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Português Pages 399 Year 2021
Copyright © 2021 Eneida Maria de Souza
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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Souza, Eneida Maria de Narrativas impuras [livro eletrônico] / Eneida Maria de Souza. – Recife : Cepe, 2021. ePub
ISBN: 978-85-7858-874-8
1. Crítica literária 2. Ensaios brasileiros 3. Literatura História e crítica - Teoria, etc. 4. Literatura brasileira I. Título.
21-81636 CDD-801.95
Índices para catálogo sistemático:
1. Literatura : Ensaios e críticas 801.95 Maria Alice Ferreira - Bibliotecária - CRB-8/7964
Ensaios em pauta
O desafio em entregar aos leitores um volume de ensaios produzidos nos últimos vinte anos decorre da rapidez com que as ideias surgem e desaparecem no meio acadêmico, contaminada pela insurgência do novo e pelo apelo das redes sociais. Em meio à concorrência entre os inúmeros suportes encontrados, de divulgação imediata e de grande alcance, o ensaio impresso guarda ainda o desejo de não só se alojar nas estantes das bibliotecas, mas de recuperar o ritual da leitura silenciosa e da visão de conjunto de uma obra. Nesses termos, preserva-se a prática da lentidão na aquisição do conhecimento, com ênfase no respeito às tradições teóricas, aliadas às novas, sem que sejam cultivados radicalismos e exclusões interpretativas. Na escolha dos ensaios presentes neste livro, a intenção foi a de reunir o que de mais representativo poderia justificar minha trajetória acadêmica, construída de forma coerente, embora pautada pela diversidade de interesses e motivada pela curiosidade intelectual. A prática docente e a recorrente participação em eventos e convites para publicação permitem a abertura a outros campos de saber, razão pela qual torna-se impossível repetir as mesmas teclas ou conviver com fórmulas prontas e gastas. No entanto, conserva-se a mesma tecla referente à crítica biográfica, posição crítica presente já na publicação de dois livros de ensaios editados em 2002 e 2011 (Crítica cult: ensaios de crítica cultural e Janelas indiscretas: ensaios de crítica biográfica, ambos pela Editora UFMG e, recentemente, reeditados em suporte e-book.) Na abordagem de obras de literatura ou de outra ordem, como correspondência, teoria e crítica, prevalece o enfoque biográfico, na relação metafórica produzida entre criação e vida. Tratase de estudos de crítica endereçados ao público acadêmico, embora se estenda a outros interesses, com o objetivo de articular posições e conceitos entre si, no desejo de ampliar o intercâmbio entre áreas afins. O gênero ensaístico preenche os requisitos dessa categoria crítica, pelo aspecto experimental da linguagem, a liberdade em assumir o traço inacabado dos discursos os quais incluem a estreita relação entre ficção e teoria. Muitas são e foram as escolhas de ordem teórica e as preferências por escritorescríticos, imposição condizente com minha formação. Mário de Andrade, Silviano Santiago, Sylvia Molloy, Roland Barthes, J M Coetzee, Jacques
Derrida, Georges Didi-Huberman, Assis Horta, fotopintores do Ceará, entre vários outros autores, figuram nos ensaios como integrantes do corpus literário, artístico e teórico, sem que os limites discursivos estejam totalmente separados. A proposta de discussão contempla produções inseridas no modernismo brasileiro, ocasião de se rever a importância de alguns de seus representantes para o momento atual da crítica, assim como aqueles que se inscrevem no contemporâneo, com as devidas diferenças entre manifestações realizadas ao longo dos anos. O lugar de Mário de Andrade na cultura brasileira responde pela valorização da arte popular e pela diluição da fronteira entre formas eruditas e populares, justificada pela vocação etnográfica e pelo desejo em refletir sobre outras áreas, como a pintura, a música, entre os demais segmentos. A primeira parte do volume, “Modernismo centenário”, com a série de ensaios, intitulados “Mário de Andrade, o empalhador de passarinho”, “Um turista nem tão aprendiz”, “Conversa de compadres”, “A preguiça — mal de origem” e “Entre arte e ciência, o desafio”, visitam o imaginário marioandradino relativo às discussões sobre crítica literária, construção poética, viagens, estilo de vida e prática da apropriação e do plágio. A reflexão sobre a crítica cultural corresponde aos ensaios da segunda parte, “Margens culturais”, em que se discutem, seja o ritual de trabalho acompanhado da formação ideológica de um povo, como estampado em “Crítica cultural — um fio de fumo”, pela transmissão oral de obras consagradas, dirigida aos operários de fábricas de charutos em Cuba; seja no distinto tratamento da crítica em relação ao enfoque do tema da natureza e das cidades para a construção de novos paradigmas interpretativos da contemporaneidade (“Nas margens, a metrópole”, “Paisagens de areia”, “Terras em transe”, “Arquivos em movimento”). “Babel multiculturalista”, leitura comparativa do filme mexicano Babel, de Alejandro González Iñárritu, destaca forte apelo globalizante, pela dramatização dos conflitos entre diferentes culturas hegemônicas e periféricas pós-11 de setembro nos Estados Unidos. As recentes aproximações entre a crítica biográfica e o pensamento de DidiHuberman, divulgador das ideias de Aby Warburg, historiador de arte, proporcionaram a abertura para a revisão da historiografia literária e crítica, não só pela metodologia de trabalho aí demonstrada, como também pela retomada do conceito de sobrevivência das formas. O filósofo francês tem como princípio analítico a aproximação entre conceitos de variados teóricos, com o intuito de
articulá-los de modo producente e rentável. Nesse sentido, rompe-se o raciocínio binário de interpretação, ao proceder à composição anacrônica do tempo, pela possibilidade de estabelecer relações e afinidades entre autores e conceitos, pelo rompimento da ordem cronológica dos acontecimentos. Exemplos mais próximos desse procedimento são registrados nos artigos reunidos na terceira parte do livro, “Sobrevivências”, tais como “A modernidade residual do contemporâneo”, “Crítica e alta costura”, “Poéticas do inacabado”, “Autoficção e vida”, “Ficções impuras”, “Silviano Santiago, autor de Derrida”, “Machado sobrevive”. Os demais textos, “Fim de jogo — Beckett em Belô”, “O espectro de Dostoiévski”, “Assis Horta — fotógrafo de um Brasil moderno” e “Retratos pintados”, integram ainda a atividade crítica de natureza biográfica, com escritores/críticos como Silviano Santiago e J M Coetzee, cuja proposta tanto ficcional quanto ensaística pauta-se pela articulação irônica entre arte e vida. Assis Horta é responsável pela autoria de importante painel fotográfico de imagens dos habitantes de Diamantina de meados do século XX, entre operários e pessoas anônimas da sociedade. “Retratos pintados” refere-se à prática de colorização das fotos em preto e branco, ofício muito comum no Nordeste brasileiro, que resulta no trabalho de popularização da fotografia entre pessoas de nível social menos elevado. O arquivo pertence a um colecionador estrangeiro, residente no Ceará. Na quarta parte, “Reconfigurações narrativas”, tomo a liberdade de expor minha trajetória teórica e crítica, com o propósito de assumir a correspondência inevitável entre experiência pessoal e desempenho profissional. São reunidos ensaios que discorrem sobre questões que envolvem os rumos da disciplina Literatura Comparada (“Literatura Comparada, indisciplina”), em resposta às críticas dirigidas aos supostos desvios que, nos últimos tempos, tem sofrido a disciplina. A razão da controvérsia reside na concepção ainda moderna e préglobalizada que impera nos departamentos de Letras, impedindo o avanço da discussão em torno do estatuto da Literatura Comparada. Constam igualmente de depoimentos sobre professoras que marcaram minha formação: “50 anos de Fenomenologia da obra literária” e “Narrar é glosar — viver é narrar”. Na sequência, os textos “Autocrítica da crítica”, “Riscos de interpretação”, “Teorizar é metaforizar”, “Literatura é vida?” e “Janelas” procedem à revisão dos quarenta anos de convivência com posições teóricas que vão do estruturalismo ao pós-estruturalismos aos dias atuais. Por um trabalho que considero próximo ao desejo em pontuar lugares críticos e redefinições interpretativas, deixo para os leitores o convite à apreciação negativa ou positiva de uma experiência que não se impõe de forma individual, mas como resultado
de trocas entre pesquisadores de minha geração e das mais recentes. O volume consta, especialmente, de textos escritos como resultados de minha pesquisa financiada pelo CNPq, ao qual agradeço pela confiança em mim depositada. Sou ainda grata aos colegas Eliana Muzzi, Anderson Bastos Martins e Rômulo Monte Alto pelo trabalho de tradução de algumas citações presentes nos ensaios.
Mário de Andrade, o empalhador de passarinho
Em 1973, a formulação do conceito de escrita como prazer foi sistematizada por Roland Barthes, no livro O prazer do texto, o que provocou muita polêmica por parte da crítica literária da época. Ao considerar a literatura mediadora da dimensão hedonista entre escritor e leitor, em que o prazer atua como força criadora e catártica, Barthes reúne os princípios nietzschianos à psicanálise lacaniana, recuperando a relação entre trabalho literário, ócio e alegria. A posição pós-estruturalista do teórico recoloca o sujeito do desejo no discurso crítico e reinsere a figura do autor por meio do apelo hedonista em direção ao texto e ao leitor. Barthes escapa da objetividade exigida pelo método estruturalista, desconstruindo-o e assumindo, sem riscos, a subjetividade analítica. No Brasil, anos antes, Mário de Andrade já havia se apropriado da preguiça como valor e a transformado em metáfora da criação e em ganho cultural, ao se referir aos países periféricos, marcados por males de origem e pela perda natural dos bens. O culto da preguiça se estende, portanto, ao ato de meditação do intelecto, modo de filosofar e de exercitar a prática do saber paciente, calmo e desprovido do caráter utilitário de outro tipo de trabalho. O gesto criativo é ainda definido pelo escritor como orgasmo e não como parto, como assim entendiam Rilke e Nietzsche, por simbolizar o estado de gozo e prazer que arrebata o criador, o qual, mais tarde, se incumbe de retomar o texto e burilar o que havia chegado de forma intempestiva. Em várias das cartas endereçadas aos amigos, Mário de Andrade expõe sua teoria sobre a criação poética, associando-a ao orgasmo e ao prazer. Em correspondência para Fernando Sabino, assim se expressa:
Não: a arte não é um sofrimento, exatamente, nem é só o sofrimento que a pode legitimamente proporcionar. O momento da criação é um prazer sublime, e estou completamente em desacordo com os que o consideram um parto. Nem posso compreender mesmo, essa assimilação da criação artística com o parto. Deriva certamente da semelhança objetiva, entre o filho e a obra-de-arte. O momento de criação é gostosíssimo, verdadeiramente aquela sublimidade de integração e de dadivosidade do ser, em que a gente fica na ejaculação sexual.¹
Nos 76 anos de morte de Mário, qual seria o maior legado de seu pensamento para a reflexão dos caminhos da crítica literária na atualidade? Entre as múltiplas contribuições verificadas, ressalte-se o culto do prazer tanto no nível da criação quanto da crítica, posição assumida pelo escritor na defesa da conjunção entre arte e vida, ficção e teoria, dicção ensaística e criação. Se Roland Barthes incorporava o prazer do texto à análise literária, motivado pelo rompimento com princípios objetivos e racionalistas da crítica, Mário reunia, sem muito conflito, a técnica construtiva com o aspecto instintivo e prazeroso da arte. Como resultado dessa junção entre os princípios até então considerados separados da crítica acadêmica a partir da década de 1960, valores novos se incorporaram à feição do exercício crítico na sua condição de ensaio e de criação. Torna-se imperativo afastar conceitos atribuídos à crítica impressionista exercida pelos profissionais da imprensa ou pelos escritores não vinculados à academia. Com algumas exceções, o termo poderá ser retomado na sua forma atualizada, sem a pecha de achismos, humanismos ou de biografismos insustentáveis, ao ser considerado na vertente ensaística de alguns representantes do gênero nas várias áreas do saber. Mário de Andrade, ao lado de Sérgio Buarque de Holanda, Gilberto Freyre, entre outros, poderá ser interpretado como contemporâneo, pela permanência de seu legado para a situação da crítica na atualidade. A disputa acirrada entre crítica jornalística — representada pela conhecida crítica de rodapé — e a acadêmica, embora persista, em nível moderado até hoje, foi vivenciada pelo escritor nos últimos anos de vida. Embora tenha praticado o exercício crítico em diversas áreas, como as artes plásticas, a música, a literatura e a cultura popular, comportava-se mais como criador do que como crítico. O autodidatismo e a peculiar relação com o ensaísmo como modo despojado de escrita, longe de inseri-lo nos moldes do impressionismo, o recupera por se constituir enquanto prática analítica contemporânea. Antonio Candido posicionou-se defensor da concepção subjetiva da crítica, pela eficácia que as “impressões pessoais” e a intuição exerceram frente à suposta objetividade desejada pela academia e pela corrente positivista. Na posição ambígua entre crítico de jornal e acadêmico, não desprezava a relevância da escrita impressionista, por muitos considerada sinal de leviandade e preguiça. Suas palavras, em texto de 1958, intitulado “Crítica impressionista” e reeditado em 2002 como “Um impressionismo válido”, Candido afirma:
Para escândalo de muitos, digamos que a crítica nutrida do ponto de vista pessoal de um leitor inteligente — o malfadado ‘impressionismo’, — é a crítica por excelência e pode ser considerada, como queria um de seus mais altos e repudiados mestres, aventura do espírito entre os livros. Se for eficaz, estará assegurada a ligação entre a obra e o leitor, a literatura e a vida quotidiana, — sem prejuízo do trabalho de investigação erudita, análise estrutural, filiações genéticas, interpretação simbólica, atualmente preferidas pelo investigador da literatura, prestes a envergar de novo a toga do retórico.²
Candido pondera sobre a eficácia do ensaio para o estabelecimento da relação entre obra e leitor, literatura e vida, posição que seria endossada por Mário no exercício da função crítica. Essa aventura biográfica inserida na prática ensaística propiciou a formação de intérpretes da vida literária da época, pela conjunção entre literatura e vivência, arte e cotidiano, pela importância que o contexto exercia na concepção da própria literatura. Esta seria, no meu entender, uma das primeiras e instigantes heranças do papel de Mário para se compreender nuances da atual situação do discurso crítico. Sem se prender a métodos rígidos de interpretação literária, a crítica biográfica nutre-se hoje do ensaísmo com toque marioandradino, embora apresente perfil mais sistematizado e divergências em determinados pontos. Mas não resta dúvida de que a crítica moderna brasileira não poderia ter alcançado a posição atual se prescindisse do saber e erudição legados pelo escritor paulista, ao lado da sensibilidade e do prazer suscitados pelo convívio com o objeto estético e com a cultura popular. A participação de Mário como crítico literário e cultural compreende vários meios de divulgação de seu pensamento, como a correspondência, artigos na imprensa, prefácios, conferências e diários. A função de escritor se acumula nessas inúmeras atividades, uma vez que não se furtava a emitir opiniões sobre obras, a defender princípios da poética modernista de forma sistemática e a discutir procedimentos teóricos os quais continuam na ordem do dia, como os de plágio — consciente ou não — da apropriação de textos alheios, de criação literária, autoria, entre outros. Pela abertura de perspectiva da crítica literária nas últimas décadas, pela ampliação do campo de atuação para a literatura comparada e a cultural, a obra de Mário tem despertado novas leituras e suscitado desafios. Na condição de escritor-crítico, além de intelectual atuante na vida pública, o escritor expressava não só opiniões relativas à sua produção, refletindo sobre ela e questionando-a, como exercitava o diálogo com várias
gerações de escritores e poetas, emitindo juízos estéticos e aconselhando-os sobre diversos assuntos. Como incentivador da criação do Patrimônio Cultural no país, pôde se empenhar na sistematização das leis e métodos relativos à preservação dos bens culturais. Sua influência nessa área justifica a permanência de seu legado para a compreensão da formação do espírito moderno durante a metade do século XX no Brasil. A atividade de Mário como crítico, impelido por necessidades financeiras e pela atitude sempre combativa e empenhada, foi de grande importância para a divulgação, da literatura e da cultura brasileiras em jornais e revistas literárias. Ensaios resultantes de intensa reflexão compõem o arquivo do autor, destacandose, entre os livros publicados, Aspectos da literatura brasileira, ensaios de 1931 a 1942, O empalhador de passarinho, de 1946, Vida literária, reunião dos artigos publicados na Coluna “Vida Literária” no Diário de Notícias, entre 1939 e 1940, e editado por Sonia Sachs, em 1993. Importante observar que essa atividade, voltada para a crítica literária, caracteriza-se pelo emprego do gênero ensaístico e reforça a opção pela “crítica como obra de arte”, na defesa da função criativa, da técnica e da escrita artesanal. Nesses termos, é evidente o valor do pensamento de Mário para a crítica contemporânea, mais afeita à prática ensaística e liberta da rigidez do método e da predominância de um aparato conceitual — exemplo da produção acadêmica em vigor por volta das décadas de 1960 no Brasil. Sem endossar a afirmativa de ser o ensaísmo responsável pela ausência de método, por presumivelmente funcionar como incentivo à improvisação e à pura intuição, focalizo o período final dos anos 1930 até a morte de Mário, em 1945. Pretendo verificar o lugar ocupado por Mário diante da crítica, assim como os desdobramentos daí advindos. João Luiz Lafetá, em estudo pioneiro sobre a crítica no modernismo, escolhe Mário como um dos mais significativos representantes da corrente crítica pautada pelo interesse na abordagem estética e ideológica, esta última revigorada nos anos de 1930. Segundo ele, esta fase em que se posiciona como crítico inserido nos problemas formais da literatura — a ponto de ter provavelmente tomado conhecimento do New Criticism americano —, atesta a defesa do escritor pela especificidade da literatura e a concepção da escrita como prazer. O reconhecimento de Barthes como contemporâneo de Mário é evocado a partir de seu primeiro livro, O grau zero da escritura, texto anterior ao Prazer do texto:
Ao final da década de 30, quando Mário exerceu a crítica literária no Diário de Notícias, sua grande preocupação era o artesanato, a técnica da escritura. Essa é a tônica, facilmente perceptível, dos artigos recolhidos em O empalhador de passarinho. […]³ A primeira conclusão a tirar das críticas desse período é que Mário não se deixou dobrar pela pressão ideológica dos anos trinta. Consciente da linguagem literária, procurou às vezes uma fórmula de compromisso entre a denúncia e a literatura, tentando engajar-se na luta. […] Esse insatisfeito com a linguagem mostra bem uma das mais importantes direções literárias de nosso tempo, aquilo que Barthes chamou de “uma paixão da escritura”, sob a qual permanece presente o rompimento da consciência burguesa.⁴
No texto de abertura da Coluna “Vida Literária” no Diário de Notícias do Rio de Janeiro, “Começo de crítica”, Mário expõe o balanço de sua trajetória intelectual, e confessa tratar-se de uma tarefa mais sistematizada e menos diletante. Na qualidade de resenhista e apreciador de obras recém-publicadas, além de discorrer sobre o momento literário, reitera a concepção de crítica como obra de arte, posicionando-se a favor do gesto criativo e da inserção do sujeito no discurso crítico:
A crítica é uma obra-de-arte, gente. A crítica é uma invenção sobre um determinado fenômeno artístico, da mesma forma que a obra-de-arte é uma invenção sobre um determinado fenômeno natural. Tudo está em revelar o elemento que serve de base à criação, numa nova síntese puramente irreal, que o liberte das contingências e o valorize numa identidade mais perfeita. “Mais” perfeita não quer dizer a perfeita, a única, a verdadeira, porém a mais intelectualmente fecunda, substancial e contemporânea. E não estará nisto justamente a mais admirável finalidade da crítica? Ela não deverá ser nem exclusivamente estética nem ostensivamente pragmática, mas exatamente aquela verdade transitória, aquela pesquisa das identidades “mais” perfeitas, que ultrapassando as obras busque revelar a cultura de uma fase e lhe desenhe a imagem. Ah, os malabarismos políticos da nossa atual literatura! … A timidez de uns vagos socialistizantes, os berros verdes e estuporados de uns fachistizantes mais audazes apenas, a fragilidade moral de quase todos, dir-se-ia que culturalmente estamos na fase do louva-deus.⁵
Em defesa da verdade transitória entre as finalidades da crítica, reforça sua natureza criativa, graças ao poder inventivo exigido pela combinação do artista e do intérprete. Na intenção de apontar semelhanças entre os discursos, subentende-se a associação entre arte e vida, pelo empenho em transformar o ato literário/crítico em doação vital. O aspecto mimético da crítica diante da arte explica-se pela transfiguração do elemento contingente próprio aos dois registros. Guardadas as devidas proporções, a proximidade entre os discursos ressalta sua função estética e pragmática, em razão da “verdade provisória” com a qual se justifica a referida associação. Nesses termos, o ensaísta denuncia a condição da literatura de seu tempo, pautada por um tipo de cultura tímida e frágil, comparada à ineficácia do louva-deus e personificada pelos “fachistizantes mais audazes” e os “vagos socialistizantes”. A necessidade de se contrapor a essa situação da cultura significava assumir a responsabilidade política e pragmática da crítica — “a arte deve servir” — em tempos de repressão e ditadura. Em carta de 22 de maio de 1943 a Álvaro Lins, Mário retoma a afirmação de ser a crítica uma obra de arte, quando analisa o livro do crítico, Jornal de crítica. No ensaio, o escritor reconhece a qualidade da escrita e a clareza de Lins, mas o acusa de endossar estilo “um bocado morno”. A pergunta que lhe dirige, “mas eu imagino que pra V. a crítica não é uma obra-de-arte, é?”, se contrapõe à entrega amorosa e combativa da dicção marioandradina. Em continuidade às observações sobre o livro de Álvaro Lins, Mário expõe outro conceito referente à tarefa crítica, ao associá-la ao ato de amor, ao charitas, à manifestação de vida e à função utilitária da arte. Essa associação já havia sido desenvolvida em carta a Oneyda de Alvarenga, na qual reflete sobre a identificação amorosa e religiosa vivenciada pelo sujeito, nas suas relações de amizade e de exercício profissional. Charitas, ato de doação e de entrega do sujeito sem necessidade de troca, permite entender o gesto analítico enquanto função dadivosa, dotada de atitude imparcial e livre para combater e julgar. A sinceridade alardeada na defesa dessa posição consiste no testemunho de vida e não de sobrevida, como assim reflete Mário em carta a Álvaro Lins:
Pra mim a crítica é arte. Pra mim a crítica não tem que exercer a imparcialidade e nem mesmo a justiça, mas a liberdade de julgar que não é a mesma coisa. Pra
mim a crítica é ato de amor, de Charitas, no total sentido. Pra mim “arte é um elemento de vida e não de sobrevivência”, como digo no Baile das 4 artes que você receberá por estes dias. Pra mim a Beleza não é “a finalidade mesma da arte, mas uma consequência”. Pra mim “arte tem de servir”.
O ato de amor à vida e a entrega religiosa em tudo que faz engloba a possibilidade de aglutinar crítica e vida, prática existencial como desdobramento e motivação do gesto artístico. Resta acrescentar os critérios a partir dos quais a obra de arte seria considerada como tal pelo autor, de que natureza se trata e como remetê-la à experiência: desprovida de aspectos moralistas; inserida nos temas do cotidiano; liberta da retórica grandiloquente do estilo; sujeita à revolução constante da linguagem, pela conjunção entre técnica e inspiração; contra a oposição entre arte erudita e popular, pela ausência de hierarquias e preconceitos de ordem depreciativa. O labor analítico deveria se conformar aos ideais estéticos do movimento modernista, em comum acordo com o aspecto transitório, combativo e comum da arte. A abrangência dessas considerações sobre o papel de Mário como crítico vai ao encontro de uma das acepções da crítica biográfica contemporânea, pautada pela relação estreita entre escrita teórica e ficcional, e pelo embaralhamento de registros e de gêneros discursivos. Se arte é vida e vice-versa, postulação ainda restrita à associação naturalista e horizontal do teórico e do escritor, torna-se evidente reconhecer o processo de ruptura realizado na transfiguração da experiência pela criação. O arrebatamento vital de Mário caberia nas postulações de Georges Bataille, que desenvolve, no texto “A noção de despesa”, o que considera como dispêndio improdutivo, ligado ao desperdício e às manifestações que contêm um fim em si mesmo, como o luxo, as guerras, os cultos e as artes. Distinguem-se estas das manifestações que se prestam a reproduzir e a conservar a vida, a acumular bens e a se guiar pela necessidade e não pelo prazer.⁷ A atitude poética e vital presente na obra de Mário nos vários registros de escrita possibilita a compreensão do desdobramento do seu pensamento em muitos representantes da crítica contemporânea. Silviano Santiago, como crítico e escritor, no decorrer de sua vasta obra, presta tributo ao legado marioandradino referente à conjunção entre arte e experiência. Na apresentação do volume da
correspondência de Mário e Drummond, destaca a exposição vigorosa do missivista contumaz, incapaz de se conter ou recalcar seu extremo entusiasmo pela vida. Esse traço de sua personalidade seria motivado pelo excesso manifestado tanto no âmbito artístico/crítico quanto vital:
[Mário] não fala por alusões, símbolos ou metáforas. É direto e certeiro. […] Mário tem um único estilo: na carta excessiva, ele se automodela pelo excesso. Tudo que nele sobra, falta ao jovem mineiro. […] Comunica-se com o interlocutor pelo desperdício do que lhe sobra.⁸
A condensação entre os estilos de vida e de arte sob o signo do dispêndio é tributária da leitura de Silviano pela mediação de Mário e de Bataille — e de Nietzsche — de forma a romper e admitir o diálogo com o escritor modernista. Nessa conversa, o escritor mineiro, paradoxalmente, rende tributo pela diferença, ao mesmo tempo que se coloca como seu leitor fiel. Se para Mário “viver é gastar a vida” e não a conservar, sua obra e, consequentemente, a atuação como crítico responde pela “vida como obra de arte” ou pela estilização da existência, como teorizou de modo singular Michel Foucault nos últimos escritos. A retórica de Mário utilizada ao longo de sua trajetória literária e intelectual resumiria a associação entre escrita e experiência e a aceitação de ser ela provisória como a arte, não manifestando o escritor preocupação com a permanência e a eternidade. A importância da lição de Mário para a poética de Silviano se traduz, entre outras ressonâncias, pela concepção hedonista da arte, fruto da alegria e da dor, aliada à teorização de Rilke e Nietzsche sobre a criação literária. O verso andradino “A própria dor é uma felicidade” funciona como mote para a invenção de uma poética e a conformação de sua escrita. Em várias passagens de sua produção críticoliterária, encontra-se estampado o sentimento paradoxal de ganho e perda, da recusa em defender o endosso da poética pautada pelo sofrimento como resposta unilateral para a literatura. A ampliação dessa poética baseia-se na experiência pessoal e na superação de interpretações que poderiam tratar da herança de Mário de modo passivo e alheio às suas limitações históricas. Uma das atitudes críticas a ser valorizada neste ensaio sobre o legado de Mário para a crítica é a noção de sobrevivência de sua obra à luz de interpretações as quais, no lugar de
acusar os limites temporais na defesa das ideias, se comprometem a apontar diferenças e a reconhecer as ressonâncias entre os conceitos. A superação dos limites da atividade crítica andradina iria se tornar mais atenuada por ocasião da pesquisa sobre Padre Jesuíno de Monte Carmelo, que resultou num ensaio biográfico/autobiográfico, publicado postumamente como encomenda do Serviço do Patrimônio. É oportuno remeter às questões levantadas hoje pela crítica como politicamente corretas, entre as quais o combate ao racismo e à homossexualidade, não abertamente assumidas pelo escritor. O debate não é recente, tendo sido reativado pela abertura da carta enviada por Mário a Manuel Bandeira por ocasião da homenagem ao autor na Flip, provocando opiniões contrárias, equívocos e reavaliações ao estudo de sua obra. Retomando a acusação de Mário ao “estilo morno” imputado a Álvaro Lins, ao se afastar da concepção da crítica como obra de arte, tal acusação poderia ser dirigida ao modernista e considerada como lacuna ao seu legado crítico. Não resta dúvida de que o recalque e o esquecimento compõem seu perfil, atitude por meio da qual seria possível entender as limitações temporais impostas ao discurso do crítico/literário de qualquer escritor. Exigir coerência no comportamento de intelectual e homem público funciona como uma faca de dois gumes. Em sentido contrário, aceitar as contradições, elaborar os vazios e recalques talvez possam conduzir o debate para resultados destituídos de posições radicais. Em artigo esclarecedor, José Miguel Wisnik pondera sobre a posição do escritor na exposição de uma subjetividade dilacerada e inclinada, por circunstâncias temporais, a disfarces e artifícios:
Pode-se dizer que Mário de Andrade abraçou os extremos polares da intimidade e do compromisso público. Sua poesia é a ferida exposta de uma subjetividade dilacerada, em que o desejo sexual torturante se exibe seja com ostentação, seja com disfarce, sempre recuando a revelação de seu enigma a um plano inapreensível, onde permanece como tal. As máscaras do cabotinismo, inerentes à constituição imaginária do sujeito, com seus demônios e vaidades, são também objeto de introspecção e análise, como se pode ver no artigo “Do cabotinismo”, contido em O empalhador de passarinho. Por outro lado, assumiu um compromisso público com o Brasil, a ponto de confundir seu destino pessoal com o do país, numa época em que essa ficção intelectual, sustentada pela ambição totalizante do campo literário, tinha poder de convencimento. É como se ele fosse guiado intimamente pelo sentimento de ser o portador do segredo
mais íntimo, e por isso mesmo do destino mais público.¹
Nesse jogo sutil e traiçoeiro entre subjetividades recalcadas e o compromisso com a nação, o ensaísta comportava-se de modo a amenizar as contradições e a controlar desejos recônditos. No ensaio sobre Padre Jesuíno, é evidente a transposição de sua condição de sujeito mulato para a avaliação da obra, condição que se insinua na atração que provoca a análise do perfil de Jesuíno e de sua produção artística. Como biógrafo, Mário insere-se na escrita, ao mesmo tempo que assume os excessos e a valorização do aspecto literário do texto e da introdução de detalhes expressivos da arte de Padre Jesuíno referentes à fixação, nas figuras retratadas, de traços mulatos. A construção ficcional da biografia coincide com as atuais experimentações e recriações literárias dos representantes da crítica biográfica, alheios aos moldes tradicionais empregados pelos biógrafos de plantão. O ensaio biográfico elaborado por Mário corresponde à combinação do lastro impressionista e a interpretação documental, posição crítica centrada no diálogo entre fato e ficção, método e criação. O escritor aparenta, contudo, desconfiança quanto à empreitada biográfica, ao assumir, em carta a Rodrigo Mello Franco de Andrade, a desconstrução dos padrões comuns da biografia, contrapondo-a à licenciosidade literária. Romper com a precisão “científica” do estudo biográfico e admitir licença poética na escrita comprovam a escolha do gênero ensaístico, praticado por grande parcela de pesquisadores dedicados à opção por uma proposta contemporânea de escrita de biografias. A crítica se desvencilha da dicção mais acadêmica, ao se expressar por meio do ensaio autobiográfico, visto como exercício de proximidade/afastamento com o objeto de análise.
A parte da biografia é que me atenaza, preciso reler, modificar. É preciso. Tive, com a fuga do livro aí, o que quer dizer que embora ainda não publicada, a obra principiou vivendo por si, sem minha autorização nem condescendência, tive a noção exata de que, se o tom ficção está certo pro caso, me deixei levar às vezes pra uma, como dizer, pra uma liberdosidade, uma licenciosidade literária, uma imodéstia no tratamento do tom. Sobretudo naquele refrão de Jesuíno tomar consciência de seu mulatismo, olhando na frente a mão mulata dele, pintando, tocando nos órgãos. É ter feito disso um refrão que tornou licenciosa a análise
psicológica. Eu só podia fazer disso um refrão se tivesse apoio bibliográfico.¹¹
A transfiguração do ensaísta justifica-se pelo grau de ficcionalização de Padre Jesuíno em sua arte, assim como da produção do autorretrato estampado nas imagens dos santos barrocos. A “consciência de seu mulatismo” inscreve-se no gesto da mão mulata que pinta, repetido no gesto de Mário ao manusear a escrita. Elisa Angotti Kossovitch, em Mário de Andrade, plural, reitera a metáfora da mão parda de Padre Jesuíno, por extensão “metáfora alegorizante” da arte mulata, elaborada pelo escritor de forma surpreendente como fruto de um olhar distinto e singular.¹² A convicção de ser a crítica obra de arte encontra-se estampada nesse ensaio, quando se conjugam os procedimentos relativos à prática subjetiva e ao artifício. A ficcionalização biográfica instaura a despersonalização do autor, considerando-se que a vida passa a ser inscrita como arte. A interpretação de Mário no ensaio sobre o Padre Jesuíno confirma essa vocação: “Eu sei muito bem que a Vida, do padre Jesuíno do Monte Carmelo, foi concebida quase como um ‘conto’ biográfico. Interpretei biograficamente”¹³. A crítica marioandradina como obra de arte circunscreve-se, portanto, no mesmo diapasão da arte como artifício e da vida como conto biográfico. Interpretar biograficamente arte/vida significa levar em conta os meios ficcionais como construtores da existência e as ações vitais como produto de transfiguração da arte. O escritor tratou de inventar uma vida e de fabricar seu próprio papel, com os riscos que toda ficção apresenta, qual seja, a de tornar-se também infiel ao modelo, ao romper semelhanças e trapacear verdades. A sinceridade como princípio de verdade estética e de julgamento crítico nada mais é do que artifício, uma vez que se torna quase impossível penetrar no âmago dos desejos de outrem.
Em vez: por família, por educação e também, não sei si hereditariamente, por instinto, por amor ao Bem, eu me falsifiquei. Desde o princípio. Sou nobre, sou enérgico, sou isto, sou aquilo. Mas sei que nada é conquistado. Não é fruto de uma vitória completa. Nada é de dentro para fora. Tudo é apenas casca, casquinha, epiderme. Tudo é uma hipocrisia cruel.¹⁴
Mário se autocritica O perfil da atuação crítica de Mário não se define de modo linear nem sem contradições, questionamentos e mea-culpa. Ao lado da aceitação do autodidatismo e da militância a favor da concepção da crítica como obra de arte, ele se manifesta, em várias ocasiões, notadamente nos últimos anos de vida, de forma um pouco distinta da assumida anteriormente. Na correspondência, nos artigos para jornal ou nas conferências, o autodidata sentia-se motivado pelas mudanças operadas na crítica acadêmica que se anunciava nas recém-fundadas Faculdades de Ciências Humanas. A eterna discussão entre intuição e razão incita a necessidade de acompanhar os rumos de um pensamento originado no meio de intelectuais de outra geração. Exemplo significativo desse momento verifica-se na preocupação pela sistematização dos saberes do discurso acadêmico é o ensaio “Elegia de abril”, de 1941, encomendado ao escritor pelos jovens fundadores da revista Clima. Destacava-se, entre eles, o então promissor crítico literário Antonio Candido. Atraído pela “racionalidade analítica”, pelo avanço técnico e pela modernização, questiona o sistema cultural brasileiro, dominado até então pela prática do improviso e pelo valor conferido à inteligência e ao brilho pessoal. A inovação se fazia sentir pelo exercício do conhecimento lento e amadurecido, trazido pelos professores europeus em missão “civilizatória” nos trópicos. A reprodução de um trecho do referido ensaio é esclarecedora para se captar o entusiasmo do escritor pela qualidade acadêmica das novas pesquisas produzidas nas universidades:
É certo que sob o ponto de vista cultural progredimos bastante. Se em algumas escolas tradicionais há muito atraso, junto aos núcleos de certas faculdades novas de filosofia, ciências e letras, de medicina, de economia e política, já vão se formando gerações mais técnicas e bem mais humanísticas. […] Esta melhoria sensível da inteligência técnica se manifesta principalmente nas escolas que tiveram o bom senso de buscar professores estrangeiros, ou mesmo brasileiros educados noutras terras, os quais trouxeram de seus costumes culturais e progresso pedagógico uma mentalidade mais sadia que desistiu do brilho e da adivinhação.¹⁵
A vertente iluminista de seu pensamento se chocaria com a consideração de ser a crítica obra de arte, da mesma forma que reforça o teor impressionista de seus ensaios, baseados na improvisação e no brilho. No entanto, a valiosa herança que lega para a cultura brasileira não poderá, de modo algum, se apegar a esse lado avesso ao saber macunaímico, desconstrutor de empréstimos e de certezas.¹ Sem negar uma ou outra vertente da crítica, não resta dúvida de que Mário se encontrava nessa encruzilhada, a ponto de imputar a Álvaro Lins a pecha de impressionista, por emitir opiniões que careciam de justificativas convincentes. Na resenha do livro História literária de Eça de Queiroz, de 1940, ele assim se expressa:
Mas si os problemas são assim tratados em profundeza e de maneira nada impressionista, o estudo, em si, permanece o seu tanto impressionista. Talvez dessa concepção pouco “universitária”, pouco sistemática de seu livro, o Sr. Álvaro Lins deixasse nele meio obscuros certos assuntos tratados.¹⁷
A concepção pouco “universitária” e sistemática do livro de Lins reitera a inclinação do modernista pela consciência técnica, na qual a intuição cederia lugar para o sistema cognitivo e racional das pesquisas. O embate se atualiza pelo empenho de Mário em criar um diálogo constante com seu tempo, colocando-se, muitas vezes, como responsável pelos múltiplos males da cultura. Sua participação no Departamento de Cultura de São Paulo e no Ministério da Educação no Rio serviu ainda para aprimorar a índole de empreendedor cultural, importante para o projeto de construção da memória cultural brasileira. Contudo, a utilização da técnica corre risco de se opor ao exercício da intuição e do experimentalismo, reiterando-se o jogo binário e opositivo entre dois comportamentos que não se excluem. As limitações do momento o impulsionavam a se sentir inseguro e a justificar a opção pela biografia com traços literários do último trabalho realizado para o Patrimônio — Padre Jesuíno de Monte Carmelo. O texto traduzia exatamente esse impasse entre a biografia, o estudo dito científico e a sedução do crítico pela escrita liberta de preocupação metodológica, quando exercita sua dicção enquanto criador e artista. A defesa da crítica impressionista por Antonio Candido — referida no início deste ensaio — recupera e valoriza, contudo, o papel de Mário no quadro da crítica brasileira da época. O argumento de Davi Arrigucci Júnior, citado por Ricardo Gaiotto de
Moraes, autor de tese sobre Mário de Andrade e Sérgio Buarque de Holanda, amplia a afirmação de Candido, ao considerar a vocação acadêmica do escritor, em justificativa que rompe com a oposição entre impressionismo e academicismo:
O impressionismo crítico, marcado sobretudo pelo tom de conversa dos textos, é acompanhado por discussões estéticas aprofundadas e acadêmicas. Davi Arrigucci Júnior, em estudo sobre a imaginação crítica de Antonio Candido, afirma sobre o caráter acadêmico da crítica andradiana: “entre os modernistas havia homens como Mário, que já era decerto um modelo acabado de scholar, pôde dar lições de metodologia e rigor para a pesquisa universitária mais exigente”.¹⁸
Nessa linha de raciocínio, é notório afirmar que o legado da crítica ensaística de Mário recaiu notadamente no quadro de professores de humanidades da USP, que se tornaram defensores do papel social e da força das luzes, ideais preconizados pelo último intelectual. Considere-se ainda o empenho crítico da intelectualidade paulista em preservar a herança modernista, pelo apelo à reflexão sobre a cultura brasileira e o projeto de revitalização do material arquivístico como legado importante para a continuidade do pensamento marioandradino. O olhar desconfiado e ao mesmo tempo confiante frente às ideias estrangeiras atua como alerta sobre a constituição de saberes mais independentes. A traição da memória, solução encontrada por Mário para responder aos empréstimos estrangeiros e à importação de modelos, contribuiu de forma positiva/negativa para o aprimoramento de sua herança. O grande esforço do escritor na produção de pontes entre a atuação literária/crítica e as invenções processadas no século XX e XXI não poderá deixar de lado os atuais rumos da crítica comparada e cultural.
Intertextual avant la lettre? O vocabulário crítico brasileiro do século passado se concentrou, entre outras modalidades, nas relações intertextuais não só entre textos de autores nacionais
como entre estes e os estrangeiros. As pesquisas em literatura comparada ganharam relevo com a associação entre experiências de autores brasileiros, como Mário de Andrade, e a sistematização de teorias aprimoradas pelas academias nativas e internacionais. Nesse sentido, cabe lembrar o diálogo bem sucedido entre culturas, as coincidências na formulação de teorias e as realizações artísticas ou teóricas de muitos de nossos autores. Sem privilegiar esse ou aquele procedimento artístico ou teórico, a condição de anterioridade do pensamento em relação aos demais indica ser o conceito de influência sujeito a revisões e questionamentos. Procedimentos analíticos conhecidos como intertexto, entrelugar, interdisciplinaridade, autoria, plágio, paródia e pastiche constituem ferramentas indispensáveis para a invenção de protocolos interpretativos e fornecem respostas à herança colonialista atribuída à noção de influência. Em resposta às velhas perguntas “quem falou primeiro?” ou “quais os lugares originais de enunciação das ideias?” descarta-se a prioridade pela ordem cronológica da produção de saberes — hierarquizante e exclusiva — e instaurase o princípio da simultaneidade como fórmula eficaz para a compreensão do diálogo anacrônico entre conceitos. No início deste ensaio, a referência à teoria barthesiana do prazer do texto confluía para as formulações de Mário sobre arte, prazer e dor, sem a preocupação em determinar a anterioridade do pensador brasileiro em relação ao francês. Se a sistematização coube ao teórico, não haveria razão também de privilegiá-la em relação à do escritor. O cruzamento de ideias afins, no lugar de criar hierarquias e valorizações etnocêntricas, acrescenta ao repertório crítico a possibilidade de apontar semelhanças e diferenças de ordem contextual e histórica. Semelhante atitude pode ser verificada na criação de Mário da rapsódia Macunaíma, o herói sem nenhum caráter, de 1928, escrita composta pela apropriação e paródia de diversos textos do imaginário mítico, folclórico, literário e cultural latino-americano e europeu. Ao responder ao folclorista Raimundo de Moraes sobre a acusação de plágio, Mário utiliza-se de argumento condizente com teorizações que estavam sendo efetuadas na mesma época, com os Formalistas Russos e Mikhail Bakhtin, embora tais reflexões tenham sido divulgadas pela crítica francesa nos anos 1960 (Tzvetan Todorov, Julia Kristeva, Roland Barthes, Gérard Genette, entre outros). Os conceitos de interdiscursividade e intertextualidade não haviam sido ainda introduzidos na linguagem acadêmica e Mário já apresentava o argumento em defesa do comércio livre dos signos e do trânsito de vozes circulando sem autoridade nem leis específicas. Na tentativa de reunir e ao mesmo tempo desconstruir a hegemonia do termo plágio sobre as manifestações artísticas, o mais plausível
em termos de interpretação comparativa seria repensar o amálgama entre intuição, improvisação e técnica, ou em outras palavras, a crítica impressionista e a acadêmica. O avanço dos estudos de literatura comparada, notadamente nos cursos de pósgraduação no país, exigiu dos acadêmicos, entre outras abordagens, a sistematização de teorias e o aprofundamento das relações transnacionais. Se o modernismo se empenhou em construir e consolidar a cultura brasileira como força capaz de enfrentar a hegemonia cultural europeia, o esforço das pesquisas em literatura comparada foi e está sendo o de ampliar o intercâmbio entre nações e o aprimoramento de nossas próprias condições em exportar nomes e ideias próprias. Mário de Andrade representa, entre outros autores do modernismo, como Oswald de Andrade, a saída para a reestruturação dos conceitos de universal, regional, popular, de antropofagia e de inúmeras questões a serem reformuladas por pensadores do século XX. Silviano Santiago apropria-se da elaboração de Mário da “traição da memória”, introduzida na crítica por Gilda de Melo Souza, para a revisita à teoria da dependência e à noção de universal. Ao lado dessa formulação, acrescenta a antropofagia e o movimento concretista como antídotos para transformar o atraso e o subdesenvolvimento em resposta eufórica e positiva no que se refere à posição dos países periféricos na luta pelo seu lugar de referência. Silviano acrescenta, portanto, ao rol de pensadores da crítica comparada, autores responsáveis pela inserção de ideias produzidas nos trópicos, no desejo de criar e levar à frente o diálogo esperado com a cultura estrangeira. A importância do legado arquivístico de Mário e seu espírito de colecionador permitiu o desenvolvimento de pesquisas sobre sua vasta correspondência, por meio da qual estão sendo revistas a historiografia literária brasileira e as posições particulares do escritor e de muitos outros missivistas. Nesse particular, a publicação e estudos sobre o tema, incentivado pelos cursos introduzidos na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) por Silviano Santiago, têm sido desenvolvidos de forma sistemática e permanente por pesquisadores do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo (IEB/USP), sob a coordenação de Telê Ancona Lopez e sua equipe. Outras instituições arquivísticas atuam na divulgação e pesquisa em torno do legado do pensamento do escritor para o aprimoramento da construção de seu perfil intelectual. Edições críticas e a publicação de inéditos reforçam a existência de muitos caminhos do discurso crítico a serem ainda desvendados. Nesse particular, tornam-se reconhecíveis, pela crítica contemporânea de Mário, a
exclusão de outras poéticas não compatíveis com a linhagem modernista, como as de Murilo Rubião, Lucio Cardoso, Henriqueta Lisboa, entre outras; a defesa da estética figurativa, tanto nas artes quanto na literatura, em virtude do compromisso com a função nacionalista do movimento moderno; a fixação no projeto de integração político-cultural do país, guiado pelo desejo de totalidade e unificação nacional, ainda que reconhecendo diferenças regionais. Como traço da atualidade e perfeita intervenção no panorama da crítica cultural do momento, cite-se a valiosa reflexão sobre o discurso da cultura popular, envolvendo o estudo dos mitos, rituais e danças dramáticas. A retomada de conceitos relativos à constituição dos lugares esquecidos dos artistas anônimos da cultura ressoa atualmente como redefinição de conceitos e de questões quanto a critérios atribuídos à desgastada dimensão popular da cultura e às equivocadas referências ao populismo. A herança de Mário, a ser redimensionada e colocada como pauta no debate do momento, proporcionará a quebra da intolerância e a abertura para a diminuição de preconceitos de toda e qualquer natureza, em todos os níveis políticos e culturais.
(Inédito)
1 ANDRADE, Mário de. Cartas a um jovem escritor: de Mário de Andrade a Fernando Sabino. Rio de Janeiro: Record, 1981a, carta de 16-2-42. 2 CANDIDO, Antonio. Um impressionismo válido. In: CANDIDO, Antonio. Textos de intervenção. São Paulo: Editora 34, 2002, p 46. 3 LAFETÁ, João Luiz. 1930: a crítica e o modernismo. São Paulo: Duas Cidades, 1974, p 163. 4 LAFETÁ, 1974, p 166. 5 ANDRADE, Mário de. Começo de crítica. In: ANDRADE, Mário de. Vida literária. Pesquisa, estabelecimento de texto, introdução e notas de Sonia Sachs. São Paulo: Hucitec; Edusp, 1993, p 14-15. 6 ANDRADE, Mário de. Carta de 22-V-43 a Álvaro Lins. In: ANDRADE,
Mário de. Cartas de Mário de Andrade a Álvaro Lins. Apresentação de Ivan Cavalcanti Proença. Comentários de José César Borba e Marco Morel. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1983, p 76. 7 Cf. ensaio de minha autoria, “Marioswald” pós-moderno, em SOUZA, Eneida Maria de. Janelas indiscretas: ensaios de crítica biográfica. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2011, p 183. 8 Cf. ensaio de minha autoria, “Amizade modernista”, em SOUZA, Eneida Maria de. Janelas indiscretas: ensaios de crítica biográfica. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2011, p 163. 9 Para o desenvolvimento deste tópico, cf. meu ensaio já citado: “Marioswald” pós-moderno (SOUZA, 2011). 10 WISNIK, José Miguel. O que se pode saber de um homem? Revista Piauí, Rio de Janeiro, ed 109, 10 out. 2015, p 66. 11 ANDRADE, Mário de. Cartas de trabalho: correspondência com Rodrigo Mello Franco de Andrade, 1936-1945. Brasília: Secretaria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional; Fundação Pró-Memória, 1981b, p 87. 12 KOSSOVITCH, Elisa Angotti. Mário de Andrade, plural. Campinas: Editora da UNICAMP, 1990, p 149. 13 ANDRADE, Mário de. Padre Jesuíno de Monte Carmelo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2012, p. 33 14 SOUZA, Eneida Maria de. (org., introdução e notas). Correspondência: Mário de Andrade & Henriqueta. São Paulo: Peirópolis; Edusp; IEB, 2010b, p 234. 15 ANDRADE, Mário de. Elegia de abril. In: ANDRADE, Mário de. Aspectos da literatura brasileira. São Paulo: Martins, s.d., p 185-186. 16 Cf. a crescente inquietação do intelectual pelas transformações verificadas no interior de seu discurso teórico, ao afirmar, em carta a Newton Freitas, amigo brasileiro residente em Buenos Aires, que o artigo traduzido para o espanhol (“Do desenho”) ressaltava o aspecto refinado do texto e por isso sua aceitação pelo público argentino. Segundo ele, “os argentinos já atingiram uma civilização intelectual, um refinamento de pensar à europeia, maior que os brasileiros.”
(SOUZA, Eneida Maria de. Preguiça e saber. In: SOUZA, Eneida Maria de. A pedra mágica do discurso. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1999b, p 186). 17 ANDRADE, Mário de. Um crítico. In: ANDRADE, Mário de. O empalhador de passarinho. São Paulo: Martins; Brasília: INL, 1972c, p 201. Conferir também a conhecida polêmica entre Afrânio Coutinho e Álvaro Lins, na década de 1950, pela oposição entre impressionismo e nova crítica, esta importada por Afrânio dos Estados Unidos. Segundo ele, a visão humanista, na qual o homem era a medida para a literatura, defendida pela crítica impressionista, deveria ser substituída pelo método. Os artigos publicados por Afrânio no “Suplemento Literário” do Diário de Notícias do Rio de Janeiro (“Correntes Cruzadas”) promoveram a referida polêmica. 18 MORAES, Ricardo Gaiotto de. Vidas literárias: Mário de Andrade e Sérgio Buarque de Holanda. Terra Roxa e Outras Terras. Revista de Estudos Literários, v. 16, set. 2009, p 27. Trecho entre aspas de: ARRIGUCCI JÚNIOR, Davi. Movimentos de um leitor: ensaios e imaginação crítica em Antonio Candido. In: ARRIGUCCI JÚNIOR, Davi. Outros achados e perdidos. São Paulo: Companhia das Letras, 1999, p 237.
Um turista nem tão aprendiz
Este ensaio tem como foco de análise o texto de Mário de Andrade, O turista aprendiz, publicado postumamente em 1976, sob a coordenação de Telê Ancona Lopez e reeditado em 2015, em coautoria com Tatiana Longo Figueiredo e colaboração de Leandro Raniero Fernandes.¹ Nas duas viagens ao Norte e ao Nordeste (maio a agosto de 1927; dezembro de 1928 a fevereiro de 1929), Mário realiza o deslocamento necessário para refletir sobre sua importante missão como escritor modernista e pesquisador de cultura popular. Na abordagem relativa a essas viagens, o recorte incide no diário de 1928/1929, quando parte para o Nordeste em missão de trabalho (Rio Grande do Norte, Pernambuco, Paraíba, passando por Salvador e Maceió), não apenas com o intuito de efetuar a pesquisa, mas de registrá-la sob a forma de crônicas a serem publicadas em jornal. Será igualmente abordada neste artigo a exploração de alguns tópicos referentes ao papel do intelectual enquanto participante da construção da imagem cultural do país por meio de aguda sensibilidade frente aos conceitos de popular, modernidade e narratividade. Tais preceitos contribuem, de modo inegável, para a interpretação de questões que incentivaram a leitura do modernismo com vistas à sua lenta e complexa definição. Reitera-se ainda a nova experiência do viajante, nutrido por leituras já processadas do universo dessa cultura, mas que se confronta agora com a presença da realidade transfigurada, de imagens e sonoridades até então pouco conhecidas. O espírito de colecionador de obras de arte, de objetos artesanais, de arte sacra e de documentos musicais é aguçado em Mário pelo desejo de registro dos rituais e danças populares do Nordeste, recolhidos in loco e perpetuados pela escrita. Trabalho e lazer concorrem para a experiência do turista aprendiz, do etnógrafo que ensaia voos futuros e se comporta segundo tendência da época, na qual intelectuais e artistas se distanciam das culturas de origem em busca de novas experiências artísticas. Não constitui novidade a afirmativa de ser a empresa etnográfica de Mário em toda sua extensão, tanto na literatura quanto na pesquisa musical e folclórica, incentivada pela curiosidade modernista frente aos temas nacionais e à diversidade cultural como traço diferenciador. No trabalho de investigação exercido pelo escritor por essa época, constatam-se coincidências com práticas
encontradas na França na década de 1920 e descritas, segundo James Clifford, como “etnografia surrealista”. Segundo o antropólogo, artistas e escritores dissidentes do movimento surrealista, como Georges Bataille, Michel Leiris, Antonin Artaud, entre outros, reunidos em torno da revista Documents, exploram a dimensão etnográfica da arte pelo questionamento de um de seus princípios excludentes, qual seja, a separação entre “alta” e “baixa” cultura. As manifestações artísticas não ocidentais, a retomada de saberes míticos, arcaicos e ritualísticos conservavam ainda a herança surrealista. A arte “primitiva” africana, pelo deslocamento causado no pensamento europeu, acrescentava um ponto na ampliação dos valores vanguardistas, além de suscitar transformações quanto à autenticidade e hegemonia das manifestações artísticas. No entender de Clifford,
O surrealismo etnográfico, diferentemente tanto do típico crítico de arte quanto do antropólogo da época, se delicia com as impurezas culturais e com os perturbadores sincretismos. Griaule equaciona o deleite europeu com a arte africana ao gosto africano por tecidos, latas de gasolinas, álcool e armas de fogo. Se os africanos preferem não imitar nossos produtos da alta cultura, tant pis […].²
Ressalta o antropólogo a inexistência, à época, da instituição de uma ciência social definida, com métodos e textos clássicos, campo fértil para a instauração de uma crítica cultural subversiva em que se evocava o aparato mítico, insólito e exótico das artes orientais. No processo desestabilizador do eurocentrismo, o movimento se notabilizava pelo rompimento da dimensão hierárquica frente às culturas, submetidas a critérios valorativos de igual peso. A criação em 1929 da revista Documents por Georges Bataille, ao congregar escritores e futuros pesquisadores de campo, seria o exemplo da colaboração etnográfica surrealista. A configuração do periódico, pela multiplicidade de intenções e pela utilização de procedimentos semelhantes à colagem, desenhava a imagem de um museu etnográfico, pela superposição de objetos, textos e rótulos. A justaposição, método construtivo da estética surrealista e a vertente antropológica da revista propiciariam, ainda conforme Clifford, a fundação de futuros museus etnográficos em Paris, pela exposição heteróclita dos objetos. A cultura torna-se algo a ser coletado, mas de modo a perturbar e embaralhar as disposições tradicionais dos símbolos estabelecidos:
O método básico da revista é a justaposição — a colagem fortuita e irônica. O arranjo adequado dos símbolos e artefatos culturais é constantemente posto em dúvida. A “alta” arte é combinada com fotografias repulsivamente ampliadas de enormes dedos dos pés; artesanato popular; cópias de Fântomas (uma série de mistério muito conhecida); cenários de Hollywood; máscaras africanas, melanésias, pré-colombianas e também máscaras de carnaval francesas; relatos de apresentações de music halls; descrições dos matadouros de Paris.²¹
A publicação recente da tradução de textos da Documents²² esclarece a importância da revista para a valorização da etnologia e a definição de documento como desprovido de valor artístico, já que, no entender de Carl Einstein, seria preciso tratar a arte primitiva “historicamente e não mais considerá-la unicamente do ponto de vista do gosto e da estética”.²³ A empresa pós-colonialista se equipara à missão de Mário na sua permanente busca por manifestações culturais que ultrapassassem os valores estéticos e se impusessem como dotados de expressão popular e antropológica. Ao aderir à atitude colecionadora dos objetos artesanais, artísticos e etnográficos, o pesquisador brasileiro constrói um museu imaginário nos moldes das aventuras libertárias dos autores franceses. Embora não haja referência direta aos representantes da etnografia surrealista, a leitura de Lévy-Bruhl, Tylor e Frazer efetuadas pelo escritor evidenciava o interesse pelos temas vinculados à cultura popular. Na confecção de Macunaíma, é notória a apropriação dos textos de Koch-Grünberg, pesquisador alemão responsável pela coleta de mitos indígenas da América do Sul, o que comprova a vocação etnográfica de Mário, apesar de ter sido priorizado o tratamento literário decorrente dos empréstimos, sem pretensões puramente antropológicas. O trabalho de catalogação dos variados tipos de manifestações artísticas brasileiras seguia a vocação do pesquisador que se nutria do arquivo pessoal e alheio para a produção da obra a meio caminho entre arte e documento, cultura erudita e popular, sem estipular grandes distâncias entre elas. Na construção de Macunaíma, o herói sem nenhum caráter, publicado à época das viagens ao Norte e Nordeste (1928), vislumbra-se o espectro de um museu popular em movimento, no qual se justapõem objetos, lendas, personagens e mitos, os mais variados possíveis. Em 1924, liderados pelo poeta franco-suíço Blaise Cendrars, os modernistas
paulistas já haviam partido para as cidades históricas de Minas na “Viagem de descoberta do Brasil”, em busca do ingrediente barroco, substituto nacional da arte negra, do primitivismo eleito pelos franceses para a redefinição do moderno. Em crônicas, Mário iria também reportar a viagem de 1924, quando se inicia a conjunção do aspecto novo das descobertas com a tradição, veiculada pelo apreço ao arcaico e aos costumes interioranos como contrapartida aos costumes das metrópoles. Tarsila do Amaral se encanta com as “cores caipiras” do interior (rosa e azul), flores de baú, plantas e frutas tropicais. Cores que remetiam ainda à sua infância, vivida nas fazendas paulistas, em atitude que a artista comungava com os demais modernistas — a busca coletiva causada pelo estranhamento das metrópoles e do encontro com a arte primitiva, presente no próprio país de origem. O contato com a vanguarda e o novo das artes europeias recebia agora as tintas nativas, componente imprescindível para a composição do desenho modernista, entre a tradição e o novo. (Conferir observação reiterada no final do artigo). A aventura pelo Norte e Nordeste do país, tendo Mário como maior incentivador, pautava-se pelo interesse em registrar músicas, danças e ritos daquelas regiões, embora o objetivo das viagens permanecesse o mesmo encontrado nas anteriores a Minas: o deslocamento cultural como abertura para diferentes concepções estéticas.
Entre documento e ficção
Eh! ventos, ventos de Natal, me atravessando como se eu fosse um véu. Sou véu. Não atravanco a paisagem, não tenho obrigação de ver coisas exóticas… Estou vivendo a vida de meu país…
Mário de Andrade
Telê Ancona Lopez e Tatiana Longo Figueiredo, na apresentação à segunda edição comentada de O turista aprendiz, destacam a natureza híbrida do texto, entre o aspecto documental e a ficção, verificada tanto na viagem de Mário ao
Norte quanto ao Nordeste. A recriação da realidade observada recebe as tintas do romancista e oferece ao leitor uma narrativa que enriquece a pesquisa e se impõe como aguda interpretação dos rituais e fontes populares. Como poeta, reconhece no material registrado subsídio para os aspectos relevantes de sua obra modernista, empenhada na construção de identidades nacionais, permeadas por vários elementos e atores. A recriação ficcional dos dados recolhidos, paisagens e lugares visitados, confere ao viajante a sensação de estar igualmente Macunaíma aí inserido, tanto pela aproximação quanto pelo distanciamento em relação aos fatos:
O que empresta indiscutível sabor à leitura dos diários das duas viagens é, certamente, o entrelaçamento do relato da viagem real encenada com o relato que advém da viagem imaginária, consumado por um cronista munido do seu lastro de leitura, viajante que tem como companheira a invenção.²⁴
A exploração de novos gêneros dos modernistas inscreve-se também na sua indefinição, por considerarem fluidas as diferenças que os singularizem, optando pela escrita nômade e indisciplinada. Poesia, ficção, diário, crônica ou romance dialogavam entre si, a ponto de romper os limites entre as categorias genéricas. Destacam-se a prosa/poesia de Oswald de Andrade ou as crônicas/diários de O turista aprendiz, elaborados pelo olhar maroto do autor de Macunaíma. Ainda que a construção da rapsódia seja distinta da forma do diário, por desobedecer a critérios relativos ao espaço e ao tempo, entre outros, tem-se a impressão de estar o narrador configurando a escrita literária pela aventura da viagem. A primeira incursão à Amazônia contribuiu para o enriquecimento do universo fabular da rapsódia, apesar de já ter sido realizada a pesquisa em livros. Na segunda viagem, a confirmação e o aprimoramento do material folclórico da região foram transmitidos em crônicas e receberam tratamento igualmente ficcionalizado. Na feitura da crônica de viagem, o narrador propicia ao leitor a presentificação das danças, músicas e casos relatados por terceiros, por inserir no texto a sensação de estar ao mesmo tempo documentando e participando da experiência narrada. O Nordeste lhe chega pelos ouvidos, visão e olfato, incorporado no canto vibrante dos cantadores e intérpretes da cultura oralizada e em sua
vitalidade. A fala cantada do nordestino, interpretada como melodia, o insere no clima festivo dos “coqueiros”, na música dos aboios, na relação entre trabalho e lazer. A coleta do material folclórico não se reduz ao enunciado frio e distanciado do pesquisador, mas se pauta pela sensibilidade do poeta, incorporando-se ao canto que se configura pela vivência e pelo gesto futuro da escrita. Se as danças dramáticas e os cantos encenam situações que poderão ser compartilhadas com os espectadores, a escrita de viagem acompanha esse movimento e convida o leitor a entrar na dança. Reside aí o alto grau de dramatização da escrita marioandradina, o que lhe confere o estatuto ambivalente de crônica jornalística e de ficção.
Me deito depois deste primeiro dia de Natal. Estou que nem posso dormir de felicidade. Me estiro na cama e o vento vem, bate em mim cantando feito coqueiro. Por aqui chamam “coqueiro” o cantador de “cocos”. Não se trata de vegetal não, se trata do homem mais cantador desse mundo: nordestino. […] O vento canta. Os passarinhos, a gente do povo passando. O homem que leva e traz as vacas daqui de perto, não trabalha sem aboiar… Aqui em casa também. Todos cantamos, cocos, embolados, sambas, dobrados, modinhas…²⁵
A reprodução de cantos ao som de clarinetas e ganzás e a entrada do narrador no festejo popular indicam a atuação receptiva do pesquisador/escritor no texto, pelo emprego da dicção que se aproxima da rapsódia de Macunaíma. Na revitalização dos ritos e cantos populares, mimetiza-se sensorialmente o valor literário da rapsódia, sem que se confunda com a crônica de viagem. Distinguese ainda da escrita dos antigos cronistas, voltados para a descrição do exótico e do estranho aos olhos do colonizador.² Trata-se do observador nativo que tem como missão restaurar o olhar diante da riqueza cultural dessa região, muitas vezes negligenciada pelos próprios brasileiros. Texto, dança e música mesclamse na visão do viajante, por constituírem matéria indissociável e por ressaltarem o espírito ingênuo e alegre de uma comunidade. O ócio, a visão do espetáculo deitado na rede, sinalizam a relação entre preguiça e saber, sensação propícia para a fabulação: “Chega um choro. Clarineta, violões, ganzá numa série deliciosa de sambas, maxixes, varsas de origem pura, eu na rede, tempo passando sem dizer nada. Modinhas de Ferreira Itajubá e Auta de Sousa… A boca da noite abriu sem a gente sentir.”²⁷
Nas observações mais contundentes de Mário encontra-se a figura do homem comum, do proletário, do cantador/trabalhador e do povo. Canto e situação social se entrelaçam na produção do painel etnográfico da região, em que se constata a visão um tanto ingênua e idealizada do narrador, motivada pela “cantoria” do nordestino. Se a própria dicção do habitante recebe tratamento semelhante, torna-se, contudo, prudente não desprezar a inclinação de Mário pela eleição da música como uma das possíveis saídas para os problemas de um povo marcado pela seca e a miséria. A sabedoria dos cantadores incultos e dos atores das danças típicas de Natal e Ano Novo serve de contracanto à arte considerada culta, razão pela qual o narrador insiste em valorizá-las. (“A gente daqui é alegre e cantar tanto como ela não sei que se cante.”²⁸). O conceito de arte popular apropria-se tanto da posição social dos intérpretes como da maneira peculiar de reunir canto e vida, documento e ficção.² Na escolha desse material, o canto funcionaria como performance, em que se destacam a interpretação e o compromisso vital do cantador, ao se entregar, de modo inteiro, ao gesto artístico. A ilustração mais eloquente da cantoria no Nordeste reside na figura emblemática de Chico Antônio, cantador encontrado por Mário no Engenho de Bom Jardim, no Rio Grande do Norte. A constituição de seu retrato e dos demais artistas anônimos da região tem o mérito de redefinir conceitos e recolocar questões quanto a critérios atribuídos à desgastada dimensão popular da cultura e às preconceituosas referências ao populismo. A admiração do autor pela performance e pelo talento do cantador condensa as imagens do artista nativo, da improvisação e das variações melódicas criadas ao sabor do momento. Sua forte presença e a exaustiva interpretação durante horas, ao som do ganzá e inspirado pela bebida, provocam a exaltação e o delírio de quem assiste ao espetáculo. Mário elege Chico Antônio como herói dessa arte popular e personagem principal da viagem ao Nordeste. Escolhe ainda o ganzá, instrumento utilizado por ele, como título do projeto inacabado, Na pancada do ganzá, no qual pretendia reunir o material colhido sobre a música popular nordestina.³ Como metonímia da pesquisa, tem Chico Antônio como motivo inspirador, por este se sobressair no quadro da arte popular e ser representante dos demais. Será ainda personagem do romance inacabado Café, publicado postumamente, na figura do nordestino que se muda para São Paulo.³¹ A admiração pelo cantador é metaforizada no desejo de se recuperar do preconceito em relação ao nordestino, trazendo Chico Antônio para São Paulo e ficcionalizando uma narrativa permeada pelo desejo de homenagem.
Na performance desinteressada e autossuficiente do cantador, confirma-se a semelhança com a poética/vida de Mário, entregue ao prazer da criação em excesso, ao exercício do dispêndio como regra. A arte de viver sem limites, a entrega à dor como felicidade, espelha-se na atitude artística/vital de Chico Antônio, no seu lado humano proletário e sensível às manifestações populares. A encenação musical do artista remete ainda aos rapsodos e ao processo paródico de Macunaíma, quando Mário evoca o improviso e a “traição da memória” como instrumento criativo e esquecimento dos modelos hegemônicos europeus. Entoar sob a forma de emboladas as melodias do boi e os cocos nordestinos, atraindo os “homens do povo”, não se esgota em poucas horas, por optar Chico Antônio pelo excesso e o prazer. Aos olhos do narrador, sua atitude iguala-se ao canto gratuito do pássaro, como ser da natureza: “Se cantar a noite inteira, noite inteira os trabalhadores ficam assim, circo de gente sentada, acocorada em torno de Chico Antônio irapuru, sem poder partir”.³² Chico Antônio recebe do narrador os maiores elogios como representante do artista nordestino e como símbolo da perfeição e do apuro, registrado pelas artimanhas da embolada e do improviso. Seu tipo físico o transforma em imagem divinizada, alimentada pela performance do homem simples, das frases tiradas do trabalho cotidiano e do amor. Mário se extasia com a emoção provocada pelo espetáculo do cantador, a ponto de manter com ele uma relação de cumplicidade e de extrema conjunção:
Mas Chico Antônio ultrapassa de muito os que tenho escutado, pela força viva do que inventa e a perfeição com que embola. Alto, corpo de sulista, magruço, meio lerdo no gesto comprido, com uma cara horizontal, bem chata e simpática, de nordestino em riba. Olhos maravilhosos, já falei. E a voz incomparável.³³
O próprio conceito de moderno recebe do escritor variações, ao comparar as temporadas líricas de São Paulo com o canto embolado de Chico Antônio, ou quando o considera superior a Caruso, famoso intérprete de ópera da época. As dissonâncias do cantador superam as “chiques dissonâncias dos modernos”, por introduzirem a dimensão popular e a diferença quanto à definição canônica do modernismo, desvinculada da tradição e presa ao novo, à vanguarda e ao cosmopolitismo. Essa interpretação dá sequência às descobertas da viagem a
Minas, em 1924, momento significativo de mudança e abertura para as diversas vertentes de um moderno nomeado como vernacular e periférico. As cores da natureza, motivadoras do interesse da arte de Tarsila do Amaral pelos tons caipiras e peculiares do popular, assim como o desenho das cidadezinhas, são ainda evocados pelo olhar de Mário frente ao Nordeste. Arte e natureza se conjugam na descrição igualmente exagerada das roupas dos figurantes da Ciranda, com as cores das vestimentas e as danças compondo a paisagem reproduzida por Tarsila, em uma das transformações aí operadas no distinto conceito de moderno. A visão do narrador, mediatizada pela arte, define o ambiente de forma distanciada e ficcionalizada, incorporando-o à concepção estética modernista e à função identitária da cultura brasileira:
A vestimenta é berrante e gostosa de se ver. Chapéus inspirados nos cocares indígenas, cheios de penas de arara, flores de papel e naturais; blusas e calções de cores claras, rosa, encarnado, amarelo, verde, as mesmas cores cruas com que Tarsila abrasileirou tão sabiamente os quadros dela.³⁴
Sem manifestar qualquer propósito discriminatório, as manifestações artísticas poderão conviver em estreita relação, desde que não sejam esquecidos outros componentes culturais. A posição de Mário de Andrade sempre se sustentou por uma leitura da noção de modernidade como expressão do intercâmbio entre nacional e estrangeiro, erudito e popular, respeitando as diferenças locais e os traços singulares. A perspectiva periférica atua como estratégia de resistência e intervenção, acentua as diferenças e permite a recuperação de setores excluídos da cultura. Uma modernidade vernacular, como hoje estudiosos como Stuart Hall define, na tentativa de resgate das manifestações locais como resposta aos empréstimos oriundos de culturas hegemônicas.
(2019)
19 ANDRADE, Mário de. O turista aprendiz. Edição de texto apurado, anotada e acrescida de documentos por Telê Ancona Lopez, Tatiana Longo Figueiredo,
Leandro Raniero Fernandes (colaborador). Brasília, DF: Iphan, 2015b. 20 CLIFFORD, James. A experiência etnográfica: antropologia e literatura no século XX. Organização e revisão técnica de José Reginaldo Santos Gonçalves. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ, 2008, p 149. 21 CLIFFORD, 2008, p 151. 22 BATAILLE, Georges. Documents: Georges Bataille. Tradução de João Camillo Penna e Marcelo Marques de Moraes. Florianópolis: Cultura e Barbárie, 2018. 23 HOLLIER, Denis. O valor de uso do impossível. In: BATAILLE, Georges. Documents: Georges Bataille. Tradução de João Camillo Penna e Marcelo Marques de Moraes. Florianópolis: Cultura e Barbárie, 2018, p 7. 24 FIGUEIREDO, Tatiana Longo; LOPEZ, Telê Ancona. Por esse mundo de páginas. In: ANDRADE, Mário de. O turista aprendiz. Edição de texto apurado, anotada e acrescida de documentos por Telê Ancona Lopez, Tatiana Longo Figueiredo, Leandro Raniero Fernandes (colaborador). Brasília, DF: Iphan, 2015, p 37. 25 ANDRADE, 2015b, p 275. 26 José Tavares Correia de Lira define, de modo bastante elucidativo, o lugar de Mário como cronista de viagem: “É verdade que Mário bem sabia que o cronista-turista do século XX não tinha mais terras a desbravar ou em quem fincar posse. Mas sua alternativa por roteiros brasileiros, pela via das culturas indígenas e populares, pelos centros de cultura alegre, exterior, informal, móvel, imperfeita, carnavalizada, que não se deixavam subsumir a normatizações civilizatórias, tensiona as representações nacionalistas de uma sociedade por ele flagrada como profundamente desigual e excludente: ‘civilização brasileira’, pensava ele, que de mais a mais consistia ‘em empecilhar as tradições vivas que mais possuímos de mais nossas’.” (CORREIA DE LIRA, José Tavares. O estranho patrimonial: Mário de Andrade e o (des)Brasil. In: ANDRADE, Mário de. O turista aprendiz. Edição de texto apurado, anotada e acrescida de documentos por Telê Ancona Lopez, Tatiana Longo Figueiredo, Leandro Raniero Fernandes (colaborador). Brasília, DF: Iphan, 2015, p 391). 27 ANDRADE, 2015b, p 299.
28 ANDRADE, Mário de. 2015b, p. 331. 29 Em contrapartida, Mário vai se manifestar, no mesmo livro, preconceito contra o nordestino, que, ao contrário do que pensava Euclides da Cunha, não era um forte, mas estaria sempre desistindo da luta na região inóspita, partindo e se deslocando para São Paulo. As contradições do escritor são, no entanto, diminuídas pelo seu apreço à cultura dessa região: “O nordestino é prolífico. Dez meses de seca anual. Não tem o que fazer, faz filho. Os mais fortes vão-se embora. Fica mais é a população mais velha, desfibrada pelo Sol, apalermada pela seca, ressequida, parada, vivendo porque o homem vive, acha meio de viver até aqui! mas fica porque… meu Deus! porque não sabe partir!…” (ANDRADE, 2015b, p 334-335). 30 As seções referentes à música de feitiçaria e às danças dramáticas foram editadas por Oneyda Alvarenga, em três volumes intitulados Danças dramáticas no Brasil. ANDRADE, Mário de. Danças dramáticas no Brasil (org. Oneyda Alvarenga). São Paulo, Belo Horizonte: Itatiaia/Instituto Brasileiro do Livro/Fundação Pró-memória. 2ª edição, 1982. tomos I, II, III. 31 ANDRADE, Mário de. Café. Estabelecimento de texto, introdução, prefácio e seleção de imagens de Tatiana Longo Figueiredo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2015a. 32 ANDRADE, 2015b, p. 317. 33 ANDRADE, 2015b, p. 317. 34 ANDRADE, 2015b, p. 414.
Conversa de compadres
Esse homem dos sete instrumentos, aparentemente desorganizado, é o mais técnico, cauto, disciplinado dos brasileiros. Amigo de dossiê, de livro de nota, de apontamento em caderno próprio, com índice remissivo, catalogando o que lê para achar quando quiser.
Câmara Cascudo
A correspondência de Mário de Andrade e Câmara Cascudo, organizada por Marcos Antonio de Moraes, distingue-se de outras, por não se caracterizar como discussão de ordem literária, mas se impor no âmbito da pesquisa folclórica e popular. A diferença reside no fato de não se tratar de cartas trocadas entre poetas ou escritores, como Bandeira, Drummond, Henriqueta Lisboa, entre outros, em que assuntos diversos eram discutidos, com especial destaque para a poética modernista, a vida literária e a criação artística. Raras são as passagens nas quais o poeta procede à leitura de poemas enviados por Cascudo, não se esquivando em criticá-los, fornecendo sugestões de mudanças, atitude por sinal muito comum na troca de cartas de Mário com amigos. Nos vinte anos de convivência epistolar (1924-1944), 65 cartas de Mário e 94 de Cascudo compõem este documento de extrema importância para a pesquisa sobre cultura popular, no qual são anunciadas reflexões sobre o tema e sobre o então incipiente panorama dos estudos folclóricos no Brasil. A cuidadosa edição das cartas, realizada em 2010 por Marcos Antonio de Moraes, foi de crucial importância para as discussões que serão aqui esboçadas. Em 1924, Mário já se posicionava em defesa dos ideais modernistas, concentrando-se na pauta nacionalista e na construção de uma escrita dotada de traços brasileiros, por se afastar do português canônico e optar pela linguagem oral, promovendo um rompimento com a herança europeia. Ressalte-se ainda o interesse pela construção da imagem do Brasil como nação, entendida na sua integridade, sem desvios regionalistas, por serem estes um dos empecilhos à construção do ideal de síntese do país: “E tenho consciência de que fugindo ao regionalismo (um
perigo) não escrevo mais português. Estou escrevendo brasileiro. Deus me ajude!”.³⁵ Condena igualmente o exotismo aliado ao regionalismo, por acreditar na urgência da visão aglutinadora de nação e na desconfiança quanto à interpretação colonizadora do exótico. “Escrever brasileiro” colocaria a cultura nacional em situação de resposta à arte estrangeira, uma das mais bem sucedidas conquistas do modernismo. O ideal de nação, aliado à escrita brasileira constituiu, sem margem de dúvida, a proposta ousada do modernismo, não só na construção de uma literatura nacional, mas de uma cultura que se impunha, na sua dimensão política, como expressão definitivamente original. Cascudo, com sua experiência de província, já se notabilizava pela extrema atenção ao folclore nordestino, embora se mostrasse ainda vinculado aos estudos das influências ibéricas da monarquia católica na constituição do Brasil Imperial. Refletia preocupação distinta daquela esboçada por Mário em carta, pelo convite a pensar mais sobre as manifestações populares nacionais, como resposta à hegemonia das estrangeiras. O que na realidade reúne os pesquisadores é a vocação etnográfica, pelo destaque à associação entre arte e etnologia, tendência vigente nessa época em vários países. Desde a experiência da revista Documents, editada por Georges Bataille a partir de 1929,³ instalou-se a dissidência surrealista com o interesse dos franceses pela arte africana, gesto descolonizador em busca do exótico e da alteridade, no intuito de rever os valores da arte dita erudita. Mário de Andrade ainda não havia publicado Macunaíma, mas já se desvinculava da proposta vanguardista do modernismo, associando a tradição ao novo, o popular ao erudito, seja pelo apelo ao barroco como signo de primitivismo e nacionalismo, seja pela cultura popular como índice de expressão nacional e do povo. A cultura negra é substituída, a princípio, pela interiorana e arcaica, uma vez que se distinguia daquela cultivada nas cidades, reduto do processo de modernização que começava a se instalar na periferia da nação. Não seria correto afirmar que o impulso inicial em Mário tenha se revelado nos moldes conservadores, com o objetivo de preservar a pureza dessa cultura. O propósito do escritor se desvinculava da defesa de um nacionalismo estreito e verde- amarelo, como era praticado por outros movimentos da época. O impulso restaurador da memória esquecida dos povos e da valorização de produções artísticas prevalecia como saída para o reconhecimento de culturas marcadas pelo apelo ao popular. Cascudo inscreve-se nas cartas como possível encarnação da fala do povo, parceiro de Mário na aceitação da concepção heterogênea do popular com o erudito. Em consonância à afirmação de que sua experiência etnográfica
distinguia-se da prática exercida pelo amigo paulista — arquivo construído pela consulta bibliográfica e pela pesquisa de campo — a dicção de Cascudo era para Mário motivo de admiração e prova viva de linguagem com rastro popular. O conteúdo das cartas era aromatizado pelo modo peculiar e sensorial do missivista, promovendo o prazer de estar sentindo o Nordeste como alimento para suas reflexões pessoais. A leitura das cartas converte-se em contato quase físico, por evocar a diluição aparente do aspecto simbólico da escrita e a revelação do teor sensorial das palavras: “Mande coisas e cartas. A fala serelepe de você dá na gente, espeta, pinga, chuça, faz cócega, é engraçada e sagui. Me diverte e é verdadeira, por isso, além de divertir comove.”³⁷ A exuberância da fala contrastava com o eruditismo do vocabulário de escritório e se expandia no campo aberto da região. O texto solto e descontraído de Cascudo coincidia com o programa poético do modernismo, defensor da oralidade, da liberdade de criação e do empenho ao cultivo de uma língua adequada ao espírito nacional. Some-se a isso a utilização de expressões de origem popular, condizente com a região e inserida no imaginário das cantigas e rituais. São exemplos os vários comentários de Cascudo, resumidos em frases feitas e dicções próprias da convivência com o vocabulário retirado do repertório folclórico. O universo dos cantadores, os desafios e a magia saída dos contos transformam Cascudo em personagem de Mário, que em Macunaíma registrou muito bem esse clima mágico:
estou balançando a cabeça feito lagartixa entre estes dois nomes — Vaqueiros e cantadores e Sertão de inverno.³⁸ (...) Festão de violeiros, cocos, emboladas. Maracás e saúdes à lei seca. Um dia que se estirou comendo a noite até depois da madrugada. E na praia. Faltava você para ficar tudo no ponto de subir para o céu. Jorge, eu e o Antônio gastamos seu nome como sabão em unha de lavadeira do Oitizeiro.³
Curiosa é ainda a denominação de Cascudo como Cabeça de Capei, e a de Mário como Macunaíma. Personagens da rapsódia a povoar a troca epistolar, numa conversa amigável e matizada pelo humor e a alegria. Em carta de 22 de julho de 1926, Mário reitera o estilo “vivaz e eficiente” de
Cascudo, comparando sua palavra à presença física da “guampa de marruá danado”, pelo poder de tocá-lo e impressioná-lo com sua força verbal beirando a realidade. A imagem do boi já sugere a referência às cantigas tradicionais do boi marruá, pela inserção do folclorista no arquivo oral do sertão. A aproximação virtual da linguagem de Cascudo se evidencia, no entender de Mário, como representação quase palpável desse universo: “Aquela síntese histórica de Natal está simplesmente estupenda como estilo vivaz e eficiente. A palavra na mão de você é feito guampa de marruá danado, chuça a gente direito mesmo. Se tem uma impressão até física, puxa!”.⁴ Na convivência entre eles, os cheiros, as vozes, as imagens das manifestações artísticas incentivavam declarações de Mário sobre o país, utilizando-se o código alimentar e a proposta antropofágica. Os sentidos concentram-se na proposta nacionalista do escritor, traduzida pela imagem do país como motivo de esperança e idealismo. Receber e usufruir uma linguagem próxima às ideias poéticas do escritor resumiria o ideal aventureiro de tornar a experiência da viagem uma lição para se entender mais o Brasil:
Se lembre sempre de mim quando vir fotografias da nossa terra aí dos seus lados. Meu deus! Tem momentos que eu tenho fome, mas positivamente fome física, fome estomacal de Brasil agora. Até que enfim sinto que é dele que me alimento! Ah, se eu pudesse nem carecia você me convidar, já faz muito tempo que tinha ido por essas bandas do Norte visitar vocês e o Norte. Por enquanto é uma pressa tal de sentimentos em mim que não separo e nem seleciono. Queria ver tudo, coisas e homens bons e rúins, excepcionais e vulgares. Queria ver, sentir, cheirar. Amar já amo. Porém você compreende demais, este Brasil monstruoso tão esfacelado, tão diferente, sem nada nem sequer ainda uma língua que ligue tudo, como é que a gente o pode sentir íntegro, caracterizado, realisticamente? Fisicamente?⁴¹
Permanece o desejo de ir ao encontro total com novas experiências, no sentido atávico e naturalista do termo, em busca da integração tão sonhada entre regiões e culturas brasileiras. A futura viagem da descoberta da região assume feição amorosa e sensorial, à feição da linguagem de Cascudo que lhe permitia viver intensamente um Brasil ainda povoado de cheiros e visões. A possibilidade de integração residiria igualmente na defesa de uma língua que pudesse reunir o que se mostrava esfacelado e monstruoso, resolução esta pautada pela naturalização
do conceito de integração nacional. Devorar o Brasil como alimento para o projeto nacionalista incluía a entrega apaixonada e o apetite renovado pela conquista de novos adeptos da missão que se dispunha a abraçar. O espírito aglutinador dessa missão modernista se alimentava dos contatos epistolares, veículo de expansão da missão de transformar a cultura brasileira numa possível atualização dos ideais de modernidade. A intenção de penetrar fisicamente na pesquisa corresponde à saída do ambiente fechado dos livros e da ida ao campo, estratégia eficaz para efetuar o cruzamento entre duas propostas etnográficas. Inicialmente, a atividade de Mário se iguala à prática de Cascudo quanto ao desenvolvimento de um método próprio de pesquisa. Nas palavras de Neves (2000),
Cascudo não seguiu à risca as sugestões metodológicas dos “estudos de cartografia folclórica” propostos por Mário, preferindo recorrer a um método próprio, elaborado a partir da familiaridade com seus sujeitos de pesquisa — geralmente não citados —, fundada na introspecção, na “convivência” e nas relações tecidas no cotidiano.⁴²
Essa posição analítica deve ser entendida como distinta do aparato considerado científico, por desconhecer a rigidez e a objetividade aí exigidas. A advertência de Mário ao amigo quanto à necessidade de tornar-se conhecedor dos métodos novos de investigação etnográfica justifica-se durante a década de 1930, quando se inicia o diálogo de Mário com Dina e Lévi-Strauss, casal de professores convidados juntamente com a missão francesa a se integrar ao corpo docente da recém-fundada USP. Como Dina Strauss não chegou a ser incorporada à Faculdade de Filosofia, foi acolhida pelo Departamento de Cultura para a realização de estudos etnográficos, ministrando cursos, e criando, em 1936, com o então diretor, em São Paulo, a Sociedade de Etnografia e Folclore.⁴³ Entre as diferenças apontadas pela prática etnográfica recente, incluía a pesquisa de campo e em arquivo, com vistas à sistematização do conhecimento, uma vez que Mário já se entregava, desde os anos 1920 a esse trabalho de registro folclórico. Mas as preocupações do modernista se aguçaram na década de 1930, pelo incentivo dos cursos ministrados tanto na USP quanto no Departamento de Cultura, em que se iniciava o ensino universitário com ênfase no conhecimento
científico das disciplinas, incluindo a este a crítica literária e a antropologia, o que viria a abalar tanto o exercício autodidata como o empirismo analítico. Como pesquisador incansável, Mário se empenhava em registrar suas leituras, valorizando o saber coletado nas fichas, nas anotações minuciosas que ia fazendo ao longo dos estudos. No prefácio de Namoros com a medicina, de 1937, discorre sobre o exercício obsessivo do gesto de fichamento, reconhecendo, nessa empresa, como em outros momentos, a obrigação de tudo catalogar, em virtude de ter memória fraca. Prevalece, contudo, nesse prefácio a confissão do escritor quanto à ausência de método na leitura, o que ocasionava a obrigatoriedade do registro das pesquisas. Nesse sentido, o que chama de “deserto de fichas” corresponde à sensação de domínio do assunto pela quantidade de anotações, mas logo é posto à prova, ao atribuir ao deserto visões perigosas e sedutoras trazidas pela miragem. O escritor reflete sobre o limite a ser considerado na produção do conhecimento com base na coleta de dados, por acreditar na seleção e filtragem do material recolhido como contrapartida ao acúmulo e ao desperdício. A quantidade de fichas não corresponde ao grau de eruditismo de seu autor; muito pelo contrário, pode pecar pelo excesso e falta de método:
Minha maneira de trabalhar é assim. Vou lendo, desgraçadamente sem muito método, aquilo que pelo seu autor ou seu assunto me dá gosto, ou responde às perguntas do meu ser muito alastrado. Como desde muito cedo tive memória pouca mas estimo ter resposta pronta às minhas perguntinhas, tomei o hábito virtuoso de fichar. Os anos, não eu, reuniram assim um regular deserto de fichas. Apelidei “deserto” aos meus fichários, não vaidoso do número das minhas fichas, incomparavelmente menos numerosas que os grãos de areia de qualquer prainha, quanto mais deserto. Disse “deserto” mas foi por causa das miragens. Há os que me chamam de culto apenas porque tenho alguma paciente leitura. Há momentos em que me acredito seguro de um assunto, porque sobre ele tenho cento e vinte fichas. Perigosas miragens…⁴⁴
Ao lado da importância atribuída às regras de coleta in loco dos dados, Mário vai alertar Cascudo, em carta bastante rígida e crítica quanto ao seu método de trabalho, dizendo que ele não deveria se abster da experiência e do convívio com
lendas e rituais, no seu contato quase diário. O trabalho de leitura e armazenamento do material livresco, exercido igualmente por Mário, seria incompleto, em virtude da ausência do cotejo com as fontes. O comportamento, muitas vezes ambivalente do escritor em relação às suas opiniões, contribui para a abertura de novas perspectivas de trabalho, o que dependerá, sem dúvida, de momentos diferentes de sua trajetória crítica. Em carta de 9 de junho de 1937 a Cascudo, Mário coloca em discussão o método crítico do historiador, ocasião propícia para, além de chamar a atenção para a riqueza do mundo folclórico ao seu redor, reforçar a utilidade da pesquisa de campo, do corpo a corpo com o material fornecido pelos informantes. Sair da rede e ir ao encontro do convívio com as manifestações populares seria o modo correto de atualização do ofício de pesquisador, ao reunir o campo ao escritório. Mário adverte o amigo, dando-lhe um puxão de orelha:
Você precisa um bocado mais descer dessa rede em que passa o tempo inteiro lendo até dormir. Não faça escritos ao vai-vem da rede, faça escritos caídos das bocas e dos hábitos que você foi buscar na casa, no mocambo, no antro, na festança, na plantação, no cais, no boteco do povo. Abandone esse ânimo aristocrático que você tem e enfim jogue todas as cartas na mesa, as cartas de seu valor pessoal que conheço e afianço, em estudo mais necessários e profundos.⁴⁵
A pesquisa de campo, o contato com os “escritos caídos das bocas e dos hábitos” do imaginário popular, iria arrefecer o gosto pela erudição, pela abertura livresca em direção à vivência direta com as manifestações ao seu redor. A rede, instrumento de lazer e de trabalho, deveria ser substituída pela entrega às realizações anônimas do povo das ruas, do barulho alegre e contagiante das danças e festanças. O “ânimo aristocrático” a que Mário faz referência estaria vinculado à preferência de Cascudo pelos estudos de personagens e autores estrangeiros sem muita importância, como é o caso de Conde d’Eu, ou Stradelli, aquele, personagem do Império, este, etnólogo italiano, expedicionário na Amazônia.⁴ Aconselha a escolha de outros nomes da história brasileira, como Nísia Floresta, esquecida escritora rio-grandense-do-norte, de muito valor para a cultura nacional. No entender de Mário, o contato com textos e expressões culturais a serem recuperados pela pesquisa deveria passar, nas palavras de Marcos Antonio de Moraes, “‘por um processo de conhecimento’ da identidade
brasileira”, com vistas à singularidade nacional.⁴⁷ A dimensão universalista de Cascudo, ainda registrada por Moraes, consistia na captação, em outros continentes e momentos da história, dos registros regionais. A proposta de Mário, contudo, se inseria na imposição da singularidade do lugar da cultura brasileira no concerto das nações. Em carta anteriormente mencionada, o escritor paulista cobrará igualmente de Cascudo rigor e paciência no estudo dos temas analisados, exigência que respondia ao estágio em que se encontravam os trabalhos etnográficos do momento, segundo os parâmetros da ciência etnográfica. Semelhante postura será assumida por Mário quanto à crítica literária da época, opinião demonstrada em artigo de 1941, “Elegia de Abril”, sobre os novos nomes que surgiam no meio universitário.⁴⁸ É preciso assinalar que a ambivalência em Mário quanto aos limites entre arte e ciência irá depender da posição igualmente dupla de seu papel de ficcionista e pesquisador. Com Macunaíma, embaralha as fontes e empréstimos populares, ao contrário da precisão almejada no trabalho de coleta da arte popular, quando obedece a critérios metodológicos. No entanto, a dicção ensaística que o caracteriza como crítico e pesquisador permite considerá-lo numa situação a meio caminho da razão e da intuição, da arte e da ciência. Por circunstâncias do momento, sente-se obrigado a se inteirar das novas regras de trabalho e a tentar abandonar a posição de autodidata. A mescla da intuição e da razão sempre acompanhou o pensamento crítico e poético do escritor na composição de sua obra. À época de criação da rapsódia, Mário comunica a Cascudo a montagem literária do livro, ao denunciar seu aspecto anacrônico e desregionalista, confundindo e ironizando a ideia de um país cujas regiões estariam plenamente diferenciadas. A mistura e o embaralhar das fontes e das denominações canônicas formariam a imagem não exótica do Brasil:
Um dos meus cuidados foi tirar a geografia do livro. Misturei completamente o Brasil inteirinho como tem sido minha preocupação desde que intentei me abrasileirar e trabalhar o material brasileiro. Tenho muito medo de ficar regionalista e me exotizar pro resto do Brasil. Assim lendas do Norte botei no Sul, misturo palavras gaúchas com modismos nordestinos ponho plantas do Sul no Norte e animais do Norte no Sul etc. etc. Enfim é um livro bem tendenciosamente brasileiro.⁴
Povo e nação A aventura epistolar de dois grandes divulgadores do arquivo de cultura popular no Brasil ressurge num momento em que muito se discute a questão, de modo a desmerecê-la como agenda plenamente voltada para a esquerda. Na caracterização dessa cultura, é prudente enfatizar a produção de imagens de povo e de pessoas marginalizadas pelo cânone oficial, de personagens pertencentes a classes excluídas, como proletários, cantadores, os sem-nomes, os quais se inscrevem na história literária e política como desprovidos de fala e de lugar. A constituição do conceito de povo — que passa a ser escrito no plural — necessita ser devidamente explorada, tendo em vista que o avanço da discussão deve se basear em reflexões mais recentes sobre o tema. O debate sobre o popular em Mário, por exemplo, residia na defesa da cultura nacional, uma vez que pretendia valorizar o aspecto coletivo em oposição à dimensão particularizada da arte erudita. Nesse sentido, o desejo de integração do ideal comunitário do país, a valorização do homem comum e de vivências do cotidiano estampados nas suas cartas traduzem o que entende pelo conceito de popular. Com ênfase na valorização da cultura nacional, o escritor tem como proposta a união do país por meio das manifestações primitivas na arte, o que definiria o conceito de nacional em termos políticos. Em Cascudo, o folclore se resumia a “ciência do povo”, posição igualmente defendida pelo intelectual paulista, com ênfase no aspecto ainda pouco idealista da noção. Em pleno período modernizador, o escritor norte-rio-grandense investe-se contra o avanço do progresso que começava a chegar na região, provocando a perda da autenticidade dos valores arcaicos da cultura. Consiste aí um dos pontos de discordância entre os missivistas, em que pese suas opiniões poderem ser analisadas de forma semelhante: tanto o cuidado com a vitalidade da arte em vias de desaparecimento, como a crítica de Mário aos nordestinos, imigrantes povoando São Paulo à procura de melhores condições de vida. Segundo raciocínio que se estrutura de modo semelhante e invertido, a cultura popular não poderia ser afetada pela degeneração causada pelo progresso, da mesma forma que a “pureza” da vida urbana e “civilizada” poderia prescindir da presença dos trabalhadores e imigrantes. Preconceitos inversamente simétricos, em ambos os autores. Conclui-se que estavam fora de cogitação agendas multiculturais no âmbito das ciências humanas e da literatura, as quais iriam irromper nas décadas de 1960 e 1970. Ganham destaque os postulados relativos às identidades diferenciais, às emergências étnicas e às recomposições socioculturais, como a imigração, tendo em vista a proliferação de causas relativas às minorias. Cito duas passagens esclarecedoras que ressoam
na correspondência entre os compadres:
Se o Sr. Gui quisesse reconstruir devia conhecer uma raça que inda não está cantada e sim fixada — o sertanejo. E era pra vir dentro duns trinta meses porque o sertão está morrendo engolido pelos açudes, pisado pelo Ford, cego pela lâmpada elétrica. […] A casa grande derribou-se. Agora inaugura-se o estilo bolo de noiva com requififes e penduricalhos nas paredes. Vaqueiros? Sumiramse. Estamos comprando zebu, caracu, hereford etc. Bicho de comer em cocho e beber parado. Não sabe ouvir aboio nem corre no fechado da caatinga. Morre a vaquejada e com ela duzentos anos de alegria despreocupada e afoita.⁵
Nessa carta de 26 de junho de 1926 de Cascudo, evidencia-se a tendência ao desaparecimento do labor rural, pelo advento do progresso e com ele a morte do sertão e o inevitável fim das cantorias, aboios e demais cantos de trabalho. A paisagem sertaneja começava a se modificar, com prejuízo enorme para a preservação de uma cultura artística e de um povo a ela ligado. O conceito de povo estava ainda submetido à revitalização de uma comunidade que se pretendesse coesa e íntegra, e a aristocracia da casa-grande encontrava-se na iminência de sofrer grandes perdas. O espírito nostálgico do pesquisador valia-se da ausência progressiva dos sons dos aboios, substituídos agora pelo barulho motorizado dos automóveis, posição que tenta resguardar a paisagem nativa da região. A figura do sertanejo carecia ser reconhecida e cantada em versos e letras. Mário, em carta de 27 de abril de 1931, posiciona-se em plena resistência e defesa de São Paulo, diante dos problemas trazidos pela Revolução de 1930 — e a proximidade da revolução Constitucionalista de 1932 — em relação à invasão da cidade pelos nordestinos, o que já havia sido demonstrada em outras ocasiões e textos diversos. Do ponto de vista econômico, a situação traria desvantagens para a cidade que se industrializava com a presença de “estrangeiros”, incluindo aqueles vindos das regiões do Norte e Nordeste. Constata-se aí a contrapartida da opinião do escritor com a de Cascudo, pois seria a cultura citadina que se encontrava contaminada pela presença de valores estrangeiros, sendo o contato com o elemento estranho e heterogêneo a ameaçar sua independência. Do ponto de vista das composições socioculturais, a população estaria se modificando em
virtude da produção do amálgama étnico e migratório. O desabafo e a agressividade do escritor paulista devem ser considerados no contexto da situação política do momento, de grande turbulência democrática no país. O bom nordestino, no entender de Mário, seria quem conseguisse vencer as intempéries da região e não se afastasse de sua terra. Contrariando a frase de Euclides da Cunha, “o nordestino é antes de tudo um forte”:
Você se refere a um artigo meu, do tempo em que eu caçoava bem-humorado da avança indecentérrima que os brasileiros, especialmente nordestinos estavam fazendo em S Paulo. E conclui a carta, embora brincando, dizendo que agora perdeu a esperança que eu volte pra aí. É bom encontrar um homem como você, que soube ser eficaz na sua própria terra e aí ficou vivendo, pra comentar essa coisa horrorosa que está se passando por aqui.⁵¹
Guardadas as limitações de época, se considerarmos os conceitos de popular e de comunidade em Mário como equivalentes ao nacional, nessa passagem veremos que ele irá se contradizer quanto à proposta de integração do país pelo “concerto das nações” e pela diminuição de conflitos regionais. Defender o estado de origem, considerando-o superior às demais regiões, pelo seu nível de progresso e de alta civilização, implica o rompimento do desejo de integração nacional, provocado pela revolução de 1930. Afirmações distintas, pronunciadas em outras ocasiões e mesmo nessas cartas, confirmam, por outro lado, o extremo cuidado do escritor em relação à abertura para a concepção da nacionalidade como construção literária, cultural e política. Como extensão de uma pesquisa em curso, pretendo discutir o termo populismo de modo a afastá-lo da concepção politicamente equivocada nos dias atuais, caracterizada pelo emprego estereotipado e conservador de cultura popular. As vertentes opostas do populismo — de direita e de esquerda — guardam diferenças na sua concepção, uma vez que as respostas ao problema se apresentam de modo completamente diverso. Na tentativa de colocar algumas questões ao desenvolvimento do tema, aproprio-me do pensamento de Jacques Rancière, quando este discorre sobre o populismo na França. No seu entender, o conceito não serve para caracterizar uma força política definida nem uma ideologia ou estilo político coerente, servindo para desenhar a imagem de certo
povo. Ao contrário, o populismo não designa uma ideologia, nem um estilo político coerente.⁵² Nesse sentido, o emprego indiscriminado do termo contribui para torná-lo cada vez mais inócuo. Ernesto Laclau, intelectual argentino, na obra La razón populista, afirma ter o conceito posição marginal no discurso das ciências sociais pela sua constituição vaga e imprecisa. Mas essa imprecisão seria, no entender do teórico, igualável à própria indeterminação da realidade social e determinante para construir sentidos políticos. A noção de povo seria concebida como “categoria política” e não como um dado da estrutura social, por não designar um grupo, e sim um ato de instituição “que cria um novo ator a partir de uma pluralidade de elementos heterogêneos.”⁵³ “Povo” e “populismo” serão vistos como produto de uma força, de uma ação em torno de certos significantes vazios — equidade, justiça social, entre outros, como sustenta Laclau:
Así, podemos afirmar que para progresar en la comprensión del populismo, es una condición sine qua non rescatarlo de su posición marginal en el discurso de las ciencias sociales, las cuales lo han confinado al dominio de aquello que excede al concepto, a ser el simple opuesto de formas políticas dignificadas con el estatus de una verdadera racionalidad. […] El populismo no sólo ha sido degradado, también ha sido denigrado. Su rechazo ha formado parte de una construcción discursiva de cierta normalidad, de un universo político ascético del cual debía excluirse su peligrosa lógica.⁵⁴
Outros momentos desse tema serão retomados em textos variados, com o objetivo de ampliar a discussão sobre cultura e arte popular, não só no modernismo, mas também em tempos atuais. A atribuição do termo é, por vezes, realizada de modo equivocado, necessitando-se que se realize a distinção entre os conceitos de populismo de esquerda e populismo de direita. O esclarecimento desse e de outros equívocos poderá ser equacionado em tempo oportuno, a partir de reflexões que ultrapassem situações tratadas neste ensaio. Por enquanto, entendo ter sido a breve apresentação do diálogo entre os compadres a oportunidade de discutir o imbricado perfil de intelectuais do século XX, portadores de um pensamento instigante, que até hoje tem suscitado o debate sobre os tortuosos rumos da cultura popular.
(2019)
35 MORAES, Marcos Antonio (org. pesquisa documental/iconográfica, estabelecimento de texto e notas). Câmara Cascudo e Mário de Andrade: cartas 1924-1944. São Paulo: Global, 2010, p 38. 36 Cf. ensaio presente neste livro, intitulado “Um turista nem tão aprendiz.” 37 MORAES, 2010, p 76. 38 MORAES, 2010, p 82. 39 MORAES, 2010, p 140. 40 MORAES, 2010, p 113. 41 MORAES, 2010, p 47. 42 NEVES, 2000 apud CAVIGNAC, Julie A.; OLIVEIRA, Luiz Antônio; BEZERRA, Nilton X. Antropologia nativa de um ‘provinciano incurável’: Câmara Cascudo e os estudos da cultura no Rio Grande do Norte. REUNIÃO BRASILEIRA DE ANTROPOLOGIA, 26, 2008. Porto Seguro, Bahia, Brasil. Anais […]. Brasília, DF: ABA, 2008. Disponível em: http://www.portal.abant.org.br/2013/07/06/anais-26-rba/. Acesso em: 12 jul. 2021, p 12. 43 Cf. VALENTINI, Luisa. Um laboratório de antropologia: o encontro entre Mário de Andrade, Dina Lévi-Strauss e Claude Lévi-Strauss (1935-1938). 2010. 242 f. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2010. 44 ANDRADE, Mário de. Namoros com a medicina. São Paulo: Martins; Belo Horizonte: Ed. Itatiaia, 1980, p 6. 45 MORAES, 2010, p 296.
46 CASCUDO, Câmara. Em memória de Stradelli: o Conde d’Eu. Manaus: Valer Editora, 2001. 47 MORAES, 2010, p 381. 48 “A equivocada discussão entre intuição e razão no âmbito da crítica literária motivou a mudança de comportamento de Mário quanto à sua atuação como autodidata e a necessidade de acompanhar os rumos de um pensamento originado de scholars e intelectuais de outra geração.” Cf. o ensaio deste livro, intitulado “Mário de Andrade, o empalhador de passarinho”. ANDRADE, s/d, p. 185-186. 49 MORAES, 2010, p 123. 50 MORAES, 2010, p 111. 51 MORAES, 2010, p 200-201. 52 Cf. RANCIÈRE, Jacques. L’introuvable populisme. In: BADIOU, A.; BOURDIEU, P.; BUTLER, J.; DIDI-HUBERMAN, G.; KHIARI, S. Qu’est-ce qu’un peuple? Paris: La Fabrique -Éditions, 2013, p 138. 53 LACLAU, Ernesto. La razón populista. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica, 2005, p 278. 54 LACLAU, 2005, p 34.
A preguiça – mal de origem
São desgraças do Brasil Um patriotismo fofo, Leis com parolas, preguiça Ferrugem, formiga e mofo.
Paulo Prado
Mário e Oswald de Andrade, na releitura dos mitos legados pela colonização, elegeram a preguiça e o ócio como resposta aos males causados pelo processo modernizador do século XX. O autor de Macunaíma, o herói sem nenhum caráter, ao se apropriar da personagem indígena que emblematiza a preguiça, constrói uma das mais polêmicas imagens identitárias do país, visto ser a preguiça a primeira inscrição sobre o corpo do habitante nativo do Novo Mundo. Oswald de Andrade, personagem de si próprio, pela sua biografia corporifica a imagem do bon-vivant, pela obra instaura a poética pau-brasil e a antropofágica, utilizando-se da mesma ideologia imposta pelo discurso colonizador, no diagnóstico dos bens e dos males do país. A retomada, no fim da vida, da filosofia antropofágica, na Crise da filosofia messiânica, opõe o patriarcado ao matriarcado, defendendo este último como um dos componentes da cultura antropofágica, lúdica e festiva, o limiar da Idade do Ócio.⁵⁵ O tema da preguiça, além de se constituir enquanto conceito operatório na elucidação do saber que se contrapõe ao saber racionalista e iluminista, reduplica-se na série de associações que assim se apresentam: a) do ponto de vista temporal, instaura-se um tratamento diferenciado quanto à sua manipulação pelo homem moderno, seja na concepção de uma longa e lenta duração, seja na aceitação do movimento que exige pressa e rapidez conforme as exigências da tecnologia; b) dentro da ótica espacial, prevalecem os estereótipos ligados à distinção entre os lugares propícios ao culto da preguiça e ao direito ao ócio, representados por regiões de clima quente, ilhas de riqueza e paraísos terrestres, e os lugares nos quais se instala a ideologia do trabalho, representados pelos grandes centros e por lugares dotados de clima temperado; c) do ponto de vista
do comportamento social, acentua-se a diferença entre a sexualidade e o traquejo de um corpo que se move sob o signo da indolência e da preguiça a um outro, marcado ou pela rigidez das pressões do trabalho ou pela inércia e pela doença. A vocação etnográfica e museológica de Mário de Andrade permitiu aguçar o interesse não só pela composição da rapsódia, mas ainda pela teorização sobre as diferenças entre civilização e barbárie, pensamento primitivo e civilizado. Valendo-se de informações filosóficas presentes na obra de Keyserling, o escritor se apoia nessas teorias para a valorização da preguiça como condição propícia à criação e à arte, reunindo, mais uma vez, o primitivo ao poeta, da mesma forma que irá se comportar a antropologia anterior a Lévi-Strauss. Contemporâneo da política modernizadora de saneamento do país, cuja maior bandeira era erradicar as doenças de seus habitantes, Mário elege a preguiça como elemento diferenciador do brasileiro, exaltando-a na narrativa bemhumorada de Macunaíma. Insurgindo-se contra a ideologia expressa nos relatos de viagem dos cronistas europeus, em que a raiz dos vícios da terra se resumia na preguiça, além de seus desdobramentos, como o isolamento, a apatia e as doenças, consegue reverter esse quadro, ao realizar uma das mais corajosas intervenções sobre a contraditória definição de identidade nacional. Os vários escritos do autor sobre o tema — “A divina preguiça”, de 1918, seguido de “Maleita“, de 1931, passando pelo diário de bordo de O turista aprendiz, de 1927 — complementam o projeto estético e político de Mário, além de ser componente importante para seu projeto de vida. Ainda que se munisse de ferramentas interpretativas vistas hoje como ultrapassadas, como a associação entre terras quentes e a prática natural da preguiça; o conceito de primitivo como possuído de lógica mais autêntica, uma vez que se mostra desprovida da artificialidade e do progresso tecnológico do civilizado; ou a criação de um lugar utópico e paradisíaco onde se gozaria do ócio e liberaria o homem das obrigações cotidianas, consegue-se retirar daí algumas lições que muito iluminam as questões identitárias. No artigo “A divina preguiça”, o escritor discorda da associação, por parte da psiquiatria, entre preguiça e doença, anunciando o que seria sua poética futura e as múltiplas reflexões feitas ao longo de sua obra. Entende ser ela mola propulsora da criação artística, herança que os gregos legaram ao mundo ocidental — sem falar no ócio romano — ao praticarem a “contemplação ociosa da natureza”. Os indígenas, ao libertarem “as almas dos invólucros da carne, iriam também repousar, lá do outro lado dos Andes, num ócio gigantesco”.⁵
Curiosamente, esse estado de contemplação, sensualidade e liberdade vivenciada pelos homens remete à fabulação da utopia do paraíso, da Terra sem Males, onde tudo seria permitido. A presença forte no mundo medieval europeu de um país imaginário, a Cocanha, recebe a interpretação de Hilário Franco Júnior, como a “terra dos preguiçosos e dos loucos”, “terra da preguiça e da gula”, “onde tem tudo e não falta nada”.⁵⁷ Embora se organize segundo parâmetros mais carnavalizados, moldados pela ruptura e a inversão de ideais cristãos e burgueses, a Cocanha mantém pontos de semelhança com o imaginário poético da Pasárgada de Bandeira, assim como com a sensação de entrega e prazer descrita por Mário no ensaio sobre a preguiça:
E eu tive como que uma visão nova do mundo: via a Terra, modorrada de calor, redondinha, vestida de um imenso gramado esmeraldino sobre o qual a humanidade toda se deitara, chapéu nos olhos, mãos nas cavas dos coletes, pausas pantagruélicas culminando no espaço, a dormir, a dormir serenamente, num gigantesco, universal convescote.⁵⁸
O pansensualismo e a universalidade imaginada por meio da conjunção da humanidade retomam a utopia do sono como traço da preguiça e do entregar-se totalmente aos outros, comunhão religiosa preconizada pelo escritor em seus textos. Essa visão idealizada da preguiça encontra na Amazônia seu espaço ideal, o lugar de origem de Macunaíma. Torna-se, para ele, terra propícia à experiência da maleita, febre provocadora de visões e de estados de espírito e de corpo comparáveis aos prazeres do país da Cocanha. A viagem ao Norte do país, em 1927, motiva o espírito de descoberta do escritor, habitante da cidade “marota” de São Paulo a se extasiar, como um turista aprendiz, com diferente imagem do Brasil: desconhecida, povoada por uma realidade que ainda exibia costumes considerados pré-modernos e pré-industriais. A alegria do saber novo e deslocado da realidade das grandes cidades revela-se no sentimento de estar vivenciando a segunda viagem de descoberta do Brasil, após a primeira de 1924, quando da visita às cidades históricas de Minas. Em “Maleita I” e “Maleita II”, artigos datados de 1931, o escritor recupera o diário escrito durante a viagem à Amazônia e condensa a sensação de preguiça com a de doença, combinação que mais tarde será retomada de forma
contundente, aliando o prazer à dor, o delírio à concretização imaginária de desejos. Felicidade e sofrimento constituem, para o escritor, faces da mesma moeda poética. A evasão do mundo civilizado, a resposta aos desmandos do progresso modernizador, a lentidão das “atividades físicas e psicológicas”, a “calma incomparável” e “uma espécie de preguiça maravilhosa de ser” reforçam o lado criador, poético e artístico de Mário, o lado “macunaímico” e narcísico. O polo de Prometeu, responsável pelos compromissos de trabalho e as angústias de ordem pública e privada, convive com o desejo de se deixar levar pela preguiça. A paciência, o silêncio e a sabedoria da natureza, com seus coqueiros e jacarés, induzem à comunhão com o ambiente, vivência de momentos em perfeita fruição de um tempo lento e suspenso.
Quero, desejo ardentemente é ser maleitoso não aqui, com trabalhos a fazer, com a última revista, o próximo jogo de futebol, o próximo livro a terminar. Desejo a doença com todo o seu ambiente e expressão, num igarapé do Madeira com seus jacarés, ou na praia de Tambaú com seus coqueiros, no silêncio, rodeado de deuses, de perguntas, de paciências. Com trabalhos episódicos e desdatados, ou duma vez sem trabalho nenhum.⁵
O debate travado entre a experiência prazerosa do contato com a natureza, no seu tempo de duração poético, paciente e lento e a demanda da sociedade do trabalho poderia sugerir, contudo, duas atividades separadas, ou seja, a escrita, ato de prazer, se afastaria do trabalho criativo. Contudo, o culto da preguiça estende-se ao gesto de meditação do intelecto, ato de filosofar e exercitar a prática do saber desinteressado, desprovido de aspecto utilitário. O escritor evoca, em carta ao tio Pio, de 1933, o desejo de vislumbrar a civilização pautada pela paciência e a preguiça:
Tenho o dom espantoso e bem raro de me considerar feliz […]. A paz dos justos, a serenidade dos experientes, a generosidade dos superiores, e aquela concepção de vida que não de alegrias se alimenta, mas de amorosa contemplação e paciência, que por isso mesmo não é nem alegre nem triste, mas é maravilhosamente sábia.
A escolha dos lugares nos quais se sente realizado não corresponde, contudo, a um conflito de ordem geográfica, nem a oscilações comportamentais experimentadas conforme as situações. As justificativas de Mário relativas ao comportamento oscilante do brasileiro, vivendo entre climas temperados e climas quentes, se filiam a outra preocupação, a de tentar entender sua posição de intelectual e homem público. Em momentos de indecisão pessoal e de circunstâncias provocadas por situações políticas, o escritor defende a prática do trabalho sério, da disciplina e de métodos próprios a pessoas residentes em regiões de clima temperado, em contraposição àquelas originárias de regiões de clima quente. Nas conversas trocadas com amigos em cartas, culpa, por exemplo, o Rio de Janeiro pelos “defeitos dos homens”, por ter um clima tropical que convida à preguiça e a “ações sensualmente irresponsáveis”. Inaceitável como “cabeça de uma civilização”, a cidade deveria, nas suas palavras, deixar de ser a capital do país. ¹ O endosso da preguiça adquire, a partir dessa afirmação, conotação negativa, servindo de argumento para a explicação, segundo princípios naturais e fatalistas, das diferenças de ordem política e regionalista. Na redação da primeira versão de Macunaíma, o escritor reforça a presença do ambiente de euforia e descontração propício à criação. Na chácara do tio Pio Lourenço, em Araraquara, relata que no período de seis dias de descanso, após um tempo longo de consultas a todo o material disponível sobre o tema, escreve o primeiro rascunho do texto em processo. O ambiente escolhido para a escrita que explorasse a natureza preguiçosa da personagem e sua falta de caráter, foi um lugar que simbolizava os bastidores do processo de criação. O espelhismo entre criador e personagem simulava a necessidade de reiterar a força da cor local na elaboração do livro, o que resultava na integração fantasmática entre eles. Os dois prefácios não publicados na época do lançamento da obra descrevem o fazer literário de Mário, em que o armazenamento e o acúmulo de dados colhidos careciam do afastamento dos livros e dos lugares em que foram geradas as pesquisas:
Este livro, de pura brincadeira, escrito na primeira redação em seis dias ininterruptos de rede, cigarros e cigarras na chacra de Pio Lourenço perto do ninho da luz que é Araraquara, afinal resolvi dar sem mais preocupação. […]
Ora esse livro que não passou dum jeito pensativo e gozado de descansar umas férias, relumeante de pesquisas e intenções, muitas das quais só se tornavam conscientes ao nascer da escrita, me parece que vale um bocado como sintoma de cultura nacional. ²
Trata-se da revelação do processo ambivalente da composição artística, considerando-se a dialética entre a lentidão da pesquisa e a pressa com que reconstrói, pela escrita, o saber documental. O espaço e o tempo da elaboração literária, “entre rede cigarros e cigarras”, instala a ligação com a preguiça, com a utilização da rede como parte integrante do hábito de grande parte dos brasileiros do Norte e do Nordeste, da presença fabular da cigarra, associada ao canto e ao lazer, e da companhia relaxante/ ou nervosa do cigarro, convite ao devaneio e ao pensar. Escrever fora do habitat natural instaura um espaço e um tempo diferenciados para a produção literária, estado de suspensão dos afazeres cotidianos. A concepção de literatura seria para o autor o resultado do gesto envolvendo alegria e gozo, num ritmo hedonístico de trabalho que se filia, ao mesmo tempo, ao sentimento de dor e sofrimento. Ciente da grandeza de seu projeto, o escritor não se furta a declarar que Macunaíma representa um sintoma de cultura nacional, ainda que a denúncia tenha sido fruto de “um jeito pensativo e gozado de descansar umas férias”. Macunaíma, o herói de nossa gente, se molda enquanto marca linguística, ao reunir a conhecida expressão “Ai! que preguiça!…”, emblema literário da preguiça brasileira, ao dístico, emitido reiteradamente por ele, “Pouca saúde e muita saúva, os males do Brasil são”. Por se investir de intenção retórica e irônica, sinaliza oposição às teses higienistas defendidas na época pelos adeptos da política de saneamento do país. Processa-se, no nível discursivo e de maneira metafórica, a condensação entre preguiça e doença, denunciada pela fala inconsequente de Macunaíma, pois a reiteração obsessiva de frases feitas atinge efeito derrirósio e denuncia o bla-blá-blá criado em torno da questão. Os discursos sanitaristas endossados por Monteiro Lobato em vários de seus artigos, assim como a célebre frase de Miguel Pereira — “O Brasil é um vasto hospital” —, são vivamente criticados por Mário de Andrade, que reinventa o Macunaíma de forma distinta do Jeca Tatu, assumindo a preguiça como valor e desprezando qualquer pretensão moralista ou regenerativa de sua personagem. ³ Na composição desse raciocínio, o debate travado entre o herói solar e mestre da preguiça com a cultura do trabalho culmina com o sentimento de fracasso
experimentado pela personagem. Incapaz de realizações exigidas pela civilização cristã, encarna essa culpa, de maneira indireta, pela saída utópica, transformando-se em constelação. No entanto, a ambiguidade criada pelo impasse final constitui uma abertura a mais na interpretação dessa complexa personagem da literatura brasileira de todos os tempos. Sem a pretensão de refletir sobre a participação de Oswald de Andrade no tocante ao tema da preguiça, o que será em outra ocasião recuperado, remeto aos manifestos “Pau-Brasil e “Antropófago”, este mais tarde retomado no texto Crise da filosofia messiânica, onde se considera a preguiça como a “mãe da fantasia, da invenção e do amor”. Essa posição deliberadamente otimista e alegre da proposta oswaldiana, em comum acordo com Mário de Andrade, contribui para o diálogo intercultural e o entendimento tardio do modernismo. Sem o endosso de traumas e de ressentimentos causados pela herança colonial, Oswald inaugura uma das mais instigantes portas frente à vertente lúdica e carnavalizada das manifestações culturais.
*** O possível diálogo entre Canoas e marolas, de João Gilberto Noll com Macunaíma, poderá ser rastreado a partir de uma série de associações que se inicia pelo tema da preguiça, escolhido para a elaboração da novela. As semelhanças entre as duas versões são mínimas, mas ao mesmo tempo mantêm algum traço de filiação, principalmente se se levar em conta que o personagem de Canoas e marolas se aproxima do comportamento do herói, principalmente na cena final da rapsódia. De volta ao Uraricoera, após as aventuras heroicas vividas na cidade de São Paulo, doente, acometido de malária e em estado febril, Macunaíma assume o papel de um ser agônico. Desiste de permanecer na terra, deixando a inscrição na pedra que já fora jaboti e se transforma na Ursa Maior, banzando solitário no céu. O personagem de Noll, desprovido de qualquer motivação existencial, chega a uma ilha em busca de uma provável filha que, por sua vez, está esperando o nascimento do filho. Sem memória, ao perder a capacidade de experiência, e sem qualquer ilusão quanto ao futuro, para ele o presente reveste-se de ruínas, apontando a impossibilidade de movimento contínuo em direção a algum objetivo. Movido pelo tédio, a inércia e a indiferença, o personagem representa o avesso da preguiça criativa e alegre de Macunaíma, sem se encaixar nas caracterizações impostas pelo senso comum,
como as do malandro, do forasteiro ou do vagabundo:
esse forasteiro aqui que tinha desembestado pela trilha avulsa, que seria certamente o vagabundo que perambula entre as famílias e as mais diversas faixas de labuta, o malandro talvez, o ócio feito sacerdócio, um homem sempre desatento ou com a atenção sempre posta em outra coisa. ⁴
A novela apropria-se, ironicamente, de cenas e fragmentos relativos à cultura brasileira, quer na escolha do ambiente geográfico, uma ilha, lugar onde se desenrola a trama, quer na ambientação tropical, pelo clima quente, por meio do qual a preguiça é motivada pela sensação de calor. No entanto, a preguiça aproxima-se do sentimento de tédio e de inércia, por exemplo, na caracterização de personagens, que ora têm cara de índio, ora são retratados como índios, variações étnicas que no final do texto se unem à personagem principal na aventura de uma viagem sem ponto de chegada. Os resquícios de uma decantada civilização primitiva são retomados por Noll pela encenação inesperada de uma legião de índios que partem em direção ao protagonista, ao ser transformado, pelo olhar dos outros, em divindade. De figura desprovida de qualquer sentido vital, ela se torna objeto de culto, no mesmo instante que, paralisada, é reduzida à natureza vegetal, à condição de pedra. A narrativa caminha em ritmo lento e repetitivo, bem ao estilo do autor, movido pela índole letárgica da personagem, disposta a relatar, obsessivamente e sem suspense, sempre a mesma história de um homem comum. A ausência de desejo impede o deslocamento físico e estanca a imagem possível do sonho, uma vez que a sensação de letargia deveria produzir ruídos e não imagens, simples comprovação de estar-no-mundo. A eloquência retórica de Macunaíma, contador de casos alheios e inventor de situações fantasiosas, se desfaz no corpo dessa personagem terminal, em torno da qual inexiste diálogo com o outro, visto ser um luxo a existência de comunicação na ilha. A comunicabilidade se dá apenas no nível da relação entre homem e paisagem, entendimento alcançado pelo alto grau de silêncio, solidão e calma que ambos transmitem. Dessa lição de Canoas e marolas consegue-se extrair uma das vertentes da narrativa pós-moderna, pautada pelo mal-estar e pela comprovação de uma poética que, não tendo mais nada a dizer em termos de experiência e de saber
acumulado no passado, utiliza-se da retórica do fragmento e da solução formal minimalista. A obsessão por situações de perda e pelo espectro da morte transformam a escrita em encenação de enredos já conhecidos e de enunciações estereotipadas, por se tratar de uma estrutura que se organiza de forma repetitiva e circular, portanto, exaurida. Personagens e narrativas cumprem o ritual de uma estética e de uma ética da negação, da letargia e do cansaço como uma das maneiras de se inscrever na escrita faltosa e sem trégua:
O que eu queria mesmo era saber contar uma história, ou melhor, ter uma história limpa para contar. Fico aqui resmungando e resmungando e ninguém me ouve e ninguém acorre. Então me sento e depois me deito na areia à beira do rio. Faz calor. Transpiro, mas não muito, apenas para dizer que me cansei que me canso e que me cansarei. Estou deitado na areia como um sinal para a noite, para todas as noites. ⁵
Em 1973, a formulação do conceito de escrita como prazer será sistematizado por Roland Barthes, no livro O prazer do texto, o que provocou grande discussões por parte da crítica da época. Considera a literatura como mediadora da dimensão hedonística entre escritor e na qual o prazer atua como força criadora e catártica. Com o passar do tempo, essas questões foram redimensionadas. Mas a crítica brasileira dos anos 1980, principalmente aquela contrária à presença do pensamento francês na leitura do entendimento da crítica brasileira, advogava a ideia de ter sido Mário o precursor da concepção da literatura — e da crítica — como prazer. Não haveria, portanto, motivo para se valorizar a “descoberta” de Barthes, em detrimento do esquecimento do que já havia sido postulado anteriormente no cenário da crítica nacional. A posição em pauta revela-se equivocada, por demonstrar que a relação entre causa e efeito denota o desconhecimento do funcionamento das ideias, as quais se processam de modo anacrônico. Dessa forma, são abolidos o raciocínio evolutivo e o movimento temporal do antes e do depois. Reconhecer Mário como precursor de Barthes, seguindo o pensamento de J L Borges, rende muito mais para o entendimento da crítica brasileira do que se preocupar com a origem das ideias e a propriedade conferida aos autores. Menosprezar o crítico francês a favor do intelectual brasileiro, posição nacionalista acadêmica muito propagada entre nós, reitera a visão nacionalista e fechada da crítica, o que impede o diálogo
transcultural e a visão cosmopolita do intercâmbio de ideias. Silviano Santiago, em artigo de 1988, “Poder e alegria: a literatura brasileira pós-64: reflexões”, ao efetuar o balanço dessa época, nega sua posição de escritor diante da produção artística pautada pela negatividade, posicionando-se como defensor da escrita que, à maneira dos modernistas Mário, Oswald de Andrade e do compositor Caetano Veloso, se inscreve sob o modo afirmativo — e alegre — independente de qualquer intenção moralizante ou ingênua. O prazer e o sofrimento tornam-se faces da mesma moeda, considerando-se que a literatura é portadora de um discurso com parâmetros claros de construção, ao lado de projetos estéticos definidos. O “prazer do texto” resulta da cristalização da dor, transformada em positividade e trazida à superfície da palavra pela força inventiva do artifício e da técnica. É preciso alertar para questões relativas à diferença entre duas concepções de literatura, a de Mário de Andrade e João Gilberto Noll, ao se considerar a substituição do exercício salutar da preguiça — uma entre as várias maneiras de interpretar a questão identitária no Brasil, procedendo à inversão do mal e alçando-o à categoria de conceito positivo — pela concepção do ócio como tédio e doença, posição que remete ao caráter pós-utópico e apocalíptico da ficção. Trata-se de duas linhagens literárias em parte distintas. O conceito referente ao “prazer do texto”, ao ser dimensionado além do nível metalinguístico e atingir o âmbito das manifestações culturais, funciona como uma das estratégias de ativar o diálogo transcultural, por meio do traço diferencial e significativo. Os males dos trópicos, estigma que se transforma em dom, se imporiam, no final das contas, como força capaz de reverter erros de origem e de se descortinar para interpretações mais salutares e esperançosas da nossa tão heterogênea cultura brasileira.
(2002)
55 ANDRADE, Mário de. A crise da filosofia messiânica. In: Obras completas. A utopia antropofágica. São Paulo: Globo, 2011. 56 ANDRADE, Mário de. A divina preguiça. A Gazeta, São Paulo, 3 set. 1918. In: BATISTA, Marta Rossetti; LOPEZ, Telê Porto Ancona; LIMA, Yone Soares
de. Brasil: 1º tempo modernista, 1917/29. São Paulo: IEB/USP, 1972a, p 183. 57 FRANCO JÚNIOR, Hilário. Cocanha: várias faces de uma utopia. São Paulo: Ateliê Editorial, 1998, p 15. E em outro capítulo da mesma obra, intitulado “Uma viagem italiana à Cocanha: 1588” (p 133), outro exemplo: “Venham, despreocupados e companheiros, / vocês que odeiam trabalhar, / amigos das gorduras e das boas comidas, /inimigos da carestia e do penar, /homens de grande coração, não poltrões, / como os avaros os querem chamar, / venham todos, que vamos para a Cocanha, / onde aquele que mais dorme mais ganha.”. 58 ANDRADE, 1972a, p 182. 59 ANDRADE, Mário de. Maleita I. In: LOPEZ, Telê Porto Ancona (estabelecimento de texto, introdução e notas). Táxi e crônicas no Diário Nacional. São Paulo: Duas Cidades; Secretaria de Cultura, Ciência e Tecnologia, 1976, p 444. 60 ANDRADE, Mário de. Carta ao tio Pio, 18/XII/1933 apud KNOLL, Victor. Paciente arlequinada. Uma leitura da obra poética de Mário de Andrade. São Paulo: Hucitec; Secretaria de Estado de Cultura, 1983, p 136. A análise feita pelo autor do tema da preguiça e da paciência na obra de Mário mereceu atenção especial para a realização desta minha abordagem. 61 Cf. ANDRADE, Mário de. Querida Henriqueta: cartas de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa. Organização de Abigail de Oliveira. Rio de Janeiro: José Olympio, 1990. Cf. ainda SOUZA, Eneida Maria de. Autoficções de Mário. In: SOUZA, Eneida Maria de. A pedra mágica do discurso. 2 ed. revista e ampliada. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1999a, p 191-215. 62 ANDRADE, Mário de. Prefácios para Macunaíma (1928, Fotocópia do manuscrito legado pelo Autor a Luís Saia, IEB/USP). In: BATISTA, Marta Rossetti; LOPEZ, Telê Porto Ancona; LIMA, Yone Soares de. Brasil: 1º tempo modernista, 1917/29. Documentação. São Paulo: IEB/USP, 1972b, p 289. 63 Cf., para a análise de Monteiro Lobato e a sua atuação na política de saneamento do Brasil, LIMA, Nísia Trindade. Um sertão chamado Brasil. Rio de Janeiro: Revan; IUPERJ, 1999. 64 NOLL, João Gilberto. Canoas e marolas: preguiça. Rio de Janeiro: Objetiva, 1999, p 62.
65 NOLL, 1999, p 82. 66 SANTIAGO, Silviano. Poder e alegria: a literatura brasileira pós-64: reflexões. In: SANTIAGO, Silviano. Nas malhas da letra. São Paulo: Companhia das Letras, 1989, p 11-23.
Entre arte e ciência, o desafio
Pensar, analisar, inventar (escreveu-me também) não são atos anômalos, são a respiração normal da inteligência. Glorificar o ocasional cumprimento dessa função, entesourar antigos e alheios pensamentos, recordar com incrédulo estupor que o doctor universalis pensou, é confessar nossa languidez ou nossa barbárie. Todo homem deve ser capaz de todas as ideias e acredito que no futuro o será.
Jorge Luis Borges
Em 1931, Mário de Andrade responde à acusação de plágio, expressa num verbete pelo folclorista paraense Raimundo Moraes, tendo como alvo a construção de Macunaíma, o herói sem nenhum caráter, publicado em 1928. Segundo o verbete, a história do herói marioandradino teria sido copiada do mito indígena Macunaíma, colhido pelo etnólogo alemão Koch-Grünberg. O movimento modernista já se encontrava em fase de consolidação, com a instauração de uma poética transgressora, antropofágica, culturalmente voltada para a construção de uma literatura nacional, politicamente inserida na criação do estado moderno. Os procedimentos utilizados na feitura de uma obra plural, entre ficção e teoria, ficção e antropologia, inauguravam, no país, o aproveitamento dos resíduos de culturas esquecidas pelo cânone: lendas estrangeiras, linguagens próprias da fala popular, com vistas ao gradativo enfraquecimento do poder autoral e ao fortalecimento da enunciação coletiva. O processo de apropriação textual coincidia com os movimentos de ruptura artística do princípio do século XX, pautados pela paródia, pela colagem e pela bricolagem de materiais pertencentes a áreas e tempos diversos. Criar era sinônimo de deslocar, de se apropriar do outro, deglutindo-o e afastando-se do fantasma da repetição e da cópia fiel ao modelo. A leitura enviesada da tradição correspondia ao declínio da subserviência colonial, à repetição marota do imaginário cultural, infringindo leis e se impondo na sua originalidade sempre flutuante. Na literatura, o diálogo com o arquivo etnográfico promovido pela
obra de viajantes em missão no Novo Mundo forneceu ao modernismo ingredientes ainda inexplorados até então, como mitos, lendas e costumes indígenas. O modo desconstrutor de explorá-los seria a pedra de toque da prática de leitura enviesada e oblíqua, a redescoberta do Brasil, denominada pelos representantes do movimento. Na defesa articulada por Mário frente ao acusador, Raimundo de Moraes, transparece o exercício do plágio literário como saída para a reflexão sobre a tradição literária brasileira, forma de repúdio às leis impostas ao saber pelo colonizador europeu. A rapsódia Macunaíma, concebida como sátira do Brasil através de si próprio, traduzia seu retrato, no qual o negativo corresponderia aos textos parodiados, à leitura do país em termos de denúncia da retórica, do beletrismo e da pureza de linguagem herdada dos portugueses. Esquecer maliciosamente os modelos formadores da nacionalidade e recriá-los pela ficção compõem a atitude revolucionária do modernismo nascente, no propósito deliberado de se distanciar da verborragia daí decorrente. A crítica ao beletrismo e à retórica endereçava-se aos compatriotas que lhe antecederam. Cito a passagem:
Copiei sim, meu querido defensor. O que me espanta e acho sublime de bondade, é os maldizentes se esquecerem de tudo quanto sabem, restringindo a minha cópia a Koch-Grünberg, quando copiei todos. E até o Sr., na cena da Boiúna. Confesso que copiei, copiei às vezes textualmente. Quer saber mesmo? Não só copiei os etnógrafos e os textos ameríndios, mas ainda, na Carta pras Icamiabas, pus frases inteiras de Rui Barbosa, de Mário Barreto, dos cronistas portugueses coloniais, e devastei a tão preciosa quão solene língua dos colaboradores da Revista de Língua Portuguesa. ⁷
Na inclinação malandra pela civilização europeia, o herói escreve a “Carta pras Icamiabas”, disfarça-se de escritor erudito e adota o estilo dos cronistas do descobrimento. Assume outra máscara, desta vez próxima à portuguesa, redigindo a carta num português de lei e guiando-se pelos vícios retóricos da linguagem empolada dos bacharéis. Na carta, substitui a perda da muiraquitã pela conquista de outra pedra, a pedra preciosa do discurso retórico. A palavra enfeitada e simulada ocupa o lugar dos palavrões lançados na disputa com
Piaimã, “o gigante comedor de gente”, considerando-se que Macunaíma emprega as palavras conforme a situação e segundo os interesses do momento. As pérolas de retórica que envia às súditas icamiabas distanciam-se da realidade indígena, pois a própria muiraquitã, em forma de jacaré, recebe designação científica, “em forma de sáurio”, legitimada pelo uso da linguagem rebuscada. A linguagem empolada funcionaria como pedido de ajuda às icamiabas, gesto parodístico da solicitação de dinheiro feito, na Carta, por Pero Vaz de Caminha ao Rei de Portugal. A aproximação do discurso de Macunaíma com a tradição permite a comparação do talismã perdido com a busca do velocino de ouro dos Argonautas. Vacila entre a sedução da retórica europeia, com seus mitos, lendas e linguagem, e a condição indígena, aliada à figura do branco colonizado, ao macaquear a sintaxe lusíada e os vícios da civilização. Entre dois amores, Macunaíma vai selando seu destino de herói sem nenhum caráter. Recria e repete com a intenção de desconstruir a herança linguística endossada pelos eruditos, ao mesmo tempo que endossa o plágio como saída para o gesto descolonizador. Com o exemplo desse documento modernista, dou início à reflexão sobre o tema deste “Seminário Mapeando as dinâmicas das humanidades no Brasil” ⁸ com o objetivo de discorrer sobre a prática de um saber de segunda mão e afeito à bricolagem, o que caracteriza, em grande parte, o trabalho da crítica e da literatura nos dias atuais. Preservados os limites da propriedade artística, mas incorporando à criação os acontecimentos inesperados e a improvisação, é possível considerar que a categoria do novo se reveste de outras dimensões, menos vanguardistas e inseridas na revisão crítica da tradição cultural. No domínio científico, a rigidez, a objetividade e a originalidade pretendidas pelo saber moderno cedem lugar à troca transdisciplinar, ao enfraquecimento do poder autoral e à valorização do trabalho coletivo e em equipe. Assim considerados, os domínios da arte e da ciência se impõem pela produção de conhecimentos que se processam aos saltos, num diálogo intermitente entre presente e passado, entre o que o crítico cultural Raymond Williams conceituou como “residual”, ou seja, como “algumas experiências, significados e valores, que não podem ser verificados ou expressos nos termos da cultura dominante, são, apesar de tudo, vividos e praticados sobre a base de um resíduo — tanto cultural quanto social — de alguma formação social prévia.” Resíduos, restos e detritos poderiam definir um dos rumos da pesquisa na atualidade como limite móvel entre passado e presente, em que se torna
impossível remontar aos ideais genealógicos centrados na crença de um princípio, de uma origem. O presente configura-se como passado que retorna subitamente, e o passado, um presente potencial que pode insurgir a qualquer momento. Segundo essas premissas, os saberes contemporâneos são produzidos por meio da relação contraditória entre o traço impessoal do já feito, do já dito, do ready-made, objeto consagrado tanto pela vanguarda quanto pela prática experimental da bricolagem, e a singularidade da assinatura do sujeito ao reinventar o novo. A relação estreita a ser pensada entre os limites da arte e da ciência se pauta pelo recurso ao processo de apropriação de materiais consagrados ou rejeitados pela tradição, com vistas a redimensioná-los. Nesses termos, o olhar singular do sujeito frente à proliferação de resíduos e traços culturais existentes constitui a marca da diferença e do trabalho de interação com o já dito. A carência e a pobreza da experiência, cultuadas por alguns teóricos da modernidade, em virtude da falência das narrativas de pós-guerra europeia, não se impõem hoje como empecilhos à criação. O silêncio, o não saber, assim como a fugacidade e a precariedade dos valores tornam-se matéria digna de ser expressa, seja por meio da retomada do direito à repetição do impensável, seja como resistência ao lugar-comum. Extrair novos objetos pela prática da bricolagem de materiais em processo de rearranjo reside no deslocamento contínuo dos lugares fixos, no emprego do diálogo metafórico da transdisciplinaridade. Gesto ambíguo de afastamento e de afirmação de si, de confronto com a experiência do outro. Jean-François Lyotard e Lévi-Strauss, em épocas e campos distintos, teorizaram (e praticaram) a arte de adquirir novos conjuntos a partir do arranjo de materiais pré-existentes, resultando na conceituação do saber contemporâneo como bricolagem. A união do experimental, do empírico e do artístico, utilizando-se da técnica moderna da colagem, da justaposição e da descontinuidade narrativa foi um dos traços tanto da construção de saberes na perspectiva filosófica de Lyotard quanto na metodologia estruturalista lévi-straussiana. O biógrafo inglês de Strauss, Patrick Wilcken, concedeu-lhe o título de antropólogo-artista, por terse enriquecido de experiências estéticas, como o surrealismo e a música e por ter mantido o diálogo sempre desejado entre arte e ciência. No seu entender, a importância de Lévi-Strauss para o avanço das ciências humanas no século XX deveu-se ao exercício de uma prática moderna de bricolagem, capaz de desconstruir territórios fechados da ciência e de reforçar, no lugar de enfraquecer, o papel reservado ao cultivo da sensibilidade. Cito o biógrafo:
O artista em seu íntimo encontraria expressão não só na forma de escrever, mas nas ideias, na maneira de montar, como uma colagem, a profusão de materiais etnográficos que tinha acumulado. Sendo Lévi-Strauss um analista da forma, sua obra era um hino às proporções; se fosse um quadro, seria uma das telas de Poussin que tanto amava, uma composição de equilíbrio clássico sem revelar tensão ou esforço. A obra que deixava era uma espécie de pensée sauvage da academia; percorrendo as bibliotecas, ele colhia e misturava elementos que então processava, resultando em ideias admiráveis, embora especulativas: sociedades quentes e frias, bricolage, a ciência do concreto, além das belas e estranhas imagens nas oposições criadas na tetralogia Mitológicas.⁷
Essa experimentação em que se processa a bricolagem de certos dispositivos produz o elo esperado entre corpo e pensamento, gestos técnicos e categorias inteligíveis, relatos míticos e conhecimento científico. O saber-montagem, na feliz expressão de Didi-Huberman, define-se por meio de deslocamentos, da ausência de continuidade entre os termos, pela emergência do convívio entre espaços heterogêneos. Trata-se de explorar o aspecto imaginativo da relação arte/ciência pela montagem/bricolagem dos diversos componentes, o que permite a construção da rede de associações e correspondências com a “ciência nômade” preconizada por Deleuze e Guattari, em Mil platôs, sem a pretensão de se fechar em espaços utópicos do saber. A continuidade desse raciocínio se expressa de forma contundente por Didi-Huberman em Atlas ou le gai savoir inquiet, em que relaciona o termo “iconologia dos intervalos” de Warburg com outros de semelhante função no vocabulário filosófico, em contraposição ao que entende por “ciência real”:
Deste ponto de vista, a “iconologia dos intervalos” inventada por Aby Warburg mantém com a história da arte que a precede as mesmas relações que a “ciência nômade” — ou “excêntrica”, ou “menor” — mantém em Mil platôs, com a “ciência real” ou “ciência de Estado”. É um saber “problemático” e não “axiomático”, fundado num modelo de devir e de heterogeneidade que se opõe ao estável, ao eterno, ao idêntico, ao constante.⁷¹
Em reflexão paralela, Jean-François Lyotard discorre sobre a reescrita da modernidade, apropriando-se da técnica da memória em Freud ao associar o processo de anamnese à escrita, à perlaboração, no presente, daquilo que não havia sido ainda pensado. O conceito de perlaboração encontra na escrita a forma de reelaborar o passado, substituindo-se a ideia de retorno ao começo pelo movimento de inscrição sobre si mesma, por meio da concepção de um texto infindável. O acontecimento do passado reaparece no presente como aura, alusão, como se fosse uma brisa que sopra ligeiro. No livro O pós-moderno, de 1979, a fábrica de saberes irá depender dos jogos de linguagem e da performance do pesquisador, o qual dispõe das informações fornecidas pelos meios comunicacionais, devendo, contudo, escolher e recriar a partir do que se tem em mãos. O exercício de rememoração e reescrita dos materiais em processo de aprendizagem depende da habilidade de cada participante, da oportunidade em reciclar o conhecimento encontrado no meio do vasto arquivo dos saberes. Aquele que for mais astuto, entregue à pesquisa de modo a separar o joio do trigo, conseguirá reencontrar o novo e se destacar do lugar-comum do conhecimento. No quadro dos saberes informáticos e atuais, a velocidade ocupa o lugar da lentidão, atitude bastante usual durante o processo de reorganização dos dados. Cito:
À medida que o jogo está na informação incompleta, a vantagem cabe àquele que sabe e pode obter um suplemento de informação. Este é o caso, por definição, de um estudante em situação de aprender. Mas, nos jogos de informação completa, o melhor desempenho não pode consistir por hipótese, na aquisição de um tal suplemento. Ela resulta de um novo arranjo de dados, que constituem propriamente um “lance”. Este novo arranjo obtém-se ordinariamente mediante a conexão de séries de dados tidos até então como independentes. Pode-se chamar imaginação esta capacidade de articular em conjunto o que assim não estava. A velocidade é uma de suas propriedades.⁷²
O deslocamento do conceito de saber como totalidade e autossuficiência determina ainda que o aproveitamento de resíduos presentes nos objetos do conhecimento vincula-se à percepção de um tempo em que as experiências rompem com o tempo cronológico e o progresso, com vistas a operar sob as regras das descontinuidades e das multitemporalidades. O distanciamento do
olhar do presente incita repensar os acontecimentos segundo perspectiva anacrônica, em que se constata o predomínio do instante como força capaz de impulsionar a compreensão simultânea de temporalidades. A perda do sentido de profundidade de tempos do passado e das longas durações transforma a interpretação do presente em aposta de futuro, destituindo o poder de realização reservado aos projetos a serem postergados a um lugar utópico. É forçoso lembrar que o acontecimento não significa a passagem contínua das temporalidades, mas obedece ao que Foucault apresenta como herança nietzschiana, “o acaso da luta”. Golpes do acaso dependem da aceitação do sujeito do risco sempre renovado da vontade de potência, da disponibilidade de cada um para o embate do conhecimento. Desse modo, o novo não se circunscreve somente ao já dito, mas ao retorno desse dizer, à ruptura e à eclosão da ordem sucessiva dos saberes. No pensamento bastante audacioso legado por Foucault, tem-se a seguinte afirmação: “É que o saber não é feito para compreender, ele é feito para cortar.”⁷³ Muito se tem refletido sobre o conceito de sobrevivência, seja no que se refere à função benjaminiana da tradução, a qual permite que o original seja revitalizado no texto de chegada, seja ligada à capacidade que têm as formas de não desaparecer completamente, de ficar veladas à espera de um ressurgimento. Walter Benjamin e Didi-Huberman, via Aby Warburg, contribuem para o desenvolvimento da categoria da sobrevivência, pelo desejo de superação do pessimismo, entendido como consequência do mal-estar civilizatório da atualidade. Estou me referindo ao livro de Georges Didi-Huberman, Sobrevivência dos vaga-lumes. O impulso positivo inaugurado por essa categoria impede ao pesquisador do século XX conservar atitudes que rejeitem a apropriação de restos do passado como material desprovido de valor, sinalizando a necessidade de reciclar para criar, de bricolar para teorizar, de acreditar, sem remorso ou ressentimento, na força propulsora da criação. Uma aposta na leitura do resíduo como energia adormecida, prestes a ser revitalizada. Essas considerações dizem respeito à necessidade de se pensar na aceitação de um tipo de saber que se opõe aos clarões produzidos pelo desejo de totalidade e exclusão, metaforizado, segundo Didi--Huberman, via Pasolini e Walter Benjamin, na imagem titubeante, errante, intermitente e resistente dos vagalumes. O historiador da arte opõe-se, dessa forma, à posição apocalíptica de Giorgio Agamben, traduzida por “uma certa impaciência” frente ao contemporâneo, sob o ângulo da “destruição da experiência”, o que torna insuportável a existência cotidiana”.⁷⁴ Para o cineasta, com a explosão do
neofascismo dos anos 1970 na Itália, constatou-se o desaparecimento do humano, dos vaga-lumes, ofuscados pela máquina e os holofotes da industrialização e do consumo. Nada mais ecológico do que se valer da imagem do vaga-lume como uma das saídas para os impasses causados pela tão decantada ausência de experiência, pelo excesso de luz, de espetáculo e da exposição midiática e política de nossos tempos. O saber-vagalume, ao contrário, resistiria a tudo isso na configuração de um conhecimento “clandestino, hieroglífico”, um não saber. Representa, para Didi-Huberman, a resposta para os tempos sombrios, a fresta para a presença da luz que ofusca, a sobrevivência como produto da dor e da alegria:
Somos “pobres de experiência”? façamos dessa mesma pobreza — dessa semiescuridão — uma experiência. […] O valor da experiência caiu de cotação, mas cabe somente a nós, em cada situação particular, erguer essa queda à dignidade, à “nova beleza” de uma coreografia, de uma invenção de formas. Não assume a imagem, em sua própria fragilidade, em sua intermitência de vaga-lume, a mesma potência, cada vez que ela nos mostra sua capacidade de reaparecer, de sobreviver?⁷⁵
Para se discutir hoje as dinâmicas das humanidades no Brasil, nada mais estimulante do que pensar de forma positiva quanto aos destinos da criação e da imaginação nas artes e nas ciências, com o objetivo de acreditar na flexibilidade e na ausência de barreiras entre as subjetividades e o espírito de pesquisa. Não seguimos mais a cartilha da universidade moderna, pautada pela rigidez dos campos disciplinares e subjugados pelo horizonte estreito da especialização e da exclusão. Adeptos, na teoria, da abertura transdisciplinar e da aceitação do outro como parte integrante do processo civilizatório — quando a universidade passa a aceitar no seu corpo discente representantes das minorias, pessoas cuja experiência poderia ser considerada preconceituosamente fraca — agimos, na prática, de forma ambígua, optando pelo brilho e a excelência pretensamente atribuídos a uma elite. A reflexão sobre os impasses sofridos pelas mudanças ocorridas nos últimos anos no meio acadêmico torna-se também obrigatória para a retomada da categoria da sobrevivência do intelectual, muitas vezes imerso no pessimismo e sujeito às oscilações das ações afirmativas. Se a tecnologia abriu
horizontes e transformou os saberes em jogos e arranjos à disposição de todos os que frequentam a academia, não será apenas por esta via que a universidade terá firmado, na atualidade, seu perfil. Impossível negar a necessidade de engenho e arte na pesquisa, o lance pessoal na construção de saberes, como assim formulava Lyotard. Na crítica literária, campo de minha atuação, são vários os caminhos para se conseguir impor a pesquisa, sem que o apelo à novidade esbarre no lugar-comum, na repetição do já dito e do consagrado. O que é necessário, nessa empresa, é a restauração e singularização do novo, sem correr o risco de continuar reproduzindo conhecimentos. Uma vez mais, a técnica da bricolagem deverá atuar como traço capaz de dar sobrevida aos objetos esquecidos pela crítica e de rever tradições. O processo ambivalente de lembrar e esquecer modelos impostos pelo pensamento hegemônico resulta na captação dos intervalos do saber, na aceitação do ritmo intermitente entre a luz e a escuridão dos vaga-lumes. Como reflexão final, retomo a lição inaugurada, no Brasil, pelo modernismo — que em 2021 completa 99 anos —, ao recorrer à leitura da tradição cultural nacional e estrangeira como prova de nosso ilimitado desejo de nos tornarmos contemporâneos de nós mesmos. Se a construção de Macunaíma obedeceu ao procedimento ambivalente de cópia e restauração poéticas, culminando na obraprima da antropofagia modernista, o exercício crítico deverá também se apropriar desse princípio. Entre arte e ciência, torna-se necessária a prática exercida com materiais existentes na cultura, com o objetivo de inseri-los em outros arranjos, em distintas produções criativas. Os resíduos e as margens de uma modernidade em constante movimento estão à espera de leitores nos arquivos e entre os documentos inéditos legados por autores desconhecidos, excluídos do cânone literário tradicional. Estaria, talvez, nesse espaço, uma das possíveis respostas para a sobrevivência da pesquisa na atualidade, diante da sedução inevitável dos aspectos reprodutores e miméticos do senso comum.
(2015)
67 ANDRADE, Mário de. A Raimundo Moraes. In: LOPEZ, Telê Porto Ancona. Macunaíma: a margem e o texto. São Paulo: Hucitec, 1974, p 99.
68 Seminário realizado na PUC-Rio, pelo Decanato do Centro de Tecnologia e Ciências Humanas, de 19 a 21 de setembro de 2017. 69 WILLIAMS, Raymond. Base e superestrutura na teoria cultural marxista. Tradução de Bianca Ribeiro Manfrini, com revisão de Maria Elisa Cevasco. Revista USP, São Paulo, n 65, 2005, p 218. 70 WILCKEN, Patrick. Claude Lévi-Strauss: o poeta no laboratório. Tradução de Denise Botmann. Rio de Janeiro: Objetiva, 2011, p 329. 71 No original: « De ce point de vue, ‹ l’iconologie des intervalles › inventée para Aby Warburg entretien avec l’histoire de l’art qui la precède les mêmes relations que la ‹ science nomade › — ou ‹ excentrique ›, ou ‹ mineure › — entretien dans Mille plateaux, avec la ‹ science royale › ou ‹ science d’État ›. C’est un savoir ‹ problématique › et non ‹ axiomatique ›, fondée sur un modèle de devenir et d’hétérogénéité qui s’oppose au stable, à l’éternel, à l’identique, au constant » (DIDI-HUBERMAN, Georges. Atlas ou le gai savoir inquiet : l’oeil de l’histoire, 3. Paris: Minuit, 2011a, p 71, tradução nossa). 72 LYOTARD, Jean-François. O pós-moderno. Tradução de Ricardo Corrêa Barbosa. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1986, p 93. 73 FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Organização e tradução de Roberto Machado. Rio de Janeiro: Editora Graal, 1982, p 28. 74 DIDI-HUBERMAN, Georges. Sobrevivência dos vagalumes. Tradução de Vera Casa Nova e Márcia Arbex. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2011b, p. 107. 75 DIDI-HUBERMAN, 2011b, p 127.
Crítica cultural – um fio de fumo
Na metade do século XIX implementou-se, em Havana, a prática de leitura de jornais e obras literárias nas fábricas de charuto, encenada por um leitor especializado, segundo o ritual da comunicação em voz alta. Com o intuito de tornar o operário mais cultivado e em contato com as notícias cotidianas e políticas do momento, essa prática contribuía ainda para a imposição de disciplina e ordem no trabalho, incentivando e aprimorando a dedicação de cada um ao ofício. A função exercida pelo leitor, ao ocupar um lugar privilegiado no meio dos operários, numa espécie de púlpito, seria a de se posicionar como intermediário na operação de leitura. Exercia, nessa missão pedagógica, o poder de reunir ofício e lazer, cultura e comunidade, voz e silêncio. Escolhido ora pelos trabalhadores, ora pelo proprietário da fábrica, o material a ser transmitido oralmente contemplava obras clássicas de literatura estrangeira, como Os miseráveis, de Victor Hugo, O conde de Monte Cristo, de Alexandre Dumas, Romeu e Julieta, de William Shakespeare, entre outros. A ficção cubana era divulgada pelas resenhas publicadas nos jornais ou por artigos dedicados à educação da mulher e dos filhos ou à figura da artesã, com forte tendência pedagógica. A desejada conjunção entre labor e prazer teve precedentes no ritual de leitura em voz alta, costume comum nos mosteiros e conventos da antiguidade, espaço religioso no qual uma pessoa se instalava no púlpito e dirigia-se a um grupo de ouvintes, de preferência nos momentos dedicados às refeições. Com objetivos distintos, a cena de leitura instalada nas fábricas, ao lado do exercício de sua função educativa, visava ainda prender a atenção dos ouvintes/operários, para que contribuíssem para o bom andamento do trabalho, convertido em consequente lucro da empresa. Persistem, entretanto, semelhanças entre a prática religiosa e a mundana, considerando-se o empenho, mesmo que precário, em incentivar o aprimoramento da educação sentimental de cada um, promovendo o cultivo da experiência interior e do cuidado de si. A mediação literária cumpriria a nobre missão de educar as mentes e de ativar o culto ao enriquecimento espiritual da comunidade laboral. A imagem do leitor no papel de transmissor de textos deve-se à intenção das empresas em cativar os operários pela performance de uma pessoa que os
fizessem, ao mesmo tempo, usufruir do universo fabular enquanto trabalhavam. Eram também escolhidas leitoras, mas em menor número, principalmente quando o trabalho nas fábricas de tabaco passou a contar com a presença de mulheres, já que o ofício antes só era exercido por homens. Em 2005, as leitoras ainda estavam em plena atividade, o que demonstra a importância do papel dos mediadores de leituras nos ambientes das fábricas. O ritual de representação oralizada das personagens, pela mudança do tom da voz como reforço do gesto teatral, produzia o efeito esperado de empatia, levado pelo apelo dúbio entre o teor ficcional e literal da leitura. O contato dos operários com a leitura dos textos não se efetuava diretamente, mas pelo viés da presença do leitor, o qual procurava tornar verossimilhante a atmosfera de transmissão das histórias. Seria errôneo conceber a recepção do literário como destituída do apelo à fantasia, ainda que a tendência natural da maioria dos ouvintes insistisse na relação entre sua experiência pessoal e aquela vivida pelas personagens. A expansão dessa experiência poderia ser confirmada quando os operários conseguiam levá-la ao interior dos lares, reproduzindo para a família o conteúdo das histórias, ao transmiti-las como continuidade da lição aprendida na fábrica. Revitalizava-se, dessa maneira, o processo pedagógico e coletivo que havia sido impulsionado no trabalho e completado no ambiente privado. Num ritmo semelhante ao perfeito entrosamento entre trabalho e lazer, o gesto manual usado na confecção de charutos era acompanhado, em silêncio, pela encenação oralizada do ofício do leitor. Essa prática torna-se, em síntese, uma das responsáveis pela veiculação do prazer causado pela fruição do imaginário literário e da imposição da disciplina exigida pelo exercício diário. A sedução pela leitura se igualaria, em termos metafóricos, à semelhante sensação a ser fruída pelo futuro usuário do tabaco. No caso do operário, o deslocamento desse prazer retorna para a recepção literária e para a fabricação do charuto, trabalho artesanal que consiste em manusear as folhas da planta ao ritmo do movimento das folhas do livro. Não é rara a associação entre o ofício do tabaco e a arte, desde o cultivo até a degustação, entre escritores que enobrecem o vício e o elegem parceiro inseparável da criação. É oportuno ressaltar nesse cenário de leitura a heterogeneidade do público/ouvinte, composto por diferentes etnias que se concentravam nas fábricas, destacando-se aí brancos, negros, mestiços, espanhóis e chineses. No momento histórico que antecedeu a independência cubana (1898), a população constituía-se de iletrados, imigrantes e pessoas de baixa renda. Numa comunidade marcada pela diferença, não seria estranho reconhecer que havia distinta recepção por parte dos ouvintes, reiterando-se a dificuldade em se
estabelecer parâmetros rígidos para a compreensão dos textos. Com a revolução cubana de 1959, liderada por Fidel Castro e Ernesto Che Guevara, a posição do leitor foi preservada, não só por dar continuidade à proposta política e à intervenção do Estado, mas também para incentivar o trabalho, mantendo-se como exercício prazeroso e, simultaneamente, disciplinar. O ritual da leitura concentrava-se em obras estrangeiras e nacionais, incluindo-se aí textos de Maximo Gorki, Faulkner, Agatha Christie, Guevara, por meio dos quais era possível desligar-se do ambiente fechado da fábrica e compartilhar imaginariamente das aventuras saídas dos livros. A extensão de horizontes atingida pela atuação da leitura em voz alta tornou-se emblemática na atribuição da atividade livresca como instrumento formador da educação dos cidadãos. Essa missão seria fortemente eficaz, notadamente durante o regime comunista cubano, uma das importantes bandeiras assumidas, justificando-se aí o cuidado com a educação do sujeito frente às obrigações profissionais e aos ideais revolucionários. O culto ao trabalho e à obediência aos anseios patrióticos consistia na formação política do operário, peça de manobra para o bom andamento da economia. O teor desta reflexão inicial foi sugerido pela leitura do livro El lector, a history of the cigar factory reader,⁷ de Araceli Tinajero, de origem mexicana e professora de línguas estrangeiras no City College de Nova York. Segundo a autora, a pesquisa pautou-se pela análise de textos documentais, jornais, revistas, entrevistas com pessoas que, até pouco tempo, haviam exercido o ofício de leitores. Assinala ainda o pequeno número de projetos existentes que abordam a história dos rituais de leitura em voz alta, entendendo ser o estudo de importância crucial para a divulgação desta prática cultural. O objetivo do livro resume-se no que se segue:
Este livro aborda a história, a cultura e a literatura de Cuba, da Espanha, dos Estados Unidos (incluindo Porto Rico), do México e da República Dominicana. É uma história que precisa ser contada, porque o ato de ler em voz alta para um grupo de pessoas é uma prática cultural que se perdeu gradualmente com o passar dos séculos, e poucas pessoas se deram o trabalho de registrar quem fazia a leitura, o que era lido e quem ouvia. A leitura em voz alta nas fábricas de charuto é uma instituição singular cujas raízes se encontram na Cuba do século XIX e de lá se espalhou para diversas outras partes do mundo.⁷⁷
O interesse despertado pelo tema teve como parâmetro a reflexão sobre a recepção da literatura por leitores comuns, pertencentes à classe social operária, em que se destaca o apelo ao aspecto sedutor e pedagógico da leitura; a associação entre fumo, charuto e literatura, pelas afinidades existentes entre a criação literária e a arte de cultivar o ritual propiciado pelo tabaco; a utilização de marcas de tabaco contendo referência a títulos de obras estrangeiras, reveladora da apropriação popular e fiduciária do texto literário; a vinculação da crítica literária a temas sociais, culturais e políticos com vistas a estender a abordagem dos procedimentos intrínsecos do discurso, uma das tendências da prática transdisciplinar da contemporaneidade. A inserção de pesquisas ligadas à variedade de leitores considerados comuns coloca em xeque o próprio valor da literatura, ao mesmo tempo considerada objeto de crescimento espiritual do sujeito, espécie de autoajuda e de função pedagógica. Nesse sentido, seria aconselhável desconfiar das boas intenções aí inerentes, em se tratando de operários que se submetiam a receber lições de aperfeiçoamento moral, a cumprir corretamente o ofício ou a se interessar por atividades que fugiam das rotineiras, como os espetáculos de brigas de galo, muito comuns à época. Ao lado dessa função, importa refletir sobre a fruição causada pelo contato com aventuras extraordinárias, como as de Os miseráveis ou as d’O conde de Monte Cristo, romances de grande popularidade no século XIX, correspondente à projeção de sentimentos de redenção e comportamento exemplar das personagens. Embora a moral romântica transmitisse lições corretas de conduta — adquirida pelas personagens no ambiente da prisão e do convento —, a integração desse aprendizado nas fábricas concorria bem ou mal para a formação do sujeito como fruto do empenho comunitário e da afirmação da literatura como fonte de sabedoria. A integração pretendida entre as lições de literatura e o número considerável de leitores atingido no ritual presente nas fábricas foi exemplificada neste livro de referência, El lector, com a carta de Victor Hugo dirigida aos operários. O escritor teria sido, naquela época, um dos poucos que foram ouvidos por uma multidão na fábrica Partagás, a mais antiga de Havana. Por essa razão, manifestou agradecimento em carta que seria lida em voz alta pelo leitor na fábrica. O contato, mesmo que simbólico de Hugo com seus leitores/operários, reforça o elo entre a natureza de sua obra romântica e revolucionária e o público, resgatando-se a empatia entre vida e literatura.⁷⁸
Importa ainda reconhecer a função educativa da literatura para essa classe social, ao lado da concessão da crítica em aceitar a validade do gesto de recepção do discurso literário por pessoas não pertencentes ao núcleo acadêmico ou a uma classe social distinta. É aconselhável, contudo, alertar para o empenho dos donos de empresas em disciplinar os trabalhadores, em proporcionar ambiente propício ao controle dos serviços e a incentivá-los a cultivar a leitura como saída civilizatória. O efeito dessa prática não consistiria em torná-los dóceis e sensíveis, alheios a revoltas e a reivindicações? O vínculo entre a confecção de charutos, a degustação do tabaco e a circulação do discurso literário teve grandes proporções desde meados do século XIX e do XX em Cuba, assim como em outros países que importaram a prática da leitura em voz alta nas fábricas. Cabrera Infante, no livro Fumaça pura (Holy smoke), de 1960, ao registrar a presença desse costume, reconhece o prazer propiciado pela degustação do tabaco e explora a relação contaminante entre fumo e cinema.⁷ Quanto à associação entre obras literárias e marcas de charutos, a autora da pesquisa sustenta que as mais famosas recebiam o selo de títulos dos romances lidos nos ambientes de trabalho, como Montecristo (a mais vendida no mundo) e Romeo y Julieta, rótulos que permanecem ativos no mercado. O deslocamento processado entre os títulos dos livros para os rótulos dos charutos traduz a consolidação do exercício de leitura no meio operário, ao lado da valorização do produto, que recebe a assinatura de obras consagradas. Reforçase, dessa maneira, a importância das lições da literatura no meio mercantil, por enobrecer o bem a ser consumido e conceder-lhe maior publicidade, angariandolhe prestígio e sucesso. Nesse sentido, o espaço literário se expande e assume proporções populares e mercantilistas, independentes do valor canônico e reconhecido pela tradição. Fumar um Montecristo ou um Romeo y Julieta incitaria à condensação do prazer propiciado pela leitura e pelo ato de fumar. A folha do tabaco teria a função de substituir a do livro, ao mesmo tempo que provocaria a sensação de se estar experimentando um duplo prazer. Defensores do lugar intocável ocupado pela literatura, no seu estatuto autônomo e singular, sujeita a rebaixamentos por leitores desavisados e comuns, desprezam sua inserção no registro popular, por condenar a circulação livre dos ícones literários. De modo curioso e coerente, o hábito de fumar charutos persiste no meio intelectual como um todo, como índice de afinidades com o regime cubano. No Brasil, alguns escritores cultivam ainda esse ritual quase que ideológico, destacando-se a imagem sempre acompanhada de um charuto de Fernando Morais, autor de A ilha, de 1976. Tal
atitude se definiria como projeção de ideais comuns, intermediada pela degustação e fruição de um sabor especial motivado pelo objeto de desejo. O vício adquire valor artístico e metafórico, pela transposição do aspecto literal em algo que transcende o mero hábito. Fernando Ortiz, no célebre livro Contrapunteo cubano del tabaco y el azúcar (1940), aponta o jogo alegórico entre os dois produtos agrícolas de Cuba ao ressaltar as qualidades do tabaco nativo em detrimento do açúcar transplantado para a colônia. Valoriza seu cultivo como traço efetivo de identidade do país, ao lado do aspecto artesanal da manipulação do tabaco e a natureza artística de sua confecção. A analogia entre leitura e fumo, desde o gesto de produção às suas finalidades, comprova o estreito laço entre o papel do leitor nas fábricas de charutos e o manuseio silencioso das folhas pelos operários. Segundo Ortiz, o trabalho do açúcar é um ofício e o do tabaco uma arte, assim como o ato de fumar é descrito como ato pessoal de individuação, gesto consonante ao culto da imaginação.⁸ Ana Luiza Andrade, em artigo esclarecedor sobre o tema, intitulado “Açúcar, poeira, pólvora, poesia”, endossa o pensamento de Ortiz sobre a analogia entre a leitura e o ato de fumar:
Ortiz ressalta as qualidades do tabaco nativo em detrimento do açúcar transplantado, junto com o engenho. Constrói uma analogia barroca, entre os inícios e os fins do tabaco, restituindo as continuidades perdidas entre a raiz da planta, o enrolar das folhas da planta, o ato de fumar e o ato de ler, redescrevendo as maneiras físicas de seus hábitos (mascar, cheirar, fumar, folhear) derivando as variedades maiores e menores e diferenciando-as segundo etnia, classe, sexualidade etc. através de seus instrumentos: nos cachimbos, nos charutos, nas cigarrilhas, nos cigarros.⁸¹
O grande mérito do pensamento de Ortiz reside ainda na criação do conceito de transculturação, em oposição ao de aculturação, ao defender a mescla de empréstimos entre culturas como saída para os problemas da colonização. Os traços de cada cultura são incorporados, por meio do processo de inserção das práticas transculturais. O interesse por uma antropologia dos objetos inaugura o pensamento pós-colonialista de Ortiz, ao se importar não só com o teor mercantilista da produção agrícola cubana e a sua exploração colonialista, mas
também em expandir e metaforizar o emprego desses objetos. O antropólogo desenvolve, por meio de dicção poética, a cultura cubana em todos os seus segmentos, inaugurando a percepção singular da produção agrícola de um país e instaurando um espaço epistemológico original, ao unir procedimento metafórico e reflexão cultural. Essa proposta de leitura do discurso literário pelo viés popular, sem a pretensão de impor critérios e excluir outros parâmetros analíticos, é tributária da prática transdisciplinar, coerente com o diálogo de narrativas pertencentes a outros espaços de saber. O crítico cultural de nossos dias não se furta a escolher como corpus textos que irão enriquecer o debate literário, por reconhecer o gesto inútil de se prender a manifestações artísticas isoladas. No apelo à revisão de critérios equivocados atribuídos à exploração de indicadores populares das obras, na maioria das vezes causados por preconceitos de ordem política, torna-se inevitável retomar conceitos e debater posições já cristalizadas. Interessar-se pela figura do leitor nas fábricas de charuto cubano, com vistas a apontar diferentes recepções da literatura, poderá motivar discussões que vão além de princípios valorativos ou de apelo à democratização da leitura. A oportunidade de divulgar um ritual que se situa entre a literatura e o trabalho cotidiano dos operários opera no âmbito da história da recepção, das mudanças políticas e das preferências literárias ao longo do tempo. Nesse sentido, é possível recorrer ao trabalho do historiador, do crítico literário, do crítico cultural, sem privilegiar esta ou aquela abordagem, embora seja preservado o lugar enunciativo de quem assume a palavra. A consideração sobre a recepção popular do texto e das circunstâncias de sua emissão deverá ser devidamente interpretada por visões heterogêneas, embora conflitantes, mas nunca exclusivas. Na atualização do procedimento transdisciplinar, a perspectiva horizontal prevalece sobre o sistema de hierarquias e verticalidades, entendendo ser o prefixo trans o que propicia o trânsito sem fronteiras entre as disciplinas. O conceito de popular desliza entre os espaços e não se restringe ao discurso político ou social. A invisibilidade destinada aos discursos marginalizados sempre se valeu da força hegemônica das manifestações canônicas, não recebendo a atenção devida pela academia. O fato de ser a própria literatura latino-americana ainda pouco estudada entre nós revela igualmente a distância da crítica em torno de manifestações culturais exercidas alhures, como prova o estudo sobre a figura e a função do leitor nas fábricas de tabaco. No meio acadêmico nacional e estrangeiro, não é mais possível ignorar a
relevância que os estudos culturais adquiriram para a compreensão e abertura dos estudos literários, vinculados, muitas vezes, à limitação do valor intrínseco da literatura, com suas regras e leis. Não se verifica, atualmente, a antiga efervescência do debate cultural, iniciado no Brasil nos anos 1980, por ocasião da abertura política no país. Na pauta das discussões, predominava o conflito entre discursos hegemônicos e das minorias, o protagonismo da subjetividade na crítica, ao lado de exageros cometidos na defesa do “politicamente correto”. No entanto, embora esteja o debate mais amadurecido e menos radical, é forçoso insistir que as correntes críticas não desaparecem ao sabor das novidades, ainda que sofram ao longo do tempo processos de revisão e reformulação de ordem teórica e metodológica. Do ponto de vista histórico e político, em virtude de mudanças verificadas no atual ambiente global, acredita-se que o papel da crítica seria o de endossar posições que a levassem à observação do momento presente em direção ao que poderia ter sido recalcado no passado. Essa posição se justifica graças ao inevitável questionamento das ideias, imposto pela própria fragilidade de saberes e conceitos. No lugar de admitir essas ideias como ultrapassadas e sem serventia, seria oportuno considerar que elas sempre retornam e, intempestivamente, irrompem no presente, reforçando sua sobrevivência e sua potência de significação. O retorno não significa repetição sem diferenças, mas persistência no elo igualmente produtivo dos remakes e dos revivals. Importa reconhecer serem as teorias imunes aos princípios de uma temporalidade homogênea e causalista, na qual se preservam as noções de origem e fim de determinado pensamento, de morte e renascimento de saberes. O discurso crítico, como a literatura, responde ao apelo do presente, seja para contrariá-lo ou endossá-lo, seja para se afastar ou se aproximar dos acontecimentos. Na atual conjuntura global, em que se processa a virada direitista na política e nos costumes, como ignorar preconceitos diante dos direitos de classe social, raça, etnia e gênero? Como menosprezar a urgência de uma militância por parte dos intelectuais no centro dos interesses acadêmicos? No Brasil, por efeito de polarização política e recrudescimento de vozes marginalizadas pela sociedade, torna-se impossível desvincular a crítica do apelo social, por acreditar que a função dos discursos emergentes consegue provocar diálogos até então desprezados pela academia. O cuidado com a interpretação desses discursos não deveria, contudo, se ater a posições fundamentalistas e polarizadas, mas a respeitar o paradoxo e a contradição como dispositivos válidos para a consolidação do debate crítico. A intenção em discutir a situação
dos estudos culturais no sistema acadêmico de nossos dias não pretende olhar com desprezo para suas antigas conquistas, mas insiste em acreditar na sobrevivência de propostas e princípios. O fato de ter incorporado à pesquisa sobre o popular a presença de leitores e seu ofício exercido nas fábricas de charutos rende tributo a temas muitas vezes pouco frequentes na escolha de material de trabalho. Integrar ao debate o convite à recuperação de valores literários independentes de sua fruição hegemônica e excludente é um passo adiante para o rompimento de barreiras e abertura de desafios e renovações críticas. A complexa e ancestral definição de literatura e seus desdobramentos para outras artes lograriam êxito se fossem repensados critérios referentes às distintas recepções, aos meios diferenciados de divulgação e às contraditórias funções atribuídas à leitura de textos.
76 TINAJERO, Araceli. El lector: a history of the cigar factory reader. Tradução de Judith E Grasberg. Austin: University of Texas Press, 2010. 77 No original: “This book covers the history, culture, and literature in Cuba, Spain, the United States (including Puerto Rico), Mexico, and the Dominican Republic. It is a story that must be told, because reading aloud to a group is a cultural practice that has gradually been lost over the centuries, and few people have taken on the task of making a record of who did the reading, what was read, and who the audience was. Reading aloud in cigar factories is a unique institution that traces the roots to nineteenth-century Cuba, and from there spread to several other parts of the world.” (TINAJERO, 2010, p xvii, tradução de Anderson Bastos Martins). 78 TINAJERO, 2010. 79 Embora tenha sido crítico severo do regime castrista, Cabrera Infante não abandona a importância do fumo como traço da cultura cubana; demonstra, nessa obra, o prazer proporcionado pelo cigarro e sua relação com o cinema. A capa do livro traz a imagem do comediante Groucho Marx com um charuto na boca, sua marca registrada. O comediante entendia ser este gesto uma prova de transgressão e humor. Cf CABRERA INFANTE, Guillermo. Fumaça pura. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003. 80 Cf. ORTIZ, Fernando. Contrapunteo cubano del tabaco y el azúcar. Habana:
Consejo Nacional de Cultura, 1963. 81 ANDRADE, Ana Luiza. Açúcar, poeira, pólvora, poesia. Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, Brasília, n 21, jan./jun. 2003, p 12. Disponível em: https://periodicos.unb.br/index.php/estudos/article/view/8927. Acesso em: 12 jul. 2021.
Nas margens, a metrópole
Na proliferação de metáforas utilizadas para a construção do imaginário crítico da América Latina, a “cidade letrada” se impõe como uma das mais rentáveis. No entender do crítico uruguaio Ángel Rama, autor do livro de mesmo título, é por meio dessa imagem que se modelou todo o processo histórico-cultural americano, iniciado com a colonização. A configuração espacial da cidade, com suas leis e hierarquias, planos e mapas, converteu-se, para Rama, em lugar teórico que representaria, em miniatura, a narrativa letrada da história latinoamericana. No centro urbano, demarcado por prédios governamentais, bibliotecas, universidade, teatros e livraria, estava representado o modelo do poder adotado na região, que resultou na criação da esfera pública e na modernização da cidade. Uma das mais contraditórias heranças da colonização tem sido a associação direta entre escrita e poder, considerando como “letrado” todo aquele que, tomando parte do grupo de religiosos, educadores, escritores e servidores intelectuais da sociedade, “utilizava a caneta”. A publicação póstuma de La ciudad letrada, em 1984, após a morte de Rama num desastre aéreo, (com tradução em português publicada em 1985)⁸² revelou ter a pesquisa do crítico se estendido até a década de 1970, tornando-se lacunar sua cartografia no que se refere aos períodos subsequentes. Citem-se a implantação das ditaduras latino-americanas, as reconfigurações sociais provocadas pelos exílios dos letrados opostos à escrita do poder ou a cultura produzida nos moldes do neoliberalismo global. O atual desenho das cidades tem se desvinculado do modelo cuja marca ostenta o selo da modernidade. Diante das transformações sofridas no nível econômico e cultural, observa-se a consolidação da cultura de massas global e o deslocamento de uma comunidade de intelectuais dos centros culturais para os circuitos periféricos. Tais mudanças acentuam a fragmentação do espaço urbano e a produção de redes comunicativas virtuais, como efeito das novas tecnologias, o que resulta na transformação da própria experiência estética. The decline & fall of the lettered city,⁸³ livro de Jean Franco, professora emérita da Universidade de Columbia, publicado em 2002 pela Harvard University Press, retoma a narrativa cultural e política da América Latina dos últimos quarenta anos e vai além da pesquisa de Rama, ao reler o poder imperial pela via tortuosa e difícil das margens.
Na construção do discurso crítico sobre a América Latina a partir da apropriação do paradigma da cidade letrada, a autora vale-se do mecanismo alegórico, ao associar o heteróclito tecido urbano ao continente. As variações ocorridas na cena cultural e política ao longo dos anos tornam-se visíveis na produção do imaginário citadino e nas manifestações artísticas e literárias. Na proposta de leitura de Jean Franco, impõe-se o olhar oblíquo da diferença e a posição da crítica feminista que se inscreve frente aos outros discursos. Intelectual argentina atuante no desenrolar da história cultural na América Latina desde a década de 1950, Franco sente-se à vontade ao relatar experiências pessoais que ilustram o tema abordado, reunindo a narrativa de vida com a história. Registra seu encontro com Pablo Neruda na Itália; a passagem por Cuba, em 1953, dias após o ataque de Fidel Castro a Moncada; o filme O carteiro e o poeta, assistido em Nova York; experiências causadas por duas idas à cidade do México e a visita ao túmulo de Evita Perón, no cemitério da Recoleta, em Buenos Aires. A proximidade com os acontecimentos aguça o olhar crítico no lugar de abrandálo, mantendo o distanciamento analítico como tática e a experiência como forma de igualmente protagonizar o enredo das margens. O grande mérito do livro reside no cuidadoso painel da história cultural e política do continente, em que são esclarecidas as distintas vertentes do discurso crítico da época, especialmente as desavenças políticas entre escritores, em virtude da reivindicação de vanguarda para a Cuba pós- -revolucionária frente à política colonialista norte-americana. As narrativas literária e cultural constroemse em simultaneidade à narrativa política, sem a sujeição analítica de uma em relação à outra, mas pela articulação engenhosa entre elas. O projeto de ocupação do espaço cultural latino-americano pelos seus agentes contou, a partir da Segunda Guerra Mundial, com a interferência dos Estados Unidos, o que permitiu entender mais de perto os embates ideológicos criados pela Guerra Fria. O leitor penetra nos arquivos abertos pela autora, informando-nos sobre a criação de revistas literárias, seu projeto editorial e seus agentes mediadores; a vinculação a órgãos de controle, como a CIA, a Fundação Rockefeller, a Política da Boa Vizinhança; a participação de intelectuais na academia e na esfera pública; a censura ao comunismo e às manifestações ligadas à mulher, aos gays e aos demais grupos de excluídos. Pontuando os lugares ocupados pelo corpo de letrados vivendo sob o fogo cruzado da Guerra Fria, do poder decisório das instituições e de realizações bem-sucedidas das criações artísticas, o livro presta grande serviço aos leitores jovens, atualmente mais seduzidos pelo aparato teórico dos estudos culturais do que pelos bastidores históricos dos quais se originaram esses textos.
Na tentativa de corporificar os discursos que compõem a cena latino-americana, Franco tem o cuidado de abordar não só as manifestações literárias, mas também aquelas que constituem o imaginário cultural e político do continente: o cinema; as instalações artísticas; as performances; a música urbana; a propaganda; a fotografia; a crítica literária; os acontecimentos políticos; os intelectuais; os pop stars; os ídolos políticos e sua atuação midiática. O tecido cultural insere-se na rede de discursos da margem, de resquícios do repertório dos signos oficiais, construtores de novas subjetividades encontradas na área urbana. Dentre a variedade de discursos, regidos na atualidade pelas leis do mercado, constata-se que tanto o literário quanto o de intelectuais de outras áreas ocupam hoje lugares de exclusão. É notória a força da política excludente mesmo no interior do mercado, que, em princípio, deveria se comportar como livre e aberto a todas as manifestações culturais. O fim da cidade letrada implicaria ainda o fim do paradigma do saber moderno, base de sustentação da hegemonia cultural da palavra escrita. Diante da existência de narrativas que desfazem a dicotomia entre erudito e popular, alta cultura e cultura de massa, escrita e oralidade, o traçado da cidade letrada perde sua eficácia e abre mão de uma cartografia e de um plano racional e hierárquico. Franco segue a trilha iniciada por Beatriz Sarlo, para quem não se trata de considerar o espaço da margem como o espaço da liberdade, pois o atual procedimento de leitura não pretende transgredir as regras, mas suspendê-las. É aconselhável refutar o raciocínio binário e excludente, a ilusão de que a intervenção pelas margens pretenda substituir uma situação por outra. Exterior e interior não mais se inscrevem como parâmetros constituintes do jogo de deslocamentos, uma vez que a dobra da margem é o que sustenta a permeabilidade entre fora e dentro, segundo princípios avessos à priorização entre os polos. O modelo cartográfico, o mapa dos territórios, com o desenho racionalista e binário entre pontos centrais e periféricos, não exercem mais a função de representar. Nesses termos, a ficção moderna de Borges sinaliza para Sarlo a desconstrução do conceito de universal, ao colocar-se, com astúcia, nas margens, nas zonas obscuras das histórias centrais que integram a história. Em Una modernidad periférica: Buenos Aires 1920-1930, a autora acentua a originalidade do escritor argentino, ao optar por uma ficção seduzida pelas outras zonas portenhas, situadas entre a cidade e o campo, espaço imaginário que se opõe à visão humanista dos subúrbios e prepara a releitura das “histórias infames”, das margens da literatura universal, “pensadas como espaço próprio e não como
território a ser adquirido”:
Borges “universaliza” los temas de la literatura argentina, con el gesto que afirma la legitimidad de toda historia, incluso la más descabellada por exotismo, la más impensable. Pero, qual es la universalid postulada? Precisamente la que cultivará Borges desde entonces: colocarse, con astucia, en los márgenes, en los repliegues, en las zonas oscuras, de las historias centrales. La única universalidad posible para un rio-platense.⁸⁴
No livro de Jean Franco, um dos exemplos de resistência do discurso das margens encontra-se na obra de Clarice Lispector, em especial em A hora da estrela, pela criação da personagem nordestina Macabéa, imigrante perdida no estranho e desconhecido mundo da cidade grande. Fruto da corrente migratória e da modernização operada nos centros urbanos, a personagem faz parte do grupo de excluídos no próprio país, cujo único contato com a cidade se realiza por meio da audiência da Rádio Relógio. Como Macabéa, uma classe de vagabundos, sem-teto e marginais povoa o universo fragmentado das cidades, distante dos ideais de cidadania e sempre na condição de deslocamento. Outro exemplo é o testemunho da índia guatemalteca Rigoberta Menchú:
O testemunho da indígena guatemalteca Rigoberta Menchú é uma exemplificação incontornável do poder das margens, com repercussões para além das fronteiras da América Latina e dando vazão a uma hostilidade conservadora na academia estadunidense e na imprensa por causa da ameaça ao cânone (e por consequência à comunidade imaginada da cultura ocidental).⁸⁵
As inusitadas reações provocadas pela consagração de seu testemunho no meio conservador da academia constituíram um divisor de águas entre os defensores do cânone literário oficial e os que se afastavam da concepção limitada de literatura, estreitando-se, de forma irreversível, os laços entre a cena literária, cultural e política.
O universal metropolitano O momento de abordagem histórica, o período da Guerra Fria, acirrado na América Latina pela revolução cubana, permite à autora o desmonte do aparato ideológico de natureza binária, responsável pelos critérios de inclusão ou de exclusão da literatura no cânone universal. As produções literárias latinoamericanas — excluindo-se, como sempre, as do Brasil — atingem notoriedade internacional e gozam do prestígio inaugurado pelo boom. Franco manifesta cautela em não se deter apenas no esclarecimento dos conceitos utilizados na legitimação das obras desse período, contextualizando-os. São questionados, de modo acurado, as noções de universal e particular; de realismo mágico/real maravilhoso; de estilo internacional como traço da globalização futura; do realismo de base comunista e do populismo. O questionamento configura-se pelo emprego do método de trabalho referente à análise textual, o que impulsiona o convívio do leitor com as histórias fabulosas do imaginário latino-americano. O empenho analítico da ensaísta concentra-se na revisão dos conceitos empregados na elaboração de teorias nas quais se verifica a transposição do universo fabular em reflexão metateórica. Ao refletir sobre a articulação entre o conceito de universal e de nacional, Franco constata a predominância do discurso crítico em conceber a transcendência do nacional, pela afirmação do valor autônomo da literatura. A força teórica do livro Teoria da literatura, de René Wellek e Austin Warren, publicado na década de 1940, teve papel preponderante para a consolidação do conceito de universal, ao desenvolver princípios de crítica literária e comparada regidos pelo pensamento etnocêntrico. Para os autores seria uma obra dotada de natureza universal aquela que mantivesse o olhar voltado para a conjunção entre valores intrínsecos e os requisitos ditados pelas regras ocidentais. Constata-se, atualmente, que uma parcela da crítica tanto universitária quanto fora dela, ainda se apoia nesses critérios de valor, à medida que o universal responderia pela presença de um conceito abstrato concebido pelo cânone literário ocidental. Segundo Jean Franco, a imposição da categoria de universal conseguiu ampliar o foco de atuação, descuidando-se da heterogeneidade cultural da cultura da América Latina: “O discurso do desenvolvimento tendeu a homogeneizar os povos do Terceiro Mundo e tomou por certa uma teleologia ao propor que, cedo ou tarde, os ‘nativos’ serão reformados”.⁸
A tendência alegórica da estética do boom, uma das alternativas utilizadas contra a vigilância das ditaduras, representou o prestígio vivido pela literatura da época, ao lado do destaque da autoridade do escritor para se expressar contra a ordem estatal e autoritária. A América Latina é ainda dotada de força revolucionária ao se representar como utópica, graças ao valor telúrico e mágico do território. Mas a ensaísta se insurge contra a idealização do espaço latino-americano, justificando-se pela recusa dos conceitos de “real maravilhoso” e de “realismo mágico” produzidos pela crítica da época. A escrita fantástica era interpretada segundo critérios ligados à marginalidade e analisada sob a perspectiva do apelo ao exótico e à fantasia. A escolha do tema relativo ao corpo feminino estaria vinculada ao irracional e à sensualidade, laboratório de experiências teorizadas pelos cientistas do norte. O termo “realismo mágico” funcionou, graças à preponderância dos discursos hegemônicos, como definição do estilo paradigmático do Terceiro Mundo, pela consolidação de estereótipos interpretativos. Se do ponto de vista da economia, o continente era classificado como subdesenvolvido e, no âmbito político, imaturo, de que maneira se comportaria sua literatura, em busca de legitimação de um lugar na cultura metropolitana? As teorias econômicas sobre o desenvolvimentismo contribuíram para acentuar a qualidade religiosa e pré-moderna dessa ficção, além de colocá-la fora do projeto político de emancipação: “A América Latina tem sido, desde a conquista, um corpo experimental no qual o mundo desenvolvido mostrou sua virtuosidade”.⁸⁷ Na ânsia de se igualar ao resto do mundo civilizado, escritores como Octavio Paz vislumbraram a saída pelo viés da modernidade, com o objetivo de romper o espectro do anacronismo que ameaçava a literatura latino-americana. Assim, nos tempos modernos, a defasagem temporal entre as culturas desaparece, o que torna os mexicanos contemporâneos aos demais, pelo grau de cosmopolitismo e universalidade atingido pelos processos de modernização urbana. Essa posição de Paz consolida-se a partir da defesa da literatura que, ao se tornar menos provinciana, consegue transcender as barreiras nacionais e integrar-se ao concerto moderno das nações. A posição conservadora do escritor mexicano diante da política e da história seria, para Jean Franco, a antecipação da ideologia neoliberal, notadamente de acordo com a polêmica teoria sobre o “fim da história”.
Doces Bárbaros
“O individualismo baseado na integridade do corpo não é mais possível na sociedade de massa.” Carlos Monsiváis, autor da frase, é um dos cronistas da megalópole mexicana citados por Jean Franco para discorrer sobre o desaparecimento gradativo da sociedade de letrados, assim como sobre os efeitos de fragmentação e ruptura provocados no meio citadino. Jesús Martin-Barbero e García Canclini são igualmente parceiros na construção de um texto esclarecedor sobre a cultura de massa na era da globalização. Nesse novo cenário, o travestimento sexual e a inserção de “poéticas do acontecimento” no corpo social são interpretados por Jean Franco com a ajuda da rede conceitual de autoria de Gilles Deleuze e Félix Guattari, presente, em especial, em O antiÉdipo: capitalismo e esquizofrenia (1972-1973). Categorias como desterritorialização, micropolíticas, pluralismos, linhas de fuga, acontecimento e devir minoritário estão de tal forma integrados ao vocabulário do discurso crítico contemporâneo que, muitas vezes, nem se cogita indagar sobre sua autoria. Seu valor reside na popularidade e eficácia dos conceitos e, daqui a alguns anos, quem sabe se saberemos dizer quem os trouxe para o debate teórico? A sua extrema atualidade e a apropriação efetuada entre muitos dos pensadores latino--americanos provocaram abordagens desterritorializadas de nosso imaginário, ao romper a relação natural da arte com a realidade, modalizando sua tendência socializante. No entender de Jean Franco, essa rede conceitual motiva novo vocabulário de resistência, pela atenção à análise dos espaços periféricos e do discurso minoritário, concedendo ao intelectual a retomada de posição crítica e não pedagógica. O rompimento com o sistema binário de oposições — de utilidade para a consolidação do discurso crítico da Guerra Fria — instaura a convivência com o pensamento paradoxal e permite a reflexão sobre questões de nosso tempo. Uma das mais rentáveis expressões desse vocabulário, a “poética do acontecimento”, é utilizada pela ensaísta como apoio ao entendimento das práticas culturais encenadas no meio urbano. Igual estratégia se encontra no pensamento de Nelly Richard, crítica chilena, ao discorrer sobre o papel das experiências políticas, estéticas e culturais que interagem num mesmo espaço citadino. Objetiva-se, dessa maneira, o deslocamento do lugar hegemônico que sempre ocupou a literatura frente a outras práticas culturais, ao serem retomadas manifestações refratárias do arquivo oficial, como memórias, fotografias, performances de artistas de rua, como os travestis, gays etc. A “poética do acontecimento” propõe uma série de interpretações relativas a
certas práticas populares próprias ao ambiente urbano. Carlos Monsiváis, no livro O fugitivo permanece, reconhece aí um novo protagonista, a multidão, com vistas a atenuar o espectro do anonimato inerente às grandes cidades. Descartando o projeto político da modernidade, em que se elegia o povo como sujeito social privilegiado, teorias inauguradas em décadas anteriores, como as de Paolo Negri e Hardt, introduzem a função exercida pela multidão como figura alternativa da qual se irrompem as novas subjetividades. Dotada de caráter heterogêneo e atuando de maneira inesperada e fragmentada, a multidão não endossa sinais de classe, funcionando como meio de instauração de uma política pós-moderna. A ensaísta traduz com clareza o raciocínio conclusivo sobre a multidão, proferido por Monsiváis, cronista urbano do México:
Ciente de que o papel pedagógico da cidade das letras e o utopismo da cidade das palavras pertencem ao passado, que o escritor está agora engajado num jogo de sobrevivência que é talvez também uma batalha contra o anonimato, Monsiváis monitora incansavelmente a cena urbana e em particular a nova protagonista — a multidão — “a multidão dentro da multidão”, “as multidões no metrô”, “as multidões (de estudantes fazendo provas) no estádio universitário”, “o torvelinho do trânsito”.⁸⁸
Diante das inúmeras inserções do discurso marginal no espaço citadino contemporâneo, Franco acena para a presença de outro ensaísta, de nacionalidade espanhola, mas radicado na Colômbia, Jesús Martin-Barbero, para iluminar a discussão em pauta. No clássico livro Al sur de la modernidad, Barbero torna reversível a célebre frase de Benjamin, “todo documento de cultura é também um documento de barbárie”. No intuito de desfazer opiniões negativas de estudiosos do discurso musical, como Adorno, Kundera e Steiner, ao opinarem especificamente sobre o rock, o antropólogo afirma que “nesses obscuros tempos, há documentos de barbárie que poderiam estar sendo documentos de cultura.”⁸ Contrário à acusação de ser o rock pretexto para a instauração da barbárie, Barbero avalia positivamente o gênero musical, por este se configurar como “nova esfera sonora capaz de produzir formas de solidariedade grupal e abalar a velha autoridade da ordem verbal.” São movimentos que atravessam, minam e subvertem a cultura, seja através da ilegibilidade dos grafitti, dos ruídos das cidades, seja por meio dos ritmos que se
mesclam aos demais barulhos urbanos, fazendo irromper as frágeis utopias do cotidiano. O antigo cenário letrado das cidades cede lugar às manifestações artísticas transnacionais e ao surgimento de comunidades periféricas, produtoras de novas sensibilidades e múltiplas subjetividades. The decline & fall of the lettered city, leitura obrigatória para os estudiosos da América Latina, poderia, contudo, ter contemplado produções artísticas, literárias e culturais brasileiras, o que levaria o panorama a ser mais completo. Como conhecedora da nossa cultura, a exclusão do Brasil na América Latina não deveria continuar a se repetir em estudo tão minucioso e politizado da ensaísta. Clarice Lispector, Jorge Amado, este, por meio da abordagem cuidadosa de seus textos, e pelo reconhecimento de sua posição política como ativista do Partido Comunista; Darcy Ribeiro, Mário de Andrade, Guimarães Rosa e Paulo Lins, autor de Cidade de Deus, participam, a título de ilustração, de modo superficial e com pouco espaço de discussão no livro. A ausência de diálogo com autores de crítica cultural é mais grave, dada a tradição de um pensamento reflexivo e atuante entre nós, assim como a existência de pontos em comum entre a cultura hispano-americana e a brasileira. Silviano Santiago, por exemplo, está presente como crítico, mas não como produtor de teorias e de textos seminais sobre as relações entre discursos metropolitanos e pós-coloniais. Tampouco é mencionado na condição de escritor, embora seja o autor de Stella Manhattan, história passada em Nova York, em plena ditadura militar brasileira. A obra versa sobre a temática gay e a questão identitária, tópicos de grande destaque no livro de Franco (Severo Sarduy, Néstor Perlonguer, Arenas), quando se examina os limites impostos pelo regime cubano e o travestimento sexual como resposta a uma política majoritária. Se o boom da literatura latino-americana na década de 1960 não integrou a literatura brasileira na sua agenda, a crítica cultural dos últimos anos, associada fortemente à crítica latino-americana produzida na academia norte-americana, poderia ter-se precavido contra a possível segunda exclusão dos brasileiros. A proliferação teórica das últimas décadas, graças à divulgação eficiente dos meios tecnológicos, conseguiu romper fronteiras geográficas e atingir níveis de interação até então nunca vistos. Não se justifica, portanto, a conservação de políticas culturais excludentes. O fenômeno da globalização, infelizmente, muitas vezes consegue repetir políticas hegemônicas, criando arestas no interior do próprio discurso das margens. Sem a intenção de dramatizar o discurso do excluído pelo viés do ressentimento,
nem culpabilizar a autora por uma posição que independe de posições isoladas, seria forçoso acentuar que o conhecimento mútuo entre culturas próximas e afins encontra-se, no momento, em franca expansão, graças ao avanço das relações de trocas entre intelectuais latino-americanos. Esse árduo e agradável intercâmbio merece ainda novos impulsos e a contribuição de políticas transnacionais, única saída para a consolidação do diálogo entre culturas.
(2004)
82 RAMA, Ángel. A cidade das letras. Tradução de Emir Sader. São Paulo: Boitempo, 1985. Em 2015 foi reeditado, pela mesma editora. 83 FRANCO, Jean. The decline & fall of the lettered city. Cambridge, MA: Harvard University Press, 2002. 84 SARLO, Beatriz. Una modernidad periférica: Buenos Aires 1920-1930. Buenos Aires: Ediciones Nueva Visión, 1999, p 49-50. 85 No original: “The testimony of the Guatemalan Indian woman Rigoberta Menchú is an unavoidable illustration of the power of the margins; it has had repercussions beyond the borders of Latin America, unleashing in the US Academy and in the press conservative hostility because of the threat to the canon (and hence to the imagined community of Western culture)”. (FRANCO, 2002, p 16, tradução de Anderson Bastos Martins). 86 No original: “The discourse of development tended to homogenize Third World peoples and assumed a teleology to the extent that it proposes that the ‘natives’ will sooner or later be reformed.” (FRANCO, 2002, p 139, tradução de Anderson Bastos Martins). 87 No original: “Latin America had, from the conquest onward, been an experimental body on which the developed world showed off its virtuosity.” (FRANCO, 2002, p 139, tradução nossa). 88 No original: “Aware that the pedagogical role of the lettered city and the utopianism of the city of words belong to the past, that the writer is now engaged
in a game of survival that is also perhaps a struggle against anonymity, Monsiváis tirelessly monitors the urban scene and in particular the new protagonist — the multitude – ‘the multitude within the multitude’, ‘the multitudes in the metro’, ‘the multitudes (of students taking exams) in the University Stadium’, ‘the whirlpool of traffic’.” (FRANCO, 2002, p 195, tradução de Anderson Bastos Martins). 89 BARBERO, J. M. Al sur de la modernidad. Pittsburgh: Instituto Internacioanal de Literatura Iberoamericana, 2001. p. 50. 90 BARBERO, J. M. op.cit., p. 79.
Babel multiculturalista
A “torre de Babel” não configura apenas a multiplicidade irredutível das línguas, ela exibe um não-acabamento, a impossibilidade de completar, de totalizar, de saturar, de acabar qualquer coisa que seria da ordem da edificação, da construção arquitetural, do sistema e da arquitetônica. O que a multiplicidade de idiomas vai limitar não é apenas uma tradução “verdadeira”, uma entre expressão (entre expression) transparente e adequada, mas também uma ordem estrutural, uma coerência do constructum.
Jacques Derrida
A primeira motivação para a escolha do tema deste texto foi o filme Babel, de 2006, do diretor mexicano Alejandro González Iñárritu, com roteiro de Guillermo Arriaga. ¹ A sensibilidade no tratamento de questões ligadas a diferentes culturas, a montagem de cenas simultâneas enfocando quatro países, os dramas das personagens guiados por fios e conexões inusitadas, representam uma das mais originais perguntas feitas ao mundo no momento pós-11 de setembro. Sem a pretensão de esgotar a leitura do filme por ter escolhido o viés do multiculturalismo e das diversas modalidades assumidas pelos discursos da modernidade, acredito estar contribuindo para a discussão da complexa rede conceitual produzida pela crítica cultural ao longo dos últimos anos. Muito se tem debatido sobre a natureza precária das noções e conceitos próprios ao vocabulário das ciências humanas, uma vez que sua existência depende das mudanças sofridas no mundo, tanto no âmbito cultural quanto político e econômico. Como exemplo dessa transformação operada nas relações interculturais, o multiculturalismo passou a ser um dos alvos mais atingidos. Isso se deve, principalmente, ao esgotamento dos modelos de reconciliação e aceitação de muitas culturas no interior da nação e à necessidade de substituição da noção de diferença pela de desigualdade, com vistas a descartar o sistema de trocas de natureza unilateral. Com a globalização tecnológica, quase todo o
planeta entrou em interconexão simultânea, criando-se novas modalidades de diferenças e desigualdades. O livro de Néstor García Canclini, Diferentes, desiguais e desconectados, refaz a trajetória dos estudos culturais, desloca conceitos e justifica a troca do termo multicultural pelo de intercultural, por admitir que o primeiro se pauta pela diversidade de culturas, “sublinhando sua diferença e propondo políticas relativas de respeito, que frequentemente reforçam a segregação”. ² O segundo termo, intercultural e globalizado,
remete à confrontação e ao entrelaçamento, àquilo que sucede quando os grupos entram em relações e trocas. Ambos os termos implicam dois modos de produção do social: multiculturalidade supõe aceitação do heterogêneo; interculturalidade implica que os diferentes são o que são, em relações de negociação, conflito e empréstimos recíprocos. ³
Embora esteja de acordo com a proposta de Canclini, que entende ser o multiculturalismo uma ficção estatal tranquilizadora, enquanto que o interculturalismo seria a proposta de diversidade projetada independentemente do Estado, pelos próprios atores dos movimentos sociais, retomo o raciocínio de John Beverley (Subalternidad y representación), ⁴ para quem o termo multiculturalismo pode ser também lido segundo o viés do interculturalismo. O que se conclui é a certeza de que os conceitos podem ser reciclados e revistos com base nas diferentes posições dos teóricos, sem a preocupação obsessiva de criar expressões que substituam outras. Acrescentaria que Beverley postula, segundo sua posição de defensor da teoria subalterna, que
La posibilidad radical del multiculturalismo reside estrictamente en una insistencia constitutiva en la igualdad social. Para decir esto en otras palabras, la insistencia del subalternismo es más sobre la desigualdad que sobre la diferencia, aunque quiere marcar también la manera en que la diferencia es experimentada como desigualdad. ⁵
Nesse sentido, ambos defendem os mesmos princípios. Acrescentaria que as categorias relativas ao povo e à multidão, seja conforme teorização de Ernesto Laclau, no livro La razón populista, seja de Paolo Virno, em Gramatica de la multitud: para una análisis de las formas de vida contemporánea, ⁷ tornam-se imprescindíveis para o entendimento da atualização dessa desigualdade no âmbito do próprio sujeito, visto como fissurado e heterogêneo. Trata-se de dimensionar a proliferação de contradições no seio do povo, entendidas de modo positivo e não problemático, tais como falta de educação, cultura da pobreza etc. Reproduzindo ainda o pensamento de John Beverley, constata-se que “un nuevo proyecto para ‘cambiar la vida’ sería la expresión política de este reconocimiento de la heterogeneidad e incomensurabilidad de lo social, sin sentir la necesidad de resolver las diferencias en una lógica unitaria o transculturadora.” ⁸ É comum vincular o multiculturalismo a uma série de desdobramentos das minorias, que vão da emergência de grupos sociais até então invisíveis, como as culturas indígenas na América, aos grupos minoritários que, a partir dos anos 1970, começam a adquirir voz e a buscar maior visibilidade. Problematiza-se, por conseguinte, a dimensão do termo cultura, pela desconfiança de atitudes hegemônicas e estatais, dos gastos preceitos de universalidade e igualdade entre os povos e os cidadãos. O número de migrantes-multidões no mundo aumenta de forma considerável, transformando as metrópoles primeiro-mundistas em verdadeira babel de línguas e de etnias e modificando a geografia das cidades pelo descentramento contínuo dos lugares, antes distintos e controlados pela senha da inclusão e da exclusão sociais. O pensamento multiculturalista inscreve-se igualmente a partir da dissolução do modelo político do Estado-nação e da desconstrução de parâmetros iluministas legados pela razão moderna. Questiona-se o poder estatal e entra em declínio a hegemonia do pensamento ocidental, um dos responsáveis pela defesa de valores universais de cultura. A soberania das instituições políticas é substituída pelo conjunto mais amplo de instituições e de forças sociais. Com a produção de novas tecnologias, da informática e do inevitável crescimento do poder do mercado, são dimensionadas as noções de tempo e espaço, assim como as múltiplas feições assumidas pela modernidade. A simultaneidade temporal substitui o tempo teleológico da modernidade, encurtando a distância entre culturas e deslocando pontos fixos e imutáveis. Cria-se a ilusão de ser o mundo uma grande tela de TV, na qual convivem, de forma harmoniosa ou não, uma infinidade de povos, um sem-número de olhares estranhos e espantados. No âmbito das relações culturais, o enfoque torna-se mais transnacional do que
nacional, não só pelo enfraquecimento da ordem estatal, como pelo fortalecimento de uma política de efeitos. As desigualdades sociais aumentam, embora a hegemonia do econômico revista-se do discurso igualitário entre os povos. A tolerância racial, o respeito às diferenças, o empenho pelo fim de preconceitos entre os pares, a solidariedade como possível saída para os embates das crises pelas quais passam os países são argumentos utilizados pelo discurso político como forma de maquiar o multiculturalismo por meio do lema da diferença. O pluralismo exige condições rígidas de convivência, negociação e diálogo. No mesmo diapasão, a equivalência entre identidade e nação é, segundo Jesús Martín-Barbero, no ensaio “Globalización y multiculturalidad”, o que a multiculturalidade da atual sociedade latino-americana faz desmoronar. Por um lado, a globalização diminui o peso dos territórios e dos acontecimentos fundadores que essencializavam o nacional, e, por outro, a revalorização do local redefine a ideia mesma de nação. Não se deve pensar, portanto, que a identidade seja a expressão de uma única cultura homogênea. O monolinguismo e a uniterritorialidade, que a primeira modernização reassumiu da colônia, esconderam a densa multiculturalidade de que está feito o latino-americano e o arbitrário das demarcações que traçaram o nacional.
I. Modernidades tardias O modelo ocidental e eurocêntrico das teorias sobre a modernidade foi, por muito tempo, aceito como único, sem que sua hegemonia fosse contestada. Outras experiências da modernidade deverão ser observadas, considerando-se não só o descompasso temporal de sua atualização pelas distintas culturas, como também as singularidades múltiplas e divergentes dessa vivência dentro das próprias culturas locais. Pensadores do chamado Terceiro Mundo têm se empenhado em apontar algumas possíveis saídas para sair ou entrar na modernidade, como assim se expressou um deles. Dotados de um pensamento nômade e de experiência vital em permanente deslocamento, esses autores se apropriam da teorização aprendida com os discursos hegemônicos para desconstruí-los. A maneira pela qual se rompe com teorias da modernidade justifica-se pela emergência no entendimento de novas propostas que talvez contribuam para nortear as indagações do presente. Ao termo pós-modernidade,
de caráter geral e pertencente ao universo anglo-saxão, são apresentadas outras nomenclaturas, mais condizentes com o pensamento e a realidade de cada cultura enfocada. A pós-modernidade, em toda a sua dimensão e abrangência, não poderá ser analisada sem a reflexão das várias vertentes que compõem o pensamento moderno. Os conceitos legados pelas culturas hegemônicas deverão ser revisitados e acompanhar as transformações políticas e culturais do mundo globalizado. No próprio continente as ocorrências culturais e artísticas não se realizam de modo homogêneo. Jesús Martín-Barbero, teórico espanhol radicado na Colômbia, introduz, nos estudos da mídia, uma reflexão original — a modernidade descentrada — que responde pelas várias temporalidades existentes na recepção das culturas hegemônicas por parte das periféricas. Por isso, a referência às modernidades se faz no plural, pela existência de outro estatuto conceitual. O raciocínio pautado pelo princípio da homogeneidade é substituído pelo da heterogeneidade. São alternativas de definição a respeito do termo pósmoderno, ao se pensar na atual situação da cultura na América Latina. A noção de atraso, por exemplo, desvincula-se do teor negativo e se impõe como peça integrante da defasagem temporal, do tardio, do sinal de mais das regiões periféricas. A experiência simultânea do tempo não significa que a realidade dos países periféricos seja similar aos outros, o importante é não pensarmos segundo parâmetros causalistas e progressistas. Na perspectiva de Martín-Barbero, a simultaneidade temporal aponta diferenças. E não se pauta por semelhanças que poderiam colocar a poética sincrônica imune a conotações de ordem contextual e histórica. Outras denominações surgem, como as modernidades tardias, com Fredric Jameson (1996),¹ que trabalha com o capitalismo tardio, e Stuart Hall (1998),¹ ¹ com as modernidades alternativas e o conceito de modernidades tardias. Outros preferem denominá-las de modernidades periféricas, modernidades livres (at large), segundo o indiano Arjun Appadurai, na obra Modernity at large (2001),¹ ² ou, como Anthony Giddens (1997),¹ ³ modernidades reflexivas. O lugar dos exilados indianos nos Estados Unidos é analisado por Appadurai para explicar a noção de modernidades livres, ao serem construídas comunidades imaginadas que se identificam pelos meios de comunicação de massa, como o rádio, a televisão, o cinema, sem passar pela experiência da instituição das modernidades concebidas pelos órgãos oficiais. A passagem referente ao conceito de modernidade descentrada em Martín-Barbero (2002) é a que se segue:
El inacabado projecto de la modernidad no puede entonces separarse tan nítida y limpiamente de la razón que inspira la modernización como pretende Habermas (El discurso filosófico 13 y ss). De ahí que su crisis comporte para la perifería elementos liberadores. Así la posibilidad de afirmar la “no simultaneidad de lo simultáneo” (Rincón) – la existencia de destiempos con la modernidad que no son pura anacronía sino residuos (en el sentido que esa noción tiene para R. Williams en 144) no integrados de otra economía — que al transtornar el orden secuencial del progreso modernizador libera nuestra relación con el pasado, con nuestros diferentes pasados, haciendo del espacio el lugar donde se entrecruzan diversos tiempos históricos, y permitiéndonos así recombinar las memorias y reapropriarnos creativamente de una descentrada modernidad.¹ ⁴
No entender do teórico, trata-se de uma “descontinuidade de modernidade nãocontemporânea”, em que a não contemporaneidade deve ser claramente distinta da ideia de atraso constitutivo, de atraso convertido em chave explicativa da diferença cultural. Seria a concepção de um raciocínio que se manifesta em duas versões. A primeira, apontando que a originalidade dos países latino-americanos, e da América Latina como um todo, dependeu de fatores que se desvinculam da lógica do desenvolvimento capitalista. A segunda, considerando a modernização como recuperação do tempo perdido, identificando o desenvolvimento com o abandono de identidades locais para nos tornarmos modernos. Essa descontinuidade estaria situada em outra chave, ao permitir que se rompa “tanto com um modelo a-histórico e culturalista quanto com o paradigma da racionalidade acumulativa em sua pretensão de unificar e subsumir num só tempo as diferentes temporalidades sócio-históricas”.¹ ⁵
II. Babel, o filme Tendo em vista a simultaneidade das cenas montadas no filme Babel, com o objetivo de apresentar a atuação de diferentes personagens em distintos países e culturas, ainda que ligadas por um acontecimento comum, haveria um conceito único de modernidade que os uniria? Qual o grau de semelhança e distinção entre múltiplas feições do moderno vivenciado pelas personagens inseridas ora
na vida urbana do Japão, no deserto de Marrocos, ora na fronteira entre México e Estados Unidos? Na constatação de ser a película uma das grandes reflexões sobre a tênue barreira que separa os povos, os seres humanos, num lance do acaso que irrompe e provoca distúrbios incontroláveis, não estaria expressa a concepção de modernidade global, totalitária e perversa? A abordagem dessa obra baseia-se, portanto, nas várias modalidades quanto ao conceito de modernidade e na discussão do multiculturalismo como representação contemporânea dos efeitos que a globalização econômica tem provocado na atualidade. Países separados no espaço, mas interligados pela rede de imagens que os colocam em contato, distinguem-se, todavia, pelos contextos econômico, social, cultural e político. Autor de Amores brutos, de 2000, e de 21 gramas, de 2003, Alejandro González Iñárritu completa a trilogia, em 2006, com Babel, produção mexicana e norte-americana. O título do filme remete ao mito bíblico, contido no Gênesis, da Torre de Babel. A confusão, gerada pela tentativa de os homens construírem uma torre capaz de alcançar o céu, termina com o impedimento, pelo ato divino, de sua construção. A ação, considerada manifestação de soberba da população, resulta no desentendimento entre os homens, que começam, a partir desse momento, a falar idiomas diferentes. O filme trata do tema da incompreensão entre as personagens e entre as culturas. Refere-se, ainda, ao sentido intraduzível do título, processo almejado pela política da globalização para facilitar a compreensão entre povos de línguas distintas. Por essa razão, coincide com a fase pré-babel, quando a língua era única e por isso todos se entendiam. Ironicamente, o título endossa e nega o tema da incomunicabilidade existente no filme, nega e endossa a sintonia criada com o espectador. Torres de Babel, ensaio instigante de Jacques Derrida,¹ discorre sobre a intraduzibilidade do nome e a impossibilidade de se receber qualquer transcrição tradutória. Comenta-se, parafraseia-se, mas todo nome é incapaz de se submeter à tradução. Outra associação possível de ser realizada é entre a construção fílmica de Babel e o acontecimento relativo ao ataque pelos muçulmanos às torres gêmeas de Nova York, em 2001. As mudanças verificadas a partir desse evento representam o acirramento do sistema de controle e policiamento da esfera mundial. As torres de Tóquio, evocadas na película, são apresentadas como ícones da modernização, além de se configurarem para o espectador como a tentativa de vencer, pela tecnologia, a aspiração divina de se atingir o céu, de demonstrar poderes e desafiar o homem diante da máquina. Do
ponto de vista arquitetônico, a imagem das torres poderia simbolizar o simulacro do progresso urbano e comercial estadunidense, convertido em espelho das potências pós-modernas. A montagem das cenas segue o modelo dos filmes anteriores do diretor, em que se processa a narração fragmentada, estruturada de modo a romper com a cronologia tradicional do discurso cinematográfico. Inicialmente, tem lugar o surgimento de determinada cena, sua rápida apresentação, para depois ser elucidado o enredo, até então suspenso. As fronteiras fílmicas da montagem são abolidas, sugerindo o movimento rápido e dinâmico das ressonâncias da globalização nos variados países, o corte cinematográfico como apropriação das técnicas de captação de notícias televisivas que se realizam no momento real em que estas acontecem. A visão condensada dos acontecimentos dirige o olhar do espectador para a rapidez com que se transita de um lugar a outro do globo, lugares distanciados geograficamente, mas que se aproximam de forma virtual pela ação da câmera. As peças, ao longo da película, vão se recompondo, como quebra-cabeças, um jogo de armar, movidas pelo fio invisível que comanda o espetáculo, com cartas marcadas para o desfecho e o final do jogo. Os detalhes que associam as cenas entre si são inseridos de forma contrastiva, com o intuito de apontar diferenças de ordem cultural, mas também semelhanças de comportamento e de desejos inerentes ao ser humano. O enredo, de complexa urdidura, recebe cortes e lapsos no andamento atemporal, por sua proposta fragmentada e sujeita ao ritmo alucinante e rápido dos acontecimentos. No primeiro lance do filme, a venda da arma por um camponês marroquino é feita na presença do comprador e dos dois filhos. A arma estava sendo adquirida com a função específica de matar os chacais, perigosos adversários das ovelhas. Mas dessa cena é importante pois tem o objetivo de deflagrar acontecimentos futuros e funciona como elo que interliga todas os episódios da película. As quatro narrativas se conjugam e são encenadas em quatro países — Marrocos, Japão, Estados Unidos e México — e três continentes — América do Norte, África e Ásia. Na primeira cena, a paisagem é o deserto de Marrocos, com suas montanhas e caminhos tortuosos, onde se pratica a pecuária, a criação de ovelhas, atividade que passa de pai para filho. O comércio informal é operado por uma economia agrária, pela troca de produtos entre os membros da comunidade. A venda da espingarda irá gerar a corrente futura na busca de seu primeiro proprietário, que culminará com a necessidade de encontrar o autor do crime. O ambiente, despojado e aberto, contrasta com a modernidade excessiva de Tóquio, da metrópole pós-moderna, caracterizada
pela alta tecnologia do Primeiro Mundo. O deserto, espaço que escapa do âmbito da racionalidade moderna, dos domínios específicos do Estado-nação, constituise como lugar vazio, capaz de provocar distúrbios inesperados e metamorfoses que atingem a todos. Nesse espaço desértico ocorre o acontecimento que envolve o casal em viagem de turismo no Marrocos, ocupante do ônibus que reúne pessoas de várias nacionalidades. O motivo da viagem é bastante particular, pois serviria para a tentativa do casal de esquecer o drama provocado pela perda do filho mais novo, mas a depressão da mulher e a precariedade higiênica do lugar, a seus olhos, a impedem de usufruir o passeio. Inconsolável, não se sente bem na viagem, e esse sentimento manifesta-se pelo alto grau de incomunicabilidade entre eles. O casal de filhos permanece na Califórnia, sob os cuidados da babá mexicana, que espera o retorno dos patrões para ir ao casamento do filho no México, numa cidade fronteiriça com os Estados Unidos. O filho mais novo da família marroquina, ao demonstrar para o irmão sua habilidade no manejo com a arma, uma espingarda Winchester, atira a esmo e por acaso atinge a mulher. É ele, o filho mais novo do patriarca, o escolhido para substituí-lo, por se comportar de modo mais corajoso e hábil. Por seu papel de protagonista, torna-se o autor do disparo da espingarda contra o ônibus de turistas que visitam a região. Assim, com a ajuda do empregado do ônibus, o casal consegue chegar ao povoado onde mora o ajudante. A experiência da morte é o tema que congrega todas as cenas. Vivenciada de maneiras diferentes, ela é acompanhada do ritual de iniciação pelo qual as personagens entram no processo de aprendizagem frente à morte e à falta. Na atualização desse ritual, situações de perigo, isolamento e sofrimento concorrem para a passagem a outro nível, da criança para o adolescente, da natureza para a cultura, da saída da casa paterna para fora dela. O casal americano convive com a proximidade da morte iminente da mulher, ao lado do alívio do sofrimento possibilitado pela ação da curandeira marroquina que os acolhe, apontando saídas alternativas e naturais de cura. Encena-se, por meio do ritual curador, uma rede de afetos entre pessoas estranhas e desconhecidas. Por sua vez, o jovem marroquino, ao atingir com o tiro a estrangeira, vê-se impelido a assumir a responsabilidade familiar e, confessa ao pai o crime, sem, contudo, entregar-se à polícia. A japonesa, também em fase de iniciação sexual, entrega-se, em sua própria casa, ao policial que está à procura de seu pai. Os filhos do casal, levados pela babá, experimentam a aventura fora de casa e sem a companhia dos pais, quando atravessam a fronteira dos Estados Unidos para a comemoração, no
México, de um casamento. Nesse momento, são introduzidos ao contato com os costumes mexicanos por ocasião dos festejos, nos quais a alegria não impede o confronto com a experiência da morte: a cena de degola de uma galinha, acontecimento inesperado e violento aos olhos das crianças norte-americanas. No retorno à casa, a apreensão do carro em que estavam, na fronteira entre os Estados Unidos e o México, põem as crianças uma vez mais diante do perigo e da morte. Distintas situações são colocadas em jogo, seja pela iniciação sexual, pelo drama familiar, seja no encontro das personagens com rituais terapêuticos até então impensáveis para quem pertence a uma cultura distanciada dos métodos naturais de tratamento. Na cidade de Tóquio, com suas torres, prédios iluminados e coloridos, vislumbra-se o espetáculo da cidade industrializada, luxuosa, marcada por uma cultura heterogênea e em confronto com os valores tradicionais. O apartamento da jovem surda-muda revela o conforto e o aspecto limpo e despojado dos interiores, traços do gosto burguês, do excesso de tecnologia que resulta na carência de adornos e enfeites excessivos. A carência se metaforiza nos comportamentos regrados, nos relacionamentos frágeis e na incomunicabilidade entre pai e filha, acentuada após o suicídio da mãe. A jovem se comunica com os outros por meio de sinais, da escrita e do corpo. O diálogo, pouco efetivo, restringe-se ao porteiro de seu prédio, que se torna mediador entre o fora e o dentro, entre a esfera doméstica e a pública. Seu único interlocutor lhe passa os recados, os quais irão intermediar o encontro entre a jovem, a polícia e o pai. Por um jogo espelhado das histórias do filme, a jovem se expõe sexualmente para os rapazes, o que, ao mesmo tempo significa um gesto de rebeldia, ironia e afastamento. Quanto à aproximação sexual com o policial, o ato de desnudamento e entrega não deixa de causar estranheza, embora indicie a falta de entrosamento da jovem com outras pessoas de seu meio e idade. O encontro representa, entre outras significações, a condensação da figura do pai na do policial, o que denota a realização do desejo de se unir ao pai, se considerarmos essa união como uma das estratégias para se restaurar o equilíbrio familiar e social. No deserto marroquino, a promiscuidade familiar incita o desejo sexual entre irmãos e acende, de forma natural, a sexualidade reprimida, colocando em evidência a necessidade de rompimento de fronteiras de ordem familiar. Esse núcleo demonstra alto grau de isolamento, em virtude de pouco oferecer para o conhecimento do outro, o que incita à relação incestuosa e ao reforço da concepção tradicional de família. O ritual do casamento mexicano, com a presença da babá e das crianças, é de
natureza festiva, contrastando como os bastidores da tragédia que se desenrola no Marrocos, saída irônica a apontar diferenças civilizatórias e modernidades distintas. O evento circunscreve-se também como ritual de passagem, não somente das crianças, mas também em relação à cerimônia nupcial. A troca de um estado civil para outro é comemorada com muita euforia e música, com o testemunho de amigos e familiares. Trata-se da consagração de um tradicional conceito de família, com a suspensão do tempo cotidiano, pelo congraçamento da comunidade, num clima de felicidade e descontração. O momento, ao contrário do que se processa nos outros lugares do filme, ignora sentimentos de perda ou de falta, vivenciados pela babá e as crianças, em cenas caracterizadas pelo excesso de gestos, pessoas e afetos. Um dos sinais mais curiosos relativos ao descompromisso dos presentes com a gratuidade dos objetos na festa, reside no gesto de congraçamento de um dos presentes de lançar tiros ao alto. A cena evoca, por contraste, a ação aleatória praticada pelos jovens no deserto de Marrocos, o que resultou em tragédia, ao ser o ônibus de turistas atingido, fato que teve como consequência o desmoronamento da estrutura familiar dos camponeses. Na cena mexicana, o congraçamento tende a reforçar, mesmo que por momentos, a integração familiar, sustento para a preservação dos valores tradicionais de união e solidariedade. A necessidade de integração do núcleo familiar funcionará, no desfecho do filme, como saída, mesmo que utópica, diante da experiência de incomunicabilidade vivida pelas personagens. Comunidades de países distintos, reunidos na grande metáfora da situação póscatástrofe de 11 de setembro, são entregues a dramas pessoais, familiares, sociais e políticos, tendo o filme, como núcleo aglutinador, o desmoronamento das famílias, símbolo do abalo que atingiu a situação globalizada de nossos dias. Na busca pelo proprietário da arma cujo disparo atingiu a mulher, policiais chegam ao pai da jovem japonesa. Doada pelo japonês ao seu guia em viagem turística ao Marrocos, este efetua a venda do presente aos pais dos meninos. A propriedade original da arma, mola propulsora da trama policialesca do filme, conduz ao drama vivido pela família, como se o crime pudesse levar à descoberta de realidades desconhecidas. Por falta de registro da arma pelo último comprador, seu primeiro proprietário, com a ajuda de recursos modernos da tecnologia digital, é finalmente encontrado. Entretanto, na procura pelos criminosos, o jovem confessa à polícia ter sido ele o autor dos tiros. No desfecho da película, a embaixada dos Estados Unidos resgata o casal e a mulher se salva. O possível ato de terrorismo cometido no Marrocos é desfeito pela confissão do jovem que, de mãos erguidas, num gesto de clemência e desespero, admite ter sido ele o autor do disparo. O drama vivido pelas personagens retoma o drama
existencial e político contemporâneo, no qual o acaso é o deflagrador dos acontecimentos, no lugar de uma ação premeditada e objetiva. O acaso, as coincidências e a impossibilidade de controle das situações traduzem a imprevisibilidade da sociedade contemporânea. Um presente oferecido por um turista japonês ao guia marroquino deflagra a série de acontecimentos em torno desse acaso e de suas consequências. Deduz-se daí que, à medida que se reforça o controle estatal, mais se constata a presença das linhas de fuga, da inserção do outro no sistema. O sentimento de culpa, mesmo tendo sido assumido pelo jovem, deixa de ser um dado a ser considerado pelo espectador, da mesma forma que o autor do crime não é o primeiro possuidor da arma, uma vez que se dissolve a ideia de relação entre o crime e o proprietário da arma, pelo descontrole que o objeto e a sua trajetória acarretam. A arma entra no sistema simbólico e abstrato das trocas. Rompe-se com a relação de causa e efeito, em virtude de não existir a premeditação do crime. Os proprietários da arma e os autores do crime perdem a função a eles atribuída. Essa responsabilidade é parte do sistema, com sua perversidade e o caráter aleatório das ações, atitudes próprias do descontrole que se processa em cadeia. A gratuidade das ações provoca o efeito dominó, o efeito bola de neve, à semelhança do processo de globalização, em que uma ação acontece em determinado país e ecoa nos outros de forma imediata. Tiros trocados entre a família de Marrocos e os policiais entram no processo de descontrole e começam a liquidar inocentes. As invasões dos Estados Unidos no Afeganistão e no Iraque, ações pós-11 de setembro, confirmam essa gratuidade das ações, o jogo perverso que desloca a culpa do sistema político hegemônico para as sociedades consideradas atrasadas e pretensamente movidas pela irracionalidade. As situações de total impotência diante das leis são vivenciadas pela babá mexicana, presa na fronteira do México com os Estados Unidos por estar ilegalmente no país, e no Marrocos, pelo autor dos disparos. A mulher, em plena zona desértica, reduplica a função da patroa, ao perder as crianças que estavam sob sua guarda, perde o emprego e a cidadania americana. O espaço de punição é o deserto mexicano-estadunidense, fronteira que traça o emblema da indecisão e do heterogêneo. Rotulado como lugar de exceção, de perigo e diferença em relação aos espaços urbanos, a fronteira separa territórios, apresentando-se como zona livre para o cumprimento de qualquer tipo de lei. Em ambos os cenários do filme, o deserto marroquino e o de fronteira, instaura-se o estado de exceção — a vida nua, segundo interpretação de Giorgio Agamben, o “homo sacer” — situação própria ao criminoso que, não tendo com o que se defender, é julgado sem escrúpulos, sem direito de defesa. Quando apanhado por um delito, o
homem sacro pode ser morto sem que isso constitua um homicídio, execução ou condenação. Campos de concentração, prisioneiros acusados de terem realizado ações terroristas, infrações às leis de imigração, todas essas situações são interpretadas como perigosas e duvidosas. Ao serem envolvidas nessas tramas, as pessoas perdem tudo, ficando à mercê de qualquer tipo de lei a ser aí aplicada:
O estado de exceção, logo, não é tanto uma suspensão espaço-temporal quanto uma figura topológica complexa, em que não só a exceção é a regra, mas até mesmo o estado de natureza e o direito, o fora e o dentro transitam um pelo outro. É justamente nesta zona topológica de indistinção, que deveria permanecer oculta aos olhos da justiça, que nós devemos tentar fixar o olhar.¹ ⁷
As observações finais deste ensaio são dirigidas ao encontro das personagens que se unem pelo afeto, pela criação de um elo comum que rompe com o comportamento usual, reintegra relacionamentos e desconstrói imposições de âmbito racional e distanciado. A mulher entrega-se ao marido num gesto afetivo quando é por ele auxiliada nos afazeres de ordem mundanas e íntimas. Ou quando tem o sofrimento físico aliviado pelas artes da mulher marroquina, aproximação promovida pela aspiração do fumo e das ervas por ela preparadas. A união da família de origem marroquina efetua-se, ironicamente, pela dor da morte do filho mais velho, o que obriga o outro a se confessar. No alto da varanda do apartamento em Tóquio, o encontro da jovem com o pai, diante da paisagem noturna e iluminada, sugere o início da conquista desse afeto perdido. São os descompassos da modernização conservadora e desenfreada, representados nas suas inúmeras dimensões e diferenças, o preço a pagar pela perda de valores humanitários, submersos na guerra cotidiana do trabalho e da racionalidade. Babel apresenta cenas alegóricas que remetem tanto para as desigualdades e descompassos entre os povos quanto para a imagem do acaso como estratégia para a dominação do mundo pelos países que ainda impõem seu poder hegemônico aos países periféricos. Mas todas as nações desintegram-se e fragmentam-se na luta contra o domínio cego das demais.
(2008)
91 BABEL. Direção: Alejandro González Iñárritu. Roteiro: Guillermo Arriaga. Estados Unidos, México, França, Marrocos, Japão: Paramount Pictures, 2006. 1 DVD (143 min), color. 92 CANCLINI, Néstor Garcia. Diferentes, desiguais e desconectados. Tradução de Luiz Sergio Henriques. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2005, p 16-17. 93 CANCLINI, 2005, p 16-17. 94 BEVERLEY, John. Subalternidad y representación. Madrid: Iberoamericano, 2004. 95 BEVERLEY, 2004, p 204. 96 LACLAU, 2005. 97 VIRNO, Paolo. Gramatica de la multitud: para un análisis de las formas de vida contemporánea. Madrid: Traficantes de Sueños, 2003. 98 BEVERLEY, 2004, p 205. 99 MARTÍN-BARBERO, Jesús. Globalización y multiculturalidad: notas para una agenda de investigación. In: MORAÑA, Mabel (ed.). Nuevas perspectivas desde/sobre América Latina: el desafío de los estudios culturales. Santiago: Cuarto Próprio, 2002. p 19-34. 100 JAMESON, Fredric. Pós-modernismo: a lógica cultural do capitalismo tardio. Tradução de Maria Elisa Cevasco. São Paulo: Ática, 1996. 101 HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Tradução de Tomaz Tadeu da Silva e Guaciara Lopes Louro. Rio de Janeiro: DP&A, 1998. 102 APPADURAI, Arjun. La modernidad desbordada: dimensiones culturales de la globalización. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica, 2001. 103 GIDDENS, Anthony; BECK, Ulrich; SCOTT, Lash. Modernização reflexiva: política, tradição e estética na ordem social moderna. Tradução de Magda Lopes. São Paulo: Editora UNESP, 1997.
104 MARTÍN-BARBERO, 2002, p 25. 105 MARTÍN-BARBERO, Jesús. Dos meios às mediações. Tradução de Ronald Polito e Sérgio Alcides. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1997, p 214. 106 DERRIDA, Jacques. Torres de Babel. Tradução de Júnia Barreto. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002. 107 AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua. Tradução de Henrique Burigo. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002, p 43.
Paisagens de areia
Um dos livros pouco conhecidos de Ítalo Calvino registra a visita a museus em suas viagens pelo mundo, visitas a museus, destacando-se nele o texto “Coleção de areia”, que dá título à obra. Trata-se de uma exposição realizada em Paris que reúne objetos os mais inusitados — coleções de cincerros, de jogos de víspora, de tampinhas de garrafa, de assobios de barro, de bilhetes ferroviários, de piões, de embalagens de rolos de papel higiênico, de distintivos colaboracionistas da ocupação, de rãs embalsamadas, de pequenos vidros de areia. Essa coleção de areia representaria, para o escritor, a imagem em miniatura do mapa residual e fragmentário do universo, por conter, em cada frasco, o registro das paisagens e a memória cristalizada das experiências. As viagens cumpririam a função de gerar um diário secreto e de perpetuar o vivido, além de motivar o desejo de ordenar o universo. Muitos desses fetiches transformam-se em objetos de exposição, a serem compartilhados pelos outros por meio de fotos, vídeos, diários, álbuns e livros. Os pequenos frascos de areia, que remetem ora às praias de Copacabana, ora às do México e às do Quênia, revelariam a intenção de condensar o mundo disperso e de encapsular a natureza, sob a forma de simulacro. Para Calvino, a literatura se resumiria nessa coleção de areia, no cristal da palavra, produto que se distancia da realidade, ao “afastar de si o estampido das sensações deformadoras e angustiantes, o vento confuso do já vivido, e obter para si a substância arenosa de todas as coisas, tocar a estrutura sílica da existência”.¹ ⁸ O deslocamento provocado pelas viagens configura a atração pelo novo e a paixão pela aventura. Conhecer outras regiões, afastar-se das regras da vida cotidiana, cultivar errâncias e desvios de rota imprimem no viajante a sensação de estar, ao mesmo tempo, em todos os lugares ou em lugar nenhum. Reconhecese no texto de Calvino a forte aliança entre viajar e escrever, atividade cultivada pelos escritores modernos, do final do século XIX, e retomada nas décadas de 1970/1980, por uma geração de autores que vai de Michel Le Bris, Bruce Chatwin, Werner Herzog, César Aira, Mempo Giardinelli a Bernardo Carvalho. Decidir se afastar do espaço enclausurado do escritório e do ambiente viciado de trabalho impulsiona esse tipo de escrita errante e deslocada, o que motiva ainda o embaralhamento dos gêneros, pela mescla de documento e ficção. A retomada
da narrativa de viagens operada por esses escritores subverte o tradicional relato de exploração, a crônica de viagem pitoresca ou a reportagem jornalística, pela vontade de agregar ao real as técnicas de narração do romance, com o intuito de restituir a dimensão romanesca do real. Qual a razão para que no século XXI a literatura ainda se deixe contaminar pela atração de espaços desconhecidos, pela retomada de outra dimensão do exótico, e pelo enfraquecimento das ficções que marcaram a modernidade, com projetos identitários e nacionais? A paisagem artística e literária deste século reveste-se de múltiplas feições. Em virtude da distorção modernizante das metrópoles, da desigualdade social, da marginalidade e da porosidade dos limites entre dentro e fora, entre cidade e periferia, o gesto artístico se posiciona ora para a denúncia da violência urbana, ora para o encontro de outras paisagens. Na crescente reivindicação contemporânea dos direitos das minorias, na reconfiguração das categorias de tempo e espaço e na condição pós-humana da sociedade tecnológica, criam-se diferentes discursos com vistas ao entendimento da complexa relação entre os sujeitos e o espaço imaginário da criação. Diante da proliferação de vertentes estéticas, da natureza heterogênea das produções artísticas e do estatuto efêmero das imagens do presente, é aconselhável aceitar esse desafio e resistir ao fantasma da homogeneidade imposto pela circulação globalizada dos saberes. Perguntas são feitas: como entrar e sair do lugar-comum, rejeitar o olhar cristalizado pela mídia, o apelo irresistível da comunicação fácil, sem romper inteiramente com esses ingredientes responsáveis pela receita de sucesso do mercado? A convivência da crítica literária e cultural com a diversidade e os conflitos expostos pelos discursos contemporâneos exige o máximo de abertura e de imparcialidade analíticas, o que resulta em ganho para ambas as partes. Prenderse a parâmetros estéticos específicos, a abordagens de determinados temas, à defesa de posições enunciativas irredutíveis ou de categorias essencialistas, tende a ignorar a mobilidade e o fluxo contínuo das manifestações culturais. Grande parcela da crítica contemporânea prefere fechar os olhos para as transformações operadas nos discursos, na defesa da legitimação de valores tradicionais e na recusa do que considera fruto de modismos. A discussão atual sobre o espaço e sua proliferação nas diversas áreas do saber tem demonstrado não só o avanço das relações transdisciplinares como o desvio de interesses manifestados na criação e na pesquisa. Se a cidade representou para a modernidade um dos temas mais fascinantes, alargando o foco de abordagem
para a pós-modernidade, o que se constata hoje é sua exaustão, em virtude da necessidade de se repensar as noções de espaço e de tempo. Esgotadas as tentativas de mapeamento do tecido multifacetado das metrópoles, abrem-se outras paisagens de igual interesse para a arte, mas desprovidas de apelo à violência, ao romance policial e à denúncia da realidade urbana. Discursos vinculados à natureza, a territórios vazios, como o deserto, a reservas naturais, como o mar, florestas, campos, rios ou à vida animal, se impõem como espaços alternativos para se reler a modernidade e os desencantos da civilização. Não se trata, contudo, de saída utópica para os possíveis males do presente, nem de originalidade na mudança de objeto e de enfoque temático. O estatuto dessas imagens que nos circundam no universo das artes, da mídia e do cotidiano apresenta-se cada vez mais dotado de virtualidade e instabilidade. O tratamento dado à natureza desvincula-se tanto do sentido estereotipado dos discursos colonialistas — espaço virgem e utópico — quanto do sentimento de nostalgia pelo equilíbrio ecológico perdido. A diluição do projeto racionalista moderno, responsável pelo papel da ciência e da tecnologia na dominação do mundo natural, com base no raciocínio binário e excludente, caminha ao lado das indagações contemporâneas, produzidas, segundo Christine Buci-Glücksmann, por uma “cultura de fluxos e instabilidades”. Ao se apropriar do pensamento filosófico de Gilles Deleuze, a autora introduz o conceito de “efêmero cósmico”, produto da ação das imagensfluxo, das mestiçagens e hibridismos que remetem para a fragilidade ontológica dos seres e das coisas. Distinguindo-se do “efêmero melancólico” da modernidade, que vive o tempo como uma perda e uma dor que devasta o ser, tem-se a configuração de um efêmero afirmativo, leve e nietzschiano, uma energia de criação artística e uma força vital.¹ Buci-Glücksmann acrescenta ainda ao efêmero cósmico a presença de paisagens heterogêneas encontradas na Ásia e formadas pela “justaposição de elementos incompatíveis”, estendendo o efêmero à experiência de um espaço pós-arquitetural, onde tudo é dotado de caráter provisório. Privilegia-se, nesse sentido, o heterogêneo, o fugaz e a liquidez das imagens, o que responde pela saturação do pensamento pautado pela continuidade e a homogeneidade, pela existência de fronteiras e limites entre domínios e territórios. O campo conceitual que redefine essa ausência de limites constitui-se de termos retirados da vida orgânica, da geografia, da natureza. Esse campo atua como resposta à negação da natureza pela ciência moderna, a qual era interpretada como polo a ser dominado e conquistado. Diante da crise ecológica
provocada pelo saber moderno, a natureza retorna ao centro da cena contemporânea, mas sem radicalismos que reforçam a sua idealização e nem a herança antropocêntrica e radical. O saber pós--moderno ou o nome que a ele se atribui, entre suas inúmeras manifestações e autores, recupera com Michel Foucault, Gilles Deleuze e Félix Guattari a dimensão espacial e geográfica, que substitui o paradigma temporal e histórico da modernidade. Metáforas orgânicas como árvore, raízes, rizoma, diferença entre espaço liso e estriado, territorialização, desterritorialização, nomadismo, heterotopias, deserto, mar, são utilizadas com o propósito de estabelecer distinções e redimensionar a relação contínua entre passado e presente, origem e fim, verticalidade e horizontalidade, profundidade e superfície. Para Michel Foucault, as heterotopias seriam os espaços característicos do mundo moderno, nomeados como “espaço externo”, “espaço outro”, e se desvinculariam das noções de “espaço de extensão” e de “espaço interno”, respectivamente do moderno primitivo e da poética de Bachelard. Duas noções são aqui introduzidas: a de heterogêneo e o que mais tarde Deleuze irá denominar como o “fora”, o “espaço outro”. As heterotopias, em princípio definidas como espaços heterogêneos de localizações e relações, como o museu, a biblioteca, o cemitério, a igreja, serão igualmente utilizadas para analisar a classificação da enciclopédia chinesa borgiana, em As palavras e as coisas.¹¹ No entanto, o valor teórico atribuído ao espaço geográfico foi silenciado pelo filósofo, segundo o pensamento de Edward W Soja, geógrafo voltado para o valor espacial das relações sociais. Em Foucault as heterotopias não aparecem ligadas, necessariamente, a nenhuma forma específica de paisagem, e só mais tarde é que irá reconhecer estar a geografia no cerne de seus interesses.¹¹¹ No empenho de apontar outras contribuições para o avanço dos estudos do espaço específico da geografia, Soja menciona o crítico de arte e escritor John Berger, considerado o “geógrafo da arte”, que conclama abertamente à espacialização do pensamento crítico:
Berger se alia a Foucault para nos impelir rumo a uma reestruturação significativa e necessária do pensamento social crítico, a uma recomposição que nos faculte enxergar com mais clareza a influência longamente ocultada das geografias humanas, em particular as espacializações abrangentes e encarcerantes da vida social que estiveram associadas ao desenvolvimento histórico do capitalismo. A trilha de Berger continua a descortinar novas
maneiras de ver a arte e a estética, os retratos e as paisagens, os pintores e os camponeses, no passado (um dia) e no presente (aqui).¹¹²
A vinculação do conceito de heterotopia à dimensão geográfica encontra-se também presente nas formulações de Deleuze e Guattari. Na definição da noção de “devir nômade” como prática utópica, são feitas alusões diretas à paisagem, de grande rendimento teórico, ao se precisar o sentido de deserto como movimento, energia, dotado de superfície lisa e por ser atravessado por mudanças e metamorfoses: “o deserto de areia não comporta apenas oásis, que são como pontos fixos, mas vegetações rizomáticas, temporárias e móveis em função de chuvas locais, e que determinam mudanças de orientações dos percursos”.¹¹³ O estado nômade desse pensamento cria pontos de contato com as reivindicações das minorias, das lutas territoriais e de exclusão. Nesse estado, o devir nômade articula-se em alternância com os espaços lisos e as paisagens do deserto, permeadas de forças desintegradoras e de libertação. O que de mais relevante se destaca no pensamento desses filósofos é a valorização de um determinado tipo de conexão, o do rizoma, produtor de simultaneidades, de devires e de interações. O grande privilégio é concedido ao espaço sobre o tempo, ao mapa sobre a árvore, uma vez que a filosofia não se desenvolve segundo uma linha arborescente de evolução, mas, sim, segundo a lógica de multiplicidades singulares:
Um rizoma não começa nem conclui, ele se encontra sempre no meio, entre as coisas. Inter-ser, intermezzo. A árvore é filiação, mas o rizoma tem como tecido de conjunção “e…e…e…”. […] É que o meio não é uma média; ao contrário, é o lugar onde as coisas adquirem velocidade. Entre as coisas não designa uma correlação localizável que vai de uma para outra e reciprocamente, mas uma direção perpendicular, um movimento transversal que carrega uma e outra, riacho sem início nem fim, que rói suas duas margens e adquire a velocidade no meio.¹¹⁴
Deleuze irá ainda afirmar, em entrevista, ser o trabalho conjunto efetuado com Guattari, uma espécie de filosofia da natureza, no momento em que toda
diferença se apaga entre a natureza e o artifício. O resultado desse raciocínio o faz conceber os princípios da ontologia como os da geologia, ou seja, no lugar do ser, a terra, com seus estratos psicoquímicos, orgânicos, antropomórficos. Mas a terra é igualmente máquina, pois a filosofia de Mil platôs, nas palavras de François Ewald, “não conhece a oposição entre o homem e a natureza, a natureza e a indústria, mas simbiose e aliança”.¹¹⁵ Outro tópico de igual importância para compreensão do aspecto fluido e líquido das imagens contemporâneas, assim como do movimento de desterritorialização operado no pensamento, encontra-se nas reflexões que Deleuze e Guattari desenvolvem sobre o estatuto do mar. Considerado na condição de espaço liso por excelência, destituído de limites e fixidez, o mar é constantemente capturado pelo Estado, que não só relativiza seu movimento, ao acompanhar uma máquina de guerra mundial, mas extravasa os limites estatais, ao entrar nos complexos multinacionais. O mar se apresenta, nas palavras de Virilio citadas por Deleuze, como “o lugar do fleet in being, onde já não se vai de um ponto a outro, mas se domina todo o espaço a partir de um ponto qualquer: em vez de estriar o espaço, ele é ocupado com um vetor de desterritorialização em movimento perpétuo”.¹¹ O movimento e a fluidez do elemento aquático motivam ainda interpretações sociológicas e comportamentais da pós-modernidade, como as de Zygmunt Bauman (Amor líquido, Modernidade líquida, Vida líquida) mas que contrariam o pensamento filosófico deleuziano. A vida precária, o deslocamento constante do indivíduo, as condições rizomáticas de fruição dos saberes e o gosto pelo incerto e o inesperado da vida moderna constituem, para Bauman, riscos que deverão ser evitados, na busca do bem-estar humano. Sem deixar que a crítica à efemeridade das relações humanas ou à sociedade de consumo seja analisada de forma conservadora e moralista, os fluxos e a atmosfera líquida sugeridos por esses espaços em movimento na natureza deverão contribuir para o avanço de questões próximas ao nosso cotidiano. A abertura para diferentes abordagens do texto literário e artístico possibilita o deslocamento de visões estereotipadas e a revitalização de domínios críticos até então desativados. Na relação conflituosa entre saber e poder, arte e política, a crítica cultural expande o foco de interesse para temas ligados para a não menos complexa articulação entre arte e natureza.
Ecocrítica e crítica cultural
Denominada por alguns teóricos americanos, como Andrew Ross, de ecocrítica, ou “crítica cultural verde”, essa vertente de estudos aborda o papel da natureza no imaginário de uma comunidade cultural, a relação entre homem e meio ambiente, assim como as reconfigurações do espaço na cultura pós-humana. No contexto dos estudos culturais, no livro de 1994, Chicago gangster theory of life, Ross vê a saída para a crise ambiental, interpretando o novo discurso da década de 1970 sobre os limites do mundo natural com base nas relações sociais de desigualdade e não o considerando como fato científico. A ciência constituiria apenas uma ferramenta para a análise do que realmente interessa à crítica cultural, o jogo de interesses políticos e hegemônicos. Em outro texto, o crítico considera que as imagens veiculadas pela mídia, com a ajuda de fotografias, filmes e documentários sobre a Guerra do Golfo e analisadas no artigo “L’écologie des images”, não tiveram o peso de outras cenas que mostravam a poluição do planeta causada pelas imagens de incêndio dos centros petrolíferos. Entende que é a partir dessas cenas que se denuncia a significação ecológica da política de guerra, quando irá apropriar-se da afirmação de Susan Sontag, em Sobre a fotografia, ao sugerir a urgência de se pensar sobre a “ecologia das imagens”. Andrew Ross acredita ter sido em decorrência do trabalho com as imagens de guerra que o apelo de Sontag pôde ser atendido. A acolhida de uma “crítica cultural verde”, no seu entender, ao se voltar para o lado “natureza”, recalcado de forma brutal pela equação natureza/cultura, motiva o debate sobre o papel ecológico das imagens, de sua indústria, assim como da denúncia manifestada pelas artes.¹¹⁷ Uma das mais significativas contribuições da ecocrítica para a crítica cultural reside na construção de pontes transdisciplinares entre ciência e literatura, crítica literária e cultural, por ter sido a ciência responsável pela formulação do conceito de natureza nas culturas ocidentais. Embora a disciplina seja relativamente recente, a crítica tradicional sempre se interessou pelas relações entre natureza e estética, natureza e ciência, ora valorizando uma, ora outra vertente. Segundo Ursula K. Heise, em “Science and ecocriticism”, as abordagens contemporâneas da ecocrítica veem-se confrontadas com o espectro de diferentes leituras do meio ambiente, tais como: a “construção estética”, que valoriza a natureza pela sua beleza, complexidade ou selvageria; a “construção política”, que enfatiza os interesses do poder sobre o valor ou a desvalorização da natureza; a “construção científica”, que visa a descrição do ordenamento do sistema funcional.¹¹⁸
A reação da crítica cultural a essa tradição analítica descarta posições humanistas e estetizantes, ao abordar os textos na sua heterogeneidade, nos quais diferentes visões da natureza e de imagens da ciência encontram-se confrontadas, cada uma com implicações culturais e políticas, e não como espaço de resistência contra a ciência e a busca de verdades. A abordagem permite colocar em diálogo leituras científicas e literárias da natureza, diálogo que revitaliza a transdisciplinaridade e desloca pontos de vista conservadores e moralistas, responsáveis pela retomada de critérios binários e excludentes frente a esses estudos. A Amazônia e a Patagônia compuseram o dossiê do número 5 da revista Margens/Márgenes,¹¹ o que sinalizou o aprofundamento de temas ligados a essa vertente da crítica atualmente em pauta. A análise das narrativas de viagem à Patagônia e à Amazônia e das posições teóricas assumidas pela crítica latinoamericana nas abordagens textuais, ao lado da reprodução de imagens, confirmaram a prática entre nós da chamada “ecocrítica”. Sem pretender nomear correntes de análise ou se apropriar de nomenclatura estrangeira, o objetivo dessata reflexão foi o de sistematizar lugares de enunciação teórica, com vistas à ampliação da abordagem transdisciplinar. Com interesses e objetivos distintos, o avanço das relações entre discursos literários, políticos, geográficos, antropológicos ou sociais em torno do discurso da natureza tem rendido excelentes resultados interpretativos. Na bibliografia empregada pelos autores dos ensaios na revista citada, é inegável a presença de filósofos franceses, como Foucault, Deleuze e Guattari, bem como de escritores em viagem à América Latina, tais como Bruce Chatwin, SaintExupéry, Evelyn Waugh, entre outros. A tônica dos artigos recaiu na desconstrução de relatos marcados pela impulsão imperialista e a atração por regiões remotas como saída imaginária para as insatisfações do viajante/escritor do século XX. Neste ensaio, no entanto, prevalece a perspectiva distinta dos aventureiros de outras épocas, pela inexistência no mundo atual de grandes territórios virgens a serem explorados. Dois livros de ensaios publicados respectivamente no final do século XX e início do XXI merecem ser citados como registro da prática dessa crítica na América Latina: Ficciones culturales y fabulas de identidad en América Latina, de Graciela Montaldo, e La naturaleza en disputa: retóricas del cuerpo y el paisaje en América Latina, organizado por Gabriela Nouzeilles. É ainda digno de nota, entre outras publicações do gênero, o livro de Mary Louise Pratt, Imperial eyes: travel writings and transculturation (1992)¹² , no qual analisa a operacionalidade
dos conceitos de Novo Mundo e Natureza de Alexander von Humboldt, territórios vistos como naturais, virgens e vazios. Montaldo aborda os problemas dos territórios e das identidades no continente, sem privilegiar o caráter referencial dos territórios nem as identidades como “conjunto de características verificáveis”. Focaliza a relação entre espaço, natureza e cultura na organização republicana e a politização desse espaço:
Escribir el territorio, por tanto, era hacerse de un cuerpo orgánico demarcando su geografía y su funcionamiento para poner en marcha las instituciones Por ello se comenzó por trazar su mapa, un mapa que permitiera establecer no solo límites y fronteras sino también posiciones que integraran los territorios americanos a un mundo que desde la era de las revoluciones empieza a reclamar, con la hegemonía europea, una dimensión cada vez más globalizada de las relaciones. Se trata de ocupar un lugar, de escribir una cartografía en la que se diseñe el espacio vacío en cual insertarse.¹²¹
O segundo livro reúne artigos que discutem o polêmico diálogo entre os discursos da modernidade e da razão imperial, examinando o modo original como se articulam natureza/cultura/sexualidade. Os corpos e as paisagens nativas — como lugares utópicos e espaços que ameaçam diferenças biológicas — foram e são objetos de disputas políticas:
La invención moderna de América se basó en una doble actitud. A la vez que se vio en ella un inmenso territorio natural legítimamente apropiable y explotable en beneficio propio, donde Europa venía a realizar sus supremos fines históricos, también se la consideró como espacio de liberación y de promesa, donde poner a pruebas ideales sociales y utopías políticas.¹²²
É oportuno ainda incluir na bibliografia sobre a abordagem citada, o livro de Flora Süssekind, O Brasil não é longe daqui: o narrador, a viagem (1990), em que se delineia a figura do narrador- -viajante, presente nos relatos de viagem e na prosa de ficção romântica. Com astúcia analítica e documentação primorosa,
a ensaísta compõe o painel de uma literatura que se define como cartografia, ao se debruçar sobre as variadas maneiras de se construir ficções e narrativas de viagem sob o signo da busca das origens e do “descobrimento” do Brasil pelos cronistas. Ao desconstruir os mitos literários de fundação e concentrar o foco de análise na descrição enciclopédica e naturalista da paisagem brasileira, Süssekind contribui fortemente para o avanço dos estudos relativos à equação arte/natureza, ficção/paisagismo, como forma de reler o processo de formação histórica do narrador de ficção brasileira ocorrido nas décadas de 1830 a 1840, principalmente nas seções de variedades e nos folhetins dos periódicos da época:
É essa rede de notas descritivas, pranchas, mapas, classificações que organiza a própria paisagem brasileira, que define um Brasil aos olhos de literatos e historiadores locais. E não é só isso. São eles interlocutores fundamentais nesse momento de formação de uma prosa ficcional por aqui.¹²³
No registro da literatura brasileira mais recente, o romance Mongólia (2003), de Bernardo Carvalho, retoma o modelo das narrativas de viagem, acrescentando fortes ingredientes de romance policial, mas se distinguindo destes por assumir diferente lugar de enunciação. Trata-se de um relato sobre um fotógrafo brasileiro desaparecido na Mongólia, no qual a narrativa é conduzida por três narradores: o diplomata brasileiro (o narrador “oficial”) o Ocidental e o Desaparecido, estes últimos, inseridos no romance por meio dos diários de viagem aí anexados. O deserto de Gobi, o Rio de Janeiro e a China são os cenários escolhidos para as ações que transcorrem no livro, razão pela qual se recupera o clima de mistério da trama romanesca, por ser a maior parte das ações localizada na Mongólia. A reprodução do mapa da região confirma o objetivo de oferecer informações de ordem espacial ao leitor, estratégia de verossimilhança utilizada para esse tipo de romance-reportagem, na sua articulação entre real e ficção. O toque de exotismo da empresa ficcional é deslocado para regiões distantes da Ásia, em vias de serem decifradas pelo escritor cuja origem encontra-se no Brasil, país conquistado por portugueses e interpretado sob o signo do exotismo pelos antigos cronistas da terra. A paisagem escolhida, o deserto, inscreve-se como espaço de alteridades, embora este se aparente despido de mistério e mitificação, espécie de lugar vazio
à espera de ser preenchido pela ideologia do conquistador. O romance desconstrói ainda a ideia de nomadismo como libertação, por retratar a aventura pelo deserto como repetição infinita e sem ponto de chegada. Esta passagem do romance é importante para a compreensão do nomadismo sob a perspectiva do autor:
Muitas vezes, no deserto, por exemplo, não há nenhum ponto de referência além das trilhas deixadas pelos pneus de outros carros. Os motoristas insistem em segui-las como quem toma o caminho seguro, tradicional. O bom motorista é aquele que sabe achar a sua pista no deserto. A boa pista. A repetição é a condição de sobrevivência. É essa também a cultura dos nômades. Apesar da aparência de deslocamento e de uma vida em movimento, fazem sempre os mesmos percursos, voltam sempre aos mesmos lugares, repetem sempre os mesmos hábitos. O apego à tradição só pode ser explicado como forma de sobrevivência em condições extremas. A ideia de ruptura não passa pela cabeça de ninguém. As estradas só se tornam estradas pela força do hábito. O caminho só existe pela tradição. É isso na realidade que define o nomadismo mongol, uma cultura em que não há criação, só repetição.¹²⁴
O apego à tradição seria um dos entraves encontrados na comunidade nômade para sair dessa situação. Bernardo Carvalho, com esse argumento, não acredita existir qualquer sinal de modernidade na região, por esta se sujeitar a hábitos repetitivos, como os que irão caracterizar o nomadismo mongol. Persistem, contudo, o sentimento de errância e o conflito identitário das personagens, considerando-se que a trama narrativa gira em torno da busca do Desaparecido, empresa que corresponde ao encontro/desencontro das personagens na trama, de irmãos separados pelo destino. O romance apresenta um jogo de duplos, de cenas de conhecimento pessoal de forma tardia, marcado pelo silêncio, pelo vazio e pelo deslocamento permanente. O projeto literário moderno, pautado pela construção de uma cultura nacional, por meio da revolução da linguagem e da valorização de temas locais, não encontra ressonâncias no romance de Bernardo Carvalho. Constata-se a perda de referências espaciais mapeadas pelas fronteiras nacionais, fragilizadas pelo processo de globalização. A situação precária dos lugares periféricos não impede que sejam construídas e reveladas outras subjetividades, independentemente dos regimes culturais dominantes. A
perda das identidades modernas motiva a saída para outras regiões, na tentativa de melhor entender o caráter heterogêneo e mestiço das sociedades, ao contrário das aventuras do passado, pautadas pela nostalgia de raízes perdidas. A presença da ordem multicultural e do deslocamento como procedimento criativo próprio à literatura contemporânea configura-se ora nas narrativas de inspiração urbana, com a complexidade e o esgotamento de seus recursos internos, ora na focalização de espaços ainda em processo de transformação e metamorfose.
O céu vira sertão
O sertão é muito minimalista, são poucos elementos e aquele imenso céu sem fim. Queria ressaltar esta qualidade do sertão e transformar também, através da música, em um espaço de ficção científica. O filme começa no céu do sertão e termina no céu do sertão.
Karim Aïnouz
O filme de Karim Aïnouz, O céu de Suely (2006),¹²⁵ atualiza, de forma brilhante, o cenário pós-urbano e pós-sertão que redefine os tempos e lugares contemporâneos. Rodado em Iguatu, pequena cidade do interior do Ceará, o longa-metragem aproxima-se dos relatos que focalizam a imigração, a incomunicabilidade e os espaços plenos de mitologia, aridez e desamparo, como o sertão e o deserto. Distancia-se, contudo, da moderna separação entre cidade e campo, centro e periferia, civilização e barbárie, ao redesenhar o sertão com traços citadinos, e a pequena cidade com a feição do espaço globalizado e pop. O título do filme remete a outro elemento de igual importância para a elucidação da construção espacial e cinematográfica, pela imagem de liberdade, desejo e amplidão que o céu comporta. A luminosidade do sertão, as cores “azul, vermelho e amarelo, com pitadas de verde-limão” — como assim o céu é definido pelo diretor —, retiram o teor local da paisagem e a insere na cena opaca da globalização, com referências ao universo de cores e brilhos presentes
na arte pop americana, encarnada na figura de Edward Hopper. A amplitude e o colorido do céu se contrapõem à cor noturna da cidade, com faróis e reflexos embaçados, pouco nítidos, dispositivos que se integram à composição da montagem artificial do lugar. A história da personagem principal, Hermila, consiste na aventura de uma jovem que parte com o namorado da cidade natal e migra para São Paulo, onde tem um filho. Retorna a Iguatu na esperança de realização do retorno do companheiro, fato que não acontece. Deslocada tanto no ambiente familiar como na cidade, Helmira decide sair em definitivo daquele lugar, e para levar a termo seu desejo, resolve, numa decisão ousada, rifar o corpo, com a promessa de oferecer ao vencedor “uma noite no paraíso”. Esconde a identidade e inicia o processo de simulação, adotando o pseudônimo Suely. Atraída pelo movimento cíclico da diáspora e pela insatisfação em se fixar em algum lugar, a personagem encena os fluxos migratórios de pessoas sempre à deriva, em circulação, não se submetendo a controles e ordens sociais. O clima de ingenuidade e simplicidade do ambiente pop e brega da cidade e da classe social das personagens se mescla ao gosto popular da trilha sonora, aos bailes de forró, à decoração dos motéis. A caracterização do aspecto popular da vida no sertão modernizado constitui uma das maiores qualidades do filme, por registrar não apenas os efeitos de globalização no interior do país, como também a convivência sem culpas com este cenário heterogêneo, produto das ruínas do mito do progresso e do desejo de cada um de se adaptar aos anseios do presente. Interpretado como não lugar, o sertão é negado no estatuto de espaço mítico, reintegrando-se à imagem cósmica do céu, reveladora de um lugar vazio, movida pelo sentido de onipresença e falta. O céu está em todos os lugares e em lugar nenhum. Conjuga-se à realidade industrializada e artificial da luz dos faróis, pela construção de uma atmosfera difusa e liminar, em que se percebe mínima oposição entre paisagem e objetos. Distingue-se do sertão mítico e revolucionário de Glauber Rocha, e do sertão utópico de Central do Brasil, de Walter Salles. Trata-se de um lugar que redimensiona os interstícios e a justaposição de elementos incompatíveis, como a modernidade e a barbárie, convidando o espectador a penetrar na atmosfera cósmica do sertão e do céu. Na indefinição entre sertão-cidade, o comportamento da personagem segue a mesma pauta, por se definir pelo constante deslocamento e permanente trânsito. O desejo de liberdade que O céu de Suely sugere inscreve-se na superfície lisa e horizontal dos espaços naturais, em que a natureza, para subsistir, se faz cultura,
pose e artifício. Tempo efêmero e nômade, cruel sinal de nossos difíceis momentos contemporâneos. Consegue-se, contudo, extrair daí uma lição tanto estética quanto ética, ao ser processada a transformação do clima pesado do drama existencial em leveza, uma vez que a imagem condensada do céu e do sertão forma com Suely um único corpo libertário.
(2007)
108 CALVINO, Ítalo. Coleção de areia. Tradução de Pedro Francisco Gasparini, Suplemento Literário, Belo Horizonte, n. 48, jun.1999, p 21. 109 BUCI-GLÜCKSMANN, Christine. Esthétique de l’éphémère. Paris: Galilée, 2003, p 84. 110 Cf. FOUCAULT, Michel. Of other places. Diacritics, v 16, n 1, p 22-27, 1986. 111 Cf. FOUCAULT, 1980, p 77 apud SOJA, Edward. Geografias pósmodernas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1993, p 29. 112 SOJA, 1993, p 34. 113 DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil platôs. Rio de Janeiro: Editora 34, 1997, v 5, p 53-54. 114 DELEUZE; GUATTARI, 1997, p 37. 115 EWALD, François. La schizo-analyse: Gilles Deleuze, un philosophe nomade. Magazine Littéraire, Magazine Littéraire, n 257, Sept 1988, p 53. 116 DELEUZE; GUATTARI, 1997, p 61. 117 Cf. ROSS, Andrew. L’écologie des images. Multitudes: Revue Politique, Artistique, Philosophique, [s.l.], n 4-5, 1992. Disponível em: https://www.multitudes.net/l-ecologie-des-images/. Acesso em: 12 jul. 2021.
118 Cf. HEISE, Ursula K. Science and ecocriticism. The American Book Review, 18.5, July-Aug. 1997, p 4. Disponível em: https://www.asle.org/wpcontent/uploads/ASLE_Primer_Heise.pdf. Acesso em: 12 jul. 2021. 119 MARGENS/MÁRGENES: Revista de Cultura, Belo Horizonte, Buenos Aires, Mar del Plata, Salvador, n 5, jul./dez. 2004. Disponível em: https://periodicos.ufmg.br/index.php/margens_margenes/issue/view/546. Acesso em: 27 jul. 2021. 120 PRATT, Mary Louise. Imperial eyes: travel writing and transculturation. Abingdon: Routledge, 1992. 121 MONTALDO, Graciela. Ficciones culturales y fabulas de identidad en América Latina. Rosário: Beatriz Viterbo Editora, 1999, p 19-20. 122 NOUZEILLES, Gabriela (org.). La naturaleza en disputa: retóricas del cuerpo y el paisaje en América Latina. Buenos Aires: Paidós, 2002, p 22-23. 123 SÜSSEKIND, Flora. O Brasil não é longe daqui: o narrador, a viagem. São Paulo: Companhia das Letras, 1990, p 63. 124 CARVALHO, Bernardo. Mongólia. São Paulo: Companhia das Letras, 2003, p 137-138. 125 O CÉU de Suely. Direção: Karim Aïnouz. Produção: Celluloid Dreams; Fado Filmes; Shotgun Pictures. Rio de Janeiro: Videofilmes, 2006. 1 DVD (90 min), color.
Terras em transe¹²
O livro de Jens Andermann, Tierras en trance, publicado em 2018, merece ser lido por toda a comunidade acadêmica latino-americana e de outras regiões, não só pela originalidade do enfoque, como pela inteligente associação entre várias áreas do conhecimento, incluindo literatura, arquitetura, artes plásticas e cinema. Trata-se da exploração de uma série de constelações artísticas em torno dos séculos XX e XXI, com alusões bem nítidas às transformações teóricas e políticas ocorridas no período. Com a proposta que visa ressaltar o sentido inespecífico dessas manifestações, pelo emprego de procedimentos analíticos inscritos nas mesclas, interfaces e hibridismos, o texto inova pela crítica e pela reconfiguração da relação entre “arte e natureza depois da paisagem”, frente ao pensamento ecológico e político. De extrema atualidade, o alentado ensaio discorre sobre as mudanças ocorridas nos conceitos tradicionais vinculados à estetização da natureza, ao introduzir categorias analíticas como antropoceno, transe, hiperobjeto, na intenção de romper com a separação moderna entre homem/natureza/animal. A fala das forças naturais, contradizendo a fala forasteira dos viajantes, em permitir a entrada no universo não humano — capaz de se expressar e atuar politicamente —, está presente nas narrativas selecionadas pelo autor como exemplo do conceito de antropoceno. O termo, definido como “[…] idade geológica na qual haveria colapsado a distinção entre história humana e história natural, o que faria necessário […]”¹²⁷ “[…] colocar as histórias globais do capital em diálogo com a história do homem como espécie”, como expressa Dipesh Chakrabarty em “Clima e historia: cuatro tesis”.¹²⁸ A acepção de transe, própria das religiões afro-americanas, define-se no âmbito da transformação e da metamorfose, em resposta à visão continuísta e homogênea da modernidade. Andermann vale-se do raciocínio de Gilles Deleuze na explicação do transe, o qual se manifesta, entre outros registros, nos filmes de Glauber Rocha e Youssef Chahine, pela emergência de enunciados coletivos que “contribuem para a invenção de um povo”.¹² O povo, entendido como possibilidade do sujeito político coletivo ainda por vir no Terceiro Mundo, deve passar pelo transe, uma das modalidades críticas do mito. Por isso sua caracterização, ainda segundo Deleuze, responde pela ideia de transição, passagem ou devir, sendo o que cria o
ato de fala e se desconecta da noção de progresso.¹³ Mas a perspectiva de Andermann, inscrita na valorização da natureza como força, convoca a alteração do “devir povo” deleuziano pela expressão do poeta argentino Juan Lópes Ortiz, que declara: “‘o povo é a natureza’ ou, melhor, ‘as coisas naturais e não a natureza’”.¹³¹ Na mesma linhagem, o conceito de hiperobjeto, nomeado com termos como antropoceno, capitaloceno e chthuluceno, abala as oposições e sentidos de localização e tempo, concebendo-se como viscosidade, interobjetividade e pouca visibilidade. Tal raciocínio, por se desfazer da visão soberana do sujeito e se impor em proximidade com materialidades vibrantes, inaugura o que se entende por ecologia política. Na acepção do teórico Timoty Morton, o hiperobjeto refere-se aos materiais nucleares distribuídos massivamente nas coisas gigantescas da terra, como o aquecimento global, a via láctea, o sistema solar ou toda maquinaria estridente e avassaladora do capitalismo.¹³² O homem deixa de ser, nessa circunstância, o centro do universo:
O fim do mundo, sugere Timothy Morton, já está conosco: do mundo como totalidade significante, acessível exclusivamente ao espírito humano — porém, “este momento é o começo da história, o fim do sonho humano de que a realidade é significante unicamente para eles.”¹³³
Com forte tendência a desconstruir discursos coloniais e novecentistas de imaginação do Novo Mundo, Andermann percorre uma gama heteróclita de discursos que vão das obras literárias e plásticas a construções arquitetônicas e cinematográficas, por meio de uma proposta analítica comparativa e transdisciplinar. Os estudos culturais da América Latina estavam prescindindo de uma abordagem mais abrangente e não exclusiva, com ênfase na contribuição conjunta de manifestações artísticas que sinalizassem diferenças e semelhanças entre elas. Na escolha de temas comuns, como o pensamento ecológico e político existente no interior das formas estéticas, o mérito deste trabalho reside no pioneirismo analítico e na introdução de novos modos de repensar os limites da modernidade e a abertura de caminhos interpretativos. Pela perspectiva comparativa, deslocam-se a preocupação identitária das regiões, as noções de gênero e disciplina, ao propor a “aprendizagem de um despaisamento” oriundo
das próprias obras analisadas e da produção de um corpus “desordenado e aleatório”.¹³⁴ Nas palavras do ensaísta, trata-se de “uma constelação caprichosa de obras que não respeita a história de suas formas, na particularidade disciplinar ou geográfica de seu aparecimento e recepção crítica, cujas conclusões, portanto, serão condenadas à tautologia ou ao delírio.”¹³⁵ Na abertura do livro, Andermann elege o quadro de Adriana Varejão, Paisagens, de 1995 — cuja reprodução ilustra a capa do volume —, como mote para a apresentação da proposta sobre a narrativa da história natural ao avesso, visto que a imagem inverte a fisionomia das viagens pitorescas narradas pelos conquistadores. A resposta pós-colonial e feminina da paisagem contracena com a tradição da violência “falogocêntrica” (conceito derridiano), instaurando uma das configurações éticas da paisagem como forma de resistência. O desenho do chileno Miguel Lawner, de 1974, uma árvore solitária na ilha de Dawson, no sul do Chile, evoca o extermínio da companhia madeireira de toda população indígena, assim como alegoriza, seis meses depois do golpe militar chileno, o infortúnio que acabava de cair sobre o país inteiro. Uma pintura e um desenho inscrevem a pauta metodológica e política do ensaio, colocando em cena autores da América Latina, desenvolvendo espaços estéticos como o deserto, a selva e a montanha; a revolução da paisagem da modernidade arquitetônica; a politização do espaço desencadeado pelas guerrilhas rurais e urbanas, além da denúncia de práticas da memória pós-ditatorial presente em filmes neorregionalistas. A sensibilidade literária do ensaísta conjuga-se à tendência transdisciplinar, pela natureza inespecífica do objeto estético, capaz de ultrapassar limites e instaurar aproximações inusitadas e incomuns entre vários registros. De valor quase enciclopédico, o livro reúne um repertório extenso de autores que inclui brasileiros como Guimarães Rosa, João Cabral de Melo Neto, Graciliano Ramos, Euclides da Cunha, Mário e Oswald de Andrade, e hispânicos, como o poeta Ortiz, ficcionistas como Arlt, Juan Rulfo, Piglia, entre outros, com o objetivo de mapear as associações críticas da forma paisagem. Na área arquitetônica, a modernidade é interpretada de forma a definir a instauração do convívio coletivo pela construção de parques, jardins, prédios e cidades na América Latina sob a égide da criação estética. O meio de integração entre paisagem e arquitetura serviria de foco para a contribuição do modelo de modernização dos países periféricos. Lúcio Costa, Niemeyer, Villanova Artigas, no Brasil; Villagrán, O’Gorman e Del Morán, no México; Villanueva e Dominguez, na Venezuela, protagonizam as práticas de “regionalização” e vigor próprias da modernidade arquitetônica entre nós, em resposta crítica à herança europeia.
Nas artes plásticas, Hélio Oiticica e seus parangolés inauguram, segundo Mário Pedrosa, a função do artista como guerrilheiro, pelo êxodo do espaço dos museus para as práticas cotidianas, politizando-se e deslocando territórios fixos e institucionais.¹³ A cultura do corpo infiltra-se na paisagem, da mesma forma que a arquitetura moderna dialogava com a natureza, afastando-se da visão predadora. A cubana Ana Mendieta, autora de obras performáticas e das body arts nos anos 1970, surge ao lado de Oiticica de maneira um pouco distinta, sem romper com a ideia de uma estética desconstrutora do corpo. Representa a atuação do corpo migrante, o que seria, no entender de Andermann, a manifestação da biopolítica “pós-colonial”, em que corpo e ambiente se confundem:
Do ponto de vista de uma geopolítica migrante, ao estarem ambos submetidos a uma mesma biopolítica imperial, que tornou redundante a separação entre figura e fundo, sobre a qual ainda se organizava o regime extrativo anterior, manifesto esteticamente na forma paisagem como dispositivo de transplante entre colônia e metrópole.¹³⁷
Um dos pontos mais significativos do livro reside no último capítulo, que incorpora ao seu repertório as exposições que apontam as convergências entre arte e ciência, pela presença de bioartistas e ecoartistas. Sinaliza a importância dos filmes pós-ditadura na América Latina, com especial ênfase em La nostalgia de la luz, de Patricio Gusmán, além de representantes brasileiros dessa fase. Os desertos do Sul e os sertões nordestinos ilustrariam a violência constitutiva do Estado moderno, agora revisitados pela nostalgia de um tempo utópico. Seria, no meu entender, a síntese da proposta teórica e política do autor, por reivindicar a bioarte e a arte ecológica como saída para o rompimento da separação entre estética e técnica, natureza e cultura, arte e política. A abordagem aí efetuada, com ênfase na condição pós-natural da estética e na definição da pós-paisagem, em virtude do esgotamento de sua atuação, inscrevese de modo pioneiro e original para o avanço dos estudos literários e culturais do momento. Descartando estereótipos empregados na produção de discursos periféricos, nos quais o ressentimento atuava como solução para a violência colonialista, Tierras en trance assume dicção positiva e se impõe como
resistência ao devir-transe. Como o título da obra especifica, o autor convida o leitor a vivenciar, pela experiência transformadora do transe, novas perspectivas e a acreditar na “promessa de um entendimento transespécie, uma estética líquida que não é outra, no final das contas, que o transe da terra que dá título a este livro: a circulação, o vibrar, do sólido.”¹³⁸ O texto atua, sem dúvida, como alerta para os problemas vividos pela América Latina nos dias atuais, em que são abalados princípios de cidadania e de liberdade de expressão, pela imposição de valores vinculados à prática de um capitalismo selvagem e excludente. Política e arte se conjugam por intermédio da revisão de teorias revolucionárias contidas nas práticas da bioarte e da biopolítica. Rompe-se com a visão romântica e alienada da natureza ao elegê-la como entidade múltipla e transformadora e ao reivindicar saídas positivas para embates literários e culturais.
(2019)
126 Resenha de ANDERMANN, Jens. Tierras en trance: arte y naturaleza después del paisaje. Santiago de Chile: Ediciones Metales Pesados, 2018. 127 No original: “[…] edad geológica en la que habría colapsado la distinción entre historia humana e historia natural y se volvería necessário […]” (ANDERMANN, 2018, p 183, tradução nossa). 128 No original: “[…] poner las historias globales del capital en conversación con la historia del hombre en tanto especie” (CHAKRABARTY, 2009, p 212 apud ANDERMANN, 2018, p 183, tradução nossa). 129 ANDERMANN, 2018, p 22. 130 Cf. ANDERMANN, 2018, p 22. 131 No original: “[…] ‘el pueblo es la naturaleza’ o, más bien, ‘las cosas naturales y no la naturaleza’” (ORTIZ apud ANDERMANN, 2018, p 26, tradução nossa).
132 Cf. ANDERMANN, 2018. 133 No original: “El fin del mundo, sugiere Timothy Morton, ya está con nosotros: del mundo como totalidad significante, accesible exclusivamente al espíritu humano — pero ‘este momento es el comienzo de la historia, el fin del sueño humano de que la realidad es significante únicamente para ellos.’” (ANDERMANN, 2018, p 24, tradução nossa). 134 ANDERMANN, 2018, p 30. 135 No original: “[…] una constelación caprichosa de obras que no respeta las historias de sus formas en la particularidad disciplinaria o geográfica de su emergencia y recepción critica, cuyas conclusiones por ende, serán condenadas a la tautología o al delirio.” (ANDERMANN, 2018, p 30, tradução nossa). 136 Cf. ANDERMANN, 2018. 137 No original: “[…] desde el punto de vista de una geopolítica migrante, al estar sometidos, ambos, a una misma biopolítica imperial que ha hecho redundante la separación entre figura y fondo sobre la que estaba organizado todavía el régimen extractivo anterior, manifestado estéticamente en la forma paisaje como dispositivo de trasplantación entre colonia y metropoli.” (ANDERMANN, 2018, p 334, tradução nossa). 138 No original: “[…] promesa de un entendimiento transespecie, una estética líquida que no es otra, a fin de cuentas, que el trance de la tierra que da título a este libro: la puesta en circulación, el vibrar, de lo sólido.” (ANDERMANN, 2018, p 29, tradução nossa).
Arquivos em movimento¹³
A publicação pela Fundação Casa de Rui Barbosa de três vultosos volumes intitulados Cultura brasileira hoje: diálogos traduz um esforço coletivo para entregar ao público um painel significativo da produção artística e intelectual da atualidade. Os livros são resultado de eventos organizados em torno de depoimentos e debates realizados na instituição entre 2004 e 2017, que deram aos artistas, escritores e críticos, reunidos em duplas, a oportunidade de expor experiências e metodologias de trabalho. A original organização das exposições e debates reuniu representantes de diferentes áreas, como literatura, artes plásticas, cinema, fotografia, arquitetura, dança, teatro, cenografia, música e crítica. Na proposta apresentada, motivada pela necessidade de criar um diálogo entre manifestações artísticas distintas, pela troca de experiências e possíveis entrosamentos já existentes ou por existir, registra-se a rica contribuição dessa publicação para o público-leitor. As organizadoras definem, em nota prévia ao segundo volume, o claro objetivo do evento:
Ao que se visava, por um lado, um redimensionamento do trabalho historiográfico e de estudo textual, assim como da própria noção de cultura literária com que se trabalhava no Setor de Filologia, intensificando a interlocução e a compreensão crítica da hora presente. E, por outro lado, tratavase, igualmente, de ampliar e diversificar, de modo sistemático e contínuo, as práticas de registro e de arquivamento até então privilegiadas na Casa de Rui Barbosa.¹⁴
O envolvimento de contingente enorme de pessoas — entre organizadores, entrevistadores, autores, revisores, bolsistas, pesquisadores da obra iconográfica e fotográfica —, fornece a dimensão da edição dos volumes publicados em 2018, que se compõem de 2.000 laudas e 2.440 notas de rodapé. Minibiografias de nomes citados durante os diálogos refletem e justificam, nas notas, o empenho pelo trabalho arquivístico e o teor historiográfico da publicação. Trata-se de um repertório de referências de alto nível acadêmico, respeitando-se a multiplicidade
e a heterogênea produção artística da atualidade, que se projeta no interior de uma instituição pública de renome, responsável pela preservação de arquivos de escritores e intelectuais: um Museu que se revitaliza, abrindo as portas para a comunidade. Os relatos de vida, a experiência comum entre pessoas de iguais e diferentes gerações, o encontro inusitado entre aqueles que nunca haviam se encontrado, a aproximação entre técnicas e processos criativos transformam-se em atraentes narrativas biográficas, de leitura agradável e instrutiva. As aventuras narradas pelos protagonistas, em estágios, exílios voluntários ou não no exterior, perseguições políticas, ampliações do campo de pesquisa artística com parcerias em outras áreas, endossam o deslocamento como base de um painel cultural em movimento, revelador de potencialidade e vigor produtivo. Merece ainda ser ressaltado o fórum de debates criado por ocasião dos eventos, em que especialistas de múltiplos campos de saber foram convocados ao diálogo, o que resultou no aprimoramento das relações interdisciplinares, uma vez que o espaço de discussão se distinguia dos apressados locais reservados aos encontros em festivais, feiras ou congressos mais especializados. A oportunidade reservada aos autores para a exposição e reflexão sobre os exercícios criativos encontrou solo propício para descobertas inauditas, coincidências no tratamento de procedimentos artísticos e literários, e para tornar pública sua metodologia de trabalho, com as inquietações e empecilhos aí inerentes. O compartilhamento com o leitor de momentos de extrema produtividade, principalmente originada nos bastidores das conversas ou nos encontros, guiados por afinidades estéticas, converte-se na exposição de diversos saberes que circulam e circularam nas últimas décadas no país. Diante do número significativo de convidados aos diálogos interdisciplinares, reunidos na publicação em três volumes (sessenta e dois autores, divididos em trinta e uma duplas), a leitura deverá obrigatoriamente se efetuar com vistas à escolha de cada um. A participação desenvolta e oralizada dos depoimentos não impede o aspecto enciclopédico da edição, pela pretensão de englobar tendências distintas e heterogêneas no âmbito artístico e noutras áreas, ao oferecer um painel cultural de relevância para o entendimento da complexa situação das artes nos dias de hoje. Mas o aspecto enciclopédico afasta-se de um conceito fechado, ilustrativo e globalizante, ao se inscrever como espaço aleatório e fragmentário, em que são discutidos, entre muitos, os procedimentos criativos; os níveis de aprendizagem entre os pares; a pesquisa referente ao trabalho de criação; o engajamento da obra como reflexão nacional, aliado ao compromisso com o olhar cosmopolita. O número de autores implica, portanto, a variedade
infindável de temas e conceitos aí enfocados, o que permite considerar a publicação textos de referência para o infindável contingente de leitores. Na seleção dos autores, as organizadoras justificam a ausência de nomes das várias regiões do país, em virtude de dificuldades financeiras da instituição, da recusa aos convites por parte de muitos artistas, por não admitirem a discussão de seu trabalho artístico. Nesse sentido, o núcleo de participantes se restringiu ao eixo Rio-São Paulo, mas a questão geográfica não pode servir de parâmetro, uma vez que muitos deles vieram de outros estados e se estabeleceram nas capitais. Contudo, tal restrição não deixa de ser exclusiva de determinada parcela dos representantes das artes no Brasil. Percebe-se que a historiografia artística não se pauta mais por classificações de ordem temporal e espacial-geográfica, desobedecendo a critérios cronológicos e se impondo no fluxo anacrônico das manifestações. A composição dos diálogos em duplas, embora não tenha seguido obrigatoriamente representantes da mesma geração, conseguiu reordenar tendências, agrupar escritores com artistas plásticos, cineastas com críticos literários, cenógrafos/diretores de teatro com poetas, fotógrafos com escritores, e assim por diante. Se o perfil recaísse na produção de uma historiografia ortodoxa, a organização do evento iria manter as áreas separadas, a estrutura cronológica, a conformidade geracional e a semelhança de estilos. Se fosse solicitado definir um eixo teórico/temático para as discussões e para a proposta em geral, o termo deslocamento poderia ser o escolhido, acompanhado do desejo dos autores em registrar o procedimento artístico/crítico de suas realizações. O deslocamento de áreas específicas em direção a outras, a quebra da autonomia autoral e, consequentemente, da obra, o apelo à alteridade e à múltipla contaminação de discursos se aliam ao movimento contínuo das viagens em direção ao desconhecido e ao novo. Expor as experiências e os bastidores da produção artística/crítica não deixa de ser atividade contemporânea, junção entre criação e crítica, ficção e ciência, experimentação e procedimento, ensaio e filme, documento e ficção. O primeiro volume se inicia com a presença do escritor Silviano Santiago em parceria com Anna Maria Maiolino, artista plástica e poeta, registrada em 2004; o último, em 2017, fecha a série, com o diálogo entre o crítico de cinema Carlos Alberto Mattos e Erick Rocha, diretor de cinema (por sinal o mais longo dentre os textos). A distância temporal entre todos os depoimentos não diminui a importância de cada um, que, por registrarem diferentes momentos da situação cultural do país, acenam para uma visão englobante e contrastiva, em um
repertório de gerações bastante diversificadas. Por se constituir enquanto publicação de múltiplas entradas, Cultura brasileira hoje: diálogos atende a interesses distintos, o que comprova o aspecto enciclopédico e diversificado dos volumes. Entre poetas, escritores, artistas plásticos, críticos literários, teatrais e artísticos, cenógrafos, cineastas, músicos, diretores de fotografia, arquiteto, dançarinos, cientista, diretores teatrais, encena-se um diálogo polifônico, no qual prevalece o esforço em discutir escolhas estéticas e mecanismos empregados na criação.¹⁴¹ Configura-se, em todos os depoentes, o compromisso com a palavra política e a imagem transgressora, a performance artística como prova de engajamento com a proposta social, a pesquisa sempre renovada com os materiais de criação. No desenrolar dos depoimentos e questões levantadas pelos participantes, destacam-se alguns temas comuns: o trabalho artístico como resultado do empenho arquivístico, a pesquisa em torno de novos/antigos objetos, a formação responsável pela concepção da arte como artifício e experimentação. Em consonância com o espaço reservado aos debates, a Fundação Casa Rui Barbosa, guardiã de arquivos e bibliotecas, a reflexão sobre o tema reforça a importância de se considerar o processo criativo de forma crítica e teórica. Silviano Santiago, professor, escritor e ensaísta, transita entre lugares discursivos, o ensaio e a ficção, a pesquisa e o arquivo, o que confirma seu perfil de escritor-crítico. Rosângela Rennó, “colecionadora compulsiva” de material fotográfico, realiza um trabalho de apropriação do material que recolhe, transformando-o em arte própria. Carlos Vergara, na sua aventura artística, sai em busca dos minérios, dos pigmentos do Brasil em Minas Gerais, materiais importantes para o entendimento de sua pintura, um trabalho marcado pela apropriação e recriação. Sílvio Tendler, possuidor de arquivo inestimável de imagens cinematográficas, é conhecido como “colecionador de imagens”, acervo imprescindível na confecção de muitos de seus documentários. E assim se comportam igualmente outros entrevistados, evidenciando serem os ofícios resultados de pesquisa e manuseio com materiais de toda sorte. No cômputo geral dos depoimentos publicados, constata-se o efeito de deslocamento do objeto artístico de sua autonomia, registrado, por exemplo, por Sérgio Sant’Anna, “O texto está querendo ser visual, dramático. Buscar algo que esteja fora da literatura é minha obsessão textual.” (v 1, p 434); ou por Bernardo Carvalho, ao assumir a mudança na sua maneira de criar ficção:
O que aconteceu com Nove noites foi um processo muito particular: quando li um artigo de jornal, tive uma espécie de epifania. Não sei por que o artigo bateu de um jeito muito forte. Com este livro, comecei a pesquisar para fazer ficção, o que nunca tinha feito antes. (v 1, p 124).
Carlos Alberto Mattos, crítico de cinema, discorre sobre o filme-ensaio, o qual, diferentemente dos documentários convencionais, retrata a busca de um cinema político, de invenção, “que trabalha com imagens de arquivo, que reativa a memória, que reinterpreta o passado de modos surpreendentes, que reinventa o passado e o presente.” (v 3, p 687). Ao leitor, a oportunidade de entrar nesse arquivo-texto, de modo atento e disposto a usufruir do rico material bibliográfico que tem em mãos. Ocasiões como essas, promovidas por órgãos de pesquisa e de divulgação de saberes multidisciplinares, acontecem raramente no meio acadêmico, pela constante precariedade orçamentária aliada ao pouco incentivo existente para a promoção de debates culturais e políticos dessa natureza.
(2019)
139 SÜSSEKIND, Flora; DIAS, Tânia (org.). Cultura brasileira hoje: diálogos. Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 2018. 3 v. 140 SÜSSEKIND; DIAS, 2018, p 6. 141 Os participantes foram divididos em duplas, seguindo, na publicação, a seguinte ordem: Volume 1: Anna Maria Maiolino/Silviano Santiago; Ana Carolina/Antonio Dias; Angelo Venosa/Bernardo Carvalho; Rodrigues/Zé Celso Martinez Corrêa; Mario Novello/ Paulo Mendes da Rocha; Rosangela Rennó/Sergio Sant’Anna; Nuno Ramos/Vilma Arêas. Volume 2: André Sant’Anna/Bia Lessa; Anna Bella Geiger/Juliana Carneiro da Cunha; Beatriz Bracher/Carlito Carvalhosa; Carlito Azevedo/Waltercio Caldas; Carlos Süssekind/Mário Carneiro; Carlos Zílio/Cássio Loredano; Eduardo Escorel/Paulo Henriques Brito; Elizabeth Jobim/João Saldanha; Milton
Machado/Rodolfo Caesar; Sílvio Tendler/Walnice Nogueira Galvão. Volume 3: Antonio Manuel/Jean-Claude Bernadet; Antonio Geraldo Figueiredo Ferreira/ Luiz Costa Lima; Antônio Araújo/ Sílvio Ferraz; Daniella Thomas/Lu Menezes; Eduardo Sued/Paulo Sérgio Duarte; Flávia Meireles/Marília Garcia; Hélio Eichbauer/Tato Taborda; José Resende/Ronaldo Brito; Laura Vinci/ Murilo Salles; Milton Hatoum/Verônica Stigger; Carlos Alberto Mattos/Erick Rocha.
A modernidade residual do contemporâneo
[…] chaque écrivain, chaque artiste et, plus largement, tout individu soucieux de penser sa place dans le temps, invent ses contemporains. Ce qui signifie sans doute qu’il les découvre mais sourtout qu’il les crée. Car le point important est qu’une telle invention ne s’effectue sur le present qu’en raison d’un calcul concernant l’Histoire dans son entièreté. Du coup, toute perception du présent s’appuie — implicitement ou explicitement — sur une invention du contemporain qui, elle-même, suppose la construction d’une généalogie, revendiquant un passé, en appellant à un avenir.
Philippe Forest
Em 1968, Roland Barthes escreveu o hoje célebre e maltratado artigo “A morte do autor”. Produto recente do estruturalismo, o texto celebrava o desaparecimento do autor na cena literária, substituindo-o pela vida da escrita e da linguagem, e pela presença do leitor. O distanciamento do crítico frente ao objeto funcionou como arma de dois gumes, ora impedindo a associação biográfica entre obra e autor, ora legitimando a crítica estruturalista de perfil asséptico e racionalista. Com a retomada do lugar do sujeito no discurso em ensaios posteriores — o sujeito que volta será a título de personagem — tal posição deixava ainda de lado a participação efetiva desse sujeito na ação política, o que contribuiu para a consideração anacrônica do artigo. A lição barthesiana sobre a concepção do autor como ser de papel, inscrito dramaticamente na cena da escrita, merece ser levada em conta pela crítica, principalmente se repensarmos no legado teórico que o século XX inaugurou para o avanço dos parâmetros da crítica literária. No momento em que se comemora os quarenta anos do curso de pós--graduação em Literatura da UFSC, a presença de Roland Barthes — obra e vida — poderia servir de emblema para a reflexão sobre a atual condição de sobrevida ou morte da crítica literária. Sob o signo da morte, as vanguardas europeias se impuseram em busca de novos
paradigmas, como a morte do autor, do gênio criador, das bibliotecas, do passado, do museu, do homem, de deus. Instaurou-se, entre outras, a poética do cotidiano em detrimento dos altos temas, substituindo-se a retórica pela simplicidade expressiva e elegendo o futuro como meta e sinal de progresso. Convivendo com a vanguarda artística, e dela se afastando, a modernidade, no entender de Baudelaire, um de seus maiores ícones, não endossava o registro militar da vanguarda, mas, sim, o dispositivo diante do tempo presente, do efêmero e do devir, sem rejeitar os laços com a tradição. A modernidade crítica dos anos de 1960 na França, na composição de sua dupla face, entre a vanguarda e a modernidade, deu carta aberta à experimentação e a sistematização de pressupostos teóricos, expandindo-se além das fronteiras nacionais. A análise semiológica e textual, tendo Roland Barthes como entidade principal, rompia com os antigos procedimentos críticos, como o biografismo e a paráfrase, expandia o diálogo transdisciplinar ao jogar no lixo a função sociológica e marxista do discurso analítico. Michel Foucault, em 1969, publica “O que é um autor?”, com o objetivo de defini-lo pela função no discurso, destituindo-o de critérios identitários e essenciais, palavra de ordem do alto estruturalismo, ao lado de questionamentos quanto aos limites impostos à noção de obra publicada como sinônimo de fechamento e finitude. Textos marginais do autor, como inéditos e manuscritos, correspondência entre pares e família, papéis de ordem pessoal, deveriam compor a obra — sempre em processo — dos escritores. O sentido de inacabamento e de precariedade textual foi devedor da pesquisa exercida nos arquivos, espaço inaugural no avanço da atual abertura da crítica para a história, com o surgimento de autores e obras até então esquecidos e ignorados. O amplo e complexo conceito de modernidade, ao ser questionado na sua eficácia e perenidade, nutre-se de uma série de acepções paralelas, enunciadas com o intuito de tornar mais diversificado o entendimento, e recebe contribuição de muitos pensadores. Destaco, entre eles, o teórico francês Antoine Compagnon, estudioso e amigo de Barthes, movido pelo teor didático, histórico e metateórico da crítica francesa dos últimos anos, que elege novo rótulo para o conceito de modernidade, o de antimodernidade. No livro de ensaios de 2011, Os antimodernos, ao lado de uma série de escritores franceses de diferentes épocas, Compagnon define Roland Barthes com o rótulo de antimoderno, pela interpretação a ser fornecida sobre essa categoria. Sem se opor ao conceito de moderno, mas operando em termos diferenciados, embora conservando muito de seus princípios, o antimoderno, segundo Compagnon, refere-se à retomada do clássico e ao respeito à tradição, sem se filiar à vanguarda.¹⁴² O conceito mantém
semelhanças com os parâmetros da modernidade baudelairiana, no momento em que o autor a considera “paixão e crítica do presente”:
Na verdade, o temperamento de Barthes sempre o levou mais para as obras clássicas ou românticas do que modernas. Suas relações com as vanguardas sempre foram ambíguas. Do mesmo modo, seu antimodernismo último parece menos o produto de uma conversão tardia e de uma ruptura trágica do que uma volta às origens e o reconhecimento de uma antiga felicidade, mais tarde designando o período estruturalista, a marcha com Tel Quel e a apologia da Textualidade como um quiproquó prolongado. Depois de tudo, em 1944, em um elogio ao “estilo de raça” do Estrangeiro de Camus, ele já atacava o “estilo de gênio” e a “anarquia de estilo” de Céline, por quem nunca compartilhou do entusiasmo de Tel Quel; […] Chateaubriand, Flaubert, Anatole France foram seus modelos originais, pois antecipavam então sem hesitar, “o prazer do estilo, mesmo nas obras da vanguarda, nunca será obtido senão por fidelidade a certas preocupações clássicas […]”¹⁴³
Se fosse um dos nossos, Compagnon poderia estar insurgindo-se contra o modelo ocidental e eurocêntrico das teorias sobre a modernidade, ao considerar, principalmente, o descompasso temporal de sua atualização nas distintas culturas. Pensadores e teóricos contemporâneos têm se empenhado em apontar algumas possíveis saídas para sair ou entrar na modernidade, como assim se expressa Néstor Canclini. Dotados de pensamento nômade e de experiência vital em permanente deslocamento, os autores se apropriam da teorização produzida pelos discursos hegemônicos para desconstruí-los. Romper estrategicamente com as teorias que consolidaram o mito da modernidade justifica-se pela urgência em se assumir novas propostas capazes de contribuir para o norteamento das indagações do presente. Entre essas acepções, cito: a de modernismo tardio, de Fredric Jameson, associado às noções de capitalismo tardio e de sociedade pós-industrial; a de Stuart Hall, de modernidades alternativas e de modernidades tardias, assim como a de modernidades periféricas, de Beatriz Sarlo; modernidades livres (at large), de Arjun Appadurai, modernização reflexiva, de Anthony Giddens; contramodernidade cultural, como sinônimo de temporalidade disjuntiva, em Homi Bhabha; ou de modernidade líquida, conceito cunhado por Zygmunt Bauman. A necessidade de sinalizar
outras saídas para os conceitos denunciou, em muitos lugares periféricos, o registro congelado de interpretações sobre a modernidade, o que resultou na caracterização ambivalente e paradoxal de acepções até então aceitas pela crítica em geral. A cultura francesa raramente se vale do diálogo teórico com outras culturas, daí a impossibilidade, de ordem ideológica, de Compagnon resgatar a figura de Barthes como pós-moderno, contemporâneo ou moderno tardio. Há, contudo, exceções, pois o organizador do volume Qu’est-ce le contemporain? Lionel Ruffel admite ser o conceito de contemporâneo “a conjunção dos momentos americanos (Estados Unidos e América Latina), pós-colonial e pós-moderno”.¹⁴⁴ Correndo o risco de entender o antimoderno como solução conservadora para os desmandos da vanguarda, Compagnon interpreta a noção no seu estatuto de dado positivo e prova de liberdade frente às limitações do moderno. Sem discutir que o prefixo anti remete ao raciocínio binário e à negação própria das vanguardas, o último Barthes teria também se tornado clássico, no entendimento do crítico francês. Guardadas as diferenças de atualização e de concepções das inúmeras definições de modernidade ou de contemporâneo, Barthes já havia alertado para o desligamento da prisão aos aspectos referenciais e cronológicos — e a entrada no âmbito do contemporâneo — ao discorrer sobre o termo, entre 1976-1977, no Seminário Como viver junto, ministrado no Collège de France. Essa posição crítica diante das limitações temporais e espaciais impostas pela historiografia literária o aproxima de nossa perspectiva analítica deste princípio de século e no meio das contingências nem tão tranquilas da crítica literária. Articular o pensamento de autores com base em afinidades eletivas, ainda que não tenham mantido um diálogo efetivo entre si, responde pela atualização do conceito de contemporâneo e da reflexão sobre o antimoderno e o pós-moderno.
Por exemplo, posso dizer sem mentir, que Marx, Mallarmé, Nietzsche e Freud viveram vinte e sete anos juntos. Ainda mais, teria siso possível reuni-los em alguma cidade da Suíça em 1876, por exemplo, e eles teriam podido — último índice do Viver-Junto — “conversar”. Freud tinha então vinte anos. Nietzsche trinta e dois, Mallarmé trinta e quatro e Marx cinquenta e seis. (Poderíamos perguntar qual é, agora, o mais velho.) Essa fantasia de concomitância visa a alertar sobre um fenômeno muito complexo, pouco estudado, parece-me: a
contemporaneidade. De quem sou contemporâneo? Com quem é que eu vivo? O calendário não responde bem. É o que indica nosso pequeno jogo cronológico — a menos que eles se tornem contemporâneos agora?¹⁴⁵
A conversa entre autores de distintos tempos traduz o pensamento de Barthes sobre o anacrônico, o intempestivo nietzschiano, a defasagem do correr unívoco dos acontecimentos e a inatualidade das ações, sejam elas de qualquer natureza. O conhecido ensaio de Giorgio Agamben, O que é o contemporâneo, de 2008, tem como ponto de reflexão a referência à citação de Barthes sobre Nietzsche, ao se referir à defesa da condição de inatualidade na concepção temporal dedicada ao contemporâneo. A não coincidência e a anacronia seriam os princípios mais efetivos para se romper com seu próprio tempo, pois a distância a ser mantida em relação a ele resultará em maior percepção, uma vez que o verdadeiro contemporâneo é aquele que não coincide com seu tempo.¹⁴ As lições de Barthes ressoam na consolidação da crítica comparada dos dias atuais quanto à definição de contemporâneo, pela acuidade com que inaugura a relação entre pensadores a partir de coincidências de ideias. Jorge Luis Borges já havia enunciado a primeira observação sobre o tema, quando publica o ensaio, “Kafka e seus precursores,” em que questiona a noção de influência em literatura, inverte os princípios de causa e efeito e desobedece à ordem cronológica dos acontecimentos literários.¹⁴⁷ O conceito de contemporâneo, em Barthes e Agamben, retoma a reversão do tempo cronológico como critério de interpretação da história das ideias e da crítica. Na mesma pauta de redefinições recentes do contemporâneo, assinale-se a de François Noudelmann, “Le contemporain sans époque: une affaire de rythmes”, que o define como “modernidade residual”, uma releitura do passado, sem rejeitar o devir. No seu raciocínio, o contemporâneo se faz representar na sua anacronicidade, o que permite associar autores de épocas distintas por semelhanças de princípios, introduzindo o futuro como o aspecto novo na relação. É evidente a correlação dessa afirmação com o conceito de contemporâneo em Barthes:
Gerações se encostam umas às outras, são contemporâneas, mas o verdadeiro encontro pode acontecer mais tarde, de acordo com novas curvaturas do tempo.
Longe de uma objetividade simultânea ou retrospectiva, o contemporâneo tem um futuro. Ele não é mais o tempo gestacional e determinado das avant-gardes, pelo contrário, está disponível a significações ulteriores imprevisíveis. Desse modo, a contemporaneidade faz saltar o tempo cronológico, uma vez que nada impede de tornar contemporâneos autores que pertencem a épocas diferentes.¹⁴⁸
Não se trata, portanto, de recriminar autores que, de forma ambivalente, assumiram posições elitistas ou niilistas quanto ao destino e à morte dos valores. Barthes, no final da vida, irá, segundo os biógrafos, lutar contra a morte da literatura, por esta não mais corresponder aos verdadeiros princípios, assumindo a desconfiança quanto ao valor mercadológico da literatura, ao afirmar: “O livro, lugar sagrado da linguagem, é dessacralizado, mediocrizado: ele pode ser comprado […] um pouco como pizzas congeladas”;¹⁴ a língua, igualmente, encontra-se em estado precário, desintegrada e entregue à barbárie: “vivemos hoje uma crise do amor pela língua”.¹⁵ O que resta para o crítico como sobrevida seria a arte oriental, reveladora do instante, do resíduo, do depósito de real, “um detrito errático, um relevo do tecido cotidiano individual”.¹⁵¹ Barthes torna-se radical em suas preferências literárias e linguísticas da época, elegendo viver apenas o instante pela fruição do haicai. Torna-se para ele, o modo de redimir a literatura e de conseguir sua sobrevida pelo descompromisso com o progresso e o futuro, embebido pela lógica do instantâneo da arte japonesa. Situando-se entre dois polos, na corda bamba entre a vida e a morte, Barthes justifica sua atração pela fragilidade do haicai, o que lhe permite viver o luto da perda da mãe. O punctum adquirido pela observação singular da arte da fotografia, em A câmara clara, o “isso foi”, remete ao passado e à morte trazidos pela cristalização do momento, desdobrando-se na interpretação da beleza representada pela flor de cerejeira: “para os japoneses, dizem, não é propriamente a flor de cerejeira que é bela: é o momento em que, perfeitamente desabrochada, ela vai murchar. Tudo isso diz o quanto o haicai é uma ação (de escrita) entre a vida e a morte.”¹⁵² A obsessão afetiva entre Barthes e a mãe metaforiza a vivência do contemporâneo, do “estar junto”, à medida que inverte o fluxo temporal operado entre duas pessoas da mesma idade e muitas vezes sem laços sanguíneos. O Journal de deuil (Diário do luto), edição póstuma, publicado em 2009, dialoga com essa inversão, ao colocar o filho no lugar da mãe durante a doença, situação
que se aproxima da ação de escrita do haicai, descrita acima, como fusão entre vida e morte, fim e princípio se entrelaçando, tempo e espaço superando-se: “19 novembro (Embaralhamento dos estatutos). Durante meses, fui sua mãe. É como se tivesse perdido minha filha. (dor maior que isso? Não havia pensado nisso).”¹⁵³ Coincidência ou não, a morte de Barthes é provocada por acidente, em 1980, poucos anos após a morte da mãe, atropelado por um furgão. Nas palavras de Tzvetan Todorov, em “Le dernier Barthes”, o crítico nunca quis assumir o discurso do pai, tendo sempre algum traço adolescente e mesmo infantil:
Não, ele só poderia ser um Pai paradoxal, como as mães de Apollinaire: pai de sua mãe, como ele diz em seu último livro, e pai de si próprio. E não é sua morte a de uma criança: atravessando a rua?¹⁵⁴
A ausência da figura paterna será substituída pela onipresença da mãe. Em outra ocasião e em época não distante de sua morte, Barthes havia demonstrado a intenção de se aproximar de personagens literárias por afinidades autobiográficas, tornando-se cúmplice de acontecimentos histórico-literários. Contemporâneo de seus discípulos nos seminários, pensando na Vita Nuova de Dante, Barthes tem acesso ao Collège de France exibindo um corpo histórico pela mediação da literatura, capaz de lhe revigorar e dar-lhe vida. Na aula inaugural, evoca Hans Castorp, herói de A montanha mágica de Thomas Mann, rompe as barreiras temporais e cria o diálogo do passado com o presente. Tornase contemporâneo da personagem tuberculosa do romance, por ter igualmente sofrido de tal moléstia, convivência inventada à luz do processo anacrônico das aproximações:
Percebi, então, com estupefação (só as evidências podem estupefazer) que meu próprio corpo era histórico. Em certo sentido, meu corpo é contemporâneo de Hans Castorp, o herói d'A Montanha Mágica; meu corpo, que não tinha ainda nascido, tinha já vinte anos em 1907, ano em que Hans penetrou e se instalou no “país do alto”; meu corpo é bem mais velho do que eu, como se conservássemos sempre a idade dos medos sociais com os quais o acaso da vida nos pôs em
contato (grifo do autor).¹⁵⁵
No momento do acidente, o rosto de Barthes estava de tal maneira desfigurado que foi impossível o reconhecimento imediato, tendo sido o escritor transportado para o hospital como anônimo, sem identificação, embora estivesse a dois passos do Collège de France. Italo Calvino descreve com fina sensibilidade a ironia da situação, remetendo ao último livro de Barthes, A câmara clara, em que o autor confessa o mal estar de ver seu próprio rosto tornar-se objeto, pela relação entre a imagem e o eu. Para o escritor italiano, a lembrança da leitura do livro se mesclava ao rosto de Barthes, que acabava de ser dilacerado, repentinamente, como se rasga uma foto.¹⁵ Ironicamente, a morte do autor atualiza-se ao pé da letra, por ter perdido a face original e imiscuir-se na imagem irreconhecível. Resta a imagem do escritor veiculada, no momento, pelas fotos, reportagens, números especiais de revistas contendo artigos dos amigos, sua obra, enfim. Na condição de imagem, torna-se definitivamente personagem de si próprio, ao conseguir revitalizar o jogo da escrita como gesto de desaparecimento/aparecimento, à feição da beleza da flor de cerejeira no momento em que desabrocha e murcha. Vida/morte da literatura, do autor, da personagem — são estas as configurações que englobam o contemporâneo como gesto artístico/crítico de nossos dias. Passados quarenta anos da morte de Barthes, publicações na França multiplicaram-se, pela edição das Obras completas, de diários inéditos de viagens, diário do luto, biografias, reedições, traduções, principalmente no Brasil, de grande parte de seus livros, dos últimos seminários, entre outras publicações. Com significativa recepção crítica entre nós até sua morte, o meio universitário brasileiro permanece fiel às lições do mestre, graças ao trabalho de divulgação de sua obra por meio de programas de cursos, teses e seminários comemorativos. Qual seria, portanto, o legado, às vezes ambíguo, de Barthes para a crítica literária no Brasil? Estaria a Academia, de modo talvez inconsciente, valendo-se do último Barthes, o divulgador da écriture, do ensaio, do prazer do texto e do abandono do tratado acadêmico e supostamente científico? Ou a literatura contemporânea, como objeto de estudo, estaria relegada a segundo plano, pela tendência da crítica em reforçar a preferência pela leitura dos clássicos, valorizando o verbo reler, legitimando o canônico no lugar do experimental? A “retaguarda da vanguarda”, na expressão de Barthes, seria a resposta para a posição de certa crítica acadêmica vigente nos dias atuais?
As teses acadêmicas, em algumas universidades do país, apropriam-se de pesquisas sobre autores consagrados e de teorias obsoletas, abstendo-se de enfrentar o desafio do desconhecido e do texto emergente. Os livros de literatura escolhidos para o processo seletivo obedecem muitas vezes a critérios conservadores e retrógrados, havendo, em muitas universidades, a proibição de inserir na lista obras de autores vivos. Nem tanto ao mar, nem tanto à terra. O saldo positivo dos cursos de pósgraduação no país atesta altos e baixos, embora conserve a força da pesquisa e o compromisso ético entre seus pares. Nesses cinquenta anos de cursos de pósgraduação no Brasil, crescemos muito, não resta a menor dúvida. Olhar para trás não significa romper com a permanência da tradição crítica estrangeira, por sua recepção no país e seus múltiplos desdobramentos entre nós. “O tempo perde o movimento de flecha, que lhe dá sentido como cronologia dos acontecimentos. O espaço perde a organização de mapa, que lhe dá sentido como apreensão racional do mundo”¹⁵⁷. Nas palavras de Silviano Santiago, o texto artístico ou crítico não se configura como núcleo estável, transformando-se e relacionandose com os demais pelo viés da tradução e da metáfora. Esta seria a maior lição que Barthes poderia nos deixar, em meio a tantas turbulências pelas quais a crítica literária sempre passou.
(2013)
142 COMPAGNON, Antoine. Os antimodernos: de Joseph de Maistre a Roland Barthes. Tradução de Laura Taddei Brandini. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2011. 143 COMPAGNON, 2011, p 428-429. 144 RUFFEL, Lionel. Introduction. In: RUFFEL, Lionel (ed.). Qu’est-ce le contemporain? Nantes: Éditions Cécile Defaut, 2010, p 30. 145 BARTHES, Roland. Como viver junto: simulações romanescas de alguns espaços cotidianos. Cursos e seminários no Collège de France, 1976-1977. São Paulo: Martins Fontes, 2003a, p 11-12.
146 Cf. AGAMBEN, Giorgio. Qu’est-ce-que le contemporain? Traduit de l’italien par Maxime Rovere. Paris: Rivages Poche, 2008, p 8-9. 147 BORGES, Jorge Luis. Kafka e seus precursores. Tradução de Sérgio Molina. In: BORGES, Jorge Luis. Obras completas II: 1952-1972. São Paulo: Globo, 1999a. p. 96-98. 148 No original: « Des générations se côtoient, sont contemporaines, mais la véritable rencontre peut exercer plus tard, selon de nouvelles courbures du temps. Loin d’une objectivité simultanée ou retrospective, le contemporain a un avenir. Il n’est plus le temps gestationnel et déterminé des avantgardes, il est au contraire disponible à ces significations ultérieurs imprévisibles. Du coup la contemporanéité fait sauter le temps chronologique puisque rien n’interdit de rendre contemporains des auteurs qui appartiennent à des époques différentes » (NOUDELMANN, François. Le contemporain sans époque: une affaire de rythmes. In : RUFFEL, Lionel (ed.). Qu’est-ce le contemporain? Nantes: Éditions Cécile Defaut, 2010, p 67, tradução de Eliana Muzzi). 149 BARTHES, Roland. A preparação do romance. Tradução de Leyla PerroneMoisés. São Paulo: Martins Fontes, 2005b. v II. 150 BARTHES, Roland. Pour un Chateaubriand de papier. Le Nouvel Observateur, [s.l.], 10 déc. 1979. 151 BARTHES, 2005b, p 111. 152 BARTHES, 2005b, p 114. 153 No original: « 19 novembre (Brouillage des status). Pendant des mois, j’ai été sa mère. C’est comme si j’avais perdu ma fille (douleur plus grande que cela? Je n’y avais pas pensé) » (BARTHES, Roland. Journal de deuil. Paris : Seuil, 2009, p 66). 154 No original: « Non, il ne pouvait être qu’un Père paradoxal, comme les mères d’Apollinaire : père d/e sa mère, comme il dit dans son dernier livre, et père de lui-même. Et sa mort n’est-elle pas celle d’un enfant : en traversant la rue? » (TODOROV, Tzvetan. Le dernier Barthes. Poétique, Paris, Seuil, n 47, sept 1981, p 325, tradução de Eliana Muzzi). 155 BARTHES, Roland. Aula. Tradução e posfácio de Leyla Perrone-Moisés.
São Paulo: Cultrix, 1997. 156 CALVINO, Italo. En mémoire de Roland Barthes. In: CALVINO, Italo. La machine littérature. Paris: Seuil, 1984. 157 Transcrição de comunicação oral.
Crítica e alta costura
É fútil o que aparentemente não tem, não terá consequência. Mas, para mim, sujeito amoroso, tudo o que é novo, tudo o que desarranja, é recebido, não sob a forma de um fato, mas sob a forma de um signo que é preciso interpretar.
Roland Barthes
Por ocasião das comemorações do centenário de Roland Barthes, em 2015, a marca francesa Hermès lançou o lenço “Roland Barthes – Fragmentos de um discurso amoroso”, ornamentado por pequenos quadros e remetendo tanto à ideia de texto como de fragmento. Ao lado de outras homenagens feitas à data, como seminários, publicação de livros, edição de textos inéditos, o crítico foi lembrado como expressão significativa do reino da moda, por meio do livro mais acessível ao público não acadêmico. A inscrição do título e de seu autor no objeto a ser comercializado e exposto como mercadoria burguesa, permite associações as mais variadas, notadamente quanto ao lugar da literatura e da crítica na sociedade de consumo e no espaço acadêmico. Como entender a relação da crítica com a escolha de um objeto, feito de seda, tecido igualmente nobre e deslizante e que se destina a compor elegantemente o corpo de quem o veste? Como não remeter ao termo tecido, sentido barthesiano de texto, conjunção mais do que óbvia entre a peculiar escrita do autor, marcada pelo cuidado e zelo com a linguagem, e o objeto? O texto Fragmentos de um discurso amoroso transforma-se, literal e metaforicamente, em lenço a ser manuseado e exposto pelos mais distintos usuários e relido sob a forma de outro meio de comunicação. Representante da crítica semiológica e do estudo da cultura em todas suas formas, como arte, literatura, cinema, fotografia, design, moda, Barthes introduziu uma série de conceitos que permanecem até hoje nos anais da crítica, como a morte do autor, o texto legível e o escrevível, o prazer do texto, o biografema. A homenagem confirma a generosidade do escritor para as demais
manifestações que não se circunscrevem à autonomia da literatura, uma forma de alertar para o aspecto impuro e múltiplo da maioria dos discursos. O diálogo interdiscursivo e cultural convida os representantes contemporâneos da crítica a romper os limites disciplinares e a se lançar no espaço heterogêneo das produções artísticas e midiáticas. Há muito essas barreiras já começaram a se diluir, comprometendo a defesa da homogeneidade dos discursos e se opondo à crítica voltada apenas para a elucidação dos procedimentos literários, esquecendo-se de compreendê-la como integrante de uma visão cultural capaz de atingir outros aparatos e desdobramentos. Embora o exemplo da homenagem a Barthes pela Hermès possa traduzir a distância entre culturas e meios de se chegar à alta costura/cultura, como indicador da fina crítica francesa e da diferença em relação ao exercício da crítica nos países periféricos, consegue-se criar o paralelo entre duas situações. É inegável admitir a dimensão da contribuição do pensamento francês para a formação de várias gerações de críticos latino-americanos, sem mencionar a permanência do discurso filosófico na constituição do imaginário teórico entre nós. Se os conceitos transitam em várias áreas e se completam na abordagem heteróclita do texto literário, não há como escapar da existência da abertura disciplinar e da relativização dos empréstimos retirados aqui e ali de outras áreas. Nesse sentido, Barthes transita de modo descontraído tanto na compra pelos usuários do lenço Hermès quanto na adaptação nacional de seus aportes teóricos. O que entra em pauta é a distinta e desejável fruição do objeto estético, entendido na sua peculiaridade e diferença quanto às antigas e hierárquicas concepções do termo, confundido com a alta costura/cultura. Jacques Rancière já nos alertava sobre as políticas da escrita e a partilha do sensível, entendendo ser o regime estético das artes o ruído no sistema da representação, à medida que “uma época e uma sociedade possam ser lidas nos traços, vestimentas ou gestos de um indivíduo qualquer (Balzac)”.¹⁵⁸ A democratização e ampliação do conceito de estético contribuem igualmente para o abalo de parâmetros relativos às diferentes concepções de gosto e fruição, entendendo ser impossível restringir a noção a discursos desvinculados de forte tendência laborial, inseridos na exclusividade de sua comunicação. Estética não designaria a ciência ou a disciplina que se ocupa da arte, ainda com Rancière, mas “um modo de pensamento que se desenvolve sobre as coisas da arte e que procura dizer em que elas consistem enquanto coisas do pensamento”.¹⁵ A
prática da vanguarda, iniciada no início do século XX acenava para a supressão da arte como atividade separada, devolvendo-a à própria experiência, à vida que elabora seu sentido. Como “modo de pensamento”, a prática estética tem a liberdade de atuar nos mais diversos discursos, sejam eles considerados “nobres” ou “marginais”, o que permite a fruição e a produção mais democrática das manifestações literárias e midiáticas. A escolha do lenço barthesiano como objeto teórico para a construção de uma das faces da estética vinculada à literatura e à moda confere legitimidade à esperada ruptura da crítica literária com o espaço fechado de recepção, por dirigir-se ao ambiente público do consumo. Como peça fetiche, voltada para um número talvez reduzido de usuários, a compra do Fragmentos de um discurso amoroso traduziria o desejo de se apoderar, mesmo que parcialmente, do objeto amado, pela desejável junção entre sujeito e objeto. O fetichismo do mercado é responsável pela sensação ilusória de posse do produto, à medida que a compra do lenço significaria a conquista de um bem cultural – leio Barthes por meio do tecido de seda que envolve meu corpo, posso ter uma experiência sensível com a crítica e não mais encará-la como afastada do cotidiano e da recepção individual de cada um. Não seria esta uma das saídas também esperadas para que se entenda a possibilidade de ser a literatura usufruída de outras maneiras, por comunidades distintas, sem que se privilegie esta ou aquela interpretação? Embora pareça temerária a aceitação do papel da mídia e do consumo como mediadores da aproximação do público leigo com a crítica, seria ainda desejável incentivar o diálogo entre núcleos heterogêneos de leitores, a fim de obter, por essa razão, respostas que não sejam unívocas. A associação mais próxima da tradução do livro de Barthes em adorno corporal reside na atitude transformadora de sua linguagem crítica como inserção do sujeito no gesto enunciativo, fruto da reunião da experiência pessoal com a teórica. Defensor da escrita que se inscreve sob a marca do corpo, do toque sensível na página em branco, pela contaminação entre sujeito e objeto, o crítico abriu portas tanto para exageros interpretativos cometidos pelos seguidores, como ampliou a dimensão rarefeita dos estudos literários. A crítica contemporânea, guardadas as distintas tendências, reveste-se do estatuto ambivalente de uma linguagem entre ensaio e ficção, teoria e autobiografia, narrativa e documento. Diante da precariedade dos meios e dos suportes comunicativos, a literatura, o livro e a crítica perdem a antiga hegemonia e se transformam em práticas culturais, compatíveis com outros textos e despidos de uma total autonomia.
A presença autoral, antes marcada pelo domínio da escrita e sua propriedade, cede lugar à enunciação coletiva, à mistura dos gêneros e à dicção narrativa da crítica. A separação heterodoxa entre ensaio e ficção é substituída pela concepção da linguagem que desconfia da natureza científica do texto crítico, atribuindo-lhe maleabilidade no trato com os temas, sem colocá-los em situação exclusiva. Os leitores atuais se interessam pela gama variada de manifestações artísticas ou não, por fragmentos textuais pertencentes a outras disciplinas, causando a percepção fraturada e serial do pensamento. A literatura e a estética tornam-se independentes dos suportes tradicionais e se integram ao circuito aleatório das forças expressivas da atualidade, como as intervenções midiáticas das redes sociais. Para se discutir hoje as dinâmicas das humanidades no Brasil, nada mais estimulante do que pensar de forma positiva quanto aos destinos da criação e da imaginação nas artes, na crítica e nas ciências, com o objetivo de acreditar na flexibilidade e na ausência de barreiras entre as subjetividades e o espírito de pesquisa. Não seguimos mais a cartilha da universidade moderna, pautada pela rigidez dos campos disciplinares e subjugada pelo horizonte estreito da especialização e da exclusão. Adeptos, na teoria, da abertura transdisciplinar e da aceitação do outro como parte integrante do processo civilizatório — quando a universidade passa a aceitar no seu corpo discente representantes das minorias, pessoas cuja experiência poderia ser considerada preconceituosamente fraca — agimos, na prática, de forma ambígua, optando pelo brilho e a excelência. A reflexão sobre os impasses sofridos pelas mudanças ocorridas nos últimos anos no meio acadêmico torna-se também obrigatória para a retomada da categoria da sobrevivência do intelectual, muitas vezes imerso no pessimismo e sujeito às oscilações das ações afirmativas. Se a tecnologia franqueou horizontes e transformou os saberes em jogos e arranjos à disposição de todos os que frequentam a academia, não será apenas por esta via que a universidade terá firmado, nos dias atuais, seu perfil. Impossível negar a necessidade de engenho e arte na pesquisa, o lance pessoal na construção de saberes. Na crítica literária, campo de minha atuação, são vários os caminhos para se conseguir impor a pesquisa, sem que o apelo à novidade esbarre no lugar-comum, na repetição do já dito e do consagrado. O que é indispensável, nesta empresa, é a restauração e singularização do novo, sem correr risco de continuar reproduzindo conhecimentos. Uma vez mais, a técnica da bricolagem deverá atuar como traço capaz de dar sobrevida aos objetos esquecidos pela crítica e rever tradições. O processo ambivalente de lembrar e
esquecer modelos impostos pelo pensamento hegemônico resulta na captação dos intervalos do saber, na aceitação do ritmo intermitente entre a luz e a escuridão. Os saberes contemporâneos se produzem por meio da relação contraditória entre o traço pessoal/impessoal do já feito, do já dito, do ready-made, objeto consagrado tanto pela vanguarda quanto pela prática experimental da bricolagem e da singularidade da assinatura do sujeito no reencontro do novo e da invenção. A relação estreita que aqui se propõe entre arte e ciência pauta-se pela utilização do procedimento de apropriação de materiais consagrados ou rejeitados pela tradição, com vistas a redimensioná-los. O olhar singular do sujeito diante da proliferação de resíduos e traços culturais existentes constitui a marca da diferença e do trabalho de interação com o já dito. O silêncio, o não saber, assim como a fugacidade e a precariedade dos valores e dos objetos de análise tornamse matéria digna de ser expressa, seja por meio da retomada do direito à repetição do impensável, seja como resistência ao lugar-comum. Construir, pela bricolagem de materiais em processo de rearranjo, novos objetos, consiste no deslocamento contínuo dos lugares fixos, na prática do diálogo metafórico criado pela arte da imaginação. Gesto ambíguo de afastamento e de afirmação de si, de participação da experiência do outro. A retomada da imagem do lenço barthesiano, no início do século XXI, como ícone da proliferação do discurso crítico no interior da mídia e do consumo, representa não só a apropriação do valor conferido a outros campos, como também um alerta ao espírito conservador, na luta pela autonomia da literatura e da impessoalidade da crítica. Os temas literários ganham espaço e se instalam de modo anacrônico na recepção de novos leitores, admitindo-se a abertura discursiva para os demais registros do saber, sejam eles aceitos ou não pela tradição acadêmica.
(2018)
158 RANCIÈRE, Jacques. A partilha do sensível: estética e política. Tradução de Mônica Costa Netto. São Paulo: EXO experimental; Editora 34, 2005, p 47. 159 RANCIÈRE, Jacques. O inconsciente estético. Tradução de Mônica Costa
Netto. São Paulo: Editora 34, 2009, p 11.
Poéticas do inacabado
Uma das inúmeras reflexões sobre o exercício da crítica genética recairia no tema do inacabado, da ausência do sentido de totalidade e de fechamento da obra de arte. Essa proposta não constitui novidade para a poética moderna, considerando a ruptura exercida por autores e artistas do princípio do século XX, os quais se mostraram empenhados na concepção da obra em processo, da valorização do fazer e da incompletude. Na literatura, os procedimentos narrativos se concentravam na prática da metalinguagem, até hoje em plena atuação, pela posição distanciada e artificial do autor diante da ficção. Essa tendência a tornar transparentes os bastidores da criação não apenas reforça a presença do intertexto, como também substitui manuscritos e rascunhos do texto, principalmente nos dias atuais, em que a tecnologia apaga os rastros e as gêneses escriturais. Desde Cervantes, com seu Dom Quixote, a existência do manuscrito árabe, encontrado numa feira e traduzido para o espanhol, foi a suposta gênese da narrativa, já inscrita como se fosse um romance de segunda mão. A autoria é assumida de modo enfraquecido, por Cervantes delegar ao outro a propriedade da escrita e a autoria das incríveis estórias do Cavaleiro Andante. O pretenso anonimato do texto rompe ainda com o mito de origem, desconstrói a imagem do autor onipotente e desconfia da originalidade do manuscrito como detentor da verdade da narrativa. Esse jogo de aparências, próprio da estética barroca, contribui para se repensar sobre os caminhos da crítica genética, procedimento inaugurado há pouco tempo, mas que mantém com a tradição literária um traço inconfundível. No meu entender, o avanço dos estudos dessa modalidade crítica acrescenta reflexões que vão do estabelecimento cuidadoso dos textos aos princípios fundamentais que embasam as disciplinas da área de letras, como a teoria da literatura e a literatura comparada. No quadro da literatura e da arte contemporâneas, o emprego de recursos discursivos como a metalinguagem tem o mérito de inserir imagens da autoria no interior da obra, ao serem assumidas como procedimento narrativo e como personagem. O objetivo seria mesclar gêneros distintos, tais como a ficção, o ensaio e o documento, acrescidos dos comentários sobre esses mecanismos. O escritor/artista interage com o leitor sobre a criação, aponta fragilidade e truques das afirmativas, numa atitude de ironia em relação aos possíveis fechamentos
interpretativos. Se os manuscritos e datiloscritos das obras estão cada vez mais raros nos arquivos, impedindo a análise da gênese textual, em razão do surgimento do computador e da internet, o exercício da metalinguagem irá, sem dúvida, suprir esse vazio, embora sua inserção se realize graças à utilização do modo ficcional. O manuscrito atuaria, portanto, como artifício narrativo, por meio da presença da voz do escritor/artista que delega ao outro a autoria do texto. Um exemplo dessa retomada da herança da obra de Cervantes encontra-se em grande quantidade de romances publicados nos últimos trinta anos no Brasil, destacando-se Em liberdade, de Silviano Santiago, de 1981. A retomada desse dispositivo ficcional não seria invenção da literatura contemporânea, pois tem sido explorado ao longo dos séculos. É claro que adquiriu dimensões bem amplas nos experimentos metanarrativos da pós-modernidade. A fabulação do diário fictício de Graciliano Ramos, escrito após sua saída da prisão, investe na estratégia fantasista, quando o narrador confessa ter recebido os originais do livro doados por um amigo do escritor. A proposta tem a função de embaralhar os polos da ficção e do documento, da autoria e do leitor, do narrador e seu modelo. Se o manuscrito se apresenta como ficção, como resolver o impasse entre obra e vida do suposto autor do texto, considerando que se trata do limite entre invenção e realidade? Quais seriam os impasses para a crítica genética, à medida que a condição autoral e o valor do manuscrito são passíveis de serem desacreditados? Em primeiro lugar, note-se que uma das qualidades do discurso ficcional é a capacidade em fornecer subsídios para a crítica, por servir de alerta em relação à desconfiança conferida aos documentos originais, acreditando-se ser possível inseri-lo entre os polos da ficção e da realidade. A análise comparativa entre manuscrito deixado pelo autor e o texto final impresso não deveria propor a descoberta de traços ocultos, em busca de rasuras que comprometessem o resultado alcançado com a publicação. O que importa é o estágio de experimentação e ensaio do gesto criativo, levando em conta que a indecisão e a correção atuam como material importante para o enriquecimento de qualquer texto. Considerar ainda o original na condição de superioridade quanto ao texto publicado recai no mesmo equívoco antes cometido pelo crítico, ao ignorá-lo e desconhecê-lo. A operação conjunta de análise — do manuscrito e do texto publicado — permite considerar a proposta do escritor na condição de estar sempre construindo uma obra inacabada e em movimento. A participação do leitor/crítico nesta operação é o que motiva essa rede de intenções. Em segundo lugar, a retomada da figura do autor no ato criativo — de forma
distinta ao seu desaparecimento e morte preconizados pelo alto estruturalismo — não significa total adesão à sua ressurreição discursiva. O aspecto artesanal da escrita, as idas e vindas das palavras e suas rasuras remetem à presença mais do que fantasmática do autor. Este, encontra-se aí ao mesmo tempo presente e ausente, pelo fato de se inscrever como sobrevivente do texto, gesto ambivalente que abole posições de natureza excludente. O escritor sobrevivente não poderá mais controlar a criação, nem impedir que o crítico retorne aos bastidores da escrita, no sentido de “invadir” o texto preparatório à sua publicação. Essa atitude assumida pela crítica genética em comparar, primeiramente, manuscrito e texto publicado, enriquece a leitura e abre perspectivas até então estranhas à análise. As oscilações da escrita, cortes e digressões, observáveis no manuseio dos rascunhos, no lugar de serem assumidas como integrantes ao material publicado, atuam como traços dos vazios e incertezas próprias ao ato criador. Na edição crítica de uma obra, por exemplo, verifica-se a desobediência à última vontade do escritor, ao ser eleita a melhor versão a ser reeditada, o que denota importante avanço no âmbito da política editorial. Quantos escritores declaravam, ou continuam a declarar, qual seria a mais completa edição de determinada obra, impedindo o cotejo com as demais versões? As edições crítico-genéticas feitas recentemente obedecem ao trabalho minucioso entre várias versões do livro, sem privilegiar esta ou aquela, o que resulta no aprimoramento das nuances escriturais, na contribuição de diferentes posições do autor ao longo do tempo.¹ O deslocamento do lugar central e privilegiado das versões justifica a inclusão do escritor nesse lugar fantasmático, na condição de ser simultaneamente proprietário e não proprietário da escrita. Estar presente e ausente na obra coincide com a interpretação errante dos direitos de pertencimento dos autores frente às obras, no sentido de que, paradoxalmente, conservam direitos autorais de publicação, mas ao entregarem a obra ao público, foge ao seu controle a maneira como esta vai ser lida e interpretada. O escritor que ressurge como personagem na crítica genética se instala nos arquivos, lugar especial reservado à construção biográfica e autobiográfica, à medida que o material aí exposto propicia a associação entre gênese e escrita. Rascunhos, materiais vinculados ao pré-texto, como notas, cadernetas de trabalho, compõem o acervo e a vida do escritor no seu ofício cotidiano, este muitas vezes nem sempre explorado pelos biógrafos como espaço digno de atenção. Os bastidores criativos incentivam o olhar ambíguo do crítico diante desse material, por revelar a impossibilidade de se conceber o texto publicado como matéria acabada e intocável. Diante do manuscrito exposto ao olhar de futuros leitores, conclui-se que a assinatura do autor está ainda sujeita à sua
contra-assinatura, à desapropriação da marca de autoria. Ausente e presente no arquivo, entendido, de forma expandida, como texto, o escritor é relido na condição de sobrevivente à morte, ao permanecer nesse entrelugar indecidível entre duas instâncias. No próprio gesto da escrita — espaço reservado à morte/vida do sujeito — depara-se a natureza paradoxal da criação, na qual se torna quase uma heresia acreditar no controle total da obra pelo escritor. Uma vez publicado e cotejado com o material pré-textual, resta ao leitor tomar a liberdade de proceder à interpretação do conjunto de textos com base em sua experiência e obedecendo as diferenças de leitura conforme o momento. Nessa operação em curso, é preciso ressaltar que inexiste a intenção em se comportar de modo desrespeitoso frente aos direitos de autoria regidos pela tradição editorial e literária. O que se obtém em virtude da apreciação crítica genética é a ampliação da noção de texto e de escrita, sem que esta posição rompa com os princípios estabelecidos pelas normas literárias. Uma das fortes tendências da crítica genética, segundo um de seus representantes, Pierre-Marc de Biasi, é a de ampliar a noção de escrita, por não a circunscrever à obra publicada, esquecendo-se do confronto com os pré-textos. O teórico discorda da tendência a sacralizar o texto como forma fechada e autossuficiente, assim como sacralizar o manuscrito, tornando-o independente do texto editado. Esse processo escritural aberto assemelha-se à concepção de obra preconizada por Michel Foucault, ao afirmar que os papéis, rascunhos, cartas, anotações de um autor poderiam também constar como material importante na constituição da obra.¹ ¹ No entender de Pierre-Marc de Biasi, os ingredientes da “fábrica do texto” constituem o objeto mais caro da crítica genética:
Os rascunhos, cadernos, scripts, dossiês documentários etc. parecem transformar um caos de documentos no que seria, com o texto, a ordem de um objeto definido e claramente delimitado. O aspecto fragmentário, heterogêneo e divergente dos documentos anteriores ao texto, sua multiplicidade, às vezes sua superabundância, parecem se interpor como obstáculos à elucidação do sentido e das estruturas da obra. Mas, queira-se ou não, esses documentos existem e constituem a fábrica do texto. O estudo da gênese tem precisamente por objetivo torná-los acessíveis e interpretáveis, identificando-os segundo seu pertencimento a uma fase precisa da escrita e a uma função operatória.¹ ²
Importa considerar a ressurreição da obra como arquivo, por se manter vinculada ao procedimento de escrita, reencontrá-la na condição de objeto arqueológico e original. A abordagem que visa ao estudo das margens nos manuscritos, tamanho, rasuras e adições entre as linhas do texto, qualidade e estado do papel e as datas inseridas, resume o trabalho de natureza não só técnica, mas de aproximação do leitor do corpo textual, de uma espécie de resquício da respiração do autor no ato da escrita. Recuperar as vibrações até então adormecidas do manuscrito confere à crítica genética o cuidado com o movimento temporal da enunciação, sujeita ao esquecimento e à cristalização, mas revitalizada pelo contato atualizado do crítico com o arquivo-texto. Jacques Derrida, um dos mais eminentes teóricos do arquivo, sustenta a tese de ser o arquivo um texto, estabelecendo associações entre um e outro, principalmente quanto às noções de origem, assinatura e sobrevivência. Nesse sentido, cabe ressaltar a defasagem entre os conceitos de gênese e origem, não mais considerados, pela crítica genética, na sua função fundadora, mas renomeados como rasura e vazio. Sem conceber a filiação ao princípio de fundamento, são destituídas afirmações temporais relativas às ideias de início e fim da escrita, ao lado de morte e vida do manuscrito. Tanto o manuscrito quanto o texto publicado participam do diálogo criado pela crítica, sem a tendência em privilegiar um ou outro, uma vez que gozam de estatuto complementar e se integram à interpretação da obra como arquivo. Se antes o texto editado, considerado definitivo, ao receber a atenção da crítica, tornava-se isento de retoques e novas interpretações; a situação se modifica, hoje, diante de trabalhos que valorizam os rascunhos e pré-textos escriturais, ao serem incluídos como componentes importantes para o entendimento mais aberto e constituinte da obra. Na tentativa de esclarecer e acrescentar argumentos sobre o tema, retomo a posição sempre lúcida de Derrida frente ao seu arquivo. Declara, de forma exemplar, o sentido de rastro deixado pelos rascunhos, e com ele o afastamento gradativo do autor diante da obra. Substitui a noção estereotipada de origem, reafirmando o traço na sua condição de fragmento, deslocamento e rasura:
Quanto a mim, posso morrer a cada instante, o rastro fica aí. O corte está aí. É uma parte nos dois sentidos do termo: ela procede, ela emana de mim, mas ao mesmo tempo separando-se, cortando-se, desligando-se de mim. […] O rastro, é a definição de sua estrutura, é algo que parte de uma origem mas que logo se separa da origem e resta como rastro na medida em que se separou do rastreamento, da origem rastreadora. É aí que há rastros e há começo de
arquivos. Nem todo rastro é um arquivo, mas não há arquivo sem rastro. Portanto, o rastro, isso sempre parte de mim e sempre se separa.¹ ³
O rastro substitui, portanto, a origem, por atestar o resquício da marca do autor, no seu indecidível e fantasmático estatuto de ser presente e ausente no arquivo. Sem a pretensão de dominar a escrita sobrevivente, o que resta é o fragmento, o corte que rasura e a impossibilidade de se conceber a origem como essência. O entrelugar do rastro traduz, de modo eficaz, o movimento ambivalente produzido pela simultaneidade temporal do processo arquivístico, em que princípio e fim se deslocam de posições pretensamente fixas, ressurgindo enquanto complementares. Outra contribuição efetiva para o avanço dos estudos de crítica genética, vinculados à poética do inacabado, está presente no projeto de Roland Barthes de escrever um romance como produto dos seminários ministrados no Collège de France, entre 1978/1980. A preparação do romance, tema dos seminários, resultou na incapacidade de escrevê-lo, por admitir que não poderia realizar um texto nos moldes tradicionais e clássicos, uma vez que sua concepção de romance estaria fadada ao desaparecimento. Mas a preparação constou de artifícios que encaminhavam para a tarefa, como a utilização de fichas, de anotações, capazes de conduzir o teórico em direção ao desejo de cumprir o projeto. No entanto, não consegue escrever o romance, na acepção clássica do termo, mas constrói paratextos que compõem a obra inacabada, como os diários, o ensaio sobre a fotografia, ou ainda o livro Fragmentos de um discurso amoroso, publicado anos antes. No livro de Antoine Compagnon, Os antimodernos, especificamente no capítulo dedicado a Barthes, “o projeto se revela o mesmo do início ao fim: fantasmático, ético, existencial.”¹ ⁴ A definição relativa ao termo fantasma, segundo Compagnon, vai de encontro à posição de Derrida quanto ao conceito de sobrevivência, atribuindo-lhe valor espectral e fantasmático, situado entre morte e vida, real e ficção. No entender do filósofo, a concepção do termo fantasmático, longe de receber conotação negativa, com estatuto de irrealidade, integra o jogo ambivalente do sentido, dotado de positividade. O intérprete e amigo de Barthes considera a feitura do romance como inexistente, por acreditar que o teórico escolhe a poesia, o haicai, como saída para a morte da literatura. Logo, não atribui ao termo fantasmático função positiva, pela ausência de
associações relativas à sobrevivência e ao espectro. Desconhece o valor do rastro como sinal significante e ignora ser o registro do inacabado parte constitutiva da criação. Roland Barthes definiria o romance como objeto fantasmático, na acepção de imaginário, sem se transformar em metalinguagem, carente de aspecto sociologizante e científico. Reconhece a natureza residual da criação de inacabado Romance, por se configurar na sua dimensão fantasiosa e não se circunscrever ao âmbito do Simbólico, se pensarmos na teoria psicanalítica de Lacan. Barthes já havia demostrado em diversas ocasiões, como em S/Z e demais livros, a incorporação do pensamento lacaniano, o que permite o entendimento de sua concepção de romance. Transcrevo suas esclarecedoras palavras:
O que chamo Romance: é pois — por enquanto — um objeto fantasmático que não quer ser assumido por uma metalinguagem — (científica, histórica, sociológica) — ocorre pois uma colocação entre parênteses, selvagem, cega, epokhé do comentário sobre o “Romance em geral” nada de meta-Romance, portanto.¹ ⁵
Ou em outra definição, como “ato de amor”, ao discorrer sobre os outros que se ama:
Não se trata (mais) de amor apaixonado, mas de amor-Agápe (mesmo se há remanência constante de Eros). Amor apaixonado: falar de si como apaixonado: lírico; enquanto o amor-Agápe: falar dos outros que se ama. (Romance).¹
A leitura que Compagnon realiza dos manuscritos de Barthes referentes aos Seminários reforça a ideia de fracasso na preparação do romance, por relacionar o estado depressivo do crítico durante os últimos momentos de escrita, o que resultou na interpretação horizontal do elo entre obra e vida. Os rascunhos e os manuscritos são analisados como projeção do antigo leitor que conviveu com
Barthes no final da vida. Essa projeção, de ordem confessional, impede o afastamento e a análise do material de arquivo, ao considerá-lo incompleto, esquecendo que esta seria uma das linhas de força de sua trajetória crítica. Se levarmos em conta a proposta barthesiana de escrita, assumidamente marcada pela estrutura fragmentária e inconclusa, principalmente a partir de meados dos anos 1970, Compagnon poderia estar equivocado nas suas ponderações críticas. A prova seria a de rotular as publicações de Barthes sob o viés da incompletude e escolher O neutro como o mais bem acabado dos três volumes dos seminários (Como viver junto, O neutro, A preparação do romance, volumes I e II). Reproduzo as passagens:
Há vários anos, tomando conhecimento das notas manuscritas depositadas no Imec, foi difícil separar sua leitura de minhas lembranças tanto das últimas semanas de sua vida, quanto de minhas visitas ao hospital, e da última. A leitura do manuscrito me consternara. Em sua letra, em sua grafia, principalmente a das últimas notas que acrescentara, era patente que Barthes não estava bem. Como não fôramos mais sensíveis à sua aflição? Meu ponto de vista foi necessariamente marcado por isto: ler o manuscrito de um amigo, 20 anos depois de sua morte, é como encontrar uma carta esquecida no sofrimento. Na cor da tinta, no traçado das letras se reconhece um corpo. Parecia que Barthes sempre puxava para a linha, como nas páginas sobre o haicai ou sobre a vida do escritor. Ele próprio — eu me dizia — sabia quais eram os melhores momentos do curso, pois ele já os havia aperfeiçoado separadamente em alguns textos contemporâneos, dentre os melhores, como “Longtemps, je me suis couché de bonne heure” e “On échoue toujours à parler de ce qu’on aime”, deixado na máquina de escrever no dia de seu acidente.¹ ⁷
Não resta dúvida de que o corpo fala nesse manuscrito. A associação entre obra e vida efetuada por Compagnon confirma não só a revitalização do manuscrito pelo leitor e a sobrevivência do escritor no corpo da letra e nas tintas, como a reivindicação de Barthes de que “a ‘literatura (pois no fundo meu projeto é literário) se faz sempre com a ‘vida’. […] ‘A Preparação’ do Romance refere-se, portanto, à captura desse texto paralelo, o texto da vida ‘contemporânea’, concomitante”.¹ ⁸ Se a dor do momento, no entanto, foi crucial para que a escrita
tornasse cada vez mais fragmentária e inconclusa, faltou a Compagnon a observação de ter sido o rastro um dos motivos inerentes à herança legada pelos ensaios barthesianos. Embora o manuscrito tenha permanecido hesitante e incompleto, revelador de um estado de espírito melancólico, não se justifica a intenção do leitor em considerá-lo um fracasso, dando a entender que o final da vida de Barthes foi marcado pelo estigma da derrota. Esta interpretação é dotada de má interpretação, não correspondendo às regras de uma razoável leitura genética. Conclui-se que a origem do fracasso seria vital, reproduzindo o raciocínio causalista na abordagem efetuada entre os meandros existentes do rascunho, da obra e da vida. Uma pergunta surge em meio a essas afirmações: não seria o sofrimento uma das mais rentáveis molas para a criação? Na contramão da crítica barthesiana, com exceção de um de seus mais notáveis estudiosos, Éric Marty, Cláudia Amigo Pino em Roland Barthes: a aventura do romance, após consulta ao arquivo do autor e extensa pesquisa, defende a concepção do romance como resultado dos textos escritos e anotados no momento em que escrevia A preparação do romance. Pino concorda com Marty, para quem “esse possível (a obra Vita Nova) é em parte cumprido, quando Barthes escreve estas linhas, a obra já escrita; esse possível alimenta-se também de tentativas, às quais ele se presta, de uma outra escritura (o “diário”, os fragmentos, as anotações, as epifanias…)”.¹ Nesse sentido, a proposta de análise de Cláudia Pino mostra-se distinta dos demais intérpretes de Barthes — e no caso, de Compagnon — por entender que os textos publicados em vida ou postumamente, como “Deliberação”, Incidentes, Noites de Paris e o Diário de luto, as notas preparatórias de A preparação do romance, compõem o multifacetado e polêmico romance. Por fazerem parte do mesmo projeto, tornase relevante não privilegiar apenas os manuscritos e publicações dos Seminários, mas integrá-los às outras publicações e rascunhos:
Por outro lado, porque, para Compagnon, a pesquisa de Barthes caminhava na direção oposta ao romance. A aproximação ao haicai e ao romantismo, presentes em A preparação do romance, o levaria na direção da poesia, como única forma na qual a literatura ainda seria possível. Porém, ele sequer se dá o trabalho de procurar o que há nos manuscritos: ele acredita completamente no testemunho que Barthes dá no seu curso e que citamos anteriormente. (“não posso tirar nenhuma Obra de meu chapéu e, com certeza, não aquele Romance cuja Preparação eu quis analisar”).¹⁷
A posição analítica de Cláudia Pino coincide com o que eu havia comentado anteriormente, quanto à associação entre obra e vida realizada por Compagnon na abordagem do manuscrito de A preparação do romance. A confiança depositada no testemunho de Barthes durante o curso ministrado demonstra a aceitação de uma fala que confirma uma opinião pessoal questionável. Mais uma vez o teórico confunde conhecimento pessoal e acadêmico com declarações equivocadas, ao serem utilizadas como prova de argumento de defesa. Um dos maiores deslizes cometidos seria o de se ater apenas à abordagem dos manuscritos dos Seminários com vistas à exposição de sua tese. A aventura tortuosa dos caminhos da crítica genética não termina aqui. Ela tem como missão desmontar princípios arraigados e conservadores no campo da investigação arquivística, apontando avanços até então esperados. A abertura para os intrincados bastidores da criação literária e artística poderá se valer do diálogo com os demais sistemas de saber, como a psicanálise, a filosofia, a história e a política, entre outros.
(2018)
160 Cf. a edição crítico-genética de Macunaíma, o herói sem nenhum caráter, de Mário de Andrade, por Telê Ancona Lopez: ANDRADE, Mário de. Macunaíma, o herói sem nenhum caráter. Ed. Crítica. Telê Porto Ancona Lopez (coord.). Paris: Association Archives de la Littérature latino-américaine, des Caraïbes et africaine du XXè. siècle; Brasília: CNPq, 1988. 161 Cf. FOUCAULT, Michel. Qu’est-ce qu’un auteur? Littoral, Paris, n 9, p 332, 1983. 162 No original: « Les brouillons, carnets, scénarios, dossiers documentaires, etc, semblent substituer un chaos de documents à ce qui était, avec texte, l’ordre d’un objet défini et clairement délimité. L’aspect fragmentaire, hétérogène et divergent des documents avant-textuels, leur multiplicité, parfois leur surabondance paraissent s’interposer comme autant d’obstacles à l’élucidation du sens et des structures de l’oeuvre. Mais, qu’on le veiulle ou non, ces
documents existent et constituent bel et bien la fabrique du texte. L’étude de genèse vise précisement à les rendre accessibles et interprétables en les identifiant selon leur appartenance à une phase très précise d’écriture et à une fonction opératoire » (DE BIASI, Pierre-Marc. Qu’est-ce qu’un brouillon? In : CONTAT, Michel; FERRER, Daniel. Pourquoi la critique génétique? Paris: CNRS Éditions, 1989, p 57-58, tradução de Eliana Muzzi). 163 DERRIDA, Jacques. Rastro e arquivo, imagem e arte: diálogo. In: DERRIDA, Jacques. Pensar em não ver: escritos sobre as artes do visível (1979-2004). Organização de Ginette Michaud, Joana Masó e Javier Bassas. Tradução de Marcelo Jacques de Moraes. Revisão técnica de João Camillo Penna. Florianópolis: Editora UFSC, 2012, p 120-121. 164 COMPAGNON, 2011, p 420. 165 BARTHES, Roland. A preparação do romance. Tradução de Leyla PerroneMoisés. São Paulo: Martins Fontes, 2005a, v I, p 23, grifos do autor. 166 BARTHES, 2005a, p. 28, grifos do autor. 167 COMPAGNON, 2011, p 420-421. 168 BARTHES, 2005a, p 36. 169 MARTY, 2002, p 21-22, apud PINO, Cláudia Amigo. Roland Barthes: a aventura do romance. Rio de Janeiro: Sete Letras, 2015, p 19. 170 PINO, 2015, p 18.
Autoficção e vida
Na apresentação do livro intitulado Desarticulações, Sylvia Molloy expressa a razão pela qual irá escrever sobre a amiga que sofre de Alzheimer, para ela uma forma de reconquistar sua imagem por meio da palavra. A manifestação da convivência perdida pela doença e o afastamento tanto literal quanto metafórico inspiram a urgência da escrita literária, misto de confissão e ficcionalização:
Tenho de escrever estes textos enquanto ela está viva, enquanto não há morte ou clausura, para tentar entender este estar/não estar de uma pessoa que se desarticula diante dos meus olhos. Preciso fazer assim para seguir adiante, para fazer durar uma relação que continua apesar da ruína, que subsiste embora mal restem palavras.¹⁷¹
A enunciação em primeira pessoa justifica a necessidade de escrever sobre a ausência/presença de alguém que ainda mantém um sopro de vida, que se relaciona com o mundo a partir de gestos, esquecimentos e silêncios. Para a autora, o desaparecimento gradativo da imagem da amiga é substituído pelo gesto da escrita, pela palavra que consegue sobreviver ao acontecimento. Reconquistar essa imagem não significa atingir a dimensão da convivência anterior, mas recuperar a relação fragmentária que se sustenta pela memória igualmente inventada da narradora. Como relato de vida, o ato de ficcionalização impõe-se desde o título do livro, Desarticulações, composto de pequenos capítulos nos quais transparece o desejo de captar, embora de forma precária, os vazios e buracos da memória, lembranças de um convívio intelectual e afetivo. A articulação do enredo acompanha o modelo desarticulado da memória, pautandose pelos títulos dos fragmentos que reforçam a proposta metalinguística do texto. Jogos de linguagem em língua inglesa e espanhola — as personagens são argentinas, mas moram nos Estados Unidos — embaralham o curso normal das lembranças, desconstroem resquícios identitários apoiados na língua materna e revelam a gradativa perda de lugares de origem: “Running on empty”, “Identikit”. Os processos formadores da narrativa memorialística são
estampados nos subtítulos cuidadosamente escolhidos, como “Rememoração”, “Liberdade narrativa”, constituindo obsessivamente o fio norteador do tema, ironicamente nomeado como desarticulações, pelo deslocamento entre escrita e memória.¹⁷² O título remete à série de associações entre as ações narrativas, iniciando-se pela desarticulação da memória da personagem, da convivência antes efetiva de amizade e amor, do relato fragmentado em pequenos capítulos, quando a autora procede à metaforização dos subtítulos a fim de expressar o gesto de desmemorização. Assume igualmente o papel de fabuladora na escrita, ao se sentir vítima do esquecimento e da suposta falsidade de suas lembranças. A autobiografia fingida da narradora alimenta-se da fraca memória do outro para se sustentar, sugerindo ser o relato marcado pela desarticulação entre real e ficcional, uma vez que o desejo de constituição do eu estaria também inscrito na ficção. De modo paradoxal, a escrita pretende organizar a referida desarticulação entre ficção e vida. Especialista na obra de Borges, Molloy utiliza-se da autoridade do autor, citando-o várias vezes, o que confirma pontos de semelhança entre poéticas marcadas pela experiência alheia e as artimanhas instauradoras da escrita como ato próprio ao fingimento. Sugere ainda em qual parâmetro ficcional o leitor poderá se guiar, por entender que a narrativa memorialista nutre-se notadamente da invenção do passado:
Não restam testemunhos de uma parte de minha vida, aquela que sua memória levou consigo. Essa perda, que poderia me angustiar, curiosamente me liberta: não há ninguém capaz de me corrigir se eu decidir inventar. Em sua presença, conto alguma história minha a L., que sabe pouco do seu passado e nada do meu, e para melhorar o relato invento algum detalhe, vários detalhes, L. ri, e ela também festeja, nenhuma das duas duvida da veracidade do que digo, mesmo que não tenha acontecido. Talvez eu esteja inventando isto que escrevo. Afinal, ninguém poderia me desmentir.¹⁷³
Os lapsos e vazios da memória, a incapacidade de reunir palavra e coisa, a invenção de nomes para si ou o lugar enunciativo da personagem remetem para a discussão do tema escolhido em torno do enlace entre sobrevivência e autoficção. A questão identitária proposta pela narradora na composição da
personagem tem como título o capítulo “Identikit”. Ao receber do médico a pergunta sobre qual seria seu nome, ML, como assim é denominada, responde pelo nome de Petra. O sentido atribuído ao nome próprio reforça o grau de insensibilidade à vida, à pedra, à imagem de quem se encontra fechada para o diálogo, presa à identidade perdida e petrificada pelo silêncio: “Como é que diz ‘eu’ aquele que não lembra, qual é o lugar de sua enunciação quando a memória se desfez?”¹⁷⁴ A pedra que sobrevive por meio da nomeação própria metaforiza a perda da memória como preparação para a morte, resistência, contudo, ao apelo do desaparecimento. Palavra e pedra ocupam o mesmo nível semântico, por abrigarem tanto a morte da coisa quanto a morte da memória. Resta então a pergunta: qual seria o lugar dessa enunciação quando o sujeito se embaralha no destecido das lembranças? A falha na nomeação propicia a criação de identidades móveis, frágeis, capazes de esvaziar as referências e se inserir no espaço ficcional. Trata-se de uma enunciação que flutua entre esquecimento e memória, fingimento e verdade. O exemplo de ML, personagem desmemoriada sendo recomposta parcialmente pela narrativa de Molloy, consegue esclarecer o limite tênue existente entre sobrevivência e autoficção. A sobrevida do relato permite à autora “seguir adiante”, com o intuito de permitir que a relação tenha a duração virtual da escrita, por se sustentar graças à articulação entre palavras e recordações narradas. A primeira reflexão sobre os termos em jogo, tais como ficção, real e sobrevivência, poderá se expandir para autobiografia, autoficção, bioficção, entre outros termos similares. A complexa rede de definições e controvérsias em torno desses conceitos constitui uma espécie de dificuldade para a sua compreensão, tendo em vista posições que se colocam ora em defesa da autobiografia, ora da autoficção. O que se deve pôr em pauta é a extrema mobilidade dos conceitos, a necessidade de afastar definições fechadas ou se prender a critérios de verdade. Definir, como primeira instância, para em seguida deixar os termos em suspenso, seria a correta atitude da crítica frente ao aspecto normativo e fechado das classificações. Seria mais aconselhável pensar no conceito de sobrevivência das formas, como assim entende o historiador da arte Aby Warburg, para quem as formas e os momentos históricos são impuros, heterogêneos e fantasmáticos. Não possuem a estabilidade conservadora do passado nem se acham dominados pelo estigma da repetição. Não se apresentam enquanto pedras, conceitos aparentemente fechados, por atuarem como forças recorrentes que insurgem no presente de modo a revitalizar e dar sobrevida às
novas manifestações, sem apagar o elo estabelecido com formas antigas.¹⁷⁵ Um dos divulgadores principais de Warburg, o filósofo e historiador da arte Didi-Huberman, desenvolve o conceito de sobrevivência (Nachleben) segundo o trabalho realizado pelo teórico alemão sobre as formas artísticas do Renascimento como revitalização de formas da Antiguidade Clássica. Seu pensamento desconfia da interpretação do passado como letra morta, desprovido de força, por estar esse passado constantemente emergindo no presente. Os rastros no arquivo de cada época se revitalizam, passam a ser citados em momentos distintos, movimento de resistência à noção conservadora endossada pelos defensores dos conceitos de tradição, influência e herança. Rompida a cadeia linear na recepção desses termos, elimina-se a certeza de estar o presente influenciado pelo passado, ou que o progresso cultural dependeria de novas descobertas do presente. A crítica literária há muito tem se desvencilhado dos preconceitos de ordem evolutiva, por não considerar a morte das teorias e seu desaparecimento como condição de abandono, desuso ou finitude. Essa posição investe na releitura do presente como meio de apontar o que ainda merece ser reintroduzido como reflexão na contemporaneidade. Consegue-se, nesse sentido, entender o movimento intermitente dos conceitos como sobrevivência de outros, como revitalização de impasses teóricos. Torna-se evidente, contudo, a dependência da academia aos manuais escolares com os quais os atuais e futuros professores irão ter de conviver, como a prisão aos estilos de época, a continuidade histórica consolidando-se como força evolutiva e o emprego da noção de influência como condição de fidelidade a modelos culturais hegemônicos. Como o teórico francês Philippe Lejeune é considerado pioneiro nos estudos de autobiografia, torna-se necessário acreditar que o conceito de autoficção em nada desmerece esse gesto inaugural. O próprio autor já reconhecia o termo autobiografia ficcional como distinta da autobiografia por ele teorizada, além de ter, ao longo de sua trajetória teórica, refletido e avançado nas suas considerações. O que importa é pensar na sobrevivência das formas e não na sua extinção. Cito Didi-Huberman:
[…] o que sobrevive numa cultura é o mais recalcado, o mais obscuro, o mais longínquo, e o mais tenaz dessa cultura. O mais morto, em certo sentido, por ser o mais enterrado e o mais fantasmático; e igualmente o mais vivo, por ser o mais
móvel, o mais próximo, o mais pulsional. É essa, de fato, a estranha dialética da Nachleben.¹⁷
Nesse diapasão, o relato de vida institui o pacto ambíguo entre romance e autobiografia, pelo lugar móvel ocupado pelo polo referencial das autobiografias e a autonomia referencial dos romances. Entre escrita e vida instaura-se o pacto de sobrevivência, como foi tão bem exemplificado no texto de Sylvia Molloy. Com esse raciocínio, não é pertinente privilegiar apenas a ficção do relato em detrimento do aspecto autobiográfico, pois corre-se o risco de estar optando pela autonomia referencial dos romances, em busca do ilusionismo formalista. Por outro lado, deve-se evitar a abordagem naturalista dos sentimentos ligados ao íntimo, no sentido de o sujeito encontrar-se diante de suposta identidade absoluta, da ilusão de ser a narrativa a exata expressão de si. Philippe Forest, no livro Le roman, le réel, aborda o impasse da autoficção, quando autores e críticos desconhecem o vínculo paradoxal entre autobiografia e ficção, ao escolherem permanecer ora na dimensão referencial, ora na ficcional. No seu entender,
É preciso discutir a questão da autoficção, já que esse conceito deságua principalmente em duas vertentes opostas e cúmplices dele próprio, que constituem no fundo sua negação: por um lado em direção a um naturalismo do eu em que o sujeito se imagina ainda detentor de uma identidade a exprimir, do outro a oscilação para uma estética do virtual na qual o sujeito não mais existe, dissolvido num espaço onde falta o real.¹⁷⁷
O procedimento relativo à prática da autoficção posiciona o sujeito entre o relato de si e sua transformação fabular em relato ficcional, constituindo o que o teórico denomina de “romance do eu”. No processo escritural da autobiografia, sustenta-se que inexiste a intenção de ficcionalizar, por manter o autor/narrador envolvido no relato de vida, que estaria sujeito a critérios de verdade e documentação de fatos presentes e passados. No entanto, ao se pensar na declaração de alguns escritores e teóricos concernentes às definições de autoficção e ficção, como Serge Doubrovsky e Jacques Rancière, ficcionalizar não se restringe à criação de mentiras ou distorções do real, mas em formalizar,
em ficcionalizar a narrativa de sua própria vida. O gesto narrativo, a organização dos acontecimentos pela ação enunciativa, concorrem para a definição mais ampla do ficcional, uma vez que toda escrita exige a prerrogativa da mise-enscène textual. Rancière fornece lúcida explicação sobre os tortuosos caminhos frente ao conceito de ficção:
Fingir não é propor engodos, porém elaborar estruturas inteligíveis. A poesia não tem contas a prestar quanto à “verdade” daquilo que diz, porque em seu princípio, não é feita de imagens ou enunciados, mas de ficções, isto é, de coordenação entre atos. […] O real precisa ser ficcionado para ser pensado. […] A política e a arte tanto quanto os saberes, constroem “ficções”, isto é, rearranjos materiais dos signos e das imagens, das relações entre o que você vê e o que se diz, entre o que se faz e o que se pode fazer. ¹⁷⁸
O espaço ficcional caracteriza-se por sua abertura frente às disciplinas e, portanto, não se subjuga às diferenças entre arte, política e saberes, por instaurar a distância entre o real dado e o real ficcionalizado. Esse rearranjo dos signos e das imagens responde pela formalização da escrita ao se submeter ao procedimento criativo, responsável pela transfiguração da experiência em texto. Vila-Matas, autor de Bartleby e companhia, legítimo adepto do emprego da literatura como fonte mediadora de suas autoficções, alimenta-se da vida/obra dos escritores para a confecção de sua obra. Entende que o processo criativo implica a desrealização da vida e sua transformação em realidade fantasmática. Nas palavras de Manuel Alberca, no artigo “Le pacte ambigu ou l’autofiction espagnole”, registra que Vila-Matas dissemina elementos biográficos na sua obra, “[…] é protegido por um pacto narrativo ‘à la carte’ [...] um cardápio composto segundo os gostos e que às vezes torna-se um anti-pacto autobiográfico, ou seja, uma maneira de obscurecer ou de inverter a teoria de Lejeune”.¹⁷ Nesse sentido, intui-se que o gesto relativo à desrealização da vida e sua transformação em realidade ficcional exige que se redefina o conceito de real e de acontecimento, de autobiografia como expressão de verdade e sinceridade. Em detrimento da razão naturalista atribuída à vida e à realidade, o relato autobiográfico comporta, inevitavelmente, sua parte de ficção, o que não permite distanciá-lo totalmente da autoficção. A vida passa a ser reinventada quando se submete à rememoração, entendendo serem as lembranças relatos contados para
si próprio, por meio da narrativa na primeira ou terceira pessoa, tanto na autoficção quanto na bioficção. Se for utilizado aqui o conceito de Real para Lacan, abole-se o aspecto referencial do termo, ao se legitimar como participante da dimensão do indecidível, do que foge à ideia de totalidade e de verdade. Por um processo metafórico de substituição, tanto o acontecimento passado quanto a sua perlaboração no presente distanciam-se da captação ingênua da realidade. A autobiografia inscreve-se como grafia, letra e texto, daí a impossibilidade de se converter em relato o que se mantém como expressão exata da experiência vivida pelo sujeito. Entre a autobiografia e o “romance do eu”, a ficção coloca-se como intermediária, apontando paradoxalmente para a vida e a grafia, à medida que ambas se relacionam entre si. De que maneira a vida é recuperada e metaforizada pela ficção? Pela sobrevivência desses resíduos, do que falta e do que suplementa, uma vez que os restos da experiência e da escrita de si exercem função dupla de embaralhar o aspecto referencial da autobiografia e a pretensa autonomia da ficção. Nesse gesto suplementar, a literatura assume, para os escritores, diferentes finalidades: ora como remédio, na concepção do autor turco Orhan Pamuk (A maleta do meu pai,¹⁸ 2007), para quem escrever é uma forma de ludibriar e preencher os vazios do cotidiano; ora para Molloy, como assinalado no início deste ensaio, como sobrevida de uma relação afetiva que se recupera pela escrita; ou ao contrário, no entender de Marguerite Duras, a escrita de si não tem o poder de substituir nada, por não ajudar a viver. Descarta-se o sentimento de escrita como remédio, insinuando-se seu lado diabólico, desconhecendo alguma brecha para a esperada conciliação entre obra e vida. Sophie Bogaert, em artigo sobre a escritora francesa, constata:
A autoficção se constrói ao contrário da vida, numa incompatibilidade radical. Ela não só é incapaz de narrá-la, como também de preencher suas lacunas . Ela se desenvolve onde a vida falta, onde a satisfação deixa a desejar. A escrita não tem vocação compensadora, não substitui o que não aconteceu, mas ocupa esse vazio, existe graças a ele. Se se vive, não se escreve: é preciso escolher.¹⁸¹
Se, para os escritores mencionados, escrever seria a forma de se criar um pacto demoníaco ou salutar entre obra e vida, na intenção do afastamento/proximidade
entre narrador/autor, como se posicionaria o leitor diante dos textos autoficcionais? A meio caminho entre a autobiografia e a ficção, ou procurando encontrar no universo fabular vestígios de acontecimentos ligados à experiência de vida dos autores? A relação a ser efetivada incidiria, portanto, no apagamento de provas existenciais, uma vez que se processa a metaforização do gesto criador. Não é possível esquecer, no entanto, que a escrita autoficcional guarda, paradoxalmente, uma face voltada para a ficção e outra para o testemunho de experiências que se nutrem do jogo enganoso e fiel da memória daquele que escreve. Por um lado, o leitor prende-se a critérios referenciais, por ter a intenção de comprovar situações e fatos da vida do escritor no gesto da escrita. Essa posição coincidiria com a representação do leitor comum, ávido de novidades e interessado na “verdade biográfica”, em detrimento da transformação literária operada pela arte da ficção. Os juízos de valor preconizados pela crítica nos alertam a não menosprezar esse tipo de leitor, uma vez que os textos autoficcionais provocam tal associação, ao se referirem a nomes e datas que, coincidentes ou não com a experiência dos autores, despertam a curiosidade e a busca de provas “reais.” Por outro lado, a desestabilização do referencial produz a invenção e a estetização do texto, não mais subordinado à prova de veracidade. Esta seria a condição necessária a ser percebida pelo leitor. Trata-se da ação deliberadamente ficcional por parte do narrador, gesto de dessubjetivação que o insere no jogo fabular da narrativa. Estar ao mesmo tempo no interior da linguagem e fora dela consiste na operação de mão dupla a ser seguida tanto pelo escritor quanto pelo leitor. A declaração de Silviano Santiago, em ensaio elucidativo sobre o conceito de autoficção, resume o impasse inscrito nos textos que se investem de uma concepção híbrida:
Esse jogo entre o narrador da ficção, que é mentiroso e se diz portador da palavra da verdade poética, esse jogo entre a autobiografia e a invenção ficcional é que possibilitou que eu pudesse levar até as últimas consequências a verdade no discurso híbrido. De um lado, a preocupação nitidamente autobiográfica (relatar minha própria vida, sentimentos, emoções, medo de encarar as coisas e as pessoas etc.), do outro, adequá-la à tradição da ficção ocidental.¹⁸²
(2015)
171 MOLLOY, Sylvia. Desarticulações. Tradução de Joana Angélica d’Ávila Melo. Serrote, Rio de Janeiro, n. 9, p. 35, mar.-jul.-nov., 2011. 172 Remeto aqui ao artigo de Silviano Santiago, “Dentro da perda da memória”, publicado inicialmente no “Sabático” (O Estado de S Paulo) e, posteriormente, em livro (Aos sábados, pela manhã, Rocco, 2013), em que reflete sobre o livro de Sylvia Molloy. A coincidência na escolha do texto para análise obedece a preocupações teóricas que desenvolvo no momento, voltadas para os procedimentos das escritas de si. 173 MOLLOY, 2011, p 41. 174 MOLLOY, 2011, p 40. 175 No original: “O nascimento de Vênus, de Boticcelli, é uma refiguração de ilustrações medievais, provocada pela arte da Antiguidade redescoberta. Da mesma forma, os símbolos astrológicos da tradição, enrijecidos heraldicamente, foram revitalizados por influências da escultura clássica”. (WARBURG, Aby. A renovação da Antiguidade pagã. Tradução de Marcus Hediger. Rio de Janeiro: Contraponto; Museu de Arte do Rio, 2013, p 447). 176 DIDI-HUBERMAN, Georges. A imagem sobrevivente: história da arte e tempo dos fantasmas segundo Aby Warburg. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Contraponto, 2013, p 136, grifos do autor. 177 No original: « S’il faut en finir avec l’autofiction, c’est parce que ce concept communique principalement avec ces deux versants opposés et complices de luimême qui en constituent au fond la négation: d’un côté vers un naturalisme du moi où le sujet s’imagine encore détenteur d’une identité qui demanderait à être exprimée, de l’autre le basculement vers une esthétique du virtuel ou le sujet n’existe plus du tout, dissous dans un espace où tout réel fait défaut » (FOREST, Philippe. Le roman, le réel et autres essais. Nantes, Éditions Cécile Defaut, 2007, p 199, tradução de Eliana Muzzi). 178 RANCIÈRE, 2005, p 53. Cf. ainda a definição de Doubrovsky: « De toute façon on se reinvente sa vie quando on se la remémore. […] Il y a pourtant une
continuité dans cette discontinuité, car, autobiographie ou autofiction, le récit de soi est toujours mise en forme, scénarisation romanesque de sa propre vie » / “De qualquer forma reinventa-se sua vida quando se a rememora. Há, portanto, uma continuidade nessa descontinuidade pois, autobiografia ou autoficção, a narrativa do eu é sempre formatada, encenação romanesca de sua própria vida.” (DOUBROVSKY, Serge. Le dernier moi. In: BURGELIN, C.; GRELL, I.; ROCHE, R Y. (dir.). Autofiction(s). Lyon: Presses Universitaires de Lyon, 2010, p 393, tradução de Eliana Muzzi). 179 No original: « est protégé par un pacte narratif ‹ à la carte ›, [...] « un menu composé selon les goûts et qui parfois devient un anti-pacte autobiographique, c’est- à-dire une façon d’obscurcir ou de détourner la théorie de Lejeune” (ALBERCA, Manuel. Le pacte ambigu ou l’autofiction espagnole. In: BURGELIN, C ; GRELL, I.; ROCHE, R Y. (dir.). Autofiction(s). Lyon: Presses Universitaires de Lyon, 2010, p 160, tradução de Eliana Muzzi). 180 PAMUK, Orhan. A maleta do meu pai. Tradução de Sérgio Flaksman. São Paulo: Companhia das Letras 2007. 181 No original: « L’autofiction se construit à l’envers de la vie, dans une incompatibilité radicale. Elle est impuissante à en faire le récit comme à en réparer les lacunes. Elle se développe là où la vie manque, où la satisfaction fait defaut. L’écriture n’a pas vocation compensatrice, ne remplace pas ce qui n’a pas lieu, mais prend place sur ce vide, existe grace à lui. Si on vit, on n’écrit pas: il faut choisir » (BOGAERT, Sophie. Marquerite Duras ou comment l’écrivain tue la femme. In: BURGELIN, C.; GRELL, I.; ROCHE, R Y. (dir.). Autofiction(s). Lyon: Presses Universitaires de Lyon, 2010, p 165, tradução de Eliana Muzzi). 182 SANTIAGO, Silviano. Meditação sobre o ofício de criar. Revista Aletria, Belo Horizonte, v 18, jul./dez. 2008, p 178.
Ficções impuras
O grande fantasma […] é que todos esses papéis, livros ou textos, ou disquetes, já me sobrevivem. Já são testemunhas. Penso o tempo todo nisso, no que virá após a minha morte, quem viria, por exemplo, olhar esse livro que li em 1953 e se perguntará: “Por que ele assinalou isso, colocou uma flecha aqui?” Sou obcecado pela estrutura sobrevivente de cada um desses pedacinhos de papéis, desses traços.
Jacques Derrida
Com epígrafe de Jacques Derrida inicio este texto a propósito do rastro de vida e obra deixado nos “pedacinhos de papéis” e nos livros marcados de seu arquivo particular. Trata-se de um recado que assinala sua sobrevivência tanto como leitor quanto como escritor, na esperança de ser lido por gerações futuras que irão revitalizar sua escrita e possibilitar a permanência do traço e da assinatura autoral. Mesmo antes da morte física, o desejo de sobrevivência do escritor diante do legado intelectual já se apresenta como projeto fantasista de perpetuarse para além da morte. Morte e vida são componentes indissolúveis para o entendimento da sobrevivência, uma vez que esta é entendida, segundo Derrida, como “a vida para além da vida, a vida mais do que a vida”. Com esse raciocínio, a dimensão temporal da existência — e do arquivo — rompe com as oposições entre antes e depois, entre vida e morte, pelo aspecto anacrônico conferido às categorias relativas ao passado e ao futuro. Se, no pensamento do filósofo, o arquivo não é marca do passado, mas questão de futuro, na ação do arquivista em selecionar o que é preciso guardar, corre-se sempre o risco de se estar violentando algo, destruindo o que deveria permanecer arquivado. Nesses termos, a reconstituição fragmentária do percurso da escrita/leitura do filósofo de seu arquivo não poderá omitir a lição desconstrutora do “mal de arquivo”, a constatação de ser a tarefa infindável, sem limite de tempo e espaço. Como destino, o arquivo sustenta-se pela interpretação que lhe
propiciará uma sobrevida, por reunir nessa operação o movimento simultâneo de acender/apagar certezas, de ser fiel/infiel às palavras do autor. A própria noção de futuro precisa ser redimensionada no vocabulário de Derrida, à medida que se descarta a divisão temporal entre os períodos, contaminados pela sobrevivência simultânea de passado, presente e futuro. O conceito de devir, instaurado tanto por Derrida quanto por Deleuze e Parnet, responde melhor por esse movimento filosófico no qual “futuro e passado não têm muito sentido; o que conta é o devir-presente: a geografia e não a história, o meio e não o começo nem o fim, a grama que está no meio e que brota no meio, não as árvores que têm um cume e raízes.”¹⁸³ O arquivo poderia ser integrado à linha semântica da sobrevivência, na acepção de espectro, por se situar entre vida e morte, visível e invisível, real e ficcional. Espectro que se sustenta pelo paradoxo, situando-se além do presente, sempre por vir, sem se prender às instâncias de passado e futuro. Inscreve-se no limiar do acontecimento, num movimento alternativo entre aparecer e desaparecer, no momento das intermitentes aparições. No entender de Derrida, em Spectres de Marx:
Momento espectral, um momento que não mais pertence ao tempo, se por esse nome se compreende o encadeamento de presentes modalizados (presente passado, presente atual: “agora”, presente futuro.[…] Furtiva e intempestiva, a aparição do espectro não pertence a esse mundo, ela não está no tempo, não nesse.¹⁸⁴
Heterogêneo, intempestivo e deslocado face ao presente, o tempo do espectro e da sobrevivência legitima o estatuto da leitura como gesto em contínua transformação. Os rastros de Derrida no seu arquivo, legados aos leitores e seguidores de sua obra, se constituem como desafio à prática desconstrutora, no sentido de se levar em consideração que no processo de revitalização da escrita exige-se o deslocamento de saberes instituídos. Cito a passagem de Pensar em não ver, volume de entrevistas feitas com o teórico, publicado pela Editora da UFSC:
Quanto a mim, posso morrer a cada instante, o rastro fica aí. O corte está aí. É uma parte nos dois sentidos do termo: ela procede, ela emana de mim, mas ao mesmo tempo separando-se, cortando-se, desligando-se de mim. […] O rastro, é a definição de sua estrutura, é algo que parte de uma origem, mas que logo se separa da origem e resta como rastro na medida em que se separou do rastreamento, da origem rastreadora. É aí que há rastros e há começo de arquivos. Nem todo rastro é um arquivo, mas não há arquivo sem rastro. Portanto, o rastro, isso sempre parte de mim e sempre se separa.¹⁸⁵
É nítida a associação efetuada pelo filósofo entre sobrevivência, rastro e espectro, por formarem o movimento anacrônico da origem, o ir e vir de acontecimentos que não cessam de deslocar lugares e de incentivar o distanciamento do sujeito perante si próprio. Nesse gesto sobrevivente deixado pelo rastro, o sentido de pós-vida ressurge em sua caracterização espectral como fantasma, na mobilização de vida e morte, compreendidas enquanto instâncias inseparáveis. Estanca-se a vida e a morte, num processo simultâneo de sobrevivência, em que se apaga a noção de fim último das formas, assim como se desloca o suposto início dos acontecimentos. Se a vida é sempre interpretada como o início, e a morte, ao fim, é aconselhável embaralhar e anacronizar passado e futuro. Palavras, textos, traços desse arquivo exposto à visitação insurgem no presente da leitura efetuada por futuros estudiosos da obra de Derrida. Essa proposta de leitura desconstrutora deveria, em resumo, obedecer a determinados princípios inaugurados por uma geração de pensadores que desestabilizaram a compreensão positivista dos saberes e a prisão à ordem sucessiva do tempo. Para o filósofo, em particular, a sobrevida corresponde à ideia de o sujeito se manter, sem vida, num estado de puro suplemento à vida, mas, sobretudo de estancar a morte, ação que, ironicamente, não a estanca, permitindo, ao contrário, que ela dure: “[…] mas antes parar o morrer, parada que não o para, fazendo-o, pelo contrário, durar.”¹⁸ Seria ainda pertinente associar o conceito de escrita como morte desenvolvida por Derrida ao longo de sua reflexão teórica, com o intuito de desfazer a dicotomia entre vida/morte. Por ocasião de seu falecimento, uma homenagem, entre várias outras, feita por um de seus amigos, ressalta, em seus escritos, a predominância, do tema da morte, por considerá-la mola propulsora da própria vida e vice-versa. Não haveria, portanto, razão para celebrar o fim do sujeito, uma vez que a escrita já estava anunciando a ausência como forma de
sobrevivência e não de desaparecimento total. Nos moldes de sua escrita, o legado de Derrida funcionaria na dimensão desta meia-presença, comparável ao espectro, à lembrança, ao texto escrito. Segundo Charles Ramon, nas palavras de despedida do amigo, todo texto escrito tem valor testamentário, o que redimensiona a morte para além de sua natureza puramente factual. Na interpretação filosófica, conviver com a morte seria uma forma de relegá-la ao seu lugar de espectro e não de finitude: “Nesse sentido, todo escrito, como diz Derrida em La voix et le phénomène, tem valor testamentário. Toda cultura é como um imenso testamento, todo leitor ocupa a posição de herdeiro e todo autor o lugar de um morto”.¹⁸⁷
Warburg e a sobrevivência das formas Mais de um século antes da presença de Derrida no gesto desconstrutor da filosofia, Aby Warburg, historiador da cultura e da arte, nascido na Alemanha em 1866 e falecido em 1929, em momento importante de proliferação das ideias vanguardistas e revolucionárias — modernidade que se impunha nas várias áreas do conhecimento — recupera o conceito de sobrevivência, o “pós-viver”, entendido como “um ser do passado que não para de sobreviver”.¹⁸⁸ Como historiador da arte, seu objetivo analítico é menos existencialista e mais metodológico e epistemológico, ao insurgir contra o conceito evolucionista da história. No seu entender, a história desloca-se para a compreensão heterogênea e intervalar dos períodos e das hierarquias culturais. Quanto a Derrida, o conceito de sobrevivência respondia por uma indagação filosófica da existência, ampliando-se para a construção da obra como legado espectral, a partir da ponte entre obra e vida, justapondo morte e vida. Para Warburg, a sobreposição de tempos artísticos e de valores culturais responderia pela concepção do arquivo/biblioteca como montagem de livros e de formas distintas. A reflexão de ambos, no entanto, apresenta-se em concordância, no sentido de apontar a importância da concepção de arquivo como sobrevivência e do aspecto anárquico, heterogêneo e fantasmal de saberes que resistem ao tempo e se insurgem, intempestivamente, no presente. Contemporâneo de Nietzsche, Warburg comungou com o filósofo a concepção de arte como potência e força vital, como reflexão sobre o tempo histórico desprovido dos aspectos positivista e mecânico. O intempestivo, em Nietzsche, aproxima-se do conceito de sobrevivência e de devir, por remeter ao ato de agir contra o tempo, levando em
conta o gesto de estranheza temporal. O devir não se definiria em termos de uma linha contínua que, segundo Didi--Huberman, “precisa, pois, do movimento, da metamorfose: fluxos, refluentes, pretensões sobreviventes, retornos intempestivos.”¹⁸ A concepção do arquivo de Warburg — uma biblioteca com sessenta mil volumes e um atlas de imagens intitulado Mnemosyne — contracena, de modo diferente, com a de Derrida, desta vez por ser dotado de obras de diversas disciplinas e de conceber um Atlas na forma de montagem heterogênea de fotos de peças artísticas e de outra ordem. Se, para Derrida, a leitura de seu arquivo pessoal estava vinculada à desconstrução da razão filosófica ocidental, por assinalar a concomitância de vida e morte segundo a proposta existencialista e estética, para Warburg, o interesse seria o legado de uma biblioteca heterogênea e reveladora da visão antropológica/artística de seu proprietário. Em ambos, nota-se a preocupação com os deslocamentos dos campos de saber, dos períodos históricos e da ausência de hierarquia entre os lugares geográfico-culturais. Esse raciocínio, que reforça o procedimento de deslocamento na classificação dos objetos de arte, é endossado por Warburg em vários sentidos: seja por meio da noção de impureza encontrada nos registros artísticos, indo contra uma “história da arte estetizante”, seja pela montagem de seu arquivo como anarquivo de objetos e materiais que foram excluídos pelo tradicional cânone estético ocidental. Ao lado de reproduções de fotos de obras de arte, por exemplo, eram expostos em telas de tecido preto selos postais, baixos-relevos antigos, recortes de jornais, moedas com efígies, gravuras, montagem que desobedecia a ordem linear de leitura, por sustentar o espaço híbrido de significação. Mas o principal movimento teórico/vital efetuado por Warburg para o aprimoramento do conceito de deslocamento reside na viagem realizada ao Novo México, nos Estados Unidos, no final do século XX. Nessa aventura antropológica, o pesquisador interessa-se pelo estudo dos índios hopis e dos rituais da serpente entre os índios pueblos. Extrapola, assim, o quadro estetizante da arte e entrega-se à descoberta de associações entre imagens artísticas da ninfa europeia e da serpente ameríndia, ao condensar a velha Florença com o Novo México. Nessa proposta de construir um determinado saber-montagem, nas palavras de Didi-Huberman, tem-se a abertura para a constituição do arquivo que aponta as limitações do historiador de arte e acena para as pesquisas póscolonialistas da atualidade. Essa viagem ao território dos hopis propicia a aproximação anacrônica entre antiguidade, indianidade e cultura popular. Embora o pesquisador tenha se pautado pelo encontro de vestígios do
Renascimento no universo indígena, recupera sinais de culturas marginalizadas, num gesto de deslocamento do cânone artístico ocidental inaugurado pela cultura europeia. A experiência da alteridade praticada pelos teóricos os quais desenvolveram as concepções de arquivo cultural encontra no escritor brasileiro Silviano Santiago uma de suas manifestações exemplares. Conhecedor da obra de Derrida, tendo sido o divulgador no Brasil, nos anos 1970, de sua teoria, apropria-se, em várias de seus livros, entre eles, Em liberdade, de 1981, do conceito de “suplemento”, ao ficcionalizar o suposto diário do intelectual Graciliano Ramos, ao sair da prisão. Suplemento no sentido de que não pretendeu adicionar à obra de Ramos leitura de natureza binária e complementar, mas promover o descentramento no ato de leitura/escrita. Trata-se de um procedimento que não consiste em adicionar um texto ao outro, mas em suprir sua falta. O conceito de “entrelugar” de 1972 será determinante para o entendimento desse espaço intervalar que desloca e movimenta as heranças literárias, revivendo acontecimentos do passado e reintegrando-os ao presente. O crédito do crítico literário a Derrida pela criação do conceito é devidamente afirmado em seus depoimentos, em que conjuga a herança teórica europeia com a lição latino-americana de Borges: “[…] o lugar de observação, de análise, de interpretação não é nem cá nem lá, é um determinado ‘entre’ que tem que ser inventado pelo leitor”.¹ Da obra de Warburg, o escritor brasileiro não tinha conhecimento quando escreveu Viagem ao México, embora convivesse com a obra de Walter Benjamin, herdeiro declarado das teorias anti-historicistas do teórico alemão, principalmente quanto ao desdobramento do conceito de tradução como sobrevida conferida ao original:
Do mesmo modo que as exteriorizações vitais se mantêm intimamente relacionadas com os seres viventes, sem todavia os afetar, a tradução nasce também do original, procedendo neste caso não tanto da vida como antes da “sobrevivência” da obra. Isto porque a tradução é posterior ao original, e, como os tradutores predestinados nunca as encontra na época da sua formação e nascimento, a tradução indica, no caso das obras importantes, a fase em que se prolonga e continua a vida destas.¹ ¹
Recentemente, em dois artigos publicados nO Estado de S Paulo, no suplemento “Sabático” e posteriormente em livro, Aos sábados, pela manhã, Silviano aponta a importância da obra de Warburg para o avanço dos estudos pós-coloniais. Destaca a viagem ao Novo México e recoloca a questão do deslocamento cultural como abertura para reflexões sobre a quebra da hegemonia do pensamento europeu. Não é sem razão que o interesse do escritor brasileiro pelo historiador das artes justifique-se pela trajetória ficcional realizada no seu livro sobre Antonin Artaud, em que se ficcionaliza o encontro do ator/autor europeu com a magia dos rituais indígenas do México. O descontentamento com o ambiente artístico e intelectual europeu na década de 1930 motiva o encontro com a “terra do sol”, as drogas e o conhecimento de outras realidades até então desconhecidas do continente americano. Pela mediação de um autor francês em viagem à América Hispânica, Silviano ficcionaliza o “entrelugar” do escritor latino-americano, uma vez que não só escreve o romance/ensaio, como também se insere na narrativa como duplo de Artaud. Ou vice-versa. No artigo citado sobre Warburg, o ensaísta assim se expressa:
Warburg importa o Ocidente clássico para fotografar as imagens sacrificiais da dança da chuva no Novo México e no Arizona. Exporta o Novo México e o Arizona para fotografar as imagens artísticas do Ocidente dionisíaco e cristão. O bônus — dado de presente por Michelangelo — é a revista à Renascença florentina. Examina no Museu do Vaticano a escultura grega em que Lacconte e seus dois filhos são estrangulados por serpentes marinhas. […] Transmite ao leitor efeitos de superposição e de deslocamentos imaginários de imagens. Leiam-se os intervalos. Nela, afirma Philippe Alain Michaud, a alteridade entra no coração da identidade. A teoria é o entre-lugar ficcional que reposiciona as imagens do Novo Mundo no Ocidente e as deste nas Américas.¹ ²
Ao conceito de “entrelugar” se justapõe o de intervalo, montagem que aproxima e separa as imagens postas em confronto, formando uma construção compósita feita de associações, deslocamentos e distorções. A “iconologia dos intervalos” em Warburg responde pelo rompimento com a causalidade e a continuidade entre imagens distanciadas no tempo. A posição de Silviano frente à obra de Warburg reside na coincidência em relação ao processo intercultural pautado pelo descentramento e pelo extremo reconhecimento da alteridade. Embora a
viagem tenha sido realizada com diferenças — o escritor brasileiro elege um artista francês para chegar ao México, assim como o teórico alemão vai até a América — o diálogo de culturas corresponde à defesa de sobrevivência das formas esquecidas e recalcadas. O que Silviano acrescenta a esse diálogo seria a encenação, pelo romance, da experiência vivida por um europeu em terras do considerado Novo Mundo, com o objetivo de apontar os esquecimentos e desastres provocados pela ação colonizadora. Ficções impuras conservam, como tentei aqui demonstrar, alto grau de miscigenação entre autores, narrativas e tempos distintos de suas realizações. A inusitada comparação entre teorias e conceitos os quais, a princípio, não representariam matéria de aproximação comparativa, encontra eco na conjunção heteróclita de princípios defendidos por filósofos, escritores e historiadores de arte. Sobrevivência, anacronia, montagem, simultaneidade e rompimento de fronteiras temporais e espaciais seriam os principais parâmetros de entendimento das manifestações artísticas e culturais de nossos tempos. O procedimento da montagem ilustra e incentiva o teor impuro das manifestações artísticas, pela liberdade experimentada nas associações, no diálogo entre formas e autores, em que são respeitadas tanto as diferenças quanto as semelhanças entre os objetos.
(2014)
183 DELEUZE, Gilles; PARNET, Claire. Diálogos. Tradução de Eloisa Araújo Ribeiro. São Paulo: Escuta, 2008, p 33. 184 No original: « Moment spectral, un moment qui n’appartient plus au temps, si l’on entend sous ce nom l’enchaînement des présents modalisés (présent passé, présent actuel: ‹ maintenant ›, présent futur). […] Furtive et intempestive, l’apparition du spectre n’appartient pas à ce temps là, elle ne donne pas le temps, pas celui-là.” (DERRIDA, Jacques. Spectres de Marx. Paris: Galilée, 1993, p 17, tradução de Eliana Muzzi). 185 DERRIDA, 2012, p 120-121. 186 No original: « […] mais plutôt arrêter le mourir, arrêt qui ne l’arrête pas, le faisant, au contraire, durer » (DERRIDA, Jacques. Survivre. In: DERRIDA,
Jacques. Parages. Paris: Galilée, 1986b, p 152, tradução de Eliana Muzzi). 187 No original: « En ce sens, tout écrit, comme le dit Derrida, dans La voix et le phénomène, a une valeur testamentaire. Toute la culture est comme un immense testament, tout lecteur est en position d´héritier, et tout auteur à la place d´un mort » (RAMON, Charles. Hommage à J D.: ce qui nous revient. Cités, 30, PUF, 2007, p. 88, tradução de Eliana Muzzi). 188 Cf. DIDI-HUBERMAN, 2013, p 29. 189 DIDI-HUBERMAN, 2013, p 29. Como já mencionado, Didi-Huberman é um dos principais leitores e Warburg, e desenvolve o conceito de sobrevivência (Nachleben) segundo o trabalho realizado pelo teórico alemão das formas artísticas do Renascimento como revitalização de formas da Antiguidade Clássica. 190 SANTIAGO, Silviano. “Literatura é paradoxo”. [Entrevista cedida a] Carlos Eduardo Ortolan Miranda. Revista Trópico, [s.l.], 3 mar. 2010, p 4. 191 BENJAMIN, Walter. A tarefa do tradutor. Tradução de Fernando Camacho. Belo Horizonte: FALE/UFMG; Viva Voz, 2008, p 27. 192 SANTIAGO, Silviano. Ficção teórica. In: SANTIAGO, Silviano. Aos sábados, pela manhã. Rio de Janeiro: Rocco, 2013a, p 179-180.
Silviano santiago, autor de derrida
A tradição literária tem a estrutura de um sonho no qual se recebem as lembranças de um poeta morto. Podemos imaginar alguém que no futuro (num quarto de hotel, em Londres) comece de repente a ser visitado pelas lembranças de um obscuro escritor sul-americano a quem apenas conhece. […] Talvez no futuro alguém, uma mulher que ainda não nasceu, sonhe que recebe a memória de Borges tal como Borges sonhou que recebia a memória de Shakespeare.
Ricardo Piglia
“A memória de Shakespeare”, conto de Borges que narra como a memória do autor inglês foi presenteada ao narrador/escritor por um desconhecido, não estaria sendo reconfigurada, na literatura contemporânea, pela memória de Borges? A metáfora da memória alheia permitiria definir a tradição poética e a herança cultural da literatura contemporânea? Estaria a profecia de Ricardo Piglia, segundo a qual a memória de um escritor latino-americano poderia ser enxertada, no futuro, na memória de um europeu? E, acrescentaria, na memória de tantos outros escritores do planeta? O legado literário do cânone ocidental, no qual o Norte sempre se impôs como exportador de modelos, estaria sendo ocupado pelo Sul, ou pela literatura dita periférica? Ou ainda, a escolha dos precursores literários, realizada contra a passividade da influência, não poderia ser lida como prisão, mais do que como presente, recebido, por sua vez, como herança nefasta? Essas considerações iniciais foram motivo de um texto por mim escrito sobre Borges, intitulado “A memória de Borges”,¹ ³ que aqui pretendo articular com o trajeto teórico da obra de Silviano Santiago, iniciada no artigo seminal “O entre-
lugar do discurso latino-americano”,¹ ⁴ de 1971, presente no livro Uma literatura nos trópicos. Sem me deter no legado literário do escritor diante da cultura literária estrangeira, faço considerações sobre o diálogo mantido entre conceitos desenvolvidos pelo teórico nacional e os estrangeiros, a partir de um processo de “montagem” reflexiva sobre o entrelugar.¹ ⁵ O procedimento visa não só a atualidade de uma leitura do conceito do ponto de vista anacrônico, não evolutivo, mas também a tentativa de apontar coincidências verificadas pelo autor entre outros pensadores, à medida que estas foram surgindo ao longo do tempo. A percepção de ser a propriedade autoral categoria há muito discutida, entende-se aqui até que ponto as associações entre conceitos independem do momento em que foram criados, embora sejam datados, e de quem recebeu a assinatura. O estatuto autoral não se inscreve pelo sentimento de posse, mas como invenção e diferença, pelo diálogo desconstrutor com o outro. Não é gratuita a menção no parágrafo final do artigo à antropofagia e ao endosso da proposta modernista oswaldiana como traço significativo para a diluição da autoria pelo instinto predatório do roubo: “Só me interessa o que não é meu”. O instinto antropológico do crítico o levou a privilegiar princípios norteadores da operação de natureza cultural quanto à questão da dependência. O que importa, portanto, é a liberdade conferida à montagem construída pelo leitor, o qual se despe do mesmo sentimento de propriedade, sem nomear quem primeiro elaborou a reflexão. Refiro-me à importância e ao rendimento que o conceito de entrelugar exerce no meio acadêmico e alhures, ao se deslocar de seu autor nacional e se alçar a uma rede global de teóricos, os quais passam a ser lidos, principalmente pelo leitor mais contemporâneo, pelo viés do olhar de Silviano Santiago. O entrelugar se expande e se multiplica com a apropriação de diversos pensadores, os quais respondem não só pela literatura, mas abrangem os discursos filosófico, social, antropológico e político. Sobrevive sem a marca da cópia e da repetição pura, mas se insere no âmbito da impureza e da traição. Em artigo esclarecedor, Denilson Lopes afirma que “o entre-lugar não é uma abstração, um não lugar, mas uma outra construção de territórios e formas de pertencimento , não simplesmente uma ‘inversão de posições’”.¹ Sem a pretensão de valorizar o lugar do teórico diante do quadro composto por representantes do pensamento estrangeiro entre nós, ressalto aqui a memória de Borges como incentivadora de um dos empréstimos do crítico para a apropriação/construção do conceito como ruptura das noções de fonte e influência. Reitera a conhecida premissa do escritor argentino de ser o autor
aquele que desconsidera origens, por ser ele quem elege seus precursores. Nesse sentido, consegue-se entender claramente um dos motivos de se pensar o entrelugar como diluidor de fronteiras rígidas entre temporalidades e espaçamentos culturais e refletir sobre o deslocamento como regra básica desse movimento. O deslocamento implica a saída de lugares fixos, da voz autoral e do culto da personalidade, com a intenção de romper a relação mimética com o outro e considerá-lo na condição de diferença, pelo gesto incompleto do suplemento. Esse outro metaforiza-se ainda em várias imagens, no sentido de estar o autor/leitor esvaziado do signo de propriedade, aberto ao diálogo, à fala e à linguagem, esta também carente de autoridade. Entre vozes restauradoras e sobreviventes, escritores se encontram e passam a conviver imaginariamente com seus precursores, em que são rompidas as cadeias sucessivas de causa/efeito, anterioridade/posterioridade, próprias do pensamento hegemônico da influência. A ideia de precursor, no entender de Borges, define-se pelo afastamento do passado como mestre e pai de discursos futuros, ao se inscrever como espectro de novos autores: “O fato é que cada escritor cria seus precursores. Seu trabalho modifica nossa concepção do passado, como há de modificar o futuro. Nessa correlação, não importa identidade ou a pluralidade dos homens.”¹ ⁷ Liberta-se o autor da passividade inerente à ideia de herança e filiação, tornandose contemporâneo de quem escolhe como parceiro. O procedimento anacrônico dos encontros entre escritores pertencentes a épocas distintas propõe a desobediência aos parâmetros temporais, pela concepção simultânea entre presente, passado e futuro. “Pierre Menard, autor do Quixote”, instaura na pauta literária e na crítica comparada a leitura periférica como resistência à submissão do tempo, caracterizado na sua sucessividade e teleologia. Endossa o anacronismo como técnica nova, por recusar a concepção de história literária segundo moldes hierárquicos e excludentes. A autoria sofrerá, igualmente, outros contornos, pelo deslocamento de sua natureza absoluta:
Menard (talvez sem querê-lo) enriqueceu, mediante uma técnica nova, a arte fixa e rudimentar da leitura: a técnica do anacronismo deliberado e das atribuições errôneas. Essa técnica de aplicação infinita nos leva a percorrer a Odisseia como se fosse posterior à Eneida e o livro Le Jardin du Centaure, de Madame Henri
Bachelier, como se fosse de Madame Henri Bachelier. Essa técnica povoa de aventura os livros mais pacíficos. Atribuir a Louis Ferdinand Céline ou a James Joyce a Imitação de Cristo não é suficiente renovação dessas tênues advertências espirituais?¹ ⁸
Na atualização da “técnica do anacronismo”, desconstrói-se a paternidade e a filiação das obras, posição que será mais tarde endossada pela filosofia de Jacques Derrida, estampada, principalmente, no texto A farmácia de Platão (1972). A escrita, ao contrário do logos, do discurso oral, afasta-se do pai e inscreve-se como alteridade e ausência de autoridade. Na condição de simulacro da fala, a escrita é ainda interpretada como parricida, desfazendo-se a ligação com a origem. No ensaio “Kafka e seus precursores”, Borges insinua que a prática de romper com a sequência temporal necessariamente aponta para a fragilidade autoral. O engendramento dos precursores implica a aceitação, da parte de quem assim se comporta, da parceria como razão de ser da criação. O escritor argentino defendia, com base nessa equação, o anonimato, a transformação da obra em bem comum, desvinculando-se da presença autoritária do criador e despindo-se das insígnias de propriedade. A extrema visibilidade que a autoria poderia adquirir, ao longo do tempo, pulveriza-se no gesto contrário, o da invisibilidade do autor como sujeito pleno no ato criador. Nessa operação, Borges se impõe como imagem do escritor clássico, anônimo, despersonalizado, embora o ato responsável pelo desaparecimento seja, ironicamente, o momento de maior fulguração póstuma. Um dos maiores desejos do escritor concentra-se na transformação da humanidade em ideal de construção coletiva dos saberes, em que cada indivíduo seja capaz de se considerar artista e criador. O anonimato significaria a recusa de hierarquias e de propriedade autoral, uma vez que se postula o gesto democrático de recepção e produção do conhecimento. As afirmações do escritor argentino quanto ao anonimato revestem-se, contudo, de certa pose de intelectual, ao se abdicar da fama conquistada, e de permitir ter sua imagem diluída entre tantas outras. Não é de se estranhar, portanto, que um escritor, ao atingir o anonimato, estaria penetrando no reconhecimento popular e se integrando, de forma plena, no cânone universal:
Espero chegar a uma idade sem aniversários, sem coleções, sem museus. Tenho um conto que se intitula “Utopia do homem que está cansado”, no qual se supõe que todo homem se dedica à música, que todo homem é seu próprio Brahms; que todo homem se dedica à literatura, que todo homem é seu próprio Shakespeare. E mais tarde, quando morre, destrói-se toda sua obra, porque todo homem é capaz de produzi-la. E desde então, não há clássicos, e não há memória, e não há bibliotecas. Porque todo homem pode produzir uma galeria, ou pode erguer e construir uma casa. […] Que não tivesse …que nenhum indivíduo tivesse nome. Que todo livro que se publicasse fosse anônimo.¹
Ao adotar esse espaço intermediário de reflexão, atingido ainda pela mediação de Borges e de Derrida, o crítico brasileiro descarta “o lugar-comum dos nacionalismos brabos” e o “lugar-fetiche do aristocrata saber europeu”, como assinala ao definir o termo. Elege os precursores com a intenção de reforçar o lugar teórico entre e o insere na dimensão cultural como futura estratégia no combate à dependência. A presença de Borges, ao lado de Derrida, inscreve o pensamento do teórico na congruência de precursores os quais se caracterizam por um pensamento comum quanto à diluição de paradigmas temporais e asserções de ordem filosófica. Não é gratuita a escolha de autores cujo perfil intelectual oscila entre ensaio e ficção, filosofia e literatura. Escritores que se situam entre lugares flutuantes do saber, espaços ambivalentes responsáveis pela quebra do raciocínio binário, ao optarem pela convivência paradoxal entre os termos a serem negociados. A crítica ao racionalismo já estaria implícita na preferência de Silviano pelo escritor latino-americano e o filósofo francoargelino. Postulações ligadas à interpretação do tempo no seu aspecto anacrônico ou à diluição da ideia de origem como princípio norteador das diferenças culturais embasam a produção do conceito de entrelugar. A definição do conceito encontra-se claramente assumida pelo “entreautor” nos seguintes termos:
Borges me deu a coragem do pensamento paradoxal quando estava preparado (ou estavam me preparando) para os caminhos da racionalidade francesa numa terra onde os lugares-comuns nos impelem para o irracional. Nunca fui vítima da lucidez racional da Europa como um novo Joaquim Nabuco, nem me deixei seduzir pelo espocar dos fogos de artifício ou pelas cores do carnaval nos trópicos. Fiquei com os dois e com a condição de viver e pensar os dois.
Paradoxalmente. Nem o lugar-comum dos nacionalismos brabos, nem o lugarfetiche do aristocrata saber europeu. Lugar-comum e lugar-fetiche imaginei o entre-lugar e a solidariedade latino-americana. Inventei o entre-lugar do discurso latino-americano que já tinha sido inaugurado pelos nossos melhores escritores”.²
Entre a sedução das cores do carnaval dos trópicos e do racionalismo europeu, o crítico elege o raciocínio paradoxal como antídoto para a orientação totalizadora e a universalização, na defesa de um pensamento transcultural, que se desvincula do ponto de vista estritamente nacional e da prisão a modelos estrangeiros. Nesse sentido, amplia e reconhece o poder de força dos textos ditos colonizados, a favor da leitura que se processa pela via periférica, sem o aparato determinista, pautado pelo regime de oposições. Como núcleo operador da diferença, as relações entre os polos comparativos são marcadas pelo endosso de categorias que matizam o binarismo e contemplam as noções de paradoxo, indecidibilidade, heterogeneidade, hibridez, mestiçagem, entre outras. A polêmica suscitada pelo artigo merece ser retomada, com vistas a sinalizar as distintas posições assumidas por outros teóricos brasileiros. No entender de Roberto Schwarz, em “Nacional por subtração”, de 1987, artigo dedicado à discussão das teorias da dependência realizadas por Silviano Santiago e Haroldo de Campos, respectivamente Uma literatura nos trópicos e “Da razão antropofágica: diálogo e diferença na cultura brasileira”: “A filosofia francesa recente é outro fator no descrédito do nacionalismo cultural. […] e, de certo ângulo, em lugar da almejada europeização ou americanização da América Latina, assistiríamos à latino-americanização das culturas centrais.”² ¹ A reflexão vai de encontro às posições de Borges, Piglia, Silviano e Campos, autores que romperam com o preconceito de sermos representantes do descompasso com a cultura europeia, pelo fato de estarmos sempre distorcendo o que havia sido originalmente concebido. Explica-se, dessa forma, a formulação do crítico quanto ao conceito das “ideias fora-do-lugar”. Considerar, portanto, a “latino-americanização das culturas centrais” como saída absurda e invertida para o desafio da dependência contraria a proposta defendida por esses pensadores em reconhecer que as culturas periféricas se inserem nas metropolitanas. “Eça, autor de Madame Bovary”, outro artigo presente em Uma literatura nos trópicos, expõe com nitidez o legado borgiano da leitura da tradição literária como resposta às questões de simultaneidade e coexistência de
tempos e espaços. Rompendo-se com a continuidade temporal e a hierarquia valorativa de quem veio primeiro, propõe-se o espaço do meio como abertura para o movimento e o deslocamento, procedimentos responsáveis pela consolidação da ruptura com a ordem vertical e hierárquica dos empréstimos. Nesse sentido, Schwarz confirma, pela negação, o sentimento desejado por Piglia, ao imaginar no futuro alguém recebendo, em sonho, a memória de Borges, ou por Silviano, ao conceber Eça como autor de Madame Bovary. Curiosamente, a filosofia francesa de décadas anteriores, culpada pelo descaso de teóricos brasileiros com os nacionalismos tropicais, permanece atual, motivando o acréscimo de associações a serem feitas com a diluição do tempo contínuo para a compreensão das reviravoltas pós-coloniais. O texto de Deleuze e Guattari, “Rizoma”, de 1976, incluído em Mil platôs em 1980, é posterior à publicação do artigo seminal de Silviano. No entanto, tornam-se contemporâneos, uma vez que os lugares dos saberes localizam-se na superfície plana e múltipla dos empréstimos. Na concepção comum de um tempo paradoxal que afeta todos os acontecimentos, não se cogita a aceitação da linearidade das descobertas, mas na simultaneidade operada em relação a estas. O conceito de “rizoma”, desenvolvido pelos autores é análogo à desconfiança quanto às raízes, às arvores genealógicas e à obediência às origens, posições assumidas pela crítica literária da época e, atualmente, endossadas por grande parcela de teóricos contemporâneos. Situando-se em oposição às noções de hierarquia e verticalidade imputadas às influências, o entrelugar ressurge estampado nos textos de Deleuze e Guattari como signo da aliança, do caminho do meio, do intermezzo. Nada impulsiona a preocupação com o que veio antes ou o que veio depois. Nas palavras dos filósofos, outra lógica de descortina a favor da dissolução dos fundamentos: “Mas ainda, é a literatura americana, e já inglesas, que manifestaram este sentido rizomático, souberam mover-se entre as coisas, instaurar uma lógica do E, reverter a ontologia, destruir o fundamento, anular fim e começo.”² ² Silviano, autor de Deleuze e Guattari? Ricardo Piglia, escritor latino-americano, em perfeita simetria com Borges e Silviano, elaborou a sexta proposta de Italo Calvino, autor italiano das Seis propostas para o próximo milênio, no desejo de responder ao impulso criativo de completar a falta deixada pelo discurso europeu. Ao propor o desafio, incita o diálogo e se coloca como leitor/autor de um texto presumidamente intocável e completo. Seria pertinente considerar essa resposta como liberdade em relação ao precursor, por considerar, como Calvino, autor das propostas, e se inscrever no texto considerado como acabado e pertencente ao seu criador. No entanto, o
texto adquire vida, ou melhor, sobrevida, pela inserção de uma voz vinda dos trópicos, integrando-se, de forma anacrônica e enriquecedora, à voz europeia. Denominada por Piglia de “deslocamento e distância”, a sexta proposta atua como alerta de uma literatura a ser pensada num tempo futuro, escrita a partir das margens, ao sinalizar uma perspectiva distinta da versão original, sem destruí-la. Cito:
Pensei que talvez alguém poderia escrever essa proposta que falta. Qual seria a sexta proposta não escrita para o próximo milênio? Qual seria a proposta escrita a partir de Buenos Aires, escrita nesse subúrbio do mundo? Como veríamos o futuro da literatura ou a literatura do futuro e sua função? Não como alguém de um país central com sua grande tradição cultural. Levantamos, assim, esse problema a partir da margem, da periferia das tradições centrais, olhando de forma oblíqua. […] A tentativa de imaginar que valor poderia subsistir é, evidentemente, uma ficção especulativa, uma espécie de versão utópica de Pierre Menard, autor do Quixote. Não exatamente como seria reescrita literalmente uma obra-prima do passado, mas como seria reescrita imaginariamente a obraprima do futuro.² ³
Assim como Piglia, Silviano torna-se também autor do entrelugar derridiano, do entrelugar da literatura latino-americana, enquanto tradutor do deslocamento que se efetua pelas margens e pela reescrita do conceito elaborado pelo filósofo francês. Em virtude da leitura enviesada dos textos críticos e da literatura do escritor, cria-se a abertura para o entendimento do panorama teórico transcultural, o aceno para o futuro, como assim se expressa o escritor argentino. Essa proposta retoma também a fórmula borgiana de Pierre Menard, relendo-a sob o signo do deslocamento, ao pensar a reescrita imaginária de uma obra prima futura na sua condição de uma literatura potencial. Estar fora do centro teria, assim, suas vantagens, pela atitude audaciosa de assumir a alteridade como resistência e dialogar com o devir como resposta à herança legada pelas culturas hegemônicas. A reescrita das tradições centrais não se configura nos moldes da repetição e da cópia, mas no artifício imaginativo de criação de uma “ficção especulativa”. O devir-literatura dos trópicos deveria contar com o possível desenho de manifestações literárias que mantivessem o traço definidor da arte periférica. Não resta dúvida de que os estudos de literatura comparada e de
crítica cultural dos últimos quarenta anos são devedores da contribuição inestimável de um grupo de intérpretes interessados em reverter posições colonialistas e em repensar os impasses e equívocos da situação pós-colonialista em termos políticos e como resultado da desconstrução derridiana. Na revisão do conceito, ensaiado ao longo desta reflexão, introduzi um terceiro termo na equação, na figura de Ricardo Piglia, com o intuito de tornar o raciocínio não só pautado pela presença de outro escritor latino-americano, mas como mediação para destituir o sentimento de propriedade do conceito a ser atribuído a um autor específico. Contemporâneo de Silviano, sua obra ficcional e crítica mantém pontos de contato com a do escritor brasileiro, na fabulação conjunta de textos que discorrem sobre dependência cultural e na posição desconstrutora a respeito da produção artística, sempre pensada em termos de diálogo e inserção no concerto cultural das nações. A esperança de alguém, no futuro receber a memória de Borges, como este recebeu a memória de Shakespeare, seria um desejo alimentado também por Silviano, ao propor a mudança de paradigma (discursos de formação) para o entendimento da situação da literatura brasileira como inserida na literatura universal (discursos da inserção). Por meio dos discursos de inserção, tenta-se reconduzir o conceito de entrelugar na dimensão futura e talvez invertida, em que não se problematiza mais o lá e o cá, uma vez que os lugares tornam-se intercambiáveis e paradoxais. Em texto recente, Silviano esclarece este ponto de vista:
Faz-se urgente dar uma posição à “inserção da linguagem-Brasil em contexto universal”, para retomar palavras premonitórias de Hélio Oiticica no texto “Brasil diarreia” (Arte brasileira hoje, 1973). Inserir a linguagem-Brasil em contexto universal traduz a vontade de situar um problema que se alienaria fosse ele local, pois problemas locais não significam nada — se se fragmentam quando expostos a uma problemática universal. Tornam-se irrelevantes se situados somente em relação a interesses locais. E Hélio conclui: “A urgência dessa ‘colocação de valores’ num contexto universal é o que deve preocupar realmente àqueles que procuram uma ‘saída’ para o problema brasileiro.”² ⁴
Ficções teóricas
Warburg inventa uma “iconografia dos intervalos”, para retomar expressão de Freud em carta a Fliess (16/4/1896), “nosso reino é o entre-lugar”. […] A teoria é o entre-lugar ficcional que reposiciona as imagens do Novo Mundo no Ocidente e as deste nas Américas. Os trópicos não são tristes. Tornaram-se tristes.
Silviano Santiago
Em artigos publicados inicialmente nO Estado de S Paulo e reeditado no livro de ensaios Aos sábados, pela manhã, “Ficção teórica” e “Renascença: movimento e gestual”, Silviano considera-se contemporâneo do historiador de arte alemão Aby Warburg.² ⁵ Justifica a afirmativa por ambos endossarem raciocínio semelhante quanto à associação simultânea entre textos e imagens, à sequência não cronológica dos acontecimentos, procedimentos definidos por Warburg como “iconologia dos intervalos”. Seu método heurístico pressupõe a articulação entre o que se situa entre, nos intervalos, desobedecendo a continuidade temporal e endossando princípios anacrônicos. A biblioteca por ele organizada, tendo por título Mnemosyine, responde pelo procedimento de montagem, por agrupar pranchas de natureza díspar, nos âmbitos temático e temporal, com o intuito de apontar simetrias resultantes da exposição de imagens heterogêneas. Ao lado de reproduções de fotos de obras da arte, por exemplo, eram dispostos em telas de tecido preto, selos postais, baixos-relevos antigos, recortes de jornais, moedas com efígies, gravuras, organização aleatória e fruto de uma montagem que não obedecia à ordem linear de leitura, por sustentar um espaço híbrido de significação. Da obra de Warburg, o escritor brasileiro não tinha conhecimento quando escreveu Viagem ao México, em 1995, embora convivesse com a obra de Walter Benjamin, herdeiro declarado das teorias anti-historicistas do teórico alemão. Ressalte-se aí o desdobramento do conceito de tradução como sobrevida conferida ao original, o que implica a importância da visita ao passado como desrecalque, como releitura e aproveitamento de conceitos esquecidos pelo cânone oficial. Não é sem razão que o interesse do escritor brasileiro por
Warburg, historiador das artes, justifique-se igualmente pela trajetória ficcional realizada no seu livro sobre Artaud, em que se ficcionaliza o encontro do ator europeu com a magia dos rituais indígenas do México. O descontentamento com o ambiente artístico e intelectual europeu na década de 1930 motiva o encontro do artista com a “terra do sol”, as drogas e o conhecimento de outras realidades até então desconhecidas do continente americano. Pela mediação de um autor francês em viagem à América Hispânica, Silviano ficcionaliza o “entrelugar” do escritor latino-americano, uma vez que não só escreve o romance/ensaio, como também se insere na narrativa como duplo de Artaud. Ou vice-versa. A diferença de Warburg frente aos seus contemporâneos reside ainda na construção de uma “ficção teórica”, quando procede à desestabilização da arte ocidental e elabora um método e um estilo novo, ao “escolher objetos inesperados, de que é exemplo a ‘dança da chuva’, ritual cultivado pelos índios do sudoeste norte-americano.”² Nesse sentido, o escritor brasileiro pontua o diálogo com o entrelugar do discurso latino-americano, por estar o historiador/antropólogo atuando nas pesquisas de modo análogo ao intelectual latino-americano: desloca a arte hegemônica representada pelo Ocidente clássico para o Novo Mundo, por meio da ideia de sobrevivência das formas. A posição do escritor frente à obra de Warburg reside na coincidência em relação ao processo intercultural pautado pelo descentramento e pelo reconhecimento da alteridade. Embora a viagem tenha sido realizada com diferenças — Silviano escolhe como personagem o artista francês na sua ida ao México, Warburg desloca-se literalmente até a América — o diálogo de culturas responde pela defesa da sobrevivência das formas esquecidas e recalcadas pelas culturas das quais fazem parte. Silviano acrescenta a esse diálogo a encenação, pelo romance, da experiência vivida por um europeu em terras do considerado Novo Mundo, com o objetivo de apontar os esquecimentos e desastres provocados pela ação colonizadora. Mas o que também ressalta nesse cruzamento de culturas efetuado pelo autor brasileiro no artigo citado, é a inserção da obra de Borges na interpretação de Warburg, ao explicar, sob o olhar enviesado, os passos do historiador na criação de uma “ficção teórica”. Por instalar a alteridade no cerne da identidade, altera, como ficção teórica, a ideia de representação, entendida não como forma de pensar, mas de inventar² ⁷ “escritas teórico-críticas lançadas, segundo Marília Rothier Cardoso, por pensadores rebeldes do século XIX, das quais se destacam Nietzsche e Freud”.² ⁸ À feição da poética de Borges, escritor-crítico, situada no limiar entre ficção e ensaio, a experiência do historiador instaura o “saber-
montagem”, igualmente oscilando entre ciência e invenção. Com atenção obsessiva aos detalhes, aos fragmentos e à produção de uma escrita híbrida e por isso poética, Warburg inaugura distinta dicção, revolucionária no campo da história e da antropologia. Na produção de outro triângulo interpretativo, seria possível conceber Warburg como precursor de Borges e de Silviano, pela confluência entre poéticas. Cito o artigo de Silviano:
O estudioso da arte da Renascença ensaia de maneira furtiva e subterrânea os primeiros passos em direção à ficção teórica, passos precursores dos dados por Jorge Luis Borges ao escrever o conto “Pierre Menard, autor do Quixote”.²
A reflexão do historiador referente à sobrevivência das formas reveste-se de importância para a ampliação das associações entre os autores postos em relação. Por reforçar o aspecto paradoxal das temporalidades, tem como proposta a atualização permanente de temas e conceitos, com vistas a afirmar não serem fatos anteriores a origem de outros que lhes sucedem. Descortina-se, com efeito, a releitura que, obrigatoriamente deverá ser feita pelas culturas periféricas quanto à hegemonia cultural estrangeira, pela rasura nas origens e na filiação canônica da literatura. A saída para tais embates estaria no meio, no entrelugar, na aposta de que se sobrevive no presente por meio da substituição das noções de filiação e paternidade pela de aliança. A filiação, em resumo, responderia pela imitação e a identificação, ao passo que a aliança prescreveria a diferença e a alteridade. Didi-Huberman procede à interpretação da sobrevivência warburgiana com a intenção de associar as relações históricas com a cultura e os conceitos aprimorados por diversos pensadores. Contribui, de forma elucidativa, para a reformulação dos conceitos de anacronismo e periodização, presentes em Borges:
A sobrevivência segundo Warburg não nos oferece nenhuma possibilidade de significar a história: impõe uma desorientação terrível para qualquer veleidade de periodização. É uma ideia transversal a qualquer recorte cronológico. Descreve um outro tempo. Assim desorienta, abre, torna mais complexa a história. Numa palavra, ela a anacroniza. Impõe o paradoxo de que as coisas
mais antigas às vezes vêm depois das coisas menos antigas.²¹
O instinto de sobrevivência estaria presente na poética de Silviano, quando emprega na ficção o recurso da mediação e a dramatização do conceito de entrelugar: Em liberdade (1981), Viagem ao México (1995), Machado, (2016), elaboram o procedimento artístico de deslocamento autoral, pela incorporação diferenciada do outro, sem a intenção de imitá-lo, mas de suplementá-lo. O olhar frente à tradição se delineia pela introdução do sujeito-escritor sob o olhar da experiência alheia, do afastamento de si em primeira pessoa a fim de se expressar enquanto estranho a si mesmo. Sobrevive com a voz do outro, metaforiza-se na imagem do escritor biografado que se condensa ficcionalmente na autobiografia. A mediação o situa no entrelugar da tradição literária, sem a prisão ao estereótipo da influência, mas se munindo do aparato do distanciamento enunciativo que lhe impulsiona a narrar. Elege seus precursores na qualidade de contemporâneo, apontando coincidências temporais entre obra e vida, restaurando temporalidades esquecidas e diminuindo a distância entre eles. Inaugura uma literatura que se nutre da alteridade e de uma possível comunidade de escritores que dialogam ao longo dos tempos. Assim também endossa Ricardo Piglia, autor de Silviano Santiago:
A verdade tem a estrutura de uma ficção na qual um outro fala. Criar na linguagem um lugar para que o outro possa falar. A literatura seria o lugar em que sempre é o outro que vem dizer. “Eu sou o outro”, como dizia Rimbaud. Sempre existe um outro aí. É preciso saber ouvir o outro, para que o que se conta não seja apenas mera informação e tenha a forma da experiência.²¹¹
Intérpretes de uma modernidade tardia e da experiência alheia como motor criativo, Piglia e Silviano se impõem na defesa dos lugares intermediários e não excludentes de se produzir ficção. O olhar oblíquo do escritor argentino frente à cultura europeia, o olhar estrábico, como poderíamos entender o desvio de visão expressa em outras ocasiões, reúne dois pensadores da América Latina que se notabilizaram como escritores-críticos. Trata-se da presença de leitores representantes de uma complexa relação transcultural, por se notabilizarem na
condição de inventores de alianças literárias, filosóficas e políticas com os mais distintos pensadores. Ao lado de diferenças de perspectivas autorais e de poéticas, consegue-se vislumbrar a inventiva posição de ambos na apropriação das lições de Borges como precursor de uma aventura em direção à alteridade e ao artifício, à possibilidade de enxertar, brevemente, talvez, a memória de um escritor latino-americano na cabeça de um europeu.
(2020)
193 SOUZA, Eneida Maria de. A memória de Borges. Aletria: Revista de Estudos de Literatura, v 20, n 2, p 27-35, 2010. 194 SANTIAGO, Silviano. O entre-lugar do discurso latino-americano. In: Uma literatura nos trópicos. São Paulo; Perspectiva, 1978, p. 11-28. 195 Este artigo é o desdobramento de outros dois trabalhos, intitulados, primeiramente “A memória de Borges” (SOUZA, 2010), e, em segundo lugar, “Ficções impuras” (SOUZA, 2014), este último também incluído neste volume. 196 LOPES, Denilson. Do “entre-lugar” ao transcultural. In: PEDROSA, Célia; DIAS, Tania; SÜSSEKIND, Flora (org.). Crítica e valor: seminário em homenagem a Silviano Santiago. Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa. 2014, p. 418. 197 BORGES, 1999a, p 98. 198 BORGES, Jorge Luis. Pierre Menard, autor do Quixote. In: BORGES, Jorge Luis. Obras Completas I. 1923-1949. São Paulo: Globo, 1999b, p 498. 199 No original: “Yo espero llegar a una edad sin aniversarios, sin colecciones, sin museos. Tengo un conto que se titula ‘Utopia de un hombre que está cansado’, en el que se supone que todo hombre se dedica a la música, que todo hombre es su proprio Brahms; que todo hombre se dedica a la literatura, que todo hombre es su proprio Shakespeare. Y luego, cuando muere, se destruye toda su obra, porque todo hombre es capaz de producirla. Y no hay clásicos, y no hay memoria, y no hay bibliotecas, desde luego. Porque todo hombre puede producir
una biblioteca, o puede producir una galería, o puede elevar una estatua o construir una casa. […] Que no hubiera… que ningún individuo tuviera nombre. Que todo libro que se publicara fuera anónimo.” (BORGES, Jorge Luis. Carrizo, 1982. In: FERRER, Antonio Fernández (org.). Borges A/Z: la biblioteca de Babel. Madrid: Ediciones Siruela, 1988, p 270, tradução de Graciela Ravetti). 200 SANTIAGO, Silviano. Borges. In: SCHWARTZ, Jorge (coord.). Borges no Brasil. São Paulo: UNESP; Imprensa Oficial; Fapesp, 2001, p 434. 201 SCHWARZ, Roberto. Nacional por subtração. In: SCHWARZ, Roberto. Que horas são? São Paulo: Companhia das Letras, 1987, p 29-48. 202 DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. Tradução de Aurélio Guerra Neto e Célia Pinto Costa. Rio de Janeiro: Editora 34, 2004, v 1, p 37. 203 No original: “Pensé que quizá se podria escribir esa propuesta que falta. Cuál sería la sexta propuesta no escrita para el próximo milenio? Y cuál sería esa propuesta escrita desde Buenos Aires, escrita desde este suburbio del mundo? Como veríamos nosotros el futuro da literatura o la literatura del futuro y su función? No como lo ve alguien en un país central con una grande tradición cultural. Nos planteamos entonces ese problema desde el margen, desde el borde de las tradiciones centrales, mirando el sesgo. […] El intento de imaginar qué valor podría persistir es, por supuesto, una ficción especulativa, una suerte de versión utópica de Pierre Menard, autor del Quijote. No tanto como reescribiríamos literalmente una obra maestra del pasado sino como reescribiríamos imaginariamente la obra maestra del futuro.” (PIGLIA, Ricardo. Una propuesta para el nuevo milenio. Margens/Márgenes: Cuadernos de Cultura, n 2, out 2001, p 3, tradução de Rômulo Monte Alto). 204 SANTIAGO, Silviano. A literatura brasileira da perspectiva pós-colonial: um depoimento. Conferência proferida no POSLIT/UFMG, como aula inaugural. Belo Horizonte, mar. 2015, p 22. 205 Algumas considerações presentes na passagem que se segue são retiradas, em alguns pontos, do artigo de minha autoria, intitulado “Ficções impuras” (SOUZA, 2014), também parte deste volume. 206 SANTIAGO, Silviano. Renascença: movimento gestual. In: SANTIAGO, Silviano. Aos sábados, pela manhã. Organização de Frederico Coelho. Rio de
Janeiro: Rocco, 2013b, p 181. 207 MICHAUD, Philippe-Alain. Aby Warburg e a imagem em movimento. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Contraponto. 2013, p 10. 208 CARDOSO, Marília Rothier. A noção de sobrevivência e o refinamento das tarefas críticas. In: SOUZA, Eneida Maria de; LYSARDO-DIAS, Dylia; BRAGANÇA, Gustavo Moura (org). Sobrevivência e devir da leitura. Belo Horizonte: Autêntica, 2014, p 134. 209 SANTIAGO, 2013a, p 177. 210 DIDI-HUBERMAN, , 2013, p 69. 211 No original: “La verdad tiene la estructura de una ficción donde otro habla. Hacer en el lenguaje un lugar para que el otro pueda hablar. La literatura sería el lugar en el que siempre es otro el que viene a decir. ‘Yo soy otro’, como decía Rimbaud. Siempre hay otro ahí. El otro es el que hay que saber oír para que eso que se cuenta no sea una mera información y tenga la forma de la experiencia.” (PIGLIA, 1999, p 3, tradução de Rômulo Monte Alto).
Fim de jogo — Beckett em Belô
A publicação do livro de Silviano Santiago, Mil rosas roubadas (2014),²¹² merece a devida atenção de seus leitores mais fiéis. Inserindo-se na linhagem auto/bioficcional muito cara ao escritor, desta vez evidencia-se uma diferença substancial quanto às demais produções do autor. No limiar da biografia e da autobiografia, os procedimentos narrativos ganham nova dimensão em sua obra, não só por meio da opção pela ficcionalização, como também pelo teor mais confessional por parte do narrador. Se, em textos anteriores, predominava o recurso à autobiografia ficcional e à diluição gradativa dos gêneros, como Em liberdade, O falso mentiroso, entre inúmeros outros, nesse livro a biografia do amigo Zeca (produtor cultural Ezequiel Neves, falecido em 2010) mescla-se à autobiografia do narrador, nomeado professor aposentado de história. Disposto a confundir o leitor com afirmações ora irônicas, ora pretensamente sérias sobre a arte biográfica, o romance embaralha conceitos, destrói verdades ligadas à autenticidade de fatos e versões, transitando entre o ensaio, a ficção e o encontro de dois amigos na Belo Horizonte dos anos 1950. A narrativa tem como abertura as impressões do narrador diante da morte iminente do amigo, internado em estado grave num hospital do Rio de Janeiro. A proposta biográfica está condicionada à morte e à impossibilidade de o narrador ter sua biografia escrita pelo amigo, por ser o único capaz de realizar tal empresa, segundo palavras um tanto ardilosas do professor. O retrato de artistas quando jovens será construído de modo fragmentário e imaginativo, contaminado pela alternância entre fato e ficção, narrativa assumidamente pautada pela ação de intermediários e de mediações, entre eles, letras de jazz e de rock, referências literárias, cinema e teatro. Por fugir à biografia tradicional e se inserir na narrativa como ator/coadjuvante e, por que não, como protagonista, o biógrafo duplica-se em autobiógrafo e articula o jogo de embustes, uma das muitas formas de amar. As datas registradas para os encontros, partidas para São Paulo e Rio de Janeiro, além de outras, participam do gesto verossímil do romance, assim como nomes de personagens retirados da sociedade belohorizontina da época. Nomes de ruas, de salas de cinema, de lojas de comércio, clubes e demais espaços revisitados pelo narrador enxertam ao enredo o sabor agradável do reconhecimento local, ingrediente capaz de atrair o leitor para a
verdade biográfica, principalmente para aqueles que são familiarizados com o cenário descrito. A foto de Vanessa, musa dessa geração, e personagem-chave para o entendimento da formação literária e social de Zeca, é estampada em página inteira, sem pudor ou precaução em se tornar registro factual do romance. As artimanhas são claramente montadas, um convite à entrada múltipla no texto, seja por meio de empatia, seja por distanciamento diante das referências biográficas. Entre um procedimento e outro, da ficcionalização e atenção aos acontecimentos auto/biográficos, o romance convida o leitor a escolher qual a melhor opção para a fruição literária. Nesse misto de registro e ficção, a narrativa assume o pacto paradoxal da literatura, que, segundo o escritor em entrevista, mantém um pé na autobiografia, na biografia, e outro na autoficção:
Uso e abuso dos dados acontecidos que me são oferecidos pela minha experiência de vida (autobiografia) e pela experiência de vida das pessoas que conheço (biografia). Ponho-me a trabalhar no liquidificador da prosa literária e, no processo de estilização, escorrem mil rosas roubadas.²¹³
A rotina da cidade mineira — provinciana e moderna — é desvirtuada pela aventura vanguardista do cenário intelectual de jovens estudantes que começam a se interessar pela cultura estrangeira que chegava por meio das artes e da literatura. Cultura americana, principalmente no clima de pós-guerra, com a exportação de costumes, da rebeldia da juventude, dos sons eletrizantes do rock, do jazz negro e do apelo ao diferente como arma contra a mesmice e a repetição. As atividades culturais por eles vivenciadas servem de suporte narrativo para a formação de identidades, esboço da trajetória futura do historiador e do artista. Entregam-se fervorosamente ao culto do cineclube, com especial ênfase no cinema-arte europeu, aos espetáculos de teatro, ao fascínio pelas novidades vindas do universo estrangeiro e ao consequente deslocamento da visão provinciana de arte e cultura. Nesse sentido, a imagem de Zeca, filtrada e recomposta pelo seu biógrafo, exerce papel importante na caracterização do ambiente paradoxalmente provinciano e avançado de Belo Horizonte, como no questionamento de clichês referentes à imagem do mineiro como conservador e preso às raízes. A noção estereotipada de província merece ser desconstruída, não só quanto à
saída de escritores e jornalistas da cidade contribuiu para a criação dessa mitologia, mas também quanto à urgência em desmentir o padrão do conceito de modernidade e o avanço cultural como produto das metrópoles, nas quais supostamente se fabricam modelos de toda sorte a serem repetidos pela província. O preconceito vê-se enfraquecido diante de distinta recepção dessa hegemonia nos trópicos, tendo em vista o deslocamento e o teor criativo verificados na releitura das ideias importadas. Não é de todo descartável a aquisição de livros franceses pelos modernistas, na Belo Horizonte dos anos 1920, motivo da prática cosmopolita e do interesse pelos ares de além-mar. No entanto, o fator espacial não justifica as diferenças, por serem a abertura e o convívio com o outro independentes do lugar de origem. A maioria dos escritores mineiros dessa época, e até aproximadamente os dos anos 1970, se debandaram, ao se sentirem portadores de desejos de mudança e de realização pessoal. O amigo Zeca, em Mil rosas roubadas, envolvido pelos sons vindos de fora, desloca os ruídos locais e torna-se inventor de atitudes ao mesmo tempo ímpares e universais: “Mick Jagger tornou universal o diabo belorizontino”. Em virtude do comportamento extremamente envolto num estilo de vida questionadora de nacionalismos e mineiridades, personifica a imagem de uma juventude alheia aos radicalismos e defensora de ousadias no plano cultural. Figura contraditória, entre provinciana e ultramoderna, Zeca é assim descrito:
Mundo, pátria, vida, cidade, jornal, pessoas, cantores, bandas, músicos e produção artística tudo era incrivelmente fantástico e perfeitamente descartável. […] Zeca nunca foi nacionalista. É Chiquita Bacana lá da Martinica (existencialista com toda razão!), que só faz o que manda o seu coração.²¹⁴
O narrador, por trás de uma tese futura sobre Getúlio Vargas, revela-se cúmplice desse deslocamento escancarado do companheiro para o outro e o diferente. A contaminação é mútua, a cumplicidade, sem limite. O descartável seria interpretado como o embate entre viver tudo de forma ao mesmo tempo completa e efusiva, sem a prisão a estereótipos montados pelo senso comum, sem o apego a símbolos nacionais como conduta vital, prazerosa e política. Mas essa cumplicidade é, por vezes, ambígua, considerando ser o perfil do narrador/professor dotado de distinta caracterização. Seu estilo de vida, ao longo dos anos, contrapõe-se ao do outro, por se comportar segundo padrões
legitimados pela sociedade repressora e capitalista. De modo mais radical, Zeca representa a exuberância e o exagero como fruição completa dos prazeres e dos gostos vitais e artísticos. No exercício das crônicas musicais, torna-se igualmente biógrafo e inventor das imagens de cantores e intérpretes do momento, encarna seus ídolos e entrega-se ao desejo excessivo de viver, aos prazeres do corpo e sem preocupações de ordem materialista. Essa inquietação pautava-se pela constante busca de novidades e pelo desejo de ultrapassar as limitações impostas pelas contingências existenciais da província. Contrastava com o estilo de vida do professor/narrador, guiado pelo cumprimento de obrigações profissionais e por ações próprias de um comportamento que se distanciava cada vez mais da rebeldia da juventude vivida a dois. Estaria o narrador realizando um ajuste de contas com o amigo após a morte? Que encontro seria este, um encontro post mortem e pela caução da literatura? Essa tarefa materializa-se por meio da montagem romanesca, urdida pela articulação ambivalente de aproximação e afastamento frente à experiência empírica, esta entendida como instauradora da ficção. O duplo movimento enunciativo tem como componente o recurso à mediação, capaz de relatar o relacionamento entre os amigos pelo viés da vivência conjunta dos lugares frequentados na cidade: a curtição do cinema, do teatro e das predileções musicais, fatores responsáveis pela formação dos teenagers. A metáfora teatral é o leitmotiv do romance, pela relação entre a peça de Beckett, Fim de jogo, e a atuação de Zeca no espetáculo. Encenado em 1958, no antigo Cassino da Pampulha de Belo Horizonte, a peça exerce papel articulador da narrativa e dos ecos presentes na sua construção. O personagem Naggl de Fim de jogo é interpretado por Zeca, ao lado de Nell, compondo-se a imagem de dois velhinhos depositados na lata de lixo. Desprovidos de pernas, recobertos de pó de arroz e talco, seriam, no entender do diretor da peça, a encarnação de “duas figuras humanas que se desfaziam em pó, como o mundo absurdo em que os jovens mineiros vivíamos.” Nesse clima de pós-guerra, a falta de sentido e o desencanto pelo relato de experiências propiciam a convivência da juventude vanguardista com as ideias do teatro do absurdo, conduzidas pelo monólogo e o diálogo inconcluso entre os atores. A focalização no aspecto teatral do personagem o coloca na berlinda, com vistas à realização do exercício biográfico do romance, marcado pela encenação de subjetividades e da teatralização do processo narrativo e autoral. Da mesma
forma que a encenação de Beckett em Belô, logo após a estreia na França, em 1957, sinaliza o ousado empenho do diretor, o papel aí representado por Zeca indicia a função de ator exercido igualmente na própria vida. Sua presença no palco em 1958 é revista ainda pelo gesto biográfico como forma de inseri-lo no cenário ficcional da narrativa, no sentido de uma prefiguração e destino. Iluminá-lo, sem exagerar na dose, esquivar-se da repetição e da cópia de sua imagem, fugir da descrição naturalista de suas frases e comportamento por demais divulgados pela mídia. Sua performance na peça, já anunciada pela falta de sentido e pelo jogo permanente e absurdo dos diálogos humanos, atua como metáfora do perfil a ser desenhado no romance:
Presencio pela primeira vez a magia do grande teatro. Assisto a todos os poucos espetáculos da peça apresentados pelo grupo experimental. As faces embranquecidas pelo pó do casal de personagens velhos, engordados pelas latas de lixo, tornam os atores de baixa estatura mais altos que os personagens jovens e encardidos, Hamm e Clov. Sob os efeitos sucessivos da luz prismática das gelatinas, Nagg brilha e reluz multicoloridamente. Admiro-o também no palco.²¹⁵
E é neste palco da escrita que o personagem — agora duplamente caracterizado — recebe as luzes de sua atuação no texto biográfico, iluminando, de modo igualmente revelador, seu biógrafo. O emprego de mecanismos cênicos na descrição acima introduz, de modo bastante eficaz, a montagem narrativa do romance, com ingredientes extraídos da técnica cinematográfica, recurso utilizado pelo autor em vários de seus textos. Com a mediação da montagem fílmica, o olhar do narrador consegue reativar a memória romanesca, pela luz que emana dos efeitos da escrita. É ainda pelo efeito de distanciamento que é possível se aproximar do passado, pela apropriação do efeito de luz da ribalta, da imagem multicolorida da memória. O jogo e a brincadeira de esconde-esconde, as armadilhas amorosas, os equívocos causados pelos diálogos desacertados e enigmáticos participam desse universo de desencontros e de encontros póstumos. A apropriação de leituras de Zeca, diante da ausência de arquivo deixado por ele, como os livros de Dorothy
Parker, as incursões nas imagens e ídolos de rock, como Mick Jagger, são alternativas para a aquisição indébita do estilo do outro para melhor descrevê-lo. O narrador está ciente de que o estilo roubado funciona como recurso narrativo de segunda ou terceira mão. A ausência de arquivo pessoal ressoa como oportunidade para buscar outras referências, na maioria das vezes, condicionadas pela pesquisa e a memória do narrador. Nessas referências construídas por associações as mais diversas possíveis, as impressões do biógrafo se impõem como texto híbrido, distanciado e ao mesmo tempo partidário da aproximação do sujeito diante do objeto. No pacto ficcional, o narrador posiciona-se como biografado, por estar se espelhando, indiretamente, no outro, graças ao gesto escritural que permite a confissão e sua iluminação cenográfica. Na estruturação da imagem do personagem, o texto de Beckett associa-se à rememoração do jogo encenado e a ressonância como um interlocutor na escrita. As investidas do biógrafo são movidas pelas citações de passagens da peça, recurso capaz de condensar as imagens do ator no texto e do ofício de escritor. Na condição de atores no palco e na vida, Zeca e o narrador contracenam no romance o “Fim de jogo”, focalizados e iluminados pelo reflexo da luz trazido pela escrita e pelo recurso cinematográfico da narrativa. A vida salta do teatro e contamina o jogo permanente vivido pelos personagens, reconstruídos pela iluminação “prismática da gelatina” e do texto de Beckett. Embalada pelas luzes de um filme que se acendiam, sob a batuta do narrador, impera a representação do enredo montado e dirigido pelo olhar do diretor da encenação teatral e fílmica, aparato conseguido pela magia do diretor de cena:
Eu acendia todas as luzes, olhava bem em volta, começava a brincar com o que via. Brincar é o que as pessoas e as coisas mais adoram fazer, certos animais também.²¹
Nos bastidores da narrativa, torna-se impossível desvincular-se do aspecto representativo dos personagens, considerando-se o espelhismo das ações e o aspecto reduplicador, fingido e artificial da construção biográfica, pela escolha do romance como saída para a imaginação e a liberdade criativa. Nesse vaivém da autoficção e da bioficção, os resíduos de vida funcionam no relato como cenas a serem retomadas e revividas no presente, graças à estilização, à
metaforização e ao deslizamento entre próximo e distante dos fatos narrados. Cito:
Estou a escrever romance, reconheço. Adeus biografia. Esta exige referências reais e precisas, e já não sei se o que escrevo é o que deveria ter sido escrito, se o que direi não entrará em conflito com o que tenho dito. O romance alardeia o pânico da imaginação diante do ignorado e acende as luzes do engenho & arte como se, embora indispensáveis na pintura de acabamento do objeto, fossem suficientes para toda a complexa tarefa de rastreamento de uma vida.²¹⁷
Como venho demonstrando, a metáfora teatral compõe o arcabouço do romance, seja do ponto de vista da invenção do perfil de Zeca — ator e exercendo papel de coadjuvante — seja na fabricação astuciosa da narrativa e do jogo cênico. Essa metáfora se expande no nível cinematográfico, ao permitir a enunciação do narrador/diretor de cena, o qual se apropria do recurso memorialístico com desvio de foco, embaralhando os personagens e afastando-se da biografia pela entrada na ficção. No limiar da fidelidade à veracidade dos fatos e sua transfiguração, a mediação teatral atua como força expressiva, englobando história e personagens num enredo que escapa à construção estreita de verdades factuais. No papel de coadjuvante, Zeca poderia ter-se sobressaído pelo natural lugar esquerdo e pouco luminoso de sua função; alçado a protagonista pela projeção e foco de luz lançados pelo companheiro-escritor, sua posição muda de sentido no cenário textual. A escrita biográfica retira o personagem da posição secundária e o entroniza de forma exuberante e pouco reconhecida. Do mesmo jeito que a discussão sobre o conceito de província não mais se sustenta ao longo deste ensaio, a função do coadjuvante assume a posição ambivalente reservada ao protagonista. Em igual situação, o narrador reconhece estar desempenhando papel duplo, entre o que dirige o espetáculo e o que se esconde no “canto obscuro deste escrito”. Novamente as luzes da memória se projetam na celebração vida/morte do protagonista pela arte da escrita:
Meu saber acumulado é que faz o rosto dele brilhar na folha de papel. Sentado no divã do escritório, estive a me esconder em canto obscuro deste escrito — como me escondi em canto discreto do quarto do Hospital São Vicente — para deixar meu amigo ganhar o proscênio da narrativa e reluzir nas partes constitutivas e por inteiro aos olhos do leitor.²¹⁸
Um dos detalhes curiosos presentes na caracterização do personagem Zeca para a configuração artística de sua entrega ao mundo do espetáculo e da ilusão estaria na predileção pelo artifício, ao preferir rosas artificiais a violetas naturais. Essa atitude serve ainda de argumento para a constituição da imagem contraditória do professor, ao associar o ofício de escritor ao trabalho do artesão e do alfaiate. Com objetivos complementares, esses ofícios obedecem a princípios relativos ao exercício da beleza e da perfeição, importante para se entender a poética de vida do narrador, no empenho de se alcançar a pura criação. Na simbiose entre narrador/personagem, obra/vida, eu/outro, autobiografia/biografia, persiste ora o teor irônico praticado na fabricação desconstrutora dos gêneros e conceitos, ora no retrato enganoso de sujeitos e personagens. A artificialidade e roubo das rosas implicam a desconfiança quanto à veracidade dos fatos narrados, assim como afirma a verdade ficcional como estratégia de sublimação do vivido. O artesão e o alfaiate, ao exercerem com paciência e perfeição o gesto criativo, inscrevem marcas e assinaturas no objeto, por acreditarem na lentidão como alternativa à velocidade e ao imediatismo. Auxiliam na configuração irônica da imagem do professor, adepto do ritual austero e despojado da escrita, libertando-se do luxo e do excesso e entregandose à concisão de linguagem e ao sacrifício pelo uso da palavra. Diante da confirmação do controle de seus hábitos, aliado à escolha pela sublimação e pelo enclausuramento, estampados de modo emocionante e ousado no capítulo final do livro, intitulado “Armadilha(s)?”, poderia ser comparada a estética do ofício ao simulacro da estética da vida? O controle, o cuidado com a precisão e o ajuste de contas com a profissão, não seria o contraponto do estilo de vida do amigo Zeca? Singular na opção pelo excesso e o dispêndio, sem um porto tranquilo para a sobrevivência, perder-se na vida seria para ele a melhor forma de ganhá-la. Nesse jogo de contrários, os opostos não se chocam, no sentido de ser o amigo o seu avesso, espelho invertido da arte de se reduplicar no diferente. A confissão do narrador foge e aproxima-se do processo irônico, reitera, desfaz imagens e coloca-se como refém do escrito, sujeito preso na
armadilha das linhas cuidadosamente inscritas no papel. O reviver do outro pela escrita motiva a abertura para as contradições e diferenças reunidas nas imagens dos dois amigos. A morte atua como mediação para a escrita e o reencontro tardio e imaterial entre eles. No entender do narrador biógrafo/autobiógrafo, o excesso de zelo, a vida regrada levada pelas circunstâncias profissionais e existenciais, o desejo de alcançar a perfeição e beleza não poderiam resumir uma das últimas considerações de Foucault sobre o cuidado de si? A transformação da vida em obra de arte, da literatura como continuidade do devir-jogo?
(2017)
212 SANTIAGO, Silviano. Mil rosas roubadas. São Paulo: Companhia das Letras, 2014b. 213 SANTIAGO, Silviano. [Entrevista cedida a] Álvaro Costa e Silva. Silviano Santiago processa verdade e invenção em novo livro. Folha de S Paulo, São Paulo, 8 jun. 2014a. 214 SANTIAGO, 2014b, p 57-58. 215 SANTIAGO, 2014b, p 139. 216 SANTIAGO, 2014b, p 147. 217 SANTIAGO, 2014b, p 164. 218 SANTIAGO, 2014b, p 142.
Machado sobrevive
A forma sobrevivente, no sentido de Warburg, não sobrevive triunfalmente à morte de suas concorrentes. Ao contrário, ela sobrevive, em termos sintomais e fantasmais, à sua própria morte: desaparece num ponto da história, reaparece muito mais tarde, num momento em que talvez não fosse esperada, tendo sobrevivido, por conseguinte, no limbo ainda mal definido de uma “memória coletiva” (grifos do autor).
Georges Didi-Huberman
Ler Machado, de Silviano Santiago, num final de 2016 nem tão promissor, é como abrir janelas para o que há de mais erudito, fascinante e inigualável na literatura contemporânea brasileira. Desta vez o autor inscreve sua assinatura de forma definitiva, retomando métodos criativos anteriormente exercitados, como a fusão e o distanciamento entre narrador e personagem, mas irrompendo em ousadia e liberdade ficcional. No empenho de aglutinar vida e arte, doença e escrita, história e ficção, esse romance/ensaio de 418 páginas inova e embaralha as letras brasileiras, confunde e inquieta o mais fiel leitor, ao exigir paciência e aguda fruição no decorrer de cada página. A originalidade na escolha do tema, Machado em luta com a doença nos últimos quatro anos de vida, não se circunscreve a uma tradicional biografia ficcional, mas se nutre do panorama histórico do princípio do século XX, com o requinte de associações entre personagens, acontecimentos e transformações urbanas no Rio de Janeiro da Belle Époque. O espírito comparativo e a sedução pelos jogos assimétricos e contrastivos da narrativa conferem à obra a audácia dos encontros insólitos, a coincidência de datas e o acaso como gerador de destinos literários. A figura de Machado, inventada pela metáfora da obra/vida, é dominante no romance, embora esteja revitalizada pela presença do ambiente histórico, social e cultural do momento. Na recriação desse ambiente de início de século, personagens até então
inexploradas pela narrativa literária e histórica, como Mário de Alencar, Carlos de Laet, Miguel Couto, Joaquim Nabuco, entre outras, compõem o cenário nem tão eufórico da época, em contraponto às versões até então padronizadas. A modernização da cidade, com a construção de avenidas e prédios modernos, a marginalização dos antigos habitantes e a violência urbana contracenando com a higienização dos espaços, são ironicamente contemporâneas do mal-estar de Machado e de sua vida que se esvai pela doença. O procedimento narrativo do romance retoma a poética autoficcional do autor, na articulação do biográfico como contraparte do autobiográfico, revestindo-se da marca ficcional como razão de ser da transfiguração artística. Se o narrador se configura de modo atuante na escrita e convida ao diálogo com a personagem, os lugares enunciativos começam a se confundir, por serem ambos cúmplices e atores da comédia da escrita. O texto se abre com a imagem de Machado sendo esboçada pela compra, pelo narrador, do quinto livro de Correspondência, editado pela Academia Brasileira de Letras. O material de pesquisa se impõe, com os demais a serem inseridos ao longo do romance, como responsável pelo teor híbrido da narrativa, pautada por fatos comprovados pelos arquivos e por desdobramentos metafóricos a partir desses mesmos fatos. Na conjunção entre documento e ficção reside o valor original desse livro, no sentido de permitir ao leitor a fruição estética que cada um escolhe ser a mais adequada. A paternidade da criação não se restringe a dirigir a atenção para a exclusão de um aspecto a favor de outro, mas a alertar para a abertura que a literatura propicia quanto ao jogo entre polos que interagem e se completam. Pela dicção ensaística do romance justifica-se a inserção da pesquisa como coadjuvante da criação artística e o lugar do narrador como leitor/autor dos textos e das lendas envolvendo as personagens. A transfiguração autoral — a admiração por Machado e a resolução de escrever sobre ele — condensa as figuras do narrador e da personagem e obedece, a princípio, ao critério temporal, pelo fato de o dia e mês da morte do escritor — 29 de setembro — coincidir com o nascimento de Silviano. No processo de transfiguração reforça-se a ideia de sobrevivência do escritor em outro, já que a coincidência das datas indica o destino literário registrado pelo nascimento. Compreende o gesto de viver, pela escrita, da morte do outro, que nada mais é do que o viver póstumo da literatura. Destino literário que se instala entre morte e vida, entre o teor virtual das duas instâncias, uma vez que no espaço literário acontecimentos convertem-se em metáforas. A narrativa se inscreve sob o signo da ficção, em que o narrador penetra e encarna o tomo V do livro de
Correspondência:
Transfiguro-me. Sou o outro sendo eu. Sou o tomo V da correspondência de Machado de Assis: 1905-1908. […] Ao caminharem aleatoriamente pelo caminho trilhado pelo fantasma de Machado de Assis nos quatro últimos anos de vida, as fantasmagorias do narrador deste livro sobrepõem o dia e mês em que nasço em 1936, 29 de setembro, ao dia e mês em que morre o grande escritor em 2008, 29 de setembro. O narrador sobrepõe o personagem nascido numa distante cidade interiorana de Minas Gerais ao protagonista morto na capital federal do Brasil. Na aposta sobre o futuro da literatura no século XXI, a sobreposição desencontrada dos dois corpos e das duas vidas, o desembestado e atrevido encontro das duas sensibilidades é armado pelo jogo de dados do Acaso e sinaliza como dia natural para toda reencarnação de Machado de Assis o penúltimo do mês de setembro.²¹
É a partir da correspondência que o narrador recria a convivência de Machado com Mário de Alencar, filho de José de Alencar e seu protegido, estreitando laços de amizade entre o famoso escritor e outro de pouca importância para as letras brasileiras. Os bastidores da eleição para a Academia Brasileira de Letras do preferido de Machado, as intrigas e invejas reinantes na disputa compõem o quadro de animosidade entre os pares, da mesma forma que introduz o eixo dramático da obra, a relação íntima de amizade entre os dois escritores. Unidos pela doença — Mário sente-se impelido pela mimetização do mal que aflige o escritor — e pela troca de favores e atenções, são aqui registrados os últimos anos de vida de Machado. Solidão e angústia são motivadas não só pela condição de viúvo, mas também pelas limitações vitais devidas à epilepsia, o “pecado original”, a que ele se refere sob a forma de metáfora. Com esse cenário, é possível detectar a presença assimétrica e conflitante da questão do duplo, na qual as diferenças superam as semelhanças, assim como os pares convivem segundo princípios contraditórios. A estreita relação entre eles revive situações de muitos dos artistas consagrados, os quais dependem da ajuda de pessoas que nem sempre correspondem à sua importância, como é o caso de Proust e a governanta, para citar apenas um exemplo.
A trama romanesca compõe-se de dez capítulos, durante os quais o narrador, sem economia e com riqueza de detalhes, articula vida e obra do protagonista, visita lugares e expõe imagens ao longo do texto, que vão de reproduções de charges jornalísticas, anúncios, verbetes de livros de medicina homeopática, brasões de famílias ilustres, fotos de palacetes e a decoração de interiores, detalhes arquitetônicos, gravuras do Rio antigo, fac-símiles de cartas e assim por diante. O recurso visual, longe de constituir mera ilustração, reforça o aspecto documental e artesanal da obra, a pesquisa nos diversos arquivos da época, ao lado da necessidade de ultrapassar o factual livresco, jornalístico e histórico. Nada é gratuito e tudo é significativo, quando relido de forma a ressaltar a opção do narrador pelo valor simbólico e interpretativo das cenas. A escrita é o resultado do gesto de leitura, por meio da qual narrador e leitor se equivalem. As reproduções, uma vez inseridas nas páginas do romance, funcionam como texto ficcional e respondem pelo teor ambivalente da recepção do livro: a distinta fruição que cada leitor irá experimentar, do crítico literário ou historiador ao leitor comum. A dificuldade em resumir o enredo da obra reside na multiplicidade de cenas, de associações entre personagens, do cruzamento ardiloso entre arte e vida, além das idas e vindas da escrita, das pausas, retomadas dos temas e cortes na trama. O narrador atribui à escrita de Machado ritmo convulsivo, em consonância com as ausências e convulsões causadas pela doença, na defesa do resultado original atingido pelo autor na superação da falta orgânica. Da mesma forma, o narrador assimila a dicção e o delírio criativo ao mimetismo corporal do texto, com o intuito de transfigurar a imagem simbiótica da vida e obra de Machado. Trata-se da conversão da doença em metáfora criadora, sem que haja a intenção de repetir os estereótipos da crítica tradicional, por meio dos quais se justificava a obra pela redução ao biografismo. Rompendo com a linearidade discursiva e o apego obsessivo ao realismo, a narrativa de Machado mimetiza o transe enviesado da confluência entre escrita e corpo: “Corte, abertura e digressão, se somados, são a forma mais autêntica e corajosa de Machado interromper, subverter e corroer a tradição oitocentista do romance realista que caminha na cadência do sentido linear e evolucionista da trama e da história social.”²² Por essa razão, o narrador entende ser a proposta artística machadiana “convulsiva por natureza”, em que a busca da perfeição se pauta pela conjunção entre a falha orgânica e a originalidade de sua arte. Remédio e veneno se equivalem, e a arte, ao ser alimentada pela falta, revigora-se como cura. No entender do narrador, ela seria “o mais eficaz de todos os remédios humanos. O melhor deles.”²²¹
O Rio de Janeiro, cidade de papel aí desenhada, destaca-se como parte integrante do enredo, sem funcionar como mero pano de fundo. O velho e o novo integram a paisagem urbana, estampados na feição arquitetônica modernizante das avenidas, no embate político entre monarquia e república, na abolição da escravidão e na escrita/vida de Machado, convulsiva, revolucionária e testemunha das contradições dos tempos modernos. Revisita ainda, em camadas superpostas, a história das compras e restaurações dos palacetes públicos e privados, como o do médico Miguel Couto, os palácios Monroe e do Catete, transformados pela troca de seus proprietários, em virtude da decadência financeira. O Rio civiliza-se e destrói velhos espaços, com o surgimento da mentalidade do novo rico que viria substituir os hábitos dos antigos fazendeiros de café. O ritmo convulsivo urbano, as idas de Machado ao médico Miguel Couto, as anotações do escritor durante as crises para efeito de diagnóstico, as cartas trocadas com Mário de Alencar, as receitas homeopáticas para aliviar as crises, tudo isso compõe o extenso e minucioso relato do romance. A ida às fontes da obra/vida de Machado se sobrepõe à diferente genealogia de uma cidade descrita por historiadores, por estabelecer analogias e defasagens entre a escrita literária e a feição arquitetônica vigente, com seu ideal de simetria, harmonia e ordem. Pela mediação da arte arquitetônica e decorativa, o narrador compara a assimetria da obra machadiana com a produção do decorador e artista plástico alemão Frederico Steckel, responsável tanto pelo conjunto arquitetônico da praça da Liberdade de Belo Horizonte, como da restauração do palacete de Miguel Couto. Outra retórica, outra eloquência, envolvendo as relações sociais e políticas:
Norteadas pelo sentido absoluto do progresso técnico-científico, a estética da oratória e a da arte em fins do século XIX e princípios do século XX preservam o eixo de sustentação central de toda e qualquer obra como fundamento da correspondência justa entre as partes opostas, redundando no elogio indiscriminado da simetria reflexiva como modo de descrição das relações humanas no plano social e político.²²²
Uma das importantes articulações do romance envolve a utilização da mediação como procedimento eficaz para a subversão das oposições e a construção do falar oblíquo do narrador. O primeiro argumento reside na poética enviesada de
Silviano, ao escrever sobre si e sobre a literatura por meio da imagem do outro, experimentações realizadas com Graciliano Ramos (Em liberdade) e Artaud (Viagem ao México). Comportando-se como leitor e narrador, inscreve-se no texto como autor que elege uma linhagem literária, impondo-se na qualidade de continuador e sobrevivente. Com Machado, idêntica obsessão. Uma história literária encenada não só pela escolha do sujeito individual, mas pela geração de escritores dos séculos XX e XXI. Narrar os últimos anos do escritor não se circunscreve apenas ao presente, mas é motivado pelo recurso anacrônico do tempo, pela revisita à sua obra e pelo paralelo criado em torno de suas personagens. O segundo argumento estabelece, na relação entre pares, a intromissão de um terceiro elemento que relativiza a operação e esclarece posições em conflito. A mediação exercida por outras personagens abre o jogo mimético exercido entre os duplos e desfaz simetrias entre eles. Entre Machado e Mário de Alencar, por exemplo, insere-se a figura de José de Alencar, escritor renomado e pai biológico do amigo, escolhido por Machado como seu patrono ao assumir a cadeira na Academia Brasileira de Letras. Seu papel mediador configura-se pelo estabelecimento da metáfora familiar de modo indireto. Por intermédio da carta endereçada a Machado por Alencar, em 1868, Mário — seu filho espiritual — irá solicitar-lhe o envio da cópia, a lápis, do pai biológico. A consolidação do triângulo literário filia-se ao familiar, no qual se legitima a continuidade literária do filho pelo pai legítimo e pelo espiritual. Condensam-se, em palimpsesto, a escrita original e a cópia, a favor da continuidade das gerações literárias e da conquista, mesmo que tumultuada, da posse de Mário de Alencar na Academia: “A cópia a lápis garante a Mário que é ele próprio quem — de posse do rascunho de 1906 — que é a reprodução ipsis litteris da carta de 1868 — intervém de modo subversivo no ciclo evolutivo das gerações literárias”.²²³ É ainda por meio da imagem familiar retirada da Bíblia e apropriada por Machado do nome de um dos filhos de José, Manassés, pseudônimo do autor no conto “A chinela turca”, publicado inicialmente na revista editada por Nabuco, que o narrador articula a relação intelectual entre Machado e o político do Império. Por meio da escolha do pai pelo filho mais novo (Efraim) e não o mais velho (Manassés), contrariando as leis da progenitura, é que o pseudônimo atua como peça a ser montada no relacionamento intelectual entre os dois expoentes do pensamento brasileiro da época. Machado, o mais velho, o que “traz gravados no nome próprio todos os padecimentos sofridos pelo pai”, não é o escolhido, sendo substituído por Efraim, o fecundo, (mais uma vez o nome próprio José
atua como mediador). As diferenças entre eles são pontuadas pelo narrador, na intenção de ressaltar a união entre literatura e política, entre esterilidade e fecundidade, entre branco e negro. Na defesa da abolição da escravatura, Nabuco e Machado, em uníssono, se complementam e tornam-se companheiros fraternos:
No palco da literatura, os gestos sugestivos e silenciosos do mímico africano maquiado de branco, se transportados para o palanque da praça pública e da Câmara, se expressariam pela fala aberta e clara do político branco a defender a alforria dos escravos africanos. Os sinais mais evidentes da complementação dos gestos de Machado pelas palavras de Nabuco, das vidas de Machado e de Nabuco pelo respectivo projeto literário e político, se localizam nos primeiros anos da década de 1880.²²⁴
A polêmica Alencar/Nabuco, travada no jornal, seria outro meio indireto de aproximar Nabuco de Machado e refletir sobre os caminhos do pensamento literário e cultural brasileiro quanto à questão identitária do final do século. Entre o espírito cosmopolita e revolucionário do político, contracenava a defesa de uma literatura nacionalista em Alencar, aproximando-se, assim, Machado das ideias de Nabuco. Nesse triângulo aí criado, a presença de José de Alencar funciona como contraponto à proposta de ambos, sem que essa posição desmereça a importância que o escritor cearense representa para Machado e a literatura brasileira. A leitura de Machado não se esgota facilmente nestas poucas páginas aqui descritas. Aos múltiplos e atentos leitores, a escolha do melhor caminho de entrada no espetacular delírio romanesco encenado em torno da obra/vida de Machado de Assis.
(2017)
219 SANTIAGO, Silviano. Machado. São Paulo: Companhia das Letras, 2016, p
49, 52. 220 SANTIAGO, 2016, p 281. 221 SANTIAGO, 2016, p 269. 222 SANTIAGO, 2016, p 226. 223 SANTIAGO, 2016, p 169. 224 SANTIAGO, 2016, p 390.
O espectro de Dostoiévski
David Attwell, no livro de 2015, J M. Coetzee and the life of writing, considera ser a obra do escritor sul-africano dotada de forte tendência autobiográfica, com argumentos pautados pela relação indireta entre fato e ficção. Segundo o crítico, a maioria dos livros do autor discorre tanto sobre acontecimentos vinculados à vida política e social de seu país natal como traduz inquietações e experiências vividas por personagens as quais se aproximam do perfil do escritor. No entanto, acrescenta a singular condição de estar Coetzee presente e ausente de sua ficção, por simular o processo de mascaramento e distanciamento artístico. Nas palavras de Attwell, a preferência do autor pela impessoalidade demonstrada no gesto criativo não consiste no repúdio do sujeito a favor da arte, mas na relação paradoxal e na rasura dos dois polos conflitantes, quais sejam, a ficção e a vida. Ao investir na leitura de ordem biográfica, o ensaísta acentua a dificuldade em limitar a verdade do texto às fontes biográficas, mas de entender como o eu está irremediavelmente inscrito na ficção, na impressão de sua presença opaca.²²⁵ Curiosamente, Roland Barthes e T S Eliot são escolhidos como próximos à atitude impessoal do escritor, por representarem uma posição crítica avessa ao biografismo e por defenderem o estatuto da escrita como dispositivo que importa em termos de abordagem analítica. Embora o ensaio bastante conhecido e polêmico de Barthes, “A morte do autor”, tenha sido revisto posteriormente, ao ser introduzida a figura autoral como peça-chave da interpretação literária, o sujeito que retorna investe-se ainda de mascaramento e ficcionalidade. Em Barthes, destaca-se sua formação teórica, valendo-se da herança de Eliot como traço fundante da recusa ao culto da personalidade que dominou por muito tempo o panorama da crítica positivista e humanitária. O discurso literário de Coetzee, ao efetuar o amálgama entre autobiografia e ficção, acrescenta às teorias de Eliot um ponto a mais: insere-se entre duas instâncias, antes ligadas pelo biografismo e agora reunidas pela oblíqua relação entre elas. Nesse sentido, recupera a lição de Barthes, criador do conceito de biografema, e exemplo eloquente da necessidade do deslize paradoxal entre obra e vida. A enunciação cerebral de Coetzee nos escritos delineia-se igualmente pela exploração da metaficção como questionamento da literatura e de seus artifícios, pela recriação de situações literárias conhecidas, de reconstrução de perfis de
escritores e teóricos, o que o torna um tipo de leitor que se aproxima e se distancia de sua experiência particular e de outrem. O próprio nome artístico, assinado com as iniciais J M. de forma despersonalizada, ressurge em fragmentos nos demais textos, como “JC” e “Senhor C” em Diário de um ano ruim ou “John” em Elizabeth Costello. Essas personagens encarnam imagens/máscaras do escritor J M Coetzee, as quais se destituem das marcas identitárias quando se inserem em obras ficcionais ou parcialmente ficcionais. Um dos mais significativos exemplos do comportamento esquivo de Coetzee diante do ímpeto autobiográfico reside na comparação entre a deformação das árvores inclinadas pelo vento no campo de golfo de Simonstown, na Cidade do Cabo. Assumindo formas contorcidas, os pinheiros são para o escritor um emblema tanto para situar os efeitos relacionados ao lugar e à história das personagens, quanto para elaborar o texto de suas memórias. Por uma associação de ordem quase atávica, os pinheiros estariam em perfeita coincidência com o sentimento de deformação do autor frente ao país de origem. A herança estrangeira, marcada pelos campos de golfe e pela prática desse esporte, é denunciada como causa da deformação de seus habitantes, pelos reveses da colonização. Nas anotações feitas durante a preparação do texto autobiográfico Infância, de 2010, narra os anos passados na sua Worcester rural, enfatizando a contribuição do lugar, a África do Sul, para a formação da distanciada e deformada experiência nos planos vital e ficcional. David Attwell assim se expressa:
Voltando o olhar para os anos de sua infância passada na área rural de Worcester que está prestes a descrever, ele anotou em seu caderno: “Deformação. Minha vida deformada ano após ano, pela África do Sul. Emblema: as árvores deformadas nos campos de golfe de Simonstown”. Ele estava fazendo referência aos pinheiros do campo de golfe de Simonstown na Cidade do Cabo. Trata-se de árvores exógenas que foram expostas ao vento sudeste que sopra continuamente do Atlântico Sul. Plantadas ali para demarcar o jogo e para oferecer sombra, as árvores desenvolveram formas contorcidas, como se quisessem zombar dos saudosos fundadores do clube. Os pinheiros de Simonstown são emblemas certamente sombrios para simbolizar os efeitos do lugar e da história sobre a personalidade de alguém, mas, na escrita de suas memórias, Coetzee também consegue encontrar afirmação em ser um filho da África do Sul.²²
A discussão que ora realizamos em torno da ficção autobiográfica do autor deverá ser acompanhada de seu duplo, ou seja, da autobiografia ficcional, por revelar, em ambas as propostas narrativas, o traço biográfico de forma impessoal e transfigurado pela arte. Não é gratuita a posição de Coetzee, já consagrado e ciente de sua verdade poética, afirmar em entrevista que “toda escrita é autobiográfica” e “toda autobiografia é arte de contar histórias.”²²⁷ No gesto ambivalente de desaparecimento e revelação, em virtude do processo lúdico das máscaras identitárias, o escritor produz com astúcia o jogo ficcional, ao se reduplicar por meio de imagens alheias, o que resulta na procura incessante de conhecimento próprio. A literatura explora o tema do duplo como metáfora da dessubjetivação autoral e do conflito entre personagens, com vistas a ampliar o espaço ficcional e a promover o diálogo entre obra e vida. Escritores contemporâneos elegem figuras canônicas como inspiração para o ato artístico, revisitam obra, inventam vidas conforme o interesse e a liberdade narrativa. O deslocamento da voz autoral e a fabulação de personagens-escritores motivam a presença da figura do duplo como procedimento gerador de metanarrativas com vistas a espelhar, ao avesso, poéticas literárias. Na elaboração oblíqua dessa proposta, a mediação é instrumento eficaz para a operação de distanciamento da escrita, uma vez que se perde o domínio da enunciação, quando a terceira pessoa se impõe de modo flutuante e ambíguo. A aproximação do sujeito/narrador frente ao duplo não se efetua diretamente, mas se vale do jogo espectral e paradoxal entre o modelo e sua apropriação. A ficção que se nutre de outras, a literatura como geradora de literaturas, escritores cuja obra/vida converte-se em tema literário, compõem um dos inúmeros artifícios endossados pela escrita de grande parcela da ficção atual. A noção heterogênea do duplo não se restringe à ideia de conciliação ou de semelhança, reveste-se de aspecto múltiplo e afasta-se de qualquer intenção identitária. Entre a sensação de amor e ódio, de homenagem e traição, o diálogo produzido pelo escritor J M Coetzee e Dostoiévski, em O mestre de Petersburgo — texto do qual retiro essas ideias — responde pela escolha da voz de outrem que fala em seu lugar. Delegar ao outro esse lugar o coloca na condição de personagem, por reiterar a função do narrador como escritor-personagem, que se inscreve sobre a página do já escrito. A possessão da escrita alheia significa, de forma paradoxal, tanto o suposto encontro do sujeito consigo próprio quanto seu desencontro, incentivado pelo desejo de incorporação como forma de
sobrevivência. O enredo do romance tem como enfoque o escritor Dostoiévski, personagem de Coetzee; após a morte de Pável, seu enteado, decide voltar a Petersburgo para desvendar o destino trágico do jovem, que teria supostamente cometido suicídio. Aloja-se na mesma casa e no quarto antes ocupado pelo enteado, espaço marcado pela sua presença, pelo resquício de vida impregnado nos objetos, como o odor das roupas guardadas na mala, revelando a ilusão de estar imaginariamente em contato com o jovem. A senhoria, a filha e o escritor/personagem convivem de modo turbulento, unidos pela lembrança de Pável e pelo laço afetivo antes existente entre eles. Relacionar-se mais intimamente com as mulheres representaria para ele o esforço de superar a experiência perdida com Pável. Nietcháiev, revolucionário e suposto assassino do enteado é retirado de uma das personagens de Os demônios, outro livro do autor russo, e incorporado ao enredo com perfil semelhante ao modelo dostoievskiano. Os problemas políticos existentes na Rússia no final do século XIX, especificamente na cidade de São Petersburgo, guardam semelhanças com o ambiente sul-africano que pôs fim ao regime do apartheid. Ao lado dessa constatação, ressalte-se a presença de um homem angustiado e sofredor, atormentado pelo sentimento de desencontro de quem perdeu um ente querido no meio do ambiente hostil e violento. Coetzee, deslocando a narrativa para outro país e outro século, produz o exercício intertextual, no qual entrelaça traços biográficos de Dostoiévski com os autobiográficos, embora sejam aí processadas distorções e invenções. A morte do filho do autor sul-africano, em circunstâncias ambíguas, reduplica-se em Pável, nome do filho de Dostoiévski, embora este tenha sobrevivido ao escritor na vida real. A multiplicidade de fatos discrepantes da realidade de cada um impede que o livro seja analisado como cópia fiel, por se configurar na sua dimensão ficcional. No entanto, o procedimento autoficcional do romance não elimina o recurso à mediação assumida pelo narrador, ao escolher falar de si por meio de outrem, delegando ao escritor russo o protagonismo da história. Os polos da vida e da arte convivem de modo ambíguo, sem que haja a predominância de um sobre outro. Servem para embaralhar a esperada fidelidade aos acontecimentos por parte da sua reformulação narrativa. O papel exercido pela escrita literária desempenha função importante no livro, por introduzir a reflexão sobre o lugar do escritor e do intelectual em luta contra dois desafios: as desavenças pessoais e políticas entre pai e filho e a descrença
no caráter utópico da revolução social. No primeiro caso, a narrativa nutre-se de inúmeros procedimentos ficcionais com o objetivo de promover o encontro virtual entre pai e filho, como o sonho, o delírio, a relação com a mulher e a filha, como a personagem Nietcháiev, recomposta na condição de duplo de Pável. A incorporação física pretendida ocorre por meio do encontro sexual deste com a pessoa que abrigou o filho, assim como o gesto simbólico de vestir seu terno branco, transfigurando-se em sua pele. Esses rituais alucinatórios causados pelo sonho e o delírio são ainda efeito dos acessos epilépticos do escritor, uma das muitas razões de se entender as idas e vindas do texto, as ausências e fragilidades demonstradas no ato escritural. A possessão inconsciente pelo outro, as visões oníricas do filho/criança em dificuldade, tentando escapar do naufrágio, são momentos determinantes para a expressão da ausência como empecilho da união entre eles. A relação ambivalente que se instala nessa cena denota a angústia pela perda e o embaraço causado pela evocação perversa, motivada pela presença da água: o aspecto líquido do sonho e a precariedade da vida. O afogamento do filho em sonho metaforiza a morte, à medida que o menino clama por ajuda enquanto o pai não consegue salvá-lo. A atmosfera líquida do sonho reforça a impossibilidade de reter uma imagem, o deslizar aflito do desencontro:
Enquanto nada, às vezes abre a boca e solta o que pensa ser um grito ou um chamado. A cada grito ou chamado a água invade sua boca: cada sílaba é substituída por uma sílaba de água. Ele se sente cada vez mais pesado, até que o osso do seu peito raspa o leito do rio.²²⁸
Em sintonia com o espectro do filho, a escrita passa a ser igualmente espectral, por manter a tensão entre morte e vida, no desejo de fazer renascer o texto que Pável deixou escrito. O narrador, por seu lado, ao condensar na figura da personagem o encontro virtual com o filho morto, reescreve o texto de Dostoiévski, presente no enredo de Os demônios, inventa uma biografia e inscreve a história do romance sobre o diário de Pável. Na forma de um palimpsesto, a escrita de segunda mão espelha a imagem dos modelos, reagindo ao fantasma da semelhança e almejando sua sobrevivência como saída para a atualização da autobiografia ficcional.
O termo espectro, na acepção de Jacques Derrida — via Hamlet, de Shakespeare — desfaz a dicotomia entre vida/morte, por considerar a morte mola propulsora da própria vida e vice-versa. No seu entender, torna-se fora de propósito celebrar o fim das coisas e do tempo, uma vez que a escrita já anuncia a ausência como modo de sobrevivência, pela exclusão da ideia de desaparecimento total. Como a escrita, reformula-se o preceito da meia-presença, comparável ao espectro, à lembrança, ao texto alheio. Nas palavras de Charles Ramon, em artigo em homenagem a Derrida, todo escrito tem valor testamentário, o que redimensiona a morte para além de sua natureza puramente factual. À luz da interpretação filosófica, conviver com a morte seria relegá-la ao lugar de espectro e não de finitude:
Obra e assinatura são a construção pelo autor de seu próprio túmulo, de seu monumento: ele se escreve, se assina, se enterra e se torna estátua do mesmo gesto.²²
O escritor/personagem assume a morte como artifício, uma das justificativas para restituir a imagem do filho, projetando-se nele e confundindo-se com seu espectro. A troca simbólica revitaliza o processo de reescrita, cujo enredo é resultado da repetição e da encarnação do diário inacabado de Pável. Reescrever esse diário significa encontrar-se, pela ficção, com seu primeiro autor, dando continuidade à morte/vida do outro. O romance termina com o texto duplicado, quando Dostoiévski dá início à narrativa de Os demônios e entrega-se à força da literatura, por esta exercer função libertadora e eficaz diante da perda:
Em seu texto, está no mesmo quarto, sentado à mesa do mesmo modo como está agora. Mas o quarto é de Pável, e somente dele. E ele não é mais ele mesmo, nem um homem no quadragésimo nono ano de sua vida. Pelo contrário, é novamente jovem, tem toda a força arrogante da juventude. Veste um terno branco perfeitamente cortado. De certa forma, também é Pável Isaev, embora Pável Isaev não seja o nome que dará a si mesmo.²³
O segundo desafio, a descrença no valor utópico da revolução social, reúne as imagens de pais e filhos, sejam as de Dostoiévski e Coetzee, sejam as de Pável e de Nietcháiev. Na função de duplos, defendem posições antagônicas, à medida que a paternidade é confrontada pela rebeldia e os desejos libertários dos filhos. A situação política aproxima a Rússia pré-revolucionária da África do Sul, da mesma forma que tende a pôr em xeque a posição intelectual dos dois escritores. Não resta dúvida de que Coetzee sempre foi crítico das radicalidades cometidas pelo governo sul-africano, como é demonstrado em toda sua obra. Em O mestre de Petersburgo, vale-se da figura de um autor canônico para expor sua conduta reacionária, nitidamente manifestada em Os demônios. Torna-se problemática, no entanto, a associação direta entre eles, a ponto de se afirmar ter sido Coetzee defensor de posição política conservadora. A estratégia narrativa em recriar a imagem de Dostoiévski como personagem consiste no gesto profanatório de Coetzee, o que impede considerar a ficção como prova de verdade e expressão fidedigna das ideias do autor. O empenho em retratar ficcionalmente o escritor russo permite o emprego de uma série de distorções e traições ao modelo utilizado. Descarta-se a transposição literal de aproximações envolvendo questões políticas em função de ser o romance — como toda produção literária do autor — pautada pela ambivalência e a ironia. O procedimento de apropriação literária tem o poder de impedir que atributos próprios às personagens sejam convertidos em desejos explícitos do autor. É possível encontrar no ato de enunciação da narrativa em terceira pessoa a crítica dos filhos ao poder paterno, à utopia revolucionária como resposta negativa ao regime político estabelecido. Sem a intenção de culpabilizar um dos polos familiares, registram-se tanto a inércia paterna quanto a vitalidade filial, a fim de apontar o conflito entre gerações e o trágico desencontro entre elas. O abandono dos filhos reside no drama que se impõe em termos familiares e políticos, ao sinalizar a impotência do Estado em resolver os problemas de corrupção e terrorismo. O niilismo substitui a utopia e os valores são colocados em xeque. A personagem de Nietcháiev é moldada para ser vista como o duplo de Pável: assume sua voz, dirige-se politicamente contra o pai e assume o perfil do jovem revolucionário, destruidor dos laços familiares e defensor de atividades anarquistas. Combate de forma cruel o escritor, pela posição reacionária e aristocrata, o que resulta numa imagem paterna fracassada, pela incapacidade de se impor no cumprimento de sua função. O transtorno familiar não deixa de
insinuar e alegorizar a situação turbulenta da política russa e da sul-africana. O repúdio à figura paterna, com toda a força legada pelo imaginário romanesco dostoievskiano, espelha a criação de falsos genitores e de descendentes perversos. A revolta contra a instituição familiar incita as desavenças e instaura a anárquica proposta revolucionária. Nas palavras de Nietcháiev:
Pável Isaev foi nosso camarada. Nós fomos sua família quando ele não tinha família. O senhor viajou para o exterior e o abandonou. Perdeu o contato com ele, tornou-se um estranho. Agora surge do nada e faz acusações loucas contra os verdadeiros parentes que ele teve no mundo. Sabe quem o senhor me lembra? Um parente distante que aparece à beira do túmulo com sua mala, surge do nada para reclamar a herança de alguém que nunca viu. O senhor é primo em quarto grau, quinto grau de Pável Alexandrovitch, e não pai, nem sequer padrasto.²³¹
Constata-se que em O mestre de Petersburgo o diálogo entre ficção e história não se limita ao procedimento especular e às equivalências entre as duas instâncias, mas suplanta a dicotomia e abole a conjunção entre ambas. A violência demonstrada na captura da história transforma-se em poder da escrita na sua capacidade incrível de descortinar caminhos e alertar sobre equívocos interpretativos. Nas palavras de Raphaëlle Guidée, no artigo “À espera dos fantasmas: Foe e O mestre de Petersburgo”, Coetzee se filiaria aos escritores que defendem a ficção na sua natureza reflexiva e histórica:
Ao encontro de uma ética do testemunho que recorre à ficção na escrita da violência histórica, Coetzee propõe, como em contextos diferentes Imre Kertész ou W. Sebald, ficções que são às vezes reflexivas e históricas, e que propõem também, através de espelhos da própria ficção, uma espécie possível de ficção. Espécie original, diga-se, que passa pela exibição de um material substancial a partir do qual a obra de ficção se constitui (material literário e real): a obra contém sua própria fabricação, seu próprio arquivo. Solução aprovada, numa verdade possível da ficção, num retorno da referência que apreende a espiral ficcional, e na afirmação de uma ética que considera a dúvida ontológica da ficção.²³²
Coetzee, escritor responsável por uma escrita nômade, convive de forma conflitiva com as diferenças históricas, escreve a partir de experiências próprias e alheias, assim como despreza a concepção estreita e nacionalista de pátria, entendida como verdade absoluta. Apega-se à razão literária como pátria e prática moventes, confundindo-se com a voz alheia e dela se afastando, na esperança de se expressar de modo marginal e de inserir-se no quadro de um dos grandes expoentes da literatura globalizada.
Um escritor brasileiro em São Petersburgo Bernardo Carvalho publicou, em 2009, O filho da mãe, como parte do projeto intitulado “Amores Expressos”, em que cada escritor era convidado a se deslocar para uma cidade estrangeira com a incumbência de escrever um romance nesse período. O livro se passa na cidade de São Petersburgo, com rápidas cenas em Moscou, no mar do Japão, no Oiapoque, e em outros lugares pertencentes à Rússia. O tema da maternidade, explorado no romance, articula-se com o da guerra, do amor e da morte, sentimentos contraditórios que são responsáveis por momentos de rara beleza no decurso da narrativa. O estranhamento, que à primeira vista o texto provoca no leitor, deve-se à original produção gráfica e ao sentido do título, sugerindo, ambos os procedimentos, uma publicação semelhante aos moldes de uma pulp fiction, ficção que explora temas menos nobres, de natureza popular e de massa. O aspecto da capa do exemplar remete à imagem de um exemplar velho e usado, em diálogo com a acepção residual do título, xingamento que remete à bastardia, traço irônico atuante nos dramas centrais do romance. Quem imagina São Petersburgo como a cidade literária por excelência, povoada de personagens que transitam nas ruas, como os funcionários de Gogol ou o próprio escritor Dostoiévski, depara-se com os fantasmas que essa mesma literatura consagrou, graças ao clima sombrio e misterioso aí recriado por Carvalho. O cenário em construção das ruínas da cidade — em 2003, às vésperas da comemoração de seus trezentos anos — encena a alegoria desse romance: os resíduos do passado político e cultural do país presentificam-se no descompasso entre a liberdade revolucionária e a máquina ditatorial e corrupta do Estado. Envolvidos nesse clima sufocante, dois jovens “estrangeiros” encontram o amor
e a morte como únicos recursos para conseguir ultrapassar as trezentas pontes de São Petersburgo. Os protagonistas — Ruslan, nascido na Chechênia, e Andrei, fruto da união de um exilado político brasileiro e uma russa, natural de cidade fronteiriça com a China — estão em constante conflito com o tecido urbano, dotado de visibilidade e controle. Fogem, escondem-se e encontram-se perigosamente no meio de prédios abandonados da cidade: “De alguma forma, Ruslan passou a associar o amor ao risco e à guerra, porque não conhecia outra coisa. Associou o sexo à trégua (o desejo deixava a realidade em suspenso) e o amor à iminência da perda. E daí em diante só conseguia amar entre ruínas.”²³³ O enredo de O filho da mãe obedece aos malabarismos próprios da técnica parapolicial, pela inversão da ordem narrativa e a produção de efeitos de suspense, um instigante convite ao diálogo ficcional e à leitura igualmente sedutora. Esse pacto entre escritor e leitor é uma das inúmeras razões do sucesso editorial de Bernardo Carvalho, por ser a trama policialesca e investigativa uma modalidade atraente de grande parte das produções literárias de nossos dias. Mas, além da construção engenhosa do enredo, o livro denuncia as ruínas do ambiente artístico, literário e político da cidade de São Petersburgo para encenar as contradições e os problemas existenciais causados pelos problemas multiculturais e globalizantes. A ausência de sentimento patriótico verificada entre os jovens permite considerar os dramas sob os âmbitos local e global, entendendo-se essa articulação como justificativa para o abandono da postura nacionalista em literatura ou em outra manifestação artística. Os amores expressos exibidos à exaustão em O filho da mãe alternam-se entre o sentimento materno e o desamparo dos filhos em meio às crueldades da guerra e à relação amorosa entre os dois rapazes. Muitas semelhanças são encontradas na abordagem comparativa entre os dois romances, datados respectivamente de 1994 (O mestre de Petersburgo) e 2009 (O filho da mãe). A cidade está contaminada pela violência e por tramas policialescas, traições e anarquismos, ingredientes que concorrem para a desmitificação de uma possível fisionomia artística, literária e ingênua de São Petersburgo. Palco de amores e enigmas políticos, marcados pela extrema insegurança e a bastardia, ambos os romances denunciam idêntico deslocamento das personagens frente à paternidade e à filiação. O envolvimento em torno do presente, tanto relativo ao brasileiro quanto ao sul-africano, permite considerar tais ficções inteiramente permeadas pela ideia de deslocamento, uma eficaz saída
para a compreensão de realidades locais. Os escritores, ao se lançarem à aventura do estrangeiro, pela mediação literária de regiões afastadas das nacionais, não estariam endossando uma visão global de literatura e de política? O entrosamento, embora distinto nos dois casos, entre visões de experiência do passado literário e o presente recriado por meio de sua leitura e apropriação, seria alcançado pela atualidade e pertinência das contingências locais. Afastar-se da voz única e autoral, apropriando-se de imagens de autores e cidades emblemáticas da literatura russa, resulta no procedimento de dessubjetivação e de afastamento da primeira pessoa narrativa. A duplicidade autoral caminha ao lado de personagens duplicadas, de ecos e sombras, de vozes discordantes e em uníssono, capazes de render tributo aos valores legados pela rica cultura do século XIX. No diálogo transcultural empreendido pelos dois escritores, impera a ideia de desmanche de visões utópicas de um passado intocável. No presente, os desencontros e as traições são devidamente interpretados à luz da constante luta revolucionária contra a tirania e o Estado. Michel Beaujour, no livro Miroir d’encre, entende ser a escrita autobiográfica explicada à luz da metáfora do “espelho de tinta”.²³⁴ A literatura torna-se a tradução em preto e branco dos avessos da vida, do destino literário anunciado no instigante conto de Borges, “Espelho de tinta”, incluído em História universal da infâmia.²³⁵ Essa metáfora tem ressonâncias na ficção de Bernardo Carvalho, assim como em O mestre de Petersburgo, por manter o movimento paradoxal de proximidade e distanciamento entre literatura e vida, ficção e documento. Em outra ocasião, utilizo essa imagem com vistas a explicar o conceito de destino em Borges, pautado pela dedicação à literatura como forma de vida:
“Espelho de tinta,” provável apropriação de uma narrativa árabe, recolhida por R F Burton, relata o destino da personagem estampado no círculo de tinta colocado pelo feiticeiro, na palma de sua mão. O círculo de tinta se espalha na mão, no papel-espelho, artifício capaz de prefigurar a sina trágica da personagem, sua própria morte.²³
No papel-espelho do discurso autobiográfico encena-se a transfiguração da vida em escrita, pela mediação da literatura, que sela a morte como destino do sujeito.
(2018)
225 ATTWELL, David. J M. Coetzee and the life of writing. Johannesburgo: Jacana Media, 2015, p 27. 226 No original: “Looking back on the years of his childhood spent in rural Worcester that he is about to describe, he wrote in his notebook: ‘Deformation. My life as deformed year after year, by South Africa. Emblem: the deforming trees on the golf links in Simonstown.’ He was referring to the pines on the Simonstown golf course in Cape Town. These are alien trees that have been exposed to the south-easterly wind blowing perpetually from the southern Atlantic Ocean. Planted to mark the fairways and give shade, they have assumed contorted shapes, as if in mockery of the club´s wistful founders. Simonstown´s pines are certainly gloomy emblems to choose for the effects of place and history on one´s character, but in the writing of his memoirs Coetzee would find affirmation, too, in being a child of South Africa.” (ATWELL, 2015, p 28, tradução de Anderson Bastos Martins). 227 ATWELL, 2015, p 31. 228 COETZEE, J. M. O mestre de Petersburgo. Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves. São Paulo: Companhia das Letras, 2003, p 22. 229 No original: « En ce sens, tout écrit, comme le dit Derrida, dans La Voix et le Phenomène, a une valeur testamentaire. Toute la culture est comme un immense testament, tout lecteur est en position d’héritier, et tout auteur à la place d’un mort. […] Oeuvre et signature sont la construction par l’auteur de son propre tombeau., de son monument: il s’écrit, se signe, s’enterre et se statufie du même geste » (RAMON, 2007, p 88, tradução nossa). 230 COETZEE, 2003, p 234. 231 COETZEE, 2003, p 119. 232 GUIDÉE, Raphaëlle. A espera dos fantasmas: Foe et O mestre de Petersburgo. Tradução de Vera Maquêa. Alere: Revista do Programa de Pós-
graduação em Estudos Literários (UNEMAT), [s.l.], [201-], p 9. Disponível em: http://www2.unemat.br/literaturamt/revista-ale/docs/terceiro/A-espera-dosfantasmas.pdf. Acesso em: 12 jul. 2021. 233 CARVALHO, Bernardo. O filho da mãe. São Paulo: Companhia das Letras, 2009, p 38. 234 BEAUJOUR, Michel. Miroir d´encre: rhétorique de l´autoportrait. Paris: Seuil, 1980. 235 BORGES, J. L. História universal da infâmia. Tradução de Flávio José Cardoso. Porto Alegre: Editora Globo, 1978. 236 SOUZA, Eneida Maria de. Janelas indiscretas: ensaios de crítica biográfica. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2011, p 14. Parte desse artigo aqui citado teve a intenção de aproximar Coetzee e Bernardo Carvalho, razão pela qual o reproduzo neste ensaio.
Assis Horta – fotógrafo de um Brasil moderno
O fotógrafo profissional Assis Horta (1918-2018), natural de Diamantina, Minas Gerais, apresenta uma coleção de imagens de dimensão histórico-documental, não apenas por ter registrado paisagens urbanas, mas também por ter contribuído para a democratização do retrato no Brasil, adquirida por meio da obrigatoriedade das leis trabalhistas. Reconhecida oficialmente em 1943, pela Consolidação das Leis do Trabalho no governo Vargas — com a aquisição da Carteira de Trabalho e Previdência Social —, a classe operária passa a ter seu registro em foto 3 x 4 como prova de identidade. Com o fim da condição de invisibilidade social da classe, vai-se construindo uma nova feição para a caracterização de povo e de cidadania no país. Na condição de um intérprete da sociedade pelo registro fotográfico, Assis Horta valoriza imagens do homem comum, registra cenas de família e contribui para o avanço dos estudos marginais sobre povo, nação e cidadania. Em virtude da valorização da singularidade artística nacional em âmbito globalizado, Assis Horta protagoniza a discussão sobre a conquista de direitos do cidadão brasileiro como forma de inseri-lo na agenda atual das reivindicações políticas na arte. Como funcionário do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), Assis Horta foi ainda encarregado, na década de 1930, de mapear ruas, moradias, casas de comércio, entre outros pontos, para a constituição do acervo fotográfico da cidade, tombada na época como patrimônio histórico. As imagens a serem analisadas neste ensaio compõem o catálogo da Exposição Assis Horta: retratos, realizada na Fundação Clóvis Salgado, em Belo Horizonte, de abril a junho de 2015, constando de duzentas fotos, das quais selecionamos algumas.²³⁷ Com enfoque na pequena mostra de retratos 3x4, na qual são evidenciadas as procedências sociais dos fotografados, serão ainda abordadas fotos de estúdio, com poses de casamentos, crianças, famílias, cenário propício para a exposição solene de uma classe que se inseria aos poucos no ambiente social.²³⁸ As imagens de estúdio terão primazia na análise, quando se verifica a concepção em preto e branco do arquivo de Assis Horta, por revelar a singular atuação exercida pelo artista no que diz respeito à função social de seu trabalho. A representação de imagens do homem comum e da classe operária no Brasil nas
décadas de 1940 servirá de material relevante para a elucidação da memória, muitas vezes esquecida, de um Brasil arcaico e interiorano. A profusão da classe operária, marcada pela presença quase maciça do negro, remonta à tradição mineradora da região, assim como à herança imperiosa da escravidão e da ausência de direitos trabalhistas, predominante em época anterior. A Diamantina dos diamantes, do barroco mais carnavalizado, colorido e menos suntuoso da arte ouro-pretana, exibe-se pelas fotos pacatas e bem-comportadas dessas personagens, a maioria representando a classe operária e, muitas vezes, desprovida da estética burguesa dos retratos. No entanto, o fotógrafo lhes concede, pelo empréstimo das roupas no ateliê e pela exigência da pose de estúdio, aspecto nobre e semelhante ao trabalho dos pintores e fotógrafos europeus, revestidos agora de outra conotação. O modelo francês encontra-se estampado no décor do estúdio, com a exposição do tapete como ornamento, do painel pintado ao fundo, da mobiliária Art Nouveau — principalmente no detalhe das cadeiras. A exigência da vestimenta masculina segundo o ritual burguês, como terno e chapéu para os homens, vestidos estampados e bem talhados, flores no cabelo ou laços na indumentária feminina, assim como penteados recatados e postura elegante exibidos por elas. A cordialidade é moldada pelo respeito à simetria e à ordem, pelas quais se evidencia a perfeita organização entre os atores, seja quanto ao registro de cenas de família, grupo de crianças, casal em foto de casamento, seja quanto ao retrato 3 x 4 de operários, com vistas à obtenção de carteira de trabalho ou de matriarcas cercando-se de familiares para a comemoração do batizado do filho mais novo. Como entender o traço de modernidade ainda presente em plena década de 1940, sob a ditadura Vargas, durante a instauração de tombamentos do patrimônio num país que tentava escapar do atraso pela valorização da cultura local como resposta ao desejo de integração nacional? A diferença e importância da obra de Horta, longe de ser considerada repetidora de modelos e de técnicas artísticas estrangeiras, reside na leitura da comunidade local, com sua heterogeneidade e impureza. Trata-se da leitura de uma comunidade que guardava resquícios das mazelas da escravidão, mas que se impunha como figurante que começava a ocupar o lugar de protagonista na região. Embora a classe mais abastada tenha sido alvo do clique do fotógrafo, notadamente nas cenas urbanas e fora do estúdio, na seleção de fotos realizada para a exposição já referida, privilegiou-se um dos segmentos menos contemplados aí presentes. Graças à obrigatoriedade de registro do retrato profissional na carteira de trabalho, as pessoas se sentiam, pela primeira vez, pertencentes ao estatuto de indivíduo, pelo espelhamento do
rosto num documento oficial. Uma vez cumprida essa obrigatoriedade, era comum o retorno dos modelos ao estúdio de Horta a fim de serem estampados não só em pose individual, mas ao lado de amigos e familiares. Reveste-se de extrema importância o sentimento que começa a ter essa comunidade, o de adquirir uma imagem que passa a ser reconhecida pelo outro, ao ser esteticamente manipulada pela arte do fotógrafo. O lugar ocupado por Assis Horta como fotógrafo nesse quadro diamantinense do século XX não se apresenta de forma isolada. A arte de seu precursor, Chichico Alkmim (1886-1978), é detentora de rico arquivo de perfis captados pela cidade, como cenas de estúdio e de rua, abordagem que não apenas ressaltava o cotidiano particular de seus figurantes, como o de grupos representativos da comunidade local, como colégios, agremiações policiais e instituições. Registrava igualmente retratos para fins documentais, sobretudo com finalidades eleitorais. Pela profusão de imagens de populares da cidade, esses dois fotógrafos, redescobertos há pouco tempo, constituem hoje o emblema de um Brasil periférico que se impõe ao lado das exposições realizadas nos centros hegemônicos do país. Pela predominância de fotos nas quais se destaca a presença de personagens negras de origem social mais pobre, torna-se viável analisá-las sem a intenção de considerá-las estereótipos de uma comunidade tropical. A comercialização desses tipos de imagens realizada por interesses colonialistas teve como alvo a exploração e a visibilidade dos corpos negros estampados pelas fotografias. No catálogo da exposição de Chichico Alkmim, Eucanaã Ferraz assina a curadoria e oferece ao leitor um alentado estudo sobre o fotógrafo, ressaltando, entre várias outras informações, uma das características relevantes do trabalho, o aspecto anônimo dos figurantes, por assinalar como as identidades tornam-se muitas vezes impossíveis de serem resgatadas. O anonimato reforça a imagem de povo de determinada época, em que se vislumbra a comunidade local, “metonímia do Brasil”, no entender do curador:
Mas se as fotografias de Chichico Alkmim põem em cena algo como uma metonímia do Brasil, seu continuum social e suas tragédias sociais, levando-nos a ver seus personagens como arquétipos que nos representam ainda hoje, também é certo que naquelas fotografias contemplamos indivíduos intensamente reais, ou, se quisermos, realidades intensamente individuais. O que arregimenta
nosso olhar e nossa emoção são as irrecusáveis singularidades — física, psíquica, temporal. E, no entanto, sabemos nada ou quase nada sobre aqueles personagens. Desconhecemos seus nomes, suas memórias. Têm a veemência do que é anônimo, portanto a beleza do desconhecido, a potência ameaçadora e apaixonante do obscuro.²³
Uma das argutas comentadoras de arte fotográfica brasileira, Dorrit Harazim, soube muito bem situar a obra de Assis Horta no contexto de artistas fotógrafos, seus contemporâneos, enfatizando o papel social desempenhado no registro com operários e habitantes da Diamantina dos anos 1940. Reforça a amizade do fotógrafo com uma dupla de garimpeiros negros habitantes da periferia da cidade, fato esse indispensável para o aprimoramento da função social de sua arte. Como tipo muito popular, Horta apropriou-se do conhecimento das descobertas relativas à extração mineral, compondo, com a população trabalhadora, um quadro bem fiel da rica/pobre Diamantina. Na interpretação de Dorrit, a diferença entre Alkmim e Horta reside no caminho próprio escolhido pelo sucessor, enfatizando outros segmentos sociais que seriam dignos de registro:
O olhar fotográfico de Chichico Alkmim, essencialmente alimentado na escola francesa de retratistas e pintores do século XIX, acabou produzindo um rico e aclamado material de “paisagens humanas e urbanas”, título de uma exposição de 2013 no Memorial Minas Gerais Vale. Coube ao autodidata do Photo Assis, instalado inicialmente na rua do Bonfim, esquina da rua do Contrato, abrir caminho próprio e sair da sobra do cultuado Chichico. Ele começou pelo básico, procurando freguesia em segmentos sociais pouco familiarizados com a experiência de serem retratados. Os forasteiros de passagem pelo Grande Hotel apreciavam ouvir as espirituosas histórias contadas por Assisinho, e o contratavam para documentar o trabalho de extração mineral e fazer o registro fotográfico de diamantes famosos.²⁴
Retratos populares
Na congruência com a literatura mineira de natureza popular, voltada para o interior urbano e o sertão, as imagens desses artistas traçam paralelos e associações com a obra de Guimarães Rosa, para citar apenas ele, cujo retrato de um Brasil arcaico se nutre da presença/ausência de anônimos, de desclassificados e párias da sociedade. Ao contemplar essas fotos, nota-se que a impressão de inversão do olhar existe, pois a sensação de estar o espectador sendo observado pelas imagens substitui o olhar das pessoas das fotos em direção ao outro. Munido de alteridades, a visão do leitor se enriquece, ao exigir o entrosamento entre sujeito e objeto, mesmo que a suposta união corra o risco de ser crivado de intervalos, questionamentos e suspeitas. Permanece, nessa operação, a descoberta sempre reiterada de uma realidade que escapa aos espectadores. Por essa razão, o empenho em reconhecer a importância do conceito de popular como resistência política tornou-se, na proposta deste ensaio, a pedra de toque para a compreensão do trabalho artístico do fotógrafo. Entende-se, dessa forma, a necessidade em conferir visibilidade a personagens integrantes da imagem de um Brasil arcaico e muitas vezes anônimo. Diante do elenco de fotos de estúdio do acervo de Assis Horta, cria-se um teatro para a confecção de personagens, as quais, ao serem dispostas em exposição, remetem para a imunidade do ambiente, circunscrito ao ritual da arte fotográfica. As fotos 3 x 4, emblemáticas para o registro de um nome e uma imagem do cidadão na primeira carteira de trabalho, investem-se de teor político e histórico. As pessoas, pela primeira vez, ao se verem fotografadas, são imbuídas da convicção de que participam de uma sociedade moderna e igualitária. Não resta a menor dúvida de que a promulgação das leis trabalhistas por Vargas constitui uma das mais relevantes ações de seu governo, embora o país estivesse regido por princípios ditatoriais. Infelizmente, na atualidade essas leis começam a receber tratamento distinto, contrariando conquistas e resultando, de forma dramática, na sua quase diluição pelo novo governo que se instalou no país. Com o objetivo de interpretar algumas fotos desse arquivo, nota-se, de início, que o traje usado pelos modelos masculinos reitera a simplicidade da profissão, com vistas a retratar a condição operária e a fidelidade às imagens oficiais. Como retrato do país em vias de modernização, era aconselhável estampar o rosto de seus personagens de forma supostamente mais natural, com o acréscimo de pequenos retoques de embelezamento. Mas não deixa de ser ilusória a afirmação de naturalidade, uma vez que o modelo se transforma em imagem e perde, concomitantemente, sua aura natural, artificializando-se.
Nas fotos em que são agrupados dois homens e seis mulheres (Fotos 1a e 1b), percebe-se o toque de requinte no penteado e nas roupas, o que as diferencia das imagens masculinas, postadas igualmente para o registro oficial. A marca referente às datas e não aos nomes dos retratados responde pela obrigatoriedade do registro oficial. Assis Horta declara, em algumas de suas falas, que guardava em arquivo os nomes de todos fotografados. Mas o que resta para o presente é o anonimato dos modelos, comprovando-se que o trabalho aí realizado pertence ao âmbito da representação de uma comunidade que se confunde com a ideia de povo e que se destitui de qualquer índice de identidade pessoal. Os observadores do presente desse painel fotográfico não devem, portanto, se preocupar em definir rostos e gestos do passado como íntegros ou reais, uma vez que já se impõem na condição de simulacros e espectros. Constitui, para o presente, material importantíssimo para o registro da memória de um pequeno rincão do Brasil em fase de modernização, com promessas de melhores condições econômicas para o trabalhador. O traço de identidade impresso na foto a ser anexada à carteira de trabalho descola-se do sentido original pretendido. A exposição dessas imagens, ao serem dispostas em série e por meio de distinto suporte, afasta-se do sentimento de cidadania e de subjetividade. Obedecem aos requisitos da exposição e inscrevem-se como memória, com o objetivo de conferir às pessoas distinta significação, na qualidade de resquícios de valores passados. Tornam-se despojadas de valor pessoal ao se integrarem aos grupos de fotos, por obedecerem à organização serial e reduplicadora, causada pela imposição de estarem postas em exposição. A montagem expositiva retira da imagem a força temporal, substituindo-se pela anacrônica existência de figurantes que não nos é possível nomear, restando apenas a data aí inscrita. Pessoas sem nome são igualmente aquelas que, antes, possuíam assinatura na carteira de trabalho, usufruindo assim dos direitos de cidadania. Essa memória, inscrição sobrevivente, esclarece ser a arte da fotografia incapaz de restituir o passado e suas lutas, embora permaneça como força de evocá-lo na condição de simulacro. Interpretar a fotografia como arte da superfície remeteria, portanto, à imagem vegetal da casca da árvore, empregada pelo filósofo Georges Didi-Huberman no ensaio “Cascas”, ao discorrer sobre a exuberância e a relatividade de toda coisa, de sua fugacidade e contingência. Em resumo, do lugar do morto, como assim considerava Roland Barthes ao escrever sobre a arte fotográfica. Cito Huberman:
Em francês, os etimologistas afirmam que a palavra écorce (casca) representa a extensão medieval do latim scortea, que significa “casaco de pele”. Como para se tornar evidente que uma imagem, se fizermos a experiência de pensá-la como uma casca, é ao mesmo tempo um casaco — um adorno, um véu — e uma pele, isto é, uma aparição dotada de vida, reagindo à dor e fadada à morte.²⁴¹
As ideias expostas nessa passagem remetem imediatamente ao célebre livro de Roland Barthes sobre a fotografia, A câmara clara, no qual o crítico francês teoriza sobre a ausência de profundidade existente nessa arte, relacionando-a à imagem concebida pela fenomenologia, como sendo “um nada de objeto”. O autor afirma ainda que a fotografia não constitui com segurança o passado da coisa, a não ser por meio de substitutivos. A ideia de superfície, aliada à casca, à pele, incorpora à fotografia a constatação da morte do referente, uma vez que a imagem é lida em seu estatuto de simulacro do objeto retratado. Nesse livro, Barthes reitera o conceito de biografema, na concepção distinta da biografia, pelo apelo aos objetos parciais e ao “infra-saber” captados pelas imagens. A presença de traços biográficos como fragmentos que compõem fotos e biografemas funciona, para os estudos da crítica biográfica, de forma bastante rentável e inovadora. O teórico ressalta a impossibilidade de se penetrar na essência de imagens não só perdidas no tempo como supostas revelações de identidades fixas, dotadas de visibilidade:
[A fotografia] pode me dizer, muito melhor que os retratos pintados. Ela me permite ter acesso a um infra-saber; fornece-me uma coleção de objetos parciais e pode favorecer em mim um certo fetichismo pois há um “eu” que gosta de saber, que sente a seu respeito como que um gesto amoroso. Do mesmo modo, gosto de certos traços biográficos que, na vida de um escritor, me encantam tanto quanto certas fotografias; chamei esses traços de “biografemas”; a Fotografia tem com a História a mesma relação que o biografema com a biografia.²⁴²
Em várias fotos do arquivo de Assis Horta registram-se poses de personagens por meio das quais é representada uma classe considerada por elas como inexistente, mas que se sustenta pela roupa e a envergadura de um burguês —
com o requinte do estilo em portar o chapéu, do olhar e da harmonia entre as duas imagens. O requinte da Foto 2 está estampado na figura de dois modelos negros, em contraste com os ternos de cores claras trajados por eles. A produção artística das cores conduz, inevitavelmente, à interpretação estética da cena social, vinculada à raça negra. A elegância dos modelos os coloca na condição de estarem representando o ideal de figura social, conferindo ao retrato a ilusão e a consolidação de ideais suscitadas pela arte fotográfica. Paradoxalmente, as imagens distanciam-se e aproximam-se da sua real condição, uma vez que a cena permite inspirar a harmoniosa imagem das relações raciais, o convívio pacífico entre classes. São esses os pequenos toques que vão montando biografemas e ressaltando os fragmentos que compõem as memórias fotográficas. Em outra foto bem sugestiva e descompromissada (Foto 3), configura-se a criação de uma performance, com a ajuda do cenário em que é posto o atleta, ao lado da cadeira de estilo Art Nouveau sobre um tapete com estampas que lhe serve de ornamento e que remete a uma espécie de ladrilho. Os músculos salientes fornecem-lhe tanto a aparência de jovialidade e vigor, acompanhada do gesto sério e comportado. A pose é contida e controlada. Quem seria, portanto, esse ator anônimo? Torna-se impossível identificá-lo ou restituir-lhe um nome, em virtude da distância temporal e da fluidez e superfície do objeto referencializado. Os figurantes continuam a participar dessa galeria de pessoas que perdem, com o tempo, sua identidade e se consolidam como tipos reunidos na sua condição de imagem em superfície, com pouco traço de interioridade. Seriam essas pessoas convertidas em objetos fotográficos? Fica a pergunta. O próximo figurante (Foto 4), trajando casaco meio apertado e amarrotado, encobre e segura com a mão o lugar do botão que falta, como se estivesse ajeitando algo que foge de sua alçada, sem perder a pose. Os olhos arregalados em direção à câmera e a gravata meio encoberta simulam a controvertida maneira de ser outro, de fantasiar-se num traje que não só lhe serve como não lhe pertence. O pescador (Foto 5), outra imagem curiosa, por seu perfil caricato, exibe rasgos na calça, sugerindo a produção da imagem de tipos urbanos cujas profissões estão, em princípio, desvinculadas de qualquer compromisso social. Esta pode ser considerada uma das fotos mais artificiais constantes da galeria de personagens montada por Assis Horta. A caracterização do pescador, semelhante ao traje de um mendigo, retrata, de forma até jocosa, a possível autenticidade e falsidade do modelo. As fotos de estúdio são montadas com o objetivo de brincar com a artificialidade e a teatralização da arte fotográfica.
A reprodução de fotos de grupos familiares — tendo o patriarca como figura central, ou a mãe que o substitui na cena da reunião da família em torno do filho mais novo — (Foto 6), obedece à simetria clássica e se associa às pinturas tradicionais. Nesse sentido, as personagens compõem o quadro bem delimitado de família tradicional, com o intuito de evocar a harmonia familiar, pela disposição regular das figuras na foto. Note-se que o estampado das roupas femininas contrasta com a sisudez dos trajes masculinos. Na foto da matriarca, rodeada da prole, e sem a presença do marido, os laços de fita no cabelo das crianças confirmam o costume universalmente vigente, reiterando, contudo, a cor local e a modernização vernacular das manifestações populares. Como último exemplo, na Foto 7 observa-se a imagem em que três crianças negras, em trajes próprios para poderem ser eternizados pela ação mágica da fotografia, se veem surpreendidas pelo fato de estarem voltadas para o espectador de forma espantada e fixa, com os olhos arregalados, dando a impressão de se adaptarem mal à fita. De modo bem curioso, as crianças estão olhando para nós e para a câmera, mas também dão a impressão de desconfiança desse olhar ao longo dos anos. Estariam prevendo a existência de uma visão futura dessa imagem provocada por novos espectadores, por integrantes de outra maneira de pensar a fotografia? A imagem (Foto 8), na qual a autora deste ensaio se dá a ver na exposição, refere-se à tentativa de inscrever-se como coautora do texto e das imagens, e como personagem inserida na Exposição de Assis Horta, confirmando-se a autenticidade — ou não — da experiência. O direito de autoria mostra-se, contudo, um tanto forjado, embora a arte fotográfica, desde seus primórdios, tenha se imposto como autoria múltipla, para lembrar as palavras de Susan Sontag contidas em Ensaios sobre fotografia²⁴³, texto pioneiro sobre a história dessa arte inventada no século XIX.
(2019)
237 A reprodução das fotos por mim selecionadas foi realizada durante a exposição, estando os créditos sob minha responsabilidade. O catálogo está disponível no seguinte endereço: https://issuu.com/studioanta/docs/assis_horta_bndes_rj.
238 No site do Banco Nacional de Desenvolvimento (BNDES), referente à exposição do fotógrafo em 2017 no Rio de Janeiro, sob curadoria de Guilherme Horta, encontra-se a seguinte informação: “O fotógrafo registrou, em chapas de vidro, praticamente toda a sociedade diamantinense da época e cenas do patrimônio histórico nacional. Seu acervo de retratos da classe operária, objeto da exposição, decifra a gênese do trabalhador brasileiro legalmente registrado. Até então destinada à sociedade burguesa, a fotografia entrou na vida do trabalhador: realizou sonhos, dignificou, atenuou a saudade, eternizou pessoas comuns, mostrou sua face.” Disponível em: https://www.bndes.gov.br/wps/portal/site/home/onde-atuamos/cultura-eeconomia-criativa/espaco-cultural-bndes/galeria/assishorta_retratos. Acesso em: 5 ago. 2021. 239 FERRAZ, Eucanaã. Diamantes, vidro, cristal. In: FERRAZ, Eucanaã (org.); KARP, Pedro (fotografia). Chichico Alkmim fotógrafo. São Paulo: Instituto Moreira Salles, 2017, p 16. 240 HARAZIM, Dorrit. O clique único de Assis Horta. In: HARAZIM, Dorrit. O instante certo. São Paulo: Companhia das Letras, 2016, p 36. 241 DIDI-HUBERMAN, Georges. Cascas. Tradução de André Telles. Revista Serrote, Rio de Janeiro, IMS, n 13, mar. 2013, p 133. 242 BARTHES, Roland. A câmara clara. Tradução de Júlio Castagñon Guimarães. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984, p 51. 243 SONTAG, Susan. Ensaios sobre a fotografia. Tradução de José Afonso Furtado. Lisboa: Publicações Don Quixote, 1986.
FOTOS
Fonte: Reprodução de Eneida Maria de Souza de imagens de Assis Horta
Fotos para carteira de trabalho
Fotos para carteira de trabalho
Foto de dois homens com ternos de cor clara
Foto de um homem com roupa de cor clara e com a perna cruzada
Foto de homem com paletó de cor clara e chapéu
Foto de um pescador
Foto de família
Foto de três irmãos
Foto de Eneida Maria de Souza
Retratos pintados
A abordagem do acervo da coleção de retratos pintados realizados por profissionais encarregados em retocar fotos em preto e branco — retirados do livro organizado pelo sociólogo alemão Titus Riedl e o fotógrafo inglês Martin Parr — responde pelo meu interesse pessoal em conhecer um dos instigantes exemplares da cultura popular.²⁴⁴ Essa arte dos fotopintores, atividade muito comum no Nordeste e no resto do país, entre os anos 1960 e 1990, tem merecido estudos que incentivam sua divulgação e exposições responsáveis pela valorização de uma das manifestações artísticas da comunidade brasileira como um todo. O interesse pelo tema justifica-se ainda pela relação de semelhança e diferença entre a técnica artesanal da pintura sobre fotos e a utilização da tecnologia atual a serviço dos photoshops. A modelagem/ficcionalização dos corpos biográficos processados pela técnica dos profissionais, embora não seja considerada, segundo o cânone da alta cultura, representação de obras de arte, questiona critérios relativos à autenticidade/artificialidade do procedimento, inspirando artistas de várias gerações. O limite entre arte erudita e arte popular estaria sendo colocado em xeque, à medida que o material reciclado e exposto em álbuns e museus recebe distinto tratamento daquele originalmente reservado às fotos de família. Graças ao avanço da tecnologia e das direções originadas pela globalização, as manifestações artísticas locais ganham mais significado, erigindo-se em defasagem temporal em relação ao conceito hegemônico de modernidade, pautado pela exclusão de realizações culturais e artísticas. Na terminologia empregada por especialistas de crítica cultural, ressaltem-se as noções de modernidades tardias ou alternativas, ao lado de modernidades vernáculas, esta defendida por Stuart Hall e amplamente utilizada em pesquisa fotográfica. Como estratégia de resistência e intervenção, sua ação se caracteriza pelo desvio, por desestabilizar qualquer horizonte que se pretenda calcado na totalidade. A definição de Stuart Hall é esclarecedora:
Culturalmente, elas (modernidades vernáculas) não podem conter a maré da tecnomodernidade ocidentalizante. Entretanto continuam a modular, desviar e “traduzir” seus imperativos a partir da base. Elas constituem o fundamento para um novo tipo de “localismo” que não é autosuficientemente particular, mas que surge de dentro do global, sem ser simplesmente um simulacro deste (HALL, 1997). Esse “localismo” não é um mero resíduo do passado. É algo novo — a sombra que acompanha a globalização, mas retorna para perturbar e transtornar seus estabelecimentos culturais. É o “exterior” constitutivo da globalização (LACLAU; MOUFFE, 1985; BUTLER, 1993). […] O “local” não possui um caráter estável ou trans-histórico. Ele resiste ao fluxo homogeneizante do universalismo com temporalidades distintas e conjunturais.²⁴⁵
O nativo, o popular e o doméstico funcionam como entidades locais as quais tendem a dialogar e a romper a homogeneidade construída por determinados cânones artísticos, além de serem representados no seu aspecto heterogêneo e múltiplo. A fotografia vernacular atende a essa demanda popular da arte dos autores, em que fotógrafos, pintores e bonequeiros, estes últimos na condição de vendedores ambulantes pelo sertão nordestino, irão convencer os habitantes — incluindo-se viúvas e solteiras — a serem retratados e retocados no melhor estilo possível. Em entrevista concedida a Vilma Eid, Riedl reitera seu interesse pela fotografia vernacular, por retratar pessoas anônimas e se concentrar, muitas vezes em acontecimentos que reúnem grande número de gente. No seu entender, ele se preocupa ainda com os fotógrafos anônimos, desprovidos de aparatos de intenções artísticas, mas possuidores de incrível sentimento humanista.
Eu me interesso particularmente pela fotografia vernacular, isto é, uma fotografia anônima, geralmente íntima e sem pretensões artísticas. Dentro desse universo me interessavam os fotógrafos de praça, os ambulantes e os estúdios improvisados. Durante a pesquisa, encontrei um dado intrigante: por meio da fotopintura, os olhos de um defunto tinham sido abertos como se fosse vivo. O fato curioso destas fotografias é que o espectador final das imagens dificilmente tem como saber que o retrato original é de um defunto. Quer dizer, a fotopintura era capaz de transformar uma imagem em outra, de ser ficcional em vez de verossímil.²⁴
A função desses artistas é a de incrementar sonhos individuais com promessas de estetização e rejuvenescimento das imagens pelo retoque e o acabamento colorido das roupas, adereços e feições. A reintegração da família se efetua, muitas vezes, pela inclusão da foto dramática do marido no leito de morte, permitindo-lhe ganhar sobrevida imaginária pelo retrato. Ou recuperá-lo por meio de uma foto 3 x 4, clicada no passado, com o objetivo de trazê-lo à cena familiar com os traços da mocidade perdida, supostamente reconquistada. A relativização dos valores instituídos pelo cânone artístico abre espaço para a produção de textos e obras sem a aura da autoria, por se tratar de anônimos que não assumem a assinatura nos objetos. Na composição final do álbum de fotos ou no ambiente de exposição nos museus, os modelos não recebem igualmente qualquer tipo de nomeação, por se apresentarem como integrantes da galeria de fotos pertencentes a uma coleção particular. No entanto, o desejo de ser fotografado e de ter sua imagem exposta na parede da sala de visitas revela o sentimento de pertencimento comum a todos. Ao se integrarem à coleção, reforça-se o nível do anonimato, o que produz a certeza de serem os sujeitos/objetos participantes do museu popular de determinada época e de uma região específica. A fotografia foi inventada em meados do século XIX e, revelada em preto e branco, recebe, mais tarde, retoques coloridos, com pinturas feitas à mão, de modo a se assemelhar à arte da pintura. Em 1935 a Kodak lançou o primeiro cromo colorido, e em 1941 o primeiro negativo. A foto colorida, contudo, foi tardiamente introduzida no Brasil, verificando-se ainda serem precárias as condições técnicas relativas às reproduções realizadas no interior do país. As fotos recebiam, sobre o negativo revelado, o colorido resultante do trabalho de pintura, com o intuito de harmonizar a vida doméstica, colocar o casal em pose para ser reverenciado e atuar como segurança e prosperidade para a família. Posar para o fotógrafo, para o outro ou para o mundo, é uma das atitudes responsáveis pela tradicional constituição da cidadania e da convivência, por conceder ao indivíduo algum traço de propriedade e de segurança social. Prova de prestígio e de poder, inerente à classe burguesa, a função destinada aos retratos nas diferentes classes sociais conserva ainda resquícios de controle das subjetividades e do bem-estar. A exposição de imagens em direção ao olhar do outro deveria, segundo as regras dos artistas, ser manipulada pela técnica de embelezamento e de apagamento das marcas naturais de envelhecimento, como rugas e cabelos brancos; quanto aos trajes femininos, era aconselhável o decoro,
o cuidado em não suscitar sensualidade, optando-se pela pintura de blusas monocromáticas ou com suaves estampas de flores. As feições infantis deveriam cumprir preceitos religiosos, obedecendo ao modelo canônico da imagem do menino Jesus. A domesticação da fotopintura teria como objetivo aprimorar o culto da inocência e da pureza, além da preservação do ambiente paradisíaco do presente, endereçado ainda ao futuro. A série de retratos selecionados por Martin Parr, com base na coleção de milhares de exemplares pertencentes ao sociólogo Titus Riedl, colhidos durante os quinze anos vividos na região do Crato (Ceará), deu origem ao volume publicado em 2010, nos Estados Unidos, intitulado Retratos pintados, e à exposição na Galeria Yossi Milo em Nova York.²⁴⁷ Dessa seleção de quarenta lâminas escolhi algumas que pudessem fornecer a dimensão dessa arte que se encontra, hoje, reinterpretada e revalorizada por pesquisadores e artistas. São retratos de pessoas de aparência simples, simbolizando certo mau gosto imputado a essa classe pelo senso comum, além de as imagens terem sido reproduzidas de forma precária, sem o cuidado com a moldura ou o acabamento próprio a esse tipo de objeto. Contém manchas e rasgos na superfície da tela, cores desbotadas, condição estética que se distancia das coleções de objetos tradicionalmente expostos em museus e galerias. Apresenta-se ainda em discordância com os critérios de bom gosto estipulados pelas regras usuais do gosto padrão do consumidor, acostumado a privilegiar a exposição de celebridades e de fotos de pessoas de boa aparência, ainda que pertencentes a diversas etnias. Vários tipos e situações são estampados nessa seleção de retratos, como de crianças, casais de idosos, brancos, pardos ou negros; de famílias; de grupos de irmãos com reprodução de imagem da matriarca; de irmãos gêmeos; de criança com perfil de pessoa adulta; de casal com foto de identidade do marido anexada à pintura; de mulher idosa em pose ao lado de imagem de santo; de foto tradicional de casamento; de clássico retrato de grupo infantil pela primeira vez reunido em foto, e assim por diante. A atmosfera afetiva da memória é um dos fatores significativos para se entender a prática dos retratos pintados, na qual se evidenciam valores sociais do povo nordestino e o desejo de reconstituir imagens familiares perdidas pela morte ou pela separação de pessoas. Por meio do procedimento de colagem e de apropriação de fotos existentes ou reveladas em preto e branco, a pintura exerce função alegórica, semelhante ao palimpsesto, no sentido de se configurar um texto pelo outro. Constata-se a reescritura do texto primário, a reprodução e o confisco do original, técnica muito utilizada na justaposição e enxerto de
imagens, encontrados ainda na arte pop dos anos 1960. Nessa transformação, o que se almeja é a criação de fotos a serem inscritas talvez para a posteridade, pelo desejo de suprir a situação precária e fugidia do cotidiano. A domesticação dos conflitos e a configuração harmoniosa dos membros da família sinalizam o poder integrador das cores estampadas na indumentária feminina e no uso de gravatas pelos figurantes masculinos, simulando desejada harmonia entre os casais. Semelhante intenção se percebe ao serem reunidos nas fotos irmãos e a matriarca, gêmeos, pai/mãe e filho, agrupados pelas cores comuns que os caracterizam enquanto membros de um mesmo clã. As diferenças de tempo entre presente e passado, após a inserção da imagem retocada do marido, respondem pelo culto da memória como presentificação de algo perdido, o que igualmente acontece com a recomposição da foto do marido morto, ao serlhe restituída a vida. Os modelos são ainda aprimorados de forma cerimoniosa, homens e crianças trajando terno, gravatas borboleta ou as mais tradicionais, desenhadas com traços que combinam com os adornos presentes nos trajes femininos. A deliberada intenção de integração familiar é resultado da composição harmoniosa dos detalhes das roupas, avivados e redimensionados com vistas à produção da imagem de uma família feliz. Ao se integrarem ao cenário, adornos femininos, como colares e brincos, pintados segundo um tom uniforme, revestem-se de cores alegres. Incorporam a ideia de ambientes dotados de simplicidade, nos quais se reproduz idêntica nuança das roupas, reforçada pela presença simulada das cortinas. A representação exigida pela produção dos retratos justifica-se pela realização da pintura em estúdio, com a inevitável condição de se apresentar como pose. A semelhança já evidenciada na foto das irmãs gêmeas é acentuada pela tonalidade das roupas e de modelo idêntico da indumentária, reiterando o desejo de realismo promovido pelo retrato pintado, no sentido de torná-lo próximo à imagem natural. A mimetização das cores naturais se estampa nos motivos florais das roupas femininas ou nas cores fortes de alguns retratados, como se a fotopintura reproduzisse a realidade. O emprego de variados tons, no entanto, o retoque muitas vezes exagerado dos retratos e o estilo artificial dos trajes conseguem redefini-los como avessos ao realismo. Um dos exemplos mais visíveis desse estilo artístico é a foto da criança com traços de adulto, com sombras na pele, criando a impressão de estarem os braços cobertos de pelos. A naturalidade e inocência da criança escapam desse perfil, colocando-o de forma inusitada no meio de outras fotos pintadas. Registrem-se ainda duas fotos de crianças, trajando terno e gravata borboleta, com ares de adultos, mas sendo caricaturados com a chupeta, símbolo da infância e da prisão a certa imagem idealizada/realista do passado. O efeito, entretanto, se distancia
do estereótipo imputado ao realismo fotográfico, por se inscrever alegoricamente no âmbito da arte naïf e receber figurações que rompem com a pretensa realidade do retrato. O esforço em dotar a foto de naturalidade temporal reforça o aspecto anacrônico, configurando-se a tendência à atemporalidade, por esta razão sujeita a interpretações distintas ao longo do tempo. No livro utilizado como referência para este ensaio, dedicado à reprodução das imagens, são incluídos recursos empregados nos bastidores pelos profissionais, ao se entregarem ao trabalho de redefinição das fotos, o que permite o entendimento do seu processo genético. Encontram-se aí as indicações de permissão ou exclusão das imagens, por meio da afirmativa sim (grafado cim) e da negativa (não), objetivando a reprodução diferenciada, seja na colagem de foto de identidade abaixo dos retratados; no acréscimo de outra foto entre o casal, ou na reprodução do recibo referente ao pedido de encomenda da fotopintura, sinalizando tanto a data da foto como o estado anterior da cópia a ser retocada. Nessa operação de resgate dos bastidores da fotopintura, contudo, o original se impõe na sua natureza precária e destituída de autenticidade, uma vez que a técnica do palimpsesto tende a reiterar a articulação entre o jogo temporal de produção das fotos. Abole-se, por conseguinte, o antes e o depois, a causa e o efeito do labor artístico, passando a constituírem uma única imagem. Embora essas imagens reiterem o anonimato como razão de ser de pessoas comuns, pelo desapego a sinais da identidade e exposição na modernidade, algumas marcas de individualidade persistem ou são anexadas aos corpos desses retratos. Outro tópico a ser ressaltado pela leitura da coleção de retratos pintados recai na utilização da complexa noção de povo, a qual prefiro substituí-la pela de multidão, seguindo o pensamento pós-moderno de Michael Hardt e Paolo Negri presente no livro Multidão²⁴⁸ e reproduzido na entrevista de Negri em 5 lições sobre Império. A multidão se define, em “uma multiplicidade de singularidades que não pode encontrar unidade representativa em nenhum sentido […]”²⁴ . Relacionam-na à multidão de corpos, pela definição de que “cada corpo é uma multidão”:
Cruzando-se na multidão, cruzando multidão com multidão, os corpos se misturam, se tornam mestiços, se hibridizam, se transformam, são como as ondas do mar, em perene movimento e em perene e recíproca transformação.²⁵
Nesses termos, é possível notar a importância do conceito de anonimato como recriação ideológica, por serem essas imagens a tradução de singularidades que não se destinam a comprovar identidades fixas ou ilusórias, mas que se impõem como seres do desejo, por constituírem uma potência, segundo os teóricos, construtiva e bem-humorada. Ou parafraseando suas palavras, “o corpo mais singular é também […] o mais comum.”²⁵¹ As fotos em análise, representações de ideais de harmonia familiar e de felicidade simbólica, acham-se agora localizadas em novo contexto, recebendo a nomenclatura de objetos de coleção. Da mesma forma que o anonimato dos personagens os transformam em multidão, essa potência evidencia o movimento e a força inerentes à singularidade de cada um, embora não sejam nomeados e identificados. Entregues ao olhar, ora preconceituoso ora tolerante do observador, essas imagens atuam como reação à imobilidade de quem olha, incitando o convite a uma leitura interativa, e ao mesmo tempo anônima, que se revitaliza conforme a época de sua fruição. A retomada tecnológica dos retratos pintados encontra sua maior expressão na técnica avançada do Photoshop processado atualmente. Alguns remanescentes fotógrafos do Nordeste já fazem uso dos recursos digitais, usufruindo de modo bem criativo das mudanças operadas na área fotográfica. Sem considerar o ofício dos fotopintores como superiores ou em vias de desaparecimento, é preciso distinguir o que é ainda fruto de uma técnica artesanal reconhecida, sem que sejam esquecidos a importância e os valores culturais e políticos dessa função. A convivência da tecnologia com o trabalho milenar da pintura e da fotopintura tem o mérito de produzir resultados inusitados, nos quais se valoriza tanto a tradição popular como sua apropriação artística. Os dois polos não se excluem, uma vez que sejam descartados tanto sentimentos nostálgicos referentes às artes do passado, como valorização do apelo à novidade e ao progresso. Como primeiro exemplo, cite-se o livro Picturing model citizens, de Thy Phu, professora da Western University de Philadelphia,²⁵² em que são abordadas manipulações fotográficas realizadas entre os imigrantes asiáticos nos Estados Unidos. Na capa do volume, duas fotos são reproduzidas, sendo que a foto do marido compõe a primeira cena; a segunda, mulher e filho são enxertados na imagem, criando ilusoriamente a sensação de realidade. Entre as duas versões foi instaurada uma simetria formal que pudesse atestar a união imaginária da família. Por um procedimento semelhante à montagem, a segunda resolução,
inadvertidamente, aponta a distância aparente e real entre o casal, ele um trabalhador residente no Havaí, ela e o filho, radicados na China, onde foram fotografados. Com a imagem dos pés suspensos da mulher, a foto expõe a falha da montagem, revelando-se uma contraditória, falsa e fantasmática presença, embora não desfaça a intenção de reuni-los, mesmo que simbolicamente. O recurso tecnológico recompõe imaginariamente o núcleo familiar, com vistas a amenizar a separação do casal e a superar a distância provocada pela necessidade de sobrevivência pelo trabalho. Graças aos efeitos digitais, o estúdio fotográfico torna-se móvel e frágil, podendo ser deletado por um toque, embora sustente a ilusão de realidade. Os retratos pintados analisados neste ensaio traduzem semelhante empenho em resgatar uma imagem idealizada de família, sem a virtuosidade da tecnologia, mas afeitos a truques precários e nem tão carentes de originalidade. Na condição de objetos de coleção e exposição, publicados e divulgados em grande ou pequena escala, conservam ainda a durabilidade necessária à sua permanência na pequena história reservada ao acervo de pessoas comuns. Alguns exemplos da apropriação da técnica de colagem por artistas pode ser aproximada à exercida pelos fotoartistas, como os ready-made de Andy Warhol, na série de retratos de celebridades, como Pelé, Marylin Monroe, Elizabeth Taylor, Mona Lisa, entre outros, artifício que se vale da apropriação e da releitura como uma das prerrogativas de sua arte. Com o olhar dirigido para a cultura de massa e seus inúmeros mecanismos de reprodução, a obra de Warhol restaura, com a ajuda da tecnologia, o imaginário popular revestido da cultura pop dos anos 1960, em plena contracultura e com feição distinta dos trabalhos realizados pelos fotoartistas. O pop se articula com a mídia e explora os mitos mais reconhecidos do cenário mundial. No México, igualmente distinto dos princípios da pop arte, cite-se o caso emblemático de Frida Kahlo, como exemplo de manifestação vernacular. Sua obra, integrada na cultura mexicana, é pautada pela valorização da arte local, com as cores exuberantes do país e o requinte simples/sofisticado de sua presença autoral. Cria os autorretratos sob a forma de exposição do corpo belo e fraturado, com o colorido retirado da cultura indígena e mexicana. A caracterização de perfis autobiográficos retoma a pose dos retratos pintados e mistura o tom surrealista ao aspecto ingênuo e simples dos modelos populares. A natureza, que na indumentária feminina das fotos brasileiras se expressa de modo tímido, aqui se agiganta e compõe a figura exuberante da artista, mostrando-se a grande protagonista de sua obra. Diferenças à parte, a arte popular se dissemina na elaboração de obras canônicas e de artistas consagrados, apontando a reversibilidade entre registros extraídos
de fontes diversas, sem preconceitos ou exclusões. No Brasil, a artista plástica mineira Rosângela Rennó se inspira na prática dos profissionais do Nordeste para a releitura de fotografias roubadas — e mais tarde recuperadas — do arquivo da Fundação Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. Realiza, nessa operação artística, criativas apropriações de corpos tatuados do arquivo carcerário do Carandiru. A obra é exposta, em 2009 na Galeria Vermelho, em São Paulo, como tributo ao mestre Júlio, de Fortaleza, e a outros quatro pintores da região de Cariri, reproduzindo fotos e contando com o trabalho dos fotopintores nordestinos. Reúne a mostra, intitulada Carrazeda + Cariri, as cópias de retratos de homens residentes em Carrazeda, vilarejo de Portugal e a arte dos fotógrafos pintores de Cariri. As imagens, coletadas pela artista no arquivo da internet por meio de um site de relacionamento, foram pintadas pelos artistas, razão pela qual receberam direito de parceria com a obra de Rosângela. Na apresentação de cinco séries de fotopintura, o trabalho dos fotógrafos serve de modelo e inspiração para as manifestações culturais brasileiras, com o claro objetivo de modular os limites e fronteiras entre popular e erudito. A associação entre exemplares de obras locais com exemplos de objetos europeus (as obras de Carrazeda), captados pela alta tecnologia, redefine conceitos artísticos e redimensiona valores transnacionais. A produção do efeito de palimpsesto corrobora a prática de apropriação do modelo e sua revitalização nas mãos de quem o lê. Imagens se interpenetram e confundem elementos presentes tanto no original como na cópia, resultando no exercício do ready-made na pintura como uma das tendências da arte contemporânea. Na opinião de Rosângela Rennó, cuja obra é devedora do emprego sistemático do arsenal fotográfico, o que importa é estar a fotografia desprovida de sentido estético, reconhecendo a artista ainda estar em concordância com a crítica que a define como “fotógrafa que não fotografa”.²⁵³
(2015)
244 “Riedl (2002) indica os agentes envolvidos em uma verdadeira cadeia produtiva que se forma em torno da fotopintura, dada a sua intensa popularização. Havia o vendedor ambulante, ou bonequeiro, que era o profissional que viajava pelo interior oferecendo o serviço de fotopintura. Ele recolhia os originais fotográficos e anotava os dados do cliente, bem como as orientações para a realização da imagem final. Outro profissional envolvido era o puxador de telas. Ele era o responsável por copiar e ampliar o retrato dentro de um quarto escuro. A imagem devia ter contrastes suaves e contornos que desaparecessem atrás da fotopintura. Geralmente o puxador de telas só reduplicava os rostos. Já o pintor de telas era o profissional que realizava os acabamentos finais da imagem, efetuando a pintura, os retoques e os acréscimos solicitados pelo cliente.” (BORGES, Déborah Rodrigues. Representação como tensão na fotografia: pensando a fotopintura. Estudos, Goiânia, v 38, n 4, out./dez. 2011, p 781). 245 HALL, Stuart. A questão multicultural. In: SOVIK, Liv (org.). Da diáspora: identidades e mediações culturais. Tradução de Adelaine LaGuardia et al. Belo Horizonte: Editora UFMG; Brasília: UNESCO, 2003, p 61. 246 RIEDL, Titus. [Entrevista cedida a] Vilma Eid. Galeria Estação. Arte brasileira: além do sistema. Curadoria Paulo Duarte. 2010. p 17-18. 247 PARR, Martin (org.). Retratos pintados. Oregon: Nazraeli Press LLC., 2010. 248 Cf. HARDT, Michel; NEGRI, Antonio. Multidão. Rio de Janeiro: Record, 2005. 249 NEGRI, Antonio. 5 lições sobre o Império. Rio de Janeiro: DP&A Editora, 2003, p. 43. 250 NEGRI, 2003, p 170. 251 NEGRI, 2003, p 43. 252 PHU, Thy. Picturing model citizens: civility in Asian American visual culture. Philadelphia: Temple University Press, 2012. 253 MACIEL; Jane; BARATA, Gabriel. Rosângela Rennó, Leila Danziger e
Márcio Seligmann-Silva falam de itinerâncias na arte contemporânea brasileira. Fotoitinerante, 8 nov. 2011. Disponível em: Fotoitinerante.wordpress.com/ …/rosangela-renno-leila-danziger-e-ma. Acesso em: 5 ago. 2021.
Literatura comparada, indisciplina
Pretendo, neste breve comentário sobre Literatura Comparada, demonstrar minha constante intolerância quanto às críticas dirigidas aos rumos e desvios que, nos últimos tempos, tem sofrido a disciplina. A razão das controvérsias reside na concepção ainda moderna e pré-globalizada, que impera nos departamentos de Letras, impedindo o avanço da discussão em torno da Literatura Comparada. Quanto mais se expande o conceito e a prática da transdisciplinaridade e da transnacionalização da literatura, menos se verifica uma atitude coerente da crítica comparada e literária frente a esses critérios. Não é de se estranhar que a disciplina tenha passado por redefinições — ou tentativas de redefinições — ao longo das últimas décadas, graças à emergência da releitura dos conceitos de multiculturalismo e globalização. Entre essas tentativas, vale mencionar os Congressos promovidos pela Associação Brasileira de Literatura Comparada (Abralic), nos últimos anos, e de livros publicados nos Estados Unidos, como Comparative Literature in the age of multiculturalism, editado por Charles Bernheimer, em 1995 (Baltimore: Johns Hopkins University Press) e Comparative Literature in the age of globalization, editado por Haun Saussy, em 2006 (Baltimore: Johns Hopkins University Press). As mudanças de enfoque da disciplina e a complexidade dos objetos culturais são tributárias do próprio desconforto e das indefinições quanto ao lugar ocupado pela literatura comparada no âmbito da literatura mundial e mesmo da literatura. O mundo geopolítico não cabe mais nos antigos mapas e nos velhos escaninhos. No Brasil, a simultânea prática acadêmica da crítica cultural com a literatura comparada, no lugar de esvaziar a força desta, serviu para recuperar e repensar conceitos ainda referentes à concepção aurática e essencialista da literatura. A recepção de teorias estrangeiras tanto culturais quanto literárias recebeu, no final dos anos 1980, grande impulso, por estarmos iniciando o período de abertura política, o que provocou a emergência da criação de discursos até então marginalizados e censurados pela ditadura. Entre os artigos presentes no livro Comparative Literature in the age of globalization, destaco o de David Ferris, intitulado “Indiscipline”, com o objetivo de inseri-lo na discussão aqui proposta. Para o crítico, a questão básica encontrada para a reflexão sobre o estatuto da disciplina é a de ser a Literatura
Comparada não dispõe de controle quanto à delimitação do objeto, além de apresentar fundamentação teórica e posição metodológica suspeitas, em virtude de sua natureza heterogênea e complexa. E acrescenta: a falta de definição para a disciplina a coloca igualmente distinta do conceito moderno de disciplina, com suas leis, campo definido e, o que é mais evidente, vinculado à ideia de Estadonação. Teria, então, a literatura comparada o estatuto de uma disciplina, ou estaria reforçando o conceito pós-moderno de disciplina, a qual, desde seu nascimento no século XIX desconhece barreiras e limites disciplinares rígidos, convertendo-se em “indisciplina”, ou seja, uma disciplina que não se caracteriza como tal?
Teria, então, a literatura comparada sido sempre, e avant la lettre, pós--moderna? Ou existe outra coisa em ação na história de seu desenvolvimento, uma lógica que conduz a literatura comparada a questionar continuamente o que a constitui uma disciplina? Será essa uma lógica que igualmente garante, em seu cálculo, que a resposta para o que é a literatura comparada sempre fracasse no intuito de preservar a pergunta? Essa incapacidade de definir-se, essa recusa em se tornar uma disciplina, na verdade, essa indisciplina — por que isso não desaparece no desfocamento de nossa pressuposta pós-modernidade?²⁵⁴
Questões como essas conseguem promover o avanço nas discussões, pois o problema maior no momento tem sido a tentativa de departamentalizar e institucionalizar as disciplinas. A restrição de sua atuação em áreas específicas, ao lado da necessidade de as instituições se precaverem contra o suposto embaralhamento interdisciplinar, vai de encontro à abertura teórica e metodológica que se processa no campo das ciências humanas. O estatuto pósmoderno da disciplina, inscrito na condição de uma fragilidade conceitual e na quebra de fronteiras de área, na temática pós-colonial, étnica, de gênero e na variedade metodológica, culmina com o teor transnacionalista de seus objetos. A múltipla aceitação dos objetos de estudo da prática comparativista, não se restringindo ao campo da literatura, é tributária da acusação, também de índole moderna, da impossibilidade de nomear um objeto único para a caracterização da disciplina. Por congregar princípios de crítica cultural, a literatura comparada reveste-se de
extrema atualidade num contexto mais globalizado — no bom e mau sentido do termo — ao serem ainda contestadas noções relativas à existência de uma literatura padrão, hegemônica e considerada como única, pela sua caracterização universal e colonialista. Os parâmetros classificatórios do que se entende por uma literatura considerada de alta qualidade, a servir de modelo para as demais, não se sustenta nos dias atuais. A universalidade antes pretendida se mostra inoperante, uma vez que o próprio conceito se desfaz segundo a perspectiva globalizada e não vinculada à proposta nacionalista das manifestações artísticas. Uma das questões que se elabora hoje seria aquela referente aos termos da relação comparativa, ou seja, o que comparar diante da heterogênea e múltipla manifestação de literaturas vistas de forma cada vez mais transnacionais? Gayatri C Spivak, em Death of a discipline, publicado em 2003, insiste que o temor da indecidibilidade da disciplina por parte de seus intérpretes institucionais, a incerteza dos conceitos e de seu campo de atuação representam o traço residual da herança europeia, da alta modernidade e da hegemonia aí perdida, ao se levar em conta a incerteza e a fragmentação de seus pressupostos. A tradicional concepção de literatura comparada, nascida na Europa e tributária de valores hierárquicos e excludentes com relação às literaturas do Terceiro Mundo, estaria, segundo Spivak, condenada à morte, por não encontrar justificativas para sua sobrevida. No seu lugar, a nova literatura comparada tende a respeitar e a não hostilizar diferenças e povos, com o objetivo de processar a construção de coletividades contemporâneas, sem se sujeitarem aos rótulos da globalização e da mundialização.²⁵⁵ Sandra Goulart de Almeida, no artigo “As literaturas estrangeiras modernas em tempos de pós e muito mais…”, ressalta essa diferença de enfoque entre as comparadas:
Volto então às palavras de Spivak sobre a importante construção de coletividades contemporâneas no mundo intrinsecamente cosmopolita — ponto crucial para se refletir sobre a literatura comparada e os estudos de área. Segundo a autora, as coletividades atravessam fronteiras sob os auspícios da literatura comparada, suplementada pelos estudos de área, e podem ser pensadas em termos de uma “planetariedade” compartilhada, em vez de continental, global ou mundial. Spivak delineia um novo sentido para o conceito de globalização ao contrastá-lo ao termo cunhado por ela, planetariedade, enfatizando a alteridade e humanidade do planeta em oposição à construção e artificialidade do globo.²⁵
Pelo teor marxista e de esquerda do pensamento de Spivak, sua posição diante da literatura comparada apropria-se da teoria da amizade, desenvolvida por muitos autores, mas se posiciona de modo distinto às restrições feitas por Jacques Derrida quanto aos conceitos de hospitalidade/hostilidade. Propõe, no lugar de hostilidades e artificialismos causados pela globalização, a abertura para maior aceitação do outro, o que resulta no apelo humanista. Esse argumento, com vistas à situação dos países emergentes, estaria talvez assumindo a ideologia às avessas da globalização, por defender a aproximação entre literaturas periféricas. Essa proposta se insere em duas frentes: a primeira, por não considerar o diálogo possível entre literaturas de distintos países, irá defender a planetariedade entre periferias do globo; a segunda, insiste em isolar esse diálogo, o que não poderá resultar em ganho para a retomada dos estudos de literatura comparada entre países de diferentes condições culturais e econômicas. Diferenças à parte, percebe-se que os caminhos da literatura comparada na atual conjuntura não se apresentam de forma transparente, nem obedecem a critérios hegemônicos e deslocados dos múltiplos pontos de vista e ideologias. Torna-se cada vez mais complexa a tentativa de colocar em escaninhos princípios relativos às questões globalizadas das pesquisas no campo comparativista. Em concordância como a posição de Ferris, que acentua a impossibilidade de controle do campo da literatura mundial, daí a impossibilidade dos estudos de literatura comparada em alcançar qualquer atuação totalizante, Spivak põe-se em defesa das culturas subalternas e desmonta a ancestral hegemonia europeia. A impossibilidade revelada por esse tipo de abordagem expressa pelos dois teóricos vale-se do conceito de “indecidibilidade”, devido ao fato de ambas as posições se insurgirem contra o raciocínio binário e exclusivo. O conceito, no entender de Derrida, define-se enquanto desprovido de significado imanente, ao instaurar no seu bojo o conflito, a contradição, a intertextualidade, em resumo, “o que é demoníaco e demoniacamente ambíguo”. Cito Derrida que assim se expressa em Força de lei:
Associa-se frequentemente o tema da indecidibilidade à desconstrução. Ora, o indecidível não é apenas a oscilação entre duas significações ou duas regras contraditórias e muito determinadas, mas igualmente imperativas ou a tensão entre duas decisões. […] Indecidível é a experiência daquilo que, estranho, heterogêneo à ordem do calculável e da regra, deve entretanto — é de dever que é preciso falar — entregar-se à decisão impossível, levando em conta o direito e
a regra. Uma decisão que não enfrentasse a prova do indecidível não seria uma decisão livre, seria apenas a aplicação programável ou o desenvolvimento contínuo de um processo calculável.²⁵⁷
Nesse sentido, torna-se imperativa a defesa de posições por parte da crítica comparada pautadas pelo cuidado com o emprego de decisões as quais desconhecem os limites e as fronteiras entre povos e culturas distintas. O indecidível não pretende relativizar as relações, mas conceder direitos de resposta e de diálogo entre literaturas periféricas e ante as consideradas hegemônicas. No rompimento com o binarismo e a essencialidade, comprova-se a abertura da disciplina à comunidade heterogênea representada pelas variadas culturas. Para Ferris, o que de mais importante contém o histórico da disciplina — a situação de impossibilidade da literatura comparada, sua indecidibilidade — corresponde à sua descrição como “disciplina do exílio”. Entende ser ela a que produz a si própria por se exilar de um lugar cuja impossibilidade afirmará sempre seu exílio.²⁵⁸ É curioso remeter à experiência europeia do exílio, quando vários comparatistas partem para os Estados Unidos e ali irão impulsionar os estudos no campo da Literatura Comparada. A necessidade de incentivo à interlocução entre culturas diferentes, com o intuito de se pensar num intercâmbio desejável, a fim de serem apontadas não apenas semelhanças, mas também diferenças entre elas. Trata-se ainda de uma questão política, considerando estar o exilado numa situação mediadora, com vistas à abolição do isolamento inerente à ausência de diálogos transnacionais. A presença do quadro de estranhos à academia, com experiências distintas, e muitas vezes desconhecidas dos nativos, impulsiona o olhar de estranhamento e a possível mudança na atmosfera acadêmica. Exemplos são muitos, entre eles as figuras de René Wellek, criador da cátedra de Literatura Comparada na Universidade de Yale — e autor de vários livros sobre o tema —, Erich Auerbach, que escreveu o livro de ensaios Mimese, em Istambul, privado de sua biblioteca e confiando apenas na memória, além dos teóricos recentes da crítica cultural, como Spivak, Edward Said, Homi Bhabha, entre muitos outros. Susan Bassnett, pesquisadora inglesa vinculada à Teoria da Tradução, considerada uma das importantes correntes da Literatura Comparada, concorda com Spivak quando desconsidera a comparada como disciplina, redefinindo-a
como um dos “métodos de abordagem da literatura”, os quais recebem diferentes interpretações conforme o momento histórico e distintos tipos de leitor. A autora acredita no futuro da literatura comparada enquanto desprovida de caráter prescritivo na definição do objeto de estudo, expandindo e transferindo experiências culturais. Permanece, portanto, a necessidade de serem colocados em xeque os controles e imposições disciplinares. As supostas crises da literatura comparada são atribuídas, segundo Bassnett, autora, “ao excessivo prescritivismo, combinado com metodologias específicas distintas culturalmente, impossíveis de serem universalmente aplicáveis ou relevantes”.²⁵ Em um capítulo de minha autoria, intitulado “Crítica cultural em ritmo latino”, faço referência à atual dissolução do conceito de disciplina como entidade fechada, além de apontar, a partir de reflexões já feitas por colegas, seu estatuto de pós-disciplina. Cito:
Tanto a literatura comparada quanto os estudos culturais — e mais especificamente a crítica cultural — não se definem mais como campos disciplinares definidos e estáveis. “Teorías sin disciplina”, título referente ao projeto apresentado pelo “Grupo Latinoamericano de Estudos Subalternos”, tendo Santiago Castro-Gomez como um dos membros, poderia ser uma das saídas para a complexa discussão sobre o campo disciplinar contemporâneo. O trânsito das teorias, a contaminação salutar de conceitos de várias disciplinas, a elasticidade e tolerância das fronteiras textuais, seria ilusória e impossível se pensar numa situação epistemológica dessa natureza?²
Em virtude da operação crescente da transdisciplinaridade, tornou-se inoperante a oposição ou separação entre as disciplinas, da mesma forma que se redefiniam os objetos de estudo em literatura comparada e estudos culturais. Nada mais coerente seria reforçar, atualmente, não só um clima de pós-disciplina, como também de pós-teoria, por entender que é por demais evidente a ausência de teorias impostas às análises textuais ou de outra ordem, além da atitude comum a muitos críticos, a de se manterem fiéis à leitura empírica e à paráfrase literária. É forçoso assinalar a estreita relação entre Teoria da Literatura e Literatura Comparada, pois aquela disciplina, desde sua introdução, na década de 1960 nas
faculdades de Letras no Brasil, nunca se manifestou restritiva quanto à escolha do objeto de estudo. Tal posição metodológica teve a vantagem de se mostrar parceira da recepção de teorias estrangeiras no meio acadêmico, tendo em vista a necessária renovação das leituras tradicionais em torno da literatura. Embora na denominação da disciplina constasse a literatura como objeto, a sedução pela teoria sobressaía em muitos departamentos de letras e entre profissionais, resultando na livre seleção de outros objetos, como música, cinema, artes plásticas. O fechamento disciplinar, causado, infelizmente, por alguns representantes de correntes críticas literárias, poderá ameaçar a desejável transdisciplinaridade, principalmente se persistirem políticas acadêmicas centradas na defesa de autonomias e exclusões. Constata-se, assim, que os concursos de ingresso aos cursos de Letras têm, na maioria das vezes, exigido diplomas específicos da área, desconhecendo a formação de doutores pertencentes às demais disciplinas de Letras ou de Humanas. Uma das razões da pluralidade de enfoques assumida pela literatura comparada reside no deslocamento promovido pela prática transdisciplinar e pela atenção distraída em direção a uma classe de teóricos movidos pela desconfiança quanto à rigidez dos conceitos e dos métodos. No âmbito das ciências humanas, a gradativa falta de identidade da comparada não está em descompasso com a pluralidade de feições existentes nas demais. A procura pela identidade e rigidez disciplinares no interior dos discursos críticos contemporâneos consiste na aventura destinada ao fracasso, considerando ser sua particularidade o rompimento dos princípios reguladores da racionalidade moderna. Em virtude da flexibilidade teórica do pensamento filosófico pós-estruturalista, representado por Jacques Derrida, Michel Foucault, Gilles Deleuze, entre outros, é o que justifica a revolucionária inserção do limite tênue entre teoria e ficção. A indecidibilidade da disciplina não compromete, de forma alguma, a importância alcançada no campo heterogêneo das ciências humanas, pelo fato de se impor no debate acadêmico dos estudos de letras como precursora de avançadas ideias que hoje são — ou não — facilmente aceitas. É necessário frisar que o sinal de menos implica um sinal de mais, em que a indisciplina restitui o vigor e o movimento, em que a carência do lugar fixo passa a ser ocupada pelo deslocamento e o devir. A prática transdisciplinar e a dimensão transnacional dos objetivos e metas das pesquisas nesse campo respondem pela revisão dos caminhos impostos pela globalização — ou a planetarização defendida por Spivak —, com a redefinição de conceitos operatórios e a revitalização do olhar existente na cultura dos países emergentes.
Como última provocação, pretendo discutir o tema apresentado para a realização do XII Congresso Internacional da Abralic, realizado na Universidade Federal do Paraná, entre 18 e 22 de julho de 2011. Poderia servir de exemplo quanto à urgência em refletir sobre os inusitados perfis assumidos pela disciplina ao longo dos tempos e conforme linhas ideológicas que cada grupo passa a defender. Teria um dos objetivos que comandam os Congressos a obrigação de romper com posições controversas anteriores, no intuito de manter a ordem instaurada no caos disciplinar, controlando a ausência de limites frente a outras disciplinas? Reproduzo a proposta da diretoria da Abralic, por ocasião da chamada referente à realização do Congresso:
A Abralic completa seus 25 anos de fundação num momento decisivo para a área de Literatura Comparada. A partir do início dos anos de 1990 fomos tomados por uma forte desconfiança, de natureza ética, que levou a disciplina a questionar tanto seu objeto — a literatura — quanto alguns de seus pressupostos básicos — a centralidade do estético, o conceito de nacional. Na primeira década do novo século, no entanto, tem sido possível retomar, por meio da revisitação a um conceito como o de Weltliteratur, por exemplo, esse mesmo objeto e esse mesmo conceito. Sem abrir mão das desconfianças, por um lado, e, por outro, tirando partido do lugar que o Brasil ocupa, o momento é propício para discutir a retomada da centralidade dos Estudos Literários para a Literatura Comparada, o papel das teorias nesse contexto, além da própria lógica centro-periferia. Num mesmo movimento, o centro e os centros, o ético e o estético.² ¹
Reveste-se a proposta de uma série de retrocessos de ordem teórica, e de pressupostos que contradizem o que defendo, neste ensaio, como abertura transdisciplinar. A retomada da centralização do estético, obedecendo a uma desconfiança de natureza ética, destrói todo e qualquer avanço que a transdisciplinaridade tem conseguido alcançar nos últimos tempos, no sentido de permitir a convivência salutar e não doentia entre as disciplinas, por acreditar na quebra de hierarquias no meio literário e canônico. A visão horizontal das questões ligadas às disciplinas e a valores estéticos e éticos que envolvem a literatura e seus lugares de legitimação impede a visão verticalizada e hierárquica do pensamento disciplinar. Não se trata de rasurar e de desmerecer a estética, trata-se de sempre deslocá-la, de sempre fazê-la conviver com valores
que ultrapassam as fronteiras de uma disciplina que se quer única e autônoma. Problemática é ainda a referência ao conceito de nacional, se levarmos em conta as considerações da Weltliteratur inauguradas por Goethe, quando discorre sobre a literatura universal — posição hoje entendida no seu viés colonialista, mas que representa um passo significativo para o diálogo cultural realizado na Alemanha, tendo em vista a necessidade de interlocução com outras literaturas. Portanto, não será no início do século XXI que iremos ignorar o caráter transnacional da literatura comparada. O momento das desconfianças torna-se, contudo, a estratégia possível de dinamizar o terreno cultural, impulsionando atividades de redefinições e revitalizações teóricas. Retomar a centralidade dos estudos literários para a literatura comparada enclausura tanto o objeto quanto o método, pois toda e qualquer tentativa de delimitação do campo de atuação analítica redunda em fracasso e em perda da visão comparatista. A retomada da prática do conceito de literariedade, inaugurada com o Formalismo Russo no início do século XX, embora seja reconhecido até hoje como inaugural, confirma o isolamento de teorias literárias e comparadas no seu campo específico de ação, sem a oportunidade de conviver com outras áreas do saber. Torna-se inoperante circunscrever princípios metodológicos para as pesquisas de literatura comparada, uma vez que as entradas interpretativas se sujeitam a múltiplas tendências, tal a fertilidade e heterogeneidade das propostas analíticas. A defesa da soberania da literatura ignora os critérios de horizontalidade e ausência de hierarquias entre as disciplinas. Tanto os discursos literários quanto os métodos comparativos sofreram transformações ao longo dos anos, notadamente em virtude das mudanças culturais e geopolíticas da atualidade. As disciplinas são pautadas pelo decurso da história, com suas variações e movimentos contínuos, não tendo mais prerrogativas de ordem essencial e absoluta. A mutabilidade e o espaço nômade dos conceitos e reflexões só tendem a ampliar o horizonte nem tão sombrio da disciplina/indisciplina literatura comparada.
(2012)
254 No original: “Was comparative literature then always, and avant la lettre,
postmodern? Or is there something else at work in the history of its development, a logic that drives comparative literature to question continually what constitutes it as a discipline? Is this a logic that also ensures, in its calculation, that the answer to what comparative literature is should always fail in order to preserve the question? This inability to define itself, this failure to become a discipline, in effect, this indiscipline — why does it not disappear in the distraction of our presumed postmodernity?” (FERRIS, David. Indiscipline. In: SAUSSY, Haun (ed.). Comparative Literature in the age of globalization. Baltimore: Johns Hopkins University Press, 2006, p 80, tradução de Anderson Bastos Martins). 255 Cf. SPIVAK, Gayatri C. Death of a discipline. New York: Columbia University Press. 2003. 256 ALMEIDA, Sandra Regina Goulart. As literaturas estrangeiras modernas em tempos de pós e muito mais…. Conexão Letras, Porto Alegre, v. 3, n. 3, 2008, p 99. 257 DERRIDA, Jacques. Força de lei. Tradução de Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p 46, grifos do autor. 258 FERRIS, 2006, p 94. 259 Cf. BASSNETT, Susan. Reflections on Comparative Literature in the twenty-first century. Comparative Critical Studies, v 3, n 1-2, 2006, p 6. 260 SOUZA. Eneida Maria de. “Crítica cultural em ritmo latino”. In: SOUZA, Eneida Maria de. Tempo de pós-crítica. Belo Horizonte: Veredas & Cenários, 2012, p 151. 261 XII Congresso Internacional da Abralic, realizado na Universidade Federal do Paraná, entre 18 e 22 de julho de 2011. Esta citação foi publicada no site da Abralic, à época do referido congresso.
50 ANOS DE FENOMENOLOGIA DA OBRA LITERÁRIA
Cinza é toda teoria e verde apenas a árvore esplêndida da vida.
Goethe
As conotações de neutralidade, abstração ou ausência de vida atribuída à cor cinza correspondem, em Goethe, à oposição romântica entre razão e emoção, teoria e prática, morte e vida, implicando a recusa de teoria e promovendo a fetichização da prática. Citada em epígrafe, a frase de Goethe salta da memória para o papel em branco, gesto que marca aí sua presença constante, desde o dia em que a ouvi pela primeira vez em aula de Maria Luiza Ramos. A partir desse momento, ela ecoa infinitamente, não apenas como afirmativa a ser questionada, mas como expressão mágica que diz muito mais pela sua sonoridade e ritmo, do que pelo seu sentido. A cor cinza sempre esteve ao lado da verde, embora lutassem constantemente entre si, no jogo infinito de ausência e presença do vivido. Na emergência de narrar um percurso acadêmico, o ritmo das cores volta à cena, exigindo a escolha do tom. O cinza da neutralidade — mas também do esboço, dos começos partidos, do rascunho — ou o verde da árvore que se ramifica no texto? A escrita, espaço em que a combinação das cores somente se atualiza no momento de seu fazer, revive e apaga, simultaneamente, os traços de vida do texto. Relatar a importância que a teoria da literatura exerce na minha vida acadêmica é como situar-me diante daqueles objetos que há muito nos acompanham, tornando-se difícil delinear ou descrever seus traços. A proximidade com essa disciplina impede que a perceba em seu contorno definido, pois a teoria transformou-se em prática — e a literatura, numa das formas de vida. Se no início da convivência ela surgia como instrumento auxiliar para a leitura dos textos, com seus métodos e técnicas, aos poucos foi se impondo como objeto privilegiado de exame. Tornou-se espaço de reflexão, marcando sua presença
efetiva no interior de outros saberes que perpassam a história. Tornada parte de um universo mais amplo, o das ciências humanas, a teoria da literatura exigia ser compreendida na sua dinâmica relação com outros discursos. Para conhecimento maior de si própria, promovia essa abertura para o outro e o diferente, através da migração contínua dos conceitos e da apropriação de métodos de distintos ramos do saber. A história da teoria da literatura na Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) está intimamente associada ao papel desempenhado por Maria Luiza Ramos, não só por ser ela a responsável pela formação de grande parte de uma geração dessa Faculdade, como por ter implantado o ensino da disciplina no curso de graduação, nos anos 1960.² ² O percurso da Teoria da Literatura foi marcado pela presença sempre constante de outros discursos que com ela se relacionam, como a Filosofia, a Linguística, a Antropologia, a Sociologia, a Psicanálise e a Semiologia. Desde o período de sua implantação na Faculdade, a disciplina esteve ao lado da Filosofia, sua interlocutora mais constante. Criado em 1985, o Doutorado em Literatura Comparada, cuja importância se estende até nossos dias, teve Marilu (apelido afetivo adotado por todos nós) como uma de suas fundadoras. Com a natureza interdepartamental que caracterizava o curso, os estudos de Teoria da Literatura receberam novo impulso, ampliando-se o polo de interesse da disciplina para uma reflexão preferencialmente histórica e cultural. O curso contribuiu ainda para a formalização e sistematização da realidade existente na Faculdade de Letras, historicamente praticada nos setores de Literaturas Nacionais e Estrangeiras e de Teoria da Literatura: a interdisciplinaridade, a recepção e releitura de teorias e literaturas estrangeiras e a questão sobre a dependência cultural. Incentivou-se, dessa maneira, a relação entre os departamentos, uma vez que o doutorado contempla uma gama diferenciada de interesses ligados às diferentes literaturas, bem como o convívio interdisciplinar com outras áreas de conhecimento, solicitadas a participar igualmente do curso. As mudanças administrativas do momento, quando se optou pela extinção dos departamentos, conserva, ainda com mais vigor, a relação profícua entre as disciplinas e a liberdade na produção de pesquisas que rompem os muros da instituição.² ³ A escrita deste texto da memória apresenta-se, portanto, como suplemento ao Memorial de professora titular de Maria Luiza, defendido em 1981, por intermédio de uma assinatura que pretende dar continuidade às reflexões sobre a prática da teoria da literatura desenvolvida na instituição.
Para expressar o reconhecimento pelo seu trabalho, tomo de empréstimo a metáfora de “A teia da Odisseia”, título do ensaio que serviu de fio condutor ao seu relato de experiência acadêmica, remetendo-a ao lugar ocupado pela professora na história da disciplina. A certa altura de seu Memorial, Maria Luiza Ramos retoma o fio desse estudo para acentuar o caráter inacabado de seu texto: “Não considero ‘A teia da Odisseia’ um trabalho terminado, tanto assim que faço aqui frequentes referências a aspectos diversificados que me ocorrem depois de entregue o texto para a revista.”² ⁴ A teia de Penélope, entre outras teias, traduz uma tarefa na verdade infindável, sugerida não só pela dimensão do tema da mulher tecedeira — o lugar conquistado pela intelectual e pela pesquisadora — como pela trama que, ao longo do tempo, foi urdida pelo seu texto teórico, acadêmico e pessoal. É notório assinalar que em 1958 ela se inscreveu candidata ao concurso para professor catedrático na Faculdade de Filosofia e Letras, sediada no Edifício Acaiaca, durante o período de 1953 a 1961. Concorrendo com o professor Wilton Cardoso, Marilu ficou em segundo lugar no concurso, recebendo, em 1963, o título de livre-docente. Consegue, em 1961, ser admitida como professora na Faculdade, com a criação de uma disciplina até então inexistente no currículo, intitulada Teoria da Literatura. Antes de ingressar na Faculdade, desempenhou, com eficiência, a profissão de jornalista, ao assumir a direção do Suplemento Literário do Diário de Minas, o que lhe propiciou uma experiência ímpar no campo da crítica literária. A oportunidade de tornar-se professora titular só viria a se concretizar, por incrível que pareça, em 1981, quando presta novo concurso para o cargo, uma vez que as vagas para essa categoria acadêmica eram, à época, muito escassas. A foto em tela, que me foi cedida por Silviano Santiago, registra o momento em que a jovem professora prestava concurso diante da banca examinadora, em frente à mesa repleta de livros, o olhar sempre inteligente e cativante e diante de uma plateia digna de ser hoje lembrada por nós. Entre Fábio Lucas, então seu marido, à direita, trajando roupa clara e de óculos de aros brancos, pode-se identificar a professora Maria José de Queiroz, ao lado de Monsieur Vincent, também professor da faculdade; no centro da foto, em posição próxima a Monsieur Vincent, figura, talvez, a escritora Laís Correia de Araújo. À direita, de camisa branca e óculos, o ainda aluno Silviano Santiago, e atrás, de pé, Heitor Martins, também estudante, futuro professor de Literatura Brasileira nos Estados Unidos. A memória do concurso prestado foi registrada por Marilu em texto incluído na Revista Aletria, da Faculdade de Letras da UFMG, em edição comemorativa aos
quarenta anos de sua fundação:
Com uma tese intitulada Psicologia e estética de Raul Pompeia, enfrentei esse novo desafio, concorrendo com um professor que já ocupava, interinamente, a cátedra de literatura portuguesa. Dos cinco membros da banca examinadora, obtive apenas duas indicações, tornando-me, pois, livre-docente. Essas indicações, porém, tiveram para mim um valor qualitativo e muito me honraram, porque partiram dos Professores Cyro dos Anjos e Guilhermino César, que, além de serem os dois professores que efetivamente lecionavam literatura — portuguesa e brasileira, respectivamente — eram escritores de reconhecido mérito.² ⁵
A nova disciplina, intitulada Teoria da Literatura, começa a ganhar espaço e importância no currículo de Letras do país, notadamente nos anos de 1960, por iniciar distinta reflexão crítica sobre a literatura, o que a colocava em posição de destaque entre as outras. Com o avanço dos estudos de ordem sincrônica, iniciados pela Linguística, e o consequente rompimento com a pesquisa diacrônica, o texto literário é interpretado na sua autonomia e especificidade. A Teoria da Literatura passa a ser considerada ciência da literatura, por se caracterizar, principalmente, pela demonstração das leis e processos que regem o texto literário e, para tal, formula e elabora métodos, categorias e conceitos próprios. Juntamente com as mais notáveis correntes de crítica do século XX — tais como o formalismo russo, o estruturalismo de Praga, o new criticism anglosaxão e a estilística — a fenomenologia de Husserl nos chega pelas mãos de Marilu, responsável pela reelaboração e divulgação, entre nós, de seus pressupostos teóricos. Adaptada à análise da obra literária pelo romeno Ingarden e divulgada, no livro Teoria da Literatura, por Wellek e Warren, a fenomenologia se expande nos cursos de Letras do país, graças à publicação, em 1969, de Fenomenologia da obra literária, pela editora Forense Universitária. Com esse livro, a autora recebeu, em 1968, talvez com a apresentação dos originais, o Prêmio Mário de Andrade, pelo Instituto Nacional do Livro, contando, até hoje, com quatro edições, em 1969, 1972, 1974 e 2011, esta última pela editora UFMG. As lições de interpretação de textos contidas nesse livro revolucionaram o ensino da literatura nas faculdades de Letras do país, pois na época a disciplina não contava ainda com uma bibliografia específica publicada no Brasil. Teóricos estrangeiros eram lidos na versão original, o que é menos corrente na atualidade, em virtude do número cada vez maior de traduções de obras relacionadas à matéria. Com a ajuda de especialistas em língua alemã, Marilu pôde ler o livro do romeno Ingarden, traduzido para o alemão, servindo-se ainda da contribuição de Moacyr Laterza, quanto ao aprofundamento dos princípios da fenomenologia de Husserl. Na estrutura apresentada pela autora em Fenomenologia da obra literária, o objeto literário é examinado no seu sistema complexo de “estratos”, camadas de significação superpostas que são detectadas com o emprego do instrumental metodológico fornecido pela fenomenologia. Operando de forma estrutural na interpretação do texto, tanto na poesia como na prosa, o método realiza a
decomposição e recomposição de seus elementos internos, movimento que aponta a tendência comum aos outros procedimentos de abordagem intrínseca da literatura. Com o objetivo de tornar mais eficiente e esclarecedora a proposta defendida por Marilu na apresentação do método fenomenológico, cito a passagem que abre o capítulo 1, “O método fenomenológico”:
Roman Ingarden foi quem instituiu nos estudos literários o procedimento científico preconizado por Husserl, cujo objetivo era voltar às próprias coisas — Zu den Sachen selbst zurückgehen (Husserl, 1985, S10). Estava assim operacionalizado na literatura o “método fenomenológico”, que também se desenvolvia em outras áreas do conhecimento. No caso específico da literatura, a pesquisa viria recair, pois, no próprio objeto de estudo, ou seja, a obra literária. Esta deixaria de ser considerada segundo o critério tradicional de forma e conteúdo para constituir-se num sistema de estratos heterogêneos, dependentes entre si e inseparáveis como existências autônomas: “… apesar da diferença de material do estrato isolado, a obra literária não constitui um feixe de elementos justapostos, mas uma construção orgânica, cuja uniformidade se baseia exatamente na peculiaridade do estrato isolado”. Esses estratos, que compreendem o estrato fônico da linguagem, as unidades significativas de âmbito morfo-sintático, os objetos representados e os aspectos sob os quais eles se apresentam, o que conduz ainda a certas qualidades metafísicas a ele inerentes, conferem à obra literária uma existência sui generis, que não é real, nem mental, nem ideal. Com efeito, a obra literária não apresenta o modo de ser de um artefato, apesar de sua presença física, nem se confunde com a sensação da dor, embora se realize através da experiência; sequer existe de maneira ideal como um triângulo, porque é histórica e tem raízes em determinado tempo e lugar.²
O nível erudito e atualizado das leituras apresentadas pela autora seguia as tendências das pesquisas literárias existentes nos grandes centros europeus, o que permitia ao leitor interessar-se por obras consideradas quase que obrigatórias para sua formação acadêmica. Além dos autores que embasavam o núcleo
teórico e metodológico, ela introduzia reflexões sobre estudiosos ligados à crítica literária e semiológica, como Wolfgang Kayser, Emil Staiger, Umberto Eco, Julia Kristeva, Tzvetan Todorov, Roland Barthes, os formalistas russos, como Roman Jakobson, Yury Tinyanov, entre vários outros. A fenomenologia da obra literária ainda se ocupou, de modo permanente, com a divulgação e o conhecimento da literatura brasileira, com seus mais significativos poetas e prosadores, contato diário com as transformações realizadas por meio do culto à linguagem literária. Nada faltava ao crivo de Marilu, ao introduzir, de forma bastante criativa, manifestações literárias que ultrapassavam o âmbito nacional e atingiam literaturas estrangeiras, condição indispensável para a reflexão de nossa condição de país periférico em diálogo com as demais nacionalidades. Essa prática permitiu aglutinar textos de diferentes literaturas, impulsionando o trânsito livre da teoria da literatura. Ao romper com as barreiras contextuais das obras e considerá-las na sua natureza estética, privilegiava as semelhanças de ordem formal que desembocavam na concepção universalista da obra de arte literária. O reflexo dessas transformações no estudo da literatura comparada contribuiu igualmente para o repúdio da abordagem historicista e a defesa de categorias mais abrangentes com base em critérios de ordem estética. A contextualização operada pela metodologia utilizada atingia distinto modo de considerar os variados conceitos de temporalidade, entendidos no seu aspecto sincrônico e simultâneo das manifestações artísticas, procedimentos que encontram eco nas análises contemporâneas do comparativismo literário. Quem não se lembra de suas aulas sobre metáfora e metonímia, exemplificadas pela canção de Orestes Barbosa, Chão de estrelas? É evidente admitir que se alcançava o aprendizado de maneira palatável, alimentado pelo prazer estético, pela substituição ardilosa da retórica rígida e acadêmica pelo encontro com a música popular. Nesse sentido, a posição teórica e didática da professora reunia a leitura da alta literatura com a percepção do valor dos gêneros marginalizados pelo cânone. Não resta dúvida de ter sido a música popular — e continuar sendo — uma das manifestações artísticas imprescindíveis para a formação e compreensão de nossa cultura. A teoria da literatura bebia e ainda bebe nessa fonte. Nós, seus discípulos, enveredamos para essa linhagem, o que se comprova, no atual panorama da crítica literária e cultural brasileira, a presença do espírito de pluralidade, com ênfase não somente em discursos hegemônicos, mas em outros que irão priorizar diferentes opções textuais minoritárias. A herança mais significativa que nos legou Marilu reside na profunda combinação da teoria com a sensibilidade analítica, aliando rigor e experiência
estética, por meio de uma escrita ensaística de natureza fluida e elegante. Nossa formação em Letras na UFMG notabiliza-se, sem dúvida, pela abertura teórica, guiada por suas lições muito bem transmitidas e que perduram no nosso constante e obsessivo amor à pesquisa. Ao grupo por ela formado desde os anos de 1960, incluindo-se aí Maria Helena Campos, Vera Lúcia Andrade, Maria Nazareth Fonseca, Ivete Walty, Angela Senra, Maria das Graças Paulino, Orlando Bianchini, vieram se somar Maria Esther Maciel, Maria Zilda Cury, Haydée Ribeiro Coelho, Nancy Maria Mendes, Wander Melo Miranda, Luiz Cláudio de Oliveira, Marcus Vinicius de Freitas, Myriam Ávila, além de representantes de novas gerações, e todos se sentem herdeiros de seu eterno entusiasmo pelas novidades e interesses ligados aos saberes literários, teóricos e culturais. O exemplo de continuar sempre em busca de outras formas de conhecimento, aliado à prática e ao comportamento ético da profissão, permanecem vivos no nosso convívio acadêmico e pessoal. Resta acrescentar que a trajetória acadêmica de Marilu foi permeada por outras realizações, como a publicação de vários livros, como Interfaces: literatura, mito, inconsciente, cognição, pela Editora UFMG em 2000, em que desenvolve conceitos literários relacionados à prática interdisciplinar, como a psicanálise, vocação teórica exercida durante grande parcela de suas pesquisas, e Os avessos da linguagem, de 1990, agraciado com o prêmio da Prefeitura de Belo Horizonte; a criação da Revista de Semiótica, do Departamento de Teoria da Literatura da Faculdade de Letras, hoje extinto; o trabalho como membro do Comitê Científico do Instituto de Estudos Avançados Transdisciplinares da UFMG; os estágios de pós-doutorado nos Estados Unidos, França e Alemanha; as pesquisas desenvolvidas como bolsista 1A do CNPq, apenas para citar algumas de suas atribuições. No final dos anos 1970, quando exercia o cargo de diretora da Faculdade de Letras, em pleno regime ditatorial, foi intimada a fornecer endereços de alguns alunos da instituição, tendo recusado a solicitação. Sua atitude foi assim expressa no já citado depoimento prestado na Revista Aletria sobre sua experiência na referida Faculdade:
De nossa entrega ao imprevisível resultam os nossos atos. Chame-se a isso coragem, ou tenha o nome que tiver. Esse mesmo não me parece muito feliz, pois se aplica a emoções inteiramente contrárias. Quando, por exemplo, deixei a
diretoria da Faculdade de Letras, por me recusar a obedecer à Polícia Federal, que me intimara a fornecer-lhe endereços de um grupo de alunos e ex-alunos nossos, muita gente comentou a minha “coragem”. No universo dos meus valores, entretanto, coragem é o que seria necessário para o cumprimento daquela ordem.² ⁷
Encerro esta breve incursão na trajetória acadêmica de Marilu, registrando um fato que poderia contemplar a importância e o significado do livro Fenomenologia da obra literária que em 2019 completou cinquenta anos a serem devidamente comemorados. Por motivos ligados à vivência de um tempo que nos abarca e consome, não consegui encontrar na estante meu exemplar, referente à primeira edição. Conservei, contudo, as três edições subsequentes. Ao pesquisar na internet obre a circulação da obra, fiquei sensibilizada com a informação sobre a descrição do livro, com vistas exclusivamente à venda do produto: “livro com páginas pouco amareladas devido ao tempo, mas em bom estado para leitura.” Não seria esse amarelado das páginas seu maior valor, prova de sua permanência como obra rara e atestando valor em si, como muito bem nos ensinava Marilu ao discorrer sobre a linguagem poética enquanto desprovida de estatuto fiduciário, por responder pelo seu estatuto autônomo e eterno? “Em bom estado para leitura” seria a configuração de textos que não envelhecem com o tempo, exigindo releituras e revisitações.
(Inédito)
262 Conferir o histórico da disciplina Teoria da Literatura na UFMG, realizado por Maria Luiza Ramos, nas páginas introdutórias de seu Memorial. (RAMOS, Maria Luiza. Memorial. UFMG, 1981, p I-VI). 263 As palavras iniciais deste texto referem-se ao Memorial para Professora Titular, defendido em 1991 e publicado em 2007, intitulado Tempo de póscrítica. (SOUZA, Eneida Maria de. Tempo de pós-crítica. Belo Horizonte: Veredas & Cenários, 2012). 264 Cf. RAMOS, 1981, p 23.
265 RAMOS, Maria Luiza. Os caminhos da improvisação. Aletria: Revista de Estudos de Literatura, v 18, jul.-dez. 2008, p 63. 266 RAMOS, Maria Luiza. Fenomenologia da obra literária. 4 ed. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2011, p 21-22. 267 RAMOS, 2008, p 68.
Narrar é glosar — viver é narrar
De interpretação em interpretação, chegamos ao texto sem fim, para cuja leitura Roland Barthes convoca um leitor que movimente o sentido que escorrega, recupera-se e avança. Porque interpretar o texto não é dar-lhe um sentido mais ou menos instituído, mais ou menos livre. Não se trata de interpretações liberais, mas de apreciar de que plural o texto é constituído, já que o “eu” que se aproxima do texto é já em si mesmo uma pluralidade de outros textos, de códigos infinitos ou perdidos.
Dirce Cortes Riedel
A convivência acadêmica e pessoal com Dirce Cortes Riedel, desde os anos de 1970 até meados de 1990, não poderá ser definida de modo simples ou apressado. O convívio com a professora, crítica e amiga durante esse período foi alimentado pelas lições de literatura e vida e pelo entusiasmo constante em relação às novidades teóricas e às predileções literárias. Guimarães Rosa, ao lado de Machado de Assis, foi uma de suas eleições mais constantes, paixão crítica transmitida em sala de aula e divulgada em artigos e trabalhos dedicados ao escritor. A estreita ligação entre prática profissional e experiência moldou a imagem da intelectual nos seus vários aspectos, uma vez que o exercício da crítica literária se configurava parte integrante de um estilo de vida. Raramente encontram-se no espaço crítico e acadêmico pessoas empenhadas na realização da difícil simbiose entre teoria, literatura e vida, o que responde pela atuação desprendida de quem assim elege o magistério como forma de compromisso com os ideais de cidadania e de ética profissional. Nesse sentido, o lugar ocupado por Dirce no meio universitário e intelectual das últimas décadas do século XX não se restringe à atividade de crítica literária, mas abrange outras de igual ou maior importância, como a generosidade acadêmica e a abertura para amplos campos do saber. O legado de sua lição como incentivadora de novos pesquisadores e de projetos
institucionais se estampa na criação pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) da Casa de Leitura Dirce Cortes Riedel, onde se encontra o acervo aberto ao público e a possibilidade de realização de atividades relativas ao aprimoramento de suas escolhas literárias, com a oferta de cursos e conferências. A oportunidade de reverenciar sua obra por meio da consulta a manuscritos, livros de sua autoria, esboços de pesquisas e à biblioteca particular, permite maior conhecimento, divulgação e revitalização de sua imagem pública como eminente figura do sistema educacional brasileiro. Ao aceitar o convite para discorrer sobre sua atuação crítica em torno da obra de Guimarães Rosa, não poderei limitar-me, portanto, à sua produção escrita, por reconhecer o papel que exerceu como professora de literatura brasileira em diversas universidades brasileiras, incluindo-se aí a UERJ, a PUC-Rio e a UFMG. Como professora visitante ou efetiva, Dirce teve o mérito de introduzir uma abordagem singular aos textos do autor de Grande sertão, por meio da leitura centrada nos mínimos detalhes frente à linguagem tão complexa e diferenciada do autor. Essa atenção ao exercício minucioso dos procedimentos de linguagem é tributária de sua formação estilística, responsável pelo perfil de grande parte da crítica de sua época. A entrada fecunda do estruturalismo e do pós-estruturalismo no ambiente acadêmico da PUC-Rio nos anos de 1970 teve adesões da maioria dos docentes, destacando-se aí Luiz Costa Lima, Affonso Romano de Sant’Anna, Silviano Santiago e a própria Dirce. A escolha de uma linha teórica ou a preferência por este ou aquele pensador era distinta entre eles, razão pela qual se torna difícil estabelecer um parâmetro único para a recepção estruturalista/pós-estruturalista desse momento nos programas de pósgraduação.² ⁸ A posição da professora quanto a essas escolhas, marcada pela ausência de radicalismos ou fechamentos de teor ideológico, concorreu para a leitura de textos que se tornaram clássicos, como os de Gilles Deleuze, Mikhail Bakhtin, Roland Barthes, entre outros. A esse aparato teórico incorporava-se a interpretação das artimanhas de linguagem dos autores escolhidos, em concordância ao pensamento igualmente filosófico/literário de Rosa e de Machado. O interesse pela leitura dos procedimentos literários na sua integridade conseguiu reunir a boa tradição estilística às novas propostas de abordagem estrutural. E a essa reunião de ordem metodológica foi anexada a ampliação do conceito de texto, com o intuito de instaurar elos entre o estudo da linguagem, sua contextualização e as variadas associações interdisciplinares.
Os programas ministrados por Dirce no período de 1972 a 1974, referentes ao mestrado por mim cursado no Instituto de Letras da PUC-Rio, versando sobre temas os mais diversos — a literatura surrealista, obras de Guimarães Rosa (Tutameia e Primeiras estórias), A invenção de Orfeu, de Jorge de Lima, poemas de Murilo Mendes — privilegiavam a leitura pontual da obra de determinado autor. Grande sertão: veredas atuava como leitmotiv da reflexão sobre Rosa, demonstrada na atividade acadêmica e na redação dos ensaios. Com enfoque na composição da estrutura poética e narrativa dos objetos literários, sua investigação conduzia ao exercício meticuloso de análise textual. A crítica literária francesa fornecia também rico material de apoio às pesquisas sobre o movimento surrealista, as regras funcionais da narrativa e procedimentos estruturais de composição. Destacavam-se entre eles Julia Kristeva, Tzvetan Todorov, Philippe Sollers, Michel Zeraffa, Roland Barthes, representantes da vertente estruturalista da crítica e leitura quase obrigatória no meio acadêmico do momento. Essa bibliografia, lida por nós nas edições originais, nos era permitida adquirir na livraria Leonardo da Vinci, reduto da cultura francesa, ponto obrigatório para conversas e aquisição das últimas novidades literárias e teóricas. A abordagem crítica de Dirce revela-se dotada de rigor e sofisticação, ao conseguir reunir ingredientes da teoria literária e preceitos filosóficos, relacionar poética e mito, raciocínio filosófico e invenção, enunciado narrativo e conhecimento. A conjunção bem-sucedida entre esses discursos foi tributária da apropriação do pensamento deleuziano sobre o paradoxo, do mecanismo repetitivo e diferenciado das ações e do questionamento de verdades regidas pelo senso comum. Diferença e repetição, Lógica do sentido, Proust e os signos, entre outros títulos do autor, destacavam-se como referência para a articulação engenhosa dos conceitos a serem utilizados na crítica e como princípios norteadores do jogo discursivo. Exemplos retirados de textos de Guimarães Rosa constituíam — e ainda constituem — saída para a interpretação da literatura na sua natureza ambivalente, desprovida de soluções marcadas pela polarização do binarismo. O estatuto cambiante das verdades estabelecidas, o ir e vir das certezas, a sensação de angústia vivida pelo sujeito frente aos não saberes e às dúvidas resultavam na indecidível operação entre teoria e ficção, filosofia e literatura. O humor, protocolo de leitura derivado da reflexão deleuziana, exerce a função de norteador das ações e de argumento para esclarecer a enunciação literária de Rosa, na qual se substitui a relação conciliadora entre os termos pela convivência conflituosa entre eles. Exemplos da fórmula empregada pelo
escritor ao longo de seu texto registram a incerteza e a “diferença similhante” do processo construtivo do discurso, pela imposição de sentimentos de dúvida e indecisão frente aos acontecimentos: “É e não é”; “O senhor ache ou não ache. Tudo é e não é”; “ainda é… já não é”. Ou nas referências a Deus ou ao Diabo: “Deus existe mesmo quando não há”; “o que não há está solto”. Glosando a fala de Rosa, a arguta leitora reelabora teoricamente o impasse e endossa a contradição na maneira de lidar com o aspecto ambivalente da obra literária e de sua recepção. Seria essa uma das lições da ensaísta ao longo de sua produção crítica, estampada em livros ou na comunicação oral: o pensamento inquieto e a vigilância quanto aos princípios regidos pelo senso comum e pelas armadilhas da enunciação literária. Na esteira de Mikhail Bakhtin, duas obras muito estudadas na época — Problemas da poética de Dostoievski e A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais — apresentavam novas visões sobre a ligação entre literatura e ritual carnavalesco, afirmando a importância do elemento popular e dos gêneros considerados “inferiores” e impulsionando o conhecimento do universo imaginativo do sertão de Rosa, entre outras obras. O aspecto construtivista da linguagem completava-se pela observância crítica face às questões sociais e culturais, por entender a ensaísta ser limitada a interpretação da obra apenas pelo viés literário, valorizando-a na sua autonomia. Sob esse olhar crítico, a narrativa rosiana é a via principal de reconstituição do universo literário, povoado de atores e interlocutores. Tem o cuidado ainda de distinguir vários tipos de narradores no interior da obra, a distância entre vozes populares, enunciados enganosos e enunciações reveladoras. A reversibilidade de situações resultante da inversão de valores do rito carnavalesco, a ruptura com as normas e a precariedade da luta entre bem e mal encontravam eco na própria concepção de Rosa do aspecto inusitado e intempestivo do espaço do sertão. As peripécias das personagens, entregues ao acaso e ao desejo de mudanças, se resolviam à luz de happenings, de acontecimentos inesperados e de respostas que contrariavam o status quo. Formulações originais em relação ao conceito de fantástico se apoiam nessa reflexão, a ponto de ser entendido o conceito como fruto do “inevitável acaso”. Trata-se de uma das muitas acepções conferidas ao termo, ao ser considerado como efeito de narrativa, construído segundo as regras por ela impostas. Na abordagem dos contos de Tutameia, realizada durante curso ministrado sobre o autor, Dirce privilegiava os recursos literários do humor na construção da
narrativa e inaugurava, à luz das teorias de Deleuze, interpretação original do tema do destino. Pela incidência do humor, o sentido trágico do destino se desfaz, causado pelo acontecimento imprevisto e desestruturador. O desenrolar das ações, motivado por personagens que fugiam da normalidade, como velhos, crianças e loucos, conferia legibilidade ao acaso e provocava a inversão de valores consagrados pelos ditames da racionalidade. Na definição da autora, essa ação intempestiva, criada no próprio espaço textual, seria um espaço que transborda, “transvive uma suprarrealidade, numa realidade total — o ‘mil maravilhoso’. Um happening!”:
No happening do conto “Presepe”, de Tutameia, a verdade do Natal se torna visível na produção do sentido poético, através do “desarranjo do juízo de Tio Bola, o ‘caduco maluco’ que quis ‘ver visões’. Não parecia provável aquele presepe vivo, burrinho e vaquinha, o imbecil Anjão e a cozinheira Nhota, no curral, ‘contemplando Tio Bola no cocho, em companhia de Deus e das estrelas’”.²
Entre as diversas qualidades encontradas na figura da educadora, não é possível esquecer as reuniões mantidas em sua residência, com vistas à leitura e discussão de textos de autores de interesse para a crítica naquele momento, como LéviStrauss, Wittgenstein, Freud. Congregar pessoas e contribuir para a formação de uma comunidade pensante respondiam pelo sonho por ela acalentado durante sua vida dedicada à pesquisa e ao magistério. Sem a exigência do protocolo comum ao ambiente acadêmico, as relações e afinidades literárias iam se formando e se convertendo em amizades novas, das quais muitas ainda permanecem. A convivência com a jovialidade da mestra nos fazia sentir capazes de adquirir a sabedoria que dela emanava. As palavras de Rosa, “Mestre não é quem sempre ensina, mas quem de repente aprende”,²⁷ servem para definir a ausência de hierarquia que sempre a caracterizou, servindo de exemplo para todos nós. Não resta dúvida de que as mudanças de toda ordem verificadas na década de 1970 atuavam como abertura de caminhos em direção à dissolução de barreiras disciplinares e de comportamentos vinculados às propostas conservadoras e exclusivistas. Estávamos vivendo momentos de euforia no âmbito da revolução das ideias, obrigando-nos, contraditoriamente, a permanecer acuados frente às restrições causadas pelo regime ditatorial. As leituras convergiam para o debate
do momento, uma vez que seria inconcebível separar as teorias dos acontecimentos e das ações repressivas dirigidas contra a liberdade de expressão. Muito se comentava na ocasião a respeito da relação entre a abordagem estruturalista — a utilização de modelos lógicos de raciocínio e de critérios racionalistas — e o encobrimento da denúncia social e política como prova de alienação de seus seguidores. Neste particular, ignorava-se — e até hoje a história das ideias ignora — a ruptura propiciada pelas teorias desconstrutoras levadas a termo por eminentes pensadores, a maior parte de origem francesa. Comete erros de interpretação desses movimentos quem ainda se pauta pela acusação da metodologia de análise empregada, esquecendo-se de apontar a transformação operada no âmbito das ciências humanas quanto à ruptura do positivismo histórico e do humanismo, correntes de pensamento que vigoravam até então. No campo da crítica literária, antropológica, psicanalítica e outras, instaurou-se o procedimento analítico com base em critérios formalistas, com mudanças significativas quanto ao rompimento com a paráfrase, o biografismo, a intencionalidade e a descrição naturalista dos fatos. A desconfiança frente aos sistemas de poder e à imposição de verdades discursivas era moeda corrente nas discussões teóricas e nas interpretações de textos, não se desvinculando do compromisso assumido por grande parcela da crítica.
Dirce e Rosa Na releitura da contribuição de Dirce à obra de Guimarães Rosa, o leitor contemporâneo poderia se perguntar sobre a reduzida publicação dos artigos em livro, tendo em vista a proliferação de estudos sobre o autor na atualidade, graças à facilidade de editoração, inexistente em épocas anteriores. Somem-se a isso exigências acadêmicas para a formação de currículo do profissional, ao lado do gesto nem tão comedido de se publicar a qualquer custo. A título de curiosidade, a primeira tese acadêmica sobre o autor é de sua autoria, defendida em 1966 por ocasião do concurso para a cátedra de Literatura Brasileira na Universidade do Estado da Guanabara, intitulada Aspectos da imagística de Guimarães Rosa. Embora não tenha sido publicada em livro, encontra ressonâncias nos artigos escritos posteriormente. Em 1961, com O mundo sonoro de Guimarães Rosa, já havia escolhido o autor como tema da tese no concurso para a cátedra de Português e Literatura do Instituto de Educação do Rio de Janeiro, trabalho nunca publicado em livro, por deliberação da autora.²⁷¹
Explica-se ainda esse desconhecimento pelo pouco empenho das instituições em divulgar trabalhos dessa natureza, por terem as teses tratamento restrito ao ambiente acadêmico, ao lado da precariedade editorial do momento.²⁷² A revisita aos ensaios sobre Rosa, publicados de forma esparsa em jornais e periódicos especializados, além dos livros — Meias-verdades no romance, de 1980, com artigos sobre o escritor, e Viver literatura, coletânea organizada por Ana Cláudia Viegas²⁷³ — comprova a atualidade e a excelência desses escritos e a necessidade de se fazer justiça ao lugar da ensaísta na tradição da crítica rosiana brasileira. A compreensão do universo poético do autor teve como argumento principal a exploração do valor conferido à linguagem e à complexa teia narrativa de sua obra. Optou-se pela escolha do elemento popular como gerador de múltiplas vias interpretativas, seja na ênfase aos detentores de mudanças no sistema social, como loucos, crianças, seja na percepção do poético, não circunscrito à camada letrada, mas resultante da articulação do erudito com o popular. Entre os vários temas abordados por Dirce nos ensaios críticos distinguem-se o aspecto metalinguístico das estórias, a produção de narradores que se debatem entre vozes dissonantes da comunidade, o poder indiciador dos nomes próprios para a compreensão do desenrolar do enredo, a defasagem entre enunciado e enunciação, em que a produção textual funciona como ato e atividade poética. A cuidadosa análise do enunciado literário servia de base para a contextualização da crítica rosiana, ao se considerar as implicações sociais e políticas presentes nas propostas revolucionárias, tanto no âmbito da construção da linguagem quanto da narrativa. Por reconhecer Guimarães Rosa como representante privilegiado do cânone literário de seu tempo, a ensaísta reitera o grau de estilização da narrativa de Grande sertão: veredas, ao assinalar o poder da palavra diante do fato. Com essa afirmativa, restringe-se a oposição entre realidade e ficção, pelo gesto da memória narrativa em criar/destruir lendas e mitos, convertendo-se em “realidade pensada”. Ressalta, em outros contos, a figura do “narrador impessoal”, “o contador de estórias fantasiadas de história, narrativas já contadas, conferidas, fábulas postas em ata.”²⁷⁴ O gesto de contar estórias teria o estatuto do texto de segunda mão, ao se apropriar da fala alheia, distanciar-se do fato e endossar o mundo fabuloso da lenda. Na excelente abordagem da novela Buriti, associa o ato de narrar à glosa, focalizando-se na personagem de Miguel enquanto “ouvinte da narrativa de Gualberto”. A transmissão de mensagens malentendidas, o esforço em reconhecer a fala do outro se justificam pelas meiaspalavras e pelo complexo exercício de interpretação. Filia-se ainda à recepção
poética, quando a ensaísta tenta desvendar o mistério da poesia engendrada pela glosa de mensagens entre personagens: “Narrar é fornecer um mote; ler é glosar. Mas o texto também pode ser uma glosa de uma leitura que seja, por sua vez, a glosa de outra leitura… do real da estória.”²⁷⁵ A percepção do estatuto ficcional da realidade antecipa teorizações recentes centradas na articulação entre real e ficção, em torno da qual Jacques Rancière, em A partilha do sensível, conclui: “A poesia não tem contas a prestar quanto à ‘verdade’ daquilo que diz, porque, em seu princípio, não é feita de imagens ou enunciados, mas de ficções, isto é, de coordenação entre atos. […] O real precisa ser ficcionado para ser pensado”.²⁷ O aspecto fabuloso da fala rememorativa reitera a astúcia da enunciação rosiana, entendida pela ensaísta como o impasse entre as incertezas do sim e os volteios do não:
A força da palavra destrói o fato, que passa a não existir, obstruído pela fala do poeta: ‘Não escrevo, não falo! — para assim não ser; não foi, não é, não fica sendo! Diadorim…’ A realidade é construída pela palavra, que apaga a realidade vivida para fazer a realidade pensada. O narrador não toma conhecimento da morte, continuando a viver o mágico encantamento de Diadorim. Uma experiência que não se separa dos mitos e lendas dos Gerais, ‘nas beiras e matas escuras e águas todas do Urucuia’.²⁷⁷
Na lúcida interpretação dos discursos das personagens, o ensaio de Dirce ganha em atualidade, se for comparado aos demais especialistas da obra em questão. Embora os temas tratados por seus pares respondessem pelo enfoque literário, histórico ou político, o mérito de sua proposta residia na configuração mitopoética e filosófica de Rosa. Incentivada pela leitura praticada por vários teóricos, percebe-se que a afinidade com a abordagem filosófica de Benedito Nunes sobre o autor, resultante de sua formação, permite a integração da ensaísta nessa linhagem crítica. O exercício comparativo e interdisciplinar constitui uma de suas mais pontuais escolhas analíticas, por incentivar a abertura da crítica aos inúmeros campos do saber, incluindo aí teorias e literaturas estrangeiras. Sem preconizar o estatuto local e isolado das manifestações artísticas, Dirce sempre se comportou de modo avançado quanto à recepção de teorias e ao confronto comparativo entre autores de várias nacionalidades. Os exemplos são vários,
destacando-se o estudo contrastivo sobre o narrador/artista em Rosa e Lautréamont, no artigo incluído em Meias-verdades no romance, “O poeta em ação”, em que assinala as semelhanças e diferenças entre a construção narrativa de Grande sertão: veredas e Os cantos de Maldoror.²⁷⁸ Por se tratar de um autor de reconhecida amplitude intertextual de sua obra, pelas inserções de literaturas estrangeiras e do imaginário mítico e lendário do país, as relações comparativas exigem do crítico de Rosa abordagem correta e atenção aos diálogos entre culturas e autores. Lautréamont, Marcel Proust, Goethe, Machado, Alejo Carpentier, Georg Lukács, Roland Barthes, Walter Benjamin, Gilles Deleuze, Antonio Candido, Roberto Schwartz, Silviano Santiago, Luiz Costa Lima, entre outros, compõem o quadro referencial da ensaísta na sua produção crítica, conferindo ao trabalho analítico a possibilidade de pensar a cultura brasileira em termos de igualdade e diferença face às demais manifestações artísticas mundiais. A intertextualidade, conceito extraído de Julia Kristeva, via Mikhail Bakhtin, possibilitou a quebra de critérios relativos à prisão do pensamento periférico a questões de origem e lugar fixo onde as ideias poderiam ter nascido. Como elucidação dessa proposta, cite-se a passagem do ensaio da autoria de Dirce, publicado da década de 1990, em que a autora refuta concepções da crítica comparativa tradicional, pautadas pela decifração de fontes e influências, pela defesa do espaço textual periférico, responsável pela “desleitura-réplica” da herança europeia:
Porque o discurso literário não é a tematização de determinadas fontes e de determinadas maneiras de ver o mundo, que o informem e o conformem previamente, a subversão da ordem causalista, tão grata ao positivismo, contribuiu para reformulações do estudo de fontes e de influências, passando o texto a ser entendido como assimilação-transformação, desleitura-réplica de textos anteriores.²⁷
O papel subversivo da obra de Rosa manifesta-se no interior das instituições, da família ou da comunidade, pela ruptura de verdades oficiais e preconceituosas, convergindo para a releitura de tradições e da necessidade em produzir novas saídas. Na abordagem de alguns contos, como Pirlimpsiquice, O espelho, Presepe, Os chapéus transeuntes, incluídos em livros distintos, questionam-se
valores implícitos na constituição da ordem escolar e no discurso defendido pela visão adulta; a repetição de ritos estereotipados pelo senso comum, como o Natal; a decepção do sujeito diante da imagem perdida no espelho ou o aspecto residual de objetos simbólicos, como relógios, urinóis e chapéus, representantes da tradição patriarcal e burguesa. A denúncia social estaria implícita na desorganização dos rituais cotidianos, na desconfiança dos jovens diante de valores não mais sustentados pelas novas gerações. No texto “Ainda é… já não é”, Dirce destaca o conflito entre velhos e jovens, na desmistificação da tradição que aos poucos é abalada pelo rompimento com os vícios da retórica burguesa. A atenção aos símbolos reveladores da decadência familiar se enquadra, ao olhar da analista, à perspectiva alegórica, demonstrando fina percepção e crítica social. Walter Benjamin, teórico da alegoria barroca e autor atualmente consagrado no meio intelectual, já figurava como interlocutor de texto publicado no início dos anos 1980:
A importante nobreza impertigada, em que também o Ratapulgo se apoia, é fechada aos “evidentes exemplos do invisível”. Esta não percepção para a poesia faz questão de “história e espaço”. Nesta história e neste espaço, a arte dos urinóis, de faiança, de porcelana ou opalina, impõe-se ao narrador, cuja dicção se esmera na sua apresentação. O urinol, como signo, se faz imagem iterativa e degradada pela alegoria, no sentido que lhe dá W Benjamin. É o valioso objeto que contém os dejetos do poder, que o criado conduz com ostentação e que compõem a sua nenhuma individualidade. No mesmo plano de importância está o chapéu — guardião do que contém os detritos ideológicos do poder.²⁸
O questionamento de valores esclerosados da sociedade é sinal relevante de denúncia social, mesmo que a dicção rosiana inscreva-se, segundo a ensaísta, de forma alegórica e sutil. Evidencia-se aí sua lúcida percepção, ao defender a posição de Guimarães Rosa e de Machado frente aos movimentos sociais e à crítica cultural, surgidos nos anos 1980, conhecidos como “politicamente corretos”, pela exigência de compromisso da literatura com as causas políticas. Em “Interpretação e ficção: interpretação de interpretações e outras interpretações” discorda, à luz da reflexão de Lukács, de posições equivocadas de um crítico sobre a despolitização de Rosa, ao afirmar que “a história é eliminada” em Grande sertão: veredas, estando eliminada, dessa forma, a
“dinamicidade do real”. O virtuosismo de linguagem, qualidade incontestável da obra do escritor, serviria apenas para “separar a linguagem do homem”. Em Meias-verdades no romance, no capítulo intitulado “É e não é”, a autora já havia respondido a essa acusação, quando afirma não ser Rosa o “escritor da denúncia social direta”, por ser “o escritor da alegoria”. No seu entender, a posição crítica de natureza partidária se mostrava insensível aos apelos do texto, configurados pelos erros cometidos na defesa da militância política do discurso literário: “As denúncias são sutis, espraiam-se pela narrativa, insertas na lei do sertão, na lei do mais forte.”²⁸¹ Como reagiriam a essas ponderações as correntes da crítica contemporânea defensoras da voz das minorias e dos excluídos? Não resta dúvida de que a obra de Rosa tem servido de material importante para trabalhos de natureza histórica e política, cujos resultados revelam-se satisfatórios, embora sejam negligenciados, pela ênfase na análise temática, dos componentes narrativos e da linguagem. Seria desejável acenar para futuros leitores sobre o legado do papel de Dirce na tradição da crítica literária rosiana, em termos de uma leitura que congregue aspectos enunciativos e ingredientes de ordem temática. O jogo entre narrador/interlocutor/leitor exige a observância de nuanças da enunciação crítica, observando-se o lugar da fala do sertanejo, o vínculo à oralidade, à experiência e à especulação, assim como o registro do interlocutor letrado, à margem da realidade do sertão. Reside aí a complexa articulação na obra entre os registros erudito e popular, fala e escrita, ficção e realidade:
Ao intérprete de Grande sertão: veredas, apresenta-se uma situação toda especial. O narrador, jagunço aposentado, que está de “range-rede” quando “se inventa gosto de especular ideia”, propõe que a sua narrativa oral seja interpretada pelo visitante, que tem “carta de doutor” e a quem ele dita o texto. […] Como se trata de interpretação do sertão brasileiro pelo sertanejo local e a ele se opõem as ideias preconcebidas do letrado que vem de fora para observálo, impõe-se a assimilação de atitudes culturais: “Não me assume o senhor por beócio. Uma coisa é pôr no papel ideias arranjadas, outra é lidar com país de pessoas de carne e de sangue, de mil e tantas misérias.”²⁸²
O empenho em divulgar e incentivar novas reflexões no âmbito da crítica deve-
se, em grande parte, às atividades exercidas por Dirce no meio universitário e intelectual do país. Dentre tais atividades, destacam-se aquelas levadas a termo nas décadas de 1980 e 1990, como a organização de cinco colóquios na UERJ, ocasião propícia para que se ampliassem as fronteiras disciplinares. Com vistas ao aprimoramento dos discursos de história social e de filosofia, possibilitou o diálogo entre pesquisadores nacionais e internacionais, redefinindo os caminhos da crítica literária, da literatura comparada e cultural.²⁸³ No 2º Colóquio, dedicado à discussão do conceito de “interpretação”, coube à ensaísta a apresentação de um artigo no qual pontua e discute o termo, elegendo Machado e Rosa como intérpretes do Brasil. Justifica assim sua posição quanto ao igual reconhecimento do valor de representação social de pensadores e artistas, por desempenharem papéis relevantes na reflexão sobre história e cultura nacionais. Coloca-se ainda em defesa dos autores diante de afirmações errôneas de estudiosos de sua obra, revisitando, como argumentação de sua tese, a consagrada recepção crítica de ambos. Com o respaldo desses discursos e dos preceitos teóricos, sua contribuição para a avançada análise das obras conduz à elucidação de seu lugar no espaço político da crítica rosiana, sem radicalismos e conclusões extremas. A escolha de eminentes escritores de ficção como emblemáticos da cultura brasileira em distintos momentos efetua-se pela problematização do aspecto paradoxal das personagens, da presença do dialogismo como apelo à participação do outro e do “choque entre o homem e o mundo, entre o indivíduo e a sociedade”. Apropriando-se do discurso alheio, reformulando-o e reinterpretando-o, a literatura expande o discurso comunitário e responde pelo descentramento de preceitos próprios ao senso comum. Por ser a obra de arte “um mosaico de textos alheios”, o universo fabular de Rosa exerce, nas palavras da autora, a função de “operador compulsivo dessa heterogeneidade fragmentária.”²⁸⁴ Interpretante dos textos por ele assimilados e deglutidos, inscreve a ficção na rede infinita de significações, por meio da qual os discursos se desdobram e reinventam-se, impelidos pela força dos devires e da infinita interlocução dos leitores. Interpretar a produção crítica de Dirce Cortes Riedel poderia ser traduzida no gesto de apreço e consideração por quem dedicou toda a vida a narrar e glosar mensagens, muitas vezes de difícil entendimento, e a transmitir lições de solidariedade frente aos saberes e suas incertezas. A revisão da história da crítica no Brasil necessita ser incrementada pelo discurso acadêmico, na sua maioria ainda centrado na reprodução de teorias estrangeiras, em detrimento do quadro de representantes nacionais. Essa tarefa, ainda incipiente entre nós, elucidaria as
razões dos equívocos de julgamento e incentivaria a revisão do lugar que o pensamento considerado periférico é capaz de ocupar na história das ideias.
(2016)
268 Luiz Costa Lima trabalhava, basicamente, com a antropologia de LéviStrauss; Affonso Romano de Sant’Anna, com teóricos franceses da narrativa, assim como estudos sobre o carnaval, com base em Bakhtin e outros. Silviano Santiago introduziu o pensamento de Jacques Derrida, tendo organizado um livro com verbetes redigidos pelos alunos relativos à obra do filósofo. Para maior informação sobre a minha formação acadêmica na PUC-Rio, consultar Tempo de pós-crítica (SOUZA, 2012). 269 RIEDEL, Dirce Cortes. Viver literatura:- ensaios e artigos. Organização de Ana Cláudia Viegas. Rio de Janeiro: Eduerj, 2009, p 304. 270 ROSA, João Guimarães. Grande sertão: veredas. Rio de Janeiro: José Olympio, 1967, p 235. 271 Agradeço ao professor Ivo Barbieri a afirmação sobre a decisão da autora em não publicar a tese. Segundo ele, Dirce considerava esse estudo marcado pelo método estilístico, posição crítica revista por ela ao longo da carreira acadêmica. 272 É necessário mencionar a publicação, em 1959, pela Editora Livraria São José, de O tempo no romance machadiano, como resultado da tese de concurso de livre-docente em Literatura Brasileira prestado na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade do Distrito Federal. Esse texto foi reeditado pela Eduerj com o título Tempo e metáfora em Machado de Assis, que contém ainda Metáfora, o espelho de Machado de Assis (RIEDEL, 1974). 273 RIEDEL, Dirce Cortes. Meias-verdades no romance. Rio de Janeiro: Achiamé, 1980; RIEDEL, 2009. 274 RIEDEL, 1980, p 54.
275 RIEDEL, 1980, p 21. 276 RANCIÈRE, 2005. p 53-59. 277 RIEDEL, 2009, p 288. 278 “Riobaldo, o poeta em ação, não tem a violência e a virulência do narrador de Lautréamont. Não se trata, como para este, de atacar, sempre e por todos os meios, o homem e o criador, que não poderia ter engendrado tal verme. Com Lautréamont, o poeta é juiz cruel, como consciência linguística do homem e do mundo. É poeta estigmatizado, poeta maldito que renega os sonhos da infância, poeta vampiro, de crueldade extrema e instintiva, como a dos cães ferozes, que têm sede insaciável do infinito.” (RIEDEL, 1980, p 34). 279 RIEDEL, 2009, p 384. 280 RIEDEL, 1980, p 30. 281 RIEDEL, 1980, p 14-15. 282 RIEDEL, 2009, p 386. 283 Os colóquios, iniciados em 1987, com publicação em livro, terminaram em 1994: 1º Colóquio UERJ: “Narrativa: ficção e história”; 2º Colóquio UERJ: “A interpretação”; 3º Colóquio UERJ: “Sérgio Buarque de Hollanda”; 4º Colóquio UERJ: “América: descoberta e invenção”; 5º Colóquio UERJ: “Erich Auerbach”. 284 “Se a obra de arte pode ser considerada um mosaico de textos alheios, dos quais o autor é o ‘operador compulsivo dessa heterogeneidade fragmentária’ [Walter Moser], tais reapropriações podem ser lidas como interpretantes dos textos apropriados, gerando sentido novo, numa ‘degustação estética de tudo o que já foi dito’ [Vattimo. (RIEDEL, 2009, p 383).
Autocrítica da crítica
Minha participação na mesa-redonda intitulada “Crítica, autocrítica e política: as letras e a luta”, leva-me necessariamente a refletir sobre minha trajetória como estudante e professora de Teoria da Literatura na UFMG, passados cinquenta anos nessa experiência. Se em 1964 o recente ingresso na faculdade de Letras impedia qualquer manifestação de ativismo político de minha parte — o que irá se estender ao longo dos anos seguintes — 1968 marcaria não apenas o início de minha carreira universitária, como também a data de grandes acontecimentos no Brasil e no exterior. Representa a eclosão de mudanças processadas nos meios universitários, na sociedade e no acirramento da ditadura entre nós. Nos corredores da Faculdade de Ciências Humanas (Fafich), no antigo prédio da rua Carangola, em Belo Horizonte, a geração de recém-formados e de recémingressos no seu quadro docente acreditava estar participando de um momento histórico, tanto para as Letras quanto para a política universitária e do país. O clima de repressão se estendia para as salas de aula, ganhava as ruas e contagiava os frequentadores das rampas, dos elevadores e do saguão do prédio, pela comunidade que se movia pela voz do entusiasmo, da ousadia e do medo. Essa comunidade, no entanto, não se definia de forma homogênea, nem coesa e defensora dos mesmos princípios ideológicos e políticos. Na mescla um tanto difusa da memória pessoal e da coletiva, permanecia, com algumas exceções, o pensamento de sermos, habitantes do 7º andar, reservado às Letras, imunes às revoltas políticas e centrados, principalmente, no culto à literatura como a mais intocável e sublime manifestação do saber. O entusiasmo com as letras de Virginia Woolf, Kafka, Clarice Lispector, Guimarães Rosa, Sartre, nos encaminhava muito mais para a biblioteca e o devaneio do que para a atração efusiva e libertária das ruas. A literatura poderia ser considerada para nós, nessa época, o espaço de evasão, de alienação, de ruptura com questões relativas ao contexto, do gesto solitário ou da formação de outra comunidade de adeptos, apesar da leitura apaixonada que fazíamos de Sartre e de sua lição de humanismo e de liberdade. Passados muitos anos, com as lições legadas pelos mestres responsáveis pelas transformações políticas na França em maio de 1968, como Lacan, Deleuze, Foucault, Derrida, Barthes, Lévi-Strauss, entre outros, o balanço é positivo, pois
o estruturalismo e o pós-estruturalismo, se, aparentemente, não serviram como saída para os problemas imediatos vividos pelo discurso político entre nós, funcionaram como instrumento capaz de contribuir para a sistematização do pensamento. Essas lições eram, contudo, consideradas alienantes, por encobrirem as teias ardilosas do regime ditatorial. A prática de análise formalista e estrutural exercida pela crítica literária da época, com gráficos e jogos de raciocínio, embaralhava as cabeças nem tão pensantes da intelligentsia nacional. Contudo, o trabalho teórico e meticuloso de seus princípios permitiu a reflexão engenhosa sobre as práticas de poder dos discursos, da possibilidade de alcançar saberes produzidos pela rede de associações e de comparações entre situações, discursos e objetos. Os sonhadores, filme de Bertolucci sobre maio de 1968 na França, reforça o alto teor revolucionário exercido pela ação dos três personagens, revoluções sexual e política encenadas no interior de um apartamento burguês, tendo como leitmotiv a nouvelle vague, protagonizada pelo cinema francês e a herança do cinema estrangeiro. Os sons ruidosos e entusiastas da rua só foram percebidos pela violência da pedra atirada na janela, já no final da película. Ao lado da revolta política exercida nas manifestações de maio, no interior do apartamento parisiense se processavam mudanças de comportamento sexual, artístico e comportamental desses jovens. Política e libertação do corpo constituíam atitudes paralelas contra a repressão social e os ideais da elite burguesa. A pretensa contradição entre o que se passava nas ruas e dentro das quatro paredes do apartamento estampada no final do filme permite que se reflita sobre a complexa atitude por nós assumida durante esses anos de vivência acadêmica. Refiro-me ao nosso heterodoxo não lugar ocupado na instituição à qual pertencemos ou pensamos pertencer. A trajetória teórica de todo intelectual que se preze não consiste na valorização exagerada do que foi experimentado no passado, nem na recusa em repensá-lo. Sonhadores somos aqueles que acreditamos na retomada infinita e crítica dos conceitos, na reelaboração contextual e na abertura ao constante questionamento. As teorias permanecem e ao mesmo tempo mudam de pele, de lugar, de cor, de nomes, dependendo de sua atualização pelos novos leitores. Elas retornam graças à presença de distintos autores e questionamentos, emergindo intempestivamente e necessitando ser recicladas e restauradas. Os espaços de saber reservados à literatura, à cultura, à ficção, à vida e, por que não, à instituição, estão sujeitos à permanente transformação operada nos meios acadêmicos e culturais. Se pensar, como queria Deleuze, é dobrar, é
experimentar, é problematizar, instalamo-nos nesse barco à deriva, à procura de saídas e de possíveis respostas para indagações que dificilmente serão satisfatórias. Se a década de 1960 nos proporcionou a oportunidade de lidar com novos modos de pensar teoricamente e poeticamente, o século XXI exige ainda formas inusitadas de interpretar teorias e de situá-las nos devidos lugares de enunciação. A prisão a determinadas posições teóricas e metodológicas, sem nenhuma mudança de trajeto, concorre para a perda gradativa, ao longo do tempo, de sua eficácia. Em razão de circunstâncias históricas e políticas, os conceitos vão recebendo novas roupagens, ao serem assimilados e restaurados, sem, contudo, perderem seu valor original. Com o avanço dos estudos de literatura comparada e de crítica cultural, deflagrados principalmente no final dos anos 1970, tornou-se impossível ignorar o lugar de onde se fala, para quem se fala e para onde caminha nossa frágil e dispersa palavra. Essa indagação gira em torno de perguntas sobre o lugar e o não lugar da Literatura, das relações políticas e culturais entre os discursos e do papel do intelectual/professor em sala de aula e nas suas posições diante dos acontecimentos e da própria experiência. A comunidade das Letras comemora felizmente o fim da ditadura militar com saldo positivo e com diferenças de perfil, traduzidos na produtividade e empenho acadêmico, na formação de futuros pesquisadores e na abertura para a transdisciplinaridade, até então incipiente anos atrás. Uma comunidade que, embora arredia aos princípios de coesão e homogeneidade, caracteriza-se pela desconfiança quanto ao pensamento totalizador e totalitário, pelo respeito às singularidades e diferenças que povoam o terreno heterogêneo e complexo das humanidades. Corporação universitária ainda em fase de construção, por não admitir compaixão e paternalismos, mas por se configurar sob o signo da multiplicidade e, por que não dizer, da competitividade? A relação entre crítica e política não deveria ser entendida em termos pragmáticos ou de militância exercida ou não por seus representantes. Nesse particular, dois fatores deveriam ser apontados para a compreensão da complexa articulação entre crítica textual e crítica cultural, capazes de elucidar o nível de inserção ou de isenção política no discurso crítico: 1) A crítica textual concentra sua análise nos procedimentos considerados literários, definindo e estruturando os temas pelo emprego de metodologias que se concentram na explicação do texto e nas relações intertextuais e transdisciplinares. Essa posição crítica fundamentou-se nos princípios de teoria literária, de teoria filosófica e de outras áreas, as quais forneciam instrumento para o agenciamento interpretativo, transformando a crítica em exercício especializado e dependente da participação
acadêmica, instaurada de forma mais sistematizada após a criação de cursos de pós-graduação no Brasil. 2) As limitações da leitura textual foram aos poucos preenchidas por novas abordagens da obra dos autores e da sua inserção no panorama literário e cultural da época. A importância do enfoque comparativo e cultural no tratamento da obra motivou o interesse pela elucidação do diálogo dos escritores com a cultura estrangeira, assim como o papel desempenhado por textos que não eram considerados literários, como a correspondência, os diários e as memórias. Tornava-se ainda necessária nessa abordagem a ampliação dos conceitos de autor, escritor e intelectual para a revisão da historiografia literária e da construção de cânones. Na crítica textual, incluída a estruturalista, que se expandia para a literária, a linguística, a antropológica, a psicanalítica e a socialista, prevalecia a instituição do estatuto científico do objeto, destituído de caracterização naturalista e impressionista. No caso específico de minha experiência acadêmica, a teoria estruturalista foi, inicialmente, apreendida e atualizada pelos textos de pensadores franceses ligados à análise estrutural da narrativa, como Roland Barthes, Tzvetan Todorov, Julia Kristeva, entre outros. Com minha colega e amiga Marília Rothier Cardoso, iniciamos a leitura dessa bibliografia, tornamonos entusiastas das contribuições para o trabalho crítico, uma vez que se fazia sentir a urgência de novas abordagens do literário. A ida para a PUC-Rio para cursar o mestrado vinha ao encontro dessas aspirações. A experiência com o estruturalismo iniciante nessa instituição resultou na abertura para a compreensão da teoria como instauradora da ruptura com métodos e abordagens empíricas, por se impor como ciência e ter como meta a análise lógica e formal. A linguística já havia rompido a relação naturalista entre palavra e coisa; a psicanálise, com a descoberta do inconsciente; a antropologia, pela distinção entre natureza e cultura; e a sociologia, via Marx, desconstruía estruturas visíveis das invisíveis. Introduzia, assim, o conceito de mais-valia, instrumento diferenciador entre o valor final da mercadoria e a soma do valor dos meios de produção, assim como o valor do trabalho, a base do lucro no sistema capitalista. Com esse quadro teórico, ampliamos a compreensão dos pressupostos básicos do estruturalismo — e do pós-estruturalismo, pois a recepção dos dois movimentos foi simultânea no país — pela pesquisa de ordem epistemológica, em que se postulava a reflexão sobre os saberes constituintes das humanidades, não se restringindo à abordagem literária a prática crítica. Acrescentem-se aí o confronto transdisciplinar, o aproveitamento de lições retiradas de Foucault, como a relação entre saber e poder, a desconstrução
derridiana da origem como fundadora de verdades, e assim por diante. O aprimoramento do quadro conceitual da teoria literária era tributário da convivência com pensadores/filósofos/psicanalistas, interessados na discussão do discurso literário para o avanço de suas disciplinas. Esses discursos permitiram a extensão da abordagem literária, pela introdução de modelos analíticos e de inserções de ordem contextual e política, como foram os exemplos de Deleuze e Guattari, Lacan, Foucault e Derrida. A sofisticação e o emprego de procedimentos estruturais na crítica literária dessa época ainda se prendia à abordagem de ordem mais textual do que contextual, pelo fato de considerar a obra do ponto de vista de sua estruturação interna, sem que se criasse o diálogo com a história ou a cultura. A ausência de articulação entre texto e contexto impediu à crítica a ampliação da literatura para além de sua organização interna, como a discussão do lugar do autor entre seus pares, da recepção crítica de sua obra, da leitura intertextual e comparativa com outras literaturas ou com livros do próprio autor. Essa falha de abordagem guardava, contudo, avanços e qualidades inerentes à análise textual, pela atenção minuciosa aos detalhes, à construção de personagens e tramas romanescas. E mais ainda, é notória a percepção de ser a disciplina Teoria da Literatura sempre atenta à flexibilização do objeto de pesquisa, razão pela qual pude estender meu interesse para outros suportes que não fossem a literatura, como a literatura de cordel, o cinema, a música, entre outros. Pela prática semiológica, aliada à estruturalista, a noção de texto não se restringiria à prisão ao literário, tornando possível sua expansão para as demais manifestações culturais. Tendo em vista essas conquistas do estruturalismo, e mais tarde dos estudos culturais, já se prenunciava a fragilidade presente nos títulos das disciplinas, como de Teoria da Literatura ou de Literatura Comparada, pela desconfiança relativa à restrição ao objeto literatura. Com a abertura política, o discurso crítico consegue transpor obstáculos produzidos pela ditadura, quando se proibia qualquer manifestação em sala de aula sobre a situação política, seja em textos apresentados em congressos e palestras, seja em ensaios publicados em revistas ou livros. Na Faculdade de Letras havia sempre uma pessoa suspeita, escondida no final da sala, alertandonos para o controle da fala e do conteúdo da matéria a ser lecionada. Se grande parte da literatura desse momento assumia conotação alegórica, com alusões à repressão política, a participação da crítica muitas vezes teria que se valer de metáforas para denunciar o teor de denúncia dos textos. Não é difícil concluir o efeito destruidor da censura sobre os jovens e, de modo geral, sobre mestres e
intelectuais. Burlar a censura com abordagens meio sofisticadas e com o emprego de pares de oposição e quadros explicativos, ao contrário da opinião de quem pretendia detonar o método estruturalista, poderia significar uma possível saída enunciativa de natureza política. Em 1978 iniciei o doutorado em Paris, na Universidade Paris VII, e pude presenciar que o clima universitário era bastante distinto do nosso, com a participação de professores na luta pelos direitos de greve, na liberdade de expressão quando o tema era político. Os olhos e a mente da jovem aluna/professora começaram a se libertar dos preconceitos e limitações impostos pela ditadura às universidades e à sociedade. Senti, contudo, não estar no Brasil nesse momento, para vivenciar as mudanças que começavam a surgir, e, principalmente, com o retorno dos exilados. Quando voltei, em 1983, as transformações foram logo sentidas, nas conversas e no ambiente universitário, com a proliferação de greves e debates calorosos nas assembleias realizadas no campus. Senti-me, igualmente, na obrigação de devorar os livros autobiográficos de ex-exilados, como Gabeira, Sirkis, entre outros, e repensar a experiência da ditadura como aprendizado do presente. Em liberdade, de Silviano Santiago, publicado em 1981, recriava ficcionalmente o diário de Graciliano Ramos após a prisão, um alerta ao sentimento dos relatos recentes sobre as memórias da ditadura. Segundo o escritor, essas narrativas perdiam sua eficácia ao se transformarem em registro apenas documental, pautado pelo ressentimento e a dor. Nesse sentido, o direcionamento mantido em relação à leitura de experiências não vividas por mim, mas pelos outros, me conduziria contrabalançar os discursos de natureza mais narcisista com os demais, nos quais inexistia esse sentimento de autopromoção. Este texto mantém o pacto com o passado de forma a não negar o que foi realmente praticado e pesquisado, mas de entender que o olhar do presente proporciona o sentimento de sobrevivência de posições teóricas e políticas filtradas pela restauração e a reciclagem. Embora estivesse ciente dessas mudanças durante meu afastamento do país, o resultado da feitura da tese de doutorado sobre Macunaíma, de Mário de Andrade, privilegiava sobretudo a experiência com a linguagem literária, a metodologia antropológica de Lévi-Strauss e a abordagem discursiva inaugurada pelos teóricos franceses como Julia Kristeva e Roland Barthes. O núcleo teórico conservava, com base na abertura do conceito de texto, a indistinção entre discurso mítico, folclórico e literário, o que poderia ter sido mais bem justificado pelos diferentes níveis de contextualização de cada discurso. A poética modernista, a discussão sobre estética e o literário, a reflexão sobre o
nacionalismo da rapsódia e as contingências políticas desse momento não foram consideradas no trabalho. A passagem do enfoque restrito ao texto para a visão analítica em perspectiva, com base na articulação entre obra e contexto histórico de modo comparativo e contrastivo, só viria a ser endossada posteriormente. No intuito de repensar a cultura brasileira integrada ao continente latinoamericano e relacionada aos lugares hegemônicos do saber, a crítica literária amplia o horizonte de atuação e não se limita à análise do objeto de modo exclusivo. A crítica comparada, revitalizada no final da década de 1970, com a implementação de programas de pós-graduação em várias universidades no país, redimensiona o papel cultural representado pelas teorias pós-colonialistas, pósmodernas e afins. A literatura passa a receber tratamento distinto exercido pelas teorias imanentistas, como o new criticism, o formalismo russo, a fenomenologia e o próprio estruturalismo, no sentido de ser colocada frente a outros discursos, limitando-se a defesa de critérios estéticos vinculados à noção de autonomia. A quebra dos julgamentos de valor e de distinção rígida entre as disciplinas foi crucial para a introdução do conceito de transdisciplinaridade, sem responder ao ordenamento hierárquico, no qual se elegia o protagonismo de uma disciplina em relação a outra. Essa posição deu origem ao acesso a textos excluídos pelo cânone literário, como os relativos às minorias étnicas, diferenças de gênero, entre outros. Em muitas instituições essa posição crítica não teve aceitação unânime, situação que persiste até hoje. Recusa-se a inserção de outras vozes no cenário cultural, cujo resultado é a politização de espaços até então silenciados pela academia e a sociedade. Os radicalismos de interpretação por parte do discurso minoritário na defesa de seus direitos não conseguem apagar a importância política que aquelas manifestações conseguiram impor à crítica literária e cultural. Esta é, na verdade, uma de suas maiores conquistas. Considero, do ponto de vista de minha atuação acadêmica, que as pesquisas realizadas a partir dos anos 1980 distanciavam-se das anteriores, por me dedicar à revalorização do estudo sobre biografias, arquivos e memória cultural. Nesse particular, a produção dos escritores exigia distinta reflexão de noções como as de autor, de intelectual, de vida pública, de relações de amizade entre os pares, de história literária e assim por diante. No material inédito existente nos arquivos, o importante para mim era a divulgação de um sentimento de incompletude das obras, com a ajuda da edição de correspondências, diários, ficções criadas com base nos encontros reais ou imaginários dos autores. Esta foi a maneira mais salutar encontrada para a contextualização de minhas pesquisas, à medida que pensava integrar o escritor numa rede de parceiros, como levei a
termo com a publicação das cartas de Mário de Andrade para os mineiros e, especialmente, para Henriqueta Lisboa. No entanto, não se deve afirmar que a crítica cultural substituiu a textual, pois, tanto o conceito de texto teve modificações, quanto a análise pormenorizada da obra — literária ou não — fundamenta o trabalho crítico e permite alargar a análise para dimensões abrangentes de leitura. Não se trata de produzir espaços de exclusão entre o dentro da obra e o fora dela. A articulação entre os dois polos impede o raciocínio binário e instaura a imagem da dobra deleuziana, do fora como condição do pensamento da alteridade, pautado pelo distanciamento do sujeito de um centro. A vinculação da crítica à análise de autores comprometidos com a causa política nacional ou estrangeira e com momentos importantes da história brasileira foi registrada por nosso projeto Modernidades tardias, apoiado pela Fundação Rockefeller, no qual pude desenvolver as relações de intelectuais que tiveram ligação com o governo Vargas e Juscelino Kubitschek, como Murilo Rubião, Autran Dourado e Guimarães Rosa. Nessa abordagem, constatou-se ser a escrita literária o avesso dos ideais de modernização e de progresso pregados pelo projeto político, embora seus representantes compactuassem com a escrita burocrática e oficial do governo. A constatação da defasagem entre os programas literário e político não impedia que o vínculo dos intelectuais e o poder fossem subestimados ou postos em xeque. Denunciar as contradições vividas pelos escritores e os limites ideológicos daí resultantes traduz a minha proposta no exercício da crítica cultural e biográfica. Nas entrelinhas dos textos, consegue-se admitir que ninguém escreve a partir do nada e que seu lugar de enunciação denuncia a participação efetiva nos interesses de seu país. Reitero, enfim, a estreita associação entre a escolha da crítica biográfica como reflexão sobre a vinculação entre teoria e prática, obra e vida, compromisso acadêmico e realização pessoal. Se a crítica for entendida como forma de autobiografia, afirmação reiterada por muitos pensadores, não há como fugir dos critérios de verdade e cidadania implícitos nessa escolha. A política e as letras, seguindo esses princípios, nunca deixarão de se encontrar — para o bem ou para o mal. O que se deve ter em perspectiva é o empenho de cada um em direção aos limites estreitos que nos impõem a falta de solidariedade e de rigor profissional.
(2015)
Riscos de interpretação
É que se o intérprete deve ir pessoalmente até o fundo como um escavador, o movimento de interpretação é pelo contrário, o duma avalanche, o duma avalanche cada vez maior, que permite que por cima de si se vá despregando a profundidade de forma cada vez mais visível; e a profundidade torna-se então um segredo absolutamente superficial de tal forma, que o voo da águia, a ascensão da montanha, toda esta verticalidade tão importante em Zaratustra, não é em sentido restrito, senão o revés da profundidade, a descoberta de que a profundidade não é senão um jogo e uma ruga da superfície.
Michel Foucault
A crítica literária sempre se valeu de procedimentos investigativos, próprios do romance policial: a busca do sentido da obra, o cuidado com as artimanhas das personagens, acrescida da natural índole detetivesca do crítico. Mas, ao longo da história, essa função heurística e decifratória tem sido questionada por não mais se sustentar como procura da verdade e do enigma do texto. A intenção é a de revisitar, neste ensaio, metodologias distintas assumidas por disciplinas como a Semiótica, a Psicanálise, a Filosofia, a História, que endossaram o detetivesco como traço enunciativo. Os riscos inerentes à essa troca de paradigmas deverão ser aqui elucidados. A produção literária e artística tem-se apropriado, ao longo do tempo, dos discursos midiáticos, notadamente de matérias jornalísticas em que são registrados acontecimentos criminais, com ênfase em atores marginalizados pela sociedade, pela exploração de temas policiais e políticos. A crítica, por sua vez, exercitou — e ainda exercita — o fascínio pelo mistério das narrativas populares, do gênero policial que incita o raciocínio e exige respostas racionais e inteligentes sobre o objeto analisado. No decorrer de sua trajetória, desde meados do século XIX, ela pode conviver com o aparecimento do conto policial e com ele o exercício da ciência investigativa, da busca das origens e da
intricada organização da trama romanesca. Essa confluência da modernidade artística com a ciência amplia-se com o surgimento das novas tecnologias de produção e reprodução como a fotografia e o cinema, promovidas pela revolução industrial. Nesse sentido, o apelo à recepção literária centrada no popular instaura uma das mais instigantes contribuições para a dissolução entre arte culta e popular, pelo interesse despertado no leitor comum pelas narrativas encenadas no contexto modernizador do ambiente urbano. Como reagiria a crítica literária a essa reviravolta tanto de enfoque quanto de recepção diferenciada frente a objetos que não respondem mais pelo estatuto da alta literatura? Na tradição da crítica, muito se tem lutado pelo abandono do texto hermético e se apoiado em teorias as quais, pelo uso excessivo, tendem a obscurecer mais do que a esclarecer a interpretação analítica. A opção pelo emprego da dicção ensaística, livre de estereotipias e de intenção totalizadora, impõe-se como uma das tendências atuais da escrita universitária, expandindo-se, em pequenas proporções, nas demais modalidades discursivas, como o ensaio filosófico, histórico, antropológico, psicanalítico, entre outros. A estreita ponte existente entre arte e ciência, ficção e teoria, favoreceu a aceitação do gênero ensaio nas ciências humanas, por meio do qual o sujeito se insere de forma atuante na produção do texto. Diante desse avanço enunciativo, a crítica ensaística desvincula-se da limitação de ordem disciplinar e convive com os demais discursos a ela relacionados. Resulta desse gesto o questionamento do conceito inaugural da crítica formalista, qual seja, o da literariedade, por sua inoperância e fragilidade. O enfoque centralizador empregado na definição dos critérios da arte literária aponta para a defesa da autonomia e a superioridade frente a outras manifestações discursivas. A literatura de natureza policial ou parapolicial, além de se constituir como uma das tendências mais vigorosas do texto literário contemporâneo, afasta-se desses critérios relativos à literariedade, por revitalizar os empréstimos retirados de narrativas consideradas de natureza impura. Exigese da crítica, por sua vez, o refinamento de dispositivos analíticos, por reconhecer aí um tipo de literatura que joga com a sedução frente ao leitor, com ingredientes de natureza popular e enigmática. Na produção desse aparato analítico, a contribuição de Freud em seus primeiros escritos sobre a histeria foi bastante significativa. As experiências do psicanalista com as pacientes foram narradas nos moldes da técnica policial de investigação dos fatos, de truques de esconde-esconde e da articulação entre o visível e o invisível. Considerando-se ainda que a prática psicanalítica foi inaugurada, literal e metaforicamente, num espaço íntimo e privado, observa-se aí a
coincidência com as cenas exploradas pelo romance policial. O gênero desenvolveu-se pela ambientação em lugares fechados, crimes realizados nos interiores das residências, principalmente nos quartos, considerando-se que a reclusão permitiria incrementar o mistério em torno dos eventos. O nascimento do romance policial, por exemplo, é interpretado por Walter Benjamin como produto da articulação entre mudanças de ordem social, a modernização das cidades, transformações de ordem subjetiva, quando se tem a perda de identidade do sujeito no meio da multidão. Reconhece serem os criminosos dos primeiros romances policiais homens pertencentes à classe burguesa, pelo fato de deixarem no interior suas marcas e impressões. Os objetos eram revestidos de capas de veludo, o que facilitaria a marca digital do proprietário como uma das provas possíveis do crime. A interiorização do sujeito moderno nos lares burgueses manifestava-se pelo desejo de propriedade, da aquisição de bens que o livrassem do anonimato causado pela experiência da rua e da multidão.²⁸⁵ O flâneur, observador do movimento das ruas, seria, ainda, na interpretação de Benjamin, um detetive em potencial:
Desde Luís Felipe, a burguesia se empenha em buscar uma compensação pelo desaparecimento de vestígios da vida privada na cidade. Busca-a entre suas quatro paredes. É como se fosse questão de honra não deixar se perder nos séculos, se não o rastro e seus dias na Terra, ao menos o dos seus artigos de consumo e acessórios. Sem descanso, tira o molde de uma multidão de objetos; procura capas e estojos para chinelos e relógios de bolso, para termômetros e porta-ovos, para talheres e guarda-chuvas. Dá preferência a coberturas de veludo e de pelúcia, que guardam a impressão de todo contato. Para o estilo Makart do final do Segundo Império, a moradia se torna uma espécie de cápsula. Concebe-a como um estojo do ser humano e nela o acomoda com todos os seus pertences, preservando, assim, os seus vestígios, como a natureza preserva no granito uma fauna extinta.²⁸
A escavação dos mistérios da mente, pelo emprego da metáfora teatral, é o artefato utilizado por Freud na análise do discurso das histéricas, construído com o apoio da narrativa folhetinesca e com o rigor dos procedimentos próprios ao romance policial, de grande popularidade no final do século XIX. O nascimento da psicanálise é tributário do espírito especulativo de seu fundador, por meio do
qual se abandona o método experimental e visual do mestre Charcot e passa a se dedicar à escuta do discurso das histéricas, com suas falhas, encenações e lapsos de memória. O teatro privado desse discurso será interpretado, decifrado e sistematizado pelo gesto do analista/detetive, o narrador de enredos construídos a partir dos depoimentos das pacientes, os quais se estruturam sob a forma de romances teóricos. A narrativa tradicional baseia-se na descrição dos detalhes, dos diálogos e impressões das personagens, no desdobramento das ações, assim como no seu desfecho, quando se finaliza o trabalho de leitura da fala da paciente pelo médico. A participação de Freud, contudo, na elaboração enunciativa do “Caso Dora”, não se enquadra na construção oitocentista da trama, como nos outros casos publicados, por revelar-se fragmentada e inconclusa, comportando-se o inventor da psicanálise como autor de uma narrativa nos moldes modernos. Ao concluir que a teoria da sedução paterna no tratamento das pacientes histéricas não mais se sustentava, por reconhecer ser a filha igualmente participante do pacto amoroso com o pai sedutor, o psicanalista abandona o procedimento narrativo empregado nos demais casos. Com essa constatação, o novo passo a ser dado na interpretação psicanalítica recairia na identificação do futuro complexo de Édipo. A investigação policial/analítica chega a seu termo e a narrativa freudiana desse período não mais se configura como resultado de um tratamento bem-sucedido. Graças ao encontro da razão científica com a prática narrativa, Freud inaugura o que mais tarde recebeu a denominação de romance teórico, ou seja, a apropriação do gênero como meio eficaz de ficcionalização da ciência. O discurso crítico recebeu, no século XX, uma rede de conceitos fundadores com vistas à construção de uma ciência da literatura, provida de rigor explicativo, objetividade e clareza interpretativa. O formalismo russo, a semiologia e o estruturalismo empregaram, à exaustão, essas premissas, bastante válidas como resposta à crítica impressionista, mas muitas vezes equivocadas quanto à necessidade de apagar o sujeito na cena enunciativa. No entanto, a observação dos detalhes e o exercício minucioso do discurso seriam os componentes mais valorizados, considerando-se que a crítica impressionista e o biografismo estariam sendo substituídos pelo rigor e o tratamento cuidadoso com a linguagem. A atenção pormenorizada nos detalhes e no processo construtivo do texto exigia a observação microscópica do crítico/detetive, a desconfiança quanto ao discurso emitido pelas personagens e pelo narrador, posição de alerta que remetia para a figura do leitor de narrativas policiais. Na renovação do enfoque crítico, o leitor inteligente e racionalista assumia o lugar do contemplativo, do beletrista e do adepto de retóricas vazias. Ao lado dessa
exigência, foi necessária a produção de uma rede conceitual que atendesse às novas abordagens, o que culminou no cruzamento de várias disciplinas em torno de objetivos comuns. A produção de teorias científicas iniciadas nas ciências humanas foi ainda um desafio dirigido às artes da magia e da superstição, pela imposição de uma estratégia assertiva no âmbito das experimentações e de respostas sem qualquer margem de erro. Na década de 1960, o estruturalismo se expande pelas áreas da Crítica Literária, da Psicanálise, da Filosofia, da Antropologia, entre outras, pautado pelo exercício do rigor e da razão. Herdeiros do formalismo russo, os representantes do estruturalismo na crítica literária europeia, como Roland Barthes, Gérard Genette, Julia Kristeva, Tzvetan Todorov, Umberto Eco, entre outros, dialogam com a semiologia saussuriana, a psicanálise e a narratologia na elaboração de métodos de análise compatíveis com o complexo tecido da literatura e dos meios de comunicação. Persistia, na maioria dos autores, o intuito de provar a cientificidade dos estudos literários, pela utilização de critérios objetivos de análise. Prevalecia em grande parte das análises, a procura do sentido oculto do texto, da articulação do jogo freudiano entre conteúdo manifesto e latente, da diferença entre enunciado e enunciação. A estatística operada ao longo das produções da época incide na proposta de seguir à risca a estruturação da narrativa e da linguagem poética segundo equações matemáticas e lógicas. Com várias exceções, a metodologia estruturalista correspondeu ao desejo do exercício de decifração e de classificação do discurso literário, ao se munir, muitas vezes, da semiótica peirciana, pelo emprego das categorias conhecidas como indução, dedução e abdução, exemplificadas com o exame de narrativas policiais. O desvendamento de enigmas proposto pelo saber policialesco exigia a prática de malabarismos de raciocínio adquiridos graças ao convívio estreito com o aparato teórico das novas abordagens. Evidencia-se, pelo exposto, a associação não apenas entre romance policial e crítica literária ou de outra ordem, mas entre o saber positivista, preso a descobertas que privilegiam o segredo, o mistério, e a racionalidade interpretativa. A transformação desse saber, ao se desvincular do tradicional relato policial, atua de forma análoga à situação do relato contemporâneo, não mais centrado no desvendamento do crime e de seu autor. O desenrolar da trama narrativa estava sujeito ao método hermenêutico, construído segundo a ordem binária, por sua vez pautada pelo jogo de velar/desvelar as ações. A nova
modalidade das narrativas policiais encontra nos textos de Edgar Allan Poe um precioso legado. As falhas do método investigativo já se fazem notar na atuação do comissário de polícia do conhecido conto A carta roubada, ao se entregar à pesquisa de forma equivocada sobre a busca desse objeto. A leitura efetuada pelo narrador/detetive desse conto não se ajusta mais à procura cega pelas provas do crime, segundo métodos de decifração e de desvendamento. O exercício do erro e do acaso se contrapõe à mitificação do leitor/detetive como o homem que consegue provar que sabe mais do que os outros. A relativização e incompletude desse saber são os limites impostos à onipotência do sujeito investigador. Ricardo Piglia, autor de vários textos parapoliciais, em El último lector exemplifica a diferença em relação ao policial clássico, e sinaliza estar o atual romance americano à deriva do arcabouço narrativo formado por hipóteses e deduções. O detetive, ao ser levado pelos acontecimentos, não enxerga os fatos, produzindo, pela sua inabilidade, novos crimes: “a decifração progride de um crime para outro”:
No fundo, como pode ser visto, não há nada a descobrir, e nesse contexto não apenas o enigma muda, mas o regime da história muda. Por enquanto, o detetive parou de incorporar pura razão. Assim, enquanto na polícia clássica tudo é resolvido a partir de uma sequência lógica de hipóteses e deduções com o detetive imóvel, uma representação pura da inteligência analítica (um exemplo limitante e paródico pode ser Isidro Parodi de Borges e Bioy Casares, que resolve os enigmas sem sair de sua cela), no romance policial americano a prática parece ser o único critério verdadeiro: o investigador se cega ao encontro dos fatos, deixa-se levar pelos acontecimentos e sua investigação produz fatalmente, novos crimes. A decifração progride de um crime para outro; a linguagem da ação é falada pelo corpo e o detetive, antes das descobertas, produz evidências.²⁸⁷
A menção à A carta roubada funciona como referência para a elucidação do procedimento de leitura de um saber centrado na ausência do encontro do sentido oculto da trama narrativa. Ao ser descartado o método heurístico, verifica-se a recusa do exercício analítico em que são priorizados princípios de interioridade e profundidade. O escondido, o não visto, a procura pelas provas do crime em lugares recônditos prendem-se ainda à prática detetivesca
tradicional, à crítica literária como desvendamento do sentido oculto no texto. Três leituras de dois filósofos e de um psicanalista inventaram e esclareceram o estatuto do conhecimento no decorrer dos anos 1960, quando Foucault, Derrida e Lacan se debruçaram sobre a relação entre saber/poder, verdade/hermenêutica, sujeito do inconsciente/superfície. Vinculadas aos discursos de natureza policial e de enigma, as respectivas leituras contribuíram para a produção de estratégias as quais permanecem de forma elucidativa até hoje, por se vincularem à tática desconstrutiva — para usar o conceito de Derrida — da razão empirista da experiência e do lugar onisciente do sujeito do conhecimento. Na esteira do legado filosófico de Nietzsche, Foucault dialoga com Deleuze e Guattari quando afirma ter sido o conhecimento uma invenção, daí a ausência de origem, por estar estreitamente vinculado ao poder e às formações discursivas. Desenvolve, dessa maneira, especulações em torno do conhecimento como efeito de superfície, de modo contrário às concepções filosóficas anteriores, defensoras da solenidade das origens e da conquista pacífica da verdade. A relação entre o conhecimento e as coisas é elaborado na condição de luta, poder e força. Reconhecer o estatuto do conhecimento como efeito de superfície, do risco e do acaso, rompe com o princípio de causalidade e hierarquia, instaurando uma nova epistemologia. Em passagem de A verdade e as formas jurídicas, de 1974, Foucault reivindica o lugar do conhecimento como “efeito dos instintos”:
Portanto, para Nietzsche, o conhecimento não é da mesma natureza que os instintos, não é como que o refinamento dos próprios instintos. O conhecimento tem por fundamento, por base e por ponto de partida os instintos, mas instintos em confronto entre si, de que ele é apenas o resultado, em sua superfície. O conhecimento é como um clarão, como uma luz que se irradia, mas que é produzido por mecanismos ou realidades que são de natureza totalmente diversa. O conhecimento é o efeito dos instintos, é como um lance de sorte, ou como o resultado de um longo compromisso. Ele é ainda, diz Nietzsche, como “uma centelha entre duas espadas”, mas que não é do mesmo ferro que as duas espadas.²⁸⁸
Conclui-se que conhecimento em Nietzsche pertence à ordem do instantâneo, da diferença entre substâncias, do clarão que surge intempestivamente, sem origem
ou causalidade. A superfície pertence ao raciocínio próprio ao deslizamento, à “centelha entre duas espadas”, geradora de um saber que se forma independentemente da matéria pela qual são feitas as espadas. Destitui a essência do objeto e o coloca em relação. A escolha de Foucault pela tragédia de Sófocles, Édipo-rei, em A verdade e as formas jurídicas, para exemplificar a relação entre saber e poder, coincide com a investigação da verdade com a qual se constrói a tragédia, a busca do assassino do rei de Tebas. Sem se contentar com o discurso pautado pela profecia, o filósofo discorre sobre a força política do conhecimento, analisando Édipo como o soberano que, ao invés de se mostrar vulnerável à verdade factual, erigia-se o mais sábio dos humanos. Seria, na realidade, o que menos sabia, mas que se impunha dono absoluto da verdade: “O saber de Édipo é esta espécie de saber de experiência. É ao mesmo tempo este saber solitário, de conhecimento, do homem que, sozinho, sem se apoiar no que se diz, sem ouvir ninguém, quer ver com seus próprios olhos.”²⁸ Semelhante posição será engendrada pelas análises de Lacan e de Derrida quanto ao estatuto do não lugar do sujeito do inconsciente, do significante e da crítica a esse método por Derrida, ao considerá-lo como busca da verdade. Lacan propõe, no texto “Seminário sobre A carta roubada” de 1966,² a prova de ser o lugar invisível onde se encontra a carta o que mais se aproxima do conceito de sujeito do inconsciente, entendido não como o que se configura de modo escondido, por se situar na superfície, na superfície da mesa. A linguagem do inconsciente manifesta-se de forma aparente, pelos lapsos e deslizes provocados pelo descontrole do sujeito diante dos gestos e ações. É, pois, sobre a mesa que se encontra a carta endereçada à rainha, exposta de modo mais do que visível ao olhar dos outros, mas ninguém teve a ideia de buscá-la naquele lugar. O comissário de polícia, representando a imagem da cegueira da investigação, do saber suplantando às evidências, procurou por todos os meios proceder à busca da carta em casa do ministro, empregando a estratégia convencional de revelar o que se encontrava escondido. O método teve como critério a escavação do que estaria latente na estrutura profunda dos objetos, sem exercer a tática que fugisse ao lugar-comum e contemplasse o inusual e o ritmo do acaso. Sem lograrem algum sucesso, abriram gavetas, perfuraram almofadas das cadeiras, removeram tampões das mesas, verificaram atrás das cortinas, no espaço entre o vidro e o fundo dos espelhos, debaixo dos tapetes, no papel de parede, nos maços de papel, nos livros, entre as encadernações.
Essa estratégia especulativa evidencia para Lacan a urgência em denunciar o lugar excêntrico do sujeito do inconsciente, não mais interpretado como senhor do significante, mas a ele submetido. O deslocamento desse sujeito e a impotência frente às forças incontroláveis do acaso e da visibilidade regidas pelo inconsciente confirmam o trabalho do psicanalista em concordância com um saber de superfície. A incompletude da interpretação e a única certeza de que somos vítimas da prepotência do saber convergem para a noção de ser a prática detetivesca calcada em fatos e escavações em busca do que está fora das evidências, o que poderia conferir ao investigador o controle da verdade. Jacques Derrida, em “El cartero de la verdad”, de 1975, coloca em xeque a análise lacaniana realizada no “Seminário sobre A carta roubada”, por se constituir enquanto reiteração da verdade do significante e, portanto, essencializá-lo. Segundo o filósofo, a interpretação do conto por Lacan permite reunir as funções do detetive às do psicanalista, por terem como objetivo o desnudamento do sentido oculto. Associa tal procedimento à arte da metáfora, um véu transparente que deixa ver o que cobre, ou a máscara, que permite reconhecer aí a pessoa escondida. Derrida conclui ser a interpretação de Lacan vinculada ainda à articulação entre desnudamento e desvelamento como revelações da metáfora da verdade. Estaria, portanto, reiterando a prática da profundidade investigativa ao ir de encontro ao exercício da superfície, posição estranha à decifração de verdades ocultas:
Ao determinar o lugar da falta, o tópos do que falta em seu lugar, ao constituí-lo como centro fixo, Lacan propõe pois com efeito, ao mesmo tempo que um discurso-verdade, um discurso sobre a verdade da carta roubada como verdade de A carta roubada. Trata-se aqui de um deciframento hermenêutico, apesar da aparência de denegação.² ¹
Controvérsias à parte, gostaria de deixar bem claro, neste texto, que o legado filosófico desses autores contribuiu em grande medida para o avanço interpretativo da crítica literária e afins, ao desvinculá-la do método hermenêutico, nos moldes da trajetória investigativa do comissário de polícia de A carta roubada. Quando se compara o caso específico do trabalho realizado com os arquivos de toda sorte, é natural que o pesquisador se sinta a todo
momento fisgado pela sedução da descoberta de um documento valioso, até então esquecido no meio de outros. Associações entre o pesquisador e o detetive participam do vocabulário da crítica, seja acentuando o aspecto investigativo semelhante à procura de provas e conhecimento do texto como elucidação de crimes, seja reconhecendo o desvendar de enigmas como ilusão. O importante é acreditar que a aventura arquivística enfrenta momentos inusitados durante a pesquisa, quando experiências com fatores desconhecidos do sujeito crítico conseguem trazer para a cena o acaso, provocando descobertas que escapam à programação estabelecida. Esses descaminhos e acidentes de percurso permitem evidenciar o estatuto do sujeito no ato da pesquisa arquivística, em que são descartadas a certeza e a possível confiança no encontro com a verdade. Há muita carta roubada no vasto universo dos acervos, dos manuscritos considerados à primeira vista sem importância, expostos nos escaninhos catalogados e à espera do manuseio dos futuros caçadores de novidades. Em cada volume da biblioteca é comum encontrar marcas de leitura deixadas sem escrúpulo pelo seu proprietário, pedacinhos de papel contendo informações preciosas nem sempre observadas pelos pesquisadores. A tarefa centrada no encontro com revelações textuais ainda ignoradas pelo público leitor, voltada para fatos considerados mais importantes, não deverá se esquecer de apontar os traços miúdos muitas vezes presentes nas pequenas informações contidas na superfície das páginas. Infelizmente, ainda permanece algum sentimento de propriedade da parte do pesquisador que lida com fundos dos escritores, pelo receio de tornar público o que se situa no âmbito privado, impedindo-se a divulgação e o conhecimento de determinados documentos. Não resta dúvida de que a alegria da descoberta em qualquer pesquisa mantém certa analogia com o discurso investigativo e a demonstração de provas pelo detetive, dada a possibilidade de se exercitar, com satisfação, poderes inusitados da mente e da especulação. O interesse despertado pela vida literária dos autores, pelo convívio com seus pares, pelo cotidiano vivido por eles constitui ainda material de análise capaz de transformar escritores em seres de nossa convivência. Na prática do discurso crítico, o ímpeto detetivesco não se apaga de forma alguma. A satisfação em ampliar as pesquisas, em desvendar novos caminhos até então desconhecidos incentiva o espírito investigativo. No entanto, que esse ímpeto tenha o cuidado de não colaborar para a busca de uma carta roubada escondida, mas em se precaver das armadilhas localizadas na superfície, diante
do olhar desprevenido do sujeito. O acaso, a aventura da descoberta, reside no contato oblíquo e enviesado de quem esteja sempre atento às novidades nem sempre encontradas onde as procuramos.
(2015)
285 No ensaio “Janelas”, incluído neste livro, retomo esta referência à relação entre os criminosos dos primeiros romances e o pertencimento à classe burguesa. 286 BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas III: Charles Baudelaire, um lírico no auge do capitalismo. Tradução de José Carlos Martins Barbosa e Hemerson Alves Batista. São Paulo: Brasiliense, 1989, p 43-44. 287 No original: “En el fondo, como se ve, no hay nada que descubrir, y en ese marco no sólo se desplaza el enigma sino que se modifica el régimen del relato. Por de pronto, el detective ha dejado de encarnar la razón pura. Así, mientras en la policial clásica todo se resuelve a partir de una secuencia lógica de hipótesis y deducciones con el detective inmóvil, representación pura de la inteligencia analítica (un ejemplo a la vez límite y paródico puede ser el Isidro Parodi de Borges y Bioy Casares, que resuelve los enigmas sin moverse de su celda), en la novela policial norteamericana la práctica parece ser el único criterio de verdad: el investigador se lanza, ciegamente, al encuentro de los hechos, se deja llevar por los acontecimientos y su investigación produce, fatalmente, nuevos crímenes. El desciframiento avanza de un crimen a otro; el lenguaje de la acción es hablado por el cuerpo y el detective, antes que descubrimientos, produce pruebas.” (PIGLIA, Ricardo. Lectores imaginados. In: PIGLIA, Ricardo. El último lector. Barcelona: Editorial Anagrama, 2005, p 97, tradução nossa). 288 FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas. Tradução de Roberto Machado e Eduardo Jardim. Rio de Janeiro: PUC-Rio; Nau Editora, 1996, p 1617. 289 FOUCAULT, 1996, p 47. 290 LACAN, Jacques. Le séminaire sur “La Lettre volée”. LACAN, Jacques. Écrits 1. Paris: Seuil, 1966, p 20-75.
291 No original: “Al determinar el lugar de la falta, el topos de lo que falta en su lugar, al constituirlo como centro fijo, Lacan propone pues en efecto, al mismo tiempo que un discurso-verdad, un discurso sobre la verdad de la carta robada como verdad de La carta robada. Se trata aquí de un desciframiento hermenéutico, a pesar de la apariencia o la denegación.” (DERRIDA, Jacques. El cartero de la verdad. In: DERRIDA, Jacques. La tarjeta postal de Freud a Lacan y más allá. Ciudad de México: Siglo Veintiuno Editores, 1986a, p 181, tradução nossa).
Teorizar é metaforizar
Na condição de professora de Teoria da Literatura há muitos anos, tomo a liberdade de iniciar este ensaio afirmando que o lugar (não lugar) da disciplina no meio acadêmico continua como sempre esteve: paradoxal, combativo, ousado, vanguardista e aberto às transformações e mudanças históricas. Defendi essa opinião ao longo dos debates acadêmicos, quando o tema da discussão versava sobre os perigos de estarem as disciplinas perdendo a identidade, da urgência em se valorizar o objeto literatura frente aos desvios disciplinares, uma vez que o conceito de autonomia estava sendo negligenciado pelos demais. Como se constata, o que entraria como componente paradoxal seria o instável lugar atribuído à literatura e ao valor mutante de seus princípios. O discurso teórico, diante da diluição de fronteiras disciplinares e da consideração da literatura como objeto estranho, deveria optar pela flexibilidade e o deslocamento interpretativos. Perde-se o espaço antes conferido tanto à literatura quanto à teoria, por ambas não ocuparem mais o território hegemônico dos saberes. Mas restam, como produto das transformações sofridas, a ousadia e o combate ao pensamento conservador e à prisão a determinados princípios de crítica literária centrados na pureza e autonomia dos objetos de análise. O estatuto paradoxal da teoria — e da literatura — investe-se contra o raciocínio binário e exclusivo das definições, dilui a separação entre polos considerados distintos, como ficção e teoria, arte e ciência, obra e vida, com vistas a redimensioná-los e repensá-los. A proposta teórica defendida por grande parte de estudiosos não se restringe a escolher um objeto único, mas se dispersa em outros de igual importância para o estabelecimento de redes comparativas e transdisciplinares. Ao se considerar a seleção de práticas discursivas, registre-se que o entrecruzamento de textos contribui em grande parte para uma compreensão mútua sobre eles, seja pela diversidade, seja pela semelhança apresentada. A atuação do exercício teórico não se produz de modo isolado, por alimentar-se de outras modalidades, como às relativas à ficcionalização, à vivência e ao processo de metaforização. Nessa operação intervalar, respeita-se a distinção entre os discursos, sem separá-los ou confundi-los de forma absoluta. Como então poderia se admitir que o pensamento teórico compõe, com os demais, um amálgama compósito e libertador? Como desvencilhar a literatura —
ou outra disciplina — da teoria, se ambas se completam por meio do diálogo ancestral com o ato de pensar? Se acrescentarmos a esse raciocínio afirmações atribuídas a Gilles Deleuze no sentido de que o ato de pensar é dobrar, é experimentar, é problematizar, instalamo-nos nesse barco à deriva, à procura de saídas e de possíveis indagações que dificilmente serão satisfatórias. Teorizar é metaforizar, enunciado apresentado no título deste texto, corresponde à dobra dos discursos, à substituição de princípios rígidos pela maleabilidade e justaposição de valores os quais se pautam pela ausência de apego à teoria, considerada de forma rígida e absoluta. No processo de metaforização, ocorre tanto a condensação quanto o deslocamento de lugares discursivos, a interpenetração ficcional da literatura no teórico, sem que cada segmento conserve a rigidez e separação disciplinares. No gesto metafórico desse procedimento, a cena literária passa a ser entendida na vertente teórica, pelo exercício da experimentação e do movimento sempre contínuo do pensamento. Interpretar fatos e acontecimentos no interior da literatura exige o acurado e livre trabalho de associações e deslocamentos metafóricos. É importante assinalar que a interpretação efetuada pela crítica literária, ao desvincular-se do gesto parafrásico e descritivo do texto, alcança o distanciamento analítico, ao mesmo tempo que se aproxima de uma posição criativa em que são articuladas percepção e sensibilidade. Abstrair-se das facilidades promovidas pela fruição literária exige o deslocamento e a metaforização dos aparatos textuais, que transcendem as cenas e os acontecimentos. Os defensores dos princípios da teoria da literatura nunca se omitiram quanto ao endosso das roupas da vanguarda, principalmente em alguns departamentos de Letras no Brasil, pertencentes a instituições mais avançadas em termos de abertura interpretativa. O pensamento de vanguarda teve início com a retomada do discurso filosófico francês em fins da década de 1960 e princípio dos anos 1970, o que lhe conferiu o convívio da crítica literária com reflexões que ampliaram o campo restrito dos procedimentos enunciativos. Na proliferação de cursos de pós-graduação no país, a disciplina atingiu dimensão plural, transformando-se em múltiplas correntes teóricas, graças ao intercâmbio com a Filosofia, a Antropologia, a Psicanálise, a Semiologia e a Sociologia. A abertura transdisciplinar ganha impulso com o surgimento da crítica comparada e cultural, implementadas no correr dos anos 1970, coincidindo com o processo de flexibilização da ditadura militar no país. Diante da complexa relação entre teorias e distintos aparatos discursivos —
literários ou artísticos —, três perguntas poderão ser enunciadas, com o objetivo de esclarecer o casamento ou o divórcio praticado entre eles: a) valorizar as teorias, no sentido de reforçar o aspecto performático e inclusivo com os discursos a serem analisados? b) combatê-las, utilizando-se a premissa mil vezes repetida por vários acadêmicos, de que a teoria mataria a literatura? c) desmerecê-la, ao considerar ter a literatura a função de substituí-la, por estar inserida no seu interior, e por isso conter sua geração? Na encruzilhada desses questionamentos, torna-se necessário o incentivo ao debate em torno da prática teórica exercida entre vários grupos de acadêmicos — pertencentes ou não a gerações diferentes — os quais se empenham em levar adiante a experiência pós-estruturalista e não se deixam seduzir pelo mito da crise teórica. Se esses grupos se posicionam divulgadores de um determinado pensamento filosófico/antropológico europeu ainda em plena atualização — como Giorgio Agamben, Georges Didi-Huberman, Roberto Sposito, Jean-Luc Nancy, Jacques Rancière, Bruno Latour, Philippe Lacoue-Labarthe, Antonio Negri e Michael Hardt, seguidores de Walter Benjamin, Gilles Deleuze e Félix Guattari, Jacques Derrida e Michel Foucault, conclui-se reconhecer o enriquecimento da teoria da literatura no constante diálogo mantido com os demais discursos. Além de se constatar sua atividade contínua e revigorada no meio acadêmico dos mais conceituados programas de pós-graduação do país. A figura icônica de Roland Barthes encontra-se também disseminada nas teorias literárias recentes sobre análise textual, centralizadas nos procedimentos de escrita autoficcional, autobiográfica e biográfica, o que confirmaria a revisão de abordagens sobre os textos em análise, que se expandem para distintas áreas das humanidades. Na esteira das teorias feministas e pós-colonialistas, o mundo acadêmico brasileiro apropriou-se, em décadas anteriores, da reflexão de um grupo de pensadores responsáveis pelo rompimento da hegemonia teórica europeia, ao assumirem uma proposta política agressiva e desconstrutora. Homi Bhabha, Stuart Hall, Walter Mignolo, Gayatri Spivak, entre muitos, integram as estantes da crítica dos últimos trinta anos, razão pela qual os rumos da teoria transformaram-se e tendem a embaralhar mais ainda a suposta pureza e originalidade do pensamento único. Guardadas as devidas ressalvas, não resta dúvida de que a crítica comparada e a cultural resultam da ampliação e expansão dos estudos de teoria da literatura, considerando-se ter sido ela que rompeu, na prática, os limites territoriais das disciplinas e impulsionou a quebra das regras impostas pelos demais espaços do saber.
A proliferação de tendências, de correntes críticas e de posições teóricas diversificadas tem sido combatida com argumentos sobre o fim ou a crise das teorias, acusadas pela sua indefinição e precariedade. Seria ingênuo apregoar, nos dias atuais, a diversidade teórica como fator negativo de sua prática, pois é graças a essa heterogeneidade de ideias e pontos de vista que os diferentes perfis acadêmicos são capazes de dialogar em regime de alguma igualdade com seus pares. A abordagem da literatura tem se apoderado da variedade de enfoques e metodologias com vistas à liberdade interpretativa e à impossibilidade de defesa desta ou daquela linha de pensamento. Essa posição afasta-se de preconceitos relativos à falta de controle do exercício das críticas comparada e cultural, denunciadas pela confusão e o “vale tudo” analítico. Não se postula o retorno de métodos e preceitos judicativos nesta avaliação, mas se entende que o rigor e a seriedade das várias propostas deverão ser pelo menos reconhecidos pela comunidade acadêmica. A teoria estaria matando a literatura? Seria este momento da crítica caracterizado pela babel de teorias, pela superposição do aparato interpretativo frente ao texto propriamente dito? A suposta morte da literatura estaria sendo provocada pelo excesso de exposição argumentativa e pela predominância da sistematização dos dados em detrimento da paráfrase e da resenha textuais? Não se aniquila o discurso literário com a arma apontada para inserções reflexivas, salvo se a profusão de citações e de referências teóricas encobrir a interpretação e resultar inócua pelo uso de falsa erudição. Com base nessas premissas, seria recomendável evitar a exploração apenas ilustrativa dos conceitos, sem a devida justificativa de seu emprego, por se revelarem desprovidos de contextualização. O emprego aleatório de conceitos ao longo da análise e o desrespeito quanto às razões históricas de sua produção atuam como forte motivo para o ataque à crítica e à descrença no trabalho exercido pelo pensamento teórico. Como antídoto a essa situação, o excesso de citações deveria ser retirado, operando-se com cautela o registro teórico, de modo a filtrá-lo e submetê-lo à interpretação mais singularizada e personalizada. Nesses termos, a revitalização da literatura seria incentivada pela justa apropriação do exercício teórico, no qual a prática da noção de sobrevivência incentiva o diálogo entre ficção e teoria, desde que a superposição de ambas as categorias resulte na revitalização de uma por meio de outra. O sopro de ideias e de reflexões irrompe no discurso literário e vice-versa, concedendo-lhes inteiro vigor, por meio da operação intertextual, em que se subverte a primazia de um registro em relação a outro. Não se trata exatamente de desmerecer o lugar da teoria quando se postula ao
discurso literário a função de estar igualmente embutida a produção de intencionalidade teórica. A incidência na literatura contemporânea de escritorescríticos e o consequente estatuto híbrido de sua narrativa — entre ficção e ensaio — tornam evidente o cruzamento dessas instâncias de saber, como desmitifica a separação preconizada pelo senso comum entre pensamento e estética, reflexão e prazer. Embora a proposta literária do escritor-crítico tenha se voltado para a indagação sobre o ato de escrever e dos encontros ficcionais entre escritores e, por esses motivos, seja criticado pelos adeptos da literatura como dotada de poder de fruição, é ainda por essa via que grande parte dos argumentos teóricos contemporâneos encontram a fonte conceitual. Em lugar de discutir, por exemplo, no espaço da crítica acadêmica, as diferenças entre gêneros narrativos tão explorados pela literatura atual, tais como os de biografia, autobiografia, autoficção ou memória, talvez se torne mais producente recorrer a obras em que são embaralhados e questionados tais procedimentos. A leitura de obras literárias como as de Silviano Santiago (Mil rosas roubadas, 2014), J M Coetzee (Verão, 2009), Enrique Vila-Matas (Doutor Pasavento, 2002) entre outras narrativas, incita a revisão de categorias próprias a esses gêneros, por se insurgirem, ironicamente, contra o esquematismo e as classificações genéricas praticadas pela crítica. Resulta daí a importância da flexibilização dos conceitos, num movimento contínuo de recepção desses gêneros, em virtude do estatuto precário e das transformações sofridas ao longo do tempo. Desconstruir os lugares-comuns da crítica não significa negá-los, mas apontar os riscos de exaustão interpretativa e da sujeição às vezes ingênua quanto a regras e métodos. O teor irônico da obra metacrítica e metapoética incita o leitor a desconfiar da palavra erigida como verdade biográfica ou autobiográfica, considerando-se a natureza opaca e complexa presente na proposta do pacto ficcional. A prática literária desempenha papel de experimentação e performance do aparato teórico, por realizar, pelo jogo textual e narrativo, a mise-en-scène das categorias e a dramatização do gesto criativo. O deslocamento mútuo dos lugares enunciativos coloca a literatura como parceira da reflexão teórica, não havendo motivo em se considerar em oposição os respectivos discursos, devendo-se, ao contrário, criar pontes e relações de simetria e diferença entre eles, ainda que tenham sido constituídos de forma distinta. Por outro lado, não é de se estranhar que o descrédito quanto à teorização — sem que se perceba que teorizar é uma forma de conhecer, de revitalizar o saber — ignora ser o exercício interpretativo independente da natureza de cada obra. Qualquer gesto de leitura indicia o grau de percepção e prazer de quem o exerce,
aliado à racionalidade e à satisfação teórica nascidas dessa operação. Nesses termos, a distinção entre emoção e razão, prazer estético e prazer racional merece ser reformulada, com o intuito de se prosseguir no debate sobre os instigantes e deslocados lugares e não lugares ocupados pela teoria na sua relação com a literatura e outras artes. Jean-François Lyotard e Lévi-Strauss, em épocas e campos distintos, teorizaram (e praticaram) a arte de adquirir novos conjuntos a partir do arranjo de materiais pré-existentes, resultando na conceituação do saber contemporâneo como bricolagem. A união do experimental, do empírico e do artístico, utilizando-se da técnica moderna da colagem, da justaposição e da descontinuidade narrativa foi um dos traços tanto da construção de saberes na perspectiva filosófica de Lyotard quanto na metodologia estruturalista lévi-straussiana. O biógrafo inglês de Lévi-Strauss, Patrick Wilcken, concedeu-lhe o título de antropólogo-artista, por ter-se enriquecido de experiências estéticas, como o surrealismo e a música e por ter mantido o diálogo sempre desejado entre arte e ciência. No seu entender, a importância de Lévi-Strauss para o avanço das Ciências Humanas no século XX deveu-se ao exercício da prática moderna de bricolagem, capaz de desconstruir territórios fechados da ciência e de reforçar, no lugar de enfraquecer, o papel reservado ao cultivo da sensibilidade.² ²
O artista em seu íntimo encontraria expressão não só na forma de escrever, mas nas ideias, na maneira de montar, como uma colagem, a profusão de materiais etnográficos que tinha acumulado. Sendo Lévi--Strauss um analista da forma, sua obra era um hino às proporções; se fosse um quadro, seria uma das telas de Poussin que tanto amava, uma composição de equilíbrio clássico sem revelar tensão ou esforço. A obra que deixava era uma espécie de pensée sauvage da academia; percorrendo as bibliotecas, ele colhia e misturava elementos que então processava, resultando em ideias admiráveis, embora especulativas: sociedades quentes e frias, bricolage, a ciência do concreto, além das belas e estranhas imagens nas oposições criadas na tetralogia Mitológicas.² ³
Se o raciocínio desenvolvido até o momento se pautou pela revisão dos não lugares teóricos e da interligação entre teoria e ficção, arte e vida, seria pertinente questionar o conceito de sobrevida como estratégia conceitual para a compreensão dos deslocamentos sofridos pelas teorias. Em texto anterior,
intitulado “Ficções impuras” (incluído neste volume), ressalto a leitura que Georges Didi-Huberman realiza a partir da noção de Nachleben, inaugurada por Warburg, quando admite que o passado não pode mais ser entendido como letra morta, por estar ele constantemente emergindo no presente.² ⁴ Com base nesse princípio, a revisão dos lugares teóricos deveria obedecer a critérios de simultaneidade temporal, sem levar em conta o início e o fim dos acontecimentos, embaralhando e anacronizando passado e futuro. Caem por terra reflexões atribuídas ao discurso do senso comum da crítica, tais como “a crise das teorias”, “o futuro das teorias”, “o fim das teorias”, “pós-teorias”, uma vez que os saberes desvinculam-se das ideias de início e de fim, pela convivência constante com o sentido de intervalo e de entrelugar. A leitura proposta impede deduções apressadas sobre a substituição desta ou daquela corrente analítica por outra supostamente mais eficaz e avançada, ou pelo preconceito frente à acusação de inoperância das demais posições. O conceito de sobrevida atua como saída espectral para a ideologia criada em torno dos fins dos discursos, da lógica causalista dos acontecimentos e da morte das ideias. A prisão à historiografia e ao cânone teórico defendida por grande parte de pesquisadores impede o reconhecimento de valores considerados marginais e inoperantes da crítica. A crítica biográfica praticada por mim durante os últimos anos possibilitou a revisão das associações entre arte/vida, teoria/ficção e teoria/vida. A congruência/separação entre os dois polos justifica-se pelo gesto de estar a relação comandada pelo sentimento ético promovido pela experiência vivenciada tanto na prática teórica quanto vital. Sem desvincular razão e emoção, o que se propõe é a defesa de uma coerência — mesmo que sujeita a erros e deslizes — entre o engajamento à causa teórica e o reflexo, mesmo que descontínuo, nas atitudes e comportamentos. Os exageros cometidos pelas ações do politicamente correto aplicadas às teorias ou à literatura são tributários da exigência de lugares enunciativos fixos e de posições naturalizadas quanto à semelhança entre discurso e ação. Não se trata de conceber esse engajamento como sinônimo de transparência comportamental, mas de acreditar nas adesões ideológicas como escolha dos sujeitos e, por esse motivo, vinculadas a condutas éticas e morais. Gostaria de concluir esta breve incursão sobre os lugares não lugares da teoria da literatura reafirmando a necessidade de ser incentivado o desejo de se criar, quando se trata do gesto crítico, aceitando os desafios impostos pela atualização e experimentação de determinados caminhos teóricos. As surpresas, os erros e os inesperados empecilhos surgem como componente ativo da prática analítica e do
exercício vigoroso do pensamento. Nômade e irrequieto, esse devir teórico abre mão do espírito niilista e apocalíptico do fim e da crise das teorias, ao se entregar de forma amadurecida ao debate de ideias, comportamento bastante raro no meio acadêmico. Que sejam cada vez mais frequentes a troca e as discussões de ordem literária e cultural entre novos e antigos pesquisadores da disciplina, cujos lugares enunciativos e de legitimação continuam a se impor de modo paradoxal, combativo e segundo propostas vanguardistas. A sobrevivência das formas artísticas e das construções teóricas justifica-se pela convivência entre experiências por meio das quais se ignora o culto de valores ultrapassados e o desprezo pelo passado como indigno de ser evocado. Na vanguarda das mudanças realizadas nesse intervalo, a vivência do devir-presente permite a revisita aos conceitos, às vezes relegados em virtude da fúria teórica da novidade e do apressado esquecimento dos resquícios e traços de cultura.
(2018)
292 A reflexão aqui inserida foi retirada de uma passagem do ensaio intitulado “Entre arte e ciência, o desafio”, incluído neste volume. 293 WILCKEN, 2011, p 329. 294 O ensaio do qual a citação foi extraída, “Autoficção e vida”, está também incluído neste volume.
Literatura é vida?
O ano de 1966 marca, entre vários acontecimentos de importância no país, a criação do Suplemento Literário de Minas Gerais, com a assinatura de Murilo Rubião. Nesse mesmo ano, na Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, situada à rua Carangola, 266, a turma de formandos em Letras, dividida entre o entusiasmo e a descrença, apostava na literatura como destino e na aventura deliberada da vida. Nos corredores e nas salas de aula a convivência com as letras impressas nos livros assumia o tom mágico da descoberta e o voo incessante da imaginação. O espírito reinante nos formandos não apostava no fim de um ciclo, mas na continuidade da chama inaugurada pelo amor às artes, na crença de perenidade do ideal que deveria se expandir e frutificar. Por coincidência, no ainda precário sistema de divulgação da produção literária da cidade e do estado, a fundação do Suplemento significou a abertura para a participação de jovens escritores oriundos da classe universitária, com o apoio de intelectuais renomados. Por sua vez, a formatura no curso de Letras deixava de ser mero registro burocrático para se tornar parte integrante de uma confraria de adeptos e amigos da literatura, atividade inscrita na própria escolha existencial. O caminho inaugurado para o exercício da crítica e da produção literária e artística teve, no período inicial do Suplemento, incentivo necessário à divulgação da produção existente em Minas e no Brasil. Recém-admitida como professora de Teoria da Literatura na referida Faculdade, tive a oportunidade de cedo colaborar com artigos acadêmicos e de sugerir publicações de muitos colegas e pesquisadores pertencentes a outras instituições. O jovem criador do Suplemento, na ocasião nos seus cinquenta anos, ainda fabricava bonecos inusitados de papel, rasgava e colava pedaços de frases e de personagens, recolhia restos de palavras e não se contentava em ter um brinquedo que fosse completo. Sua poética consistia no obsessivo processo de fazer/desfazer da invenção, gesto lúdico que se mesclava ao estilo igualmente mágico do escritor. Essa montagem/desmontagem literária o transformaria num dos mais brilhantes escritores de literatura fantástica de sua época, fato somente mais tarde reconhecido pela crítica. Na direção do periódico revelava o contrário, um comportamento sisudo e extremo cuidado com as regras de publicação, além de se manter enérgico e cumpridor dos prazos. O grande mérito
desse invejável diretor encontra-se registrado no diálogo mantido com a classe intelectual do país e do exterior, elevando a então tímida cidade de Belo Horizonte a espaço cosmopolita e de vanguarda. A década de 1960, com o desenrolar iminente do golpe militar e da censura aos meios de comunicação, conseguiu se impor como resistência política e criar nichos de produções artísticas de valor inestimável. Na redação, Murilo cercouse da rapaziada universitária, possibilitou o surgimento da Geração Suplemento, composta de contistas e entusiastas de outras artes, com os quais promoveu o debate literário entre nós. Com a colaboração de escritores de sua geração, como Laís Corrêa de Araújo, Fábio Lucas, Rui Mourão, Affonso Ávila, entre outros, o periódico ganhava prestígio e notoriedade, ainda que tenha experimentado momentos de censura e repressão política. O pacto de cumplicidade que mantenho com o Suplemento, dos anos de 1970 até 2020, quando integro o corpo do Conselho Editorial, sempre atendeu à divulgação de artigos sobre pesquisas envolvendo estudos em conformidade com minha experiência docente e em outras atividades, em sua maioria centrada na obra de escritores brasileiros, como Guimarães Rosa, Autran Dourado, além da análise da correspondência entre Mário de Andrade e os mineiros. Pedro Nava, memorialista tardio, mereceu ensaios de natureza arquivística, quando eu estava concluindo a edição crítica de Beira-mar: memórias 4 para a Coleção Archivos. Na década de 1980, ao voltar do curso de doutorado na França, Murilo, após reassumir a direção do Suplemento e da Imprensa Oficial, convidou-me a organizar a edição especial sobre Autran Dourado, que recebeu o título de “As Minas de Autran Dourado”. Lançado em 1985, o número compunha-se de artigos de seus contemporâneos e de notáveis autores da crítica brasileira do momento. A publicação de números especiais sobre escritores ou temas significativos da literatura tornou-se marca registrada da pauta editorial do Suplemento desde seus primeiros anos, o que atesta a sensível percepção de seus diretores quanto ao valor da sistematização e do arquivamento da memória de gerações e gerações de artistas e intelectuais. O intercâmbio mais extenso mantido com o Suplemento teve início com a fundação do Acervo de Escritores Mineiros por docentes da Faculdade de Letras da UFMG, e a doação, em 1991, do arquivo de Murilo Rubião. A colaboração entre pesquisadores torna-se, a partir daí, marcada por ações de nível institucional, por ser o sistema de troca de informações e documentos regido não apenas pelo compromisso com a divulgação do material existente, como também
pelo interesse despertado pela obra de Murilo, o que naturalmente se dará com os arquivos de escritores posteriormente doados à universidade. Entre as preciosidades do arquivo, a coleção encadernada do Suplemento, um dos legados mais significativos de sua trajetória intelectual, ao lado de sua biblioteca e dos manuscritos, veio na bagagem do escritor. O Suplemento inicia, dessa forma, o diálogo com um espaço próprio para sua expansão no meio acadêmico e, pela referência à memória intelectual de Minas, constitui-se como rico objeto de estudo para futuros leitores. Dissertações e teses de doutorado são defendidas na instituição, consultas ao acervo realizam-se em grande escala por pesquisadores locais e de outras regiões, o que comprova a sobrevivência da obra de Murilo e sua importância como escritor, intelectual e homem público. A continuidade da publicação confirma a persistência de um projeto que vence obstáculos e supera dificuldades de toda ordem, conferindo à literatura e à crítica literária dimensão saudável de reflexão e debate. O Acervo de Escritores Mineiros, sediando hoje uma dezena de autores, como Cyro dos Anjos, Henriqueta Lisboa, Abgar Renault, Wander Piroli, Oswaldo França Júnior, Lúcia Machado de Almeida, Fernando Sabino, Carlos Herculano, Affonso Ávila, Laís Corrêa de Araújo, entre outros, responde pela recriação, em simulacro, das personagens com as quais Murilo construiu a imagem literária de uma época. Eternizam nesse momento uma conversa iniciada no passado, trocam figurinhas e sobrevivem pela força mágica do tempo, da imaginação e da pesquisa. O espírito arquivístico é revigorado pelo diálogo entre fantasmas que saltam das prateleiras, associações entre falas e escritas ecoadas entre as frestas dos armários, revitalizando-se a galeria de autores pela nova inserção de leitores e espectadores. Mas não se trata de um cenário cristalizado, pois os frutos dessas conversas resultam na divulgação de textos desconhecidos pelo público, publicação de originais, ilustração de fac-símiles de manuscritos, fotos de escritores, rascunhos de livros, esboços de futuras produções. O trânsito entre arquivo e Suplemento tem gerado um conjunto considerável de trabalhos realizados entre pesquisadores do Acervo e de outras instituições. Números especiais publicados pelo periódico, como os de Cyro dos Anjos, Oswaldo França Júnior, Lúcia Machado de Almeida, Murilo Rubião, Wander Piroli, entre tantos outros, incentivam a consolidação da memória literária brasileira, assim como a valorização do arquivo na sua função aglutinadora e cultural. Os cinquenta anos do Suplemento coincidem com os de minha formatura em Letras e o centenário de Murilo Rubião, seu mágico- -criador. Data redonda assim dá para desconfiar, é de cruzar os dedos ou bater na madeira. 1966, ano de
euforia e de compromisso de minha geração com os problemas do mundo, proporcionava a dimensão utópica de um presente que estava sendo embalado pela Banda de Chico Buarque, a Disparada, de Geraldo Vandré, e as leituras de Guimarães Rosa e Clarice Lispector. Entre os sonhos da juventude, à literatura era reservado lugar de destaque e culto diário. Não foi gratuita a escolha da teoria literária como instrumento capaz de refletir sobre o heterogêneo estatuto da literatura, o que justifica a razão de sua persistência, nos dias atuais, em busca de saberes que a ultrapassem. O Suplemento, leitura obrigatória naqueles tempos e nos atuais, insiste, com seus altos e baixos, em me fazer acreditar no empenho de uma geração que consegue manter viva a imagem de Murilo Rubião e a render tributo à literatura feita pelos novos de ontem e de hoje.
(Inédito)
Janelas
A janela de esquina do meu primo (1822), última novela de E T A Hoffmann, encena o diálogo entre dois primos, cujo protagonista encontra-se numa situação de total imobilidade, sem poder afastar-se de casa. Consola-se em olhar, pela janela, o burburinho do movimento da feira instalada em sua rua. As personagens descrevem impressões sobre o panorama, o que resulta na construção da narrativa a partir da imaginação criadora de ambos:
— Você decerto acredita que estou em plena convalescença, ou até mesmo curado de meu mal. De maneira nenhuma! Minhas pernas são vassalos inteiramente infiéis, que se rebelaram contra a cabeça do soberano e não querem ter nada mais a ver com o restante do meu precioso cadáver. Isso significa que não posso me locomover e me deixo levar nessa cadeira de rodas para lá e para cá com muita elegância, enquanto meu velho inválido assobia as marchas mais melodiosas de seus tempos de guerra. Mas essa janela é meu consolo, aqui a vida alegre ressurgiu para mim e eu me sinto reconciliado com o movimento incessante que me proporciona. Venha, primo, dê uma olhada para fora!² ⁵
A observação da cena eufórica e vibrante do comércio, com seu jogo de trocas, de barganhas e excentricidades de vários tipos da sociedade alemã da época, contrasta com a vida reclusa e solitária do primo. O povo está aí representado pela diversidade de profissões, de nível social e de costumes, de conversas e malandragens próprias das feiras, vitalidade que, aos olhos dos primos, promove estórias imaginadas e pretéritas. Precursor dos relatos de Poe e Baudelaire sobre a multidão, Hoffmann inverte a função do flâneur que percorre as ruas da cidade, pela de voyeur, ao contemplar e produzir a ação da narrativa pelo olhar da janela, utilizando-se da imaginação ao recriar histórias das personagens que povoam a feira. Com a ajuda do binóculo, objeto que propicia a ampliação das imagens e ao mesmo tempo a percepção dos detalhes de cada cena, inaugura-se a arte do olhar como um dos dispositivos literários. Pela acuidade do detetive e a invenção de enredos, cria-se uma ficção que enaltece o cotidiano, a voz popular e os
ruídos do povo. O toque irônico do texto reside no contraste entre o espetáculo do ambiente da feira, com a profusão de bancas de carne, guloseimas e frutas as mais diversas, com a refeição frugal do enfermo, composta de sopa e um naco de carne e pão. A imaginação supera a carência, e é aí que se impõe a ficção. Nasce, assim, a fisionomia da cidade moderna, formada pelo espetáculo da rua, que passa a exigir o desenvolvimento de novas habilidades para se captar o sentido da vida provisória e mutante. Como nos lembra Renato Cordeiro Gomes, pioneiro no estudo das cidades entre nós, “o primo ensina ao narrador a fixar um ponto de vista para aprender a ver corretamente; ensina-lhe a ‘arte de enxergar’, chamando a atenção para os detalhes engraçados que se oferecem aos seus olhares.”² À feição do primo que se encontra paralisado e sem acesso à rua, estamos, contudo, privados do olhar e do movimento em direção à cena da multidão, exilada para dentro das casas e sem perspectiva de futuro. A enfermidade atinge os movimentos para o exterior, a paralisia instaurada pelas portas fechadas contenta-se em abrir as janelas, escancará-las, para que entre o ar das ruas, não suas vozes. O interior nunca foi tão valorizado e desprezado, se considerado sob vários pontos de vista, como única moeda de troca, na falta do outro, na comunicação entre pares. Mas as duas instâncias espaciais não devem ser tomadas em separado, uma vez que o exterior é inerente ao interior, e vice-versa. O cuidado obsessivo com o corpo, em momentos de pandemia, compreende o movimento que vai da assepsia ao cuidado narcísico contra o contágio, do isolamento físico à promessa de enriquecimento — ou enfraquecimento — espiritual. O fora se imiscui no dentro, a superfície das relações entre o eu e o outro torna inócuas todas as fronteiras, particulares ou coletivas, pois o movimento está enclausurado e só resta a invisibilidade do inimigo comum, o vírus. Diante do “pânico imobilista de hoje”, segundo o arquiteto Guilherme Wisnik, o contágio é, portanto, democrático e igualitário:
Hoje, contudo, sabemos que a ameaça está disseminada por toda parte. Ela é invisível, e de difícil detecção e controle, pois revoltas da natureza podem eclodir em toda parte, e a qualquer momento. O agente terrorista talvez seja o seu vizinho. O mesmo que, eventualmente, pode lhe transmitir a covid-19.² ⁷
As janelas do presente abrem-se para a cidade virtual, cuja multidão se esforça em encontrar alento no burburinho esquizofrênico de vozes, consoantes ou discordantes, aproximadas e distanciadas, mas em busca da saída, até então inexistente. O comércio eufórico do capitalismo, das feiras agora canceladas das ruas e do consumo desenfreado dos povos limita-se ao delivery, à invisibilidade das prateleiras e ao contato asséptico com o outro. A sensação de se estar na condição do homem comum, daquele que prima pelas ações pequenas do cotidiano, do cuidado da casa, do trabalho braçal, seria um alerta às vaidades e às vidas exemplares das pessoas ilustres? A literatura tem o mérito de reavivar situações protagonizadas pela vida simples e secreta de suas personagens, desprovidas do apelo à exterioridade e ao outro, por desconhecer a separação entre o fora e o dentro. As janelas e o silêncio das ruas sinalizam o impasse do movimento para o exterior e a paralisia imposta pelas circunstâncias, naturalizando as relações entre interior/exterior, como se a imobilidade dependesse de critérios alheios à vontade do sujeito. Na verdade, a reclusão assume ares de prisão, dentro da própria casa, já que a liberdade individual se vê ameaçada pela iminência da morte. Mas essa situação não constituiria o habitual sentimento de pessoas acostumadas a ter como estilo de vida a convivência com o silêncio, a solidão, o isolamento, e cujas janelas são abertas conforme desejo e necessidade ocasionais? O trabalho exercido nos interiores seria, para muitos, sinônimo de conversa consigo próprio e afastamento voluntário de uma saudável convivência diária com seus interlocutores? A escolha de uma vida reclusa tem, contudo, limites e não obedece a ordens alheias, uma vez que sua duração é controlada pelos sujeitos. A paralisia que, por muitos meses, tem afetado a população citadina atinge o espírito de quem com frequência estava acostumado a locomover-se de forma livre e de acordo com seus interesses. Na falta de opções, a rotina recebe conotação importante, no convívio do sujeito consigo próprio; no ordenamento obsessivo das tarefas diárias; no alinhamento compulsivo com os espaços rarefeitos da casa; no reconhecimento de cada canto, antes ausente pelo olhar apressado e alheio à morada. O discurso literário sempre demonstrou apreço ancestral ao ambiente doméstico, exemplos que vão de narrativas centradas na visão romântica de donzelas sonhadoras e reclusas por ordem familiar, aos indícios da novela policial, nascida no interior dos lares burgueses. O surgimento do romance policial é interpretado por Walter Benjamin como produto da articulação entre mudanças de ordem social, a modernização das cidades,
transformações de ordem subjetiva, a perda de identidade do sujeito no meio da multidão. O filósofo alemão reconhece serem os criminosos dos primeiros romances policiais homens pertencentes à classe burguesa, pelo fato de deixarem no interior suas marcas e impressões. Os objetos que compõem o ambiente da casa são revestidos de capas de veludo, invólucros que facilitam a identificação da marca digital de seu proprietário, assim como a revelação de uma das provas possíveis do crime cometido. A interiorização do sujeito moderno nos lares burgueses manifesta-se também pelo desejo de propriedade, da aquisição de bens que o liberem do anonimato vivenciado pela experiência da rua e da multidão.² ⁸ Um dos componentes da valorização dos objetos como signo de propriedade reside na compulsão cumulativa do espírito do colecionador, o que reforça o apego do sujeito ao culto da casa, guardiã dos tesouros adquiridos. Na condição de um museu particular, é necessário cultivar os bens, guardá-los, num convívio que ultrapassa a contemplação mera e simples, mas que resume o desejo manifestado pelo homem de cada vez mais auratizar os objetos. Levando tudo isso em consideração, justifica-se o prazer de grande parte das pessoas em permanecer em casa em tempo de recolhimento e pandemia. A rua apresenta-se vazia, o burburinho do povo encontra-se por enquanto paralisado, as crianças sumiram dos parques e os passeios estão por enquanto cancelados. Na breve caminhada pelas ruas, a solidão estampada nas lojas fechadas ou semiabertas, o desamparo de habitantes e andarilhos que se refugiam no exterior e encontram aí sua precária casa, o silêncio das vozes da cidade, os pregões que ecoam e dão vida às ruas, tudo converge para a sensação de um tempo apocalíptico e sem retorno. No olhar indefeso e no temor pela contaminação do vírus, refugiar-se em casa passou a ser privilégio de poucos. Embora se saiba que o preço é muito alto, uma vez que a falta do convívio presencial com o outro afeta sensibilidades e instaura talvez a desconfiança e o afastamento social. A atenção ao culto dos hábitos cotidianos constitui nestes tempos a palavra de ordem. Tornamo-nos solidários com o alheio, despimo-nos da aparência marcada pelo luxo e talvez a riqueza, e o pensamento voa: será que poderemos aceitar a perda dos valores tão arraigados na sociedade e nos transformarmos um dia em pobres como Jó? As máscaras são no momento a estratégia utilizada para nos protegermos, pois ainda nos escondem, tornando-nos anônimos entre os que se arriscam, por desejo ou necessidade, a sair de casa. Ao mesmo tempo nos iguala, pois o rosto, coberto por uma tira de pano, contribui para a preservação das identidades, para o olhar
anônimo de quem compactua com o outro. Como janelas do corpo e da alma, os olhos se comunicam com o exterior, à procura de algum parco diálogo. Olhares cúmplices, condescendentes, em busca de um sorriso inexistente ou de um abraço proibido. Sem vaidade, a maquiagem no rosto feminino, antes máscara e embelezamento, cede lugar aos diferentes modelos de máscaras, a única manifestação de diferença, ainda que bastante precária. Funcionam, às vezes, como símbolos de distinção social, já que algumas recebem ornamentos e se sofisticam. Mas sua função primária é a privação do contágio com o alheio, resultando no aprimoramento do contágio narcísico com a própria condição de portador de um escudo capaz de afastar o encontro e a integração humanitária entre as pessoas. O isolamento corporal, a comunicação virtual estabelecida como norma e o fortalecimento das redes sociais representam uma das mais fortes manifestações desses tempos. Nos apartamentos fechados e nas janelas abertas para a circulação do ar puro, a espera pelo fim da pandemia é nossa mais arraigada esperança. Na contramão do texto de Hoffmann, apresentado no início deste ensaio, a feira movimentada e o espetáculo presenciado pelas personagens cedem lugar ao cuidadoso trabalho de preparar, agora, o próprio alimento dentro dos lares, restaurando-se antigos hábitos e cultivando a culinária como forma de congraçamento entre familiares e amigos. Bolos da vovó e outros quitutes de família complementam o tempo nem tão vazio que está sendo vivido, como se o alimento do corpo diminuísse o desejo de sair e de desfrutar do encontro com os amigos. A cultura livresca presta agora outro serviço, por meio da leitura de receitas e da escuta de vídeos, uma vez que a prática da culinária precisa ser estimulada para que a permanência em casa tenha gosto e cheiro próprios, nascidos do esforço e do labor caseiro e aconchegante. Tudo ilusão? Ou compensação? Não importa. A pandemia talvez incite mudanças nas mentes e nos hábitos futuros, em que a correria das cidades e a aflição por um bom lugar num restaurante tornem-se obsoletos ou raros, pela valorização de costumes até então desprezados por grande parte da população. No entanto, a precariedade das vidas miseráveis, a situação angustiante do ambiente de pobreza que as cidades do Brasil tornam mais visíveis neste momento não combinam com a atmosfera de um país que poderia ter cuidado com atenção da saúde pública e do bem- -estar social. A desigualdade urbana convoca a ajuda de voluntários, de doações, com o intuito de amenizar o sofrimento de quem não possui moradia nem emprego. Neste período de pandemia, escancaram-se as diferenças sociais, no número de atingidos
pertencentes a classes menos favorecidas, como negros, indígenas e desabrigados, realidade existente há tempos, mas menosprezada pelos dirigentes. Nenhuma ilusão possível fará com que o vírus estanque essa desigualdade, pois é nesse setor que a tragédia social ganha força e visibilidade. A morte ronda as esquinas, aproxima-se dos idosos, torna-se assunto diário na mídia, muitas vezes de forma naturalizada, e os riscos impedem-nos de acompanhar seus rituais, desvelando-se sua crueza e nossa total incapacidade de controlá-la. Triste época em que se banalizam e se barateiam vidas perdidas, cortadas em pleno voo, tanto nas residências quanto nos hospitais, nas ruas, favelas e aldeias indígenas. No início da pandemia, as cidades tornaram-se vazias, visão cinematográfica de fim de mundo. Seria essa a paisagem que se descortina para o futuro? Ou a irresponsabilidade de muitos que insistem em povoar o cotidiano, em preencher o vazio experimentado nos dias de reclusão, responde por questões que beiram a irracionalidade? Comportam-se à maneira de quem não suporta a vida sem o fora, sem o outro, como se o exterior fosse apartado da instância interior, formando um bloco distinto. Não estaria o suposto exterior das ruas devolvendo ao interior abafado pelo isolamento um alerta para a revisão dessa relação conflituosa entre sujeito e comunidade? A privacidade só tem lugar quando se associa ao público, uma vez que a convivência entre os dois polos deverá, necessariamente, levar em conta seu aspecto ambivalente e sua indistinção radical. Carlos Drummond de Andrade, no poema Hotel Toffolo, incluído em Claro enigma, é certeiro quando se expressa de modo contundente a respeito da fome como carência interior e não restrita às necessidades mais físicas. À semelhança da personagem de Hoffmann, que se diverte e se nutre com a contemplação e o prazer contidos no movimento da feira, no colorido das barracas, no excesso de guloseimas e de cores das verduras, para enfim satisfazer-se com um pequeno naco de carne. O poeta sintetiza de modo original esse sentimento:
Hotel Toffolo E vieram dizer-nos que não havia jantar. Como se não houvesse outras fomes e outros alimentos.
Como se a cidade não nos oferecesse seu pão de nuvens. Não, hoteleiro, nosso repasto é interior e só pretendemos a mesa. Comeríamos a mesa, se no-lo ordenassem as Escrituras. Tudo se come, tudo se comunica, tudo, no coração, é ceia.²
(Inédito)
295 HOFFMANN, E T A. A janela de esquina do meu primo. Tradução de Maria Aparecida Barbosa. Posfácio de Marcus Mazzari. São Paulo: Cosac Naify, 2010, p 13. 296 GOMES, Renato Cordeiro. Janelas indiscretas e ruas devassadas: duas matrizes para a representação da cidade. Revista Dispositiva, Belo Horizonte, v 1, n 1, maio-out 2012, p 6. 297 WISNIK, Guilherme. Com coronavírus, mundo vive em nevoeiro, diz Guilherme Wisnik. Folha de S Paulo, São Paulo, 11 abr 2020. 298 Esta passagem está contida no ensaio “Riscos de interpretação”, presente neste volume. 299 ANDRADE, Carlos Drummond de. Hotel Toffolo. In: ANDRADE, Carlos Drummond de. Claro Enigma. Obra Completa. Organização de Afrânio Coutinho. Rio de Janeiro: José Aguilar Editora, 1967, p 256.
Referências
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