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Portuguese Pages [148] Year 2021
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MARCO CORREA LEITE
PSICANÁLISE CLÍNICA: PRIMEIROS PASSOS
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MARCO CORREA LEITE
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Literatura em Cena 2022 @literaturaemcena19 4
Editor: Eduardo Lucas Andrade Capa: Indries Andrade Simões Diagramação e revisão: Geralda Andrade Simões Agosto/2022
158 L533P Leite, Marco Correa 2022 Psicanálise clínica : primeiros passos ; Marco Correa Leite ; Capa Indries Andrade Simões ; revisão de Geralda Andrade Simões. Bom Despacho : Literatura em Cena, 2021. 146p. ISBN : 978-65-87220-56-7
1. Psicanálise ; 2. Clínica . II.Título CDD 158
Ficha catalográfica: Geralda A. Simões-CRB/MG 003693 5
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO............................................................................ 7 CAPÍTULO I - A PRIMEIRA SESSÃO................................... 13 A Psicanálise cura!...........................................................................13 As Primeiras Sessões......................................................................18 CAPÍTULO 02 - O MÉTODO CLÍNICO................................ 39 Adendo Sobre a Problemática da Técnica em Nosso Campo..39 As Primeiras Sessões: Tempo de Ver............................................46 A Terapia de Ensaio e o Diagnóstico............................................56 As Entrevistas Preliminares e a Entrada em Análise ................65 Um Pouco Sobre a Clínica Contemporânea................................73 CAPÍTULO 03 - ÉTICA, DINHEIRO E TEMPO EM PSICANÁLISE: AS SESSÕES, O PAGAMENTO E NOSSA ÉTICA........................................................................81 Tempo, Dinheiro e a Ética da Psicanálise.....................................85 O Pagamento e a Realidade: RSI...................................................98 O Tempo..........................................................................................105 O Tempo da Sessão: Método Clínico..........................................114 Olhar, Compreender e Concluir a Lógica de Uma Sessão de Análise.............................................................................................121 CAPÍTULO 4 - A FORMAÇÃO DO ANALISTA...............127 Considerações Finais..............................................................137 Referências bibliográficas.............................................................142 6
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INTRODUÇÃO
O que realmente me cabe acentuar é que, ao se oferecer ao ensino, o discurso psicanalítico leva o psicanalista à posição de psicanalisante, isto é, a não produzir nada que se possa dominar, malgrado a aparência, a não ser a título de sintoma (LACAN, 1970/2003d, p. 310).
“Os primeiros passos da clínica” é um livro que pretende funcionar como um interlocutor para o analista em formação, que inicia sua jornada como psicanalista. Não foi pensado com a pretensão de ser passo-a-passo de como proceder na clínica, porque é impossível construir um manual, ou uma cartilha sobre a prática psicanalítica, uma vez que a universalização de seus postulados é inviável. Suas páginas contêm uma exposição teórica, recortada de testemunhos de ordem prática, sobre noções que são fundamentais quando pensamos sobre o fazer do psicanalista, quando este se ocupa em oferecer uma análise àquele que o procura para dar fim a um sofrimento psíquico. E traz, de carona, as inquietações que implicam bancar um trabalho assentado sobre a ética da psicanálise. Essa ética, insistente, aponta para o desejo e – consequentemente – para a falta. É preciso não perder de vista esse farol ético, quando se escreve para quem está iniciando na prática clínica. O autor, por isso, teve o cuidado de dividir sua obra em temas norteadores, que vão desde a exposição teórica sobre o começo de uma análise e a posição ética que um analista precisa ocupar até questões práticas, como a função das entrevistas pre8
liminares, o pagamento das sessões e o manejo do tempo com os analisantes, um a um. A cada capítulo encontramos a construção de um testemunho teórico-clínico de um psicanalista que não cessa de pensar, re-pensar, ensinar e aprender a psicanálise. A verdadeira psicanálise, calcada na ética de produzir a mais pura diferença pela positivação da experiência com o unheimlich, esse estranho tão familiar que nos habita. O livro caminha na direção de co-laborar criativamente com o leitor, a partir do que seu autor testemunha como analista, analisando e professor. Dessa maneira, na sustentação de uma escrita que promove um ensino, também aposta que ocorra a transmissão. Tal aposta por intermédio de um livro, foge de um ideal pedagógico para, justamente, sustentar a possibilidade da transmissão da psicanálise. Ser analista é ocupar uma posição de se mostrar habitado por um desejo mais forte do que o desejo de ser mestre. Phillipe Julien (2006, p. 245) escreve que “o que um analista já sabe não lhe serve de nada [...]”, porque é a prática que não cessa de fundar, e furar, a teoria. Não é a teoria, única e somente, que determina o trabalho psicanalítico, mas o real da experiência com a psicanálise. São as questões, os embaraços, os “não saberes” que movimentam e renovam a psicanálise. E, para tanto, é preciso “[...] sustentar radicalmente a experiência limite da morte indicada pela dor do desamparo, acreditando que, da fronteira com o horror do impossível, o sujeito vai advir”. (Birman, 2016, p. 49) O que “hominiza” os seres é carregar consigo a questão que não tem resposta, e nunca terá. Donde nos habilita a entender que o dito do Inconsciente é uma resposta pelo fato de ser o que estimula qualquer pergunta. Encarar esse desafio não é para os fracos de coração. E se você está com esse livro nas mãos, deduzo que você tem esse 9
desejo. O que posso dizer é que o livro discorre sobre o início da clínica com coragem e criatividade. Criação e desejo: encontro potente que sustenta cada psicanalista, responsável por fazer perdurar a psicanálise nos nossos consultórios e na cultura, desde sempre tão resistente aos seus princípios. Lacan diz, em Nota Italiana, que só existe analista se esse desejo lhe advier e, na sustentação de tal desejo, ele se fizer rebotalho da humanidade. Mas atenção: saber ser um rebotalho vem junto com o entusiasmo gerado pelo encontro com o gaio saber, ensina. Só existe analista se esse desejo lhe advier, que já por isso ele seja rebotalho da dita humanidade. Digo-o desde já: essa é a condição da qual, por alguma faceta de suas aventuras, o analista deve trazer a marca. [...] É justamente aquela que lhe imputo, de haver transmitido unicamente aos rebotalhos da douta ignorância um desejo inédito. O qual se trata de verificar: para fazer o analista. [...] A partir daí, ele sabe ser um rebotalho. Isso é que o analista deve ao menos tê-lo feito sentir. Se ele não é levado ao entusiasmo, é bem possível que tenha havido análise, mas analista, nenhuma chance. (p. 313)
Trata-se, então, de uma relação muito particular com esse saber que passa em ato. O analisando passado a analista se encontra com o entusiasmo e reescreve com a mesma “pena” o que de pena não há mais. Posiciona-se como objeto resto, objeto a, refugo da operação de divisão do sujeito. Retifica o sentido da sua existência para fazer surgir daí um trabalho intrínseco à dimensão da verdade e que, por estar aí situado, toca o real, a causa do desejo. Esse trabalho de se formar analista, então, só pode ser realizado em um tempo sem pressa, de paciência artesã, de tra10
dução de línguas estrangeiras, de espera e de repetição. É um tempo de elaborações tão intensas que precisam ser ditas devagar, porque trazem a verdade não-toda sobre si mesmas. Nesse sentido, a direção é mais importante que a velocidade e constatamos diariamente que os meios se adaptam ao destino, fincado no desejo incansável de exercer o ofício do psicanalista. Portanto, quando alguém decide nomear-se psicanalista e trabalhar com psicanálise, essa decisão não vem sem algumas escolhas e, consequentemente, renúncias éticas. Escolhe-se a dedicação a um processo de formação que não possui etapas verificáveis e não é regulamentado. Também a produzir uma modalidade de trabalho que não se encaixa como uma prestação de serviço. E, no exercício da clínica, a renunciar as certezas terapêuticas para colocar em causa sempre uma aposta. Quem faz essa escolha depara-se com uma prática que é orientada pela produção singular de cada pessoa que busca um psicanalista e empreende uma análise. A maioria dos estudantes de psicanálise conhece a passagem do artigo “Análise finita e infinita”, na qual Freud (1937/1980) coloca a psicanálise como uma prática impossível, juntamente com a arte de educar e de governar. Detenhamo-nos aqui por um momento para garantir ao analista que ele conta com a nossa sincera simpatia pelas exigências muito rigorosas a que tem de atender no desempenho das suas atividades. Quase parece como se a análise fosse a terceira daquelas “profissões impossíveis” quanto às quais se pode de antemão estar seguro de chegar a resultados insatisfatórios. As outras duas, conhecidas há muito mais tempo, são a arte de educar e de governar. (FREUD, 1937/1980: 224) 11
Nesse mesmo parágrafo, Freud chama de “pobre infeliz” a pessoa que busca as qualificações para se formar psicanalista. Essa passagem sempre me causa graça e me lembra a frase de uma ex-aluna que recebi como estagiária, quando eu era supervisora de estágio e lecionava no curso de psicologia que fui docente por mais de uma década: “Não tem como ser feliz estudando psicanálise”. Eu concordo, a inquietação do encontro com a teoria nos transporta muitas vezes para a angústia de não entender. Para tanto, costumo dizer que é preciso dar as boas-vindas ao fato que estudar psicanálise é uma desaprendizagem. Aqui a regra não é acumular conhecimento, porque trata-se de uma outra relação com o saber. Certa vez, em Vincennes - centro universitário experimental na França -, Jacques Lacan, psicanalista francês, nos tempos da crise universitária de 1969, em meio a uma discussão acalorada com os estudantes, quando perguntado sobre por que, ao final do ensino que recebem, não poderiam tornar-se psicanalistas, responde que “a psicanálise não se transmite como qualquer outro saber”. (MAURANO, 2009, p. 149)
Na formação de uma analista, além da travessia de sua análise pessoal, é preciso suportar também uma travessia da teoria. Não há como se eximir de experimentar os percalços teóricos. É preciso que o estudante se transforme em um investigador da teoria da mesma maneira que investiga seus próprios processos subjetivos: abrindo-se para as ressonâncias do texto e para o que a tal teoria aponta sobre seu próprio funcionamento íntimo. Então, tendo em conta toda labuta e insistência que envolve esse processo, é muito justo e compreensível alguém se perguntar: por que uma pessoa escolhe trabalhar com psicanálise? 12
Para essa pergunta, cada um dos leitores desse livro terá que construir sua própria resposta. Eu construí a minha. Marco Leite também. E garanto a você que o livro que você tem em mãos é efeito e parte da resposta dele. Fernanda Samico
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CAPÍTULO I
A PRIMEIRA SESSÃO A Psicanálise cura! Em 1905 Freud afi rmou que a Psicanálise é um procedimento de cura para aqueles que não encontraram, em outros tratamentos, um alívio signifi cativo para seus sofrimentos. Pessoas que estavam incapacitadas de viverem uma vida em que fosse possível amar e trabalhar de forma satisfatória. (LEITE, 2021 p. 27) Sendo a Psicanálise um tratamento, como tal produz e promove algo que podemos nomear de uma cura. No entanto, para que alguém possa se benefi ciar do tratamento, é preciso padecer de um certo mal-estar, que confi gure um estado em que o paciente necessite desse tratamento. Não é qualquer pessoa que vai se benefi ciar de um tratamento psicanalítico, portanto a Psicanálise não é indicada para todas as pessoas, e essa é a proposta deste livro, abordar sobre diagnóstico diferencial, entrevistas preliminares e início do tratamento. Na era dos diagnósticos e tratamentos ultrarrápidos, a Psicanálise ainda acolhe os que tentaram livrar-se de algum tipo de sofrimento e que fracassaram. As tentativas são as mais variadas possíveis. Desde igrejas a psiquiatras, fl orais, massagens, yoga, entre outras terapias que, embora tenham seus 14
efeitos, não produzem o resultado esperado, não apresentando melhora significativa na condição de saúde mental que pode ser mínima ou nem existir. (LEITE, 2022) Não temos como garantir que a partir dos primeiros encontros teremos uma análise propriamente dita. Em um primeiro momento é necessário pensar no encontro entre o paciente e o analista como uma oferta de um lugar para que uma pessoa em sofrimento possa falar, diferente de um trabalho de florais, de um trabalho medicamentoso ou de um trabalho de psicoterapia. Nestes primeiros encontros, o analista é alguém que recebe um outro e que lhe oferta um espaço de fala, alguém que convida o paciente a dizer. Tem-se que considerar alguns pontos, primeiro é importantíssimo que o paciente fale, para que em um segundo momento seja possível uma escuta ou, melhor dizendo, uma intervenção que permita ao analisante escutar o que ele mesmo acabou de dizer e que, em outros espaços, isso dificilmente seria possível. O analista oferta um espaço para que o paciente fale, mas como isso se dá? O início do tratamento é muito simples. Espera-se que o analista pergunte ao paciente, desde as primeiras sessões, sobre os motivos que o levaram a procurar ajuda. Para dar alguns exemplos, pode-se perguntar: “O que está acontecendo?”, “por que me procurou?”, “o que espera do tratamento?”. É interessante ressaltar que, em algumas instituições, o analista ou fala muito mais do que o paciente, ou não diz absolutamente nada. Para não incorrer neste erro que, geralmente tem como consequência o silenciamento do paciente e, com isso, a impossibilidade de se produzir uma transferência analítica, deve-se ter em mente que o espaço ofertado é o de fala, ou seja, intervir de forma a fazer com que o paciente diga o que quer que ele tenha a dizer sem se preocupar com as intervenções, com o tempo 15
ou com o que ele está dizendo. Nos primeiros encontros, procura-se fazer com que as intervenções tenham o efeito de produzir algo que seja uma demanda analítica, que aponte para um sofrimento que insiste e que, por mais que se conheça o sentido, ou que se diga sobre, ou que se saiba os motivos, não cessa. É como se o paciente fosse levado a reconhecer uma certa impotência diante deste mal-estar. Isso, é claro, em se tratando da clínica das neuroses. Reconhecer sua impotência não é o mesmo que reconhecer a impossibilidade. O que deve ficar evidente é que o paciente possa se descobrir como alguém e o analista deve sempre apontar para a singularidade, retirando os excessos pela via do dizer, como nos aponta Freud (1905), ao comparar a psicanálise com a nobre arte do escultor em oposição à nobre arte do pintor. Outro ponto que deve ser trabalhado com muito cuidado é saber se o paciente já passou por outros tipos de tratamento. Geralmente, os pacientes procuram o psicanalista depois de passar por psicólogos, médicos, religiosos, etc.. Há que considerar que uma análise só é possível quando outros tratamentos fracassam e levar em consideração que uma análise, propriamente dita, não dá conta de tudo e nem de todos, ou seja, ela também pode, e em certas circunstâncias fracassa. Este aspecto é muito importante e deve ser observado por quem está na clínica: trabalhar para que a castração seja efetiva e produza os efeitos que dela se espera. Agora, dizer que a castração seja efetiva, não é o mesmo que dizer que todos os pacientes devem recuar no mesmo ponto ou que todas as análises devem fracassar no mesmo momento. É necessário respeitar o tempo, o percurso, as possibilidades e os limites de cada um, afinal, a Psicanálise é a clínica do um a um. No tratamento psicanalítico, a singularidade é um fator de extrema importância, tudo aquilo que um paciente diz deve 16
ser escutado na sua particularidade, no caso a caso, sempre atentando que a fala está sendo dita e dirigida a um analista pela primeira vez e que muitos pacientes usam as mesmas palavras para dizer a mesma coisa, ainda assim, nota-se que há algo de diferente ali. Tenhamos como exemplo o pensamento de que existem Psicanálises e Psicanálises. Neste exemplo, mesmo que esteja nomeando uma prática qualquer de Psicanálise, fica evidente que não estou falando da mesma coisa. Coisas diferentes que insistem, na maioria das vezes, de serem ditas da mesma forma. Ou ainda, a mesma coisa que se repete em outros dizeres. O analista deve estar atento a esses movimentos que o léxico nos possibilita. Freud, em seus artigos sobre a técnica, recomendava a todos os analistas que tomassem cada paciente como o primeiro, se esquecendo de tudo aquilo que já viveu, tudo aquilo que já ouviu, tudo aquilo que sabe de antemão de um paciente. Isso é importante porque na medida em que o analista supõe saber qualquer coisa sobre o paciente, ele estará fazendo outra coisa e não Psicanálise. Podemos tomar por exemplo a questão da empatia. Algumas pessoas afirmam que o comportamento de empatia é importante para o terapeuta, mas na Psicanálise isso é contra o método psicanalítico pois, quando me coloco no lugar do outro, estou me colocando como o quê? Como objeto a ser endereçado uma fala e, posteriormente uma demanda de cura, ou como sujeito a ser analisado? Segundo Freud em “Recomendações aos médicos...”: “Certamente é tentador para o jovem e ambicioso analista o fato de investir muito da própria individualidade para levar o paciente consigo e içá-lo, com esse impulso, por sobre as barreiras de sua personalidade. Devíamos crer ser totalmente 17
aceitável e até útil para superar as resistências existentes no doente quando o médico lhe oferece uma visão de seus próprios defeitos psíquicos e conflitos, possibilitando a ele uma igualdade de posições quando lhe dá informações sigilosas de sua vida” (Freud, 1912 p. 101).
Ora, a análise deve ser feita a partir do discurso que se produz na relação de um que fala a outro que se coloca no lugar de objeto. Esse pequeno esquema, quando aplicamos na relação transferencial nos dá a oportunidade de analisar a transferência mesmo, ou seja, aquilo que se produz e que tem como efeito a possibilidade da reedição do que faz o paciente sofrer. Neste sentido, o analista não está ali como igual, mas como aquilo que possibilita que uma análise aconteça. O analista faz mais função de caixa de ressonância, no sentido de que ele escuta alguma coisa e aquilo reverbera nele e volta para o paciente, do que dizer o que ele pensa, o que ele sabe e o que ele acha. Essa é uma diferença no campo da Psicanálise para todos os outros modelos psicoterapêuticos que temos à nossa disposição. A linha de raciocínio em outras práticas terapêuticas costuma ser a seguinte: conforme vai escutando o paciente, já vai pensando no diagnóstico, no prognóstico, nas possibilidades de tratamento. No campo da Psicanálise escutamos os pacientes com a atenção voltada àquilo que eles estão tentando dizer e toda a história construída a partir da narrativa se desfaz com um lapso, um ato falho, um chiste. Segundo Freud (1912), nem sequer devemos tomar anotações ou então tentar guardar na memória aquilo que foi dito durante as sessões, devemos estar atentos ao aqui e ao agora. O método psicanalítico consiste em nos atentarmos para aquilo que se produz em transferência, na forma de uma escrita a ser lida pelo analisante. Podemos ainda dizer que, quando muito, o analista 18
ensina o paciente a ler o que o inconsciente, como um escriba, escreve com palavras, chistes, silêncios, tons de voz, etc.. Seguindo no campo da singularidade, do caso a caso, tentamos fazer com que este que nos chega à clínica, desde o primeiro momento, se interesse pela sua história, compreendendo que aquilo que ele sabe sobre sua própria história é tão somente um vislumbre de algo muito maior, que ele ignora, e que, de alguma maneira, pode fazê-lo feliz, mas também pode fazê-lo sofrer. A história que ouvimos na clínica é sempre uma narrativa permeável pelo acontecimento presente. Cabe ao analista, ao escutar, apontar para que o paciente diga o que do passado está no presente e o que do presente ele coloca no passado. O que quero dizer é que tanto o presente, o passado e o futuro são atualizados na fala do paciente, no aqui e no agora. A história que ouvimos está sempre em construção, nunca vem pronta, nunca está terminada. Neste sentido, enquanto analistas, “não oferecemos nunca a cura, mas um espaço de escuta, escuta de si mesmo sem o julgamento de um Outro”. (LEITE, 2022)
As Primeiras Sessões Quando um paciente procura um tratamento, será que já não tem alguma coisa ali para além de um sofrimento, que de alguma maneira faça com que ele pense que esse profissional vai resolver o seu problema, vai resolver a sua vida? O analista tem que tomar muito cuidado, por que se quer de fato que seja possível um trabalho, a primeira coisa que se tem a fazer é sair deste lugar e para sair deste lugar é preciso, antes, ocupá-lo. Freud perguntava, questionava, colocava as coisas nos seus devidos lugares com seus pacientes e, Lacan, da mesma 19
forma, questionava, interrogava, apontava. De alguma maneira temos o dever de elevar a fala à dignidade que ela merece, o paciente deve entender que o que ele diz nunca é sem sentido, sem direção, mas que essa direção segue um destino dado a priori e, o analista, vai intervir para que se chegue a um outro lugar, para que perceba que naquilo que ele diz há algo a mais, não oculto, mas de uma ou muitas possibilidades. A questão é que o analista ao perguntar sobre a vida do paciente deve ser no intuito de revelar a divisão subjetiva, não por mera curiosidade e para puxar assunto, como faríamos em uma roda de amigos ou em uma mesa de bar. Essas questões que levantamos para que o paciente responda, em um primeiro momento da análise, que chamaremos teoricamente de entrevistas preliminares, tendem a revelar uma maneira de ser em relação ao outro, ao mundo, uma maneira muito peculiar de ocupar um lugar que, ao mesmo tempo que supostamente “garante” imaginariamente o amor do outro, causa sofrimento. Em suma, pretendemos com as questões verifi car se aquele paciente padece de algo da ordem de uma determinação inconsciente. A determinação inconsciente é algo muito simples, na realidade é quando nos damos conta de que qualquer coisa que a gente faça em nossas vidas tendem a um mesmo resultado. É como se o destino já estivesse traçado, independente dos caminhos que a gente procure. Podemos pensar com Freud (1930) quando cita seu passeio por uma cidade e que independente do caminho que ele pegasse sempre caía no lugar que ele, conscientemente, pretendia evitar. Segundo Eidelsztein se você já tentou todas as maneiras terapêuticas, já tentou com a vontade, com o fortalecimento do ego, fazendo treinamento, fazendo recomendações, leu 20
livro de autoajuda, e mesmo assim não encontrou um mínimo de alívio para seu sofrimento, talvez seja interessante consultar um analista pois, pode ser que este mal-estar seja efeito de uma determinação inconsciente. Durante as primeiras sessões, pretendemos enquanto analistas, fazer com que o paciente perceba que a vontade fracassa, ou seja, que ele não é determinado por sua vontade nem por sua força de vontade, nem por sua fé, mas que tem algo que o causa, que o determina e que escapa das suas forças, escapa entre os dedos. Lacan (1957) em A Psicanálise e seu ensino nos aponta que “No inconsciente, que é menos profundo do que inacessível para o aprofundamento consciente, isso fala: um sujeito no sujeito, transcendente ao sujeito...” (p. 438)
Em outras palavras, nós podemos dizer que essas primeiras sessões são extremamente importantes para que possamos identificar se isso do qual o paciente se queixa é da ordem de uma determinação inconsciente ou de outra coisa. Basta que se entenda que uma análise é impossível se o problema não é de determinação inconsciente, se o problema é orgânico, se o problema é moral, por exemplo. Afinal de contas, se o problema for falta de algum hormônio como cortisol ou testosterona no corpo, podemos perder tempo e prestígio insistindo em um tratamento que não terá qualquer eficácia, pois o paciente precisa de um médico e não de um psicanalista. Muitas vezes os analistas mais jovens acabam por confundirem a questão da demanda de análise com uma outra demanda qualquer. A rigor, ninguém chega a um analista com uma demanda de análise, ninguém sabe que vai dar uma análise, nem mesmo o analista sabe se aquele paciente vai tornar-se analisante ou não. 21
O que chega ao consultório, geralmente são pessoas que querem dar fim a um e, em alguns casos, a vários problemas que causam sofrimento. A demanda aqui é uma demanda pelo alívio de um sofrimento. Mas, o que é uma demanda? No português a palavra demanda tem alguns sentidos possíveis. Trabalhar com a teoria psicanalítica é trabalhar lado a lado com o dicionário. Demanda significa um pedido, uma exigência, uma solicitação. Também tem o caráter de manifestação de um desejo. Ocorre que o desejo, no senso comum, não é o mesmo que o desejo para a Psicanálise. Podemos então afirmar que os pacientes, ao procurarem a clínica, não demandam uma análise, mas solicitam um tratamento, nos fazem um pedido de ajuda e, por conseguinte, exigem de nós algum resultado. Devemos cuidar muito bem para saber se o que nos pedem é ou não possível – ainda que não haja garantias – de ser alcançado com um tratamento psicanalítico. Colocarei a questão da demanda e da oferta por duas vias. Primeiro, vamos tentar compreender um pouco do que os pacientes demandam ao analista, depois veremos o que oferta o analista no sentido do que seria o objetivo de uma análise. O que nos pedem os pacientes que nos procuram? Seria em vão tentar resumir as queixas apresentadas nas primeiras sessões como se pudessem ser categorizadas. Pegarei como exemplo o tratamento da depressão. Dentro do DSM-V (Manual Diagnóstico e Estatístico dos Transtornos Mentais) temos, segundo Dunker (2021), onze tipos diferentes de depressões categorizadas e que podem facilmente enquadrar qualquer paciente e até nós mesmos, dentro de um desses tipos. Em seu livro, Dunker (2021) não apenas faz uma crítica, mas aponta para o que tem se apresentado como uma modalidade diagnóstica que se não fosse trágica, seria certamente cômica. 22
Ninguém, repito, ninguém escapa de algum enquadre quando se lê com atenção o DSM-V. O que verificamos no dia a dia de nossa experiência é que um paciente diagnosticado com depressão nunca vai se localizar, se dizer, se apresentar da mesma forma que um segundo que chega com o mesmo diagnóstico. Por mais que os fenômenos descritos possam ser semelhantes, a relação do paciente com o sintoma toca também em sua história de vida, produzindo algo totalmente singular e único. É a este singular que nos atentaremos no decorrer das entrevistas preliminares e da análise propriamente dita. Embora possa ter alguns (não é necessário preencher todos os requisitos) sintomas parecidos com outros pacientes, estamos diante de uma pessoa, de alguém vivo, e este alguém não é resumível a uma condição. Portanto, todos os pacientes que recebemos na clínica com esse diagnóstico querem a mesma coisa? Não. E isso não é uma constatação de que o diagnóstico é falho, mas que o tratamento não deve seguir a ideia de retirar o paciente da condição de depressivo. Sair ou não desta condição, deste lugar, será efeito do tratamento e não o objetivo principal de um tratamento analítico. Ocorre que o paciente pode não saber disso. Para simplificar as coisas, imaginemos a seguinte situação que talvez simplifique as coisas. Um paciente com cárie que procura um dentista com uma demanda muito específica de “pelo amor de tudo o que é mais sagrado arranca fora o que for preciso para que a dor passe”, será o dentista que irá avaliar o objetivo do tratamento. Talvez apenas uma obturação já dê conta de sanar o problema do paciente, mas, às vezes, é preciso fazer um tratamento de canal. Dentista e paciente teriam então objetivos distintos e nem por isso um objetivo anula o outro. Fato é que será o dentista que, com seu saber, irá verificar o provável problema após examinar o paciente. O diagnóstico 23
não é prévio ao exame, ao encontro. E ainda mais, dependendo das ferramentas que o dentista tiver, o diagnóstico poderá ser equivocado e a dor, por mais que em um primeiro momento passe, pode tornar-se ainda pior em um momento posterior. Chamo a atenção para este ponto. O profissional tem um saber que opera concomitante com o que o paciente relata que sente, mas será em conjunto, com os procedimentos de investigação, que as hipóteses diagnósticas vão sendo testadas e, uma após uma, vão sendo refutadas até encontrar o verdadeiro problema a ser tratado. Quero deixar claro que o que descrevi no parágrafo anterior se trata de um recurso para exemplificar certas coisas e que, por isso mesmo, pode conter equívocos no caso de um tratamento dentário, porém necessário para introduzir de forma mais prática os conceitos a seguir. No caso de um tratamento psicanalítico, Freud (1905) já nos orientava para o fato de que a Psicanálise “foi criada a partir de e para doentes com incapacidade duradoura de viver, e o seu triunfo é que torna um número satisfatório deles capazes de viverem a sua existência...” (p. 71). Se pelo lado dos pacientes temos que uma queixa pode ser acolhida em um primeiro momento, não necessariamente ela será tratável com nossas ferramentas. É preciso ainda um pouco mais. Freud (1913) em Sobre o início do tratamento nos recomenda que, ao receber o paciente em nosso consultório, façamos um tipo de “terapia de teste”, um período probatório onde iremos verificar se aquelas queixas são mesmo tratáveis ou não com a Psicanálise. Voltando à questão da depressão, devemos levar em conta que o luto de um emprego, de uma pessoa querida, de uma posição social ou como efeito de uma experiência traumática pode desencadear uma sintomatologia que, se não for bem observada, o profissional da saúde incorrerá no erro de diagnosti24
car como depressão e iniciar um tratamento que, talvez, com a indicação de um novo trabalho ou com o encontro de um novo amor tudo já estaria resolvido. Entretanto, as coisas não são tão simples assim e, mesmo nesses casos, há benefícios neste período anterior à análise, propriamente dita. Estes primeiros momentos é a fase de conhecer o paciente, de investigar o histórico da queixa, de questionar sobre sua vida de uma forma geral, de saber sobre o uso de medicações que podem confundir, (isso é um tanto quanto comum nos dias de hoje) simulando sintomas, ou seja, é um tempo para que o paciente se dê conta de que sua vida importa. Essa terapia de teste ou, melhor dizendo, as entrevistas preliminares ao tratamento não servem apenas para fins diagnósticos, mas, antes, servem para o estabelecimento de uma transferência a partir da criação de uma demanda de análise. Freud (1913) e Lacan (1958) em relação à direção do tratamento nos atentam para o fato de que devemos nos utilizar das mais variadas estratégias para que o analisante continue falando, para que a associação livre de ideias se produza e dessa forma seja possível verificar se há ou não outra cena que determine as escolhas, a vida e o sofrimento do qual o paciente se queixa. É muito comum acontecer que alguns pacientes resolvam em pouquíssimo tempo algum problema pontual que tragam como queixa. Isso pode fazer com que o tratamento nem comece e eles vão embora mas também pode apontar alguma coisa que aparece, quase que como consequência da dissolução daquele problema pontual. Voltando ao exemplo da depressão, pode ser que uma das queixas do paciente seja então que ele não saia da cama, não tome banho, não coma, não consiga trabalhar e que, depois de 25
um curto período de tempo, ainda nas entrevistas preliminares, ele comece a fazer tudo isso e se dê conta que algo insiste. Resolver a queixa não é o mesmo que resolver o problema. Tirar a dor não é tirar a cárie, usando a analogia com o tratamento dentário. Reduzir a depressão a um conjunto de fenômenos observáveis e pensar a cura ou o tratamento como a extinção dos fenômenos é como acreditar que a água é potável somente por que não se enxerga mais os germes e metais pesados presentes nela. Algo insiste. Farei aqui um recorte clínico que irá ilustrar muito bem essa situação. {Paciente homem, cerca de 30 anos, depois de uma série de namoradas e casos com outros homens, que não deram certo, resolve procurar uma mulher que ele possa dizer que é sua cara metade e estabelece que, com essa, não haverá mais traição e ele não irá implicar mais com qualquer coisa, afinal de contas, ela será a mulher com quem ele irá se casar, ter filhos e construir uma família. Ele a encontra, coisa do destino, começam a se relacionar e, passado um tempo, ele encontra-se novamente na mesma situação. Por que este homem nos procura? Ele poderia resolver esse problema se controlando? Tomando uma medicação que diminuísse sua libido? Resolveria algo do que lhe falta e que ele ainda não se deu conta do que é, com uma readequação comportamental ou moral? Pode ser que em alguns casos sim, mas este não é o caso de todos. Foi a partir de perceber que nenhuma mulher ou nenhum homem poderia ser aquilo que ele esperava que fosse, que foi possível iniciar uma análise. Há aí uma coisa que se repete para além da vontade, para além dos treinamentos, para além dos tratamentos já ofertados e que ele mesmo já tinha tentado, também o analista não oferece ao paciente um resultado no sentido de que ele será aquilo que ele espera, o que ofertamos é o espaço 26
para que ele fale. Nesse falar sobre si, sobre sua vida, sobre sua história, um dizer vai se construindo e as queixas vão sendo dissolvidas uma a uma, até que algo apareça e, somente então, podemos dizer que estamos em um tratamento psicanalítico. Já pelo lado do analista, Freud (1937) nos orienta em Construções em análise que “Como se sabe, o objetivo do trabalho analítico é fazer com que o paciente volte a suspender os recalques” (p. 366). O que isso quer dizer? Via de regra, o objetivo de uma análise é a suspensão do recalque, ou seja, que o paciente, ao dizer, identifique no dizer algo a mais do que ele mesmo gostaria ou pensou ter dito. Encontramos no mesmo texto de Freud alguns exemplos disso, mas podemos usar a experiência na clínica para exemplificarmos. Quando um paciente diz uma coisa e o analista intervém e logo depois de alguns segundos o paciente tenta remediar dizendo “eu não queria dizer isso”, remete-nos a uma série de conceitos que estão na base do tratamento psicanalítico. Primeiro que o Eu tenta de todas as formas possíveis manter algumas coisas longe da consciência. Segundo que o que está na condição de suprimido tenta mostrar-se. O Eu do paciente é obrigado a reconhecer isso que disse, mesmo a contragosto. Em um texto sobre a negação, de 1925, Freud demonstra que em alguns momentos o que estava recalcado pode ser dito de forma suportável pelo paciente. Devo advertir que nem tudo que é negado em análise deva ser tomado como efeito do recalque. Em 1937 Freud se atentou a corrigir essa “imprecisão” teórica que muitos tinham e pela qual a Psicanálise era criticada. Há que saber então que no “Eu não queria dizer isso” o que temos aí é algo de uma verdade. O Eu não queria dizer isso, mas o que ou quem quis? Ou melhor dizendo, o que escapou e o Eu teve que se rearranjar para dar conta do dito? Ora, algo da ordem 27
do inconsciente. O analista e o analisante somente irão saber se estão diante de algo da ordem do inconsciente quando, na fala do paciente e, no decorrer do tempo, aquilo for confirmado com algum efeito na vida do paciente, podendo ser algo da ordem de um efeito terapêutico, mas o que visamos a rigor é o ato analítico, o efeito analítico que denuncia que no dizer há muito mais do que se acredita estar falando. Para Lacan, uma análise se diferencia de uma psicoterapia na medida em que esta tem um objeto, uma ética e um método muito distintos e, talvez o mais importante, o que é esperado como finalidade de uma análise. A este respeito, Lacan (1964) em seu texto Do trieb de Freud e do desejo do Psicanalista nos dá uma direção afirmando: “Então, qual a finalidade da análise, para além da terapêutica? Impossível não a distinguir desta quando se trata de produzir um analista.” (Lacan, 1964, p. 868). Que a análise produza um analista, é para isso que trabalhamos, esse é o objetivo final de uma análise, segundo a orientação lacaniana. Sobre esta questão do objetivo da análise, trabalharemos no último capítulo a respeito da formação do analista de uma forma mais pormenorizada. Para este momento, é suficiente que nos atentemos que por alguma razão existe muita confusão em nosso próprio campo no que concerne à teoria e talvez, também, à ânsia de responder a um imperativo mercadológico que determina que todos devem fazer análise, gozarem, serem felizes, a melhor versão de si mesmos, etc. e que o analista tem a obrigação de levar as pessoas a alcançarem isso tudo, bom, o que vemos nos dias de hoje é uma confusão com relação à queixa, à demanda, à formação do analista e aos objetivos e finalidade de uma análise propriamente dita. Retomando a questão da depressão, muitos que se colo28
cam para receber outros em seu consultório tendem a escorregar justamente quando tomam a depressão como objeto de trabalho, esquecendo-se que uma análise não serve para isso, embora o paciente, uma vez que se submete a uma análise, possa sim ser curado de uma depressão, não por que a cura para esse mal fosse o objetivo, mas por que no percurso de uma análise foi possível alguns ganhos secundários, alguns efeitos que são verificáveis no transcorrer do tratamento. Agora, o tratamento em si mesmo é uma operação que, do começo ao fim visa o Sujeito do inconsciente. Tomemos então que, nas primeiras sessões, alguém chega com a queixa de uma depressão, demandando um tratamento, seja lá qual for. Esta pessoa será convidada a falar tudo o que lhe ocorre, sobre sua vida, sua história, suas relações, seu sofrimento e sobre isso que lhe disseram se tratar de uma depressão. Ao escutar o paciente, vamos colocando as regras do jogo e verificando se existe alguma possibilidade do encaminhamento a uma Psicanálise. Enquanto conversamos com o paciente, nossas intervenções tendem a ser aquilo que fará com que o paciente irá ou não se dar conta de que há algo sendo dito e que lhe escapa às palavras, ou ainda, de que existe alguma coisa entre o querer dizer e o que fora dito que encobre uma verdade, que ofusca a causa de seu mal-estar. Para usar uma analogia, é como se o próprio paciente fosse, sem se dar conta, abrindo um mapa em que fosse pouco a pouco revelando com o que estamos lidando. O analista deve identificar se o que chega como sintoma de depressão é da ordem de uma inibição, de um sintoma, ou apenas de um traço de identificação que permite a esta pessoa existir na relação com um outro. Com a escuta, não estamos ouvindo somente a história contada, mas estamos tentando cons29
truir o mapa e, com isso, verificar o que se endereça ao analista como uma demanda muito específica e que será, do começo ao fim, aquilo em que iremos trabalhar primeiro para aparecer, depois para fazer des-ser. A rigor, um significante qualquer que represente o sujeito para outro significante (analista). Segundo Lacan (1967), o analista encarna esse significante qualquer. Se tomarmos que o sujeito do inconsciente pode ser representado por um significante em relação a outro significante (Lacan seminário XI), nossa escuta tende a ser direcionada para o que se produz na relação com o analista e que, cada vez mais, estou seguro de se tratar do que Freud em A dinâmica da transferência nos permitiu já, muito antes de Lacan, entrever, quando afirmou que as pessoas se aproximam do médico com expectativas libidinais insatisfeitas. O analista trabalha com o sujeito do inconsciente, não trabalha com a pessoa, não trabalha com o indivíduo, não trabalha com a patologia, não trabalha com o diagnóstico. É preciso, antes de qualquer coisa, que o paciente se coloque a falar tudo que lhe vier à cabeça. E é esse o ponto fundamental, o analista que vai, a partir de suas intervenções, fazer com que o analisante entre no jogo e respeite as regras. Não há análise se não houver analista. Não há dispositivo clínico sem que a regra fundamental seja não apenas citada mas também seguida com o máximo de rigor possível.1 Sobre a regra fundamental da Psicanálise que comumente escutamos como sendo a de “falar tudo o que vier à cabeça”, é necessário fazer algumas correções com relação a esse imperativo que não é o mesmo que fazer associação livre de ideias. Você pode falar o que você quiser no bar, bêbado, numa 1 Aqui sabemos o quão árduo é esse trabalho por parte do analista e também do analisante. Em último aspecto, dizer TUDO O QUE VIER À CABEÇA ASSOCIANDO LIVREMENTE só é possível ou nos sonhos ou na psicose.
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briga, falar livremente, isso não é associação livre de ideias, inclusive, o que chamamos de regra fundamental em Psicanálise e nem a análise, é algo natural no homem, ambas são experiências artificiais. Geralmente, o que se vê na clínica, que é um exemplo da associação livre de ideias, é quando o paciente vai falar alguma coisa e de repente entra outra coisa no meio, alguma coisa se rompe, alguma coisa atravessa e o que a gente faz geralmente no nosso dia-a-dia? Simplesmente deixa isso pra lá, mas o analista pega o que o paciente fala e pergunta: “o que tem a ver isso?” – Nada não. “Pode ser que não seja nada, mas e se for, isso te lembra alguma coisa?” Ou então: “ah, que interessante, parece que você respondeu o que você trouxe de pergunta no início da sessão”.2 Ainda sobre as primeiras sessões, é necessário falar um pouquinho a respeito do acolher com o silêncio do analista. É esperado que se produza no paciente uma fala, precisamos mais do que abrir esse espaço para a fala e, posteriormente, a escuta de um acolhimento com nosso silêncio. O silêncio do analista é, dentre outras estratégias, aquilo que permite que o paciente possa se escutar. O silêncio do analista não é o mesmo que dizer qualquer coisa ou ficar com a boca cerrada. Freud e Lacan já haviam rompido com essa ideia. Esse estereótipo é muito mais uma leitura equivocada do que de fato seja uma postura do analista. Que o analista fale quando é conveniente é o que podemos esperar de alguém que ocupa essa função. Um ponto decisivo nas análises é que silenciar-se tem 2 Esta parte é mais inteligível para quem já leu “A negação” e “A repressão” de Freud, contudo, basta que se compreenda que a negação não é sinal de que houve uma associação com alguma representação reprimida e que, associar livremente pode produzir o efeito de negação do que apareceu na consciência.
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mais a ver com intervir para que o paciente se escute do que ficar calado. Essa abertura que se dá ao paciente não é sustentada pelo silêncio no sentido de não dizer nada, mas do silêncio que convida o paciente a falar. Em nossas vidas estamos cercados de pessoas e, no entanto, temos aquele sentimento de que quando falamos, falamos ao vazio. Em uma análise, o efeito deve ser o oposto. O silêncio do analista, ou seja, o analista que silencia suas ideias, seus ideais e suas vontades – para ainda não adentrarmos na dimensão do desejo e de sua função – fala para que o analisante não apenas continue a narrar uma história, mas para que ele se perceba como narrador e construtor, para que ele se implique com aquilo que diz e, em especial, com os efeitos do dizer sobre seu ser. Nas primeiras sessões, o analista tem que estar muito atento a um problema típico no começo do trabalho. O dizer enquanto analista deve se orientar para que o paciente se dê conta de sua fala e não para que ele se dê conta do que a gente pensa enquanto pessoa, enquanto alguém. Na melhor das hipóteses quando isso acontece, o paciente desconsidera e procura outro analista que o escute. Na pior das hipóteses, toma a fala do analista como verdade absoluta, transformando aquelas sessões que deveriam estar orientadas para uma análise em uma psicoterapia. O terapeuta aqui, perde a oportunidade de ocupar um lugar privilegiado e repete com o paciente as relações de poder em que um sabe mais sobre o outro e vai incidir sobre este outro que fala e que sofre uma série de “como fazer” e “o que fazer”. Neste sentido, podemos dizer que o paciente encontrou mais um para sustentar seu sofrimento pois, ao escutar da boca de outro as respostas, continua ignorando que a verdade de seu sofrimento habita nele de forma recalcada e só há acesso a ela na medida em que ele mesmo se põe em questão. 32
Do Lugar de Objeto e do Começo da Análise Quando lecionava nas universidades, de uma forma geral, na graduação, e os alunos iniciavam o estágio clínico, eu falava a eles que só seria possível que tivessem um pouquinho da experiência do que seria um tratamento psicanalítico, quando não tivessem que atender para cumprir a carga horária no curso de graduação. Outro ponto é quanto ao pagamento das sessões. Isto é algo muito delicado. Só conseguimos sustentar um trabalho analítico digno deste nome, quando estamos dispostos a passar fome em nome de nosso trabalho. Parece que algo nessa afirmação não está muito correto, mas vou me utilizar de um poema de Bukowsky para ilustrar melhor a questão: if you’re going to try, go all the way. otherwise, don’t even start. if you’re going to try, go all the way. this could mean losing girlfriends, wives, relatives, jobs and maybe your mind. go all the way. it could mean not eating for 3 or 4 days. it could mean freezing on a park bench. it could mean jail, it could mean derision, mockery, 33
isolation. isolation is the gift, all the others are a test of your endurance, of how much you really want to do it. and you’ll do it despite rejection and the worst odds and it will be better than anything else you can imagine. if you’re going to try, go all the way. there is no other feeling like that. you will be alone with the gods and the nights will flame with fire. do it, do it, do it. do it. all the way all the way. you will ride life straight to perfect laughter, its the only good fight there is. “Roll the Dice” by Charles Bukowski from What Matt ers Most Is How Well You Walk Through The Fire. 34
Tomei a liberdade de repensar a questão através da poesia de Bukowsky pois ela nos mostra uma vertente do desejo que devemos apreender no percurso de uma análise. Lacan (1967) em sua proposição nos demonstra isso de várias maneiras, mas que apontam para a mesma problemática. O analista só pode existir na condição de objeto e não na condição de ser, ou de alguém, ou de uma pessoa que tem contas para pagar. Isso tudo tem a ver com a ética da Psicanálise e, talvez, eis um dos problemas da Psicanálise enquanto uma “graduação” não se pode nem ser analista e nem ir ao divã só para cumprir tabela. Em Nota Italiana temos uma frase de Lacan que me marcou demasiadamente no meu percurso de formação num momento em que eu fazia o cartel sobre a formação de analista. “Autorizar-se não é auto-ri-(tuali)zar-se.” (p. 312). Neste texto, vemos logo abaixo desta afirmação que somente a análise não é suficiente para que, mesmo que se tenha produzido um analista, ocupar este lugar demanda outras coisas que complementam a formação. Retornando ao nosso ponto sobre o analista no lugar de objeto, há aqui muito conteúdo denso para trabalharmos, o que não é a proposta deste livro. No entanto, podemos avançar um pouco e afirmar que só é possível ter uma experiência do que é a Psicanálise na medida em que o paciente não é tomado como objeto pelo analista e, que, o analista, consegue se sustentar enquanto objeto causa do dispositivo clínico inventado por Freud. Esta prorrogativa vai na contramão de uma série de instituições que “formam” psicanalistas, embasadas apenas em números de atendimentos, colocando um número x de pacientes a serem atendidos, ou um número x de horas de “análise pessoal”, como requisito de formação. Notem como, em nome de uma suposta “formação” temos uma inversão grave nos lugares 35
que deveriam ocupar o paciente e o analista nas primeiras sessões. Mas qual a ética e em que se baseiam estas instituições quando, na verdade, não encontramos em nenhum texto clássico ou documento das instituições sérias um número x ou um número mínimo de sessões para que alguém se torne psicanalista? Onde está escrito em Freud, em Lacan? Não tem que atender ninguém para ser psicanalista, muito pelo contrário, tem que fazer análise, levar até as últimas consequências e conseguir sustentar, na hora que receber alguém, esse lugar de objeto, não de sujeito. Aí a poesia de Bukowsky nos ajuda a interpretar a teoria lacaniana. Então, a ideia é essa, até que ponto nós, enquanto analistas, estamos tomando o nosso paciente como objeto? E no começo da clínica é muito difícil fazer isso, parece que a análise só é possível de se dar nos momentos em que, o analista em formação, consegue com sua intervenção fazer um giro e se colocar no lugar de objeto causa de alguma coisa3. E o que, na grande maioria das vezes, a gente vê é essa fixação em que: “Eu estou com cinco pacientes e tenho a conta do carro para pagar, por que eu fui comprar o carro? Eu estou com consultório para pagar, por que eu aluguei o consultório, se hoje é tudo on-line? Eu tenho que comprar ovo porque o bife está caro. Eu não devia ter comido um lanche.” Em suma, devemos ter cuidado com estas questões pois o analista também tem que comer, pagar 3 Neste ponto estou me referindo aos quatro discursos de Lacan. Não me parece apropriado colocar este material aqui neste capítulo, mas existem muitos textos que podem orientar a esse respeito. No momento inicial de quem quer praticar a Psicanálise a supervisão ajuda muito aqui. Intervir para que o paciente possa, ao experimentar do dizer, revelando-se dividido, fazer a entrada em análise que pode se dar de uma só vez ou aos poucos. O que quero registrar aqui é que para que haja análise é preciso que o analista intervenha no lugar de objeto “a” causando a divisão subjetiva e ordenando o discurso de forma a montar o discurso da histérica. A isto damos o nome de histericização do discurso.
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suas contas, isso tudo será retomado a partir do capítulo 3. A ideia aqui é acolher as tensões intrínsecas a nosso ofício desde os primeiros atendimentos clínicos, mostrando que é possível uma análise quando e somente quando há um analista. Retomando uma das questões propostas por Lacan (1967) na proposição, um dos pontos a que uma análise deve nos levar é a do “des-ser”. No entanto, essa ideia, do des-ser, pode ser compreendida de forma equivocada se não nos atentarmos que o ser do qual pretendemos nos livrar é aquele produzido pela predicação do sujeito. Lacan, no seminário 20, afirmou que “O ser é exatamente o que sustenta todo o discurso, que carrega o discurso, na medida em que o discurso é o que se produz nas bordas do buraco que ele constitui. O ser é, pois, ao mesmo tempo, aquilo que está antes do discurso, que carrega o discurso e que está depois, no fim de todo discurso, seu ponto de convergência, seu limite.” p. 64 (versão da Escola Letra Freudiana).
Ora, se o analista está ainda apenso ao ser, no sentido de um sujeito que se confunde com um predicado, significando quem ele é a partir de uma série de predicados que ele colou em si e que agora chama de Eu, ele não poderá ocupar o lugar de objeto que é justamente isso que aparece como um significante vazio na relação com o paciente e que causa sua divisão, fazendo surgir o sujeito do inconsciente. Esse esquema será trabalhado mais à frente quando falarmos da formação do analista. A questão aqui é o seguinte: até que ponto o analista consegue se desvencilhar de si mesmo para escutar o outro? Haja análise para isso. Então, nas primeiras sessões de análise, o mais importante é levar a análise o mais longe possível, chegando àquele des-ser em que Lacan (1967) escreveu como “a passagem de analisante a analista” (p. 259) que se dá na medida em que 37
“o sujeito vê soçobrar a segurança que extraía da fantasia em que se constitui, para cada um, sua janela para o real, o que se percebe é que a apreensão do desejo não é outra senão a de um des-ser.” (p. 259). Continua Lacan “Nesse des-ser revela-se o inessencial do sujeito suposto saber, donde o futuro psicanalista entrega-se ao agalma da essência do desejo, disposto a pagar por ele em se reduzindo, ele e seu nome, ao significante qualquer.” (p. 259).
O que temos então como analista é antes de mais nada alguém que pagou o preço, que foi até o fim da análise, ou seja, que viveu na carne a sua finalidade que, segundo Lacan, é a produção do analista que passou pela experiência radical de des-ser. Seguindo esta lógica, só consegue sustentar uma análise quem levou sua análise até um determinado ponto mínimo, podemos dizer, dessa dobradiça que Lacan vai chamar de passagem de analisante à analista da própria experiência. Nas primeiras sessões, o que mais conta é: Primeiro, que você tenha certeza absoluta de que pouco importa se este paciente volta ou não volta. E eis o segredo, não estamos lidando com pessoas, mas com o desejo de analista de que haja análise. E se quer realmente se enveredar no caminho da Psicanálise, quer começar a atender, primeiro análise pessoal, isso é imprescindível, durante... não é datado, não são 30 sessões, 50 sessões, 100 sessões, isso é balela, isso não garante nada, pelo contrário, só põe pressão na cabeça das pessoas. Como vimos, não se trata de um número, mas de um efeito do percurso. Depois, ao receber alguém, convide-o a falar, neste falar, que se atente a dizer somente o que for necessário para que o paciente 38
comece a se escutar. Ao fim, o convite para retornar em um outro dia, na outra semana, dependendo do caso e da gravidade, por que não, amanhã mesmo. Nem todos voltam. Me deem uma prática no campo da saúde que seja 100% eficaz, ou 80% que seja, algum tratamento que de 100 pessoas, 90 pessoas saem absolutamente curadas, todas iguais, sem resquícios, bem, não vão ter mais dor. Em conversa com uma colega ortodontista, eu disse: “Psicanálise é igual cárie, não é porque você curou uma vez que você não tenha uma nova, mas vai ser outra cárie. Ela falou: é Marco, exatamente, é bem por aí, vai ser outra cárie, em outro momento, em outro tempo”. Termino este capítulo sobre as primeiras sessões, partindo da premissa que a Psicanálise inaugura para o paciente um outro tempo e, talvez isso soe estranho agora, irei retomar a isso depois, o tempo em que se entra em análise e passa-se da posição de paciente para analisante, ou ainda, da posição de queixante para demandante, não sem a presença do analista que se atualiza em transferência como um significante qualquer que permite que a análise se produza.
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CAPÍTULO 02
O MÉTODO CLÍNICO Enquanto analistas, temos que entender que não é todo mundo que quer se livrar desta parte podre que a gente carrega, achando que está expiando algum pecado. Ou desta forma de ser que ajuda a pessoa a ter justificativas para ela continuar sendo o doente mental que ela é. (LEITE, 2022)
Adendo Sobre a Problemática da Técnica em Nosso Campo Neste capítulo, pretendo abordar alguns elementos do percurso inicial de uma análise. Desde as entrevistas preliminares articuladas com diagnóstico até a entrada em análise, propriamente dita. Vamos percorrer um caminho mais no sentido de um ensaio, tendo como base os escritos sobre a técnica de Freud e alguns textos de Lacan como uma espécie de norte. Em meu livro “Psicanálise nas redes” (Leite, 2022) há uma série de pequenos textos que tocam na questão da entrada em análise e, em sua grande maioria, trazem a entrada em análise neste imbricamento entre diagnóstico e entrevistas preliminares. Muita coisa teórica já foi produzida sobre isso, Quinet (1991) foi um dos autores responsáveis, em meu tempo de graduação, a trazer aos aspirantes a psicanalistas uma leitura mais 40
próxima e atual das condições necessárias para que uma análise possa acontecer. Ao escrever sobre as entrevistas preliminares, Quinet (1991) traz a ideia de três funções das entrevistas preliminares: função sintomal, função diagnóstica e função transferencial. Quinet vai nos orientando sobre a entrada em análise na medida em que se verificam as condições de possibilidade para que uma análise se inicie. Outro analista que trabalha com estas questões por uma outra via, não menos importante e, a meu ver, talvez mais interessante, é Isidoro Vegh em seus livros que versam sobre a cura em Psicanálise. Para Vegh em Os discursos e a cura a entrada em análise deve se dar a partir de uma construção lógica que se verifica a partir dos quatro discursos engendrados por Lacan a partir do seminário 19. Segundo Vegh (2001) “A análise começa com uma de suas condições: requer que no começo o analisante se encontre dividido entre o que diz e o que sabe do que diz” (p. 142). É como se conseguíssemos, por nossas intervenções, revelar não o sentido, mas o sem sentido da explicação dada para aquilo que o paciente nos apresenta. Este momento que se espera produzir nas entrevistas preliminares, o que nem sempre acontece, e não acontecendo, não há a possibilidade da análise, a ele chamamos de histericização do discurso. A entrada em análise, a nomeação de um paciente em analisante se dá apenas quando isso acontece. Marco Antônio Coutinho Jorge (2017) nos remete a Freud em seu livro Fundamentos da Psicanálise de Freud a Lacan, em especial no volume 3, quando afirma que, para Freud, o início de uma análise deve se dar “pela entronização (que deve ser feita desde o início) da regra fundamental da Psicanálise, a associação livre...” (p. 87). Este livro é o terceiro de uma série que versa 41
sobre a Psicanálise, seus conceitos, sua técnica e seus efeitos e que considero importantes em nosso tempo. O que está em jogo aqui, em especial neste capítulo, é justamente podermos pensar que a entrada em análise, antes de obedecer a um padrão diretivo e muito bem determinado, pode ser por algumas vias que encontram sustentação na teoria. Poderia compor neste começo de capítulo ainda mais autores que abordam a temática e que nos trazem um pouco do como fazer que se depreende da prática e do estilo de cada um, quando atravessado pela teoria e por sua história pessoal de análise, estudos e laços com os pares. Em Psicanálise Lacaniana, Leite (2000) traz um capítulo inteiro sobre as entrevistas preliminares e a entrada em análise. Logo no começo uma posição um tanto quanto interessante que nos orienta para um fato: “Uma análise nem sempre existe de entrada, ela apenas existirá a partir da instauração do discurso analítico, que nunca é anterior ao encontro com o analista, mas a transferência pode ser.” (p. 203). Ora, qual é o fato? Simples, uma análise deve ser produzida e não é possível uma análise sem um analista. No mesmo capítulo, Leite (2000) traz um trecho de Romeu e Julieta para comparar a Psicanálise às psicoterapias e outras práticas. Pouco importa o nome que se dê, o que importa é o fazer e os efeitos deste fazer. Se alguém se diz psicanalista e orienta o paciente dizendo a ele o que fazer ou não fazer a partir de sua moral, de seus desejos, de sua história, de seu saber, isso não é uma Psicanálise, embora possa ser chamada assim por quem a venda como tal. Agora, quando invertemos a coisa, tocamos no âmago das primeiras sessões com quem nos procura. Os pacientes que nos procuram para fazer uma terapia, uma psicoterapia, ou qualquer outra coisa, o que ofertamos a eles? 42
Como dirigimos o trabalho? Qual a posição que ocupamos? A resposta a essas questões podem ou não configurar o tratamento ofertado como uma Psicanálise ou outra coisa. Notem que uma rosa, se não se chamasse rosa, teria o mesmo perfume como disse Romeu à Julieta. Podemos saber se é ou não análise pelo cheiro, digo isso de forma metafórica. Mais à frente no mesmo capítulo, Leite (2000) escreveu: “Entre os leitores de Lacan, notam-se grandes divergências em relação ao estilo de cada um quanto à forma de se conduzir perante a clínica – o que, muitas vezes, revela atitudes até mesmo paradoxais...” (p. 204).
Isso tudo não implica em dizer que há na Psicanálise, em especial de orientação lacaniana, um oba-oba no sentido de que qualquer um faz o que bem entender. É precisamente o contrário disso, é necessário “que o analista sustente sua posição” (p. 204). Sustentar sua posição não se trata apenas de um pensamento de posição teórica que irá ser a referência do fazer clínico, mas também a posição de analista, o lugar que ocupamos na relação com o analisante e que nos permite chamar uma prática de Psicanálise. Esta imbricação entre a prática e a teoria fez com que Lacan, em alguns momentos, nomeasse a Psicanálise como uma práxis. O próprio termo práxis pode ter muitos sentidos, então, acho por bem retomar o termo onde ele aparece no texto de Lacan, mais precisamente em seu seminário de 1964 onde versa sobre os quatro conceitos fundamentais. Ali, Lacan interroga seu público: “O que é uma práxis?” (p. 14). Tenham em mente que o sentido que Lacan dará para esse termo é diferente do que encontramos em Aristóteles, em Marx e também nos dicionários de hoje em dia. 43
Lacan (1964) define a Psicanálise como uma práxis e sustenta que uma práxis é, a seu modo, “o termo mais amplo para designar uma ação realizada pelo homem, qualquer que seja, que põe em condição de tratar o Real pelo Simbólico” (p. 14). É preciso compreender que o que Lacan chama de Real e de Simbólico são conceitos que durante toda sua obra foram tratados e elaborados de forma a articular com o Imaginário uma teoria que dê conta da realidade, do humano e, principalmente que permita uma clínica psicanalítica para o tratamento do sujeito. Mais do que apontar um caminho unívoco sobre o método psicanalítico, proponho com esta abertura que os leitores estejam advertidos e atentos de que a Psicanálise não é uma ciência em que a metodologia seja passível de uma única leitura tal qual nos propomos com a matemática quando, ao apreendermos os conceitos básicos, conseguimos, em qualquer parte do mundo, resolver uma equação, por exemplo: 2 + 2 = x. Ao citar Quinet, Vegh, Jorge e Leite, o que pretendo com isso é demonstrar como é possível pensar a questão do que é a Psicanálise, sua entrada, os primeiros momentos, seu percurso e seu fim, não como uma experiência em que seja possível um passo a passo metodológico muito bem estruturado que dê conta de todas as Psicanálises. Tampouco quero, ao apontar as diferentes leituras, incentivar uma percepção de que a Psicanálise seria algo como uma experiência a ser articulada a partir do achismo de cada um. Justamente, as diversas modalidades de formalizar a Psicanálise, desde Freud, passando pelos quatro discursos engendrados por Lacan até sua última proposta com o nó borromeano nos afastam dessa possibilidade de que a Psicanálise seria uma espécie de método intuitivo. Para resolver esse problema, pretendo que o leitor compreenda que a Psicanálise pode ser vista como um caleidoscó44
pio que permite algumas – não todas – possibilidades e também algumas maneiras de clinicar, mas que dependem necessariamente da teoria para que isso possa acontecer. Em A Ciência e a Verdade, Lacan afirma que: “Por nossa posição de sujeito, somos sempre responsáveis” (p. 873). Muitos se utilizam desta afirmação de Lacan sem retomar todo o contexto do parágrafo e, mais ainda, do texto em que está inserido. O que Lacan estava fazendo em 1966 ao abrir o seminário sobre “O objeto da Psicanálise” era afirmar categoricamente que, primeiro, a Psicanálise é uma ciência e não uma religião, reiterando o que havia trabalhado um ano antes em 1964, bem no início de seu seminário sobre os quatro conceitos fundamentais. E, talvez o mais importante, que nós, psicanalistas, somos responsáveis por nossa prática e, ao mesmo tempo, se me permitem a metáfora, reféns da teoria que orienta nosso fazer clínico. A prática do psicanalista depende necessariamente da teoria, e, se pensamos a Psicanálise como uma operação sobre o sujeito, deveríamos sustentar minimamente de que sujeito estamos falando para, somente depois, nos colocarmos como analistas a receber outros em nossos consultórios. Certa vez atendi a um cirurgião plástico que me disse que sua técnica era perfeita, e que estava extremamente angustiado porque uma paciente sua queria processá-lo por não ter tido o resultado que ela esperava. Ela estava na consulta com sua mãe e o médico mediu os seios da paciente dizendo que estavam perfeitos, a quantidade acordada de silicone, o aspecto, estava tudo de acordo com aquilo que a medicina podia propiciar. Eis que ele escuta da boca da mãe que estava ótimo, que os seios estavam lindos, e a paciente diz em alto e bom tom: “não estão perfeitos como eu imaginava”. Esse recorte clínico presta aqui para que retomemos um 45
ponto antes de entrarmos no método clínico propriamente dito. Uma coisa é o ideal, outra coisa é aquilo que é possível. Lacan (1956) já nos atentava para uma Psicanálise praticada e ensinada muito mais como uma mística em que os aspirantes a psicanalistas ficavam à mercê do seu “analista didata” que orientava a prática de cada um muito mais a partir do que fazia do que a partir de uma formulação teórica que fosse possível não um ideal, mas uma certa espécie de convenção mínima que pudéssemos dizer que uma prática seria ou não uma Psicanálise. Em Variantes do tratamento padrão Lacan (1955) retoma a questão que fora trabalhada por ele em 1953 na ocasião de escrever para a Enciclopédia médico-cirúrgica. Faz-se necessário compreender que o texto, anterior ao de 1956, traz como que uma crítica de maneira geral dirigida aos psicanalistas, mas endereçado para fora da comunidade analítica. O texto de 1956 denominado A situação da Psicanálise... foi escrito e endereçado para a comunidade psicanalítica em razão do centenário do nascimento de Freud. No entanto, em ambos os textos, a mesma crítica se impõe. Os analistas didatas e as instituições psicanalíticas não estavam de acordo sequer sobre o que era a Psicanálise e seu método nesta época. A esse respeito Lacan (1955), citando Glover (1954) nos demonstra explicitamente na página 329 de seus Escritos que dentro da sociedade psicanalítica havia diversos grupos que tentavam “manter a aparência de uma frente unida perante o público científico e psicológico, é evidente que, sob certos aspectos fundamentais, as técnicas praticadas pelos grupos opostos são tão diferentes quanto a água e o vinho.” (p. 329). Seguindo mais adiante Lacan irá afirmar que “a condição do mal-entendido que assinalamos entravar a Psicanálise no caminho de seu reco46
nhecimento revela-se, pois, reforçada por um desconhecimento que é interno a seu próprio movimento” (Lacan, 1955 p. 331).
Para prosseguir, espero que tenha ficado muito claro a proposta de que independentemente do fazer de cada um, há que estar muito bem orientado pela teoria e não por sei lá que sentimentos ou intuições do que fazer, como fazer ou quando fazer. Nas páginas seguintes a ideia não é apresentar um seio ideal, mas um seio bom, uma mãe suficientemente boa para retomar com alguma ironia conceitos que nos permitem um certo chiste. Atento ao que fora trabalhado até aqui, espero que você não acredite em mim e, por obséquio, não me ame a ponto de não verificar aqui as inconsistências e falhas que todo texto e todo ensino necessariamente tem. Recorro à abertura que certa vez ouvi de Eidelsztein em sua aula sobre a formalização da Psicanálise pelo Instituto ESPE, não acreditem em mim, não vim trazer a vocês uma verdade, mas o resultado de anos de estudos e pesquisas, confiram as fontes, leiam, pesquisem a partir das referências aqui citadas e, se possível, de outras, a Psicanálise carece desse tipo de profissional.
As Primeiras Sessões: Tempo de Ver Ao receber um paciente novo na clínica, as coordenadas nunca estão muito bem estabelecidas para quem está começando. Analistas que querem iniciar na clínica e vieram de clínicas-escolas geralmente passam por uma espécie de desorientação teórica por não terem tido nas universidades, durante os estágios, uma prática real do que ocorre na clínica particular de cada um. 47
A começar pela documentação que devemos ter, dar recibos a cada pagamento, abrir uma empresa para pagar menos impostos, pagar INSS, ISS, entre outros impostos, tudo isso passa por uma questão importante e burocrática que é de fácil compreensão e aprendizado. Para essas questões burocráticas e, de certa forma, prática, sempre sugiro que o psi procure contador competente para auxiliar nesse início. Pode parecer besteira, mas essa parte é extremamente importante para o profissional para que fique em acordo com a Lei e tenha os benefícios que ela pode trazer como o auxílio do INSS, caso tenha que parar de trabalhar por um tempo. Agora e sobre as questões práticas do início da psicanálise propriamente dita? Vamos direto na fonte resgatando os textos de Freud e posteriormente de Lacan para nos auxiliar a pensar nossa clínica nos dias de hoje. Nos artigos sobre a técnica, Freud (1913) nos dá uma demonstração do fazer do analista em Recomendações... e isso é muito importante. Recomendações não diz de regras gerais a serem seguidas à risca. O que aparentemente deveria trazer alguma luz nos lança numa espécie de tentativa de apreender como o outro faz para mimetizar a partir de uma série de identificações com outros analistas mais experientes. Esse processo, nem sempre de todo consciente, tende a não observar com a devida importância a lógica da teoria que sustenta a prática de cada um como já vimos nos parágrafos anteriores. A proposta de Freud (1913), nos artigos sobre a técnica, pode ser resumida em que o analista, ao receber os pacientes tentem, no início do tratamento, verificar se é ou não possível uma análise. O nome para este momento inicial do tratamento foi denominado de terapia de teste. Aqui, algumas recomendações importantes são feitas como por exemplo, não tomar notas 48
durante os atendimentos, não tentar focar na história que o paciente nos conta, não tentar saber se aquilo realmente aconteceu ou não e, não fazer uma anamnese ou um questionário, pois a ideia central é permitir que o paciente diga o máximo possível daquilo que o faz sofrer e que, de alguma forma, o fez pedir ajuda. O analista intervém para que o paciente continue falando com questões não de sua curiosidade, mas que revele ao paciente que ali, no que ele disse, talvez haja algo mais a ser dito, haja um maldito que pode ser bendito no decorrer da análise. Durante esta espécie de ensaio temos que, nos primeiros encontros, ofertamos ao paciente um espaço para que ele fale e, no decorrer dos encontros vamos verificando sessão após sessão se uma análise é mesmo necessária ou recomendada naquele caso. Freud (1913) nos escreve um texto magnífico, simples e muito coerente com a prática clínica ainda nos dias atuais. A disposição do analista ao receber os pacientes, principalmente nas primeiras sessões, passa pela ética da Psicanálise em que Lacan irá posteriormente trabalhar com afinco ao enunciar que o analista deve sempre se ocupar de receber cada novo paciente atentando-se para o caso a caso. Para Freud (1913), a indicação é muito clara, devemos receber cada paciente como se nada soubéssemos de outros casos, deixar nossa atenção fluir sobre a fala do paciente, não tomar notas, não explicar nada até que a transferência esteja bem estabelecida. A recomendação de Freud e de Lacan não são divergentes e nem excludentes. O que Lacan (1960) pensa como a ética da Psicanálise, se opõe à ética do bem comum, como havia engendrado Aristóteles em Ética a Nicômano. Ao avançarmos no tempo temos uma série de filósofos que se detiveram a respeito da ética, como Bentham e Mill, que propunham que a ação do ho49
mem deveria propiciar o máximo possível de bem-estar a partir de uma ética utilitarista. Estes modelos e pressupostos de como agir e quando agir, de dispositivos inatos ou sociais que assegurariam um bem a todos e, na medida do possível, para todos, é o oposto do que Freud descobriu em sua prática e que Lacan sustentou até o fi m de sua vida ao enunciar que a Psicanálise é uma ética, mais precisamente uma ética do desejo. Como afi rma Dunker (2016) a ética da psicanálise se distancia inclusive da moral que pode ser pensada como o conjunto de regras impostas pela sociedade no intuito de cercear a subjetividade humana. Esta questão da ética é justamente a disposição que o analista deve ter, ao receber um paciente, de reconhecer que o analista não sabe o que é bom para o sujeito que irá se produzir a partir das entrevistas preliminares. O bom, o bem e o belo, como propunha Aristóteles, segundo Lacan (1960) não o são para todos. Isso implica em dizer que o objeto o qual o ser humano aspira não está pré-determinado e, rigorosamente falando, sequer pode ser encontrado em coisa alguma que a sociedade e a história oferecem. O bom, para cada um, o belo para cada um e o bem de cada um. Esta postura inicial no início do tratamento é aquilo que faz uma cisão nos modelos terapêuticos tradicionais onde haveria um “padrão” de saúde, ou de bem-estar a ser alcançado a partir de determinados índices ou daquilo que naquela cultura é esperado. Ora, se não há um bem, um bom e um belo para todos, por que deveríamos pensar um mal para todos? O analista, ao receber cada paciente novo em seu consultório deve reconhecer que daquilo que o paciente sofre, somente é possível saber pequenos recortes que aparecem na fala de cada um que procura por ajuda. Vejam que não há um saber prévio. 50
Para exemplifi car isso, tomemos as depressões que tem sido, de alguma maneira, o equivalente da histeria no tempo de Freud, da paranoia para Lacan e da bipolaridade e borderline na década de 1990/2000. Podemos afi rmar que, de acordo com os dados alarmantes da OMS, a depressão pode ser o grande paradigma das psicopatologias contemporâneas. Dentro de minhas últimas pesquisas tive o privilégio de encontrar um artigo que, ao procurar um biomarcador que comprovasse que a depressão é um transtorno mental de origem orgânica, Kennis, M., Gerritsen, L., van Dalen, M. et al. (2020), chegaram à conclusão que não existe até o momento absolutamente nenhum indicador que comprovasse essa hipótese. Já em artigo recente publicado na revista Nature em julho de 2022 com o título The serotonin theory of depression: a systematic umbrella review of the evidence, os autores chegam a afi rmar veementemente que a depressão não tem relação direta com a concentração de serotonina no cérebro. Inclusive, desde a década de 90, esta tem sido uma das maiores propagandas das indústrias farmacêuticas que apoiam a construção e a utilização do DSM. Se isso não for sufi ciente, ao acessar o site da Organização Mundial da Saúde (OMS) veremos que a sua causa é indeterminada. Ora, Freud (1913) em seu artigo A dinâmica da transferência, em uma nota de rodapé, já nos atentava que o adoecimento não depende apenas de uma falha ou de um evento no corpo. Freud (1913) é muito específi co ao dizer que o adoecimento depende de uma predisposição orgânica, histórica e acidental. Curiosamente, essa é a proposta da Epigenética, uma ciência que estuda a maneira como os genes são “lidos” pelas estruturas celulares e a partir desta leitura as proteínas são sintetizadas e o corpo, como 51
um todo, passa pelos efeitos desta produção de síntese proteica. Um acidente, a exposição a determinados químicos, situações corriqueiras de estresse, muitas são as possibilidades de interação entre nossa genética e o meio que nos afeta cotidianamente. Fiz essa volta para que possamos nos abrir um pouco à hipótese de que também aquilo do que nossos pacientes se queixam, por mais que possam ser categorizados como depressão, jamais será uma mesma patologia. Dunker (2021) trabalha esta questão de forma muito precisa. Não se trata de uma mesma entidade para todos os diagnosticados com este mal, mas de várias depressões que, quando os sintomas são lidos e classificados por um médico (para dar o exemplo) fecha-se o diagnóstico com um nome. Ocorre que este nome diz pouco, ou quase nada sobre a coisa em si mesma. Então, cabe-nos perguntar, como padronizar o tratamento sabendo que são histórias, vidas, pessoas tão diferentes? O analista aqui, apoiado pela ética do um a um, do caso a caso, parece ter certa vantagem frente a outros modelos de tratamento no campo da saúde mental como um todo. Continuando com a questão da ética da Psicanálise, o bem, o bom e o belo em Aristóteles podem ser vistos como ideais culturais em que o Eu tem como norte para se agarrar a uma direção que, na grande maioria das vezes, vai na direção oposta da satisfação pulsional do sujeito do inconsciente. Essa direção, podemos chamar de um ideal, Eu Ideal, como nos ensina Freud (1914) em Introdução ao narcisismo, um Eu que se busca ser para um outro que deseja que ele seja isso. Isso o quê? Isso que falta ao Outro para sua completude. Notem que aquilo que falta ao Outro é sempre suposto, não podendo jamais ser o mesmo para duas pessoas diferentes pois as histórias, as privações, as frustrações, tudo isso comporta o plano da história que se constrói sobre a questão “o que e 52
como ser para que alguém me ame?” de cada um. Freud (1913) já nos atentava sobre estas questões quando afirma que “nem mesmo longas conversas e perguntas” (p. 122) poderiam substituir o “tratamento de ensaio” (p. 122). O que Freud denominou de tratamento de ensaio em O início do tratamento tem relação direta com o que Lacan chama de entrevistas preliminares. Para Freud, o tratamento de ensaio seria, antes de mais nada, importante para “conhecer o caso e verificar se é adequado à Psicanálise” (p. 122). Outro ponto a que um tratamento de ensaio se presta é com relação ao diagnóstico. Notem que não são todos os tipos de sofrimentos que podem ser trabalhados em análise. Isso sempre foi muito claro dentro de nosso campo. Os analistas clássicos nunca abriram mão disso, embora em nossos dias alguns charlatães insistam que a Psicanálise é para todo mundo, isso não se verifica pois nem todas as pessoas apresentam um sofrimento cuja determinação é inconsciente e é endereçável a um terceiro. Estamos aos poucos entrando na questão das entrevistas preliminares e já verificamos até aqui três funções que se complementam, a primeira é a de verificar se aquele paciente e aquilo de que ele se queixa é da ordem do tratável pela via da palavra, é da ordem de um maldizer que pode, com o trabalho, tornar-se um bem-dizer. A segunda é com relação ao diagnóstico que está imbricado com a primeira questão. A terceira e, talvez aquilo que nos permita chamar de uma entrada em análise propriamente dita, é quando se produz a partir do sofrimento uma demanda a um outro que está na posição de objeto causa do mal-estar. Freud nomeou este terceiro momento como “neurose de transferência”. Podemos dizer que é muito próximo da demanda de análise em Lacan, mas que, ainda assim não é a mesma coisa. 53
Sobre a Terapia de Ensaio de Freud O que é um ensaio? Na língua portuguesa temos ao menos duas definições possíveis para significar esta palavra. A primeira é com relação ao que nos parece mais diretamente ligado ao texto de Freud (1913), um ensaio pode ser um “período probatório” (p. 122) em que ensaiamos com o paciente os primeiros passos como em uma peça, em uma dança, em uma apresentação. Temos também que Ensaio é um ato de ensaiar, pôr à prova, testar as coisas para verificar o que é possível, treinar, etc.. O período de ensaio seria então um período predeterminado em que organizaríamos as regras do jogo, o que é esperado do paciente, o que o paciente pode esperar de nós, os acordos com relação ao tempo das sessões, horários, valores, bom, as regras todas seriam postas e verificaríamos a construção da transferência a partir daí apostando em tão somente uma única coisa, na fala do paciente. “Quer se pretenda agente de cura, de formação ou de sondagem, a Psicanálise dispõe de apenas um meio: a fala do paciente. A evidência desse fato não justifica que se o negligencie.” Lacan (1953 - função e campo da fala e da linguagem)
No afã dos resultados para comprovar seu trabalho ou justificar o valor gasto com o tratamento, muitos profissionais que se colocam em nosso campo acabam por recorrer a outras “técnicas” terapêuticas no intuito de darem ao paciente aquilo que eles dizem querer. Isso não inviabiliza a Psicanálise apenas pelo fato de que são práticas eticamente opostas e que os métodos utilizados também não são complementares, mas pela posição que o profissional ocupa desde as primeiras sessões. Apostar única e exclusivamente na fala do paciente é colocar-se em 54
uma posição de acolhimento pela escuta de maneira irredutível. Se o sofrimento do paciente, o sintoma que ele se queixa, seus impasses, suas dificuldades, etc. são efeitos de um maldizer, não será por outra via que não a do dizer, que encontraremos alguma possibilidade de cura. O que acolhemos, então, é a fala. Neste acolhimento, elevamos a fala à sua dignidade de criação. Devolvemos ao falante a possibilidade de transformar-se a partir do momento em que conseguimos articular o maldizer em um bem-dizer o sintoma. Com isso, verificamos que ocorre uma cura no decorrer do tratamento na medida em que o paciente fala e endereça essa fala a alguém que a acolhe. Isso só é possível quando o mal-estar é decorrente do inconsciente que, como afirma Lacan (1953), é estruturado como uma linguagem e que encontra na fala a possibilidade de se revelar. Essa possibilidade de transformação provém da posição que o analista ocupa na relação transferencial. O endereçamento de uma demanda de cura é realizado a qualquer profissional no campo da saúde, mas ocupar o lugar de analista, isso é somente possível a quem já passou pelo percurso em sua análise até o ponto do des-ser4. Oferecemos aos nossos pacientes a cura que nos foi ofertada. Devemos ter sempre em conta a ideia de que se nosso sofrimento fosse de outra ordem, também uma análise não seria indicada. E ainda mais, a ideia que Lacan traz a respeito de uma análise levar até o ponto do des-ser não é por qualquer razão. Enquanto acreditamos ser o que o paciente quer e/ou precisa, enquanto apostamos no ser, jamais conseguiremos ocupar o lugar de objeto para que uma análise possa se produzir. Afinal, como já vimos aqui sobre a ética da Psicanálise, o objeto do ana4 Este ponto será mais trabalhado no capítulo deste livro que versa sobre a formação do analista.
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lisante não é o analista e, muito menos, o objeto suposto satisfazer o analista em sua posição de sujeito. Freud em A dinâmica da transferência é muito criterioso neste ponto quando afirmou que os pacientes procuram nos analistas, tal qual procuram em médicos, professores e outras figuras de autoridade, não apenas uma cura, mas principalmente estabelecer uma relação de amor em que seja possível satisfazer uma demanda pulsional insatisfeita. Aí está uma direção quanto à posição que o analista deve ocupar. Enquanto outros profissionais acreditam poder ser isso que o paciente busca, o analista interroga o paciente para que ele perceba que a satisfação almejada é impossível. Começa aqui um trabalho de orientar o amor em direção ao saber que o paciente porta e também que ele irá construir na falta de sentido que sua própria fala acaba revelando sessão após sessão. Segundo Lacan em A agressividade em Psicanálise (1948). “Sublinhei que o analista curava pelo diálogo, e curava loucuras igualmente grandes; que virtude, portanto, acrescentou-lhe Freud? A regra proposta ao paciente na análise deixa-o avançar por uma intencionalidade cega para qualquer outro fim que não sua libertação de um sofrimento ou de uma ignorância dos quais ele nem sequer conhece os limites.” (p. 109).
Notem como Lacan, em diversos momentos de sua obra repensa Freud articulando seus conceitos com o que Freud já havia desenvolvido. Quero deixar claro essa posição, demarcá-la de forma muito contundente, o analista opera com as palavras que saem da boca do paciente, funcionamos como uma caixa de ressonância. Quando realizamos qualquer intervenção não damos nossa opinião a partir de nossas ideias e ideais, mas a partir daquilo 56
que ouvimos da boca do próprio paciente. Se um ensaio tem como premissa um ato, uma espécie de teste, nossas interpretações ganham força quando saímos do tempo do ensaio e entramos na dinâmica do circuito pulsional como objetos. Agora, para que isso aconteça, é preciso que o analista oferte ao paciente o seu não saber sobre o que quer que seja que ele tem a dizer para, só depois, ao retornar o dizer ao paciente, o faça de uma posição, de um lugar que não é o dele, mas interpretando, como em uma peça de teatro, como em uma cena, sabendo de antemão que ele, enquanto sua pessoa, não é isso, mas que precisa permitir que o analisante o faça ser para que o tratamento seja possível. Neste tempo de ensaio, de teste, vamos verificando que algo se produz endereçado ao analista. Notem que das três condições colocadas até aqui verificamos apenas a primeira, que é o saber se aquilo de que o paciente se queixa é realmente algo passível de ser tratado pela via da psicanálise, pela via da palavra em uma relação transferencial. Seguiremos agora para o diagnóstico que será a porta de entrada na análise e, como toda porta, para entrar em qualquer lugar é preciso atravessá-la, não se entra em lugar nenhum ficando parado sobre a segurança dos batentes.
A Terapia de Ensaio e o Diagnóstico A questão do diagnóstico é um tanto quanto complexa em nosso campo, vale retornar aos textos centrais para ler e reler e repensar o que fazemos a todo instante. Nossa intenção aqui não é um aprofundamento muito menos um esgotamento da temática. Pretendo, ao abrir este subtítulo neste capítulo, apenas retomar algumas orientações sobre nosso fazer clínico que 57
podem auxiliar quem está começando e quem já está há mais tempo na clínica. Primeiro ponto, em Freud, o diagnóstico se dá durante a terapia de teste no decorrer do início do tratamento. No entanto, é inviável a ideia de uma definição pontual do que seria a terapia de teste, o tratamento e o diagnóstico como momentos separados. Podemos separar didaticamente para teorizar sobre, mas na clínica essa separação não é muito bem delimitada. Posteriormente com Lacan veremos que existe uma entrada em análise propriamente dita, mas que, ainda assim, no dia a dia do consultório, isso não se dá de uma maneira unívoca ou pronta e acabada. Por vezes a dúvida permanece ainda por algum tempo e isso é normal, faz com que nós, no lugar de analistas, verifiquemos que nossa teoria não dá conta de tudo que acontece na vida e do que chega em nossa clínica. Tal qual os analistas tem seus limites, nossa prática e a teoria que a sustentam também tem. Começo então com uma questão central que norteará o trabalho: o que significa a palavra diagnóstico? O diagnóstico, é uma espécie de conhecimento estruturado que se tem e se formaliza a partir de um ou mais fenômenos. O diagnóstico por exemplo, pode ser de uma planta a qual iremos catalogar dentro de uma espécie de rol que contenha outras plantas, ou ainda, para afirmar que aquilo que está sendo estudado é uma planta e não um animal. Todo diagnóstico serve para orientar uma conduta, não importa se este diagnóstico é no campo da saúde, da informática, de uma leitura de um texto onde se procura verificar os erros, equívocos, etc.. É um grande equívoco dizer que o diagnóstico é um campo ou saber médico. O diagnóstico é uma palavra que tem uma amplitude muito maior, como a palavra cura 58
que pode ser utilizada para dizer de um processo, por exemplo, com relação ao queijo. Ora, um queijo curado não estava doente, mas passou por um processo de cura. A cura, deixa de ser um fim e torna-se um meio. Com a palavra diagnóstico temos a mesmíssima aplicação. O diagnóstico, independentemente de ser ou não realizado no campo da saúde não é a palavra final, mas um meio para se atingir um fim. Grosso modo, um diagnóstico pode ser então uma ação de conhecer e produzir um saber sobre o fenômeno investigado e que tem como objetivo uma classificação para realizar um determinado tratamento. Tratamento aqui que pode ser inclusive simplesmente classificar o objeto estudado como animal ou vegetal. Tratamento pela via de uma demarcação de semelhanças e diferenças a partir do observador que permitem a categorização daquilo que está sendo estudado. No campo da saúde mental, temos um problema importante. Friso aqui que as semelhanças e diferenças de determinados fenômenos ou objetos estão intrinsecamente relacionadas com o observador. Um médico ao ver uma determinada ferida vai dar um diagnóstico, um xamã por outro lado irá dizer de outra coisa, um líder religioso uma terceira. O diagnóstico então depende de uma teoria que esteja constituída como saber em quem diagnostica. No campo da saúde mental não é raro que uma pessoa passe por diferentes psiquiatras e receba mais de um diagnóstico e, em seguida, mais de um plano de tratamento. Pensemos o seguinte, um diagnóstico de hanseníase há muitos anos era um tipo de sentença de morte. Hoje, ainda que exista muito preconceito, há tratamento e é possível a cura. O que mudou? Simples, o entendimento do agente patógeno e também a evolução no conhecimento científico e no fazer médico que permitiram a criação de determinados medicamentos 59
que podem ser utilizados para o tratamento e cura do problema. E no campo da saúde mental? É possível verifi car um caminho de evolução científi ca e no saber para tratarmos as patologias concernentes a nosso trabalho? A resposta a essa questão é um tanto quanto complexa. Se tomarmos como base a melancolia que é descrita desde Hipócrates como uma perturbação na quantidade da bile negra que afeta a alma, produzindo pensamentos, comportamentos destoantes, etc., podemos dizer que houve uma evolução teórica a esse respeito. Hoje, em pleno século XXI, temos o DSM que, em sua primeira edição trabalhou com a melancolia e, nas edições seguintes trocou o termo por Psicose maníaco depressiva e, atualmente, Transtorno do humor afetivo bipolar. O que se pensava que seria de causalidade orgânica com a teoria da bile negra, nunca foi comprovado empiricamente. Mesmo porque sequer as quatro qualidades de bile descritas por Hipócrates foram verifi cadas nos corpos dos pacientes. Ocorre que no transtorno do humor afetivo bipolar, também nos dias atuais, não temos uma causalidade orgânica defi nida. De acordo com Sagar & Patt anayak (2021) Na prática clínica atual, o diagnóstico de transtorno afetivo do humor bipolar é feito pela anamnese, entrevista e observações comportamentais, carecendo, portanto, de uma validação biológica objetiva.
Embora existam uma série de estudos e pesquisas tentando localizar biomarcadores específi cos para os transtornos mentais, de uma forma geral, até o momento não se encontrou nada que apoiasse a teoria da causalidade orgânica dos respectivos transtornos. Podemos dizer que por mais de dois mil anos, 60
no caso da melancolia, a ciência continua apostando em uma causalidade orgânica sem muito sucesso. De Hipócrates até os dias atuais, o que temos como padrão para diagnosticar é tão somente o relato dos pacientes e, em alguma medida, a observação comportamental e a fala das pessoas mais próximas. A partir dos dados teremos então a classifi cação de determinada pessoa em um tipo de rol, de prateleira de mercado em que se encontram não apenas o nome da doença, mas também as possibilidades de tratamento e de cura. Ocorre que um psiquiatra que aposta na disfunção orgânica e tenta por essa via, como foi muito comum na década de 90 e nos anos 2000, uma homeostase, um retorno ao estado anterior do organismo sem um trabalho conjunto com outros profi ssionais, não terá resultados muito promissores. Hoje em dia já se sabe inclusive que o tratamento somente com antidepressivos não alcançam o efeito esperado a longo prazo na grande maioria dos pacientes. Para citar um exemplo, em artigo publicado em 2020, na BMJ evidence based medicine, os autores chegaram a até mesmo afi rmar categoricamente que “The benefi ts of antidepressants seem to be minimal and possibly without any importance to the average patient with major depressive disorder. Antidepressants should not be used for adults with major depressive disorder before valid evidence has shown that the potential benefi cial eff ects outweigh the harmful eff ects.”.
Esta discussão está longe de acabar, o foco do subtítulo em que estamos é apenas para problematizarmos a questão do diagnóstico e do tratamento e a partir daí verifi carmos como podemos operar com o diagnóstico em Psicanálise enquanto uma teoria que sustenta uma, entre tantas outras, práticas no campo 61
da saúde mental. Utilizo esse exemplo da psiquiatria que aposta na causalidade orgânica para que possamos problematizar que um tratamento implica necessariamente, em um primeiro momento, em saber sobre aquilo que nos propomos a tratar. A crítica aqui não é aos psiquiatras ou aos médicos, mas a uma lógica que tende a colocar a causalidade orgânica dos transtornos mentais como uma verdade mesmo que empiricamente falando não há qualquer evidência disso no campo da ciência. Segundo Freud (1915) “a psiquiatria dá nomes às diferentes obsessões, mas não diz nada mais acerca das mesmas. Por outro lado, insiste em que são ‘degenerados’ aqueles que sofrem desses sintomas. Isto proporciona pouca satisfação; de fato, é um julgamento de valores - uma condenação”.
Ora, o que temos desde a época de Freud até os dias atuais é uma tentativa de diagnosticar aquilo que os nossos pacientes nos relatam a partir de teorias que justificam determinados tratamentos. Agora, se a teoria não dá conta de acolher a quem nos procura e não se encontram a partir de pesquisas científicas dados empíricos confiáveis de que o tratamento seja eficaz, estaríamos no campo do tratamento baseado em evidências ou no campo do achismo, em que, será o profissional partindo de sua interpretação que dirá se alguém pode ou não se beneficiar do tratamento que ele oferece? Para dar um exemplo, por mais que tratemos a covid-19 com pílulas de farinha, chás ou outros medicamentos no mínimo “duvidosos” não teremos nem a cura e nem a remissão dos sintomas, no máximo alcançaremos algum tipo de benefício terapêutico vinculado ao efeito placebo que, em se tratando do campo da saúde mental é muito maior do que quando comparamos com tratamentos de infecções com um antibiótico por 62
exemplo. O que está em jogo é que o tratamento depende de uma teoria que o sustente, e que, em última análise, será a eficácia do tratamento que poderá validar ou refutar a teoria. Voltando agora para o diagnóstico em Psicanálise, Freud (1913) afirmou que quando erramos no diagnóstico, o psicanalista “terá cometido uma falha prática e causado um esforço inócuo, desacreditando o seu processo de cura.” (p. 123). Errar no diagnóstico põe em cheque a possibilidade de validação da teoria no sentido de que a eficácia terapêutica terá menos chances de ser alcançada com o tratamento ofertado. Este esforço para diagnosticar não é algo paralelo ao tratamento em si, o problema é que, justamente, o diagnóstico em Psicanálise não se dá apenas pela fala do paciente no sentido de que o analista deveria recolher o máximo de informações possíveis, como ocorre em outras práticas no campo da saúde mental, muito menos através da observação comportamental, mas antes, a partir daquilo que se produz na relação com o analista. Segundo Dunker (2011) “Em vez de uma classificação exaustiva e de uma descrição objetivante, Freud reintroduz uma homogeneidade entre tratamento e diagnóstico, abolida na clínica psiquiátrica”. (p. 456-457).
Ainda no mesmo livro, Dunker afirma que “o diagnóstico é feito não apenas através da transferência, mas da transferência” (p. 457) e ainda “A diagnóstica em Psicanálise se exerce da primeira até a última sessão da experiência” (p. 458.). Ora, isso é muito importante pois aqui temos que considerar que o analista em seu saber fazer, com suas intervenções, produzirá como efeito o sujeito no instante em que ele mesmo será submetido à condição de objeto para que o tratamento propriamente dito 63
se inicie. Note bem que a terapia de ensaio aqui é alçada a um outro patamar, ela mesma é, ao mesmo tempo o início do tratamento, a possibilidade de entrada em análise e aquilo sobre o qual poderemos, ao diagnosticar, operar na condução da cura. Quero sublinhar isso, o tratamento de ensaio, ou terapia de ensaio, como queiram5, é ao mesmo tempo e de uma só vez uma verificação sobre a possibilidade de uma análise na medida em que se realiza um diagnóstico não do paciente, mas do que se produz em transferência. Aqui, podemos ter um vislumbre dos motivos para que Freud propusesse a ideia de um tratamento de ensaio. Não há na leitura mais rigorosa dos textos freudianos uma clara distinção que determina o exato momento em que um tratamento de ensaio se encerra e o tratamento propriamente dito se inicia. Ao invés disso, encontramos coordenadas que orientam nosso fazer clínico. Assim não há um melhor caminho do que aquele que Lacan propôs para pensarmos a prática clínica partindo da suposição de que seria possível formalizar a experiência analítica. Antes de entrarmos nas entrevistas preliminares propostas por Lacan, convém que retomemos que o diagnóstico então depende necessariamente do saber do profissional e que, em se tratando de Psicanálise, o diagnóstico da transferência só é possível com o avanço do tratamento, não antes e nem depois, mas no decorrer do mesmo. Diagnosticamos uma neurose, uma perversão ou uma psicose para decidir como intervir em cada caso. Não por acaso Freud deu o nome de “Neurose de transferência” para aquilo que se produzia na relação com o analista. Por esta via nos é 5 A meu ver nesse ponto em específico não importa tanto o nome que se dê à experiência, como Lacan irá depois repensar isso e nomear de entrevistas preliminares, o que importa é saber sobre o processo, como ele ocorre e o que esperamos dele.
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possível pensar uma psicose de transferência e uma perversão de transferência. Ou seja, o diagnóstico é a leitura que é feita da maneira como o sujeito se defende da castração, de sua modalidade de gozo, de sua relação com Outro, etc.. Não caberia aqui, mais uma vez, uma exaustiva descrição do que seria uma neurose, uma psicose ou uma perversão. Também não pretendo dizer como os analistas devem seguir em cada estrutura. Este livro, por ser um trabalho para quem está iniciando, deve ao menos incitar a, em suas limitações, produzir no leitor um sentimento de ... “mais ainda...” desejar saber mais, ir atrás de outras leituras, supervisões e trabalhos para amparar sua prática. Que se saiba, no entanto, que uma clínica das psicoses não é o mesmo que uma clínica das neuroses que também não é a mesma coisa que uma clínica das perversões. Cada estrutura tem seus impasses, limites, desafios e, por que não, possibilidades. Outro ponto que não pode deixar de ser dito é que o sujeito com o qual operamos não é a pessoa, mas, antes, o sujeito do inconsciente. Sobre essa questão precisaríamos de um capítulo inteiro para verificar as coordenadas dessa afirmação, mas sugiro, a princípio que o leitor verifique os textos O inconsciente, de Freud e também A ciência e a verdade, de Lacan para ter uma melhor apreensão desta ideia. Diagnosticar o sujeito não é nem de longe o mesmo que predicá-lo, mas verificar a partir do que se produz na clínica uma maneira muito particular e própria de funcionar dentro de uma estrutura universal que chamamos de linguagem. Neste sentido, o sujeito não é neurótico, psicótico ou perverso. Interessante ponto que propõe o sujeito como efeito do discurso que se produz em análise. A maneira como este sujeito consegue se relacionar com o objeto que o causa seria propriamente neurótica, perversa ou psicótica. 65
Vemos então que o analista, no lugar de objeto, pode interpretar o que está se passando na clínica quando percebe que está não apenas dentro do jogo, mas antes, como aquilo que causa o jogo propriamente dito. Se Freud nomeou de Neurose de Transferência e em diversos textos nos trouxe que o paciente transfere ao analista, ou ainda, que o paciente se aproxima do analista com expectativas, ou ainda que o analista ocupa um lugar privilegiado na relação transferencial, como não ver aí Freud nos dizendo de diversas formas que o analista está implicado no jogo de tal maneira que o jogo mesmo não se daria sem o analista? Para encerrar esta parte, e eis o ponto que talvez seja o principal. Sabe o analista o que é uma neurose de transferência para diagnosticá-la? Sabe o analista como produzi-la na relação com o paciente (não o sujeito) que o procura em sofrimento? Para responder a estas questões, proponho avançarmos no que Lacan chamou de entrevistas preliminares.
As Entrevistas Preliminares e a Entrada em Análise “... os analistas nem sempre sabem tanto quanto deveriam pela simples razão de que muitas vezes eles não fazem porra nenhuma. Isso não muda absolutamente nada no fato de que o saber é pressuposto à função do analista e que é aí que os fenômenos da transferência repousam.” (Lacan, 1971 p. 30).
A partir de agora vamos trabalhar ao lado dos textos de Lacan para compreender e reinterpretar a obra freudiana. Em O saber do psicanalista, um dos seminários ainda não publicados oficialmente, Lacan (1971) abre o seminário trazendo a questão, 66
talvez única em todo seu ensino, da importância deste momento na abertura das análises. Segundo Lacan: Cada um de vocês conhece – muitos ignoram – a insistência que faço junto aos que me pedem conselho, sobre as entrevistas preliminares em Psicanálise. Certamente, elas têm uma função essencial para a análise. Não há entrada possível em análise, sem entrevistas preliminares. (Lacan, 1971, p. 27)
A Psicanálise de orientação lacaniana não é a única possível. Fosse assim, Freud não seria psicanalista. Nem Lacan, visto que ele mesmo não fez uma análise lacaniana. É preciso um pouco de lenha na fogueira quando falamos disso, mas com cuidado de não ser demais e o fogo se apagar muito depressa por falta de combustível. Que Lacan não tenha feito uma análise lacaniana isso é um fato, afinal, sua análise, dentro dos moldes da IPA, com Loweinstein a partir de 1932, teve como efeito sua entrada na IPA, instituição que posteriormente o reconheceria oficialmente como analista didata. Em outras palavras, Lacan não apenas fez análise e foi formado no seio da IPA como ocupava o lugar de analista didata. Estar como analista didata era o reconhecimento institucional de que ele trabalhava na formação dos analistas como analista didata e, também, ministrando seminários dentro das instituições associadas à IPA. Esse ponto é importante, pode parecer um desvio, mas não é, principalmente para quem está iniciando na clínica. Vimos até o momento sobre a terapia de ensaio em Freud e isso deve ser o suficiente para que alguém receba pacientes em seu consultório e trabalhe bem desde que saiba o que está fazendo. Agora, aqui entramos na questão das entrevistas preliminares a todo tratamento psicanalítico, alguém que se ocupe de trabalhar com a Psicanálise a partir das orientações de Jacques Lacan, requer que siga as orientações de tal maneira a ser fiel ao 67
que está proposto. Este termo “Entrevistas preliminares” deve nos fazer pensar como uma série de encontros em que o analisante e paciente trabalham de forma preliminar à análise propriamente dita. Em nenhum momento Lacan propõe algo que vá contra o proposto por Freud na terapia de ensaio. Isso é muito significativo. Mesmo que Lacan tenha formalizado a análise, as entrevistas preliminares, a entrada em análise, o fim de análise, etc., isso não significa que ele abandonou o que Freud havia proposto. Na obra de Lacan, encontramos pouca coisa estruturada que nos sirva para uma orientação de como fazer em nossa clínica. No entanto, desde o seminário 1 ele nos remete a um ponto crucial da clínica de que há uma entrada em análise, ou seja, não se dá automaticamente. “Sabemos que a dimensão da transferência existe de cara, implicitamente, antes de qualquer começo de análise, antes que a concubinagem que é a análise a desencadeie. Ora, essas duas possibilidades do amor e do ódio não vão sem essa terceira, que se negligencia, e que não se nomeia entre os componentes primários da transferência – a ignorância enquanto paixão. O sujeito que vem para a análise se coloca entretanto, como tal, na posição daquele que ignora. Nenhuma entrada é possível na análise sem essa referência – não se diz isso nunca, não se pensa nisso nunca, quando ela é fundamental”. LACAN, 1986, p. 309.
Tomei a liberdade de marcar em negrito essa parte que diz que quem vem para a análise se coloca em uma posição de ignorância. Pois que desde o primeiro seminário de Lacan, até o seminário 17 onde ele formaliza os quatro discursos, o que temos é que há na entrada da análise uma construção de um laço social que chamamos de um discurso em que o sujeito ignora a 68
verdade que o causa. Nos artigos sobre a técnica, mais especificamente, em Sobre o início do tratamento, Freud (1913) faz uma série de recomendações aos analistas de seu tempo. Importante que logo na primeira página ele traz uma advertência de que o que ele escreve e suas orientações são RECOMENDAÇÕES, insistindo que existe apenas uma regra que fundamenta o tratamento. A regra, a da associação livre de ideias, e sua correspondente pelo lado do analista, a atenção igualmente flutuante seriam aquilo sem o qual uma análise seria impossível. Todo o restante das recomendações tem como objetivo sustentar a regra do início ao fim do trabalho. Lacan não abre mão disso, mas propõe uma formalização do percurso de análise. Notem que entre uma regra e uma formalização existe muita diferença. Formalizar significa criar regras e encontrar um padrão que possa ser seguido, transmitido, ensinável. E aí está um grande problema. Como formalizar o percurso de análise tendo em vista que a análise propriamente dita é sempre uma e única? A sacada genial talvez tenha sido a de propor uma construção teórica universal que dê conta da particularidade de cada caso. Formalizar também pode ser pensado como colocar em fórmulas, executar uma ação a partir de determinadas fórmulas. A formalização da Psicanálise proposta por Lacan tem mais a ver com produzir sobre a experiência analítica não apenas algo da ordem do verificável na medida em que se coloca a regra fundamental para funcionar dentro do dispositivo clínico, mas também uma maneira de pensar o próprio dispositivo enquanto algo passível de ser transmitido de maneira lógica. Em outras palavras, a formalização segue, partindo da regra fundamental, aquilo que é verificável em uma análise a todos que se 69
submetem ao dispositivo clínico. Temos alguns problemas com isso. Por exemplo, ao propor os quatro discursos como uma maneira de pensar o jogo clínico, as psicoses ficam de fora deste modelo. É preciso outro modelo para pensar a análise com psicóticos que, via de regra, é impossível de articular uma psicose nos quatro discursos pois o discurso, tal qual propõe Lacan, é uma modalidade de laço social e os psicóticos, a partir de seu ensino, não estão submetidos a esta modalidade de enlaçamento com o outro. Ora, isso não faz da formalização algo prescrito, a meu ver, é justamente o oposto disso. É preciso pensar a Psicanálise com psicóticos a partir de um outro modelo, o que não quer dizer que este não seja válido em absoluto. Um outro modelo proposto por Lacan, lembrem-se da metáfora do caleidoscópio do capítulo anterior, é o nó borromeano que será desenvolvido a partir do seminário 20. Com o nó borromeano é possível pensar não apenas a psicose como também a neurose, no entanto, mais uma vez, ele não dá conta de todo o percurso de uma análise, tornando-se assim, ao analista de orientação lacaniana, mais um, dentre vários, elementos que possibilitam pensar a prática e dirigir um tratamento. Posto isso, vamos ao que interessa, como são as entrevistas preliminares a partir de Lacan? Muitos mitos atravessam a formação de quem começa a receber pacientes na clínica e dificilmente vamos esgotar todos eles em um livro “introdutório”. Alguns desses mitos, como o encontro entre inconscientes, são facilmente dissolvidos na medida em que a leitura teórica avança e quando o estudante se dá conta de que há apenas um sujeito em análise e, principalmente, que o sujeito em análise é o do inconsciente enquanto efeito de um discurso. Não haveria assim a menor possibilidade de sustentar um 70
inconsciente “dentro” ou “fora” ou um inconsciente do paciente e outro do analista e assim por diante. Há que ler o que Freud escreveu como um ato exegético e sempre articulando o que está no texto com o momento histórico em que aquele texto foi escrito e também com o público ao qual Freud estava se dirigindo. É preciso, especialmente ao ler Freud, recuperar o contexto. Lembremos que os termos utilizados por ele de forma muito livre eram termos corriqueiros da língua alemã. Falar que a atenção flutuante era escutar atentamente o que os pacientes dizem já é dizer que não há um inconsciente em funcionamento na escuta mas uma atenção ao que manca, ao sentido que escapa, à possibilidade de que um dizer revele ainda mais do que se esperava. Um dos elementos que gosto de trabalhar para pensar a entrada em análise é com relação aos quatro discursos. Seja com Marco Antonio Coutinho Jorge, Marcio Peter de Souza Leite, Antonio Quinet, Isidoro Vegh, ou qualquer outro analista que transmita a teoria em seminários e livros, o que encontramos é um ponto em comum de que a entrada em análise se dá quando é possível produzir um discurso específico que chamaremos de discurso da histérica Essa proposta de entrada em análise é articulada com a criação de uma demanda de análise, do diagnóstico e da organização dos elementos em jogo para a construção de um, dentre quatro, discursos possíveis a partir de nossa práxis. Ao procurar um analista com uma ou mais queixas, o que os pacientes ignoram é que geralmente essas queixas são apenas secundárias, são uma tentativa de fazer cessar um tipo de sofrimento que, de tempos em tempos retorna. O analista em sua posição de escuta deve produzir no analisante uma espécie de curiosidade sobre sua vida, sobre sua história e encaminhar ele para uma perspectiva de reconhecer que ele conta sua vida 71
assim para um Outro o tempo todo. Um pouco mais aqui, que ele se faz disso que ele relata para um Outro que assegure seu lugar em uma relação de amor e reconhecimento. Ao interrogar o paciente nas primeiras sessões, o que vamos produzindo é um tipo de estranhamento onde por mais que os sofrimentos cessem, de tempos em tempos, alguma coisa persiste. Aos poucos, vemos se transformar diante de nossos olhos, através das intervenções do analista, sempre sustentados na ética da Psicanálise, um paciente em um analisante. Há uma clara mudança de posição subjetiva que pode ser recolhida na fala de alguns pacientes. Nem sempre eles dizem isso expressamente, ocorre que os pacientes começam não mais a interrogar o analista sobre suas dores e sofrimentos, mas interrogam a si mesmos, interrogam o seu sintoma. Revela-se assim uma estrutura de discurso que Lacan chamou de discurso da histérica. O discurso da histérica, ou discurso do analisante, segundo Vegh (2001), ocorre quando o paciente, no lugar de agente questiona o Outro, o Significante mestre aqui está no lugar do Outro, mas ao ouvir o silêncio do Outro, no sentido de que o analista deve não dizer a partir de si como se fosse para direcionar a consciência ou as escolhas do paciente, percebe que será na sua própria fala que se produzirá um saber sobre uma verdade que causa seu sofrimento. Geralmente os pacientes chegam diante do analista e o que temos nas primeiras sessões é a estruturação de um “discurso do mestre”, ou, como afirma Wainsztein (2001) “O discurso do mestre é chamado também de discurso do inconsciente”. O que vemos é que o S1, o significante mestre está produzindo sentido sobre o sofrimento. Nas primeiras sessões parece que o sofrer já está articulado de tal forma que há um saber sobre o sofrer, aquele saber dos motivos pelos quais a gente sofre, já está 72
dado, ou seja, o saber é sempre consciente aqui, como se fosse um outro que garante este lugar de sofrimento. Para dar alguns exemplos, isso pode aparecer na fala dos pacientes como: “isso é genético”, “eu sofro por isso”, “porque sou brasileiro”, “porque sou depressivo”, “porque assim diz o meu mapa astral”, etc. O que se revela é um sentido sobre o sofrimento que não permite que o paciente questione a razão pela qual ele sofre, uma vez que a razão já está determinada por um Outro. Notem que há uma certa poesia na leitura que Lacan faz da clínica e quando a formaliza em quatro discursos. No discurso do mestre, o que encontramos é que o sofrimento tem uma causa “consciente” que o paciente sabe e, que este saber, vai sustentar a permanência do paciente neste lugar de sofrimento. O analista aqui é levado a fazer “furo no saber”. Mas o que isso significa? Na realidade é bem simples, se estamos trabalhando desde as primeiras sessões com questões que devolvam ao paciente a possibilidade de falar sobre suas dores e suas queixas, aos poucos, um paciente que afirma que porta uma doença que é hereditária e genética, percebe que mesmo sendo genética não são todos de sua casa que a tem. Já vi alguns filhos adotivos que ainda não sabiam da adoção, portando doenças hereditárias dos pais adotivos. Já pude testemunhar pacientes que traziam doenças genéticas e que quando se aprofundam nos exames médicos “descobrem” que a doença deles não é a mesma doença que a de seus pais. Aqui surge a possibilidade de interrogar o S1 enquanto essa verdade absoluta que, aos poucos, vai ruindo sessão após sessão de análise em um movimento de ver-se vendo-se, para usar a expressão de Lacan (1964) no seminário 11. Esse movimento que percebemos na clínica desde as primeiras entrevistas depende necessariamente das intervenções do analista para que os pacientes possam, ao interrogarem-se, 73
não apenas desconfiar de que há mais naquilo que eles dizem do que eles querem dizer, mas que lhes revele uma e outra vez e tantas quantas forem necessárias que “no começo o analisante se encontra dividido entre o que diz e o que sabe do que diz” (Vegh, 2011 p. 142). Vegh em Os discursos e a cura precisa que uma análise se inicia a partir de “Uma insolência, que é atribuída ao destino: – Por que tenho que sofrer deste sintoma? Ou uma insolência que o analista provoca.” (p. 146). Haveria muito mais a dizer sobre os quatro discursos e o manejo clínico, mas a princípio, pontuando o lugar que o analista ocupa e suas intervenções, já podemos verificar que a análise em si mesma depende de como o analista maneja a transferência que se produz como uma demanda de amor para transformá-la em uma demanda de saber. Espero que tenha ficado claro que as entrevistas preliminares em Lacan retomam os elementos da terapia de ensaio de Freud e vai um pouco mais além, nos trazendo uma formalização em que seja possível pensar a clínica de uma maneira mais lógica e menos intuitiva.
Um Pouco Sobre a Clínica Contemporânea Nos dias atuais, não é incomum a gente receber na clínica pessoas medicadas, muito bem medicadas, mas que dizem que continuam com um mal-estar, continuam com uma culpa, continuam com uma sensação de acusação, de como se tudo que fizessem estivesse errado. Veja, a medicação torna a vida mais suportável, em algum momento podemos dizer que dependendo da pessoa, dependendo do trabalho, chega a ser necessário, não se trata de dizer ou medicação ou Psicanálise, em nenhum 74
momento, mas nós sabemos que muitas pessoas preferem a medicação porque é mais fácil e muito mais acessível (acessível no sentido de que basta comprar e tomar sem qualquer posição crítica frente ao estado afetivo do paciente). E sabemos também que pouquíssimos médicos ou trabalhadores do campo da saúde mental, indicam o tratamento psicanalítico, acreditando não se tratar de uma ciência passível de ser comprovada empiricamente, o que é uma grande bobagem. Atualmente existe uma série de pesquisas que não apenas comprovam a efi cácia de nosso trabalho como também a comparam com outros tratamentos no campo da saúde mental. Para quem se interessar, sugiro o artigo A cura em Psicanálise: efeitos orgânicos e subjetivos de uma análise. (Leite, 2021) Em 2021, participei de uma mesa sobre a efi cácia da Psicanálise, com o tema: Psicanálise e Ciência, em que tive o prazer de estar com Alexandre Starnino, Daniel Omar Perez e Richard Simanke pelo Instituto ESPE. Na ocasião, apresentei sobre a efi cácia da Psicanálise trazendo dados objetivos de nossa prática, daquilo que conseguimos verifi car empiricamente a respeito do tratamento psicanalítico. No entanto a psicanálise, como vimos até o momento, não é para todos. Em meu livro Psicanálise nas redes há um breve texto que trabalha de forma muito direta sobre quem pode se benefi ciar de uma análise. A Psicanálise é para os desesperançados, que caíram na midiática oferta de vida feliz que outros prometeram e que, ao se darem conta, continuaram miseráveis e mais podres, em todo sentido que esse termo alcança. A Psicanálise é para quem não crê mais na possibilidade de ser feliz. A estes, recebo em meu consultório com empolgação, pois perceberam que ela não se 75
compra, com estes é possível um trabalho em que a felicidade seja efeito, não o objetivo e que, para vivê-la, mais do que criar um caminho é preciso criar o que mais tarde se chamará de felicidade. A felicidade de cada um. (LEITE, 2022) A partir deste texto, retomo a questão das entrevistas preliminares pela via da ética da psicanálise e da cientificidade da nossa prática. É preciso transmitir empiricamente aquilo que é da ordem do singular e que é passível de ser generalizável. Talvez o primeiro analista que fez isso de fato, utilizando-se do estruturalismo e depois da matemática, da topololgia, etc, foi Jacques Lacan, que formaliza em seu seminário a distinção entre linguística e linguisteria. Para Lacan (1972), a Linguisteria seria o que nós estudamos, que é algo da ordem do coletivo que é passível de ser subjetivado. “... se considerarmos tudo que, pela definição da linguagem, se segue quanto à fundação do sujeito, tão renovada, tão subvertida por Freud, que é lá que se garante tudo que de sua boca se afirmou como o inconsciente, então será preciso, para deixar a Jakobson seu domínio reservado, forjar alguma outra palavra. Chamarei a isto de linguisteria.“ (p. 25).
Ainda na mesma página, alguns parágrafos abaixo, Lacan (1972) afirmou que “Meu dizer que o inconsciente é estruturado como uma linguagem não é do campo da linguística” (p. 25). Retomo esses dois trechos para que possamos compreender que é possível sim formalizar um percurso de análise do começo ao fim. Ou seja, uma análise não é mais ou menos aquela ideia de “eu acredito que eu estou em análise”, uma análise é um percurso passível de ser verificável uma vez que conseguimos colher alguns efeitos, não somente terapêuticos, óbvio, mas analíticos desde que tenhamos uma base teórica muito bem esta76
belecida, desde que tenhamos na teoria uma bússola que nos permite seguir. No entanto, muitas das coordenadas que sustentam a psicanálise podem ser encontradas em outras ciências. Lacan utilizou-se de outras ciências para poder formalizar a psicanálise. Em O saber do psicanalista Lacan, (1971) chamou de entrevistas preliminares, retomando da Psiquiatria clássica o termo de entrevistas preliminares ao tratamento propriamente dito, que faz uma ligação direta com o que Freud (1913) chamava de terapia de teste ou seja, Freud, Lacan, Dolto, Ferenczi inclusive, eram muito avessos à ideia de que a Psicanálise era para todos, de que todo mundo se benefi ciaria do tratamento analítico, de que todo mundo deve fazer terapia, ou então de que qualquer um poderia se tornar analista. Ao receber um paciente pela primeira vez, precisamos verifi car se isso que o paciente traz é tratável no campo da Psicanálise. Depois, se quem procura tratamento é analisável. Esta questão de ser ou não analisável pode ser pensada como o que aconteceu em uma entrevista minha com Daniel Omar Perez no ESPECAST é possível que essa pessoa associe minimamente algumas ideias? Ele tem uma boa relação com o inconsciente no sentido de que quando alguma coisa atravessa a fala racional, ele acolhe isso como possibilidade, ou nega veementemente, sendo impossível associar qualquer coisa que apareça na fala. Para quem quiser saber um pouquinho mais sobre o método da associação livre de ideias, sugiro muitíssimo o ESPECAST com Daniel Omar Perez sobre esse tema. Ao aparecer a palavra “dramática”, alguma coisa veio ali no lugar e se colocou, e a gente teve a percepção daquilo que de fato se produz numa análise, alguma coisa que rompe, que aparece em um lugar que não deveria, 77
esse seria o segundo ponto. Segundo Lacan (1964) “Tropeço, desfalecimento, rachadura. Nume frase pronunciada, escrita, alguma coisa se estatela. Freud fica siderado por esse fenômeno, e é neles que vai procurar o inconsciente” (p.32). Este efeito de ficar boquiaberto, aqui podemos pensar que alguém tem uma boa relação com o inconsciente. E o terceiro ponto é algo muito estranho, mas necessário, e que acredito que as pessoas não dão o devido valor a ele: Isso que essa pessoa se queixa é tratável de outra forma, de outra maneira? Começarei pelo terceiro ponto, o diagnóstico diferencial no campo da Psicanálise. Um hipertireoidismo pode ser confundido com uma crise de paixão ou de pânico, há que saber o que se passa para, inclusive, quando necessário, encaminhar o paciente a um especialista. Não se trata do analista saber o que é um hipertireoidismo ou um tumor na hipófise, ou então na reumatologia a diferença de um diagnóstico de fibromialgia com uma artrite reumatoide. Para um médico, em especial um reumatologista, não é difícil fazer o diagnóstico diferencial. A maioria dos psicanalistas não são médicos, então, a que nos interessa o diagnóstico diferencial? O que nos interessa aqui não são os exames ou o nome da doença, antes, como o paciente se relaciona consigo mesmo, com o que faz sofrer, como ele cuida ou não de si. Nesta relação consigo e com os outros é que reside a possibilidade de um tratamento psicanalítico. Atualmente estamos em uma certa crise global em decorrência da pandemia. Quantas pessoas não perderam seus empregos? Será que toda crise de ansiedade tem a ver com uma determinação inconsciente? Sinceramente, não acredito nisso. Ou então as tristezas e lutos mais duradouros, seriam elas sempre efeitos de um conflito inconsciente? Acredito que todos que le78
rem essas páginas irão duvidar disso quando se lembrarem da experiência que vivemos recentemente em que famílias inteiras foram dizimadas pelo coronavírus. Vou dar aqui um exemplo de um caso e tudo ficará muito mais claro. Paciente me procurou com indícios de depressão, um cansaço extremo, vontade de chorar e dormir, não conseguia mais ir ao trabalho, não tinha mais forças para continuar e, para piorar, ela mesma verificou a possibilidade de um diagnóstico de Burnout. Essa paciente trabalhava na área da saúde e estava na linha de frente do combate ao covid-19. Quantos analistas também não receberam pessoas assim e foram, assim como eu, incapazes de assegurar um diagnóstico de depressão, de ansiedade ou de Burnout? Ora, quem da área da saúde que não estivesse com elevados níveis de estresse, podemos dizer que estava fazendo alguma coisa errada? Notem que temos, por assim dizer, a possibilidade de acolher, de escutar, de ofertar um espaço para que o paciente fale de suas dores, de seu sofrimento, de sua vida, de seus problemas, mas nem por isso se trata de algo a ser tratado com Psicanálise. Fato é que quando as coisas começaram a melhorar a paciente saiu. Não houve a interrupção de um tratamento pois não havia um tratamento propriamente dito sendo feito, a despeito de minhas intervenções que tinham efeitos interessantes, nunca foi um caso para um tratamento analítico embora foi possível alguns efeitos terapêuticos que auxiliaram a paciente a seguir com seu trabalho e com sua vida. A que se destina uma análise, de fato? Ao tratamento do sujeito. Não da pessoa, não do indivíduo, mas do sujeito. O sujeito que é constituído através da linguagem, na relação com a fala. Vejam então que eu estou colocando aqui para vocês já uma distinção muito importante de que nas entrevistas preliminares do tratamento psicanalítico, o que nós vamos procurar 79
é localizar qual significante representa esse sujeito e a posição que esse sujeito ocupa na relação com outros significantes que podem ser causa de mal-estar e sofrimento. A Psicanálise trata aquilo que é da ordem de uma determinação inconsciente, desde de Freud (1905) isso não mudou. Se quisermos pensar nos dias atuais, podemos nomear o sujeito com o qual operamos como o ponto de indeterminação da epigenética. Aquilo que é da força de vontade, aquilo que você consegue mudar com uma medicação, com força de vontade, com uma terapia, com exercício físico, não é o que nos interessa em um percurso de análise. Agora, quando tudo isso fracassa, talvez a análise possa ajudar, não há uma garantia prévia. O que temos é um trabalho a ser ofertado e esta oferta de um espaço de fala é realizado sessão após sessão. Nas entrevistas preliminares, ao acolher o paciente, vamos interrogando-o no sentido de tentar verificar qual a posição que esse paciente ocupa na relação com os outros, consigo mesmo, com isso que ele diz que é aquilo que o faz sofrer. A partir do momento que nós começamos a localizar essa posição, (isso pode durar semanas ou anos) percebemos um efeito interessante que o analista passa a ocupar, o lugar de objeto causador do mal-estar. O analista não está mais lá como alguém que o paciente supõe um saber nele, um saber tratar o meu mal-estar, um saber tratar aquilo que me machuca, um saber tratar aquilo que me faz mal, mas está na jogada como alguém que consegue, de alguma maneira, localizar a ferida. Esse ponto é muito interessante, alguns pacientes desistem do trabalho e dizem literalmente que as sessões estão deixando-os piores. Cuidemos com essas falas, não estamos trabalhando para piorar a vida de ninguém, podemos fazer o mesmo trabalho sem necessariamente produzir tanto sofrimento? 80
Localizar a ferida é muito diferente de enfiar o dedo na ferida, é preciso muito cuidado. O analista não tem o direito de machucar ainda mais alguém que já está em sofrimento, muito pelo contrário, ele tem o dever ético de acompanhar o paciente, visto que ele pode, passar de paciente à analisante, no tempo em que ele pode, em que ele dá conta, que é possível para ele. Este processo todo só é possível na medida em que o analista fala com o analisante, não faz isso quieto, anotando, mas, conversando, interrogando, mostrando ao paciente que “olha que engraçado, quer dizer que você se queixa disso e, ao mesmo tempo, é isso que você fez com ele, ou com ela, como assim?” esses equívocos de interpretação, os lapsos, a produção de sentido aonde não havia sentido, as interpretações equivocadas da vida, do cotidiano, as interpretações que demonstram que mais se repete na vida do paciente uma leitura que ele faz da realidade do que “fatos objetivos” vai produzindo o analisante como um efeito. Isso aparece quando escutamos “estou apaixonado de novo”, vejam o que há nessa ideia de apaixonado de novo, ao mesmo tempo que há algo que se repete, há algo que se abre à diferença, mas por alguma razão interpreta-se o diferente como igual ou similar. E o analista deve interrogar: “mas são pessoas diferentes, como podem ser iguais?”, “Teu pai não é teu marido, teu marido não é teu pai”. “Ah é igualzinho, ah é?” “É muito diferente, não existem pessoas iguais”. No entanto, é preciso que fique claro que uma intervenção para um paciente não serve para um outro paciente. Isso veremos no próximo capítulo em que trabalharemos a respeito da Ética da psicanálise.
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CAPÍTULO 03
ÉTICA, DINHEIRO E TEMPO EM PSICANÁLISE: AS SESSÕES, O PAGAMENTO E NOSSA ÉTICA
Neste terceiro capítulo trabalharemos a respeito do preço e tempo da sessão, e da análise, de uma forma a articular com a ética que sustenta nossa práxis. A ideia é que seja possível levar isso até as últimas consequências, através da aplicação da teoria na clínica de cada um. Todo este capítulo retomará a questão do método por essas três vias. Para que possamos aplicar qualquer coisa em nossa clínica, sempre sugiro que seja preciso vivenciar o que se vai fazer, em análise. Quem não passou por uma análise de orientação lacaniana propriamente dita, difi cilmente (o que não é o mesmo que impossível) vai conseguir sustentar isso na clínica, primeiro por que angustia demais, se você não tem nenhuma base, nenhuma referência do que é um tratamento de orientação lacaniana propriamente dito, que se difere àquela ideia de 50 minutos, de preço de sessão fi xo, de uma tabela, etc.. Pretendo trabalhar estas e outras questões neste capítulo. E segundo que, aquilo que é esperado do analista, enquanto algo que condiz 82
com a teoria, se não vivemos isso na prática, na pele, dificilmente teremos êxito trabalhando dessa maneira pois estaríamos na posição de cegos guiando cegos. Para exemplificar isso, trago um recorte das supervisões que dei quando era docente universitário. Muitos alunos me perguntavam sobre o momento do corte e a primeira pergunta que eu fazia, que parece que é ridícula é: O que você chama de corte? Estas perguntas bobas, revelam na maioria das vezes um não saber, o que pode levar a um trabalho intuitivo e não a um trabalho lógico. O corte é tão somente uma dentre várias possibilidades de intervenções possíveis do analista e boa parte das pessoas confundem o corte com o fim da sessão, o que não quer dizer a mesma coisa. Pode ser que em algumas sessões o corte tenha a ver com o fim da sessão, o corte analítico. Mas corta o quê? Corta a sessão? Não, o fim de uma sessão não é o mesmo que uma intervenção do analista, embora possam se dar de maneira articulada. O corte é uma determinada intervenção do analista que deve ser realizada no discurso para que seja possível a emergência do sujeito na medida em que conseguimos separar o sujeito do significante que o representa para outro significante. Tem muitas coisas que se trabalha na clínica, bem no começo de nossa prática, que são de maneira mais intuitiva do que lógica. Esse é um dos pontos que eu tenho trabalhado em minhas redes sociais. Trabalhar de forma intuitiva não é fazer Psicanálise. Para exemplificar isso, proponho uma analogia: O esforço de alguém para levantar um edifício inteiro não o faz levantar um edifício inteiro, embora por vezes possa encontrar algumas coisas a partir de seu saber prévio de como fazer isso acontecer, nem por isso irá conseguir levantar o edifício. Agora, se a pessoa estudar com afinco e tiver os materiais à sua 83
disposição para essa empreitada, ele provavelmente irá conseguir elevar o edifício inteiro. Não basta que se tenha a teoria da alavanca de Arquimedes para erguer o edifício, é necessário ter também os materiais para a empreitada. Trabalhar com Psicanálise passa um pouco por aí. Não basta que tenhamos apenas a teoria de como fazer ou o que fazer, mas, principalmente ter o material para operar com ele. Saber fazer com o material, isso não passa pela intuição, passa antes pelo estudo e pela análise pessoal quando se verifica que o analista, como vimos no capítulo anterior, se coloca como objeto poderá produzir uma análise. No percurso de análise, nas sessões de análise, o modelo teórico que nós seguimos, por exemplo, tempo de ver, compreender e concluir, para dar um exemplo, ou então a respeito dos quatro discursos, trabalhados em concomitância com a teoria que versa sobre a entrada em análise, no capítulo anterior. Como podemos verificar se de fato houve ou não houve uma entrada em análise, será que de fato aqui está acontecendo aquilo que Lacan chamou de histericização do discurso, que é a produção do discurso da histérica? Todas essas questões não passam apenas pela teoria e pela análise pessoal, mas também pela supervisão que nos ajudará por onde fazer, e é o que iremos trabalhar neste capítulo. O tempo e o preço não são meras formalidades, mas fazem parte do método e eles também têm uma parcela significativa no percurso de análise e na direção da cura de todos os pacientes.
Tempo, Dinheiro e a Ética da Psicanálise Para avançarmos neste percurso de quem pretende iniciar ou está no início do trabalho clínico, faz-se necessário um resga84
te do que seria essa tal de ética da Psicanálise. Será que existem outras éticas, que não essa? Começo pela ética da Psicanálise, pelo simples fato de que é impossível um tratamento psicanalítico se essa questão não estiver muito clara. Em Psicanálise nas redes propus a discussão sobre a Psicanálise ser elitista quando o analista não sustenta sua ética. O valor e o tempo têm uma lógica própria em nosso campo, mas isso não significa absolutamente nada se não tomarmos a ética como ponto comum e a base de todo nosso fazer clínico. Não por acaso em 1959, quando Lacan estava como analista da IPA, após fazer conferências importantes como o discurso de Roma e também “situação da Psicanálise e a formação do analista”, dedica um seminário inteiro à temática da ética da Psicanálise. No seminário de número 7, Lacan dialoga com Aristóteles, Kant, Sade e outros, tendo como base a obra freudiana que era sustentada em seu retorno a Freud. Uma leitura mais atual de Freud, utilizando-se de outros saberes e se aproximando das matemáticas, da lógica, de outros autores de forma mais direta, conversando com os artistas do surrealismo, com os linguistas que, alguns deles, além de eminentes filósofos, participavam dos seus seminários ativamente como foi o caso de Jacobson entre outros expoentes de sua época. Neste caldo cultural, podemos verificar que Lacan não estava em seus melhores anos ainda. Em se tratando de formar analistas, ele ainda estava preso à institucionalização da Psicanálise que fora promovida pela IPA devendo a ela uma certa espécie de respeito e também submissão. Vemos isso muito claramente em sua fala no seminário 11 e também no seminário 20 onde ele afirmou claramente que “Me aconteceu não publicar A 85
ética da Psicanálise. Naquele tempo era em mim uma forma de polidez... Com o tempo, aprendi que podia dizer sobre isso um pouco mais.” (p. 9). O que havia neste seminário, de tão especial que produziu um mal-estar contundente não apenas na IPA como também em Lacan? Lacan, em diversas vezes se ocupou de distanciar a Psicanálise das psicoterapias. Chegou a afirmar em diversos momentos que estava acontecendo um movimento de psicologização da Psicanálise. Tomem nota que na década de 60 tínhamos nos Estados Unidos nada mais e nada menos que a criação da teoria cognitivo comportamental por um psicanalista formado na IPA. Se Lacan em diversos momentos sustentou uma crítica assídua no coração das instituições psicanalíticas, não era por um tipo de preciosismo, mas por verificar que o caminho que os analistas estavam seguindo levariam a um desfecho que não era favorável à própria Psicanálise. Hoje, temos diversas pesquisas que apontam os efeitos de um tratamento psicanalítico comparando com outras práticas no campo da saúde mental. Os resultados destes trabalhos são interessantes. A eficácia da Psicanálise não só pode ser empiricamente comprovada como também é possível verificar que seus efeitos duram mais do que outras práticas terapêuticas, inclusive quando comparadas com as chamadas “Psicoterapias Psicodinâmicas” ou ainda “Psicoterapias Psicanalíticas”. As evidências empíricas só são possíveis quando se reconhece que Psicanálise e Psicoterapia são práticas distintas. Uma das pesquisas inclusive revela que os efeitos de uma análise continuam a produzir mudanças perceptíveis e mensuráveis mesmo após o fim do tratamento. O que não se verificou com as outras práticas psicoterapêuticas. 86
Segundo Leite (2021) a Psicanálise produz uma série de modificações orgânicas e subjetivas que podem ser verificadas com os mesmos testes e exames que são utilizados para medir a eficácia de todos os outros tratamentos na saúde mental de uma forma geral. O que está em jogo não é apenas uma prática e uma teoria, o que está em jogo é que a Psicanálise é empiricamente mais eficaz e seus efeitos terapêuticos mais duradouros do que outras práticas no campo da saúde mental. O que está em jogo com a defesa da Psicanálise feita por Lacan é a saúde mental de toda uma população que não encontra outro remédio para o tratamento das dores da alma. Veremos a seguir os três elementos deste capítulo que nos permitirão diferenciar a Psicanálise das práticas de psicoterapia de uma forma geral. Para que uma Psicanálise seja eficaz é necessário um psicanalista, para que haja um psicanalista é necessário que alguém tenha vivido na carne a ética que foge da proposta da Ética de um bem comum, de um bem, de um bom e de um belo para todos. Curiosamente esta ética aristotélica que propõe uma coisa para todas as pessoas é a mesma ética do capitalismo. Não obstante é possível identificar essa mesma ética dentro do discurso da saúde mental quando se pensa que devemos extirpar o sofrimento a qualquer custo. A dor, o sofrimento, as dificuldades e tristezas da vida e até mesmo aqueles impulsos de felicidade extrema, tendem a serem vistos como patológicos em uma lógica de que todos podem se beneficiar de algum tipo de droga para estarem mais estáveis, pra produzirem mais, para transarem mais, para gastarem e consumirem mais, para fazer o dinheiro circular. O que está em jogo aqui é uma ética que propõe o consumo como um bem para todos. É preciso um pouco de esforço para sair da lógica da apresentação de objetos, como seria o caso de desejar muito um Iphone ou um Galaxy. Não 87
importa a marca, não importa o produto, o que importa é que se possa trabalhar, produzir e consumir. A dúvida raramente é da ordem de uma necessidade, se isso me faz falta ou não, a dúvida é apresentada em um nível de “qual desses eu vou comprar?” Em Ainda há amor? fiz um trabalho que articula a Psicanálise com a teoria crítica para pensar a construção da subjetividade contemporânea. O resultado do texto, que é bem sugestivo, é de uma aposta na transferência para fazer uma espécie de frente a um ideal capitalista que produz pessoas como mercadorias para o consumo. Naquela época me faltavam elementos para, talvez, ir mais a fundo no ponto que foi discutido. Como a transferência, a Psicanálise, mesmo com seus limites, pode fazer frente a este esquema de produção de subjetividades? A resposta pode ser encontrada em uma leitura atenta do seminário de Lacan sobre a “Ética da Psicanálise”. O que encontramos neste seminário de Lacan nos auxilia muito nos dias atuais com relação às questões propostas neste capítulo. O preço a ser pago em análise, de que ordem é isso? Seria o dinheiro? Seria um bem para consumo? O que seria produzido em uma análise? A saúde mental é vendida como um objeto de consumo, podemos arriscar dizer, um objeto de luxo nos dias de hoje, a Psicanálise vai por esta via? Ao pensar a máxima “tempo é dinheiro” com as sessões de tempo curto ou variável, estaria a Psicanálise nesta lógica de consumo e produção? Certa vez, ao estudar sobre o conceito de práxis me deparei com uma possibilidade de que a práxis, propriamente dita, não tinha como objetivo a produção de um bem. Isto me tocou demasiadamente quando me dei conta de que a Psicanálise também não produz um bem, apenas produz um analista, que, a rigor, é alguém que foi até o fim e pode sair de uma posição para ocupar outra. Nenhum objeto foi produzido, nada se ga88
nhou em termos de bens consumíveis, mas, ao mesmo tempo, esta outra posição, desejante, amante, por assim dizer, permite a quem chegou ao fim de análise um certo tipo de re-visão sobre aquilo que lhe causa. O efeito disso, podemos mensurar com diminuição de internações e uso de psicotrópicos, diminuição de procura pelo pronto socorro, diminuição de doenças psicossomáticas e de crises recorrentes, entre outras coisas que foram mensuradas e catalogadas por De Maat e colaboradores (2007). Verificamos então ganhos terapêuticos importantes no decorrer e após o fim de uma análise mesmo que esse não seja o objetivo de uma análise propriamente dito. O que diferencia a Psicanálise de outras modalidades de tratamento é justamente e, talvez, principalmente a ética que a sustenta. Temos nos dias atuais uma série de pesquisas que apontam para a tentativa de psicologizar o método psicanalítico a partir de bases epistemológicas distintas. Essas práticas, por mais que se baseiem na transferência, na relação com o outro, no tratamento pela via da fala, ainda tendem a tomar o paciente como alguém a ser ensinado, ou ainda, como alguém que porta determinado transtorno a ser curado, a ser extirpado. O que vemos então é o paciente no lugar de demandar e receber do outro um saber sobre si e sobre sua condição. Não há nestes tratamentos a menor possibilidade de um trabalho com o sujeito uma vez que o sujeito é apagado da equação em prol de uma medida comum que possa abarcar uma dita normalidade dentro de um padrão cultural e socialmente estabelecido. Para que possamos vislumbrar isso mais claramente, podemos pegar o exemplo da psiquiatria em que seu campo “se constituiu, a partir do manicômio, buscando elaborar um saber e uma práxis clínica sobre a loucura, poderemos verificar, nos últimos 40 anos, através de algo que chamaríamos de 89
diluição da loucura, como o domínio da psiquiatria se expandiu, abarcando desde a esquizofrenia até a gestão cosmética das performances cotidianas dos indivíduos”. (Laia e Aguiar, 2017 p. 23).
Uma ciência médica, a favor da performance, da produção de indivíduos funcionais. Tomemos como exemplo o que aconteceu com o autismo como um diagnóstico que, a partir do DSM-V, fagocitou o que antes era chamado de Transtorno de Asperger. Milhões de pessoas deixaram de serem Asperger do dia para a noite com uma canetada que autorizava institucionalmente a mudança nos critérios de diagnóstico em todo o mundo. Segundo a OMS “Com base em estudos epidemiológicos realizados nos últimos 50 anos, a prevalência de TEA parece estar aumentando globalmente. Há muitas explicações possíveis para esse aumento aparente, incluindo aumento da conscientização sobre o tema, a expansão dos critérios diagnósticos, melhores ferramentas de diagnóstico e o aprimoramento das informações reportadas.” Reitero que esta “expansão dos critérios diagnósticos” produzem consumidores para um mercado multibilionário de saúde que vai desde à medicação até a atenção à saúde mental com escolas especializadas e caríssimas para atender a uma demanda que, até certo ponto, foi fabricada. Não que o autismo não exista, e que não seja necessária uma atenção diferenciada. Agora, é diferente dizer que TODOS os autistas demandam o mesmo tratamento, as mesmas intervenções, para quê? Para termos um indivíduo funcional na sociedade, mas perguntamos ao autista, à pessoa, o que ele quer ou deseja? Raramente, todo o maquinário de saúde mental se projeta sobre o autista para formá-lo de acordo com suas expectativas de como ele deve agir, pensar, sentir, fazer, etc. 90
Para se ter uma noção de como uma suposta “ciência” cria uma ideia de padrão e normatividade, basta que pensemos na suposição de que um índice, por exemplo o da glicemia, para que um paciente seja considerado pré-diabético e exigir cuidados com nutricionista e outros profissionais que passarão a acompanhar o paciente – repito que isso é uma suposição –, esse índice caia de 100 para 99. O que teríamos como efeito? Simples, milhões de pessoas seriam enquadradas no “pré-diabético” da noite para o dia. Isso parece besteira, mas não é. Sabemos muito bem que para que um determinado índice seja estabelecido, principalmente no campo da medicina, são necessários muitos estudos e pesquisas antes de qualquer tomada de decisão. No entanto, como qualquer prática humana, há algo da ordem de uma política que envolve mais do que a pesquisa em si mesma. Vimos isso com muita clareza no decorrer da pandemia de covid-19. Qual a distância segura entre uma pessoa e outra? Quanto tempo de isolamento uma pessoa precisa ficar? Essas questões, embora seja possível pensar cada uma delas por uma via prática, lembremos que em nosso país o ministério da saúde foi contra, diversas vezes, o que diziam as pesquisas científicas sobre esta temática. Mais recentemente, temendo o colapso econômico e diante de uma quarta onda, o que tivemos foi um afrouxamento não apenas das medidas protetivas como também da diminuição do período de afastamento de trabalho que passou de 10 a 15 dias no começo da pandemia para de 7 a 10 dias em um período em que sabidamente enfrentávamos uma cepa mais transmissível. Meu intuito aqui não é o de uma crítica ao governo, mas de demonstrar com dados de nosso tempo como um índice pode ser politicamente e estrategicamente forjado para que possamos produzir o que socialmente é entendido como um padrão, ou ainda, o normal. 91
Outro exemplo importante que não deve ser esquecido é com relação à homossexualidade. Foi apenas no dia 17 de maio de 1990 que a Organização Mundial da Saúde retirou do rol de doenças a homossexualidade. Anteriormente, no início do século XX, Freud considerava a homossexualidade não como um crime ou uma perversão, mas como uma das possibilidades encontradas nas relações humanas. Até recentemente alguns “profissionais” e sublinho aqui as aspas, movidos por uma moral muito questionável, continuavam a propagar entre seus grupos uma suposta “cura gay”, indo contra todo um movimento político e social que regulamentou a vida de milhões de pessoas como normal. Coloco aqui este ponto para demonstrar que a “patologização” passa muito mais por aspectos políticos e econômicos do que por fatos e evidências e que, embora sei que possa gerar algumas críticas, o que chamamos de patológico ou de normal hoje, pode não ser mais assim amanhã. Neste cenário, fica impossível definir o que seria o padrão, ou ainda, a normalidade, partindo de uma dada perspectiva natural para o ser humano. Podemos dizer, no entanto, que o que acreditamos ser normal segue um viés histórico e cultural. Por esse motivo a Psicanálise, ao se ocupar do sujeito e não do Eu, precisa estar atenta não apenas às mudanças subjetivas possíveis em cada tempo histórico, mas também àquilo que de alguma forma permanece, àquilo que é invariável. Neste sentido, a ética da Psicanálise nos dirige para este ponto nodal que se articula com a cultura, com o corpo, com a história de cada um e tem no sujeito e nas leis de sua constituição algo da ordem de um invariável, algo que encontraremos em todas as culturas e em todos os tempos desde que o humano se reconhece e se pensa como humano. A proposta de Freud e, posteriormente de outros analis92
tas, como Lacan, não era de cunhar uma experiência para todos. Enquanto nas mais diversas terapias temos sempre um benefício para todos, a Psicanálise vai na contramão desta proposta. Notem que um diagnóstico em psiquiatria, por exemplo, toma a fala da pessoa e, a partir de sua narrativa e de seus comportamentos, tenta alçar esta pessoa a uma categoria mais geral. Passa-se do ponto da escuta do paciente para a construção de uma categoria para todos que dizem sofrer as mesmas coisas. Aí temos a possibilidade de pensar as psicopatologias como aquilo que se diagnostica retirando os elementos subjetivos, descartando os dados que comporiam a história de cada pessoa e que revelariam algo do particular. As patologias são classificações que tendem ao enquadramento da pessoa em uma categoria e o tratamento será assim para todos, ou ainda para uma grande maioria a partir de um determinado consenso politicamente estabelecido. De acordo com Laia e Aguiar (2017): Sustentamos que tanto o DSM-V quanto o RdoC reiteraram o esmagamento do sujeito afetado pelo dito “transtorno mental”, ou pelo ainda prometido “transtorno cerebral”. Eles também anulam - por suas pretensões globalizantes, estatísticas e biologizantes – quem decide por um diagnóstico e se faz responsável pela direção do tratamento. Reforçam, assim, como um mero “agente distribuidor” aquele que deveria praticar a clínica e se apresentam, portanto, como o avesso do que se processa na experiência psicanalítica... (p. 30)
Esta modalidade de estabelecer um consenso e determinar sobre a vida de alguém é justamente o oposto do que fazemos em um percurso analítico. Lacan, ao retomar os textos freudianos desde o “Projeto...” de 1895, nos demonstra em seu seminário 07 que o objeto 93
de desejo é sempre algo da ordem do particular. Esse objeto que ele irá denominar, em um primeiro momento de “DAS DING” retomando os textos de Freud, será ao mesmo tempo o que irá causar o sujeito e produzir um efeito ponto de gravidade sobre o qual irá girar toda a cadeia de significantes que nos constitui. A construção da teoria do objeto, então, não permite ao psicanalista pensar um mesmo objeto para todos. Temos então, uma teoria que parte do geral quando se pensa a constituição subjetiva para todos, mas que vai se dirigindo ao particular de cada um quando acolhe a cada pessoa em sua relação com o significante que o causa. Esta diferença é a base da ética com que trabalhamos. Ao invés de acolher alguém em nosso consultório tentando enquadrar esse paciente em uma certa categoria diagnóstica, apostamos na escuta do particular, sempre atentos às surpresas, àquilo que escapa do “comum”, do ordinário. Independente do diagnóstico pela via do DSM, ou de outro manual estatístico, o que nos importa é como aquela pessoa se relaciona com aquilo que ela mesma diz, com aquilo que ela constrói em transferência. Nosso diagnóstico, como já vimos no capítulo anterior se dá na relação transferência a partir do dispositivo clínico. Isso impossibilita pensar um mesmo “ser” para todos. Para dar um exemplo, certa vez recebi um paciente em minha clínica que me dizia que estava em plena crise de pânico e que tinha ido a psiquiatras e todos disseram que deveria fazer terapia. Eu perguntei como era a crise de pânico dele, eis que ele me disse atônito: “Como você não sabe o que é e como é uma crise de pânico?”. Ao que prontamente respondi: “Por isso eu perguntei como é a sua.”. Essa diferença parece pouca coisa, mas quando estamos na clínica e começamos a escutar nossos pacientes, o trabalho 94
que geralmente temos é o de uma desidentificação com um lugar que o paciente ocupa na relação com o outro. Isso passa também pelos diagnósticos recebidos na vida de uma forma geral. Precisamos ir retirando “os excessos” para usar uma expressão de Freud (1905) quando falou sobre o método psicanalítico. Excessos de quê? Excessos de dizeres que colamos em nós como uma espécie de pele feito colcha de retalhos. Chamamos essa pele de Eu. O Eu, desde Freud, pode ser visto de diversas maneiras, mas mais especificamente como aquilo que um Outro investe libidinalmente e se constitui nessa relação com o Outro no lugar de objeto deste Outro. O Outro, grande Outro como dizemos a partir de Lacan, irá nomear, palavrear este sujeito, que aos poucos vai se constituindo para se produzir, fazer-se aquilo que ele supõe faltar ao outro. Neste jogo de suposição e de lugares, temos que aquilo que é o bem, o bom e o belo para um não é para outro, em outras palavras, a ética com que trabalhamos não é a ética aristotélica que sustenta a ética das terapias de uma forma geral. Nossa Ética é a ética do desejo e o desejo, como afirma Lacan (1964) em Do Trieb de Freud e do desejo do psicanalista, “Assim, é antes, a assunção da castração que cria a falta pela qual se institui o desejo” (p. 866). Essa dinâmica do que falta ao Outro enquanto um significante que será aquilo que irá me representar como sujeito para outro significante qualquer, aí temos a impossibilidade de um mesmo objeto para todos. Notem que a lógica da construção do desejo pode ser pensada como uma invariante de maneira global, mas o que teremos como objeto causa, e as consequências disso, é apenas no plano do particular que poderemos ter notícias disso. A esse respeito, o objeto é sempre um, como o é o sujeito que se produz no dispositivo clínico que chamamos de Psicanálise. 95
O Dinheiro Falar sobre o dinheiro em nosso campo sem situar muito bem nossa ética me pareceu um tanto quanto estranho. Por isso essa volta toda para dizer que não é possível tabelar uma análise visto que não temos ideia da realidade do que é possível ao paciente e, mais ainda, de que o próprio valor e pagamento serão questões a serem trabalhadas mais cedo ou mais tarde em uma análise. A princípio quero propor uma disjunção de valor, preço e dinheiro. Notem como um pedaço de papel com alguns escritos podem custar. Em 2021 uma cópia rara da constituição dos Estados Unidos foi leiloada por cerca de 20 milhões de dólares. Quanto custa para uma criança esse pedaço de papel velho com alguns escritos? Notem que o preço sempre será o mesmo, socialmente estabelecido, mas não terá o mesmo valor que um objeto transicional, uma chupeta ou o colo de seus pais. Reparem nas análises como os objetos tornam-se supérfluos na fala de cada um de nós em detrimento do olhar, do carinho, do tom de voz. Aí está o valor, que deverá ser de caráter subjetivo. Já o dinheiro, esse é, como afirma Zizek (2006), o papel que simboliza uma troca vazia. Temos então que o pagamento das sessões passa por essa tríade entre preço, valor e dinheiro. Quem nunca se viu se sentindo em dívida com um analista e teve aquele ímpeto de pagar mais sem se dar conta? Ou ainda, quem nunca pensou que pagava muito ao analista pelo “serviço prestado”? Não devemos nos levar pelo lado do analista aqui, mas poder acolher estas questões na própria análise. Uma das recomendações que fazia a meus alunos nas universidades era justamente para que eles prestassem atenção se haveria alguma mudança em sua maneira de acolher e intervir 96
quando eles já tivessem cumprido toda a carga horária do curso. Fato é que a grande maioria deles diziam que, ao se verem livres das marcações de horas para que eles pudessem passar na disciplina de estágio, a escuta fluía muito mais. E isso não é muito difícil de teorizar sobre, na realidade, pouco se faz nesse sentido pois há muitas questões políticas em jogo. Ocorre que em um primeiro momento os alunos tem os pacientes como seus objetos de trabalho. Não é possível a eles terem liberdade de escuta e de intervenção quando os próprios alunos estão com “uma arma apontada para suas cabeças”. Se os pacientes não ficam, eles não se formam. As demandas criam um emaranhado que dificulta muito a nossa prática. A demanda da instituição com os horários, a demanda dos pacientes com uma certa pressa para ter algum efeito terapêutico, a demanda dos supervisores (esses costumam ser os piores, apenas aguardam pacientemente o momento para tirar o chicote de algum lugar que estava enfiado para então estralar no lombo dos coitados. Seria cômico se não fosse trágico) para ensinar os alunos como fazer para manter os pacientes na clínica, notem que os alunos de psicologia estão de fato em maus lençóis. Isso que ainda nem sequer tocamos na questão da insegurança do aluno que tem no supervisor a expectativa de uma pessoa que o aluno possa contar. Enfim, são muitas demandas que mais prejudicam a escuta do que ajudam. Por que resolvi contar esse caso aqui? Simples, pelo fato de que enquanto o analista estiver tomando o paciente como objeto para o pagamento de suas contas, a análise passará por um período tenebroso. Agora, o analista feliz, de barriga cheia, com a conta de luz e internet pagas tem uma certa tranquilidade maior nos atendimentos que permite certas extravagâncias como, por exemplo, pagar um supervisor que ele escolheu, au97
mentar o valor da análise, comprar livros, etc.. O dinheiro faz parte de nossas vidas e temo que boa parte dos próprios analistas falem mais de sexo do que do dinheiro. É uma verdadeira pena isso. Nas questões mais práticas do dia a dia de nossa clínica aparece sempre um vácuo pronto a sugar qualquer tipo de discussão séria e transparente sobre o tema. Existe então uma questão de ordem prática que podemos nomear de realidade e, ao mesmo tempo, questões de ordem subjetiva. Freud certa vez disse que o dinheiro se assemelha às fezes no sentido de que as fezes seriam os primeiros objetos produzidos pelo bebê em uma relação de troca com a mamãe, com este Outro que demanda do bebê e ele lhe entrega. Ocorre que o que está em cena aqui é a estrutura da troca onde um demanda e o outro entrega, mas notem que há também uma outra dimensão um pouco menos evidente, quando um oferece e o outro recebe. É a partir desta dimensão que costumo trabalhar com a maioria de meus pacientes. Receber na quantidade que o paciente pode pagar, receber o que ele pode oferecer simbolicamente como troca para o analista é muito importante. Não demandar demais do paciente e nem de menos. Demandar mais do que ele pode tem seus riscos de a análise ser interrompida antes mesmo de seu início. Demandar de menos pode ocorrer do paciente não dar valor ao trabalho. As conjecturas aqui e as possibilidades são inúmeras, falaríamos eternamente do que é ou não é possível. Minha recomendação é seguir Freud (1913) que nos afirmou que trata o dinheiro com toda a honestidade como tratamos com qualquer outra coisa em análise. Esbarramos em algo do social, do pudor, cobrar o que e como. Essa perspectiva freudiana nos serve de recomendação, como tantas outras. Mas será a partir de um norte lacaniano que 98
esta questão poderá ser melhor pensada. Respeitar a realidade do paciente é imprescindível, mas sabemos de que realidade se trata?
O Pagamento e a Realidade: RSI Fato é que pouquíssimo se escreve a respeito do dinheiro, do preço e do valor de uma sessão. Neste aspecto em específico temos um problema muito pontual. Ora, se nossa prática deve ser sustentada teoricamente, por que o pagamento ficaria de fora disso? A resposta é que não fica, mas ao mesmo tempo, o pagamento das sessões fica em uma espécie de limbo em que os analistas mais experientes transmitem mais a partir de um “como eu faço” do que um “como podemos fazer a partir da teoria”. Nos próximos parágrafos farei uma espécie de ensaio trabalhando com alguns conceitos para que possamos pensar o manejo em nossa clínica. Para Lacan, a realidade tal qual a concebemos é Real, Simbólica e Imaginariamente constituída. No entanto, até que possamos pensar o pagamento articulado com o Imaginário e com o Real, temos a princípio aquilo que o paciente pode ou não pode. Notem que esta primeira perspectiva de realidade nem sempre é evidente em textos que versam sobre o pagamento e sobre o tempo. Se vamos trabalhar com a Psicanálise de orientação lacaniana, não se trata tão somente de tomar tudo a partir do RSI, mas antes, de poder formalizar a própria estrutura do sujeito pela via daquilo que se entrega, daquilo que faz sintoma e daquilo que escapa na fala dos pacientes e aparece como uma atuação em transferência. O dinheiro como aquilo que se entrega carregado de sen99
tido é da ordem do imaginário. O que eu entrego para pagar minhas contas? Folhas de papel que, se não fosse pelo valor atribuído socialmente (Outro) não teria nenhum valor, aqui estamos no campo do simbólico sendo que é uma cultura que estabelece para cada nota um valor de troca, mas ainda assim, escapa o valor que a pessoa dá ao estruturar aquela quantia, aquela cifra, de maneira a retornar para ele o investimento que ele fez para ter aquilo e, depois, para abrir mão no sentido de uma troca. Notem que isso que eu dou em forma de dinheiro, Freud chamava de libido, por que não dizer dessa dimensão do amor? O amor, em si mesmo, a princípio está localizado no registro do imaginário, ele faz consistir, ou seja, ele organiza as coisas de maneira a produzir um sentido. O homem dos ratos nos ajuda muito aqui. “Tantos ratos, tantos florins...” é mais ou menos isso que ele diz quando paga as sessões com Freud. O dinheiro pode ser lido de forma RSI. Segundo Zizek (2010) “A ordem simbólica emerge de um presente, uma oferenda, que marca seu conteúdo como neutro para fazer-se passar por um presente: quando um presente é oferecido, o que importa não é seu conteúdo, mas o vínculo entre o que presenteia e o que recebe estabelecido quando o que recebe aceita o presente.” (p. 20).
Quero frisar essa dimensão vazia que o simbólico porta. Quando Lacan trabalha sobre o conceito do significante, o que temos é que o significante é suporte de um significado, ele a rigor não significa nada. E talvez isso é o que seja mais difícil em nosso campo, tomar o que é da ordem do pagamento e do tempo como coisas elementares e que, ao mesmo tempo, são intrínsecas entre si. O dinheiro como significante permite que 100
o analista ao receber o pagamento não saiba sequer por que o recebeu ou quanto recebeu visto que aquilo que o pagamento significa (dimensão imaginária) para um não significa o mesmo para o outro. Podemos dizer que Lacan nos ajuda a pensar que as trocas são sempre vazias pois, caso contrário, estaríamos dizendo ao outro o que e quanto custa aquela sessão, aquela intervenção, aquele desfecho, mas somente o paciente pode dizer do que se passa em seu ser durante o percurso de uma análise. Há então um outro preço que se paga em uma análise. O preço do des-ser. Veremos isso no próximo capítulo sobre a formação do analista. No entanto, cabe dizermos que existe um preço para o pagamento da sessão, e existe um outro tipo de preço que estará articulado com o valor que a a análise terá para cada um que passa pelo percurso. Não sei se está ficando claro essa questão do dinheiro e sua articulação com a ética da Psicanálise. Precisamente por não ser possível dizer o valor que aquilo tem para o paciente, não podemos dar de antemão um “preço” como seria em uma troca comercial em que todos pagam o mesmo preço pelo mesmo relógio ou pelo mesmo tempo. Aqui, ao resgatar a dimensão ética, proponho tomarmos articulado com o RSI o que é da ordem da oferta, e não apenas da ordem da troca. Que haja trocas, isso não tem nenhum problema, visto que o analista também pode ser pego, vez ou outra por alguma questão sua e colocar novamente o paciente no lugar de objeto. Neste momento, urge a necessidade de supervisão e retorno às bases teóricas que compõem a formação permanente. Agora, sabemos que nem toda oferta é aceita e nem toda demanda deve ser acolhida em análise. Existe um outro registro da realidade que está em jogo desde o primeiro momento e que articula Simbólico e Imaginário. O registro do Real. Seu conceito parece ser mais difícil do 101
que realmente é. Se tratarmos o real não pela via do negativo, é possível um trabalho no mínimo interessante. Lacan no início de seus seminários tomou o Real como o que não se inscreve no simbólico e nem no imaginário, o que está de fora do simbólico, o que não cessa de não se inscrever, mais para o fim afirma que “não há relação sexual”, etc.. Notem como temos uma espécie de negativo para dizer do Real. Em diversos momentos da obra de Lacan vamos encontrando definições que não se excluem. A cada tempo do ensino de Lacan ele vai privilegiando alguns instrumentos, como no caso da linguagem, para dizer daquilo que fica de fora do simbólico, ou então no caso da fórmula da sexuação onde ele retorna várias vezes na máxima de que “não há relação sexual”. A conceituação do Real e, por conseguinte, do Imaginário e do Simbólico depende necessariamente do arcabouço teórico utilizado naquele momento da elaboração teórica para que tenha uma sustentação maior e ganhe peso dentro da teoria com uma direção prática. Na clínica, o Real aparece quando o acaso se manifesta. Quando estamos tão fechados em nosso cálculo do que fazer e sabemos como fazer com nossas miseráveis vidas, uma ligação telefônica, uma mensagem, um som, uma voz, um olhar, pode mudar tudo. O inesperado toma conta e somos obrigados a nos rearranjar de tal maneira que inclua aquilo que se passou em nossa história. Segundo Lacan (1964) o Real pode ser pensado como “aquilo que retorna sempre ao mesmo lugar – a esse lugar onde o sujeito, na medida em que ele cogita, onde a res cogitans, não o encontra.” (p. 55). Um pouco mais à frente no mesmo seminário Lacan o define como “O Real pode ser representado pelo acidente, pelo barulhinho, a pouca-realidade, que testemunha que não estamos sonhando.” (p. 64). Notem que em ambas as afirmações, e também em muitas outras, temos que é sempre 102
uma representação do Real que se pode formalizar. Não temos a menor possibilidade de pensá-lo sem o Imaginário e sem nos utilizarmos dos significantes que o simbólico nos presenteia. Com esse exemplo, espero que possamos caminhar na ideia de que não há Real puro, assim como não há puro simbólico ou puro imaginário. O nó borromeano nos permite ver isso de forma muito concreta. RSI se entrelaçam, estão articulados, não há nó borromeano sem os três, não há sujeito sem a articulação dos três registros. Não tenho intenção de realizar uma introdução ao RSI que foi trabalhado por Lacan desde o seu primeiro seminário até o último, muito menos esgotar o assunto. Agora, se estamos orientados por uma teoria, creio que seja possível pensarmos a questão do preço da sessão, do dinheiro, de seu valor, por essa via. Lembremos que o pagamento mesmo pode ser um dos elementos em que a repetição representa um Real em jogo. Colocarei agora alguns exemplos no intuito de auxiliar um como fazer a partir da teoria. Ao receber um paciente pela primeira vez, convido-o a dizer o que se passa para que tenha me procurado. Sem nenhuma intenção de que haja ali um enigma a ser desvendado, ofereço ao paciente um espaço de fala para que ele possa me ofertar em troca aquilo que demando dele, a saber, suas palavras. É óbvio que não se pensa assim na prática do dia a dia, mas podemos articular isso teoricamente para sustentar a cada vez, como se fosse a primeira, os encontros na sua máxima particularidade. Neste primeiríssimo encontro, costumo estabelecer já, desde o início, a regra do jogo. Sabendo de suas dificuldades e impasses, ou seja, que o paciente fale abertamente tudo o que vier à cabeça. Pretendo com isso produzir um efeito também na hora de acertar o valor de cada sessão. A sessão vai discorrendo 103
de acordo com a fala do paciente e, no tempo propício de encerrar a sessão, explico como trabalho. Reitero a questão de que ali é para dizer tudo o que se passa em sua cabeça, independentemente do quão difícil isso possa ser. Ao final de tudo, pergunto se o paciente tem alguma dúvida a respeito do tratamento. Geralmente antes mesmo de dizer o preço das sessões. Ocorre que na grande maioria das vezes os pacientes perguntam sobre o pagamento. Isso é extremamente importante, façamos um giro aqui, isso é uma pergunta ou uma demanda? O paciente perguntar sobre o valor, o preço, o quanto terá de pagar pela análise é uma pergunta ou uma maneira de fazer um laço com o analista? Percebam que esta maneira de fazer um laço está de acordo com a pergunta “Que deseja?”, “Che Vuoi” que Lacan coloca na parte superior do grafo do desejo. Aqui a pergunta se torna uma demanda, mas nem sempre é assim. Cabe ao analista saber manejar quando o pagamento está atrelado a uma demanda e é mais um dos significantes a serem trabalhados em análise no tempo de cada paciente. Voltando ao RSI, não temos a menor possibilidade de verificar tudo isso nos primeiros encontros, por isso a importância das entrevistas preliminares. O paciente ainda não está lugar de analisante, para pensar a função do dinheiro, embora isso possa acontecer em alguns casos. Nas primeiras sessões cabe ao analista dar um norte, dizer um quanto, entrar no jogo da troca vazia dizendo um valor que lhe seja interessante a partir de suas necessidades e do quanto acha que vale o seu trabalho. Aqui lhes apresento uma segunda realidade paralela à realidade do analisante. Temos duas realidades paralelas que, embora não se toquem, uma sofre os efeitos gravitacionais da existência da outra. 104
Há a realidade subjetiva de nossos pacientes que será analisada e há, em outra linha, a realidade subjetiva do analista que será analisada na análise dele. Podemos dizer que são realidades distintas e que, se o analista não abrir mão de sua realidade, de seu eu, de suas necessidades para fazer uma função, sustentado na ética da Psicanálise, a análise se torna impossível. No entanto, não há realidade objetiva, por mais que haja um esforço em direção a ela, nos cálculos de “principiantes” de quanto custa uma sessão e quanto se paga por um aluguel de sala, pelo curso, pelo livro, como se possível fazer um balanço para verificar se a clínica é ou não é lucrativa. É preciso deixar a realidade (RSI) do analista de fora para poder operar com e sobre a realidade do paciente. Na maioria dos primeiros atendimentos, pergunto aos pacientes qual o valor que eles pensaram, qual o máximo que eles podem pagar naquele momento, notem que não dar um valor fixo faz com que aos poucos a gente saia da “ordem” de uma suposta realidade compartilhada para entrar na realidade do um a um. Reforço aqui que isso é uma estratégia que para mim é útil, talvez não seja em outro momento e nem para outros analistas. Esta estratégia é útil pois consigo, a partir disso, verificar com o paciente algo que ele pode, algo que não pode, como ele se sente com isso, consigo tatear já nas primeiras sessões um esboço de RSI. Acredito que tenha ficado muito claro que na questão do dinheiro, do pagamento, é possível operar com algo do particular, saindo da lógica do “cobro tanto para todos” ou ainda, que eu acredito ser muito pior “para você eu faço esse preço”. Desde as primeiras sessões podemos convocar o particular ao concordar que nos colocamos para acolher o particular inclusive na questão do pagamento. 105
Antes de encerrar essa parte, há que considerar que nem sempre o pagamento é feito de dinheiro. Talvez, o mais surpreendente é que o dinheiro mesmo, torna-se algo supérfluo na medida em que o analisante vai pagando a análise com seu próprio ser. Há no percurso de análise uma coisa muito distinta das outras práticas justamente por trabalhar com o um a um. Em casos de crianças, psicóticos graves, autistas, considera-se que os pacientes paguem as sessões como eles podem pagar. Um desenho, um presente, seu olhar, uma pedrinha. Em minha experiência com um psicótico o pagamento era feito por ele andando mais de 10km para chegar à clínica. Devemos nos perguntar se enquanto analistas estamos dispostos a receber o que o paciente pode e como ele pode pagar, ou se estamos mercantilizando nossa prática que, embora esteja no mercado como um tratamento, não se confunde nem se submete a esta razão. Poderia escrever muito mais sobre o dinheiro e os pagamentos das sessões, mas a ideia deste livro não é esgotar os temas, mas apresentá-los para que os leitores possam encontrar outras referências e seguir com sua formação. No próximo ponto articularemos a questão do tempo.
O Tempo O tempo é algo que sempre nos falta, mas a Psicanálise nos auxilia (e muito) a lidar com ele e nos utilizarmos dele para nos amparar. Mesmo que neste pequeno livro eu traga alguns recortes a respeito da temática, não esgotarei tudo o que é possível pensar a respeito da noção do tempo em psicanálise. Freud trabalhava com seus pacientes ao menos uma vez por dia durante cinco dias na semana. Reservava aos pacientes uma hora por dia e dizia que esta hora era de responsabilida106
de dos pacientes. Certa vez, dizem que ao receber um paciente Freud resolveu, seguindo o conselho de sua filha, tirar 10 minutos de cada paciente para poder receber mais um paciente, ficando assim determinado o período de 50 minutos por sessão na Psicanálise. Nada mais arbitrário que isso. Ao mesmo tempo, ele atendia, em algumas situações, pacientes por mais de uma vez por dia. Em outras situações por um período menor de tempo do que aquilo que ele recomendava em virtude de alguém que vinha de fora para se consultar com Dr. Freud. A recomendação orienta, mas deve ser tomada como orientação para um fazer clínico que não se limita à mesma. O analista deve se servir do tempo e não o tempo se servir do analista. Eu costumo me divertir muito quando questiono os alunos de psicologia, sejam eles orientados por um psicanalista ou um cognitivo comportamental, ou qualquer outro tipo de linha teórica (não abordagem) que trabalha com 50 minutos, 30 minutos, 1 hora, se eles têm ideia do por que eles determinam este período para os atendimentos. É hilário ver que os que supostamente defendem que a sua prática é científica não sabem dizer as raízes históricas ou o real motivo de utilizar esse determinado tempo com o paciente. O mais cientista de todos segue ignorando que seu “trabalho” cientificamente comprovado “?” segue a indicação de uma suposição e de uma determinação social em nada científica. Ora, o tempo de uma sessão em Psicanálise, ou o tempo do tratamento, a duração daquilo que chamamos de Psicanálise é possível de ser pré-determinado? Já trabalhamos sobre a ética que rege o nosso campo, será que determinar um tempo igual para todos, acordar um número de sessões, como por exemplo 5 sessões por semana como fazia Freud, ou então 3 anos de análise, como ainda fazem al107
gumas instituições psicanalíticas, não seria justamente ir contra essa ética? Sim e não. Na época de Freud, era comum que o médico reservasse um tempo pré-determinado para o tratamento de seus pacientes. Os médicos agendavam de hora em hora seus pacientes e cobravam aquilo que era usual em seu ofício. Tenho pra mim que a era vitoriana foi o auge da hipocrisia em todos os sentidos. Temos muito mais liberdade nos dias de hoje. Vou contar uma piada aqui para demonstrar que o tempo tem uma espécie de outra face que não aquele medido em minutos. Certa vez Jesus decidiu vir atender alguns pacientes no SUS pois a fila estava enorme e não haviam médicos suficientes para dar conta daquele mundaréu de gente. Uma senhora que estava no fim da fila, vendo entrarem idosos aleijados, paralíticos e cegos e todos saírem curados, perguntou ao último que saiu se o médico realmente era bom daquele jeito. Eis que um senhorzinho responde mal-humorado: — Igual todos os outros, nem olha pra nossa cara, não fica mais que 10 minutos com a gente, nem quer saber da nossa história... A questão que coloco com esta anedota é de que o tempo mesmo deveria estar a serviço do tratamento e não o tratamento submetido a ele. Freud, quando inaugura a Psicanálise, escutava seus pacientes pelo tempo que fosse necessário, independentemente de a análise ter um período (alguns anos) pré-determinado ou não. Inclusive ele nunca disse que as análises deveriam ter uma duração x de tempo. Freud se servia desta hora com seus pacientes para escutá-los e verificar, através do dispositivo clínico que ele criou com o nome de Psicanálise, uma série de elementos que apareciam na fala dos pacientes e que ele denominou de formações do inconsciente. Ao falarem sobre si e 108
sobre qualquer coisa que lhes vinha à cabeça, os pacientes de Freud e dos demais psicanalistas não apenas produziam material a ser analisável pela via da palavra, mas principalmente pela via da repetição em transferência. Submeter os pacientes às recomendações de tempo e de pagamento não era sem uma lógica. Ocorre que esta lógica não se dava pela via da lógica do inconsciente, mas antes de uma lógica social, uma ordem de Cronos, por isso, cronológica. Muito me admira ler Freud em Recomendações e ver que as pessoas ainda tomam aquelas recomendações como regras e, mais ainda, algumas instituições, ao não pensarem as mudanças subjetivas de nossa época, tentam manter o “tradicional” em um tempo em que a pressa dita as regras e coordena a formação das subjetividades. Em 1905, Freud escreveu “As indicações e contraindicações desse tratamento não podem ser postas de forma definitiva, em decorrência das muitas limitações práticas que afetaram a minha atividade.” (p. 71).
Em 1913, Freud, ao escrever um belo texto intitulado Sobre o início do tratamento nos deixa novamente explícito o seguinte “Daqui em diante, tentarei reunir algumas dessas regras para o início do tratamento... Mas faço bem em apresentar as regras como “recomendações”, não querendo advogar para elas uma obrigatoriedade absoluta”. (p. 121)
No mesmo texto, de 1913, Freud nos convida a responder à pergunta que os pacientes nos fazem, geralmente no início do tratamento. “Quanto tempo dura o tratamento?” eis que Freud nos auxilia dizendo que não temos como saber. Creio que isso é de uma importância ímpar. Nos tempos de hoje em que a pres109
sa tende a ser a bola da vez, Huber e colaboradores realizaram uma pesquisa apontando que a Psicanálise é mais efi caz e seus efeitos duram mais que as psicoterapias de base psicanalíticas. Em se tratando de uma comparação direta entre outras práticas no campo da saúde mental, temos o trabalho de Zimmermann (2014) que aponta que a Psicanálise é mais efi caz do que a Psicoterapia Cognitivo Comportamental quando tratamos pacientes com depressão maior. O que vemos em nossa clínica é que muitos pacientes nos chegam questionando o tempo do tratamento e alguns são iludidos por promessas midiáticas que não retratam a realidade de nossa prática no dia a dia. Fato é que muitos psicoterapeutas cognitivos, comportamentais, humanistas, fazem análise. Médicos, psiquiatras, entre outros, também fazem análise. Ora, já trabalhamos sobre a causalidade inconsciente sobre a qual a Psicanálise opera. Neste sentido, os efeitos terapêuticos vividos por nossos pacientes durante e após o tratamento são benefícios secundários, embora mensuráveis e passíveis de comparação como afi rma Zimmermann (2014) e ocorrem em um tempo muito próprio de cada um. Embora tenhamos pesquisas que realizam interessantes comparações entre a psicanálise e outros métodos de tratamento no campo da saúde mental, como a de Hubber e colaboradores (2014) em que faz uma comparação direta entre a psicanálise e a psicoterapia cognitivo comportamental, ou então a pesquisa realizada por Kappelmann (2020) que compara a o tratamento psicoterapêutico de forma geral com o uso de substâncias 110
psicotrópicas, o que nos importa de fato é que consigamos sustentar o tempo do percurso de cada um para alcançar não apenas os resultados terapêuticos, mas antes de qualquer coisa, os efeitos analíticos que iremos trabalhar logo mais à frente neste capítulo. Um pouco de história aqui. Lembro-me de meus anos como estudante de psicologia em que eu procurava um tratamento que fosse rápido e eficaz para ajudar as pessoas. Nenhum professor recomendava a Psicanálise pois ela “demorava”, eis aí um mito que escutamos até os dias de hoje nas cadeiras universitárias. Quando Freud cita a fábula de Esopo ele sustenta com uma precisão sem igual que a ética do inconsciente não é a ética do bem comum, mas do passo a passo de cada um. Temos uma teoria que não apenas nos serve de suporte para aquilo com que trabalhamos como também, quando corretamente aplicada, nos permite alcançar resultados tão rápidos quanto outras práticas no campo da saúde mental. Sabem os analistas que o seu trabalho não demora mais que outros trabalhos para alcançar efeitos terapêuticos? Insisto nesta questão de que os efeitos terapêuticos, não são objetivos terapêuticos. Segundo Freud (1912) “A ambição educativa é tão pouco adequada quanto a terapêutica. Além disso, considere-se que muitas pessoas adoeceram justamente na tentativa de sublimar suas pulsões para além da medida autorizada por sua organização...” (p. 103).
Neste trecho de Recomendações aos médicos... Freud (1912) nos traz à tona aquilo que escutamos de diversos pacientes que passaram por outros tratamentos e, até mesmo, por outros analistas menos experientes que acreditaram que as queixas, que os 111
sintomas, que o mal-estar deveriam ser curados, a cura deveria ser o objetivo do tratamento psicanalítico. Ora, o que se passa em nosso ofício é que o mal-estar é uma carta a ser lida, e, acreditem ou não, repetidas vezes. Tenho pra mim uma experiência de um jovem ou uma jovem que lê uma carta de adeus de seu amado ou de sua amada. Quantas vezes aquela carta deverá ser lida até que o luto se faça? Ou então, para quem como eu tenho algum hábito de leitura e de escrita, quantas vezes precisamos ler a mesma coisa para entender alguma coisa? E repito, alguma coisa não é tudo. É preciso retornar o tanto quanto for necessário no mesmo lugar, caso contrário, melhor seria se tirassem nossas vidas. Opa, às vezes parece que é exatamente isso que nossos pacientes nos pedem, mesmo que não saibam disso. Aí está uma demanda de análise que somente o caminhar, somente as releituras, somente sessão após sessão podem nos fazer alcançar algum resultado. O sintoma é uma carta cifrada endereçada a um Outro, é para ser lido e a análise é uma possibilidade de leitura disso que está escrito e se manifesta enquanto um dizer. O início de uma análise geralmente se dá com o luto de um Eu que não deu certo, que não foi suficiente, que não encontra a menor possibilidade de ser o ideal de si mesmo ou do Outro. No começo da análise, mais especificamente na entrada, podemos verificar que há um dizer que revela que “isso fala: um sujeito no interior do sujeito, transcendente ao sujeito...” (p. 438). É quando “isso fala” que o paciente se dá conta de uma divisão entre aquilo que ele supõe ser e aquilo que o habita. As depressões, pânicos, fobias, sintomas, etc., podem ser efeito de algo da ordem de uma determinação inconsciente – disso fala - e, se forem isso mesmo, somente a Psicanálise poderá ser um tratamento eficaz uma vez que somente a Psicanálise opera este 112
objeto que nos causa enquanto sujeito. Temos então que compreender que o percurso de análise tem um tempo, mas a sessão também tem um tempo próprio. Para dar um exemplo, peguemos uma cirurgia cardíaca, quanto tempo demora? Não há, a princípio um tempo determinado de uma cirurgia, em Londrina, cidade onde eu moro, houve um procedimento cirúrgico em 2008 que demorou 51 horas quando a cirurgia em si mesmo não demorou mais que 3 horas. Notem bem que há uma diferença na questão do tempo. Existe um tempo para a intervenção cirúrgica e também outros tempos, o de preparação, o de recuperação, o de monitoramento, são muitos tempos que num tratamento analítico costuma-se colocar como se fosse tudo uma coisa só. O que não é verdade. Há o tempo das entrevistas preliminares, há o tempo de análise propriamente dita, há o tempo de produção do sintoma que dependerá das intervenções do analista que conta com a contingência da vida. Seguindo esse raciocínio, a Psicanálise tem o seu tempo, isso não implica dizer que ela é demorada, mas que para alcançar aquilo que ela pretende enquanto tratamento, e que não é o efeito terapêutico, há uma série de elementos em jogo que nem sempre estão dispostos de maneira favorável ao tratamento. Sobre os efeitos terapêuticos, uma noite romântica, um bom sexo, uma noite de bebedeira, uma leitura de um texto de Lacan ou de Freud, o entendimento de Heidegger, um bom filme, uma pescaria, um momento com a família, tudo isso pode nos trazer algum prazer e modificar a bioquímica de nosso cérebro por um tempo. Agora, modificar o mecanismo que causa o adoecimento, somente se formos na fonte, na causa. Aí meus caros, o tempo, está sempre a nosso favor, se, e somente se, soubermos utilizá-lo para tal. 113
Para resumir este trecho, podemos dizer que o tratamento psicanalítico demora o tempo que for necessário. Agora, também precisamos estar atentos por que alguns que se colocam como analistas tendem a demandar do paciente um tratamento sempre a mais, fazendo com que a análise seja infinita. Isso vai na contramão de todo trabalho psicanalítico sério. Freud (1912) nos atenta para este fato quando afirmou que “No processo de dissolução dos entraves ao desenvolvimento, é natural que o médico aponte novos objetivos...” (p. 102). Quando isso acontece, saímos do campo da Psicanálise pois o paciente torna-se o objeto do analista e, como sabemos a ideia é tentar sustentar o oposto, que o analista seja o objeto causa, o que nem de longe é a mesma coisa que ser o objeto do paciente. Causa de quê? Causa do sujeito, inaugurando um tempo com começo, meio e fim de análise. Não cabe ao analista dizer ao analisante que ele deve elaborar mais coisas. É muito provável que nas análises que conduzimos em algum momento a gente diga ao analisante que é possível ir mais além, no entanto, é diferente de dizer que o paciente deve ir mais além, ou ainda o que ou onde é esse mais além. Certa vez na clínica, ao atender um paciente por alguns anos, me deparei com uma espécie de esgotamento do trabalho. Eu mesmo já não tinha a menor expectativa de que aquele paciente continuasse por mais tempo no divã. Então disse a ele que tínhamos feito um trabalho até aquele momento e que, estava em dúvida sobre como a Psicanálise podia ainda ser útil para ele. Perguntei se ele queria mais coisas com o tratamento que ele ainda não tinha alcançado e eis que ele disse que sim, e começamos a trabalhar outros elementos que não tinham aparecido até então. Outro caso que pude acompanhar foi quando recebi uma paciente muito angustiada e desesperada. Logo nos primeiros 114
meses convidei-a a vir ao menos duas vezes na semana. Ela estava dizendo que falar estava piorando tudo, que não suportava mais, que não aguentava mais. Foi quando eu lhe perguntei: “Você precisa de análise ou quer fazer análise?”. Esta intervenção, depois de algum tempo, retorna de outra maneira quando ela diz que queria parar pois já estava muito bem. Se me recordo bem, em torno de um ano depois eu fiz outra pergunta com um teor completamente diferente: “Você alcançou bons efeitos terapêuticos, no entanto, se você quiser, a análise pode te servir muito para outras coisas”. Esta paciente decide sair da análise e tudo bem. Trago esses dois exemplos para ilustrar que o tempo de análise depende também de que o analisante se implique com isso. Não depende somente do desejo do analista, mas também da utilidade que uma análise pode ter para alguém. Acho isso muito importante. As pessoas não precisam se analisar, elas podem encontrar outros meios, podem se ajustar na vida com seus sintomas, podem continuar no sofrimento a que estão habituadas, a análise vem como mais uma, entre outras, possibilidades. Depois de falar um pouco sobre o tempo da análise, vamos ao tempo das sessões, ou melhor dizendo, como trabalhar o tempo a partir de uma outra lógica que seja possível de sustentar em nossa práxis.
O Tempo da Sessão: Método Clínico Cogitei não entrar nos pormenores deste ponto, pela dificuldade em apresentar as questões concernentes a um problema real em nosso campo de maneira prática. No entanto, julgo de extrema necessidade passar por aqui, principalmente quando me recordo de meu início na clínica. Podemos pensar que, 115
a princípio, nos dias atuais, temos três modalidades distintas de pensar o tempo da sessão na psicanálise. Tempo fixo, tempo curto e tempo variável. As sessões com tempo fixo geralmente são trabalhadas a partir de uma determinação social, institucional ou histórica. É o caso das universidades ou planos de saúde que determinam o tempo das sessões de atendimentos sem sequer terem uma noção de que nosso trabalho não está tão distante assim do trabalho médico, como puderem verificar no exemplo que dei nas páginas anteriores. Em outras palavras, podemos muito bem ter uma sessão em que se chega em um determinado ponto e pronto, por que continuar? Quais os benefícios? O que poderemos ter de ganhos mantendo um determinado tempo fixo? Muitos psicólogos trabalham com o tempo fixo. O que a grande maioria não consegue fazer é sustentar cientificamente o porquê trabalham de 50 em 50 minutos, ou o porquê trabalham de 30 em 30 minutos. Podemos dizer que há uma convenção neste ponto. Historicamente Freud trabalhava, a princípio, com uma hora para cada paciente e, posteriormente, 50 minutos. Ocorre que Freud se utilizava deste tempo para colher do paciente tudo aquilo que pudesse em um determinado período de tempo pré-estabelecido seguindo a lógica socialmente acordada de que o médico dedicaria uma hora para seu paciente. A fala do paciente, mais do que informar a Freud sobre alguma coisa era o veículo sobre o qual se produzia a transferência enquanto uma relação de amor passível de ser analisada. Ao recuperarmos os textos de Freud veremos algumas coisas muito interessantes a respeito das sessões. Primeiro que ele recomendava, não obrigava, segundo que ele atendeu pessoas por cartas, terceiro, como foi o caso do pequeno Hans, que não considero ter sido uma Psicanálise propriamente dita por diversas razões, houve ali alguma intervenção 116
fora do dispositivo clínico, fora do tempo dos 50 minutos, fora da transferência. Costumo utilizar o caso do pequeno Hans para ilustrar como é uma “Psicanálise selvagem” e como nem mesmo Freud esteve imune a isso. Ou então peguemos o exemplo do caso Katarina onde ele está sentado de férias tomando seu café e a garçonete se achega para se consultar. Esses exemplos nos servem para pensar que o tempo fixo poderia ser uma recomendação que, dadas as necessidades, pode ser descartada desde que o analista saiba o que está em jogo, o que está fazendo. Um tempo de sessão fixo, pré-determinado não é algo que nos permita muito operar com liberdade. Colocando em xeque inclusive as possibilidades de uma Psicanálise em instituições de saúde onde as coisas acontecem tal qual acontecem na vida, sem o controle do analista. Mas tem alguns benefícios. Ocorre que os benefícios ficam à mercê da fala dos pacientes. No período em que eu estava na faculdade de psicologia, havia uma piada que dizia que se o paciente chegasse adiantado ele era ansioso, se chegasse atrasado era resistência. Impossível não ver nessa piada um importante detalhe de nossa prática. Nós não diagnosticamos pelo fenômeno, mas por aquilo que se produz em transferência. Qualquer coisa que aconteça na clínica está submetida à regra fundamental, então seja um atraso, uma antecipação, um esquecimento, ou um “queria ter mais tempo para falar sobre isso”, não dispomos de outro elemento que não seja a fala do paciente. Tempo e dinheiro, nesta lógica, tornam-se elementos analisáveis que entram no jogo e não elementos pré-determinados que ficariam em uma posição “de fora” como se esses elementos de nossas vidas cotidianas não fossem passíveis de, dependendo do caso, serem alçados à dignidade de algo a ser analisado no divã. Lacan, atento às questões do tempo, e, mais ainda, de que 117
o inconsciente tem uma temporalidade diferente da lógica socialmente estabelecida de segundos, minutos, horas, dias, etc., aposta que também as sessões de análise devam acontecer a partir desta temporalidade outra, de um tempo em que a lógica que se opera é a lógica do inconsciente e não a de Cronos que tudo devora. Na lógica do tempo do inconsciente temos uma certa atemporalidade onde o inconsciente pulsa e se abre a cada instante para tornar a se fechar. Segundo Lacan (1964) “O desejo indestrutível, se ele escapa ao tempo, a que registro pertence na ordem das coisas? – pois o que é uma coisa senão aquilo que dura, idêntica, um certo tempo? Não haverá aqui lugar para se distinguir ao lado da duração, substância das coisas, um outro modo de tempo – um tempo lógico?...” (p. 39).
A apreensão deste tempo lógico não é das mais fáceis, mas também não é a das mais difíceis. Para continuarmos, será necessário um breve desvio na apreensão de alguns conceitos que estruturam radicalmente nossa prática. Os conceitos de inconsciente, signifi cado e signifi cante, pois será apenas por esta via que podermos pensar o tempo lógico do inconsciente estruturado como uma linguagem correspondente ao tempo lógico da sessão. Lacan (1964) propôs em sua obra que “O inconsciente é estruturado como uma linguagem” (p. 27). Falar que é estruturado como uma linguagem, como ele bem o faz e sustenta, em especial no seminário 11, é dizer que está determinado por uma lógica, por uma organização que tem como elemento o signo e, o signo, por sua vez, pode ser desarticulado em duas partes, a saber: signifi cante e signifi cado. O signo, como tal, pode ser pensado como um efeito do signifi cado que se produz a partir de um elemento 118
mínimo que a linguística nomeou de significante. Lacan define que o signo é aquilo que significa algo para alguém. Notem bem que há nesta dimensão algo que significa algo para alguém, existe um Outro aí neste ponto como destinatário de uma mensagem. O significado, por sua vez é o efeito da leitura do signo, uma interpretação. A fórmula seria a seguinte: SIGNO =
significado _____________ significante
O Significante para Lacan é o material sobre o qual é possível produzir um efeito de sentido. O sentido depende de um significante, mas o significante não depende do sentido, ao contrário, o significante como suporte material do sentido, permite que o sentido não seja arbitrário, mas tenha uma relação com o significante que o suporta. Segundo Lacan (1973). “... o significado nada tem a ver com os ouvidos, mas somente com a leitura, com a leitura do que se ouve de significante. O significado não é aquilo que se ouve. O que se ouve é significante. O significado é efeito do significante.” (p. 39).
Tomemos uma palavra (imagem acústica) como um significante, a palavra carteira, para dar um exemplo, permite uma série de sentidos, pode ser a carteira de dinheiro, a carteira de clientes, a carteira de uma sala de aula. Notem que o sentido dependerá de uma articulação entre o significante, o contexto, os outros elementos em jogo. No seminário 20 Lacan (1972) mantém sua posição de que “o significante é primeiro aquilo que tem efeito de significado” (p.25). Neste mesmo seminário ele nos traz a ideia de um significante “à beça” ali tem carta à beça. Podemos pensar o significado está determinado socialmente e que “à beça” seria 119
o mesmo que “aos montes”. Ocorre que recentemente conheci um senhor que tem sobrenome Bessa, aqui de minha cidade. Vocês não têm ideia de como fiquei lisonjeado de ver a minha frente o significante em sua forma mais pura. Percebi que poderia escrever à beça. Esse equívoco que temos aí nesta frase, não se sabe com a minha fala a partir da imagem acústica se estou me referindo a um texto para o Sr. Bessa ou a escrita de muitos textos, livros, etc. Notem como o sentido não está pré-determinado ao significante, mas, antes de qualquer coisa, se apoia no significante para fazer signo, para significar algo para alguém. Ao operar nesta lógica do significante e não da significação, temos a possibilidade de clinicamente verificar que existem outros sentidos possíveis para uma mesma experiência na medida em que se modifica o olhar do paciente sobre qualquer coisa que esteja sendo dita em análise e que o analisante traz, com uma certa importância, como algo que faz marca. Isso só é possível por que o significante como elemento mínimo é sempre vazio e polissêmico. O significante pode ser um suspiro, um gemido, um olhar, um gesto, qualquer coisa que possa ser preenchida de sentido. Melhor dizendo, aquilo que permite uma leitura e, com ela, a interpretação de um acontecimento. Operar com o tempo lógico é operar no tempo da abertura e fechamento do inconsciente, onde verificamos com nossas intervenções a possibilidade de que um corte na cadeia de significantes foi feito e, a partir deste corte, uma nova possibilidade de sentidos outros pode advir. Isso não é fácil, mas não é impossível. Acredito ainda hoje que o grande, talvez um dos maiores problemas no início de nosso ofício é menos em relação ao tempo e mais em relação ao manejo que permita com que operemos nesta outra lógica temporal. O tempo que produzimos de uma descontinuidade. Lacan 120
(1964) nos assegura que o inconsciente freudiano era da ordem de uma sincronia. “Vocês verão que, mais radicalmente, é na dimensão de uma sincronia que vocês devem situar o inconsciente” (p. 33). Ora, nossas intervenções tendem ao efeito de marcar a diferença, o novo, a abertura para o que não é sincrônico, para aquilo que aparece na fala de nossos pacientes como um outro sentido para além daquele que até então estava sustentando o ser de cada um deles. Um dos problemas dos inícios de análises é que se confunde muito o sofrimento por aquilo que se é na relação com um Outro com o discurso de que sofro por causa disso ou daquilo. O que nos importa é o sofrimento por aquilo que se é, por aquilo que nos fazemos ser na relação com um Outro. Este Ser é desde sempre um problema, para resumir a coisa toda e dar uma direção (não a única) de trabalho, no seminário 20 Lacan nos incita a pensar o ser a partir da predicatização do sujeito. O sujeito com o qual trabalhamos é aquilo (sim, aquilo) que surge de maneira evanescente quando, a partir da intervenção do analista um significante se descola do sentido prévio determinado se abrindo para um outro significante. A célebre frase de Lacan de que um significante representa o sujeito para outro significante não é algo possível de ser pensado fora dos efeitos do dispositivo de uma análise. Fora da intervenção do analista que abre o tempo entre um antes e depois, produzindo uma hiância temporal. Analista como um significante qualquer que, a partir de suas intervenções, pode produzir como efeito em transferência que o analisante se reduza a um outro significante permitindo que o sujeito seja representado pelo significante e não pelo sentido ou pelo ser. O ser será o sujeito predicatizado, colado a um predicado que se apega ao predicado para dizer Eu Sou. Já o sujeito, como nos ensina Lacan (1964) é sempre da 121
ordem do indeterminado, o sujeito é ético e não ôntico. Representar o sujeito, eis uma coisa que frequentemente passa desapercebida. Demorei muito tempo para compreender isso, talvez quem tenha mais ajudado aqui foi Jorge Sesarino nos seminários e nas análises de controle que fiz com ele. Certa vez me disse que Lacan disse várias e várias vezes de formas diferentes, mas a mesmíssima coisa, que não temos acesso ao sujeito em si, apenas a seu representante. Só é possível uma representação na medida em que o sujeito mesmo não está lá. O significante se faz de elemento esvaziado de sentido para representar o que está ausente. Uma analogia que me ajudou muito foi quando ouvi Jorge Sesarino dizer que um porta-voz do presidente da república o representa, mas não o é. Só pode haver porta-voz quando o presidente não está presente. Só pode haver alguém que o represente se ele mesmo não estiver com sua presença no local marcado. Eis que temos então que um significante pode (esse pode faz toda a diferença) representar o sujeito para outro significante somente na falta do sujeito e não em sua presença. Veremos agora como essa teoria do significante é de suma importância para a condução do tratamento clínico a partir da direção proposta por Lacan com o tempo lógico.
Olhar, Compreender e Concluir a Lógica de Uma Sessão de Análise Nos Escritos de Lacan temos um texto que nos apresenta a lógica do tempo de uma sessão de análise que foi intitulado por Lacan de O tempo lógico e a asserção de certeza antecipada. Não apenas este texto, mas principalmente este nos auxilia a pensar a sessão por uma via lógica. Dividindo o tempo em três períodos, Lacan cita que há “o 122
instante de olhar, o tempo para compreender e o momento de concluir” (p. 204). O instante de ver é algo que se dá num primeiro momento e que força o sujeito a, a partir de tentativas subsequentes de compreensão, concluir em algum momento sobre aquilo que foi visto. Ao acompanharmos Lacan no texto, teremos que o ver é um instante que força uma certa compreensão daquilo que se apresenta. Esta primeira compreensão, produz uma conclusão equivocada do que foi visto. A conclusão permite que o visto seja outra coisa. A compreensão mesma dos dados objetivos é sempre falha, é preciso uma subjetividade que a interprete, que diga sobre, que formule sobre o fenômeno uma compreensão. Esta compreensão assume não apenas o papel de juízo de valor do objeto, mas de si mesmo. Ao tomar-se como objeto de investigação e dizer-se sobre si mesmo, notamos como o tempo de compreender permite que se formule um juízo sobre si mesmo, sobre a cena, sobre o que quer que se diga em análise. O momento de concluir é o momento do juízo que assegura ao sujeito sua posição e sua existência. Isso é muito importante. Quero salientar que o julgamento da cena, se dá a partir da fantasia constituinte de cada um. Ou seja, nossa compreensão sempre é forçada, como se a própria cena já estivesse compreendida antes mesmo de existir. O esquema é fechado de tal forma que o instante de ver já está sobredeterminado pelo que está compreendido que, também já traz em si, o juízo que é anterior à fala do paciente. Ao fazer qualquer intervenção não miramos alcançar o sentido, mas o significante com sua característica polissêmica. Agora, e se tomamos que o sujeito é representado por um significante, este significante que representa o sujeito para outro significante qualquer, que o analista deve representar, quando colocamos na cena analítica nos deparamos com o problema do tempo ló123
gico que está no fato de que o tratamento psicanalítico tende ao des-ser. Isso é de suma importância e veremos com mais profundidade no próximo capítulo. Articular o tempo lógico com o des-ser da experiência analítica nos levaria a uma compreensão mais afinada com nossa práxis. Ao invés de sou isso ou aquilo, sou assim ou assado, o que tendemos com nossas intervenções é cortar no campo da linguagem pela função da fala o sujeito, separando-o do significante que o representa, revelando ali o sem sentido para alcançar o sujeito enquanto vir-a-ser. Nos últimos parágrafos do texto Lacan traz o problema do “Eu sou homem” como uma afirmação que pode ser posta em análise. Convido a pensarmos tudo aquilo que aparece como “eu sou” na clínica. A proposta de Lacan segue que no instante de ver eu consigo formular que sou isso por saber (antecipadamente) o que não sou. 1º - “Um homem sabe o que não é um homem” (p. 213). Neste primeiro momento não temos a asserção de ser um homem, antes temos a possibilidade de ver tudo aquilo que não é um homem, mas o ser ainda escapa. É compreendendo não ser nada daquilo que se apresenta no instante de ver que posso formular uma compreensão de ser alguma outra coisa. 2º - “Os homens se reconhecem entre si como sendo homens” (p. 213). No tempo de compreender o que temos é justamente uma espécie de Outro que me diz o que sou por aproximação, uma vez que a diferença já fora estabelecida no instante de ver. Como não ver neste tempo de compreender que o momento de concluir é justamente que se conclui, quando se reafirma em si mesmo aquilo que veio do Outro imputando predicados sobre o meu ser? 3º - “Eu afirmo ser homem, por medo de ser convencido pelos homens de não ser homem”. (p. 213). Aqui a asserção da 124
certeza, uma conclusão que encerra o tempo de compreender. A conclusão, o momento de concluir para Lacan é aquilo que fundamenta o ser a partir da relação com o Outro. Nesta lógica, Perez (2018) nos esclarece que “O campo do Outro não encerra um saber pronto, capaz de defini-la. Isso equivale a dizer que nem a percepção nem o saber que a sociedade oferece podem dizer muito sobre a identidade de um sujeito”. (p. 187).
A partir desses elementos proponho agora uma retomada destes conceitos para pensarmos a prática clínica. O que temos no instante de ver é, no sentido de que alguém se objetifica pensando-se a partir de seus comportamentos, de seus atos, de seus sentimentos, é ao mesmo tempo carregado pelo tempo de compreender que força uma conclusão sobre o que se é. Notem que tudo torna-se analisável através da fala. A análise não é do comportamento mesmo, mas das palavras que são utilizadas e encadeadas de tal modo a tentar descrever o que acontece. Onde está o agente? O agente é aquele que diz, ou aquele que está na história contada? Lacan faz uma diferença entre sujeito do enunciado e sujeito da enunciação que nos ajuda aqui. Devemos procurar sempre alcançar aquele dizer que fica esquecido por trás do que se ouve. Há um dizer que se produz na análise e não é homólogo à história que se conta. A história que se conta, está lá apenas para que possamos verificar este dizer e intervir aí nisso que diz. Seguindo por este caminho, temos como uma proposta em que o analista não irá dizer ao paciente o que ele é ou deixa de ser. Com isso, fazemos uma escansão no tempo de compreender e também impedimos uma conclusão precipitada que se baseia no dizer do Outro para saber “quem sou”. 125
Isso tudo pode parecer muito teórico, mas suponhamos um paciente que se diz bipolar. Ao analisar sobre sua vida, sobre seus problemas e a forma como ele lida com suas dificuldades, temos uma categoria criada por um Outro que o forçaria a uma compreensão sobre si mesmo. O médico ou o psicoterapeuta reforça assim aqui o que ele viu e compreendeu, dando argumentos que sustente e justifique o seu ser como aquilo mesmo que ele é. Conclusão, nenhuma mudança possível aqui visto que o sujeito continua determinado pelo dizer do Outro representado nas figuras de autoridade. Em uma análise a operação é um tanto mais complexa pois exige que o analista não compreenda pelo paciente. Neste sentido, o vazio de um dizer de fora sobre o analisante tende a ser angustiante. Compreender por si mesmo é um tanto quanto complexo quando na realidade o que temos é que nossa própria compreensão de quem somos se dá por uma relação com o fantasma ($ < >a) que coloca o Outro como elemento garantidor do que sou. Sem esse elemento garantidor, o que se revela em análise é a própria construção fantasmática do que sou para o Outro em transferência. Em outras palavras, vou me fazer disso que digo ser para que o analista (o significante qualquer) me suporte nesse lugar. Freud, ao criar o dispositivo da Psicanálise, coloca o analista não a partir do seu ser, mas como alguém que consegue devolver ao analisante sua fala, estamos ocupando uma função que tende a demonstrar ao paciente em ato que o Outro é produto e não causador de si mesmo. Aquilo que sou, o sou por minha própria relação com o Outro. Tomemos a constituição psíquica em seu momento mais primitivo. O Outro é representado pela mãe. Notem que a mãe é e sempre será a mãe desse sujeito, mesmo que ele tenha irmãos, irmãs, etc., nunca será a mesma mãe. O tempo lógico então, criado por Lacan, respeitaria não 126
apenas o inconsciente freudiano, mas também a fantasia constituinte do sujeito (Perez, 2018). Nesta questão de produzir a conclusão, de concluir a partir dos elementos já dados pelo Outro no tempo de compreender aparece uma certa decisão tomada a partir do ato sem garantia alguma. Como em um salto o sujeito se alça ao abismo autorizando-se por si mesmo, por seu próprio movimento, o que nos leva ao último capítulo deste livro que é sobre a formação do analista. O tempo lógico então pode ser pensado não apenas para as sessões de análise mas para todo o percurso que, no decorrer do tratamento, deve produzir como efeito o analista que somente pode se autorizar de si mesmo não sem contar com aquilo que lhe chega dos outros e do Outro. Eis aí o que podemos compreender que o analista precipita o tempo de concluir. Através das intervenções do analista, o corte na cadeia de significantes produz como efeito a separação entre significado e significante, abrindo espaço para que o sujeito possa advir entre os significantes da cadeia (S1 – S2). Em um primeiro momento, anterior ao Eu sou, temos o “Eu não sou” que é a base da relação intrínseca de significantes que marcam a diferença. Em um segundo momento, por não ser, há uma possibilidade de cópula a partir do sentido dado por um Outro. Eu sou homem por não ser outra coisa, ainda aqui o sujeito deverá se dizer, se reconhecer a partir dos signos que o Outro lhe oferta. Ao afirmar-se como homem, como bipolar, como de aquário, ou seja, ao afirmar ser, temos então que se concluiu o tempo de compreender. Talvez aqui esteja uma das pérolas de nosso ofício, afirmar-se como analista significa qualquer coisa menos ser alguma coisa já dada de antemão. Colocar-se como analista mais tem a ver com sustentar o não sou, do que sustentar um ser pressuposto e carregado de sentidos dados por um Outro. 127
CAPÍTULO 4
A FORMAÇÃO DO ANALISTA Pois minha tese, inaugural ao romper com a prática a qual pretensas Sociedades fazem da análise uma agregação, nem por isso implica que qualquer um seja analista. Pois, no que ela enuncia que é do analista que se trata, supõe que ele exista. Autorizar-se não é auto–ri (tuali)zar-se” (LACAN, 1974/2003).
Em se tratando de um trabalho como este, de minimamente orientar os leitores e interessados na Psicanálise sobre como as coisas são e funcionam, o que se segue não será uma exposição muito minuciosa e detalhada sobre este ponto fundamental e tão problemático que perpassa a história da Psicanálise desde seu princípio. Em um dos primeiros textos psicanalíticos denominado Sobre a psicoterapia, Freud (1905/2017) nos chama a atenção para o fato de que, alguém despreparado não vai conseguir alcançar aquilo que um analista pode alcançar com a Psicanálise. Comparando o psicanalista a um cirurgião, afi rma que ninguém vai pedir que um cirurgião inexperiente realize a extirpação de um tumor sem saber o que está fazendo. Já em 1910, Freud (1910/2017) escreve um texto pequeno e conciso, mas magnífi co, traduzido como Sobre Psicanálise selvagem, e ali nos adverte que ninguém se torna analista por ter lido algo ou ouvido falar sobre a Psicanálise. Ninguém pode se nomear psicanalista a partir de sua própria vontade, 128
e isso também foi para Lacan até o fim de sua vida. Neste trabalho Freud (1910/2017) nos dá um pequeno vislumbre de alguns motivos do porquê consentiu a criação da Associação Psicanalítica Internacional. A formação em Psicanálise se iniciou com Freud e alguns colegas nas chamadas reuniões de quarta-feira. Somente em 1932 é que houve dentro da IPA o início da formação tal qual a conhecemos, institucionalizada. Naquela época, as críticas de Reik, Tausk, Ferenczi, eram muito conhecidas e pouquíssimas destas críticas chegaram até nós. Enquanto Reik criticava “A recomendação de seguir a cadeia: análise pessoal, estudo da literatura e análise de controle é um esquema grosseiro e insuficiente. Ficam muitas dúvidas quanto à melhor maneira de aprender a Psicanálise.” (Martinho, 2005)
Tausk, foi mais a fundo, criticando uma suposta criação de um grupo religioso com seus rituais e com um certo dogmatismo e misticismo sobre quem seria analista e sobre o que seria um fim de análise. A questão é que desde o início das divulgações dos efeitos da Psicanálise haviam médicos que diziam aplicar a Psicanálise em pacientes sem sequer saberem afinal o que realmente era a Psicanálise, seu método, sua ética e seus objetivos. A Psicanálise já estava sendo ofertada em diversas instituições hospitalares, no entanto, pouquíssimos eram os psicanalistas que haviam feito análise ou sequer estavam ao lado de Freud neste tempo. O efeito foi que em pouco tempo haviam médicos ofertando o tratamento psicanalítico sem realmente de fato saber do que se tratava produzindo assim o que Freud denominou de “Psicanálise Selvagem”. 129
Freud (1910/2017), somente reconhecia como psicanalista aqueles que estavam ao seu lado, ou seja, os que estavam de fato trabalhando pela causa analítica e não aqueles que leram seus textos, ou que escutaram algo a respeito do tratamento e faziam tentativas de praticar a Psicanálise. Curiosamente me parece muito comum esse ponto com o que vivemos nos dias atuais. Quantas e quantas pessoas só são reconhecidas dentro das “instituições” que as formaram e em outros institutos não passam pelo crivo dos “psicanalistas didatas”? Fato é que Freud propôs em sua obra o que seria a condição necessária para a formação do analista. Em nenhum momento mudou de ideia a respeito disso. Ocorre que hoje em dia, parece que grande parte das instituições tentam ludibriar os pobres coitados aspirantes, tentando vender o “melhor e mais completo curso de Psicanálise com direito a carteirinha e registro em nosso rol de psicanalistas licenciados”. Neste último capítulo, após abordar uma série de textos que versam sobre a importância do método clínico, não poderia ficar de fora talvez aquilo que devemos cuidar com mais atenção: o analista de fato, sua formação, seu percurso. Em diversas oportunidades reiterei que seguir religiosamente o tripé, como nos adverte Lacan (1973/2003) em Nota Italiana, não significa absolutamente nada. Prova disso é que diversas instituições que oferecem o tripé trabalham com modelos teóricos extremamente duvidosos, confundem o sujeito do inconsciente com o indivíduo, falam de um tratamento psicoterapêutico que deva elevar o Eu às suas potencialidades, fortalecer o Eu dos pacientes, alcançar a felicidade e o autoconhecimento e por aí vai. Isso não quer dizer que o tripé não seja a base da formação em Psicanálise, mas que apenas dizer que se segue o tripé não necessariamente irá ter como fim a produção de um analista. 130
A ideia central do tripé para a formação do analista foi algo muito discutido dentro da IPA e foi aplicado de forma compulsória a quem queria ser analista somente muitos anos depois. Segundo Martinho (2005) “Em 1948, Balint escreve que a atmosfera das associações psicanalíticas lembra a das cerimônias primitivas de iniciação. Foca este aspecto tribal porque observou de perto que os psicanalistas didatas tinham um espírito de sociedade secreta, com conhecimentos esotéricos, proclamações dogmáticas e técnicas arbitrárias; e que os iniciados aceitavam ritualmente as mesmas fábulas, ao mesmo tempo que se submetiam com docilidade a um tratamento bastante autoritário.”
O que estava em jogo não era apenas uma formação de analista, mas uma certa política interna da IPA, política esta que, anos depois seria duramente criticada por Lacan, mas, e isso deve ficar muito claro, Lacan não foi nem o primeiro e nem o último a fazer estas críticas, talvez tenha sido o primeiro a realmente pagar o preço por sua posição ética. Nos dias de hoje em nosso país, algumas instituições tendem a se utilizar de um determinado número de sessões para que alguém comece a atender na clínica, o que, como já vimos até então, fere a ética da Psicanálise e não respeita o tempo lógico de cada um em seu percurso. Notem que embora esteja contido no tripé a análise pessoal, dar um tempo pré-determinado para um percurso que desde seu princípio não estabelece um número ou um prazo, é uma atitude imposta de forma arbitrária pelas instituições que, a meu ver, mais parece uma tentativa de sustentar os bolsos dos donos das instituições do que uma preocupação com a Psicanálise e sua ética. 131
Faz-se da análise pessoal, ou ainda, da chamada análise didática mais um ritual do que um tratamento do sujeito que, ao final, pode advir um psicanalista, não há garantias que isso aconteça. Ou seja, não importa se você assinou um contrato com a instituição ou não, o que importa é o que se verifica no percurso de análise e não o que está escrito no certificado. Dizer que o tripé é a base da formação do analista não deixa de ser verdade, mas de qual análise estamos falando? Seria mesmo uma Psicanálise? Seria um tratamento do sujeito? Seria possível verificar ao fim a produção de um analista? Questões que raramente são colocadas dentro das instituições que dizem “formar” psicanalistas. Desde o início de seus trabalhos a questão da formação do analista, para Freud, nunca foi tratada de forma tecnicista no sentido de modelar o comportamento de alguém para que este alguém consiga exercer a Psicanálise. Tampouco a questão do treinamento entra como possibilidade na formação em Psicanálise uma vez que jamais saberemos o que vamos escutar de cada novo paciente que entra por nossa porta. Em Recomendações ao médico para o tratamento psicanalítico, publicado em 1912, Freud escreveu o seguinte: “Considero parte dos muitos méritos da Escola de Zurique o fato de ter enfatizado essa condição, concretizando-a na exigência de que todo aquele que quiser executar uma análise dos outros deverá primeiro submeter-se a uma análise junto a um especialista. Quem levar a tarefa a sério deveria optar por este caminho” (FREUD, 1912/2017, p. 100).
Em um de seus últimos textos publicados, A análise finita e a infinita, Freud(1937) retoma a questão da formação do analista sendo um pouco mais taxativo, mas, ainda assim, 132
mantendo sua posição de forma a não deixar nenhuma dúvida. “Onde e como o pobre coitado poderá adquirir aquela habilitação ideal, necessária para sua profissão? A resposta será: na própria análise” (FREUD, 1937/2017, p. 356). Historicamente falando, temos então, uma instituição constituída para zelar pela Psicanálise e sustentar a formação que desde o início se verificou como condição necessária para que alguém exerça o ofício de analista. No entanto, desde antes da criação da IPA até mesmo em 1937, quando a IPA já estava fortalecida e com um notável número de psicanalistas, não há um só registro na obra de Freud de que o analista seria fruto de um curso, ou um tipo de graduação em que alguém entraria e, após um determinado período de tempo de curso e de número de sessões, a pessoa estaria apta a exercer a Psicanálise. O que me chama a atenção é verificar em seus textos uma coisa que aparentemente era contrária ao que estava instituído na única instituição que formava psicanalistas em sua época: a Associação Internacional de Psicanálise (IPA). Se por um lado Freud, Reik, Lacan, entre outros, apostavam que o analista era produto de uma análise levada até às últimas consequências, por outro lado aparentemente havia alguns analistas que, como afirma Lacan (1956/1998), pretendiam uma Psicanálise para os que queriam tornarem-se analistas e outra para os que não queriam. Aos que pretendiam ser analistas ficava reservado a análise didática no sentido de ensinar ao aspirante a aplicar a técnica sobre ele mesmo. Aos outros, a Psicanálise como um tipo determinado de psicoterapia que pretendia dar um tratamento ao mal-estar. No entanto, para Lacan (1956/1998), toda análise deveria ter como objetivo produzir um analista. Para além da terapêutica sentida pela pessoa, o tratamento ofertado por um analista é 133
para o sujeito, e não para a pessoa. Sujeito esse que se produz no dispositivo clínico engendrado por Freud. Aqui cabe a observação que se trata do sujeito do inconsciente, importante frisar esse ponto, pois a Psicanálise não se ocupa de tratar conscientemente, através de ferramentas que permitam que o paciente se dê conta de um suposto “inconsciente” como se fosse possível algo assim, como um inconsciente individual. Retomo Freud (1910/2017) em Sobre Psicanálise selvagem quando ele afirma com todas as letras que, apenas trazer para a consciência os aspectos supostamente patológicos não resolve o problema, ao contrário, o efeito tende sempre a ser experimentado no a posteriori. “Tende a ser no a posteriori”, não significa que sempre será desse jeito. Podemos pensar que essa questão do analista mesmo, da passagem de analisante para analista, da formação do analista propriamente dita, não é algo que possamos determinar “pronto, agora sou analista”. Em suma, uma análise dita didática não produz um analista no sentido de um determinado treinamento realizado pelo analisante na presença do analista, como em um laboratório ou em uma fábrica em que o divã seria a linha de produção. Entra-se na fábrica como gente e sai dela como analista, seria muito mais fácil se fosse assim. Segundo Lacan (1967/2003) “O término da Psicanálise superfluamente didática é, com efeito, a passagem do psicanalisante a psicanalista” (Lacan, 1967/2003, p. 257). Então, temos que a análise e tão somente a análise pessoal, é aquilo que produz um analista. Esse ponto dado como certo, desde os primeiros textos de Freud, temos um novo problema, a saber: o que é o psicanalista. Lacan (1967/2003), nos ensina que o analista é aquilo que resta de uma análise após ver soçobrar diante de si todas as 134
suas certezas. É antes de mais nada um significante que se coloca em relação a outro significante, para que o sujeito apareça como efeito e, através disso, seja possível um tratamento. Por isso insisti nos capítulos anteriores em retomar a questão da linguagem, da fala e do percurso de análise a partir do tempo lógico tendo o inconsciente estruturado como uma linguagem. A teoria nos ajuda a verificar o que se produziu em análise mas, também, a teoria não dá conta de dizer tudo. Analista como produto, como significante, como aquilo que se pretende enquanto fim de uma análise, mas que, mesmo depois desta passagem, é preciso ainda mais. Um analista não existe e não se sustenta sozinho. A Psicanálise, e digo isso sem vergonha alguma, não pode ser solitária. Aprendi em um cartel com Josiane Orvatich que não há solipsismo em nosso campo, e que belo isso. Se temos em conta que sua ética pressupõe mais de um corpo, de encontros, de sessões, o outro está sempre aí. Aquele que pretende se ocupar de exercer o ofício de analista não pode simplesmente se dar como pronto após a análise pessoal. Em outras palavras, é isso que gosto muito nas escolas de orientação lacaniana, o analista não é um título, nem um mérito, nem um ser, mas antes, algo da ordem de uma função para que o dispositivo funcione. Partindo deste pressuposto a formação teórica e continuada, o laço com outros analistas, o reconhecimento e também à afiliação a uma escola, a um cartel, que é um dos mais importantes dispositivos na formação proposto por Lacan, à supervisão, os congressos, aos grupos, aos seminários, às pós-graduações, tudo pode ser utilizado para que o analista se sirva desse conhecimento adquirido para sustentar sua prática. A princípio o analista é aquilo que se produz em análise. Depois, ou durante a análise, ou até mesmo antes, podemos ir 135
nos formando com o corpo teórico que irá sustentar nossa prática. Agora, enquanto não conseguirmos nos sustentar enquanto um significante qualquer, de nada vale a teoria. Lacan estava muito atento a esta questão de que a teoria sustenta nossa prática, quando escreveu em 1956: “Pois, se pudermos definir ironicamente a Psicanálise como o tratamento que se espera de um psicanalista, é justamente a primeira, no entanto, que decide sobre a qualidade do segundo” (LACAN, 1956/1998, p. 462).
Vemos claramente que, embora o analista seja efeito da análise, ele depende de uma teoria que oriente o tratamento. Longe de esgotar a temática, pretendi com esse capítulo final apresentar o mínimo necessário para que o leitor possa se orientar quando houver o desejo de se colocar para exercer esta função. Encerro aqui este percurso na esperança de deixar um gostinho de quero mais para as próximas publicações e para outros autores.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
Paulo Roberto Ceccarelli* Há alguns anos [Conferência 3 - apresentada em 1909 na Clark University], dei como resposta à pergunta de como alguém pode se tornar analista: ‘Pela análise dos próprios sonhos’. Esta preparação, fora de dúvida, é suficiente para muitas pessoas, mas não para todos que desejam aprender análise. Nem pode todo mundo conseguir interpretar seus próprios sonhos sem auxílio externo (FREUD, 1912/1969, p. 155). Escrever as considerações finais sobre o livro de Marco Correa Leite— Os primeiros passos da clínica — é uma empreitada difícil, pois, em certa medida, todo analista está nos primeiros passos. Além disso, uma das reflexões centrais de Freud, citada direta e indiretamente ao longo do livro, diz respeito ao analista ter sempre presente no horizonte a máxima segundo a qual cada análise deve ser entendida, em sua particularidade, como se fosse a primeira. Já no primeiro parágrafo, apoiado em uma citação de Freud de 1905, o autor lança a dimensão de sua empreitada: “a Psicanálise é um procedimento de cura para aqueles que não encontraram, em outros tratamentos, um alívio significativo para seus sofrimentos”. Citação de peso e que dá sentido — tanto como uma direção quanto como propósito — à escrita que se segue. Como Freud (1913) em Sobre o início do tratamento, o autor deixa claro que o que escreve não são regras, mas, antes, 138
recomendações para os que estão começando a prática analítica; recomendações sobre os primeiros passos da clínica. O que existe é a regra fundamental, isto é, a associação livre de ideias que, sabemos, não é em nada livre. O que a comanda são as leis de um processo — o primário — que fogem a qualquer apreensão direta, pois sujeitas às regras de uma dimensão psíquica que o sujeito desconhece, e sentidas, muitas vezes, como algo estranho (Unheimlich). Quanto ao analista, cabe-lhe apenas exercer a atenção flutuante, sustentada por aquilo que Piera Aulagnier chama de “teorização flutuante”, voltando “seu próprio inconsciente, como um órgão receptor, na direção do inconsciente transmissor do paciente” [e] “a partir dos derivados do inconsciente que lhe são comunicados, reconstruir o inconsciente, que determinou as associações livres do paciente” (Freud, 1912, p. 154).
O autor explora aquilo que a resposta de Freud, citada em epígrafe, condensa: só é possível analisar seus próprios sonhos através de uma análise pessoal; e a análise dos sonhos, via régia para o inconsciente (FREUD, 1900), condensa a metapsicologia, conferindo ao sonho o estatuto de analisável, e dando-lhe significação (Deutung). É neste sentido que podemos dizer que toda análise, assim como toda formação, é interminável. Posto que ser analista é fazer de sua subjetividade objeto de investigação, a análise dos sonhos permite este contato: a partir da alteridade interna que surpreende e interpela o sujeito gerando angústia, um campo de fala em busca de sentido em si próprio e no outro é aberto. Ademais, a análise pessoal leva o sujeito, futuro analista, tanto a sentir na própria pele a potência da teoria, quando reconhecê-la em seus analisandos. 139
Outro ponto importante, diz respeito à ineficácia de toda e qualquer forma de ingerência externa na tentativa de regular o processo de formação; como se fosse possível, a priori, ditar regras e determinar as condutas e as diretrizes de como este processo deva ocorrer: cada análise tem sua própria trajetória, pois é a transferência, sustentada pelo desejo da dupla analista/ analisando, que permite que o processo se desenrole e as resistências sejam superadas. Ainda que, sem dúvida, as instituições psicanalíticas sejam unânimes quanto à pertinência do tripé proposto por Freud em 1919, e cuja importância foi sublinhada por Lacan (1966/1998), isto é, a análise pessoal, estudo da teoria e supervisão, ou controle clínico, não há como garantir, e menos ainda, regulamentar, subjetividades e desejos. Cada instituição tem um modelo diferente sobre como este tripé deve ocorrer, o que não pode ser separado do discurso de poder e da ideologia, que sustenta a instituição, e tampouco entendido fora do sistema de valores, ideais, materiais e econômicos, que subjaz o ideário da instituição. Tudo isso pode provocar, via transferência, a infiltração de um imaginário que transforma as discussões sobre a formação em um diálogo sem fim, levando a um comprometimento do processo analítico. Marco Leite aborda, sem rodeios, um dos eixos centrais da formação: a supervisão que, justamente, permite ao futuro analista, situar-se na intersecção entre a análise pessoal e o eixo teórico. A atividade supervisionada, chamada em francês de analyse de contrôle (análise de controle), permite o estabelecimento de um diálogo com outro analista no qual os ruídos que impedem uma escuta limpa – quiçá as resistências do próprio analista? – sejam desbloqueados e a escuta ampliada: “nenhum psicanalista avança além do quanto permitem seus próprios complexos e resistências internas” (FREUD, 1910, p. 150). Ou seja, a escuta 140
do analista só vai até onde sua própria análise o levou. O analista procura supervisão como uma forma de cuidar de seu atendimento: a primeira supervisão foi a de Breuer/Freud. O trabalho do autor é altamente enriquecido através de citações clínicas que exemplificam suas premissas. Isso traz uma intimidade agradável à leitura do texto, além de mostrar que o sujeito que o analista trabalha, é o do inconsciente e não aquele que está ali à sua frente. Discute-se importantes considerações tanto sobre o falar do analista, quanto o seu silêncio, assim como as particularidades inerentes à análise freudiana e a lacaniana. As considerações finais de Marco Leite sobre a formação do analista fecham o livro de forma exemplar. Quando levamos em conta que o inconsciente produz formações (Lacan, 1957), a formação de analista traduz um projeto ético pessoal (só o psicanalista se autoriza) que, longe de ser técnico passa pela metabolização, via transferência, de questões teórico-clinicas, levando a uma experiência do sujeito com seu próprio inconsciente, ou seja, com o modo como ele encarna a sua função. Transladar-se do divã e para a poltrona é bem próximo da travessia do fantasma, fazendo com que a intervenção institucional neste percurso seja problemática. A formação do analista passa pelo reconhecimento do grupo: é o lugar de desejo e o reconhecimento pelo grupo, que sustenta a sua formação. Trata-se da célebre afirmação segundo a qual o analista só se autoriza de si mesmo: “aquilo que ele tem de cuidar é que, a autorizar-se por si mesmo, haja apenas o analista (...) Somente o analista, ou seja, não qualquer um, autoriza-se apenas por si mesmo” (LACAN, 2003, p. 314).
Porém, autorizar-se a si mesmo é, para além de um ato, 141
ter o reconhecimento de alguém e/ou pela sociedade de fi liação do analista. A transferência de trabalho, que a ideia lacaniana do cartel propõe, representa o lugar apropriado de acolhimento dessa transferência, mas, igualmente, a unidade de base de um modo de organização social. Ocupar o lugar do “objeto a” é sustentar um enigma, conduzindo o analisando a responder questões fundamentais sobre a constituição de sua subjetividade. A análise leva a uma transformação experimentada, pelo sujeito, como uma ressignifi cação subjetiva. Opera-se um saber: “wo es war, soll ich werden. (Onde era Isso, Eu apareço” ) Freud, 1933 *Psicólogo; Psicanalista; Doutor em Psicopatologia fundamental e Psicanálise – Universidade de Paris 7 – Diderot; Pós-doutor – Universidade de Paris 7; Membro da Associação Universitária de Pesquisa em Psicopatologia Fundamental; Sócio do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais (CPMG); Sócio Fundador do Círculo Psicanalítico do Pará (CPPA); Membro da Société de Psychanalyse Freudienne – Paris, França; Professor e orientador de pesquisas na Pós-Graduação em Psicologia/UFPA; Professor e orientador de pesquisas do Mestrado de Promoção de Saúde e Prevenção da Violência/MP, da Faculdade de Medicina da UFMG; Membro do Corpo Docente do Contemporâneo: Instituto de Psicanálise e Transdisciplinaridade – POA, RS; Professor na pós em Psicanálise do Hospital Santa Catarina, Blumenau, SC. Coordenador e professor da pós em Sexualidade Humana, da Fac. Santa Casa, BH; Pesquisador Associado do LIPIS (PUC-RJ). Membro do Programa Antártico Brasileiro. Diretor científi co da Clínica Ampliada de Saúde Mental. (CASM: htt ps://casm. bhz.br). Coordenador do Instituto Mineiro de Sexualidade (IMSEX: www. imsex.com.br).
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