O método natural II - a aprendizagem do desenho


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Table of contents :
Prefácio ........................................................................................... 9
Preâmbulo...................................................................................... 13
Primeira parte —O método natural de desenho .......................... 17
Introdução ao método natural .............................................. 19
O que é o desenho? ................................................................ 33
Segunda parte — As gêneses do desenho ................................... 115
Introdução às gêneses ......................................................... 117
A gênese do homem ............................................................. 119
A gênese das casas ................................................................. 185
A gênese dos automóveis ...................................................... 243
A gênese das aves .................................................................. 297
A gênese dos cavalos ............................................................. 345
Conclusão ............................................................................... 385
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O método natural II - a aprendizagem do desenho

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O MÉTODO NATURAL

BIBLIOTECA DE CIÊNCIAS PEDAGÓGICAS DIRIGIDA POR SÉRGIO NIZA Técnico do Centro de Observação e Orientação Médico-Pedagógica

CELESTIN FREINET

O MÉTODO NATURAL II —A APRENDIZAGEM DO DESENHO

Editorial Estampa

Título do original

La Méthode Naturelle II. L’apprentissage du Dessin

Tradução de Franco de Sousa e Teresa Balté Capa de Suares Rocha

© Delachaux & Nicstlé S. A., Neuchâlel, Suíça, 1969 Editorial Estampa, Lda., Lisboa, 1977 para a língua portuguesa

ÍNDICE

Prefácio .................................. ......................................................... 9 Preâmbulo...................................................................................... 13 Primeira parte —O método natural de desenho .......................... 17 Introdução ao método natural .............................................. 19 O que é o desenho? ................................................................ 33 Segunda parte — As gêneses do desenho ................................... 115 Introdução às gêneses ......................................................... 117 A gênese do homem ............................................................. 119 A gênese das casas ................................................................. 185 A gênese dos automóveis ...................................................... 243 A gênese das aves .................................................................. 297 A gênese dos cavalos ............................................................. 345 Conclusão ............................................................................... 385 7

PREFÁCIO

As partes que compõem este livro apareceram já, no seu essencial, em várias publicações, sobretudo no Educateur, re­ vista dirigida por C Freinet (edição da Ecole Moderne, Cannes), podendo ser consideradas como as etapas de uma inves­ tigação sob os auspícios de uma direcção única e baseada no impulso vital, orientado pela tentativa experimental, funda­ mento teórico de toda a obra psicopedagógica de Freinet, A estes textos - que constituem como que pedras funda­ mentais de uma construção a edificar - vêm juntar-se escritos mais recentes, ainda inéditos, resultantes de uma estreita cola­ boração de pensamento entre Freinet e eu: projectávamos Uma vasta síntese pedagógica, psicológica e cultural do dese­ nho infantil, onde a expressão artística entrava em linha de conta, afirmando já as suas prerrogativas. Tal projecto não chegou a aparecer na sua totalidade. Os elementos que aqui proponho já representam, todavia, claros indicativos tanto da dinâmica e densidade dos trabalhos de base como da conclusão final prevista. Como todas as obras pedagógicas de Freinet, também esta se apoia em numerosas experiências e trabalhos de colegas, empenhados na mesma tarefa e na solução dos mesmos pro­ blemas. O livro que apresentamos é expoente do espirito e de um método que presidem a esta colaboração construtiva. A primeira parte, o Método natural dc desenho, constitui um resumo dinâmico das directrizes gerais que marcam de certp modo o começo, o impulso inicial da vasta investigação coletiva. A Escada de desenho, que o termina, desempenha o 9

papel de um teste complexo, gradual, que rompe com a compartimentação dos factos constatados para se elevar acima das observações elementares isoladas, rumo a um conhecimen­ to conjunto e contínuo do comportamento intelectual, afectivo e já cultural da criança. E semelhante ao tronco de uma árvore que lança os primeiros ramos onde virão apoiar-se as múltiplas Gêneses (do Homem, das Casas, dos Automóveis, das Aves, dos Cavalos, etc.) saída, em tropel dos inúmeros cadernos escolares. Este trabalho enorme de recolha de documentos, que du­ rou anos e anos, visava apoiar solidamente a veracidade e a generalidade dos processos da tentativa experimental; desco­ brir constantemente o cerne vital que, segundo a expressão de Teilhard, “se pluralizará para fazer face às várias possibilida­ des”; sondar-lhe o leque, o curso das ramagens até aos galhos mais frágeis, rumo à harmonia requerida pelo equilíbrio da lei. A lei cuja sujeição Freinet temia; a que se arrisca impor a quem se habitua a usá-la como medida válida para, as peque­ nas coisas, sem descortinar a sua necessária integração no vasto ritmo da vida, sem compreender que a prática e a teoria são duas faces de um mesmo comportamento imposto pela autoridade eterna. Estas considerações explicavam e justificavam o exame ampliado das múltiplas gêneses e a respectiva inserção nos ramos do tronco inicial. O destino não permitiu que Freinet conduzisse tais edifícios orgânicos até à sua síntese última e magistral. Foi assim que algumas gêneses ficaram por cons­ truir (dos Animais, das Flores, dos Sóis, das Árvores...) e que as já concluídas não puderam inserir-se na Escada base para dar origem a uma escada de segundo grau; a uma ramificação mais fina e mais subtil onde a seiva da energia instintiva se transformasse em energia intelectual e espiritual, partindo o todo de uma energia única, a Vida, ora decidida ora hesitante mas sempre orientada para uma finalidade. Este trabalho interrompido e que deixa em suspenso investigações a completar pode, à primeira vista, parecer fruto de um pensamento insuficientemente amadurecido: apresenta vazios que não é possível preencher. Todavia, a solidez e a deliberação do plano subjacente, bem como os dados positi­ vos que propõe, desvendam-nos a pouco e pouco a lição de 10

toda a obra de Freinet, uma obra que respeita acima de tudo o ritmo da acção necessária: procurar o essencial, esclarecer o problema mais premente, segui-lo nos desenvolvimentos a que faz apelo, caminhar para uma conquista jamais definitiva. Eis o programa do pioneiro que rasga estradas nas terras estéreis da realidade escolar. “O homem vê, não o trabalho em si, mas a finalidade e avança em linha recta para esse alvo; nivela, limpa, desaterra. Algumas hastes teimosas escaparão ao fio da sua foice, o mato cortado obstruir-lhe-á por vezes o caminho, mas outros virão e encontrarão a brecha entreaberta, a via encetada; passarão! E a tarefa aproximar-se-á do objectivo vislumbra­ do.”(1) ELISE FREINET As directrizes das conclusões psicológicas que Freinet contava tirar das suas observações vêm anotadas no final dé­ cada gênese. Para distingui-las do texto original são rubricadas por E. F.

(1) C. Freinet. L'Educateur prolétarien (15 de Julho de 1937).

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PREÂMBULO

O maior mérito do homem será talvez o de sentir-se responsável pelos seus actos e pô-los ao serviço dos propósitos mais nobres da sua consciência. Não quer isto dizer que tal lhe suscite automaticamente a simpatia e a concordância dos seus congêneres, mas antes que faz arriscar a ver-se incompreendido na sua boa fé e denuncia­ do como um não-conformista, propagador da perturbação e do erro, Porém, aconteça o que acontecer, o facto é que todo o pensamento generoso fertilizado pela acção acaba por dar fruto. Com efeito, há um momento cm que a verdade pessoal, traduzida no trabalho paciente, é comunicativa. Claro que a mensagem não é acatada por todos, mas basta que alguns discípulos a assimilem, insuflando-lhe nova vida, para que a ideia prossiga, pronta a fazer milagres. Só quando a iniciativa isolada se tiver transformado em pensa­ mento colectivo e cada um a houver aclimatado às várias condições do meio — tornando-a familiar e como que inofen­ siva na aparência - estará ganha a causa. Ao longo das décadas em que pusemos à prova uma pedagogia natural baseada na livre expressão da criança, passá­ mos pelas incertezas e eventualidades inevitavelmente ineren­ tes às ideias novas que procuram enraizar-se num campo tão eminentemente conformista como é o do ensino. Mas, apesar de todas as adversidades, as descobertas feitas correspondiam a autênticas necessidades e seguiram o seu curso. Podemos afirmar que a causa de uma pedagogia renova­ 13

da está ganha. E está-o não só por mobilizar técnicas educati­ vas modernas, como por implicar uma reconsideração da psi­ cologia tradicional ultrajantemente analítica e apoiada no imobilismo das faculdades da alma. A criança, que a cada instante dá provas das suas aptidões criadoras, que incessantemente imagina, inventa e cria, só pode ser compreendida e apreciada através de uma psicologia de movimento, inteiramente inédita. Embora tenhamos fixado balizas sólidas para o desenvolvimento de uma psicologia da acção, não poderemos de forma alguma considerar os nossos longos anos de investigação e de trabalho como uma aquisição definitiva. Encaramo-los simplesmente como um grande passo dado no sentido de um conhecimento dialéctico e mais huma­ no da alma infantil e das suas potencialidades. Desnecessário será dizer que, para alargar o campo da pedagogia, é imprescindível não nos sentirmos amarrados ou limitados por uma mera pedagogia de aquisição. O ambiente de compreensão e de amizade das Escolas Modernas desperta valores não previstos nos programas escolares. É o caso das criações artísticas e poéticas que conferem às nossas humildes escolas oficiais a sua feição mais comovente. Tais flores da sensibilidade infantil e da solicitude dos mestres apenas desa­ brocham em climas de confiança e liberdade, onde a simpatia e a disponibilidade venham ao encontro das iniciativas mais secretas. À escola tradicional, voltada para o rendimento escolar e para a preparação dos exames, não faltam boas intenções, mas o rigor dos controles intempestivos e a salvaguarda da discipli­ na exterior atropelam a cada passo a espontaneidade dá crian­ ça. Ignoram os jardins secretos onde a alegre infância canta as suas inumeráveis venturas. A felicidade é flor que necessita de presenças e ternura. Entregue a si própria, a criança perde muito tempo a discernir as hierarquias necessárias à formação da sua personalidade. Uma testemunha, um apoio, poupar-lhe-ão desapontamentos e esforços inúteis. Se o professor souber desempenhar esse papel de catalisador e de confidente, se conseguir ajudá-la a vencer os obstáculos e a conservar o entusiasmo e a iniciativa, terá realizado aquele ideal de cama­ radagem que oferece à educação as suas maiores oportunida­ des de triunfo, emprestando-lhe amplitude e subtileza. E já 14

ninguém se surpreenderá ao descobrir a criança-artista ou a criança-poeta - espécimes excepcionais nas aulas tradicionais, mas que entre nós evoluem com naturalidade e segurança. As limitações criadas por uma pedagogia de simples rendi­ mento escolar não permitiram avaliar com justiça as possibili­ dades da criança. Aos pais e aos professores apenas interessa a ciência adquirida em função dos exames. A sua desconfiança em relação aos desenhos e aos poemas infantis - pelos quais os professores de nível superior manifestam um profundo respeito — é total. Só a calorosa e veemente simpatia dos artistas e dos poetas conseguiu legitimar as criações infantis e reconhecer-lhes um certo quociente cultural. O impulso está dado; bastará agora aclimatar a expressão livre da criança em aulas resolutamente abertas para a vida. A tarefa parece fácil. Contudo, ao examiná-la de perto, a sua amplitude arrisca-se a assustar os partidários do imobilismo e da escolástica pedagógicos. Alimentar este impulso prodigioso da criança significa rever toda a nossa concepção do processo civilizacional. Há que eliminar radicalmente todas e quaisquer entidades intelectualistas impotentes para explicar e regular o comportamento infantil e que restituir às considerações materiais, fisiológicas, humanas e ambientais a respectiva dignidade e valor funcio­ nal; há que recolocar todo o processo vital da infância sob o signo da experiência permanente e complexa que é a única soberana; há que concentrar, em torno de algumas ideias simples e sensatas, reconhecidas pelos cientistas mais sinceros e dinâmicos e luminosamente reveladas pelos sábios, a com­ plexidade crescente das nossas reacções educativas; há que detectar, para corrigi-las, as razões da impotência e do fracas­ so e que descobrir as vias libertadoras de uma pedagogia à medida do homem. Não será pelo absoluto das nossas conquistas mas pela relatividade das nossas pretensões que se medirá a profundida­ de das nossas investigações e a eficácia dos nossos conselhos. A vida é uma conquista. Se se tornou numa luta, aos nossos erros comuns o deve. Só o esforço solidário das boas vontades poderá franquear à criança um futuro à medida das suas esperanças. E. F.

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PRIMEIRA PARTE.

O MÉTODO NATURAL DE DESENHO

INTRODUÇÃO AO MÉTODO NATURAL

A educação artística, quer na escola quer fora dela, acaba de vencer um obstáculo. Até muito recentemente, visava ape­ nas cultivar alguns talentos excepcionais cujo aparecimento meteórico — que é aliás de todos os tempos testemunhava simultaneamente a perenidade do génio e a incapacidade bási­ ca das massas para se aproximarem dele ou para comprecndé-lo. A nossa época, preocupada com a educação popular, superou essa fase. Encontramo-nos todos em busca dos métodos pedagógi­ cos que melhor poderão desenvolver e promover as aptidões artísticas da massa infantil, no quadro normal de um meio social e de uma escola cuja evolução devemos prever, orientar e preparar. Neste complexo vital onde nenhuma disciplina poderá isolar-se do problema educativo global, há que estudar em que medida a cultura artística desejável adjuvará a eclosão e o amadurecimento das restantes faculdades, concorrendo ao má­ ximo para a formação da criança — o homem que amanhã terá de enfrentar e dominar as dificuldades inerentes à civili­ zação contemporânea. Esta investigação e este estudo são tanto mais necessários quanto o desenho e a pintura têm sempre sido, e continuam frequentemente a ser. tidos como actividades de luxo, de méritos inegáveis, mas que não devem usurpar as técnicas escolares consideradas essenciais. Aceita-se, de facto, que as crianças das primeiras classes “garatujem”; admiram-se lealmente os seus triunfos tal como 19

se admiram os castelos de areia construídos na praia e que a maré alta irá derrubar - eterno recomeço - , sem outro fito além da exaltação momentânea; da mesma forma que nos toca o balbuciar das crianças no berço antes que as exigências da vida venham embaciar essa exaltação e essa esperança. Tal eclosão, de que as exposições de desenho infantil constituem comovente testemunho, não irá também desvanecer-se perante as necessidades escolares? Não passará de um momentâneo vislumbre? Ou será que conseguiremos transfor­ má-la num sólido ponto de partida para uma educação alta­ mente prometedora? Por outras palavras: será que os produ­ tos da expressão livre e da intuição poderão florir nas classes primárias e integrar-se no nosso quadro metodológico nor­ mal? Permitirão a progressão indispensável que deverá levar os alunos à criação de obras de arte conscientes e amadureci­ das? Oferecerá a fantasia das primeiras realizações uma base possível para a aquisição das técnicas? Ou deveremos, a certa altura, abandonar esses jogos supostamente gratuitos para en­ frentar os deveres áridos e decepcionantes da vida? Existirá realmente um método de formação artística alicerçado na livre expressão da criança? É para responder a tão grave questão que iremos relatar a nossa experiência e dar o nosso testemunho. Não ignoramos que a opinião dos educadores e dos pais se mantem rígida e inamovível. Seja qual for o valor intrínse­ co das obras nascidas da necessidade que a criança tem de se exprimir numa linguagem própria, dotada de uma subtileza reconhecidamente fecunda, não bastará para dissuadi-los da convicção de que num dado momento, entre os 7 e os 12 anos de idade, se torna indispensável abandonar a estrada real para sacrificar à escolástica. E a experiência parece dar razão aos cépticos. Nas aulas que designaremos por tradicionais constata-se, com efeito, que as crianças não possuem faculdades artísticas, que não sabem, salvo raras excepções. desenhar nem pintar. Não têm ideias, forçando os educadores a impor-lhes noções técnicas pelo processo clássico dos exercícios e lições. Mas constata-se também que as crianças formadas nas classes maternais ou infantis, nos cursos preparatórios ou 20

elementares da Escola Moderna, degeneram à medida que vão transpondo os graus escolares, como se nessa fase se produzis­ se uma espécie de revolução orgânica que modificasse os processos de pensamento e de vida; como se o sangue já não circulasse com a mesma força nem no mesmo sentido e se verificasse, no domínio da cultura artística. uma metamorfo­ se radical apenas comparável às profundas transformações da puberdade. forno explicar tais constatações? Que método recomen­ dar para superai o famoso hiato que parece contradizer os dados habituais da formação e da vida? É neste ponto que vamos concentrar as nossas atenções. Os sistemas psicológicos e pedagógicos contemporâneos assentam numa concepção, que julgamos errada, dos processos de formação do indivíduo e de aquisição dos conhecimentos e dos mecanismos indispensáveis à vida. Não obstante os ensinamentos dos pensadores e as de­ monstrações teóricas dos investigadores do passado e do pre­ sente, a escola, seja a que nível for, continua persuadida de que não há cultura possível sem um estudo metódico de regras e de leis que seriam os seus elementos constitutivos, o esqueleto a que cm seguida bastará insuflar vida. Os meios práticos desta cultura são a memorização, os exercícios, as lições e os factores de sanção inerentes. Aí reside o grande erro, tão difícil de combater que justifica todas as falsas manobras da escolástica. O bom senso c a experiência demonstram, pelo contrário, que não é pela explicação intelectual, pelo recurso às regras e às leis, que se faz uma aquisição, mas sim pelo mesmo processo geral universal de tentativa experimental que tem, desde sempre, regido a aprendizagem da língua e da marcha. Quando um indivíduo ainda não deformado por técnicas acessórias se vê perante uma dificuldade, não procura resolvê-la através dos conhecimentos teóricos que foi possível ensi­ nar-lhe. Actua primeiro ao acaso, tira partido das circunstân­ cias que. se lhe oferecem ou segue uma inflexão particular que lhe permite esperar o triunfo, porque o indivíduo sente neces; sidade de triunfar. O fracasso é sempre destruidor c perturba­ 21

dor. É a doença, o sofrimento e a morte. E o indivíduo quer viver. Se a tentativa falha, é como um ccaminho que se fecha com um obstáculo mais ou menos traumatizante. Perde-se a vontade de recomeçar a experiência. E será muito difícil desbloquear a via, mesmo que um dia se torne necessário. Mas se a tentativa triunfa, é como um sulco que se abre e que tenderemos a seguir nas tentativas futuras, em virtude de uma lei de economia do esforço muitas vezes valorizada pelos psicólogos. O processo diversifica-se, mas em todos os graus da nossa formação, em todos os factores da nossa lenta cultura, paira esse mecanismo soberano que é como que o fio de Ariana da nossa nova psicologia e da nossa prática pedagó­ gica. Isso não significa, evidentemente, que uma aquisição seja sempre fruto exclusivo de uma tentativa experimental pessoal. Em determinada fase, o indivíduo apropria-se por imitação, por observação ou por leitura da experiência alheia, da expe­ riência presente e passada das gerações. Porém, essa apropria­ ção opera-se agora à base e em função da experiência pessoal que continua a orientar a tentativa. A tentativa experimental diversificou-se e acelerou-se sem perder por isso as suas virtu­ des por assim dizer orgânicas. É através desta tentativa experimental e não recorrendo a lições escolásticas que as crianças de todos os tempos e países tem aprendido e aprendem a andar correctamente e a falar com perfeição a respectiva língua materna. A criança pronuncia um dia certos sons que originalmente só são o acidente de um grito mais ou menos expressivo com a experiência, alguns desses sons adquirem, a posteriori. como que uma justificação e um valor de relação. Representam um triunfo experimental. A criança repete-os então até havê-los integrado no seu automatismo vital. Outras experiências e outros triunfos enriquecerão esta primeira linguagem que a criança confrontará, ainda experimentalmente, com a expe­ riência alheia. Novas palavras nascerão e definir-se-ão até elas próprias passarem ao automatismo. Nesta aprendizagem não intervém qualquer lição, qual­ quer regra. Os erros acidentais de alguns adultos são sempre superados e corrigidos pelas conquistas experimentais da vida. 22

Os resultados revelam-se tão perfeitos, que nenhum outro método tem conseguido melhores. Salvo deficiências fisiológicas graves, as crianças aprendem a falar a língua dos pais como os pássaros aprendem a chilrear o canto das aves. Mas mais importante ainda: não faltam exemplos comprovativos de que o talento dos conversadores mais subtis e dos oradores mais eloquentes se deve não às lições escolásticas, mas a este mesmo processo soberano de tentativa experimen­ tal. Serão então as regras e as leis totalmente inúteis? Constituem uma conclusão e não um ponto de partida. Só revelam, aliás, certa utilidade quando o indivíduo já inte­ grou a prática da língua no automatismo verbal. Antes desse momento, antes da formação de uma base experimental ade­ quada. o acentuar das regras surge como algo de antinatural, que ameaça perturbar o processo de tentativa e falsear de uma maneira irremediável todo o mecanismo de aquisição. Objectam-nos muitas vezes que aquilo que é verdade para a linguagem o não será forçosamente para as outras discipli­ nas. Mas por que razão um processo cem por cento infalível na aquisição de uma das aptidões humanas mais delicadas não será extensível às outras conquistas? O processo é global, regula a aprendizagem da marcha, onde não intervém lição de espécie alguma, e está igualmente na base de todos os actos correntes da vida, da música, do canto, da pintura e das artes cm geral.

Em que consiste este método? Deixamos a criança desenhar livremente desde a mais tenra idade, a partir dos dois ou três anos. Vemos o lápis começar por mover-se ao acaso sobre a folha. Depois surge uma semelhança, nasce o primeiro êxito, que a criança repeti­ rá até ao automatismo. Seguir-sc-ão outras tentativas, obter-se-ão outros êxitos, as tentativas falhadas serão automatica­ mente abandonadas. Sublinhamos que não se trata aqui do processo de tentati­ va e erro mencionado por alguns psicólogos. Os gestos da criança não são gratuitos. Seguem planos experimentais. Tem uma finalidade, fruto por vezes de um princípio de apreciação intuitiva individual, mas quase sempre suscitada por relações com o meio ambiente onde a criança procura integrar-se. É 23

com vista a essa integração que se inspira nestes ou naqueles camaradas, senhores já de uma invejável mestria. Coloca-se naturalmente em uníssono com os actos conseguidos pelos outros, tal como tenta vibrar em uníssono com uma paisagem bela, com um objecto impressionante ou com obras-primas dos adultos. Mas - e isto é essencial - a criança não copia. Não aproveita a experiência alheia para justapô-la à sua própria experiência. Apodera-se dela assimilando-a, inserindo-a e inte­ grando-a no seu processo de trabalho e de vida até por vezes lhe conferir um cunho original. É assim que o ensino segundo o método Freinet fomenta um determinado estilo de escola, do mesmo modo que, na sociedade em geral, a linguagem e as tendências espirituais e vitais individuais assumem formas de cunho definido. Verifica-se algo de semelhante ao que se passa com a língua, permanetemente sujeita a uma entoação por vezes indelével, característica do dialecto. O aluno constrói a sua originalidade e procura o seu triunfo, enquadrado numa atmosfera familiar que não constitui uma limitação, mas apenas um elemento meteorológico e climático. Não existe lição, mas impregnação decisiva. Por este processo, sem regra preestabelecida, sem cópia de modelos, sem qualquer explicação exterior, a criança atin­ ge experimcntalmente o domínio do desenho. A partir desse momento, sabe caminhar, e não são as explicações que pode­ rão vir a dar-lhe que irão modificar a sua maneira de andar; sabe falar e não terá mais do que aperfeiçoar a sua arte; sabe desenhar e pintar e poderá enfrentar experimcntalmente quaisquer dificuldades que dominará segundo os mesmos pro­ cessos de impregnação viva. Mas, dir-nos-ão. isso não condenará o indivíduo a perma­ necer num estádio infantil, a fechar-se para sempre aos indis­ pensáveis progressos proporcionados por uma iniciação metó­ dica bem compreendida? Expusemos a primeira fase do mé­ todo. Resta-nos agora examinar um outro aspecto das duas formas pedagógicas: a nossa e a dos métodos que considera­ mos tradicionais. Se, no momento em que a criança se encontra em plena elaboração experimental para chegar ao domínio da linguagem. 24

detivermos sistemática e autoritariamente o seu esforço com­ plexo para ensinar-lhe a pronúncia e a leitura de palavras exteriores à sua personalidade e ao seu pensamento, produzir-se-á um desfazamento e um desequilíbrio que irá retardar certa e talvez irremissivelmente a sua evolução. E o que sucederá à criança, que começou já a desenhar e a pintar obras expressivas e originais, se lhe dissermos: “O teu método dc principiante já não serve. Não podes continuar a andar ao acaso, ao sabor dos caprichos. Tens de seguir um outro método. Vamos isolar para ti a fim dc lhes graduares a abordagem, as dificuldades que dantes encaravas temerariamente na sua totalidade complexa; vamos ensinar-te a combi­ nar os elementos constitutivos para que consigas reconstruir a máquina, como o mecânico experiente monta as peças de uma bicicleta. Desenharás linhas rectas, depois linhas quebra­ das ou curvas; copiarás flores ou árvores. Revelar-te-emos os segredos da perspectiva e da sombra quando desenhares à vista o moinho de café ou o chapéu do director.” Durante esse período, o processo pedagógico será coloca­ do num pé pseudocicntífico: “Cantas muito bem, mas não conheces as notas... tens de recuperar o atraso. Resolves os problemas pelos processos ditados pelo bom senso da tua experiência, mas há que aprender a solucioná-los pelo raciocí­ nio. É preciso saber as regras da gramática e da linguística.” Depara-se-nos, portanto, logo à entrada da escola, uma transformação radical das normas de aprendizagem infantil. É aí que temos de situar o hiato hoje tão discutido pelos psicólogos. Tudo o que até então fora essencial para a cons­ trução da vida torna-se bruscamente secundário e clandestino. Uma verdadeira confusão vem perturbar e desequilibrar o comportamento da criança, incapacitada para coadunar os dados da inteligência escolar com as exigências da própria vida. Todo o comportamento escolar ulterior vai ser afectado: a criança deixa de reconhecer-se nesse mundo novo que não foi feito à sua medida e para o qual não divisa sentido nem finalidade. O único recurso que lhe resta para não se afundar consiste em macaquear as idéias c os gestos alheios. 25

Tal perturbação do comportamento, à prova de toda a escolástica, é, infelizmente, um facto vulgar cujas consequên­ cias e riscos se torna quase supérfluo sublinhar. Pegue-se numa criança de seis anos, capaz de manejar o lápis e as tintas com surpreendente facilidade, para quem cada linha possua um sentido determinado e definitivo, para quem cada pincelada se inscreva já magistralmente numa obra cons­ trutiva. O desenho e a pintura são para esta criança actividades naturais e excitantes como a marcha, a linguagem, o canto e a dança. Avança segura de si. Leve-se a criança para uma dessas escolas maternais ou infantis, como ainda há onde se pratica de braços cruzados a cópia do modelo e a obediência cega às ordens do mestre, com um Ersatz de melhoria técnica: o uso dos carimbos de borracha, essa calamidade moderna. A professora circula entre as filas e com gestos secos, imprime sobre cada caderno urna flor ou uma banana que a criança colorirá durante parte da manhã. Será depois a vez do quarto crescente, do quadrado, do triângulo, etc... Em poucos dias todo o encanto criador se terá esvaído uma vez quebrado o traço de união entre a técnica e a vida. Uma barreira de arame farpado terá vindo obstruir a estrada real onde a criança avançava sem receio, saltando dos êxitos para as conquistas. E, o que c mais grave, tal violação do seu destino natural ter-lhe-á suscitado uma dúvida mortal. Convencer-se-á pouco a pouco que se enganara no caminho e começará a procurar em vão no nevoeiro, numa encruzilhada para ela decisiva, as vias que de futuro deverá seguir. Sejam quais forem os fracassos que a esperem, arrisca-se, contudo, a nunca mais retroceder para reencontrar os degraus originais de uma ascensão harmoniosa. Poderemos, quanto muito, sugerir-lhe atalhos. É neste erro de agulhagem que devemos procurar a verda­ deira causa das deficiências crescentes que as crianças revelam perante as dificuldades escolares. Desorientados, os alunos sentem-se perdidos e desanimados. Perdem a vontade de pro­ curar e de criar. A curiosidade embota-se e vai-se extinguindo progressivamente; são como essas crianças a quem uma ali­ mentação errada tirou o gosto pela comida e a quem se teve 26

de “enfiar” a papa pela boca, colher por colher. Tal falta de apetite pode chegar à anorexia. Os nossos alunos estão mais do que nunca a ser vítimas de uma espécie de anorexia mental c torna-se forçoso que os educadores comprometidos no impasse encontrem vias e pro­ cessos susceptíveis de impedir o paciente de morrer à fome, recorrendo, se necessário, à alimentação artificial. Na presente conjuntura de uma escola desligada da vida, é evidente que os processos naturais escasseiam, As soluções escolásticas surgirão talvez como as únicas possíveis no meio escolástico. Iremos demonstrar a sua vaidade e nocividade ao modificar um mun­ do impregnado pela actividade livre e criadora, pelo desejo de trabalho, pela sede de enriquecimento e conhecimento e pela vida. Neste mundo, tal como nos vários planos da evolução infantil, o indivíduo nunca se de tem a meio caminho, a não ser que graves defeitos fisiológicos venham dramaticamente travar-lhe o progresso. Na via de crescimento em que se empenhou, não há paragem que a criança não tente superar. Jamais se viu uma criança deixar subitamente de falar - isso seria a morte ou o seu prelúdio. Jamais se viu uma criança deixar de andar para voltar a gatinhar. No processo da tentativa experimental, depositamos uma confiança total nesta característica universal da vida que ten­ de a ultrapassar-se e a ampliar-se. A criança realizou as suas primeiras experiências laboriosamente mas numa exaltação constante. Desenvolveu-as, apro­ fundou-as e ajustou-as às necessidades vitais inspirando-se nas riquezas do meio e continuará a expandir a sua cultura segundo a mesma técnica. Mas neste estádio já não se conten­ tará em imitar os camaradas mais hábeis, quererá investigar e informar-se nos livros, nos museus, nas exposições para deles extrair o suco donde fará o seu mel. O método de expressão livre, cujas virtudes tão apressada­ mente enunciámos, não é, como se vê. uma simples fórmula de arte espontânea onde o educador se limite a observar c a deixar seguir. A mãe não se contenta em escutar o balbuciar do filho, fala-lhe constantemente. A velocidade e qualidade da aquisi­ 27

ção infantil serão função da riqueza não só formal mas também afectiva do exemplo permanente que ela oferece às suas experiências. O processo é realmente infalível, mas pressupõe uma reviravolta total da técnica educativa; em vez de situarmos no início da aprendizagem o estudo sistemático das leis e das regras, inserimos a tentativa experimental da criança num meio rico, acolhedor e propício, que lhe oferece flores perfu­ madas com que fabricar o seu mel. O estudo das regras e das leis só virá mais tarde, quando o indivíduo tiver transformado as suas experiências em indeléveis técnicas de vida. Não vamos esperar que o método natural de desenho e de pintura desabroche numa atmosfera escolar tradicional, onde vigora um sistema dc deveres e lições acompanhado das san­ ções inerentes. Pelo método escolástico, a criança adquire, tanto na música, no francês, nas ciências e no cálculo como na arte, o hábito de esperar a ordem e o pensamento exter­ nos. Já não exerce a iniciativa e o pensamento próprios. Suporta e segue. A função criadora vital encontra-se paralisa­ da c destruída. Poderá produzir obras verdadeiramente impe­ cáveis sob o ponto de vista técnico, mas essas obras não terão alma. E, sem uma alma vivificadora da técnica, já não há arte nem cultura. A escola que denunciamos e desejamos reformar, incutin­ do-lhe eficiência e fervor, costuma, como último recurso, louvar os êxitos espantosos dos desclassificados e dos anor­ mais que escapam à sua influência, da mesma forma que a sociedade dá como exemplos, depois de mortos, os poetas e os artistas malditos que nunca conseguiu dominar. Não queremos que a arte constitua privilégio de crianças malditas, na perseguição clandestina dos seus sonhos. É toda a infância e toda a adolescência do nosso século que pretende­ mos, através da nossa intuição e ciência, gizar da tentativa experimental até à cultura e à arte, os supremos atributos do homem que procura realizar o seu destino numa sociedade onde terá garantido as virtudes ideais da liberdade, da igualda­ de. da fraternidade e da paz. Tentou-se até agora aclimatar o desenho da criança desde o seu aparecimento às normas escolares, mas só se conseguiu 28

abastardá-lo e destruí-lo. Ser-lhe-ia preciso escapar clandestina­ mente à iniciativa adulta para dar, nas paredes, nas portas e nos cadernos, urna ideia daquilo em que um dia se tornaria, quando os educadores compreendessem finalmente as condi­ ções indispensáveis ao seu florescimento. Permitimos e conseguimos tal florescimento através das Técnicas Treinei de expressão livre e em virtude da poderosa motivação de uma pedagogia ousadamente centrada no traba­ lho integrado na comunidade social viva. E, neste clima novo, o desenho retomou naturalmente o seu lugar, o primeiro, talvez, pelas satisfações profundas que nos traz, pelas alegrias que nos proporciona e pela possibilidade permanente que nos oferece de exprimir de uma forma subtil e espantosa toda a humanidade fervilhante e misteriosa de que a infância conti­ nua a ser repositório. O que se segue é um estudo deste desenho vivo, expres­ são de uma personalidade a braços com a vida. Diferenciar-se-á necessariamente, nos seus processos e conclusões, dos trabalhos similares, alguns deles clássicos, mas que considera­ mos hoje ultrapassados pelas realizações mais espontâneas e estatisticamente mais significativas das crianças que, no seio da Escola Moderna, continuam incessantemente a alimentar o nosso movimento de Arte Infantil. E óbvio que os psicólogos e os pedagogos só podiam ocupar-se do existente: do desenho escolar ou, na melhor das hipóteses, do desenho como evasão acidental de uma atmosfera que lhe era mortal. O estudo do desenho livre das crianças pressupunha a eclosão e o desabrochar de expressão infantil. O nosso trabalho representa, portanto, ao mesmo tempo um fim e um começo, o despertar de uma nova compreensão da vida e da cultura dos nossos filhos. De facto. será muito pouco limitarmo-nos a afirmar a dificuldade que o desenho tem de se desenvolver no clima escolar. Lembremo-nos, todavia, que o desenho livre foi sem­ pre e continua frequentemente a ser o maior inimigo do pedagogo, que o considera nocivo e perigoso na medida em que não se gera nem desenvolve segundo as regras tradicio­ nais. No nosso método natural de leitura, demonstrámos que é escrevendo que a criança aprende a ler e a escrever. Chegou a 29

vez do método natural de desenho comprovar que é dese­ nhando que a criança aprende a desenhar. Mas, dir-nos-ão, é preciso que ela queira e saiba desenhar e que a chama que a anima não se extinga prematuramente — o que será fatal se, em vez de a ajudarmos a triunfar, a desencorajarmos antecipadamente com a preocupação anormal e desumana de fazer prevalecer, na prática do desenho, a forma aprendida e morta sobre o fundo vivo e dinâmico. Não se fala na escola como se fala em casa ou na rua. Uma redacção tradicional conserva sempre o ar falso e con­ vencional de prova para diploma de estudos. Quanto ao de­ senho, a hesitação desajeitada da criança diante da página em branco e a secura dos seus grafismos destituídos de vida bastam para nos denunciar a presença da escola e convencer­ mos de que tudo está por refazer se quisermos devolver-lhe a profundidade e o dinamismo naturais. Entre nós a criança escreve como fala, com a mesma decisão e a mesma segurança. As nossas técnicas levam-na a desenhar com uma audácia, uma originalidade e uma decisão surpreendentes. As suas obras constituem a expressão da sua vida e personalidade, sendo legítimo considerá-las como mar­ cos de uma ciência toda ela ainda por construir. Daqui se concluirá que antes da revolução pedagógica que operámos no processo escolar e excluindo um ou outro triunfo excepcional, a criança, presa ao pesado sistema tradi­ cional, não se exprimia através da escrita nem do desenho e que nem os psicólogos nem os pedagogos dispunham de documentos autênticos que pudessem estudar e interpretar. Para voltarmos à nossa comparação: podiam discutir o com­ portamento da ave na gaiola, mas ignoravam-lhe o compor­ tamento na liberdade do seu ambiente natural. E facilmente se reconhecerá que a diferença que os separa não e mera questão de forma, mas atinge a essência. As observações baseadas nos desenhos de crianças engaioladas não são válidas para as obras das crianças das nossas escolas modernas. Foi esta diferença de natureza que tornou imprescindível este trabalho. Desejamos: ... que persuada os educadores da urgente necessidade de 30

sacudirem a poeira deformantc da escolástica e de se coloca­ rem ousadamente ao serviço da Vida; ... que dé um impulso irresistível a uma técnica de traba­ lho cujos êxitos deixam bem longe os pálidos resultados dos métodos superados; ... que apazigue os receios dos pais, mostrando-lhes os progressos seguros realizados no sentido de uma nova concep­ ção de arte e de cultura, que embelezará e exaltará a vida do povo; ... que a prática do desenho livre, a nível da escola popular, ajude os educadores a compreendei e a apreciar uma pedagogia que se pretende prioritariamente ao serviço da vida, no meio que a criança será amanhã chamada a dominar e a transformar.

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O QUE É O DESENHO?

O que é o desenho? Porque desenha a criança? A escola responderia que a criança desenha porque lhe dão lições e a obrigam a fazer exercícios de desenho. Diria que a criança desenha para aprender a desenhar, isto é, para copiar exactamente um modelo ou para realizar um esboço cotado, e que o desenho aprofunda a observação e cultiva o sentido do gosto e da harmonia. Não nos surpreendamos se, com tais motivações e finalidades tão estreitamente utilitárias, a escola não avança muito neste domínio. Não pretendemos ser os primeiros a formular tais críticas. Houve psicólogos e pedagogos que, ultrapassando a concepção estreita da escolástica, vislumbraram a necessidade de estudar os desenhos que as crianças ou, pelo menos, certas crianças produziam espontaneamente na escola. As suas observações São-nos úteis. O facto de pensarmos ir mais longe do que eles na compreensão nova do desenho de forma alguma nos levaria a subestimar o auxílio directo ou indirecto de que beneficia­ mos. No entanto, o que criticamos nos seus trabalhos é a orientação: o desenho não surge integrado numa fórmula de vida, tal como não surge integrado numa fórmula de acção pedagógica. Num sistema escolar onde a educação continua divorciada do meio que deveria constituir o seu indispensável elemento vital, o acto de desenhar permanece misterioso na sua concepção, evolução e conclusão. À falta de melhor, os pedagogos tentaram explicar e justificar o desenho pelo jogpo, 33

pelo acaso, pela ontogénese e pela magia, considerações todas elas dependentes do pensamento adulto, dos seus cânones e das suas leis. O psicólogo encontra-se assim na obrigação de detectar nos grafismos infantis todas as falhas do pensamento adulto e de catalogá-las como defeitos inerentes à mentalidade da criança. Partindo do falso princípio de que a ideia que a criança tem de um objecto se traduz na representação gráfica que faz desse objecto, estabeleceram-se testes graduados em categorias arbitrárias, cuja utilização não é destituída de peri­ go. Tal prática valeu-nos sábias construções livrescas que, no entanto, não satisfizeram a pergunta elementar que os pais e os educadores faziam a si próprios: por que razão desenha a criança? É a ela que nós queremos responder. A resposta, aliás, integra-se no âmbito da psicologia que definimos no nosso livro: Ensaio de psicologia sensivel (1), fruto de uma experiên­ cia prática conduzida sem qualquer apriorismo em vários milhares de escolas populares que constituem um dos mais importantes e eficientes laboratórios vivos de psicologia e de pedagogia dc hoje e de sempre. Ao considerarmos a expressão escrita infantil, mostrámos e provámos, pela prática, que ela surge e evolui exactamente segundo o mesmo processo que preside ao aparecimento e ao desenvolvimento da linguagem(2). Vamos agora demonstrar que a expressão gráfica nasce e cresce segundo o mesmo processo da expressão oral e da expressão escrita. Se conse­ guirmos tornar sensível, não só em teoria mas também na prática, a unidade de concepção e de acção que liga a psicolo­ gia à pedagogia e à vida, forneceremos aos educadores um elemento harmonizador de primeira importância para a nova compreensão e eficiente exercício da sua profissão. Não há um problema de desenho, tal como não há um problema de redacção. Existe, sim, um processo de vida, de enriquecimento e de crescimento no qual devemos integrar as formas diversas e complexas da expressão infantil. São as fases naturais e normais do processo de desenho livre que vamos procurar definir. (1) Edições Delachaux ei Niesllé. (2) Método natural de aprendizagem da língua (Editorial Estampa).

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Se o processo é, na sua natureza, nas formas e nos objectivos, o mesmo que preside ao domínio infantil da técnica da expressão oral, num tempo incrivelmente curto, bastar-nos-á comparar ponto por ponto ambos os processos de aquisição para descobrir a chave que irá orientar-nos ao longo deste estudo. Melhor nos aperceberemos então de que, como todas as conquistas humanas, o domínio da expressão pelo desenho, como o domínio da expressão pela palavra, se reali­ za segundo o processo da tentativa experimental já por nós definido em várias obras. Nenhuma aquisição, seja ela manual, intelectual, social ou moral, surge espontaneamente cm virtude de um dom ou de uma faculdade surpreendentemente monopolizados pela espé­ cie humana. Todas as conquistas do homem — todas as conquistas do ser vivo resultam da experiência vital e ambiental posta ao serviço da superior e geral necessidade que ele tem de crescer, de vencer os obstáculos que perturbam essa evolução, de afirmar a personalidade, de subir o mais alto possível e de perpetuar-se na carne e nas obras. Determinámos as regras essenciais da tentativa experimen­ tal. Vamos agora ocupar-nos sumariamente das etapas essen­ ciais do processo. Na série quase infinita dos actos que o indivíduo pratica para viver e dominar o meio, só alguns resultam, isto é, só alguns lhe conferem pelo menos uma parte do poder de que tem necessidade para subsistir. Todo o acto conseguido se reproduz. Tal reprodução do acto repete-se até automatizar-se, até incorporar-se no comportamento individual como uma regra ou técnica de vida que, por esse facto, passa a dispensar qualquer reflexão ou tentativa, até enraizar-se como um acto instintivo seguro. — Estas experiências conseguidas e automatizadas consti­ tuem como que os degraus sólidos de uma escada de acesso aos andares superiores. Enquanto não dominar a marcha, a criança só pensará em dominar o equilíbrio. Uma vez senhora desse equilíbrio, poderá então partir para outras experiências. O exemplo alheio poderá, caso corresponda às necessi­ dades do sujeito, inscrever-se no seu comportamento a título de experiência conseguida, É este grande princípio que ilumi­ 35

na o papel do exemplo na educação. A experiência por tentativas de forma alguma poderia negligenciar tal exemplo. — A rapidez com que o indivíduo se apodera de uma experiência conseguida e a automatiza antes de prosseguir a tentativa experimental noutros sectores surge-nos justamente como o verdadeiro sinal de inteligência. Há seres que precisam de repetir dez ou cem vezes o mesmo gesto antes de dominá-lo, o que nem sempre conse­ guem com perfeição. São os indivíduos pouco inteligentes, atrasados ou anormais. Outros há, pelo contrário, a quem uma única experiência basta para imprimir um traço indelével ou a quem o simples facto de presenciarem a experiência alheia ou de lhe examinarem a imagem permite a aquisição definitiva do processo. São os indivíduos inteligentes, os que atingem os andares cimeiros, aqueles que, sem hesitações, sobem a escada degrau a degrau ou mesmo de quatro em quatro, enquanto que os menos inteligentes se exercitam dez ou cem vezes para subir a mesma escada. Tal constatação autoriza-nos a estabelecer na nossa peda­ gogia o princípio da escada, onde cada degrau dispõe de dois tempos: o da repetição e o do êxito. É a rapidez destes passos que nos informa sobre aquilo a que chamamos a permeabilidade à experiência, ou seja, a inteligência. A concluir este estudo apresentaremos a nossa escada de desenho dos zero aos seis anos, cujos vários patamares seguem passo a passo a evolução do desenho em função do comporta­ mento infantil. — A experiência por tentativas é, pois, função do exercí­ cio motivado pela vida num meio normal e humano, dotadotanto quanto possível, de exemplos susceptíveis de se inscreverem na experiência infantil. — Esta tentativa experimental não constitui, como tantas pretensas leis psicológicas e pedagógicas, uma construção arti­ ficial a que apenas alguns especialistas podem recorrer. É a grande lei, a grande técnica da vida, da experiência e da acção não só infantis como adultas; é um dos fundamentos da investigação científica, uma vitória da vida sobre o dogmatismo cujos malefícios tentamos reduzir. Antes de entrar no âmago da questão, desejaríamos preci­ sar ainda as intenções dos nossos passos que, partindo da

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prática, visam pôr à prova uma teoria que não é senão a conclusão da experiência. É, pois, com a preocupação de pôr ao alcance da grande massa dos educadores e dos pais a prática do desenho espon­ tâneo que damos aqui as directrizes essenciais capazes de os orientar e de lhes lazer compreender o sentido global dos trabalhos dos filhos. Portanto, este livro deve ser considerado como o primeiro patamar de um estudo mais completo visan­ do o conhecimento do desenho infantil sob todas as suas formas. Assim, torna-se forçoso esquematizar em extremo a nossa teoria fundamental da tentativa experimental, procu­ rando ligá-la indissoluvelmente à prática pedagógica do dese­ nho infantil. É na fraternidade do trabalho de base que iremos prepa­ rar esta pedagogia experimental que nos dará as primeiras garantias de uma educação científica e humana digna do futuro da criança.

I. Primeiros grafismos

Para termos a certeza de não nos desviarmos do nosso caminho, iremos estabelecer, através deste estudo, um paralelo constante entre a evolução do desenho e a evolução da linguagem, por um lado, e acidentalmente o nosso método natural de leitura que segue o mesmo processo, por outro. Os nossos leitores habituar-se-ão, assim, a seguir esponta­ neamente as linhas mestras desta evolução e a reencontrar as directrizes que a escolástica radical definitivamente nos dissimulara. Ao nascer, a criança grita porque o seu aparelho respira­ tório e a conformação da sua laringe são tais, que produzem sons à passagem do ar. Existe, na origem da longa experiência por tentativas que irá encaminharmos para a expressão falada, uma realidade fisiológica: as possibilidades oferecidas por um órgão utilizado como instrumento de expressão e a cujo aproveitamento incessantemente diferenciado assistiremos.

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O mesmo sucede com o primeiro grafismo. Existe, na base, uma realidade material: a possibilidade de dispor de um instrumento - lápis, giz ou esferográfica — que produz o primeiro traço.

A criança começa por servir-se deste instrumento como de um pau ou de uma chucha e depois, talvez por acaso ou por ter visto o adulto usá-lo para traçar sinais no papel, lembra-se de apoiar numa superfície plana o lápis ou o giz que deixam um risco. Ao primeiro grito corresponde o primeiro grafismo. Mariette (1 ano e 5 meses). 38

II. Primeira repetição dos grafismos conseguidos

Embora seja prematuro ver nos gestos e nas primeiras reacções de uma criança de tenra idade um embrião de comportamento raciocinado, não deveremos por isso deixar de considerar-lhes um sentido e uma razão de ser. Os princípios da experiência por tentativas (1), bem como a lei que preconiza o menor esforço para um máximo de rendimento e que surge como uma das grandes normas do comportamento dos seres vivos, fazem com que o indivíduo tenda a repetir o acto conseguido. A criança deu um grito e, intuitivamente, a sua repercus­ são no ambiente revelou-lhe que foram um triunfo. Tende a repeti-lo, desconhecendo ainda como aproveitá-lo, por simples necessidade de alcançar um domínio fisiológico desse êxito. Com o lápis ou o giz que segurara nas mãos e que utilizara quer acidental quer imitativamente, a criança obteve um primeiro grafismo que lhe parece, por mais imperfeito que seja, uma afirmação do seu poder.

Fig. 2

(1) Ver Ensaio de psicologia, Delachaux et Niestlé.

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O acto conseguido, tal como o grito, tende a repetir-se. O giz ou o lápis, que por acaso ou imitação proporcionaram à criança um primeiro êxito, vão agora ser voluntariamente procurados e utilizados por ela para repetir o acto consegui­ do, até à conquista de um domínio satisfatório que lhe permita novas experiências. Por experiência e por tentativas, a criança agarra sem hesi­ tar o lápis pela extremidade certa e orienta, pouco a pouco e conforme os seus desejos, o traçado dos primeiros grafismos. Os traços, inicialmente direitos, sobrepostos ou mesmo circulares, complicam-se gradualmente com a introdução de linhas quebradas que surgem como um desejo ainda tosco de dominar o instrumento e orientar o seu uso no sentido de formas que representam já um começo de diferenciação. Bru­ no (2 anos e 3 meses).

Fig. 3

Aperceber-nos-emos disso ao examinar os documentos 2 e 3 que, com 2 anos e 3 meses e 2 anos e 4 meses, denotam Uma maior segurança de gesto. Dominique (2 anos e 4 meses). 40

III. Primeiro êxito especializado

Através da experiência por tentativas, a criança toma consciência dc que os seus gritos podem aumentar-lhe o poder, ampliar-lhe e reforçar-lhe a personalidade e proporcio­ nar-lhe meios novos para triunfar na vida. Quer agarrar a colher que reluz em cima da mesa e, para consegui-lo, repete os gestos mais ou menos coordenados resultantes das suas experiências anteriores. Impotente ou irritada, solta um grito e uma mão compadecida aproxima a colher cobiçada. A criança venceu. Para a próxima vez que se trate de agarrar uma colher, repetirá o grito que constituiu para ela um primeiro êxito especializado. O processo que vai definir a nova etapa da evolução do grafismo infantil é o mesmo. A criança, irritada por ter feito riscos circulares, esboça com gestos mais bruscos traços angulosos, riscos carregados c. por fim, fatigada, acaba por dar grandes pancadas com o bico do lápis. E eis que nascem pontos e manchas que, em relação ao grafismo previamente adquirido, surgem como um novo

Fig. 4

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triunfo, já mais especializado, que a criança tenderá a repro­ duzir mecanicamente até dominar. Daí em diante, aos seus riscos redondos irá acrescentar pontos c manchas, da mesma forma que acrescentara o grito aos seus gestos.

Fig. 5

Este grafismo será mais particularmente um triunfo, se o adulto ou as outras crianças parecerem dar-lhe importância. A repetição deste grafismo conseguido e mais especializado auto­ matiza-se e eis-nos perante a conquista dc um novo patamar. Mariettc e Bruno (2 anos e 4 meses).

IV. O desenho, meio de acção sobre o ambiente

O grito, jú especializado e dotado de uma finalidade, vai ser usado pela criança sempre segundo o mesmo processo, para alargar a sua acção sobre o ambiente e para aumentar o seu poder. A criança apercebeu-se de que, ao gritar de uma certa maneira, a colher lhe ficava ao alcance da mão. Soltou em 42

seguida o mesmo grito quando desejava o biberão. E, na medida em que obtinha satisfação, foi repetindo o seu êxito até dominar-lhe a técnica e antes de se lançar em noras tentativas. É a esta mesma etapa do processo que vamos agora assistir no âmbito da evolução do desenho infantil. Sc, em redor da criança, ninguém notar essa mancha negra no meio dos rabiscos, ela ficará sem eco nem efeito, como um grito que a criança houvesse soltado e não tivesse sido ouvido. A criança não lhe dará qualquer importância ou, pelo menos, qualquer valor vital. Passará a outras tentativas experimentais. Sc vir, porém, que lhe admiram esse primeiro triunfo, fará — ou tentará fazer - um desenho semelhante para agradar, para ter um novo desenho capaz de suscitar o louvor ou. pelo menos, a apreciação daqueles que a rodeiam.

Fig. 6

A criança esforça-se então por reproduzir a sua vitória, como fez Mariette (2 anos e 5 meses) no desenho n.° 6. vitória que aqui se traduz nos pequenos grafismos isolados, preciosos sem dúvida pela sua pequenez c estranhos ao automatismo. Mas a criança não distingue qualquer identidade nesse grafismo. Trata-se de um mero triunfo de linhas sem qualquer 43

valor intrínseco. Neste estádio não tenta ainda explicar o seu desenho, que nada significa, a monos que represente uma forma global, imitada do adulto. Todavia, talvez por lhe haverem perguntado: "O que desenhaste?" Ou por ter visto um companheiro desenhar círculos, automóveis ou flores, tenderá agora a interpretar os seus grafismos.

Fig. 7

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É o que faz Nicolc (2 anos e 5 meses) que, num grafismo

ainda muito próximo dos documentos anteriores, distingue, com extrema boa vontade e com a cumplicidade do seu primo Alain, uma maçã e uma flor.

Fig. 8

É a mesma boa vontade, inspirada sem dúvida pelas mesmas razões, que leva Mariette (2 anos e 5 meses) a distin­ guir sobre o papel "um sol, biscoitos, a lua, o medalhão da mamã" c até “o coração da flor”. 45

As considerações do ambiente têm, no processo da tenta­ tiva experimental, muito maior relevância do que se pensa, São elas que constituem definitivamente as verdadeiras condi­ ções determinantes da educação. Se é raro ouvir conversas em seu redor, se o ambiente — pais, professores ou camaradas não dá importância aos seus primeiros gritos, a criança não sentirá tão depressa a alegria de exprimir-se com êxito, levará mais tempo a aprender a falar. O mesmo sucede com o desenho: se a criança se encontra num ambiente onde o instrumento não desempenha qualquer papel, se não vê desenhar, se não vê adultos ou outras crianças servirem-se de um lápis, se não tem alguém à sua volta que dê atenção às suas primeiras produções, experimen­ tará menos intensamente e menos depressa o sentimento do êxito através do desenho. Terá menos tendência para utilizar o desenho como meio de acção sobre o ambiente e, mais tarde, como forma de expressão, Foi o que aconteceu à nossa geração, que viveu a infância no começo do século: falta de papel, poucos lápis, giz muito caro; daí a tendência dos adultos, tanto pais como educado­ res, considerarem o desenho como algo de perigoso e rigorosa­ mente proibido. Resultado: o desenho jamais constituiu para nós um meio de acção ou de expressão. Hoje, as condições tornaram-se ou tendem a tomar-se totalmente diferentes. O suporte papel ou cartão - e de uso muito mais corrente, o mesmo sucedendo com os instru­ mentos - lápis, esferográficas, giz, tintas, etc. A criança encontra desenhos por toda a parte: nos jornais, nos livros, nos anúncios e nos papéis de embalagem. O próprio público começa a interessar-se de facto pelos desenhos infantis, que retomam gradualmente o seu lugar normal no processo de crescimento e de vida do mundo contemporâneo. Cabe aos professores e às professoras modernizar o méto­ do do seu ensino neste domínio, como tentam modernizá-lo em relação à expressão escrita e oral, de modo a criar nas suas classes um clima favorável à eclosão e ao desenvolvimento normal do desenho infantil. 46

V. A criança descobre os primeiros triunfos e, por repetição, aperfeiçoa-os e aprende a dominá-los

A tentativa experimental faz-se por patamares: em cada patamar, a criança consolida a sua experiência até automati­ zá-la. Por imitação, por acaso ou por decisão com um obectivo, aprendeu uma palavra nova que lhe dá novos poderes e um maior sentimento de domínio. Durante um certo lapso de tempo, repete incessantemente essa palavra mágica até sur­ preender o seu meio ambiente. Necessita de alicerçar o seu patamar: as suas reacções processam-se mecanicamente como reflexo da intensidade do apelo e das variações das circunstân­ cias ambientes. Uma vez o patamar bem assente, poderá apoiar-se nele para subir aos andaimes da próxima construção a empreender.

Fig. 9

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É este mesmo processo que iremos encontrar ao longo de toda a aprendizagem do desenho: grafismo conseguido, repeti­ ção mecânica desse grafismo para automatizá-lo, início de uma nova etapa a partir do primeiro patamar, novo triunfo, nova repetição, etc. Nicole (2 anos e 8 meses).

VI. Bifurcação

Se, no momento de ajustar os seus triunfos para os transformar em palavras já ricas de conteúdo e possibilidades - sobre as quais irá construir a sua linguagem —, o meio familiar ou social usar duas línguas diferentes, a criança ver-se-á assediada por ambas, o que complicará perigosamente a experiência tentada. A que língua ajustará os seus triunfos vitais? Há quase sempre uma que, por razões diversas, mais ou menos lógicas e das quais não iremos ocupar-nos, adquire supremacia sobre a outra e acaba por afirmar-se na prática. E ela que mais frequentemente solicita o fenômeno da imitação. Os gestos ou os actos imitados são, a principio, exclusivamente automáti­ cos. O mesmo acontece com o desenho. A tendência da criança para a imitação não passa da inserção natural da acção exterior no processo da sua própria tentativa. A criança não imita seja o que for; imita com uma finalidade, da mesma forma que faz tentativas para uma finalidade. Bal (3 anos e 10 meses) descobriu que os seus desenhos são um meio essencialmente prático de acção sobre o meio, que não exigem uma imitação laboriosa nem estão sujeitos a erros graves. Por isso, desenha grafismos bem definidos na carta que o pai escreve à avó: um pato, o automóvel, a flor, etc. Mas toma consciência da escrita adulta, da sua rapidez e dos seus sinais dispostos em linha. Assim, na carta à avó, sente necessidade de reforçar a sua aquisição gráfica com a imitação da escrita, um meio de expressão até então desco­ nhecido. 48

Fig. 10

O processo empregado para o desenho transfere-se agora para a escrita, impelindo a criança para experiências por tenta­ tivas que a conduzirão igualmente ao seu domínio. Não insis­ timos no processo, que se encontra, aliás, pormenorizadamente exposto na nossa brochura Método natural de leitura (1).

(1) Método natural de aprendizagem da língua (Edilorial Estampa). 49

Fig. 11

Eis, por exemplo, um desenho de Alain (3 anos e 2 me­ ses) que mostra a criança dividida entre ambos os grafismos: desenha, segundo a sua técnica primitiva mas expressiva, um automóvel e escreve ao lado, ou pelo menos pretende escre­ ver, a palavra automóvel. Como se pronunciasse a mesma palavra de duas formas diferentes num meio familiar bilingue. Em virtude das práticas escolares, a criança acha-se, por volta dos quatro anos de idade, numa bifurcação que frequen­ temente pode perturbá-lo, Se, com a continuação, sente que se exprime melhor através da escrita do que através do dese­ nho e, por conformismo, o meio a encoraja nesse sentido, pode acontecer que deixe completamente de desenhar por não experimentar qualquer necessidade de faze-lo. Mas, salvo uma pressão decisiva por parte do adulto ou da escola, trata-se de um caso raríssimo. O êxito alcançado pelo desenho é nessa idade tão completo, tão profundo e tão subjectivo, que a criança o conserva durante largo tempo como o seu principal meio de acção e de expressão, reconhe­ cendo à expressão escrita um carácter meramente acessório ou complementar. Nesta bifurcação, a acção da escola ou do adulto podem conduzir a uma escolha donde depende toda a evolução gráfica ulterior. O facto de tantas gerações haverem desapren­ dido o desenho, de tantas crianças perderem aos 7 ou 8 anos toda a aptidão e originalidade gráficas, deriva de um erro que, aquando desta bifurcação inevitável, obstruiu a estrada real, lançando as crianças - bem contra sua vontade no caminho debilitante da técnica escolástica. 50

Os nossos alunos podem aprender duas línguas e é eviden­ te que ficarão particularmente apegados àquela que lhes pro­ porcionou os primeiros êxitos. Podem desenhar e aprender a escrever sem prejuízo desta aprendizagem; o desenho perma­ necerá como que uma forma dc expressão mais subtil e pessoal que, adquirindo feição artística, se tornará progressiva­ mente num aspecto sempre comovente da cultura ao serviço da vida. Se, portanto, evitando uma falsa agulhagem da bifurca­ ção, se soube preservar todo o entusiasmo da criança por este meio ideal de expressão, ela contar-nos-á e contar-se-nos-á através do desenho. Não se limitará a exprimir-se através da forma anedótica da escrita, mas lançará mão dc um veículo sensível que ultrapassa a língua e a escrita e faz pressentir as regiões superiores do pensamento abstracto e da Arte.

VII. Justaposição de grafismos

Uma vez dominada a pronúncia de uma palavra, a criança repete-a dez, cinquenta vezes, somente com o objectivo de consolidar a técnica. Ao repetir a palavra acabada de adquirir, repete igualmen­ te as restantes já automatizadas, como se medisse e fizesse valer as suas riquezas. Quando se lhe pede que divirta uma assembleia, também repete automaticamente tudo o que sabe: gestos, caretas ou palavras, sem outro nexo a não ser a sequência automática das suas aquisições. É o mesmo processo que se verifica no desenho. Se a criança tiver à sua disposição vários cartões pequenos, repro­ duzirá em série os grafismos isolados cujo domínio está ten­ tando adquirir: um automóvel, uni homem, um pássaro... Assistiremos à sua evolução até tipos que pouco a pouco acabarão por se integrar em grafismos complexos. Mas se dispuser de uma folha maior, tratará de enchê-la e fá-lo-á com reproduções das séries de tipos que já domina. 51

Fig. 12

Num grafismo precedente, Michel (4 anos) conseguiu tra­ çar algo semelhante a um caracol. Dispõe de uma página em branco: no meio coloca naturalmente o seu tipo de caracol e, para preencher o resto do espaço vazio, desenha caracóis e mais caracóis, seja porque ainda não automatizou outro grafis­ mo. seja porque pretende repetir o grafismo do caracol para o integrar no seu automatismo. 52

Fig. 13

Neste desenho, a mesma criança (4 anos c 6 meses) fez como a vedeta que diverte a assembleia e repete tudo o que sabe. Justapôs sobre a folha de papel todos os grafismos que domina: o menino, as pedras, o sol. o pássaro, a mesa, a árvore e até o nome do autor, sem qualquer sentido ou finalidade.

Fig. 14

Jacques (4 anos e 6 meses) também justapôs sobre o pa­ pel todos os grafismos que dominava: a casa, a casa dos coelhos que é uma sua redução - a criança, a árvore, o chinês e a senhora que parece um grafismo falhado, suscep­ tível de dar origem a novas descobertas gráficas. 53

Fig. 15

Dominique (4 anos e 7 meses) possui grafismos muito mais evoluídos, mas que não se apresentam menos justapostos e desconexos.

Fig. 16

54

Claudc (4 anos c 9 meses) aperfeiçoou seriamente e com­ plicou mesmo os seus grafismos. limitando-se. todavia, a tra­ tá-los como palavras que adquiriram com a continuação um certo sentido e valor vitais, mas que permanecem justapostas e desligadas. Enquanto os elementos gráficos continuarem a apresen­ tar-se meramente justapostos sobre a folha, qualquer que seja a perfeição dos tipos, a etapa ainda não foi ultrapassada.

VIII. Como se aperfeiçoa o elemento gráfico

Os sons ou as palavras mais ou menos isolados, por vezes arbitrariamente, da construção complexa que lhes deu origem vão, durante um lapso de tempo variável, levar unia vida de certo modo individual. A criança repete a palavra pelo prazer de repetida e, simultaneamente, ajusta-a por vezes experimentalmente aos restantes elementos da sua linguagem e da sua vida para lhe conferir o seu verdadeiro sentido dinâmico, o seu sentido prático usual Veremos como este mesmo processo se reproduz, no de­ senho; iremos analisá-lo mais atentamente devido à sua extre­ ma importância para a compreensão e para a evolução do desenho infantil. A repetição aperfeiçoada do tipo gráfico O elemento gráfico vai. como a palavra, levar uma vida mais ou menos arbitrariamente isolada da construção com­ plexa que lhe deu origem. A criança repete-a até chegar ao automatismo. Mas, à medida que consegue dominá-la, vai-a também adaptando e aperfeiçoando segundo os princípios da experiência por tentativas. No seu grafismo primitivo, a criança chegou, quase sem­ pre por acaso, a um agregado de figuras onde conseguiu reconhecer com os olhos da fé, diríamos nós - um auto­ 55

móvel, inclinar-se-á, naturalmcnte, a reproduzir esse êxito quando voltar a ter um lápis. Porém, reprodu-lo mais ou menos fielmcntc. O automóvel distinguir-se-á talvez por um único sinal: a roda, cuja consecu­ ção já passou ao automatismo e que reencontraremos cm todos os desenhos, durante muito tempo, como marca distin­ tiva do tipo automóvel. Ora a criança começa a viver c fazer viver esse simulacro dc automóvel: "Pó/ Pó! RRR!..." E faz menção de segurar no volante. Então, com um traço mais ou menos hábil, desenha o volante. Se o resultado não se assemelha a um volante e se a criança tem consciência disso, abandonará o desenho do vo­ lante e continuará a procurar um outro aperfeiçoamento. Mas se triunfa, se fica satisfeita e se lhe dizem: "Que lindo volante fizeste no teu automóvel!” considerará esta nova forma de automóvel corno outro passo em frente, como outro sucesso que voltará a reproduzir para automatizar. Daí em diante, o seu automóvel possuirá duas características fun­ damentais que poderá reproduzir automaticamente com um máximo dc sucesso: as rodas e o volante. Noutra ocasião, após haver traçado automaticamente o seu tipo de automóvel com rodas e volante, imaginar-se-á a guiar o carro. Pousará o lápis, instalar-se-á com as pernas estendidas, os braços para a frente e o corpo tenso: “RRR!... V... V... V...”, dirá dando voltas a um volante imaginário. Depois de ter realizado como que mecanicamente o novo gesto, pega no lápis e acrescenta um condutor ao seu tipo de automóvel com rodas e volante. Se falha, desiste e talvez comece a desenhar homens por cima do carro. Mas se fica satisfeita e se alguém lhe confirma o seu êxito, passará a repetir este terceiro tipo de automóvel com rodas, volante e condutor até automatizá-lo. A nossa explicação de forma alguma pretende fixar ou prever a ordem de aparição dos elementos no grafismo do automóvel. Tal ordem depende, como todos os êxitos: 1) das dificuldades encontradas: 2) da habilidade do executante; 56

3) da influência do meio: exemplos, modelos, críticas, auxilio ou sugestão. Por agora, limitamo-nos a analisar o processo do desenho infantil, processo que é válido para a evolução de todos os desenhos. Poderão confirmá-lo nas séries que daremos a seguir e que completarão, aliás, pelo subsequente exame das vossas próprias colecções. Ser-nos-á impossível separar esta evolução dos tipos gráfi­ cos isolados da sua integração normal nos grafismos justapos­ tos cujo processo iremos estudar. Como a palavra, que se mistura profundamente com as outras palavras e se insere na vida de que participa, também o tipo gráfico vive nos dese­ nhos complexos cujas normas observaremos em seguida, Assiste-se nalguns casos a uma evolução muito acentuada dos tipos ou pelo menos de certos tipos. Há crianças que desenham camiões, cavalos ou casas de um modo já muito sugestivo, mas que continuam a justapor esses tipos desenvol­ vidos sem chegar a uma relação susceptível de orientá-los

Fig. 17

57

para a expressão do pensamento. Tal comportamento revela indubitavelmente um atraso grave na construção da personali­ dade. Iremos debruçar-nos em particular sobre o processo de aquisição dos seguintes tipos gráficos: os bonecos: a casa; os pássafos;

os pequenos quadrúpedes; os animais grandes; os camiões, comboios, aviões, etc.

A partir destas bases, ser-vos-á fácil completar as séries e compilar colecções sobre outros temas susceptíveis de confir­ mar a regularidade do processo que acabamos de indicar. Eis um primeiro comboio conseguido. Gérard (2 anos e 3 meses).

Fig. 18

Um primeiro triunfo de automóvel do primeiro modelo, tendo apenas as rodas como sinal distintivo. Alain (2 anos e 5 meses).

Fig. 19

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Jean-Paul (2 anos e 6 meses) dá-nos o êxito do seu ter­ ceiro modelo com rodas, volante e condutor. Acrcscentou-lhe mesmo os faróis.

Fig. 20

Eis o nascimento acidental do "Senhor jardinando", pri­ meiro esboço do tipo homem. Michel (3 anos e 2 meses).

Fig. 21

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Um segundo nascimento do homem. Eram três, mas o terceiro abortou. O autor abandonou-o à sua sorte: tinha uma cabeça demasiado pequena. Mireille (3 anos e 2 meses).

Fig. 22

Jean (3 anos e 5 meses) desenhou, como expressão do mesmo tipo, a mãe e o filho. Porque estão deitados? Não vejamos no facto uma preocupação previa e motivada de desenhar uma mãe e um filho deitados. Simplesmente, dados os instrumentos de que dispunha, a criança achou mais cômo­ do traçar linhas horizontais e o resultado foi naturalmente influenciado. 60

Fig. 23

Eis um terceiro nascimento, utn pouco diferente. Nicole (3 anos e 6 meses).

Eis a vaca. Qual o elemento conseguido que será reprodu­ zido como sinal distintivo da vaca? Não as patas com certeza. 61

Talvez a cauda ou a cabeça onde já se adivinham os chifres. Jcan (3 anos e 6 meses).

Fig. 25

Este desenho da casa não é com certeza um primeiro esboço. Constitui já o resultado de tentativas múltiplas, embo­ ra o princípio a que obedece seja frequentemente o mesmo. Um traço mais ou menos regular delimita a casa como nos jogos de polícias e ladrões. Um grafismo dentado assinala as pedras. Os compartimentos acham-se demarcados por um tra­ ço. Os traços paralelos representam as escadas. As fechaduras são visíveis exteriormente. Eliane (3 anos e 7 meses). 62

Fig. 26

Segundo as suas necessidades, talvez por acaso, a criança representou a casa de frente, com janelas e telhado, cm vez de representá-la em plano, Michel (3 anos e 7 meses). Eis um outro aspecto de gênese das casas, menos original e diversificado do que a gênese dos homens, mas de que vale a pena apresentarmos alguns exemplos.

Fig. 27

63

Eis um desenho típico de casa no 2.° ou 3.° estádio da tentativa. A criança, após os exercícios anteriores, desenhou sem hesitar a casa vagamenlc delimitada por um traço e a porta com a chave; ao lado, a escada que sobe e termina num patamar onde se abrem outras portas com a respectiva fecha­ dura. A criança, que já fizera viver a sua casa, acrescenta-lhe desta vez um cão debaixo da mesa, que irá ulterionnente repetir até automatizar. Jean-Paul (3 anos e 7 meses). E eis ainda outras tentativas triunfantes, que permitem à criança aperfeiçoar, segundo o processo indicado, os elemen­ tos gráficos de base:

Fig. 28

Um porco e um frango, primitivos na sua concepção e fisiologia. Jean-Paul (3 anos e 7 meses).

Homens acidentalmente evoluídos. Uma variedade da gê­ nese. Jean-Paul (3 anos e 8 meses). 64

Fig. 30

Uma maçã e uma pera, tipos de grafismo sem vida nem originalidade, cuja forma a criança se limita a aperfeiçoar, Jean-Paul (3 anos e 8 meses).

Fig. 31

Gatos inspirados, segundo parece, na génese dos homens. Nicole (3 anos e 8 meses). 65

Fig. 32

Um pato embrionário. Bertrand (3 anos e 8 meses).

Notemos, de passagem, que a primeira condição para ter êxito — a importância e a complexidade das dificuldades a resolver — desempenha aqui um papel fundamental. A maioria dos animais é mais difícil de desenhar do que um camião, um automóvel ou mesmo um homem. As crianças só o conse­ guem mais tarde, o que explica que os primeiros grafismos contenham geralmente uma baixa percentagem de desenhos de animais, excepto nalguns meios rurais. 66

Fig. 33

Eis agora um pato mais perfeito. Jean-Paul (4 anos e 2 meses).

Fig. 34

Um coelho divertido. Jean-Paul (4 anos e 7 meses).

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Fig. 35

Um macaco com o filho. Jean-Pauí (4 anos e 9 meses).

Uma mamã porca com o seu porquinho ainda por nascer. Jean-Paul (4 anos e 8 meses).

IX. Evolução morfológica e psicológica dos tipos gráficos

A rapidez com que a criança se assenhoreia da língua depende do seu estado fisiológico e mental e ainda do meio onde vive.

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A evolução da linguagem processa-se segundo as normas desejáveis se o meio ajuda, isto é, se favorece ao máximo a tentativa experimental da criança, se reduz os obstáculos mais marcados, se facilita e acelera a mecanização dos actos indis­ pensáveis à realização das necessidades primordiais. Nestas condições, a linguagem torna-se instrumento de uma expres­ são diferenciada, rica de conteúdo técnico e sensível. O mesmo processo se constata no desenho. É pela repeti­ ção dos tipos isolados, conjuntamente com a evolução desen­ rolada ao longo das justaposições de que iremos ocupar-nos, que se desenvolve, sempre de acordo com os princípios da experiência por tentativas, a progressão normal rumo a formas mais perfeitas, e mais vivas, correspondentes a um comporta­ mento mais evoluído. Não faremos aqui o estudo completo desta evolução e duvidamos até que ele seja viável e desejável. Podería induzir em erro os educadores, levando-os a crer na existência de uma norma única para o nascimento e desenvolvimento dos tipos, que as patas do animal, os braços, as pernas ou as orelhas dos bonecos correspondem a uma certa idade ou a um certo nível intelectual, que os processos que lhes presidem são função de três factores directos: - As dificuldades a superar; - As possibilidades técnicas do autor; - A atitude do meio. O erro é particularmente flagrante no tocante ao grafismo do homem, de cuja génese já observámos alguns aspectos. Os psicólogos julgaram poder fixar uma idade para o aparecimento dos olhos, do tronco, da articulação dos braços à cabeça ou aos ombros, das pernas e dos dedos no grafismo. Para estudar racionalmente o problema, porém, teremos de considerar simultaneamente os três factores acabados de mencionar. 1. As dificuldades a superar: São, no desenho do boneco, maiores do que se pensa e poderiam classificar-se segundo uma escala crescente. Isso não significa, no entanto, que certos indivíduos não saltem determinados degraus, para mais tarde voltarem atrás e adquirirem um domínio completo da ascensão da escada.

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Em linhas gerais, ela passaria pelas seguintes fases: — Desenho de um grande círculo para a cabeça, com olhos, boca ou círculos para assinalá-los indistintamente. — Cabeça mais ou menos diferenciada e dois traços para as pernas, acabando frequentemente com uma linha transver­ sal para indicar o pé; desenhos deitados, direitos ou flutuan­ tes, conforme as condições em que foram feitos. Alguns destes desenhos primitivos revelam uma enorme vivacidade, com figuras expressivas, de pernas orientadas e pés eloquen­ tes. — Aparecimento do tronco, mais ou menos tardio segun­ do os tipos. — Braços presos à cabeça, no caso de aparecerem antes do tronco. Evidentemente que há que fixá-los. Por automatismo. poderão continuar a surgir presos à cabeça, mesmo após o aparecimento do tronco. - Braços presos ao tronco. - Aparecimento das mãos. - Vestuário. - Os cabelos e as orelhas revelam-se bastante caprichosos; ora surgem muito cedo ora muito tarde. Veremos alguns exemplos destes grafismos nos desenhos que se seguem. 2. A habilidade do autor: Desempenha um papel mais importante do que se julga. Certas crianças tem, por heredita­ riedade, defeito fisiológico ou falta de exercício, mãos e dedos desajeitados. Umas tremem, outras estão frequentemen­ te sujeitas a cãibras. Não nos admiremos, pois, se as cabeças que desenham se mostram irregulares, se os pontos de articu­ lação dos membros se revelam inexactos ou se os olhos e a boca não estão rigorosamente colocados. Claro que o êxito é mais fácil para as crianças seguras de si, calmas c hábeis. Daí a enorme relevância do exercício. Ele permite modifi­ car consideravelmente o ritmo do processo sem influenciar-lhe as normas. A nossa escada não se limitará apenas a considerar a inteligência da criança, mas todo o seu comportamento, incluindo a sua complexidade fisiológica e social. 3. O meio: O meio infantil, mais do que o adulto, tem uma importância extrema. É preciso que, como já referimos,

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o adulto não só tolere e aceite, mas também apoie a expres­ são pelo desenho e ponha à disposição da criança os instru­ mentos de que ela precisa. Mas o próprio exemplo adulto revela-se menos determinante do que o exemplo infantil na medida em que este se encontra mais próximo e mais adequa­ do ao pequeno desenhador e ainda mais pronto a integrar-se imediatamente no processo da tentativa experimental. Basta que numa turma uma criança desenhe homens vivos e bem conseguidos, mesmo que se limitem a uma cabeça evoluída e a longas pernas orientadas, para que todos os outros alunos que se achem numa fase próxima da sua adoptem o mesmo grafismo durante algum tempo. Se uma das crianças descobre as orelhas e os dedos, as outras tenderão a imitá-la e a acrescentar orelhas e dedos aos seus bonecos. O exemplo, como vemos, falseia um pouco a evolução que se verificaria na criança sem a sua presença. Todos os educadores sabem como é fácil criar-se numa turma uma atmosfera de escola - no sentido artístico baseada nuns quantos êxitos, e de que mancira os desenhos tendem a assemelhar-se entre si, o que leva por vezes a supor uma influencia autoritária e exagerada do mestre.

Permanência e evolução artística de certos tipos pessoais Da mesma forma que se criam nesta idade determinados hábitos indeléveis de falar e de argumentar, há certos tipos originais que, em vez de se integrarem noutros conjuntos ou desaparecerem por completo, evoluem até atingir uma espécie de permanência e de superioridade artística. Teremos assim o desenhador de casas, o especialista em determinado estilo de árvores, o jovem entusiasta de cavalos, os apaixonados por carros e aviões... A escola, que durante largo tempo alimentou a uniformi­ dade à custa dos êxitos pessoais originais, tende, no respeitam te ao desenho, a impedir esta evolução vertiginosa da criança que conseguiu descobrir um tipo c o cultiva com um entusias­ mo c um senso artístico misteriosos. Assim se tém destruído inúmeras inclinações e mesmo vocações. 71

Nós fomentamos esses êxitos, cientes do seu futuro de­ senvolvimento e do seu reflexo benéfico não só em todo o desenho como nos outros ramos do saber, Na segunda parte do livro veremos como os tipos produ­ zidos nesta idade chegam, à medida que evoluem e ganham novas proporções através da cor, a traduzir interpretações pessoais de todos os valores. É já nesta fase que pode deparar-se-nos uma segunda bifurcação: o desenho, em vez de evoluir no sentido da expressão, digamos, narrativa, evolui para a cor e para a arte, deixando ao texto manuscrito o seu modo específico de contar a aventura. Achamo-nos dentro da técnica adulta, que também cultiva a feitura pessoal de cada desenhador ou pintor e explora o êxito de certos tipos cuja versão final nos é dada pelos grandes artistas.

Fig, 37

Eis, de Marie-France (4 anos e 8 meses), uma série de bonecos verdadeiramente reduzidos à expressão mais simples, mas que nem por isso perdem a vivacidade. 72

Fig. 38

Uma série de ovelhas e de cordeiros que surgem como um êxito pessoal a cultivar. Jean-Paul (4 anos e 9 meses).

Fig. 39

Uma vaca num prado. Charles (5 anos e 2 meses). 73

Fig. 40

Dois camiões em grandes progressos (note-se a repetição automática das árvores como pano de fundo). Jean-Paul (5 anos e 6 meses).

Fig. 41

Jean-Paul (5 anos e 4 meses) havia chegado a uma forma original de carneiros. Não a desenvolveu, certamente por o meio não o ter encorajado a cultivá-la. 74

Fig. 42

Dominique (5 anos e 6 meses) estabeleceu o seu tipo de homens que reproduz automaticamente.

Fig. 43

Patrick (5 anos e 6 meses) cultivou o tipo de comboio e depressa o levou, como se vê, à sua quase perfeição. Com estes desenhos viemos antecipar um pouco o capítu­ lo seguinte. Mas não queríamos deixar de sublinhar a impor­ tância dos tipos, cujo aperfeiçoamento também se opera den­ tro do conjunto vivo. Também pretendemos mostrar como nesta fase, bastante anterior ao período do desenho expressi­ vo, se abre uma nova via dc que poderemos ver a ascensão até à arte.

X. Explicação "a posteriori”

Por vezes, a criança apodera-se bruscamente de uma pa­ lavra. mesmo complicada, cuja sonoridade a impressionou ou que, durante uma conversa, adquiriu para ela um sentido exaltante. Começa a repeti-la, embora só depois, com a continuação e com a sua justaposição a outras palavras, lhe devolva um sentido que nem sempre corresponde ao seu sentido verdadei­ ro. Portanto, a criança conhece a palavra antes de explicá-la e 75

só a explicará se o meio lho solicitar. A resposta dada não corresponderá, aliás, forçosamente à pergunta feita. Vimos de que maneira a criança justapõe os seus grafismos. Ao observá-los. temos tendência para perguntar: - Que está o homem a fazer? — De quem é a casa? Assim, a criança acha-se obrigada a dar explicações sobre o conjunto executado e que, muitas vezes, não passaria de um exercício conducente ao automatismo. É fácil notar, de resto, que a pergunta desencadeia um segundo processo inteiramente diferente: o da explicação verbal. Esta explicação não possui, por vezes, qualquer relação com o desenho e veremos no capítulo seguinte como a criança é compelida a proceder a ajustamentos para associar e conjugar os dois processos. Esta explicação a posteriori, característica deste estádio, constitui, portanto, uma espécie de projecção do pensamento infantil sobre o desenho e não, como poderiamos ser levados a crer, uma explanação e uma justificação lógicas do grafismo. Os exemplos seguintes mostram-no claramente:

Fig. 44

Este desenho constitui o modelo mais rudimentar dc grafismo da fase da explicação a posteriori. Os desenhos são informes, mas, como a criança, sem dúvida por causa do meio, foi solicitada a dar uma explicação, deu a mais corrente nesse meio; “Lobos! pretos!” Jean-Pierre (4 anos e 7 meses), 76

Fig. 45

Nos desenhos explicados a posteriori, é frequente encon­ trarmos a técnica ou mesmo a originalidade do desenho 45. Com certeza que a criança não pretendeu desenhar a cadeira nem as calças. Reproduziu um exemplar duplo do seu grafis­ mo familiar e já automatizado: bonecos, expressivos, aliás, na sua simplicidade. Os outros desenhos não passam de grafismos falhados; depois de feitos é que a criança julgou reconhece r-lhes uma semelhança com uma cadeira e umas calças, o que lhe permitiu articular a sua história: “Dois senhores que se deitam. Puseram as calças na cadeira.” Jean-Pierre (4 anos e 7 meses). 77

Fig. 46

O mesmo caso. Três elementos gráficos, mais evoluídos e quase perfeitamcnte assimilados, justapostos sem qualquer in­ tenção prévia de relação. Mas o êxito é tal, que o boneco parece tentar evitar o carro, o que leva a criança a dizer perante a obra: “O carro talvez vá atropelá-lo! voltará a levantar-se...!” Jean-Claude (4 anos e 8 meses). O leitor não terá dificuldade em completar esta série de desenhos e verificar a veracidade do princípio da explicação a posteriori, que se acha generalizado nesta fase. 78

XI. Explicação “a posteriori" com relação artificial dos grafis­ mos justapostos

Pela repetição automática, a criança adquiriu o domínio de duas palavras. Pela tentativa, chega a dar-lhes um sentido, por vezes muito lato. Mas as palavras permanecem como que isoladas e justapostas até ao dia cm que a criança estabeleça entre elas relações frequentemente arbitrárias e surpreenden­ tes, que aperfeiçoará mediante o emprego de elementos de ligação. São estes elementos de ligação que iremos ver surgir como complemento dos desenhos justapostos.

Fig. 47

Eis o desenho que continha originalmente elementos niti­ damente justapostos: o tipo menina, em formato grande e reduzido, as árvores, a casa, o avião e o automóvel. Michel (4 anos e 10 meses). 79

Há agora que encontrar uma explicação. Naturalmente, se a criança não pretendeu exprimir nada de definido, lembrar-se-á de dizer: a menina grande e a pequena — ou a mãe e a filha — vão passear. Ao inclinar e prolongar o braço da menina até fazê-lo encontrar a mão da mãe, salvou-se a relação elementar.

Fig. 48

O desenho 48 é igualmente um desenho puramente justa­ posto. Mas, no momento da explicação a posteriori, a criança notou que a mãe parecia inclinar-se sobre a criança deitada. Originalmente, ambos os braços tinham a mesma orientação em relação ao corpo e, se a mãe estava inclinada, era decerto por acaso. Na explicação a posteriori a criança disse: “A mãe traz um embrulho ao füho doente. ” Então, desenhou o em­ brulho, Michel (4 anos e 10 meses). 80

XII. Explicação “a posteriori” por complemento dos grafismos justapostos

Com base nas palavras já dominadas e gradualmente inte­ gradas na sua vida de relação, a criança consegue estabelecer, nor adjunções sucessivas, um conjunto complexo onde a cria­ ção se mistura pouco a pouco com a explicação a posteriori até mascará-la e ultrapassá-la. Transpomos uma nova etapa rumo à expressão pelo de­ senho. Lentamente, a partir do espectáculo mais ou menos elo­ quente dos seus grafismos justapostos, a criança foi-se habi­ tuando a contar unia história desencadeada pelo desenho justaposto, mas que ele já não alimenta. Veremos este processo em acção no desenho de Elie que aos 7 anos apresenta uma idade mental de 5. Dispôs — e eu quase diria: depôs - primeiro sobre o papel os elementos gráficos já dominados após longa prática: a casa, o moinho de vento (sem dúvida reminiscência de um

Fig. 49

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desenho visto num livro), o sol erguendo-se entre as monta­ nhas. A probreza da justaposição não alimentava grandes expli­ cações a posteriori. Então, como ainda havia espaço nu cimo da folha, desenhou um cão e, atrás, um tipo idêntico parecido com um gato e declarou: "O gato vai morder o rabo do cão. " E eis o "Senhor da Casa": começa por ser um boneco equivalente ao tipo automatizado, mas, em consequência de um progresso recente, a criança assinala-lhe os cabelos, pintan­ do-os minuciosamente de preto com o lápis. Reproduzirá o seu êxito nas mãos, somente com a finalidade de o repetir, em zonas do fumo, no eixo do moinho e, misteriosamente, no pescoço do gato. Um traço em redor do homem: ‘"É o caminho da mon­ tanha.” E eis que: "O jogador de boxe sai de casa e dirige-se para a montanha. ” Ultrapassou-se a fase da simples explicação a posteriori. A criança ilustra atrave's do desenho o conteúdo do seu pensa­ mento dinâmico. Elie (5 anos). Observemos um elemento ainda mais típico desta fase do grafismo. Na sua base acham-se alguns elementos automáticos: "A casa e o menino na casa; árvores." Jean-Claude (5 anos). Sobre esta base, a criança inicia a posteriori uma história que imediatamente se traduz cm imagens gráficas: "O menino está dentro de casa... o gato está no telhado. O menino está fechado, a mãe não quis levá-lo às compras. ” E, para frisar o facto da criança estar fechada, o autor desenha, em apêndice, a prisão com a criança sozinha no meio dela, segundo o mesmo processo automático anterior. Para exprimir dinamicamente a situação, teria sido neces­ sária uma segunda imagem, como nos desenhos animados. A casa grande dcsapareceria para dar lugar à pequena prisão. Ver-se-ia então o miúdo preso e já não em casa. A solução do autor é, não só lógica, mas também a única possível antes do cinema. Foi um erro havê-la considerado uma prova de anor­ malidade; revela antes uma personalidade decididamente intré­ pida que não se deixa atemorizar pelas dificuldades técnicas. 82

Fig. 50

... E a história continua... "O menino foge e vai para a estrada... ” A criança desenha a estrada que parte da casa e o rapa­ zinho a ir-se embora. Mais uma vez recorre à única solução técnica possível, que, no cinema, se traduziría por imagens sucessivas. "... O menino enganou-se no caminho e perdeu-se... ” De facto, lá o vemos perdido e sozinho no canto superior esquer­ do! Nota-se claramente o desenrolar do processo, partindo de uma história nascida a posteriori de grafismos justapostos e que se vai enriquecendo já não a posteriori mas a priori. 83

XIII. O desenho, verdadeira expressão infantil

Enquanto não domina inteiramente um número suficiente de palavras, a criança não possui completa liberdade de ma­ nobra. Faz como o nadador que ainda não está suficientemente à vontade para enfrentar as grandes profundidades e que só consegue nadar com aparente segurança quando tem pé e se pode apoiar no fundo à partida e em caso de dificuldade. Na sua expressão gráfica, a criança procede, como nós procedemos quando vamos ao estrangeiro. Conhecemos a lín­ gua ainda imperfeitamente e são sempre as mesmas palavras que a princípio nos vêm à boca, porque só elas se acham automatizadas. ínstintivamente reencontramos os processos de aprendizagem da nossa infância. Portanto, a expressão fica limitada e imperfeita. Só pode­ rá ser livre e total depois de termos automatizado um número de palavras suficiente que nos permita manobrar. É o que acontece com o desenho. Enquanto a criança não domina inteiramente um número considerável de grafismos, não traduz como quer a explicação ou a história que deseja exteriorizar. Só pode enfrentar a verdadeira expressão quando dispõe de uma quantidade já respeitável. E a prova de que essa expressão se liga infalivelmente ao domínio dos elementos gráficos é que uma criança de 12-13 anos, que nunca tenha desenhado, passa, talvez rápida mas inconfundivelmente, por todas as fases do processo. Os seus desenhos continuarão pobres e inexpressivos enquanto não dominar os grafismos. Deveremos ter presentes estas considerações quando, mais adiante nos debruçarmos sobre as indicações psicológicas que os desenhos infantis nos fornecem. A evolução do processo e o acesso tardio da criança à expressão verdadeira explicam a sua relutância em desenhar a pedido ou em ilustrar um texto antes de atingir esta fase. Até então, ela não ilustra verdadeiramente nem parte efectivamentc da realidade existente, quer se trate de um acontecimento 84

exterior ou de um texto impresso. Parte dos seus grafismos e nem sempre consegue ajustá-los à história que gostaria de contar. Ainda não pode ir para o largo. Os seus grafismos ainda não constituem um instrumento suficientemente flexí­ vel para se adaptar a todas as circuntâncias.

Fig. 51

Eis num grafismo ainda primitivo, baseado numa justapo­ sição e com o elemento avião automatizado, a figuração clara c como que premeditada - já não a posteriori - de um campo de aviação. René (5 anos c 7 meses).

Fig. 52

85

Aline (5 anos e 1 1 meses) ultrapassou muito cedo a expli­ cação a posteriori, talvez por se haver ocupado longa e apaixonadamente de ciganos. Nos seus numerosos desenhos sobre o tema, adquiriu um domínio total dos elementos componen­ tes dos grafismos. Não se trata aqui de um êxito casual sobre o qual se alicerçou a idéia ou a explicação, mas de uma cena que a criança deliberadamente fez viver através da expressão gráfica. Aline (5 anos e 11 meses).

Fig. 53

Jean-Paul (5 anos) desenhou uma carroça em redor da qual se agitam personagens originais, dotadas de um lirismo que já denota o estádio de expressão.

XIV.

Evolução dos grafismos segundo as necessidades vitais das crianças

A criança que se apropria da língua falada não pretende pronunciar as palavras impecavelmente nem inseri-las em fra­ ses perfeitas, mas exprimir-se com um máximo de eficiência para servir da melhor maneira as exigências da sua vida no seu meio. 86

Quando a criança dispõe de um número de vocábulos suficiente para utilizar a linguagem como instrumento básico de expressão, atinge um patamar onde evolui com um dina­ mismo que lhe dá um permanente sentimento de poder: da palavra-instrumento, acompanhada pela mímica do gesto, pas­ sa à narrativa, que não só possui uma finalidade para a própria criança mas que também a incorpora cada vez mais no meio onde ela se afirma.

Como vimos nos capítulos precedentes, a criança nunca tenta, nos seus grafismos livres, copiar servilmente quaisquer modelos; tal perfeição e tal cópia jamais constituem para ela um objectivo. O seu objectivo é adquirir a técnica da palavra para entrar em relação com o meio, agir sobre ele e se possível dominá-lo, para se exprimir e para se realizar. Tem-se falado por vezes do "finalismo” dos desenhos infantis e transformado o qualificativo numa característica específica do desenho das crianças. Claro que o desenho infantil possui um finalismo, um alvo, uma motivação como o desenho adulto c toda a acção adulta. Só que a escola apresentou esse finalismo e essa motivação como uma espécie de anomalia, prescrevendo, para corrigi-la, o desenho objecti­ vo, sem alvo nem significado, feito como uma obrigação e segundo regras impostas, apenas conducente à execução de obras exageradamente formalistas e cuja técnica se encontra, aliás, em constante evolução. Da mesma forma que prescreveu e impôs a redacção, que não passa de uma obrigação injustificada, sem motivação nem alvo e puramente gratuita, enquanto que os textos ou narrati­ vas desejados pela criança exprimem tendências e pensamen­ tos que lhe são particulares. Por analogia, poderiamos dizer que à criança não basta, como a escola gostaria que bastasse, cultivar uma roseira com a simples preocupação de obter um arbusto do tipo roseira. Ela quer uma roseira que estenda os seus ramos floridos até ao caramanchão por cima da janela e, para tal, procede como o bom jardineiro que, sem perder de vista a finalidade a atingir, protege, orienta e prende a trepadeira, poda o pessegueiro 87

para que dê fruto abundante e limpa os favais para fazer refluir a seiva às vagens prestes a engrossar. Como o jardineiro, a criança desenvolve esforçadamente determinadas partes do seu grafismo, poda outras e alonga desmesuradamente a mão ou os braços se a operação lhe parece útil à compreensão e à expressão do desenho. Certas anomalias, que parecem à primeira vista erros gráfi­ cos, são deliberadas por parte do autor. A criança corrigirá por si própria, através da experiência por tentativas, algumas delas. Com a sua preocupação exclusiva da cópia e da regra, a Escola encarregar-se-á disso. Por nossa parte, evitamos a todo o custo fazê-lo, respeitando certas originalidades gráficas mes­ mo que vão contra as leis do desenho. E continuaremos a evitá-lo enquanto verificarmos que os desenhadores que esca­ pam às regras escolásticas continuam a trabalhar segundo as mesmas normas finalistas, ampliando os olhos, abrindo desmesuradamente a boca, alongando o nariz e não temendo insu­ cessos como o de acrescentar uns pés enormes a umas pernas esqueléticas. Não nos precipitemos, pois, a submeter a criança à nossa norma; deixemo-la treinar-se a dominar os seus grafismos e a pôr os seus êxitos ao serviço da sua expressão viva e dinâmi­ ca. Encorajemos mesmo a eclosão de gêneros expressivos que serão como flores silvestres susceptíveis de fazer esquecer por vezes a monotonia e a rigidez dos jardins cultivados demasia­ do metodicamente.

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Fig. 54

Se o condutor desenhado pela criança, segundo a técnica que indicámos, deve segurar no volante, tem de chegar-lhe com as mãos... Há que alongar-lhe os braços tanto quanto necessário (3 anos e 2 meses).

Se o pai traz um presente (uma máscara), há que alon­ gar-lhe convenientemente o braço (3 anos e 6 meses). 89

Fig. 56

Típico deste finalismo são os membros que se inscrevem conforme a necessidade de equilíbrio e de acção do ciclista (4 anos e 10 meses).

Basta que as crianças sentadas cheguem ao bordo da cadeira - e não há dúvida que o fazem -- para estarem bem instaladas. Como basta que a cadeira esteja junto da mesa, mesmo que esta seja demasiado alta. Jean-Claude (4 anos e 2 meses). 90

Fig. 58

Os dois homens que lutam acham-se bem firmes nas pernas e o interesse concentra-se nas mãos. Michou (4 anos e 4 meses).

Fig. 59

Esta personagem de mãos c dedos enormes apresenta como particularidade o facto de usar luvas. Josette (4 anos e 7 meses). 91

Este rapaz joga ao berlinde, Só o braço que lança o berlinde foi julgado digno de figurar no grafismo; o outro ficou esquecido por ser inútil, Numa consecução típica, todo o corpo se apoia sobre o lado que lança o berlinde. Jean-Paul (5 anos e 1 mês).

A égua alonga-se desmesuradamente para dar de mamar ao potro. Jean-François (5 anos e 7 meses). Poderiamos aduzir inúmeros exemplos análogos, mas dei­ xamos-lhes o cuidado de completar a série.

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XV. Exame psicológico dos desenhos infantis

A escala dos desenhos infantis Vamos, por uma última vez, comparar o desenho das crianças à evolução da sua expressão oral. Teremos assim estabelecido até ao fim o paralelo seguro que deve guiar-nos sempre e que é tão simples e natural como a vida. Resumamos o essencial: a experiência por tentativas pro­ cessa-se, tanto para a linguagem como para o desenho, por intuição empírica e por comparação das relações entre as palavras, entre os objectos e finalmente entre os elementos da acção. A acção tende a desenvolver-se no sentido dos actos conseguidos cuja repetição sc automatiza e fixa em regra de vida. Estas observações esclarecem-nos sobre a importância pri­ mordial que devemos reconhecer aos primeiros anos da infân­ cia, ao período da construção das regras de vida deste primei­ ro andar do qual dependerão a rapidez, a solidez, a estabilida­ de e a resistência da construção ulterior. Os pedagogos americanos tentaram estabelecer listas de palavras que as crianças das diversas idades deveríam conhecer e usar. Outros pedagogos tentaram estabelecer uma progressão de formas de que as crianças deveriam servir-se nos vários estádios da sua evolução gráfica. Tais normas, quer se refiram a palavras quer a elementos gráficos, poderão certamente ser válidas para alunos a quem a escola haja proposto uma aquisição formal a expensas da vida. Mas não podem ser válidas para a nossa pedagogia, uma vez que nela introduzimos um factor novo e decisivo: a própria vida. Ultrapassando a medida escolástica, devemos, pois, ir mais longe e mais fundo e abordar a medida da vida. A criança mais evoluída, a que se exprime com mais oportunidade, profundidade e vivacidade, não é a que conhe­ ce um maior número de palavras, mas a que sabe fazer viver e vibrar - associando-lhes se necessário a entoação e a mímica as palavras que integrou realmente na sua personalidade. 93

A criança que melhor redige - do ponto de vista da pedagogia moderna - não é aquela que alinha metodicamente um grande número de palavras escritas com notável correcção e as incorpora em frases construídas segundo as leis da gramá­ tica escolástica, mas aquela que empresta vida às suas palavras em frases pessoais que exprimem com desenvoltura os princi­ pais aspectos da existência e do pensamento do autor.

A criança mais evoluída, no que toca ao desenho, não é de forma alguma a que desenha segundo as leis da escolástica, colocando os olhos e as orelhas nos lugares devidos, articulan­ do os braços nos ombros dos bonecos e respeitando as regras da perspectiva, mas a que dá vida às suas personagens. E é esta vida que devemos, tal como nos textos livres, reaprender a detectar, a encorajar, a apoiar e a valorizar para que a criança possa palmilhar com segurança e êxito a estrada real ao longo da qual tentamos fazer desabrochar-lhe a personali­ dade. Os psicólogos têm-se esforçado por tentar determinar os factores intelectuais susceptíveis de se revelarem nos desenhos infantis. A fixação de uma ou duas escalas de notação, para a avaliação da inteligência e das suas características, deu origem a inúmeros testes cuja aplicação representa um condiciona­ mento da criança e cuja execução morosa quebra o seu dinamismo. As estatísticas provenientes destas práticas, quase exclusivamcnte baseadas no erro gráfico, dependem, aliás, fundamentalmente da interpretação do adulto e da criança: trata-se, efectivamente, de exercícios escolares cujo valor equi­ vale ao do comportamento da criança engaiolada. Se não reconhecemos as normas resultantes, se recusamos os gráficos, as escalas e os valores até hoje estabelecidos pelos investigadores, em que novos elementos iremos basear-nos? Como iremos conceber definitivamente a nova pedagogia do desenho? São estas questões que tentaremos esclarecer no prosseguimento do nosso estudo. Ao debruçarmo-nos sobre a problemática da medição do desenho infantil, encontramos três elementos susceptíveis de estimativa: 94

1. A escada do desenho: Afirmámos a impossibilidade de deduzir normas a partir do exame de certos elementos gráfi­ cos sobre os quais os psicólogos procuraram alicerçar os seus estudos. Mesmo após uma vasta estandardização, não é possí­ vel dizer que a roda do carro aparece na idade tal e que na idade tal a criança liga os braços à cabeça, aos ombros, assinala as orelhas, os fatos ou abandona a transparência das casas. Afirmámos a existência de elementos complexos, tão de­ terminantes como a idade do indivíduo, que influenciam o pormenor e a perfeição dos grafismos e tornam impraticável qualquer classificação etária. Em contrapartida, sublinhámos a ordem pela qual, con­ forme as justificações então dadas e que reputamos de certas, os grafismos evoluem desde os primeiros riscos do bebê de 9 meses até ao desenho adulto. Esta ordem não tem de modo algum caracter psicológico; não resulta das qualidades pessoais do indivíduo, mas é sobretudo função das dificuldades que o desenhador se vê obrigado a superar, por tentativa experimen­ tal, ao longo da sua lenta aprendizagem, Consequentemente, a escada que estabelecemos comporta, para cada degrau, os dois tempos da tentativa experimental: o êxito e a repetição do êxito até o indivíduo dominar-lhe o mecanismo e haver automatizado a técnica. Nesse momento avança-se outro passo, seguido de novo exercício conducente ao automatismo. Seguir-se-lhe-á outro êxito com novo pata­ mar de repetições automáticas. Diante de cada degrau da escada, indicamos a idade média fixada segundo as nossas colccções. Como veremos depois com a prática, um primeiro elemento do nosso exame psicológico consistirá em constatar, conforme os grafismos, a verdadeira posição do sujeito examinado:

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1. Se a criança se encontra na fase da pura e simples justaposição dos grafismos, concluímos que possui uma idade “gráfica" de 4 anos. Se o indivíduo tem cinco anos, podere­ mos dizer que apresenta um atraso gráfico de um ano. Mas não convém ir mais longe neste domínio e equiparar arbitrariamente o atraso gráfico a atraso mental, embora o atraso gráfico possa e deva entrar em linha de conta no perfil individual que estabeleceremos. 2. O progresso gráfico, medida de inteligência: Porém, a nossa escada de desenho proporciona-nos uma outra possibili­ dade muito mais segura de exame psicológico. Especificando experimentalmente as normas evolutivas do grafismo, poderemos medir o ritmo com que o sujeito sobe a nossa escada. Um indivíduo, a quem baste repetir uma ou duas vezes um gesto para automatizá-lo, em quem a experiência deixe um traço vivo, é muito inteligente. Menos inteligente será outro que precise de 50 ou 100 repetições para aprendê-lo. Claro que este progredirá mais lentamente na aquisição das experiências necessárias para dominar o meio. O facto é particularmente sensível no desenho. O atrasado, o não inteligente ou o anormal chegam, após grande labor, à justaposição dos grafismos. Trata-se de um esforço dc que podem orgulhar-se. Mas, antes de ultrapassa­ rem a fase, antes de dominarem a justaposição para atingirem a explicação a posteriori, precisarão talvez de um ou dois meses de exercícios e de experiências. A criança inteligente justaporá os seus grafismos e, sem qualquer repetição, passará à etapa seguinte de explicação a posteriori. Para transformarmos a nossa escada de desenho numa Verdadeira escala de inteligência, teremos de ordenar séries de desenhos correspondentes ao seu todo ou parte. Possuímos uma série de desenhos de X... correspondente à secção da escada: “Primeiro êxito especializado (2 anos e 4 meses). Explicação a posteriori (4 anos e 8 meses).” Tempo normal para transpor a secção Tempo levado pelo sujeito 97

204 (4 anos e 4 meses) 108 (1 ano e 8 meses)

Grau de inteligência: inversamente proporcional ao tempo levado a subir a escada:

Quando o desenho livre se praticar regularmente, quando tivermos um maior número dc dados experimentais onde fundamentar a nossa escada de desenho, disporemos de uma medida de inteligência incontestavelmente eficaz e dc uma simplicidade que a tomará verdadeiramente acessível a todos os pais e educadores. 3. Medida da vida: Há ainda um terceiro elemento a examinar e esclarecer: a vida expressa pelo grafismo. Trata-se de algo mais subtil do que as aquisições gráficas cujo processo temos vindo a estudar, mas que não podemos negligenciar. A vida não é de forma alguma apanágio dos desenhos evoluídos. É possível senti-la desde os primeiros grafismos. Tentaremos detectar-lhe a realidade nalguns daqueles êxitos vivos que iluminam por vezes os grafismos de indivíduos atrasados, proporcionando-nos, assim, maneiras dc descobrir-Ihes novas vias de progresso. Sem perder de vista a nossa escada, passemos a examinar alguns desenhos exemplificativos das explicações que procura­ mos dar.

Fig. 62

1. Desenho de Aline (3 anos e 8 meses). 98

Embora os tipos pareçam pouco evoluídos, o autor ultra­ passou manifestamente a fase da justaposição e da justificação a posteriori. Situaríamos este desenho no final do comple­ mento da explicação dos grafismos justapostos ou no início do desenho de expressão infantil, ou seja, por volta dos 5 anos e 5 meses, o que constituída um avanço de 18 meses por parte do desenho. O coeficiente de inteligência seria de

Fig. 63

2. Desenho de Jean-Paul (5 anos e 1 mês). Este desenho pertence nitidamente à fase do complemento dos grafismos justapostos. O autor começou por desenhar o seu menino de trotineta, tema que lhe era familiar e que pretendia repetir para o fazer passar ao automatismo. O tipo conseguido encorajou-o e resolveu desenhar o seu boneco a praticar diversas 99

actividades. Há mais do que justaposição: são evidentes a referência ou dependência em relação ao primeiro tipo. Idade, portanto: 5 anos. A criança tinha 5 anos e 1 mês. Inteligência normal. Mas os desenhos revelam um tal lirismo e vivacidade, que nos permitem depositar esperanças no autor.

Fig. 64

3. Jean-Marc (5 anos e 4 meses). Posição na escada: simples explicação a posteriori: 4 anos e 8 meses. Atraso de oito meses, portanto: trata-se realmente do desenho de um anormal. Mas existe na atitude do boneco uma indizível expressão de fadiga e de espera passiva que permite entrever uma grande vitalidade por parte da criança que, convenientemente orientada, se tornará normal. 100

Fig. 65

4. Aos 14 anos, Pierre Fournier desenha este belo quadro que não só revela um valor gráfico inegável como ilustra um talento desenvolvido exclusivamente pelas nossas técnicas, sem qualquer estudo formal dos princípios do desenho.

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Não redigimos este estudo como clínicos apaixonados por colecções nem por estatísticas, mas como educadores empe­ nhados numa compreensão cada vez maior e mais profunda do sentido do comportamento infantil, com vista a uma orientação mais eficaz dos esforços educativos. Trazemos uma visão nova intimamente ligada à nossa prática do desenho e à nossa prática pedagógica em geral. O propósito que nos anima — de aprofundar incessantemente o nosso conhecimento da criança - dá-nos a certeza de nos encontrarmos no bom caminho. Avançamos ao ritmo de uma investigação colectiva inserida nos nossos trabalhos quotidianos - que se vêem, aliás, constantemente submetidos à prova e à crítica: as me­ lhores garantias de uma pedagogia verdadeiramente experi­ mental. Os educadores, que nunca participaram activamente nas nossas técnicas renovadoras, interpretam mal a obstinação com que levantamos e discutimos certos problemas vitais. Acusam-nos de ignorância flagrante sempre que nos mostra­ mos cépticos em relação à psicologia mais ou menos clássica ou mais ou menos moderna, desenvolvida por uma longa geração de investigadores desinteressados. A ousadia com que avançamos fá-los supor que pretendemos atropelar um passado que nos incomoda, quando afinal, como práticos que somos, nos encontramos profunda e forçosamente agarrados a todo o substrato antigo e moderno, sobre o qual alicerçamos o nosso edifício. Nada temos contra a tradição: apoiamo-nos nela se ela nos serve e acolhemo-la com reservas ou rejeitamo-la impiedosamente se ela ameaça desviar-nos da nossa linha libertadora. Não procuramos a originalidade nem a novidade, mas a vida, a acção e o trabalho. E para servir essa vida, lançamos mão de todos os recursos disponíveis como trabalhadores esclarecidos e conscientes, conhecedores do valor dos elemen­ tos e do esforço exigido. Nesta medida, não ignoramos a reviravolta psicológica e pedagógica cm que nos empenhamos. Ao denunciar a psicologia do comportamento do aluno de laboratório, descobrimos a psicologia da criança natural no meio natural. Não acusamos forçosamente de inexactas as medidas da psicologia laboratorial; os sistemas pedagógicos, a

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que elas servem de base, podem ser lógicos e racionais. Podem prestar serviços inegáveis aos educadores encarregados de "alu­ nos” de salão ou de laboratório. Mas não são necessariamente válidas para crianças que não se encontrem condicionadas por classes fechadas nem por regras laboratoriais estritas. Aqui surgem novos problemas que exigem do psicólogo e do peda­ gogo uma reconsideração do elemento vida num meio vital. É nestas condições naturais que temos procurado as pistas da liberdade e da segurança onde, sentindo-se à vontade, a crian­ ça possa afirmar-se, expandir-se e construir à sua medida regras dc vida pessoais capazes de assegurarem o processo funcional do seu ser. Foi assim que o desenho espontâneo se nos revelou, desde o início das nossas experiéncias(1). como uma destas pistas favoráveis onde a criança chega, por meios próprios, à revelação de si mesma e onde o professor assume a medida da criança. A técnica do desenho livre — seria mais exacto chamar-lhe libertado — e o seu aproveitamento inserem-se assim no âmbito das nossas actividades educativas onde desempenham um papel dc simples mas importante auxiliar. Não partimos de uma atitude de especialistas em desenho infantil, mas dc educadores conscientes do papel da expressão gráfica no contexto educativo. Cremos, aliás, que o desenho infantil já tem atraído idemasiados especialistas e dos mais aguerridos, sobretudo após a psicanálise haver descoberto o misterioso antro do subcons­ ciente. Pedagogos, psicólogos, psiquiatras, sociólogos, antropólo­ gos e mesmo estetas têm alimentado o seu saber e renome à custa do desenho. Cada um destes servos da especialidade procurou descobrir nos grafismos infantis uma demonstração da “sua” ciência especial e um pretexto de investigação muito frequentemente limitado às suas concepções pessoais. Efectivamente, à medida que os especialistas foram passando ao campo da prática, começaram a surgir perigos: o de sistemati­ zar exageradamente as diligências da criança num dado senti­ do; o de projectar situações adultas e mais ou menos facciosas nas situações simples e ingênuas da infância; o de fazer crer (1) Ver Elise Freinet. Nascimento de uma pedagogia popular (ed. Maspéro).

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que uma teoria pré-fabricada poderia esclarecer definitivamen­ te o conteúdo dos desenhos infantis. Em nossa opinião, emprestaram-se ao desenho infantil significados que ele não possuía; os cientistas, com o seu saber, conseguiram apagar-lhe toda a força de documento natural, simples e directo. É o que se verifica quase sempre que o desenho surge sistematicamente interpretado como testemunho da personali­ dade psíquica da criança e dos seus problemas. Ao considerar o conteúdo do desenho infantil como um prolongamento do sonho, os psicólogos conferem-lhe uma dimensão exclusiva e preliminar de complexo. Ora, ao contrário do que sucede ao psicopata, a criança não possui um tema onírico único e fundamental; os seus sonhos múltiplos e diversos são variantes do seu processo de adaptação ao meio. A influência do meio familiar e escolar determina, por sugestão e imitação imedia­ tas ou mais ou menos remotas, estados de sensibilidade inten­ sa, fortemente centralizadores porque ligados à tentativa expe­ rimental do momento. Enquanto a criança controlar as suas tentativas de adaptação, não poderemos olhá-la como total­ mente desadaptada. Os seus jogos improvisados, os seus dese­ nhos e a fabulação que os acompanha constituem documentos de uma vida-que-se-defende, antes de poderem ser considera­ dos testemunhos de um drama permanente escondido. Se há drama, acha-se já inscrito num sistema de defesa automático, a fortalecer e a assegurar. De resto, será perigoso tomar como base o comentário que a criança possa fazer a um desenho que reconheça como transcrição gráfica de um sonho tido durante o sono. Em consequência das influências directas do meio, o comentário ultrapassa o conteúdo inicial do sonho e confunde-lhe as pistas com associações de ideias ou ocorrências actuais e estranhas ao assunto. A interpretação cxclusivamente funda­ mentada no exame do documento gráfico deve ser muito prudente. Todas as formas da expressão espontânea terão necessariamente de vir apoiar o estudo adulto do desenho infantil. Os nossos Métodos naturais situam-nos precisamente no centro dos múltiplos esforços da criança para afirmar a sua personalidade, através das vicissitudes dos primeiros anos de 104

existência. Juntamente com inúmeros outros documentos de expressão livre, o desenho pode surgir então como um teste particular, altamente flexível e subtil, válido para a interpreta­ ção da personalidade psíquica do sujeito. É atendendo a tais vantagens da investigação pedagógica desenvolvida nas nossas classes que somos levados a criticar o valor documental do desenho executado sob o condicionamento do tema imposto, num clima impessoal de classe-laboratório. A atitude do adulto revela aqui grande importância. Para captar a. mensagem dos desenhos, há que viver constantemente e durante muito tempo em contacto com a criança que os executou. Um desenho não basta para dar uma ideia do cariz psíquico do indivíduo a examinar. É na sucessão dos grafismos, ao longo de um certo período, que poderemos detectar disposições psicológicas susceptíveis de completarem constata­ ções análogas verificadas noutros sectores do comportamento espontâneo da criança. Os pais e os educadores, que podem seguir a criança dia a dia e durante anos, acham-se, na verdade, numa posição privilegiada para fazer observações relevantes. A presença do adulto deve ser um misto de discri­ ção e dc expectativa, de confiança e de real compreensão. Ao ler certos estudos que tentam chegar a um conheci­ mento da criança através dos seus documentos gráficos, tem-se por vezes a impressão de que os autores não pretendem descobrir os passos de uma procura vital, mas apenas encon­ trar um pretexto cômodo para desenvolver, de uma forma atraente, um curso clássico de psicanálise. O complexo e o transfert servem para abrir todas as portas, incluindo aquelas onde a chave não entra na fechadura. Neste domínio achamo-nos frequentemente perto da interpretação cabalística, que descobre mensagens esotéricas em cada acontecimento. Não negamos de maneira alguma a realidade do pensa­ mento simbólico infantil. Ele transparece no desenho, nas subtilezas da poesia e nos dramas que, pelo grafismo e pelos comentários que os justificam, nos dão a quase certeza 4a relação entre o desenho espontâneo e os dados subconscientes, da personalidade. Mas o simbolismo não constitui indício exclusivo de recalcamento. Encontra-se por assim dizer em todas as formas culturais do povo, vivo e espontâneo, incon­ 105

fundível na linguagem figurada, nos ditos, nos provérbios e nos contos folclóricos. No homem do povo, como na criança e no poeta, a imagem é como que pré-verbal: é a forma natural de pensar. A mensagem elementar da imagem pode, evidentemente, trair impulsos ou emoções profundos e até então ignorados no conteúdo dos desenhos repetidos sobre o mesmo tema e suscitar particularidades gráficas reveladoras de um estado psíquico. Mas não existe um código susceptível de identificar com segurança a afecção psíquica, mesmo que seja bem real. O mérito da nossa primeira escada de desenho reside no seu dinamismo, na sua inserção no processo do comportamen­ to infantil. Evita assim os perigos de um controle automático pela sistematização dos símbolos ou de quocientes cifrados, reconhecidos como válidos para uma dada idade. A nossa escada não conduz, como dissemos, a uma classificação etária, visto que a idade não constitui necessariamente um factor determinante da riqueza de conteúdo do grafismo nem da sua perfeição. Ela rompe com a escala métrica de inteligência estabelecida por Binet-Simon no início do século, com o único fim de distinguir as crianças verdadeirarnente atrasadas das acidentalmente atrasadas. Com a continuação, os psicólo­ gos aperfeiçoaram mais ou menos tais testes, estendendo-os à massa infantil e agravando-lhes os perigos. A nossa nova concepção de inteligência como permeabili­ dade à experiência orientou-nos para a ideia de patamares sucessivos; com efeito. os degraus da nossa escada de desenho informam-no-, sobre a rapidez da tentativa experimental nas suas diversas etapas: acto conseguido, repetição do desenho conseguido e automatismo gráfico, após o que se procura um novo sucesso pessoal e passa ao patamar seguinte. Encontra­ mo-nos perante a materialização de um processo ascensional da personalidade infantil, processo esse susceptível de nos esclarecer quase infalivelmente sobre o dinamismo intelectual do sujeito examinado. Quanto mais depressa a criança sobe os degraus da aprendizagem, isto é, quantos mais são os actos conseguidos que se automatizam, mais rapidamente liberta uma nova energia que lhe permitirá continuar velozmente a sua ascensão para a eficiência. 106

Foi esta noção de rapidez de aquisição que nos parece essencial e que quisemos integrar na nossa escada de desenho dos 2 aos 6 anos. A rapidez e a segurança com que a criança sobe os diversos degraus da escada levar-nos-ão a reconsiderar certas noções muito importantes sobre a idade mental infan­ til. Podemos dizer desde já que a experiência conseguida e repetida a vários níveis, cm cadência acelerada, apressa o processo de aquisição de regras de vida decisivas, o que testemunha a importância primordial a reconhecer à primeira infância. É sempre em função dos obstáculos que a criança encontra no caminho, que se determina a velocidade da sua ascen­ são a uma maior aptidão para dominar os problemas. Quanto mais importante for o obstáculo, mais imperiosa se toma a necessidade de procurar uma via de ascensão rumo à vida. Se pudermos catalogar tais obstáculos por ordem de frequência e de importância, conseguiremos estabelecer de antemão a linha provável do comportamento da criança. Foi o que tentámos fazer no nosso perfil vital (1) que desde logo se nos apresen­ tou muito mais seguro, completo e vivo do que os perfis psicológicos clássicos. É neste perfil vital, a que poderiamos chamar energético, que deveremos inserir a nossa escada de desenho com todas as suas características reveladoras de um comportamento fisioló­ gico, psíquico, intelectual e social. Teremos ocasião de retomar estas considerações essenciais para nós na medida em que sobre elas se alicerça a teoria da tentativa experimental, cm todos os seus aspectos c fases evolutivas. No plano especificamente pedagógico, têm-nos surgido objecções por parte de pedagogos e professores conformistas, preocupados antes de mais com um ensino realista e metódi­ co. Vamos responder resumidamente às mais importantes que justificariam, só por si. um estudo especial e isolado. 1. Dizem-nos que preconizam o desenho livre infantil, que se maravilham perante o que julgam êxitos; mas a vida não consiste na cultura da originalidade e da fantasia. Para o (1) Le profil vital, (O perfil vital), ed. da Écolc Moderne. Cannes.

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desenhe) que as crianças terão de enfrentar mais tarde, como aliás para todas as disciplinas, existem leis que se devem conhecer e aplicar. Ora, o que fazem da perspectiva? Por que razão não cultivam antes a exactidão do desenho infantil? Porque não corrigem os erros manifestos nos grafismos? A nossa resposta seria relativamente fácil e compreensível se os nossos interlocutores soubessem despojar a palavra edu­ cação do seu conteúdo de formação didáctica e de aquisição sistemática de conhecimentos, alimentado por um longo mal-entendido escolástico. Restabeleçamos a realidade dos factos: trata-se, originalmente, de uma educação de reflexos e de tendências, dc uma harmonização das regras dc vida pela acção medida, inteligente e eficaz daquilo a que chamámos os recursos-barreiras (1). O papel do educador consiste cm colocar judiciosamente os recursos-barreiras; a criança terá de apren­ der sozinha a viver. Quando a ave consegue voar por si, a natureza considera a educação terminada. A nossa tendência seria pensar que ela se iniciaria só então e considerar o método como seu apanágio. Claro que é o adulto que dispõe do método: a criança que se lhe adapte. O que nós aqui tentamos é descrever e explicar — e justifi­ car também — um método natural de desenho exactamente comparável, nos seus processos, ao nosso método natural de leitura, por sua vez inspirado nos princípios universais do método natural de aprendizagem da língua materna. Nesta aprendizagem, como em todas as outras, a simples explicação teórica e o estudo formal das regras e das leis não bastam para fundamentar algo de sólido, dc lógico ou de definitivo. O grande segredo da educação inicial, de que estamos a ocupar-nos, consiste precisamente em permitir a experiência por tentativas da criança em todos os domínios. Esta educação inicial começa por ser pessoal, condiciona­ da pelo dinamismo que cada ser encerra para assegurar o seu crescimento, a sua defesa e a sua elevação. O nosso ser físico (1) Ver Ensaio de psicologia sensível (ed. Delachaux et Niestlé).

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e mental é um todo maravilhoso que tende naturalmente a restabelecer constantemente a harmonia que lhe é essencial; existe nele um sistema, ainda misterioso, não só de defesa mas também de compensação e mesmo de criação. Como ainda não penetrou o mistério, a ciência gostaria de ignorá-lo, preferindo utilizar descobertas aparentemente seguras porque baseadas em realidades experimentais e arbitrariamente codifi­ cadas. É assim que os professores propõem incansavelmente o desenho objectivo copiado ou à vista, as leis da perspectiva, as cores complementares e outras inutilidades que a Arte Moder­ na, com todas as suas audácias e esplendores, não conseguiu desenraizar de um ensino mais do que nunca tradicional; não é pelo facto de terem ensinado metodicamente todas as parti­ cularidades morfológicas do homem à criança, antes dos dez anos, nem de terem explicado as regras da perspectiva ao adolescente, que lhes aperfeiçoam a técnica do desenho. Pelo contrário, ter-lhes-ão incutido o sentimento perigoso e falso de que só é possível realizar uma obra após ter assimilado as regras que a explicam. Terão sufocado neles a flor da sensibi­ lidade, o impulso e a ousadia que marcam a criação de obras exclusivamentc pessoais. Terão destruído para sempre uma possibilidade, e das mais exaltantes, da actividade e da educa­ ção infantis. Não corrigimos escolarmcnte nem de qualquer outro mo­ do os erros manifestos dos desenhos infantis. Cada desenho, com os seus erros e potencialidades, representa um patamar da aprendizagem. A mãe não corrige as formas forçosamente imperfeitas e viciosas da primeira expressão infantil. Não é com proibições que se forma a personalidade: só falando se aprende a falar, só andando se aprende a andar e só o desejo superior que o indivíduo sente de subir e de se realizar, para satisfazer as exigências vitais, o leva a transpor obstáculos e procurar incessantemente um máximo de perfeição. Basta salvaguardar esta necessidade de ascensão e de vida, criar o meio propício que, longe de imobilizar a torrente, a liberte. É assim que cada criança adquire um estilo pessoal de expres­ são, marca de uma originalidade e sensibilidade exclusivas. É assim que se abre caminho às subtilezas da arte e da poesia 109

que, desde as obras infantis, prenunciam o destino espiritual do homem. Os grandes artistas são aqueles que sabem reatar os esforços da infância para neles fundar um talento, apanágio da idade madura.

2. Porque não fazem caso da observação minuciosa que gostaríamos de ver na base do desenho escolar na medida em que representa o ponto de partida da análise experimental e do pensamento racionalista?

Somos, evidentemente, a favor da observação minuciosa. Apenas pensamos que é necessário pormo-nos de acordo quanto ao seu verdadeiro sentido e método e ainda quanto aos domínios em que e particularmente desejável. Observar não significa forçosamente deixar de agir, sus­ pendendo todo o movimento e toda a vida do objecto com a única preocupação de captar as características da matéria inerte, como um médico que, para observar o doente, exigisse previamente a paragem dc todas as funções sem as quais a própria vida se tornaria impossível. Esta observação estática não deve ser inteiramente despre­ zada: embora desnecessária ao grande ritmo da vida, encontra-se na base da experiência científica. Porém, perdeu a importância de outrora; hoje, o que temos de reconhecer é o automóvel que passa a 100 à hora ou a paisagem que desfila perante a janela do comboio ou sob as asas do avião. O próprio cinema arrasta-nos para um ritmo de observação que parece característico da nossa época. Precisamos, portanto, de ultrapassar a concepção escolástica de dissecação metódica dos elementos estruturais do objecto. Existe uma outra forma de observação que acompanha o ritmo da vida através de um processo de iluminação, revelando-nos, como num lampejo, tudo o que há para ver e permitindo-nos uma percepção mais profunda e eficaz do que a proporcionada pela paragem arbitrária de um mecanismo cujo movimento constitui um dos elementos essenciais. É para este tipo de observação activa, intimamente ligado ao dinamismo vital, que nos orientamos; é 110

esta observação que cultivamos muito particularmente através do nosso método natural da desenho, juntamente com a sensibilidade que requer, aliás, processos específicos, 3, Também não têm tendência a cultivar e exaltar a anormalidade que. por muitos êxitos que tenha obtido na sociedade actual, nem por isso deixa de constituir uma fonte de desequilíbrio? Não seríamos pedagogos se não procurássemos, antes de mais, desenvolver uma educação harmoniosa e equilibrada. De forma alguma cultivamos ou exaltamos a anormalidade, favo­ recendo tendências para a fealdade ou para o vício. Porém, é preciso distinguir entre anormalidade e originalidade e fazê-lo desde o início, sem o que acabaremos por nos tornarmos vítimas de uma objectividade rigorosa, sistematicamente deter­ minante da importância da parte no todo. 0 exagero antimorfológico dc certos pormenores, patente no desenho infantil, não nos surpreende. As incoerências gráficas da criança, tal como as suas incoerências linguísticas, não passam de etapas da tentativa c irão desaparecendo gradualmente, deixando atrás dc si apenas o traço da originalidade pessoal. A própria criança atrasada vai melhorando a sua técnica no sentido de uma maior semelhança, embora quase sempre e por múlti­ plas razões - se revele particularmentc rcfractária à escolástica. contra a qual se defende muitas vezes com êxito. A história da pedagogia reduz-se frequentemente à luta tragicómica da escola para sujeitar todas as personalidades à sua disciplina. O normal adapta-sc. O anormal não o consegue e defende-se desesperadamente. Transforma-se no cancro a não mencionar. Quando lidamos com crianças, deparam-se-nos efectivamente indivíduos dos dois gêneros: aqueles que já se submete­ ram às normas da escola e do meio, que sabem subir pruden­ temente a escada mas que perderam o impulso que por vezes lhes permitiría voar até às zonas superiores. São as crianças sensatas e os bons alunos. Todavia, é nos outros, naqueles que conservaram todo o seu dinamismo e originalidade, que des­ cobrimos a pouco e pouco a mensagem da expressão artística. 111

Tal êxito da criança atrasada é compreensível: vimos que surge uma bifurcação num determinado momento da evolução infantil. Se a criança triunfa imediatamente na expressão escrita ou falada, sente menos necessidade de exprimir-se pelo desenho do que os seus camaradas. Possui já um meio de expressão, de relação e de êxito. Mas o anormal, que só dificilmente consegue dominar a fala ou a escrita, que ainda não encontrou um modo de expressão, descobre no desenho e na pintura um êxito à sua medida, uma brecha na qual se empenha de corpo e alma. 4. Muitos psicólogos serviram-se e servem-se do desenho para aprofundar o conhecimento da criança, para observar as anomalias, as tendências e as nevroses. Porque não desenvolve­ ram o estudo nesse sentido? A psicologia e a pedagogia cedem por vezes a uma espécie de moda que atribui a uma forma particular de investigação todas as virtudes, negligenciando a complexidade da vida e a diversidade dos meios que permitem detectá-la. O desenho livre, expressão íntima do indivíduo, permite sempre um conhecimento progressivo da criança, seja ela normal ou não. Contribui para ele na mesma medida em que os demais meios de expressão, quer se trate da mímica, do gesto, da palavra ou da escrita. Mas é ilusório pensar que para esse conhecimento seguro da criança existam fórmulas ou receitas. No entanto, o desenho, tal como a escrita, encerra sinais correspondentes a determinadas tendências do comportamen­ to. Tentaremos especificar-lhes experimentalmente o significa­ do, à semelhança do que se tem feito para certos sinais grafo lógicos. Frisemos que os comentários espontâneos que a criança faz aos seus desenhos no momento de concluí-los, juntamente com os textos e poemas livres da sua autoria, abrem ao educador todo o leque de uma sensibilidade por explorar, onde se constatarão as mesmas disposições. Evitar-se-ão, assim, interpretações apressadas e excessivas, baseadas num único documento gráfico frequentemente isolado de um complexo de expressão e realizado na ausência do adulto que o analisa. 112

Só o comportamento global da criança, reflectido pela expressão livre generalizada, poderá revelar-nos os benefícios de uma psicoterapia natural que, sem perigo de choques emocionais, desencadeia na criança os estados de tensão (cul­ pabilidade, agressividade) resultantes dc um sentimento dc insegurança. Será necessária uma vasta pesquisa para definir as normas explicativas dos desenhos e comentários realizados no clima de confiança das nossas classes, Não queremos fazer antecipações por enquanto, mas podemos afirmar desde já que, após esse trabalho, disporemos dos seguintes elementos que nos permitirão conhecer a criança através dos seus dese­ nhos: 1.° do exame, por assim dizer clínico, de certos sinais do desenho; 2.º da interpretação, sob o ponto de vista do comporta­ mento, das revelações individuais e sociais que os desenhos e textos livres nos fazem; um teste americano, o T.A.T., siste­ matizou o emprego do texto semilivre para tentar estabelecer os perfis das personalidades. Os nossos trabalhos livres, que frequentemente constituem testemunhos comovedores da vida íntima, individual, familiar e social das nossas crianças, permi­ tem-nos ir mais longe. As vastas investigações a que procederemos neste campo conduzir-nos-ão à definição de normas explicativas dos dese­ nhos e dos textos, que nos serão preciosas. 3.° Precisaremos de ver e estudar em que medida o simples facto da criança exprimir a sua intimidade e alcançar um triunfo exaltante através do desenho e da pintura contri­ bui de modo insuspeito para a harmonização do indivíduo, para o seu equilíbrio, para a sua cultura e mesmo para as suas aquisições escolares; cm que medida podem operar-se transfor­ mações radicais face a problemas escolares, familiares e so­ ciais. Teremos de definir as virtudes dc um desenho assim compreendido, transformado, como se vê, em elemento edu­ cativo de importância primordial. 4.° Finalmente, para um exame mais metódico da criança segundo as normas e as escalas estabelecidas neste estudo, recomendamos a todos os nossos aderentes a compilação de 113

uma colecção de desenhos c textos livres da autoria de cada um dos alunos a seu cargo. Após uma recolha dc seis meses, por exemplo, ser-nos-á fácil: a) ver imediatamente em que fase se encontra a criança dentro do processo dc aperfeiçoamento do desenho c inferir o seu grau dc inteligência; b) medir a velocidade a que se processa tal evolução, velocidade essa que, como já referimos, constitui um factor fundamental da inteligência verdadeira; c) proceder então a inquéritos para os quais daremos directrizes nas nossas várias publicações. Encontramo-nos, portanto, num ponto de partida e não de chegada. O nosso livro também não constitui um ponto de chega­ da. De que nos serviria saber dc que maneira uma criança desta ou daquela idade realiza determinada forma gráfica sc não pudéssemos na prática, no nosso comportamento educati­ vo para com ela, tirar dessa observação coordenadas precisas para uma melhor orientação dos nossos esforços? Este livro é um instrumento. Juntos, verificar-lhe-cmos os dados e as conclusões. Julgamos assim ter realizado uma obra útil, permitindo aos pedagogos abordar o problema do dese­ nho infantil não como diletantes, mas como educadores capa­ zes de o integrar no processo global da vida e cooperar na promoção do trabalho essencial que tentámos levar a cabo.

114

SEGUNDA PARTE

AS GÊNESES DO DESENHO

INTRODUÇÃO ÀS GÊNESES

Na nossa Escada de desenha (de 1 a 7 anos), que encerra o nosso primeiro estudo sobre o desenho infantil, procurámos mostrar como o jovem desenhador consegue, por tentativas reajustadas, vencer as dificuldades encontradas na aprendiza­ gem do desenho. Essas dificuldades — sensivelmente iguais para todas as crianças — são representadas pelos degraus da escada. Cada degrau corresponde a uma etapa vencida que a criança repete até mecanizar e automatizar. Segue-se-lhe uma nova etapa, um novo patamar onde voltará a verificar-se o mesmo processo: êxito, repetição, automatização e outro salto rumo a uma segurança dc mão mais ou menos rapidamente adquirida e a um grafismo mais ou menos completo tanto no conteúdo como na feitura expressiva. Para facilitar uma investigação dos vários objectos habitualmentc incluídos na maioria dos desenhos infantis, procu­ rámos compilar uma espécie de repertório gráfico. Assim, iremos debruçar-nos sobre as diferentes Gêneses que materiali­ zarão as dificuldades encontradas pela criança e a maneira como ela as domina. Estudaremos: A Génese do Homem A Génese das Casas A Génese dos Automóveis A Génese dos Animais (aves, cavalo, etc.) Ao fazê-lo, empenhar-nos-emos em simplificar ao máximo uma investigação experimental susceptível de pôr ao alcance 117

de todos os educadores a compreensão dos desenhos infantis nos seus diversos estádios e nas progressões e processos que lhes asseguram a expressão definitiva. Não ignoramos os tra­ balhos mais notáveis que os psicólogos e os pedagogos realiza­ ram sobre o assunto. Mas, na impossibilidade de aproveitar­ mos os seus ensinamentos laboratoriais, orientámo-nos resolutamente para pesquisas livres, efectuadas num meio não escolástico, utilizando métodos naturais conformes com as con­ cepções, com os sentimentos e com as necessidades de seres que obedecem espontaneamente às grandes leis universais do crescimento e da educação. Graças às ricas colecções de desenhos livres realizados nas classes Freinet, pudemos estabelecer normas a precisar e siste­ matizar por estudos ulteriores. Exprimimos o nosso agradecimento aos numerosos educa­ dores e educadoras que nos permitiram este trabalho com o envio importante de material. Estamos quase certos de que as nossas realizações colectivas, ainda insuficientemente divulga­ das, terão muito cm breve de se impor à grande massa dos professores, como bases de uma reconsideração psicológica c pedagógica do desenho infantil. Entretanto, basta-nos ter po­ pularizado a ideia de que o desenho infantil não é um exercício menor, mas que tem significado e originalidade em cada uma das suas fases, porquanto nos ensina a conhecer e amar melhor as crianças que, através das vias benéficas da Arte, preparam um futuro cultural digno do homem.

118

A GÉNESE DO HOMEM

Como nasce o Homem? Como o imagina a criança? Como o desenha? Existe uma norma dc evolução e de pro­ gressão entre o “boneco cabeçudo” e a imagem quase perfeita do homem, passando pelo boneco de braços ligados à cabeça, depois ao pescoço e finalmcnte ao tronco? Será que estes pontos de articulação marcam etapas do desenvolvimento in­ telectual da criança? Eis algumas das perguntas que os psicó­ logos dc diversos países vêm formulando desde há muito e às quais tentaram responder através de inquéritos que visavam estabelecer normas psicologicamente utilizáveis. Se certos tes­ tes se fundamentaram no desenho do boneco, foi sem dúvida por se reconhecer a esses trabalhos um adiantamento conside­ rável e um suficiente valor significativo e comprovativo. Já muitas vezes dissemos que a psicologia, apesar de ser uma disciplina metódica e científica, é frequentemente a psicologia das crianças que, na escola, desaprendem a ser elas próprias, a pensar, a criar e a realizar-se, transformando-se em alunos dóceis que cristalizam a pouco e pouco num modelo erradamente julgado definitivo. Mas perante um outro modo de vida e de educação infantil que preserve as qualidades inatas da criança, limitando-se a ajudá-las a expandir-sc, surgi­ rá uma nova psicologia: a da ave que nasce, fortalece as asas, ousa voar e conquista o firmamento sem olhar às normas nem às restrições que a domesticação lhe teria imposto. Se, convencidos de ser essa a única via educativa, começa­ rem desde logo a submeter sistemática e metodicamente a criança a exercícios, tarefas e cópias que lhe destruam o 119

sentido de criação audaciosa c de vida, se lhe impuserem desde o início um caminho que ela não ousa abandonar, falsificarão todos os dados da experiência que pretendiam medir. E isso que nos obriga a considerar como nulos todos os estudos realizados sobre colecções de desenhos de crianças submetidas aos métodos escolares tradicionais. Mesmo que tenham dito à criança: desenha o que quiseres! A criança estará engaiolada e mesmo que lhe abram a porta não se aventurará a sair. Para encontrar o verdadeiro desenho livre, há que come­ çar por implantar na escola e na família uma atmosfera nova, assente cm normas de criação, de expressão e de comporta­ mento que permitam ao indivíduo desabrochar e expandir-se. O desenho livre é um fruto delicado que só poderá amadure­ cer e adquirir todo o seu significado no clima de afectividade e dc criação que conseguimos instaurar, pelo menos parcial­ mente, nas nossas classes. Convem-nos verificar agora se o processo evolutivo do desenho do homem, tal como aqui o estabelecemos, corres­ ponde de facto à realidade. Já afirmámos que este primeiro trabalho não passa de um simples ponto de partida para investigações mais fecundas. Todavia, são necessárias algumas achegas para esclarecer tal tentativa preliminar, integrada já no complexo do problema geral que nos empenhamos em elucidar. Os nossos projectos de Gêneses diversas visam fazer ressal­ tar, em casos e situações extremamente diversos, a nossa teoria da tentativa experimental. Iremos reencontrá-la na solução das dificuldades que a criança tem de vencei tanto no plano gráfico como no afectivo. Para simplificar o problema apenas utilizámos para a nossa Génese do Homem personagens isoladas, separadas do contexto ambiental ou feitas em serie, inseridas numa situa­ ção idêntica na qual desempenham um mesmo papel (Figs. 45, 46, 53. 54, etc.). O isolamento da personagem permite-nos acentuar a cria­ ção progressiva do actor essencial o Homem. Sabemos mui­ to bem que a criança relaciona constantemente a sua persona­ gem com o meio, quer no grafismo quer no comentário. Mas, 120

à medida que vai dominando as dificuldades, começa a reali­ zar o homem em si. procurando levar o desenho a um máximo de perfeição. Trata-se dc um acto de escolha, inteira­ mente livre e alheio a qualquer condicionamento temático compulsivo. As relações afectivas da personagem com o meio dão origem a situações psicológica, humana c intelectualmcnte tão complexas, que seria impossível abordar-lhes todos os aspectos imediatos, no âmbito da simples explicação global. O nosso objectivo, nesta fase de desenho entre os 2 e os 6 anos, e sublinhar a sistematização dos primeiros triunfos. a sua repetição nos patamares do automatismo e a sua consecu­ ção final do tipo Homem: desde os primeiros esboços aos aperfeiçoamentos essenciais e aos embelezamentos rebuscados, que assistimos a toda a aventura humana, materializada pela criança através de uma criação por assim dizer natural. Para dar uma idéia mais precisa e aparentemente mais metódica da evolução da personagem, ler-nos-ia sido mais fácil e demonstrativo reportarmo-nos às realizações sucessivas de uma única criança. Teríamos podido constatar comoda­ mente. num conjunto de documentos escalonados ao longo de meses e anos, as diversas etapas do desenho personalizado e verificado quase simultaneamente a oportunidade da nossa Escada de desenho. Porém, quisemos abordar o boneco nos seus aspectos mais generalizados, levantados por uma grande massa infantil a braços com as mesmas dificuldades de realização. Este trabalho não tem pretensões pedagógicas nem científicas. Tal como se apresenta, teve pelo menos a vantagem de nos permitir certas constatações que passamos a enunciar. A evolução do homem depende evideutemente do apare­ cimento sucessivo de órgãos precisos, traçados cm função das dificuldades encontradas para assinalá-los. A importância que a criança atribui a estes órgãos escolhidos por ela não é de maneira alguma indiferente. Note-se que a cabeça constitui sempre o ponto de partida: não se vê um boneco sem cabeça. Um círculo acompanhado de uns quantos tentáculos vindos à ponta do lápis são para a criança pormenores suficientemente evocativos da personagem. Seguem-se quase sempre as pernas. Os pés não parecem imediatamente úteis, ou serão demasiado 121

difíceis dc desenhar? Surge depois o ventre, redondo ou mais ou menos geométrico, de um ou dois andares. Indiferente­ mente, no princípio ou no fim da experiência, chegam o nariz, os olhos, as orelhas, a boca, os cabelos, os braços, as mãos, os pés, o umbigo e o vestuário. Será muito arriscado afirmar que a ordem de aparecimento destes vários atributos reflecte as aptidões intelectuais do jovem autor. Será insensa­ to inventar uma notação que. mediante a pontuação dc todos os órgãos hierarquizados pelo adulto, pretenda levar à elabora­ ção de testes dc inteligência capazes de avaliar verdadeiramen­ te o nível mental da criança. Desde muito cedo, desde os dois anos mais ou menos, a criança possui uma noção global mas segura da morfologia do homem. Nota as irregularidades fisio­ lógicas dos doentes e sente-se afectado. Exprimirá adequada­ mente a sua emoção através da palavra. Mas desenhar é outra coisa: terá de servir-se do contorno; depressa, porém, saberá aproveitá-lo, recorrendo sempre que possível a processos de extrema economia. É o que explica a rápida personalização do boneco. A linguagem gráfica caracteriza-se por formas, esquemas, que a criança descobre por tentativa e aos quais se prende se os considera conseguidos e sobretudo se o meio os aprova: círcu­ los (Fig. 9), triângulos (Figs. 62-63), quadrados (Fig. 78), os foguetões (Fig. 18), sóis (Fig. 49) e flores (Fig. 50)- muito cedo representativos de um estilo pessoal, reconhecido pelos próprios pequenitos da classe maternal: "É o desenho do Popol”, É o boneco da Suzyf". Estamos perante um verdadei­ ro teste de autêntica propriedade, facilmente controlável e cuja constância e justeza de resultados não deixa de surpreen­ der. E, todavia, a criança de 4 a 5 anos não analisa nem observa deliberadamente os pormenores do desenho. No en­ tanto, é sensível ao automatismo da repetição gráfica, ao conteúdo dos patamares e à sua sucessão, por sc tratarem dc processos por ela vividos e por ver as outras envolvidas nas respectivas obras tal como ela se vê envolvida nas suas. Na execução do boneco, há um elemento que desde muito cedo marca o jogo do pequeno desenhador: a velocida­ de de execução, que apontámos na nossa Escada de desenho. A ousadia do traço, as noções da relação entre as partes e o 122

todo e a facilidade dc disposição na página surgem quase instantaneamente na criança permeável à experiência, ou seja, na criança inteligente. Mas esta aceleração só pode produzir-se, quando ela se acha segura dos seus automatismos, quando o lápis desliza tão depressa como a corrente do pensamento. Senhor de uma execução rápida, o jovem desenhador fica então disponível para outras invenções gráficas e para comen­ tários a posteriori mais ou menos fabulosos. É desta forma que o desenho infantil consegue testemu­ nhar um quociente de vida e dc expressão aparentemente ignorado na totalidade pelos especialistas da matéria, resultan­ te agora de uma resoluta abertura à iniciativa e à criação. Cada boneco que entra no jogo pode considerar-se como um boneco-instrumento que irá abrir outras portas: tem uma origem e um destino funcionais e experimentais, traduzidos por vezes no gesto ou na palavra da criança actuantc. Foi esse factor de vida que tentámos preservar neste primeiro filme sobre a personagem humana. Sempre que dispusemos do co­ mentário autêntico — senão adequado — conservámo-lo. Na sua falta, procurámos traduzir de forma lapidar a mensagem de vida encerrada na obra espontânea da criança, Trata-se, evidentemente, de uma intrusão adulta no domínio da sensibi­ lidade infantil e a um nível de interpretação que não é o da criança. Mas foi sobretudo pensando nos pais e nos educado­ res que recorremos a tais comentários elípticos, destinados exclusivamente a tornar os adultos sensíveis à mensagem de vida encerrada nas criações instintivas das suas crianças e a evitar uma perda de bens. Como justificação, podemos acres­ centar que. ao fazê-lo, em nada perturbamos a actividade espontânea da criança c talvez consigamos suscitar no adulto uma atitude de expectativa e de respeito perante improvisa­ ções gráficas originais, mas quase sempre consideradas em bloco como rabiscos inúteis. Para permanecer no nível desta vida de alegre espontanei­ dade, há, porém, que respeitar a continuidade da experiência: continuidade das criações infantis sucessivas, continuidade das manifestações do comportamento e continuidade das condi­ ções favoráveis dc um meio propício. A expressão global e concominante dos dados vitais favorece ao máximo a desco123

berta do acto conseguido que se vai repetindo e fixando nessa reprodução mecânica de comportamentos favoráveis. Só num clima de continuidade é possível afirmar e garantir a liberdade de expressão da criança.

124

COMO NASCE E EVOLUI O HOMEM SOB OS DEDOS DA CRIANÇA

Os desenhos que serviram para estabelecer esta génese são desenhos livres de crianças a quem a escola não ensinara previamente qualquer princípio básico de desenho. O feto

Fig.1

O ovo mal diferenciado. Jacques (2 anos e 6 meses).

Fig. 2

Primeira evolução do embrião. Mariette (2 anos). 125

Fig. 3

O corpo toma forma com dois olhos e, em baixo, um princípio de pé. Louis (4 anos e I mês).

Fig. 4

O ser animado, munido dos seus primeiros tentáculos, levanta voo para a vida. Pierre (3 anos e 2 meses). 126

O nascimento

O homem acaba de nascer. Vamos vê-lo evoluir segundo a perspectiva e o sentimento da criança, mas necessariamente também e em grande parte de acordo com as possibilidades técnicas da sua lenta tentativa.

l;ig. 5

O homem acaba de nascer, ainda impreciso e tosco. Dominiqtie (2 anos c 4 meses).

Fig. 6

Agita-se, alonga-se, experimenta os membros em todas as direcções. (Mariette (3 anos e 3 meses). 127

Fig. 7

Balouça-se pendurado pelos braços... Jean-Paul (3 anos e 10 meses).

Fig. 8

Como um insecto, o Homem firma-se finalmente sobre as pernas, tentando equilibrar-se. Micbel (3 anos e 11 meses).

Fig. 9

Eis o Homem, com cabeça, pernas, pés e, curiosamente articuladas, duas mãos incipientes. Dominique (3 anos e 2 me­ ses). 128

As vias complexas do aperfeiçoamento dos tipos

Cada criança irá diferenciar e aperfeiçoar este homenzinho recém-nascido, segundo as suas tendências, possibilidades e êxitos. Trata-se de um homem ou de uma planta?

Fig. 10

Eis o protótipo do homem, que o nascimento acaba de arrancar ao meio que o gerou, como uma planta acabada de arrancar ao solo a que se prendia com fortes raízes. Annette (5 anos e 2 meses).

Fig. 11

Olhos, boca, cabelos, pés: arrancado a um mundo, prosse­ gue em busca de um outro universo. Annette (5 anos e 3 meses). 129

Fig. 12

Eis o homem-árvore. com o seu tronco, os seus ramos cobertos dc folhas e a sua cabeça florida. Daniel (5 anos c 7 meses).

Fig. 1 3

“O bebê-flor”. Dir-se-ia um malmequer de pétalas frisa­ das, acabado de colher num prado. Charles (5 anos e 3 me­ ses).

Fig. 14

E eis o grafismo simultaneamente árvore pelo tronco, flor, sol e, naturalmente, homem. Michou (5 anos e 5 meses). 130

Uma cabeça e penas

Fig. 15

Eis. à direita, um boneco com cabeça c pernas e, à esquerda, o mesmo boneco com um princípio dc ventre e pés. Rosettc (4 anos c 2 meses).

Fig, 16 .

Bonecos com cabeça e pernas, reproduzidos em série e dotados já de alguns aperfeiçoamentos: olhos, pés, um esboço de braços e de cabelos, Marie-Francc (4 anos e 4 meses).

Fig. 17

Será possível exprimir mais com uma técnica tão rudi­ mentar? "A mãe ralha com o filho, ” Jacques (4 anos c 2 meses).

131

O homem-foguete

Fig. 18

A Mariette equipou o seu homem-foguete com duas per­ nas reduzidas e um coraçãozinho. Mariette (3 anos e 7 meses),

Fig. 19

Eis um foguete mais aperfeiçoado, com duas mãos-manivelas e uma cabeça viva. Francine (5 anos e 5 meses). 132

Fig. 20

O tipo foguete, sistematicamente repetido, originou este belo conjunto, espectacular como fogo de artifício. Henri (3 anos e 8 meses). Um ventre que se anima

Fig. 21

O homem-foguete diferencia-se e o ventre enriquece-se com quatro minúsculos elementos de vida. Maríette (3 anos e 10 meses).

133

Fig. 22

‘'O menino chora no bosque porque perdeu a mãezinhu... " E as suas entranhas mostram-se visivelmente convulsas. Marc (5 anos c 1 mês).

Fig. 23

O ventre constitui realmente um elemento de vida, com os seus órgãos múltiplos e os seus apendices diversos, encima­ dos por uma cabeça espantada. Marc (5 anos e 1 mês).

Fig. 24

"A menina na sua casa" parece muito nervosa... Josette (4 anos e 1 mês).

134

Fig. 25

O ventre readquire os seus direitos, com o umbigo, os seios, os braços e as pernas engelhadas. Jean-Pierre (6 anos). Uma cabeça que anda

Umas crianças alongaram as pernas, outras dilataram o ventre, centro da vida vegetativa. Eis algumas cabeças que andam...

Nada mais simples do que a vida: uma cabeça, dois olhos, uma boca, dois braços com as respectivas mãos a servir de lemes, e toca a andar! Françoise (5 anos).

Fig. 27

Será um marciano? Pierrc (4 anos e 8 meses). 135

Fig. 28

Ou um ser planetário que vai aterrar? Jacques (4 anos e 5 meses).

Fig. 29

Uma cabeça enorme, como as caraças de papelão dos cabeçudos carnavalescos. Alain (5 anos e 5 meses).

Fig. 30

"O senhor leva o cavalo a ferrar." Jean-Claude (5 anos). Da elegância e da beleza

Eis os que se preocupam em "criar beleza". 136

Fig. 31 Amédée (5 anos e 1 mês) acrescentou ao seu homem esquelético apêndices amplos como grandes barbatanas.

Fig. 32

Com 5 anos e 3 meses, Amédée aperfeiçoou o seu estilo decorativo, 137

Fig. 33 E René (4 anos e 9 meses) também estilizou os longos cabelos da sua mulher-insecto.

Fig. 34

Como um cometa de cauda imensa, a cabeça de Erançoise (4 anos e 8 meses) parece vogar através dos elementos. 138

O homem insecto perfeito

Parece haver terminado as suas metamorfoses e surge-nos agora com uma cabeça, um tronco, pernas, pés, braços se necessário, orelhas por vezes c mais tarde fatos conforme as conveniências.

Fig. 35 Ei-lo vestido com uma simples fieira dc botoes. Denis (*6 anos).

Fig. 36

A sua companheira, nova c galante. Roger (5 anos e 3 meses).

Fig. 37

“O Anjo que voa para o céu.” Pierre (5 anos e 11 meses). 139

Fig. 38 E eis o Homem. Hené (4 anos e 10 meses). Pormenor das técnicas de desenho

Assistiremos agora à diferenciação e ao aperfeiçoamento de cada um dos elementos do homem, segundo as necessida­ des da vida e os caprichos das técnicas. O problema dos braços

Onde fixar os braços? À cabeça? Ao pescoço? Ao tronco? Tudo depende da técnica do desenho e do significa­ do da imagem realizada.

Fig. 39

“Geneviève na cama." Os braços são como apêndices implantados no corpo, como as raízes de uma trepadeira. Mariette (3 anos). 140

Fig. 40 Embora sem perder o seu carácter de raiz ou dc ancinho, os braços já encontraram, neste caso, um ponto dc articula­ ção. Geneviève (5 anos c 1 mês).

Fig. 4 1

Os braços parecem cotos munidos de articulações ortopé­ dicas. Marie (4 anos e 4 meses). 141

Fig. 42

Braço nascendo de um par de pernas-tronco. Marcel (4 anos).

Fig. 4 3

Braços-orelhas sobre uma cabeça original. Alain (4 anos e 8 meses).

Fig. 44

Braços dcliberadamente ligados às orelhas. Mireille (4 anos e 11 meses). 142

Fig. 4 5

Este desenho apresenta-nos três etapas: Braços ligados às orelhas; Braços ligados um ao pescoço, outro ao tronco: Braços ligados ao tronco. Dominique. (3 anos e 4 meses).

Braços ainda rudimentares, com mãos em embrião muito agarradas e originais no seu compasso sincronizado. Jean (5 anos)

Fig. 47

A figura dispõe aqui de elementos especializados, capazes de segurar algo semelhante a uma bengala. Nicole (3 anos e 4 meses). 143

Fig. 48

A posição dos dedos fica indecisa por muito tempo, A mão evolui frequentemente para uma espécie de sol cujos dedos são os raios. André (4 anos e 8 meses).

Fig. 49

Há um progresso. Uma das mãos já apresenta os cinco dedos regulamentares, enquanto que a outra ainda se abre numa multiplicidade de raios solares. Jean-Louis (5 anos e 10 meses).

Fig. 50

Ou então as mãos surgem como lindas flores no extremo dos braços. Josette (4 anos e 8 meses). 144

Fig. 52

Fig. 51

E eis dois desenhos de duas crianças dc 5 anos de idade: Aline das Landes e Jean-Yvcs das Côtes-du-Nord. autores de belas mãos com vastas palmas que se diriam provenientes do mesmo lápis.

Fig. 5 3

Se não se lhes vê qualquer utilidade, os braços são pura e simplesmente suprimidos. Jacques (4 anos e 8 meses).

Fig. 54

Para que servem as mãos num autocarro? Jean-Paul (5 anos e 11 meses). 145

Fig. 55

"O menino na trotineta" conduz com um único braço. René (6 anos).

Fig. 56

E Marc-Antoine (6 anos) dispara a pistola apenas com um braço, naturalmente.

Fig. 57

O pescador segura na linha com a mão direita, a esquerda de nada lhe serviría. Jacqucs (6 anos). 146

Fig. 58

O palhaço também evoluciona com um só braço. Maxou (4 anos e 6 meses).

Fig. 59

O homem sentado projecta a distância a sua mão fantásti­ ca. Aline (5 anos). 147

Um meio cômodo: o acrescentamento

Fig. 60 Eis o protótipo do desenho com acrescentamentos, como uma escada de pintor montada em três partes. Dominique (3 anos e 2 meses).

Fig. 61

Um outro boneco acrescentado, dir-se-ia agora com um pequeno rolo de matéria plástica entreposto. Charles {4 anos e 1 mês). 148

fig. 62 Se o boneco não tem o tamanho necessário, basta acres­ centar-lhe as pernas. Geneviève (6 anos e 1 més).

Fig. 63

Se o problema reside no pescoço, basta acrescentá-lo. Geneviève (6 anos e 1 mês). O homem e a mulher

Como vê a criança o homem e a mulher? Como distingue o homem da mulher? 149

Fig. 64

Dois embriões dc pai c dc mãe. Maricite (3 anos e 5 messes).

Fig. 65

A senhora em camisa de noite e o pai receoso e prudente. Patrick (4 anos e 3 meses).

Fig. 66

O papá visto por Geneviévc (3 anos e 3 meses). 150

Fig. 67

Fig. 68

A mãe, sólida e bem assente, leva o pai no braço como um brinquedo. Noêl (4 anos e 8 meses).

Fig. 69

E eis o casal simbólico: a mulher-megera gesticulando e um homem inquieto e suplicante, Dominique (4 anos e 1 mês). 151

A mulher triangular

É sem dúvida uma solução tecnicamente fácil que surge em muitos desenhos.

Fig. 70

Eis uma mulher. triangular cujos pés ainda não se despren­ deram do solo original. Fátima (7 anos e 6 meses).

Fig. 71

Primeiro aperfeiçoamento. Jacquelinc (4 anos).

Fig. 72

Dir-se-ia a composição perfeitamentc estudada de um de­ senhador dadaísta. Paul (4 anos e 8 meses). 152

Fig. 73

Fig. 74

Duas mulheres quase idênticas, desenhadas por duas crian­ ças diferentes, segundo a mesma técnica do triângulo. Henri (5 anos e 2 meses) e Jeanne (5 anos e 8 meses). Sinfonia em quadrado

Ignora-se a razão por que algumas crianças escolhem uma posição intermediária entre os círculos e os triângulos e de­ senham tudo em quadrados.

Fig. 75

Primeiros êxitos de figuras desenhadas à base de quadra­ dos. Jacques (4 anos e 11 meses). 153

Fig. 76 Aqui só o tronco é quadrado. Henri (5 anos e l mês).

Fig. 77

Jean-Paul possui um estilo inteiramentc original e exclusivamente cm quadrada. Jean-Paul (4 anos e 8 meses).

Fig. 78

E eis o próprio Pai Natal quadrado. Claudine (5 anos e 1 meses). Os olhos

Os olhos contam-se entre os primeiros elementos que animam os desenhos dos bonecos. 154

Fig. 79 Os olhos gigantes do boneco primitivo. François (3 anos e 11 meses).

Fig. 80

Olhos com raios como se fossem o sol. Mireille (4 anos e 1 mês).

155.

Fig. 81

Cabeça pensativa com olhos atentos onde despontam as sobrancelhas. Henri (5 anos e 2 meses).

Fig. 82

Um belo olhar. Jacques (6 anos e 3 meses).

Fig. 83

Um olhar expressivo. Alain (5 anos e 3 meses). 156

As orelhas

Misteriosamente. as orelhas ocupam um lugar muito se­ cundário no desenho infantil.

Fig. 84

Desenho com orelhas, François (4 anos e 8 meses).

Fig. 85 Orelhas inseridas num conjunto decorativo. Jean-Paul (4 anos e 3 meses).

Fig. 86

Orelhas semelhantes a dois olhos suplementares. Joel (4 anos e 1 mês). 157

Fig. 87 E o senhor que vai passear achou melhor pendurar a bengala na orelha. Joel (4 anos e 1 mês). Os cabelos

Os cabelos, em contrapartida, só muito raramente são

Fig. 88 Cabelos em vareta que, nos primeiros desenhos, se não diferenciam ainda dos braços nem das mãos. Pierre (3 anos e 8 meses).

Fig. 89

Cabelos (4 anos).

como

ervas

flutuando

158

ao

vento.

Michaella

Fig. 90

Picrre (4 anos).

Fig. 91

Cabelos,

elemento

espectacular

de

Beleza.

Michel

(4 anos).

Fig. 92

Cabelos armados em permanente. Jacques (6 anos e 3 meses). 159

Fig. 93

Longas tranças de efeito decorativo. Jacqueline (5 anos e 1 mês).

Fig. 94

E, do cimo do seu prolongamento, com os maravilhosos cabelos desfeitos e tombando-lhe em cascata: Mélisande. Michaella (4 anos e 1 mês). Os chapéus

A cabeça quase nunca está descoberta. Sc não-há cabelos há um chapéu. Eis, de entre uma infinidade de tipos, os chapéus de: 160

Fig. 95

Michou (4 anos e 4 meses).

Fig. 96

Annie (5 anos e 10 meses)

Fig. 97

Eugène (6 anos). 161

Fig. 98

E as mulheres exóticas de Jean-Paul (4 anos c 5 meses),

Pés simples e filiformes de uma figura solidamente firma­ da como um despertador sobre um armário. Charles (3 anos e 10 meses).

Fig. 100

Pés em ventosa de uma extraordinária máquina humrana. Jacques (3 anos e 11 meses). 162

Pés avantajados de bonecos que só nos falam pelas cabe­ ças e pelos pés. Pierre (4 anos e 1 mês).

Fig. 102

E, para terminar, o boneco estilo Charlot. Jean-Paul (4 anos e 1 mês).

O vestuário O vestuário só surge bastante tarde nos desenhos dos bonecos ou então acha-se reduzido aos elementos essenciais: os botões.

163

Fig. 103

0 boneco com algibeiras. Denis (6 anos c 10 meses).

Fig. 104

A menina-arlequirn. Agnès (6 anos e 10 meses).

164

Fig. 105

A camisola do professor. Jacqucs (7 anos e 6 meses).

Fig. 106

A sedutora. Helène (5 anos e 11 meses).

Fig. 107

A menina com fato de domingo. Jacqueline (5 anos e 11 meses).

165

Fig. 108

Os oficiantes. Jacques (5 anos e 10 meses). Os perfis

Os perfis são tecnicamente difíceis de realizar. Eis o motivo por que poucas crianças tentam desenhá-los e rara­ mente no início.

Fig. 109

Perfil de Pierre (6 anos e 1 mês).

Fig. 110

“Senhor olhando os pássaros." Jacques (5 anos e 10 me­ ses).

166

Fig. 111

A senhora vai apressada. Yves (8 anos).

Fig. 112

Eis o caçador. Jean-Marie (6 anos e 10 meses). 167

Fig. 113

O cow-boy. Bébert (8 anos).

Fig. 114

E, para terminar, este comovedor quadro do noivo levan­ do flores à sua bela. André (6 anos e 10 meses). A vida através do movimento

Neste estádio, a criança ainda está longe de ter alcançado a perfeição técnica. Todavia, queremos frisar que apesar da

168

sua imperfeição técnica, consegue atingir uma expressão de vida incontestávelmente profunda. E a capacidade que a crian­ ça desenvolve para captar a vida em tudo o que ela possui de fugaz, e de comovente constitui, tal como para o artista e para o pintor, o objectivo da arte em que a iniciamos.

Fig.115

A candura de umas núpcias. Marie-Clairc (6 anos e 1 mês).

Fig.116

O palhaço. Jean-Paul (5 anos). 169

Fig. 117 Surpresa e hesitação. Jean-Marc (4 anos e 9 meses).

Fig. 118

“Menina divertindo-se. ” Nicole (5 anos e 8 meses).

Fig. 119

Eis um grupo de soldados "condecorados com a cruz de guerra", reveladores de uma ironia digna de um grande artista. Alain (5 anos e 5 meses). 170

/!

Hg. Fig. 120 120

Com 5 anos e 3 meses, Yves desenhou um operário espantoso "que desentope uma sarjeta”.

Fig. 121

Com a mesma idade, Etienne desenhou um “senhor levan­ tando-se”. Está despenteado e segura numa mão o pente e noutra a escova.

Fig. 122

“O pequeno marinheiro vai à festa.” Odette (6 anos e l mês). 171

Fig. 123

Por incrível que pareça, estes dois bonecos “regressam do cemitério no dia de Todos-os-Santos e está a chover...” Clau­ de (4 anos e 3 meses).

Fig.124

“Santa Catarina subindo ao céu." Gilbert (5 anos e 10 meses).

Fig. 125

Jacques desenhou este grupo de beldades que parte numa carroça. Jacques (5 anos c 2 meses). 172

E temos ainda os apaixonados da beleza que parecem ter unicamente captado nos modelos que os rodeavam o exultan­ te elemento artístico.

Fig. 126

O chapéu florido. Françoise (4 anos e 11 meses). 173

Fig. 127

Eis a rapariguinha. Michou (4 anos).

Fig. 128

A menina grande com o cão. Michaella (4 anos e 10 me­ ses). 174

Fig. 129

E não são da opinião de que só uma criança, manejando a goiva como os seus antepassados das cavernas manejavam o buril de sílex, conseguiría restituir a esta estátua a eternidade impassível do homem? 175

As normas que estabelecemos sobre a evolução do Ho­ mem nos desenhos das crianças dos 2 aos 6 anos serão válidas para as crianças de todos os meios? Variarão de país para país? Quais seriam as variantes ou as diferenças? No prosse­ guimento da nossa investigação deveremos achar respostas para estas perguntas. Já encontrámos resposta para uma questão que entretanto se levantou: Porque serão tão poucas as crianças que dese­ nham as suas personagens de perfil? O perfil, de facto. só surge bastante tarde. Temos poucos nas nossas colecções de desenhos de crianças dos 2 aos 6 anos. Pensámos que a razão desta ausência generalizada residisse nas dificuldades técnicas aparentemente existentes no desenho do perfil: a testa, o nariz, os lábios, o queixo e o pescoço geram uma sucessão de bossas e de reentrâncias de proporções difíceis de reproduzir. O perfil pressupõe já uma certa análise dos pormenores c exclui a espontaneidade global característica dos esforços das crianças muito jovens. Mas nos desenhos oriundos da África Negra dá-se precisa­ mente o inverso: os desenhos infantis comportam personagens vistas de perfil independentemente da idade do autor. A representação frontal da figura só surge exccpcionalmente c numa idade bastante avançada: depois dos 9 anos. Os desenhos que nos enviaram os nossos colegas Gast (Hoggar) e Lagrave (Camarões) permitiram-nos constatá-lo. Informámo-nos mais circunstanciadamente junto deles e eis o que nos diz Lagrave (Pitoa): Com efeito, todas as crianças negras desenham o homem de perfil. Ora o desenho de frente é mais fácil do que o de perfil. Há aí uma espécie de mistério que creio ter desvenda­ do parcialmente. Ao observarmos as esculturas que desde sempre serviram para o culto dos antepassados, constatamos que a sua posição é frontal e que representam o rosto do antepassado de quem se julga haverem recebido a força vital. A máscara constitui a parte essencial da escultura. Consta de uma superfície plana onde se inscrevem os traços do rosto e acha-se colocada sobre um pé com meras funções de suporte. Temos de admitir que a cara representa 0 símbolo do morto. O escultor que talha 176

estes rostos é um especialista de imagens místicas: deuses, antepassados, chefes. Segundo parece, a cara representa a honra e a dignidade do homem. Certas expressões correntes entre nós, tais como "não ter cara para", “ser descarado", etc., mostram vestígios desta acepção. Note-se que na arte românica o Cristo glorioso surge sempre de frente, enquanto que os discípulos que o rodeiam estão de perfil. Sem tirar conclusões sobre o facto. limitemo-nos. contudo, a sublinhá-lo. Voltando à criança negra e ao seu meio: para compreen­ der verdadeiramente o comportamento da criança africana temos de esquecer por completo a nossa mentalidade de ocidentais. Temos de penetrar resolutamente no âmago das suas práticas dc vida, dos seus actos aparentemente irracionais e ingênuos, para sentir-lhes a espiritualidade latente. Só assim podemos constatar que todos os acontecimentos importantes da existência: o nascimento, a iniciação, as núpcias, a morte, as sementeiras, as colheitas, a pesca, os poços, as fontes e a fecundidade da mulher e da terra se encontram consagrados a Espíritos, Estes Espíritos acham-se presentes a cada hora do dia, estreitamente associados a todas as actividades, desejos e emoções. Assim, não devemos admirar-nos ao redescobrir es­ tas forças cósmicas encarnadas nos Espíritos, em desenhos livres ou em textos livres infantis. Eis dois documentos com­ plementares, ilustrativos do que acabamos dc dizer: um dese­ nho e um texto livre.

177

Fig. 130

“Vejo à noite (sonho), vou à minha aldeia. (A criança es­ tá internada e tem saudades da sua aldeia c da sua família.) No caminho encontro agricultores. Um agricultor diz-me: - Onde vais? - Vou à minha aldeia. - Não passes por aqui! Mas eu passo, continuo. Então vejo um “guinadji" (um Espírito) com o filho. Fujo."

Bouba, 13 anos

Até agora Bouba, tal como os camaradas, só havia dese­ nhado personagens de perfil (no seu desenho, tanto os agricultores como ele próprio aparecem de perfil). Só o “guinadji”e o filho surgem representados de frente, Para me informar sem arriscar lamentáveis faltas de tacto num domínio onde a discrição é essencial, mostrei às crianças duas cabeças de negro desenhadas e pintadas por mim: uma de frente e outra de perfil. A primeira foi reconhecida como a de um Espírito, a outra como a de um homem vulgar. Destas considerações podemos concluir que na arte ne­ gra, o perfil se encontra reservado aos vivos, sendo destituído de qualquer poder sobrenatural. A perspectiva frontal consti­ 178

tui a marca dos seres míticos, dotados de um poder benéfico ou maléfico. Podemos perguntar como é que tais noções ancestrais aparecem desde tão cedo radicadas nas crianças. A criança não é influenciada pelo exemplo do meio ao desenhar, na medida em que à sua volta se ignora todo o desenho que vai além do dos motivos decorativos embelezadores da casa ou dos objectos correntes. De facto, há a considerar a influência das festas e das danças onde os Espíritos surgem personifica­ dos, mas daí à representação gráfica sobre uma superfície plana de projecções mentais conformadoras do gesto manual vai um longo caminho. Parece estarmos cm presença de uma espécie de clarividência atávica e, simultaneamente, de uma impregnação psíquica do meio. Se admitimos que a pequena enguia, nascida no mar dos Sargaços, reencontra o regato onde a mãe viveu antes da postura, não será difícil admitir que algumas raças, onde o instinto natural ainda se revela muito forte e que se acham isoladas.de qualquer influência estrangeira, possam reencontrar em si energias hereditárias misteriosas que despertam no ambiente natural do meio.

Fig. 131 Bouba (13 anos).

Í79

Bouba está à direita e de perfil. Desenhou dois “guinadji” que são na realidade a mesma pessoa. Apenas quer mostrar que o “guinadji” se desloca, Eis algumas considerações que conferem ao desenho in­ fantil uma dupla importância como mensagem humana e informação etnográfica. Elas mostram-nos igualmente a discri­ ção e a prudência com que é preciso abordar um meio de expressão que encerra em si tantas vírtualidades e tantos significados ainda insuspeitos. Independeulemente das particularidades verificadas nos desenhos das crianças que habitam regiões afastadas da civili­ zação moderna, constatámos que, na sua generalidade, os grafismos põem em relevo as mesmas normas já por nós estabelecidas para a edificação da Escada de desenho. Nota-se apenas a intervenção de outros aspectos e de outras atitudes: cabelos, chapéus, vestuário. Poder-se-ia supor que a criança negra só começa a desenhar tardiamente. Não é verdade. Se quase não se encontram desenhos dc crianças entre os ó e os 8 anos de idade, não é porque o jovem negro esteja atrasado em relação ao jovem branco de 4 ou 5 anos que já então desenha com decisão e autoridade. A causa reside na escolarização tardia dos jovens africanos da selva, fom a continua­ ção, a criança da selva que se orientou para o desenho livre marcará as suas obras com uma personalidade plástica inigua­ lável. Acerca do movimento A deslocação das personagens

No desenho de Bouba, notámos o processo original dc assinalar a deslocação do “guinadji” pela repetição e justaposi­ ção da personagem. Tratar-se-á de uma invenção estritamente pessoal de Bouba ou de um código hereditário e atavicamente empregado? Para traduzir a marcha, as nossas crianças de 4 a 6 anos, perplexas com a dificuldade, resolvem-na recorrendo ao gesto e ao comentário: desenham o transeunte deitado a todo o comprimento da estrada e explicam verbalmente que ele anda e se vai embora. 180

Em contrapartida, tanto na criança negra como na bran­ ca, o movimento indicado pela deslocação dos membros é idêntico, A sensação dos poderes da linha desperta em ambos muito cedo: logo que automatizam e dominam os processos de redução, alongamento, inclinação ou acrescentamento (Figs. 33, 34, 60, 62. 63), passam a dispor de meios dc expres­ são dinâmica seguros. O movimento, como ê evidente, exprime-se mais facil­ mente quando as personagens se acham integradas num am­ biente onde desempenham um papel. A vida intensa impõe-lhes uma permanência activa. O grafismo atinge então um dinamismo funcional que se traduz pela impaciência do traço, pela rapidez da execução, pela profusão dos pormenores, pelo comentário, pela mímica, pelo gesto: tudo se anima simulta­ neamente num impulso dc criatividade de todo o ser.

Fig. 132

Voltaremos a debruçar-nos sobre o dinamismo fundamen­ ta] dos desenhos infantis quando estudarmos as personagens integradas no seu meio, num segundo trabalho que se seguirá à Gênese do homem. 181

A expressão artística

Já utilizámos esta expressão que deve parecer pretensiosa e talvez um pouco ridícula quando aplicada ao desenho infan­ til. Adivinhamos a reprovação dos doutos professores alimen­ tados de realismo e de pedagogia metódica. Não possuem eles a felicidade de ter junto de si crianças que lhes dispensam um pouco dessa ciência do Encantamento que torna a terra bela e o coração feliz? É preciso saber remontar às origens da própria infância para reencontrar o deslumbramento de outrora diante de um mundo que a todos inundou de maravilhoso e de feérico. Então deixamo-nos arrebatar por um lirismo nascido das improvisações infantis, das suas incertezas necessárias, das suas incoerências originais. Se não conseguirmos descobrir em nós este dom de permeabilidade, jamais poderemos compreender a criança e, todavia, a linguagem gráfica que ela tão generosa­ mente nos propõe é por vezes tão completa e comovente como a própria palavra. Procuremos entender: voltemos às páginas 144-145 (Figs, 49, 50, 51. 52) e tentemos entrar no mundo fantástico destes seres de mãos irregulares que se agitam numa pantomi­ ma desconcertante. Mãos curiosas, sem dúvida! Ora sóis, ora flores, ora folhas integrariam a personagem que as ostenta na fauna fantástica dc um capitel românico ou de um mistério medieval. Inscrever-se-iam assim, por mérito próprio, naquilo a que se chama cultura e que frequentemente não passa de uma forma ousada de continuar o que há dc elementar no desenrolar da vida, Dir-se-ia que nos achamos perante o está­ dio nascente da inspiração lírica. Reencontramo-la mais deco­ rativa na exactidão de uma imagem sem defeito (Fig. 92) e já amadurecida e subtil no retrato psicológico (Figs. 126 e 127), Poderemos inscrever estes valores instantâneos e fugidios na nossa Escada de desenho ou deveremos abandoná-los aos cuidados do psicoterapeuta? Sem qualquer pretensão de conhecimento científico da criança, poderiamos'aceitar sempre como factores válidos o gosto pelo belo e a capacidade de embelezamento deliberado. 182

calculado e procurado pelos benefícios que a pureza definitiva traz à alma (Fig. 126). Seria um patamar da nossa segunda Escada de desenho. Poder-se-ia também pôr em relevo um certo quociente de fantasia e dc invenção que caracteriza a factura decorativa e nela sc reflecte (Fig. 85). Seria um outro degrau da nossa Escada. A comparação dos diversos aspectos da invenção decorati­ va permitir-nos-ia apreender singularidades surpreendentes, susceptíveis de traduzir o equilíbrio ou a tendência para o desequilíbrio dc uma sensibilidade. E ficaríamos com outro degrau da Escada. Levando mais longe o exame do traço gráfico em toda a sua espontaneidade, descobrir-se-ia a possibilidade de expres­ são da linha através do arabesco do estilo pessoal (Figs. 122-124). E seria um outro degrau da Escada de desenho. Só a análise de um número considerável de documentos provenientes de todas as nossas escolas espalhadas pelo mun­ do poderia permitir-nos estabelecer uma escala específica da expressão artística, dependente destas forças imaginativas e sensíveis ainda tão misteriosas mas que preservam a unidade do ser moral nas circunstâncias acolhedoras ou hostis do meio. Em todo o caso, só faremos o desenho dizer o que realmente puder revelar sobre o comportamento infantil, que se nos mostra tão plenamente através dos aspectos diversos e subtis da expressão livre. Cuidaremos, pois, que os diferentes graus da nossa segunda escala, aqui entrevista, correspondam exclusivamente a aptidões já manifestadas em expressões para­ lelas e com probabilidade, portanto, de serem reais. A psicologia deve scr, antes de mais, uma longa paciência. E. F.

183

A GÉNESE DAS CASAS

A casa aparece desde muito cedo nos grafismos da crian­ ça. Ocupa um iugar primordial no seu universo: é a própria imagem da segurança pelo bem-estar que proporciona, da intimidade familiar que condiciona, a garantia de uma vida intensa que. na criança, orienta todas as aprendizagens para uma adaptação permanente ao meio. As casas alinhadas e intermináveis formam a rua, a aldeia, a cidade e, para além dela, disseminam-se pelas paisagens. São infinitas e diversas, mas cada um tem só uma casa: a sua. Deixa-se a casa, com a porta cuidadosamente fechada, quando se vai sair ou viajar: regressa-se com alegria a essa porta aberta e acolhedora, guardiã dos hábitos queridos que transformam a casa num centro de vida. Compreende-se que. sem qualquer exagero, a casa consti­ tua para a criança um símbolo de refúgio e de estabilidade, que participe na sua vida subconsciente e afectiva de uma maneira particularmente marcante. No primeiro dia de aulas, 11a escola maternal, o pequenino caloiro, arrancado ao seu asilo, só sabe repetir: "A minha casa! Quero ir para a minha casa, ” Tais considerações explicam que a casa constitua para a criança um tema frequentemente preferencial e que as ima­ gens que dela dá possam ser consideradas documentos de um estado emocional ligado à sua vida interior. Tentaremos, pois, determinar o papel que a representação da casa é susceptível de desempenhar no conhecimento da criança sob a dupla 185

perspectiva dc actividade gráfica e de conteúdo afcctivo subja­ cente. Ao longo da nossa Génese das Casas, iremos reencontrar o processo da tentativa progressivamente perfectível, tal como o referimos na nossa teoria fundamental da tentativa experi­ mental, e ser-nos-á fácil redescobrir os degraus sucessivos da nossa Escada de desenho. Distanciar-nos-emos mais uma vez dos pedagogos essencialmcntc preocupados em desenvolver o sentido de observação da criança, ajudando-a sistematicamente a recolher progressivamente novos dados cognitivos. Claro que chamando a atenção da criança para pormenores e motivos arquitectônicos é possível ensinar-lhe a desenhar casas. Mas a pedagogia nada tem a ver com a arte. A arte, neste caso, é a casa personalizada, com pormenores originais, inventados ao sabor de uma fantasia estranha à documentação. O desenho é como a linguagem autêntica onde a criança usa as palavras que lhe vêm naturalmente aos lábios. Só através dessas pala­ vras se exprime de acordo com os seus impulsos profundos, com o seu dinamismo construtivo. E compreende-se que o desenho seja para a criança espontaneamente narrativo e acompanhado de comentário. No desenho, como em toda a expressão livre, é a própria criança que decide do conteúdo inspirador das suas explorações e da forma como elas se processam, mais ou menos premeditada ou acidental segundo as dificuldades encontradas. Foi assim que descobrimos uma arte da infância (1) reveladora de um estado de vida e apta a promover uma actividade criadora plástica que, cm relação à criação adulta, só difere quanto ao grau. A casa situa-se no centro da vida sentimental da criança. Quanto mais rica e subtil é esta vida sensível, mais o desenho que a representa se mostra original na feitura gráfica e pleno de conteúdo emocional. São estes dois elementos fundamen­ tais que devem achar-se ligados ao comentário feito pela criança. Mas o desenho deve sobretudo integrar-se em todas as manifestações da expressão livre no comportamento pessoal e social. Só deverá ser utilizado como elemento de um conjunto (l) Elise Freinet, A criança artista, ed. da École Moderne. Cannes.

186

mais vasto e mais ampla e profundamente expressivo, tal como o preconizado nos nossos Métodos naturais de aprendi­ zagem da vida. Há que considerar prudentemente o significado simbólico dos pormenores a que se atribui uma importância excessiva na medida em que não passam muitas vezes dc notações familia­ res correntes. O especialista tende sempre a conferir às coisas uma amplitude significativa unicamente dependente da sua aquisição de adulto: serve-se do seu saber como meio de medição e de avaliação, pela simples razão dc lho haverem ministrado, O mundo imaginário da criança não possui uma natureza exclusivamente simbólica. Também se encontra do­ minado pela actualidade imediata que exalta incessantemente as capacidades criadoras numa dada direcção, a qual, por sua vez. empenha resolutamente uma necessidade de poder nem sempre condicionada por antecedentes psíquicos reveladores de mais ou de menos complexos. Só perante uma série de desenhos executados em épocas sucessivas poderemos detectai temas persistentes, de significado simbólico e relevantes sob o ponto de vista psíquico. Precisaremos, pois, de discrição e de discernimento para arriscar uma interpretação psicanalítica do grafismo infantil da casa, tão profundamente ligado aos complexos familiares mas igualmente inseparável da dinâmica pessoal de aprendiza­ gem. Se soubermos organizar a tentativa experimental da crian­ ça em todos os domínios, de forma a que ela disponha sempre dos recursos necessários, faremos da primeira infância um período harmonioso e equilibrado no qual as regras de vida favoráveis assegurarão uma quantidade considerável de actos conseguidos que aumentarão incessante mente o poten­ cial da capacidade infantil. O complexo só nasce perante o obstáculo insuperável, perante a consciência brutal do fracasso; e só se esse fracasso persistir e progredir dentro de condições imutáveis, acabará por fortalecer-se e dominar a personalidade da criança. A psicanálise simplificar-se-ía consideravelmente se não esquecesse estas singelas observações cheias de sabedoria e de bom senso, que deveriam fazer-se a todos os educadores: 187

encarar basicamente todos os problemas à luz da lógica sensa­ ta e familiar da vida corrente parece-nos constituir uma atitu­ de favorável à compreensão de factos que são explicáveis na óptica da existência comum quotidiana. Reduziremos assim, sensivelmente, os problemas mais obscuros ou ainda impene­ tráveis que exigirão uma investigação e actuação mais intensas por parte dos pais e dos professores.

O nascimento

Fig. 1

Marie-Pterre (2 anos e 5 meses) começa a desenhar. “É uma casa ”, diz. 188

Fig. 2

No desenho de Eliane (2 anos e 5 meses), adivinha-se já um princípio de casa ou de casas.

Com 2 anos e 1 mês, Noëllc justapôs: uma menina com olhos e orelhas e, à direita, uma casa com porta e degraus... (explicação a posteriori). 189

Fig. 4

A mesma justaposição em Philippe (2 anos c 11 meses) (explicação a posteriori).

Alain (3 anos e 7 meses). 190

Fig. 6

A casa toma forma. Ginette (3 anos c 7 meses).

Fig. 7

Acha-se agora bem construída, possuindo mesmo um te­ lhado. Sergé (3 anos e 7 meses). 191

Fig. 8

Fig. 9

Define-se em Sergc (3 anos e 7 meses) e sobretudo em Roselyne (3 anos e 7 meses). 192

Fig. 10

Chantal (3 anos e 7 meses).

“A casa, a porta, as janelas, ” Gerard (3 anos e 8 meses).

As portas e as janelas encontram-se melhor colocadas no desenho de Rozenn (3 anos e 8 meses). 193

Fig. 13

Yannick (3 anos e 10 meses) pôs-lhe uma fechadura.

“Eis a casa pronta”, diz Arlette (4 anos). 194

Fig. 15

Somos levados a crer que o grafismo da casa não apresen­ ta dificuldades, pois aos 4 anos já muitas crianças desenham uma verdadeira casa com portas, janelas e até fechadura. Anna (4 anos). A casa ainda é rudimentar mas já vive

As crianças essencialmente criadoras fazem como todos os construtores. Logo que se levantam as paredes da casa, e, por vezes, mesmo antes de se haver coberto o conjunto com um telhado e fixado as divisões, quer-se instalar e viver nela, sentir-lhe o conforto ou o desconforto. A casa desenhada pelas crianças não passa de um contor­ no mais ou menos fechado. A maior parte das vezes não

195

existem ainda portas nem janelas e já alberga vida. Pois para que serviría uma casa, mesmo imaginária, se nela não se instalassem a mãe, o gato, a mesa, o fogão e até o rádio? A instalação ocorre por volta dos 4 anos.

Aos 3 anos e 6 meses, Elianc já encheu a sua casa dc objectos e personagens fervilhantes e fantasistas. "Na casa estão a mamã e os meninos. ”

Fig. 17

Com a mesma idade, Laurence desenhou “uma casa com pratos e uma cadeira”.

196

Fig. 18 Serge (3 anos e 6 meses) pôs-lhe ‘'galinhas e pintainhos”

Fig. 119

Christine (3 anos c 5 meses) colocou uma senhora no centro da casa. “É a mamã. ”

197

Fig. 20

Michel (3 anos e 10 meses) desenhou uma casa rudimen­ tar com duas vigias a servirem de janelas. “O senhor ocupa o espaço todo.”

198

Fig. 21

Yannick (4 anos) instala as suas personagens, “o papá e a mamã". e até abre a janela. "O miúdo anda de bicicleta, mas é proibido!" 199

Yvonnc (4 anos). “A mamá; o menino está fora."

i

Patrick: "O rapazinho em casa." Escreveu “coisas" ao lado da casa. Note-se que não há ainda qualquer diferenciação no inte­ rior da casa: nem divisões distintas, nem andares. Os telhados, as chaminés e as fechaduras vão aparecer em seguida. 200

As fachadas

Por esta mesma altura, algumas crianças, cm lugar de se preocuparem com o que se passa dentro das suas casas em­ brionárias, deixam-se fascinar sobretudo pelas fachadas. E uma fachada é essenciahnente um conjunto de janelas. Vejam como a desenham:

Fig. 24

Marie-Christinc (4 anos). 201

Fig. 25

Ghislaine (4 anos).

Fig. 26

Marie-Thérese (4 anos). 202

Fig. 27

Henri (4 unos e 4 meses).

Primeira diferenciação A casa vista em secção

Claro que, com a continuação, a criança apercebe-se que as personagens que desenha não se acham indiferenciadamcnte num compartimento único nem ao mesmo nível. Começa 203

então a desenhar os compartimentos e os andares, seja cm planos, seja em sccções, recorrendo a técnicas extremamente simples. Adquire a noção das dimensões da casa: superfície. altura e organização interior.

Fig. 28 Yannick (4 anos): “A mamã e o rapazinho estão em casa. ”

Fig. 29

Charles (4 anos). 204

Fig.30 Janine (4 anos e 2 meses).

Fig. 31

Louis (4 anos e 5 meses): “A casa, os quartos.”

Fig. 32

Michel (4 anos e 7 meses). 205

Denis (4 anos e 9 meses): "O papá está fora. Vai entrar em casa. O cão subiu para o telhado. Há fumo." A casa vive!

Fig. 34

Yolande (5 anos): “A casa e o quarto." 206

Fig. 35 Paulette (5 anos c 1 mes): "Lá em cima é o sótão com o baloiço."

Fig. 36 Um verdadeiro plano de Gilles (5 anos e 1 mês): “A casa, a escada e tudo. ” Aparecimento deliberado do telhado Mas a casa tem um telhado que constitui até a sua característica essencial. A criança apercebe-se do seu papel protector. 207

Começa pura e simplesmente por colocar um chapéu sobre as casas desenhadas segundo as técnicas precedentes. Depara-se-nos uma construção híbrida. Com o telhado surge a chaminé.

Fig. 37

Jean-Yves (4 anos e 3 meses).

Jean-Pierre (4 anos e 8 meses). 208

Fig. 38

I i-, 39

Lucctie (4 c 8 meses): "Eu mamã.’'

Fig. 40

Catherinc (4 anos e 8 meses). 209

Fig. 41

Lucette (4 anos e 8 meses): “O telhado tem telhas de ardósia ” "O cão procura o menino.” 210

Fig. 42

Michel (5 anos): A casa com portão, jardim e caminho de acesso. A vida familiar instala-se: "O papá e a mamã. O menino vai para a escola.” 211

Michel (5 anos): “As telhas no telhado." "O papá, a mamã e as meninas. ” f

Fig. 44

Martine (5 anos): A porta está fechada, nada se adivinha do que há por detrás. Mas “a chaminé deita fumo: a mãe acendeu o lume.” 212

Posição das portas, das janelas, do portão e da chaminé. O cenário

São precisas evidentemente uma porta c janelas.

Fig. 45 Jean-Patrick (4 anos e 10 meses) coloca-as seja onde for. como meros buracos na parede.

Fig. 46

Annie (4 anos e 6 meses): Ambiência arejada em torno do edifício alto com janelas aplicadas nas paredes. 213

Fig. 47

Louis (4 anos e 7 meses). A partir desta idade, as janelas são sempre aplicadas muito em cima (quase não aparecem excepções na nossa série de desenhos) e as chaminés deitam fumo. A porta situa-se sempre no rés-do-chão.

Fig. 48

Annic (4 anos e 8 meses). 214

Fig. 49

Carmen (4 anos e 10 meses). A posição das janelas dá uma sensação de altura verti­ ginosa.

Fig. 50

Dominique (4 anos c 10 meses). 215

Fig, 51

Gisèle (4 anos e 11 meses).

Fig. 52

Roger (4 anos c 1 1 meses). Finalmente tudo toma os seus lugares, a vida circula em redor da casa. "O pai leva o cavalo para o estábulo." 216

Fig. 53

Roger (4 anos e 11 meses). Estes desenhos, embora rudimentares, apresentam desde muito cedo um pormenor técnico bem marcado: a chave da fechadura que parece adquirir uma importância primordial.

Fig. 54

Christine (5 anos): A casa na sua paisagem. 217

Finahnentc surgem as janelas do rés-do-chão

Fig. 55

Joelle (5 anos e 2 meses): "A mãe espreita pela Janela se a menina volta da escola.”

Fig. 56

Bernard (5 anos e 5 meses). A vida dentro de casa assume um lugar primordial

A casa tornou-se agora verdadeiramente habitável, com a porta, as janelas, o telhado, o portão, o jardim que a rodeia e os caminhos que serpenteiam à sua volta. 218

A história deter-se-ia aí se a criança não tivesse a possibi­ lidade de entrar em casa e de animar os seus habitantes. É o problema da transparência que parece haver preocu­ pado apenas os psicólogos estudiosos do desenho infantil. Interpretam frequentemente esta transparência como uma anomalia, sintoma de uma maturidade deficiente, uma vez que a criança desenha algo que não pode ver. Trata-se, diz Luquet, de um "realismo falhado". Esta técnica da transparência, comum a todas as crianças, mostra-nos apenas que elas ousam ir mais longe do que nós na expressão da totalidade da vida. Sentem a necessidade de fixar no papel a vida interior da casa, que continua natural­ mente a ser a casa vista do exterior. E pão tem opção ao fazê-lo: ou respeitam a opacidade das paredes e das divisórias e não haverá desenho nem qualquer espécie de expressão; ou teimam em exprimir, por qualquer preço, o que se passa dentro da casa, sendo obrigados a suprimir as paredes e a conservar apenas o enquadramento essencial que define o palco dos seus actores. Poder-se-ía considerar a sua empresa como simplista e antinatural. Mas hoje as casas já dispõem de paredes e de divisórias de vidro, o que lhes confere a mesma transparência que as crianças lhes conferiram desde sempre. Ou é o repórter que penetra nelas fotografando os “interiores” com o seu flash ou o cinema que as invade com os seus sunlights e magnetofones: a vida não se detém nas paredes. As sequências dc vida ligadas à casa exprimem-se na continuidade c no tempo. A técnica contemporânea reencontra pura e simplesmente a técnica infantil. Em desenhos precedentes, já vimos a casa habitada pelas personagens essenciais; a mãe c os filhos (o pai acha-se ainda ausente). Vê-la-emos agora desempenhar o seu papel dc refú­ gio e de centro da vida familiar. Assistiremos, graças à técnica da transparência, à situação das personagens no seu cenário habitual: o pano sobe, o espectáculo começa...

219

Fig. 57

Josette (4 anos e 2 meses) anima já todas as divisões da casa.

Fig. 58

Claude (4 anos e 3 meses) instala nela "toda a família". A vida afectiva familiar fixa-se simbolicamente no coração da casa. 220

Fig. 59

Noëllc (4 anos e 9 meses): “A mamã está no meio com a menina e o menino. Depois o papá. Já não cabia na casa.”

Fig. 60

Yolande (4 anos c 9 meses): A mamã está em casa. Os filhos estão fora.” 221

Fig. 61

Marcelle (5 anos): “O papá e a mamã jantam, as filhas vão passear o irmãozito no carrinho.”

Fig. 62

René (5 anos e 1 mês): “A mamã e o menino. Há também o gato e o cão. ” E o papá? “Foi trabalhar. ” 222

Fig. 63

Colette (5 anos e 2 meses): "A mãe prepara o jantar para a menina. ”

Fig. 64

Michel (6 anos): escola!. 223

Fig. 65

Claude (6 anos) mostra-nos a vida de uma casa em todos os andares e na ainbiência de um cenário vivo.

Fig. 66

Gandara (7 anos): Vida nos andares agora num desenho dc uma criança dos Camarões com personagens angustiantes. 224



As figuras 59, 60, 61, 62 e 63, representativas do comple­ xo casa-família, são documentos tentadores para o psicanalis­ ta: os objectos, as personagens, a sua situação e os próprios comentários, se tomados à letra, mostram-se inequívocos: a rejeição do pai revela-se claramente. Na figura 59, em especial, o pai é exterior à família, encontra-se resolutamente expulso de casa e, ainda por cima, preso. A conclusão não deixa dúvidas. Todavia, a rapariguinha explica: “O papá já não cabia na casa.” E é verdade. Mas, por outro lado, poder-se-ia alegar que o pai foi a última personagem a ser desenhada, facto susceptível de ser considerado como uma vingança subcons­ ciente da criança. Uma investigação discreta talvez nos ensinasse, entretanto, que o facto do pai trabalhar fora, encontrando-se ausente de casa durante o dia inteiro, levara a vida familiar a organizar-se sem ele. Claro que a situação pode ter consequências nocivas e reflectir-se negativamente sobre a sensibilidade in­ fantil. Uma colecção de desenhos complementares sobre o mesmo tema, acrescida de todas as demais actividades de expressão livre da criança, poderia esclarecer-nos concretamen­ te sobre a sua gravidade. Não dizemos a priori que a interpretação psicanalítica de tais documentos não tenha fundamento. Porém, a sua acen­ tuação exclusiva do recalcamento e do simbolismo sem uma contrapartida objectiva baseada na vida quotidiana põe-nos dc sobreaviso em relação ao método, particularmente quando praticado por amadores. É um erro grave tomar unicamente em conta as forças opressivas que inibem as necessidades instintivas e desequilibram o comportamento da criança. À excepção dos pais desnaturados, felizmente raros, a família difunde, melhor ou pior, um clima de segurança normal que tempera os perigos dos incidentes constrangedores. Na maioria dos casos, os obstáculos que se opõem à experiência adaptativa apenas produzem uma descontinuidade momentânea entre a afectividade da criança e o meio. Mas o 225

equilíbrio pode ser restabelecido em domínios paralelos onde se afirmem a real afeição dos pais c uma base alimentar, educativa e recreativa segura — componente fundamental e comum da vida familiar. A ruptura passageira vê-se assim em grande parte compensada. Só no caso de uma oposição brutal e persistente é que os instintos infantis, contrariados, podem provocar um choque e dar origem a um recalcamento. Todavia, na criança muito nova, o subconsciente ainda sc encontra muito perto da consciência e, portanto, da possível libertação. Para esclarecer os pais sobre a importância do seu papel, torna-se necessário simplificar estes problemas. A adaptação da criança ao meio depende sempre do êxito com que vence os obstáculos que se opõem à sua tentativa. Se soubermos detectar tais obstáculos, poderemos deduzir quase infalivel­ mente o comportamento infantil: daí a noção de uma escada de dificuldades para cada uma das aquisições a encarar. No nosso Perfil vital (1), tentámos determinar as dificuldades cronológicas essenciais encontradas pela criança e susceptíveis de esclarecer os pais, de apontar-lhes as suas responsabilidades e de determinar o seu papel num comportamento conforme com uma função educativa humana e lúcida da qual depende o futuro dos seus filhos. E. F.

Diversas complicações da arquitectura

O desenho construtivo infantil assemelha-se ao trabalho do pedreiro. Erguer as paredes é relativamente fácil, fazer as divisões é uma mera brincadeira. O próprio telhado não apre­ senta problemas. Mas não há nada mais difícil para um pedreiro do que construir as escadas. A ponto dos empreitei­ ros as esquecerem por vezes e de em Brasília elas se encontra­ rem simplesmente substituídas por rampas tão do agrado de Le Corbusier. (1 ) O Perfil Vital, ed. da Ecole Moderne, Cannes.

226

Não nos admiremos pelo facto das crianças escamotearem frequentemente as escadas. Quando as mencionam não sabem nem onde fixadas, nem que inclinação dar-lhes, nem como traçar-lhes os degraus,

As escadas Os desenhos que apresentam escadas são, pois, relativamen­ te raros e a técnica deixa sempre muito a desejar.

Fig. 67

Eliane (4 anos e 8 meses): Escadas interiores, práticas, de degraus seguros, numa casa confortável e integrada na vida ambiente. 227

Fig. 68 Jean-Rémi (4 anos e 8 meses) colocou as escadas fora da casa sem fazê-las chegar a parte alguma.

Fig. 69

Pierre Francis (4 anos e 9 meses) desenha-as no interior, desde a porta do rés-do-chão até às águas-furtadas.

228

Fig. 70

Guy (5 anos): Finalmente uma escada cômoda e que toda a família utiliza...

Claudine (5 anos e 2 meses) vê as suas escadas exteriores de frente e com degraus bem marcados.

224

Fig. 72

A majestosa escadaria de Haman (5 anos e 5 meses) situa-se entre o plano inclinado e a escada. 230

Fig. 73

A bela e audaciosa escada de caracol de Laurence (5 anos e 5 meses) parece pertencer a uma varanda. As chaminés Há também o problema por vezes insolúvel das chaminés. É sempre fácil fazer fumegar uma chaminé do exterior, mas ligá-la ao fogão já é mais complicado:

Fig. 74

Claude (5 anos e 7 meses). 231

Fig, 75

Serge (5 anos e 9 meses). As varandas

Fig. 76

As varandas constituem também um problema difícil que poucas crianças tentam resolver. “A varanda com as grades.” André (5 anos e 4 meses). 232

As diferentes partes da casa deram origem, em psicoterapia, a um simbolismo ostensivo que atinge frequentemente as raias da fantasia e do ridículo: a chaminé e o seu rasto de fumo são emblemas fálicos; a janela é o olhar da consciência nas suas acções punitivas; a porta é a interdição irrevogável; a árvore próxima da casa é o pai com toda a sua autoridade; o caminho que se desenrola em curvas e meandros é o sinal da evasão, etc. Evidentemente que toda a imagem, seja ela qual for, se liga sempre à afectividade da criança, como aliás também à do adulto, mas numa medida raramente determinante para o seu comportamento. Os pormenores do cenário habitual da crian­ ça correspondem a condensações afectivas de agrado ou de desagrado. Se observarmos com suficiente atenção a experiên­ cia infantil, veremos que estes sentimentos de agrado e de desagrado são apenas o resultado dc êxitos ou de fracassos suscitados pelas dificuldades encontradas para vencer obstácu­ los. Se soubermos tirar partido da tentativa básica da criança, aumentando, portanto, o seu sentimento de poder, diminuire­ mos simultaneamente o sentimento de fracasso resultante do confronto com os objectos e as irnagens perderão a sua força simbólica premonitória.

Os caminhos Outro problema difícil é o das ruas e caminhos que dão acesso às casas e que frequentemente parecerão, às crianças verdadeiros labirintos. Basta repararmos na tosca confusão dos caminhos nos dois desenhos que se seguem para nos aperce­ bermos disso. A própria feitura gráfica (caminhos, fumos) cria uma sensação de opressão.

233

Fig. 77

Dominique (4 anos e 9 meses).

Fig. 78

Georges (4 anos e 9 meses). Os H.L.M. (1)

Trata-se de um capítulo, fruto da nossa civilização aluci­ nante, que não teríamos abordado se não tivéssemos desco­ berto a sua génese vinte anos atrás: o da opressão que as (1) Blocos habitacionais. (N. do T.)

234

construções modernas, com os seus blocos sistemáticos, as suas janelas alinhadas a perder de vista, tanto em altura como em comprimento, e a sua roupa a secar, parecem provocar nas crianças. Eis algumas imagens — cuja abundância na nossa colecção de desenhos é verdadeiramente angustiante — suficientemente reveladoras dos perigos desta obsessão precoce: é o bloco em todo o seu rigor.

Fig. 79

Marie-Aude (4 anos e 5 meses).

Fig. 80

Annie (5 anos). 235

Fig. 81

Yvonne (5 anos e I mês) dá-nos espontaneamente a escala do homem face ao bloco impessoal.

Fig. 82

Alain (5 anos e 1 mês) tenta introduzir um pouco dc vida neste universo concentracionista. 236

Fig. 83

Dominiquc (5 anos e 8 meses) desenha a torre que permite um espaço livre circundante onde a vida readquire os seus direitos.

Fig. 84

Maríe-Françoise: um imóvel; “em cima a roupa a secar". A imagem da aldeia, embora limitada ao bairro operário, sempre se mostra mais repousante. 237

Fig. 85

André (5 anos e 4 meses). 238

A casa fechada

Aos 6 anos a criança desenhará uma casa verdadeira, cor­ respondente à ideia que faz dela: possuirá um estilo de "casa" tal como possui um estilo de homem, de pássaro ou de cavalo. A casa apresenta-se fechada. Já não se verá o que se passa por detrás das suas paredes sonoras ou não, por detrás das suas janelas e varandas envidraçadas ou não. Só à sua volta poderão ainda descobrir-se algumas cenas originais — quando passa o vendedor de balões, quando o fumo ascende no céu e o sol contempla com todos os seus raios a casa silencio­ sa.

Fig. 86

Joelle (5 anos e 10 meses).

É evidente que a vida nos H.L.M. submete a criança a impressões e a emoções traumatizantes. tanto pela sensação de esmagamento e de opressão produzida pela vastidão do 239

imóvel como pela existência intrincada a que obriga o acanhamento da habitação familiar. As proibições permanentes para­ lisam constantemente os impulsos espontâneos da criança, opõem-se às suas iniciativas e relegam-na para o fracasso: não correr, não gritar, não cantar, numa palavra, não fazer baru­ lho, mas suportar, em contrapartida, os ruídos insólitos que a ausência de insonorização amplia grotescamente e transforma em obsessões. Na sua célula, encaixada ao nível de tantas outras, sem outra saída além do patamar que lhe diz respeito, a família inteira vê-se condenada a uma permanente insuficiência de recursos, à excepção dos da televisão e do rádio que não suporta em casa dos vizinhos. A criança não pode, portanto, contar com uma família suficientemente compreensiva. A incompreensão que esta tan­ tas vezes revela resulta das próprias condições de existência a que se acha sujeita. O recurso à natureza é demasiado longín­ quo, excepto a relva escassa onde os baloiços e os escorregas completam o desenraizamento. O recurso à sociedade é nulo: a criança devorada pela rua e pelo autocarro desemboca numa escola onde se acentuam as regras constrangedoras da imobili­ dade imposta e da disciplina autoritária. 0 recurso às indivi­ dualidades é limitado, circunscrevendo-se à pessoa do mestre atormentado pelos alunos ou dos pais cansados do trabalho e enervados pelas condições anormais da sua própria existência. Mesmo quando saudável, a criança pode talvez ser considerada sem exagero como a eterna perseguida. Não se trata de um gracejo. “Perseguir - escreve o Dr. Lucotte - é impedir de viver, fazer sofrer ou fazer morrer. É contrariar por todos os meios de que se dispõe — desde os mais subtis aos mais grosseiros - as aspirações e o desenvolvimento normal dos seres e as manifestações do seu crescimento e da sua vitalida­ de.” Impossível não ler nas entrelinhas destas palavras tão justas as causas reais condicionadoras do diagnóstico: a vida concentracionista, sob todas as suas formas, imposta por uma civili­ zação mecanicista cujas culpas já se tornaram incontáveis. Mais do que qualquer outro ser, a criança sente-se presa destes meios de opressão que lhe contrariam a espontaneidade 240

e de que não consegue libertar-se. Daí a necessidade que tem de procurar outras vias para continuar a viver melhor ou pior, mas sempre, infelizmente, numa linha afastada da linha funda­ mental dos seus instintos recalcados. A instabilidade e o desequilíbrio, que se vão acentuando ao longo de uma infân­ cia cada vez mais desadaptada no plano familiar, escolar e social, justificam a inquietação dos pais e dos educadores ainda lúcidos. As associações de educadores e de pais têm um papel particular a desempenhar na luta contra esta marcha rápida rumo ao condicionamento polimorfo imposto pela sociedade. Quanto a nós, toda a vida trabalhámos para tornar efectiva uma renovação do Ensino que, através de uma pedagogia viva e natural, tende a libertar a criança dos seus complexos, restituindo-lhe o impulso criador, o gosto pelo trabalho, a paixão da invenção e o sentimento de uma liberdade que só pode tornarse real num meio consentâneo. Foi cm função destes pontos de vista que estabelecemos, para cada criança, o nosso Perfil Vital (1) chamado a detectar desde o início os valores potenciais de cada personalidade. Os elementos fundamentais da capacidade surgem aí confrontados com as insuficiências, ambos dependen­ tes das condições fisiológicas, familiares, sociais e escolares que marcaram a primeira infância. É evidente que, durante este pe­ ríodo. a vida familiar possui uma grande influência sobre o comportamento infantil. Todos os documentos, que se lhe refi­ ram e que a criança nos forneça nas suas expressões directas através da palavra, do desenho ou do texto livre, devem ser integrados em fichas pessoais cujo conteúdo e significado essen­ cial o nosso Perfil vital se encarregará de descobrir. É neste contexto que os desenhos sobre a casa terão de inserir-se. de­ sempenhando um papel em relação à afectividade da criança, considerada não só nas suas tentativas psicológicas, mas sobre­ tudo nos seus impulsos criativos poéticos c artísticos que já a orientam rumo à cultura. E. F.

(1) O Perfil Vital

241

A GÉNESE DOS AUTOMÓVEIS

O automóvel constitui um modelo ideal para o ensino do desenho pelo método tradicional: permite mesmo recorrer à régua e ao compasso para melhor corresponder à preocupação de objectividade exigida pelo desenho à vista ou pela cópia. As nossas crianças, habituadas ao desenho livre, só dese­ nham automóveis da sua invenção, A carcaça nem sempre é aerodinâmica e nem sempre se encontra bem assente sobre as rodas que, aliás, por vezes nada tem a ver com a circunferên­ cia. Todavia, nos espíritos dos seus autores, trata-se de auto­ móveis que rodam: segura-se-lhes o volante imaginário com ambas as mãos e faz-se-lhes roncar o motor ao som de onomatopéias expressivas... O importante é dar vida ao carro. Pouco a pouco, porém, o automóvel vai recuperando as suas partes essenciais, deixando de exigir grandes esforços imaginativos a quem o olha. Há urna evolução do automóvel análoga à do homem e da casa. Eoi essa evolução que procu­ rámos determinar na nossa Génese dos automóveis, tomando automóvel como um vocábulo geral extensível a todos os modelos e marcas de veículos. Mais uma vez se constata que, através da prática, aparente­ mente temerária, do desenho livre, a criança chega não só à representação do automóvel mas também à sua personalização pela escolha dos pormenores essenciais e pela feitura gráfica. Em dada altura, independentemente da imagem exterior do automóvel, a criança passa a interessar-se pela vida interior do veículo, pelos mistérios do motor, pela complexidade funcio­ nal das peças de transmissão, numa palavra: pelo dinamismo 243

da máquina. Tal como a evolução do homem ou da casa, também a do automóvel se processa numa série de patamares ascendentes, rumo a uma expressão gráfica e a um conheci­ mento cada vez mais complexo: a tentativa orienta-se por si própria para caminhos inteligentes e lógicos. Os desenhos aqui apresentados - escolhidos entre cerca de trezentos documentos — ilustram uma evolução e um amadu­ recimento que lhes conferem um carácter de testes c de testemunhos altamente representativos do comportamento in­ telectual infantil. Utilizá-los-emos ulteriormente para classifi­ car os seus autores segundo os degraus de uma escala que ainda não nos confiou todos os seus segredos. Mas enquanto aguardamos uma investigação mais profunda e sempre associada ao comportamento geral da criança, pode­ mos facilmente reencontrar na evolução dos automóveis as etapas da nossa Escada de desenho tal como a estabelecemos em função das dificuldades encontradas: repetição dos grafismos conseguidos, sistematização dos primeiros êxitos, justapo­ sição dos grafismos, ligação dos grafismos justapostos, etc., até ao desenho como expressão de arte e de conhecimento. Compreende-se que a expressão artística tenha um papel redu­ zido na Gênese dos automóveis, que denota mais aptidões de carácter lógico e compreensivo do que disposições sensíveis. Procuraremos tirar as consequências pedagógicas que essa rea­ lidade comporta.

244

As primeiras tentativas

Fig. 1

Anne-Marie (2 anos e 2 meses) viu o irmão manobrar um lápis capaz de produzir formas que a encantam e surpreen­ dem. Pega então num lápis e num papel e, com a sua mão desajeitada, traça nele riscos ao acaso. Se lhe perguntam o que faz, responde orgulhosamente: ‘'Faço um desenho. ” E exactamente como o irmão diante da obra, admira agora a sua própria produção e conclui: “É um automóvel.” 245

Fig. 2

Alain (2 anos e 4 meses) já aligeirou e domesticou um pouco a mão. Desenha espirais e circunferências, afirmando também, mas mais justificadamente: "É um 403'."

Fig. 3

Após múltiplas tentativas e um aperfeiçoamento dos êxitos que tendiam a reproduzir-se, Brigitte (2 anos e 7 meses) conseguiu desenhar uma oval parecida com um capot, à qual acrescentou circunferências a servir de rodas. E o automóvel nasceu. 246

Fig. 4

Tratar-se-á de um caso de observação e de execução técni­ ca precoces ou de uma obra do acaso? Régine (2 anos e 8 meses) desenhou um verdadeiro automóvel aerodinâmico e com quatro rodas. É apenas um êxito sem continuidade.

Fig. 5

Marie (3 anos) já domina o lápis. Diz ter desenhado um automóvel, mas só dificilmente se lhe distinguem os elemen­ tos essenciais. 247

Fig. 6

Alain (3 anos c 3 meses) desenhou o seu automóvel como uma casa. A carroçaria encontra-se laboriosamente delimitada por vários traços concêntricos. Ainda não existem rodas, nem volante, nem passageiros. Os primeiros êxitos

As rodas

Fig. 7

Com 3 anos e 3 meses. Alain juntou duas rodas a uma carroçaria que já toma forma. 248

Uma passageira

Fig. 8

Christine (3 anos e 4 meses) instala uma passageira num automóvel aerodinâmico que dispõe mesmo de duas rodas semelhantes a dois pés.

Fig. 9

Alguns dias mais tarde, Christine aperfeiçoa o seu grafismo, adicionando ao carro quatro ou mesmo cinco rodas. 249

Fig. 10

Eis como surgem em Paul (3 anos e 5 meses) as rodas do camião. E sem economias. O volante

Fig. 11

Em Marie (3 anos e 5 meses), além das rodas que aparecem em abundância, notam-se elementos novos: duas rodas de cada lado, o volante e o banco.

Fig. 12

Monique (3 anos e 10 meses) desenha rodas e um volante embrionário. 250

Fig. 13

Jean-Claude (3 anos e 7 meses) limita-se a uma carcaça com rodas. As janelas

Fig. 14

Serge (3 anos e 6 meses) aperfeiçoou o seu carro com janelas e volante. A partir de então, os automóveis apresen­ tam a sua forma definitiva com duas ou quatro rodas, volante e janelas (veremos mais adiante o que sucede aos camiões e aos autocarros). 251

Fig. 15 Joel (3 anos e 7 meses).

Eis as duas rodas. Hélciic (3 anos e 9 meses): “o automó­ vel à beira da estrada".

Fig. 17

Fig. 18

Pierrot (3 anos e 10 meses): "muitos automóveis na estra­ da”. 252

Eis alguns veículos de três c de quatro rodas:

Fig. 19

Lucette (3 anos e 10 meses).

Fig. 20

Marc (3 anos e 10 meses). Nesta idade (3 anos e 8 meses a 4 anos) as crianças parecem possuir uma fórmula de automóvel que as satisfaz e que repetem com mais ou menos êxito ao tentar automatizar o grafismo.

253

Fig. 21

A realização bizarra e artística de Didi (4 anos e 10 meses): “O automóvel na estrada”. Note-se a existência de cenário.

Fig. 22

Uma espécie de automóvel-avião ou de personagem. 254

Fig. 23

A criança atinge nesta altura uma certa maturidade. A página de Georges (3 anos e 11 meses) constitui como que uma síntese da evolução havida até esta fase. Vê-se o automó­ vel de duas rodas, o automóvel de quatro rodas mais aperfei­ çoadas (fases anteriores) e ainda outros dois automóveis adiantados em relação ao estádio que prenunciam as conquis­ tas futuras. 255

Fig. 24

E Chantal (3 anos e 11 meses) oferece-nos um automóvel engrinaldado. precedido por uma farândola diabólica.

A vida do automóvel

Notar-se-á que até esta idade (4 anos) o automóvel é exclusivamente assinalado por pormenores exteriores: volante, janelas. Não se acha ainda habitado nem pressupõe qualquer meio de tracção. A técnica parece-nos aparentada com a da construção das casas: um recinto mais ou menos impreciso e, dentro dele, a vida. 256

Fig. 25 Yannick (3 anos e 11 meses).

Fig. 26

A vida nascente, como um germe, no automóvel de Serge (4 anos). 257

Fig. 27 De Gilda (4 anos), o automóvel de grandes rodas com um volante, um tejadilho, um porta-bagagens e um condutor no centro.

Fig. 28

Realização quase idêntica de Marie (4 anos). 258

É a partir dos 4 anos que começamos a ver as formas mais evoluídas de automóvel animarem-se com a presença de um condutor e de passageiros e com o aparecimento de novos atributos tais como o volante, as rodas, o motor e o reboque.

Fig. 29

Florence (4 anos e 1 mês).

Marylise (4 anos e 2 meses).

259

Fig. 30

Fig. 31

Jean-Luc (4 anos e 4 meses).

Fig. 32 Geneviève (4 anos e 5 meses).

Fig. 33 Paule (4 anos e 5 meses).

260

Durante largo tempo, a criança hesita sobre a maneira de representar as rodas. O aspecto geral normaliza-se, a porta e a cabina do "Senhor que conduz” surgem desenhadas de uma forma muito aproximada, mas como assinalar as rodas? Só duas ou também as que ficam do lado oposto?

Fig. 34

Christine (4 anos e 5 meses) desenha as rodas de uma maneira especial. Os círculos duplos representam sem dúvida rodas acopladas, uma das quais deveria ser invisível.

261

Fig. 35

Marie (4 anos e 5 meses) mantém-se ainda indecisa quanto ao número de rodas e ao lugar do condutor no camião-automóvel. O que lhe interessa fundamentalmente é “o papá que sai de carro".

Fig. 36

Marylise (4 anos e 6 meses) assinalou tudo: automóvel, porta, condutor e a estrada em redor do carro. Os documentos que se seguem:

Fig. 37

Gilles (4 anos e 6 meses).

262

Fig. 38

Gilbert (4 anos e 6-meses).

Fig. 39

Marie-Aude (4 anos e 6 meses).

Fig. 40

Dominique (4 anos e 6 meses): “O condutor vai meter gasolina. " são características deste período: o automóvel possui tudo o que precisa para arrancar. O condutor encontra-se no seu posto. 263

É por volta dos 4 anos e 8 meses que vemos surgir o automóvel sob a sua forma definitiva: carroçaria, capot, rodas, motor, portas e condutor.

Fig. 41

Yvon (4 anos e 8 meses).

Fig. 42

Joël (4 anos e 8 meses). 264

Fig. 43

Depois o automóvel adquire velocidade e estilo e, se nem todos os pormenores são visíveis, subentendem-se: a criança encontra-se informada sobre a totalidade do automóvel. Christian (4 anos e 8 meses).

Fig. 44

Alain (4 anos e 6 meses).

Fig. 45

Didi (4 anos e 7 meses). 265

Fig. 46

Eis o desfile de automóveis e de camiões de Roland (5 anos e 2 meses). Os desenhos estão em vias de atingir a forma definitiva. As crianças parecem ter descoberto um modelo estereotipa­ do dc automóvel que irá permitir uma fabricação em série. Até então, cada desenho implicava uma tentativa e uma procura, porque existiam ainda muitos elementos desconheci­ dos: diversas formas de automóvel, número e posição das rodas, portas e condutor. Agora todos esses elementos se acham automatizados. Nes­ ta idade (5 anos e 6 meses a 6 anos) vamos encontrar páginas inteiras de automóveis desenhados mecanicamente. A criança conseguiu chegar a um protótipo da mesma forma que conseguiu saltar um rego. Venceu a dificuldade. Irá repetir constantemente o acto conseguido até automatizá-lo. 266

Fig. 47 Odile (5 anos e 3 meses).

Fig. 48

Fig. 48

Guy (5 anos e 5 meses). 267

Fig 50

Daniel (6 anos).

Fig. 51

Alain (5 anos e 6 meses). Desenvolvemos a nossa génese até aos 6 anos, altura em que o automóvel se encontra definitivamente fixado e a partir da qual deixamos de observar quaisquer aperfeiçoamentos técnicos. Debrucemo-nos agora sobre alguns aspectos particu­ lares da evolução. Camiões e autocarros

Vimos, desde os primeiros grafismos. que o número de rodas é sempre indefinido. Ás rodas constituem para a criança um símbolo de poder e de velocidade. 268

Fig. 52

Adélie (6 anos). E como a criança desenha normalmentc muitas rodas, são quase sempre camiões e autocarros que lhe nascem automati­ camente da ponta do lápis. Só a posleriori sc apercebe de que as muitas rodas do seu desenho o aproximam mais de um camião ou de um autocarro do que de um automóvel. Veremos assim que as formulas autocarro e camião evo­ luem de maneira mais sistemática do que a fórmula automó­ vel. Nestes desenhos de camiões e de autocarros, o automatismo manifesta-se bem mais fundadamente. Automatismo na repetição das rodas.

Fig. 53

Janot (4 anos e 6 meses) desenhou um sistema dc circunfe­ rências ininterruptas: são as rodas do camião. Só resta espaço para um condutor e para um vitelo. 269

Fig. 54

Paul (4 anos e 6 meses): “O autocarro dos meninos.”

Fig. 55

Alain (4 anos c 6 meses) conseguiu desenhar um camião '‘muito, muito comprido”, utilizando o mesmo processo.

Fig. 56

No caso de Dédé (4 anos e 6 meses), o automatismo não funcionou para as rodas, mas para a carga. Trata-se, portanto, de um camião. 270

Fig. 57 Michel (4 anos e 11 meses) encheu o seu ‘'autocarro” com uma bela carga de personagens automatizadas.

i ig. 58

Ou então o automatismo reflecte-se exclusivamente na re­ petição das janelas, como neste desenho de Monique (5 anos). Embora a autora se tenha esquecido das rodas, trata-se real­ mente de camiões.

Fig. 59

Realização idêntica de Yvan (5 anos e 5 meses) que, no entanto, assinalou as portas e duas rodas. 271

Fig. 60 Marc (5 anos) já apresenta no seu desenho todos os atribu­ tos essenciais do camião: as duas rodas, as janelas, um passa­ geiro e até o condutor. Vejamos agora como as janelas se enchem de gente. O automatismo funciona por vezes simultaneamente para a pro­ dução das rodas e das janelas.

Fig. 61 Maryse (5 anos).

Fig. 62

Annik (5 anos e 2 meses).

Fig. 63

Suzy(5 anos e 3 meses). 272

Fig. 64

Jean (5 anos e 3 meses).

I ij!. 65

Jean (5 anos e 4 meses).

Fig. 66

Christian (5 anos e 4 meses). 273

Fig. 67 Guy (6 anos). E eis, finalmente, um camião a abarrotar, fruto do mesmo automatismo voltado agora para a carga. Jean-Luc (5 anos). Posição das personagens nos autocarros e nos automóveis

Nos automóveis, mas mais particularmentc nos autocarros, verifica-se uma tendência quase geral para colocar as persona­ gens muito ou mesmo demasiadamente acima. Julgamos que isto se deve a uma espécie de ilusão mecâni­ ca. A criança, quando em presença dc adultos, vê-se obrigada a levantar bem a cabeça para poder distinguir-lhes o rosto. Possui, portanto, uma tendência para exagerar-lhes o tamanho. O fenômeno é característico no caso dos automóveis, mas ainda mais no dos autocarros, cujas portas se situam sempre muito acima do nível da criança. O fenômeno parece quase geral.

Fig. 68

Jean-Luc (5 anos). 274

Fig. 69

Maryse (5 anos).

Fig. 70

Marie (5 anos e 5 meses). 275

Fig. 71

Agnes (5 anos e 8 meses).

Fig. 72

Jeanne (5 anos e 8 meses). 276

Fig. 73

Norbert (6 anos) desenhou faróis e rodas encaixadas na carroçaria, mas não assinalou as portas nem o volante. A viatura é fechada. A condução dos automóveis

Vimos, na nossa Génese, que as rodas e o volante surgem muito cedo, concomitantemente com a própria forma do automóvel. Para as crianças, eles representam os elementos essenciais da viatura. Depois aparecem as janelas, as portas e logo a seguir as personagens ou os materiais transportados e que constituem a razão de ser da máquina. Antes dos seis anos não há menção de faróis, de pára-cho­ ques, de escape nem de roda sobressalente. Em contrapartida, vemos desde muito cedo “o homem que conduz o carro” e o volante que lhe permite conduzir. Por vezes, ao lado do volante surgem diversos botões de comando, bem como a buzina, o travão e a embraiagem. Mas o que é característico no processo é a evolução, por tentativa experimental, do condutor no seu posto. 1° estádio. “O homem que conduz” está sozinho na viatura. Não nos indica ainda a maneira exacta de pôr a máquina em funcionamento e é mesmo possível que a criança apenas tenha dela uma ideia muito relativa. 277

Fig. 74

Suzy (4 anos e 10 meses).

Fig. 75

Antoinc (5 anos e 4 meses).

Fig. 76

Jean (5 anos e 6 meses). 278

2.º estádio. 0 desenho compreende o condutor, por um lado, e o volante, por outro, sempre e desde logo representa­ do por uma circunferência com raios e um eixo de transmis­ são às vezes muito longo. Com o condutor acaba por surgir o respectivo assento. Eis alguns documentos:

Fig. 77

Rubert (5 anos e 2 meses).

Fig. 78

Alain (5 anos e 8 meses).

Fig. 79

Gilbert (6 anos e 8 meses). 279

3.° estádio. O condutor tem as mãos no volante. A posi­ ção dos pés é indiferente, o que significa que a criança ainda não tem consciência da função dos pedais nem dos pés.

Fig. 80 Dominiquc (4 anos e 4 meses).

Fig. 81

Alain (5 anos). 280

Fig. 82

Rubert (5 anos e 2 meses).

Fig. 83

Gerard (5 anos e 10 meses).

Fig. 84

Moula (6 anos). 281

Fig. 85

Patrick (5 anos e 11 meses). Os pedais aparecem assinalados. 4.º estádio, Descobre-sc então a função dos pés: o condu­ tor ora chega aos pedais a partir de uma posição normal:

Fig. 86

Alioum (7 anos). 282

Fig. 87

Gérard (5 anos e 9 meses). ora se apresenta ditorcido - o que é mais frequente para chegar aos pedais, o que leva a posições quase deitado:

Fig. 88

Loie (5 anos e 6 meses). 283

Fig. 89

Raymond (5 anos e 6 meses).

Fig. 90

Hervé (5 anos e 6 meses).

Fig 91

Patrick (5 anos e 6 meses). 284

Fig. 92

Ouarna (6 anos). Há, finalmente, os humoristas que evitaram as dificuldades contemtando-se em desenhar o condutor à janela.

Fig. 93

Moniquc (5 anos). 285

Fig. 94

Michel (6 anos).

Fig. 95

E esta cena divertida: "O condutor perante o polícia.” Michel (6 anos). 286

Os faróis

Os faróis só aparecem geralmente a partir dos seis anos. Projectam sempre raios luminosos, o que constitui a sua característica fundamental:

Fig. 96

René (6 anos).

Fig. 97

Chantal (6 anos e 10 meses). 287

Fig. 98

Chantal (6 anos) “E o motor?" Conclusão normal do desenho. O processo de tentativa experimental terminou. A partir dos dez anos, as crianças desenham automóveis que são a imagem exacta do modelo, com todos os acessórios no devido lugar. Vejamos um exemplo apenas:

Fig. 99

Yvon (10 anos e 8 meses). Os bulldozzers

Os bulldozzers. impressionam muito as crianças, que os desenham tanto quanto o automatismo inerente aos processos naturais do mecanismo o permite. Em vez dc rodas, surgem correntes que são muito mais fáceis de representar. 288

Fig. 100

Yanníck (3 anos e 11 meses) desenha um tractor-lagarta.

Fig. 101

Laurent (4 anos) desenha um bulldozzer. 289

Fig. 102

Bernard (4 anos) desenha igualmente um bulldozzer.

Fig. 103

Christian (5 anos) desenha outro bulldozzer.

Fig. 104

Aos 10 anos, vemo-nos perante o verdadeiro bulldozzer. Mecânica e criação

O nosso método natural de desenho anima constantemente a criança a uma espécie de delírio criador. Reconhecendo-lhe uma situação análoga à do bébé, impossível de encarar como 290

um aprendiz da língua ou do movimento, recusa-se a olhá-la como um principiante ou como um aluno. Cada realização constitui uma etapa natural do crescimento, com as suas vantagens e inconvenientes, com os seus entusiasmos e dissa­ bores. Todos os documentos da nossa Génese são criações absolu­ tas e originais, correspondendo cada um ao que a criança pôde oferecer nas diferentes idades. É de recear que a partir dos dez anos a escola venha a recuperar a vantagem perdida, impondo as suas normas e os seus modelos. A criança experimenta então um sentimento de

Fig. 105

inferioridade e de inaptidão. Deixa de ser o criador para se transformar no copista. O camião de Serge (10 anos) represen­ ta como que o protótipo do desenho correcto e exacto, mas destituído de alma na medida em que de maneira alguma traduz um acto criador. Será possível, nesta fase, continuar a combinar uma vida e uma alma com as necessidades da mecânica e da técnica? A criança que, através do método natural, assimilou a vida, íntima da máquina está alerta a todos os pormenores mecâni­ cos e pronta a dar-lhes vida.

Fig. 106

Paul (10 anos). 291

Fig. 107

O bulldozzer de Mario (7 anos).

Fig. 108

Eis a imagem detalhada de um “Hanomac”. Infelizmente não podemos reproduzir aqui a folha transparente, constelada de números correspondentes a 39 legendas que especificam o mecanismo de uma forma assombrosa (9 anos). 292

A preocupação criativa que cultivámos desenvolve-se normalmente em qualidades inventivas. O autor não se contenta em copiar os pormenores das suas máquinas com uma minú­ cia extrema. É mesmo levado a inventá-las na medida em que vive os seus desenhos — e cremos ser esta a maior homenagem prestada a um método natural de desenho e a um processo de tentativa experimental que permitem e autorizam as mais severas aquisições, do desenhador, mas que lhe mantém intacta a necessidade de criar e de inventar.

Fig. 109

E com o desenho desta “Máquina de escalar montanhas” (que não existe) de Serge (9 anos), damos por concluída a Génese, fazendo votos para que ela ajude os educadores a compreender melhor as crianças e a auxiliá-las melhor a alcan­ çar os cumes onde as leva a imaginação criadora.

Nesta Gênese dos automóveis, anotámos a idade das crian­ ças à medida que iam tomando consciência dos diversos pormenores essenciais ao andamento do carro: - Dos 3 aos 4 anos, o automóvel (uma carcaça) deve rodar, daí a necessidade das rodas;

293

Dos 4 aos 5 anos, a criança descobre que se conduz o automóvel: daí o volante; Dos 6 aos 7 ou 8 anos, o automóvel deixa de ser um veículo que apenas roda e é conduzido e passa também a transportar: a criança enche o automóvel ou o camião de coisas ou de pessoas. A vida no interior do carro traduz-se pelas atitudes das personagens. O automóvel entra na civili­ zação. Note-se que o travão e o motor, embora essenciais, não surgem representados no plano gráfico. Efectivamente, desde os primeiros anos em que a criança desenha o automóvel que se encontram presentes como elementos vitais, expressos pela mímica ou pela voz. O meio parece à criança suficientemente eloquente para traduzir-lhe o pensamento. Nesta ascensão rumo a uma compreensão cada vez mais segura da vida do automóvel, ultrapassamos a simples objectividade realista; o “realismo visual” limitar-se-ia a uma imagem estreita e morta do objecto. Os actos da vida infantil tem sempre um sentido mais complexo que ultrapassa os quadros da lógica para dar livre curso à imaginação sensível. A criança de dez anos, que se tenha apercebido da vida do automóvel através da mecânica, assimila intuitivamente o papel desem­ penhado pelos seus aspectos específicos (Fig. 106). Tudo se mostra ainda obscuro e nebuloso, mas a força criadora que já arde dentro dela inebria-a: possuída por uma autêntica neces­ sidade dc criar e dc inventar, incontrolável e superior a quaisquer obstáculos, imagina as entranhas do motor, combi­ na os elementos, activa as bombas e anima as transmissões. São indubitavelmente estes instintos demiúrgicos que expli­ cam a imaginação infantil manifesta em muitos inventores. Tais desenhos de mecanismos construídos por pura intui­ ção e sem preocupações lógicas reais são como testes revela­ dores dc um espírito orientado para a pesquisa científica. Proporcionamos, portanto, aos seus autores os meios mais práticos de investigação e de aquisição de conhecimentos: oficinas de trabalhos manuais, fichas, testes explicativos, li­ vros, dicionários científicos, etc. Sem qualquer método, perguntar-se-á?

294

Sim, se o entendermos como um caminho estreito, como uma via única, como uma espécie de estrada sombria ao longo da qual se recolhe uma série de conhecimentos medidos dc antemão. O essencial é avançar, alimentar uma necessidade de acção criadora sempre sedenta de conhecer melhor, de procu­ rar, dè construir sem esgotamento, sem fadiga anormal e contraproducente. É o ser total que participa na experiência, através de uma tentativa que passará forçosamente por êxitos e fracassos até consolidar-se numa compreensão sintética donde brotará o verdadeiro conhecimento científico dos factos. Claro que o desenho só por si não poderá fornecer-nos todos os elementos susceptíveis de determinar a orientação da criança para um estudo científico. É o conjunto das nossas técnicas educativas que tem de complementar e vir confirmar as aptidões reveladas pela expressão gráfica livre. Devemos cultivar a capacidade inventiva desde a infância: a própria criança abrirá os caminhos da sua pesquisa. Só então poderemos descobrir as atitudes mentais que a caracterizam: - Uma realidade de intenção primeira que faz apelo à inven­ ção; Uma imaginação que secunda, em permanência, essa inten­ ção através dc tentativas incessantemente orientadas e rea­ justadas que testemunham uma verdadeira permeabilidade à experiência; Uma observação rápida, imediata e condicionada pela tenta­ tiva inteligente; Um talento experimental que testemunha a coesão do ser e da experiência através do cérebro, da mão e desse poder de tensão e de esperança que ilumina tudo o que vive; Uma crescente aptidão para a dedução lógica. Transportadas da generalidade para o comportamento vivo da criança, estas considerações poderiam tornar-se patamares essenciais de uma escala da invenção científica. O desenho, que começa por ser um esboço intuitivo para transformar-se depois num esquema de relação dos órgãos da máquina e mais tarde num plano de construção, deveria 295

ocupar um lugar primordial entre os factores básicos da orien­ tação dos adolescentes. A escola nunca respeitou esta necessidade de invenção criadora cuja força desconhece. Nós ajudamos a criança a descobrir as actividades e a empenhar-se nos trabalhos para os quais se sente irresistivelmente atraída. Só então acordará nela o sentimento de poder que confere persistência, confiança e audácia à experimentação, que é a porta de acesso às vias da ciência real, a que é inventada ou reinventada e integrada no ser. E. F.

296

A GÉNESE DAS AVES

Como é que a criança, habituada à expressão livre nas escolas que trabalham segundo as nossas técnicas, representa as aves nas diversas fases do seu desenvolvimento? A nossa Génese das aves procura dar uma resposta experi­ mental baseada no exame de vários milhares de desenhos. Note-se que, embora as aves ocupem um lugar privilegiado nos desenhos infantis, não se encontram intimamente ligadas à vida das crianças: a gaiola de canários pendurada à janela torna-se cada vez mais rara e os pássaros das praças tal como os pássaros dos campos não se deixam abordar com facilida­ de. Mas o que impressiona a criança não são as suas caracterís­ ticas ornitológicas, mas as suas qualidades voadoras que lhes permitem passar da terra para o céu e deslocar-se no ar até desaparecer. São estas imagens sensíveis e fulgurantes do voo pleno que a criança traduz pela linha mais evocativa, com uma espontaneidade e uma segurança expressivas que consti­ tuem, por vezes, um desafio a toda a observação metódica, sempre mais lenta e menos ardente.. Seja como for. temos de esquecer a nossa formação escolar onde a objectividade pretendia explicar tudo e onde as nossas obrigações estreitamente pedagógicas se identificavam com a mania de ensinar; à nossa frente, sem nos pedir licença, a criança envereda por outros caminhos, os que lhe são pró­ prios. e por processos de tentativas, essencialmente instintivos, deslocando-se para onde quer, certa do concurso dos seus poderes como o caracol segregando a concha. Há que entrar resolutamente no reino da infância. 297

Um bicho!

Para imitar o adulto, a criança pegou num lápis ou numa esferográfica e traçou sobre a folha de papel umas quantas linhas sem intenção ou significado prévios, Mas o pequeno desenhador foi coordenando os gestos a pouco a pouco e eis que se adivinha no seu grafismo um êxito deliberado ou não: Um bicho!...

Fig. 1

Hervé (3 anos c 6 meses)

Fig. 2

Michel (3 anos e 2 meses), Nesta fase, a ave ainda não sc libertou da sua qualificação de “bicho” nem dos inúmeros traços que, nos primeiros grafismos, assinalam as patas e os pêlos.

Fig. 3

Jean-Paul (4 anos). 298

Fig. 4

Marie-Claude (4 anos e 3 meses).

Fig. 5

Marc (4 anos e 4 meses). À medida que se exercita a segurar e a manobrar o lápis, de maneira a permitir-lhe reproduzir imagens cada vez mais próximas da realidade, a criança caminha para uma diferencia­ ção crescente dos seus grafismos. Este processo de diferenciação igualmente válido para o desenvolvimento dos organismos vivos instalação duradoura 299

das formas conseguidas e desaparecimento das imperfei­ tas — leva-nos a constatar o perfeito paralelismo existente en­ tre a evolução do desenho e a evolução da vida.

Fig. 7

Fig. 6

Como células cm vias de diferenciação, eis algumas massas ainda inconsistentes, que evoluem para uma forma já específi­ ca, da autoria de Victor (4 anos e 10 meses). A comparação entre a gênese do desenho e a do objecto modelado mostra-se também altamente elucidativa, o que se justifica, aliás, pelo processo de realização se orientar, em ambos os casos, exclusivamente pela tentativa experimental. A criança pega na massa informe com dedos ainda desajei­ tados e inexperientes. A princípio trata-se apenas de uma espécie de plasma potencial que ainda não encetou um desti­ no. Depois, as primeiras operações geram formas que se vão diferenciando por tentativas em organismos mais complexos e difíceis de executar, acabando por fixar-se no êxito mais elaborado e deixando para trás as formas intermédias já auto­ matizadas. Tal técnica de modelagem apresenta-nos, de modo incontestável, algumas das leis que enunciámos e que demons­ trámos nas nossas Géneses. O indivíduo receptivo à experiência pega na argila e mode­ la como que mecanicamente as formas anteriormente conse­ guidas. Depressa, portanto, terá tempo, iniciativa e energia para levar mais longe as suas tentativas. O êxito, aliás, só excepcionalmente constitui um êxito em si. Representa normalmente um êxito em relação ao meio, o que explica que certas formas imperfeitas que vamos encontrar ao longo da nossa génese sejam tão originais na sua execução, que o autor as conserve durante largo tempo. Ficamos por vezes desiludidos ao vê-lo encaminhar-se para novas experiências em vez de continuar a traçar esboços já expressivos, como um artis300

ta que se agarre às formas conseguidas dos seus desenhos e das suas pinturas. E outra das vantagens das nossas técnicas consiste precisa­ mente em constatar que os progressos verificados na execução não se acham assinalados por uma série rebarbativa de obriga­ ções. de deveres, de desgostos e de choros, mas por uma sequên­ cia ininterrupta de êxitos felizes, livremente conduzidos c con­ sumados. As nossas crianças empunham o lápis, orgulhosas da sua obra, como o camponês vai assobiando e lavrando a terra com o seu arado. Esta alegria de criar constitui o traço mais marcante de uma pedagogia de vida e de humanidade. Um corpo e uma cabeça

Eis que da massa informe começam a definir-se um corpo e uma cabeça: a ave vem a caminho!

Mariette (3 anos).

René (3 anos e 10 meses).

Fig. 10

Victor (4 anos e 11 meses).

301

Fig. 11

Jean (4 anos e 2 meses). A ave liberta-se do seu destino terrestre

A ave ainda não levantou voo. Custa-lhe libertar-se do seu destino terrestre. Eis duas aves que ainda só se distinguem dos “bichos” pela forma alongada de um corpo ligeiramente recurva do que irá adquirir progressivamente o aspecto habitual dos pássaros, como veremos em desenhos posteriores.

Fig. 13

Fig. 12

Michel (4 anos e 11 meses). A esta ave larvar apenas faltam... o bico, as patas e as asas. Vamos assistir-lhe ao nascimento. 302

Fig. 14

Georges (4 anos e 4 meses).

Fig. 1 5

Uma galinha de Michelle (4 anos e 8 meses). A criação nem sempre segue vias exclusivamente lógicas. A vida é múltipla e há formas que conduzem a horizontes inesperados. Observaremos uma diferenciação que apetrechará sucessiva­ mente com bicos, patas e asas os organismos que se aventura­ rão voar. Mas existem desenhadores ousados que atribuem ao ele­ mento “ave” uma origem mais etérea, como os sonhadores que o desencantam das estrelas ou das flores. 303

Eis dois documentos característicos que testemunham as interpenctraçõcs da realidade e do pensamento imaginativo. Geórgette (6 anos c 8 meses) desenhou:

Fig. 16

por um lado, bichos de duas patas simultaneamente com algo de terrestre e de aéreo e.

Fig. 17

por outro, "flores que se transformam em aves”.

Fig. 18

Finalmente, ainda de Georgette, vemos um elemento co­ mum à génese do homem levantar voo. 304

Note-se que se trata de uma criança bastante mais velha, que parece apresentar um atraso de dois anos em relação à idade normal e que, para tentar “recuperar”, corta por ata­ lhos. São precisa mente estes atalhos, apenas apontados aqui, que conferem aos trabalhos dos anormais uma originalidade frequentemente surpreendente. Após esta divagaçâo. retomemos a evolução que poderemos classificar de mais normal c que leva a destacar provisoriamen­ te c por tentativa experimental os principais atributos do tipo ave.

Fig. 19

De Louis (4 anos e 3 meses), um “pássaro” que já possui uma cabeça, dois olhos e asas embrionárias. A ave ergue-se sobre as patas

Fig. 20

A ave ainda não voa. Começa por erguer-se sobre as patas incipientes. Francis (5 anos e 7 meses). O pintainho põe-se de pé:

Francis (5 anos e 7 meses). 305

Fig. 22

Dominique (4 anos e 7 meses).

Fig. 23

Michèle (4 anos e 11 meses).

Fig. 24

Charles (4 anos e 5 meses). 306

Fig. 25

Pierrot (4 anos e 10 meses).

Fig. 26

Louis (4 anos e 5 meses). Duas ou quatro patas

E a ave começa a debicar:

Fig. 27

Charles (4 anos e 9 meses). 307

Fig. 28

Riri (5 anos e 1 mês).

Mas o acto de debicar implica um problema de equilíbrio e depende da medida em que, no espírito da criança, a ave se libertou da sua natureza de simples animal. Duas ou quatro patas? Para as crianças que desenham não se trata de uma simples questão de aritmética. Um pato pode, mesmo com quatro patas, apresentar mais características es­ senciais da ave do que um vulgar desenho de duas patas.

Fig. 29

Pierrot (6 anos e 7 meses).

Fig. 30

Joël (6 anos e 8 meses). 308

Fig. 31

O belo aspecto destas duas aves de Marie-José (5 anos e 6 meses) não será de molde a fazer-nos esquecer as suas quatro patas?

Fig. 32

E até um frango com rodas! Jacques (4 anos e 5 meses). Nova etapa rumo à diferenciação: a cabeça tem uma ex­ pressão humana. Contrariamente ao que seria de esperar, o bico só acideiitalmente surge como atributo específico da ave. A expressão humana da cabeça constitui indubitável resí­ duo dc uma fase corrente no desenho de animais - vê-lo-emos na génese seguinte. Observam-se imensos animais com rostos humanos, altamente expressivos, aliás. 309

Fig. 33 Píerrot (5 anos). Na nossa Génese do homem já falámos de uma técnica fundada no quadrado muito característica e divulgada.

Fig. 34

Solange (5 anos e 5 meses), que desenhou pássaros mecâ­ nicos, descobriu de facto um modo de expressão simples c ao alcance dos menos habilidosos. Podemos constatar que, nesta fase em que a ave se libertou penosamente da sua natureza de animal comum, a criança consegue criar vida através de meios técnicos extremamente precários.

Fig. 35

Eis Jannettc (5 anos e 6 meses), dando milho a galinhas morfologicamente elementares mas extraordinariamente dinâ­ micas. 310

Fig. 36

Marie-France (4 anos e 6 meses) desenhou uma bela página com patos que passeiam gravemente sobre três patas.

Fig. 37

No desenho de Paule (5 anos e 4 meses), a família reuniu -se para admirar o Pai Pato. Nascimento das penas e das asas

Uma ave tem penas... Originalmcntc, essas penas não se distinguem ainda do pêlo ou da lã dos outros animais. 311

Fig. 38

As primeiras aves. Louise (5 anos e 4 meses).

Fig. 39

As aves-mamíferos de Mariette (4 anos e 4 meses).

Danielle (5 anos e 10 meses).

Fig. 41

Suzanne (4 anos e 6 meses) com a sua galinha dos ovos de ouro... 312

Fig. 42

Mariette (4 anos e 7 meses). A ave levanta voo

O aparecimento relativamente tardio, das asas deve-se me­ nos a uma falta de espírito de observação, por parte da criança, do que às dificuldades técnicas inerentes à representa­ ção do voo. Perante as imperfeições do desenho infantil, esquecemos muitas vezes o papel a atribuir à dificuldade técnica. Debrucemo-nos, portanto, sobre as fases desta tentativa de representação das asas e sobre a variedade das soluções encon­ tradas.

Fig. 43

Duas patas, uma cauda, uma antena orientadora — e eis a galinha. Daniel (4 anos e 2 meses). 313

Fig. 44

Uma mecânica fantástica com leme. Louis (4 anos e 4 me­

ses).

Fig. 45

E os corvos de Francis (5 anos c 7 meses) já se encontram totalmente equipados com corpo, patas, bicos e duas asas filiformes.

Fig. 46

Um fenômeno intermediário: o mamífero alado, com um bico enorme e duas asas bizarramente colocadas. Joseph (5 anòs e 10 meses). 314

As asas tomam forma:

Fig. 47

Pierre (4 anos e 10 meses).

Fig. 48

Liliane (4 anos e 3 meses).

Fig. 49

Victor (4 anos e 11 meses).

Fig. 50

Pierre (5 anos e 10 meses). 315

Fig. 5 1

Victor (5 anos e 8 meses).

Fig. 52

As asas não revelam grande progresso, mas o conjunto possui já um carácter aerodinâmico, típico dos documentos ulteriores. René (5 anos e 1 mês).

Fig. 53

Georges (5 anos e 8 meses) parece operar uma síntese entre o mamífero terrestre, de corpo semi-animal semi-humano, e a ave envolta na sua capa e munida de duas belas plumas. 316

Na pista!

Fig. 54

O corvo de Georges (5 anos e 4 meses) pousou como um enorme avião, de asas abertas, ao lado das ovelhas.

Fig. 55

A ave de Mariette (4 anos e 5 meses) ajusta os seus mecanismos avantajados.

Fig. 56

“A ovelha-galinha" de Georges (5 anos e 10 meses), 317

A linha elegante dos patos de asas fechadas:

Fig. 57

Jacques (4 anos e 11 meses).

Fig. 58

Paule (5 anos e 10 meses).

Fig. 59

O galo de Bernard (6 anos e 4 meses) “arrufa as penas da cauda 318

Fig. 60

Fig. 61

Os patos de Marictte (5 anos e 5 meses) sacodcm-sc abrin­ do e fechando as asas. O voo das aves

Fig. 62

Fig. 63

Charlotte (4 anos e 8 meses). Bcrnard (5 anos e 3 meses).

Fig. 64

René (5 anos e 1 mês). 319

Fig. 65

E em baixo, no solo, a família dos patos. Marie-Jeanne (4 anos e 5 meses). A partir de então, a criança está apta a desenhar aves dotadas de características distintivas. Como no grafismo do homem, vamos travar conhecimento com uma série de indivíduos fantásticos, Para a criança, como para o adulto aliás, o problema não consiste em desenhar uma ave parecida, o que faria com que todas as galinhas, todos os patos e todos os cisnes da autoria de crianças se assemelhassem como fotografias, Mas a arte, seja a que nível for, constitui sempre uma escolha e uma valorização de elementos dominantes que cha­ mam particularmente a atenção e que conferem à obra a sua qualidade definitiva. Como se faz esta escolha? É aí que reside o segredo da arte. Dissemos que, como todas as conquistas humanas, ela 320

resulta dc uma longa tentativa, fruto da observação e da comparação com a obra dos adultos c das outras crianças. Daí a importância inegável da atmosfera artística de uma classe que faz do desenho e da pintura não um mero exercício de cópia de modelo, mesmo que esse modelo seja a natureza, mas um profundo trabalho dc criação ligado às realidades do meio, Inscrevemo-nos. assim, a par dos artesãos e dos artistas, cuja veia as nossas crianças tão frequentemente parecem reen­ contrar. Mas estes êxitos constituem ígualmcnte. como já sublinhámos, uma questão de técnica. Existem grafismos difí­ ceis dc realizar, tecnicamente falando, e em compensação há traçados definitivos. O processo da génese. tal como o assinalamos, limita-se afinal a uma longa experiência por tentativa que compele o lápis à realização de uma obra original onde ainda transpare­ cem os laboriosos esforços do carpinteiro, mas que nem por isso se encontra menos impregnada da marca do artista. Quais são as diversas soluções artísticas e te'cnicas postas em relevo pelas nossas crianças ao desenhar as várias espécies de aves? 1. As asas e a cauda, pela sua simples presença e animadas por traços dentados ou filiformes, conferem já uma sensação de movimento.

Fig. 66

Serge (4 anos e 6 meses).

Simone (5 anos) 321

Fig. 68

Georges (5 anos e 2 meses).

Fig. 69

Gérard (5 anos e 6 meses). 322

Fig. 70

Marianne (5 anos e 8 meses). 2. Ou então reflectem a leveza e a ligeireza de aves cuja verdadeira função é voar:

Fig. 71

Dominique (6 anos e 3 meses).

Christian (5 anos e 2 meses).

323

Fig. 72

3. Muitas vezes a criança não consegue solucionar tecnica­ mente a representação das asas, que envolvem o corpo da ave como um imenso pára-quedas:

Fig. 73

Fig. 74

Steven (5 anos e 3 meses). 4. Ou então a ave agita um corpo de acordeão que parece cortar o ar como uma hélice:

Fig. 75

5, Jean-Claude (6 anos e 7 meses) desenhou mesmo uma verdadeira máquina-voadora:

Fig. 76

Pierre (5 anos e 3 meses).

324

Fig. 77

Françoise (6 anos e 8 meses). 6. Certas crianças criam verdadeiros mecanismos visivel­ mente inspirados em aviões:

Fig. 78

Louis (5 anos e 9 meses).

Fig. 79

Roger (6 anos e 4 meses). 325

Fig. 80

Alain-Gerard (5 anos e 10 meses).

Fig. 82

Fig. 81

KJébert (6 anos e 11 meses). 7. Aves filiformcs. desenhadas com um só traço, sem levantar o lápis do papel, como um jogo. Seria curioso filmar uma criança desenhando uma ave se­ gundo esta técnica: o corpo, a cabeça um pouco mais peque­ na, o bico mais ou menos longo conforme o afastamento da presa a alcançar, duas patas, o que não oferece dificuldades, e uma vírgula a servir de cauda. Pilar (5 anos) já aperfeiçoou a sua técnica e bastam-lhe quatro traços para desenhar uma ave: - Uni 8 para o corpo, a cabeça e a cauda afilada; - As duas patas; - O ponto do olho; - O bico.

326

Fig. 83

Fig. 84

A ave é perfeita e dinâmica. Esta técnica aproximativa dá origem a consecuções muito variadas, algumas das quais verdadeiras obras-primas. 8. É no âmbito desta técnica filiforme que podemos inte­ grar a nossa gênese especial da avestruz. Porque, como é bastante típico, a nossa considerável colecção de desenhos não apresenta grande variedade de aves. Primeiro o bicho, depois o pássaro, depois o pato, a galinha e os pintainhos, algumas andorinhas, alguns cisnes e cxcepcio327

nahnente pavões. E cm seguida a avestruz, sem dúvida graças ao seu ar espectacular e à facilidade de reproduzir-lhe as características. Como distinguir tecnicamente uma andorinha dc um pardal ou de um melro? Distinguimos a galinha, o pato e a ave voadora. Trata-se de uma classificação elementar mas suficiente. Ignora-se ao certo se a avestruz tem duas patas ou quatro, mas sabe-se que possui um pescoço comprido. Basta desenhar as palas, um corpo qualquer e um pescoço alongado para obter unia avestruz. E acessível ao mais desajeitado, que a representa, alias, sem grande expressão artística!

Fig. 85 Philippe (4 anos e 11 meses).

Fig. 86

Georges (5 anos e 3 meses).

328

Fig. 87

Marie (5 anos e 4 meses).

Fig. 88

Robert (5 anos e 1 mês).

Fig. 89

René (5 anos e 6 meses). 9. O galo em crescente, Situa-se na mesma ordem de ideias que a ave filiforme. Vimo-lo tomar forma desde os primeiros grafismos ainda indiferenciados dos principiantes. Depara-se-nos, neste domínio, toda uma gama de realiza­ ções, desde o simples crescente unicamente revestido de duas patas até aos mais belos êxitos artísticos. 329

Como é esta técnica que dá os elementos mais decorativos, iremos alongar-nos um pouco na lista dos protótipos: e o despertar da expressão artística em tudo o que ela tem de decorativo c de singular.

Fig. 90

Marie-Paule (4 anos e 7 meses).

Fig. 91

Louis (4 anos e 7 meses).

Fig. 92

Gilda (5 anos e 1 mês). 330

Fig. 93

Marie-Paule (4 anos e 11 meses).

I IL-. C.M Marie-Paule (5 anos).

Fig. 95

Denis (5 anos). 331

Fig. 96

Roger (5 anos e 1 mês).

Fig. 97

Marie Jeanne (6 anos e 3 meses).

Fig. 98

Michel (6 anos e 6 meses). 332

Fig. 99

Michel (6 anos e 6 meses).

Fig. 100

Irène (6 anos e 1 mês).

Fig. 101

Josette (7 anos e 7 meses). 333

Fig. 102

Irène (7 anos e 8 meses).

Fig. 103

Josette (7 anos e 9 meses).

Fig. 104

Irène (7 anos e 9 meses). 334

Fig. 105

A linda galinha de Denis (5 anos e 7 meses).

Fig. 106

Irène (7 anos e 1 1 meses). 10. A ave complexa, obra de arte: E acabamos por chegar, em idades pouco diferentes aliás, ao desenho artístico de uma ave menos csquemática, mais complexa e também mais próxima da realidade viva, à ave a 335

que podemos dar um nome de família ou de variedade, que não constitui cópia da natureza, de um desenho ou de uma fotografia, mas que é o pássaro visto por um olho agudo, observador e criador que desde logo lhe imprime o seu génio, associando à natureza sempre inimitável o sopro desejável da obra de arte. Está concluído o ciclo que vai do grafismo informe onde mal se distingue o “bicho” até ao desenho artístico da galinha ou do pavão. O ciclo está terminado. Mas não houve uma progressão metódica, marcada por passos sucessivos rumo à perfeição, ao longo da qual cada criança procurou descobrir um tipo cada vez mais acabado e expressivo segundo o seu próprio ponto de vista. É em todas as fases que nós nos maravilhamos e que a criança se maravilha.

Fig. 108

Fig. 107

Jean-Alain (7 anos e 5 meses). 336

Fig. 109

Annie (7 anos e 5 meses). 337

Fig. 110

Basta examinar esta página onde Kiki (6 anos e 5 meses) parece ter reunido as mais variadas técnicas, como um artista já consumado que se não contenta cm copiar a natureza, mas que sabe interpretá-la audaciosamente, A verdade, o humor e a arte

Terminaremos esta génese mostrando através de exemplos típicos como e que nas diversas fases a criança não executa só esboços, mas obras frequentemente auto-suficientes que não nos atrevemos a tocar com receio de destruir. O mesmo acontece com a criança que se ensaia na linguagem, seguindo um método evidentemente natural de tentativa experimental, e que. apesar da sua inépcia, tem achados, sínteses, compara­ ções e subentendidos que nos surpreendem e deslumbram. 338

Fig. 111

Fig. 113

Fig. 112

Alain (6 anos c 6 meses).

Fig. 114

André (6 anos e 10 meses). 339

Fig. 115

Os gansos de Geneviève (7 anos e 2 meses).

Fig. 116

E vamos concluir com a ave de Gilbert (8 anos e 10 me­ ses), que nos lembra um senhor idoso e atrasado a resmungar ante o espectáculo da vida que passa. 340

No fim deste espantoso desfile dc aves, vistas por crianças de 4 a 8 anos, sentimo-nos dominados por uma impressão dc vida e de energia. Ficamos verdadeiramcnte boquiabertos pe­ rante a capacidade da criança para reorganizar a seu modo o mundo dos pássaros. Quer sejam captadas em pleno céu quer apanhadas em atitudes mais terrestres, estas aves constante­ mente recriadas comunicam-nos, em poucos traços essenciais, a sua vivacidade, a sua ligeireza, a sua fantasia c, por vezes, a sua graça soberana (Figs. 74, 75, 103, 104, 108). Será possível fazer melhor com meios tão sóbrios? Retomando o caminho que havíamos seguido na Génese do homem, fomos notando o aparecimento sucessivo dos pormenores exteriores do corpo da ave. o que não cra de forma alguma indiferente à nossa pesquisa preocupada com a realidade tal como se mostra aos olhos da criança. Mas, com a continuação e à medida que a ave adquiria bico, patas e penas, começou a impor-se-nos algo de mais importante do que a objectividade realista: a mensagem do pássaro vivo, liberto para sempre, dominando com todo o seu ímpeto a imperícia e o esquematismo dos grafismos, para afirmar a sua “vocação voadora”. Como é que sem qualquer iniciação prévia a criança conse­ gue assimilar estas noções subtis que transformam a linha no factor essencial e excepcional da expressão gráfica? Não são só os olhos que guiam a mão, uma vez que a criança começa por não ter qualquer ponto de referência; o lápis parte para onde quer e termina, por si mesmo, onde é necessário. A figura, a princípio aberta, fecha-se, o arabesco faz sentir a sua força (Figs. 67, 74). Quão longe nos encontramos do desenho figurativo! E quantas lições temos a receber sobre a noção de espaço, da parte de uma criancinha a quem a psicologia contesta a capacidade de orientar-se e de situar-se no meio que a rodeia! Que pedagogo alimentado por uma profusa ciência intelectual conseguiría — num espaço de tempo equiva­ lente à rapidez da escrita gráfica - realizar com tanta facilida­ de e até desenvoltura uma página tão minuciosamente ordena­ da e tão definitiva como a que Kiki (7 anos e 4 meses) nos 341

oferece? Não há uma ave igual a outra. É o triunfo da espécie pelas virtudes do gênio decorativo da criança. Dizer que o aperfeiçoamento da mão depende de um crescente controle da moiricidade reconhecida aos dados vi­ suais nada significa. O essencial não é o jogo da mão mas sim as forças que o animam. É evidente que os olhos ajudam e não recorrem a qualquer lei. Mas os elementos que entram aqui em linha de conta são mais profundos e nem todos constituem reflexo da maturidade biológica ou da repetição dos exercícios. Precisamos de ir mais longe e procurar a sua justificação nos domínios secretos da sensibilidade e do imagi­ nário. O que nos prendeu à Génese das aves foi a fertilidade da invenção gráfica testemunhada por tantas imagens originais, especiahnente pelas incluídas nas últimas pa'ginas. Na ausência sistemática de observação e ainda muito mais de erudição, não foi certamente o saber que orientou a mão das crianças capazes de exprimir dc um só jacto o comportamento das criaturas voadoras (Figs. 102, 103, 106, 111). O saber apenas poderia conduzir, por degraus metódicos, à figura clássica de uma dada espécie de ave. O acaso também não poderá explicai' a segurança e a generalidade dos passos criadores pessoais. Intervirá, sem dúvi­ da, mas como factor acidental e é preciso que tal factor se inscreva numa personalidade apta a recebc-lo. Por exemplo, seria difícil atribuir ao acaso a ave de René (5 anos e 1 mês) (Fig. 64), que, em plena acção, parece cortar os espaços imen­ sos respondendo ao apelo migratório. É o simples facto da criança se encontrar mergulhada num inconformismo inconsciente que a leva a dar livre curso às suas audaciosas tentativas experimentais; ignorante de tudo, tem tudo a aprender e atira-se de cabeça à conquista de caminhos, A cada passo e com a cumplicidade compreensiva do meio nas áreas relacionadas com o seu desenvolvimento fisiológico e social, transforma-se num criador. Mas há sectores onde por vezes se vé compelida a comportar-se como um franco-atirador, livre nas suas experiências, na sua táctica e nos seus objectivos. É o caso do desenho ao qual - na maio­ ria das suas diligências - se entrega sem qualquer defesa, sus­ 342

citando, assim, unia actividade criadora constantemente reno­ vada e enriquecida, que confere um rosto inédito ao seu mundo interior. Mas persistirá sempre uma questão: que razões e que cau­ sas poderiam explicar as particularidades da feitura pessoal dos grafismos dc cada criança? Tocamos evidentemente um domínio misterioso que os psicólogos evitaram abordar e sobre o qual só nos são permitidas reflexões vagas. A única coisa que podemos constatar com toda a simplicidade é que a criança, seja qual for o teor das suas improvisações livres, se encontra sempre ligada à sua própria vida; ela é o motor que dá pleno rendimento: oferece autenticidade criativa dentro de uma espontaneidade sem limites. As psicologias ocidentais teriam muito a aprender sobre estes assuntos mais ou menos votados ao hermetismo com a tradição pedagógica das civilizações asiáticas, fundamental­ mente preocupadas com uma simplicidade básica e que, sem exigir qualquer tensão ou esforço impostos pelo exterior, se consideram permanentemente submetidas à acção resultante de uma espontaneidade inteiramente livre. Só assim o indiví­ duo pode vivcr dc acordo com a sua verdadeira natureza. É o caminho seguido pela criança: ela sabe aonde vai e escolhe-aencosta mais favorável, como a água que corre da montanha. Para ser verdadeira, sólida e eficiente, a educação deve ter em conta essa encosta favorável que a criança nos revela através da expressão livre e que constitui a justificação dos nossos Métodos naturais. Estes métodos têm a grande vantagem de nos proporciona­ rem uma consciência dos processos de tentativa de cada criança, bem como dc nos fazerem descobrir os patamares onde o acto conseguido se mecaniza e pelos quais se vai estruturando uma técnica primeiro inconsciente e depois pro­ gressivamente elaborada que assegura uma ascensão permanen­ te rumo à conquista e à afirmação da vida. Estamos convencidos de que só essas vias nos permitirão lançar luz sobre os passos que asseguram a feitura pessoal dos grafismos infantis. Sc não chegarmos à intuição da incomensurável amplitude das forças vitais que actuam à escala da criação, jamais poderemos entrar no mundo da infância para 343

tentar compreender o seu perpétuo renascimento. Porque é que os pássaros livres, desenhados pelas nossas crianças da infantil, não nos encherão de um deslumbramento quase reli­ gioso como o que nos suscita a regularidade impecável de um favo de mel ou de um casulo sedoso fechado sobre a sua crisálida? Perguntar-se-á se a arte, que todos amam instintiva­ mente, não será apenas uma lei da natureza necessária à vida e à sua perpetuação para além do simples destino dos indivíduos. De qualquer forma, foram precisamente todas as particula­ ridades artísticas patentes nos grafismos infantis que tentámos pôr em relevo na nossa Génese das aves, como já tínhamos feito na Génese do homem. O gosto da coisa bela e perfeita, o poder de invenção da linha, o equilíbrio do arabesco e o sentido da impetuosidade dos músculos em acção representam valores que se auto-organizam rumo a um equilíbrio de actividades criadoras em plena génese e que constituem autênticos valores artísticos. Cuidaremos de não deixar degradar estas riquezas ignoradas pela psicologia nem deixar desacreditá-las por um intelectualismo ressequido que logo à partida priva a criança dos seus poderes criativos, arrancando-a à lenta maturação em que se prepara a sua própria formação intelectual e moral.

E. F.

344

A GÉNESE DOS CAVALOS

Propunha-me terminar a série das minhas gêneses com uma génese geral dos animais, à excepção das aves já anteriormente estudadas. Mas ao classificar a impressionante colecção de desenhos infantis sobre o tema, realizados em centenas de escolas do nosso movimento, fiquei surpreendido com um facto que me fez imprimir uma nova orientação ao trabalho: numa época em que os cavalos desapareceram totalmente das nossas cida­ des e vão sendo. progressivamente substituídos no campo pelos tractores, continuam — e dc longe — a revelar-se a vedeta dos desenhos infantis. Seguem-se-lhes os bois e as vacas que também ocupam um lugar considerável. Contrariamente ao que pensara, os outros animais, embora conhecidos, só raramente aparecem nos desenhos das nossas crianças: vêem-se muito poucos cães, por exemplo, apesar dos seus dotes de amizade e de fidelidade os transformarem em verdadeiros companheiros das famílias que ainda podem pos­ suí-los. Porque se desenha o cão tão poucas vezes? Será por não apresentar qualquer característica espectacular - orelhas compridas como o burro, chifres como o boi, sela ou carroça como o cavalo? 0 cão é sensível e afectuoso, duas qualidades de difícil expressão gráfica. A escassez de gatos justifica-se. sem dúvida, pelas mesmas razões. Os restantes animais, conhecidos ou não, ocupam um lugar ínfimo nas nossas colecções: alguns porcos; leões certamente em virtude da tradição fabulosa e folclórica; cabras e carnei­ ros, em menor número do que supunha perante a facilidade 345

com que a criança representa a lã, os chifres e o pastor; coelhos, só para decorar as coelheiras; e maior abundância dc esquilos em determinadas escolas, certamente devido à in­ fluencia do meio. Quase não se encontram lebres, cervos, camelos e elefantes; há poucos peixes, mas alguns macacos; não há serpentes, sapos ou rãs, mas caracóis. A que se deverá esta emergência notória dos cavalos e, em segundo lugar, dos bois e das vacas? Corresponderá a uma ordem especial relacionada com a presença de tais animais próximo da criança? Não ignoro o renovado interesse que as corridas, complacentemente comentadas na televisão e em que tantas famílias jogam, tem canalizado para os cavalos. Contu­ do. uma parte das nossas colecções é anterior a essa moda e tanto os cavalos como as carruagens acabaram mesmo por desaparecer do meio natural da maioria das crianças. Mas claro que os filmes de “cow-boys” apresentados na televisão têm muita influencia. Creio que esta predilecção sc deve, todavia, ao facto da criança conseguir obter desenhos facilmente expressivos e ar­ tísticos a partir do cavalo. A silhueta do carneiro fixa-se rapidamente; quatro patas, um pouco de lã aos caracóis e o rebanho fica pronto para seguir para o campo. Que mais é preciso? O cavalo é elegante, possui uma cabeça expressiva c inteli­ gente, as patas altas e esguias permitem-lhe trotar e galopar. Pode ser selado e transportar um cavaleiro sempre diferente: um homem de armas, um simples camponês ou uma criança. E o burro, cuja história sc assemelha tão completamente à do cavalo, tem o nobre destino de acompanhar o Pai Natal na sua distribuição dc brinquedos, E depois há a carruagem, que a criança encara ainda com uma nostalgia ancestral. Perante a riqueza do tema, vamos limitar-nos, portanto, à génese do cavalo (e acessoriamente à do burro). Estabelecere­ mos mais tarde a gchiese do boi e da vaca, bem como a dc alguns outros animais (1).

(1) Não concretizadas.

346

Os pedagogos ainda subjugados pela prática das lições e dos deveres interrogar-se-ão se o nosso método levará a crian­ ça a aprender a desenhar satisfatoriamente, não só o que imagina e o que cria, mas tambem o que vê. Os progressos constatados nesta génese constituem a mais eloquente das respostas. Animam a técnica, descobrindo-lhe tudo o que pode comportar de espiritualidade e de beleza. Conduzem a uma cultura.

O nascimento do cavalo

Fig. 1

Com 3 anos e 2 meses, Patrick vê o cavalo como uma nebulosa ainda indiferenciada vogando num espaço morto. E esta primeira expressão corresponde, em nossa opinião, à realidade da vida da criança desta idade. Preocupada com a construção complexa do seu mundo interior, considera os homens e os bichos que a rodeiam como gravitando na sua 347

órbita em vias de fixação. Vamos ver aparecerem a pouco e pouco os elementos que mais se impõem à atenção activa da criança.

Fig. 2

O feto define-se com um embrião de cabeça e toda uma armadura ainda indecisa de pêlos ou de membros. Patrick (3 anos e 10 meses).

Fig. 3

No desenho seguinte, o feto parece sair da sua passividade e erguer a cabeça, Patrick. (3 anos e 10 meses). 348

Fig. 4

E eis o bicho semelhante já a um potro arremessando-se para a frente. Patrick (3 anos e 11 meses).

Fig. 5

Fig. 6

André (3 anos e 10 meses). 349

Algumas crianças dc escolas diferentes (mas todas com 3 anos e 10 meses) apresentam-nos uma surpreendente estilização do cavalo. Outras crianças juntaram a essa estilização umas patas em­ brionárias:

Fig. 7

Rosine e umas patas e uma cauda: Riri.

Fig. 8

Fig. 9

Dotado de cabeça expressiva e de pés, eis o cavalo que acaba de nascer. Lulu (3 anos e 8 meses). 350

O cavalo toma forma com cabeça, patas e cauda

O aparecimento destes órgãos nos desenhos das nossas crianças não é simultâneo.

Fig. 10 A cabeça ainda é anônima; um traço representa o corpo e a cauda, o número de patas é caprichoso e já existe um cavaleiro. Line (3 anos e 10 meses).

Quatro cavalos que a pouco e pouco tomam forma:

Fig. 11 Louis (3 anos e 10 meses).

Fig. 12

Jacques (3 anos e 11 meses). 351

Fig. 13

Robert (3 anos e 10 meses).

Fig. 14

Lili (3 anos e 11 meses).

Fig. 15

Dolores (4 anos) já muniu o seu cavalo de quatro pernas com cascos semelhantes a barbatanas.

Fig. 16

Fifi (4 anos) confere uma expressão viva à cabeça do seu cavalo. 352

Fig. 17

O cavalo dc Serge (4 anos) possui já todos os atributos essenciais, à excepção das orelhas. A cabeça torna-se mais expressiva e decorativa, mas o número de patas é muito fantasista.

Fig. 18

Lina (4 anos e 1 mês).

Fig. 19

René (4 anos e 2 meses). 353

Fig. 20

Lise (4 anos e 3 meses).

Fig. 21

Louis (4 anos e 2 meses).

Fig. 22

blianc (4 anos e 4 meses). 354

O número de patas equilibra-se

Não me parece que nesta fase a criança pense: "O meu cavalo tem patas a mais. Vou pôr-lhe só quatro, como deve ser.” Como as restantes partes do corpo, o número de patas ir-se-á também equilibrando e aproximando do normal.

Fig. 23

Paul (4 anos e 1 mês).

Fig. 24

Jean-Jacques (4 anos e 2 meses): “O homem a cavalo. ”

Fig. 25

Jean-René (4 anos e 2 meses): “O patrão e o cavalo.”

355

Fig. 26

Pierre (4 anos e 2 meses). Como é que, com a sua técnica ainda embrionária, a criança entre os 4 e os 5 anos descobre e exprime a vida misteriosa do cavalo?

Entre os 4 e os 5 anos, a criança que veio dominando progressiva e experimentulmente a técnica da língua consegue exprimir-se dc uma forma intuitiva, original e espantosa mente completa, atendendo ao número ainda reduzido de palavras de que dispõe. F. a idade cm que a aquisição interior e profunda ainda domina o verniz com que a escolástica cm breve a revestirá. As palavras da criança, as inflexões da sua voz. as suas hesitações e os próprios subentendidos conservam uma resso­ nância vital que não voltaremos a encontrar com a mesma intensidade. É no subconsciente e através da psicanálise que devemos procurar a explicação profunda das obras infantis e particularmentc do desenho. Com os meios gráficos dc que dispõe, a criança vai agora moldar o cavalo a seu jeito, numa recriação que põe em relevo os elementos referentes à estatura, ao movimento e à vida do animal cujo valor sensível ela apreende intuitiva­ mente. Como se traduzem os êxitos nesta fase? Ninguém sabe. Encontramo-nos no domínio misterioso do pensamento pro­ fundo e da sua expressão por intermédio daquilo a que se chama arte, à falta de outra justificação.

Fig. 27

Jules (4 anos): "O cavalo que ri. ”

356

Fig. 28

Lulu (4 anos e 10 meses): “O cavalo tem fome. ”

Fig. 29

Denis (5 anos e 6 meses) desenha um “burro de moleiro” inquieto e trocista.

Fig. 30

Pierre (5 anos e 8 meses) oferece-nos um cavalo pachorrento: ‘'Está à espera que lhe dêem de comer. ”

357

Fig. 31

Louisette (5 anos e 7 meses) apresenta-nos uma burra preocupada com a maternidade próxima.

Fig. 32

Alain (5 anos e 8 meses).

Fig. 33

Pierrc (5 anos e 10 meses): "O cavalo foge.

358

Fig. 34

Michel (4 anos e 4 meses) soube dotar o seu cavalo de uma grande elegância: o pescoço, as ancas e o corpo são particularmente esbeltos.

Fig. 35

Patrice (4 anos e 2 meses): ‘‘Cavalinhos da montanha de Andorra passeando. ” 359

O cavalo e os cavaleiros

Estaremos perante uma tendência ancestral ou será que a criança experimenta pura e simplesmente um prazer inigualá­ vel ao sentir-se senhora do seu cavalo ou do seu burro? A criança gosta de automóveis e as possíveis razões justifi­ cativas dessa inclinação são múltiplas. Mas coloquemos lado a lado um belo automóvel do último modelo e um cavalo selado ou um burro simpático, prontos a montar para um passeio pelo campo ou por caminhos ainda não alcatroados, e não haverá hesitação: todas as crianças com menos de dez anos optarão pelo cavalo ou pelo burro. A vida mostra-se sempre mais atraente. É isto, sem dúvida, que explica a enorme proporção de desenhos representativos de cavalos e cavaleiros executados entre os 4 e os 5 anos.

Fig. 36

Irma (3 anos e 10 meses) desenhou uma menina a cavalo. Vê-se efectivamente que subir para um cavalo e representar graficamente a ocorrência exigem um grande esforço nesta idade. Numa primeira fase, o cavaleiro está de pé sobre o cavalo sem qualquer problema de equilíbrio nem necessidade de sela ou de rédeas.

Fig. 37

Robert (4 anos e 6 meses). 360

Fig. 38

Viviane (5 anos e 8 meses) desenhou simplesmente uma flor a cavalo.

Fig. 39

Michel (5 anos e 8 meses).

Fig. 40

Louis (5 anos e 8 meses): “Vai montar o cavalo.” 361

Fig. 41

Alain (5 anos e 8 meses): “É o papá que passeia o cavalo com a menina e o irmãozinho. ”

Fig. 42

Paul (4 anos e 3 meses). 362

Fig. 43

Jean-Marie (4 anos e 5 meses), apesar de pouco hábil, já conseguiu desenhar um belo cavalo: "O menino vai subir para o cavalo; como é muito pequeno, serve-se de uma escada. ”

Fig. 44

Jeannc (5 anos e 1 mês): “O cavalo puxa o carro, a menina segura no chicote.” 363

Fig. 45

André (5 anos e 9 meses). Em seguida a criança liga o cavaleiro às rédeas:

Fig. 46

Serge (5 anos e 9 meses).

Fig. 47

Mauricc (5 anos e 10 meses). 364

Fig. 48

Lucette (5 anos e 10 meses).

Fig. 49

Serge (5 anos e 10 meses). 365

Fig. 50

Dois desenhos de Dominique (6 anos): O concurso hípico.

Fig. 51

Achamo-nos em plena acção e os jóqueis têm o número marcado nas costas. Apesar da economia de meios, é uma cena de um dinamismo surpreendente. 366

As selas

Até aos 6 anos não encontramos arreios. O cavaleiro mon­ ta directamente sobre o dorso do cavalo, seja porque a crian­ ça que nunca montou ignore a utilidade ou a necessidade da sela c dos estribos, seja porque a sua preocupação com algo de mais urgente a tenha mantido afastada do problema. É agora que ele nos surge.

Fig. 53

Eis uma corrida onde apenas se acha assinalada a colocação da sela, sem qualquer preocupação quanto às pernas e aos pés. Jean-Pierre (6 anos).

Fig. 52

E agora, de Claude (6 anos e 2 meses), vemos um verdadei­ ro cavaleiro com uma sela ricamente decorada, estribos e a alegria triunfante de um vencedor. 367

Fig. 54

Fig. 55

Por fim. corridas de cavalos vivas e humorísticas, nas quais a sela e o estribo desempenham um papel relevante. Michel (6 anos). Os atrelados

No período inicial não existe um verdadeiro atrelado. O cavalo acha-se simplesmente colocado à frente do carro, ao qual sc encontra por vezes ligado por um traço de lápis. A princípio nem sequer há condutor. 368

Fig. 56

Colettc (4 anos e 11 meses).

Fig. 57

Roland (4 anos e 11 meses).

Fig. 58

Michel (4 anos e 10 meses). 369

Fig. 59

Pascal (5 anos): "O cavalo que puxa as batatas.'’

Fig. 60

Riton (5 anos): “O papá leva as crianças a passear. É domingo.”

Fig. 61

Paul (5 anos e 5 meses): "O cigano e o carro florido." 370

Desde cedo que o atrelado surge associado ao trabalho. Os desenhos que se seguem foram executados por crianças do campo.

Jean-Claude (5 anos e 5 meses): O cavalo é conduzido. "A palha vai no carro. ” E eis alguns condutores:

Fig, 63

Dominique (5 anos e 6 meses).

Fig. 64

Philippe (5 anos e 6 meses): “Há batatas na carroça.” 371

Fig. 65 Vincent (5 anos e 6 meses).

Fig. 66

Alexandre (5 anos e 6 meses): "É o correio. ” Os arreios aparecem aos 6 anos:

Fig. 67

Michel (6 anos). 372

Fig. 68

Jean-Pierrc (6 anos c 1 mês). E, para finalizar, eis um atrelado correcto e definitivo:

Fig 69

René (8 anos). O ciclo da tentativa experimental terminou

Entre os 7 e os 8 anos, a criança desenha os cavalos com o máximo de exactidão compatível com a preocupação artística que ainda a impregna. 373

A criança não partiu do nada para se elevar, através de series de provas destituídas de qualquer valor artístico e humano, aos cânones ordenados pela escolástica. Em cada um dos estádios por que passou realizou obras intrin secam ente válidas, específicas do seu grau de experimentação e de evolu­ ção individual, como frutos diferentes, dotados de períodos diversos de maturação e cuja plenitude nos satisfaz sempre. Mas a criança nunca se contenta com os seus êxitos do momento e sente uma constante necessidade de avançar rumo a um máximo de inteligência, de equilíbrio e de harmonia. Para compreender e apreciar o valor do método natural que permitiu a ascensão regular da nebulosidade dos 3 anos até à perfeição técnica dos 6, seria preciso comparar o presen­ te álbum a um outro que traçasse, como ele, mês a mês, a evolução da criança sujeita aos métodos tradicionais. Ver-se-ia então que a diferença entre os resultados finais reside no elemento novo e essencialmente fecundo que nós introduzi­ mos no processo: o dinamismo e o sentido de perfeição, de beleza e de vida.

Fig. 70

É essa vida que encontramos no cavalo acabado de ferrar de Serge (6 anos) e em tantas outras cenas campestres: 374

Fig. 71

Alain (6 anos e 7 meses).

Fig. 72

Bernard (8 anos e 4 meses): "O cavalo nas vindimas. ” 375

Fig. 73

Alain (6 anos): “Vão partir para os campos.”

Fig. 74

Alain (6 anos e 7 meses): "Anunciando a festa.” 376

Fig. 75

Alain (7 anos e 2 meses).

Fig. 76

Pierre (11 anos). 377

Fig. 77

Charles (9 anos e 8 meses).

Fig. 78

Pierre (12 anos).

Sc “o cavalo é a mais bela conquista do homem”, parece ser também a mais bela conquista da criança sob o ponto dc vista gráfico. Nada mais difícil do que captar um cavalo em movimento, fazendo faiscar as suas quatro ferraduras; a géne­ se dos cavalos, porém, oferece-nos um resumo apaixonante e 378

de feitura por vezes excepcional de toda a aventura do cavalo. Regista, efectivamente, as fases da sua domesticação, a sua transição de um estado selvagem para um estado civilizado onde se encontra definitivamente submetido ao homem. Podemos sintetizar essa aventura num esquema delimitador das etapas sucessivas da civilização do cavalo, tal como surge nos desenhos infantis que examinámos e cuja realidade se acha materializada nos documentos apresentados: 1. O cavalo toma forma. 2. O cavalo e o cavaleiro. 3. O cavalo de corrida. 4. O cavalo e os seus atrelados. 5. O cavalo na história. 6. O cavalo na cultura. 7. O cavalo eternamente livre. Retomemos estas diversas fases impostas pela criança e que nos fazém sentir até que ponto ela está consciente da integra­ ção do cavalo na sua vida. 1. A génese do cavalo é, em todos os pontos, semelhante à génese do homem: a cabeça, as patas e o ventre são os primeiros a aparecer como elementos indispensáveis à caracte­ rização do animal. Os outros pormenores surgem conforme o desenhador, numa ordem indeterminada mas numa caligrafia tipicamente pessoal, cuja originalidade é de sublinhar (Figs. 28, 31, 36, 38). 2. O cavalo e o cavaleiro escapam muito depressa à sim­ ples justaposição de grafismos para passar a uma integração muito estreita numa intenção dc cavalgada deliberada, como necessidade evidente (Figs. 42, 44, 46, 49, etc.). 3. Logo que a criança domina o mecanismo da cavalgada, ou seja, logo que o cavalo sabe galopar e que o cavaleiro consegue manter o equilíbrio, organizam-se competições que refleetem uma actualização do desenho (Figs. 51, 52, 53, 55, 56). Mesmo sem arreios, a vitória está assegurada: a vida existe sempre para além daquilo que a traduz, Estamos longe 379

do mero desenho narrativo. É como actor que a criança entra em cena, porque o cavaleiro, não tenhamos dúvidas, mais não é do que uma projccção imaginária do jovem desenhador. Só assistindo ao acto de nascimento destas criações podemos ficar com uma ideia da imensa alegria interior e da febre íntima que acompanham o aparecimento de cenas inventadas como as das Figs. 54, 55 e 56, cuja intensa expressão vital desde logo as inscreve sob o signo do humor. Tais documentos obrigam-nos a ultrapassar as considera­ ções escolares do realismo, as explicações parciais e tão po­ bres pela "habilidade motora da mão, coordenada à acuidade visual". A criança situa-se para ale'm das preocupações pedagó­ gicas do pedagogo; acha-se imersa num estado de vida total que ultrapassa os seus meios de expressão: arrisca-se integral­ mente numa tentativa experimental que inflama todas as lenhas: é por si próprias que as energias instintivas se invo­ cam, se disciplinam e se educam para criar uma imagem do cavalo o mais fiel possível. 4. Elas entram claramcnte em jogo nestes atrelados revela­ dores de um conteúdo espanto sarnento rico. É obvio que as crianças que os desenham se encontram familiarizadas com os trabalhos do campo. Todavia, também aqui sc ultrapassa o simples realismo para se atingir um quociente de vida inerente a todas as actividades do camponês. Ficamos sur­ preendidos com as particularidades de cada carro, adequado à natureza das colheitas em causa, mas mais ainda com a ligação correcta do tema a um centro de gravidade, que nos mostra o homem no seu posto! (Figs. 63. 65. 66. 72.) O próprio carro vazio, pronto a partir, assinala a responsabili­ dade dos criados que se afadigam para que tudo prossiga na devida ordem. Ultrapassamos aqui os resultados da observação bem dirigi­ da. Aliás, estará a criança que participa livremente na expedi­ ção do carro da colheita preocupada em observar? Sc a visão dos pormenores necessários sc lhe impõe é numa rapidez de relâmpago, uma vez que o pormenor vai mais fundo e se transfoima cm critério fundamentai da vida: trata-se de um simples motivo que se junta a tantos outros para traduzir a

380

extensão e a autenticidade de uma compreensão global que constitui também uma permeabilidade constante à experiên­ cia. A criança, quando inteiramente ela mesma, e inteligente. Há que operar uma completa reviravolta psicológica que o desenho, incessantemente ligado à expressão espontânea sob todas as suas formas, nos permitirá encetar e desenvolver sob o signo da tentativa experimental, operando, por assim dizer, em sectoics simultâneos e que ultrapassam em amplitude e intensidade o simples globalismo segundo o qual a criança apenas poderá ver o conjunto mim esquema aproximado, 0 processo da tentativa experimental revela-nos constantemente um poder construtivo sistematicamente condicionado por actos conseguidos, sucessivamcntc encadeados e subordinados a uma visão central que domina ao mesmo tempo o todo c a parte. Os atrelados desenhados e de que possuímos vários exemplos permitem-nos constatar a oportunidade desta visão unitária e concluir que a criança nota com muita nitidez as relações entre as partes e o todo. Trata-se aqui dc partes necessárias, integradas no funcionamento da tracção por atrelagem, tal como é concebido pelas especialistas. Precisamos de abandonar resolutamente as fórmulas psico­ lógicas preconcebidas para nos consciencializarmos finalmente desta coesão interna dos processos vitais expressos em acções livres e automaticamente encadeados rumo a um êxito pres­ sentido pela tensão que brota do mais profundo de cada ser. Tal independência e firmeza dc decisão justificam plenamente os métodos naturais. 5. Somos obrigados a considerar como um êxito os dese­ nhos 76 e 77, evocadores de uma preocupação meticulosa com a beleza da imagem. A procura do pormenor decorativo, minuciosamente levada até à sua subtileza extrema, compen­ sa-nos do prosaísmo do desenho objectivo. Para além da invenção c da segurança gráfica, opera-se uma transposição: o cavaleiro e o cavalo constituem uma unidade envolta no mesmo estrépito da cavalgada. Trata-se de inegáveis aquisições culturais, cuja inclusão numa escala de desenho representativa dos valores artísticos inventados pela criança se torna indis­ pensável. 381

6. Os desenhos do jovem Pierre (Fig. 78), praticante do desenho livre desde a mais tema idade, põem-nos perante os mesmos elementos culturais. Evocando episódios sensacionais e históricos relativos ao cavalo, imprime-lhes o cunho de um humor temperado de subtileza. 7. Todavia, o cavalo livre e de crina ao vento há-de evocar sempre na memória infantil o drama de Crina Branca. Nos desenhos examinados, o cavalo, liberto de qualquer entrave e de qualquer sinal de submissão, aparece frequentemente no cenário dos grandes espaços que o desafiam. Se insistimos na importância e no significado de tais cria­ ções, aparentemente excepcionais, não é com vista a estabele­ cer uma nova crítica dc Arte mas apenas a reencontrar, em toda a sua simplicidade, as primeiras bases da personalidade gráfica e sensível da criança: ela nasce com pequenas vitórias do traço, com percepções intimamente ligadas aos valores vitais, globalmente, silenciosamente, até um dia eclodir num autêntico talento artístico. Entre as nossas descobertas, contamos a evidência conferi­ da a esta força criadora que é simultaneamente um alargamen­ to do ser. um apelo à adesão dos outros, um sentido superior de vida c um grande amor à Arte. A totalidade destes documentos, reunida segundo uma or­ dem que se impôs como que por si própria, concretiza a crescente capacidade da criança para se apoderar e utilizar do símbolo do cavalo. Claro que a habilidade gráfica adquirida a pouco e pouco testemunha a óptirna qualidade da aprendiza­ gem do desenho proporcionada pelo processo da tentativa dirigida. Mas mais importantes e mais benéficas ainda são as vantagens psicológicas que presidem à experiência gráfica do cavalo. Adivinha-se, cm cada desenho, um elo afectivo entre a criança e o “seu” cavalo. Ela vive, cm sonhos, a aventura que lhe dá um sentimento de poder. Assistimos, segundo parece, a uma transposição simbólica das vias instintivas de uma educa­ ção natural Uma educação que .devemos despojar do conteú­ do de formação didáctica e de aquisição sistemática que um longo mal-entendido escolástico lhe conferiu. Sc pudéssemos fazer reviver a realidade evocada pela criança em tantos dese­ 382

nhos relativos ao cavalo, se nos fosse dado fazer viver a criança em companhia da sua montada, teríamos talvez possi­ bilidade de recriar as gerações de audaciosa e viril juventude de que Rabelais e Montaigne nos fazem sentir a nostalgia. É educando o cavalo que o cavaleiro se educa a si mesmo: é no jogo dos reflexos subtis, na sensibilidade dos movimentos de aproximação, na permuta de arrebatamentos dc simpatia ins­ tintiva e na harmonização das regras do domínio que se concretizam os fundamentos mais delicados de uma educação solidamente baseada nas leis da natureza. São todas estas realidades impossíveis de analisar que os pequenos desenhadores do cavalo vivem num plano simbólico. E. F.

CONCLUSÃO

No nosso ensino primário, centrado sobre o conhecimento rudimentar da leitura, da escrita e da aritmética, há certamen­ te muitos professores e muitos pais que ainda consideram supérfluas as técnicas culturais do desenho, da dança, do teatro e do canto. O tempo de escolaridade é curto, as turmas acham-se sobrecarregadas, os alunos vivem enervados e os exames exercem uma inegável pressão: não resta tempo para perder com fantasias que não são indispensáveis aos filhos do povo. A maior miséria de um educador consiste talvez em resig­ nar-se à pobreza e à infelicidade; cm não ver que, mesmo nos meios proletários mais desfavorecidos, persiste uma necessida­ de de alegria excepcional e necessária portadora de esperança e de redenção. Quando a criança pinta uma bela imagem do mundo, põe-lhe algo mais do que simples cores e linhas; quando improvisa uma dança, o coração está por detrás dos pés que deslizam rapidamente sobre o soalho; quando modula uma melodia ou inventa um poema, o seu sonho acha-se para além das palavras, em uníssono com o canto universal. Tais estados privilegiados de nada servem, aparentemente, no âmbito de uma existência sem horizontes, mas pelo menos ajudarão a conservar a quoia-parte de ilusão que sempre impede o indivíduo isolado de naufragar no oceano da vida Se, desde a infância, tiver sido habituado a procurar atingir uma certa exaltação do coração e do espírito, o homem, na sua maturidade, poderá sentir as maravilhas da vida e talvez isso baste para modificar o mundo. 385

O facto de termos acompanhado a criança como amigos e camaradas de trabalho durante tantos anos, ensinou-nos, tal­ vez melhor do que aos próprios pais, o que há a salvaguardar para o seu futuro. E antes de mais há que preservar-lhe essa alegria de existir, a principio inexplicável mas que progressiva­ mente vai encontrando no sonho e no trabalho pontos de apoio, autênticos alicerces da experiência mais bela, precisa­ mente na medida em que se torna transmissível aos outros. Eis-nos, com efeito, no limiar de uma nova civilização. Se ela merecer o entusiasmo do pequeno grupo de grandes cére­ bros do nosso planeta, em breve mergulhará a humanidade numa grande inquietação: o que será o futuro quando, sob os nossos olhos, uma ciência, sem alma já tenta desenraizar-nos de um passado que, no fim de contas, nos era querido por constituir p somatório da grande experiência humana? Subitamente parecem-nos necessários e mesmo obrigatórios todos esses sonhos que ao longo da nossa missão pedagógica amenizaram uma tarefa ingrata, fazendo-nos entrever um mundo prodigioso onde, independentemente das magras necessidades escolares, se desenvolvia uma realidade de dimensões insuspeitadas, sob a influência das sensibilidades e das imaginações infantis. Abria-se diante dc nós um universo fugidio e frágil, dotado dessa virtude inaudita que escapa aos cálculos dos sábios, mas que é acessível a todas as criaturas: a felicidade. Não precisando de circunstâncias excepcionais para nascer e desabrochar, é simplesmente a marca dos corações generosos, e quem melhor do que a infância è do que juventude podería possuí-la? Um dos nossos triunfos é, segundo cremos, o de termos tomado a felicidade durável em cada uma das nossas Escolas modernas. O de a vermos brilhar nos olhares, oferecer-se nos gestos comoventes das mãos habilidosas e adquirir forma definitiva na obra criada com amor. Tudo faremos para que cada sensibilidade infantil se torne criadora, para que sob a influência de uma espontaneidade educada e promovida exalte o dom da simpatia — a frágil barreira que protege o futuro. E é por isso que hoje, mais do que nunca, exaltamos esse poder criador da criança, que constitui a marca daquilo que de melhor e de mais generoso 386

existe no ser. E somos nós, educadores, que tranquilizaremos o sábio encerrado no seu inferno íntimo, oferecendo-lhe a possibilidade de reaprender o sentido da alegria e do esplen­ dor da vida. E. F.

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BIBLIOTECA DE CIÊNCIAS PEDAGÓGICAS

PUBLICADOS 1 — Educar e Instruir — I, Robert Dottrens 2 — Educar e Instruir — II, Robert Dottrens 3 — Educar e Instruir—III, Robert Dottrens 4 — Guia do Estudante de Ciências Pedagógicas, Paul Juif e Fernand Dovero 5 — O Ensino da Leitura — I 6 — O Ensino da Leitura — II 7— O Ensino da Física Escolar — I, John L. Lewis 8 —

O Ensino da Física Escolar — II, John L. Lewis

9 —

O Ensino da Física Escolar — III, John L. Lewis

10 —

Novo Manual da Unesco para o Ensino das Ciên­ cias — I

11 —

Novo Manual da Unesco para o Ensino das Ciên­ cias — II

12 — O Método Natural-—!, «A Aprendizagem da Línguas Celestin Freinet 13 — O Método Natural — II. «A Aprendizagem do Desenho» Celestin Freinet 14 — O Método Natural — III, «A Aprendizagem da Escrita» Celestin Freinet

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Título: 0 Método Natural — ll Autor: Celestin Freinet Editor: Editorial Estampa, Lda. Tiragem: 5200 ex. Acabou de imprimir em: 21 dc Setembro de 1977 Oficinas: Guide - Artes Gráficas, Lda. LISBOA — PORTUGAL