O Passado em Exibição Leitura Pós-modernistas da época Vitoriana (Portuguese Edition) 9727623433, 9789727623433

O aproximar de fim do milénio desencadeou uma profusão de narrativas obcecadas pela ameaça apocalíptica de uma era que s

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Portuguese Pages 1-151 [142] Year 2013

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Agradecimentos
Nota prévia
Prefácio
1. Introdução
2. Visões do século XIX em The French Lieutenant’s Woman de John Fowles e Karel Reisz
2.1 A (re)escrita da história no romance The French Lieutenant’s Woman
2.1.1 A lógica museológica e a revisitação do passado
2.1.2 Um romance feminista?
2.1.3 O intertexto pré-rafaelita e a representação cultural do feminino 2.2 O filme de Reisz e a denúncia da construção das representações vitorianas
Visões do século XIX em Possession de A.S. Byatt e Neil LaBute
3.1 Possession: A Romance e o resgate dos vitorianos
3.1.1 A leitura alternativa do passado e a articulaçãode sentidos
3.1.2 A problematização do feminino
3.2 O filme de LaBute e a tradição heritage
4. Considerações finais
Bibliografia
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O Passado em Exibição Leitura Pós-modernistas da época Vitoriana (Portuguese Edition)
 9727623433, 9789727623433

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Ana Cristina Mendes

O Passado em Exibição Leituras Pós-modernistas da Época Vitoriana

Índice

Agradecimentos ............................................................................................ 7 Nota prévia ................................................................................................. 9

Prefácio ..................................................................................................... 11 1. Introdução ........................................................................................... 15 2. Visões do século XIX em The French Lieutenant’s Woman de John Fowles e Karel Reisz .............................................................. 27 2.1 A (re)escrita da história no romance The French Lieutenant’s Woman .....................................................30 2.1.1 A lógica museológica e a revisitação do passado ............. 30 2.1.2 Um romance feminista? .................................................. 37 2.1.3 O intertexto pré-rafaelita e a representação cultural do feminino ...................................................................... 54 2.2 O filme de Reisz e a denúncia da construção das representações vitorianas .............................................................................. 61 3. Visões do século XIX em Possession de A.S. Byatt e Neil LaBute ...... 81 3.1 Possession: A Romance e o resgate dos vitorianos .......................... 84 3.1.1 A leitura alternativa do passado e a articulação de sentidos ........................................................................ 84 3.1.2 A problematização do feminino ................................... 112 3.2 O filme de LaBute e a tradição heritage...................................... 123 4. Considerações finais .......................................................................... 139 Bibliografia

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Agradecimentos

À Professora Doutora Luísa Leal de Faria, orientadora deste trabalho na sua fase inicial, pelo empenhamento, sabedoria e amizade com que acompanhou a investigação. Além de me ter dado a descobrir A.S. Byatt, os muitos diálogos que mantivemos constituíram uma aprendizagem constante e um incentivo permanente. Agradeço-lhe ainda por se ter disponibilizado para redigir o prefácio do trabalho que resultou deste trajecto. À Professora Doutora Teresa Malafaia pelas constantes palavras de ânimo e pela amizade entretanto consolidada, em primeiro lugar, e também por ter sugerido The French Lieutenant’s Woman como tema da minha dissertação de mestrado. À Professora Doutora Iolanda Ramos pelos pertinentes comentários que teceu aquando da defesa da dissertação apresentada à Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa em Julho de 2004 e, posteriormente, pela atenta revisão do texto sem a qual este projecto não teria chegado a bom termo. Ao Professor Doutor Mário Avelar e à Professora Isabel Fernandes pelo apoio e incentivo. À Associação Portuguesa de Estudos Anglo-Americanos e às Edições Cosmos por terem tornado possível a publicação e divulgação deste trabalho. Ao Rui, pela leitura paciente e crítica desapiedada dos meus textos, pela motivação inabalável, e por me ter acompanhado ao longo das peripécias deste e doutros percursos. Ao Rafael, que entretanto se nos juntou.

Nota prévia

Há alguns anos, numa conversa com o Professor Aires do Nascimento, antes de umas provas de doutoramento, ouvi-o sentenciar: «Na minha geração já não há mestres, Mário». Tentei contra-argumentar, civilizadamente, que não, que não era exactamente assim, mas os seus exemplos silenciaram-me: «Não, Mário, já não há mestres. Mestres como Manuel Antunes, Lindley Cintra, Jacinto Prado Coelho, Fernando Moser, já não há!» Como que por ironia George Steiner publicou, por essa altura, The Lessons of the Masters, onde elaborou magistralmente sobre a centralidade da relação Mestre-discípulo no âmbito da tradição judaico-cristã; a tradição à qual, quer queiram quer não, pertencemos, e à qual devemos vertentes fundamentais do nosso quotidiano, como o exercício especulativo da Razão. Ora, é sabido que na universidade em geral, e nas humanidades em particular, vivemos tempos de mudança, de perplexidades, de busca de saídas (que não, necessariamente, de novos caminhos) passíveis de superar constrangimentos circunstanciais, passíveis de assegurar sobrevivências várias. Na voragem desta sobrevivência, não raro emerge gente ávida de denegar a tradição e os referenciais, com o objectivo único de assegurar um recanto seu. Não se trata, portanto, de afirmar o conhecimento e o saber, mas sim de sobrevivência de espécies. E, como Darwin muito bem lembrou, neste processo são, por vezes, os parasitas os mais aptos. Porque a ausência do Mestre constitui, acima de tudo, um vazio que indicia um emprobrecimento da academia, das suas rotinas quotidianas, da transmissão do saber e da emulação ética, e porque a preservação da memória deve ser algo de inerente às sociedades abertas nas quais vivemos, considerei que, ao criarmos

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um prémio que pretende estimular jovens investigadores/as, importaria associá-lo a dois referenciais da nossa História e da nossa cultura contemporâneas; dois referenciais que, apesar de distintos, partilham dos mesmos valores: as Edições Cosmos e o Professor Fernando de Mello Moser. As Edições Cosmos estão obviamente ligadas à sua figura fundadora, o académico, o humanista, o cidadão interveniente, Bento de Jesus Caraça. Por seu turno, os estudos de expressão inglesa encontram em Fernando de Mello Moser – também ele académico, humanista e cidadão interveniente – um referencial que, embora pertencendo ao património da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, a transcende pelo exemplo que transmitiu e que hoje pode ser reconhecido noutras escolas espalhadas pelo país onde os estudos de expressão inglesa são praticados. A ele, à sua iniciativa e ao seu estímulo, muito deve a Associação Portuguesa de Estudos Anglo-Americanos. Podemos, deste modo, perguntar: que melhor exemplo e que melhor estímulo para quem dá os primeiros passos na investigação nos estudos literários, do que ver o seu trabalho associado a esta editora, e por extensão a Bento de Jesus Caraça, e a Fernando de Mello Moser? Quero, por isso, deixar aqui o meu agradecimento a Joaquim Garrido, a quem as Edições Cosmos devem a sua revitalização actual, pelo seu altruísmo e pela forma como acolheu a minha ideia e a minha sugestão de unirmos esforços numa causa que partilhamos. A Associação Portuguesa de Estudos Anglo-Americanos está em boa companhia nesta jornada que agora se inicia e que honra quem dela participa. A quem agora recebe este prémio e àqueles/as que o virão a receber no futuro, deixo o meu sincero desejo de que partilhem os valores humanistas daqueles que dão nome a esta iniciativa e daqueles que a promoveram. Acima de tudo, desejo que, através de vós, esses valores possam persistir. Mário Avelar Professor Catedrático Presidente do Conselho Directivo da Associação Portuguesa de Estudos Anglo-Americanos

Prefácio

O Passado em Exibição tem como ponto de origem uma dissertação para obtenção de um grau académico. Quando um trabalho académico se transforma num livro, que passa a estar acessível a um público alargado, dentro e fora da comunidade académica, convém lembrar esta origem, e o que ela significa. E, mais ainda, quando os cursos de mestrado e as dissertações que os culminam começam a mostrar indícios de mudança para um novo paradigma, torna-se ainda mais urgente situar este trabalho numa tradição de exigência e rigor, próprios da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, que o enquadrou institucionalmente, e dentro de uma tradição dos Estudos Anglísticos, cultivada em Portugal, que tem sabido manter os seus níveis de qualidade académica, sem deixar de se abrir à exploração de novas teorias e de novas linhas de investigação e de interpelação do passado e do presente. As dissertações são trabalhos escolares (no sentido scholarly), circunscritos por um conjunto de normas, implicando a fixação prévia de um prazo para a sua apresentação, passando pela familiarização com todo um conjunto de recursos teóricos e métodos de apresentação, que devem demonstrar capacidade para a investigação, sentido crítico e domínio de um campo específico do conhecimento. Além disso, os trabalhos científicos para obtenção de graus académicos inscrevem-se numa estrutura institucional, sujeita também a todo um conjunto de normas e procedimentos, que passam pela proposta do tema ao Conselho Científico, a nomeação de um orientador, a aprovação da dissertação, sob proposta do orientador, pelo Conselho Científico para poder ser, finalmente, sujeita a uma prova pública de defesa, perante um júri, também ele nomeado pelo Conselho Científico. Estas normas, muito suma-

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riamente delineadas, fazem parte da actividade quotidiana dos departamentos universitários, e tornaram-se tão normais para os docentes e investigadores que os mesmos se podem esquecer da sua singularidade num universo de publicações não sujeitas, as mais das vezes, a estes critérios. As dissertações de mestrado existem, pois, dentro de estruturas académicas próprias e não são, normalmente, redigidas com vista à sua leitura por um público externo às instituições de ensino superior. Visam um público restrito, que partilha conhecimentos especializados, e recorrem a todo um aparato crítico que deve demonstrar o conhecimento das fontes, através de referências e citações, sempre identificadas em bibliografias adequadas, apresentadas de acordo com as normas de referência próprias dos trabalhos científicos. Não espanta, pois, que poucas sejam as dissertações ou teses que não tenham que passar por um processo de edição, uma vez cumprida a sua função académica, para se tornarem atraentes à leitura por um público não especializado, mesmo que muito informado. O trabalho da Mestre Ana Cristina Mendes começou, por ser uma dissertação de mestrado com cento e oitenta e uma páginas. Para cumprir as regras do concurso a que o submeteu, a autora teve que o reduzir para cem páginas, empreendendo, logo aí, um trabalho de adaptação que visava manter o essencial da argumentação, mas tinha que sacrificar passos demonstrativos, referências a outros autores, comparações e citações. Tal tarefa foi, decerto, difícil, uma vez que a primeira versão da dissertação, não obstante a sua extensão, era já económica. De facto, este trabalho aventurou-se pela exploração de um campo de análise interdisciplinar que a obrigou a investigar dentro de diversas matrizes do conhecimento e a mobilizar capacidades de articulação e síntese que garantissem a coerência da argumentação. A sua escolha recaiu no estudo dos processos de reconstrução do passado em confronto com o presente. Partindo da escolha de duas obras literárias do século XX, The French Lieutenant’s Woman, de John Fowles, publicado em 1969, e de Possession: A Romance, de A. S. Byatt de 1990, assim como das respectivas adaptações para o cinema, respectivamente realizadas por Karel Reisz e por Neil

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LaBute, a autora teve que se envolver no estudo da literatura e do cinema, bem como nos processos de adaptação de um meio ao outro. Mas a interpretação dos textos, literários e fílmicos, não constituiu um mero exercício de diálogo entre as duas formas, já que, deliberadamente, o afastamento de vinte anos entre eles introduziu uma nova exigência: a de interpretar as diferenças de expressão, representação e sensibilidade em mudança ao longo desses anos, no século XX. A temática comum a ambos os romances e filmes – a revisitação do período vitoriano por personagens contemporâneas ao momento de publicação ou produção das obras – é conscientemente situada no contexto da pós-modernidade e da interpelação e desconstrução da narrativa histórica. Ao mobilizar para a análise um conjunto de instrumentos já testados no âmbito dos «estudos culturais», como a articulação entre a literatura e a cultura, a contextualização histórica e o desenvolvimento das indústrias do património, ou as teorias da representação e a análise do discurso, para estudar o modo como a análise cultural confronta, apropria, interpreta e modifica o passado, neste caso num contexto de multiplicação de recuperações de um vitorianismo pós-moderno, a autora optou por eleger um enfoque principal, que analisou com particular atenção: as representações do feminino, na literatura e no cinema do século XX, como construções e interpretações de género na ordem conceptual contemporânea e vitoriana. A autora constrói, assim, usando as suas próprias palavras, «um espaço intertextual aberto à polivalência dos textos», que possibilita «uma articulação de discursos e métodos representativa dos estudos culturais». O diálogo entre o passado e o presente desenvolve-se em três linhas principais: a produção de discursos, no século XX, sobre o século XIX, a problematização das construções do género feminino, e os pontos de contacto com as indústrias do património, incluindo o cinema heritage. A leitura deste trabalho, que as Edições Cosmos abrem a um público alargado, proporcionará decerto um contacto estimulante e esclarecedor com os instrumentos de análise cultural contemporâneos, uma problematização inteligente e sensível de núcleos de análise cultural que continuam a ser explorados, uma reflexão,

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enfim, sobre as articulações entre o passado e o presente, determinantes para uma melhor compreensão do mundo em que vivemos. A sua forma final inscreve-se de modo feliz na tradição dos Estudos Anglísticos, consolidada na Faculdade de Letras pelo Professor Fernando de Mello Moser que, estou certa, teria apreciado a consistência dos conhecimentos aqui demonstrada, a inesgotável curiosidade e atenção dedicadas às proximidades, porosidades e inter-relações entre disciplinas, a clareza da linguagem e a precisão dos conceitos, a oportunidade do aparato crítico, o todo mobilizado para o estudo da literatura e a análise do «texto», na senda de uma tradição de exigência e qualidade que todos os investigadores no campo dos Estudos Anglísticos gostariam, sem dúvida, de ver continuada. Luisa Leal de Faria Professora Catedrática

1. Introdução

If a memory wasn’t a thing but a memory of a memory of a memory, mirrors set in parallel, then what the brain told you now about what it claimed had happened then would be coloured by what had happened in between. It was like a country remembering its history: the past was never just the past, it was what made the present able to live with itself. Julian Barnes (1998: 6)

Segundo teóricos do pós-modernismo1, o final da década de 1960 assinala o termo de um ciclo marcado por narrativas iluministas de progresso e, em simultâneo, o dealbar de uma era global em que serão questionadas, com uma frequência avassaladora, as certezas identitárias. Também o aproximar do fim do milénio desencadeia uma profusão de narrativas obcecadas pela ameaça apocalíptica de uma era que se extinguia, enquanto outras histórias enfatizam, paralelamente a este discurso e num momento de dinamismo e desenraizamento extremos, uma fixação nas relíquias do passado, de que é representativa a expansão da indústria do património (Hewison, 1987). Neste contexto, o presente ensaio explora retratos 1

Ao longo deste trabalho, recorremos à designação pós-modernismo conscientes da dificuldade (ou melhor, impossibilidade), atestada por Ihab Hassan (2001), em defini-la com clareza: “The term [postmodernism], let alone the concept, may thus belong to what philosophers call an essentially contested category. That is, in plainer language, if you put in a room the main discussants of the concept – say Leslie Fiedler, Charles Jencks, Jean-François Lyotard, Bernard Smith, Rosalind Krauss, Fredric Jameson, Marjorie Perloff, Linda Hutcheon and, just to add to the confusion, myself – locked the room and threw away the key, no consensus would emerge between the discussants after a week. But a thin trickle of blood might appear beneath the sill” (Hassan, 2001: 1-2).

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contemporâneos da época vitoriana traçados por duas obras fílmicas e duas obras literárias produzidas entre o final da década de 1960 e o princípio do século XXI: The French Lieutenant’s Woman (A Amante do Tenente Francês), de 1969, de John Fowles (1926-2005), Possession: A Romance (Possessão), de 1990, de A. S. Byatt (n.1936), e respectivas adaptações fílmicas, realizadas por Karel Reisz (1926-2002) e Neil LaBute (n.1963). A percepção e a vivência do tempo nas sociedades contemporâneas caracterizam-se por uma fragmentação de referências e, consequentemente, pela emergência de mecanismos de reconfiguração das identidades. O património, ao mesmo tempo que se assume como signo cultural indispensável ao recentramento identitário dos indivíduos, constitui-se sob a forma de problemáticas que vão ganhando uma tessitura progressivamente mais intrincada. No espaço deste ensaio, defendemos que romances como The French Lieutenant’s Woman e Possession – e, até certo ponto, as suas adaptações fílmicas – almejam gerar formas renovadas de conhecimento sobre o período vitoriano, ao invés de fazer dos lugares da memória uma utopia retrospectiva. Assim, seguimos o raciocínio de Kate Flint (1997) aplicado àquelas obras literárias e a Nice Work (1988) de David Lodge, que retoma o sentido da epígrafe de Julian Barnes: In establishing a dialogue with individual texts and broader textual conventions of the Victorian period, they [the novels] are inevitably emphasizing that such texts change in their re-telling; are re-fashioned, like the idea of Victorian England itself, to serve the critical needs of the present. (Flint, 1997: 302)

O presente estudo encara o acto de engendrar narrativas sobre o passado como uma estratégia de lidar com o presente e, por conseguinte, determinar o futuro. Se romancistas britânicos desde Walter Scott têm demonstrado interesse por temáticas históricas, esta tendência tem sido exaustivamente explorada ao ponto de a desconfiança em relação ao discurso histórico se ter tornado característica inequívoca da ficção pós-modernista. Na verdade, embora não se possa afirmar em definitivo que os romances histó-

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ricos pós-modernistas formem um movimento em si, a recorrência deste tipo de narrativas nas últimas décadas revela preocupações comungadas. Ao permitir que acontecimento histórico e ficção se fundam e se recriem num todo, os textos de Fowles e Byatt, figuras preponderantes da cena literária britânica pós-modernista, questionam a capacidade de conhecer o século que os antecede e, neste processo, reflectem inquietações culturais acerca das narrativas que têm sido construídas para compreender o século XIX. Os romances Possession e The French Lieutenant’s Woman procuram escapar à predeterminação narrativa ao reconfigurar histórias anteriores, sobrepondo facto e ficção. Com efeito, Byatt e Fowles – praticando uma escrita revisora não apenas da história inglesa, mas também de memórias individuais –, procuram significados possíveis para o passado, num processo incessante de desconstrução e reconstrução. A exemplo da literatura, constata-se em muitos filmes contemporâneos que revisitam o passado uma circulação de inquietudes decorrentes da vivência no presente. De facto, tanto na literatura como no cinema, a reconstrução da época vitoriana tem servido de inspiração a criadores, como se o final do século XIX servisse de espelho mágico precursor do final do século seguinte (Jukic, 2000: 77). Convém referir que a imagem dos vitorianos reflectida no espelho coetâneo se modificou significativamente desde as primeiras meditações de Fowles sobre a cultura oitocentista. Apesar de nunca ter perdido o enfoque principal – uma fixação na segunda metade do século XIX e no perscrutar da natureza da narrativização –, o reflexo de tempos passados tem sido moldado de modo a encaixar-se na visão pós-modernista, espelhando, portanto, não só a construção da representação dos vitorianos, mas também o crescimento interno do movimento pós-modernista (Jukic, 2000: 77). A crítica académica não tem sido indiferente a estes projectos revisionistas. Entre vários estudos que se debruçaram sobre esta inclinação neo-historicista, destacamos o de Dianne F. Sadoff e John Kucich (2000) que relaciona o ressurgimento do interesse pelo século XIX com a emergência dos estudos culturais, dado que as origens deste campo de análise podem atribuir-se a duas leituras da cultura oitocentista, nomeadamente Culture and Society 1780-1950

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(1958) de Raymond Williams e The Making of the English Working Class (1963) de E. P. Thompson (Sadoff e Kucich, 2000: xiii). Reflectindo os procedimentos científicos aplicados aos actuais estudos literários de natureza interdisciplinar e/ou comparatista, a metodologia por nós adoptada ao longo deste ensaio resultou de uma pluralidade de abordagens. O trabalho de construção e problematização do aparelho conceptual que apresentamos começou a esboçar-se na esteira dos estudos culturais, férteis na revisão das posições críticas e no desenvolvimento de leituras radicalmente desestabilizadoras de saberes adquiridos. Assistindo-se nos quatro textos a analisar a uma problematização das questões de género, seria inevitável também a influência dos estudos feministas neste trabalho. De facto, naquela área têm sido debatidas questões fundamentais para a nossa investigação, como, entre outras, a possibilidade de recuperação das histórias daqueles e daquelas que foram excluídos e excluídas pelas disciplinas tradicionais. O ensaio está organizado numa perspectiva dupla: uma estuda o modo como a análise cultural confronta a recente multiplicação de recuperações de um vitorianismo pós-moderno, ou melhor, de um pós-vitorianismo2; outra analisa e problematiza a construção do género feminino nas ordens cultural e conceptual contemporânea e vitoriana. Neste âmbito, orientam-nos as palavras de Sadoff e Kucich (2000): But why, exactly, has contemporary culture preferred to engage the nineteenth century … as its historical “other”? … Here, we make a periodizing claim of our own: that the cultural matrix of nineteenth-century England joined various and possible stories about cultural rupture that, taken together, overdetermine the period’s availability for the postmodern exploration of cultural emergence. …. [T]he network of overdetermination shaped by economics, sexuality, political struggle, and technological forms 2

Parecendo confundir-se com e sobrepor-se a neovitorianismo, esta designação é proposta por Sadoff e Kucich (2000): “Given the centrality of historical emergence that contemporary culture locates in the nineteenth century … aspects of late-century postmodernism could more appropriately be called ‘post-Victorian,’ a term that conveys the paradoxes of historical continuity and disruption” (Sadoff e Kucich, 2000: xiii).

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privileges the Victorian period as the site of historical emergence through which postmodernism attempts to think its own cultural identity. (Sadoff e Kucich, 2000: xi-xxv)

Parte da análise tratará aquele que é considerado o primeiro modelo pós-modernista a ressuscitar a época vitoriana por via literária – The French Lieutenant’s Woman de Fowles – e a sua adaptação fílmica por Reisz, em 1981. Outra parte ocupar-se-á de uma postura pós-modernista mais tardia, que acrescentou novos ângulos à perspectiva fowlesiana sobre os vitorianos – Possession de Byatt e respectiva transposição para o cinema por LaBute, em 2002. Para além de nos ajudar a discernir as diversas imagens dos vitorianos reflectidas no espelho mágico (Jukic, 2000), seleccionámos aquelas obras devido à ligação intertextual que estabelecem entre si. Privilegiando um entendimento dos textos enquanto práticas culturais dinâmicas, susceptíveis de interacção com outros materiais culturais, entendemos que os filmes e os romances devem ser vistos numa perspectiva intertextual, i.e., analisados na sua relação com outros tipos de registos coevos. Pelo que foi enunciado, a metodologia de investigação a seguir não poderia deixar de se definir, genericamente, pela construção de um espaço intertextual aberto à polivalência dos textos que possibilitasse uma articulação de discursos e métodos representativa dos estudos culturais. Pretende-se, em última análise, uma combinatória de olhares que permita uma melhor apreensão das obras no domínio das problemáticas em estudo. Respeitando o propósito de realizar uma análise paralela entre as obras dos romancistas, a ideia central, a explorar e demonstrar, é entender a recuperação do século XIX nos dois romances como sinal de determinadas condições da cultura inglesa nas respectivas décadas do século XX, que serão, por seu turno, reinterpretadas pelos cineastas Reisz e LaBute ao adaptarem aquelas obras literárias. A perspectiva adoptada no estudo das adaptações dos romances assenta na análise da reconstrução do passado em permanente confronto com o presente. Na medida em que os condicionalismos históricos vividos no momento da realização dos filmes contribuem para a elaboração do espaço histórico tanto quanto a

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representação do século XIX, a análise dos textos fílmicos foca a dialéctica entre o presente e o passado. Três vias de leitura se equacionam aquando da abordagem dos filmes: a análise enquanto discursos do século XX sobre o passado vitoriano – nomeadamente, os elementos de subversão e de recuperação da herança oitocentista –, a problematização das construções de género feminino, e, por último, os pontos de contacto com o cinema heritage3. Detendo-nos nesta última via, será pertinente referir uma questão instigadora do presente trabalho: o que motivará a exclusão de certos filmes e a inclusão de outros na categoria crítica do filme heritage? Esta pergunta surgiu da constatação que, nas décadas de 1980 e 1990, certos filmes históricos, alguns resultando de adaptações literárias, foram caracterizados como filmes heritage, enquanto outros não receberam esta classificação. Tal é patente na relação da crítica cinematográfica com os filmes aqui em apreciação. Sheldon Hall (2001) afirma não se ter encontrado até ao momento nas discussões sobre o cinema heritage lugar para The French Lieutenant’s Woman (Hall, 2001: 194), o que abrangerá filmes como Possession. Por exemplo, Robert Murphy, no artigo «Under the Shadow of Hollywood» (1986), cita o filme de Reisz a propósito do sucesso comercial que esta película obteve nos Estados Unidos da América, sem o associar à problemática do património (Murphy, 1986: 67). Perante este cenário, o estudo da afinidade entre as adaptações dos romances de Fowles e Byatt e o cinema heritage pareceu-nos, desde o início, relevante, visto que poderá denunciar o carácter restrito e monolítico do conceito de filme heritage em circulação nos meios académicos. Considerando que os filmes The French Lieutenant’s Woman e Possession se assumem como obras autónomas, cujo valor extravasa qualquer tentativa de comparação alicerçada na fidelidade, e por tudo o que foi dito anteriormente, o seu estudo emprega uma leitura intertextual. Contudo, se esta abordagem permite alguma 3

Pretendemos deliberadamente manter esta expressão, bem como as seguintes, em inglês porque nos parece que a tradução literal iria de algum modo deturpar ou, pelo menos, reduzir todos os significados inerentes a estes conceitos.

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flexibilidade na interpretação das intertextualidades patentes nas adaptações, acaba por não as libertar inteiramente do espectro das fontes. Com efeito, se, por um lado, podemos argumentar que a comparação entre um filme e o romance a partir do qual foi adaptado não tem sentido considerando a autonomia das obras, por outro, condicionantes como a publicidade em torno dos livros e filmes, e até a nossa própria experiência anterior enquanto leitores e espectadores, compele-nos, se não a fazer um julgamento comparativo, pelo menos a ver um à luz do outro (Vincendeau, 2001: xi). De forma evidente, The French Lieutenant’s Woman, romance que Byatt leu e sobre o qual encontramos referências veladas nos seus escritos teóricos, partilha com Possession semelhanças de relevo. Neste sentido, uma abordagem intertextual permitirá leituras polissémicas de cada uma das obras e possibilitará investigar a dinâmica de intertextualidades entre os romances de Byatt e Fowles. O reconhecimento da importância das relações entre as adaptações fílmicas, tal como entre as fontes literárias, confere ao nosso projecto interpretativo uma dimensão de diálogo entre obras. Assim, analisamos as obras cinematográficas por ordem cronológica de produção, de modo a reflectir as possíveis influências da adaptação de Reisz sobre a produção e a recepção do filme de LaBute, tema recorrente em grande parte das críticas ao último. No que respeita às temáticas a investigar nas adaptações, a primeira moldura de análise será a recuperação da época vitoriana na década de 1980 e no dealbar do século XXI. O período de Oitocentos desempenha um papel essencial nas fontes, logo, as adaptações terão necessariamente de negociar retratos daquela época. Por conseguinte, uma das finalidades deste trabalho será verificar a representação da época vitoriana traduzida dos romances para os filmes, por meio de enredos retrospectivos4. Sendo que 4

Um caso interessante de uma adaptação baseada na retrospecção é Forrest Gump (Robert Zemeckis, 1994), baseado no bestseller de Winston Groom (1986). Através de efeitos especiais, os registos históricos são alterados pela inserção visual do seu protagonista. Zemeckis manipula a história ao fazer Forrest participar em acontecimentos determinantes da história norte-americana.

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a análise da reconstrução da história é apenas um entre outros enfoques significativos possíveis, uma segunda moldura de análise, decorrente da primeira, concentrar-se-á na relação dos filmes de Reisz e LaBute com o cinema heritage. Um terceiro enquadramento de exame residirá na questão da feminilidade, dado que as obras, sejam fontes ou adaptações destas, problematizam as construções de género através de figuras como a preceptora oitocentista, a beata falsa, a artista vitoriana, a esposa dedicada, a investigadora universitária, a actriz, entre outras. Para além das três molduras mencionadas, outros dois tópicos de comentário manter-se-ão operativos no decurso da análise. Em primeiro lugar, apesar de não se adoptar uma abordagem centrada na fidelidade das adaptações às obras originais, serão assinaladas alterações significativas da fonte para a adaptação, na medida em que estas possibilitem um comentário ou, em casos mais extremos, uma desconstrução do original (McFarlane, 1996: 22). Em segundo lugar, a questão da intertextualidade será central à nossa análise. Convirá frisar que Brian McFarlane usa o termo intertextualidade não só para designar a relação entre o texto fílmico e outros textos, mas também para se referir a factores externos tais como as condições impostas pela indústria cinematográfica ou pelo clima social e cultural dominante (McFarlane, 1996: 21). Assim, assuntos relacionados com o cinema enquanto indústria cultural e relativos à audiência dos filmes, aos realizadores e às estrelas cinematográficas que protagonizam as películas, constituem aspectos a ter em consideração na leitura crítica das adaptações. Por exemplo, estrelas como Jennifer Ehle e Jeremy Northam têm um impacto específico nos filmes em que participam, até porque a escolha daqueles actores para desempenhar papéis vitorianos fortalece a relação intertextual entre o filme de LaBute e os conotados com o cinema heritage. Este ensaio organiza-se em três secções: a presente secção introdutória, onde apontámos questões de método e antecipámos alguns problemas conceptuais; a segunda e a terceira, onde procuramos decifrar os discursos sobre o passado vitoriano em quatro obras: The French Lieutenant’s Woman de Fowles e Reisz e Possession de Byatt e LaBute.

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Assim, a secção Visões do século XIX em The French Lieutenant’s Woman de John Fowles e Karel Reisz subdivide-se em duas partes, correspondentes à análise do romance e do filme5. Na primeira parte, observa-se o modo como é reflectida no romance de Fowles uma lógica museológica, dependente do apelo à autenticidade. Propõe-se demonstrar, através da desconstrução do modo como este texto contemporâneo evoca pessoas e objectos culturais do passado, que a inclusão de personagens históricas na narrativa e a referência implícita a pinturas pré-rafaelitas, consoante aquela lógica, põem em causa a problematização das questões de género na época vitoriana. Por inerência ao exame do feminismo do romance, realizamos um estudo comparativo das figuras da «protofeminista» Sarah Woodruff e da mulher «tipicamente vitoriana», Ernestina Freeman. No subcapítulo dedicado à adaptação cinematográfica do romance, traçamos as estratégias de apresentação crítica do passado e respectiva interrelacionação com o presente, expondo as formas como se constrói o passado e se fabricam as suas representações neste texto fílmico pós-modernista. Articulando-se com a secção precedente, Visões do século XIX em Possession de A. S. Byatt e Neil LaBute pretende, numa parte inicial, estudar a dinâmica de representação dos factos culturais vitorianos no romance e investigar como aquele texto reescreve e problematiza o feminino. Depois de analisar o modo como o texto de Byatt revisita temáticas oitocentistas, vemos a sua apresentação no filme. Especificamente, avaliamos a ligação reflexiva entre a narrativa do presente e a do passado e, no mesmo âmbito de análise, examinamos a construção dos papéis de género e a conexão entre a adaptação de LaBute e o cinema heritage.

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Note-se que a opção de trabalhar os objectos em conjunto não tem que ver como o facto de se pretender ver no filme uma ilustração do romance, visão que, aliás, este filme oblitera de forma radical.

2. Visões do século XIX em The French Lieutenant’s Woman de John Fowles e Karel Reisz

No contexto deste ensaio, elegemos como um dos objectos de exame o romance The French Lieutenant’s Woman, coevo do despontar das problemáticas ligadas ao património no Reino Unido. Observaremos, adiante, de que modo se reflecte naquele texto uma lógica museológica, baseada no apelo à autenticidade enquanto escala para medir a sua fiabilidade histórica. O romance define-se como uma revisão historiográfica, segundo o enfoque crítico implicado no paradigma da pós-modernidade. Fowles apropria-se de discursos do passado numa intensa relação intertextual com a herança cultural do século XIX, analisada com um olhar contemporâneo e apresentada através de experimentalismo formal. De entre os numerosos intertextos vitorianos presentes no romance, o pré-rafaelita, representado por Dante Gabriel Rossetti e pelo seu círculo, tem um lugar privilegiado, facilitando a criação de um sentimento de autenticidade na representação do passado. Pretendemos demonstrar, através da desconstrução da forma como este texto cultural contemporâneo evoca pessoas e objectos culturais do passado, que a inclusão de personagens históricas na narrativa, bem como a referência implícita a pinturas pré-rafaelitas, colocam em causa a efectiva problematização que o autor parece pretender realizar das questões de género na época vitoriana. Numa primeira etapa, contrastamos as figuras femininas da «protofeminista» Sarah Woodruff e da mulher «tipicamente vitoriana», Ernestina Freeman. Numa fase posterior, avaliaremos a simpatia fowlesiana pelo feminismo, tendo por pano de fundo a caracterização daquelas personagens femininas e o intertexto estético do movimento pré-rafaelita. Assim, após a exploração

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da forma como, em The French Lieutenant’s Woman, Fowles se apropria de discursos do passado numa forte relação intertextual com a herança cultural do século XIX, a segunda parte desta secção tem por objectivo delinear as estratégias de apresentação crítica da época vitoriana e respectiva interrelacionação com o presente na adaptação cinematográfica do romance. Pretendemos expor os meandros da construção do passado e das suas representações neste texto cinematográfico pós-modernista, equacionando três vias de leitura: uma primeira, em que o texto fílmico é analisado enquanto discurso sobre o passado vitoriano; uma segunda, em que se analisa a relação com o filme heritage; e uma outra centrada na problematização das construções do género feminino.

2.1 A (re)escrita da história no romance The French Lieutenant’s Woman 2.1.1 A lógica museológica e a revisitação do passado Quando foi publicado em 1969, The French Lieutenant’s Woman foi recebido pela crítica literária como um exemplo singular do revivalismo do romance histórico em Inglaterra. Susana Onega (1993) refere que a crítica coeva julgou o texto como um romance histórico que havia sido sujeito a tentativas fúteis e aleatórias de experimentalismo, resultando numa mera imitação das convenções do romance vitoriano6. Contudo, como nota a autora, o verdadeiro propósito de Fowles não seria tanto o de escrever um romance vitoriano fora de tempo, mas sim o de induzir o leitor a reflectir sobre a convenção literária vitoriana do realismo, entendida como uma moldura provisória e intrinsecamente ficcional, criada pelo trabalho de um autor em combinação com a voluntária suspensão da descrença por parte do leitor (Onega, 1993: 51). 6

A autora cita Allen, Walter (1970) “The Achievement of John Fowles” in Encounter, 25/2, página 66 e Evarts, Prescott, Jr. (1972) “Fowles’s The French Lieutenant’s Woman as Tragedy” in Critique, 13/3, página 57, apud Onega, 1993: 51.

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As tensões presentes nesta obra, que reproduz o romance histórico realista do século XIX com o propósito de estilhaçar essa ilusão de similitude, são avançadas no ensaio «Notes on an Unfinished Novel» (1969) de Fowles. Leia-se, naquele texto que relata as preocupações sentidas pelo autor aquando da escrita do romance, a seguinte reflexão historiográfica que patenteia o interesse de Fowles pelo potencial criativo do anacronismo: … the genuine dialogue of 1867 (insofar as it can be heard in books of the time) is far too close to our own to sound convincingly old. It very often fails to agree with our psychological picture of the Victorians – it is not stiff enough, not euphemistic enough, and so on – so here at once I have to start cheating and pick out the more formal and archaic (even for 1867) elements of spoken speech. (Fowles, 1969a: 15)

Por constituir uma espécie de «declaração de intenções», este ensaio adianta um dos muitos dos paradoxos de The French Lieutenant’s Woman: para que o passado pareça autêntico, terá de ser retocado, i.e., apresentado de forma diferente do que foi, a julgar pelas fontes disponíveis. O autor conclui que um diálogo autêntico de 1867 não soaria antiquado, rígido ou eufemista o suficiente para ir ao encontro da nossa representação dos vitorianos. Fowles compreende que, neste pastiche da maneira vitoriana de escrever, a autenticidade se baseia no contraste entre o passado e o presente. O autêntico não é necessariamente o que chegou até nós inalterado – como o discurso –, mas aquilo que parece arcaico. Se o escritor reproduzisse no romance um diálogo de tom muito semelhante ao que se poderia ouvir um século depois, arriscar-se-ia a apresentar aos seus leitores algo que pareceria insuficientemente documentado, logo falso. O discurso da obra é conscientemente arcaico, ao ponto de o narrador considerar que é seu dever explicar ao leitor vocábulos que poderão não ser facilmente compreendidos por alguém pouco familiarizado com a realidade vitoriana. Por exemplo, ele considera necessário descrever em minúcia o objecto que Ernestina segura – um fireshield:

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… fireshield (an object rather like a long-paddled pingpong bat, covered in embroidered satin and maroon-braided by the edges, whose purpose is to prevent the heat from the crackling coals daring to redden that chastely pale complexion) … (Fowles, 1969: 113-114)7

Fowles nota que a tarefa a que se propôs não é escrever algo que os romancistas vitorianos se esqueceram de escrever, mas talvez algo que um deles não foi capaz de compor (Fowles, 1969a: 15). Por conseguinte, o romance pretende preencher uma lacuna do passado, apresentando-se como uma obra que os gigantes literários vitorianos não escreveram, mas que não deixa de ser uma construção contemporânea. The French Lieuntenant’s Woman será, assim, uma reprodução que se pretende posicionar como um romance vitoriano aprés la lettre. Lembremo-nos que a publicação do romance é contemporânea de um intenso revisitar do passado inglês, tanto histórico como literário. A nosso ver, é possível detectar pontos de contacto entre o texto e a chamada heritage politics, de tal forma é marcante o realce do papel pedagógico do passado. Em paralelo com as estratégias museológicas, o romance tece uma vasta teia de intertextos, contribuindo para a autenticidade do pastiche de um romance histórico que justapõe o ethos das personagens vitorianas de 1867 com o comentário irónico de um narrador em 1967. The French Lieutenant’s Woman é enciclopédico no seu tratamento de vários aspectos da vida vitoriana: estruturas de classes, relações entre patrões e empregados, prostituição, darwinismo, marxismo e teorias vitorianas relacionadas com a arte. Através de epígrafes copiosas, notas de rodapé, excertos de estudos de caso, alusões a figuras literárias e históricas como Thomas Hardy e John Ruskin, referências implícitas a um conjunto de personagens literárias como Tess D’Urbervilles e Sam Weller, menção a membros da Confraria Pré-Rafaelita, entre outros, o autor garante a verosimilhança da narrativa. De tempos a tempos, o narrador esboça o panorama de um momento específico na história inglesa que servirá de 7

Outros exemplos constituem a explicitação das palavras dollymop e gay (Fowles, 1969: 130). As referências subsequentes a The French Lieutenant’s Woman surgirão entre parênteses no texto, citadas como FLW.

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enquadramento aos acontecimentos do romance, técnica usada, por exemplo, no início do capítulo cinquenta e sete: And now let us jump twenty months. It is a brisk early February day in the year 1869. Gladstone has in the interval at last reached No. 10 Downing Street; the last public execution in England has taken place; Mill’s Subjection of Women and Girton College are about to appear. (FLW, 400)

A nossa função como leitores será a de tentar compreender porque é que Fowles sobrecarrega um enredo aparentemente simples com uma quantidade inaudita de pormenores da vida vitoriana, que vão das roupas às estatísticas populacionais. Adicionalmente, subsistem legados materiais do passado no mundo do narrador: artefactos como a caneca Toby de Ralph Leigh comprada por Sarah – e que o narrador afirma possuir (FLW, 268) – e o facto de uma descendente directa de Mary ser uma actriz inglesa famosa em 1969 (FLW, 78). É como se o romance contivesse o passado em vitrinas narrativas. O autor usa e reescreve a história vitoriana referindo acontecimentos coevos como, por exemplo, Karl Marx a escrever no Museu Britânico e as movimentações do círculo artístico de Dante Gabriel Rossetti em Chelsea. O passado vitoriano torna-se a fully-fledged world, excavated in its stunning entirety (Jukic, 2000: 78), construído a partir de uma base de dados que permite ao leitor testar a autenticidade do romance. Contudo, segundo Fred Kaplan (1973), aquele vai muito além de um retrato fiel do século XIX, típico da indústria do património que revelava já um grande impacto cultural na década em que o crítico escreve: That Fowles’ textbook facts are basically accurate is a distinct though not his major achievement, what with the recent popularity of antiquarian explorations of Victorian artefacts and memorabilia staring at us from the innumerable antique shops and libraries … Fowles’ … “dundrearies and pork-pie hats” are the milieu equivalent of his frequent citation of historical characters and events in a sweep of perspective in which his ageless narrator … incorporates into his narrative the Hyde Park riots of 1866-67, the “leap into the dark” of the reform bill of 1867, the brooding Marx assiduously plotting the economics of revolution in the British Museum… This is the

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persuasiveness of incidental historicism. But it is the visual and intellectual persuasiveness with which our basic knowledge of the spirit and atmosphere of the past comes to us through its literature. (Kaplan, 1973: 111-112)

Através da configuração formal de um texto que incorpora outros tipos de texto – apesar de o autor desejar mais que uma mera manipulação da forma –, é patente o sublinhar da função pedagógica do passado. A obra insere-se numa perspectiva de desconstrução do enfoque oficial e de exposição da parcialidade existente no discurso histórico. Ao apropriar-se de documentos do passado histórico, incluindo-os na ficção, o escritor procura legitimar o seu discurso, mas pretende igualmente desafiar o conhecimento que os seus leitores detêm do passado vitoriano. Através do realismo do retrato que o romance faz do passado vitoriano, Fowles almeja desconstruir antinomias, preocupação visível para Christopher Lehmann-Haupt na crítica a The French Lieutenat’s Woman publicada no New York Times, no ano em que o romance foi dado à estampa: But why, for Heaven’s sake, a Victorian novel in this day and age of Robbe-Grillet? What is this practitioner of flawed Gothica (The Collector and The Magus) up to now? … it is … clear from page 1 on that Mr. Fowles is not going to be satisfied merely with witty (and often brilliantly erudite) anachronistic comments on the manners, morals, literature, art and science of a century before. … It explodes all the assumptions our Victorian sensibilities had so willingly embraced. In a giant step it covers the distance between the Victorian novel and the roman nouveau. It leaves one wondering which century was more sexually liberated.8

Neste âmbito, recordemos que a apresentação consciente do passado é um ponto comum entre o romance e as estratégias narrativas usadas pelos museus de história viva. Tanto o museu como o romance oferecem uma representação selectiva de tempos passados através da exibição de momentos isolados, ligados por uma narrativa construída no presente, sob a acção de um narrador que guia 8

http://www.nytimes.com/books/98/05/31/specials/fowles-french.html.

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os leitores e comenta o século XIX sob a perspectiva do século XX (Simonetti, 1996: 301). A exemplo de uma exposição num museu, The French Lieutenant’s Woman constitui uma visita guiada ao passado vitoriano, orientada por um narrador que perturba constantemente o jogo ficcional e abala os nossos preconceitos sobre a vida no século XIX. A voz do narrador que autoconscientemente comenta os mecanismos através dos quais se constrói a ficção é o elemento mediador entre dois mundos ontologicamente diferenciados: o mundo ficcional em que as personagens desfilam, e o mundo do leitor. Por ter livre trânsito, o narrador invade o mundo aparentemente autónomo da narrativa, estabelecendo relações dialógicas constantes, que nos levam a ler a obra como o resultado da interpretação de discursos. A recriação da época oitocentista depende de um narrador que destrói a ilusão do retrato da realidade. A um outro nível, à semelhança de um trompe-l’oeil, aquela figura ficcional faz também parte da referida fantasia, desfazendo-se das roupagens vitorianas após o décimo terceiro capítulo (Conradi, 1982: 20). Como nota o romancista, … there is a danger in being ironic about the apparent follies of any past age. So I have written myself another memorandum: You are not the “I” who breaks into the illusion, but the “I” who is part of it. (Fowles, 1969a: 18)

Fowles sublinha a ficcionalidade da sua criação através do estabelecimento de paralelos entre planos temporais distintos. Na construção daquela dialéctica activa entre passado e presente, o leitor é informado, por exemplo, que uma casa de campo em Ware Commons pertence actualmente a um arquitecto londrino. Semelhante olhar retrospectivo é-nos facultado por uma curta descrição do dom de Sarah em julgar os indivíduos, assente num sistema de informação, as if, jumping a century, she was born with a computer in her heart (FLW, 57), e por uma projecção da personagem de Charles Smithson ao longo dos séculos: Perhaps you see very little link between the Charles of 1267, with all his newfangled French notions of chastity and chasing after Holy Grails, the Charles of 1867 with his loathing of trade, and the Charles of today, a

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computer scientist deaf to the screams of the tender humanists who begin to discern their own redundancy. (FLW, 285)

A época vitoriana é comentada através de comparações com aspectos da história do século XX. Tal estratégia prospectiva é usada em várias descrições de Mrs Poulteney, equiparada a um oficial nazi, cujas atitudes em relação aos seus empregados a habilitariam, segundo o narrador, a um posto na Gestapo (FLW, 26). Outra referência ao século passado, entre semelhantes que poderíamos apontar, surge quando é desvendado ao leitor o destino de Ernestina: she died on the day that Hitler invaded Poland (FLW, 33). Fowles realiza um movimento inverso àquele que é típico do romance histórico: evoca o passado, aliás fielmente reconstituído, para o filtrar de modo consciente pela óptica do presente. Assim, não obstante a reconstrução de ambientes e acontecimentos históricos, ilustrativa da tradição do género «romance histórico», o escritor mantém o seu texto em constante diálogo transformador com os princípios modelares daquele género, propondo uma revisitação da história. Recorrendo ao termo meta-história, conforme a definição proposta por Hayden White (1978), Gian Balsamo (1991) assinala que Fowles criou uma narrativa histórica a partir de um aglomerado orgânico de meta-histórias, em que as perspectivas do marxismo e do darwinismo se associam aos modos literários vitorianos (Balsamo, 1991: 135). Nesse movimento auto-reflexivo, em que o passado é «contaminado» pelo presente crítico, o texto amplifica o carácter documental que emoldura a narrativa e questiona a possibilidade de uma visão objectiva dos acontecimentos. Apesar de o narrador nos recordar, ao longo dos primeiros capítulos do romance, que o mundo vitoriano sobre o qual fala é enquadrado por uma perspectiva moderna – através de alusões, por exemplo, a McLuhan e Proust –, no décimo terceiro capítulo, conforme já referido, destrói explicitamente a verosimilhança do seu retrato: You do not even think of your own past as quite real; you dress it up, you gild it or blacken it, censor it, tinker with it ... fictionalize it, in a word, and put it away on a shelf – your book, your romanced autobiography. We are all in flight from the real reality. (FLW, 99)

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Como nota Susan Lorsch (1988), o narrador, consciente da falsidade da sua ambição de demiurgo, admite que o mundo de 1867 que estava a construir é apenas um texto, ridicularizando o nosso desejo de permanecer no mundo vitoriano. Ao recusar tal escape, compele-nos a confrontar as nossas ilusões, destruindo a crença vitoriana segundo a qual o mundo é orientado por um princípio organizador, arrastando-nos para o mundo moderno, existencialmente assustador, fazendo-nos enfrentar uma liberdade intimidativa (Lorsh, 1988: 147).

2.1.2. Um romance feminista? Além de contemplar 1867 do ponto de vista de um século depois, pelos olhos de um narrador-historiador (Garard, 1991: 91), o leitor observa a Inglaterra vitoriana através dos olhos das personagens do romance. Observando-as, entende que, do mesmo modo que as exposições nos museus revelam o posicionamento ideológico do conservador, também as opções feitas ao nível da caracterização das figuras femininas são ideológicas. Parecem-nos óbvias as pretensões feministas de The French Lieutenant’s Woman. Em termos gerais, o texto descreve o salto da Fallen Woman, Sarah Woodruff, para a New Woman: duplamente comprometida, com um tenente que lhe arruinou a reputação, depois com um homem apaixonado que faz dela sua amante, por achar a sua noiva fútil, desaparecerá para ressurgir como mulher independente, mãe solteira vivendo num meio artístico. Após um princípio ao molde dos romances tradicionais, a protagonista escapa ao matrimónio, o que daria o fim clássico de um romance cor-de-rosa, para acabar como mulher emancipada, que não deseja casar-se. Logo na primeira página do romance, a escolha do ano de 1867 para início do enredo sublinha o feminismo como intertexto de The French Lieutenant’s Woman, como podemos confirmar cerca de uma centena de páginas depois: At Westminster … John Stuart Mill had seized an opportunity in one of the early debates on the Reform Bill to argue that now was the time to

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give women equal rights at the ballot-box. His brave attempt (the motion was defeated by 196 to 73, Disraeli, the old fox, abstaining) was greeted with smiles from the average man, guffaws from Punch (one joke showed a group of gentlemen besieging a female Cabinet minister, haw haw haw), and disapproving frowns from a sad majority of educated women, who maintained that their influence was best exerted from the home. None the less, March 30th, 1867, is the point from which we can date the beginning of feminine emancipation in England; and Ernestina, who had giggled at the previous week’s Punch when Charles showed it to her, cannot be completely exonerated. (FLW, 115)

No capítulo inicial, o narrador, adoptando a perspectiva de voyeur local, usa o seu telescópio para observar Ernestina Freeman e Charles Smithson passeando ao longo do paredão da baía de Lyme. Pela descrição da personagem feminina, depreende-se que o seu sentido de moda é estranho a um local provinciano e conservador como Lyme Regis. Por exemplo, a sua saia é mais curta do que o comprimento aceitável para a época e usa um chapéu pork-pie. Está vestida de acordo como os trâmites da moda, reflectindo o seu traje a recusa contemporânea da crinolina e do bonete amplo (FLW, 10). Alison Carter, em Underwear: The Fashion History (1992), aponta precisamente o ano de 1867 como o do quase abandono da crinolina pelas classes altas, em grande medida porque o seu uso estava generalizado entre as mulheres das classes trabalhadoras (Carter, 1992: 48). É precisamente esta mudança que nos é descrita por Elizabeth Wilson e Lou Taylor (1989): The “submissive” look of the 1840s – the sloping shoulders, childlike ringlets and poke bonnets – had given way by the 1860s to a bolder aesthetic. Women now were wearing Zouave jackets (a short braided bolero), low chignons and flat, oval, pillbox or pork pie hats... The crinoline, so often seen as literally the cage of the Victorian lady, replaced up to twelve layers of heavy full petticoats. The lightness of the hoops and the lack of constriction round the waist were soon seen as positive liberation, at least to begin with. By the mid 1860s, however, crinolines had themselves become absurdly wide, and, however much they freed the legs, they caused severe mobility problems when they reached a width of 6 feet (1.8 metres). … The crinoline

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was frequently mocked and made the subject of jokes and badinage. In Punch, any women who wore the garment tended to be the butt of humour (Wilson e Taylor: 1989: 20-21)

Considerando que as mulheres deveriam ter o cuidado de se vestir de forma a exteriorizar e afirmar tanto o seu estatuto social como a sua virtude inquestionável, o vestuário de Ernestina poderia conduzir o leitor a antecipar que esta personagem seria menos convencional do que uma «típica» mulher vitoriana. O empenho em transmitir ao leitor a imagem dos seus trajes continua ao longo do romance, sendo que o excerto seguinte enfatiza a fragilidade de Ernestina, ao invés da sua ousadia: She wore a rosepink “breakfast” dress with bishop sleeves – tight at the delicate armpit, then pleating voluminously in a froth of gauze to the constricted wrist. It set off her fragility very prettily;… (FLW, 253)

À semelhança de Sarah, caracterizada por Tony E. Jackson (1997) como um mutante evolucionário (hopeful monster), parece-nos que também Ernestina pode ser entendida como em parte vitoriana e em parte moderna. A jovem transita entre tempos, possuindo, simultaneamente, traços de ambas as épocas, à imagem do romance. Não é de estranhar, portanto, que tenha sido ela a remodelar a decoração de uma divisão da casa de sua tia, descrita como um espaço em período de transição, na medida em que aí coexistem o moderno gosto francês, no quarto que ocupa, e mobília antiquada, de há duas ou três décadas: [Ernestina’s room in Aunt Tranter’s house] had been furnished for her and to her taste, which was emphatically French; as heavy then as the English, but a little more gilt and fanciful. The rest of [the house] … was inexorably, massively, irrefutably in the style of a quarter-century before: that is, a museum of objects created in the first fine rejection of all things decadent, light and graceful, and to which the memory of the odious Prinny, George IV, could be attached. (FLW, 32)

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Enquanto Sarah surge como a emblemática mulher obscura e misteriosa do romance vitoriano, o enredo romântico que formava a base de muitas narrativas contemporâneas corresponderá à ligação entre Ernestina e Charles. A atracção inicial do casal baseia-se numa ironia que partilham relativamente às convenções sociais. Através de um olhar sugestivo, é ela que toma a iniciativa, no início da relação, numa comparação implícita com as prostitutas londrinas: … her eyes had for the briefest moment made it clear that she made an offer; as unmistakable, in its way, as those made by the women who in the London of the time haunted the doorways round the Haymarket. (FLW, 84)

Este semblante rebelde da jovem é rapidamente dissipado pelas exigências da ortodoxia. Depois de um arrufo de namorados em casa de Mrs Poulteney, toda a sua energia é gasta no cativar da atenção masculina: mostra-se amável e recatada, desempenhando o papel de Angel in the House de modo a recuperar o afecto de Charles. Através daquela personagem, Fowles explora o tratamento social das mulheres na época vitoriana. A aparência frágil, a vida confinada ao lar e as restrições aplicadas ao comportamento feminino constituíam tanto um sinal de conformidade social e um emblema de pertença de classe, como um modo de policiar o comportamento feminino. A reverência pela convenção fez Ernestina escrava dos ditames do vitorianismo, daí que se sinta extremamente confortável no seu lar vitoriano, particularmente na estufa, sufocante, cheia de flores e plantas que lutam, também elas, por crescer num ambiente de clausura. Apesar de se ver como uma mulher moderna, as atitudes daquela personagem são semelhantes às da maioria das jovens vitorianas que se resignavam perante as normas de uma sociedade patriarcal. Preparada para ser uma esposa devota, apreende a concepção romântica do que significa o casamento a partir do poema The Lady of La Garaye, um sucesso de vendas da década de 1860 (FLW, 114). Cedo se percebe que o compromisso entre o casal se baseia no sentido de dever e decoro, assumindo uma natureza quase contratual: ela ganhará o título de baronesa e ele herdará o dinheiro dela.

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Note-se que o dinamismo da sociedade vitoriana se manifestou, em particular no último quartel do século XIX, na fusão da aristocracia com a burguesia – não só os industriais e comerciantes de sucesso aspiravam a um estilo de vida aristocrático, através da aquisição de terras e de títulos em alguns casos, como também alguns membros da aristocracia se envolveram nas áreas do comércio e finanças. Será que Ernestina ama realmente Charles, ou idolatrará a ideia do estatuto social deste – a sua country house –, e também a sua posição futura enquanto esposa de um gentleman (e não filha de um comerciante)? Para Charles não será o dote de Ernestina um factor de peso? Na verdade, tanto um como outro estão presos às convenções do seu tempo: ela quer ser uma boa esposa, já que é isto que a sociedade espera dela, ao passo que ele é indulgente e paternalista em relação à futilidade dela, desculpabilizando-a nos seguintes termos: After all, she was only a woman. There were so many things she must have never understood: the richness of male life, the enormous difficulty of being one to whom the world was rather more than dress and home and children. (FLW, 129)

Todavia, não partilhamos a sua caracterização um pouco simplista de Ernestina apontada por Peter Conradi (1982): Ernestina is pretty, pert, uninformed, the Kinder, Kirche und Küche heroine who aptly and unchallengingly complements his [Charles’s] conventionalized masculinity. The late Biedermeier plot their fashion-plate marriage will fulfil is not merely the plot of many of the period’s novels but one too of nineteenth-century British history, in which land and trade, St James and St Giles, formed so resilient and adaptable a new progressive social hegemony. It is the plot of British social and political evolution, and Charles will give life to it. (Conradi, 1982: 63-64)

No fundo, ela tem consciência da sua imaturidade. Perante a perspectiva de ser abandonada por Charles, quando este se envolve intimamente com Sarah, reconhece:

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I know to you I have never been anything more than a pretty little ... article of drawing-room furniture. I know I am innocent. I know I am spoilt. I know I am not unusual. I am not a Helen of Troy or a Cleopatra. I know I say things that sometimes grate on your ears, I bore you about domestic arrangements, I hurt you when I make fun of your fossils. Perhaps I am just a child. But under your love and protection … and your education… I believed I should become better. I should learn to please you, I should learn to make you love me for what I had become. … It is true, I am ignorant, I do not know what you want of me … if you would tell me where I have failed … how you would wish me to be… I will do anything, anything, because I would abandon anything to make you happy. (FLW, 363-365)

No final, a sua figura acaba por ser reabilitada quando planeia vingar-se do noivo, na medida em que a raiva a torna mais verosímil: My father will drag your name, both your names, through the mire. You will be spurned and detested by all who know you. You will be hounded out of England, you will be – … (FLW, 368)

Através destas personagens, Fowles tenta desvendar o modo como as vidas dos indivíduos se pautavam por aquilo que, então, se considerava ser a natureza dos homens e mulheres. O tratamento crítico da sexualidade oitocentista, largamente desenvolvido no romance, é patente na caracterização de Ernestina, que fica aterrorizada quando pensa na componente física das relações entre os sexos: It was not only her profound ignorance of the reality of copulation that frightened her; it was the aura of pain and brutality that the act seemed to require .... She had once or twice seen animals couple; the violence haunted her mind. (FLW, 34)

Ernestina não se permite olhar ao espelho nua, nem admite que Charles a toque, excepto para um beijo casto. Teme qualquer forma de intimidade sexual – ou melhor, foi endoutrinada a negá-la –, e entende a cópula como nada mais que um acto de dever conjugal:

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… she had evolved a kind of private commandment – those inaudible words were simply I must not – whenever the physical implications of her body, sexual, menstrual, parturitional, tried to force an entry into her consciousness. … She sometimes wondered why God had permitted such a bestial version of Duty to spoil such an innocent longing. (FLW, 34-35)

Contudo, no diário que mantém, à medida que se aproxima o dia do seu casamento, abre-se, a meio da narrativa convencional, um espaço para o indizível – o desejo – que é rapidamente arredado, tal como o diário: Some fifteen pages in, pages of close handwriting, there came a blank, upon which she had pressed a sprig of jasmine. She stared at it a moment, then bent to smell it. Her loosened hair fell over the page, and she closed her eyes to see if once again she could summon up the most delicious, the day she thought she would die of joy, had cried endlessly, the ineffable... But she heard Aunt Tranter’s feet on the stairs, hastily put the book away... (FLW, 35)

Os comportamentos sexuais vitorianos definiam-se, frequentemente, segundo a dicotomia public virtue e private vice. A moralidade vigente não admitia atitudes públicas menos condignas, revelando-se, no entanto, mais permissiva em relação aos homens. Depois dos fins-de-semana em Paris, Charles prevê uma sexualidade regrada através do casamento com Ernestina. Ao comentar o que este sente ao beijar a noiva, o narrador afirma: What Charles unconsciously felt was perhaps no more than the ageless attraction of shallow-minded women: that one may make of them what one wants. (FLW, 256)

Ao serem infantilizadas, as mulheres eram colocadas em posições não ameaçadoras. Veja-se como a imaturidade emocional da jovem dá a Charles uma desculpa para não ser honesto acerca dos motivos que o levaram às arribas para se encontrar com outra mulher:

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He soon decided that Ernestina had neither the sex nor the experience to understand the altruism of his motives; and thus very conveniently sidestepped that other less attractive aspect of duty. (FLW, 161)

Numa altura em que se prefigurava o dilema da cultura heterossexual concretizado na reconciliação do feminismo da New Woman com o livre arbítrio masculino, o papel da mulher ideal associa-se a uma responsabilidade moral superior. Enquanto guardiã da esfera privada, acreditava-se que esta detinha um papel essencial na perpetuação da ordem doméstica e social, na medida em que a paz no lar se reflectia na segurança e prosperidade nacionais. No segundo capítulo de French Lieutenant’s Woman, através de uma epígrafe de E. Royston Pike que atesta a superioridade numérica das mulheres em relação aos homens (FLW, 12), Fowles dá a entender que, como existem mais mulheres que homens, nem todas as mulheres poderiam cumprir o papel que lhes estaria destinado como esposas e mães. O escritor denuncia a época vitoriana como um tempo de contradições, em que a mulher era sacralizada e, ao mesmo tempo, se podia comprar uma rapariga de treze anos por algumas libras ou menos: What were we faced with in the nineteenth century? An age where woman was sacred; and where you could buy a thirteen-year-old girl for a few pounds – a few shillings, if you wanted her for only an hour or two. Where more churches were built than in the whole previous history of the country; and where one in sixty houses in London was a brothel (the modern ratio would be nearer one in six thousand). (FLW, 258)

Considerando que a Fallen Woman poderia ser tanto a prostituta, como a mulher manchada sob a suspeita de relações impróprias com um homem, a ordem social é ao mesmo tempo perturbada e estabilizada pela sua presença, já que personifica o desprezível ou inferior. Os homens justificavam, talvez não conscientemente, o seu interesse nas prostitutas e outras Fallen Women ao racionalizar, em simultâneo, a sua necessidade ilimitada de actividade sexual e o propósito de não corromper moralmente as suas esposas. A manutenção de um fosso entre a procriação matrimonial e as práticas

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sexuais voluptuosas e ilícitas parecia ser socialmente benéfico. Num contexto da necessidade de regulamentar o sexo por discursos úteis e públicos (Foucault, 1994: 29), o patriarcado vitoriano produziu a dicotomia Madona-Madalena como estratégia de controlo social, mais no sentido da construção de categorias sexuais do que de uma repressão sexual efectiva. Para as mulheres vitorianas, isto implica corresponder às expectativas criadas por aquelas imagens preconcebidas que condenavam a pária prostituta e exultavam o anjo doméstico. A esquizofrenia masculina que se manifestava ao ver as mulheres como virgens ou prostitutas (ou ambas) foi denunciada em Dr Jekyll and Mr Hyde (1886), de R. L. Stevenson, que o narrador de Fowles cita como o melhor guia da época, e que mostra na psique masculina a raiz daquela dicotomia feminina. Como vimos, The French Lieutenant’s Woman constrói uma relação dialéctica entre a tradição e a modernidade, em que a denúncia do passado convida à denúncia do presente, e a crítica leva à autocrítica. Através do distanciamento irónico assumido pelo narrador, não está em causa apenas o período vitoriano, sendo o leitor constantemente induzido a colocar em questão a sua época. De facto, logo após o passo acima citado, é exposta a banalização da sexualidade no século XX. Assumindo um tom pedagógico dirigido à sociedade actual, o narrador adverte que a liberdade sexual moderna está a enfraquecer a capacidade de imaginar e de desejar: … another common error … [is] equating a high degree of sexual ignorance with a low degree of sexual pleasure…. In any case, a much more interesting ratio is between the desire and the ability to fulfil it. Here again we may believe we come off much better than our great-grandparents. But the desire is conditioned by the frequency it is evoked: our world spends a vast amount of its time inviting us to copulate, while our reality is as busy in frustrating us. We are not so frustrated as the Victorians? Perhaps. But if you can only eat one apple a day, there’s a great deal to be said against living in an orchard of the wretched things; you might find apples sweeter if you were allowed only one a week. (FLW, 260-261)

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Segundo Fowles, The French Lieutenant’s Woman pretende ser a expiação de um legado que moldou decisivamente os homens da sua geração. Por outras palavras, o autor recriou um romance vitoriano que é um romance contemporâneo sobre o romance vitoriano, numa tentativa de se «vingar» do vitorianismo e dos seus efeitos nas representações da feminilidade e da masculinidade. Falando sobre a composição escrita de The French Lieutenant’s Woman, o escritor confidenciaria a Melvyn Bragg em 1984: I had a little debt to settle personally with the Victorian Age. … [Between 1850 and 1870] is when various neurosis begin to creep into the Victorian age. And so the heroine [of The French Lieutenant’s Woman] of course represents at one level women’s liberation [,] the beginning of the movement. And John Stuart Mill in the year in which the novel was set actually did try to you know get a vote through Parliament, to get the vote for women. He failed, of course. But that really is the beginning of a sort of public, feminine emancipation.9

No entanto, constituirá este romance o saldar de uma dívida relativamente à construção social da feminilidade na era vitoriana? Para Bruce Woodcock (1984), a associação, nesta entrevista, da emancipação feminina à neurose pode ser mais do que um lapsus linguae (Woodcock, 1984: 82), reflectindo, no fundo, a inquietação masculina dos finais da década de 1960 perante a autonomia feminina emergente. Não nos esqueçamos que a voz do narrador é, sem dúvida, masculina, incorporando contradições próprias. Se aquela chama frequentemente a atenção para os efeitos devastadores do patriarcado vitoriano sobre as mulheres, não se coíbe de explorar a situação em que uma personagem masculina do romance se confronta com a construção vitoriana Madona-Madalena. Para procurar responder à interrogação acima colocada, analisemos a figura de Sarah. No primeiro capítulo do romance, depois 9

“Interview with John Fowles” retirada de “The South Bank Show”; London Weekend Television, transcrição P/NO 80103 (1982: 3-4), apud Woodcock, 1984: 81.

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de ter dedicado a sua atenção a Charles e Ernestina, o narrador-espião dirige a objectiva do telescópio para outra figura parada no fim do paredão. Sarah está vestida de negro, revelando, pela aparência andrógina, uma recusa em corresponder às convenções das narrativas de género: She had taken off her bonnet and held it in her hand; her hair was pulled tight back inside the collar of the black coat – which was bizarre, more like a man’s riding coat than any woman’s coat that had been in fashion those past forty years. (FLW, 15)

Durante o período do ostracismo em Lyme Regis, ela é-nos apresentada como excêntrica e masculinizada no que respeita ao vestuário, o que, desde logo, a destaca daquela comunidade convencional e a apresenta como contraponto a Ernestina. Em resultado de uma autonomia perante convencionalismos estéticos, parece indiferente à moda coeva ao usar um bonete e um casaco demasiado grande. A sua roupa simples e masculina, disfarçando características sexuais femininas, é vista por David W. Landrum (2000) como um indício de lesbianismo. Sarah é a personagem que dá o título ao romance – ela é a amante do tenente francês. Mostra-se uma figura sombria e solitária que frequenta a beira-mar, supostamente à espera do amante que a abandonou. Acusada de envolvimento num escândalo sexual com o francês Varguennes, não confessa o «pecado», não se arrepende, nem se tenta ilibar da situação. Educada acima da sua condição social numa sociedade caracterizada pela estratificação de classes, é vista como aprisionada entre classes sociais: Given the veneer of a lady, she was made the perfect victim of a caste society. Her father had forced her out of her own class, but could not raise her to the next. To the young men of the one she had left she had become too select to marry; to those of the one she aspired to, she remained too banal. (FLW, 58)

Sofre, de forma convencional, do que padeciam as preceptoras nos romances vitorianos:

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… for many years I had felt myself in some mysterious way condemned – and I knew no why – to solitude... My life has been steeped in loneliness... As if it has been ordained that I shall never form a friendship with an equal, never inhabit my own home, never see the world except as the generality to which I must be the exception. (FLW, 167)

Na cidade costeira de Lyme, microcosmos da sociedade vitoriana, ela é a mulher misteriosa que chama a atenção para o seu estatuto marginal e, simultaneamente, recusa tentativas de integração social. Ocupando anteriormente uma posição discreta (diríamos, até, invisível) como preceptora, a notoriedade é-lhe proveitosa, permitindo-lhe saborear um poder ambíguo. Não só aparenta desejar manter a sua reputação manchada, como também se alimenta dessa fama, conduta que nos recorda as seguintes observações de Michel Foucault (1994): … onde há poder há resistência e que, contudo, ou talvez por isso mesmo, esta nunca está em posição de exterioridade relativamente ao poder. … [Os nexos de poder] não podem existir senão em função de uma multiplicidade de pontos de resistência, que desempenham, nas relações de poder, o papel de adversário, de alvo, de apoio, de pretexto para uma intervenção. (Foucault, 1994: 98)

Neste sentido, o único escape para Sarah será o de exibir a sua vergonha (FLW, 67). De tal modo desfruta do seu estatuto de pária que faz por ser vista numa área pouco respeitável da cidade, no isolado Undercliff, descrito como one of the strangest coastal landscapes in Southern England (FLW, 70). Como escolhe ofender a sociedade, ao exibir a sua «imoralidade», liberta-se das exigências do vitorianismo, não tendo de se preocupar com a aprovação social. Como objecto de desdém, curiosidade e pena, é interessante ao ponto de lhe oferecerem emprego. Ela marca o elevado estatuto moral e social da casa onde trabalha: sendo a sua «ofensa» famosa, a generosidade da sua patroa é enaltecida. Torna-se a assistente pessoal daquela que é considerada a mulher mais conservadora de Lyme, Mrs Poulteney, a qual exerce um controlo absoluto sobre as vidas físicas e morais dos seus empregados, com a ajuda da igualmente

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sádica governanta, Mrs Fairley. Mrs Poulteney, personificação do puritanismo despótico, exige que Sarah se molde à narrativa cristã do pecado-expiação; no entanto, esta recusa representar perante as visitas o papel de objecto de caridade, desaparecendo por vezes. Sarah é também objecto de atenção para o Dr Grogan, que cataloga o seu estado de espírito como melancolia e acredita que ela procura deliberadamente atenção, argumentando: Her sadness becomes her happiness. She wants to be a sacrificial victim. Where you and I flinch back, she leaps forward. She is possessed, you see … You must not think she is like us men, able to reason clearly, examine her motives, understand why she behaves as she does. One must see her as a being in a mist. (FLW, 153)

Note-se que se Sarah é melancólica, é mais facilmente ignorada, logo é uma ameaça menos séria às estruturas de poder. Grogan usa a ciência despoticamente – se Sarah não se conformar às narrativas que servem os seus interesses, neste caso à narrativa da melancolia, será enviada para um sanatório. Ela encarna o traço feminino da histeria, mas escapa à narrativa científica linear que Charles, Grogan e o próprio narrador construíram sobre ela. Neste contexto, é pertinente referir que a tentativa de a classificar como uma mulher histérica antecipa os argumentos de Foucault sobre a histerização dos corpos femininos (Foucault, 1994: 107). Como Fallen Woman, Sarah atrai uma audiência composta por Charles, seduzido pela fusão Madona-Madalena, e por um grupo liderado pela «piedosa» Lady Cotton, que lhe oferece auxílio sob a forma de mortificação e da oportunidade de realizar publicamente leituras religiosas. A Fallen Woman representa para aquele público o mal social e a sua própria capacidade de, generosamente, o mitigar. Ela constitui um espectáculo bidimensional para os que a ostracizam: é The French Loot’nt’s Hoer e Tragedy, designações que correspondem, no fundo, a uma tentativa de enquadramento de uma figura estranha em narrativas canónicas. Contudo, etiquetá-la de the French lieutenant’s woman é o primeiro equívoco dos habitantes de Lyme, na medida em que, ao categorizá-la, a transformam numa Fallen Woman estereotipada. Outros epítetos, como Tragedy ou the

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French Loot’n’t’s Hoer não se revelam mais eficazes na compreensão daquela figura misteriosa. A tentativa de Grogan em explicá-la em termos de histeria feminina é pouco satisfatória e a associação daquela figura com várias femmes fatales do passado cultural também não é elucidativa. Em última análise, Sarah é indefinível, mesmo para ela própria: … I am not to be understood even by myself. And I can’t tell you why, but I believe my happiness depends on my not understanding. (FLW, 431)

A etiqueta de louca surge da incompreensão sentida pelos outros perante a recusa em ser humilde ou confessar o pecado cometido com o tenente francês, no fundo, em colaborar na representação do papel da Fallen Woman. Representada como uma espécie de mutante evolucionário (Jackson, 1997), ela é uma mulher à frente do seu tempo, que escapa aos estereótipos da moralidade vitoriana ao reclamar o direito ao amor físico, a uma profissão e à igualdade em relação aos homens. A este respeito, contrasta com Ernestina, derrotando a convenção vitoriana que a tentou definir, ao revelar, no final do romance, não desejar o casamento: I do not wish to marry … I do not want to share my life. I wish to be what I am, not what a husband, however kind, however indulgent, must expect me to become in marriage. (FLW, 430)

Ao contrário dos habitantes da cidade e de Ernestina, Charles sente-se, desde o início do romance, atraído pela sua falta de convencionalismo e repelido pela sua estranheza: é como se estivesse a examinar mais um espécime exótico. Com efeito, se não fosse a identidade de Sarah enquanto amante do tenente francês, provavelmente não teria reparado nela, mas, com esta identidade, surge como a donzela necessitada de auxílio. À medida que se torna cada vez mais atraído pela abertura sexual simbolizada por Sarah, Charles antecipa a inevitável vida de dever que o espera. A sua autopercepção enquanto figura convencional contrasta com a identidade em constante mutação daquela figura feminina. De tal modo ela encarna enredos irreconciliáveis que impossibilita uma

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resposta unitária, conduzindo a que Charles permaneça até ao final do romance confundido com as duas Sarah: [Charles] became increasingly unsure of the frontier between the real Sarah and the Sarah he had created in so many such dreams: the one Eve personified, all mystery, love, and profundity, and the other a half-scheming, half-crazed governess from an obscure seaside town. (FLW, 410-11)10

A questão Who is Sarah?, colocada pelo narrador no final do décimo segundo capítulo, não visa ser respondida, na medida em que aquela figura corporiza o mistério. A forma como a narrativa está estruturada não nos permite avaliar os pensamentos ou motivações de Sarah, nem ter dela uma percepção clara, para além do que conhecemos através dos olhos de Charles, ou através dos olhos masculinos de Fowles, enquanto autor ou personagem-narrador. É possível argumentar que aquela omissão é intencional, servindo para manter o papel da personagem feminina como enigma no romance. Contudo, a acção desta figura enquanto feminista não deixa, assim, de se manifestar sob um ponto de vista masculino, contribuindo para um entendimento superficial e parcial do que significa agir como feminista. No fundo, através das molduras masculinas que enquadram a narrativa, o feminismo de Sarah reduz-se a pouco mais do que mistério e sensualidade. Críticos como Eillen Warburton (1996) vêem no livro de Fowles um estudo da psicologia feminina. Outros, nos quais se inclui Katherine Tarbox (1996), argumentam que o escritor tenta estabelecer um estilo de literatura novo e revolucionário. Outros ainda, como David Landrum (2000), interpretam The French Lieutenant’s Woman como uma ilustração do marxismo. Porém, qualquer que 10

Após o encontro sexual entre Charles e Sarah, escreve Conradi (1982) sobre aquela: “She thus combines both halves of the Victorian typology: at exactly the point when she ceases to be a virgin she begins for the first time to appear to have been one. Unlike the simply and cloyingly virginal Tina, therefore, Sarah marvellously combines and neutralizes the functions of whore and virgin, a synthesis in its turn pointing to the ways in which she is to appear preternaturally ‘modern’. Charles has magically survived the pollution of each taboo only to fall in love.” (Conradi, 1982: 65-66).

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seja a abordagem, a maioria dos críticos defende que esta é uma obra feminista, de tal modo o romance é comummente entendido como uma crítica, expressa na rebeldia de Sarah, ao papel da mulher num hipócrita mundo vitoriano. Se é indiscutível que, através daquela figura feminina, o romance ficciona as estratégias de mobilidade social acessíveis às Fallen Women da época, aquele texto tem gerado interpretações divergentes por parte da crítica feminista. Para James Aubrey (1991), aquelas respostas discordantes resultam da apresentação, no romance, de temas pró-feministas de um modo que pode parecer antifeminista: o escritor preserva o mistério de Sarah ao não entrar na sua mente e ao defini-la por meio das ficções masculinas sobre as mulheres (Aubrey, 1991: 150). Heidi Hansson (1997) atribui a coexistência daquelas análises à evidência de os romances pós-modernistas não assumirem um posicionamento político inequívoco. Daí compreende-se que The French Lieutenant’s Woman tenha motivado, simultaneamente, críticas como a de Magali Cornier Michael (1987), segundo a qual o tema do feminismo permanece indistinto no romance11, e como a de Deborah Byrd (1984), que vê o texto quase como uma obra ficcional feminista ideal 12. Bruce Woodcock (1984) sugere que o contexto vitoriano do romance teria permitido ao escritor um distanciamento crítico suficiente para a análise da opressão das mulheres na sociedade vitoriana, mas que, em vez disso, serviu apenas de pretexto para uma narrativa centrada numa figura feminina obscura. A afirmação do narrador, Modern women like Sarah exist, and I have never understood them (FLW, 97), parece confirmar a interpretação deste crítico, desenvolvida nos seguintes termos: … while Sarah’s status as social outcast, emergent feminist, and revenging femme fatale displays an awareness in the book of the patriarchal oppression of women, the role is equally an imaginative exploitation of her as a 11

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Michael, Magali Cornier (1987) “’Who is Sarah?’ A Critique of The French Lieutenant’s Woman’s Feminism” in Critique/studies in contemporary fiction, 28, pág. 228, apud Hansson, 1997: 30. Byrd, Deborah (1984) “The Evolution and Emancipation of Sarah Woodruff: The French Lieutenant’s Woman as a Feminist Text” in International Journal of Women’s Studies, 7/4, pág. 306, apud Hansson, 1997: 30.

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tantalising woman of mystery and a fantasy substitute for the mother figure. ... Fowles’ book is quite overtly a fantasy of dominance and submission in which she is made both sexual and threatening. (Woodcock, 1984: 103)

Esta argumentação é severamente atacada por Aubrey (1991): One book of criticism, Male Mythologies, by Bruce Woodcock, is devoted to exploring and documenting Fowles’s patriarchal biases. Prompted no doubt in part by Fowles’s claim to be a feminist, Woodcock goes about uncovering various masculine ideas and myths embedded in the novels so that he can conclude that Fowles is not a proper feminist after all. Indeed, at one point Woodcock suggests that “Fowles himself is a kind of Bluebeard.” [Woodcock, 1984: 27-28] Fowles’s liberal agenda for improving the freedom of everyone, and particularly of women, may not be sufficiently feminist to satisfy readers who want to see a more profound shift in cultural attitudes, but Male Mythologies is so unrelieved an effort to ferret out ideological incorrectness that Woodcock’s readers may forget that Fowles is sympathetic to the women’s movement. (Aubrey, 1991: 150-151)

Talvez Woodcock tenha realizado uma interpretação abusiva, mas não deixam de ser evidentes algumas inconsistências na apresentação de Sarah como personagem emancipada, que pareciam latentes desde a concepção da situação central do romance. Em «Notes on an Unfinished Novel», Fowles recorda a génese do livro como estando relacionada com um desejo de protecção de uma mulher ostracizada que olha o mar: An outcast. I didn’t know her crime but I wished to protect her. That is, I began to fall in love with her. Or her stance. I didn’t know which. (Fowles, 1969a: 13)

Face a tais indícios, parece-nos pertinente questionar até que ponto o autor conseguiu, na verdade, abalar o sistema patriarcal que o seu narrador tantas vezes procura atacar. Com aquela questão em mente, passaremos à análise cultural dos discursos visuais dos pré-rafaelitas que estabelecem uma relação intertextual com o romance e que permitem ilustrar a representação cultural do feminino no texto.

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2.1.3 O intertexto pré-rafaelita e a representação cultural do feminino A imagética visual da mulher vitoriana está repleta de representações da mulher enquanto ser virtuoso e imaculado, que dedica a sua vida ao serviço dos outros, em especial ao marido e aos filhos. O domínio masculino era patente a todos os níveis e a cultura visual não constituía excepção. Os atributos físicos ou origem social das donzelas casadoiras aumentavam as hipóteses de um enlace feliz, do agrado da família e de ambos os noivos. O casamento era o objectivo prioritário da maioria das raparigas, pelo que a beleza era, com efeito, muitas vezes a moeda de troca do sistema. Os indivíduos das classes altas eram tidos como os exemplos mais perfeitos das feições humanas, devendo constituir os modelos exclusivos das representações pictóricas. Segundo o narrador, Ernestina possui a aparência estereotipada tão do agrado dos ilustradores da era vitoriana, como H. K. Browne, mais conhecido por Phiz, e John Leech: Ernestina had exactly the right face for her age; that is, small-chinned, oval, delicate as a violet. You may see it still in the drawings of the great illustrators of the time – in Phiz’s work, in John Leech’s. Her grey eyes and the paleness of her skin only enhanced the delicacy of the rest. At first meetings she could cast down her eyes very prettily, as if she might faint should any gentleman dare to address her. But there was a minute tilt at the corner of her eyelids, and a corresponding tilt at the corner of her lips … that denied, very subtly but quite unmistakably, her apparent total obeisance to the great god Man. (FLW, 31)

Em contraponto a Phiz e Leech, os pré-rafaelitas foram relativamente inovadores no protagonismo que deram às mulheres nas suas composições pictóricas, contrariando de alguma forma as tendências de subalternidade daquelas figuras, patentes na arte vitoriana. Na época, este movimento artístico procurou questionar os padrões de controlo dominantes, desenvolvendo aquilo que Foucault denomina de ars erotica por oposição às ortodoxias da scientia sexualis contemporânea (Foucault, 1994: 53-77; Bullen,

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1998: 3). Um dos parâmetros mais reveladores terá sido a utilização de modelos oriundos das classes trabalhadoras, normalmente proscritas das representações artísticas. Este grupo expandiu e liberalizou as concepções vitorianas de beleza criando uma aparência muito popular que influenciou as gerações artísticas futuras. O olhar sonhador, a face pálida, os lábios grossos e sobretudo o cabelo ruivo, solto e volumoso, são alguns dos traços físicos mais identificáveis, bem como a postura descontraída de muitas figuras femininas. Veja-se como as pinturas de Dante Gabriel Rossetti, The Blessed Damozel, The Bower Meadow e Proserpine, por exemplo, apresentavam o mesmo tipo facial de Sarah: Delicate, fragile, arched eyebrows were then the fashion, but Sarah’s were strong, or at least unusually dark, almost the colour of her hair, which made them seem strong, and gave her a faintly tomboyish air on occasion. ... Her face was well modelled, and completely feminine; and the suppressed sensuality of her mouth, which was wide – and once again did not correspond with current taste, which veered between pretty little almost lipless mouths and childish cupid’s bows. (FLW, 118-119)

A partir da década de 1860, após a morte da sua modelo Elizabeth Siddall, Rossetti inclina-se para representações mais sensuais da forma feminina, culminando nos estudos baseados em Jane Morris. Os maxilares largos, o cabelo ondulado e espesso desta tornaram-se sinónimo da mulher pré-rafaelita. De facto, estas características-chave foram amplamente reproduzidas e estilizadas no trabalho de Edward Burne-Jones e de muitos seguidores fin-de-siècle de Rossetti. Margaret Goscilo (1993) sugere que Sarah se assemelha ao tipo feminino que os pré-rafaelitas admiravam, encontrando não só paralelismos entre a sua figura e a dos modelos de Rossetti, como também a equivale a um compósito das duas modelos mais conhecidas do artista, Elizabeth Siddall e Jane Morris: [Sarah] seems a composite of Rossetti’s two best-known models, his wife Elizabeth Siddall and – after Siddall’s death in 1862 – his mistress, Jane Morris nee Burden …. It is particularly Sarah’s luxuriant brown hair, with its “red tints, a rich warmth” that makes her like Siddall … what Sarah

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shares with Jane Morris is an exotic vitality that includes an “almost ruddy” skin and [a] strong nose, heavy eyebrows. (Goscilo, 1993: 70)

Landrum e Goscilo exploram com algum pormenor a possibilidade, sugerida pelo narrador, de Sarah ser modelo de uma pintura pré-rafaelita. Uma das obras de artes apontadas é, segundo Landrum, Safo (1877) de Charles-Auguste Mengin que Charles vê, em esboço, na casa de Rossetti: a female nude, nude that is from the waist up, and holding an amphora at her hip. The face did not seem to be Sarah’s; but the angle was such that he could not be sure. (FLW, 425)

Para o autor, não há engano possível na referência. A pintura de Mengin representa Safo nua da cintura para cima, segurando não uma ânfora, mas uma harpa junto à anca; a forma da harpa, contudo, é semelhante à de uma ânfora e poderia ser facilmente confundida com esta num esboço preliminar. Landrum liga Sarah a Safo pela transgressão da sexualidade convencional e por certos indícios de lesbianismo ligados à sua relação com a personagem Millie. De acordo com a interpretação de Goscilo, La Pia de’ Tolomei, pintura de Rosseti para a qual Jane Morris serviu de modelo, parece ser aquela em que Charles repara enquanto está no estúdio de Rossetti: on an easel a barely begun oil, the mere groundlines, a hint of a young woman looking sadly down, foliage sketched faint behind her head... (FLW, 425).

Através da análise do intertexto pré-rafaelita em The French Lieutenant’s Woman, verificamos que Sarah corresponde ao tipo da Fallen Woman. De facto, a história daquela personagem tem pontos de contacto significativos com as composições daquele movimento pictórico: é sensual no conteúdo e enquadrada por um cenário natural verdejante. Uma outra característica que alinha a personagem feminina com aquela corrente artística é a sua auto-representação enquanto pária. Parece-nos, inclusivamente, que esta se serve do fascínio coevo pela Fallen Woman pré-rafaelita

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quando seduz Charles, obtendo poder através do cultivo de uma identidade que lhe permite subverter as hierarquias económicas e patriarcais que dominavam a Inglaterra da época. Fowles evoca uma das pinturas mais conhecidas da época, Found de Rossetti, ao ler-se no telegrama do advogado de Charles: “She is Found. London” (FLW, 418). A pintura mostra um jovem agricultor, a caminho do mercado, que descobre a sua antiga amada nas ruas de Londres, situação em tudo semelhante, na perspectiva de Charles, à vivida pelos protagonistas. Quando Sarah é encontrada pelo seu «salvador» na casa dos Rossetti, a sua reacção traz à memória aquela obra, em particular os versos que Rossetti adicionou à tela: Leave me – I do not know you – go away! Fowles joga conscientemente com a representação da mulher pré-rafaelita, simultaneamente perigosa e fascinante, chegando a implicar directamente Rossetti num dos finais do romance. Porém, como observa Goscilo, o narrador não parece preocupar-se com a tendência dos pré-rafaelitas em transformar as mulheres em ícones sexuais, daí que não submeta aquele movimento artístico a um olhar crítico: … the novel’s parody of Pre-Raphaelitism is so strong on complicity and low on contestation, so removed from the narrative’s interrogation of other Victorian conventions, that the double-coding cedes to an unambiguous homage at odds with the novel’s metatextual revisionist framework. (Goscilo, 1993: 81)

Ao passo que o romance promove uma reconfiguração dos códigos narrativos, artísticos e sociais do período vitoriano, a inclusão dos pré-rafaelitas suspende a subversão ideológica do texto no âmbito das políticas coevas da representação feminina. De facto, apesar de os pré-rafaelitas terem tentado desafiar de algum modo as convenções, democratizando a imagem da mulher, a maioria destes artistas utilizava as personagens femininas como mero suporte decorativo das suas pinturas. Consequentemente, o intertexto pré-rafaelita revela que o autor não só destitui a Confraria como a si próprio da responsabilidade na construção da representação cultural do feminino. É verdade que Fowles adiciona uma outra dimensão à representação meramente visual e

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estética de uma mulher sensual e arrojada; no entanto, isso não é suficiente para que o romance seja revolucionário no tratamento das questões do género no período vitoriano, acabando por reafirmar estereótipos. Atentemos ao modo como a subversão fica suspensa na cena que decorre na casa de Dante Gabriel e Christina Rossetti. Recordemos que Sarah encontrou aí uma pequena comunidade de artistas que lhe permite ser ela própria sem se sentir como marginal. Contudo, a inclusão do círculo dos Rossetti na galeria das personagens de The French Lieutenant’s Woman tornará particularmente problemática a posição daquela figura feminina no desfecho do romance quando, inicialmente, lhe conferira o estatuto de criadora. Até certo ponto, assistimos também aqui à paródia da obsessão vitoriana com a figura da Fallen Woman. Rossetti é-nos apresentado como o salvador da donzela em apuros: como a própria Sarah explica, o artista encontrou-a grávida na rua, abrigou-a em sua casa e apadrinhou a sua criança. Ao localizar a amada desaparecida havia três anos, Charles dirige-se à residência dos Rossetti. Não obstante as suas ideias comparativamente progressistas, aí entra em estado de quase terror dado que, para ele, aquela casa funciona como espelho da destruição das estruturas sociais. Receia a Confraria Pré-Rafaelita porque esta lhe parece afastada de qualquer ordem, em particular da estrutura de classes. A escolha de viver junto ao Tamisa, numa localização «perversa» (FLW, 421), confirma as suspeitas construídas a partir dos ataques do crítico John Morley a Rossetti, denominando-o “the libidinous laureate of a pack of satyrs” (FLW, 426). Charles começa a imaginar as actividades desordenadas e irrefreáveis que terão lugar naquela casa: And the master of the house himself! Had he not heard that he took opium? A vision of some orgiastic ménage à quatre – à cinq if one counted the girl who had shown him up – rose to his mind. (FLW, 426)

Quando Sarah lhe pede que fale com Christina Rossetti, suspeita que as «regras heterossexuais» haviam também sido infringidas por aqueles indivíduos:

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What new enormity has threatened now! Another woman, who knew and understood her better than ... that hatred of men … this house inhabited by… he dared not say it to himself. (FLW, 435)

Fowles satiriza a reacção de Charles perante o desregramento imaginado na casa dos Rossetti, construindo um texto que relega todos estes temores – relacionados com o obliterar da distinção entre classes, as orgias e lesbianismo – para o campo de possibilidades irrealizáveis. Aquela personagem é objecto de ridículo não só porque exagera na sua resposta, mas porque congemina que aquelas situações poderiam, na realidade, acontecer. Assim, o autor anula o que poderia restar do cariz revolucionário dos pré-rafaelitas ao remeter a subversão das convenções sociais e sexuais para o domínio do imaginário. O diálogo entre Charles e Sarah na casa de Rossetti resume-se a tentativas falhadas de atribuir papéis convencionais àquela figura feminina: ele começa por assumir que ela é uma preceptora, mas quando esta o conduz para um estúdio com materiais de pintura e lhe diz que é a assistente de Rossetti (FLW, 425), Charles traduz imediatamente esta palavra para uma outra que corresponda a um papel que ele possa entender. Na sua concepção, Sarah é modelo, objecto e não sujeito13: “I am his amanuensis. His assistant.” “You serve as his model?” “Sometimes.” “I see.” (FLW, 425)

Pese embora a sua reaparição no seio dos Pré-Rafaelitas confirmar, de forma explícita até, a identidade de Sarah enquanto artista, a sugestão de que seria modelo de Rossetti estabelece uma dinâmica oposta, encenando a dicotomia artista (masculino) vs. objecto 13

Recordemos, pelo paralelismo significativo, que quando Sarah diz a Charles que se ofereceu a Varguennes, este reconhece o enredo da Fallen Woman, mas quando ela fala em casar com a sua vergonha e dor, e sugere um suicídio social, ele não é capaz de processar esta informação tendo em conta o repertório de histórias interiorizadas.

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(feminino). Considerando que uma das preocupações principais do texto de Fowles parece ser a representação vitoriana da mulher, pareceria lógico que esta dicotomia fosse um alvo perfeito de desconstrução crítica. Porém, do mesmo modo que a iconografia pré-rafaelita evocada na caracterização de Sarah não fora sujeita a um escrutínio revisionista, também esta dicotomia de género o não foi. A Confraria é apresentada no romance como um movimento avant-garde cuja rebelião contra os princípios morais e estéticos da sua época providenciaria um lugar apropriado para a igualmente insubmissa Sarah. Contudo, o mesmo intertexto pré-rafaelita que nos recorda a sensibilidade artística daquela figura feminina, também funciona para diminuí-la de criadora a modelo, já que Fowles, ao ligar a aparência de Siddall à de Sarah, optou por omitir a posição da primeira enquanto colaboradora e colega de Rossetti, no fundo, ela própria artista e poeta. Neste âmbito, uma outra pintura de Rossetti contribui, segundo Goscilo, para o entendimento do modo como o romancista constrói Sarah: Beata Beatrix (c. 1864-70). A figura feminina nesta imagem representa a falecida Siddall tornada a Beatriz de Dante. A exemplo de Beatriz, Sarah é a criação de um artista no processo de se tornar a sua própria criadora, visto que a sua capacidade criativa assenta inteiramente na ficcionalização da sua identidade sexual. Se o referido ficcionar confere a Sarah o direito de assumir o papel de artista no romance, a atribuição explícita do papel artístico a Rossetti enquadra-a numa representação construída masculinamente, representação essa que a diminui e a confina como fez a Elizabeth Siddall. Sarah assemelha-se à sua antecessora histórica, não como sujeito criador, mas como objecto de representação. De facto, a presença da personagem naquele local reactualiza as interpretações mais tradicionais da relação Rossetti-Siddall, inviabilizando qualquer perturbação da narrativa canónica da Fallen Woman (Goscilo, 1993: 73). Na verdade, as criações em torno daquela definem-na sempre em relação ao elemento masculino: ela é a amante do tenente francês, a tentadora que seduz Charles, e a assistente e modelo de Rossetti (Hansson, 1997: 36). Se Sarah é categorizada como a New Woman, também é descrita como uma mulher que não consegue escapar ao universo dos homens.

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Em última análise, apesar de Fowles parecer procurar desconstruir a dicotomia Madona-Madalena através da manipulação que a amante do tenente francês faz desta, a caracterização daquela figura reafirma esta dicotomia. Conclui-se que a representação da Confraria Pré-Rafaelita invalida o estatuto de Sarah enquanto mulher emancipada e, consequentemente, a pretensão feminista do romance resulta até incongruente no enquadramento metaficcional do romance. Hansson (1997) lembra que os romances pós-modernistas têm a potencialidade de afirmar e criticar simultaneamente ideias feministas, dado que as ambiguidades textuais do pós-modernismo lhes permitem incluir visões contraditórias sem privilegiar uma em detrimento de outra. Finalizamos esta secção com um excerto que nos parece sintetizar parte do caminho até agora percorrido e que funcionará analogamente como ponte para a análise posterior do romance de Byatt: Clearly, feminism is a very important element in the postmodern romance, but any simple advocacy of feminism as the alternative has to be ruled out. …Ultimately what this means is that postmodern romances truly have a romance with feminism: they make no final commitment, but they do keep the flirtation going. (Hansson, 1997: 42)

2.2 O filme de Reisz e a denúncia da construção das representações vitorianas A bibliografia consultada é quase unânime em afirmar que no filme de Karel Reisz as referências de Fowles à ciência e teoria política vitorianas são em grande parte omitidas. Por exemplo, para Conradi (1982), a interpenetração da ficção e da história, uma das assinaturas distintivas do romance, sobrevive precariamente na adaptação fílmica (Conradi, 1982: 100-101). Parece ser comummente aceite que da documentação histórica apresentada na obra literária apenas uma pequena parte se concretiza no filme, numa alusão a estatísticas sobre a prostituição vitoriana14. No entanto, tal 14

Veja-se, por exemplo, Conradi, 1982: 100-101 e Stam, 1992: 160.

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como nos propusemos na introdução, procuraremos demonstrar como a adaptação fílmica do romance acrescenta perspectivas renovadas à leitura fowlesiana do passado vitoriano, em particular no que se refere à sua relação com o cinema heritage e à negociação dos papéis de género. Neste sentido, Charles Garard (1991) coloca esta adaptação na categoria de comentário, na medida em que confere maior intensidade a alguns motivos do romance e reestrutura outros (Garard, 1991: 23). Justifica-se, portanto, a interpretação das razões que levaram Harold Pinter, argumentista, e Reisz, realizador, a procederem a determinadas transformações na intriga aquando da adaptação do romance. Para além desta questão, encetaremos uma leitura da produção do filme nas suas problemáticas culturais; neste âmbito, serão abordadas questões suscitadas por elementos cinemáticos, como os percursos de carreira do realizador e do argumentista. Comecemos por examinar a estruturação do discurso fílmico sobre o passado inglês de Oitocentos. Dado que esta primeira moldura de análise se interrelaciona intimamente com a questão do filme heritage, optámos por abordar estes dois enquadramentos de forma integrada. Logo à partida, a existência de uma ligação reflexiva entre a narrativa do presente e a do passado condiciona a inclusão de The French Lieutenant’s Woman na categoria do filme heritage. Para além disso, a estreia do filme em 1981 ocorre alguns anos antes do surgimento no Reino Unido de preocupações com a indústria do património e uma década antes da expressão heritage film ter sido cunhada. Atendendo a estes factores, pareceria demasiado redutor integrar a obra de Reisz na categoria de filme heritage. No artigo Through a Glass Doubly (1981), Richard Combs aponta aquele texto cinematográfico como tendo sido, possivelmente, o primeiro filme de época auto-reflexivo a atingir sucesso nas bilheteiras15. Dado que esta adaptação do romance de Fowles surge num contexto de popularidade de adaptações fílmicas de clássicos da literatura, parece-nos que questiona este fenómeno cultural ao estruturar-se como pastiche de uma adaptação de um romance 15

Combs, Richard (1981) “Through a Glass Doubly: The French Lieutenant’s Woman”, Sight and Sound, 50, pág. 277, apud Garard, 1991: 119.

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vitoriano, da mesma forma que o romance o fizera. A adaptação ao cinema de um romance de temática histórica, num contexto favorável à recuperação dos clássicos, poderia levar ainda mais longe a auto-reflexividade característica do romance. Entendemos que a estratégia do filme dentro do filme conduz à desconstrução crítica da apetência por filmes heritage, pelo que procuraremos atestar que The French Lieutenant’s Woman é assumidamente parte da indústria do património dos anos 80, mais do que um mero filme heritage. Convém apresentar, desde logo, algumas questões que orientaram a investigação: Será que o desenlace do filme dentro do filme, ao realçar a paz e a harmonia de um mundo sem perturbação (através da união dos protagonistas vitorianos), privilegia um sentimento nostálgico pelo passado vitoriano, o que qualificaria o filme de Reisz como filme heritage? Será o tempo da intriga vitoriana mais «genuíno» do que aquele em que as personagens modernas vivem? Se os filmes heritage almejam por um tempo mais autêntico, por um contexto sociocultural anterior menos problemático e complexo do que aquele em que vivemos, será este o tempo que encontramos no enredo em que transitam Charles e Sarah? Assistimos no filme à celebração ou ao exame crítico, à recuperação ou à subversão do passado, ou será esta uma não-questão? A profusão de interrogações interligadas que surgem quando pensamos nas afinidades entre The French Lieutenant’s Woman e o filme heritage atesta, por um lado, a natureza problemática desta relação e, por outro, a pertinência da investigação que propomos levar a cabo. A transposição para o cinema de uma história de amor que serve de suporte a uma reflexão sobre a época vitoriana em paralelo com a contemporânea, no fundo, com a sua visão estereoscópica (Pinter, 1981: x), constituiu, desde início, um obstáculo à sua adaptação fílmica. No prefácio ao argumento do filme, Fowles relata a saga da «não-filmagem» de The French Lieutenant’s Woman que durou onze anos, contando como by some mysterious perversity, always another candidate sprang from this increasingly worn turf (Pinter, 1981: vii). Realizadores como Lindsay Anderson, Michael Cacoyannis, Richard Lester and Fred Zinnemann não conseguiram construir um guião, nem sequer um conceito que o estruturasse (Garis, 1981).

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Realizadores ou produtores que trabalharam na adaptação do romance procuraram resolver o dilema diacrónico de captar a perspectiva do século XX a partir da qual a história vitoriana é contada, como é exemplificado na atitude de um produtor descrita pelo romancista: As one studio head of production put it to me, he was profoundly uninterested in buying a latterday Victorian romance when there were hundreds of the genuine article – and from the most formidable corpus of writers in English fiction – lying about out of copyright and to be had for nothing. (Pinter, 1981: xi)

Para além de dificuldades postas pelo tratamento não convencional do tempo, a crescente popularidade do romance16 representava um desafio artístico para aqueles que o procuraram adaptar à linguagem cinematográfica. Nestas circunstâncias, Fowles e o seu editor chegaram à conclusão que seria necessário um demon barber, ou seja, um escritor capaz de repensar tudo desde o início (Pinter, 1981: viii). Ambos concordaram que Pinter, dramaturgo inglês de renome, seria a melhor opção. Ainda antes da publicação do romance, Reisz, um dos protagonistas do renascimento do cinema britânico no final dos anos 50 e princípio dos anos 60 do século passado (Garis: 1981), era o realizador pretendido por Fowles para a adaptação da sua obra. Tal deveu-se à sua ligação ao chamado Free Cinema, um movimento influente que reivindicava o papel social do realizador. Cineastas como Tony Richardson e Lindsay Anderson, para além de Reisz, clamavam pela independência artística de um cinema britânico menos apegado aos valores tradicionais e aos triunfos passados, que se ocupasse mais com as preocupações e aspirações contemporâneas e que se situasse fora das 16

Entre outros factores que atestam a sua popularidade, fez parte da lista do Book-of-the-Month Club entre 1970 e 1981 e a edição de bolso da Signet teve 27 reimpressões (Gale, 2001: 84). Recentemente, talvez devido não só à popularidade do romance como também à do filme, The French Lieutenant’s Woman seria adaptado ao teatro, estreando na Fulton Opera House, com encenação de Mark Healy, em Janeiro de 2003.

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imposições da indústria cinematográfica dominante (Chambers, 1986: 96-97). Posteriormente, Reisz iria emigrar para os Estados Unidos da América, sendo então acusado de pertencer ao grupo de cineastas britânicos – do qual faziam parte Tony Richardson, John Schlesinger e Jack Clayton, entre outros – que não haviam resistido à hollywoodização perante o panorama de declínio do cinema britânico na década de 1970. A este propósito, escreve James Park (1990): In suggesting that directors like Schlesinger, Reisz and Boorman, who had gone to Hollywood, were betraying not only their country but, in some significant sense, themselves, the nationalist argument was unnecessarily divisive. “I don’t believe that any of us feel that we are betraying anything by making larger-scale ‘international’ productions” [Screen International, 14-21 June 1980, p. I] riposted Karel Reisz to those who complained about his making pictures like The Gambler … The AIP’s [Association of Independent Producers] attitude came across as an attempt to prescribe the proper subjects for a British filmmaker to deal with, and was unnecessarily suspicious of imagination and fantasy. (Park, 1990: 134)

Como nota o crítico, o ataque mais firme à letargia governamental em relação à indústria fílmica britânica surgiu da Association of Independent Producers. Em 1984, a A. I. P. lança uma campanha de revitalização do cinema britânico, propondo mudanças institucionais e legislativas que, embora prudentes, denunciam um enfoque dúbio no nacionalismo. Park observa que a postura daquela associação era, acima de tudo, pragmática: How else do you appeal to a national government except in terms of a national cultural identity? (Park, 1990: 133)17. Face ao exposto, seria difícil conceber que Reisz e Pinter, com estes percursos de carreira, apoiassem conscientemente a indústria do património através de uma obra que defendesse o retorno aos «valores vitorianos» proposto pelo governo de Thatcher. Para além 17

Curiosamente, o filme The French Lieutenant’s Woman é contemporâneo de Chariots of Fire, o filme que, nas palavras de Park, “most symbolized hopes for a renaissance in British filmmaking” (Park, 1990: 144).

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deste aspecto, como podemos depreender das palavras seguintes, Fowles despreza a natureza comercial da produção fílmica: ... in a later novel, Daniel Martin, I did not hide the contempt I feel for many aspects of the commercial cinema – or more exactly, since cost of production and mode of recoupment make all cinema more or less commercial, of the cinema where accountants reign, where profit comes first and everything else a long way after. This vile ethos was neatly exemplified in the main reason given by one studio when it turned down a forerunner of the present script. Its chief fault, we were informed, was that there was only one character with whom an American audience could happily identify ... my little example of blind Victorian capitalism, the London store-owner, Mr Freeman. (Pinter, 1981: xiii)

The French Lieutenant’s Woman constituiu o maior sucesso comercial da carreira de Reisz em resultado de uma predisposição da audiência para a adaptação de um romance famoso e também, como refere Steven Gale (2001), devido à familiaridade da audiência com os bastidores da produção cinematográfica18. A visão estereoscópica do romance exigiu do cineasta e do argumentista um esforço experimentalista na abordagem do tempo e na procura de analogias cinemáticas para os finais múltiplos e para a auto-reflexividade proporcionada pelo narrador contemporâneo. A solução, sugerida por Reisz e seguida por Pinter, residiu em encaixar a história de amor de Charles e Sarah dentro de outra que encerrasse a perspectiva moderna. Por meio da estratégia do filme dentro do filme, em vez de transformar o narrador do século XX numa personagem, The French Lieutenant’s Woman introduz um enquadramento moderno através da relação amorosa de Mike e Anna, actores que representam Charles e Sarah. Ao longo do filme, a relação amorosa entre os actores funcionará como uma câmara de ressonância dentro da 18

A este propósito, escreve Gale (2001): “Audience interest in and familiarity with the art of filmmaking is evident in the popularity of movie studio shorts that were run between feature presentation in the 1940s and current television specials about filmmaking, fan magazines, and Disney’s MGM Studios and Universal Studios with their backstage tours” (Gale, 2001: 75).

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qual ecoa a relação vitoriana, amplificando e distorcendo de forma irónica alguns dos seus sentidos (Conradi, 1982: 100). A narrativa vitoriana intersecta-se temática e formalmente com a narrativa do século XX, sendo que a história «ficcional» influencia e confunde crescentemente as ficções que as personagens «reais», i.e., os actores, criam nas suas próprias vidas. A primeira cena do filme estabelece a tensão paródica que o atravessa e que é semelhante à que o romance utiliza para se problematizar enquanto romance histórico. O espectador é confrontado com a composição de uma mise en scène vitoriana, em que uma actriz está a acabar de ser maquilhada e ajeita vestes típicas da época. A equipa de produção é revelada, recuando à medida que alguém diz All right. Let’s go. Uma voz off grita Action. Anna, a actriz interpretada por Meryl Streep, solta o cabelo e começa a andar em direcção ao ano de 1867, ao longo do paredão no porto de Lyme. Pela altura em que a figura atinge o fim do paredão, o presente de 1981 desaparece e há um enfoque em Sarah, a protagonista da era vitoriana, conseguido com a ajuda dos acordes dramáticos da música que nos transporta para um tempo recuado19. Desde logo, as intrigas moderna e vitoriana surgem enleadas, de tal forma que a protagonista começa por responder pelo nome de Anna e termina a cena como Sarah20. O recurso ao espelho naquela cena denuncia a estrutura do filme como construção, e a claquete – em que se pode ler The French Lieutenant’s Woman: Scene 1, Take 1 (Pinter, 1981: 1) – favorece o distanciamento. Estamos a ver um filme sobre a realização de um filme, e mesmo que nos deixemos envolver por esta narrativa ficcional, um dado elemento – seja um objecto reflector da realidade 19

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É digno de nota que Carl Davis, o responsável pela música em The French Lieutenant’s Woman, tenha composto a música para nove séries televisivas da BBC Classic Series, incluindo a extremamente popular adaptação de Pride and Prejudice de Jane Austen, datada de 1995. Entremeadas à narrativa, despontam trajectórias de duas mulheres desde os primeiros minutos do filme. Aquela estrutura lembra o filme The Hours (2002, Daldry), também com Meryl Streep, baseado no livro homónimo de Michael Cunningham: as acções de cada figura central, nos três enredos, quase nunca são interrompidas, tendo continuidade nas tramas paralelas.

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ou um som estranho – desperta-nos da ilusão recentemente criada. Quando assistimos aos segmentos vitorianos do filme não somos acriticamente absorvidos pela intriga vitoriana, pois sabemos que as personagens do passado estão a ser representadas pelos actores que conhecemos do «presente» do filme. Esta autoconsciência pós-modernista da linha indefinida entre duas realidades – a da produção cinematográfica e a do cenário vitoriano – conduz a um intenso estado de consciência de um mundo ficcional construído. Dissipa-se a voluntária suspensão da descrença: a presença do século XX, ou melhor, do tempo de produção do filme, destrói qualquer ilusão de uma representação não mediada do século XIX. Na realidade, a alternância sucessiva de cenas entre os dois séculos amplia a noção do que existe para além do mundo das personagens oitocentistas, não permitindo que a intriga vitoriana fique fechada sobre si própria. Aquela técnica estrutural leva-nos a contestar a ideia de que o filme privilegia o espectáculo cinematográfico e um sentimento de nostalgia por uma Idade de Ouro, argumento utilizado amiúde pelos detractores do filme heritage, em detrimento de uma leitura crítica da representação do passado vitoriano. Como nota Joseph Martin (1994), o filme de Reisz joga, à semelhança do romance de Fowles, com a credulidade e a passividade da audiência, tentando que esta se torne mais crítica perante os textos cinematográficos (Martin, 1994: 151-152). Segundo aquele comentador, um aspecto pós-modernista do filme residirá na problematização das respostas convencionais, sejam estas interpretativas ou emocionais, dos consumidores em relação à arte. Assim, apesar de as paisagens, os cenários e a roupa, no fundo, a mise en scène, estabelecerem um ponto de contacto entre o filme de Reisz e a tradição heritage, a estrutura do filme dentro do filme induz a percepção do artificialismo da construção do filme heritage. As estratégias narrativas auto-reflexivas posicionam-no ao nível de obras cinematográficas como Orlando (Potter, 1992). Reisz, tal como o havia feito Sally Potter naquela película, preocupa-se em não deixar que o espectador permaneça completa e confortavelmente imerso no passado, dificultando o visionamento do filme enquanto puro deleite, como se se tratasse de uma exibição de uma época áurea da história inglesa. De facto, o realizador recria o efeito

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de distanciamento entre a audiência e a história vitoriana que o romancista concebeu pela acção de um narrador intrusivo. Porque aquele romance é um pastiche, o leitor é retirado da história, sendo que espectador é confrontado com a mesma situação, ao ser constantemente recordado que está a assistir a um filme representado por um elenco. O que está em jogo no texto de Fowles é a emancipação do leitor, bem como das principais personagens, das coerções do texto. Como vimos, o romance questiona deliberadamente tanto as convenções do romance vitoriano, como as representações ficcionais romantizadas da época vitoriana, pelo que o filme tenta encontrar um equivalente cinemático para esta abordagem. Se a obra literária subverte as expectativas criadas pelo seu semblante de romance histórico, o mesmo raciocínio pode ser aplicado à sua adaptação cinematográfica relativamente ao filme heritage. Através de um tratamento paródico das histórias vitoriana e contemporânea, estreitamente entrecruzadas, o filme questiona não só as suas próprias convenções, como também as do cinema em geral, na medida em que a alternância de intrigas torna visíveis codificações materiais como a direcção de guarda-roupa, a composição do cenário e a posição da câmara. Vejamos como o filme procura desmontar as suas próprias operações textuais e culturais, por exemplo, nos seus momentos finais. Recordemos a cena em que Charles, três anos após o desaparecimento de Sarah, está num jardim contemplando uma baía. Este plano, pela sua iluminação e composição, é evocativo dos quadros paisagísticos de Millais (Martin, 1994: 154) e, acrescentaríamos, da mise en scène do filme heritage. A entrada de um criado, neste enquadramento, com um telegrama sobre o paradeiro de Sarah desperta Charles (e o espectador), para em seguida o submergir nas convenções do final feliz da intriga vitoriana. Martin caracteriza o resultado desta estratégia cinemática nos seguintes termos: … the effect is not so much to deflate Victorian painting or the character Charles as it is to remind us that we are experiencing artifice, not an immediate emotional reality. (Martin, 1994: 154)

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Na verdade, a invenção de um final feliz por Pinter, em que os amantes passam da escuridão para a luz através de um túnel, está mais de acordo com os populares modelos vitorianos do que qualquer uma das duas conclusões que Fowles proporciona (Gale, 2001: 72). Na cena final, em que as duas histórias convergem provocando a interrupção de um deleite visual característico do filme heritage, a metaficção atinge o seu ponto de maior visibilidade. Consciente da dependência em relação às convenções cinematográficas, o filme subverte-as. O distanciamento crítico é alcançado com a passagem abrupta daquela cena para a da festa de despedida do elenco do filme. Através desta técnica, as estruturas de fechamento narrativo próprias do romance do século XIX e do filme heritage são parodiadas e são expostos os mecanismos inerentes à sua construção. A um outro nível, as histórias justapostas comentam as restrições sexuais vitorianas e o desprendimento sexual moderno (Martin, 1994: 152). Fowles introduz o passado no romance como um ponto de referência a partir do qual escreve sobre o presente, com o propósito de mostrar o quão empobrecido o último se revela por comparação a tempos passados (Gross, 1978: 20). Lembremos o passo no romance onde o narrador argumenta que a auto-repressão dos vitorianos poderia ter-lhes proporcionado um desejo sexual mais intenso do que aquele vivido na actualidade: … it seems very far from sure that the Victorians did not experience a much keener, because less frequent, sexual pleasure than we do; and that they were not dimly aware of this, and so chose a convention of suppression, repression, and silence to maintain the keenness of the pleasure. In a way, by transferring to the public imagination what they left to the private, we are the more Victorian – in the derogatory sense of the word – century, since we have, in destroying so much of the mystery, the difficulty, the aura of the forbidden, destroyed also a great deal of the pleasure. Of course we cannot measure comparative degrees of pleasure; but it may be luckier for us than for the Victorians that we cannot. And in addition their method gave them a bonus of surplus energy. That secrecy, that gap between the sexes which so troubled Charles when Sarah tried to diminish it, certainly produced a greater force, and very often greater frankness, in every other field. (FLW, 261)

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Uma cena é particularmente reveladora do desprendimento sexual na relação de Anna e Mike. Estando o casal na cama, Anna move-se e chama sonolenta o nome de outro homem, ao que Mike, chocado, responde It’s not David. It’s Mike (Pinter, 1981: 39). Ela olha para ele, diz-lhe para voltar para a cama, põe o braço à volta dele e volta a adormecer, abandonando-o à sensação de ausência de compromisso na sua existência moderna. Se o enredo moderno apresenta Mike e Anna em várias cenas íntimas, uma elipse cinemática destaca como único encontro sexual vitoriano o que ocorre entre Charles e Sarah em Exeter. De facto, o filme ignora o encontro de Charles com uma prostituta, ao passo que este é descrito em grande pormenor no romance (FLW, 297-304). Marie-Claire Simonetti (1996) acredita que aquela elipse no enredo vitoriano acaba por sublinhar as diferenças nas convenções entre as duas eras (Simonetti, 1996: 306). Porém, pensamos que a referida supressão acaba por destacar o carácter convencional das duas épocas, mais do que o seu contraste. Tal como a obra literária submete o passado a um tratamento irónico que o subverte sem o demolir e sem privilegiar o presente da escrita, também o filme demonstra, através da intriga moderna, que os hábitos mentais da época vitoriana se mantêm na nossa. Na verdade, a paródia pós-modernista faz com que os dois tempos se revejam um à luz do outro, como observa Hutcheon (1988): [Postmodernist fiction] critically confronts the past with the present, and vice versa. In a direct reaction against the tendency of our times to value only the new and the novel, it returns us to a re-thought past to see what, if anything, is of value in that past experience. But the critique of its irony is double-edged: the past and present are judged in each other’s light. (Hutcheon, 1988: 39)

A cena em que o casal do século XX analisa as estatísticas referentes à prostituição na Londres vitoriana estabelece mais um ponto de aproximação entre as duas épocas, ao questionar a hipótese repressiva em relação ao século XIX (Foucault, 1994: 34-39)21. 21

Gale (2001) interpreta a relevância conferida àquelas estatísticas no filme

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Consideremos a definição de estatística enquanto ciência que tem por objecto o agrupamento metódico dos factos sociais que se prestam a uma avaliação numérica, para a partir daí determinar correlações e retirar consequências na descrição e explicação do que se passou e, quem sabe, na previsão e organização do futuro. Assim, o recurso a dados estatísticos não deixa de sugerir a noção de construção da história, tão desenvolvida por Fowles, mesmo que o papel da documentação histórica no romance, usada extensivamente com o propósito de comentar a época vitoriana, se veja substancialmente diminuído no filme22. Joanne Klein (1985) defende que, ao retratar os actores nos mesmos espaços ou em espaços contíguos aos das personagens que encarnam, o filme denuncia a idêntica constituição das figuras em ambas as épocas (Klein, 1985: 150). A autora fundamenta esta afirmação recorrendo à cena em que encontramos Mike e Anna pela primeira vez num quarto de hotel: se a obsessão em relação ao cumprimento de horários distingue os dois períodos, estes partilham um cuidado com as aparências. Anna, que enquanto Sarah é denominada the French Lieutenant’s whore, sente-se incomodada por a relação extraconjugal que mantém com Mike ter sido descoberta pela equipa de filmagens, desabafando They’ll think I’m a whore (Pinter, 1981: 9), ao que o actor responde You are. Segundo Harlan Kennedy (1981), aquela preocupação da actriz denuncia vestígios do padrão duplo vitoriano relativamente ao género: Anna is not the immaculately-conceived feminist striding stridently into the Eighties but a woman whose sexual and spiritual evolution has been seen and presaged by us, like striations in a rock, in the story of her “ancestor”. ... The French Lieutenant’s Woman is about the way the Past and its accretions are impacted in the Present, and how modern freedom rise on the strata of bygone tyrannies.23

22 23

como uma evidência da orientação feminista do texto de Pinter (Gale, 2001: 76). Veja-se Conradi, 1982: 100-101. Kennedy, Harlan (1981) “The Czech Director’s Woman”, Film Comment, 5, Set-Out, 27, apud Klein, 1985: 158.

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Segundo Lorsch (1988), ao sublinhar a semelhança entre a ficção e a «realidade», Pinter representa as personagens vitorianas e modernas como inerentemente semelhantes – como havia notado Klein –, enfraquecendo uma questão que poderia ser central para Fowles: a diferença entre o mundo vitoriano, em que o leitor pode confiar na omnisciência de um deus-narrador, e o mundo moderno, em que o indivíduo e o leitor se encontram, de forma radical e assustadora, livres de qualquer autoridade (Lorsh, 1988: 151). Para a autora, o desenvolvimento paralelo da relação entre os actores e as personagens vitorianas introduz no filme a noção de imutabilidade da experiência do amor, à qual a narrativa apenas acrescenta cor epocal: The frequent linking of Victorian and modern attitudes, if sometimes ironic, nevertheless leaves one with the impression that the primary difference between the two eras was the Victorian’s penchant for top hats, high-necked dresses, and expressions such as “I pray you” and “thrice”. (Lorsch, 1988: 151)

Martin (1994) detecta no texto de Fowles um sentimento paradoxal de afecto e amargura aquando da paródia de escritores vitorianos como Thackeray, Eliot ou Hardy. De uma forma que se verificará também em Possession, em The French Lieutenant’s Woman as pressuposições modernas de superioridade em relação aos vitorianos são sujeitas a um tratamento irónico (Martin, 1994: 153). Vimos, atrás, como a fruição do prazer sexual é feita indicador para comparar desfavoravelmente a época contemporânea relativamente à oitocentista. David Gross (1978) menciona outras áreas em que Fowles recorre àquele método contrastivo para evidenciar os aspectos negativos do presente ausentes no passado, por exemplo, a neurose destrutiva resultante do ritmo alucinante que caracteriza o século XX: For Charles and almost all his contemporaries and social peers in the 1860s “the time signature over existence was firmly adagio. The problem was not fitting in all that one wanted to do, but spinning out what one did to occupy the vast colonnades of leisure time available.” [FLW, 18] Then

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nothing moved rapidly and there was no sense of rush or hurry, but today, Fowles suggests, Western culture betrays grave symptoms of a “destructive neurosis”; everyone searches for faster ways to do things in order to approach more closely “not to a perfect humanity, but to a perfect lightening flash.” [FLW, 18] (Gross, 1978: 24)

No mesmo tom, é comentado, ainda no romance, o modo com as distâncias favoreciam a liberdade individual das pessoas na época vitoriana: Yet this distance, all those abysses unbridged and then unbridgeable by radio, television, cheap travel and the rest, was not wholly bad. People knew less of each other, perhaps, but they felt more free of each other, and so were more individual…. Strangers were strange, and sometimes with an exciting, beautiful strangeness. It may be better for humanity that we should communicate more and more. But I am a heretic, I think our ancestor’s isolation was like the great space they enjoyed: it can only be envied. The world is only too literally too much with us now. (FLW, 131)

No filme, haverá um sistema de valores, vitoriano ou moderno, destronado em prol do outro? Ou serão apenas apontados os vícios de que ambos enfermam? Não constituirá indício de nostalgia pelo passado o facto de Reisz restringir as estratégias distanciadoras, como a claquete e o som de um helicóptero, aos segmentos modernos? Boyum (1985) nota que Mike almoça ainda maquilhado e vestido com a roupa de Charles, ao passo que a personagem oitocentista não lhe faz qualquer referência; escreve ainda que vemos Anna a escolher o tecido para um dos vestidos de Sarah, enquanto a personagem que representa não denota estar consciente da existência da actriz (Boyum, 1985: 108). Até certo ponto, segundo o crítico, o espectador assiste aos segmentos vitorianos com uma interferência mínima, apesar de o filme os colocar entre aspas. Assim, acaba por sentir aqueles segmentos como fantasia e reflecti-los enquanto ficção só posteriormente (Boyum, 1985:108)24. 24

Contribuirá de igual forma para o envolvimento do espectador pela narrativa vitoriana o facto de esta ocupar quase três quartos do tempo do filme.

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Os aspectos referidos por Boyum abrem caminho à identificação de algumas afinidades entre The French Lieutenant’s Woman e o cinema heritage. Os pontos de contacto são confirmados pelos críticos e poder-se-iam aplicar a uma produção Merchant-Ivory. A título exemplificativo, Jim Welsh (1982) regista o seguinte comentário num artigo da revista Literature/Film Quarterly: The vision of Victorian England Reisz creates in The French Lieutenant’s Woman ... seems very English, a Romantic impression carefully built upon realistic detail and meticulous art direction. (Welsh, 1982: 66)25

Na película, o revezamento das duas dimensões temporais é acompanhado por uma alternância de estilos cinemáticos de uma forma que poderá clarificar, ainda que parcialmente, algumas questões colocadas previamente. Neste âmbito, as cenas longas do enredo vitoriano opõem-se às cenas breves e elípticas do moderno, o que sublinhará o ritmo acelerado da vida moderna e a calma e regularidade do tempo vitoriano (Simonetti, 1996: 303). Para além disso, o estilo dos planos correspondentes à intriga moderna caracteriza-se por uma composição mais informal, enquanto que os planos da narrativa vitoriana se mostram artificiais, assumidamente estruturados e contidos nos limites da moldura fílmica. Tony Whall (1982) considera que os cenários vitorianos reproduzem, em pormenor, a atmosfera moral da época: spacious yet stultifying, cluttered with the memorabilia of things possessed (Whall, 1982: 75). Por exemplo, a cena da visita de Mrs Poulteney a Mrs Tranter ilustra aquele cuidado com a composição do enqua-

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Repare-se como Welsh (1982) atribui a responsabilidade da criação de imagens emblemáticas de anglicidade a um realizador checo. Tal mostra o quanto as imagens do filme – à semelhança de outros que se situam debaixo do chapéu conceptual do filme heritage – são construídas e não reproduzidas. Este argumento aplica-se a Possession, realizado por um norte-americano, sendo significativo que um número substancial de produções heritage das décadas de 1980 e 1990 sejam de produção norte-americana ou tenham beneficiado de ampla contribuição, financeira e/ou criativa, dos Estados Unidos da América, e também de países como a Austrália e o Canadá.

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dramento, simbolizando o controlo e a rigidez das convenções vitorianas. A direcção de fotografia de Freddie Francis utiliza tons pardacentos nos segmentos vitorianos, tornados nítidos e brilhantes nas sequências modernas. Em termos gerais, estas beneficiam de uma espécie de luz magnética, enquanto as cenas oitocentistas se apresentam sob um céu cinzento e assumem tons de sépia, o que torna sombrio o mundo de Lyme Regis (Boyum, 1985: 107). John Coleman (1981) acrescenta que, na cena em que Charles procura Sarah nas ruas de Londres, a fotografia coloca a audiência disruptingly in the Ripper-land of the horror of Hammer, sendo que Hammer Films é uma conhecida produtora cinematográfica britânica, responsável por filmes de terror de orçamento reduzido e contextualizados, frequentemente, na Inglaterra vitoriana26. Em consequência, a visão ensolarada do lago numa das cenas finais resulta incongruente, como o são, por estarem iluminadas de forma mais clara, aquela do chá oferecido por Mrs Tranter e as no consultório do Doctor Grogan (Garard, 1991: 122). Numa entrevista, referindo-se à fotografia do filme, Reiz corrobora: In the Victorian scenes we very consciously went for an academic kind of lightning, the sort of high definition that you see in Victorian paintings. We used front and side light – a pre-Impressionist kind of light to paint the object.27

A pintura vitoriana torna-se, deste modo, objecto de paródia até porque, para Martin (1994), o espaço primordial da acção metaficcional do filme não estará na ligação entre as narrativas contrastantes, mas sim no interior do filme vitoriano (Martin, 1994: 153). No decurso deste, a ironia é cuidadosamente modu26

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Coleman, John (1981) “Turn Up for the Book”, New Statesman, 16 Out. 29, apud Garard, 1991: 122. Esta empresa ainda produz películas que autodefine como “highly commercial, low-budget, English-language horror movies for a worldwide teen audience” (http://www.hammerfilms.com). Kennedy, Harlan (1981) “The Czech Director’s Woman”, Film Comment, 5, Set-Out. 17, apud Martin, 1994: 154.

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lada de forma a tornar o espectador mais consciente do artifício, sem destruir a ilusão. Por exemplo, a cena final do enredo vitoriano, a que já aludimos, assemelha-se de tal forma a uma fantasia pré-rafaelita de amor romântico que, para o crítico, é inevitável o reconhecimento da manipulação de uma nostalgia colectiva relativamente a uma mítica Idade do Ouro da paixão humana: o período oitocentista (Martin, 1994: 155). Reisz encaixa o filme heritage num filme sobre a filmagem de um filme heritage, fazendo do retorno à herança cultural do passado uma escolha artística consciente e significativa. A mise en scène de The French Lieutenant’s Woman não visa apresentar o passado como realidade, citando, por meio da auto-referencialidade visual, os meios disponíveis para o re(-a)presentar. Ainda que se aventure pelo período vitoriano, o cineasta demonstra consciência da sua incapacidade em recriar o passado. Ao negar a promoção de uma imagem idílica – e, portanto, falsa – do passado enquanto realidade histórica, aponta para um modo diferente de olhar para aquele tempo. No final duplo do filme, Sarah e Charles remam num lago calmo em direcção a um futuro pacífico e feliz, enquanto os amantes modernos se separam. Como escreve Simonetti (1996), …while the Victorian plot features an idyllic, fairy-tale and worthy of “movies”, the modern plot ends with the breakup of Mike and Anna’s affair. (Simonetti, 1996: 303)

O final feliz da intriga vitoriana contrasta com a relação falhada de Anna e Mike, apresentando a primeira como mais desejável, apesar de aí se defrontarem a opressão da época vitoriana e a maior liberdade da época actual. Nesta perspectiva, a autonomia, vazia de responsabilidade, tem o poder de abafar o desejo, ao passo que a paixão e a profundidade de sentimentos do casal vitoriano estão ausentes no casal contemporâneo. Afigura-se-nos aqui um ponto de contacto determinante com o filme heritage: a convicção de que o mundo do passado, não obstante as suas angústias, era um mundo mais verdadeiro e menos superficial. Pinter retrata o que interpreta como a pobreza da experiência moderna através de excertos como este:

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MIKE. Stay tonight. ANNA. I can’t. MIKE. Why not? You’re a free woman. ANNA. Yes. I am. MIKE. I’m going mad. ANNA. No you’re not. She leans through the window and kisses him. MIKE (intensely). I want you so much. ANNA (with mock gravity). But you’ve just had me. In Exeter. (Pinter, 1981: 73-74)

Segundo Whall (1982), a promiscuidade vazia e fútil de Anna é desoladora em contraponto com a paixão e seriedade das relações vitorianas, resultantes das proibições sociais e morais desse tempo (Whall, 1982: 79). De acordo com este argumento, poderíamos afirmar que o filme trata a provação de um actor que saboreia uma maneira mais completa e profunda de amar e, portanto, de viver, consciente de que o mundo que possibilitava esta forma de amar já não existe. A personagem e o actor proporcionam, portanto, imagens contrárias: tal como Charles deseja uma mulher do futuro, Mike deseja uma mulher do passado. Neste sentido, o filme enquadrar-se-ia na categoria do filme heritage. Contudo, não será uma armadilha pós-modernista defender que o argumento do filme reside na ausência de objectivos e sentido da existência moderna? Para Martin (1994), uma das qualidades do filme reside em captar a transitoriedade histórica da fonte literária. Tal como o romance, a adaptação cinematográfica expõe a desadequação de um pensamento binário que privilegia os valores, comportamentos e estruturas narrativas de uma época em desfavor de outra (Martin, 1994: 156). Neste sentido, escreve Gross (1978) a propósito do texto de Fowles, … the past is not dead; it still contains unfinished possibilities which can be liberated and actualized at some unspecified point in the future. It is up to the present generation to salvage what remains from history before it is lost irretrievably. The way to do this is neither to pine for a return to some earlier historical epoch, nor to live unthinkingly in the present age. The

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only satisfactory solution for Fowles is to establish a creative, dialectical relationship with the past, allowing its greater human qualities to fructify in our imagination and lead us forward toward a better future. (Gross, 1978: 26-27)

Como explicar uma deterioração da qualidade dos sentimentos (ou até o seu desaparecimento) do passado vitoriano para o presente à luz desta concepção progressista de história? Como conciliar passados idílicos com a crença num futuro melhor, só possível quando se revive o passado? Residirá a felicidade, no presente e no futuro, em recontos do passado? No filme de Reisz, os amantes vitorianos podem até ser mais apaixonados, eloquentes e responsáveis do que os seus correspondentes modernos, mas, em parte devido à paródia do filme interior, a sua ficcionalidade não deixa de ser exibida e o seu valor representacional subvertido. Parece-nos que, num universo ficcional governado pela justaposição de duas metades, vitoriana e contemporânea, a desestabilização da parte vitoriana resulta na desintegração do binómio do qual depende a apreciação da parte moderna. Consequentemente, os amantes modernos não são o negativo dos vitorianos – são apenas indivíduos diferentes e, em última análise, caracterizáveis apenas pela sua situação específica e contingente. Tal entendimento da película como uma sala de espelhos é defendida por Sadoff e Kucich (2000) nas palavras seguintes: John Fowles’s The French Lieutenant’s Woman (as well as Karel Reisz’s 1981 film version…) has figured our contemporary contemplation of Victorian sex as a dizzying hall of mirrors, in which it seems impossible to decide whether Victorian sexuality lies behind us in the dust, or whether, in their passionate struggles with sexual repression, the Victorians were somehow the harbingers of sexual self-realization. (Sodoff and Kucich, 2000: xviii-xix)

Contrariando leituras como a de Simonetti (1996), que detecta no filme um conjunto de oposições temáticas – convenções vitorianas rígidas versus comportamento sexual contemporâneo negligente e descuidado; vida bucólica e vagarosa versus estilo agitado e urbano; união feliz versus separação triste; personagens de filmes versus actores reais; e mundo idílico da ficção versus realidade

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crua (Simonetti, 1996: 304) –, este texto cinematográfico contesta generalismos, baseados em oposições binárias, sobre personagens e mundos ficcionais (Martin, 1994: 157). Na verdade, ao interpretarmos o filme como indiciando nostalgia por um passado vitoriano, corremos o risco de cair na «armadilha pós-modernista» ao esquecer que o pós-modernismo is rather like saying something whilst at the same time putting inverted commas around what is being said (Roberts, 1993: 1). Detecta-se na obra o contestar de estereótipos conservadores, ao propor um entendimento de classe e género como representação, em particular através da figura de Sarah Woodruff. Para além disso, o filme questiona valores geralmente associados a políticas conservadoras ao desviar o enfoque das questões económicas para as preocupações de tipo cultural. Com efeito, a iconografia ligada ao progresso do conhecimento científico abunda na adaptação de Reisz, o que também se verificará na de LaBute. Charles rejeita o caminho profissional sugerido por Mr Freeman e, como Randolph Henry Ash, dedica-se à investigação científica sob a influência de The Origin of the Species (1859) de Darwin. No texto de Fowles, quando o protagonista recusa juntar-se ao Partido Conservador para se entregar a estudos de paleontologia, é severamente condenado pelo tio: His uncle viewed the sight of Charles marching out of Winsyatt armed with his wedge hammers and his collecting sack with disfavour; to his mind the only proper object for a gentleman to carry in the country was a riding crop, or a gun; but at least it was an improvement on the damned books in the damned library. (FLW, 16)

Concluímos então que The French Lieutenant’s Woman faz autoconscientemente parte da indústria do património, mais do corresponder a um filme heritage, na medida em que rompe com a mera celebração de um passado nostálgico ao criticar, de uma forma mais ou menos explícita, o período oitocentista.

3. Visões do século XIX em Possession de A. S. Byatt e Neil LaBute

Na presente secção, centraremos a atenção na dinâmica de representação dos factos culturais vitorianos no texto literário Possession: A Romance de A. S. Byatt. Para estudar a interacção entre a história e a literatura, baseámo-nos em contributos críticos que procuraram, por um lado, superar a quimera da verdade objectiva de certa tradição historiográfica, e por outro, valorizar os elementos narrativos no fazer da história. Veremos, ainda, como o texto de Byatt problematiza e reescreve o feminino, ilustrando a caracterização que Amy Elias (2001) faz do romance meta-histórico: Through metahistorical romance… novelists often problematically attempt to voice the Other that their own national histories have demonized and rendered historically silent. (Elias, 2001: 222)

Após analisarmos o modo como a obra revisita temáticas oitocentistas, abordaremos a forma como a adaptação de LaBute, depois do êxito alcançado pela obra literária, apresenta aqueles temas. Pretendemos demonstrar que o filme não acrescenta perspectivas renovadas à visão do romance, fazendo parte de uma tendência revivalista contemporânea de que é exemplo a apetência por produtos retro e vintage. Com aquele propósito em mente, propomo-nos explorar a tensão existente no filme de LaBute entre o passado enquanto momento estático e enquanto continuidade narrativa. Para tal, será forçoso examinar a temporalidade fílmica que situa o passado, simultaneamente, num momento fotográfico mais que perfeito e no devir que chega ao presente. Especificamente, procuraremos avaliar se Possession, o filme, consegue, de

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facto, construir uma ligação reflexiva entre a narrativa do presente e a do passado, como se verifica no romance de Byatt e no filme de Reisz. Num âmbito interrelacionado de análise, pretendemos investigar como são negociados os papéis de género e qual a relação entre a adaptação e o cinema heritage.

3.1 Possession: A Romance e o resgate dos vitorianos 3.1.1 A leitura alternativa do passado e a articulação de sentidos Ao longo da sua carreira, tanto literária como académica, Byatt tem dedicado a sua atenção ao passado e aos sentidos que dele derivamos. Tais preocupações emergem claramente na sua ficção dita neovitoriana, constituída por obras em que uma parte substancial do enredo se situa na última metade do século XIX. Apesar de a autora ter escrito outros textos neovitorianos, como Angels and Insects: Two Novellas (1992), Possession: A Romance interessa-nos em particular não só pelos paralelos óbvios que estabelece com The French Lieutetnant’s Woman, mas também por ser um texto que explora os desejos de possuir o passado que são, até certo ponto, instigadores da cultura do património. Byatt recorre a uma estratégia narrativa de construção de um mundo: a do romance por oposição a novel, submetendo o gosto metatextual e meta-histórico da década de 1980 à estrutura de um romance vitoriano (Jukic, 2000: 83). Tanto formal como tematicamente, o romance evidencia a natureza problemática do relacionamento entre o presente e o passado, abrindo uma perspectiva de análise da memória histórica resgatada pelo texto literário. Na esteira do pós-modernismo, a autora decompõe as reconstruções históricas do passado apresentadas no seu romance, mas, em última análise, não se mostra irredutível na condenação daquele simulacro. Desse modo, o texto tanto poderá ser interpretado como uma homenagem ao passado ou como uma apologia do presente, ao denunciar a convicção de que alguma verdade pode advir, na actualidade, de um leitura apropriada do passado.

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Assim sendo, embora demonstre consciência dos processos pelos quais a história pode ser transmutada pela subjectividade e pelo relativismo, a autora adianta que o passado pode ser reconstruído através do seu entendimento empático. Possession afirma a possibilidade de serem criadas narrativas plausíveis sobre o passado de duas formas fundamentais: ao apoiar a poesia ventriloquista de Randolph Ash, poeta vitoriano, e ao privilegiar o enredo construído pelos investigadores contemporâneos, Roland Michell e Maud Bailey, baseado na relação entre os poetas vitorianos Ash e Christabel LaMotte. Cientes de que designações como romance pós-modernista resultam em imposições críticas ou formas didácticas de canonização dos textos que em devido tempo foi necessário executar, comecemos por examinar a utilização dos paratextos e a metaficcionalização da história no romance, características que permitem configurar este romance como um projecto pós-modernista. À semelhança de The French Lieutenant’s Woman, a obra realça a textualidade da representação histórica ao utilizar textos anteriores – ou que o aparentam ser – de um modo típico do pós-modernismo. Está povoada de oitocentismos e muitos dos excertos aludem a fontes críticas e literárias como Donne, Shakespeare, Wordsworth, Coleridge, Keats e até Lacan. Apresenta ainda uma heterogeneidade textual suplementar por intermédio da mistura de diferentes tipos de documentos escritos por Byatt, numa variedade de estilos, cuja autoria é atribuída a uma série de personagens do romance, tanto modernas como vitorianas, e que parecem imitar traços de obras de Christina Rossetti, Robert Browning, entre outros autores. Como argumenta Hutcheon (1989), textos como notas de rodapé, epígrafes e epílogos servem para nos recordar da narratividade – e ficcionalidade – do texto primário e para afirmar a sua factualidade e historicidade (Hutcheon, 1989: 85). Em Possession, tal como em The French Lieutenant’s Woman, o uso de paratextos – cartas, diários, poemas e contos de fadas – acaba por produzir um efeito duplo e paradoxal, investindo a narrativa de um maior grau de autenticidade e criando a ilusão de que os documentos se referem a um mundo exterior ao romance, ao mesmo tempo que realça a sua natureza mediadora, desestabilizando a ilusão de

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veracidade inicial. Note-se este efeito de encaixe sucessivo de textos no seguinte passo: Maud sat on a ledge above Roland’s pool, her long legs tucked under her, The Great Ventriloquist open on her knee. She cited Cropper citing Ash…28

Esta colagem sublinha o carácter fragmentário do enredo do romance, limitando os impulsos de compreensão teleológica. Porém, refira-se que os paratextos, e a consequente fragmentação estrutural, contribuem, em simultâneo, para a criação de uma série de correspondências e conexões que unem os vários elementos do enredo. De facto, aqueles textos são manipulados de modo a que os vários discursos se comentem e se iluminem entre si. Possession pode também ser entendido como pós-modernista em termos da sua autoconsciente reavaliação de um período histórico anterior. Ao assumir-se como um romance que projecta construções da história, alguns críticos apontaram-no como um exemplar de metaficção historiográfica29, uma vez que reflecte e questiona de forma aberta os seus processos historicizantes. Sem esquecer que não podermos aspirar a uma análise satisfatória de um romance colocando-lhe uma etiqueta conveniente, como seja a de metaficção historiográfica, das próprias palavras da autora depreendemos que o texto pretende analisar as várias formas de narrar o passado: Possession plays serious games with the variety of possible forms of narrating the past – the detective story, the biography, the mediaeval verse Romance,

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Byatt, 1991: 252. As referências subsequentes a Possession: A Romance surgirão entre parênteses no texto, citadas como P. Veja-se, por exemplo, Kelly, 1996: 78, Walsh, 2000: 187 e Burgass, 2002: 27. Também Holmes (1994) enquadra a metaficção historiográfica numa subespécie do pós-modernismo a que Possession pretence. Aquele crítico defende que o romance de Byatt segue a estipulação de Hutcheon de que o texto deve exibir uma relação paradoxal com o passado: “The paradox exists in the way that such works create the illusion of immersing the reader in independently existing historical events only to undercut that experience by exposing the processes of artifice through which the illusion is created” (Holmes, 1994: 320).

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the modern romantic story, and Hawthorne’s fantastic historical Romance in between, the campus novel, the Victorian third person narration, the epistolary novel, the forged manuscript novel, and the primitive fairy tale…30

No artigo Telling Stories: Fiction and History (1992), Hutcheon relata como a metaficção historiográfica se encontra obcecada com a questão da possibilidade de conhecer o passado (Hutcheon, 1992: 230). Para a teórica, a ficção pós-modernista não oferece versões nostálgicas do passado (e de escape ao presente), como afirma Frederic Jameson (1991)31, nem ironiza sobre este de forma simplista. Em vez disso, como argumenta, revela-o como ideológica e discursivamente construído, ao problematizar noções lineares de representação narrativa através de processos autoconscientes e metaficcionais. Se Possession é uma metaficção historiográfica, como defendem os críticos, o romance perturbará, nalgum sentido, as nossas representações do passado e do presente. É certo que a ironia e o paradoxo assinalam um distanciamento crítico no seio do mundo representacional do romance, colocando questões de uma verdade ontológica. Parece-nos, contudo, que no texto apenas o presente é objecto de desestabilização, enquanto o passado permanece uma entidade homogénea relativamente estável e, acrescentaríamos, desejável, apesar de serem apontadas circunstâncias menos positivas no período vitoriano. Em suma, Possession segue algumas técnicas ficcionais características do pós-modernismo, como o uso de para-textos e a construção de um elevado grau de autoconsciência literária para direccionar a atenção dos leitores para os processos inevitáveis de fabricação e interpretação envolvidos na reconstrução narrativa dos acontecimentos históricos. Contudo, Byatt procura enfatizar que a sua obra é não pósmodernista ao apresentar um romance vitoriano disfarçado com roupagens pós-modernas e, desta forma, persuadindo os leitores a consumir com avidez não só poesia vitoriana – ou melhor, 30 31

Byatt apud Burgass, 2002: 27. Em termos gerais, o teórico defende que o pós-modernismo assenta numa viragem nostálgica para o passado, geminada com uma negação da história, e a uma atracção pelas alusões, pela auto-referencialidade e pelo pastiche.

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simulacros de poesia vitoriana –, mas também uma mundividência oitocentista. Será Possession um texto em desacordo com o (seu próprio) pós-modernismo? Seduzida pelas características do romance vitoriano, terá a autora perdido o distanciamento crítico, enfraquecendo os efeitos desconstrutivos da autoconsciência historiográfica do romance? Não escondendo uma rejeição pessoal das tendências teóricas contemporâneas, a autora dirige duras críticas à excessiva intelectualização da nossa existência, materializada na teoria e escrita académicas, cuja superficialidade e artificialismo têm contribuído para o crescente distanciamento da literatura em relação ao «real». Neste âmbito, o romance ilustra as contendas académicas actuais centradas na inacessibilidade do passado, reforçadas pela teoria crítica. Em Possession, a história literária é apresentada como repositório de conhecimento que dotará a quem o possuir de poder sobre os outros. É-nos apresentado um retrato mordaz, por vezes humorístico, de um grupo de académicos que exibe uma panóplia de respostas relativamente ao passado, usando-o de forma interesseira. Na verdade, está aí patente o desprezo pelos carreiristas Mortimer Cropper e Fergus Wolff, conduzidos pelo seu ego, e a pena pelos servis Beatrice Nest e James Blackadder. Personagens como Wolff e Leonora Stern tornaram a verdade inacessível ao viver segundo os termos postulados pela teoria: tanto a monovalência da teoria psicanalítica lacaniana, como as leituras feministas conduzem-nos a leituras erróneas do passado. Aos críticos opõem-se os criadores, dualidade que a caracterização das personagens deixa transparecer. Se as personagens vitorianas escrevem obras originais, as personagens modernas produzem escritos «de segunda-mão», baseados nas obras oitocentistas, o que confere um sentido de preeminência na hierarquia literária aos autores do século XIX (Gutleben, 1998: 177). Os académicos encontram-se numa posição de desvantagem estética, dado que a linguagem usada pelos poetas vitorianos lhes permite sentir e expressar as suas experiências emocionais de formas não disponíveis aos críticos que os estudam. Ao privilegiar aqueles indivíduos que estabelecem uma relação respeitosa com o passado, o texto traça a evolução de Maud e Roland, nos capítulos

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doze a catorze, de profissionais ocupados consigo próprios para indivíduos que apreendem o passado através das suas capacidades poéticas e intuitivas. Em contraste com os seus antepassados, o casal de investigadores apresenta-se, a início, semiparalisado pela consciência do carácter construído, arbitrário e contingente das suas observações e conclusões. Nesta fase, o passado é abordado pelos protagonistas modernos com autoconsciência: mantêm as posturas académicas, o que lhes permite ver aquele tempo ironicamente e com uma certa condescendência. Numa visita a Bethany, a casa recuperada de Christabel e Blanche, conservam o distanciamento ao caracterizarem o edifício como um simulacrum (P, 210), a fibre-glass copy of the sphinx (P, 210) e uma postmodern quotation (P, 211). Maud acrescenta: You can just see a very Victorian fireplace in there. I can’t tell if it’s an original or a vamped-up one from a demolition lot. (P, 210- 211)

Inesperadamente, um parágrafo desconforme interrompe as suas deambulações analíticas: Out of here she had come, stepping rapidly, in a swirl of determined black skirts, lips thight with determination, hands compressed on her reticule, eyes wide with fear, with hope, wild, how? Had he come dome the road from St. Mathias’ Church, in his tall hat and his frock coat? Had she, the other, peered through her rimmed glasses from an upper window, her eyes blurring? (P, 211)

Esta ausência temporária de controlo, em que o passado irrompe pelo texto, e em que a casa se afigura perturbadora aos académicos por ser demasiado real, não textual o suficiente para quem, habitualmente, constrói o passado a partir de documentos, leva a que Roland assuma declaradamente uma perspectiva pós-moderna: “I’ve never been much interested in places – or things – with associations –”

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“Nor I. I’m a textual scholar. I rather deplore the modern feminist attitude to private lives.” “If you’re going to be stringently analytical,” Roland said, “don’t you have to?” “You can be psychoanalytic without being personal –” Maud said. Roland did not challenge her. It was he who had suggested they came to Richmond to discuss what to do next, and now they were here, the sight of the house was indeed disturbing. (P, 211)

Roland e Maud pertencem a uma theoretically knowing generation, condição que, a determinada altura, ela reconhece: We are very knowing. We know all sorts of other things, too – about how there isn’t a unitary ego – how we’re made up of conflicting, interacting systems of things – and I suppose we believe that? We know we are driven by desire, but we can’t see it as they did, can we? (P, 267)

Segundo os investigadores, os vitorianos distinguem-se deles por uma confiança e uma paixão que lhes permite amar sem inibições intelectuais, enquanto eles estão constrangidos por uma intensa fixação nas suas psiques individuais: You know what Christabel says. “Outside our small safe place flies Mystery.” I feel we’ve done away with that too – And desire, that we look into so carefully – I think all the looking-into has some very odd effects on the desire (P, 267).

Tal percepção condu-los ao desejo de uma vida liberta da autoconsciência, figurada na imagem de uma cama vazia, limpa e branca (P, 267) que reflecte a necessidade de recuperar a simplicidade e a segurança de outrora. A descoberta daquele desejo partilhado é o primeiro momento de ligação entre as duas personagens contemporâneas. Surpreendido pela semelhança dos seus anseios, Roland sugere que abandonem a pesquisa por um dia: I just want to look at something, with interest, and without layers of meaning. Something new (P, 268). Ele deseja ver o mundo como se fosse a primeira vez que o fizesse, anseia regressar a um estado puro em que os objectos

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pudessem ser despojados de significado, i.e., ser percepcionados como não contaminados por pré-apreensões do passado. O texto de Byatt sustenta a viabilidade daquele propósito na medida em que, ao libertarem-se de preconceitos teóricos, Roland e Maud revelam-se capazes de intuir e recriar as acções dos seus antepassados. Na viagem a Yorkshire, ao deixarem a sua rígida abordagem histórica, descobrem pistas que contribuem para o esclarecimento do passado. O parágrafo de abertura do capítulo quinze anuncia um renascimento, sob a forma de um olhar renovado sobre o passado: Something new, they had said. They had a perfect day for it. A day with the blue and gold good weather of anyone’s primitive childhood expectations, when the new, brief memory tells itself that this is what is, and therefore was, and therefore will be. A good day to see a new place. (P, 268; itálico nosso)

Mais do que uma ênfase na palavra new, repetida três vezes e também presente na penúltima citação que fizemos, o excerto transmite a necessidade de abarcar um mundo não corrompido pela experiência ou pela memória. Neste espírito, Roland convence Maud a soltar o cabelo (P, 271). Um dos símbolos físicos que sugere o esforço de autocontenção daquela personagem feminina é precisamente o cabelo preso que, no fundo, indicia a repressão da sensualidade ou da disponibilidade sexual. Maud entende esta resistência como um problema e recrimina-se: Why could she do nothing with ease and grace except work alone, inside these walls and curtains, her bright safe box? (P, 136-137). Quando liberta o cabelo, o narrador nota: Roland was moved – not exactly with desire, but with an obscure emotion that was partly pity, for the rigorous constriction all that mass had undergone, to be so structured into repeating patterns (P, 272).

O cabelo de Maud surge como um símbolo das vidas daqueles investigadores: presas em padrões, repetindo e reactualizando construções teóricas, até aquele momento. Os dois protagonistas modernos libertaram-se das amarras críticas e, a partir daquele

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instante, encetarão o desvendar do mistério da natureza do relacionamento de Randolph e Christabel. A metamorfose de Roland, que ocorre quase no final do romance, de crítico textual para poeta, constitui a rejeição mais explícita, por parte da escritora, das propensões (e pretensões) teóricas actuais da academia. Recordemos que, desde o início do romance, aquela personagem deseja uma continuidade entre o passado e o presente, ao inspirar-se na associação do jardim da sua casa ao poeta Andrew Marvell. No intuito de valorizar a casa, entre outros pormenores de interesse histórico explorados pela senhoria, é-lhe dito que, no século XVII, o muro do edifício formava uma das fronteiras da propriedade do General Fairfax, o mecenas de Marvell: The garden was … forbidden. But they did not know that in the beginning, as Mrs Irving expatiated ... on the high brick wall which dated from the Civil War, and earlier still, which had formed one boundary of General Fairfax’s lands when Putney was a separate village, when Cromwell’s Trained Bands assembled there, when the Putney Debates on liberty of conscience were held in St Mary’s Church on the bridge. Randolph Henry Ash had written a poem purporting to be spoken by a Digger in Putney. He had even come there to look at the river in low tide, it was in Ellen Ash’s journal, they had brought a picnic of chicken and parsley pie. That fact, and the conjunction of Marvell’s patron, Fairfax, with the existence of the walled garden of fruit and flowers were enough to tempt Roland and Val into the garden flat, with its prohibited view. (P, 17-18)

Com efeito, o principal interesse de Roland no jardim, a que lhe é negado acesso e onde anseia entrar, é a ligação que aquele representa com o passado e que também lhe é recusada a princípio (Holmes, 1994: 329). Através desta situação, Byatt deixa transparecer um desejo de recuperar aquilo que percepciona como a vitalidade e a segurança do período vitoriano, e se não do período em si próprio, então pelo menos de um continuum com o passado que entende ameaçado. A missão declarada de resgatar os seus antecessores literários permeia os textos críticos e literários da escritora. De modo

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intransigente, deseja contrariar quaisquer sentimentos de superioridade que possamos sentir em relação aos nossos predecessores vitorianos e que conduzam a um afastamento deste conhecimento potencial. Neste sentido, Possession, ao tentar recriar um período de alguma estabilidade, testemunha a possibilidade, no mundo moderno, da ordem e da coerência, porquanto deriváveis das convenções e construções vitorianas, afirmando repetidamente que temos muito a aprender com os nossos antepassados. Nos seus ensaios, a autora refere com frequência leituras ou apropriações erradas, no seu entendimento, dos vitorianos. Numa entrevista, defende-os contra os teóricos da literatura: For the Victorians, everything was part of one thing: science, religion, philosophy, economics, politics, women, fiction, poetry. They didn’t compartmentalize – they thought BIG. Ruskin went out and learned geology and archaeology, then the history of painting, then mythology, and then he thought out. Now, if you get a literary theorist, they only talk to other literary theorists about literary theory. Nothing causes them to look out!32

The French Lieutenant’s Woman, sem dúvida uma fonte de inspiração de Possession, é um alvo frequente das suas críticas, entendido como uma paródia que diminui os vitorianos: Fowles’s understanding of Victorian life and literature is crude and derived from the Bloomsbury rejection of it, which makes his technical nostalgia fascinating as a phenomenon. (Byatt, 1993: 174)

A autora reafirma a sua posição numa outra entrevista, em que revela que um dos pontos de partida para a escrita de Possession terá sido aquele retrato traçado por Fowles: … [the] technical realization that John Fowles had pulled off The French Lieutenant’s Woman, not because his knowledge of Victorian literature 32

Entrevista a Byatt, The New York Times Magazine, 26 de Maio, 1991, apud Burgass, 2002: 43.

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was vast, but because he had used a convention of illicit sexuality to make sexuality exciting again. About five years later, I had the thought that one of the reasons that sex isn’t interesting now isn’t because of the permissiveness of the novels, but because of the endless sexual analysis of everything done by theorists. So I started my satirical framework with all those things in mind.33

Byatt presta um tributo à era vitoriana, que o romance traz à vida. Recordemos que, ao visitarem a casa londrina de Christabel, Maud e Roland encontram-na com uma aparência mais renovada do que no tempo da proprietária, graças a um trabalho de restauro. Maud descreve a casa como um simulacro, uma palavra que conota artificialismo e ausência de autenticidade. A poesia «vitoriana» da autora, bem como os excertos de diários, cartas e crítica literária moderna que lemos no romance são, de certa forma, um simulacro, na medida em que são escritos para se assemelharem de perto aos originais vitorianos. Parece claro a Christian Gutleben (1998) que não assistimos em Possession à paródia da literatura vitoriana, aproximando-se a recriação desta do pastiche ao corresponder a uma síntese entre imitação lúdica e séria. Para o crítico, se certas cartas e poemas foram escritos por prazer, verifica-se uma tentativa de reprodução fiel da prosa e poesia oitocentistas (Gutleben, 1998: 169). Sendo o pastiche uma mistura de formas ou uma obra composta ao estilo de um autor conhecido, Possession é-o em ambos os sentidos. Ao servir como médium da voz vitoriana, a escritora consegue que aquela viva para o leitor num contexto ficcional, de um modo não acessível a um comentário crítico. Pretende-se uma espécie de autenticidade e não uma paródia negativa: Writing Victorian words in Victorian contexts, in a Victorian order, and in Victorian relations of one Word to the next was the only way I could think of to show one could hear the Victorian dead.34

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Tredell, Nicolas (1991) “A. S. Byatt in Conversation”, P. N. Review, 17, pág. 24, apud Flint, 1997: 298. Byatt apud Burgass, 2002: 51.

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Apesar de a autora ter criticado a concepção do período vitoriano apresentada por Fowles, The French Lieutenant’s Woman, à semelhança de Possession, levanta dúvidas ontológicas sobre o passado vitoriano ao expor o artifício das representações daquela época. Na verdade, como já observámos anteriormente, o paradoxo residirá no modo como aquelas obras criam a ilusão de submergir o leitor em acontecimentos históricos com o intuito de expor os processos construtivos através dos quais aquela experiência é criada. Para concretizar o resgate dos vitorianos e combater a sua abordagem paródica, Byatt parodia o presente, construindo um passado que é superior em todos os aspectos. A autora justapõe os dois períodos, demonstrando que as pressuposições sobre os nossos antepassados se baseiam em conhecimentos superficiais. Possession desenvolve esta ideia satirizando uma série de abordagens imperfeitas do passado, esforços que permanecerão, pela sua própria natureza, incompletos. Na verdade, as críticas pós-modernas aos vitorianos dependem em larga medida da realização de um corte que permita examinar um objecto como se este existisse descontextualizado. Esta atitude tende a eliminar qualquer consideração do que possamos partilhar com o objecto de estudo, e é precisamente esta tendência que Byatt procura contrariar através da sua ficção neovitoriana. A tomada de consciência por parte de Maud e Roland das suas insuficiências culturais e pessoais é provocada pelo contraste histórico com os objectos de estudo. Sentem-se incompletos à medida que aumenta o seu conhecimento do passado, e quando confrontados com Randolph e Christabel em particular. O narrador caracteriza o casal moderno nos seguintes termos: They were children of a time and culture which mistrusted love, “in love”, romantic love, romance in toto, and which nevertheless in revenge proliferated sexual language, linguistic sexuality, analysis, dissection, deconstruction, exposure. (P, 423)

Maud reconhece aquelas limitações: We never say the word Love, do we – we know it’s a suspect ideological

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construct – especially Romantic Love – so we have to make a real effort of imagination to know what it felt like to be them... (P, 267)

Estas palavras encontram um equivalente singular na descrição que Umberto Eco faz da atitude pós-moderna: I think of the postmodernist attitude as that of a man who loves a very cultivated woman and knows he cannot say to her, “I love you madly”, because he knows that she knows (and that she knows that he knows) that these words have already been written by Barbara Cartland. Still there is a solution. He can say, “As Barbara Cartland would put it, I love you madly.” At this point, having avoided false innocence, having said clearly that it is no longer possible to speak innocently, he still nevertheless has said what he wanted to say to the woman: that he loves her, but he loves her in an age of lost innocence. If the woman goes along with this, she will have received a declaration of love all the same. (Eco, 1992: 227)

O contraste com os vitorianos leva a que os académicos se sintam diminuídos, mas também os leva a estabelecer pontos em comum com os seus antecessores. Logo, o que começa como uma investigação coarctada pelo distanciamento académico torna-se uma procura da identidade através da identificação com os antepassados. Repare-se como uma cena inicial indica até que ponto Maud está possuída por aquilo que a correspondência entre Randolph e Christabel diz de si própria. Tendo passado o dia a ler os documentos descobertos, o narrador nota: Maud had not found Christabel an easy companion all day. She responded to threats with increasing organization. Pin, categorise, learn. (P, 136)

Parece que Maud se sente desconfortável «na presença» de Christabel porque a sua vida desestabilizada e desorganizada, as suas próprias limitações, sobressaem desta comparação. Para além dessa correspondência, Byatt estabelece uma série de outras para indicar até que ponto somos semelhantes e, em simultâneo, inferiores em relação aos antepassados vitorianos. A estrutura de alternância temporal do romance revela o domínio contínuo do passado.

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A título exemplificativo, à medida que Maud se afasta de carro da casa de Bailey imagina em silêncio Christabel cavalgando nesses mesmos caminhos. Perdidas nessas cogitações, a investigadora vê-se progressivamente desprovida de substância: This thickened forest, her own humming metal car, her prying curiosity about whatever had been Christabel’s life, seemed suddenly to be ghostly things, feeding on, living through, the young vitality of the past. (P, 136; itálico nosso)

Repare-se na inversão irónica: não é a falecida Christabel, mas sim a viva Maud que se apresenta como imaterial, sentindo-se espectral e amorfa ao confrontar-se com a vitalidade do passado. Parece-nos claro, neste momento, que o que se assemelha a uma manifestação do desejo pela simplicidade, pela cama branca e imaculada, corresponde, de facto, a um anseio por alguma experiência apaixonante e significativa que ajude Maud a trazer-se à vida. O exemplo de Randolph e Christabel desperta este desassossego não só nela, mas também em Roland, na medida em que o casal percepciona até que ponto as suas existências foram empobrecidas pelas estéreis e niilistas demandas pós-modernas. No processo de se compararem com os seus correspondentes oitocentistas, os protagonistas do século XX confirmam a impressão de que a sua própria cultura, apesar dos progressos aparentes, tem na verdade regredido a um estado de cepticismo inibidor da curiosidade intelectual e das relações interpessoais. Segundo esta visão, o mundo actual corresponde a pouco mais do que resquícios decadentes do mundo vitoriano, restando-lhe apenas repetir as histórias já contadas. É nesta perspectiva que a personagem contemporânea central se definia como um latecomer, alguém que já tinha chegado tarde (P, 10). Parece-nos que a imagem do período vitoriano se afigura em Possession mais estável e sólida do que o correspondente moderno por três razões. Em primeiro lugar, as personagens vitorianas do romance são capazes de expressar os seus pensamentos e sentimentos sem as restrições provocadas pela dúvida moderna. Em segundo lugar, Byatt cria um mundo textual que se corrobora a si

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próprio: como vimos anteriormente, os diversos paratextos criam frequentemente ligações entre si e a interacção dos textos vitorianos contribui para a ideia de um mundo mais coerentemente unido e menos fragmentado do que o contemporâneo. Por último, os vitorianos defendem ideias tratadas com mais empatia pela autora do que as transmitidas pelos correspondentes contemporâneos. Como escreve Frederick Holmes (1994), se é verdade que o pós-modernismo da escritora torna irónico o seu tratamento das convenções oitocentistas, também é verdade que a temática vitoriana é empregue como uma crítica da condição pós-moderna (Holmes, 1994: 324). A nosso ver, o texto não só resgata o passado como também privilegia um passado particular. Qual será o estatuto dos esforços de Byatt no sentido da recuperação da era vitoriana? Nascem estes de um desejo de escape, de um deleite nostálgico – motivações apontadas pelos detractores da cultura do património –, ou serão um meio de descobrir realidades significativas? Desde logo, detectamos em Possession uma homenagem prestada à tradição oitocentista, ponto comum às obras de Fowles e Byatt, na medida em que as citações de textos vitorianos constituem marcas de deferência. O romance de Byatt transmite-nos a convicção de que os vitorianos levavam vidas interiores mais intensas e autênticas, nem que seja por não se encontrarem paralisados por um excesso de cepticismo. Verifica-se um anseio por um retorno àquela vida mais repleta de certezas, mais interessante e misteriosa, que encontra expressão nos desejos dos protagonistas actuais. Aparentemente, isto corresponderá a uma forma de nostalgia. Lynn Wells (2002) afirma que Byatt favorece ostensivamente uma concepção idealizada da Inglaterra do século XIX (Wells, 2002: 669). Seguindo este raciocínio, Holmes (1994) nota que a metamorfose de Roland é «problemática» por não se justificar em termos racionais, parecendo marcar uma capitulação final a um impulso nostálgico no romance, seguindo a tendência que representa o século XIX como estimulante por oposição a um presente desolador (Holmes, 1994: 330). Ainda que Byatt pretenda recuperar o passado vitoriano, parece-nos não propor uma representação ingénua deste, não procurando que a imagem do século XX no romance se limite a uma repetição

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pálida de um passado glorioso que as personagens – e os leitores – desejam nostalgicamente (Wells, 2002, 670). Qualquer argumento que defenda que Possession apresenta consistentemente o século XIX como superior ao século XX descura o facto de que, em última análise, as personagens vitorianas acabam por ser menos bem sucedidas do que as modernas. A escritora sublinha as limitações da visão vitoriana, representando, por exemplo, os malefícios da repressão sexual vitoriana no tormento vivido por Ellen aquando da sua lua-de-mel (P, 458-459). Randolph passa os últimos dias da sua vida privado de qualquer ligação ao seu verdadeiro amor, Christabel, por influência de uma sociedade que lhe relembra o dever de ficar com a esposa. Enquanto isso, também a sua amada sofre, forçada a ter um filho fora do casamento num meio puritano. Em contraste com um mundo vitoriano injusto, as personagens do século XX falham ou triunfam de acordo com os seus méritos (Wells, 2002: 671). O texto mostra a semelhança essencial entre as inquietações de fin-de-siècle e as da época vitoriana. Com o propósito de estabelecer um padrão de similitude, Byatt arquitecta um conjunto numeroso de correspondências entre os enredos, que demonstram uma continuidade entre as preocupações modernas e as expressas por Randolph e Christabel. Baseando-se nestas evidências, Thelma Shinn (1995) designa Possession como uma meronymic novel, já que contrabalança dois tempos. Assim sendo, a interpretação do romance depende do reconhecimento, por parte do leitor, de ligações entre o bygone time e o present time, expressões que se encontram no excerto do prefácio a The House of the Seven Gables (1851) de Hawthorne, que serve de primeira epígrafe ao romance. Roland revela consciência daquele nexo quando diz a Maud: I mean of course everything connects and connects – all the time – and I suppose one studies – I study – literature because all these connections seem both endlessly exciting and then in some sense dangerously powerful – as though we held a clue to the true nature of things? (P, 253)

Como podemos depreender destas palavras, no romance assoma a ideia da história que se repete, particularmente através

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da continuidade existente entre as acções e personalidades das personagens modernas e as das suas correspondentes vitorianas. As referências temporais e espaciais que se cruzam no romance servem, no fundo, para esbater as fronteiras entre passado e presente. Por exemplo, Maud compra um alfinete de peito para Leonora Stern, em muito semelhante àquele que Christabel adquiriu para Blanche. Tendo em conta que Leonora se insinuou junto de Maud, esta conexão pode (ou não) ajudar a clarificar se as referidas mulheres vitorianas manteriam uma relação lésbica. É entre as relações Maud-Roland e Christabel-Randolph que as ligações mais fortes se estabelecem. Como já foi referido, a empatia que os dois investigadores sentem pelos seus objectos de estudo acaba por conduzir ao abandono das perspectivas pós-modernistas e, em consequência, a uma abordagem mais empática do passado. Claramente, Maud e Roland têm muito em comum com Christabel e Randolph, o que lhes permite descrever saltos imaginativos na reconstrução das vidas passadas. Os investigadores seguem o rasto dos amantes vitorianos sem estarem completamente conscientes do grau de correspondência entre as suas experiências. Sensivelmente a meio do romance, as linhas do enredo convergem e as vidas dos protagonistas acabam por se imitar; no fundo, o passado penetra o presente. Nos capítulos treze a quinze, o par contemporâneo tenta, ironicamente e em vão, fazer algo afastado dos seus objectos de estudo. Todavia, os paralelos entre os casais são reforçados através das suas acções e da imagética do romance. O facto de o enredo vitoriano estar enquadrado no seu correspondente moderno legitima o primeiro. O passado impulsiona as personagens modernas para a acção, provocando-lhes desejos que estas nem sequer sabiam possuir. O texto procura criar um sentido de continuidade entre o passado e o presente, sugerindo a hipótese de ambos os casais estarem, de facto, a ser conduzidos por um mesmo enredo, recorrente ao longo da história. A evolução do relacionamento amoroso dos protagonistas contemporâneos é conduzida pela sua demanda literária ao ponto de se sentirem assombrados, como se as suas acções fossem determinadas por vidas passadas. Logo no início da sua investigação, Roland interroga-se se ele e Maud estarão a ser coman-

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dados por um destino que parece não ser o deles, mas sim o dos «outros»: Somewhere in the locked-away letters, Ash had referred to the plot or fate which seemed to hold or drive the dead lovers. Roland thought, partly with precise postmodernist pleasure, and partly with a real element of superstitious dread, that he and Maud were being driven by a plot or fate that seemed, at least possibly, to be not their plot or fate but that of those others. (P, 421)

The New Science de Giambattista Vico, um tratado do século XVIII sobre teoria social histórica, surge cedo no romance como a obra em cujas páginas Roland encontrara as cartas de Randolph para Christabel. As razões para esta referência inicial parecem claras: Vico interessava-se pelo poder criativo de a linguagem não só reflectir a realidade, mas também de a moldar, uma ideia importante para a eventual descoberta da vocação poética de Roland. Para além disso, o texto de Vico propõe um modelo repetitivo de história, circular e cíclico, em que cada geração reflecte as que a antecederam, tal como Roland e Maud se assemelham de forma evidente aos seus antepassados. O recurso a esta referência sublinha as inclinações neo-historicistas e pós-modernistas de Byatt, não esquecendo o pronto apoio da academia pós-moderna à teoria da história circular do historiador italiano, visto que se opunha ao conceito de progresso e da história linear (Jukic, 2000: 83). Kathleen Kelly (1996) sugere que a escritora usa Vico para invocar um modelo de história circular e repetitiva que garante a dispensabilidade de um ponto final ou de um desenlace (Kelly, 1996: 97), como demonstrado pelo post-scriptum deixado em aberto. Contudo, como nota Wells (2002), a referência àquele historiador faz mais do que proporcionar um elemento de circularidade temática e um padrão de base para o enredo, sugerindo um crivo através do qual podemos melhor interpretar o projecto complexo na base do texto, aparentemente contraditório, de Byatt (Wells, 2002: 669). O tempo linear e o tempo cíclico não se excluem por fazerem parte do mesmo fenómeno. É no romance que o equilíbrio entre as duas conceptualizações de tempo pode ser reconquistado, e é

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também aqui que a história linear pode ser reflectida num espelho que revela, da mesma forma, a sua recorrência cíclica (Shinn, 1995). Um certo desespero paralisante conduz as personagens contemporâneas ao passado na busca do conhecimento. No início do romance, Roland é descrito por Val, a sua namorada, como tendo uma obsessão por um homem morto (P, 19), o que caracteriza os interesses profissionais daquele em termos de um tempo linear que constrói o passado enquanto defunto35. A vida estagnada de Roland carece de significado até que encontra a carta de Ash, e após este acontecimento o passado regressa à vida. Byatt cria uma demanda romântica para criar um passado vivo, em vez de um passado feito de ruínas históricas. A moldura do tempo cíclico que a correspondência entre Christabel e Randolph constrói rejeita a representação de um passado extinto, proporcionando o estímulo do passado vivo que encoraja Maud e Roland a agir. Será este o património que contém o tempo cíclico, e não um conjunto de objectos e registos históricos. A possessão do passado, e a viabilidade de tal projecto, são, como o título do romance deixa antever, centrais ao romance36. No fundo, todas as personagens de Possession revelam problemas a este nível: quer sejam modernas ou vitorianas, são em primeiro lugar leitores que procuram construir um enredo, como o historiador e o detective. Também a autora se envolve na construção de uma narrativa que proporcionará ao passado um sentido e uma

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A propósito da influência do tempo linear na cultura contemporânea, escreve Slomith Rimmon-Kenan (1999): “[o]ur civilization tends to think of time as a uni-directional and irreversible flow, a sort of one-way street. Such a conception was given metaphoric shape by Heraclitus early in western history: you cannot step twice into the same river, for other waters and yet other waters go ever flowing on” (Rimmon-Kenan, 1999: 40). Também o tratamento da temporalidade no romance The French Lieutenant’s Woman quebra várias convenções literárias. Os múltiplos destinos que esperam as personagens, em conjunto com um narrador que transpõe um século para comentar a narrativa vitoriana, contribuem para o desmoronar na concepção de tempo linear. Apesar de o discurso se desenrolar de um modo linear, Fowles aproxima a noção de tempo circular ao incluir numerosos comentários anacrónicos na narrativa.

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coerência: através da ordenação de textos ficcionais, a autora revela a sua própria necessidade de dar forma ao passado, reconhecendo as dificuldades dessa tarefa. A consciência da natureza ilusória da história não a impede de compor narrativas que, para além de controlarem o passado, subvertem doutrinas dominantes37. Byatt age como uma espécie de médium entre nós e o passado vitoriano, esbatendo a fronteira entre facto, intuição e conjectura. Na realidade, o seu ventriloquismo, ao permitir-lhe comunicar através das vozes dos mortos e dos vivos, torna o passado tão acessível quanto o presente através da construção da sua própria imagem do mundo vitoriano. O romance trata alguns dos temas da teoria crítica actual, em especial o dos modos através dos quais abordamos o passado, avaliando o uso que fazemos desse conhecimento. Como já notámos, a obra apresenta uma crítica implícita às perspectivas históricas expressas pelas personagens, sendo a de Cropper a mais desprezível, a de Nest a mais comiserável e a de Maud e Roland a que se torna mais sagaz. Ao longo da narrativa, cada uma destas personagens é impulsionada por um desejo diferente de possuir o passado, nem sempre consciente, e encontra recompensa ou castigo de acordo com o mérito daquela abordagem. Tal como outras personagens, Roland e Maud estão «possuídos» pela história, no sentido em que manifestam uma curiosidade incontrolável por ela e, em resultado disso, a história parece representar-se através deles. Na relação romântica que vemos crescer, simultaneamente, entre Randolph e Christabel, e Roland e Maud, assistimos a um desejo urgente de possessão da pessoa amada, equilibrado pela necessidade de conservar a sua autopossessão e autonomia. Tal como no enredo do romance, a disponibilidade de ser possuído pelo passado é inseparável do desejo mais aquisitivo de o possuir (Connor, 1996: 148). 37

Kelly (1996) explica a abordagem de Byatt nos seguintes termos: “Byatt reveals a nostalgia for the past (however illusory) in which novels had the power to teach and to delight. At the same time, she is fully conscious of her own nostalgic desires yet holds fast to them as the only sane and ethical thing to do” (Kelly, 1996: 115).

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O romance está repleto de personagens possuídas por e que procuram possuir evidências materiais do passado. Essas personagens desejam ter em seu poder as relíquias do passado, muitas vezes infringindo normas sociais. O motivo das cartas furtadas é recorrente, desde o primeiro impulso irresistível que conduziu Roland a retirar o rascunho de uma carta de amor de Randolph de uma obra de Vico, às maquinações de Cropper para retirar da sepultura do poeta e da sua esposa a derradeira missiva da correspondência entre os poetas vitorianos. Todavia, cada usurpador é motivado por desejos pessoais de domínio sobre os artefactos do tempo que passou. Paradoxalmente, em plena era digital, estes ícones de uma herança cultural surgem no texto como detendo uma importância decisiva para a sua nação de origem. Quando é desenterrada da sepultura de Randolph uma caixa contendo os seus pertences, é dito: Professor Blackadder has a letter forbidding the export of the contents until the status as national heritage treasures has been ascertained. (P, 497)

Na sua projectada autobiografia, Cropper declara que é descendente de coleccionadores e que encara a sua casa como um museu. Neste sentido, procura açambarcar todos os artefactos ligados a Randolph Ash em nome de um fundo de solidariedade denominado Newsome Foundation, na esperança de reconstruir o passado na sua totalidade. O pesquisador adquiriu (e furtou) algumas cartas, manuscritos e objectos pessoais do poeta, que reúne num quarto selado, para o seu próprio visionamento fetichista. Fundamenta a sua missão – conjuntamente possessiva, obsessiva e neocolonial – nas seguintes palavras: I have the largest and finest collection of Randolph Henry Ash’s correspondence anywhere in the world. It is my aim to know as far as possible everything he did – everyone who mattered to him – every little preoccupation he had. These small letters [...] are not much maybe, on their own. But in the global perspective they add lustre, they add detail, they bring the whole man just that little bit more back to life. (P, 96-97)

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Apesar de revelar na sua comunicação The Art of the Biographer que é tão apegado a reproduções e simulacros quanto aos originais, guarda junto do seu peito o relógio de Randolph Ash. Catherine Burgass (2002) nota, na citação seguinte, que as duas últimas frases, não ligadas entre si gramaticalmente, revelam o desejo de Cropper ser o seu objecto de estudo – a forma definitiva de possessão (Burgass, 2002: 36): … he believed the watch had come to him, that it had been meant to come to him, that he had and held something of R.H. Ash. It ticked near his heart. He would have liked to be a poet. (P, 387)

Blackadder, editor de Randolph Ash, reconhece que a reconstrução de um passado físico é uma impossibilidade, restando conceber uma representação textual deste. Desde há cerca de um quarto de século que vem anotando, com a ajuda de numerosos alunos, a obra Complete Poems and Plays de Ash porque, ao acreditar numa reprodução textual do passado, crê que as suas notas de rodapé irão recriar o mundo em que Ash escreveu os seus poemas. As dificuldades que enfrenta, contudo, são muito semelhantes às de Cropper: apesar de ser impossível recolher todos os objectos pessoais do poeta, o projecto textual poderá ser mais completo com o acrescentar de mais um registo: The footnotes engulfed and swallowed the text. They were ugly and ungainly, but necessary, Blackadder thought, as they sprang up like the heads of Hydra, two to solve in the place of one solved. (P, 28).

Como testemunham as experiências de Cropper e Blackadder, o estudo empírico dos vestígios materiais do passado nunca o poderá reproduzir na totalidade. Do mesmo modo, Maud e Roland, na ânsia de desenterrar e reunir todos os indícios que documentem a relação amorosa entre Randolph e Christabel, revelam uma espécie de fetichização do arquivo, tornando aquele conjunto de documentos num substituto do passado (Hutcheon, 1989: 86). Aquela atitude de estrita racionalidade dos investigadores ameaça validar apenas provas particulares, oferecendo resultados fragmentados que Byatt

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e os leitores têm que rever de forma a poderem rematar a narrativa. À semelhança dos seus pares, mas também por razões diferentes que exploraremos posteriormente, Beatrice entregou a sua vida académica à edição do diário de Ellen Ash. Tal como esta, que redigiu o seu diário como a defence against, and a bait for, the gathering of ghouls and vultures (P, 462), também ela deseja proteger o passado do presente, tentando impedir que «caçadores de tesouros» como Cropper, literalmente apresentado como um vampiro roubando a campa do poeta e da sua esposa, desenterrem a intimidade daqueles que já não se podem defender (P, 498). A investigadora pretende que fique por ler a última carta de Christabel para Randolph. Porém, qual é a fronteira, se é que existe, entre a intrusão vampiresca na privacidade dos mortos e as necessidades da crítica e da história? Leonora dedicou a sua carreira universitária a estudar o trabalho de Christabel num contexto feminista. Através deste estudo, a investigadora dirigiu o seu foco de análise para aspectos parcelares da escrita da poeta, o que inviabilizou outras interpretações. Parece-nos, inclusivamente, que alguma da crítica mais aguçada de Byatt tem como objecto esta personagem já que a obsessão com a problemática sexual tinge a sua leitura do passado38. É pertinente a existência de diferenças de género no que respeita à abordagem do passado. As personagens masculinas exibem uma atitude agressiva e possessiva em relação aos documentos históricos. Verificamos que Blackadder e Cropper ocuparam grande parte do seu tempo a disputar a posse de relíquias várias e que as notas de rodapé do primeiro, dedicadas às suas interpretações dos excertos documentais, proliferam e ameaçam devorar as fontes. De modo diverso, as investigadoras femininas demonstram uma maior vontade de compartilhar qualquer informação que tivessem recolhido. Tanto Beatrice como Leonora mostram-se disponíveis para partilhar as suas descobertas, tendo a última desenvolvido um esforço concertado de colaboração com Maud. Visto que a descoberta por Leonora do diário de Sabine de Kercoz, prima de 38

Não nos parece ser acidental Byatt ter conferido nacionalidade norte-americana às duas personagens mais agressivas do romance, Cropper e Stern.

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Christabel e em casa de quem esta permaneceu durante a gravidez, proporciona a pista vital para a resolução do mistério, depreende-se que o texto recompensa o espírito colaborativo, atribuído às mulheres. Ao longo do romance, é assinalada de diversas formas a inevitável parcialidade da abordagem historiográfica baseada no processo de selecção empregue pelo historiador. Apesar de as várias personagens estarem conscientes de que as suas interpretações podem não ser mais do que aproximações, permanecem comprometidas com o presente e alimentam a convicção de que as suas reconstruções contêm o cerne da verdade histórica. Como vimos, a ficção histórica pós-modernista utiliza a textualização para expor a contingência dos documentos históricos e a parcialidade do conhecimento histórico. Possession lembra-nos que as histórias não dependem exclusivamente, nem sequer em primeiro lugar, daquilo que aconteceu, mas sim daquilo que foi registado e daquilo que motivou os seus autores. A fragilidade inerente ao conhecimento histórico evidencia-se quando os dois críticos literários Maud e Bailey descobrem novas fontes que alteram a perspectiva sobre as vidas e o trabalho dos poetas vitorianos. Um exemplo análogo do reconhecimento da possibilidade de erro na reconstituição do passado ocorre quando Maud atribui a mecha de cabelo no relógio de bolso de Randolph a Christabel, quando de facto é de Maia, filha dos poetas. Os discursos históricos perdem a fiabilidade quando os documentos se extraviam: recordemo-nos da ocasião em que a carta de Christabel para Randolph que esclarecia o destino da sua filha é suprimida por Ellen (P, 460). O exposto torna insustentável a visão da história enquanto um registo completo, uno, objectivo e transparente do passado. O romance questiona, até ao final, a possibilidade de as fontes nos transmitirem a história completa. Após um desenlace em que, aparentemente, a verdade dos factos é restaurada, surge um post-scriptum onde, pela mão de um narrador omnisciente, o leitor descobre um facto desconhecido pelos investigadores e que desvenda um final diferente para a história. O epílogo é um retorno ao passado vitoriano, em que Randolph e a sua filha ilegítima se encontram. Porque é um episódio das vidas das figuras vitorianas,

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inacessível aos investigadores que pensam que Ash nunca teria tido conhecimento da sua filha com Christabel, reforça-se a consciência do leitor relativamente às limitações de qualquer tentativa de apreender e recriar o passado, sugerindo que o acesso à história é sempre incompleto (Jukic, 2000: 84). Com efeito, a escritora recorda-nos a natureza provisória do conhecimento histórico ao criar um acesso imaginativo a uma verdade ficcional. O referido acontecimento torna-se ainda mais intenso ao desconstruir a totalidade e a coerência da história, como nota o narrador: There are things which happen and leave no discernible trace, are not spoken or written of, though it would be very wrong to say that subsequent events go on indifferently, all the same, as though such things had never been. (P, 508)

À semelhança de Fowles em The French Lieutenant’s Woman, Byatt, através da interferência autoral, transmite aos leitores a informação necessária para que possam avaliar a plausibilidade de cada reconstrução histórica. A necessidade de interpretar torna-se, portanto, reduzida, dado que a história reconstruída por Maud e Roland é apresentada, se exceptuarmos certos pormenores, como a que mais se aproxima da verdade. Recordemos a justificação de Roland para ter tirado as cartas, afirmando que elas estavam «vivas» (P, 50). Ele sente que as cartas eram suas (P, 22) e quer possuir o conhecimento prometido por estas não só pela informação nelas contida, mas, acima de tudo, pela emoção «viva» patente nas emendas ao rascunho de uma carta de amor. A expressão mutável do amor «vivo» de Randolph é captada no processo, em vez de sob a forma do produto final que acabará por ler mais tarde e que fornece material para registos históricos. Por outro lado, Cropper deseja apenas a relíquia que outrora pertencera ao poeta, uma evidência física a juntar à sua colecção. Assim, o que distingue a demanda dos protagonistas contemporâneos da dos seus pares é a percepção do passado como algo vivo, que ainda respira nos dias de hoje, e esta diferença permite-lhes resolver o mistério. À primeira vista, o romance encerra uma sobreposição de duas intrigas: temos a intriga dos académicos conscientes de esta-

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rem paralisados pela sua autoconsciência e a intriga do amor que ultrapassa a adversidade. Contudo, parece-nos que o romance também integra, em simultâneo, os enredos da ausência de totalidade histórica e o da possibilidade da referida totalidade. Byatt atesta, através das suas personagens, que o passado nunca pode ser conhecido na sua inteireza; todavia, apresenta uma segunda intriga, apenas acessível aos leitores, na qual a história é apresentada como uma entidade coerente e compreensível. Como tal, não partilhamos o entendimento de Holmes (1994), para quem a escritora acredita que a posse do passado é impossível, dado que a alteridade do passado não pode ser erradicada (Holmes, 1994: 330). As diversas interpretações dos académicos ilustram uma relação problemática com o passado. Mesmo que o leitor seja incitado a comparar os mundos dos enredos moderno e vitoriano, são ténues as linhas que demarcam os dois períodos. A teia complexa das correspondências no texto não permite separá-los nem uni-los completamente, de modo que a descontinuidade é tão impossível de atingir quanto uma forma integrada. Em vez de desenterrar os segmentos vitorianos que se prestam a paralelismos com o nosso tempo, como fez Fowles, Byatt tentou criar um mundo vitoriano ficcional que nos dirá mais sobre a sua essência ontológica (e sobre os nossos problemas ontológicos) do que quaisquer vestígios desenterrados e pretensos documentos «factuais» (Jukic, 2000: 85). No romance, o passado não nos é apresentado como realmente foi, mas sim como um período vitoriano duplamente construído, se considerarmos que os documentos sobre o passado, no fundo, os indícios textuais usados para fabricar o enredo vitoriano, foram concebidos por Byatt. A autora não só pretende falar do passado, mas também pelo passado. Na demanda do conhecimento do passado através da ficção, Possession evoca os paradoxos implícitos na fusão entre a literatura e a historiografia. O título do romance, por exemplo, é lido muitas vezes de modo irónico e os críticos entendem a obra como uma exortação dirigida àqueles que crêem poder possuir o passado39. De forma diversa, parece-nos que o subtítulo e as epígrafes validam uma concepção romântica do 39

C.f. Holmes, 1994: 319.

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passado, na qual um quadro completo da era vitoriana pode ser apreendido. Se a epígrafe de Hawthorne estabelece, como vimos, a vontade de possuir os dois tempos, a de Browning, retirada do poema Mr Sludge, “The Medium”, determina que estes serão expressos nas linguagens complementares da poesia e prosa. Para além disso, é transmitida a convicção de que um escritor de ficção é capaz de captar mais verdade na ficção do que um historiador numa narrativa objectiva de factos: But why do I mount to poets? Take plain prose – Dealers in common sense, set these at work, What can they do without their helpful lies? Each states the law and fact and face o’ the thing Just as he’d have them, finds that he thinks fit, Is blind to what missuits him, just records What makes his case out, quite ignores the rest. (epígrafe de P, s.p.)

O discurso não-ficcional, que pretende descrever a realidade objectivamente, é mostrado como um artifício, à semelhança da narrativa romântica. Para além disto, cada observador poderá definir cada realidade de modo diferente, enquanto demonstração do seu posicionamento. Browning questiona a construção de qualquer narrativa e interroga até que ponto poderemos defender a veracidade de uma forma de discurso em relação a outra: “How did you contrive to grasp The thread which led you through this labyrinth? How build such solid fabric out of air? How on so slight foundation found this tale, Biography, narrative?” or, in other words, “How many lies did it require to make The portly truth you here present us with?” (epígrafe de P, s.p.)

O médium Sludge usa todos os meios para fazer a sua audiência acreditar no passado que ele imagina e evoca. Como o passado nunca pode ser totalmente conhecido, o método de misturar ficção e factos é tão aceitável como qualquer outro, desde que o resultado

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final seja uma verdade plausível em que estejamos dispostos a acreditar. Este uso da prosa para justificar a nossa própria perspectiva é exemplificado no modo como cada investigador em Possession oferece uma interpretação diferente de um passado partilhado. Com efeito, a distinção dicotómica entre facto e ficção não pode ser facilmente mantida quando se trata de escrever sobre aspectos da realidade situados no passado. Aquilo a que os historiadores chamam de passado é, de facto, e nunca deixou de o ser, uma construção elaborada pela própria escrita. É irónico assinalar como o romance associa a expressão ventríloqua do passado às suas próprias invenções históricas: como Browning, Randolph tenta na sua poesia imitar e assimilar as vozes de outras culturas e períodos. A atenção do romance a esta ironia na sua própria estrutura é assinalada pelo excerto de Mr Sludge. O médium fraudulento defende o uso da impostura por esta se assemelhar ao tipo de invenção da história que, na poesia, é aprovado convencionalmente: It’s a History of the World, the Lizard Age, The Early Indians, the Old Country War, Jerome Napoleon, whatsoever you please. All as the author wants it. Such a scribe You pay and praise for putting life in stones, Fire into fog, making the past your world. (epígrafe de P, s.p.)

Segundo Connor (1996), o romance socorre-se do argumento de Sludge, mas de uma forma inversa, porque aqui a ficção é justificada por constituir uma espécie de médium que permite dar voz ao passado (Connor, 1996: 149). Possession será, de acordo com a sua interpretação, um caso híbrido, suspenso entre a ficção histórica e a ficção historicizada (historicised fiction), isto é, entre a ficção sobre a história e a ficção sobre a «construção de uma história historicamente relativa» (Connor, 1996: 142-143). A estrutura do romance conduz o enredo em direcção a uma redenção no presente do amor que foi frustrado no passado, unindo as duas dimensões temporais. Assim sendo, a relação de Maud e Roland remata a ligação de Christabel e Randolph, pelo que o passado é redimido e retomado através deles.

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A experiência de ler Possession afigura-se-nos paradoxal: podemos saber racionalmente que uma transcrição completa do passado constitui uma impossibilidade, mas o romance deixa-nos sentir que a plenitude do passado pode ser conhecida através de uma mistura de facto e ficção e de um uso empático da imaginação histórica. A autora acredita que aqueles dotados da capacidade de sentir e de revelar empatia podem decifrar indícios e possuir o passado. Por outras palavras, a ausência desta conexão poética torna o passado inacessível, daí que indivíduos como Cropper e Wolff nunca se liguem verdadeiramente ao mundo vitoriano. Byatt joga com as distinções entre os vários discursos, desprezando a noção de que uma determinada forma de narrativa pode ser a mais adequada no decifrar dos mistérios do passado. A confusão entre facto e ficção na ficção neovitoriana da escritora indica até que ponto ela acredita que a verdade pode ser atingida por outras vias que não a historiográfica. De facto, a literatura pode proporcionar meios alternativos para aceder a verdades importantes sobre o passado. Portanto, se o romance questiona a veracidade e a verificabilidade do conhecimento histórico, também assevera que alguma ordem pode ser imposta sobre o caos do passado, prioritariamente através da narrativa. Esta reconstrução textual da sociedade vitoriana corresponde a uma tentativa de Byatt de manter o passado vivo e de serenar, tanto quanto possível, as ansiedades sobre o presente pós-moderno. Pelo que foi dito, a história pode ser narrativizada de modo a lhe dar significado para o presente. Visto que o passado em Possession é reconstruído a partir de indícios textuais, a competência fundamental de um leitor-historiador eficiente residirá na capacidade de decifrar e configurar esses indícios numa narrativa que produza significado actual.

3.1.2 A problematização do feminino O estatuto da mulher, tanto na época vitoriana quanto nos actuais círculos académicos, consolida o elo temático entre enredos. Alguns indícios iniciais criam uma relação intertextual entre o feminismo e o romance: a heroína Maud é identificada como

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uma feminista e The Fairy Melusina, a obra mais valorizada de Christabel, é descrita como um texto pelo qual «as feministas estão loucas» (P, 33). No período contemporâneo, Beatrice descreve as discriminações de que fora vítima enquanto jovem docente universitária. Queria escrever a sua tese de doutoramento sobre Randolph Ash, mas foi dissuadida de o fazer pelo seu orientador que lhe sugeriu, em vez deste projecto, que comparasse as qualidades conjugais da esposa de Ash, Ellen, com as de Jane Carlyle, Lady Tennyson e Mrs Humphry Ward, um tópico «mais adequado para uma mulher» (P, 115). Depois de doutorada, tem vindo a trabalhar em exclusivo numa edição do diário de Ellen. Quando Maud lhe pede para ver esse diário, desabafa, revelando um pouco do que tem sido a sua vivência enquanto mulher investigadora: They said it would be better to – to do this task which presented itself so to speak and seemed appropriate to my – my sex – my capacities as they were thought to be, whatever they were. A good feminist in those days, Dr. Bailey, would have insisted on being allowed to work on the Ash and Embla poems.... We were dependent and excluded persons. In my early days – indeed until the late 1960s – women were not permitted to enter the main Senior Common Room at Prince Albert College. We had our own which was small and slightly pretty. Everything was decided in the pub – everything of import – where we were not invited and did not wish to go. (P, 220-221)

Beatrice é apresentada como vítima das interpretações convencionais das diferenças entre homens e mulheres, estigmatizada num ambiente dominado pelo elemento masculino. O objectivo político lógico daquela figura deveria ter sido lutar para erradicar a desigualdade de oportunidades e lutar por direitos iguais, mas tal não sucedeu. É ridicularizada pelas investigadoras feministas que desejam ter acesso ao diário de Ellen; contudo, à sua maneira, ela é tanto uma vítima do patriarcado como as vitorianas que aquelas procuram libertar. É difícil não detectar as injustiças no relato desta investigadora, mas visto que esta nada faz para mudar a situação, não é apelativa enquanto modelo feminista, o mesmo se aplicando às feministas que a ridicularizam, por não compreenderem que

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ela é uma vítima do seu tempo. Qual a razão de esta investigadora ser caracterizada nestes termos, quando é claramente uma figura sacrificada pela injustiça do patriarcado? A resposta àquela interrogação residirá na dualidade de Possession relativamente ao tratamento do feminismo. O texto defende e critica, simultaneamente, ideais feministas porque as ambiguidades textuais do pós-modernismo permitem-lhe incluir num todo visões contraditórias, sem valorizar necessariamente uma em relação a outra. Vejamos as conclusões de Hansson, no artigo Byatt and Fowles: Postmodern Romances with Feminism (1997). Aquela autora começa por referir a ausência, nos romances pós-modernistas, de uma tomada de posição clara, o que os torna presas fáceis de suspeições de ingenuidade política por parte da crítica. Refere, por exemplo, uma recensão crítica que descreve Possession como «reaccionário no seu desprezo pelo feminismo»40, em parte porque não se distingue uma orientação política na obra e porque as próprias feministas são objecto de sátira nesta (Hansson, 1997: 30). Como um sintoma do conservantismo inerente ao romance de Byatt, a crítica tem apontado a sua enraizada ideologia heterossexual. Jackie Buxton (1996) refere a invisibilidade da lésbica Blanche, a personagem vitoriana cuja história não é contada, e o desenlace sexista, em que Roland evolui como poeta e se torna um académico bem sucedido, ao passo que Maud terá de se contentar com a descoberta da sua ligação ancestral a Christabel e Randolph, e com a possessão sexual por Roland41. Não obstante Maud ter sido anteriormente superior a Roland tanto académica como financeiramente, acaba por se tornar, em aparência, na convencional heroína de um romance. Neste texto, tal como em qualquer obra pós-modernista, a ambiguidade ideológica torna mais fácil questionar essa mesma ideologia, neste caso o feminismo. Assim, para Hansson (1997), 40

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Howe, Fanny (1991) “Love Between the Pages”, recensão crítica de Possession, Commonweal 118, 25 de Janeiro, pág. 70, apud Hansson, 1997: 30. Buxton, Jackie (1996) “’What’s Love Got To Do With It?’: Postmodernism and Possession” in English Studies in Canada, 22/2, 215-216, apud Wells, 2002: 670.

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o tema do ventriloquismo e as descrições de feministas incluídas no romance ilustram claramente como Byatt consegue criticar e corroborar, em simultâneo, aspectos do feminismo (Hansson, 1997: 30). Tanto Possession como The French Lieutenant’s Woman descrevem casos de ventriloquismo, onde os homens falam pelas mulheres e estas são remetidas ao silêncio, que podem ser lidos como ataques ao patriarcado. Apesar disso, também os projectos feministas são alvo de crítica e as tentativas ventriloquistas das feministas não são preferíveis às patriarcais. Sendo assim, o tema do ventriloquismo em Possession, tal como no romance de Fowles, opera tanto como uma crítica, como um apoio à ideia feminista (Hansson, 1997: 32). Os romances de Fowles e Byatt descrevem situações que ilustram as condições em que viviam as mulheres dos séculos XIX e XX, nomeadamente os entraves à criação artística feminina, as tentativas de formação de comunidades separatistas para mulheres, a gíria utilizada por feministas dogmáticas e a luta pela igualdade entre géneros. Apesar de descreverem uma conjuntura geral, os textos retratam as personagens femininas enquanto indivíduos e não como representantes de um género, caracterizando de modo mais favorável aquelas que, por reclamarem uma posição exterior a qualquer identidade definida pelo género, resistem a tentativas de classificação, designadamente Christabel LaMotte, Maud Bailey e Sarah Woodruff. Contra os sistemas de papéis formados pelo patriarcado ou pelo feminismo, como refere Hansson (1997), estas personagens retêm as qualidades da autonomia, do individualismo e da androginia, talvez suficientemente contraditórias e indefinidas para constituírem respostas pós-modernas (Hansson, 1997: 41). Por outro lado, temos personagens como Blanche que assina a carta de suicídio como Blanche Glover, spinster (P, 309), e não enquanto artista ou pintora, porque para ela o género é determinante na constituição da sua identidade (Hansson, 1997: 38). Gutleben (1998) observa que Possession constrói uma vontade retrospectiva de reparar estes erros, de divulgar informações deliberadamente retidas ou ignoradas (Gutleben, 1998: 173). A situação de desigualdade entre os sexos é descrita directamente pelas personagens vitorianas. Christabel escreve numa das suas cartas que grande parte do sofrimento no mundo é suportado pelas

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mulheres (P, 500) e, no tratamento dos mitos, denuncia o entendimento simplista que considera as mulheres como seres duplos, demónios ou anjos (P, 373); Ellen refere no seu diário os longos dias de prostração em quartos sombrios (P, 115); Blanche denuncia, na sua carta de suicídio, os obstáculos enfrentados por uma mulher que aspira a viver da sua arte e a coabitar com outra mulher. O sexismo vitoriano constata-se, também, na relação de Christabel e Randolph: à primeira pertencem as dúvidas, as dificuldades e os vitupérios; ao seu amante atribui-se a notoriedade, o reconhecimento e a glória. Este contraste manifesta-se no plano formal: aos longos poemas narrativos ou dramáticos, aos pentâmetros jâmbicos, às considerações filosóficas de Randolph opõem-se as formas breves, os sujeitos mitológicos ou fantásticos da poeta (Gutleben, 1998: 174). O protagonista oitocentista admite implicitamente os diferentes destinos dos sexos: Why did you turn away from me? Out of pride, out of fear, out of independence, out of sudden hatred, at the injustice of the different fates of men and women? (P, 456)

Segundo a crítica, Christabel LaMotte parece ter sido baseada em Emily Dickinson e em Christina Rossetti, enquanto exemplos do feminino na literatura, por oposição a Robert Browning que inspirou Randolph Ash, e que corresponderá ao elemento masculino42. Todavia, poderá esta classificação ser transposta de forma válida? Pretenderão os poetas representar papéis masculinos 42

Para Kelly (1996), Christabel LaMotte é um compósito de Emily Dickinson, Christina Rossetti e Elizabeth Barrett Browning, com um toque de George Eliot e das irmãs Brontë (Kelly, 1996: 80), ao passo que em Randolph Ash se denota uma mistura entre Browning e Tennyson, com partes de Wordsworth, Arnold, Morris, Ruskin e Carlyle (Kelly, 1996: 81). Christabel, como é descrita na fotografia desbotada examinada por Roland e Maud, tem algo da aparência favorecida pelos pré-rafaelitas; contudo, como alerta Burgass (2002), não deveremos levar estas correspondências demasiado longe: Byatt escolheu criar personagens ficcionais com uma existência independente de qualquer modelo histórico de forma a que tivessem vida própria (Burgass, 2002: 52).

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e femininos? Será a poesia de Christabel apresentada enquanto secundária em relação à de Ash, ou será que o trabalho de ambos se complementa? A subversão dos papéis tradicionais de género insinua-se desde logo no desenrolar da história ao mostrar como a vida e obra do grande poeta estão de facto impregnados da presença e das ideias de Christabel. Randolph, também conhecido por «O Grande Ventríloquo», acredita que é possível falar por outras pessoas, usando as suas vozes: The Historian and the Man of Science alike may be said to traffic with the dead. … I myself, with the aid of the imagination, have worked a little in that line, have ventriloquised, have lent my voice to, and mixt my life with, those past voices and lives whose resuscitation in our own lives as warnings, as examples, as the life of the past persisting in us, is the business of every thinking man and woman. (P, 104)

Para além de dar voz aos defuntos, não será ele também a voz dos vivos, ou melhor, a voz de alguém que ele abafou? O ciclo de poemas de amor que tornaram Randolph Ash famoso é, em grande parte, inspirado por LaMotte no que respeita a tema, estilo, atitude e material, o que é constatado por Maud e Roland. Por exemplo, o poema Mummy Possest é o negativo, relativamente aos papéis femininos e masculinos, do poema Mr Sludge de Browning. Se o último é dominado por vozes masculinas, o de Ash – ou melhor, de Byatt – dá a palavra a uma voz feminina que reivindica o valor artístico da sua inspiração (P, 410-411) (Gutleben, 1998:174). Também Swammerdam, poema inspirado pela poeta, faz com que Randolph se apresente como porta-voz do feminismo: o sábio holandês que dá nome à composição poética, comparado a Galileu por ter sido considerado avançado para o seu tempo, foi executado por afirmar a primazia do feminino na génese na sua teoria do ovismo (Gutleben, 1998: 174). Contudo, será que Christabel desafia com sucesso as censuras sociais em relação às artistas femininas, ou será que a consciência desta situação a anula, tanto profissional como emocionalmente? A esposa de Randolph, Ellen, apresenta uma experiência similar. Ela desejava ser a Poet and a Poem (P, 122), mas não se torna em nenhum destes. Recordando as suas ambições e a falta de fé no seu próprio talento, escreve no seu diário que não

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acredita que o marido a impedisse de escrever. De facto, seria o poeta quem falaria na poesia da sua esposa: Randolph... would laugh me out of such morbid questioning, would tell me it is never too late, would cram his huge imagination into the snail-shell space of my tiny new accession of energy, and tell me what is to be done. (P, 122)

Para Burgass (2002), a objecção inicial de Christabel ao envolvimento amoroso com Randolph, e o manifesto desejo de solidão, parecem não corresponder a uma rejeição convencional do adultério por parte daquela personagem feminina, mas sim a uma renúncia deliberada do amor em nome de uma estrutura exclusivamente feminina, que tornaria possível a criação artística (Burgass, 2002: 32). A protagonista valoriza o grau de autonomia que esta organização lhe permitiria e daí a sua relutância em se envolver com o poeta. Mais tarde, apesar de ceder às investidas daquele homem casado – uma atitude arrojada no contexto da sociedade vitoriana –, ela detém o livre-arbítrio e o orgulho suficientes para rejeitar e fugir do amante, mesmo estando grávida, o que estabelece uma forte relação intertextual com a postura de Sarah no romance de Fowles. No final da sua vida, Christabel interroga-se se poderia ter sido uma grande poeta, à semelhança de Randolph, se se tivesse confinado ao seu «castelo impenetrável»: I wonder – if I had kept to my closed castle, behind my motte – and-bailey defences – should I have been a great poet – as you are? I wonder – was my spirit rebuked by yours – as Caesar’s was by Antony – or was I enlarged by your generosity as you intended? (P, 502)

Como vimos, paradoxalmente, o ventriloquismo de Randolph acaba por silenciar Christabel ao dar-lhe voz. Mas não é só o poeta que fala por ela, também Leonora e Maud o fazem. As feministas viram a poeta como uma protofeminista merecedora de ser salva do lugar insignificante que lhe fora atribuído pela instituição académica (masculina), construindo interpretações da sua poesia que encaixassem nos respectivos projectos de investigação. Byatt

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lança, aí, um olhar crítico às modernas teorias feministas. Leonora, que interpreta a poesia de Christabel como um mapa do corpo feminino, leu, de modo incorrecto, esses textos dada a sua formação na área do feminismo francês. As suas leituras adequam-se desde que Christabel não tenha voz, porque quando ela fala, em cartas, poemas e histórias, as ideias estabelecidas têm de ser revistas: “And LaMotte,” said Leonora, “has always been cited as a lesbian-feminist poet. Which she was, but not exclusively, it appears.” “And Melusina,” said Maud, “appears very different if the early landscapes are seen as partly Yorkshire. I’ve been rereading. No use of the word ‘ash’ may be presumed to be innocent.” (P, 485)

As investigadoras construíram as suas próprias versões da história, o que nos reenvia para o cepticismo pós-moderno em relação ao que se entende por verdade histórica. Esta desconfiança, partilhada pela literatura e pelo feminismo pós-modernos, conflui, no projecto feminista, na denúncia de que as vidas e o trabalho das mulheres têm sido excluídos ou suprimidos de uma história escrita do ponto de vista masculino. Para além de ser questionada a apropriação abusiva de Christabel pelas investigadoras feministas, também é expresso, na descrição da sua reputação literária, o menosprezo da instituição académica em relação às mulheres escritoras. Na realidade, a academia dominada pelos homens denota uma atitude condescendente em relação a Christabel, atribuindo-lhe importância não enquanto escritora, enquanto indivíduo, mas como uma figura representativa da literatura feminina. Vejamos em que termos aquela instituição, na figura do professor Cropper, exprime o desprezo pela escrita da poeta: ‘LaMotte? Oh, yes. Melusina. There was a feminist sit-in, in the Fall of ’79, demanding that the poem be taught in my nineteenth-century poetry course, instead of the Idylls of the King, or Ragnarök. As I remember, it was conceded. But then Women’s Studies took it on, so I was released and we were able to restore Ragnarök. (P, 305)

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Aqui, a exclusão daquela poeta dos conteúdos da disciplina de poesia oitocentista e a sua inclusão nos Estudos sobre as Mulheres não recuperam a obra de Christabel; em vez disso, a poeta é vista apenas como representante de uma secção da literatura. Com receio de serem excluídas completamente, a maior parte das personagens femininas acomodam-se no conforto de pequenas casas ou nos silêncios protectores de um casamento. Após ter sido descoberto o amor adúltero de Christabel, a sua companheira Blanche comete suicídio. Mais tarde, a poeta tornar-se-á uma old witch in a turret (P, 500) e a sua filha cresceria conhecendo-a apenas como uma tia que ela vê como a “sorcière”, a spinster in a fairy tale (P, 501). Blanche defende o separatismo feminino e, como tal, procura forjar uma existência completamente feminina para si e para Christabel: I have tried, initially with MISS LAMOTTE, and also alone in this little house, to live according to certain beliefs about the possibility for independent single women, of living useful and fully human lives, in each other’s company, and without recourse to help from the outside world, or men. We believed it was possible to live frugally, charitably, philosophically, artistically, and in harmony with each other and Nature. Regrettably, it was not. (P, 307)

Qualquer ligação ao exterior é ameaçadora para a personagem, daí que procure proteger o pequeno mundo que construiu do intruso Randolph, desviando as cartas que este havia escrito a Christabel e descrevendo-o como um Prowler (P, 46), um Peeping Tom e um Wolf (P, 47). Ao contrário do que Blanche acredita, a poesia de Christabel melhora pela ligação com o poeta, como ela própria reconhece: … she was learning so much, so very much, and when it was all learned she should have new matter to write about and many new things to say. (P, 47)

A companheira de Christabel suicida-se porque a tentativa de criar um mundo autónomo para as duas falhou. Na carta de suicídio, atribui este fracasso ao facto de a sociedade ter sido hostil àquele propósito e também porque elas não foram suficientemente

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perseverantes (P, 307). No romance, as comunidades unissexuais não são apresentadas como a solução, mas também não são condenadas, da mesma maneira que o suicídio de Blanche é tanto uma derrota quanto uma vitória. A expectativa de uma existência independente e exclusivamente feminina não se concretizou, mas, após o suicídio da sua companheira, Christabel corta todas as suas ligações com Randolph, i.e., com o mundo masculino, e junta-se às Vestal Lights, um grupo de mulheres espiritualistas. Em suma, Byatt descreve diferentes feminismos sem os condenar ou apoiar claramente: Blanche entende o separatismo como uma solução para os problemas das mulheres; Beatrice enfrenta a desigualdade na medida em que lhe são negadas as oportunidades dadas aos homens, mas enquanto feminista, nunca lutou por direitos iguais; Christabel e Maud tentam ser autónomas, não dependendo nem de comunidades femininas, nem do mundo masculino. Possession questiona de forma aberta a construção vitoriana da sexualidade, reconhecendo a elisão por parte da cultura coeva dos discursos associados à sexualidade feminina. A escritora representa o casamento vitoriano – exemplificado por Randolph e Ellen – do mesmo modo que alguém dessa época o teria feito, como esvaziado da componente sexual. Apesar de se terem conhecido na juventude, Ellen casa com Randolph tardiamente por imposição dos pais: A young girl of twenty-four should not be made to wait for marriage until she is thirty-six and her flowering is over (P, 460). Para ela – mantendo aqui fortes paralelos com Ernestina Freeman de The French Lieutenant’s Woman – o acto sexual em si é uma experiência brutal e o casamento é semelhante à relação entre escravo e dono. A memória da noite de núpcias revela o terror em relação ao acto sexual43, pormenores revelados aos leitores, mas nunca disponibilizados aos críticos do século XX:

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Ellen sofreria de uma disfunção psicossexual que leva a que o casamento nunca seja consumado e, neste aspecto, detém um paralelismo histórico com a figura de Jane Carlyle, cujo casamento com Thomas Carlyle também não o foi.

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She did not remember it in words. There were no words attached to it, that was part of the horror. She had never spoken of it to anyone, not even to Randolph, precisely not to Randolph (P, 458) A running creature, crouching and cowering in the corner of the room, its teeth chattering, its veins clamped in spasms, its breath shallow and fluttering. Herself... An attempt. A hand not pushed away. Tendons like steel, teeth in pain, clenched, clenched. The approach, the locked gateway, the panic, the whimpering flight. Not once, but over and over and over. When did he begin to know that however gentle he was, however patient, it was no good, it would never be any good?... The eagerness, the terrible love, with which she had made it up to him, his abstinence, making him a thousand small comforts, cakes and tidbits. She became his slave. (P, 459)

Tendo em conta as dificuldades oitocentistas em enquadrar a sexualidade no contexto do casamento, Byatt retoma uma tradição pré-vitoriana para descrever a componente sexual da relação entre Randolph e Christabel. Segundo Timothy Farrell (1997), a escritora baseia-se na tradição medieval do amor cortês para descrever a ligação entre os poetas, visto que, no contexto da cultura vitoriana, se entendia como pecaminosa a actividade sexual extramatrimonial. Como características da tradição do amor cortês, aponta-se o facto de aquela relação se desenvolver por meio de correspondência, o papel importante da literatura nos jogos de sedução do elemento feminino e o carácter furtivo da ligação (Farrell, 1997). A extrapolação para o período contemporâneo manifesta-se também de forma inversa. Os heróis modernos, Maud e Roland, ao contrário da frígida Ellen, sentem-se saturados, sem desejo: Maybe we’re symptomatic of whole flocks of exhausted scholars and theorists (P, 267). O casal é resistente a qualquer aspecto do amor, incluindo o envolvimento sexual, porque ameaça a autonomia de cada um, daí o avanço periclitante do seu romance. Descendente genética de Christabel, Maud está ligada à poeta pela experiência comum de uma intrusão masculina na intimidade feminina: Fergus ameaça a independência de Maud da mesma forma que Randolph

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o faz à amada. Tal como a sua antecedente, Maud reivindica com veemência a sua emancipação, ou melhor, a sua autopossessão. Em contraste com a omissão vitoriana da sexualidade, detecta-se uma hiperteorização da sexualidade no século XX. Maud e Roland reconhecem-no à medida que procuram pistas em conjunto sobre o relacionamento entre os poetas: Do you never have the sense that our metaphors eat up our world? … I mean, all those gloves, a minute ago, we were playing a professional game of hooks and eyes – mediaeval gloves, giants’ gloves, Blanche Glover, Balzac’s gloves, the sea-anemone’s ovaries – and it all reduced like boiling jam to – human sexuality. Just as Leonora Stern makes the whole earth read as the female body – and language – all language. And all vegetation is pubic hair.” Maud laughed, drily. Roland said, “And then, really, what is it, what is this arcane power we have, when we see that everything is human sexuality? It’s really powerlessness.” (P, 253)

A crítica literária feminista pode revelar-se tão parcial e programática como a do establishment, e a caracterização irónica de Leonora contém certamente uma crítica ao exclusivismo da linguagem feminista. Por muito que Byatt entenda como limitadas as construções vitorianas da sexualidade, ela sugere que a obsessão do século XX pela sexualidade e pela teorização sexual, personificada no romance por aquela investigadora, é igualmente estrita. Portanto, podemos ler o romance como uma censura tanto ao modelo vitoriano, com os seus tabus relacionados com a sexualidade, como ao moderno, pela sua intensa análise daquele tema.

3.2 O filme de LaBute e a tradição heritage Higson (1995) nota que o filme heritage se orienta tendencialmente para reproduzir outros textos culturais, especificamente textos literários, artefactos e paisagens que já detêm um estatuto privilegiado dentro de uma definição partilhada de património nacional. Para o autor, uma outra estratégia deste tipo de cinema

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reside na reconstrução de um momento histórico que é tido como possuindo significado nacional (Higson, 1995: 27). O filme Possession, realizado por Neil LaBute em 2002 a partir da obra literária de Byatt, parece comparticipar da descrição de Higson: trata-se de uma adaptação cinematográfica de um romance canónico, é visualmente sumptuoso no recurso a paisagens e a cenários interiores e, em parte, reporta-se à época áurea do reinado de Vitória. Para além destes factores, acrescentaríamos, do elenco fazem parte actores e actrizes comummente associados ao cinema heritage. Enquanto projecto de filme, Possession foi passado de mão em mão durante doze anos por se considerar que não seria filmável, de uma forma que espelha a saga da «não-filmagem» de The French Lieutenent’s Woman. O realizador Sydney Pollack foi originalmente apontado para filmar um argumento de David Henry Hwang no qual LaBute voltou a trabalhar com Laura Jones, quando assumiu o projecto anos mais tarde44. A ideia da impossibilidade da adaptação de Possession despertou, desde logo, expectativas elevadas, tornando o filme alvo de atenção e curiosidade. A isto juntou-se o facto de LaBute ser considerado um realizador controverso, sendo a sua obra cinematográfica conhecida pelos sombrios retratos dos relacionamentos modernos e pelas violentas dinâmicas sexuais45. Frequentemente comparado a Todd Solondz, LaBute faz parte de uma geração de realizadores norte-americanos que partilham uma visão cínica da sociedade contemporânea. A escolha deste cineasta para um registo diferente – a adaptação do romance de Byatt 44

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Num contexto de análise da relação entre Possession e o filme heritage, é significativo que os trabalhos desta argumentista incluam The Portrait of a Lady e Middlemarch. Também nos parece relevante que o produtor executivo, David Barron, tenha trabalhado na produção de The French Lieutenant’s Woman. Em 1993, Barron juntou-se à equipa de produção de Kenneth Branagh como produtor associado e gerente de produção local para Mary Shelley’s Frankenstein, filme que iniciou uma parceria entre Barron e Branagh da qual resultaram várias adaptações de Shakespeare. Possession é a quarta longa-metragem de LaBute, antecedida pelos polémicos In the Company of Men (1997) e Your Friends and Neighbours (1998), aos quais se seguiu Nurse Betty (2000).

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– ainda mais quando o filme é protagonizado por uma estrela de Hollywood, Gwyneth Paltrow –, parece-nos interessante do ponto de vista da análise cultural. A escolha de um elenco funciona não só como criadora de sentido na adaptação, como também constrói novos sentidos na própria fonte. De facto, as estrelas cinematográficas transportam auras preestabelecidas para os filmes em que participam. Por exemplo, Paltrow, representando a personagem de Maud Bailey, serve de âncora comercial ao elenco, garantindo sucesso nas bilheteiras. Para além de um nome sonante, tem como mais-valia a reputação ganha no contexto de filmes de época, nomeadamente na adaptação fílmica da obra Emma de Jane Austen e em Shakespeare in Love46. Tal fama, que talvez em parte lhe tenha valido o papel de protagonista em Sylvia (Jeffs, 2003), é comentada numa crítica a Possession: [Maud] is played by Gwyneth Paltrow, whose accent makes her sound more than ever like the woman who introduced the first BBC broadcast from Alexandra Palace.... Paltrow has a little trouble with her haughty English demeanour, as if she was playing another Austen heroine.47

O filme de LaBute parece retomar a preponderância das considerações financeiras na arte cinematográfica que Fowles critica com veemência no prefácio ao argumento de The French Lieutenant’s Woman (Pinter, 1981: xiii). Imperativos como a necessidade de atrair a audiência norte-americana levaram à transformação de uma personagem que no romance é de nacionalidade inglesa, Roland, em norte-americana (desempenhada por Aaron Eckhart), e à 46

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Com este filme, Paltrow ganhou o Óscar de Melhor Actriz em 1999, entre outros prémios. http://film.guardian.co.uk/News_Story/Critic_Review/Observer_ review/0,4267,820033,00.html. Se é verdade que a questão da pronúncia inglesa valeu alguns dissabores a Gwyneth Paltrow em Possession ao ser, criticada pela sua dicção pouco refinada, McFarlane (2001) afirma que a representação da actriz em Emma e Shakespeare in Love é quase comparável à imitação convincente de uma inglesa conseguida por Meryl Streep em The French Lieutenant’s Woman (McFarlane, 2001: 278).

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escolha de Paltrow para desempenhar o papel de uma investigadora universitária inglesa. Tais contingências são denunciadas numa entrevista dada pelo realizador que, quando interrogado sobre o processo das negociações com a Warner Bros., confessa: Had this been a little small endeavor, relatively small compared to a studio’s thinking, there probably wouldn’t be as much hand-wringing about it as for, say, something that’s $25 million. ... In this case, Warner Bros. said yes, but they wanted to work with another studio and split the costs. That was their safety valve. Another safety valve, I’m sure, was the casting of Gwyneth Paltrow. That made complete sense to them. On all the fronts we could come up with – period film, romantic film, someone who’s done a dialect, someone who’s had success at the box office, has personal success – all of those things were green lights.48

A Jeremy Northam, que já havia contracenado com Paltrow em Emma, foi atribuído o papel de Randolph Henry Ash. No cinema, este actor participou, entre outros, em Wuthering Heights (Kosminsky, 1992), Carrington (Hampton, 1995), An Ideal Husband (Parker, 1999), The Golden Bowl (Ivory, 2001) e Gosford Park (Altman, 2001). A actriz com quem Northam contracena em Possession, Jennifer Ehle, encarna a personagem de Christabel LaMotte. Em comum, Northam e Ehle têm uma ligação ao cinema heritage amplamente reconhecida pelo público e carreiras teatrais que incluem produções da Royal Shakespeare Company. Os trabalhos cinematográficos da actriz estendem-se a Wilde (Gilbert, 1997) e Sunshine (Szabó, 1999). Em 1996, recebeu um BAFTA pelo seu papel como Elizabeth Bennet na mini-série da BBC Pride and Prejudice. De forma interessante, a crítica consultada49 nota com frequência semelhanças visuais e faciais entre a Christabel de Ehle e a Sarah Woodruff de Meryll Streep50. Também o percurso de 48

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“Mormon Misogynist Goes Soft”, entrevista a LaBute por Dimitra Kessenides (2002) (http://www.buzzle.com/editorials/9-4-2002-25738.asp). Note-se que durante a nossa investigação só tivemos acesso a informação sobre o filme por via electrónica. “As LaMotte, Jennifer Ehle simpers away under her absurd French Lieutenant’s

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carreira de Lena Headey, a actriz que representa Blanche Glover, se cruza com o cinema heritage, nomeadamente em filmes como The Remains of the Day (Ivory, 1993) e Mrs Dalloway (Gorris, 1997). Assistimos, desde logo, a ligações com as produções heritage, contando-se várias da equipa Merchant-Ivory, através dos desempenhos anteriores dos actores e actrizes que trabalham em Possession. Os filmes heritage ganharam popularidade no mercado internacional através da participação de certas estrelas de cinema, maioritariamente europeias, como é o caso exemplar da actriz britânica Helena Bonham-Carter, as quais têm vindo a representar uma qualidade indefinível que se poderia designar heritage51. Detectamos no filme de LaBute uma estética da exibição que se alarga à demonstração de uma certa teatralidade, recorrente nos filmes heritage, envolvendo actores «de qualidade» mais comummente associados ao palco. O apelo do uso teatralizado da linguagem pode também ser explicado pela atracção exercida pela língua inglesa falada, em particular pelo registo Oxbridge, especialmente para o público norte-americano (Hill, 1999: 82). Possession usa o star system em confronto com tradições específicas de representação: assistimos a uma mistura entre actores britânicos mais ligados ao teatro e ao cinema heritage, Ehle e Northam, e estrelas de Hollywood, Paltrow e Eckhart, o que acaba por sugerir os prazeres da ilusão centrais à metaficção. Isto mesmo se depreende das curiosas palavras de um crítico a propósito da película de LaBute:

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Woman’s cloak...” (http://film.guardian.co.uk/Film_Page/0,4061,-93289,00. html); “Ehle looks so much here like Meryl Streep in The French Lieutenant’s Woman that the movie almost suggests visual plagiarism” (http://www. zap2it.com/movies/movies/reviews/text/0,1259,---13384,00.htm); “For many moviegoers, Ehle’s character will prompt an instant flashback to Meryl Streep in The French Lieutenant’s Woman. Ehle, with her heart-shaped face, hooded eyes and fair skin, could be Streep’s younger sister. And in several scenes, she wears a[n] emerald-green velvet cloak similar to Streep’s hooded wrap in The French Lieutenant’s Woman” (http://www.louisvillescene.com/movies/ reviews/2002/20020830possession.html). Neste âmbito, poderíamos listar actores como Emma Thompson, Anthony Hopkins, Maggie Smith, Judy Dench, Kristin Scott-Thomas, Colin Firth, Kate Winslet , entre outros.

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Having done so many period pictures, the gallant Northam is now so much at home in the past that I no longer see him as one of us. And although Ehle looked a lot better in Pride and Prejudice’s Empire line dresses than she does in a crinoline, she’s fine without it.52

Um dos pontos-chave do heritage filme é a sua aposta no prestígio enquanto «produto de qualidade», enaltecido pelas campanhas de marketing. Neste sentido, observe-se a composição gráfica da imagem exibida na página de abertura no sítio de divulgação do filme na Internet, e a construção desse prestígio pela ligação a ícones da cultura britânica como o Big Ben. O ex-libris do turismo inglês surge nesta composição em posição de destaque, no canto superior direito, apesar de não ter correspondência na economia do filme, pelo que se conclui que a sua única função será a de sinalizar Possession como inglês, i.e., como possuindo qualidades de anglicidade. No sítio, dominam os tons de sépia e aparece-nos a citação True Love is a durable fire in the mind ever burning de Sir Walter Raleigh, sugerindo valores de verdade e estabilidade. A táctica seguida por companhias como a USA Films e a Warner Bros. tem sido investir na anglicidade, como se o que é apresentado como inglês adquirisse uma aura irresistível para o público norte-americano53. Recorrendo a uma estratégia oposta, Trainspotting (Boyle, 1996), financiado na totalidade pelo canal de serviço público Channel 4, questiona noções preconcebidas de anglicidade. Trilhando um caminho que não poderia ser mais divergente do seguido por LaBute, o filme de Boyle desconstrói algumas das principais representações culturais de Inglaterra e da Escócia. Quando o protagonista chega a Londres, o filme evoca mordazmente clichés numa inversão irónica da imagética turística que comummente acompanha a chegada de uma personagem inglesa à Escócia. Repare-se que Possession recorre a imagens da mesma 52 53

http://www.smh.com.au/articles/2002/12/04/1038950092610.html. Numa entrevista a Wendy Mitchell, o próprio LaBute confessa-se anglófilo: “... really all the things that were in the book interested me. ... I’ve been an anglophile for a long time” (http://www.indiewire.com/people/int_LaBute_ Neil_020814.html).

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natureza aquando da chegada de Roland a Londres – o intruso norte-americano –, fazendo-o transportar-se num típico autocarro de dois andares, mas sem aí se detectar a ironia presente em Trainspotting. Ao contrário da representação manifestamente romântica da paisagem de uma Inglaterra rural que envolve as personagens vitorianas e contemporâneas (quando as últimas reconstroem a viagem dos poetas), Trainspotting enquadra os protagonistas na paisagem rural escocesa, não para exaltar a sua beleza «romântica» ou o seu carácter pitoresco, mas como desculpa para questionar o ser escocês (We’re the lowest of the fucking low... It’s a shite state of affairs and all the fresh air in the world will not make any fucking difference)54. A adaptação cinematográfica do romance de Byatt é uma co-produção dos EUA e do Reino Unido, cujo produto final acaba por consistir numa produção norte-americana que encena uma ideia de anglicidade. De facto, pela resposta que o filme provocou no Reino Unido e também pela sua campanha de marketing, este foi visto como norte-americano. Ao invés de um filme britânico com prioridades a nível da (re)construção da identidade nacional, como a obra de Boyle, Possession é um texto estranho àquela identidade, usando alguns dos seus símbolos com propósitos comerciais, mesmo que na sua origem tenha estado uma espécie de veneração pelo romance de Byatt. O facto de um romance inglês servir de fonte a um filme norte-americano poderá influenciar significativamente a sua reconstrução cinemática (Klein, 1981: 10). Parece-nos que a película foi filmada conforme os códigos e as convenções familiares ao mercado norte-americano. Em resultado de certos ajustamentos culturais, neste filme os académicos surgem como personagens norte-americanas55, exercendo um contraste ainda mais evidente com uma narrativa protagonizada por actores britânicos que associamos ao filme heritage. 54 55

http://www.godamongdirectors.com/scripts/trainspotting.shtml. Se a personagem de Roland é, ao contrário do que acontece no romance, norte-americana, Maud, personagem inglesa, por ser representada por Gwyneth Paltrow, também se tornará norte-americana. A transformação de nacionalidade da personagem Roland no filme será objecto de análise posterior.

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Nos comentários ao filme são frequentes as conexões estabelecidas entre este e as produções Merchant-Ivory56; na verdade, a mise en scène, o guarda-roupa e o elenco originam comparações inevitáveis com aquelas realizações. À semelhança do que sucede com os filmes heritage, na produção do filme os pormenores da época vitoriana foram rigorosamente estudados. Para a criação da mise en scène contribuíram o fotógrafo francês Jean Yves Escoffier, a responsável pelo guarda-roupa Jenny Beaven57 e a directora artística Luciana Arrighi58. Os currículos de Beavan e Arrighi atestam uma longa experiência na recriação de épocas passadas no cinema, daí 56

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“In a way it’s a relief to see LaBute get past his evident misanthropy and into a Merchant-Ivory world of wit and romance” (http://www.culturevulture. net/Movies5/Possession.htm), “this effort has the melodic trappings of a Merchant-Ivory romance” (http://www.splicedonline.com/02reviews/ possession.html), “… Byatt’s Possession is, by and large, a leisurely assemblage of exquisitely detailed period pastiches offered up for the delectation of the amazed reader. Montage and parallel action may be inherently cinematic devices, but literary as it is, such a novel is essentially unadaptable to the screen – save in the most rigorous Straub-Huillet or reductive Merchant-Ivory terms. Neil LaBute opts for something closer to the latter.” (http:// www.villagevoice.com/issues/0233/hoberman.php). Jenny Beavan recebeu um Óscar de Melhor Guarda-roupa e um prémio BAFTA pelo trabalho em A Room with a View. A colaboração com a equipa Merchant-Ivory tem durado desde há duas décadas e resultado em nomeações adicionais nos Óscares pelo guarda-roupa de Anna and the King (Tennant, 1999), The Bostonians, (Ivory, 1984), Gosford Park, Howards End, Maurice, The Remains of the Day, A Room with a View e Sense e Sensibility (1995). O seu trabalho com guarda-roupa também inclui os filmes Jane Eyre (Zeffirelli, 1996), Tea With Mussolini (Zeffirelli, 1999) e a mini-série Jane Austen’s Emma (Lawrence, 1997), pela qual recebeu um prémio Emmy. Para o palco, Beavan desenhou cenários e figurinos para várias produções da Royal Shakespeare Company. Luciana Arrighi recebeu um Óscar e uma nomeação para um prémio BAFTA pela direcção artística da adaptação de Howards End (Ivory, 1992). Depois disso, recebeu nomeações para os Óscares pelo seu trabalho em The Remains of the Day e Anna and the King (Tennant, 1999) e uma outra nomeação para os prémios BAFTA pelo seu trabalho em Sense and Sensibility, para além de outros galardões. Trabalhou maioritariamente em co-produções britânicas, norte-americanas, italianas e australianas, como Oscar and Lucinda (Armstrong, 1997), Surviving Picasso (Ivory, 1996) e The Importance of Being Earnest (Parker, 2002), entre outras produções.

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que a cinematografia de Possession tenha alguns pontos em comum com a de Merchant-Ivory. Os cenários, em particular nas cenas vitorianas, são dominados por suaves tons de ameixa e castanhos, ocasionalmente entrecortados pelos dourados reminiscentes das pinturas pré-rafaelitas. Sobretudo nas cenas nocturnas, observamos uma certa sumptuosidade conferida pelos enquadramentos e pela luminosidade e auxiliada pelos quadros, retratos e obras de arte antigos, que servem de separadores visuais, espécie de parêntesis, em relação à experiência visual da realidade contemporânea, colocando, deste modo, a narrativa vitoriana num espaço, a nosso ver, nostálgico. Um crítico colocaria esta sensação nos seguintes termos: There is a certain audience – perhaps tea-party-throwing lovers of Jane Austen – to whom Possession is undoubtedly an ideal film.59

Nota-se alguma preocupação em que o guarda-roupa e os cenários assistam na transição de um período histórico para outro, através de um equilíbrio entre cores, padrões, texturas e tecidos, de forma a não isolar por completo os períodos vitoriano e moderno. De facto, nas cenas do século XX, permanecem nos cenários peças do passado como, por exemplo, a fotografia da filha de Christabel, Maia Bailey. LaBute procura fundir os ambientes e épocas, não usando cortes secos nem fades para, dentro de uma mesma cena, dispor os elementos das duas épocas, como, por exemplo, na cena em que Maud e Roland passam de carro numa estrada, e um comboio antigo vem noutra direcção, dando pistas de que a acção seguinte irá ocupar-se em mostrar a aproximação amorosa do casal vitoriano. Em nosso entendimento, por detrás destes meios técnicos reside uma simplificação nostálgica que falsifica uma continuidade simples com o passado. Não estamos perante a problematização e desestabilização da filiação harmoniosa entre o passado e o presente a que assistimos em The French Lieutenant’s Woman. Ao passo que o filme de Reisz revela que a própria continuidade é desconexa, o de LaBute aponta para um cadeia sequencial sem fracturas. 59

http://www.jaredsapolin.com/possession.html.

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A cena de abertura do filme apresenta-nos o passado vitoriano. O tipo de letra usado no título do filme e na fotografia, acompanhada de uma introdução musical que acompanha a leitura de um texto de tipo oitocentista, induzem o espectador na convicção de que está perante um típico filme heritage. O maestro Gabriel Yared60, usando harpas, violinos e outros instrumentos de corda, cria um ambiente romântico e nostálgico. Esta imagem é rapidamente seccionada: a leitura pelo poeta Randolph Henry Ash daquilo que se descobre ser uma carta é, de súbito, cortada pela sua exibição por um leiloeiro num tempo ulterior. Repare-se que o recurso a um leilão da Sotheby’s funciona como um identificador indiscutível de anglicidade (founded in 1744 aparece em destaque). Para além disso, esta segunda cena, que mostra um leilão onde a cópia manuscrita do poema está a ser vendida, desmente inesperadamente a percepção de que estaríamos a assistir a um filme heritage. O irromper da modernidade, ainda que pouco abrupto, é criador de tensão e previne que o espectador se instale acriticamente na ilusão do filme, à semelhança das estratégias distanciadoras usadas por Reisz, embora o faça de forma ténue. Para além disso, pensamos que o mistério no enredo é um indício da impossibilidade do medium fílmico em representar o passado. De forma circular, o filme retoma o enredo vitoriano no final. Quando Randolph se abeira da casa onde está Christabel, encontra a sua filha. O poeta entrega-lhe uma carta dirigida à sua «tia» (que obviamente é a mãe que a criança não conhece), mas quando esta corre para casa deixa-a cair, correspondendo esta missiva ao poema que ouvimos no início do filme. Para além disso, Ash enverga o mesmo traje e caminha num local idêntico ao do final, intensificando, mais uma vez, a circularidade do enredo fílmico. Assim, a primeira cena no filme ocorrerá imediatamente antes desta derradeira. Possession desenvolve-se em dois tempos: a história de amor investigada por Maud e Roland vai sendo mostrada paralelamente ao processo de aproximação entre os dois académicos. Conforme 60

Ganhou um Óscar e um BAFTA pela banda sonora de The English Patient (Minghella, 1996).

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as pesquisas avançam, e aqueles se aproximam, o filme introduz flashbacks que retratam o romance de Ash e Christabel num crescendo de intensidade, apesar das coerções da época vitoriana. Enquanto isso, Maud e Roland, receosos, conversam sobre relacionamentos fracassados. Assim sendo, a história vitoriana de amor é contrastada com a relação amorosa entre os investigadores contemporâneos. LaBute chega a este efeito usando a técnica do crosscutting, um agrupamento separado, mas intercalado, de shots para a frente e para trás entre dois fios de uma história que, por último, se encontram. Esta estratégia encontra paralelo na espacialização da história que Elias (2001) atribui ao romance meta-histórico: Historical periods themselves are subject to quick cutting, montage, and juxtaposition in a postmodern attempt to signal the layered indeterminacy of History and its lack of order and comprehensibility. (Elias, 2001: 119)

A autonomia das duas narrativas é difícil de reconhecer a princípio, dado que o enfoque permanece persistentemente no enredo vitoriano. Tal como na obra literária, a investigação do romance de Ash e Christabel leva Roland e Maud a refazerem o caminho dos outros – e a apaixonar-se, também, por mais que ambos tenham dificuldade em consumar esse amor. Por Maud e Christabel perpassa, afinal, a consciência paradoxal do amor. Este é, por um lado, uma força radical que transcende o quadro estrito dos compromissos sociais; por outro lado, é um laço que recoloca os protagonistas no cenário público desses mesmos compromissos. Ambos os relacionamentos amorosos estão assolados por dificuldades: os problemas do casal vitoriano surgem principalmente vindos do mundo exterior, motivados nomeadamente pelo casamento de Ash, pela companheira de LaMotte e pela moralidade social da época, ao passo que os problemas do casal moderno são acima de tudo internos, provocados por um «excesso» de liberdade que traz ansiedade e consequente ausência de paixão. Grande parte da obra gira em torno das dificuldades do romance moderno, em comparação com a corte e os rituais sofisticados e sensuais que têm lugar entre os poetas vitorianos. As figuras vitorianas têm uma liberdade vedada às personagens modernas:

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Ash e LaMotte sentem, expressam-se e desejam de uma maneira que as personagens modernas não conseguem. Uma vez estabelecida a autoconsciência pós-moderna sobre a sexualidade, Maud e Roland não se permitem identificar com os sentimentos poderosos e emoções misteriosas em redor daquela. No início de Possession, o casal contemporâneo não crê no poder da paixão e tem de retornar ao passado a fim de redescobri-lo. Trata-se de uma reaprendizagem do amor, como se estas personagens procurassem preencher as suas próprias vidas com as fórmulas secretas da experiência e da poesia que acreditam ter existido no passado. A mensagem (ou sentimento nostálgico) a reter é que, nos nossos dias, os homens e as mulheres perderam muito do romance e da sensibilidade que fazem parte do processo de construir uma relação, enquanto que, na época vitoriana, as pessoas punham na corte e no amor um esforço e um cuidado extraordinários. Como se depreende das palavras de alguns críticos, daqui decorre que a narrativa do século XIX seja privilegiada enquanto a mais desejável: While the modern-day lovers may be interesting examples of how dispassionate and insulated we have become over time, watching Ehle’s striking strength and intelligence as a woman determined to live for herself and Northam’s Ash, wavering between his devotion to his wife, whom he loves, and his growing passion for his intellectual equal, is not only riveting, but also more inspiring as a lesson in how to love.61 The Victorian lovers are undoubtedly the sexier pair. ... The conjunction of long-repressed sexuality with a candle-lit four-poster and the slow unlacing of a whalebone corset may be a cliché, but I’m happy to say that LaBute doesn’t let that put him off. And nor should you.62 The sumptuously presented, wildly romantic story of the poets is far more interesting, throwing the film off-balance. The filmmakers must have been aware of this disparity, because part of the film’s thematic interest is in contrasting today’s world-in which communication is simple and 61

62

Vanessa Sibbald, http://www.zap2it.com/movies/movies/reviews/text/0,1259, ---13419,00.html. http://www.smh.com.au/articles/2002/12/04/1038950092610.html.

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convenient, and it’s never physically (or socially) impossible for lovers to reunite--with that of a past era when words needed to be painstakingly scrawled out and delivered by hand, and when societal mores and physical space needed to be navigated with much more care.63

La Bute assume a missão de recuperar a realidade por detrás das nossas representações convencionais dos vitorianos, representando a vida moderna como disfuncional. Vimos, atrás, como o romance de Fowles questiona a hipótese repressiva, segundo a qual os vitorianos eram sexualmente reprimidos e que actualmente somos desinibidos. Repare-se, em particular, no modo como LaBute encena a sexualidade: é Maud quem é apresentada como detendo autocontrolo, ao passo que Christabel é feita mais transparente e genuína de modo a estabelecer um maior contraste com a sua correspondente moderna. Podemos atestar estas construções nas cenas que têm lugar no hotel de Whitby: enquanto Christabel está apaixonada e possuída por desejo, Maud sente-se constrangida. Como escreve Charlotte O’Sullivan (2002), a obra de LaBute restabelece o status quo problematizado pelo romance64. A autora exemplifica-o na forma como as cenas em Whitby são tratadas por Byatt e posteriormente por LaBute, acabando os casais vitoriano e contemporâneo por passar a noite no mesmo hotel. No romance, Christabel prepara-se para o encontro sexual, dirigindo-se para a cama em camisa de noite; após terem feito amor, Ash apercebe-se que, apesar da virgindade da sua amada, esta era sexualmente experiente devido, presume-se, à relação que mantinha com a companheira Blanche. No filme, Ash assume o controlo, desapertando lentamente o corpete de Christabel, dando a entender que esta é a primeira vez que o desejo ardente e a sensualidade dela são revelados. Entretanto, Maud e Roland, que segundo o romance se aproximam por partilharem o apego a virginais camas individuais, repartem, no filme, um quarto duplo no hotel devido a um lapso na reserva.

63 64

Josh Ralske, http://entertainment.msn.com/Movies/Movie.aspx?m=355. http://www.bfi.org.uk/sightandsound/2002_11/review03_possession.html.

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Possession acaba igualmente por promover o romance heterossexual e tornar invisível o lesbianismo. É verdade que o filme sexualiza a relação de Christabel e Blanche; contudo, fá-lo para que o «retorno à heterossexualidade» saia realçado. De facto, não obstante a ligação amorosa entre as duas mulheres, que parece sólida, Christabel não se consegue furtar a uma ligação apaixonada com um homem. Este envolvimento romântico entre os dois poetas vitorianos, que segundo a história oficial nem se conheciam, é representado como mais determinante na vida de Christabel do que o relacionamento de longa data com uma pintora pré-rafaelita. Presume-se, assim, que a heterossexualidade de Christabel tenha sida escondida do conhecimento público durante décadas por investigadoras lésbicas calculistas, até que os destemidos heterossexuais Maud e Roland repusessem a «verdade» sobre a orientação sexual de Christabel e, em simultâneo, descobrissem o segredo que conduziu ao suicídio de Blanche. Assim sendo, o filme procura esvaziar o estereótipo da era vitoriana enquanto período de sexualidade reprimida, ao passo que, a um outro nível, Byatt procurou recriar uma era vitoriana, não sem fissuras, mas sim revelando the worm in the bud, segundo a expressão de Ronald Pearsall (1969)65. Tendo em consideração as temáticas do romance, uma audiência contemporânea do filme e uma reavaliação continuada das visões relativas às práticas sexuais vitorianas efectivas versus idealizadas, não seria surpreendente que o filme elevasse a actividade sexual a uma posição dominante da sua acção. Porém, a nosso ver, a realização segue o trilho de certos convencionalismos cinematográficos e denuncia um certo pudor figurativo. LaBute cumpre as regras do género romântico, limitando-se a mostrar as ligações da época vitoriana de forma idealista: a amante de Christabel é representada sempre só, a velar o amor perdido; as cenas íntimas entre Christabel e Randolph estão banhadas de luz dourada, enquadrando close-ups que não comprometam o carácter romântico da situação, como são os casos da nuca, das mãos, dos 65

Pearsall, Ronald (1969) The Worm in the Bud: The World of Victorian Sexuality, London: Weidenfeld and Nicolson.

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ombros e dos cabelos soltos. Ao invés, o casal moderno é visto a uma luz azul distanciadora, mais fria. Ao transpor o romance de Byatt para a tela, a principal alteração consistiu em tornar norte-americana a personagem de Roland Michell. Byatt havia composto uma personagem de um estrato social pouco privilegiado, entregue à rotina da mediocridade académica, sem amigos, preso a uma namorada frustrada e oprimido por uma senhoria detestável. No fundo, Roland é o negativo de Maud. No romance, apontam-se distinções a nível de estatuto socioprofissional entre Maud e Roland. Ela é proveniente de uma família aristocrática, alcançou reconhecimento no meio académico enquanto crítica literária feminista e coordena um prestigiado centro de recursos feminista. Por seu turno, ele tem origens na classe trabalhadora, vive na cave de uma decadente casa vitoriana e trabalha em part-time como assistente de Blackadder. Porventura receando a incompreensão daquela diferença de estatuto entre os protagonistas por parte do espectador norte-americano, os autores da adaptação fílmica transformaram-na em divergência nacional. Fruto da transformação verificada no filme, de inglês para norte-americano, ele tornou-se confiante. É um homem de acção, que soluciona o enigma histórico; mostrando-se destemido, despe-se e mergulha num lago à procura de pistas. Segundo O’Sulllivan (2002) estas características enfraquecem alguns dos pontos centrais da narrativa, nomeadamente, a possibilidade de um homem se sentir inferior a uma mulher e de uma mulher se sentir atraída por uma figura masculina «fraca». Deste modo, LaBute restabelece o status quo já referido. Como refere Tamara Wagner66, ao substituir a nacionalidade inglesa de Roland pela norte-americana, a adaptação de LaBute apaga por completo o significado pós-imperial da narrativa de Byatt. Segundo a autora, a deslocação dos relatos redescobertos dos poetas para o centro de Cropper, no Novo México, pode ser interpretado no contexto do romance como uma ameaça neocolonial. Na realidade, o filme trata a descoberta de artefactos tangíveis: um conjunto de cartas que iluminam um passado até então desconhecido e cujo 66

http://www.victorianweb.org/post/uk/byatt/filmadapt.html.

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achado surge num momento da história britânica caracterizado por uma crise identitária em busca da anglicidade perdida. Ora, se o investigador que descobre um passado que pode contribuir para o presente é também norte-americano, essa simetria é perturbada. Detendo a nacionalidade norte-americana dentro do fechado mundo académico britânico, Roland pode facilmente ser visto como um intruso. Porém, com esta transformação, o filme acaba por oferecer apenas de forma lateral um olhar irónico sobre os jogos e intrigas inerentes à escalada dos degraus académicos, e sobre os meandros da progressão na carreira universitária. O romance sinaliza a situação dos investigadores universitários mal pagos no Reino Unido, em contraposição aos ameaçadores cheques em branco de Cropper. Sendo Roland também norte-americano, o padrão dos meios de pesquisa que distinguem os investigadores britânicos do coleccionismo obsessivo do biógrafo norte-americano é anulado, tornando, desta forma, descabida a procura desesperada dos documentos. No final, o filme cai num lugar-comum hollywoodiano: a civilização depende do super-herói americano para restabelecer a ordem. Concluímos que a narrativa do filme se assume como uma espécie de arqueologia emocional, uma vez que, no início, os protagonistas desconhecem o relacionamento ocorrido entre os poetas. As duas relações guardam uma semelhança: ambas são contrariadas por obstáculos sociais ou pessoais. LaBute parece pretender demonstrar que certas regras atravessam os séculos e que muitas das alegadas rupturas históricas da actualidade, do advento e da generalização das liberdades que marcaram o século XX, continuam perenes no olhar, no agir e no pensar. Em suma, ao contrário do romance de Byatt, aponta-se no filme para uma continuidade harmoniosa entre o passado e o presente, evidente na sell line do filme: The past will connect them. The passion will possess them.

4. Considerações finais

Tal como escrevemos na introdução, o presente trabalho teve por objectivo contribuir para a reflexão sobre a forma como a época vitoriana é percepcionada, construída e actualizada em quatro textos do pós-modernismo. Relembramos aqui os pontos de partida da investigação para, então, apresentar algumas considerações finais sugeridas pelo trabalho desenvolvido. As motivações na selecção do corpus residiram no entendimento de The French Lieutenant’s Woman e Possession como representativos da experiência pós-moderna ao focarem as inquietações presentes através de uma interacção com o passado histórico. A releitura do passado apresenta-se, neste moldes, como uma forma de ler o presente. No vazio provocado pela descrença em relação às metanarrativas, vislumbramos nestas obras determinados modelos estruturais a partir dos quais é possível fazer sentido da condição contemporânea e contra-atacar sentimentos de irreversibilidade histórica. Convém referir que os romances examinados respondem de maneiras diferentes aos desassossegos do presente. Byatt vê na actual rejeição dos valores oitocentistas uma falha que só pode ser recuperada através do desenvolvimento da competência de leitura do passado. Como vimos, a autora revela fé na capacidade de os indivíduos lerem os indícios de outrora através da imaginação, advogando, em consequência, uma religação àqueles valores dos quais a sociedade contemporânea se apartou. Fowles recorre a uma lógica museológica, dependente de um apelo à autenticidade na réplica rigorosa de um panorama vitoriano, ao mesmo tempo que submete a uma leitura crítica a tendência de criar uma história feita de verdades absolutas. Aqui, a existência de vozes conflituantes e de finais alternativos coloca-nos na posição de decidir como é

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que o passado deve ser lido. O autor procura rever, entre outras, questões relacionadas com a construção social do género, embora esta problematização enfrente dificuldades. Neste sentido, Cowart (1989), enquadrando o texto fowlesiano numa categoria de ficção histórica que designa de the Distant Mirror, i.e., ficções cujos autores projectam o presente no passado (Cowart, 1989: 8-9), descreve-o da seguinte forma: Fowles, in The French Lieutenant’s Woman … complicates his meticulous recreation of Victorian England with a relentlessly postmodernist narrative technique. Though he “mirrors” twentieth-century feminism and male anxiety in his main characters, he is much more interested in subverting the conventions of narrative in the Victorian novel with the self-conscious and self-reflexive techniques common to the contemporary novel. He plays with the reader’s expectations of authorial omniscience and draws attention to the artifice at every turn. He forces recognition of his own – and the reader’s – twentieth-century perspective on the historical fiction he presents. Though the past of The French Lieutenant’s Woman mirrors the present very strangely, it mirrors it with surprising thoroughness. (Cowart, 1989: 166)

Ao longo deste trabalho, procurámos analisar de que modo romances como The French Lieutenant’s Woman e Possession e, até certo ponto, as suas adaptações fílmicas, desejam construir formas renovadas de conhecimento sobre as histórias do período vitoriano. Tentando sintetizar o que foi escrito ao longo das últimas secções, será através do jogo entre várias histórias que se exerce a descoberta da história como construção discursiva ficcional nos romances de Byatt e Fowles e respectivas adaptações. Tendo por base estes textos, equacionámos as seguintes ideias no decurso da investigação: – – –

a tentativa de reconstrução da história através do diálogo entre os discursos histórico e ficcional; o reconhecimento da importância da intertextualidade; a inexistência de uma verdade histórica, mas antes, de verdades possíveis.

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Como referem Sadoff and Kucich (2000), o fenómeno cultural do interesse pelo século XIX evidenciado pelo pós-modernismo ainda carece de uma análise crítica rigorosa (Sadoff and Kucich, 2000: x). Na introdução à antologia Victorian Afterlife, aqueles editores propõem-se diminuir esse fosso crítico: The origins of this book lie in our surprised awareness of this critical gap: there has been little scholarly work that has attempted to historicize postmodern rewritings of Victorian culture. By bringing together a diverse and noted collection of cultural critics, we have attempted to begin a discussion of postmodernism’s privileging of the Victorian as its historical “other”. (Sadoff and Kucich, 2000: x-xi)

A análise cultural constrói uma história do presente ao escrever sobre as reescritas do passado vitoriano. Este mesmo propósito levou-nos a empreender este projecto que, claramente, não pode pretender mais do que levantar algumas questões, por nós consideradas pertinentes e interessantes, mas sem qualquer pretensão de esgotar as problemáticas abordadas. Para além dos textos que trabalhámos, outros romances britânicos procuram possuir e renarrar o passado vitoriano, sendo que alguns destes também foram adaptados ao cinema. Uma selecção mais alargada de textos poderia ter sido feita para iluminar esta temática, com recurso, por exemplo, a Angels and Insects de Byatt e à sua adaptação cinematográfica Angels & Insects (Haas, 1995). O estudo daqueles romances e respectivas transposições fílmicas alargaria os horizontes deste estudo. As problemáticas que neste texto foram abordadas, pela sua própria natureza, não se fecham num estudo conclusivo, nem encerram aqui a reflexão. Resta-nos meditar no futuro (ou ausência deste) do fenómeno cultural de revisitação do passado, oitocentista ou qualquer outro. Estará a necessidade de olhar o passado satisfeita? Que necessidades transitórias ou efectivas motivarão novas incursões nesta problemática? Estas são questões que deixamos em aberto e que podem funcionar como ponto de partida de um trabalho com outros intervenientes. Na verdade, no contexto de mudança acelerada na sociedade contemporânea, a memória e o

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passado constituem-se sob a forma de objectos e problemáticas que exigem novos olhares, formas de abordagem renovadas, possíveis apenas pela inter e transdisciplinaridade.

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