falência do Leman Brothers deu início à mais grave crise desde a depressão que se seguiu ao crash de 1929. No ambiente da desregulamentação, o colapso dos empréstimos podres que haviam inflado a bolha imobiliária e criado a ilusão de prosperidade e recuperação para o americano comum exibiu para o mundo a natureza do sistema financeiro. Um cassino de instituições alavancadas em níveis alarmantes cujo resultado imediato foi a proposta do presidente Bush de salvamento de bancos com mais de 700 bilhões de dólares do contribuinte americano. E alguns trilhões seriam posteriormente lançados ao mercado a fim de recuperar a economia da mais profunda recessão das últimas décadas. E onde estava a austeridade? As consequências na Europa foram igualmente devastadoras, porque também lá os bancos foram salvos e os tesouros nacionais arcaram com o ônus da especulação financeira, comprando os títulos podres e incorporando as dívidas irrecuperáveis. Em 2011, a insolvência e o desemprego ameaçavam a estabilidade política no bloco, com países quebrando e ondas de protestos contra a Troika e as diretrizes de austeridade impostas pela Comissão Europeia. Na Grécia, o desemprego atingiu os 25%, na Espanha, 23%, em Portugal, 20%, e a situação não era muito melhor na maioria dos demais países da zona do euro. Uma situação dramática perpetuada pela política econômica de austeridade. Os Estados salvaram as economias, ou os bancos. Não houvesse essa institucionalidade coletiva, mas apenas a predação do mercado, e todos estariam quebrados. Mas, curiosamente, não salvaram as pessoas comuns. Isto porque, apesar da notória inaptidão dos mercados para promover a mais eficiente distribuição dos recursos, a produção e o bem-estar, a ideologia neoliberal foi reforçada, aprofundada. A dinâmica da crise na Comunidade Europeia demonstra o poder do dogma, ou melhor, das instituições que o impõem. Não se trata de razão econômica, é só poder. Talvez, a ilusão democrática precise acabar. Não é à toa que o ambiente político seja de radicalização. Um elemento que agrava o contexto é a falta de respostas da esquerda. Não há new dealers que sejam ouvidos, porque socialistas e trabalhistas europeus, assim como os democratas norteamericanos, plantaram e cultivaram a mesma irracionalidade do mercado. Nos últimos anos, diante da estagnação de uma economia em que o capital é reciclado por meios financeiros, o próprio FMI passou a recomendar mais gastos governamentais e o afrouxamento da austeridade. Mas o cenário é ainda mais devastador depois de uma década de crise se consideramos as disputas geopolíticas globais. As intervenções militares justificadas pela suposta guerra contra o terror destruíram diversos países,
todos relacionados aos interesses de petroleiras globais e à manutenção da hegemonia norte-americana diante da ameaça da expansão chinesa. Afeganistão, Iraque, Líbia e, mais recentemente, a Síria, foram atacados e jogados no mais absoluto caos. Outros países foram desestabilizados por movimentos políticos apoiados pelos Estados Unidos, como a Ucrânia e mesmo a Turquia. A reabilitação da Rússia e sua aproximação estratégica com a China é a fonte real da iniciativa militar americana no Oriente Médio. A iniciativa de constituição de um grande banco de desenvolvimento e a possibilidade de uma alternativa ao dólar como moeda de comércio entre os países do Brics é uma ameaça contra a qual os Estados Unidos e seus aliados vão combater, por quaisquer meios. Isso explica o aumento das tensões internacionais. O Brasil é parte disso. Para todos aqueles que imaginam que os nossos problemas se resumem à corrupção, é hora de acordar. Estamos no mundo da globalização, da guerra por mercados. E somos uma potência de recursos naturais. Talvez a única relação que a corrupção guarde hoje com o nosso drama seja impedir que tenhamos uma vida política e partidária vigorosa para debater e construir um projeto capaz de enfrentar todos esses desafios. O Brasil vive desde o início dos anos 90 sob a imposição das reformas neoliberais. Somos objeto do plano alheio, reservatório de recursos a serem explorados, de mão de obra a ser precarizada, de patrimônio público a ser transferido para corporações globais e, sobretudo, devemos estar politicamente desorganizados, com um Estado manietado, sem recursos e sem direção. Foi neste contexto que, diante da visão de que o corrupto PT permaneceria no governo por mais uma década, uma oposição igualmente corrupta, de uma das agências de candidaturas igualmente patrocinada por propinas, decidiu ser instrumento dos interesses do mercado e das corporações e promover um golpe parlamentar no Brasil, com a ajuda das corporações de mídia que articularam uma grande campanha anticorrupção, elevando um juiz à posição de herói da república por fazer o seu trabalho. Mecanismos de manipulação, como a criminalização dos gastos públicos, a identificação da crise econômica à crise fiscal, ou a histeria anti-inflacionária em nome do consumidor prepararam o terreno para o golpe de fato, a interdição do Estado por meio do teto de gastos, a precarização do trabalho, a tentativa de assalto à previdência, as reformas da educação e da saúde (em curso) e, é claro, a entrega da exploração do petróleo e das estatais. Todo o arsenal estava pronto desde o primeiro dia do governo do golpe, antes mesmo do fim do processo de impeachment e da condenação definitiva da presidenta Dilma Rousseff. Nunca se viu tanta rapidez para a aprovação de projetos de lei, e até emendas constitucionais, no Congresso brasileiro. Congresso, aliás, que depois de ter impedido uma presidenta eleita por supostas operações de crédito e gastos públicos não autorizados no orçamento, protegeu o presidente conspirador, embargando a sua investigação após flagrante de corrupção coordenado pelo Ministério Público. Se tudo isto está muito bem e assim deve permanecer, nosso destino está selado. Não temos rumo, vamos apenas esperar os investidores. Neste caso, a vitória é dos meios de comunicação que conseguiram vendar nossos olhos e dominar nossas almas.
Uma vez que as relações de poder estão fundadas na construção de ideias na mente humana, a produção dessas ideias é uma forma poderosa de dominação (Castells, 2015). Durante as últimas décadas, um arsenal de fórmulas pretensamente neutras foi utilizado para modelar a ideia de que o Estado brasileiro é grande demais, ineficiente demais e por estas razões constitui a causa do nosso atraso econômico e social. Não é o neopatrimonialismo das corporações globais ou as transferências financeiras que endividam e empobrecem o Estado em benefício dos “investidores” que são apontados como causa. Nem os interesses rentistas e os mecanismos que seus agentes desenvolveram para se apropriar dos bens públicos por meio da participação nos lugares de poder. É o Estado. Lugar de ineficiência e corrupção. E deve, portanto, ser contido, limitado aos interesses do “mercado”, um ator indeterminado que se tornou o sujeito de todas as falas prescritivas dos comentaristas econômicos: “o mercado reagiu mal”, “o mercado espera...”, “gerou desconfiança no mercado”. O mercado está no comando, ao que parece. Um dos formuladores do Plano Real, o economista André Lara Resende, que se dedicou ao estudo da inflação e participou do dream team do governo neoliberal de Fernando Henrique Cardoso, depois de mais de duas décadas, e sob o impacto da crise de 2008, fez uma profunda revisão crítica de seu pensamento e da política monetária que o Brasil adotou nas últimas décadas. O debate ficou restrito aos meios de comunicação mais especializados, como o jornal Valor e uma entrevista na Globo News, com a jornalista de economia Miriam Leitão. Mas não deixou de levantar as paixões dos acadêmicos que dominam os meios políticos como porta-vozes da ortodoxia da austeridade. Afinal, não se tratava da crítica de um jovem qualquer, com alguma tese que ficaria restrita aos muros das universidades. A revisão devastadora vinha de dentro, de um dos principais fundadores da escola das reformas neoliberais, que hoje vive da produção do discurso que interessa à mídia e da ocupação das cadeiras dos comitês de política econômica. Em debate no Insper, em junho de 2017, André Lara Resende atribuiu ao campo de estudos econômicos a responsabilidade sobre a produção de um conhecimento sem base na realidade. Havia um claro descaminho ocorrido a partir da evolução dos métodos e da linguagem matemática. Os modelos e as expectativas racionais, cujas premissas eram as mesmas dos modelos, embora parecessem incontestavelmente lógicos, produziam resultados irrealistas, e, diante do impasse, a resposta da ciência econômica foi: “se os modelos são irrealistas, dane-se a realidade, fiquemos com os modelos!”, Segundo Resende, os modelos macroeconômicos não podem produzir relações de causalidade entre os fenômenos porque há inúmeras variáveis funcionando de forma independente. Daí que os modelos, apesar de sua sofisticação, não permitem testes, somente calibragens, cujo sentido seria o de adaptá-los à realidade. Uma verdadeira impostura que teria acabado com a credibilidade da macroeconomia como campo de estudo científico. Como tudo e qualquer resultado pode ser produzido, a economia se presta à ferramenta de manipulação, na medida em que grande parte das hipóteses escolhidas para adaptar o modelo fica escondida debaixo de uma quantidade de equações que dificultam o entendimento das premissas até para os especialistas. É por meio deste mecanismo – o discurso econômico
pretensamente científico e impenetrável – que meios de comunicação e partidos têm sistematicamente manipulado informações e formado consensos contra a política e o Estado. Dessa já extensa tentativa de interpretação dos tempos que eu vivi, há algumas conclusões evidentes. A primeira delas é que o liberalismo, como conjunto de ideias da modernidade, permitiu o avanço de princípios políticos importantes relacionados às liberdades e à universalidade dos direitos do homem. Como doutrina para o desenvolvimento econômico, entretanto, é uma farsa. Lembra-me a frase de Stiglitz de que a mão invisível de Adam Smith é invisível porque simplesmente não existe (2003). Nasce como expressão da riqueza de nações que se construíram por mecanismos mercantilistas e colonialistas. A tradução liberal da revolução produtiva dos séculos XVIII e XIX se impõe a partir de uma configuração de poder incontrastável de algumas nações sobre as demais, e a abertura de mercados favorece, em regra, os interesses daqueles que não têm competidores. A ideia de que escolhas racionais produzem a alocação ótima dos recursos em ambiente competitivo e sem regulamentações ignora as assimetrias de poder e os conflitos, tanto no âmbito da economia doméstica, quanto da global. Talvez seja proposital, uma vez que o objetivo último é diminuir as atribuições sociais dos Estados e, portanto, a distribuição de parte das riquezas produzidas socialmente. Capitular diante dos ataques ao Estado é perder as condições de democratizar os benefícios da modernidade, e mais, porque se o desenvolvimento do capitalismo se dá unicamente a partir de uma voraz competição, necessariamente relacionada ao poder militar, desistir do Estado em benefício daqueles que querem o congelamento do status quo significa desistir da soberania e permanecer na condição dependente e subordinada, condenando permanentemente a maioria de indivíduos à pobreza, exploração e, no limite, à completa exclusão social. A tarefa de resgatar a soberania e o poder do Estado, contra a hipnose do mercado que nos constrange é um desafio dos mais difíceis. Implica necessariamente a batalha da comunicação e o desmonte de um trabalho de décadas de falseamento de informações. Ainda que os novos meios digitais e redes possam ser mobilizados, com poder de influência cada vez maior, a articulação de forças democráticas que exijam a recomposição do poder político frente à ditadura financeira global depende do discurso, do projeto, da ideia. E onde eles estão? Talvez nosso primeiro passo deva ser refletir e debater sobre o que queremos ser e ter, e então começar a construir os meios. Essa tarefa não cabe no marketing do ciclo eleitoral, tampouco na romaria personalista que empobrece e paralisa nossa vida política. Notas 29 . Segundo Hobsbawm (1995, p. 97), entre 1932 e 1933, havia 23% de desempregados entre os britânicos, 27% entre os americanos, 31% entre os noruegueses, 32% entre os dinamarqueses. A Alemanha era a recordista com 44% de desempregados e foi o único país a resolver o problema antes de 1938.
30 . De acordo com Luiz Alberto Moniz Bandeira (2016, p. 458), o acordo é anterior à Guerra do Yom Kippur e ao aumento dos preços do petróleo, o que indica a articulação norte-americana para a primeira crise do petróleo com o objetivo de financiar o seu déficit e impedir a substituição do dólar como moeda internacional de troca. 31 . Sobre a crise do petróleo (1973) e o desafio de economias não produtoras em desenvolvimento, ver Capítulo 1. 32 . Para um histórico do desenvolvimento do grupo de Mont Pélerin, ligado a Hayek: Santos, Theotônio dos. O neoliberalismo como doutrina econômica. Econômica , Niterói, n. 1, v. 1, 1999. Sobre a evolução dos think tanks liberais nos anos 70: Rocha, Camila. Direitas em rede: think tanks de direita na América Latina. In: Cruz, Sebastião Velasco; Kaysel, André; Codas, Gustavo (org.). Direita, volver! O retorno da direita e o ciclo político brasileiro. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2015, p. 261-278. Referências ALMEIDA, Paulo Roberto. Os primeiros anos do século XXI : o Brasil e as relações internacionais contemporâneas. São Paulo: Paz e Terra, 2002. ALMONACID, Ruben Dario. A mágica do Dr. Gustavo Franco, revisitada. Revista de Economia Política , São Paulo, v. 18, n. 2, p. 90-95, 1998. ANDRESON, Perry. As origens da pós-modernidade . Tradução Marcus Penchel. Rio de Janeiro: Zahar, 1999. ARANTES, Flavio; BIASOTO JR., Geraldo. A política fiscal no contexto da financeirização: teoria insuficiente e indicadores inadequados. Economia e Sociedade , Campinas, v. 26, número especial, p. 1063-1095, 2017. ARRIGHI, Giovanni. O longo século XX : dinheiro, poder e as origens do nosso tempo. Tradução Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Contraponto; São Paulo: Editora Unesp, 1996. AVERBURG, André; GIAMBIAGI, Fábio. A crise brasileira de 1998/1999 – origens e consequências. Textos para Discussão 77. Rio de Janeiro: Ipea, 2000. AYERBE, Luis Fernando. Neoliberalismo e política externa na América Latina . São Paulo: Editora Unesp, 1998. BADO, Álvaro Labrada. Das vantagens comparativas à construção das vantagens competitivas: uma resenha das teorias que explicam o comércio internacional. Revista de Economia e Relações Internacionais , São Paulo, v. 3, n. 5, p. 5-20, 2004. BANDEIRA, Luiz Alberto Moniz. Formação do império americano . Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006. __. A desordem mundial . Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006.
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