255 52 658KB
Portuguese Pages [153] Year 2018
A HORA DAS CRIANÇAS narrativas radiofônicas Walter Benjamin A HORA DAS CRIANÇAS narrativas radiofônicas Walter Benjamin Tradução Aldo Medeiros Rio de Janeiro, 2018
Sumário Nota à edição alemã O dialeto berlinense O comércio de rua e as feiras na Berlim antiga e moderna O teatro de marionetes em Berlim A Berlim demoníaca Um menino nas ruas de Berlim Passeio pelos brinquedos de Berlim I Passeio pelos brinquedos de Berlim II Borsig As casernas de aluguel
Theodor Hosemann Visita à fabrica de latão Os “Passeios pelo Marco de Brandenburgo” de Theodor Fontane Processos contra bruxas Bandoleiros na antiga Alemanha Os ciganos A Bastilha, a antiga prisão nacionalda França Caspar Hauser Doutor Fausto Cagliostro As fraudes em filatelia Os bootleggers Nápoles A destruição de Herculano e Pompeia O terremoto de Lisboa O incêndio do teatro de Cantão O desastre ferroviário da ponte do Rio Tay A enchente do rio Mississipi em 1927 Histórias reais sobre cães Um dia maluco Nota à edição alemã De 1929 a 1932, Walter Benjamin falou na então jovem rádio alemã quase que regularmente. Ele próprio não tinha muito apreço por estes trabalhos, que lhe renderam, segundo Adorno, os poucos anos em que ele pôde “viver até certo ponto livre de preocupações.” Assim ele escrevia a Scholem no início de 1930: “Fiz duas palestras na rádio de Frankfurt e agora posso […] dedicar-me a coisas mais úteis. […] Não estou descontente por ter conseguido um certo afastamento, no que se refere à organização e à técnica, pois tudo que sou obrigado a considerar como trabalho de ganhapão, seja com as revistas ou o rádio, não preciso redigir, limitando-me apenas a ditar.” E um ano mais tarde, em outra carta a Scholem: “Nos próximos 12 dias estarei em Frankfurt para resolver questões nebulosas na rádio.” Dos trabalhos de Benjamin para o rádio, apenas alguns modelos radiofônicos e palestras sobre literatura eram acessíveis; faltavam sobretudo
os inúmeros textos nos quais ele se dirigia às crianças e aos jovens, fosse na Jugendstunde (A hora da juventude) na Funkstunde S.A. em Berlim, fosse na Stunde der Jugend (igualmente, A hora, ou o momento da juventude) da Südwestdeutschen Rundfunks, em Frankfurt, textos que devido a circunstâncias infelizes não puderam ser publicados. Através desta primeira edição, o leitor de Benjamin poderá apreciar e corrigir aquele julgamento que o autor faz de seus trabalhos. Estas palestras radiofônicas para crianças dão uma nova dimensão à fisionomia do escritor que é Benjamin, revelando um pedagogo tão discreto quanto engenhoso que, assumindo o lugar de narrador, leva adiante o Iluminismo […]. Rolf Tiedemann, janeiro de 1985.
O dialeto berlinense Bom, hoje quero conversar com vocês sobre o jeito de falar dos berlinenses; o famoso bico ¹ enorme é a primeira coisa na qual se pensa, quando se fala de Berlim. Na casa de um berlinense tudo é diferente, tudo é melhor e feito de um jeito mais esperto, pelo menos é o que se diz na Alemanha. Na verdade, é até bom quando se tem a capital de um país da qual se pode falar mal.
Mas afinal será verdade mesmo esta história do jeito de falar berlinense? Sim e não. Cada um de vocês certamente conhece uma série de histórias nas quais esse bico é tão escancarado que, dizem, até o portal de Brandenburgo caberia nele. Daqui a pouco eu conto algumas que vocês talvez ainda não conheçam. Mas, se pensarmos um pouco melhor, muito do que se fala do bico do berlinense não chega a ser verdade. Por exemplo, uma coisa muito simples: tribos diferentes de diferentes territórios se orgulham de ter sua própria língua: seu dialeto, pois assim é chamada a língua que se fala somente em determinadas cidades ou regiões. Bom, esses povos dão enorme importância a isso, se orgulham e amam seus poetas, como Reuter, que escrevia no plattdeutsch ² da região de Mecklenburg, ou Hebel e seu allemanisch ³ , ou ainda Gotthelf em alemão suíço. E eles bem têm razão. Mas os berlinenses, precisamente no que se refere ao seu berlinês , sempre foram muito modestos. Na verdade eles se envergonhavam mais de sua língua do que qualquer outra coisa, pelo menos na presença de pessoas refinadas, ou de estrangeiros. Conversando entre si, é claro que eles se divertiam muito mais. Faziam piada sobre seu jeito de falar, como, aliás, fazem piada sobre tudo. Sobre isso há um bocado de histórias divertidas, por exemplo: um homem está sentado à mesa com sua mulher e diz: “U quê? hoji téim fejão di novo, mais si iêu já comeu deles ónti.” Ao que sua mulher corrige e diz: “Eu comeu não, eu cumi”, e o homem responde: “Ah, 'cê fala por você!” – Ou a conhecida história do pai que sai com o filho para um passeio no campo: “Como qui choma a borboleta, pai?”, e o pai diz: “Ela não choma, ela chama”. E foi necessário encorajar o berlinense a se reconhecer como um falante de sua própria língua. Mas nem sempre houve essa necessidade. Há cem anos os escritores berlinenses criavam personagens que se tornavam famosos em toda a Alemanha. Os mais conhecidos entre eles são: o aprendiz de sapateiro, a feirante, o dono de botequim, o camelô e principalmente o famoso “inspetor de esquina ⁴ ”, Nante. E talvez, folheando algum jornal humorístico da época, vocês já tenham visto aqueles dois berlinenses famosos, um gordinho e baixinho, o outro bem alto e magro. Os dois falavam de política e às vezes se chamavam Kielmeier e Strobelweber, outras vezes Plümecke e Bohnammel, outras vezes, Meck e Scherbel e, por fim, simplesmente Müller e Schulze – sempre falando as mais divertidas bobagens de Berlim. Toda semana havia uma história nova no jornal. Mas então chegou o ano de 1870 e a fundação do império, e os berlinenses de repente quiseram sonhar alto e se tornar muito nobres. Foi necessário, primeiramente, que alguns dos grandes homens, por quem eles sempre tiveram respeito, lhes restituíssem a coragem de usar o próprio dialeto. Curiosamente, dois deles eram pintores e não poetas. E eles nos deixaram uma boa quantidade de belas histórias. Um deles, a maioria de vocês não deve conhecê-lo, é o velho e famoso Max Liebermann, que ainda é vivo e bastante temido por seu terrível bico. Só que certa vez, um outro pintor chamado Bondi levou a melhor sobre ele. Os dois estavam sentados num café, conversando amigavelmente, até que uma hora Liebermann diz a Bondi: “Sabe de uma coisa, Bondi, você até que é um sujeito legal, pena que você tem essas mãozinhas aí que dão nojo.” Bondi olha bem para o professor Lieber e diz: “Professor, o senhor tem razão, mas tem uma coisa, a mão eu posso enfiar no bolso, e o senhor faz o que com a sua cara?” E o outro grande berlinense, que vocês bem conhecem e que faleceu há pouco tempo,
chama-se Heinrich Zille. Sempre que ele escutava ou presenciava uma bela história, não perdia a oportunidade de transformá-la num desenho que certamente ganharia fama. E estas histórias ilustradas foram reunidas agora após a sua morte, muitos de vocês devem conhecer, além do que são ótima sugestão para um presente. Ou esta outra, talvez vocês conheçam: um pai e seus três filhos estão sentados à mesa, tomando sopa. Um dos garotos diz: “Oskar, olha lá, o pai fica balançando o macarrão no bico!” E o mais velho, Albert, diz: “Gustav, como é que você chama a fuça do pai de bico?!” – “Ué,” diz Gustav, “se o pato do pai não se importa!” Bom, aí o pai fica roxo de raiva e sai pra pegar um pedaço de pau, mas os três meninos Gustav, Albert e Oskar saem correndo e se enfiam debaixo da cama. O pai bem que tenta, sem sucesso, tirá-los dali debaixo, e diz finalmente para o menor: “Vem, Oskar, você não falou nada, não vou fazer nada com você.” E então, ouve-se a voz de Oskar: “Te conheço, seu malandro!” Bom, depois eu conto mais algumas histórias de moleques atrevidos. Mas não vão pensar que o dialeto berlinense é uma coleção de piadas. Tratase de uma verdadeira e maravilhosa língua. E com uma gramática sistematizada, escrita por Hans Meyer, diretor do antigo ginásio berlinense do Grauen Kloster ⁵ . Seu livro se chama: “ O autêntico berlinês em vocábulos e expressões ”. É possível falar em berlinês de forma tão refinada, tão engraçada, tão carinhosa e tão inteligente como em qualquer outra língua. Certamente só é preciso saber onde e quando. O berlinês é uma língua que vem do universo do trabalho. Ela não nasceu com os escritores e os eruditos, mas sim no alojamento do quartel, na mesa de carteado, no ônibus, na casa de penhores, no estádio esportivo e na fábrica. O berlinês é uma língua de pessoas que não têm tempo, que precisam se fazer entender com uma simples insinuação, um olhar ou uma meia palavra. E este não é o caso das pessoas que se encontram ocasionalmente nos círculos da sociedade; só as pessoas que se veem regularmente, diariamente e sob determinadas circunstâncias que se repetem são capazes disto. Entre elas sempre surge uma língua particular, e o melhor exemplo disso vocês têm na escola. Pois existe uma língua particular falada pelos estudantes. Assim existem também expressões particulares entre os trabalhadores, os esportistas, entre os soldados, os ladrões, e assim por diante. E todas estas línguas contribuem de alguma forma para o berlinês, pois é exatamente em Berlim que todas essas pessoas convivem em grandes massas, nas mais diversas profissões e posições sociais. O berlinês é hoje uma das expressões mais belas e exatas desse ritmo de vida vertiginoso. É claro que nem sempre foi assim. Agora vou ler uma história de Berlim, de uma época em que ela ainda não era uma cidade de quatro milhões de habitantes, mas de apenas algumas centenas de milhares: Vassoureiro (carregando suas escovas e vassouras, mas tão bêbado que esqueceu que está levando suas mercadorias): Olha a enguia! Olha a enguia! Quem vai levar? Aprendiz de sapateiro: Olhe, seu vassoureiro, quem comer dessa sua enguia, vai é passar mal! (ele deixa o bêbado e sai correndo pela rua de um lado para o outro) Jeeesus do céu, e essa agora! Tá proibido fumar na janela!
Várias pessoas: O que é que 'cê' tá dizendo? Isso é verdade? Não se pode fumar da janela? Era só o que faltava! Aprendiz de sapateiro (sai correndo): Não! Agora só pode fumar do cachimbo! Ha, ha! Inspetor de esquina Birisch (em frente a um museu): Eu gosto dessa casa, ela me diverte. Inspetor de esquina Lange: Diverte? Como assim? Birisch: Ora, por causa dessas águias que ficam lá em cima. Lange: E desde quando águia diverte alguém? Birisch: Porque são águias reais e têm que ficar de castigo. Imagina s'eu fosse uma águia real e tivesse que ficar lá em cima do museu de castigo e de enfeite! Só sei duma coisa, se me desse sede, eu não ficava de enfeite nem um minuto, tirava a garrafa do bolso, tomava uns gole' e gritava pro povo lá embaixo: Leve a mal não, gente, águia real tam'ém é filho de Deus! Todas as línguas se transformam rapidamente, mas a língua na cidade grande se transforma mais rapidamente ainda do que nas regiões rurais. Escutem agora e comparem com a pequena história anterior o discurso de um pregoeiro de hoje em dia. O homem que escreveu este texto se chama Döblin e veio falar de Berlim a vocês num dos últimos sábados. Com certeza ele não reproduziu exatamente tudo o que ouviu. Muitas vezes se postou ali na Alexander Platz para ouvir as pessoas que vendiam seus troços, e dali retirou o melhor para colocar em seus textos. Mas por que é que no lado ocidental o homem fino usa gravata e o proletário não? Meus senhores, minhas senhoras, cheguem mais perto, a senhorita também, a senhora também com seu esposo, e os jovens, por favor, a entrada é franca, pra jovens não é mais caro. Por que o proletário não usa gravata? Porque ele não sabe dar o laço. Então ele tem que comprar um suporte pra gravata, e quando ele compra percebe que não adianta e que não consegue dar o nó com ele. Ele vê que foi enganado, isso deixa qualquer um contrariado, é isto que empurra a Alemanha ainda mais para baixo, numa miséria ainda pior do que ela se encontra. Por que, por exemplo, ninguém usou este prendedor de gravata? Porque ninguém vai querer sair por aí com uma porcaria pendurada no pescoço. Nenhum homem, nenhuma mulher gostaria, nem uma criança de colo ia dizer que gostaria, se ela pudesse falar. Não precisa rir não, meus senhores e minhas senhoras, não riam não, a gente não sabe o que se passa na cabeça da criança. Meu Deus do céu, aquela cabecinha, tão pequenininha, com os cabelinhos, não é verdade, tão lindo, mas tem que comprar o leite, isso não é pra rir não, a vida é dura. Comprem essa gravata na Tietz ou na Werhheim, ou, se os senhores não quiserem comprar em loja de judeu, vão a uma outra loja. Eu sou um ariano. As grandes lojas não precisam que eu fique aqui fazendo propaganda delas, elas se viram bem sem mim. Comprem gravatas desse tipo aqui comigo, gente, e não esqueçam de como fazer para dar o nó de manhã. Meus senhores e minhas senhoras, quem hoje em dia vai querer desperdiçar um minuto do seu sono pra dar o nó da gravata direito? Todo
mundo precisa dormir bem e o suficiente, porque a gente trabalha muito e ganha pouco. Esse suporte de gravata aqui vai lhe proporcionar um sono muito melhor. Ele faz concorrência com o farmacêutico, porque quem compra esse suporte de gravata que eu tenho aqui não precisa de remédio pra dormir, nem inalação, nem nada. Ele dorme tranquilo como a criança no colo da mãe, porque ele sabe: amanhã não tem correria; o que ele precisa tá ali em cima da cômoda, prontinho, bastando apenas colocar em volta da gola. O senhor e a senhora jogam dinheiro fora com tanta porcaria. Os senhores viram no ano passado, os senhores foram ao Crocodilo ver a Ganofim, na entrada distribuíam salsichão, lá dentro o Jolly ficava deitado dentro de uma caixa de vidro sem nada de chucrute pra encher a barriga. Todo mundo viu isso, não foi? Cheguem mais perto, meus senhores, minhas senhoras, pra que eu possa economizar um pouco a minha voz, eu ainda não fiz o seguro da minha voz, ainda tenho que pagar a primeira parcela, que nem o Jolly na caixa de vidro. Eles davam chocolate pra ele, isso os senhores não viram, né. Aqui os senhores compram mercadoria autêntica, não é celuloide, é revestida de borracha, uma peça vinte centavos, três por cinquenta. Por aí vocês podem logo ver como o dialeto berlinense pode ser útil, e como a pessoa pode ganhar dinheiro com ele se souber fazer boa propaganda do seu prendedor de gravata, como se fosse o dono de uma grande loja de departamentos. Uma língua como essa se renova a cada instante. Todos os acontecimentos, dos mais insignificantes aos mais decisivos, deixam nela sua marca. A guerra e a inflação, da mesma forma que a passagem do Zeppelin ou a chegada de Amanullah ⁶ ou do Gustavo de Ferro ⁷ . O berlinês chega até mesmo a ter os seus modismos. Alguns de vocês talvez ainda se lembrem do famoso “lá em casa”. ⁸ Por exemplo: quando alguém vinha falando bobagem e a outra pessoa não queria dar muita confiança, ela dizia: “Lá em casa, a Igreja da Memória!” O que significa: as torres. E “torres” em alemão é uma expressão conhecida para “Cai fora!” Ou um garoto a quem se pede para ir comprar alguma coisa, e então se pergunta a ele: “Você vai resolver isso ou não?” Ao que ele responde: “Lá em casa, quadro-negro de pedra!” ⁹ (O senhor pode contar comigo.) Em muitas destas histórias vocês devem ter percebido, o bico enorme não é a única característica peculiar dos berlinenses. Às vezes, por exemplo, a pessoa pode ser bastante atrevida e ainda por cima totalmente desajeitada. O berlinense, pelo menos o verdadeiro, sabe, porém, juntar sua insolência com a língua afiada, o refinamento e o bom humor. Ele não se deixa, como se costuma dizer, “fazer-se de bobo” ¹⁰ . Há esta bela história de um senhor que, cheio de pressa, segue numa carruagem que vai bem devagar: “Ah, meu Deus, senhor cocheiro, o senhor não pode andar um pouco mais rápido?” “Poder eu posso, mas aí vou deixar o coitado do cavalo sozinho pra trás!” Mas o autêntico berlinense não faz piada para zombar dos outros, e sim de si mesmo. É isso que faz dele uma pessoa tão amável e tão livre. Ele não poupa nem o próprio dialeto, e há muitas histórias divertidas que mostram isso, por exemplo: chega um homem já um pouquinho bêbado no botequim e pergunta: “Tem pinga aí?” “Pinga não, diz o dono, a gente já consertou o telhado”.
Bom, agora as histórias de crianças que eu prometi. Três garotos chegam numa drogaria. Um deles pede: “Quarenta centavos de bala de alcaçuz.” O vendedor arrasta a enorme escada, sobe até alcançar a prateleira mais alta, enche o pacotinho e desce. Assim que o garoto acabou de pagar, o segundo diz: “Também queria quarenta centavos de bala de alcaçuz.” O vendedor irritado então pergunta ao terceiro, antes de subir na escada: “Você também quer quarenta centavos de bala de alcaçuz?” “Nããoo”, diz ele. O vendedor sobe novamente, enche o pacotinho, desce. Daí pergunta ao terceiro garoto. “E o que você quer, meu jovem?” “Eu queria sessenta centavos de bala de alcaçuz.” – Ou uma outra: um senhor encontra um jovem na rua: “O quê! Você, fumando, nessa idade? Pois eu vou contar ao seu professor!” “Ah vai, seu velho besta, só que eu não tô na escola ainda.” – Ou essa: um garoto da quinta série não consegue se acostumar a tratar o professor por “senhor”. O professor se chama Ackermann. Ele escuta aquilo por um tempo, por fim se irrita e diz: “Para amanhã, você vai me escrever cem vezes no caderno: Não devo tratar meu professor por você ”. No dia seguinte, o garoto chega e entrega o caderno ao professor, e realmente ele escreveu cem vezes “Não devo tratar meu professor por você ”, quase a metade do caderno. O professor conta e vê que está certo. E o garoto, em pé ao lado dele, diz: “Nem tá acreditando, né, Ackermann!” De uma outra vez, se vocês quiserem, trago mais histórias sobre o berlinês. Mas não há a menor necessidade de vocês ficarem esperando. Quem abrir os olhos, apurar os ouvidos e caminhar por Berlim, poderá reunir muito mais dessas belas histórias do que as que eu contei hoje aqui no rádio. 1 No original, Schnauze, focinho, bico, matraca. (Obs: todas as notas desta edição são do tradutor.) 2 Dialeto do norte da Alemanha, região de planície (de onde platt , plano). 3 Dialeto do sudoeste da Alemanha. 4 No original, Eckensteher , indicando também um desocupado. 5 O Gymnasium zum Grauen Kloster (literalmente mosteiro cinza ) é o primeiro e mais antigo ginásio de Berlim. 6 Amanullah Khan, antigo monarca do Afeganistão de 1919 a 1929. 7 Gustav Hartmann (1859-1938), condutor de charretes berlinense. Realizou em 1928 uma viagem de ida e volta até Paris de charrete, em protesto contra o uso cada vez maior de automóveis. Após a proeza, ficou conhecido como Eiserner Gustav ( Gustavo de Ferro ). 8 No original, bei mir, comigo, na minha casa, conosco, na nossa casa. 9 No original, Schiefertafel, lousa de ardósia. 10 No original, nicht für dumm verkaufen, não (se deixar) vender por tolo.
O comércio de rua e as feiras na Berlim antiga e moderna Vocês conhecem a história d' O vaso dourado , lembram-se da estranha vendedora de maçãs, que logo no início leva um esbarrão do estudante Anselmo ¹¹ ? Ou conhecem a história de Hauff, Nariz de anão , que começa numa feira, onde a bruxa vai escolhendo as melhores mercadorias com seus dedos ressecados feito os de uma aranha? Já não aconteceu com vocês mesmos de irem alguma vez à feira com suas mães e presenciarem alguma coisa emocionante ou um clima de festa? Pois mesmo as mais modestas feiras semanais guardam ainda um pouco da magia dos mercados do Oriente, dos bazares de Samarcanda. Ou será que vocês assistiram ao novo filme em que o diretor rodou cenas do mercado na praça Wittenberg, e o resultado ficou mais emocionante do que um filme de detetive? Só uma coisa é naturalmente impossível de ser mostrada no filme, e mesmo os livros raramente dão conta dela: é aquela conversa da feira, são as pechinchas e o toma-lá-dá-cá das mercadorias e do dinheiro, que à sua maneira são tão suculentos e apetitosos como a imagem que a feira oferece aos olhos. Isso vale especialmente para as feiras de Berlim. Há alguns meses eu falei aqui a vocês sobre o dialeto de Berlim. E a feira é um dos melhores lugares para se apurar os ouvidos e perceber o modo de falar berlinense, sua história e suas transformações. É sobre o comércio de rua da Berlim antiga e moderna que eu quero contar hoje a vocês. Desde os tempos da antiga Berlim as feirantes já eram personagens de uma qualidade incomparável. Entre as comerciantes elas eram as únicas que possuíam licença para expor suas mercadorias na feira semanal, e eram em sua maioria, provavelmente, camponesas que vinham colocar à venda o produto de sua colheita. Completamente diferente das chamadas vendedoras ambulantes ¹² , que não tinham permissão para vender suas melhores mercadorias e eram, além disso, obrigadas a fiar quatro libras de algodão por mês para o armazém como pagamento por sua licença de venda. Como as compras também eram extremamente limitadas para elas – não podiam, por exemplo, comprar diretamente dos camponeses, apenas se contentar com os restos de fim de feira da semana – estas ambulantes conduziam seus negócios de forma precária e passavam enorme necessidade com suas famílias. E isso já no século XVIII. Naquela época, se uma mulher da classe mais baixa desejasse contribuir para o orçamento familiar, como era o caso de muitas esposas de soldados, frequentemente não lhe sobrava outra alternativa a não ser o ofício de ambulante. Para uma feirante em situação regularizada não havia, portanto, ofensa maior do que ser chamada de “ambulante”. Glassbrenner descreveu em uma de suas melhores cenas uma destas feirantes usando seu mundialmente famoso linguajar berlinense e falando o que lhe dá na telha para passar uma descompostura num freguês que acabou de xingá-la de “ambulante”. “Ambulante?” ela repete, se levanta e bota a mão nas cadeiras: “S'cuta 'qui, ô vira-lata puguento, 'gora tu vá latí
longi daqui ô iêu lhe dô um bico na fuça di tu ficá ganino oito dia!” Ao que o freguês responde: “Mas é impressionante como essas vendedoras sabem xingar!” – E a ambulante: “Xingá? Ess' istrupício dess' infeliz nem tem como a gente xingá, que tudo que é baixaria que a gente inventá esse verme é pió. Ess' filhote de cruz-credo qué tirá onda co'a cara da gente. Essa topêra disgraçada quer fazê a gente de besta? Fazê a gente de besta? Que vá botá uma corda no pescoço e pulá da janela, antes qui ua pessoa de bem lhe faça um estrago. Que vá se metê co'os vagabundo da laia dele, que vão vendê ele por uma merreca. Que junte um monte de cascalho e esfregue na fuça até gastá e num sobrá nada dele. Que vá pará no quinto dos inferno e leve junto tudo que é sem-vergonha por aí. E qui fique esperto pra molecada não pegá ele pra judas.” Provocar as feirantes para ouvir seus xingamentos havia se tornado uma autêntica prática esportiva. E aqui se pode ver que valia a pena. Saber xingar do fundo do coração e com persistência, eis aí um talento para poucos. Não é para qualquer um que simplesmente queira fazê-lo. Para isso são necessários não só uma boa dose de grosseria e um pulmão saudável, mas também um vasto vocabulário e, sobretudo, inspiração. São muitas as histórias pitorescas que servem de prova desta habilidade das feirantes e donas de barraca de Berlim. Por exemplo, aquela que se conta em que uma vendedora de frutas está em seu leito de morte, agonizando antes do último suspiro. O marido ao seu lado não sabe o que dizer para consolá-la: “Fica 'sim não mía fía, tud' si ajeita, vai ficá tudo bem. Cê vê só, nessa vida todo mundo tem qui morrê um dia!” – “Seu cabeçudo,” sussurra a pobre mulher, “mas é iss' mêmo qui é o pobrema! Se a gente tivesse que morrê dez, doze veiz, eu num ia querê morrê ninhuma qui fôsse.” O grande ditado berlinense “Medo pra quê?” ¹³ tornou-se o lema deste tipo de personagem. É conhecida a fama do berlinense de não se deixar impressionar, particularmente pela chamada formação acadêmica. E ainda que se impressione, não permite que os outros o percebam. Temos uma bela imagem de Berlim da metade do século passado. Naquela época não havia quase jornais humorísticos. Para compensar encontravam-se à venda nas livrarias e papelarias gravuras avulsas assinadas muitas vezes por grandes artistas como Hosemann, Franz Krüger, Dörbeck e outros – frequentemente em forma de aquarelas. Enfim, é de uma destas imagens que falarei aqui. Nela vemos uma gorda vendedora de frutas sentada à frente dos seus cestos perto do portal de Brandenburgo, ao lado dela de pé está um senhor distinto acompanhado da esposa, forasteiros, como se pode ver, que não conhecem Berlim. “Por favor, minha senhora”, diz o homem apontando para a Victoria, a estátua que fica sobre o portal, “pode me dizer o que são aquelas figuras em cima do portão?” – Resposta: “Ah, tá, o qui é qui é aquilo ali. É Roma antiga, príncipe de Brandenbur', mais a Guerra dos Sete Anos, iss'aí.” – “Ah, sim”, diz o senhor, “bom, muito agradecido”. Não gostaria de afirmar com isto, que este tipo berlinense não existe mais hoje em dia. Apenas os contrastes sociais tornaram-se mais acentuados, o povo convive mais com seus iguais, e hoje não é mais tão fácil para um freguês se aproximar destas pessoas em meio ao tumulto dos dias de feira. É por isso que já não se vê mais este tipo de esculacho, como o que Glassbrenner descreveu em seu conto. As feirantes de hoje em dia tornaramse verdadeiras mulheres de negócio, e os açougueiros que vêm às feiras
guardam seus estoques nos grandes frigoríficos, onde carregam a carne antes da feira e descarregam após seu encerramento. Em compensação temos outro espetáculo, que certamente serve de deleite para os olhos como outrora era para os ouvidos a feira semanal de Berlim: os grandes mercados cobertos. No meu tempo de menino, era uma grande festa quando meus pais me levavam ao mercado na Magdeburger Platz, onde no inverno o calor do pavilhão nos acolhia e nos dias quentes sua arquitetura arejada deixava a temperatura mais amena. Tudo ali é diferente das feiras semanais ao ar livre. Primeiramente, as pilhas de mercadorias da mesma qualidade, que ficam espremidas nas bancadas. Mas, sobretudo o cheiro de peixe, queijo, flores, carne crua e frutas, que se mistura no ambiente fechado, totalmente diferente da feira a céu aberto, e que em sua indefinição e tom crepuscular combinam tão bem com a luz que atravessa as turvas vidraças emolduradas em chumbo. Sem esquecer o piso de pedra, sempre encharcado com resíduos ou água de limpeza, e sobre o qual se passeia como num fundo de mar frio e escorregadio. Como desde pequeno eu nunca mais tive a oportunidade de ir novamente a um destes mercados cobertos, o encanto provocado por uma visita ainda é o mesmo de antigamente. E quando quero me presentear com algo especial, então vou até ao pavilhão da Lindenstra β e entre as quatro e cinco da tarde. Quem sabe não encontro um de vocês por lá? Mas nós não vamos nos reconhecer. Este é o lado triste dos programas de rádio. Algumas formas de comércio com certeza acabaram por desaparecer completamente das ruas de Berlim. Assim foi com os carros de areia, que até aproximadamente 1900 passavam de casa em casa gritando: “Ooolh'areia! 'Reia branca!” Eles vinham da região montanhosa do Reh, no norte, do sul do Kreuzberg e de várias outras direções, trazendo areia branca que as donas de casa usavam naquela época para esfregar e limpar o assoalho. Ou as carroças que passavam vendendo arenque defumado ¹⁴ . Ou os Kolporteure , livreiros ambulantes, centenas de indivíduos pobres que comerciavam literatura erótica em edições cheias de ilustrações coloridas, ou talvez mais frequentemente, partituras e livretos com canções. Antes de existir a propaganda em cartazes de rua, o mercado de livros dependia destes livreiros, se quisesse fazer chegar seus produtos até ao chamado povão. É curioso imaginar a figura deste verdadeiro livreiro-viajante em meio a esta população, este homem que era capaz de levar histórias fantasmagóricas e contos de cavalaria tanto à casa da criadagem que morava na cidade como à dos camponeses nas aldeias. E ele mesmo tinha que fazer de si um personagem das histórias que vinha vender ali. Claro que não um herói, um jovem príncipe rejeitado ou um cavaleiro viajante, mas quem sabe o velhote malicioso, o sedutor ou o adivinho que traz um aviso; figuras sempre presentes em tantas destas histórias. As páginas que eles vendiam por alguns poucos trocados, e especialmente as histórias ilustradas de Gustav Kühn ¹⁵ , tornaram-se hoje raridades de valor inestimável. Quase não há mais livreiros ambulantes em Berlim. Em compensação há os carrinhos de livros. O livreiro das ruas de Berlim é o único que ainda se vê hoje em dia lendo os seus próprios livros. Na maioria das vezes vemos um homem sentado na mureta estreita de um jardim ou num banquinho que ele mesmo trouxe, sem se deixar incomodar pelas pessoas que param para fuçar os seus livros. É que ele sabe que, entre dezenas de pessoa que passam ali,
talvez não haja uma sequer que realmente tenha intenção de comprar algo. E se no caso, ele dependesse de intenções sinceras, simplesmente perderia as esperanças. Mas é este o truque com os carrinhos de livros: ali as pessoas compram livros que nem em sonho imaginariam encontrar ao sair de casa de manhã. Leitores de ocasião, aficionados de ocasião. Só na época da inflação era diferente. Quem ainda tinha algum centavo para gastar com livros achava preciosidades nos carros de venda por um centésimo ou milésimo do seu valor. Pois junto com a desvalorização da moeda havia a completa falta de informação destes vendedores, em sua maioria, não tão letrados, e os colecionadores souberam tirar proveito disso. O homem do carro de livros é um tipo calado. Mas ele é uma exceção, pois em geral o comércio de rua de Berlim é a escola superior do dialeto berlinense, a verdadeira Academia de Retórica de Berlim. Para finalizar irei pronunciar agora para vocês um autêntico discurso de mestre no estilo berlinense, daqueles que já não se escuta mais pelas ruas. Vocês já devem ter percebido que tal orador, para desempenhar sua função com vivacidade, precisa de certa forma, se armar para que, antes mesmo que alguém lhe dê atenção ou escute, ele arrume o cenário diante do seu “Tira-manchas Universal”, de sua gravata com fecho automático, do seu kit de montar do Palácio de Cristal. É preciso que ele lance no ar vazio, e com um fatal desdém, seu pequeno discurso de apresentação, se possível acompanhado de um gestual, até o instante exato em que alguém morda a isca. Morder a isca não significa aqui, contudo, comprar. No universo do comércio de rua a compra é a última peça do quebra-cabeça. A primeira é, em todo caso, o entusiasmo do orador. A segunda é que os ouvintes e espectadores compareçam, quanto em maior número tanto melhor. O vendedor de rua está na berlinda. Ele decorou seu discurso, vai repeti-lo uma vez mais. Seus ouvintes sabem disso tão bem quanto ele. E o mais interessante para eles é ver como ele vai afiando e enriquecendo suas histórias com variações, ou de outras vezes, apresentando alguns trechos destacados com a mesma entonação e a precisão de um gramofone. Se um dos presentes então finalmente se dá por vencido e compra alguma coisa, então terá de se dirigir até ao centro da roda, como se eles formassem uma dupla de artistas no meio de uma arena. E o espetáculo de exibir a mercadoria, desempenhar um papel, ser o centro das atenções, acaba se tornando o maior atrativo para o público comprador. Com a palavra aqui então, o nosso homem do engomador universal ¹⁶ : Minhas senhoras e meus senhores! Não pensem os senhores que eu venho aqui tentar empurrar alguma coisa que ainda não foi testada! Inúmeros especialistas da área já testaram e aprovaram este engomador universal. Tenham a bondade, queiram se aproximar e ver com seus próprios olhos! Este engomador é a mais prática invenção concebível que os senhores já viram no ramo, e do tamanho do bolso dos senhores. Tão simples quanto prático! E ao mesmo tempo, econômico! Hoje em dia, meus senhores, quando todo mundo tem que fazer o dinheiro se virar em dois, antes mesmo de gastá-lo, hoje em dia em que qualquer um que pense em seguir carreira tem que andar tão limpo quanto possa, hoje em dia este engomador universal é salvação para o mundo inteiro. Sim, minhas senhoras, meus
senhores, podem rir. Mas um dia os senhores vão ver que eu não exagerei uma vírgula sequer do que eu disse. Nesse ínterim já se formou um círculo de 20 a 30 pessoas espremidas em volta do vendedor. Ele toma então o seu engomador e explica o seu funcionamento: Vejam, meus senhores, minhas senhoras, os senhores pegam um colarinho amarrotado como esse, levantam da seguinte maneira, encaixam firme no engomador, fixam o colarinho em volta, e como ele fica? Eu pergunto: como ele fica? Firme e elegante! Firme e elegante! E até a gravata fica melhor agora. E se antes o colarinho já parecia sujo depois de algumas horas, agora o senhor pode utilizá-lo oito dias. Ele continua firme e elegante! Quem usar um engomador como esse, não vai dar a menor chance aos outros candidatos, o emprego já é dele! E o chefe vai poder dizer: esse sim, esse se veste com firmeza e elegância! Quando se escuta um discurso como este, não é preciso lamentar pelo fim da velha Berlim. Ela ainda está presente na nova e é tão durável quanto o é para o nosso orador, o seu engomador universal. 11 Benjamin refere-se ao conto fantástico de E.T.A. Hoffmann, autor sobre quem ele escreve em A Berlim demoníaca, ensaio também publicado neste volume. 12 No original, Hökerfrauen , pequena comerciante que possuía uma barraca ou transportava suas mercadorias num cesto sobre as costas. 13 No original, Bange machen gilt nicht, algo como “não vale ter medo”. 14 No original, Bücklingswagen ( Bückling, arenque defumado). 15 Neuruppiner Bilderbogen, litografias com histórias ilustradas e textos, um prenúncio das histórias em quadrinhos, em que Gustav Kühn (1794-1868) retratava cenas cotidianas, festas da sociedade e acontecimentos históricos. 16 No original, Wäscheschoner, algo como “conservador de roupas”.
O teatro de marionetes em Berlim Crianças de Berlim, se vocês quiserem ir ao teatro de marionetes, vão ter dificuldades. Em Munique temos, por exemplo, o famoso Papa Schmidt, que pelo menos duas vezes por semana apresenta espetáculos num teatro próprio, que a cidade de Munique construiu para ele. Em Paris não há apenas um, mas vários em constante atividade no Luxembourg, um jardim
semelhante ao nosso Tiergarten. Em Roma há o famoso “Teatro dei piccoli”, ou seja, “O teatro dos pequenos”: e não para os pequenos, mas sim dos pequenos, mais exatamente dos bonecos, e da mesma forma também para os grandes. Este tem sido o destino do teatro de marionetes. Por muito tempo ele foi algo para crianças e para pessoas simples, depois foi decaindo aos poucos, ninguém se interessava mais, e assim que foi redescoberto, tornouse algo muito distinto, apenas para adultos, e só para pessoas refinadas, inclusive. Só o Kasperle ¹⁷ ficou sempre do lado das crianças. No verão podese encontrar um lindo Kasperle até mesmo em Berlim. As apresentações – talvez um pouco curtas demais e repetitivas – podem ser vistas no Lunapark, ao final da longa avenida de entrada. Há cem anos era exatamente o contrário. Kasperle vinha no inverno, mais exatamente alguns dias antes do Natal. E junto com ele, uma porção de outros bonecos, quase sempre às suas ordens. Pois isto é o que há de notável no Kasperle: não se limita a aparecer nas peças que são escritas para ele, mas se atreve a meter o bedelho em qualquer obra do autêntico teatro para adultos. Ele bem sabia o risco que corria. Nas tragédias mais terríveis nada de mal poderia lhe acontecer. E quando o demônio vem buscar o Fausto, não lhe resta nada a fazer senão deixar o Kasperle em paz, que não se comportou nem um pouco melhor que seu senhor. É um tipo realmente curioso. Ou, como ele mesmo diz: “Eu sempre fui um tipo curioso. Desde pequeno gostava de guardar meu dinheirinho. E quando tinha juntado bastante, sabem o que eu fazia com ele? Ia ao dentista arrancar um dente.” Enfim, quando ia chegando o Natal, surgiam nos muros das ruas cartazes vermelhos ou verdes, azuis ou amarelos, nos quais se podia ler, por exemplo: O bandoleiro torturado ou Amor e canibalismo ou Coração e pele na brasa. Em seguida grande balé de arte da Metamorfose, no qual vários bailarinos, figuras e seres transformados, irão encantar o olhar da plateia com movimentos graciosos e cheios de beleza. E ao final o maravilhoso cãozinho Pussel irá apresentar seu extraordinário número. E para evitar qualquer perturbação da ordem, não se permitirá a entrada de garotos mal-educados. Preço da entrada: 2 vinténs e 60 centavos, tanto para crianças quanto para adultos. Estas apresentações se davam sempre no contexto das chamadas “Exposições Humorísticas de Natal”, que aconteciam todos os anos em algumas famosas confeitarias. Nestas exposições não havia, na verdade, nada além de grandes figuras coloridas de açúcar expostas nas vitrines. Anunciava-se, por exemplo: Na confeitaria Zimmermann, situada na Königsstra β e, encontram-se expostas refinadas figuras de todos os tipos, feitas de açúcar, incluindo o Portal de Brandenburgo, feito de alcatira. ¹⁸ Mas o mais importante, é claro, era o teatro de marionetes. No espaço reservado para os espectadores, contudo, nem sempre reinava a delicadeza e as boas maneiras. Especialmente quando, tempos depois, as apresentações nas confeitarias deram lugar ao teatro de marionetes mecânicas de Julius Linde ou ao grande Teatro-piscina Nattkes, na Palisanderstra β e, onde se anunciava: “A diversão feita com bom humor e decência traz um benefício
que é do conhecimento de todos”. Esta diversão decente não impedia que – conforme escutamos dizer – nas fileiras superiores estivessem sentados jovens com idade entre 10 e 14 anos, fumando charutos ou grandes cachimbos e bebendo cerveja em copos enormes. O famoso escritor berlinense Glassbrenner ¹⁹ , que descreveu estas apresentações, não se esqueceu de mencionar a música: ele fala que o Quarteto era formado por cinco músicos, sendo um deles sempre acompanhado por uma garrafa de aguardente. Vamos ver que peças eram apresentadas ali. Por exemplo: “A volta ao mundo em 80 dias”, “O assassinato na adega”, “Käthchen von Heillbron”, “O baile dos esfarrapados ou o macaco desastrado com fogos de artifício”, “O exímio atirador”. Se perguntássemos a alguém, qual é, em sua opinião, a origem do teatro de marionetes, provavelmente ele diria: “Ele nasceu porque é muito mais barato que o verdadeiro teatro”. Não deixa de ser verdade. Mas não exigir comida nem pagamento não passa de uma agradável característica secundária destes bonecos. Em épocas mais remotas o teatro de marionetes não era uma simples diversão, mas na verdade e com frequência, uma coisa sagrada, pois as marionetes representavam os deuses. (Entre alguns povos de ilhas nos mares do sul esta tradição ainda se mantém. Eles fazem bonecos de palha de até 30 metros de altura. Um homem da tribo entra dentro do boneco, que então ganha movimento e começa a dançar. Quando o homem fica exausto com o peso e deixa o boneco cair, os outros partem para cima dele, fazendo-o em pedaços e levando os trapos para casa para servir de amuleto protetor). Mas como o teatro de marionetes veio mais tarde parar na Alemanha? – eis aí uma história ainda mais curiosa. Foi depois da Guerra dos Trinta Anos ²⁰ . Os bandos de mercenários perambulavam pelos campos, não tinham nenhuma ocupação nem recebiam mais nenhum soldo, o que tornava as estradas um lugar perigoso. Tão perigoso a ponto de os atores, forçados pela profissão a se deslocar constantemente, só sabendo atirar e lutar com espada em cima do palco, perderem o prazer de viajar. Então surgiu a ideia de substituí-los por marionetes – e foi assim que logo se descobriu o maravilhoso instrumento teatral que aqueles bonecos representavam. Principalmente porque eles não contrariam ninguém. É verdade que eles têm uma cabeça própria e, diga-se, bem maior e pesada em relação ao corpo do que a dos atores. Além disso, são mais teimosos e rígidos em sua expressão. Mas eis aí o que é extraordinário – e vocês já devem ter observado isto no teatro. Aquele rosto de madeira com o olhar fixo parece acompanhar fielmente através da mímica cada movimento sutil de seu pequeno corpo, quando detrás deles se esconde um bonequeiro de talento. E um verdadeiro bonequeiro é um déspota, diante do qual o próprio czar não passa de um mero guardinha. Imaginem vocês: ele escreve as próprias peças sozinho, ele mesmo pinta o cenário, recorta os bonecos como quiser e interpreta cinco, seis e às vezes, muito mais papéis com sua própria voz. E não há barreiras, impedimentos ou obstáculos que atrapalhem seu trabalho. Por outro lado é obrigado a
levar sempre consigo seus bonecos, que a seus olhos se tornam seres vivos. Todos os grandes bonequeiros garantem que o segredo desta arte é deixar a marionete atuar de acordo com seus desejos, cedendo à sua vontade. O grande poeta Heinrich von Kleist (isto eu digo aqui para alguns adultos que, eu sei, estão aí escondidos em meio às crianças, e pensam que eu não estou vendo) chegou a provar em seu ensaio sobre as marionetes, que o bonequeiro deve se portar exatamente como um bailarino, se ele deseja mover as figuras com maestria. ²¹ É assim que se torna possível o lindo espetáculo dos pequenos que riscam o palco delicadamente com a ponta dos pés, já que, como se fossem anjos, são capazes de descer das alturas sem estar à mercê da força da gravidade, como acontece com os verdadeiros atores. Mas esta característica especial também lhes rendeu ódio e perseguição. Primeiro por parte da Igreja e das autoridades, pois as marionetes podem zombar de todos facilmente e sem nenhuma malícia. Basta que elas imitem os grandes e o público verá: “O que este homem sabe fazer, qualquer marionete também sabe.” Assim, por exemplo, elas ridicularizavam os tiranos na Áustria de alguns séculos atrás. Então, por vezes, chegaram também a representar uma concorrência ameaçadora para o verdadeiro teatro. Em Paris, por exemplo, os atores não sossegaram enquanto não conseguiram expulsá-los do centro da cidade para as regiões mais afastadas no perímetro urbano. É fato conhecido que os grandes bonequeiros sempre foram pessoas excêntricas. Para começar, eles vivem exclusivamente para seus bonecos, todo o resto lhes é indiferente. É por isso que chegam até uma idade avançada. O Papa Schmidt de Munique completou noventa e um anos. E o famoso bonequeiro Winter, criador das apresentações de marionetes de Colônia, onde o Kasper se chama “Hänneschen” ²² , chegou aos seus noventa e dois. Segundo: os bonequeiros formam uma espécie de associação secreta. O ofício é coisa que se passa de pai para filho. Um aprende e decora o que o outro lhe ensina. E depois sai pelo mundo afora com a história na cabeça. Cada um deve prestar um juramento de que jamais passará sequer uma linha para o papel, para que nada possa cair em mãos erradas e eles venham a perder o seu ganha-pão. Pelo menos assim era antigamente. Hoje muitas peças para teatro de bonecos são impressas, mas as melhores certamente continuam sendo as não-impressas, aquelas que as crianças e os bonequeiros criam para seu próprio uso. Com exceção, naturalmente, das peças do Conde de Pocci, que ainda são apresentadas em toda parte. Houve um grande bonequeiro chamado Schwiegerling. Eu mesmo cheguei a assistir o Teatro de Marionetes de Schwiegerling em Berna, no ano de 1918, depois desta ocasião nunca mais ouvi falar ou li nada sobre ele. Era a coisa mais linda que se pode imaginar. Schwiegerling inventou os chamados bonecos transformáveis, também conhecidos como metamorfoses. Seu teatro de marionetes era na verdade uma tenda de magia. Ele apresentava apenas uma peça por noite. Antes, porém, entravam em ação seus bonecos artísticos. Ainda me lembro de dois números. Kasperle entra dançando com uma bela dama. De repente, quando a música se torna mais suave, ela se transforma num balão de gás e Kasperle, apaixonado, se agarra a ela e é conduzido ao céu. Por um minuto o palco permanece vazio, então Kasperle despenca lá de cima, fazendo um tremendo barulho. O outro número era mais triste. Uma menina, que parece ser uma princesa encantada, toca uma
melodia triste ao realejo. Subitamente o realejo se abre e de dentro dele saem voando doze minúsculas pombinhas. A princesa, porém, afunda em silêncio no solo, com os braços erguidos para o alto. E ao contar estas duas histórias, me vem à lembrança, uma outra. Um palhaço alto e magrelo está sobre o palco, faz uma reverência e começa a dançar. Durante a dança ele tira da manga outro palhaço-anão, vestido igual a ele, com uma roupa florida vermelha e amarela. A cada doze passos de valsa, surge um novo anão. Até que ao final, doze anões ou bebês-palhaço dançam em volta do maior. Já sei que isto soa inacreditável, mas é a pura verdade. Em outro palco de marionetes, a principal atração era um soldado que fumava e soltava fumaça pela boca. Um concorrente de Schwiegerling, de Hamburgo, apresentava “A decapitação pública da senhorita Dorothea”. Se logo após a execução o público aplaudia, a cabeça solta voava de volta para o corpo do boneco, que mais uma vez era decapitado. Este mesmo bonequeiro de Hamburgo apresentava seu Kasperle sempre acompanhado de uma pomba, da mesma forma que antigamente aparecia um coelho em cena junto do Wurstl ²³ de Viena e um gato junto do francês Guignol (assim se chama o Kasperle naquele país). Mas agora voltemos a Berlim. Numa outra ocasião vou lhes contar mais sobre bonecos. Enquanto isso vocês podem ler o “Pole Poppenspäler” de Theodor Storm ²⁴ , que descreve um destes grandes bonequeiros excêntricos. Vamos falar agora de outro espetáculo de marionetes, um teatro mudo, que era apresentado em Berlim na época do Natal. Na realidade se tratava de uma cópia berlinense e profana dos piedosos presépios do sul da Alemanha, e se chamava “Theatrum mundi”, o teatro universal. Em filas paralelas, separadas por elementos cênicos móveis, iam desfilando sobre rodinhas invisíveis e em movimento contínuo toda espécie de cenas da vida cotidiana. Animais selvagens perseguidos por caçadores e seus cães; carruagens, cavaleiros e pedestres; gado pastando; barcos a vapor ou a vela; um trem de ferro; jovens se atracando – tudo ia passando sucessivamente em intervalos regulares. Era uma espécie de precursor mecânico do cinema de hoje em dia. E por fim, cenas reais, mas representadas por bonecos, por exemplo: “Os três senhores no forno ardente”, ou “O terremoto de Lisboa”, ou “A batalha de Zorndorf”, ou “O casino de Baden-Baden”, ou “O descobrimento da América”. E agora vamos por fim escutar o homem que está diante do teatro, naturalmente um autêntico berlinense, explicando às crianças o seguinte:
Aqui se apresenta a vocês um grupo muito interessante. O canto dos três senhores no forno ardente. Num espetáculo de extraordinária beleza, as chamas parecem realmente de verdade.” – No meio de um forno encontramse três homens, espantados ao ver que nem sequer estão suando; à margem da cena, em um canto, encontra-se o malvado rei Nabucodonosor, que manda lançar ao forno um cesto de turfa ²⁵ , gritando: “Não sairão daí até estarem bem cozidos!” Os três senhores não dão a menor importância e seguem cantando: “Seja sempre fiel e honrado, até na tua fria tumba.” Este desaforo deixa o rei enfurecido, e para irritá-lo ainda mais, um deles coloca a cabeça para fora e grita com voz ardorosa: “Tenha a bondade, senhor, de fechar a portinha do forno”. Ou o descobrimento da América: Primeiramente, apresenta-se aos senhores Cristóvão Colombo, que parece estar bastante ocupado com o descobrimento da América. O céu, como os senhores terão a gentileza de observar, está completamente encoberto, mas o mar está tranquilo, como que aguardando os acontecimentos. Alguns marinheiros de Colombo correm pelo convés gritando: Terra à vista! – outros se abraçam; outros se jogam aos pés do navegador. Ele se mantém, porém, tranquilo, apoiado no mastro, estica o braço e anuncia com a voz grave: “Eis a América!” Bem distante, por detrás da névoa, eles percebem uma franja de terra verde, pontiaguda, aonde as ondas vão quebrar, e em cima dela um homem vestido apenas com uma folha de parreira. Ele é um vigia dos habitantes da América. E assim que ele avista a grande embarcação, grita em sua língua materna. “Quem vem lá? Ao que responde Colombo: “Meu bom amigo, eu me chamo Colombo.” “E o que busca por aqui?”, pergunta o indígena do Novo Mundo. “Apenas descobrir estas terras.” – “Nada mais”, diz o nativo, e faz uma saudação tocando com os dois dedos na cabeça, acrescentando: “Aproxime-se, já fazia tempo que desejávamos ser descobertos.” Desta forma foi descoberta a América, que é uma república que, por diversas razões, não posso recomendar a vocês. Tão logo esta república ganhe um rei, ela se tornará uma monarquia, o que é bastante compreensível. Com este belo discurso, encerramos por hoje. Espero que da próxima vez possamos começar com outro tão bonito assim. 17 Personagem cômica fundamental para o teatro de marionetes alemão. De nariz longo, largo sorriso e sempre com um capuz na cabeça, possui um humor vivaz, esperteza e língua afiada. 18 Também conhecido como astrágalo ou tragacanto, arbusto de cujos ramos e caules sai uma goma branca. ( Astragalus membranaceus, sua raiz é usada há mais de dois mil anos pelos chineses e é considerada uma das plantas mais importantes e populares para revigorar a energia vital). 19 Adolf Glassbrenner (1810-1876), comerciante e escritor satirista. 20 Conflito de fundo religioso entre católicos e protestantes (1618-1648); iniciado na Alemanha após a Reforma , refletia interesses políticos e econômicos; espalhou-se pelo continente europeu, tornando-se um dos mais trágicos da história .
21 O ensaio se chama “ Über das Marionettentheater ” (Sobre o teatro de marionetes) e se encontra nas Obras Completas de Kleist, inserido em “ Kleine Schriften ” (Pequenos escritos). 22 Diminutivo de Johannes, algo como “Joãozinho”. 23 Algo como salsichinha, linguicinha, diminutivo de Wurst. 24 Variante em dialeto de Paul, der Puppenspieler (Paulo, o bonequeiro); na obra o autor relata lembranças de seu irmão mais velho Hans. 25 Matéria esponjosa feita de restos vegetais formados em lugares pantanosos (do alemão, Torf ).
A Berlim demoníaca Hoje começarei com uma história que me aconteceu quando tinha quatorze anos. Naquela época eu era aluno em um internato. Como é costume nestas instituições, todas as semanas alunos e professores se reuniam várias vezes para fazer música, ouvir alguma palestra ou ler trechos de algum poeta. Uma destas noites o professor de música veio coordenar a Kapelle , como chamávamos estas reuniões vespertinas. Era um homem baixinho e engraçado, de expressão inesquecível e olhar severo, com a careca mais reluzente que eu jamais vi, rodeada por uma coroa semiaberta de cabelos escuros e bastante encaracolados. Seu nome é conhecido entre os amantes da música alemã: chamava-se August Halm. Pois este senhor August Halm compareceu a uma Kapelle e leu para nós algumas histórias de E. T. A. Hoffmann, exatamente o escritor de quem quero lhes falar hoje. Não lembro mais o que ele leu, e isso também não vem ao caso, mas guardo com exatidão na memória uma frase da introdução, com a qual ele iniciou sua leitura. Ele descreveu as criações de Hoffmann e sua predileção pelo fantástico, o extravagante, o fantasmagórico, o inexplicável. Acredito que tudo o que ele dizia era bastante apropriado para estimular nosso interesse juvenil por aquelas histórias que viriam a seguir. Mas então, ele concluiu com esta frase que até hoje não consigo esquecer: “Para que alguém escreve histórias como essas? Isto eu explicarei a vocês numa próxima vez.” Eu sigo esperando por essa “próxima vez” e, como aquele bom homem veio a falecer, a explicação só poderia chegar até mim – se é que isso seria possível – por caminhos tão misteriosos, que eu sinceramente prefiro antecipar-me a ela e tentar cumprir perante vocês a promessa que me foi feita há tantos anos Se eu quisesse trapacear um pouquinho, poderia tornar as coisas mais fáceis para mim. Bastaria trocar o “para quê” por um “por quê”, e a resposta seria bem simples. Por que escrevem os escritores? Por mil razões. Porque se divertem ao criar algo; ou porque estas criações e imagens tomam conta
deles de tal modo, que eles só encontram paz depois de colocá-las no papel; ou porque eles andam às voltas com questões e dúvidas para as quais só encontram respostas no destino dos seus personagens, ou simplesmente porque aprenderam a escrever; ou, o que acontece muito frequentemente, porque não sabem fazer absolutamente nada. Não é difícil verificar porque Hoffmann escrevia. Ele era daqueles escritores que se viam possuídos por seus personagens. Quando escrevia sobre sósias ou figuras fantasmagóricas, ele realmente as via ao seu redor. E não apenas quando escrevia, mas também em meio a mais inocente conversa numa refeição vespertina, diante de uma taça de vinho ou ponche, mais de uma vez ele interrompia este ou aquele companheiro de mesa com estas palavras: Desculpe-me interrompê-lo, meu caro amigo, mas o senhor não reparou ali no canto à direita o maldito anãozinho tentando abrir espaço entre as tábuas do assoalho, veja o senhor que cabriolices o danado está fazendo! Veja, veja, agora sumiu! Oh, não faça cerimônia, prezado anãozinho, junte-se a nós e venha compartilhar da nossa conversa, tenha bondade, o senhor não imagina a alegria que nos daria a sua distinta companhia – ah, aí está o senhor novamente – por favor, chegue mais perto – como? – o senhor gostaria de tomar algo? – o que o senhor está dizendo? – como? – o senhor precisa ir? – bom, ao seu dispor. E assim por diante. E mal havia acabado de pronunciar este amontoado de seu caos interior, dirigia-se aos companheiros de mesa e lhes rogava que continuassem conversando tranquilamente. Esta é a imagem de Hoffmann que temos através da descrição de seus amigos. E nós mesmos nos sentimos contagiados por esta maneira de ser quando lemos histórias como “A casa deserta”, “O morgado”, “O sósia” ou “O vaso de ouro”. Se a leitura ainda é feita em meio a uma série de circunstâncias favoráveis, o efeito destas histórias de fantasmas pode chegar mesmo a ser assombroso. Eu mesmo posso servir de exemplo. A circunstância favorável no meu caso era o fato de meus pais terem me proibido este tipo de leitura. Quando era pequeno, eu só podia ler Hoffmann escondido, à noite, quando meus pais haviam saído. E me lembro de uma destas noites de leitura, quando estava sentado sozinho à enorme mesa, sob a luz do lustre da sala de jantar. Isto foi na Carmerstrasse, não se ouvia um ruído em toda a casa, e enquanto eu lia “As minas de Falun”, seres pavorosos como peixes de boca torta iam surgindo dos cantos da mesa, na escuridão à minha volta, de forma que meus olhos se fixavam às páginas do livro como a uma tábua de salvação, exatamente as páginas de onde vinham todos aqueles seres. Ou uma outra vez, de manhã cedo – ainda lembro, estava em pé diante da estante de livros lendo “O morgado”, prestes a lançar o volume de volta na prateleira, arrepiado de medo, não só pelos horrores do livro, mas também pelo risco de ser apanhado de surpresa – e não cheguei a entender uma só palavra de toda história. “Nem o próprio diabo” – disse Heinrich Heine sobre as obras de Hoffmann – “seria capaz de escrever coisas tão demoníacas.” De fato: junto ao fantasmagórico, ao sobrenatural e ao sinistro destes escritos caminha algo de satânico. E quando tentamos seguir seus rastros, passamos da resposta ao por quê de suas histórias à resposta ao para quê . Como se sabe, entre as
particularidades que o diabo possui, estão a sagacidade e o saber. Quem conhece um pouco as obras de Hoffmann logo irá me entender, se eu disser que o narrador destas histórias é sempre um sujeito muito perspicaz e dotado de um finíssimo faro, capaz de rastrear os espíritos ocultos sob os disfarces mais sofisticados. Este narrador insiste com certa obstinação em afirmar que todos esses honoráveis arquivistas, conselheiros médicos, estudantes, verdureiras, músicos e filhas de boa família não são aquilo que aparentam ser, assim como o próprio Hoffmann tampouco era apenas o pedante e detalhista funcionário da justiça, papel que cumpria para ganhar seu pão. E isto, em outras palavras, significa: todas estas figuras fantasmagóricas e sobrenaturais que povoam as histórias de Hoffmann, o narrador não as inventou na quietude de seu escritório de trabalho. Quantos grandes escritores não passaram pela experiência de encontrar o extraordinário não flutuando livremente em algum lugar no espaço, mas sim encarnado em pessoas, coisas, casas, objetos e ruas concretas. Como vocês talvez tenham ouvido falar, existem pessoas que através de um rosto, da maneira de andar, ou das mãos, ou da forma da cabeça, são capazes de identificar o caráter, a profissão ou até mesmo o destino de outras pessoas – são os chamados fisionomistas. Hoffmann era, assim, menos um vidente e mais um intérprete dos rostos. Esta é, aliás, a tradução correta de fisionomista. E um dos principais objetos de sua observação era Berlim, a cidade e as pessoas que nela viviam. Na introdução de “A casa deserta” – que foi realmente uma casa no bulevar Unter den Linden – ele fala, com certa dose de humor amargo, do sexto sentido que lhe foi concedido, do dom de contemplar em qualquer fenômeno – seja uma pessoa, uma ação, um acontecimento – aquele aspecto insuspeitado que na vida cotidiana nos passa inteiramente despercebido. Sua paixão era vagar pelas ruas, observando as figuras com quem se deparava, às vezes até mesmo fazer mentalmente sua previsão astrológica. Dias e dias ele segue pessoas que lhe são desconhecidas, mas que em seu jeito de andar, em suas roupas, tom de voz ou olhar, possuem algo de espantoso. Sente-se em constante contato com o sobrenatural e não é tanto ele que persegue o mundo dos espíritos, mas sim o contrário, o mundo dos espíritos é que o persegue, seguindo seus passos em meio à sóbria Berlim na luz de meio-dia, indo ao seu encalço no burburinho da Königsstraße até aos poucos restos medievais nas imediações da antiga prefeitura em ruínas, fazendo-o pressentir um aroma de rosas e cravos na Grünstraße e por fim enfeitiçando-o no elegante espaço de reunião do público requintado, o bulevar Unter den Linden. Hoffmann poderia ser considerado o pai do romance berlinense, cujo rastro se perdeu mais tarde em generalidades, quando se começou a chamar Berlim “a capital”, o Tiergarten “o parque” e o Spree “o rio”, até ganhar novas forças em nossos dias – basta se pensar no “Alexander Platz” de Alfred Döblin. Uma das personagens de Hoffmann diz à outra (atrás da qual se oculta o próprio autor): Tu tinhas lá os teus motivos para transferir a cena para Berlim, dando nome às ruas e praças. Em termos gerais, a meu ver, não há nenhum mal em determinar com exatidão o cenário, pois graças a isto o conjunto adquire um tom mais intenso de veracidade, o que vem sempre auxiliar uma imaginação indolente, além de ganhar em vivacidade e frescor, sobretudo aos olhos daqueles que estão familiarizados com o local da ação.
Poderia agora enumerar a vocês muitas das histórias em que Hoffmann se revela como fisionomista de Berlim, poderia especificar as muitas casas que aparecem em sua obra, começando por sua própria residência, na esquina de Charlottenstraße com Taubenstraße, até chegar à Águia Dourada na Donhöffplatz, Luther e Wegener na Charlottenstraße e assim por diante. Mas creio que seja mais proveitoso analisar a maneira como Hoffmann estudava Berlim e os rastros que deixou em suas narrativas. O autor nunca foi um amante da solidão nem da natureza plena. Mais importante do que tudo era para ele o ser humano, o contato com ele, a observação ou a simples contemplação do ser humano. Quando saía para passear no verão – o que ocorria todos os dias ao entardecer, se o tempo permitia – era apenas para chegar a algum lugar público onde pudesse encontrar pessoas. E mesmo ao longo destes trajetos seria difícil encontrar alguma taberna ou confeitaria que ele não houvesse visitado, para verificar se ali havia gente, e de que tipo eram. Mas Hoffmann não acorria a estes locais em busca de novos rostos que lhe forneceriam a inspiração particular para novas histórias: não, a taberna era muito mais uma espécie de laboratório de criação literária, uma sala de experimentação, na qual ele todas as noites colocava a prova, na sua roda de amigos, o emaranhado e os efeitos de suas histórias. Hoffmann não foi de modo algum um autor de romances, mas sim um contador de histórias; muitas, senão a maioria delas, são colocadas na boca de um narrador. Na verdade é claro que o narrador era sempre o próprio Hoffmann, sentado com seus amigos em volta da mesa, naquelas reuniões em que cada um, a sua vez, trazia a melhor história que tinha. Um dos amigos de Hoffmann nos conta claramente que o escritor jamais estava ocioso na taberna, como tantos outros que vemos ali sentados, sem fazer nada além de bebericar e bocejar. Ao contrário, observava tudo à sua volta com olhos de falcão; e tudo aquilo que lhe chamava atenção por seu aspecto ridículo ou extravagante, ou mesmo alguma peculiaridade comovente de algum dos frequentadores, tudo tornava-se material de estudo para suas histórias – ou modelo para os desenhos que fazia com enorme facilidade e traço firme. Mas ai!, se o grupo de frequentadores da taberna não lhe agradava, ai!, se tratavam-se de espíritos limitados ou sujeitos retrógrados – Hoffmann deveria então ser uma companhia insuportável, fazendo terrível uso de sua arte, produzindo caricaturas e causando constrangimento e pavor em todos. O suprassumo de sua irritação eram, porém, os chamados chás literários, bastante em moda na Berlim daquela época. Nestas reuniões as pessoas declaravam-se amantes do belo e alardeavam seu interesse pela arte e literatura, sem, contudo, ter a mínima compreensão e conhecimento do que falavam. Hoffmann descreveu com impiedoso sarcasmo uma destas sociedades em suas “Peças fantásticas”. Agora que estamos chegando ao final, ninguém poderá nos acusar de ter esquecido a pergunta sobre o “para quê”. Tanto não a esquecemos, que bem chegamos a respondê-la sem perceber. Para que Hoffmann escreveu suas histórias? Certamente ele não o fez tendo estabelecido para si um objetivo consciente. Isso não nos impede de ler as histórias como se ele tivesse realmente pensado num objetivo. E este não pode ser outro senão o objetivo de um autor fisionomista. Exatamente: mostrar que esta Berlim simplória, sóbria, liberal e razoável não se encontra apenas em seus recantos medievais, ruas afastadas, casas abandonadas, mas também nos seus habitantes trabalhadores, de todas as classes e bairros repletos de coisas
que podem estimular um narrador e cujo rastro só pode ser seguido por aquele que é capaz de ler o seu sentido. Como se Hoffmann houvesse realmente desejado oferecer aos seus leitores este ensinamento, uma de suas últimas histórias, ditadas em seu leito de morte, mostra com todas as letras este processo de aprendizado da contemplação fisionômica. A história se chama “A janela do primo”. O primo é o próprio Hoffmann, a janela é aquela janela de canto de sua casa, que dava para o Gendarmemarkt. A história consiste basicamente em um diálogo. Hoffmann está sentado em uma poltrona, prostrado pela doença; ele olha pela janela, observa a feira da semana que acontece na praça embaixo e vai mostrando ao primo, que veio visitá-lo, quanta coisa se pode adivinhar sobre a vida das feirantes e suas freguesas a partir de suas roupas, do ritmo de seus movimentos, seus gestos, e mais, o quanto também se pode acrescentar e enriquecer suas vidas cismando e devaneando sobre tudo aquilo. E depois de prestarmos esta pequena homenagem ao gênio de Hoffmann, assinalamos aqui um fato do qual a maioria dos berlinenses sequer tem notícia: de que foi ele o único autor que tornou Berlim famosa para além de nossas fronteiras – e que os franceses o liam e o adoravam –, numa época em que na Alemanha, mesmo em Berlim, ninguém lhe trocaria por um cachorro. Hoje em dia isso mudou, há uma grande quantidade de edições acessíveis ao grande público – e também, ao contrário do meu tempo, há cada vez mais pais que não proíbem seus filhos de ler Hoffmann.
Um menino nas ruas de Berlim Eu acredito que, se vocês pensarem um pouco, irão se lembrar de alguma vez já terem visto aqueles armários com as portas decoradas com paisagens, retratos, flores, frutas ou coisas semelhantes gravadas na madeira. Este trabalho é chamado de marchetaria. Pois bem, hoje eu quero apresentar a vocês estas imagens e cenas, mas não gravadas em madeira e, sim, servindo-me das palavras. Vou lhes contar sobre a infância de um garoto de Berlim, que foi criança há mais ou menos 120 anos atrás, sobre como ele via Berlim, que tipo de brincadeiras e travessuras havia naquela época. Mas no meio disso tudo irei acrescentando e contando coisas que nada têm a ver com o nosso tema, mas que se destacam na história da infância de Ludwig Rellstab de forma tão vivaz e – tomara! – colorida como a marchetaria gravada sobre a madeira. Vocês não devem se envergonhar de nunca terem escutado o nome de Ludwig Rellstab. E pelo amor de Deus, não perguntem aos pais de vocês, que também nunca ouviram falar dele e não saberão responder. Acontece que este Rellstab nunca foi famoso. Ou melhor, para ser mais exato, na sua época ele era uma das pessoas mais conhecidas de Berlim, mas resumindo: muito pouco restou sobre ele, e hoje em dia nem sequer se conhece o que
ele fez de melhor: sua autobiografia. Lerei alguns trechos dela para vocês mais adiante. Não há nada de extraordinário no fato de que esta biografia seja tão bela e que não haja muito o que contar sobre o homem que a escreveu. É que nem sempre são as pessoas mais célebres e talentosas, aquelas que guardam o mais profundo amor e a mais profunda lembrança de sua infância. Aliás, isto é muito mais raro em se tratando de uma pessoa da cidade grande do que alguém que cresceu no campo. Não é com frequência que encontramos uma criança que tenha crescido com tanta harmonia e felicidade em uma cidade grande e, mais tarde e já adulto, possa evocar com alegria os dias de sua infância. Mas para Rellstab isso era uma alegria. É possível perceber em cada página de seu livro, mesmo que ele não tenha dito de forma evidente, o quanto sua infância foi feliz. Vamos agora mergulhar na história desta infância. O que vocês me dizem deste trecho do livro que diz que seu pai “se hospedava todo verão com a família inteira em uma casa de campo.” E onde vocês acham que ficava essa casa? Pois ficava simplesmente no Tiergarten ²⁶ . Vou ler agora uma descrição que ele mesmo faz deste parque, para que vocês possam ter uma ideia de como ele era nesta época, quando ali alguém podia instalar-se numa casa de veraneio: Até onde minha lembrança alcança, eu me vejo em pleno verão em meio ao verde do Tiergarten, que naquela época tinha um aspecto muito mais rural do que hoje em dia. Ele continua sendo o mais belo cenário de minhas lembranças mais remotas e também de muitas outras posteriores. Era, além disso, um local muito mais agradável para se brincar do que hoje. Havia grandes áreas do bosque onde a vegetação silvestre crescia livremente. Afora a rua que levava a Charlottenburg, não havia nenhum caminho pavimentado, apenas caminhos de terra cruzavam a região. Por isso, mesmo nas grandes avenidas, viam-se relativamente poucos carros, e esses rodavam pesados e com lentidão. Quando eu contemplo hoje o Tiergarten, parece-me quase inacreditável que ali um dia se encontravam áreas totalmente silvestres, onde os pés de framboesa cresciam nos prados úmidos entre os arbustos podados e seus frutos iam amadurecendo em quantidade generosa para nós, moradores. Os morangos também ofereciam uma rica colheita. Tudo aquilo nos parecia tão distante dos homens e tão solitário, como se estivéssemos na floresta virgem. E assim tomávamos posse formalmente daquelas terras. Cada companheiro que participava da brincadeira escolhia para si um canto de sua propriedade. Nós nos instalávamos numa parte do gramado, arrumávamos arbustos firmes para montar nossa casa de campo, fixávamos algumas tabuinhas entre os galhos para servir de assento, delimitávamos uma pequena área com varas de madeira fincadas no chão como se fosse uma grade e pronto, ali reinávamos como em nossa propriedade. Semanas se passavam sem que nós visitássemos aquela pequena colônia no meio da selva, e mesmo assim, ao regressar, encontrávamos nosso acampamento intacto – tão solitário era então este bosque, agora cheio de ruídos e de gente, ou melhor dizendo, este jardim em que ele se transformou.
É assim que um antigo morador de Berlim descrevia o Tiergarten em 1815. Eu acho essa descrição muito bonita. Mas agora tenho vontade de acrescentar uma coisa. Gostaria de mostrar a vocês como um amigo meu, uma pessoa que nasceu 80 anos depois de Rellstab, como ele descreve o seu Tiergarten. E mesmo que este Tiergarten seja completamente diferente, esta descrição mostra como o verdadeiro berlinense continua amando o seu parque. Este novo e autêntico berlinense é o meu amigo Franz Hessel e escreve assim em seu “Passeio por Berlim”: Mesmo assim, no crepúsculo que evoca tempos passados, ele mantém sua vegetação espessa e seus labirintos estonteantes como há 30 ou 40 anos atrás, antes que o último imperador transformasse o parque natural num local notável e bem sinalizado. Embora tenha sido por mérito de suas ordens que a mata foi desbastada, muitos caminhos alargados e os gramados refeitos, com isso também o Tiergarten perdeu muitas de suas belezas, uma graciosa desordem, o crepitar dos galhos, o sussurrar de tantas folhas que mal se arrumavam por entre as trilhas estreitas. Mas ele deixou ainda a pequena vegetação silvestre suficiente que se conservou até os dias de nossa infância. A lembrança deste tempo me vem das mínimas pontes em curva erguidas sobre os riachos, vigiadas por atentos leões de bronze com as correntes penduradas em seus focinhos guardando a entrada dos campos. E Hessel descreve então o Tiergarten inteiro, até a sua fronteira com a ponte de Cornelius. Se nós tivéssemos tempo, quanta coisa ainda se poderia contar aqui, sobre esta ponte, por exemplo, que ainda hoje conserva seu aspecto particular, quase rural, mas que sendo uma das menos utilizadas e mais afastadas se tornou a única via de acesso por onde todo o tráfego de automóveis escoava do centro para o lado ocidental da cidade. Se pensarmos com calma, é um destino tão curioso para uma ponte quanto o destino de alguns homens. Agora votando ao menino Rellstab. Em toda a história de sua infância há apenas uma coisa da qual ele se queixa e que parece não ter conseguido superar: as aulas de música que seu pai lhe obrigava a frequentar. Essas aulas lhe pareciam a pior parte do dia quando voltava da escola, e ele conta como ficava triste por ter que se afastar dos jogos e brincadeiras com seus companheiros durante o caminho para casa. As brincadeiras eram realmente impressionantes e nós vemos que já na hora da aula eles se preparavam para elas com dedicação especial. “Pois”, Rellstab diz: já há um bom tempo tínhamos nos acostumado a preparar os barquinhos de papel ou cortiça, ainda na escola durante a última aula, e era uma festa, especialmente depois de uma chuva forte, soltá-los nas canaletas até eles alcançarem a esquina das ruas Mohren com Markgrafen, onde o meio-fio desembocava num canal subterrâneo e eles desapareciam para sempre. Nada era mais fascinante que acompanhar a viagem destes barquinhos; ofegantes, nós os víamos desaparecer debaixo de um túnel da canaleta e pulávamos de alegria quando reapareciam do outro lado. Que dificuldade era para mim, abandonar aquela brincadeira e seguir o triste caminho de casa, rumo à aula de piano.
Vocês podem imaginar que para o menino era ainda mais difícil sair da brincadeira, quando eles jogavam Zillrad. E o que seria esse jogo mágico, que as palavras mal servem para descrever? Graças a Deus o próprio Rellstab explica, senão ficaríamos aqui por um bom tempo a indagar sem saber do que se trata. Pois era assim: uma quantidade de garotos, quanto maior o grupo, melhor, subia numa carroça vazia, dessas que se costumava deixar estacionada em frente às casas. Um dos garotos, escolhido por sorteio, tinha a tarefa de correr em volta da carroça e tentar acertar com a mão os pés de algum companheiro. Quem levava o golpe era obrigado então a descer e fazer o mesmo. O pai desse Rellstab devia ser um sujeito muito engraçado. Ele era redator do Vossische Zeitung ²⁷ . Certa noite ele teve a incumbência de assistir à apresentação de um mágico, para então escrever uma reportagem para o jornal. Mas ele não estava com a menor vontade, ou não tinha tempo, enfim, e de qualquer forma enviou seu filho, que naquela época tinha doze anos, pediu que ele escrevesse suas impressões sobre o espetáculo, corrigiu um pouco o texto e mandou-o para publicação. Este foi o primeiro trabalho de Rellstab a ser publicado. Mas a noite teve uma consequência singular. É que após o encerramento da apresentação o mágico explicou alguns de seus truques àqueles que haviam ficado no teatro. O pequeno Rellstab escutou estas explicações e durante semanas não conseguiu pensar em outra coisa que não fosse mágica. Ele descobriu uma loja em Berlim onde se vendia utensílios de mágica, aparelhos com um mecanismo secreto, caixas com fundo falso e cartas de baralho com marcas ocultas. Além disso, ele procurou arranjar todo tipo de livro, para estudar o ilusionismo como uma verdadeira ciência. Ele mesmo conta que não foi muito longe nessa empreitada. Mas quem sabe ele não teria se tornado um mágico famoso, se naquela época já houvesse o famoso livro, sobre o qual eu vou lhes contar agora, acrescentando assim um segundo entalhe à nossa história. Pois eu acredito que, mesmo com tanta técnica, automóveis, dínamos, rádios e etc., muitas crianças ainda se interessem pela mágica. Certamente a época de ouro do ilusionismo já passou, o tempo em que nos grandes centros turísticos apresentavam-se a cada verão mágicos mundialmente famosos como Bellachini, Houdini e outros, diante de salões lotados. Mas exatamente por isso é que foi possível agora publicar-se um livro no qual toda a arte do ilusionismo, com suas centenas de variados truques, é apresentada de forma detalhada e todas as coisas, das mais incompreensíveis às mais espantosas, são claramente explicadas. Ele se chama “O maravilhoso livro da magia” e foi escrito por Ottokar Fischer, que se autodenomina “antigo artista em exercício e diretor do teatro mágico Kratky-Baschki em Viena”. Basta dar uma olhada no índice para ver a imensa variedade de truques que existem. E vocês não precisam ter receio de que, depois de conhecer todos aqueles segredos, as mágicas vão perder a graça. Ao contrário: é só quando se aprende a observar com profunda atenção, não se deixando levar pelo palavreado do ilusionista, e se mantém o olhar sobre o que é essencial – só então é possível seguir os passos de sua incrível habilidade e perceber o quanto aquela rapidez de gestos é fruto de tanto ensaio e empenho, às vezes parecendo mesmo bruxaria. Creio que voltaremos a falar aqui sobre a magia exaustivamente, por isso me limito hoje a citar alguns títulos do nosso livro: “A inesgotável
concha de sangria”, “O alvo do demônio”, “A rainha dos ares”, “O sino de Schiller”, “O cordão indestrutível”, “O relógio de Swami, o vidente”, “Damas queimadas, perfuradas e serradas”, “O famoso número de Ben Ali Bey”, “O desaparecimento de doze pessoas do público” etc. Agora já está tarde e Rellstab volta a pedir a palavra, pois ele ainda quer contar algumas de suas travessuras. Algumas das muitas outras peças que eu e meus camaradas do Tiergarten pregávamos: por exemplo, nossas ousadas invasões nos pomares e investidas nos armazéns de frutas – ou como zombávamos de uma vendedora de frutas com o conhecido truque de pendurar um osso com um pouco de carne na campainha do jardim, escondido por detrás da cerca, de forma que cada cachorro que passasse era levado a tocar a campainha – ou como de noite amarrávamos um fio no meio do caminho, junto a um botequim de onde os fregueses frequentemente saíam cambaleando, até que um grupo deles dava de cara no chão, na grama molhada, e ficava ali se perguntando ingenuamente como e porque haviam tropeçado, enquanto nós já havíamos saído correndo, depois de rapidamente desamarrar o fio – enfim, não quero me estender muito aqui, apenas mencionar brevemente, para mostrar que, nesse aspecto, eu não era em nada melhor do que os outros, mas sim bem pior. Vocês podem ver que aquele que conta todas essas histórias aqui andou circulando desde muito pequeno por Berlim como um verdadeiro moleque. Com ele aconteceu o mesmo que costuma acontecer conosco, quando ficamos mais velhos: as coisas que mais dão certo são aquelas que amávamos e planejávamos desde mais cedo. O que ele realizou de melhor não são as críticas musicais, das quais mais tarde ele pôde viver, e sim as coisas que estão mais intimamente ligadas a Berlim. E junto a estas lembranças da juventude há um livro, chamado simplesmente “Berlim”. É uma descrição da cidade e seus arredores, acompanhada de belas gravuras. Na capa há uma gravura que representa o monumento a Frederico Guilherme III no Tiergarten. De todos os recantos do Tiergarten, este, onde se esconde o monumento, é o meu preferido. Quando garoto ainda bem pequeno eu brincava ali, e até hoje não esqueci o quanto era emocionante me arriscar por caminhos tortuosos até o monumento à rainha Luise, que fica ainda mais escondido entre os arbustos e separado do rei por um pequeno riacho. Essa área entre os dois monumentos foi o primeiro labirinto que conheci na vida, muito antes de começar a desenhar labirintos no meu papel mata-borrão ou no banco da escola durante as aulas. Quanto a isso, creio eu, nada mudou: e as folhas de papel mata-borrão de vocês não devem parecer muito diferentes das minhas naquela época. Em todo caso, para aqueles que gostam de labirintos, temos aqui para finalizar um entalhe especial. Vou revelar a vocês onde se encontram hoje os mais belos labirintos que já vi em toda minha vida. Eles estão na livraria de Paul Grappe, que preparou uma sala inteira de sua bela e espaçosa casa para acomodar os curiosos labirintos de cidades, florestas, montanhas, vales, castelos e pontes que o pintor Hirth, de Munique, rabiscou para si próprio com o traço incrivelmente limpo de sua pena, e por onde vocês poderão passear longamente com os olhos. Mas limpem direitinho as suas botas, pois a casa de Paul Grappe é um local muito distinto. E se então ali, em meio a
vistas panorâmicas de cidades, mapas e planos urbanos, vocês lançarem o olhar em direção à janela, vocês terão diante de si exatamente o Tiergarten. E assim, passeando por diversos labirintos, chegamos sem nos dar conta ao lugar de onde saímos vinte e cinco minutos atrás. 26 Grande parque com extensa área verde no centro de Berlim, hoje completamente integrado ao espaço urbano da cidade. 27 Diário berlinense de tendência liberal, publicado pela primeira vez em 1617 e banido de circulação em 1934, vítima do nazismo.
Passeio pelos brinquedos de Berlim I Quem de vocês conhece o livro de contos de Godin? Talvez nenhuma dentre todas as crianças que estão aqui escutando. Mesmo assim, é um livro que, nos últimos trinta anos, se achava com frequência num quarto de criança. Inclusive, no quarto deste que agora fala a vocês. A editora preparava uma nova edição a cada ano, sempre diferente da última, pois as ilustrações iam mudando conforme a moda da época. Em todo caso, algumas ilustrações em preto e branco foram mantidas durante todo o tempo em que o livro foi publicado. Vamos começar com um conto que está no livro: “A irmã Tinchen”. Logo na segunda página deste conto há uma destas ilustrações que permaneceram em todas as edições. Ali estão representadas cinco crianças em estado de penúria, aconchegadas no chão, junto a uma cabana já meio em pedaços. Elas parecem muito, mas muito tristes. Pela manhã havia morrido sua mãe, e há muito tempo já eram órfãs de pai. São quatro meninos e uma menina. E a menina se chama Tinchen. Bom, mas isto tudo é só o primeiro plano do quadro. Em segundo plano, há uma fada amorosa e delicada, que leva nas mãos um talo de açucena e se chama Concordia. Ela diz às crianças que lhes protegerá sempre, se elas forem amigas umas das outras. Mas logo que o inimigo da fada, o malvado feiticeiro, fica sabendo disso, ele se apresenta ali com um monte de presentes e os distribui entre as crianças para que elas comecem a brigar. As crianças, que não são bobas nem nada, se põem a disputar os presentes na mesma hora. E somente a menina fica de fora. Por isso os demônios não conseguem colocá-la no saco, como fizeram imediatamente com os meninos. Até aqui, vocês vão dizer: que história mais boba. E é o que eu acho também. Pois bem, alguma coisa ainda há de acontecer. E assim acontece. Agora, como é lógico, a menina põe-se a libertar seus irmãos, tirando-os da moradia infame e enfeitiçada, para onde os demônios os tinham levado. E aqui, a boa mulher que concebeu esta história – e que, no mais, não se destacou como escritora – teve uma bela inspiração. Vocês bem sabem como costumam ser as provações que os heróis libertadores precisam enfrentar nos contos infantis. Por exemplo, eles têm
de passar por uma porta que é guardada por terríveis homens armados com clavas, como aqueles que enfeitavam antigamente a porta do “Vossische Zeitung”. Logo chegam a uma sala caprichosamente encerada onde dragões lustrosos aparecem, e então têm de passar pelo meio deles. Finalmente, no último estágio, encontram um sapo ou qualquer espantalho semelhante, e têm que beijá-lo para que se torne uma princesa. No caso da irmãzinha Tinchen, que afinal de contas não é mais do que uma pequena menina, de quem ninguém poderia cobrar atos excessivamente heroicos, tudo acontece de forma bem mais civilizada. Ou seja, ela não precisa fazer absolutamente nada; simplesmente, se deseja salvar seus irmãos, não deve demorar sequer um instante a caminho do país do feiticeiro malvado, até chegar ao seu esconderijo. E o feiticeiro, certamente, se empenha em dificultar as coisas, buscando detê-la por meio de uma série de truques. Se a menina dissesse, ainda que uma única vez, “Quero ficar aqui”, essa seria a fórmula para deixá-la em poder do feiticeiro. Agora vou ler um trecho em voz alta, para que vocês possam ver o tipo de artimanhas que ele utiliza: Tinchen cruzou confiante a fronteira do País da Magia, pensando apenas em seus irmãos. A princípio não viu nada de interessante. Mas, de repente, o caminho levou-a a atravessar uma sala ampla, repleta de brinquedos. Ali estavam pequenas barracas de mercado providas de tudo que pode ser imaginado, carrosséis com cavalinhos e carros, balanços e cavalos de balanço, mas principalmente, as casinhas de bonecas mais esplêndidas. Em volta de uma mesa posta havia bonecas grandes sentadas em poltronas e a maior e mais linda entre elas levantou-se, dirigindo-se a Tinchen, fez-lhe uma graciosa reverência e lhe disse com uma voz maravilhosamente delicada: – Tinchen, querida, nós esperamos tanto tempo por você, venha almoçar conosco. Enquanto ela ainda falava, as outras bonecas se levantaram, até mesmo as bonequinhas de fralda em suas caminhas ergueram a cabecinha, e Tinchen, fascinada, sentou-se na pequena poltrona reservada para ela na mesa das bonecas. A mesa estava bem servida e Tinchen comeu com apetite, e quando após a refeição, todas as bonequinhas se puseram a dançar e rodar em volta dos outros brinquedos, Tinchen não cabia em si de tanta alegria e começou a bater palmas e exclamar: – Oh, como é lindo aqui, como eu gostaria de... Mas o que é que ela queria dizer? É claro que ela queria dizer: “Como eu gostaria de ficar aqui.” Mas ela não pode dizer isto, se deseja salvar seus irmãos. E por isso surge neste momento um passarinho azul, pousa em seu ombro e refresca sua memória com estes versinhos: Tinchen, minha querida Tinchen, Lembra-te dos teus irmãos!
E assim ela segue atravessando pelos mais diversos reinos, e o passarinho sempre aparecendo na hora certa. Poderíamos acompanhar Tinchen por toda parte, se não estivéssemos num programa radiofônico sobre Berlim e não precisássemos regressar à cidade por misteriosos caminhos subterrâneos, enquanto ela continua no País da Magia. Mas acontece que a menina também chega até ali e, ao parar diante de uma casinha feita de bolo, saem duas figurinhas marrons, se aproximam dela com um cumprimento gracioso e dizem: – Bem-vinda ao nosso país. – Mas quem são vocês e como se chama o seu país? – pergunta ela, cheia de curiosidade. – Ah, então você não conhece o País das Delícias? – dizem os dois ao mesmo tempo. – Nós somos homenzinhos e mulherzinhas de biscoito. Eu quero lhe oferecer meu lindo e grande coração – disse o homenzinho educadamente, enquanto desprendia do peito um coração rodeado de amêndoas. – E eu quero lhe dar minha linda flor branca – disse a mulherzinha, estendendo a tulipa que leva na mão. Surge então uma multidão de figuras de biscoito e chocolate, todos tentando convencê-la de ficar. “ Oh, como eu gostaria .” Mas surge então, mais uma vez, o pássaro e se encarrega de lembrar Tinchen de sua missão. Vocês talvez vão se lembrar deste conto quando, nas séries mais adiantadas na escola, ouvirem falar da mais famosa peça teatral de Goethe, o Fausto. Como se sabe, Fausto selou um pacto com o diabo. O diabo deve fazer tudo que ele pedir, mas recebe em troca a sua alma. A questão é apenas quando ele virá buscá-la. E o diabo só poderá fazê-lo quando Fausto se sentir completamente feliz e satisfeito, desejando que tudo permaneça como está. Para sua desgraça, não há nenhum passarinho azul e um dia, quando já está muito, mas muito velho, ele exclama: Quisera eu neste instante dizer: Permanece assim, és tão belo.
E, então, cai morto. – Este homem jamais chegará a Berlim, vocês devem pensar. Mas aqui acontece como na corrida entre a lebre e o porco-espinho. Como vocês sabem, este se senta num ponto do campo arado onde a corrida deve terminar e, quando a lebre chega ofegante, exclama: “Já estou aqui!” E é verdade que eu já estou em Berlim há um bom tempo, que é para onde vocês querem vir. Pois da mesma forma como descrevi a galeria mágica que a pequena menina tinha que atravessar corajosamente e sem se deter, poderia também descrever várias galerias em Berlim, por onde vocês, corajosamente e sem se deter, também já passearam. Ou talvez, detendo-se um pouco, caso as mães de vocês tivessem tempo suficiente para fazer as compras. E agora, enfim, vocês já adivinham aonde quero ir parar, onde existem na vida real, em plena Berlim, estas longas galerias de brinquedos sem fadas nem magos: as lojas de departamentos. Eu disse a mim mesmo: os adultos podem escutar no rádio todo o tipo de programa que interesse a eles com informações especializadas, apesar de, ou exatamente porque eles já entendem do assunto tratado, no mínimo tanto quanto o locutor do programa. E porque não se pode fazer esses programas especializados para crianças também? Por exemplo, sobre brinquedos; apesar de, ou exatamente porque eles entendem de brinquedos no mínimo tanto quanto o homem que aqui lhes fala. Por isso um dia, ao meio-dia, quando as lojas estão mais vazias, saí passeando de mesa em mesa, bem devagar, como nunca pude nem me era permitido fazer quando era pequeno; contemplei tudo com enorme atenção, os brinquedos novos que existem hoje, o que mudou naqueles que existiam quando eu era pequeno, e finalmente aqueles que haviam desaparecido completamente. E quero começar exatamente com estes que desapareceram. Bom, hoje não passaremos deste início e a continuação deste passeio vocês poderão escutar na semana que vem, se assim quiserem. Eu perguntei em toda parte, por exemplo, por um antigo brinquedo chamado “O pescador da fortuna”. Ao que parece, realmente não existe mais. Eu ganhei um de aniversário uma vez e ele é tão lindo, que quero descrever aqui para vocês. Primeiramente, temos na caixa quatro folhas de cartolina em forma de parede, coladas na extremidade. Tiramo-las da caixa e colocamos sobre a mesa. Essas paredes estão revestidas de um papel brilhante com estampas representando plantas aquáticas, peixes, moluscos e algas, nadando em meio às águas ou descansando no fundo do mar. No outro compartimento da caixa temos uns 20 ou 30 peixes diferentes, todos com um anel fincado no nariz. Mas por que um anel? Isto é um privilégio dos camelos, não? Exatamente para o seguinte: o anel é de metal. E temos então as varas de pescar, cinco ou seis varetas delicadas com uma linha vermelha amarrada, e na ponta, ao invés das minhocas, temos um pequeno e lindo ímã. Aquele que ao final tiver pescado o maior número de peixes é o vencedor. E como a pescaria certamente tem as suas regras e nestas águas cada peixe tem um número diferente, ao final da pescaria, ao invés de uma refeição com peixe, temos que fazer contas de cabeça. Pois este brinquedo, por exemplo, desapareceu. Mas parece que uma coisa muito mais linda também desapareceu: um tipo especial de caixinha-de-música. Muitos de vocês talvez jamais tenham visto uma delas. São caixas que contêm dentro um mecanismo musical, ao lado uma manivela e sobre a tampa uma paisagem ou uma cidade. Quando se gira a manivela, algo se mexe no
compasso da música. Em meu passeio de observador vi todo o tipo de caixinha-de-música, por exemplo: uma em que se ordenham as vacas, outra com um cachorro que salta, outra com um pastor dos Alpes que sai de sua cabana e entra de volta. São todas bonitas, mas nem de longe tão notáveis e fascinantes quanto aquela que me vem à memória, ainda que nunca tenha possuído uma, apenas a vi uma vez numa loja. Ao girar a manivela, soava uma apropriada música de batalha, abriam-se as pesadas portas de cartolina de uma fortaleza sombria, cujo interior não se podia ver de cima, e então saía marchando uma companhia de soldados, descrevia uma curva em frente à grama verde enquanto a música soava, entrava novamente na fortaleza por uma porta dos fundos que havia se aberto e permanecia por instantes no interior daquela escuridão, sem que a música parasse de tocar. Sabe Deus o que deveria acontecer com eles até que saíssem de novo e enfileirados. Procurei em vão por algo parecido. Também não consegui encontrar aqueles livrinhos que eram vendidos na livraria escolar e cuja aquisição adoçava a compra dos cadernos de aritmética – uma compra que para mim era ainda mais desagradável do que cada uma das aulas de aritmética, pois o caderno continha em seus quadros vazios a assustadora soma de todas aquelas aulas; aqueles livrinhos, livros ligeiros, ou como queira que se chamassem, consistiam em sequências de fotografias diminutas em que apareciam representados todos os trechos de uma luta de boxe ou de um jogo de futebol, e bastava folhear com o polegar para que as imagens passassem uma após a outra em rápida sequência. Com um livrinho destes na palma da mão podia-se facilmente transformar uma aula de aritmética numa sessão de cinema. Em todo caso, algo que continua existindo é o volumoso brinquedo que leva o bonito nome de Roda da Vida ²⁸ . Ele se baseia exatamente no mesmo truque, sendo que as imagens não estão encadernadas num livro, e sim dispostas num disco, com o lado das imagens voltado para dentro. Em volta do conjunto completo está fixada uma parede circular equipada com pequenas frestas. E quando se faz girar rapidamente o disco – a parede, no entanto, não se move –, pode-se ver através de qualquer das frestas, como nos livrinhos, seres humanos em movimento, como se estivessem dotados de vida. Daí o nome Roda da Vida. Esse eu vi na seção de “Jogos” da loja. Mas antes de entrar em mais detalhes, quero descrever o conjunto da galeria. Por acaso comecei com o reino das bonecas, do qual, porém, só vou lhes falar na próxima vez. Seguindo adiante encontramos a avenida dos bichos, que em nada fica devendo aos mágicos. A quantidade de espécies animais que encontrei ali é inumerável. Cachorros azuis e cor-de-rosa, cavalos que de longe pareciam figuras feitas com casca de laranja, tão intenso era o amarelo de que eram feitas, macacos e coelhos de um colorido tão artificial que pareciam as tulipas que as floristas vendem na Potsdamer Platz ²⁹ . Sem falar no Gato Félix, à venda em enorme quantidade, e nos bichinhos bibabo , que se pode vestir nos dedos como se fosse uma luva e com os quais uma simpática vendedora me mostrou os truques mais impressionantes, até perceber que, de todo modo, eu não iria comprar nada. Pelo menos era o que eu pensava, enquanto ainda estava na galeria dos bichos. Mais tarde não resisti e acabei comprando uma coisa. É um jogo muito curioso, creio que totalmente novo, em todo caso, jamais tinha ouvido falar nele. É uma simples caixinha de papelão com 15 ou 20 carimbos de borracha diferentes. Nestes carimbos há partes de paisagens, casas, pequenas figuras, balões dirigíveis, automóveis, barcos, pontes etc., etc.
Junto encontra-se também um estojo com uma almofada com tinta para os carimbos. Pegamos então uma grande folha de papel e podemos ficar horas com os carimbos, gravando e criando inúmeras paisagens, arredores, acontecimentos e histórias. Mas este brinquedo já estava na seção de “Jogos de Grupo”, que se segue à galeria dos bichos. Quase ia me esquecendo de falar dos muitos coelhos de Páscoa que se encontram agora nessa galeria. As lojas de departamentos são pontos estratégicos e por isso, são as primeiras que os coelhos de Páscoa ocupam quando eles saem ao ataque. E agora parem de escutar um instante. O que vou dizer agora não é para as crianças. Na próxima vez, terminarei de contar sobre esse passeio. Mas tenho um enorme receio de que nesse meio tempo uma chuva de cartas chegue perguntando-me mais ou menos assim: O senhor enlouqueceu ou o que? O senhor não acha que já é suficiente que as crianças passem o dia choramingando, e agora o senhor vem colocar essas coisas na cabeça delas, contando de não sei quantos brinquedos, dos quais até agora, elas graças a Deus não tinham ouvido falar, mas que agora todas querem ter, e além de tudo, de coisas que nem sequer existem mais! Como eu vou responder? Eu poderia facilitar as coisas para o meu lado e pedir a vocês que não revelem nada sobre toda esta história, para que ninguém perceba, e então poderemos continuar daqui a uma semana. Mas isto seria uma maldade. Assim não me resta nada a fazer, senão dizer tranquilamente o que eu penso de verdade: Quanto mais uma pessoa entende de um assunto e quanto mais ela passa a saber da quantidade de coisas belas que existem de uma determinada categoria – sejam elas flores, livros, roupas ou brinquedos –, tanto maior será sempre a sua alegria em ver e saber mais sobre elas, e tanto menos ela se preocupará em possuir, comprar ou dar de presente estas mesmas coisas. Aqueles entre vocês que me escutaram até o final, ainda que não devessem, terão que explicar isto aos seus pais. 28 Aparelho ótico de animação de imagens também conhecido como zootrópio. 29 Praça situada no centro de Berlim, à época de Benjamin local de intenso tráfego, com diversos estabelecimentos comerciais, hotéis, casas de diversão, etc.
Passeio pelos brinquedos de Berlim II Alguns de vocês talvez queiram saber onde se encontram todas estas lojas de brinquedos, estas galerias de bonecas, animais, trenzinhos, jogos em grupo, por onde eu levei vocês da última vez e seguirei levando agora. Nada
mais fácil do que dizê-lo. Mas não é permitido fazer propaganda no rádio e, atenção, nem mesmo propaganda subliminar, por isso não posso dizer o nome da loja a vocês. Que fazemos então? Algumas crianças vão, talvez, querer comprovar se o que eu falei é verdade. E como realmente é, eu não poderia desejar nada melhor. Pois vou lançar mão de uma artimanha e revelar a vocês o seguinte: que eu estive em uma grande loja de departamentos, isso vocês já devem ter percebido. Então olhem um pouquinho em volta e prestem atenção, para ver onde está, sobre uma mesa, uma enorme reprodução em metal do novo navio a vapor “Bremen”. É tão grande que se pode ver de longe. É toda montada com peças do jogo de mecânico Stabil. Talvez alguns de vocês vão querer copiá-la. Para isso é preciso a caixa de peças tamanho 9. Ela é a maior e custa 155 marcos. Vocês já ouviram alguma vez falar da Exposição Internacional de Paris, da qual toda a Europa falou no ano de 1900? Em todos os cartões postais feitos àquela época com motivos da Exposição podia-se ver ao fundo da cidade de Paris uma enorme roda mecânica com talvez 16 cabines presas por dobradiças móveis. A roda se movia lentamente, as pessoas sentadas nas cabines contemplavam a cidade, o rio Sena e a Exposição até ficarem enjoadas com o movimento das cabines balançando e da roda girando. A maquete dessa roda vocês também encontram feita com peças do jogo de montar. Ela também é móvel e as cabines balançam igual como há 30 anos balançavam as autênticas, onde quem sabe os avós de vocês se sentaram. Pois isso se encontra também na seção de “Jogos em Grupo”. Mas não quero ficar falando muito dos jogos que vi ali. Todos vocês conhecem bem os jogos de cartas, com suas inúmeras variações, um belo entretenimento com o qual se aprende a ser astuto, malicioso e cortês ao mesmo tempo, e os jogos de dados com grandes tabuleiros, a “Trilha”, “A volta ao mundo”, “A feira de Schröppstedt”, como se chamavam antes e “No Zepelim”, a “Viagem às terras boreais”, “O bom policial”, como se chamam atualmente, vocês também conhecem. Já vale mais a pena falar a vocês sobre o jogo elétrico de perguntas e respostas. Temos uma pilha pequena, uma lâmpada e dois pininhos; vocês encaixam um sobre um dos tabuleiros onde estão as perguntas – ao lado de cada pergunta há uma varinha de metal. Então vocês procuram a resposta no outro cartão. Se vocês encaixam o pino, por exemplo, na pergunta “Qual o rio que passa por Roma?”, então procuram a resposta com o outro, e se a reposta estiver certa, a lâmpada se acende. É claro que se trata de um brinquedo nada inocente, no qual o professor espertamente se transformou em uma lâmpada. E ainda há outros brinquedos onde a escola se infiltrou e está camuflada. O que eu mais gostei é um bem novo, feito para crianças de seis anos, que acabaram de aprender a fazer contas. Trata-se de uma bela maçã de madeira polida, que inclusive cheira, não a algum tipo especial de maçã, mas a madeira, é claro. Observando mais de perto, vemos que ela pode ser dividida em seis partes distintas, encaixadas com habilidade, com as quais se pode facilitar bastante o aprendizado das contas para os alunos do nono ano. Se tivéssemos também as sementes, seria possível até mesmo utilizar o jogo com as classes mais adiantadas. Mas será que se pode chamar isto de brinquedo? Os chamados jogos ocupacionais, as contas para se enfileirar em um cordão, os modelos para trançar usados no jardim de infância, que encontramos para vender aqui por perto – podemos classificá-los como verdadeiros brinquedos? Os decalques? E, sobretudo, os cromos? Eu não sei. Em todo
caso, dos cromos eu gostaria de falar a vocês. Não só porque eu os apreciava muito quando era garoto, mas também porque fui juntando com o tempo uma preciosa coleção de cromos, alguns deles pertenciam à minha mãe, nos quais há imagens de coisas que já não se encontram mais em nenhuma papelaria. Por exemplo, contos de fadas completos: O Pequeno Polegar, Branca de Neve em séries de cromos coloridos, Aladin e a Lâmpada Maravilhosa, Robinson Crusoe etc. Não sei explicar por que, mas o fato é que todas estas imagens diminutas, que estão reproduzidas em tantos livros infantis, por exemplo, quando o terrível gênio arreganha os dentes diante de Aladin cambaleando de espanto, ou quando o Robinson, de tanto pavor, quase deixa cair ao solo seu guarda-chuva ao descobrir na ilha os primeiros ossos humanos roídos – todos esses momentos, só consigo vê-los diante dos olhos na mesma forma em que ainda os vejo quando folheio meu álbum de cromos. Isto representa um bom contraste com a enorme quantidade de pombinhas estendendo o bico, botões de rosa, carroças de flores, anjos emplumados que se tem que recortar pacientemente com tesoura das tiras de papel em que vêm fixadas e onde está impresso com pequenas letras vermelhas o nome do fabricante ou U X 798 ou qualquer outro código industrial enigmático. Para mim não há nada como os brinquedos de papel. Começando com os barquinhos ou os capacetes de papel, que foram os que quase conhecemos primeiro, até um certo tipo de livro, sobre o qual eu vou lhes contar um pouco agora. Imaginem um livro de ilustrações com poucas páginas. Na primeira há talvez uma sala de visitas, na segunda uma paisagem com montanhas, campos e florestas, na terceira uma cidade com suas ruas, portais, praças e casas. Agora olhem com mais atenção. Vocês vão descobrir em cada uma dessas imagens uma enorme quantidade de ranhuras; fendas entre a janela e o parapeito, entre a soleira e a porta, entre a fonte e o calçamento, entre o assento e o encosto da cadeira, entre a margem e o rio etc. E atrás destes livros encontramos, dentro de uma pequena pasta, todo o tipo de pessoas, móveis, veículos, barcos, alimentos e plantas, que se acrescentam às imagens encaixando nas fendas. Assim se pode mobiliar a sala de cem maneiras diferentes, enfeitar a paisagem com cem diferentes flores e animais, montar a cidade como se fosse um dia de feira ou um domingo, ou, se alguém achar divertido, colocar cervos e esquilos passeando pelas ruas. Bom, estes livros já não existem mais. Mas não vai demorar muito até que eles voltem a existir e agora mesmo vocês já podem encontrar alguns tão bonitos como aqueles. Peçam de presente, por exemplo, o barco mágico construído por Tom Seidmann-Freud, feito quase no mesmo sistema do qual lhes contei. Sim, vocês agora talvez vão dizer, mas o que isso tem a ver com Berlim? Eu teria então que pedir a vocês para refletir mais profundamente e, de minha parte, lhes perguntaria: Em que outro lugar na Alemanha se poderia realizar um passeio semelhante pelo reino dos brinquedos, se não numa loja de departamentos de Berlim? Não quero dizer com isso que não existem outras lojas de brinquedos, onde se pode encontrar tantas coisas como ali. A grande diferença é só que as lojas grandes dispõem de muito mais espaço e podem colocar tudo em seus enormes mostradores, sem deixar nada escondido e de forma que qualquer um que tenha olhos possa ver tudo que em outros casos ficaria, em grande parte, guardado em armários e caixas. No entanto, foi um longo caminho até se chegar a estas galerias pelas quais passamos hoje. Sobretudo, vocês não devem pensar que os brinquedos
tenham sido desde o começo uma invenção dos fabricantes de brinquedos. Na verdade eles foram surgindo pouco a pouco nas oficinas, pelas mãos dos entalhadores e estanheiro. No princípio os artesãos só fabricavam brinquedos para crianças como um trabalho complementar, pois tinham que reproduzir em miniatura todos os objetos da vida cotidiana. O marceneiro fazia por encomenda, pequenos móveis para os cômodos das casas de bonecas, o artesão fazia em estanho ou cobre os recipientes e a louça para a cozinha, o oleiro as peças de barro, resumindo: cada artesão recebia a incumbência de produzir a peça que lhe cabia. Uma autêntica fabricação de brinquedos, contudo, não poderia existir por causa das restrições rigorosas das corporações de ofício, que limitavam as atividades artesanais na Idade Média. A cada mestre artesão só era permitido fabricar o que cabia à sua oficina. O marceneiro era proibido de pintar suas bonequinhas de madeira, ele tinha que passá-las ao chamado pintor de bismuto; por sua vez o artesão da cera tinha de se dirigir ao marceneiro se quisesse colocar qualquer utensílio de madeira na mão de sua boneca ou anjo de cera, um castiçal, por exemplo. Vocês podem imaginar como era incrivelmente trabalhoso naquele tempo – que entrou até pelo século XIX – a produção de uma casa de bonecas, por exemplo, uma vez que era necessária a participação de tantas corporações de artesãos diferentes. Daí também o seu preço elevado. Nos primeiros tempos só eram acessíveis aos príncipes e chegavam aos quartos das crianças nos castelos na qualidade de objetos de luxo, quando não eram expostas nas feiras anuais para os visitantes que se dispusessem a pagar a entrada. Estamos acostumados a ver estas exposições. Já faz agora uns trezentos anos, uma boa senhorita solteirona de Nuremberg concebeu uma maneira de ganhar dinheiro, explicando às crianças os princípios básicos da boa economia doméstica utilizando uma casa de bonecas, na qual tudo estava fielmente reproduzido. Os pais daquelas crianças talvez tenham se deixado levar pela tal argumentação da senhorita e enviaram suas filhas pequenas até ela. As crianças, contudo, devem ter tirado mais prazer do que proveito da situação. Além do mais, a disposição daquelas casas estava longe de ser fiel à realidade. Os cômodos eram alinhados ao bel prazer, apenas para agradar aos olhos dos espectadores. Na maioria das casas de bonecas não há sequer uma escada ligando o primeiro com o segundo andar. Vocês certamente conhecem, nem que seja apenas por sua Arca de Noé, os chamados brinquedos de Nuremberg, estes minúsculos animaizinhos e homenzinhos pintados. Eu fiquei bastante admirado de ver em meu passeio como esse universo bíblico e campestre de brinquedos se ampliou com uma boa porção de elementos urbanos. Agora, junto com a Arca de Noé, há prédios de apartamentos, estações de trem, casas de banho e até mesmo veículos Berolina, que passeiam por Berlim cheios de bonequinhos-turistas. Já vou lhes explicar logo porque esses brinquedos se chamam “de Nuremberg”. Na verdade, hoje em dia eles vêm em sua maior parte da região do Erzgebirge ou da Turíngia. Há vários séculos estes brinquedos são produzidos ali e a história de como se chegou à sua fabricação mostra mais uma vez como no começo a confecção e a venda de brinquedos eram tão diferentes de como são hoje em dia. Não é à toa que as vilas de onde provêm estes brinquedos se situam no mais profundo dos bosques da Turíngia e da Boêmia. Nos longos dias de inverno, quando o trânsito ficava paralisado pela neve que cobria as estradas e pelo gelo que fechava os desfiladeiros, os camponeses e artesãos, que durante as melhores épocas do ano viviam deste
trânsito, eram obrigados a se dedicar a outras ocupações. Como havia madeira em grande quantidade, eles rapidamente pegaram gosto pelo entalhe. No começo eram apenas colheres de madeira, utensílios de cozinha, caixas para alfinetes ou coisas do gênero. Mas isso não era o bastante para satisfazer os mais talentosos, que logo se aventuravam a entalhar pequenas bonecas, carrocinhas ou animais como aqueles que viam todos os dias ao seu redor. No verão, os comerciantes em viagem que passavam por ali adquiriam com prazer estas pequenas obras de arte, divertidas e baratas, para presentear seus filhos ao chegarem em casa. A nova e fácil fonte de receita estimulou os entalhadores; eles buscaram outras oportunidades de venda além daquela ocasional, carregando suas mercadorias em cestos e saindo pelo país para vendê-las. Em seguida, os empresários começaram a comprar estes brinquedos em grandes quantidades e a comercializá-los, por sua vez, em todo o mundo. Assim estes bonequinhos chegaram até Astracã e Arcangel, até São Petersburgo e Cádiz, inclusive até à África e às Índias Ocidentais, pois os marinheiros gostavam de levar aqueles homenzinhos coloridos para trocá-los com os negros por pedras preciosas, pérolas, bronzes e coisas semelhantes. “Mas que passeio mais estranho”, vocês vão dizer, “já estamos quase chegando ao final e ele não disse uma palavra sobre bonecas nem sobre soldados.” E vocês têm razão. Mas é que hoje ele estava mais no espírito das coisas esquisitas e extravagantes, e parece que vai se manter firme até o final. E agora irá revelar aquilo que mais o surpreendeu durante este passeio, não porque tenha sido algo novo para ele, mas simplesmente por ter reencontrado algo do que ele já não se lembrava há muitíssimo tempo: sobre um fundo de algodão ele viu estes bichos escamosos de banheira, patos, peixinhos dourados, e no meio um barco, também escamoso, com velas metálicas multicoloridas, e junto com tudo um pequeno ímã, com o qual a criança procura guiar o barco, enquanto a mãe lava sua cabeça. Sobre o conjunto havia um revestimento de celuloide, então os peixes, barcos e patos pareciam presos num bloco de gelo. Esta imagem me lembrou do menor e mais fascinante mundo dos brinquedos, aquele que é inalcançável, pois eles estão dentro de um cristal. Lembrei-me dos navios, crucifixos e minas, lacrados dentro de uma garrafa. Vocês já viram alguma vez uma garrafa dessas? Já queimaram pestana alguma vez pensando em como aqueles objetos podem ter chegado ali dentro? Pois eu sim, durante anos. Muitos anos se passaram até que eu descobrisse como era feito, qual era a habilidade dos marinheiros que, depois de longas viagens, traziam estas peças para casa. Não é nenhuma bruxaria, mas simplesmente questão de paciência. Só que tanta paciência, como só um marinheiro pode ter em meio à solidão das águas, sem pressa de chegar a lugar algum. Todas as peças de um navio ou de um crucifixo destes estão unidas por fios, são móveis e estão ajustadas de forma que possam passar pelo gargalo da garrafa. Quando por fim estão dentro dela, todos os elementos e articulações são esticados com ajuda de longas agulhas e pinças, até que o barco, a cruz ou o que quer que seja, adquira sua forma natural. Em seguida se verte de gota em gota o lacre colorido, imitando as ondas e os penhascos, e no qual também são fixadas casinhas ou figuras coloridas. Estas garrafas lembram o pequeno país maravilhoso de Vadutz, do qual o poeta Clemens Brentano conta:
Todas as montanhas maravilhosas da história e do mundo das fábulas e contos de fadas, o Himalaia, o Meru, o Albordi, o Qaf, o Ida, o Olimpo e a montanha de cristal, eu as havia colocado em meu pequeno país de Vadutz. Este Brentano juntou em sua fantasia todos os brinquedos que amava em um país, que chamou Vadutz. Deste país ele nos fala na introdução ao mais belo dos seus contos: “Gockel, Hinkel e Gackeleia”. ³⁰ Encerrado nosso passeio pelos brinquedos, vocês podem pensar no que gostariam de ganhar no próximo aniversário. E o que eu pediria a vocês é que, mais tarde, quando lerem o conto de Gockel, Hinkel e Gackaleia, se lembrem do nosso passeio. 30 O título exato da lenda de Brentano é “Gockel und Hinkel”.
Borsig Já vimos até aqui uma boa quantidade de coisas sobre Berlim; falamos sobre os mercados e o comércio de rua, o trânsito, as antigas escolas, sobre a misteriosa Berlim de cem anos atrás, falamos sobre o dialeto de Berlim e até um pouco sobre a história da arquitetura da cidade, sem esquecer o nosso passeio pelos brinquedos. Mas, na verdade, acabamos deixando de lado algo essencial: estou me referindo àquilo que permitiu que Berlim se tornasse a cidade de três milhões de habitantes que é hoje e na qual vivemos, resumindo, aquilo a que somos gratos por fazer com que nós, berlinenses, possamos conhecer uns aos outros: a grande indústria e o grande comércio no atacado. Hoje ainda não vamos falar do comércio, mas quero apresentar a vocês uma indústria, ou melhor, uma única firma, onde vocês podem encontrar, de uma vez só, um milésimo destes três milhões de habitantes de Berlim. Sim, até mais: 3900 é o número de trabalhadores em atividade na Borsig, juntem-se a isso 1000 funcionários e temos uma empresa que, em pleno funcionamento, emprega 5000 pessoas. O que é a Borsig? Muitos de vocês já ouviram esse nome. A maioria deve saber que Borsig produz máquinas. E pelos seus passeios de domingo, vocês devem saber onde ela está situada. Se saímos de Berlim pela estrada que vai para Oranienburg e Velten, chegamos a Tegel, onde já há todo tipo de coisa para se ver. Primeiro, se vocês já fizeram um passeio com a escola até Tegel, certamente o professor lhes mostrou a mansão da família Humboldt. Eu me refiro aos dois irmãos Wilhelm e Alexander von Humboldt, que podem ser vistos sobre as pilastras da universidade, como se até hoje ainda não tivessem concluído o curso ou estivessem matando aula. Nós iremos reencontrar um destes Humboldt daqui a pouco. Em Tegel fica também o presídio, e do lado de fora se vê muito mais do que nos presídios comuns, pois várias janelas das celas dão para a rua. Mas eu creio que elas ficam em uma altura tão grande que os pobres detentos não têm como espiar para o lado de fora. Então vocês seguem mais alguns minutos na estrada para
Oranienburg e chegam à Borsig. Passando pelo portão de entrada, chega-se a um hall. Como todos os outros prédios da Borsig ele é construído com tijolos vermelhos, e logo neste hall vocês têm uma primeira surpresa. Uma fileira de estandes ou suportes, coberta de cima a baixo com números, ao lado de cada número há um nome, e abaixo de cada nome uma pequena fenda. Em algumas delas há um cartão. Estes cartões colocados ali dizem que o número 698 ou 82, ou o número 1014, no momento não se encontram na empresa. Pois cada um que chega deve tirar seu cartão do compartimento e passá-lo no relógio de ponto, no momento que chega à fabrica e ao sair, geralmente após oito horas de trabalho. E então o funcionário é pago conforme o número de horas registrado no cartão de controle. Mas depois de entrar na empresa, a primeira coisa que chama a atenção, provavelmente, é a dificuldade de se orientar e a sensação de que um estranho não tem nada a fazer ali dentro. O que pensar afinal, diante de mais de vinte pavilhões e oficinas, barracões e chaminés, espalhados de forma irregular sobre um terreno e ligados mais por trilhos do que por vias? Pois a estrada de ferro vem dar diretamente dentro da fábrica. Aqui são embarcadas caldeiras, motores de navios, turbinas a vapor, tubulações, equipamentos para laboratórios químicos e todo gênero de outros produtos. Mas eles não são embarcados apenas pela ferrovia. Pelo lado oposto ao da entrada, a enorme planta industrial vai dar às margens do lago Tegel. Aqui chegam as barcas, que vão transportar as máquinas lentamente sobre o Havel e o Elba até Hamburgo, de onde serão levadas até os clientes que as encomendaram, do outro lado do oceano. A segunda coisa que vai chamar a atenção de vocês é uma torre. Com 12 andares, erguida com tijolo vitrificado e com seus 65 metros de altura, ela era a torre mais alta de Berlim na época de sua construção. Aliás, até hoje ela não foi concluída, pois numa empresa sempre há outras coisas para as quais a verba é prioridade. Talvez agora alguém pergunte a vocês por onde vocês gostariam de entrar. Talvez por um pavilhão onde estão sendo fabricadas gigantescas bombas, ou têmperas com misturadores, ou conjuntos de caldeiras tubulares, ou tubos de baixa pressão com carga de alta pressão. Certamente vocês vão ficar boquiabertos e entenderão o que quer dizer quando se fala no conhecimento alemão. Vocês podem ter certeza de que nunca ouviram pelo menos três das quatro palavras mais importantes empregadas ali ao longo do dia, mesmo que conheçam algumas mais simples, e também, nem de longe, podem fazer ideia do que seja, por exemplo, um torno ou uma máquina de fresar. Outros garotos, porém, talvez até mais jovens do que vocês, sabem exatamente do que estou falando. Pelo menos os que frequentam o Departamento de Aprendizes da Borsig. Ela fica lá em cima, no quarto andar de um destes prédios da fábrica. Subi num elevador que causa certo estranhamento, pois na verdade é usado mais para transportar correntes, peças de maquinaria e coisas semelhantes. Chegamos ao departamento, onde quase 300 jovens aprendizes fazem sua formação profissional, são em sua maior parte, filhos dos homens que trabalham aqui já há vários anos. Ali se encontram 100 máquinas ao seu dispor, para que possam aprender seu ofício. A Borsig se orgulha desse departamento, pois foi uma das primeiras empresas a oferecer uma formação profissional planejada a seus aprendizes, ao invés de contratar um ou outro ocasionalmente. Junto à oficina para aprendizes, há
também a escola profissional, da própria empresa, com turmas, professores, um cinema e todas as aulas teóricas que os alunos têm de frequentar durante quatro anos. Mas agora não vamos nos deter muito nem nos perder entre os nomes complicados de tantas máquinas, e sim escolher de uma vez um pavilhão e entrar. Vamos imaginar que tivemos sorte e que neste momento estão construindo locomotivas na Borsig. Então iremos nos deparar com elas em diversos departamentos da empresa. Contudo, vamos dar atenção apenas ao primeiro e ao último departamento. E realmente temos sorte! Neste momento a Borsig fabrica 70 locomotivas para a Sérvia, como reparação aos danos causados pela guerra. A primeira estação é o local onde são forjadas as caldeiras. Vamos entrar. Aqui são forjadas, aproximadamente, 600 caldeiras de locomotivas por ano. Logo ao entrar somos recebidos por uma barulheira, como se as 600 caldeiras estivessem sendo forjadas ao mesmo tempo. Não mais do que 40 ou 50 pessoas estão trabalhando agora neste imenso pavilhão. E como ele tem mais de 100 metros de extensão, os indivíduos naturalmente se perdem uns dos outros. E exatamente isto é o mais surpreendente: o barulho é ensurdecedor, mas não se vê muitas pessoas por perto. Primeiramente: enquanto não nos acostumamos a este ambiente, é melhor ir avançando aos poucos e com cuidado. Pois os trilhos, em toda parte, não estão somente sob nossos pés, mas também acima de nossas cabeças, e sobre eles correm os guindastes sobre rodas, transportando carregamentos, componentes de metal, peças de caldeiras, metades de rodas – sim, porque as grandes rodas são sempre fabricadas em metades e então fundidas em uma única peça – tudo isso sendo levado de uma ponta à outra do pavilhão. Nunca se sabe quando uma dessas delicadas peças de joalheria passa balançando sobre nossa cabeça. As caldeiras são montadas por rebites pelas chamadas máquinas hidráulicas de rebite, uma espécie de bomba com pistões de altíssima pressão. E uma máquina de rebite dessas, que fixa as peças sob uma pressão de 100 toneladas, é operada por um único trabalhador. Mas não vão pensar que o processo de produção na Borsig começa por aí. Não, todas as peças avulsas usadas na produção das caldeiras já são de fabricação própria. Isto é feito num outro pavilhão, chamado forja de martelo, onde se encontram doze fornos de forja, 18 martelos-pilão a vapor, sete prensas hidráulicas e tantas outras máquinas, tudo para dar ao ferro bruto a forma desejada. É claro que a Borsig não é a proprietária do minério de ferro que será transformado em ferro bruto. Ele é comprado na Alemanha ou na Escandinávia. Mas a partir de então, tudo é feito na própria fábrica até a locomotiva ficar pronta. Contudo, é nas usinas da Borsig da Alta Silésia, na fronteira com a Polônia, que o minério é beneficiado e ganha a forma de ferro bruto. Uma planta industrial como esta, onde tudo é produzido, desde o ferro bruto até à mercadoria pronta, é chamada de concentração vertical. Imagine-se que o ferro é o que está mais fundo na terra, ali se inicia o processo de produção, que vai se desenvolvendo e refinando cada vez mais, até chegar ao produto final, no caso aqui, a locomotiva. Vocês não fazem ideia de quantos tipos de locomotiva existem e são fabricadas ali. Locomotivas elétricas, locomotivas a carvão, a madeira – no Brasil, por exemplo, o combustível é bastante caro e é preciso trabalhar com economia, então são usadas locomotivas a vapor em empresas onde há risco de incêndio e também nos abatedouros, onde não pode haver fuligem. Todas estas coisas são produzidas na Borsig. Cada país
tem uma exigência diferente, cada cliente tem um pedido específico, que às vezes, tem de ser atendido numa velocidade impressionante. Para o trecho do metrô entre as estações Spittelmarkt e Alexanderplatz foi preciso construir um túnel sob o rio Spree, que corta Berlim. Houve um vazamento e a cabeça do túnel rebaixou, o que ameaçava a obra inteira. Às dez horas da manhã os diretores da obra tiveram uma reunião com a Borsig. A empresa sugeriu que se instalassem cinco bombas de alta capacidade, que juntas deveriam bombear 125 metros cúbicos de água por minuto. Às três horas da tarde foi encaminhado o pedido de entrega das bombas no bairro de Tegel. Embora todo o desenho das bombas tivesse que ser refeito, às 11 horas da noite as cinco super-bombas estavam prontas e atravessaram o portão da empresa. Na manhã seguinte, elas entraram em funcionamento e em duas horas o trecho da obra do metrô estava salvo.
Porém, voltemos agora à nossa locomotiva. Vamos pular algumas estações para encontrá-la novamente no pavilhão de montagem, onde ela será construída a partir das peças avulsas e ganhará por fim, a pintura. Só o processo de pintura dura, aproximadamente, oito dias. Quando eu cheguei ao pavilhão era horário de almoço. O lugar estava quieto. Os trabalhadores estavam sentados no chão e desembrulhavam suas marmitas. O ambiente cheirava a tinta. À frente estava aberto o batente, também chamado o peito da locomotiva, de forma que se podia olhar em seu interior. Entre os carris, sobre os quais ela estava estacionada, havia um fosso profundo o suficiente para que se pudesse trabalhar na estrutura debaixo da máquina. Estes suportes de locomotivas são construídos da mesma forma que as docas de navios, onde o importante é poder se chegar debaixo do barco. Existem 39 docas de locomotivas deste tipo na Borsig. Quando as locomotivas estiverem prontas, serão transportadas até à Sérvia pelo pessoal da própria empresa. Mas isso não acontece só com as locomotivas, mas com a maioria das máquinas de grande porte que são encomendadas, sejam elas turbinas a vapor, bombas, equipamentos para refino de petróleo ou outros semelhantes. Esse tipo de produto não pode ser enviado para o cliente como se fosse simplesmente um armário de roupas; eles devem ser instalados precisamente no local e ali colocados em funcionamento com perfeição. Para esta tarefa a empresa tem seus próprios trabalhadores especializados, os chamados mestres-condutores, que através de sua profissão, chegam aos recantos mais distantes deste planeta. Acontece às vezes, de um destes profissionais permanecer por um longo tempo em lugares distantes, como por exemplo, um mestre-condutor que partiu em 1925 para Lahore, na Índia, e ali ficou por dois anos, para instalar a tubulação de uma usina produzida pela empresa. De onde eu sei isso? Bom, não há ninguém numa fábrica como essa que tenha tempo de se sentar e sair contando tudo aquilo que nos desperta o interesse. É preciso ir descobrindo as coisas um pouquinho por si mesmo. E como eu sabia que na Borsig, como em tantas outras fábricas grandes, existe um jornal publicado para os funcionários, então fui dar uma espiada. Ali está não só a história completa do mestre-condutor que foi parar em Lahore; ali encontramos, sobretudo, informações sobre novas invenções tecnológicas no ramo da construção de máquinas. Há também textos escritos pelos próprios trabalhadores, conselhos, às vezes até reclamações. E em cada exemplar, o destaque é um índice das pessoas que apresentaram alguma sugestão de melhoria para qualquer setor específico da empresa que elas conheçam bem. Essas sugestões são analisadas no escritório da administração e às vezes premiadas. Se vocês tivessem vindo comigo, teriam visto então, no começo, algo sobre o que vou lhes contar só agora no final. No pátio em frente à empresa, graciosamente colocadas em cima de um pedestal de tijolos vermelhos sobre a grama verde, estão dois produtos da marca Borsig, quase dois monumentos, de uma qualidade toda especial. Um é uma máquina com um volante enorme e o outro é uma pequena caldeira a vapor. Eles pertencem à lista dos produtos mais antigos da fábrica. A caldeira esteve em atividade por uns 50 anos numa fábrica. Então a Borsig gastou um bom dinheiro para reavê-la e colocá-la aqui, como uma espécie de recordação. Estes objetos que são o testemunho dos tempos passados têm aqui um grande valor, tanto mais se pensarmos que a Borsig completará um século daqui a sete anos. Uma idade tão avançada assim para uma fábrica não é fruto do acaso, como
também não seria para uma pessoa. Assim como a pessoa, para ter uma vida longa, deve pensar a longo prazo, evitar se irritar por qualquer coisa, não ficar beliscando tudo que lhe der apetite; também uma grande empresa, se quiser ter uma vida longa, deve trabalhar com muita prudência, cautela e precisão. Eu poderia contar a vocês tantas coisas sobre a antiga Borsig quanto contei aqui sobre a Borsig dos dias atuais. Por exemplo, como a pequena fábrica que montou as primeiras locomotivas alemãs se tornou essa gigantesca fábrica. Quem sabe uma próxima vez, quando eu falar sobre os bairros de Berlim. A Borsig ficava antigamente no bairro de Moabit, na verdade, e não em Tegel, pois toda a história da industrialização de Berlim está intimamente ligada a Moabit. Mas hoje vamos ficar por aqui, e então, estou devendo apenas a história sobre Alexander von Humboldt, que prometi a vocês há exatamente 17 minutos atrás. Mas será que vou conseguir resumi-la agora? Bom, em suma, o homem que fundou a Borsig, provavelmente para compensar a visão das máquinas pesadas e sem cor com as quais ele era obrigado a lidar desde cedo de manhã até tarde, construiu estufas de plantas, que naquela época eram as mais famosas de Berlim e onde estavam expostas inúmeras espécies exóticas. Alexander von Humboldt, o grande naturalista, estudou e admirou essas espécies. Ele também presenciou os grandes festejos pela conclusão da centésima locomotiva da Borsig em 1847. E como a Borsig, da mesma forma que as pessoas contam seus anos de vida, conta o número de locomotivas fabricadas, nós vamos aqui concluir também com uma locomotiva: a de número doze mil. Ela foi fabricada há cinco anos na Borsig e é uma locomotiva-padrão e modelo para todas as locomotivas da Rede Ferroviária da Alemanha ³¹ . 31 No original, Deutsche Reichsbahn, o conjunto de ferrovias do estado alemão durante a República de Weimar (1919-1933), o período do Nacionalsocialismo (1933-1945), até à divisão da Alemanha com a fundação da RDA em 1949.
As casernas de aluguel Não preciso explicar a vocês porque o tema de hoje está relacionado com Berlim. E receio também, que nem seja necessário descrever as casernas de aluguel para vocês. Pois todos vocês as conhecem. E a maioria as conhece também por dentro. Por dentro, eu me refiro aqui não só aos apartamentos e quartos, mas também aos pátios, três, quatro, cinco, ou até mesmo seis pátios dos fundos que as casernas de aluguel de Berlim possuem. Berlim é a cidade com o maior número dessas casernas em toda Terra. E como isso aos poucos, com o passar dos séculos, veio a se tornar o nosso pesadelo – é o que tentarei explicar a vocês hoje. Abram seus ouvidos, vocês já podem ouvir o que não se consegue aprender com tanta facilidade nas aulas de alemão, de geografia ou de moral e cívica, mas que para vocês pode ser
importante. Pois todos vocês devem entender o que se quer dizer quando se fala da grande luta contra as casernas de aluguel, que a Grande Berlim começou a travar a partir de 1925. É costume falar que os berlinenses têm um forte espírito crítico. É verdade. Eles têm sempre uma resposta na ponta da língua, não se deixam iludir tão facilmente, são espertos. Mas no que se refere às casas e aos apartamentos nos quais eles vivem, aí é preciso dizer que eles têm-se deixado enganar ao longo de séculos. E se no começo havia a desculpa da autoridade, ou do monarca absoluto que ordenava que se deveria construir assim ou assado, então mais tarde, quando chegaram a ter, eles mesmos, o poder de administrar sua cidade, a situação não melhorou nem um pouquinho, na verdade, até piorou. E tanto eles conseguiram com seu olhar e sutileza crítica, que raramente pensaram em colocá-lo em prática. E o que é o pior, enquanto de resto, em todo Império, os berlinenses são bastante criticados e há muito tempo já não são vistos como um modelo, no que se refere aos seus casarões, esses foram copiados em toda a Alemanha. Casernas de aluguel – uma expressão que soa tão militar. ³² E não só a palavra tem origem neste vocabulário, mas o próprio surgimento da caserna de aluguel está intimamente ligado ao sistema militar. Desde os tempos dos Hohenzollern, ³³ Berlim é uma cidade militar, e houve épocas em que os militares e suas famílias constituíam um terço de toda a população da cidade. Enquanto o exército prussiano não era tão numeroso, os soldados e seus familiares eram alojados nas casas dos cidadãos. Quando contei a vocês, duas semanas atrás, algumas coisas sobre a história da construção de Berlim durante o período de Frederico Guilherme I, vocês ouviram como cada cidadão era obrigado a alojar tantos ou tantos soldados em sua casa ou apartamento, conforme o tamanho da residência. Isso se deu sob o governo de Frederico Guilherme I. Para os cidadãos era algo extremamente sufocante, mas o exército ainda era pequeno, e tanto se construiu, que não se poderia falar em escassez de moradia. Quando Frederico Guilherme I morreu, Berlim tinha uma tropa de 19.000 homens. Quando, porém, Frederico o Grande morreu, em 1786, a tropa contava com 36.000 homens. Essa massa de soldados não poderia ser alojada da mesma forma como antigamente, por isso Frederico o Grande ordenou que se construísse um grande número de casernas, oito delas só nos últimos quatro anos de seu governo. Nestas casernas não moravam apenas os soldados, mas também suas famílias. Para nós parece algo bastante estranho que soldados tivessem que se alojar em casernas junto com suas esposas e filhos. Mas as razões para isso não são nem um pouco estranhas. Elas simplesmente são fruto da terrível crueldade da disciplina militar prussiana, que fazia com que muitos dos alistados desertassem na primeira oportunidade que se oferecia. Se os soldados tivessem permissão para passar todas as noites ou mesmo alguns dias da semana na casa de suas famílias, é bem possível que a metade não voltasse para o quartel na manhã seguinte. É por isso que eles eram mantidos junto às famílias nas casernas, de onde só podiam sair com autorização especial escrita. Para remediar a situação precária da moradia na cidade, Frederico o Grande estendeu à população civil de Berlim seu projeto de encasernamento . E diga-se, ao invés de fazer crescer a cidade em sentido horizontal, como havia feito seu pai, ele ampliou-a verticalmente. Para isso, escolheu Paris como modelo. Mas não havia qualquer motivo para
isso. Paris era uma fortaleza, a cidade não podia se estender além da área dos fortes e bastiões, e como naquela época, sendo a maior cidade da Europa, tinha uma população de 150.000 habitantes, os parisienses não tinham outra solução a não ser construir prédios de vários andares. Berlim, porém, jamais tinha sido uma cidade fortificada, não era na época de Frederico o Grande assim como não o é hoje. A cidade poderia muito bem ter continuado a se expandir em sentido horizontal. Quando, naquela época, mostraram ao imperador da China pela primeira vez as imagens de casas construídas a uma altura tão incomum, ele disse com desdém: A Europa deve ser um lugar muito pequeno, se seus habitantes não têm espaço suficiente para viver sobre a terra e precisam morar nos ares. Para a saúde dos berlinenses, naturalmente, teria sido muito melhor manter o antigo estilo de construção, ao invés de amontoar em prédios o maior número de pessoas possível, como o que acabou acontecendo. Porém, mais graves ainda que os danos causados à saúde da população foram as consequências dessa arquitetura para a economia. A partir de Frederico o Grande, ninguém mais se preocupava em utilizar para construção os terrenos baratos que se situavam nos limites da cidade, mas em erguer nos terrenos já construídos, novos prédios, casernas de aluguel, ao invés das antigas residências familiares de dois andares. E como as casernas, com inúmeros inquilinos, traziam agora muito mais lucro aos proprietários do que as pequenas casas de antes, os terrenos se tornaram cada vez mais caros. Isso naturalmente logo veio a influenciar no preço dos terrenos não construídos, que havia em grande quantidade na cidade. Quando um terreno para construção era vendido, então os proprietários cobravam preços que o comprador só poderia pagar caso ele construísse vários apartamentos uns sobre os outros, seguindo o modelo das casernas, para que pudesse, com o aluguel, cobrir os juros embutidos nos preços altos do terreno. Uma descrição de Berlim, datada do ano da morte de Frederico o Grande, mostra o tamanho do estrago. Mas, naturalmente, as consequências e danos trazidos por esta arquitetura só eram percebidos raramente, de forma que o autor desta descrição, o escritor Nicolai, nascido em Berlim, se mostra imensamente orgulhoso pelo fato de que quase metade dos prédios possui apartamentos laterais e de fundos, os quais, em algumas regiões da cidade, quase chegavam a abrigar mais moradores do que os apartamentos de frente. Em algumas casernas viviam cerca de 16 famílias. Em muito poucas cidades podem-se contar 6.500 residências com 145.000 moradores. Isto leva a uma média de 22 moradores por casa. Como isso nos soa inofensivo, hoje que encontramos em Berlim prédios com mais de 500 moradores. Cento e vinte anos após o relato de Nicolai, temos uma caserna com mais de mil pessoas na Ackerstrasse. O número é o 132, vocês podem ir até lá e conferir. Olhando de fora para a fileira de pátios, pensamos estar vendo um túnel. Na época de Nicolai a industrialização em Berlim estava apenas engatinhando. A verdadeira catástrofe veio bem mais tarde, após fracassarem todas as tentativas do Barão von Stein para ajudar os berlinenses por meio da política habitacional prussiana, quando em 1858 instituiu-se um terrível plano de urbanização que decretava o império das casernas. Precisamos dar uma olhada nesse plano para compreender a Berlim de hoje em dia. Segundo ele, a caserna de aluguel média deveria ter três pátios. Cada um
destes pátios – por mais improvável que possa parecer – poderia se limitar a uma área de 5m2. Assim, a uma fachada de 20 metros correspondia uma profundidade de 56 metros. Com seus sete andares em média, incluindo aí o térreo, 650 pessoas poderiam se amontoar nestes casarões. Qualquer pessoa deve se perguntar com espanto, como puderam construir utilizando essas medidas tão nefastas, tão nocivas? A explicação é complicada e não muito saudável, assim como as casas. O ponto de partida foi algo completamente inofensivo. Um plano de urbanização deveria resolver de vez o problema de Berlim para as próximas décadas. Este plano foi elaborado na diretoria da polícia. Chegou-se ali à conclusão de que inúmeras vias deveriam atravessar terrenos que eram de propriedade privada. O Estado, empreendedor do plano, deveria indenizar os proprietários. Isto teria um preço muito alto, tendo em vista que ainda não havia na época uma lei de expropriação que previsse indenizações e também viesse atender o interesse público. Caso o Estado quisesse construir suas vias sem gastar um tostão, então teria que tentar negociar amigavelmente com os proprietários dos terrenos. Alguns funcionários espertalhões disseram então: vamos autorizar as pessoas a construir de uma forma que seus futuros inquilinos possam lhes dar mais lucros do que elas poderiam tirar com a venda dos pedacinhos de terra de que estamos precisando para abrir nossas ruas. Esta esperteza por si só seria o suficiente para causar a maior catástrofe. Mas algo pior ainda estava por vir. A forma como o plano foi realizado estava longe de ser aquilo que se havia pensado. Ele não previa nada além de grandes vias de circulação e deveria ser acrescido de uma malha de vias secundárias, com ruas arejadas e bem iluminadas pelo sol. Mais tarde, porém, eles mudaram de opinião e, pensando em economizar o dinheiro com a abertura das ruas secundárias, acharam por bem entupir com uma quantidade enorme de casernas os terrenos cortados por umas poucas ruas. Mas o pior mesmo viria vinte anos mais tarde, quando a vitória sobre a França, em 1871, inaugurou o que se chamou os Anos de Fundação, quando a Alemanha inteira perdeu a cabeça e passou-se a especular a torto e a direito. As autoridades berlinenses sucumbiram então à megalomania. Elaboraram um plano de urbanização monstruoso que deveria valer por séculos, englobando progressivamente uma área na qual não menos que 21 milhões de pessoas poderiam se acomodar. A louca febre de especulação que abalou Berlim durante os Anos de Fundação e, como se sabe, terminou com a quebra de 1873, foi em boa parte uma consequência destes pretensiosos planos de expansão. De uma hora para outra os campos de trigo ou batata se transformaram em terrenos de construção, e em poucos meses o solo arenoso dos limites da cidade havia se tornado o Eldorado de seus proprietários. Ao final dos anos 70, os camponeses, muitos dos quais tinham nascido na condição de servos, tornaram-se milionários da noite para o dia, sem realizar qualquer esforço, sem mérito nenhum. Daí vem a expressão, surgida nos Anos de Fundação, “camponeses-milionários”. Em toda parte criavam-se sociedades, compravam-se terrenos, especulava-se com eles, sem jamais ter a intenção de construir. Nesta época, nada era caro demais para as pessoas. E onde quer que se fosse construir, a única preocupação eram duas coisas: primeiro, amontoar sob o mesmo teto o maior número de acomodações possível e segundo, dar a tudo uma aparência luxuosa. Principalmente nos subúrbios, abriam-se ruas que iam de um extremo ao outro do bairro, ruas que se diziam luxuosas, mas que na verdade iam acabar num areal nos limites da cidade ou simplesmente numa rua adjacente. E até mesmo as
mansões que eram erguidas não passavam de casernas disfarçadas, com seus cômodos no subsolo, seus dormitórios estreitos e suas áreas de serviço atrofiadas. Em compensação, as salas amplas e suntuosas davam para a rua, e mesmo se a rua era voltada para o norte, jamais recebiam sequer um raio de sol. Até os anos da Primeira Guerra Mundial, o egoísmo, a miopia política e a presunção, que como vimos aqui, fizeram surgir as casernas de aluguel, foram o assunto do dia em quase toda parte de Berlim. Mas basta que vocês façam um passeio pelos arredores, até aos limites da cidade, para perceber que as coisas mudaram muito. E não apenas nos distintos bairros residenciais da parte ocidental, como o Dahlem e Lichterfelde, mas também em Frohnau junto à Stettiner Bahn, em Rüdersdorf, ou mais próximo de Berlim, em Britz e Tempelhof. Particularmente Tempelhof é um exemplo daquilo que mudou para melhor em Berlim desde a revolução. ³⁴ Basta comparar as casas construídas entre 1912 e 1914 na área da antiga praça de manobras do exército com aquelas da cidade-jardim de Tempelhofer Felde, cada uma delas aninhada em meio à vegetação. Isto se torna mais evidente através das fotos tiradas de avião. Do alto pode-se ver bem melhor o quanto as casernas são tensas, duras, sombrias e de aspecto bélico, comparadas às casas pacíficas agrupadas amistosamente numa cidadejardim. E compreende-se então, por que Adolf Behne, que tanto fez pela nova Berlim, chamava a caserna de aluguel de o último castelo fortificado. Pois, ele diz, ela surgiu da luta brutal e egoísta de alguns proprietários de terrenos por uma terra que eles fatiaram e desmembraram. É daí que vem seu aspecto defensivo, bélico, com seus pátios cercados de muros, como uma fortaleza. Cada proprietário é dono de seu pedaço de isolamento hostil. E é num isolamento assim que normalmente vivem seus moradores, em blocos com centenas de apartamentos.
Deem uma olhada na edição de abril da revista Uhu ³⁵ . Vocês verão ali uma nova concepção dos arranha-céus americanos. Longos blocos de prédios que podem ser dispostos ou lado a lado, elevando-se então nos ares, ou enfileirados, formando assim uma longa fileira de casas. Fico pensando comigo, se esta edição da Uhu não seria uma brincadeira de primeiro de abril. Mas por esta brincadeira vocês podem ver claramente como se tenta impedir hoje em dia o avanço das casernas. Mais exatamente, eliminando a monumental e solene construção de pedra, que ao longo de séculos permanece imóvel e imutável. Estruturas finas de concreto ou de aço entram no lugar das pedras, imensas superfícies de vidro no lugar de paredes compactas e impenetráveis, escadas exteriores, varandas e terraços ajardinados surgem no lugar das quatro paredes velhas e impessoais. As pessoas que, cada vez mais, vão morar nessas casas terão suas vidas transformadas pouco a pouco por estes novos espaços. Elas serão mais livres, menos medrosas, mas também menos hostis. O mesmo entusiasmo que elas têm hoje pelos balões dirigíveis, pelos automóveis e transatlânticos, elas saberão demonstrar também pela imagem futura de uma cidade. E elas também serão agradecidas a todos que se empenharam na luta de libertação contra a antiga e sombria cidade-caserna que encerrava seus moradores como em uma fortaleza. Entre eles, um dos nomes mais importantes é Werner Hegemann, que em defesa desta nova Berlim escreveu uma história da cidade até os dias de hoje, um livro chamado “A Berlim de pedra”, e nos ensinou, a mim e a vocês, o que sabemos agora sobre a caserna de aluguel. 32 No original, Mietskaserne , palavra composta pelo substantivo Kaserne (quartel) e o verbo mieten (alugar). 33 Dinastia que governou as regiões de Brandenburgo e Prússia a partir de 1415, e mais tarde o Império Alemão, de 1871-ano da unificação alemã-até 1918. 34 Benjamin refere-se à Revolução de 1918-1919, após o fim da Primeira Guerra Mundial, também chamada Revolução de Novembro, que apressou o fim da monarquia alemã. 35 Revista ilustrada publicada mensalmente em Berlim, de 1924 a 1934.
Theodor Hosemann
Este nome soa familiar a vocês? Provavelmente não. Nos seus livros ilustrados vocês não vão encontrá-lo. Mas se um dia vocês derem uma revirada naqueles que pertenciam aos seus pais e suas mães, talvez possam descobrir este nome na capa. Mais especificamente, indicando que ele é o autor das ilustrações do livro. Mas como ele era um homem muito modesto, muitas vezes seu nome não constava nos livros, então é possível que vocês conheçam ilustrações de Hosemann, sem saber que ele é seu autor. Hosemann era então um pintor. Por que falar dele em nossos programas sobre Berlim? Primeiro, ele não é um autêntico berlinense, e sim nasceu há 123 anos em Brandenburg an der Havel. Segundo, não é uma ideia meio estranha, falar de um pintor num programa de rádio? Evidentemente eu não vim aqui para tentar descrever para vocês os quadros de Hosemann. Mas mesmo que eu não descreva nenhum quadro e apenas conte sobre como este homem veio a se tornar pintor, desenhista e ilustrador, o que as pessoas achavam de suas ilustrações e como elas recebiam o seu trabalho, então vocês descobrirão, primeiro, quem era este homem e, segundo, rapidamente descobrir porque eu resolvi falar dele em nosso programa sobre Berlim, apesar de ele ter vindo ao mundo em Brandenburg. Durante sua vida Hosemann não foi mimado, especialmente pelos berlinenses, entre os quais ele viveu e para quem trabalhou. As razões para isso saberemos mais adiante.Certamente não foi pouco o seu espanto, quando recebeu a carta de um professor de sua cidade natal, em que este lhe perguntava sobre sua juventude, pois estava escrevendo um livro sobre ele, Hosemann. Vamos ler aqui sua resposta, escrita cinco anos antes de sua morte: “No ano de 1816, a partir de quando minhas lembranças são precisas,” e ele tinha então nove anos, nós havíamos atracado em Düsseldorf, às margens do Reno, viajando numa barca precária, com teto de tela. Quase não tínhamos o que comer, a guerra contra Napoleão e os tantos deslocamentos provocados por ela haviam esgotado os recursos de meus pais, os 16 ou 17 Taler ³⁶ que meu pai ganhava por mês mal davam para comprar os alimentos minimamente necessários, tanta era a carestia. Nossa primeira acomodação em Düsseldorf era um quarto no sótão de um alojamento de marinheiros. Por ser apenas um jovem ainda, eu era alegre e despreocupado e não conseguia compreender porque minha mãe e minha irmã choravam todos os dias. Eu me consolava com minha caixa de pintura e ficava feliz quando encontrava um pedaço de papel em algum lugar. Então nossa vida ficou ainda mais difícil; vejo ainda minha pequena mãe doente junto com minha irmã fazendo franjas de cortinas em crochê, desde de manhã cedo até o cair da noite, e no inverno à luz de um candeeiro. Mas eu precisava também ajudar no orçamento, e assim cheguei até o atelier de Arnz & Winckelmann, coloristas, onde podia dedicar-me à minha atividade predileta e me divertir à vontade com pincéis e tintas – e quando ao final da semana ainda conseguia levar uma pequena quantia de dinheiro para minha mãezinha tão amada e carinhosa, eu era a criança mais feliz do mundo. Quantas vezes Hosemann retratou mais tarde uma dessas famílias pobres e sossegadas, que trabalhavam incansavelmente todos os dias para conseguir um pouco de dinheiro. E não raro, estavam ali uma mãezinha enferma ou
uma criança febril de cama, pois as publicações para jovens que Hosemann ilustrava naquela época adoravam impressionar as crianças com histórias comoventes, considerando que assim garantiriam seu bom comportamento. Talvez seja aí que tenham se enganado. As crianças querem evidentemente conhecer tudo. E se os adultos só mostram a elas o lado bem comportado e correto da vida, elas logo vão querer conhecer o outro lado por si mesmas. Por outro lado, ninguém nunca ouviu falar de crianças que tenham se tornado malcriadas por causa de Max e Moritz ³⁷ e tenham, por exemplo, colocado pólvora no cachimbo do professor. – Mas vamos voltar a Hosemann. Quando escreveu esta carta, ele já era professor e membro da Academia de Artes. Mas que caminho árduo havia sido até que ele pudesse chegar até lá. Com apenas doze anos o garoto já trabalhava; e aos quinze anos já era o mais jovem desenhista empregado em sua firma, com um salário anual de 200 Taler , prova inegável de que ele não estava ali de brincadeira, mas sim para aprender com dedicação o quanto pudesse e avançar em sua formação. Devemos falar um pouco mais desta firma Winckelmann, que alguns anos mais tarde mudou-se de Düsseldorf para Berlim, pois ela foi determinante em toda a vida de Hosemann. A firma sobreviveu quase 50 anos após seu falecimento e só veio a desaparecer há pouco tempo. Da mesma forma que o artista, ela cresceu com a litografia. A litografia, ou impressão sobre pedra, é a arte de traçar um desenho sobre pedra com um giz químico ou uma pena, de forma que, após ser recoberto com tinta, ele possa ser reproduzido. Esta técnica foi inventada no final do século XVIII, mas foram necessários 20 anos para que ela pudesse ser utilizada em larga escala. Ela veio lançar as bases da ilustração moderna, principalmente na França e na Alemanha. E quando em 1816 foi lançado o primeiro livro infantil com belas ilustrações em litografia – as “Cem fábulas”, de Hey, ilustrado por Otto Specker –, então Wickelmann decidiu tornar os livros infantis ilustrados o principal ramo de seu negócio. Para ampliar sua firma, mudou-se para Berlim. Ele não poderia encontrar um colaborador melhor que Hosemann, logo este conseguiu se estabelecer em Berlim graças ao trabalho oferecido por seu editor, tornando-se, como nenhum outro em seu tempo, um profundo conhecedor da cidade através de seu aguçado senso de observação e estudo detalhado. Hosemann jamais se interessou pelas viagens culturais que os artistas de seu tempo costumavam realizar a Paris ou à Itália. Suas viagens mais longas o levaram a Antuérpia e ao Tirol. Seus destinos habituais eram Charlottenburg ou Schöneberg ³⁸ , e no verão ia com a família para Freienwalde, estação balneária nos arredores da cidade, um local que lhe parecia chique e cujos preços altos o faziam às vezes reclamar contrariado. Sua arte era inteiramente artesanal. É desnecessário buscar nele as grandes ideias ou uma autêntica evolução de estilo, além de sua mão que era cada vez mais habilidosa. Mas a sobriedade de sua observação, a precisão de seu traço, seu senso do engraçado e até mesmo um certo sentimentalismo criaram nele uma ligação tão profunda com o objeto de sua inspiração, Berlim, que nos 50 anos em que ele viveu ali, seus desenhos e ilustrações nos oferecem um retrato multifacetado da vida na cidade. Sejam as diversões de domingo dos pequeno-burgueses, o passeio no campo, ou a mesa de carteado no botequim, o trabalho dos artesãos, do faxineiro de chaminé, do pedreiro, do sapateiro, a atividade dos trapeiros, dos militares e
dos criados, dos janotas, dos cavaleiros de domingo ou dos músicos. Seria de se esperar que os berlinenses se orgulhassem bastante de um pintor assim, que se interessava com tanto amor e minúcia por sua cidade. Mas esse não foi absolutamente o caso. Aqui mais uma vez seu senso de “grandeza” lhes pregou uma peça. A arte de Hosemann lhes pareceu um tanto vulgar, nem elegante, nem culta o suficiente. Na época, uma das mais famosas discussões artísticas era: seria melhor pintar quadros históricos, grandes batalhas, coroações e cenas do Reichstag ³⁹ ou os chamados quadros de gênero, pelos quais eles entendiam cenas artísticas da vida cotidiana, cheias de excentricidade e cerimônia, sem retratar imperadores ou militares, mas muito mais monges, tiroleses de opereta e janotas. Pintava-se, por exemplo, o gordo monge sorrindo com o copo de vinho erguido e o raio de sol brilhando através do copo. Ou uma jovem senhorita sendo surpreendida enquanto lê a carta de amor enviada por seu noivo, que espia por uma fresta da porta. Era esse tipo de troço que empolgava os berlinenses naquela época, pelo menos aqueles que se consideravam grande coisa. Graças a Deus havia outros também. As pessoas do povo e as crianças. Foi para eles que Hosemann trabalhou. E exatamente este seu amor pela gente e pelos berlinenses ele compartilhava com o verdadeiro descobridor do povo e do dialeto de Berlim na literatura, o célebre Adolf Glassbrenner. Em 1834 surgiu a primeira publicação em que os dois trabalharam juntos: um caderno da coleção “Berlim, o que ela come e bebe” ⁴⁰ . Ela foi imitada por toda uma série de publicações semelhantes, que naquela época eram vendidas nas papelarias como são hoje as revistas ilustradas. Essas brochuras, fosse seu nome “Berlim pitoresca” ou “Os soldados alegres”, “Berlim bisbilhoteira” ou “Cenas cômicas do tribunal”, eram apenas bem menores. Podiam facilmente ser colocadas no bolso sem precisar dobrar a capa, tão bonita e colorida. Mas estas publicações tinham uma particularidade. Talvez vocês saibam o que se quer dizer quando se fala no Vormärz. Foi o período anterior à Revolução de Março de 1848. Como se sabe, no início das guerras de libertação, o rei da Prússia havia prometido o sufrágio universal, e mais tarde não cumpriu esta promessa. Ao invés disso instalou-se a chamada “reação”, quando todos os escritores eram investigados de forma infernal, para que nada contra o governo fosse escrito. Mas a cada vez que a história vê ressurgir esses tempos de censura, em que tudo que é impresso é rigorosamente controlado e, caso não sirva ao poder, é proibido; aqueles que não se deixam curvar sempre encontram formas de dizer livremente o que pensam, de uma forma que sejam compreendidas por todos, sem que a polícia possa fazer nada contra elas. Uma destas pessoas foi Glassbrenner. Diz ele: Tudo nos separa da maior parte do povo: nossa cultura e nossos costumes esquisitos, o dinheiro, a língua, as roupas. Mas se não nos unimos à gente do povo, se não nos colocamos como iguais, então não há liberdade possível. E para mostrar a força que está guardada no povo e em sua língua, o quanto se pode aprender com ele e, sobretudo, sua capacidade de resistir à opressão, foi que Glassbrenner criou seus famosos personagens. O inspetor de esquina Nante, que representa o proletariado; Buffay, o típico burguês berlinense que vive de renda, mas que no fundo, quando se trata de coisas realmente importantes, pensa da mesma forma que Nante. Assim, boa parte
da burguesia berlinense irá juntar-se mais tarde aos trabalhadores durante as manifestações de 1848. Era assim que pensava Glassbrenner, com quem Hosemann colaborou. Seu temperamento era o de um homem prudente, um pequeno-burguês. Eis aqui, por exemplo, o que ele escreveu a um amigo sobre os distúrbios de 1848: Meu caro Schulz, vou me ater aqui aos acontecimentos, tal qual eu os vivenciei, sem me permitir qualquer julgamento. E lhe peço também que evite qualquer julgamento ou comentário que não seja sobre os fatos. Quanto ao resto, cada um de nós saberá fazer ideia do que se passa. Entendido? Essa era a atmosfera sonsa e temerosa que pairava sobre Berlim na época, e um pouco assim também pensava o nosso Hosemann. Mas ele só precisava se preocupar em criar suas ilustrações. E no fundo ele estava bem de acordo com Glassbrenner, quando este mostrava através do seu inspetor Nante, como o berlinense não se deixava impressionar facilmente e era capaz de se impor, mesmo diante de uma respeitosa autoridade. E para encerrar, ao invés de ficar aqui tentando descrever um quadro de Hosemann, prefiro ler um trecho de uma audiência em que o inspetor Nante é interrogado pelo escrivão. “ Aproxime-se , diz o escrivão. Perfeitamente , diz Nante, tirando o cabelo da frente do rosto e assumindo uma postura imponente. Ao seu inteiro dispor, senhor tribunal. Escrivão: Como o senhor se chama? Nante: Você. E: Como assim? N: Ué, eu me chamo você, eu não vou me tratar por senhor. E: Seu nome, eu quero saber seu nome. Não é inspetor Nante? N: Ah, sim, e com muito orgulho. Não vá o senhor fingir que não me conhece. O Nante é o Nante, e o único que pode falar isso de si mesmo! E: Nascido. N: Ah, sim, nascido. Nascido e crrescido. O senhor desculpe às vezes esse sotaque meio francês quando eu falo. E: Eu estou perguntando onde o senhor nasceu. N: Ah, claro, onde! Aqui na rua dos Cavalos, só que eu nasci gente. Antes de nascer eu morava dentro da minha mãe. Depois eu me mudei e gritei, porque eu tinha duas pernas. E depois ganhei den's. E: Dez pernas?
N: Dent's, os dent's, olha aqui. Isso é que é azar, o sujeito tem os dent's e não tem o que comer. E: Religião? N: Religião? E: Qual é a sua religião? N: Ah, sim, eu pensei que a gente tinha que repetir o senhor. Protestante. E: “O senhor já foi interrogado?” N: Nãão! Deus me livre! Duas vezes! Uma vez, quando eu estava sem emprego, me interroguei se eu achava que podia viver de brisa, e logo depois eu estava aqui num interrogatório, porque peguei dois pãezinhos no padeiro sem avisar. Ah, sim, e a terceira vez estive aqui também pra interrogatório, porque achei uma ferradura. E: Pra interrogatório porque achou uma ferradura? O senhor está maluco? N: Maluco? Deus me livre, não tão maluco quanto o senhor... pensa que eu sou. Eu achei uma ferradura na rua e quando eu vou olhar em casa, tinha um cavalo por cima. Foi um azar danado. E: Já basta, já basta. N: Perfeitamente (vira-se e faz menção de sair). E: Pare, nós ainda não terminamos! N: Ah, o senhor falou “basta”, eu pensei que já tinha cansado da minha conversa. Se não é assim, tanto melhor. Assim vou lhe contar mais uma ou outra história. O senhor tem cara de quem gosta de história triste, então vou lhe contar uma que aconteceu comigo mesmo, minha mulher e os três filhos. Foi o dia que despejaram a gente da casa, só porque a gente não tinha três Taler pra pagar o aluguel. E: É realmente muito triste, mas agora eu não tenho tempo para ouvir suas histórias. Pode se estender demais e eu não posso perder tempo com isso. N: Se estender demais? Não, eu não sei me estender demais, não. Eu fico estendido no espaço certinho que a natureza me deu. Não tem regulamento pra isso. Bom, então vou pra casa almoçar. Aqui quem regula é o senhor. Então até à vista, senhor regulador. Ao invés do inspetor Nante desenhado, temos ele aqui em cena. E não faz mal se ao final Hosemann tenha se escondido um pouco por trás de Glassbrenner. Pois quando voltarmos a falar de Glassbrenner, Hosemann certamente dará o ar de sua presença de novo. 36 Antiga moeda alemã.
37 Personagens infantis de Wilhelm Busch que viviam realizando incríveis travessuras. Suas histórias foram traduzidas para o português por Olavo Bilac como Juca e Chico e estão disponíveis em página da Unicamp: h ttp:// www.unicamp.br/iel/memoria/Ensaios/LiteraturaInfantil/jucaechico/ jcindice.htm 38 Bairros de Berlim não muito distantes do Tiergarten, o parque central da cidade. 39 Prédio sede do império, hoje do parlamento alemão. 40 No original, Berlin, wie es ist und trinkt (Berlim, como ela come e bebe).
Visita à fabrica de latão Imagino que se alguém escutasse no rádio algo como “Visita à fábrica de latão”, iria pensar: “Mais uma daquelas ideias idiotas. É impossível descrever um lugar como esse, é preciso ir lá e ver de perto”. Se o nosso ouvinte ainda não girou o botão desligando o rádio, peço a ele um pouco mais de paciência, pois é exatamente a ele que vou me dirigir. Uma coisa devo admitir logo de início: só é possível descrever uma pequena parte do que se vê. Ainda não nasceu o escritor ou poeta capaz de descrever, de forma que o leitor possa imaginar do que se trata, um cilindro laminador ou uma tesoura rolante, uma prensa de extrusão ou um laminador a frio de alta potência. Talvez um engenheiro pudesse. Mas ainda assim, ele faria um desenho. – E o observador? Penso aqui em um de vocês, por exemplo, que chegasse à fábrica de latão Hirsch-Kupfer em Eberswalde e ficasse diante de uma destas máquinas que têm nomes quase impronunciáveis O que ele veria ali? Muito simples: nem mais nem menos do que eu posso descrever aqui com palavras. Ou seja, nada. Pois qual seria o interesse em descrever estas máquinas por fora? Elas não são feitas para serem vistas, a não ser por alguém que, conhecendo perfeitamente seu mecanismo, seu desempenho e sua finalidade, saiba exatamente o que precisa verificar ali. Só podemos compreender exatamente o que se passa no exterior, se conhecemos o interior; isso vale tanto para as máquinas quanto para os seres vivos. Mas vocês não vão conhecer uma máquina por dentro ficando simplesmente parados na frente dela. Vamos imaginar que vocês estivessem em um daqueles pavilhões gigantescos: já seria interessante ver como a mistura que será transformada em latão é despejada nos fornos, como as placas de latão vão saindo dali, como as chapas entram no laminador, grossas e curtas, e saem finas e longas, como os pequenos cilindros redondos são introduzidos automaticamente na prensa e saem do outro lado na forma de longos tubos bem acabados. Tudo isso vocês iriam ver. Mas não veriam como tudo
funciona, e com o barulho monstruoso das máquinas trabalhando, das gruas se deslocando e das cargas caindo ao chão, ninguém poderia explicar a vocês. Por isso pode-se dizer: quanto mais se quer familiarizar-se com os diversos processos de uma fábrica tão colossal e ter a chance de compreender um pouco do que se passa ali, se um dia há a oportunidade de uma visita, tanto mais se deve recuar a vista. Vamos fazer como se nossos poucos minutos no rádio fossem a gôndola de um balão, da qual captamos lá de cima um panorama do funcionamento da fábrica de latão Hirsch-Kupfer, selecionando os pontos centrais que a nossa inteligência deve primeiramente abranger, para então alcançar uma visão do todo. Ainda assim, nossa dificuldade já será bem grande. Pois esses pontos são vários. Para começar temos a ciência, tudo o que a física e a química têm a nos dizer sobre o latão. O que é o latão? Qual o seu ponto de fusão? Qual o seu grau de dureza? Qual o seu coeficiente de dilatação? Qual o seu peso específico etc.? Todas estas questões, sem exceção, têm importância para o serviço técnico de uma fábrica de latão. Ou nós podemos olhar a coisa por outro lado: O que uma fábrica como essa precisa produzir para alcançar boas vendas? O que é fabricado ali? Nenhum daqueles utensílios que nos parecem familiares, por exemplo. Nada mais do que se fabricava há 200 anos, quando a fábrica de latão foi fundada pelo grande príncipe. ⁴¹ Nem chaleiras, nem ferragens, nem luminárias, nem talheres. Tudo isso é feito exatamente nas fábricas especializadas para quem a Hirsch-Kupfer fornece seu material. Ou seja: aqui são fabricados os produtos semifinalizados: chapas, lâminas, tubos, barras, fios dos mais diversos comprimentos, estruturas e formas, que serão transformados por sua vez em outras fábricas de artigos de metal ou empresas do ramo da eletrotécnica. – Ou um outro ponto central: como nasce uma gigantesca empresa como esta, que possui aproximadamente 2000 trabalhadores e cerca de 400 funcionários em sua fábrica? Claro que não foi da noite para o dia. E a Hirsch-Kupfer, a maior fábrica da Europa, é também uma das mais antigas que existem. Sua história remonta ao ano de 1697 e contá-la seria, por si só, um capítulo à parte. Mas minha intenção no momento é apenas que esta visão geral das inúmeras ramificações, condições e dificuldades de uma fábrica gigantesca como esta cause o mesmo espanto que vocês teriam, se por engano, entrassem em um de seus barulhentos pavilhões. Temos que seguir assim com os pontos centrais para tentar abranger o que talvez, se poderia entender como o todo. Por exemplo, a questão do consumo de energia. De onde vem a enorme quantidade de energia que move dia e noite uma usina metalúrgica? Da central elétrica de Brandenburgo ⁴² , situada a apenas um quilômetro da fábrica de latão. Só com energia elétrica, a fábrica tem uma despesa mensal de aproximadamente 100.000 marcos. Naturalmente a central elétrica tem uma tarifa especial para um consumidor desta grandeza. E ali também tudo é programado nos seus mínimos detalhes, tudo é calculado com a maior exatidão possível. Pois uma fábrica como essa deve se planejar para ter um consumo de energia constante, dia após dia, na verdade hora após hora, pois a central elétrica cobra um preço mais alto se o consumo é instável. Eu poderia seguir aqui um bom tempo enumerando uma série de pontos, e todos eles seriam considerados entre os mais essenciais e necessários. Ainda não dissemos uma palavra sobre os trabalhadores, sobre sua formação, sobre os complicados cálculos que definem seus salários. Também não
dissemos nada sobre o planejamento, sobre as tarefas da direção da empresa, que precisa não só organizar o processo de produção, mas também manter um olho atento no mercado mundial, cuidar para não comprar materiais por um preço muito elevado e também ir em busca de clientes e encomendas o suficiente para manter a fábrica em pleno funcionamento, além de estar atenta para que o estoque não seja muito grande, pois o custo disto são os juros, e nem muito pequeno, para que os pedidos urgentes possam ser atendidos prontamente. Agora que vocês já sabem o quanto se teria para falar e perguntar, e se vocês lembrarem que temos apenas 20 minutos para nossa transmissão, vocês vão concordar que não há o menor sentido em calçar botas de sete léguas para sair correndo, e que é melhor nos determos por mais tempo em algumas estações. Eu sugiro, primeiramente, o pavilhão de fundição. – O que é o latão? Latão é uma liga feita de cobre e zinco. Alguns de vocês devem conhecer a diferença entre uma ligação e uma liga. Toda ligação química entre dois elementos é determinada pelo seu peso atômico. Vocês aprenderam isto na escola como a Lei de Dalton. A liga pode ser realizada por meios físicos, no caso a fusão, conforme as mais diversas proporções. A proporção média de cobre e zinco para a produção de latão é de 63/37 em chapas e 58 Cu/42 Zn para barras. Existem diversos tipos de latão, que são fundidos em diferentes fornos – 23 no total. A escolha depende da função à qual o metal se destina. Mas não se trata apenas de pesar determinada quantidade de cobre e zinco e então despejar no forno. Se o procedimento fosse realizado dessa forma, o latão produzido teria forma irregular e péssima qualidade. Isso porque o zinco derrete a uma temperatura de aproximadamente 600° e o cobre aproximadamente 1.100°. As partes sólidas de cobre ficariam boiando no zinco derretido por um longo tempo e, mesmo se finalmente chegassem a derreter, se dissolveriam nele de forma irregular. Por isso, acrescenta-se uma massa feita de restos de latão velho, que tem a função de mediar e equilibrar o processo de mistura. Esses restos derretem a uma temperatura aproximada de 900° e assim mantêm o processo constante. Não faz muito tempo, o peso máximo de uma operação como essa não passava de 30 quilos. Mas hoje, com os novos fornos que a usina colocou em funcionamento em 1920, pode-se produzir blocos de até 600 quilos. Quando a fundição é concluída, os recipientes – ou moldes – se abrem como um livro e torna-se possível ver o latão depositado em seu interior. Mas ele ainda não é amarelo e luminoso, seu aspecto não desperta muita atenção, pois sobre ele ainda há uma película escura e granulada que deve ser raspada. Em seguida faz-se uma marca sobre cada bloco, indicando sua composição e o número do forno em que foi produzido. Antes de continuar a ser processado, ele passará por testes de laboratório que medirão sua pureza, resistência, ductilidade, dureza, elasticidade etc. Todos estes controles são realizados com aparelhagem especial: uma máquina de tração de 40 toneladas, por exemplo, mede o ponto de ruptura das placas e tubos. Só ali no laboratório pode-se constatar como são diferentes os diversos tipos de latão, pois no microscópio cada um oferece uma imagem diferente, conforme foi fundido, laminado ou calcinado. E assim temos o nosso latão. Mas nós estamos apenas no começo deste formidável processo de produção. Agora se trata de transformar os blocos massivos, os cilindros pesados provenientes da fundição, em chapas de
espessura milimétrica, fios da finura de um cabelo e lâminas estreitas. Estes produtos de comprimento longo só podem ser moldados em espaços muito mais amplos que aqueles que vemos normalmente nas oficinas de montagem de equipamentos. Antigamente a solução era ir construindo uma oficina atrás da outra. Mas quando, durante a guerra, a empresa decidiu ampliar e reformar a usina completamente ficou claro de antemão e foi estabelecido que todo o processo de laminação deveria ser realizado numa única área. E o pavilhão de laminação, com 215 metros de extensão, entrou em funcionamento em 1920. A história dessa obra foi uma sucessão ininterrupta de dificuldades. Todas as sondagens efetuadas para verificar se o solo era capaz de sustentar um prédio daquele tamanho, além do peso considerável das máquinas, revelavam a existência de cursos d'água subterrâneos, e a única alternativa era assentar bem fundo as colunas metálicas e os pedestais das máquinas em enormes bacias de concreto, totalmente vedadas. Foi necessário então determinar com precisão qual o local de cada prensa, cada laminador, antes de se construir o pavilhão. E como os riscos inevitáveis de um empreendimento dessa natureza impediam a montagem de qualquer estrutura elétrica na superfície do terreno, este planejamento anterior à obra deveria incluir também os circuitos de cabos. Um plano de circuito de cabos para o mesmo terreno e a mesma fábrica de latão que, há 150 anos, vivia da produção de carvão vegetal, utilizado pelos carvoeiros nas carvoarias de Eberswalde. Vamos nos despedir agora do clarão das chamas nos fornos de fundição e das montanhas douradas dos dejetos de latão, para adentrar o pavilhão de laminação. Tudo aqui é mais cinza e monótono. E por outro lado mais movimentado e surpreendente, se prestarmos atenção a tudo que desaparece dentro das máquinas para sair inteiramente transformado na outra extremidade. As prensas hidráulicas investem com mil toneladas sobre um cilindro curto e espesso de latão, fazendo surgir do outro lado um feixe de tubos incandescentes que mais parecem tripas de um animal. Os operários estão a postos na saída, com o alicate nas mãos, para colocá-los sobre uma bancada de 10 a 15 metros de comprimento, que se parece a um canal. Em seguida, as peças são mergulhadas num banho de desoxidação, e este é um dos estágios em que se pode ver o antigo trabalho manual lado a lado com o novo e automatizado, e traçar uma comparação. Alguns de vocês já devem ter ouvido falar em racionalização. Trata-se do aprimoramento da técnica no processo de trabalho, tornando-o mais barato através da diminuição da mão de obra e de um tempo de produção mais curto. Quanto maior e mais moderna a empresa, tanto melhor ela serve de exemplo para se entender o que significa racionalização. Atualmente a fábrica dispõe de 30 fornos para o reaquecimento do metal resfriado na laminação, e este tipo de forno tem o apelido de 'resmungão'; pois bem, para operar os 30 fornos são necessários hoje dois trabalhadores, enquanto que na antiga fábrica eram necessários não menos que 28 trabalhadores para operar 15 fornos. Esses fornos 'resmungões' são essenciais, pois os tubos e chapas saem do processo de laminação bastante duros e precisam ser reaquecidos constantemente para poderem ser remodelados. Vocês podem fazer uma ideia do que são os laminadores, que aqui estão dispostos em três fileiras, se eu disser que só um deles custou 500.000 marcos e que sua montagem levou oito semanas. Se vocês um dia tiverem a oportunidade de visitar esta fábrica de latão ou uma destas empresas gigantescas, é aconselhável dormir bem no dia
anterior, manter os olhos bem abertos e acima de tudo, não ter medo. Isto é fundamental, senão se pode tropeçar nos trilhos e peças de fábrica que se espalham por todo o chão, ou passar o tempo olhando para cima, achando que um dos blocos de várias toneladas transportados pelos guindastes pode voar em sua cabeça, e sem prestar atenção ao trabalho e à organização rigorosa do pavilhão, onde cada trabalhador tem seu lugar definido, cada máquina tem sua espécie de pequeno escritório, de onde o responsável a dirige com o olhar fixo sobre os medidores de pressão, temperatura e corrente elétrica – em suma, senão tudo parecerá um emaranhado impenetrável, um bando de gente trabalhando de forma confusa. E quando, um pouco aturdidos com tanto barulho, com tantas impressões fortes, algumas compreensíveis, outras não, vocês então saírem dali e pensarem, ah, eis aqui a natureza livre e tudo aqui não tem nada a ver com o trabalho e a barulheira lá de dentro, então o diretor da fábrica – que eu espero que vá explicar tudo a vocês com a mesma clareza que me explicou – revelará a vocês que o destino desta fábrica está em grande parte ligado a esta paisagem. Pois este destino depende das vias de acesso para o transporte. A fábrica de latão jamais poderia ter se tornado o que é hoje sem o canal Finow, hoje ultrapassado, ou o novo e moderno canal Hohenzollern, por onde chegam suas matérias-primas, o cobre do Chile e da África e os restos de latão de fábricas alemãs, e por onde seus produtos são embarcados para a Índia, China e Austrália via Hamburgo. Até o momento, a área entre a fábrica de latão e o canal Hohenzollern ainda está livre. Mas como nos últimos dez anos as indústrias se expandiram tanto quanto antigamente o fariam em cem anos, é possível que quando um de vocês um dia entrar na fábrica, seja como observador, trabalhador ou engenheiro, possa visitar novos pavilhões e oficinas, espelhados nas águas do canal Hohenzollern. 41 No original Kurfürsten , Príncipe Eleitor que possuía direito a voto para a escolha do imperador. 42 No original, Märkisches Elektrizitätswerk , empresa responsável pelo fornecimento de energia elétrica na região nordeste da Alemanha na primeira metade do século XX.
Os “Passeios pelo Marco de Brandenburgo” de Theodor Fontane Alguns de vocês devem saber, mas muitos vão se assustar se eu disser: as belezas do Marco de Brandenburgo foram descobertas pela juventude berlinense. Mais especificamente pela sua vanguarda, os Wandervögel ⁴³ . O movimento dos Wandervögel está perto de completar 25 anos, e faz aproximadamente o mesmo tempo que os berlinense pararam de se envergonhar da região que eles chamavam “a caixa de areia do Bom Deus”. Mas ainda levou um tempo até eles passarem a amar o lugar. Afinal, para amar é preciso conhecer. E no século passado isso era bastante raro.
Antigamente apenas trabalhadores saíam em caminhadas, ou então pessoas finas, mas estas iam para os Alpes. Quase ninguém pensava em fazer caminhadas na Alemanha, muito menos em Brandenburgo. Até que por volta de 1900, surgiu entre os estudantes de Berlim este grande e significativo movimento, o Wandervogel . Cansados não só da cidade, mas também dos cerimoniosos passeios dominicais com seus pais, eles não queriam mais trilhar os mesmos caminhos batidos, mas sim encontrar-se com seus companheiros em meio à natureza. Não tinham dinheiro, então era preciso ficar pelas redondezas, e afinal, o único dia livre era o domingo. Mas se o objetivo era aproveitar e desfrutar de verdade deste curto espaço de tempo, então o jeito era encontrar um lugar onde se pudesse estar a salvo dos pequeno-burgueses de Berlim. Ou seja, lugares onde não passasse nenhuma estrada de ferro e onde não houvesse nenhum hotel. E vocês sabem que não faltam lugares recônditos em Brandenburgo, mesmo hoje em dia, quando os trens-paradores vão cercando cada vez mais os campos. Mas antes da estrada de ferro e bem antes dos estudantes, pintores e poetas já amavam o Marco de Brandenburgo. Os mais célebres pintores de Brandenburgo foram, no século passado, Caspar David Friedrich e Blechen. Entre os poetas, porém, ninguém se encantou mais por esta paisagem do que Theodor Fontane, que em 1870 publicou seus “Passeios pelo Marco de Brandenburgo”. Estes livros não são uma mera descrição de paisagens ou o inventário dos castelos da região, mas estão sim cheios de histórias, anedotas, antigos documentos e biografias de estranhas personalidades. Vamos deixar o próprio Fontane nos contar o que ele pretendia com seus passeios e como ele passou a conhecer tão bem Brandenburgo. “Só a distância é capaz de nos ensinar o valor de nossa terra natal.” Eis aí algo que aprendi por experiência própria, e as primeiras ideias para estes “Passeios pelo Marco de Brandenburgo” me ocorreram em minhas andanças pelo estrangeiro. A ideia se fez desejo, e o desejo se fez ação. Aconteceu na Escócia, no condado de Kinross, onde o lago Leven é o lugar mais belo. No meio do lago há uma ilha, e no meio da ilha, quase que oculto pelos freixos e pinheiros negros, ergue-se um antigo castelo Douglas, o Lochleven Castle, celebrado em baladas e lendas. Regressando de barco, os remos velozes nos afastavam da ilha, que se tornava um traço até desaparecer completamente, e apenas a torre de vigia flutuava por um tempo diante de nós sobre a água, sustentada por nossa imaginação, até que subitamente nossa fantasia, recorrendo às suas lembranças, substituía as imagens presentes por imagens mais antigas. Eram lembranças da terra natal, de um dia inesquecível. Era a imagem do castelo de Rheinsberger que, tal qual uma miragem, se sobrepunha ao lago Leven, e antes que nosso barco alcançasse as areias da margem, ocorreu-me a pergunta: Mesmo sendo tão bela aquela imagem do lago Leven com sua ilha e o castelo Douglas, teria sido menos belo o dia em que atravessavas de barco o lago Rheinsberger, tendo em volta as criações e lembranças de uma época de plenitude? E eu respondi: não. Os anos que se seguiram àquele dia no lago Leven levaram-me de volta à terra natal e as decisões tomadas naquela ocasião não foram esquecidas. Atravessei o Marco de Brandenburgo e encontrei-o mais rico do que ousava esperar. Cada palmo de terra ganhava vida e produzia formas, e caso minhas descrições não sejam satisfatórias, terei que dispensar a desculpa de que estaria enfeitando ou dourando algo que é pobre. Pelo contrário, deparei-me com uma riqueza da qual, tive a impressão que jamais, nem de longe,
poderia me sentir senhor. E passei a recolher tudo, despreocupado, não como aquele que parte para a colheita com a foice em punho, mas como alguém que passeia pelos campos e colhe com fartura o trigo. Eis assim o prólogo de Fontane. Vejamos agora como ele descreve um dos pequenos lugarejos de Brandenburgo, que parece não despertar qualquer interesse. Mas na verdade não é possível descrever uma coisa que apenas vimos e sobre a qual não sabemos nada. Nem sempre é preciso conhecer aquilo como um especialista. O pintor que pinta uma macieira, por exemplo, não precisa saber qual a variedade de maçã que a árvore dá. Por sua vez, ele sabe exatamente como a luz incide atravessando os diversos tipos de folhas. Como a árvore muda de aspecto nas diferentes horas do dia. Se as sombras que se estendem sobre a relva, as pedras e o solo da floresta são densas ou diáfanas. São coisas que na verdade também vemos, mas que só se pode ver, quando se tem experiência, ou seja, quando já se viu o bastante e com um olhar inteligente. Esse é o caso em Fontane. Ele não nos oferece descrições muito líricas da paisagem, nem delírios ao clarão da lua, nem belos discursos sobre a solidão da floresta ou coisas do gênero, que por vezes são o tormento de vocês na escola. Fontane nos diz simplesmente o que ele sabe. E ele sabia muito; não só sobre reis e proprietários de castelos, florestas e lagos, mas também sobre a gente simples. Como elas vivem e do que vivem, quais as suas preocupações e seus projetos. A maioria de vocês conhece Caputh. Então vocês mesmos poderão julgar a descrição que vou ler agora. Caputh é uma das maiores vilas do Marco, uma das mais longas, certamente; sua extensão chega a quase uma milha. Seu nome revela que ela nasceu como uma vila dos sorábios. ⁴⁴ Há muitas hipóteses sobre a origem deste nome, tantas que não se pode ter certeza sobre nenhuma delas. Por outro lado não há qualquer dúvida sobre as condições de pobreza em que viviam seus primeiros habitantes. A cidade não possuía campos e a vasta extensão de água que se estendia à sua frente, incluindo o Havel e o Schwielow, era zelosamente guardada e explorada pelos pescadores de Potsdam, conforme antigo privilégio legal que abrangia desde o médio Havel até Brandenburgo. Essa era então a dificuldade da população de Caputh; tanto a agricultura como a pesca eram-lhe interditadas. Mas a necessidade é o melhor mestre, e os habitantes desta estreita faixa à margem de um lago encontraram por fim, uma forma engenhosa de superação. Encontrou-se um expediente duplo. Homens e mulheres dividiram-se para poderem se empenhar na tarefa, de ambos os lados. Os homens se tornaram barqueiros e as mulheres passaram a se dedicar à horticultura. – A vizinhança de Potsdam e o crescimento acelerado de Berlim não só foram propícios, mas talvez tenham até mesmo gerado a transformação na vida dos caputhenses, que passaram de diaristas a barqueiros ou construtores de barcos. Em toda parte, ao longo do Havel e do Schwielow, surgiram olarias, e milhões de tijolos que durante anos eram fabricados às margens destes lagos e baías, logo exigiam o emprego de centenas de barcaças para o transporte até os mercados de Berlim. Para isso, Caputh ofereceu seus braços. Surgiu uma frota inteira de barcaças, e mais de 60 barcos, todos construídos no estaleiro da vila, que navegam neste instante pelo Schwielow, o Havel e o Spreee. O destino mais habitual é a capital. Mas uma parte sobe o Havel em direção ao Elba e mantém o tráfego com Hamburgo. – Caputh – a Chicago do lago
Schwielow – não é apenas a grande plataforma comercial dessas regiões, ou um mero ponto de partida e chegada dos distritos de tijolo Zauche e Havelland ⁴⁵ , é estação obrigatória de todo o tráfego do Havel. O desvio por Schwielow é inevitável, esta é até agora a única via navegável. Existem planos para construção de um atalho por um canal ao norte, mas nada foi realizado ainda. E assim, Caputh, que havia lançado uma frota construída com seus próprios meios, uma frota capaz de suprir a si mesma, se necessário, tornou-se o ponto de convergência de todo o comércio do lago, um porto para embarcações de outras regiões e as flotilhas de Rathenow, Plaue, Brandenburgo vêm ali jogar âncora em caso de avaria ou quando um furacão se aproxima. Mas é nos dias de festa que o ancoradouro de Caputh fica realmente animado, e a boa e velha tradição faz com que os barcos adiem sua partida. É o caso da festa de Pentecostes. Então é como se tudo coubesse ali espremido. Cerca de 100 ou mais barcos ficam ancorados dos dois lados da “boca”, os galhardetes flutuam ao vento, e do alto dos mastros, um espetáculo encantador, centenas de arbustos de maio saúdam ao longe. – Este é o lado bom da vida em Caputh; junto a ele há um lado mesquinho. Os homens têm em si a leviandade dos marinheiros, em questão de horas desaparece o fruto do trabalho de meses, e cabe às mulheres então a tarefa de reorganizar as contas, atentas aos mínimos detalhes, com mérito e uma obstinação igual à das formigas – Como já dissemos, elas são jardineiras. Cuidam do solo com tanto capricho e cultivam algumas espécies com tanta maestria, que elas, as jardineiras de Caputh, podem concorrer com suas colegas da cidade vizinha de Werder. A cultura dos morangos é inigualável. Ela se aproveita também da proximidade das duas capitais, e há pessoas simples aqui que chegam a ganhar 120 Taler em três ou quatro semanas de trabalho num pomar de meia jeira ⁴⁶ . Contudo, continuam sendo pessoas simples e em Caputh, pode-se também perceber que os cultivos mais delicados não se impõem e que 50 jeiras de campos de trigo serão sempre o que há de mais simples e de melhor. Nada mais agradável do que encontrar em um livro não só as coisas que o título promete, mas também todo tipo de coisas belas nas quais não se pensou ao se escolher aquela leitura. Pois é exatamente assim com estes “Passeios”. Fontane nos conta não apenas de Brandenburgo e de seus moradores àquela época, ele tenta imaginar também como tudo havia sido antigamente. E para isso ele partiu em busca das esquisitices e manias dos brandenburgueses. Entre as histórias mais estranhas que ele encontrou, estão as conspirações que aconteceram nesta região antes de 1800, principalmente entre os membros da aristocracia de Potsdam. Mas estas conspirações, alianças secretas, tinham como alvo não determinados indivíduos, mas sim a própria natureza. O objetivo era desvendar o mistério do ouro. Aquele que fosse capaz de produzir o ouro sintético, assim se pensava, seria o senhor de todos os mistérios da natureza. Naquela época só os homens de espírito muito sonhador acreditavam nessa possibilidade. Hoje, porém, até mesmo os grandes sábios não consideram isto totalmente impossível. Sendo que ninguém mais acredita que com isso seria possível controlar a natureza inteira. Pois nós conhecemos uma infinidade de tarefas que a técnica tem a resolver, nas quais trabalhamos incansavelmente, e cuja solução na prática é muito mais importante para nós do que a fabricação de ouro. Mas quem naquela época poderia conceber tarefas relacionadas à produção de energia, ao sistema de transportes, à transmissão de imagens
ou à produção de medicamentos sintéticos? Por isso as pessoas se interessavam tanto pela fabricação de ouro. E exatamente em Potsdam encontravam-se estas sociedades, que buscavam a pedra filosofal. Este era o nome da substância mágica capaz de produzir ouro e tornar aquele que a possuísse não só rico, mas também sábio e poderoso. Fontane nos conta sobre uma dessas sociedades. Uma carta encontrada num livro antigo, da qual leremos um trecho, descreve uma ordem que dava ao acordeon um papel de destaque em suas cerimônias: O senhor me proporcionou, assim escreve o herói e virtuose do acordeon, ao me endereçar ao Senhor N, um conhecimento muito interessante... O acordeon fez um sucesso absoluto; ele me falou também de diversas experiências bastante peculiares, o que inicialmente não compreendi muito bem. Somente a partir de ontem as coisas me pareceram bem mais naturais. – Ontem à noite partimos para sua propriedade, cujas instalações são extremamente bem acabadas, sobretudo o jardim. Inúmeros templos, grutas, cascatas, labirintos e subterrâneos etc. oferecem aos olhos tanta variedade e diversidade, que parece que estamos enfeitiçados. Apenas o muro alto cercando toda a área não me agradou, pois ele furta aos olhos a magnífica vista. – Eu tinha, por dever, trazido meu acordeon e prometido ao Senhor N tocar o instrumento por alguns instantes num determinado local que ele me assinalaria. Ele levou-me até uma sala grande na parte anterior da casa, onde eu deveria aguardar, e me deixou ali, dizendo que os preparativos para um baile e sua iluminação exigiam sua presença. Já era tarde e o sono parecia querer me surpreender, quando a chegada de algumas carruagens me interrompeu. Abri a janela, mas não consegui reconhecer nada com nitidez, e menos ainda entender o murmúrio misterioso e abafado das pessoas que chegavam. Pouco depois o sono se apoderava de mim novamente, e eu de fato adormeci. Devo ter dormido aproximadamente uma hora, antes de ser despertado por um criado, que se ofereceu para carregar meu instrumento e me pediu que o acompanhasse. Como ele andava apressado à frente e eu o seguia mais devagar, surgiu ali para mim a oportunidade de, movido pela curiosidade, acompanhar o som de um trombone que parecia vir do fundo de um porão. – Imaginem qual não foi o meu espanto quando, após descer a escada até a metade, descobri uma cripta, onde colocavam um cadáver no caixão ao som de uma música fúnebre, enquanto um homem de roupa branca, inteiramente espirrada de sangue, levava um curativo na veia do braço. Com exceção dos que estavam ali prestando assistência, todas as outras pessoas ocultavam-se em mantos negros e levavam na mão uma espada. Esqueletos amontoados uns sobre os outros na entrada da cripta e a luz proveniente das chamas que pareciam arder num álcool de vinho tornavam a cena ainda mais lúgubre. Então me apressei em sair dali para não me perder do meu guia. Ele acabava de sair do jardim, no instante em que alcancei a entrada. Tomou-me pela mão, impaciente, e saiu me puxando. – Se um dia vi algo o mais parecido com um cenário de contos de fadas, este foi o instante em que entrei no jardim. Tudo estava envolvido num fogo esverdeado; incontáveis luminárias flamejantes; murmúrio de cascatas distantes. Canto de rouxinóis, aroma de flores, em suma, tudo parecia sobrenatural e a natureza imersa em magia. Indicaramme um lugar por trás de um caramanchão, cujo interior estava ricamente ornamentado e para onde conduziram, logo em seguida, um homem
inconsciente, provavelmente aquele, cuja veia haviam aberto na cripta. Mas não posso afirmar com certeza, pois os atores estavam agora em trajes esplendorosos e encantadores em sua forma e cor, que para mim eram inteiramente novos. Imediatamente recebi o sinal para tocar. – Como, a partir de então, tive que me concentrar mais em mim mesmo do que nos outros, acabei perdendo muito do que se passou ao meu redor. Mesmo assim pude perceber claramente quando aquele homem desacordado voltava a si, menos de um minuto depois que comecei a tocar, e com grande assombro perguntava: “Quem sou eu? De quem é essa voz?” – Gritos de alegria, som de trompetes e timbales foram a sua resposta. Todos pegaram suas espadas e correram para dentro do jardim, e o que se seguiu permanece para mim como mistério. – Escrevo aqui ao senhor depois de um sono curto e intranquilo. Certamente, se ainda ontem eu não tivesse desenhado esta cena em minha lousa antes de me deitar, estaria bastante inclinado a crer que tudo não passou de um sonho. Adeus. Mas vamos agora abandonar rapidamente esta misteriosa celebração noturna para retornar à luz do dia. Vamos escutar algo sobre a inspeção realizada na região de Rathenow por Frederico o Grande, mais ou menos na mesma época em que ocorre esta história fantasmagórica – mais exatamente, em 27 de julho de 1779. Rathenow é uma área de inundações em Dosse. Foram necessários anos de trabalho até que se conseguisse tornar seca a região de brejos. 1500 colonos foram assentados ali, 25 novas vilas foram fundadas. Temos o relato com a descrição exata da visita do rei e seu alto-funcionário Fromme, que o seguia ao lado de sua carruagem, e de como o rei durante horas ficou solicitando-lhe explicações. Podemos ver que não era nada fácil responder às solicitações reais. Estando os cavalos já atrelados, deu-se prosseguimento à viagem, e como logo em seguida, Vossa Majestade passava diante dos canais que eram de minha responsabilidade, no Luch junto à Fehrbellinschen, e que haviam sido financiados pela casa real, aproximei-me a cavalo da carruagem e disse: Vossa Majestade, estes são dois canais novos, obra realizada com os auspícios de Vossa Majestade, que mantêm seca a área do Luch. Rei: Diga-me, o desvio do Luch foi útil para vocês? Fromme: Oh, sim, Vossa Majestade! Rei: Vocês criam mais gado que os seus antepassados? Fromme: Sim, Vossa Majestade, crio quarenta vacas a mais nas terras de cá, e setenta a mais juntando todas as terras. Rei: Está bem. Alguma epidemia atingindo o gado aqui na região? Fromme: Não, Vossa Majestade! Rei: E já houve epidemia antes? Fromme: Sim!
Rei: Basta usar sal-gema com consciência, então não haverá mais epidemia. Fromme: Sim, Vossa Majestade, eu uso; mas o sal de cozinha faz praticamente o mesmo efeito. Rei: Não, não acreditem nisso! O importante é não moer o sal-gema, e sim pendurá-lo no gado para que ele possa lamber. Fromme: Sim, assim será feito. Rei: Há outras melhorias a serem feitas aqui? Fromme : Oh, sim, Vossa Majestade. Veja o senhor aqui a Lagoa de Kremmen. Se parte dela fosse aterrada e canalizada, Vossa Majestade ganharia 1.800 jeiras de pastos, onde se poderia assentar colonos, além de tornar toda a região navegável, o que seria bastante providencial para a cidadezinha de Fehrbellin e a cidade de Ruppin; além do que, muita coisa poderia ser transportada por vias fluviais de Mecklenburgo a Berlim. Rei: Posso acreditar! Mas o que seria de muito proveito para o senhor, seria talvez a ruína de tantos outros, ao menos dos proprietários de terra, não é verdade? Fromme: Que Vossa Majestade possa me perdoar: as terras fazem parte das florestas reais e não possuem nada além de bétulas. Rei: Oh, nada além de bétulas? Então se pode fazer! Só uma coisa, faça bem as suas contas, os custos não devem ultrapassar o lucro previsto. Fromme: Os custos certamente não irão ultrapassar o lucro previsto! Vossa Majestade pode estar seguro de que irá ganhar 1800 jeiras sobre o lago, o que significaria 36 colonos, cada um com 50 jeiras. E se cobramos um pequeno e tolerável imposto sobre a madeira flutuável e os barcos que atravessam o canal, pode-se ter um bom ganho com os juros. Rei: Bom, diga isto ao meu conselheiro Michaelis! O homem entende da coisa, e eu aconselho ao senhor que o procure para todas as questões e quando souber onde os colonos devem ser assentados. Eu não faço questão de uma colônia inteira logo de início, se forem apenas duas ou três famílias, o senhor pode arranjar as coisas com ele. Fromme: Assim será feito, Vossa Majestade! Quem ouviu essa conversa tem na verdade diante dos olhos um retrato da paisagem que se estende ali tal qual uma toalha de mesa cintilante depois de recém-lavada. Há algo de extraordinariamente infinito na paisagem do Marco de Brandenburgo. Sua expressão clara é a sucessão interminável de vilas e povoados. A areia e o solo de calcário argiloso não toleram nenhuma forma acentuada, embora, às vezes, a presença de gargantas íngremes e barrancos abruptos cause admiração. Mas a planície, que se estende até o horizonte como um mar cinza-esverdeado com seus bosques de pinheiros sobressaindo em meio a vastos campos, é o que há de mais belo na paisagem de Brandenburgo. Ela é tão tímida, delicada e discreta, que às vezes, diante
do sol que se põe entre os pinheiros, poder-se-ia pensar que se está no Japão, ou às vezes, nas montanhas de calcário de Rüdersdorf, até que os nomes das vilas nos chamem de volta à realidade. Fontane enfileirou o nome dessas vilas em alguns versos ligeiros e claros, com os quais vamos encerrar hoje. E às margens desse tapete em flor sorriem todas as vilas, que mal sei de cor: Linow, Lindow, Rhinow, Glindow, Beetz e Gatow, Dreetz e Flatow, Bamme, Damme, Kriele, Krielow, Petzow, Retzow, Ferch am Schwielow, Zachow, Wachow e Groß Behnitz, Marquardt-Uetz an Wüblitz-Schlänitz, Senzke, Lentzke e Marzahne, Lietzow, Tietzow e Reckahne, E para encerrar a dança Ketzin, Ketzür e Vehlefanz. ⁴⁷ 43 Em alemão, Pássaros migratórios , movimento fundado em 1896 por jovens estudantes de Berlim, incentivando uma volta à natureza através de atividades como caminhadas e acampamentos, em oposição ao contexto de crescente industrialização das cidades. 44 No original, wendisch, outra designação para o povo eslavo-ocidental que vive na Alemanha nos estados orientais da Saxônia e Brandenburgo. 45 No original, Ziegeldistrikte , distritos em que era proibida a construção de novas casas de madeira. 46 No original, Morgen , medida equivalente a uma área entre 25/34 hectares na Alemanha. 47 Trecho do poema Havelland, região situada ao oeste de Berlim, assim chamada em referência ao rio Havel – o maior afluente direito do rio Elba – e aos seus cursos d'água secundários.
Processos contra bruxas A primeira vez que vocês ouviram falar de bruxas foi na história de João e Maria. E no que foi que vocês pensaram então? Numa mulher malvada, perigosa, que mora sozinha numa floresta e de quem é melhor a gente nem passar perto. Com certeza vocês nunca se deram ao trabalho de pensar de onde vem a bruxa, o que ela faz ou deixa de fazer, o que ela acha do diabo ou do bom Deus. E igual a vocês, durante séculos as pessoas também pensaram assim sobre as bruxas. Da mesma forma como as crianças acreditam nos contos de fadas, assim também as pessoas geralmente acreditavam nas bruxas. Mas tão pouco as crianças – mesmo sendo ainda pequenas – pensam em levar a vida conforme os contos de fadas, assim também as pessoas durante aqueles séculos nem de longe pensariam em trazer a crença nas bruxas para o seu dia-a-dia. Para elas bastava se proteger das bruxas com simples amuletos, com uma ferradura sobre o portal, com a imagem de um santo ou com dizeres mágicos que levavam junto ao peito sob a camisa. Assim era na Antiguidade, e com a chegada do Cristianismo a situação não mudou muito, ao menos não mudou para pior. Pois o Cristianismo se opunha à crença no poder do mal. Cristo havia triunfado sobre o demônio, que havia descido ao inferno, e seus seguidores não tinham porque temer os poderes do mal. Esta era pelo menos a crença cristã mais antiga – certamente havia também na época mulheres de má reputação, mas elas eram geralmente sacerdotisas, deusas pagãs; e o povo não confiava muito no poder de suas feitiçarias. Elas eram antes alvo da compaixão de todos, pois o diabo zombava tanto delas, que elas atribuíam a si mesmas poderes sobrenaturais. E como tudo isso se transformou completamente ao longo de algumas poucas décadas, por volta, aproximadamente, do ano 1300 depois de Cristo, isto com certeza ninguém saberá explicar a vocês. Mas uma coisa é certa: depois que a crença nas bruxas andou misturada a todas as outras superstições durante séculos, sem causar maiores ou menores danos do que as demais, começou-se na metade do século XIV a farejar em toda parte em busca de bruxas e suas feitiçarias e quase em seguida, deu-se início em toda parte à perseguição a elas. De uma hora para outra surgiu uma verdadeira doutrina sobre tudo o que se referia às bruxas. De repente todos queriam saber o que elas faziam, quando se reuniam, que tipos de feitiçarias eram capazes de realizar e a quem elas eram dirigidas. Como se chegou a isso, talvez jamais compreenderemos inteiramente. E mais espantoso ainda é o quão pouco sabemos sobre as razões desta mudança. A maioria de nós imagina que a superstição geralmente é coisa ligada às pessoas mais simples e que elas acreditam sim, firmemente naquilo tudo. A história da crença nas bruxas nos mostra que a coisa nem sempre foi assim – muito pelo contrário. O próprio século XIV, quando esta crença mostrou sua face mais assustadora e perigosa, foi a época de um grande avanço nas
ciências. As Cruzadas haviam começado: com elas foram trazidas para a Europa as mais modernas doutrinas científicas, sobretudo as doutrinas das ciências naturais, vindas do Mundo Árabe, que naquele tempo estava muito à frente das outras nações. E por mais improvável que possa parecer, esta nova ciência da natureza falava amplamente em favor da crença nas bruxas. Mas aconteceu assim: na Idade Média, a ciência puramente descritiva ou matemática, que nós hoje chamamos de teórica, ainda não estava separada da ciência aplicada, ou da técnica, por exemplo. Acontece que esta ciência aplicada, por sua vez, era naquela época o mesmo que bruxaria, ou de todo modo, algo muito parecido. O que se sabia sobre a natureza era muito pouco. O estudo e a utilização das suas forças ocultas eram vistos como bruxaria. Essa bruxaria, contudo, era permitida, com a condição de que não fosse utilizada para o mal, e era chamada de Magia Branca, em contraste com a Magia Negra. Quando então se descobria algo novo sobre a natureza, isto logo era direta ou indiretamente revertido em favor da crença na feitiçaria, na influência dos astros, na arte de fabricar ouro e outras crenças. Só que o exercício da Magia Branca acabou por aumentar também o interesse pela Magia Negra. Mas a doutrina da natureza não foi a única entre as ciências a favorecer a terrível crença nas bruxas. A crença na Magia Negra e a sua prática acabou criando para os filósofos, ou seja, naquela época só os padres, uma série de questões que hoje em dia não somos capazes de entender ao certo – ou se chegamos a compreender, nos causam arrepios. Assim o que se queria acima de tudo era deixar bem clara a diferença entre os encantamentos realizados pelas bruxas e a feitiçaria usada para o mal. Que todos os feiticeiros do mal eram, sem distinção, hereges, ou seja, que eles não acreditavam em Deus, ou pelo menos não da forma correta, disto já se tinha certeza há muito tempo, e os papas assim costumavam ensinar. Porém agora era preciso saber o que distinguia bruxas e mestres-feiticeiros de outros praticantes de magia negra. Com este objetivo os eruditos usaram de toda sua criatividade para imaginar as coisas mais esquisitas, o que talvez fosse mais absurdo e curioso do que assustador, se, quase 100 anos mais tarde, quando os processos contra bruxas atingiram seu auge, não chegassem dois sujeitos que levaram muito a sério toda aquela maluquice, reuniram e catalogaram tudo, tiraram dali suas conclusões e passaram a utilizar como um manual de instruções para descobrir a verdade nos seus mínimos detalhes e assim dizer de qual tipo de feitiçaria elas deveriam ser acusadas. Este livro foi chamado de “O martelo das feiticeiras”, e provavelmente nada que tenha sido impresso na história trouxe tanta desgraça para o ser humano quanto estes três pesados volumes. Mas então, qual era a característica essencial de uma bruxa na opinião destes eruditos? Antes de mais nada: elas teriam um verdadeiro pacto de união com o demônio. Elas teriam renegado Deus e prometido ao diabo fazer todas as suas vontades. E o diabo por sua vez, teria prometido a elas em troca todo tipo de benesse possível – em se tratando da vida mundana, naturalmente. Como ele é um tipo mentiroso, quase nunca mantinha sua promessa e nem no futuro iria cumpri-la. E agora o que acontecia é que a lista já não tinha mais fim – sim, a lista das coisas que as bruxas faziam com o poder do diabo, das formas como adquiriam estes poderes e que costumes eram obrigadas a cultivar. Muitos de vocês, que já assistiram às danças em alguma praça na Walpurgisnacht ⁴⁸ , e outros que já tiveram em mãos um volume com lendas da região do Harz, certamente vão
saber do que estou falando, e não vou ficar aqui contando do Blocksberg, onde as bruxas se reúnem no 1 o de maio, nem de como elas passam voando no cabo de vassoura até o alto das chaminés – não, vou lhes falar de coisas muito mais esquisitas, que talvez vocês jamais tenham lido nos seus livros de histórias. Esquisitas é a palavra que eu uso aqui para nós. Pois há 300 anos não havia nada mais natural do que uma bruxa sair andando pelo campo com a mão erguida para o céu e fazer começar a chover granizo sobre a plantação, ou quando enfeitiçava uma vaca apenas com o olhar e ao invés de leite ela dava sangue, ou quando ela era capaz de furar o tronco de um salgueiro e dali escorria leite ou vinho, ou ainda quando ela se transformava num gato, num lobo, num corvo. Naquela época, se alguém era considerado suspeito de bruxaria, ele poderia fazer ou mandar fazer o que bem quisesse, pois não havia absolutamente nada que não aumentasse essa suspeita. Assim, nas casas e nos campos, nas conversas e nos afazeres, na missa e nos jogos de recreação, não havia nada que a gente maldosa, estúpida ou maluca não pudesse inventar e dizer que aquilo era coisa de bruxas. E até hoje muitas expressões como manteiga de bruxa (querendo dizer, ovas de rã), anéis de bruxa (os círculos formados por um conjunto de cogumelos), esponja de bruxa, farinha de bruxa etc., dão testemunho de como os mais inocentes elementos da natureza são relacionados a essa crença. Mas se vocês quiserem um esboço rápido, de certo modo uma introdução à vida das bruxas, então vocês devem se dedicar à leitura da peça “Macbeth”, de Shakespeare. Ali vocês podem ver que se imaginava o demônio como sendo um senhor severo, ao qual toda bruxa deve satisfações sobre que tipo de truque maldoso ou crime era cometido em seu nome. Tudo que se encontra em Macbeth sobre bruxas era do conhecimento de qualquer homem comum. Contudo, os filósofos sabiam ainda mais. Eles eram capazes de apresentar provas acerca da existência das bruxas tão sem pé nem cabeça, que hoje não caberiam nem numa redação de aluno do ginásio. Assim escreveu um deles em 1660: Aquele que nega a existência de bruxas, nega também a existência de espíritos, pois as bruxas são espíritos. Quem, contudo, nega a existência de espíritos, nega também a existência de Deus, pois Deus é um espírito. Assim, quem nega a existência das bruxas, nega também a Deus. O erro e a ignorância por si só já fazem mal o bastante. Mas eles se tornam fatalmente perigosos quando se tenta associá-los à ordem e à lógica. Assim aconteceu com a crença nas bruxas, e por isso a desgraça que resultou da intransigência dos eruditos foi muito maior do que aquela causada pela superstição. Já falamos dos cientistas naturais e dos filósofos. Mas agora vem o pior: os doutores da lei. E com isso chegamos aos processos contra bruxas, a mais terrível praga desta época, junto com a peste. Da mesma forma que ela, esses processos se alastraram, pulando de um país para o outro, alcançaram seu ponto alto, diminuíram novamente por um tempo, sem poupar crianças nem idosos, ricos nem pobres, doutores da lei nem prefeitos, médicos nem cientistas ou catedráticos; ministros e padres eram levados à fogueira, assim como encantadores de serpentes e artistas de rua, sem falar no número infinitamente maior de mulheres de todas as idades. Hoje não é mais possível verificar com precisão quantas pessoas perderem a vida condenadas como bruxas ou mestres-feiticeiros, mas é certo que foram pelo menos centenas de milhares, ou talvez até esse número multiplicado
várias vezes. Já mencionei este terrível livro, “O martelo das feiticeiras”, publicado no ano de 1487 e fartamente reimpresso. Escrito em latim, serviu de manual para os inquisidores. Inquisidores- ou seja, aqueles encarregados de inquirir- era o nome dado aos monges que recebiam diretamente do papa plenos poderes para combater a heresia. Como as bruxas eram sempre consideradas hereges, os inquisidores tinham obrigatoriamente que se ocupar com elas. Mas não vão pensar nem de longe que esta horrível tarefa era oferecida a eles generosamente. Quem se encarregava disto era a jurisdição religiosa dos bispos e a jurisdição secular estabelecida. É que o antigo direito eclesiástico nada sabia a respeito da condenação de bruxas à fogueira, e por muito tempo houve somente a pena de banimento da igreja ou de encarceramento. Então Carlos V introduziu no ano de 1532 um novo código de leis, o famoso Código Criminal Carolino, ou “Regulamento Judicial para Crimes Capitais”. Nele constava a pena de morte pela fogueira para crimes de feitiçaria. Em todo caso havia ainda uma restrição, que era a necessidade de uma prova de dano real cometido. Mas para muitos doutores do direito e príncipes esta era uma lei muito branda, e eles preferiam seguir o direito do principado da Saxônia, segundo o qual todo feiticeiro e toda bruxa poderia ser queimado, mesmo se não houvesse causado mal a ninguém. Estas inúmeras jurisdições resultavam numa confusão terrível, de forma que já não se podia mais falar de ordem ou direito nestes processos. Acrescente-se a isso o fato de que as bruxas eram consideradas mulheres possuídas pelo demônio, e se acreditava que, para combater os seus superpoderes, tudo era permitido. Nada podia ser mais terrível e insensato do que quando os doutores da lei se atrapalhavam por conta de uma palavra em latim. Assim chamaram a bruxaria de crimen exceptum , crime de exceção ⁴⁹ , no caso aqui, um crime do qual o réu praticamente não tinha como se defender. Desde o início do processo ele era, por exemplo, tratado como culpado. E quando havia um advogado de defesa, ele não tinha muito o que fazer, pois o princípio vigente era: um advogado de defesa que atuasse com muito entusiasmo levantaria a suspeita de ele mesmo ser um feiticeiro. Os juristas viam as coisas ligadas à bruxaria como um assunto puramente técnico, que apenas eles eram capazes de julgar. Nesse contexto, o mais terrível dos seus princípios era: em caso de crime de bruxaria a confissão do autor era o suficiente, mesmo que não houvesse provas. Qualquer um pode imaginar o que significava uma confissão, quando se sabe que a tortura era prática comum nos processos contra bruxas. Uma das coisas mais espantosas que se vê na história é o fato de que foram necessários mais de 200 anos até os doutores da lei perceberem que uma confissão obtida sob tortura não tem qualquer sentido nem efeito legal. Talvez porque os seus livros estavam cheios de coisas tão absurdas, horríveis e sem pé nem cabeça, não tenha lhes ocorrido um pensamento tão simples. Certamente eles preferiam achar que estavam descobrindo as artimanhas do demônio. Quando por exemplo um réu insistia em ficar em silêncio, pois sabia que toda e qualquer palavra que dissesse, mesmo a mais inofensiva, só poderia piorar a sua situação, os doutores interpretavam a atitude como “mordaça do diabo”, com o que queriam dizer que o mau espírito havia enfeitiçado o réu de forma que ele já não conseguia mais falar. Com a mesma finalidade eram aplicados os testes de bruxaria, que às vezes serviam para encurtar o processo. Havia por exemplo o teste das lágrimas. Se alguém não chorasse de dor durante a sessão de tortura, então isto era prova de que o réu tinha pacto com o diabo – e de novo foi preciso que se passassem 200 anos, até
que os médicos realizaram a mera observação e ousaram afirmar que o ser humano não chora quando sente uma dor muito intensa. A luta pelo fim dos processos contra bruxas foi uma das maiores lutas de libertação da humanidade. Ela começou no século XVII e levou 100 anos, em alguns países até mais, para alcançar a vitória. Ela começou, como frequentemente acontece com estas coisas, não com o reconhecimento da causa, mas sim por necessidade. Alguns príncipes perceberam que no correr de poucos anos suas terras estavam ficando desertas, pois sob tortura havia sempre um culpado acusando outro e assim por diante. Um único processo poderia gerar centenas de outros processos, que então se tornavam independentes. Em determinado momento, os príncipes decidiram então simplesmente proibir estes processos. E as pessoas aos poucos tomaram coragem e passaram a refletir também sobre aquilo tudo. Os padres e filósofos descobriram que na igreja antiga a crença nas bruxas jamais havia existido, e que Deus jamais havia concedido ao Diabo tantos poderes sobre os seres humanos. Os doutores da lei vieram em seguida e admitiram que já não se poderia confiar mais em calúnias ou confissões obtidas sob tortura. Os médicos se pronunciaram, afirmando que havia doenças que faziam as pessoas acreditarem que eram feiticeiros e bruxas, porém sem o serem realmente. E finalmente a sã razão humana se fez presente e apontou para as incontáveis contradições nos autos de cada processo contra bruxas e também na própria crença nelas. De todos os inúmeros livros que foram escritos nessa época contra estes processos apenas um se tornou famoso. Seu autor é o jesuíta Friedrich von Spee. Em sua juventude este homem foi o confessor de bruxas condenadas à morte. Quando um dia um amigo lhe perguntou porque ele já tinha tantos cabelos brancos sendo ainda tão jovem, ele respondeu: “Porque o tempo todo eu sou obrigado a acompanhar um bando de inocentes até à fogueira.” Seu livro, “Advertência sobre os processos contra bruxas”, está longe de ser um texto revolucionário. Friedrich von Spee chega até mesmo a crer na existência das bruxas. Mas aquilo que para ele é impossível de se acreditar são as terríveis e insensatas argumentações sem pé nem cabeça, que durante séculos serviram para acusar toda e qualquer pessoa de ser uma bruxa ou um feiticeiro. Com sua obra ele combateu a abominável salada de latim com alemão presente em milhares e dezenas de milhares de autos cheios de cólera e abuso de poder. Com este livro, e com o que ele veio a provocar, Friedrich von Spee mostrou o quanto é necessário colocar a humanidade acima da erudição e da sagacidade. 48 Segundo antiga crença popular, as bruxas entravam em ação na noite que antecede ao 1o de maio. Para isso, reuniam-se no Blocksberg, designação mais recente do Brocken, montanha situada no Harz, na Alemanha. Hoje em dia, são principalmente as crianças e os jovens que saem às vizinhanças para celebrar (Fonte: Dicionário Pons online w ww.pons.de ) . 49 Agradeço ao jurista Marcos Maselli Gouvêa pelo esclarecimento quanto à terminologia.
Bandoleiros na antiga Alemanha Se os bandoleiros ⁵⁰ não tivessem nada de especial que os distinguisse dos outros criminosos em geral, ainda assim continuariam sendo os mais ilustres entre todos, pois sua história é única. A história dos grupos de bandoleiros é parte da história cultural da Alemanha, na verdade da Europa inteira. Mas não só pelo fato de eles possuírem uma história, e sim também, ao menos por um longo tempo, pelo orgulho e a consciência de pertencerem a uma classe que vem de uma longa tradição. Não é possível escrever a história dos ladrões, dos impostores ou dos assassinos, pois cada um era diferente do outro e daria uma história em separado – no máximo pode-se contar de uma tradição da arte de furtar, passada de pai para filho numa determinada família. Mas no caso dos bandoleiros é completamente diferente. Não só houve famílias famosas de bandoleiros, que perduraram por diversas gerações, se espalharam por vastas extensões de terras e, da mesma forma que as famílias reais, selaram alianças entre si; não só existiram estes bandos que permaneceram unidos por mais de 50 anos e que muitas vezes contavam com mais de 100 sócios, mas houve também antigas tradições e costumes, uma língua própria, o rotwelsch ⁵¹ , uma hierarquia e um código de ética próprios, que ao longo dos séculos era transmitido adiante entre os bandoleiros. Pensei que hoje poderia contar um pouco sobre este assunto, sobre o modo de pensar, os hábitos e as convicções dos bandoleiros. Pois não se pode ter uma ideia exata sobre eles apenas lendo as histórias arrepiantes de Schinderhannes ⁵² ou Lipps Tullian ⁵³ , Demian Hessel ⁵⁴ , ou quem mais quer que seja. Por outro lado podemos saber como estes bandos surgiram, quais as leis que os mantinham unidos, como conduziam sua luta contra imperadores, príncipes, cidadãos e, mais tarde, contra a polícia e a jurisdição. Para isso terei que omitir um dos segredos mais interessantes e importantes destes bandos, sobre o qual voltaremos a falar mais tarde: a língua dos bandoleiros e a sua escrita cifrada ⁵⁵ . Esta língua, o rotwelsch, revela por si só bastante sobre a origem dos bandoleiros. Pois neste rotwelsch, junto aos elementos do idioma alemão, há muito da língua hebraica. Isso é uma prova da relação estreita que havia desde o princípio entre os bandoleiros e os judeus. Mais tarde, nos séculos XVI e XVII, não era raro, inclusive, encontrar judeus que ocupavam a posição de chefes temidos. Nos seus primórdios, essa relação com os bandos era mais a de cúmplices que adquiriam as mercadorias dos bandoleiros. Como durante a Idade Média os judeus viviam impedidos de exercer a maioria das profissões livres, é fácil imaginar como chegaram a esta situação. Junto aos judeus, o grupo que teve maior importância no surgimento dos grupos de bandoleiros foram os ciganos. Com eles os vigaristas aprenderam sua esperteza peculiar e seus truques, na forma de ações ousadas e arrojadas, e por fim incorporaram ainda um sem número de suas expressões idiomáticas ao rotwelsch. Porém foi de ambos, dos judeus e dos ciganos, que vigaristas e bandoleiros
assimilaram uma porção enorme de superstições grosseiras, centenas de feitiços e receitas de magia negra. No início da Idade Média o principal negócio dos grandes grupos de bandoleiros era o assalto nas estradas. Devido à impossibilidade de os príncipes garantirem a segurança dos caminhos que atravessavam suas terras, o assalto nas estradas se tornou, em determinadas circunstâncias, uma verdadeira profissão, como era o caso dos cavaleiros bandoleiros, com os quais as caravanas de comerciantes eram obrigadas a negociar para cruzarem uma região considerada perigosa, mediante o pagamento de uma determinada quantia. Não é de se admirar então, que muito cedo os bandoleiros chegassem a uma forma de compromisso que lembra o estatuto de uma cavalaria ou de um exército. Vou ler aqui para vocês um juramento autêntico de um desses bandos, datado do século XVII. Ali está escrito: 1. Juro pela cabeça e pela alma do chefe do nosso bando, que obedecerei a todas as suas ordens; 2. que serei leal aos meus companheiros em todos os seus planos e empreitadas; 3. que sempre encontrarei o tempo necessário para estar presente nas reuniões em local e hora determinados pelo chefe, a não ser que ele me permita o contrário; 4. que estarei disposto a atender seu apelo e chamado a qualquer hora do dia ou da noite; 5. que jamais abandonarei meus companheiros em perigo, ao contrário, combaterei junto a eles até à última gota de sangue; 6. que jamais fugirei diante do inimigo, estando ele em mesmo número que o nosso bando, e que lutarei com coragem até à morte; 7. que estenderemos nossa mão um ao outro, em auxílio e na necessidade, esteja ele em poder do inimigo, doente ou em qualquer outra adversidade; 8. que, se estiver ao meu alcance, jamais deixarei pra trás um companheiro ferido ou morto nas mãos do inimigo; 9. que caso eu venha a ser preso, nada irei confessar ou revelar, muito menos o paradeiro ou o local de estadia de meus camaradas, mesmo que isto venha a custar a minha vida. E se eu quebrar este juramento, que as pragas mais terríveis e os castigos mais impiedosos, neste e no outro mundo, venham se abater sobre mim. Ouvindo falar de outros bandos desses, ficamos sabendo que, junto a estes juramentos de cavalaria eles possuíam também uma jurisprudência própria, o assim chamado direito de prato ⁵⁶ : em Viena os criminosos ainda levam o nome de irmãos de prato ⁵⁷ . Alguns bandos chegavam a ter uma hierarquia inteira. Havia os conselheiros, altos-funcionários, conselheiros administrativos, e até títulos de honra eram concedidos pelo chefe do bando. Os cabeças de um famoso bando holandês levavam à mão um pé-de-cabra como seu sinal de honra. Tão forte era a união entre os membros de um bando, tão perversos eram os truques que bandos inimigos poderiam praticar uns contra os outros. Uma das ações mais impressionantes foi a peça que os bandidos Fetzer e Simon pregaram a Langleiser e seus comparsas, por ele se recusar a deixá-los participar de um assalto planejado a um banqueiro na região de Münster. Para se vingar de Langleiser, Fetzer e Simon começaram a realizar uma série de assaltos naquela região, de forma que em pouco tempo todos se viram obrigados a recorrer à sua proteção e ninguém mais ousou realizar o assalto planejado. A traição era o pior dos crimes que um bandido poderia cometer e pelo qual teria de pagar. Muitas
vezes a crueldade dos chefes do bando era tão grande, que os companheiros chegavam a retirar as acusações que haviam feito. Um famoso policial conta, em meus interrogatórios eu presenciei as situações mais assustadoras e vi o poder monstruoso que a simples figura, a simples respiração de um bandido pode ter sobre um camarada seu disposto a confessar. Mesmo assim sempre houve, naturalmente, bandidos que entregavam seus camaradas para conseguir alguma forma de perdão. A mais estranha oferta desta espécie partiu de um famoso bandoleiro da região da Boêmia, chamado Hans, que prometeu escrever um livro sobre criminosos em troca da liberdade, para que com este texto então pudesse ser evitado todo tipo de fraude futuramente. Ninguém deu atenção à simpática proposta. Além do que já havia naquela época livros semelhantes em quantidade suficiente. O mais famoso, porém, era o Liber vagatorum , em português Livro dos criminosos , publicado pela primeira vez em 1509 e para o qual Martinho Lutero escreveu um prefácio, do qual eu leio aqui para vocês um trecho: Este pequeno livro sobre as malandragens dos pedintes foi publicado pela primeira vez por alguém que não quis se fazer conhecer pelo nome, mas que assinou apenas como um profundo conhecedor das artes da fraude. Pois o próprio livro seria uma prova disto, mesmo que não estivesse escrito aqui com todas as letras. Eu considerei, porém, sensato que tal livro não só fosse impresso, como também dado a conhecer em toda parte, para que todos vejam e compreendam como o diabo reina de forma tão poderosa neste mundo, e para que todos possam se manter atentos e se precaver. O idioma rotwelsch, contudo, que está presente ao longo de toda a obra, provém dos judeus, pois está cheio de vocábulos de origem hebraica. Aqueles que falam hebraico vão perceber. Martinho Lutero segue adiante e fala sobre a utilidade e as lições que podem ser extraídas do livro: que é preferível combater a mendicância por meio de esmolas e da caridade, do que se deixar enganar por eles e seus truques dando-lhes dinheiro cinco ou dez vezes, como se estivesse agindo assim de livre e espontânea vontade. Certamente os pedintes de que se fala no livro não são de forma alguma verdadeiros pedintes, como nós os conhecemos hoje em dia. Tratava-se, ao contrário, de indivíduos altamente perigosos, que surgiam em hordas e caíam sobre as cidades feito nuvens de gafanhotos, fingindo-se de doentes ou necessitados. Não por acaso as cidades da Idade Média possuíam policiais contra a mendicância, oficiais que não tinha outra tarefa senão vigiar a afluência constante de mendigos errantes e interferir para que a cidade sofresse o mínimo de prejuízo com aquela situação. Havia muito menos pedintes sedentários do que forasteiros que acorriam às cidades, então a diferença entre eles e os bandoleiros era muitas vezes tão difícil de perceber quanto a diferença entre bandoleiros e comerciantes. Pois havia também entre os vendedores ambulantes um grande número que carregava seus apetrechos apenas para enganar as pessoas e esconder seu verdadeiro ofício, a ladroagem. A atividade dos criminosos, já dissemos antes, transformou-se muito ao longo das diversas épocas. O astuto truque de se fingir doente, tão em voga na Idade Média, desapareceu com o tempo, à medida que a influência da Igreja diminuiu e com isso o ato de dar esmolas se tornou mais raro. Hoje já não podemos
fazer ideia da quantidade de truques com os quais se explorava a compaixão das pessoas para com seu semelhante. Junto a isso, naturalmente, estes falsos deficientes tinham a vantagem de dar a aparência mais inofensiva aos assaltantes e assassinos mais perigosos. Havia aqueles que entravam na igreja em meio à missa e, quando o padre dava a benção, colocavam um pedaço de sabonete na boca para fazer espuma, caíam estatelados sobre o chão diante do olhar de todos, fingindo ter uma convulsão. Era a garantia de um donativo dos devotos. As escadarias das igrejas estavam infestadas desta ralé, havia sujeitos capazes de pintar marcas de correntes sobre os braços, feitas com tintura artificial, fazendo as pessoas acreditarem que eles haviam combatido nas Cruzadas, caído nas mãos dos povos pagãos e passado fome e sede como escravos nas galeras durante anos; outros cortavam o cabelo deixando uma coroa e contavam que eram padres em peregrinação, e que no caminho os bandoleiros haviam levado tudo que tinham. Outros tantos passavam fazendo barulho com uma matraca, instrumento carregado pelos leprosos naquela época, e então as pessoas sequer chegavam perto e lhes atiravam de longe a esmola. As circunstâncias peculiares em que vivia essa massa de gente perigosa podem ser notadas até numa praça afastada em Paris, na qual naquele tempo se reunia uma ralé da mesma espécie. Era um paço ermo e abandonado, que o povo chamava Paço dos Milagres, porque ali os vagabundos cegos voltavam a enxergar, os paralíticos a andar, os surdos a ouvir e os mudos a falar. A lista de suas artimanhas era sem fim. Junto à falsa surdez, que os vigaristas simulavam para escutar a conversa dos outros, havia o apreciado truque de se fazer passar por um deficiente mental. Se por acaso um vagabundo tivesse o azar de ser pego vigiando uma conversa, ele então se fingia de idiota e agia como se não soubesse como nem porque veio parar exatamente ali. Agora, porém, voltemos um instante ao que Lutero escreveu no seu prefácio ao Livro dos Criminosos . Ele dizia que através do texto era possível reconhecer como o diabo reinava no mundo, e pode-se tomar isto muito mais ao pé da letra do que gostaríamos de acreditar nos dias de hoje. Na Idade Média chegava-se muito rápido à conclusão de que os mais ardilosos e ousados chefes de bando tinham um pacto com o diabo. E esta terrível heresia, para eles quase sempre fatal, era reforçada por toda a espécie de indício baseado na suposição. Não menos presente era a incrível superstição entre os próprios bandidos. Todas as pessoas que tocam um negócio instável, vulnerável a milhares de casualidades, têm uma tendência a crer em superstições, e duas vezes mais ainda, se este negócio inclui uma alta dose de perigo. Os bandoleiros acreditavam possuir centenas de feitiços para se tornarem invisíveis na hora do assalto, para fazerem adormecer as pessoas que moravam na casa que seria arrombada, para se protegerem contra as balas disparadas por seus perseguidores, para encontrarem tesouros preciosos no local que se pretendia assaltar. E como isto era reforçado pela parcela incompreensível de hebraico que os bandoleiros incorporaram dos judeus – e mais ainda pelos chamados selos do demônio, pequenos círculos e linhas que se desenhava sobre um pergaminho, para assegurar a amizade dos maus espíritos quando se cometia os delitos. Afinal de contas, a maioria destes bandoleiros, com toda sua coragem e malandragem, não passava de indivíduos pobres e ignorantes, no mais das vezes de origem camponesa. Certamente só alguns sabiam ler e escrever, e os sinais mágicos secretos nas cartas de Schinderhannes são prova de que
nem isto os protegia da superstição. Alguns, porém, não sabiam mais sobre sua própria religião do que sobre matemática, e há o registro comovente das palavras de um salteador pobre feito prisioneiro, que iria receber o conselho de um padre e lhe respondeu assim: Deus, Nosso Senhor e Nossa Senhora Mãe de Deus devem nos assistir e interceder por nós; mas eles nunca nos ajudam numa casa, numa taberna ou numa repartição onde haja muito dinheiro. Assim possivelmente, existiram bandoleiros que acreditavam ser mestresfeiticeiros e ter um pacto com o diabo. Além disso, vocês devem lembrar que naquela época ainda havia a tortura, e debaixo dela as pessoas pobres confessavam coisas de que nunca tinham ouvido falar na vida. No século XVIII a tortura foi abolida, e então com o tempo foram surgindo pessoas que lidavam de forma mais humana com bandoleiros aprisionados, pessoas que tentavam entender suas razões, ao invés de corrigi-los com discursos edificantes ou ameaças de ir para o inferno. Um deles deixou-nos por escrito, uma história detalhada dos famosos bandos Vogelsberger e Wetterauer, na qual encontramos a descrição exata de cada um daqueles bandoleiros. Será que podemos imaginar que o homem que o autor descreve com as seguintes palavras foi um dos mais perigosos chefes de bandoleiros? Ele é franco, amante da verdade, destemido, imprudente, explosivo, se deixa fascinar facilmente, no entanto firme, após tomar uma decisão. Grato, furioso, extremamente vingativo, dotado de uma imaginação vivaz, uma boa memória e a maior parte do tempo, de um bom humor. Em amplo sentido, ingênuo, às vezes engraçado, um tanto vaidoso e até musical. Com esta descrição, aqueles entre vocês que leram os “Bandoleiros” de Schiller vão se lembrar de Karl Moor. Houve de verdade bandoleiros nobres. Certamente isso só foi descoberto quando os bandoleiros começaram a desaparecer. Ou será que eles começaram a desaparecer exatamente por causa desta descoberta? Pois a forma desumana com a qual até hoje eles foram perseguidos e punidos, muitas vezes enforcados por causa de um simples furto, acabou por impedir que um bandoleiro voltasse a ser um cidadão pacífico. A crueldade do direito penal antigo teve tanta importância para o surgimento dos bandoleiros como o novo direito penal, mais humano, teve para o seu desaparecimento. 50 No original Räuberbanden im alten Deutschland. A palavra Räuber pode também ser traduzida por bandido, ladrão, salteador. O termo bandoleiro nos pareceu refletir melhor a época descrita por Benjamin – e também sua citação da peça de Friedrich Schiller Die Räuber (Os bandoleiros) ao final do texto nos levou a esta opção. 51 Linguajar utilizado por criminosos, originalmente compartilhado por comerciantes e profissionais e viajantes no sul da Alemanha e Suíça. Além da raiz fortemente marcada pelo alemão, continha inúmeros vocábulos de diversos dialetos alemães e também do ídiche, falado pelas comunidades judaicas, e do sinti, falado pelos grupos ciganos.
52 Johannes Bückler (1779/80?-1803), um dois maiores criminosos da história da Alemanha. 53 Lipps Tullian (1715 - ?), líder bandoleiro na Saxônia. 54 Demian Hessel (1774-1810), líder bandoleiro alemão. 55 No original, Zinken , literalmente, os dentes de um garfo ou ancinho, aqui tem o sentido de uma linguagem cifrada, incluindo gestos e sinais gráficos, usada por um grupo fechado. 56 No original Plattenrecht. Platte, bandeja, prato, mas também placa; Recht , direito. Optamos por prato , por achar que transmite melhor a ideia do vínculo criado entre os membros destes bandos, muitas vezes fruto da miséria que compartilhavam. 57 No original, Plattenbrüder (Brüder, irmãos).
Os ciganos Talvez nenhum de vocês já tenha tido coragem de subir na roda e espiar pela janela de uma caravana de ciganos. Mas certamente vocês já tiveram vontade, como eu tive também; e até hoje o desejo me acompanha, quando vejo de longe um destes carros passar se arrastando sobre a estrada que atravessa os campos. Aliás, vocês sabem onde mais se veem estes veículos na Alemanha? No leste da Prússia. Por quê? Como a região é pouco habitada, a população vive dispersa nos campos, bem distante das cidades. Os grupos nômades sabem bem disso, daí ser muito comum encontrá-los nestas regiões. Certamente nem todos são ciganos, mas há uma quantidade considerável deles; hoje em dia encontramos ciganos na verdade apenas em pequenos grupos de equilibristas, engolidores de fogo, domadores de ursos. Já se vão 500 anos desde a época em que eles invadiram a Alemanha do imperador Sigismund em grandes bandos, quase como uma tribo armada, e desde então a força de sua união, seu apego à língua e às suas tradições, foram se enfraquecendo, de forma que hoje em dia já não há mais daqueles bandos numerosos, e sim famílias grandes vivendo isoladamente. Suas famílias são enormes, pois os ciganos costumam ter muitos filhos. Não precisam de forma alguma, por Deus!, roubar os filhos de estranhos. É claro que ao longo de séculos isso pode ter acontecido uma vez ou outra. Já existem tantos truques maldosos que se diz serem praticados pelos ciganos, que não seria necessário acusá-los de algo de que são inocentes. Essa má fama lhes foi atribuída com alguma razão. Quando eles atravessaram a fronteira da Alemanha em grandes bandos em 1417, num primeiro momento a população não viu naquilo nada de tão mau. Eles receberam um salvo-
conduto do imperador Sigismund, como naquela época era costume se outorgar a estrangeiros. Vocês talvez saibam que os judeus de vez em quando também recebiam uma destas cartas dos imperadores alemães. Se o documento de alguma forma lhes ajudava ou não, esta é outra questão. Mas de qualquer modo este salvo-conduto dava uma série de direitos ao indivíduo: por exemplo, ele não poderia ser expulso daquele território; ele era súdito direto do imperador; ele poderia contar com sua própria jurisdição. E assim aconteceu também com os ciganos. Seus reis ou woiwoden , como eram chamados, guardavam o direito de aplicar a lei entre a sua gente e desfrutavam de escolta própria. Mas com que astúcia os ciganos foram capazes de conseguir isto. Uma vez, ao explicar sobre sua origem, afirmaram que vinham do Pequeno-Egito. Nada disso era verdade. Mas durante séculos acreditou-se nessa versão, até que no século XIX um linguista – um amigo dos Irmãos Grimm, que vocês bem conhecem – sentouse e dedicou vários anos ao estudo da língua dos ciganos. E então ele descobriu que eles vinham do Hindustão, uma região de planalto na Ásia Ocidental. Eles devem ter passado por situações muito, muito difíceis em tempos antigos, pois na história de suas tradições quase não se encontram vestígios desta época. Eles têm até hoje – e eis aí algo bastante curioso – um orgulho enorme de sua cultura e de suas tradições, mas ao mesmo tempo, não guardam quase nenhuma memória de sua história, nem mesmo lendas. Mas por que então eles disseram na Alemanha que tinham vindo do Pequeno-Egito? Muito simples, naquela época era crença generalizada entre os europeus que o Egito era a terra de onde veio a feitiçaria. E foi com a feitiçaria que os ciganos desde o início conseguiram impor respeito. Não se deve esquecer que eles, apesar de sua aparência, eram um povo frágil, nãoguerreiro. Eles precisavam se fazer valer de outra forma que não fosse através do poder da força. Assim, seus supostos truques de feitiçaria eram não só um meio de ganhar seu sustento, mas também a solução encontrada pelo seu instinto de autopreservação. A luta de séculos da polícia alemã contra os ciganos não teria se prolongado tanto tempo nem teria sido tão inútil se eles não tivessem encontrado o apoio que encontraram junto às populações mais incultas, sobretudo os camponeses. Acreditava-se que uma casa onde uma cigana tivesse dado à luz uma criança era à prova de fogo; quando os cavalos ficavam doentes e não havia mais a quem recorrer, pediase ajuda a um cigano; quando um camponês havia ouvido falar sobre um tesouro escondido no campo, na floresta ou na ruina de um castelo, ia buscar o conselho de um cigano, por acreditar que ele tinha as maiores habilidades para recuperá-lo. Isto se tornava, naturalmente, a ocasião ideal para os golpes mais lucrativos. Um truque muito apreciado era aplicado quando eles chegavam a uma região nova: davam a um cavalo ou a uma vaca algo que os deixava doente, e em seguida prometiam ao camponês, que se lamentava, a cura imediata do animal em troca de uma boa recompensa. E como eles bem sabiam do que se tratava a doença, assim o faziam com um passe de mágica. Desta forma sua reputação de feiticeiros se firmava cada vez mais. Eles procediam de outro modo, contudo, quando tinham que entrar em acordo com grandes senhores de terras sobre assuntos ligados à sua origem. Neste caso eles apresentavam cartas onde se podia ler que originalmente teriam vivido como cristãos no Egito, que teriam sido obrigados a renegar sua fé e que o Papa teria lhes imposto a penitência de vagar por sete anos – e por isto não teriam permissão para se fixar em terra alguma. Alguns chegavam a inventar algo de mais extraordinário ainda: seus
ancestrais teriam se negado a dar pouso a Maria, quando ela rumou em fuga para o Egito com o Menino Jesus – assim eles eram obrigados a vagar por este mundo sem ter paz. Vocês podem imaginar o que significava a fé cristã para os ciganos. Era apenas uma invenção para despertar a compaixão das pessoas no Ocidente ou seu horror diante da história de Herodes. Certamente os ciganos chegaram a ter uma religião. De que natureza era ela, eis aí algo difícil de descrever, já que temos apenas o registro de tradições vagas e de lendas, e também porque, se os costumes se mantiveram os mesmos e não se mesclaram aos de outras culturas, por outro lado, as lendas sobre sua história e a dos povos que lhes eram estranhos não passam de narrativas fantásticas. O fato de os ciganos não terem mais uma religião própria pode ser constatado de forma mais evidente quando se observa que eles não encontravam a menor dificuldade em se adaptar às diversas formas de comportamento que eram exigidas em qualquer parte que seja: eles confiavam ao pastor a tarefa de celebrar seus casamentos e também batizar seus filhos, sem atribuir a estas práticas a menor importância. Em antigos despachos policiais o cuidado com documentos de batismo de filhos de ciganos era redobrado, pois frequentemente se descobria que eles batizavam os filhos diversas vezes, pensando nas várias oferendas que poderiam receber de todos os padrinhos. O salvo-conduto que os ciganos recebiam do imperador não teve validade por longo tempo. Ele se tornou um fardo e já em 1497 temos uma reforma de lei imperial que define o prazo para que todos os ciganos deixem a Alemanha; quem ainda fosse encontrado após este prazo, perderia todos os seus direitos e seria decretado fora-da-lei ⁵⁸ , ou seja, qualquer um poderia agir contra ele como bem entendesse. Estas resoluções estiveram em vigor durante séculos, ora na Alemanha inteira, ora em algumas regiões apenas. E ainda em 31 de março de 1909 era discutido no parlamento alemão sobre a forma mais conveniente de se lidar com a questão dos ciganos. As ameaças e proibições de efeito generalizado tinham se mostrado ineficazes. Policiais, missionários, professores refletiram sobre as possibilidades de se alcançar melhores resultados por meio de métodos mais humanos e brandos. O que eles tinham em mente era convencer os ciganos a se assentar em grupos separados em diversas localidades distantes umas das outras. Tudo correu muito bem, até que o trabalho educacional estancou na sua fase inicial. Quando se fundaram as primeiras escolas para ciganos, tornou-se praticamente impossível fazer com que os pais que levavam seus filhos até à escola voltassem para casa. Eles queriam permanecer no ambiente escolar e aprender junto com as crianças. Mas quando se tratava de motivá-los a se tornar sedentários, as tentativas fracassavam. Onde se construía uma cabana para os ciganos, eles se mudavam dali para se estabelecer numa barraca ao lado, caso não estivesse fazendo um frio muito intenso. Com uma obstinação espantosa, eles jamais abriam mão desta liberdade de ir e vir. Não são de forma alguma preguiçosos, conhecem o ofício de funileiro, sapateiro, paneleiro, alambrador e através desses sabem superar as dificuldades e tocar a vida, porém não há nada que os faça trabalhar na lavoura. Isso foi o que acabou descobrindo o imperador Josef II, o primeiro a empregar meios mais humanitários e a investir no aperfeiçoamento das populações ciganas. O motivo foi a terrível perseguição que aconteceu nos anos 60 do século XVIII na Hungria. Naquela época havia corrido o boato de que os ciganos devoravam seres humanos secretamente. Muitos deles foram
presos e executados, até à intervenção de Josef II. O objetivo do imperador era, porém, mais amplo, ele pretendia tornar os ciganos cidadãos sedentários, de preferência trabalhadores da lavoura, e para isso proibiu em todo o território do império qualquer tipo de espetáculo ou charlatanice dos ciganos – a não ser em caso de mau tempo, quando não fosse possível trabalhar nos campos. Mas de nada adiantou. Os ciganos continuaram em sua romaria de um lado para o outro. O governo tentou então agir com mais severidade ao perceber que em tempos de guerra eles davam provas de serem perigosos espiões. Seu faro apurado e seu conhecimento extraordinário dos territórios fizeram deles muitas vezes os parceiros de comandantes de exércitos inimigos. Durante a Guerra dos Trinta Anos, o general Wallenstein ⁵⁹ recorreu extensivamente aos seus serviços. Assim as coisas permaneceram como sempre haviam sido e mesmo durante o inverno, os ciganos saíam para buscar abrigo uns nas casas dos outros. Geralmente eles viviam em grutas, que vedavam com tábuas ou panos para se protegerem contra as intempéries. Cuidadosamente evitava-se que o ar fresco pudesse penetrar no ambiente interno. No centro queimava uma fogueira, em volta da qual, vultos seminus de diversas formas ficavam deitados. Não se falava em lavar, limpar, remendar; no máximo assava-se um bolo raso sobre as cinzas, naturalmente sem panela. Suas únicas ocupações eram cozinhar, assar, comer, fumar, tagarelar e dormir. Pelo menos isso é o que afirma um certo professor de Langensalza, que em 1835 escreveu um livro bastante antipático sobre os ciganos, tentando incentivar os poderes públicos a agir com mais severidade contra eles. Mas não precisamos acreditar em tudo que ele escreveu. Ninguém sabe menos sobre os ciganos do que um professorzinho de antigamente. Ele vai se enganar até quando falar do que os ciganos fazem nas horas ociosas. Não sei se alguma vez já ofereceram a vocês as curiosas estruturas de arame que os ciganos confeccionam durante o inverno no sossego das grutas onde moram. É muito raro encontrá-las. Mas são pequenas maravilhas. Com um gesto, uma cestinha de frutas se transforma numa gaiola de pássaros, a gaiola de pássaros numa cúpula de luminária, a cúpula de luminária numa cesta de pão, e a cesta de pão novamente na cestinha de frutas. Mas a arte maior, a arte nacional dos ciganos, é a música. Com seu violino eles conquistaram países inteiros. Particularmente na Rússia era impossível imaginar uma festa ou casamento sem música cigana, e aconteceu mesmo de mulheres ciganas chegarem aos mais altos círculos da sociedade da corte através do casamento com boiardos ⁶⁰ . Todo cigano é um violinista nato. Geralmente ele não sabe ler uma nota, mas seu instinto musical compensa tudo, e dizem que ninguém é capaz de executar como ele as mais ardentes melodias húngaras. E em nenhum momento ele é mais orgulhoso do que quando tem um violino nas mãos. Conta-se uma história de como um cigano uma vez apareceu à porta da sala do conselho, no palácio de um duque da Hungria, para perguntar se eles gostariam de ouvi-lo tocar. E apesar de os conselheiros estarem deliberando sobre algo extremamente complicado, a pergunta do cigano soou tão cheia de orgulho e irresistível, que eles não puderam recusar. O cronista que nos legou esta história afirma que, ao ouvir aquela música, o duque subitamente vislumbrou a ideia salvadora que até então ele e seus conselheiros buscavam inutilmente encontrar.
A música cigana geralmente é carregada de melancolia. E na verdade eles são um povo que carrega o traço da melancolia. Em sua língua parece não haver um vocábulo para alegria ou animação. Talvez esta melancolia não venha apenas daquilo que eles sofreram em tantos lugares por onde passaram, mas também das sombrias superstições que preenchem o seu diaa-dia. Vocês alguma vez já observaram as mulheres ciganas quando elas andam nas ruas? Vocês não perceberam como elas seguram firme com as mãos as duas saias junto ao corpo? Elas fazem assim, pois segundo os ensinamentos dos ciganos, tudo que entra em contato com as roupas de uma mulher não pode mais ser usado. Por isso os utensílios de cozinha dos ciganos não ficam sobre a mesa ou num console na parede, mas sim no alto, pendurados no teto, para que eles não sejam tocados por descuido, por alguma peça de roupa. Uma superstição semelhante ronda o cálice de prata, que é o objeto de propriedade mais valioso de todo cigano e no qual reside, segundo a crença, uma espécie de poder mágico. Este cálice jamais pode cair no chão, pois a terra é sagrada. Uma vez que o cálice tenha tocado a terra, ele então sucumbe a ela e já não pode mais ser utilizado. A melancolia existencial reflete-se de forma mais peculiar no amor, pois é ali que através de uma série de sinais silenciosos, eloquentes e graves, eles dão a entender um ao outro tudo que há de mais importante. Se, por exemplo, um casal se separou e o homem ou a mulher deseja fazer as pazes um com o outro, então quando eles se encontram o parceiro atira uma carta ou um pequeno pedaço de papel para o alto. Se o outro corre para apanhá-la e consegue, então eles estão reconciliados. Mas se ele não move a mão, então está tudo acabado para sempre entre eles. Haveria ainda muitos destes costumes sobre os quais poderíamos falar aqui. Quando era jovem e estudava em Estrasburgo, Goethe tinha um interesse apaixonado pelas tribos mais incultas e desconhecidas e dedicou-se aos ciganos, de quem ele nos fala em sua obra Götz von Berchlingen . Ao mesmo tempo ele escrevia sua sinistra, tristonha e selvagem Canção dos Ciganos , que vocês encontram nos volumes de poesia. Vocês podem dar uma olhada; lida em voz alta, ela causa arrepios, então prefiro não ler aqui. Mas vai lembrar a vocês muita coisa de que lhes contei hoje. 58 No original, vogelfrei , livre como um pássaro. 59 Albrecht von Wallenstein (1583-1634), general leal ao imperador Ferdinand II, combateu ao lado da Liga Católica contra a União Protestante. Político habilidoso, tornou-se o homem mais poderoso do império, sendo mais tarde acusado de traição e assassinado. 60 Membros da aristocracia russa.
A Bastilha, a antiga prisão nacional da França
No calendário francês, o dia 14 de julho está assinalado em vermelho, pois este é o feriado nacional dos franceses. Há quase 150 anos ⁶¹ festeja-se neste dia a queda da Bastilha, que aconteceu em 14 de julho de 1789 e foi o primeiro sinal visível e de grande vulto de que a revolução triunfava sobre as velhas estruturas. A queda da Bastilha não foi o resultado de uma longa luta até à tomada do prédio. É verdade que se tratava de uma fortaleza segura, guardada por torres imponentes, com um fosso construído à sua volta, erguida após 14 anos de trabalho, de 1369 a 1383. Até hoje dispomos de muitas imagens dela. Sombria e com suas fundações firmemente assentadas, ela se situava à margem da grande cidade. Seus muros tinham mais de 400 anos, quando a revolução os levou abaixo. E mesmo assim, foi uma enorme massa de gente, armada de forma precária, que rapidamente forçou o comandante a se render. E então, quando a massa tomou de assalto os antigos corredores, vasculhando a fortaleza das covas nos porões até ao telhado, é bem possível que algumas daquelas pessoas tivessem se surpreendido ao encontrar não mais do que 16 prisioneiros naquela que era a casa do terror. E a este cenário correspondia à ocupação militar da Bastilha no momento do assalto: não mais que 40 soldados suíços e 80 inválidos à disposição do governador. Como entender o ódio monstruoso que o povo de Paris sentia por esta fortaleza, um ódio que era tão feroz que aqueles, dentre os revolucionários, que haviam permitido a retirada do governador em liberdade não puderam impedir que ele fosse executado pelo povo – isto eu espero que vocês venham a entender nesta próxima meia hora. Primeiramente, é preciso dizer que a Bastilha não era uma prisão comum. Para ali eram trazidos apenas aqueles contra os quais pesava a acusação de um crime contra a segurança do Estado. Havia para isso a distinção entre prisioneiro de estado e prisioneiro da polícia. Os prisioneiros de estado eram aqueles acusados de ações supostamente concretas, conspirações, motins ou algo parecido; os prisioneiros da polícia, que eram em muito maior número, eram escritores, livreiros, gravuristas, encadernadores ou encadernadoras, indivíduos, que real ou supostamente, tinham algo a ver com livros que eram malvistos pelo rei ou seus favoritos. A Bastilha era realmente uma prisão incomum. Em dias de festa, principalmente quando fazia bom tempo, sobre suas plataformas e entre as ameias de suas torres era possível avistar parisienses passeando e se divertindo. Carruagens luxuosas passavam pela ponte levadiça trazendo visitas, grupos de músicos chegavam para tocar num jantar de gala oferecido pelo governador, que era na verdade o diretor da prisão. Ao mesmo tempo, nas torres imponentes e nos porões sombrios a situação era inteiramente diferente. Mas os cidadãos que estão do lado de fora percebem tão pouco o que se passa com os que estão do lado de dentro, quanto estes percebem daqueles que estão em liberdade. Abóbadas estreitas, que nas penitenciárias até hoje são anexadas à frente das janelas, faziam com que a maioria dos prisioneiros não pudesse ver mais que uma pequena porção da luz do dia. Sem falar naqueles que permaneciam trancados nos calabouços, aonde a luz chegava através de uma fresta mínima na parede, iluminando os insetos com quem eles eram forçados a dividir a cela. Sobre quem estava aprisionado na Bastilha, corriam apenas boatos em Paris. Ninguém poderia prever quando seria detido. De uma hora para outra apareciam os oficiais e atiravam o indivíduo no compartimento de uma charrete, na verdade um carro de aluguel comum, para não despertar
qualquer suspeita. Quando o carro chegava ao pátio da bastilha, os vigias já colocavam um capuz sobre o rosto do detento, pois a ninguém além do diretor da prisão era permitido saber de quem se tratava. No interior da Bastilha, contudo, a notícia se espalhava rapidamente. Do lado de fora ninguém ficava sabendo, e logo vou contar a vocês a história do homem da máscara de ferro, que até hoje ninguém sabe exatamente quem era. Essa forma de detenção acontecia de forma tão rápida, que costumava se dizer que era uma sorte, quando alguém era preso à luz do dia, pois de madrugada os oficiais não davam sequer tempo para a pessoa se vestir. Era tão rápido, que uma vez um criado, ao ver seu senhor desaparecer numa destas charretes, pulou em cima do carro sem ter a menor ideia do que estava acontecendo e acabou tendo que ficar durante dois anos na Bastilha, pois sua libertação teria causado enormes transtornos. O processo de detenção tinha início com as famosas cartas lacradas – em francês Lettres de cachet – nas quais constava apenas o nome de quem deveria ser preso. Muitas vezes o prisioneiro só ficava sabendo qual o motivo da detenção depois de semanas, às vezes após meses, e às vezes nunca. E se eu contar agora a vocês, que alguns favoritos do rei recebiam estas cartas, só que sem o nome do prisioneiro preenchido, o que significava que poderiam preencher como bem entendessem, então vocês podem imaginar que tipo de abuso era comum acontecer. Através da história do homem da máscara de ferro, que vou lhes contar agora, vocês vão poder deduzir como funcionavam, em geral, as coisas na Bastilha. Quinta-feira, 18 de setembro de 1689, às 3 horas da tarde, o diretor da Bastilha chegou aqui vindo pela primeira vez da Ilha de Margareten (ali ficava outro grande presídio). Ele vinha trazendo em sua liteira um preso, cujo nome era mantido em segredo e jamais seria revelado. Primeiro ele foi levado à torre de la Bassinière – todas as torres da Bastilha têm um nome especial; às 9 horas, quando havia escurecido, me foi ordenado que o levasse até à terceira câmara de outra torre, um cômodo que eu anteriormente havia equipado com todo tipo de móveis que se pode imaginar. E isto, literalmente, é tudo que nos foi testemunhado a respeito do homem da máscara de ferro, até à notícia de sua morte, que foi registrada no diário deste mesmo tenente cinco anos mais tarde. O prisioneiro desconhecido, que tinha o rosto permanentemente oculto por uma máscara negra de veludo e que há cinco anos havia sido trazido pelo diretor, vindo da Ilha de Margareten, faleceu ontem, após chegar da missa e ter se sentido mal, sem, contudo, ter propriamente adoecido. Ele foi sepultado já no dia seguinte, e o tenente registrou caprichosamente em seu diário que o enterro havia custado 40 francos. Pode-se dizer com segurança que o corpo foi decapitado antes de ser sepultado, e que a cabeça foi dividida em diversas partes enterradas em locais diferentes, para garantir que ficasse totalmente irreconhecível. O medo que o rei e o diretor da Bastilha tinham de que, após sua morte, se pudesse finalmente descobrir quem era o homem da máscara de ferro chegou a tal ponto, que foi dada a ordem para que se queimasse toda roupa de cama, trajes, colchões e camas,
que ele houvesse utilizado; que as paredes do cômodo que ele havia habitado fossem cuidadosamente raspadas e pintadas de branco; que se tivesse ainda a extrema precaução de afrouxar as pedras da parede e retirar uma por uma para se certificar de que ele não havia escondido ali qualquer bilhete ou feito qualquer inscrição que pudesse revelar sua identidade. Sua máscara não era de ferro, apesar de ele levar este nome, e sim de veludo negro, modelado e firmado com osso de baleia. Na parte posterior, era lacrada com um cadeado, de forma que lhe era impossível retirá-la, e nem mesmo outra pessoa poderia fazê-lo, se não tivesse a chave do cadeado. É verdade que ele conseguia comer sem grandes dificuldades, mesmo usando a máscara. Havia a ordem de executá-lo imediatamente, caso ele revelasse quem era. O que ele solicitava lhe era dado. Havia vários indícios de que ele era um homem nobre, entre os quais, o respeito que lhe era demonstrado, a sua preferência por um enxoval fino, por roupas caras e seu talento ao tocar cítara. Sua mesa era sempre servida com iguarias selecionadas e raramente o diretor se atrevia a permanecer em sua presença. Um velho médico na Bastilha, que visitava e examinava regularmente este notável homem, explicou mais tarde, que jamais chegou a ver seu rosto. O homem com a máscara de ferro era de uma aparência extremamente bela, de uma postura bastante firme, e com o simples som de sua voz era capaz de cativar a todos ao seu redor. Com toda sua aparente humildade e subordinação, ele conseguia, segundo afirmam, fazer chegar a si notícias do mundo de fora. Contam que um dia ele teria arremessado um prato de madeira pela janela sobre o qual se achou o nome Macmouth riscado. Esta história tem uma importância enorme na lista das inúmeras tentativas feitas para desvendar quem era a pessoa por trás daquela máscara. Desde sempre, todos os pesquisadores foram unânimes em afirmar que esse prisioneiro só poderia ter sido um homem de origem nobre, com toda probabilidade de uma família real. Naquela época o rei Jacob II governava a Inglaterra, contra o qual um filho de Carlos II havia se rebelado na qualidade de rei-adversário. Este reiadversário era o duque de Monmouth, que foi derrotado e executado em 15 de julho de 1685. Logo corria o boato de que o homem executado era na verdade um oficial do duque de Monmouth, que havia dado a vida para salvar a do seu senhor. O verdadeiro duque havia escapado para a França, porém ali havia sido detido por Luis XIV. Queria contar isso, ainda que vocês devam saber que ao longo dos séculos surgiram inúmeras explicações que chegam a ser um pouco piores do que esta. Mas nenhum dos historiadores que investigou o tema conseguiu até hoje ter a firme certeza sobre o que dizia. Contei a vocês como cada um que saía desta prisão assinava um termo de compromisso que o proibia de revelar uma palavra que fosse sobre o que tinha visto e ouvido ali dentro. Mas se hoje em dia não se cumpre à risca todo e qualquer decreto que aparece, o mesmo já era o caso naquela época. É por isso que sabemos tanta coisa sobre a Bastilha. E através de quem mais nós poderíamos saber, se não fosse pelos próprios prisioneiros? Pois as pessoas que tinham a tarefa de vigiar estes presos com certeza não tinham o menor interesse em legar à posteridade as crueldades e falcatruas pelas quais eram responsáveis. Por outro lado, as pessoas nobres e cultas, que eram em grande número naquela prisão, fizeram publicar posteriormente sua biografia ou pelo menos suas memórias daqueles anos na Bastilha. É claro que não na França. O que se fazia na época era conseguir que os
manuscritos fossem contrabandeados para o exterior, geralmente para a Holanda, ou pelo menos, se fossem impressos na França, que constasse uma cidade holandesa como o local da publicação, normalmente Haia. Vou ler agora para vocês o trecho de um destes livros de memórias, o de Constantin von Renneville, que ficou detido na Bastilha sob o governo de Luis XIV. Vocês poderão ver como os pobres prisioneiros realmente se desdobravam para inventar inúmeras formas de comunicação entre si, num lugar onde todo e qualquer contato entre eles era estritamente proibido. Meu firme desejo [escreveu o senhor de Renneville mais tarde, após sua libertação] continuava sendo o contato com qualquer pessoa que fosse, e este anseio natural apenas se intensificou com a solidão em que eu vivia. Aqueles que estavam presos num andar abaixo do meu jamais me respondiam; porém os do andar de cima começaram finalmente a me enviar alguns sinais. Contudo não era possível, e ainda que fosse seria extremamente perigoso, perfurar o teto de forma que se pudesse passar pequenos bilhetinhos por ali. Pois ele era tão branco e liso, que o menor entalhe que se fizesse seria percebido pelo vigia. De tanto matutar acabei por encontrar um meio de fazer com que os presos de cima pudessem entender o que eu queria dizer. Certamente o método era lento e exigia enorme atenção, mas por isso mesmo ele nos tomava mais tempo e nos amparava em nossa insônia e tédio. Criei um alfabeto e fiz com que eles o entendessem através de pancadas na parede com um bastão e a cadeira. Um ‘A’ era uma pancada, um ‘B’ exigia duas, um ‘C’ três, e assim por diante. Uma pequena pausa indicava a passagem de uma letra para outra; uma pausa mais longa assinalava o fim de uma palavra. Depois de muita repetição eles acabaram por compreender e tive a mais agradável surpresa, quando um dia percebi que eles utilizavam o mesmo código para perguntar sobre mim, quem eu era, por que estava ali etc. Quando mais tarde me concederam a regalia de ter um companheiro de cela, desisti daquele trabalhoso método de comunicação. Durante cinco anos não ouvi mais falar daquilo, e fiquei bastante admirado quando ouvi posteriormente outros prisioneiros conversando com enorme desenvoltura por meio daquele código. Minha invenção foi sendo aperfeiçoada cada vez mais e batizada como a arte de falar com o bastão. Conforme a sua necessidade, outros presidiários chegavam a inventar coisas ainda mais curiosas. Houve um oficial, um verdadeiro nobre cujo título se recusavam a reconhecer, e para fazer valerem seus direitos ele havia falsificado uma certidão. Agora ele estava preso na Bastilha, e para se comunicar com os outros prisioneiros passou a escrever com carvão palavras soltas, com letras enormes, sobre o tampo da mesa de sua cela. Ele virava a mesa e colocava-a então junto à parede, de forma que o tampo aparecesse pela abertura da janela. As palavras eram escritas com letras tão grandes, que podiam ser reconhecidas mesmo da janela da torre mais distante, e outros prisioneiros respondiam a ele da mesma forma. Um dos diretores da Bastilha criou, certa vez, um cachorro que ficava passeando pelo pátio da prisão. Os prisioneiros não demoraram a ensinar o animal a abocanhar e trazer de volta bolinhas de papel que eles atiravam ao pátio. Quando eles finalmente conseguiram treinar o cachorro para pegar a bolinha numa determinada cela e levar até outra, passaram então a anotar as informações que queriam transmitir, antes de amassar o papel e atirar ao pátio. Assim, com o animal devidamente treinado, eles conseguiam se comunicar uns com os outros.
Porém, um dia o diretor descobriu e ordenou que se colocassem grades tão estreitas de forma que ninguém mais pudesse atirar qualquer coisa que fosse. Ainda que se lidasse com os prisioneiros de forma bastante severa, uma coisa era vista de forma muito negativa na Bastilha: quando um dos detentos morria na prisão. Era muito raro acontecer que pessoas encarceradas fossem condenadas à morte ao final de seu processo, e quando isso acontecia, então um pouco antes elas eram removidas para outra prisão comum. Pois ali se mantinha firmemente a ideia de que a Bastilha era uma casa do rei, na qual não havia espaço para qualquer tipo de escândalo. Por isso registrava-se no famoso livro de saídas, do qual lhes falei há pouco, que o prisioneiro havia morrido em consequência de alguma doença – e isso valia mesmo para aqueles que haviam sido executados. Quando, porém, um dos prisioneiros ficava realmente doente, então, se não se tratava de alguém muito nobre, mandavam-no primeiramente para o barbeiro, que tirava o seu sangue, e somente quando a situação parecia muito grave, aí sim, mandavam-no para o médico. O médico, por sua vez, não se apressava muito, primeiro porque morava bem longe e segundo porque não era pago por aquilo e recebia apenas um salário básico por seus serviços na prisão. Mas quando, por fim, o prisioneiro ficava doente a ponto de todos verem que ele corria risco de vida, então ou ele era libertado ou simplesmente levado para outro lugar qualquer. O ministério não costumava ver com bons olhos quando pessoas famosas vinham a falecer na Bastilha. Podia-se pensar em todo tipo de coisas. Sabia-se exatamente, por exemplo, quantos presos eram inocentes e estavam ali simplesmente porque tinham uma dívida com algum homem nobre ou porque se meteram em seu caminho. E às vezes acontecia que o encarceramento de um adversário na Bastilha não era o bastante para satisfazer um inimigo tão poderoso. O preso poderia um dia, talvez, ser posto em liberdade. Por isso havia na Bastilha prisioneiros que diariamente temiam por suas vidas, pois não podiam saber se seu inimigo havia subornado um auxiliar de cozinha para que colocasse um pozinho na sua comida que daria fim aos seus dias. O ministério percebia com tanta clareza a possibilidade desse tipo de crime que baixou uma ordem colocando um aviso na cozinha que proibia qualquer pessoa de se aproximar demais das panelas e dos auxiliares de cozinha. Hoje é para nós uma das coisas mais assustadoras ver a diferença que havia entre a refeição oferecida aos prisioneiros conforme a sua condição social. Para os príncipes o valor fixado era de 50 francos – a partir daí a soma diminuía drasticamente: para a refeição de um marechal da França, 26 francos; para um juiz ou padre, 10 francos; para os homens simples, ou seja, trabalhadores, criados, vendedores ambulantes, não mais que 3 francos. Se eu fosse ler a lista completa, vocês iriam ver como esta casa estava preparada para receber pessoas de todas as classes sociais. No mais, aqui as diferenças se mostram mais acentuadas no papel do que na realidade. Num ponto, porém, todos os prisioneiros da Bastilha eram iguais: do diretor até o mais insignificante dos carcereiros, todos queriam ganhar alguma coisa com eles. Não havia a menor importância se a quantia que o rei pagava pela alimentação dos prisioneiros era realmente destinada a este fim. Isso não era segredo para ninguém. Todos sabiam exatamente quanto se podia ganhar na administração da Bastilha, e as quantias que um diretor tinha que pagar para que o outro o rendesse no seu cargo, ou para que recebesse o apoio
como seu sucessor, eram de um valor ao qual só as pessoas muito ricas tinham acesso. Não só a injustiça com que se praticavam as detenções e interrogatórios de presos na Bastilha enfurecia o povo, a ponto de tornar a destruição da fortaleza um lema dos primeiros dias da revolução. Mais do que isso, entre os muros da Bastilha era de um descaramento sem precedentes ver como o luxo mais ostensivo contrastava com a mais profunda miséria. O chefe da polícia de Paris era obrigado a realizar duas ou três vezes por ano uma visita de inspeção para se convencer de que tudo estava em ordem ali. Na verdade estas visitações consistiam num grandioso jantar que o diretor da prisão oferecia ao chefe da polícia, e quando então os vinhos mais finos, o café e os melhores licores haviam sido servidos, e todos achavam que já haviam desfrutado tempo suficiente à mesa, eles se levantavam e perambulavam à vontade até às torres, passando pelas celas, abrindo rapidamente esta ou aquela, para logo se recolher novamente às mordomias nos aposentos do diretor. Todas essas coisas mostram o quanto a Bastilha era uma ferramenta do poder, e o quanto ela não era um instrumento do direito. Os homens são capazes de suportar a crueldade e a severidade, se percebem que por trás delas está uma ideia, a ideia de que o rigor não é apenas o reverso do comodismo dos poderosos. A tomada da Bastilha não representa apenas uma mudança na história do Estado francês, mas também na história da vida humana sob o estado de direito. Os homens nem sempre compartilharam da mesma opinião e consciência na hora de impor uma pena ao seu semelhante. A visão mais antiga, a medieval, era de que toda culpa deveria ser expiada, não por causa das pessoas, mas para a manutenção da justiça divina. Muito tempo antes da Revolução Francesa, porém, já estava viva na mente dos grandes pensadores a ideia de que uma punição deveria ter como fim o aperfeiçoamento do culpado. Por meio desta perspectiva chegou-se mais tarde no século XIX à assim chamada doutrina da intimidação, segundo a qual as penas deveriam ter, sobretudo, um caráter preventivo. O sentido da pena seria impedir a ação daquele que pretende realizar o mal. As pessoas que eram responsáveis pela administração da Bastilha não se deram muito ao trabalho de refletir sobre essas questões. Se elas tinham ou não razão, para elas era indiferente, e por isso foram varridas pela Revolução Francesa. 61 Benjamin trabalhou nestas transmissões radiofônicas entre 1929 e 1932.
Caspar Hauser Hoje, para variar, vou simplesmente contar-lhes uma história. Mas antes devo dizer três coisas. Primeiro, tudo nessa história é a mais pura verdade. Segundo, é uma história emocionante tanto para adultos quanto para
crianças, e as crianças vão entendê-la tão bem quanto os adultos. Terceiro, apesar da personagem principal morrer no final, esta história não tem um verdadeiro fim. Ao contrário, ela tem a vantagem de ser uma história que continua, e assim quem sabe, um dia nós todos saberemos juntos como ela acaba. Não vão pensar, enquanto eu começo a contar: ih, lá vem mais uma daquelas histórias edificantes para jovens. Quem começa a contar aqui, sem pressa e detalhadamente, não sou eu, e sim o conselheiro Anselm von Feuerbach, e sabe Deus porque ele não escreveu seu livro para jovens crescidos, e sim para o público adulto. A Europa inteira leu o seu Caspar Hauser, e da mesma forma como eu espero que nos próximos 20 minutos vocês escutem, assim a Europa prendeu a respiração e manteve os ouvidos atentos por cinco anos, de 1828 a 1833. Ela começa assim: A segunda-feira de Pentecostes é um dos dias de maior animação em Nuremberg, quando a maior parte dos moradores se dirige para o campo e as localidades vizinhas para se distrair. A cidade, que em relação à sua pequena população parece ainda assim ser bem extensa, torna-se então, sob o lindo clima de primavera, tão silenciosa e deserta, que quase poderia ser comparada àquela cidade enfeitiçada no Saara, bem diferente do movimentado centro comercial e industrial que costuma ser. Especialmente em alguns bairros afastados do centro podem acontecer coisas misteriosas, mesmo à luz do dia. Pois assim ocorreu o seguinte, na segunda-feira de Pentecostes, 26 de maio de 1828, entre quatro e cinco horas da tarde: um cidadão, residente na chamada Unschlitt Platz, demorava-se um pouco à frente de sua casa, antes de seguir rumo ao chamado Portal Novo, quando olhou em volta e percebeu não muito longe um jovem em trajes de garoto camponês, com uma postura de corpo que chamava bastante a atenção, feito um bêbado fazendo um enorme esforço para caminhar, sem conseguir se manter ereto nem firmar os pés. O referido cidadão se aproximou do estranho, que lhe estendeu uma carta com a inscrição: “Ao Honrado Sr. Capitão de Cavalaria do 4 o Esquadrão do 6 o Regimento de Cavalaria Ligeira de Nuremberg”. Aqui eu creio que devo interromper a história, não apenas para explicar que um Regimento de Cavalaria Ligeira é o que chamamos hoje de regimento de cavalaria, mas também para lhes dizer que esta palavra de origem francesa está errada e só era escrita desta forma por causa de sua sonoridade. Isto é importante. Pois é assim que vocês devem imaginar também a ortografia da carta que Caspar Hauser tinha consigo, a que lerei para vocês mais adiante. Depois de escutar esta carta, vocês vão entender perfeitamente porque o capitão não quis mais se ocupar do rapaz, e buscou a forma mais rápida de se livrar dele, ou seja, chamando a polícia. Vocês sabem que a primeira coisa que a polícia faz, quando é solicitada, é um boletim de ocorrência. E na ocasião em que o capitão, que não tinha a menor ideia do que fazer com Caspar Hauser, encaminhou-o à polícia, surgiram as primeiras páginas do enorme Dossiê “Caspar Hauser”, que hoje se encontra guardado em 49 volumes no Arquivo da Cidade de Munique. O que o documento revela de forma clara é que Caspar Hauser chegou a Nuremberg como uma pessoa totalmente incivilizada, um estúpido cujo vocabulário não ultrapassava 50 palavras, que não entendia nada do que lhe falavam e que só tinha duas
respostas para qualquer pergunta que fosse: “ reuta wörn ” e “ woas nit ” ⁶² . Mas como ele teria chegado a seu nome “Caspar Hauser”? Era tudo muito estranho. Quando ele foi levado pelo capitão até aos policiais de plantão, a maioria deles não concordava se se tratava de um deficiente mental ou de um semisselvagem. Um ou outro opinava, contudo, que por trás do jovem poderia esconder-se um sorrateiro impostor. E numa primeira vista essa opinião acabou sendo reforçada pela seguinte circunstância: alguém teve a ideia de lhe pedir que escrevesse qualquer coisa, deram-lhe então uma pena com tinta e uma folha de papel; ele pareceu ficar alegre, tomou da pena entre os dedos com admirável habilidade e escreveu, para espanto de todos os presentes, seu nome com traços firmes e legíveis: Caspar Hauser . Pediram-lhe em seguida que escrevesse o nome do lugar de onde vinha. Mas ele não fez mais do que emitir repetidas vezes os mesmos “ reuta wörn ” e “ woas nit ”. O que estes policiais dedicados não conseguiram saber, ninguém até hoje também descobriu: de onde veio Caspar Hauser. Mas o que na época era sussurrado na guarita entre os vigias era que o rapaz seria um farsante da pior espécie, e isto tem sido afirmado até hoje, seja como boato, seja como opinião convicta. Vocês ainda vão ouvir coisas muito esquisitas, que dão razão a essas afirmações. Em todo caso, sendo eu aqui o narrador, não vou esconder de vocês que as considero falsas. Se existe uma fraude nesta história e no modo como ela começou, ela não deve ser procurada no rapaz, mas sim em outro ponto. Para isso eu tenho que ler para vocês a carta que Caspar trazia em mãos quando chegou a Nuremberg. Nobre Senhor Capitão! Envio-lhe um jovem que deseja servir a seu rei. Ele foi deixado na minha porta – por pessoa desconhecida, esteja claro – em 7 de outubro de 1812. Eu mesmo sou um pobre trabalhador, pai de dez filhos, que mal consigo sustentar, e não tive informação nenhuma de parte da mãe do rapaz. Também não denunciei às autoridades que o rapaz foi deixado na minha porta, pois imaginei que teria de acolhê-lo como filho. Dei a ele uma educação cristã e não deixei que desse um passo para fora de casa desde o ano de 1812, para que ninguém soubesse onde ele foi criado, e ele próprio não soubesse onde fica minha casa e qual é a localidade. O senhor pode perguntar, mas ele não saberá dizer. Honrado Senhor Capitão, de nada adiantará pressioná-lo, ele não sabe o local onde moro, eu o trouxe durante a madrugada, ele não sabe mais onde é sua casa. E ele não tem um tostão sequer no bolso, porque eu mesmo não tenho. Se o senhor não puder mantêlo consigo, deve matá-lo a pancadas ou enforcá-lo numa chaminé. Junto com esta carta havia um pequeno bilhete, escrito não com letras góticas, mas sim latinas, e num outro tipo de papel. Como parecia uma escrita totalmente diferente, esta deveria ser a carta com a qual a mãe havia abandonado a criança 16 anos atrás. Ali estava escrito que ela era uma moça pobre, que não poderia sustentar a criança, que o pai era do regimento de cavalaria ligeira de Nuremberg e que a criança, quando completasse 17 anos, deveria ser enviada até lá. Contudo, e aqui pela primeira vez se esbarra concretamente na fraude em torno da qual gira esta extravagante história: o teste de laboratório revelou que ambas as cartas, a de 1828, escrita pelo trabalhador, e a de 1812, escrita pela mãe, foram redigidas com a mesma tinta. Agora vocês podem imaginar que logo
ninguém mais acreditava nem numa carta, nem na outra, nem na existência do suposto trabalhador, nem da suposta moça pobre. Enquanto isso, Caspar Hauser foi levado provisoriamente para a cadeia municipal, sendo mantido menos como um prisioneiro e mais como uma atração turística, o que se tornou uma curiosidade para os forasteiros. Entre as inúmeras pessoas ilustres que se interessaram pelo caso extraordinário, e que por isso encaminharam-se até Nuremberg, estava o conselheiro confidencial Anselm von Feuerbach, que conheceu Caspar Hauser na época e alguns anos mais tarde escreveu o livro, cujas páginas iniciais eu li para vocês ainda há pouco. Ele foi o responsável pela virada decisiva desta história. Pois foi ele o primeiro a estudar o caso de Caspar Hauser com profundo interesse, diferente daqueles que olhavam para ele superficialmente. Ele percebeu logo que o desamparo, a estupidez e ignorância do rapaz se achavam em contraste gritante com seus talentos brilhantes e os traços nobres de seu caráter. Esta natureza especial e a excelência de seus dons, mas também certos aspectos físicos, como por exemplo, o fato de o menino ter marcas de vacina e naquela época só as famílias mais nobres terem condição de vacinar seus filhos, tudo isto fez Feuerbach pensar primeiramente que aquela pequena descoberta poderia ser o filho de uma família muito distinta, e que havia sido abandonado de forma criminosa por parentes para tirá-lo de seu posto de sucessor e afastálo das questões de partilha de herança. Feuerbach pensou, no caso, na família do grão-duque de Baden. Suposições desta mesma natureza podiam ser encontradas, de forma velada, nos jornais da época. Elas só aumentavam o interesse do público pela pessoa deste rapaz, e pode-se imaginar, o quanto isso deixava inquietos aqueles que acreditavam ter visto Caspar Hauser desaparecer de forma despercebida em algum abrigo para mendigos ou hospital de Nuremberg. Aconteceu de forma totalmente diferente. Feuerbach, que na condição de alto funcionário de Estado tinha poder de decisão, providenciou que o rapaz fosse instalado num ambiente que pudesse estimular e sustentar sua ânsia em aprender, que havia sido despertada e crescia agora com vivacidade cada vez maior. E assim, Caspar Hauser foi recebido como um filho na casa da família do professor Daumer, em Nuremberg. O professor era um homem nobre e bondoso, mas um tipo bastante esquisito. Ele nos legou não apenas um livro enorme sobre Caspar Hauser, mas também uma biblioteca inteira cheia de obras caprichosas sobre sabedoria oriental, segredos da natureza, curas milagrosas e magnetismo. Neste sentido ele realizou, certamente com todo cuidado e respeito pelo ser humano, experimentos com Caspar Hauser, e segundo as descrições que ele nos oferece, durante o tempo em que viveu na casa dos Daumer, o rapaz teria se mostrado uma criatura de extraordinária delicadeza de sentimentos, clareza de pensamento, sobriedade e pureza de alma. Como quer que tenha sido, o jovem realizou enormes progressos e logo já era capaz de descrever ele mesmo sua condição e conduzir sua vida. Nesta ocasião revelou-se o que acontecera na época que antecedeu sua aparição em Nuremberg. Ele parece ter passado vários anos num calabouço subterrâneo, sem ver a luz do dia nem ter contato com outros seres vivos. Dois cavalinhos de madeira, junto com um cachorro de madeira, teriam sido sua única companhia, pão e água seu único alimento. Somente pouco tempo antes de ser retirado do cárcere, um desconhecido teria iniciado um contato, entrado em seu calabouço e, mantendo-se de pé por trás dele, de forma que
não pudesse ser visto, conduzido sua mão e lhe ensinado a escrever. É natural que estes relatos tenham despertado as maiores dúvidas, além do mais tendo sido escritos em um alemão precário. Mas aqui temos mais uma vez algo estranho: é comprovado o fato de que nos primeiros meses em Nuremberg, Caspar só aceitasse pão e água e não se servisse de mais nada, nem sequer leite, assim como foi comprovada sua capacidade de ver na escuridão. Os jornais não deixaram escapar esse fato e escreveram que Caspar havia começado a trabalhar num texto contando sua vida. Aquilo por si só já poderia ter sido uma fatalidade. Pois pouco tempo depois de isso ter sido revelado, ele foi encontrado inconsciente, sangrando de uma ferida na testa, no porão da casa dos Daumer. Ele conta que, enquanto estava num cômodo sob a escada, um desconhecido teria surgido e o golpeado do lado de fora com um machado. O desconhecido jamais foi encontrado. Mas afirma-se que uns quatro dias após o delito um senhor elegante apareceu diante dos portões da cidade, chegou junto de uma cidadã e, no momento que julgou apropriado, tentou se informar se Hauser, após o incidente e o ferimento, estava vivo ou morto; ele teria seguido com a mulher até um portão onde estava fixado um anúncio policial sobre o ferimento de Hauser e, após ter lido, se afastado de forma bastante suspeita, sem entrar na cidade. Se nós tivéssemos tempo suficiente, o que seria não só do meu agrado, mas também de vocês, eu poderia apresentar-lhes outra pessoa curiosa, que surgiu neste ponto na vida de Hauser, um senhor ilustre, que veio a adotá-lo. Mas que circunstâncias estão ligadas a isso, não temos como investigar agora. De qualquer forma, o ocorrido deixou claro que era necessário maior zelo pela segurança de Hauser, e assim ele foi levado de Nuremberg para Ansbach, onde Anselm von Feuerbach tinha o cargo de presidente do tribunal. Isto foi em 1831. Caspar Hauser viveu ainda dois anos, em 1833 ele foi assassinado. De que forma, eu conto agora para vocês, para encerrar. Mas nesse meio tempo sua vida havia passado por uma grande transformação. Tão rapidamente como seus talentos tinham se desenvolvido em Nuremberg, seu caráter havia se demonstrado tão nobre, da mesma forma tão súbita, seu crescimento espiritual se viu travado, tão profundamente se turvou a imagem de sua personalidade, e por último, ao final de sua vida – ele não passou dos 31 anos – diz-se que ele se tornou uma pessoa ruim, absolutamente medíocre, que ganhava honestamente seu sustento como escrivão e com trabalhos de cartonagem, no que tinha grande habilidade, mas de resto era uma pessoa que não se distinguia nem por uma notável dedicação ao trabalho, nem por um grande amor à verdade. Então, numa manhã de dezembro do ano de 1833, aconteceu que um homem o abordou na rua dizendo: “uma recomendação do senhor jardineiro do palácio, que gostaria de encontrá-lo hoje à tarde junto à fonte artesiana no parque etc., etc.” Por volta das quatro horas Caspar Hauser apareceu no jardim do palácio. Não havia ninguém junto à fonte artesiana; ele seguiu uns cem passos na direção habitual. Então surgiu um homem de detrás dos arbustos, estendeu a ele uma bolsa de cor violeta e disse: “Eu gostaria de presenteá-lo com esta bolsa.” Caspar Hauser mal chegou a tocá-la, quando sentiu um golpe, o homem desapareceu, Caspar deixou a bolsa cair e ainda conseguiu ir cambaleando até em casa. Mas o ferimento foi fatal. Ele morreu depois de três dias. Antes disso ainda conseguiram interrogá-lo. Mas se esse
desconhecido era a mesma pessoa que tentou matá-lo quatro anos atrás em Nuremberg, isto permanece envolto em mistério, como de resto, tudo mais. Assim houve gente agora, por exemplo, querendo afirmar que o próprio Caspar Hauser teria se apunhalado. A sacola, porém, foi encontrada. E com ela tudo se torna definitivamente esquisito. Pois ela não continha nada além de um bilhete dobrado, com um texto escrito em letra espelhada que dizia: Hauser poderá contar a vocês exatamente como eu me pareço e de onde venho. Para poupar a Hauser esse trabalho, direi eu mesmo a vocês, de onde venho. Eu venho da fronteira com a Baviera. Quero até mesmo dizer meu nome a vocês. E então, seguem-se apenas três letras maiúsculas: M L O. Já contei a vocês que os 49 volumes dos autos se encontram no Arquivo Municipal de Munique. O rei Ludwig I, que se interessou pela história, deve ter examinado todos eles. Depois vieram ainda muitos estudiosos. A discussão se Caspar Hauser era ou não um príncipe da província de Baden ainda não foi resolvida. Cada ano surge um ou outro livro novo em que se afirma que o mistério estaria solucionado. Podemos apostar 100 contra 1: quando vocês forem adultos, ainda haverá gente que não consegue deixar de pensar nessa história. Se um destes livros chegar às mãos de vocês, então vocês talvez farão a leitura para ver se ali se encontra a revelação que este programa de rádio ficou devendo. ⁶³ 62 Corruptela de “ reiter werden ” (tornar-se cavaleiro, formar-se na cavalaria) e “ wei β nicht ” (não sei). 63 Confirmando a previsão de Benjamin, o debate em torno do caso Caspar Hauser prosseguiu e inspirou o filme de Werner Herzog “O enigma de Kaspar Hauser” (1974), disponível na internet em http://www.youtube.com/ watch?v=9bnug0gS2wQ
Doutor Fausto Quando era jovem, aprendi História lendo o Neubauer ⁶⁴ , que ainda deve existir em muitas escolas, talvez hoje um pouco diferente do que era antes. Na época o que mais me chamava atenção era que as páginas eram divididas em caracteres grandes e pequenos. As páginas com caracteres grandes falavam de príncipes, guerras, tratados de paz, alianças, datas etc., coisas que tínhamos que decorar, e eu não achava muita graça. Em caracteres pequenos vinham as páginas com a, assim chamada, história das civilizações ⁶⁵ , contando sobre os costumes e tradições das pessoas em tempos antigos, suas crenças, sua arte, ciência, suas construções etc. Aquilo não era preciso decorar, bastava ler, o que era muito mais divertido. Por
mim, as páginas impressas em caracteres pequenos poderiam ter sido em número muito maior. Não se ouvia falar muito sobre essas coisas durante a aula. O professor de alemão dizia: isto vocês vão ver na aula de História, e o professor de História: isto vocês vão ver na aula de alemão. No final acabávamos quase sempre sem ouvir nada. Do Fausto, por exemplo, nos diziam que o grande drama de Goethe tinha sua origem numa tradição que remontava a mais de duzentos anos; do mestre e mago Johann Faust e seu pacto com o diabo nos diziam que sua vida estava descrita em dez ou 20 livros, mas que tudo se resumia a dois, dos quais o primeiro havia sido publicado em 1587 e o segundo em 1599; talvez tenham nos dito até que o Dr. Johann Faust realmente havia existido, mas isso era tudo. O que os primeiros livros contavam sobre ele, as muitas histórias de magia, suas viagens e as aventuras pelas quais tinha passado, nada disso nós escutávamos – mesmo que elas fossem não só de grande importância para se compreender inteiramente o Fausto de Goethe, mas também porque eram bastante divertidas. Para mergulharmos no tema, quero contar a vocês uma das histórias de magia mais assustadoras que conheço, principalmente porque ela em nada se parece com o que já vi em qualquer livro de lendas. Sem dúvida já vimos mais de uma vez um mágico cortar a cabeça de alguém e logo em seguida recolocá-la no lugar milagrosamente. Mas escutem só, esta história: Quando certa vez Fausto se encontrava num botequim em meio a alguns bons companheiros que o haviam convidado, estes lhe pediram que mostrasse o truque de cortar a cabeça de uma pessoa e recolocá-la. O servente da casa se ofereceu para a experiência e Fausto cortou sua cabeça. Mas quando tentou recolocá-la, algo deu errado, e ele então percebe que um dos convidados lançou-lhe um feitiço que impedia sua magia de funcionar. Fausto advertiu os convidados, mas o culpado não retirou o efeito de seu passe. Fausto então fez brotar da mesa um lírio, cuja flor ele cortou com uma faca. Imediatamente a cabeça do convidado que havia impedido sua mágica desprende-se do tronco. Fausto, por sua vez, recoloca a cabeça do servo no lugar e parte dali em seguida. A este tipo de façanha dava-se na época o nome erudito de Magia innaturalis, ou seja, a magia inatural, em contraste com a magia natural, que era aquela que hoje chamamos de Física, Química e Técnica. O primeiro Fausto estava muito mais interessado no primeiro tipo de magia, uma magia grosseira e insolente, que lhe rendia dinheiro aos montes, boa comida, vinhos caros, viagens a terras distantes sobre um manto mágico e coisas do gênero, enquanto que o Fausto do teatro, assim como o das marionetes, sobre o qual vocês vão ouvir um pouco em seguida, e também o do drama de Goethe, não era de forma alguma um malfeitor, mas sim um homem que em troca de seu pacto com o diabo deseja compartilhar dos segredos da natureza, ou seja, os da magia natural. O teatro de marionetes começa logo com o diálogo do diabo com seu ministro Charon no inferno, lhe dizendo que já anda cansado de só receber ali patifes miseráveis. “Gostaria de receber aqui embaixo um grande homem!” E é assim que o demônio Mefistófeles vai ao encontro de Fausto para seduzi-lo.
Este Fausto, resumindo, nasceu provavelmente por volta de 1490 no sul da Alemanha, mais tarde foi estudante e tirava seu ganha-pão com dificuldade, ora com palestras, ora com aulas em escolas, como era de costume naquela época, e concluiu seu doutorado em Heidelberg – isto sabemos pelos registros da universidade – em 15 de janeiro de 1509. Depois disto ele retoma sua velha vida de aventuras, chega em 1513 a Erfurt, onde se intitula “Fausto, o Semideus de Heidelberg”, então pode ser que tenha seguido para Cracóvia e por fim provavelmente até Paris, onde esteve a serviço de Francisco I. Esteve também em Wittenberg. Nos discursos de Lutero há um trecho em que se fala de Fausto. Mas, perseguido por sua magia, ele teve de fugir de Wittenberg, e finalmente, como sabemos pela Crônica de Zimmerchen ⁶⁶ , veio a falecer por volta de 1539 numa aldeia do condado de Würtemberg. A partir desta crônica do conde Christof von Zimmern, o próprio, na qual lemos a única notícia sobre a morte de Fausto, também encontramos porém, algo muito mais interessante. Pois ali está escrito que Fausto deixou uma biblioteca. Ela deve ter sido entregue ao Conde von Staufen, em cujas terras Fausto veio a falecer. Mais tarde, conta-se, pessoas vinham com frequência procurar o conde e lhe ofereciam grandes quantias de dinheiro para adquirir os livros do espólio de Fausto. A única certeza que temos é de que um praticante de magia negra do século XVII teria pagado 8000 florins pelo que se chamou de uma obrigação infernal. Mas o que vem a ser uma obrigação infernal? São as fórmulas ocultas e sinais mágicos com os quais se acreditava poder evocar o diabo e também outros espíritos, bons e maus. Eu não sei como poderia descrever para vocês. Estes sinais não são nem letras nem números, no máximo lembram às vezes a escrita árabe, às vezes a hebraica, outras vezes complicadas figuras matemáticas. Elas não têm sentido algum além de permitir aos mestresmagos que expliquem aos seus alunos, caso alguma evocação dos espíritos venha a falhar, que eles não reproduziram fielmente as figuras. Isto bem deve ter acontecido com frequência, pois as figuras chegam a ser tão complicadas, que só é possível copiá-las colocando um papel transparente por cima. Quanto ao vocabulário usado nestas obrigações infernais, trata-se de uma salada ⁶⁷ que mistura palavras do latim, hebraico e alemão, tudo soando muito bombástico, mas sem qualquer sentido. Naquela época as pessoas pensavam de outra forma, vocês podem imaginar. Sim, a obrigação infernal era considerada tão perigosa, que o tipógrafo Johann Spieß, natural de Frankfurt e o primeiro a imprimir um livro sobre Fausto em 1587, anotou em seu prefácio que após refletir cuidadosamente, resolveu omitir da publicação todas aquelas partes que pudessem causar qualquer escândalo, ou seja, especialmente as fórmulas secretas que poderiam ser encontradas na biblioteca de magia. Não vão pensar que uma biblioteca de magia, dessas que existiam de verdade e em grande quantidade na Idade Média, era uma coleção de livros impressos; eram mais um amontoado de cadernos escritos à mão, quase como cadernos de química ou matemática. As pessoas não deixavam de ter razão quando julgavam ser um perigo ter em mãos alguns destes cadernos: realmente era. Mas não porque o diabo entraria pela chaminé da casa de quem os guardasse, e sim porque a Inquisição o prenderia e acusaria, caso viesse a saber. A história
nos conta casos comprovados, em que só o fato de possuir o Livro Popular do Doutor Fausto trouxe terríveis consequências para seus donos. Sim, há um bocado de coisas que podem causar as piores consequências. Se depois vocês puderem ler o Fausto de Goethe, encontrarão ali o trecho em que, durante um passeio em frente ao portal da cidade, num dia de Páscoa, um poodle preto aparece diante de Fausto. Mais tarde, enquanto estuda em seu quarto, o cachorro começa a correr e a fazer um barulho enorme, incomodando-lhe, e então o Fausto de Goethe diz a ele: Entendamo-nos, cão. Se te agrada o meu quarto, não me tornes a uivar, que já estou mais que farto. Não tolero ao meu lado um atrapalhador. Desempata: eu ou tu! Dei-te abrigo e calor; sou o teu hospedeiro, e da hospitalidade não quero as leis quebrar. Tens plena liberdade: se te agrada sair, bem vês a porta aberta. Mas...que é isto que observo? Assim se desconcerta das coisas o teor, o ser da natureza! Sonho ou velo?... O meu cão não tinha esta grandeza nem este corpanzil. E o súbito denodo com que se ergueu de um pulo! Isto de todo em todo já não é cão; os cães não têm esta figura. Então que gênio mau, que horrenda diabrura hospedei eu em casa? Ah, como vai crescendo! Que hipopótamo é este! Horrendo vulto, horrendo! Vibra chamas do olhar, ameaça com a dentuça! Teu diabólico ser debalde se rebuça; apanhei-te. Ora espera; e tu verás se o signo do grande Salomão contra o poder maligno de vós, relé do inferno, essências vis e imundas, te não vai atirar de súbito às profundas. ⁶⁸ O poodle é o demônio disfarçado, que nos livros de magia é chamado Praestigiar , o que poderia ser traduzido como o fogo fátuo mágico. Nos
livros antigos consta que, bastava um comando de Fausto, e o pelo deste poodle transformava-se em branco, marrom ou vermelho, e que ao final de sua vida, Fausto teria deixado o cão como herança para um padre, que não gostou nem um pouco da ideia e apressou-se a dar um fim ao animal. Vocês podem encontrar prova do quanto o povo acreditava nestas histórias fantasmagóricas pelo relato de Agrippa von Nettesheim, um grande erudito da época; ele precisou que um de seus alunos desse um testemunho formal de defesa contra uma acusação de feitiçaria, simplesmente porque as pessoas afirmavam ver Agrippa andando sempre em companhia de um poodle preto. Nas primeiras histórias do Doutor Fausto havia diversos trechos aos quais as pessoas reagiam como nós reagimos hoje às histórias de fantasmas, histórias que achamos esquisitas, às vezes assustadoras, às vezes divertidas, sem ficar pensando muito sobre aquilo tudo depois. Mas havia também trechos diferentes e leitores diferentes. A física e a química eram qualificadas como formas de magia natural, o que nos demonstra bem como esta magia não significava o contrário das práticas mágicas, como entendemos hoje em dia. Quando em algumas histórias, por exemplo, a magia de Fausto consistia em apresentar aos príncipes ou estudantes curiosos os retratos dos gregos antigos, Homero, Aquiles, Helena e outros, e quando por outro lado, alguns leitores já tinham visto ou ouvido falar da Lanterna magica , esse conhecimento de forma alguma servia como refutação, ao contrário, só vinha confirmar os poderes mágicos do Doutor Fausto. Saber utilizar a Camera obscura , cujos princípios servem de base para a Lanterna magica : isto significava magia para estas pessoas, daí exatamente o nome, Lanterna magica. Da mesma forma, a fronteira entre as primeiras tentativas de voo com balões e as viagens aéreas de Fausto com seu manto mágico não era tão nítida quanto é para nós hoje. Sem falar nas muitas receitas médicas que hoje nos parecem naturais e sensatas, e naquela época eram consideradas mágicas. Era impossível assim separar o mago do erudito. O mago era abominado pelo povo por ter feito um pacto com o diabo, mas sendo um erudito ele permanecia uma criatura de espírito elevado, o que mais tarde foi de enorme importância para o Fausto. Isto também foi mostrado, à sua maneira, pelo teatro de marionetes. Para que até o mais simples dos espectadores pudesse reconhecer que tipo de sujeito extraordinário é este Fausto, colocou-se ao lado dele o Arlequim, para fazer um contraste. O Arlequim também tinha feito seu pacto com o demônio, mas continuará sendo o mesmo tolo e ridículo de sempre, e ao final chega até mesmo a se livrar do diabo. A mais bela passagem do teatro de marionetes é o final, quando antes de morrer o pobre e perseguido Fausto encontra o Arlequim, tão tolo e sem graça, que o diabo já desistiu dele há muito tempo e vem buscar o Fausto dali a duas horas. Vou ler para vocês agora: Fausto: Jamais encontro paz e repouso. Por toda a parte persegue-me a visão do inferno. Oh, por que não fui firme em meu intento? Por que me deixei seduzir? Mas o mau espírito soube encontrar meu lado fraco; estou para sempre amaldiçoado. Até Mefistófeles me abandonou, logo agora nesta hora infeliz, quando precisava de alguma distração. Mefistófeles, Mefistófeles, onde você está?
(Agora surge Mefistófeles como o diabo). Mefistófeles: Fausto, em que posso servi-lo? Fausto: Mas o que é isso? Você se esqueceu de sua obrigação? Você deve me aparecer sempre em forma de pessoa! Mefistófeles: Não, agora não mais, pois seu tempo acabou. Só mais três horas, então você será meu. Fausto: Como, o que você está falando, Mefistófeles? Meu tempo acabou? Você está mentindo. Só se passaram doze anos, sendo assim ainda faltam mais doze anos em que você deve me servir. Mefistófeles: Eu lhe servi por 24 anos. Fausto: Mas como isto é possível? Você está querendo mudar o calendário? Mefistófeles: Não, disso eu não sou capaz – mas me escute com calma. Você está exigindo mais doze anos. Fausto: Com razão. Está escrito no nosso contrato, 24 anos. Mefistófeles: Com toda certeza, mas nós não acertamos que eu deveria servir a você dia e noite. Mas você andou atrás de mim dia e noite, então acrescente as noites e você verá que nosso contrato chegou ao fim. Fausto: Ah, seu mentiroso, você me enganou! Mefistófeles: Não, você é que enganou a si mesmo. Fausto: Deixe-me viver só mais um ano!Mefistófeles: Nem um dia a mais. Fausto: Só um mês! Mefistófeles: Nem uma hora a mais. Fausto: Só mais um dia, para que eu possa me despedir dos meus amigos queridos. Mas Mefistófeles não se deixa convencer. Ele já serviu por tempo suficiente; “Às doze horas nos vemos novamente”, e com estas palavras ele se despede de Fausto. Vocês podem imaginar como no teatro de marionetes este momento é emocionante e prende a atenção de todos, pois é quando entra em cena o Arlequim, lenta e discretamente, no papel de vigia noturno que, sossegado, vai dando as horas. Três vezes. “Meus senhores, minhas senhoras, escutem o sino, deu dez horas!” e assim por diante, como nas antigas ladainhas de vigias noturnos na Alemanha.
Pois sim, o Fausto ainda tem duas horas de vida, duas horas até as doze, e então, nos seus últimos quinze minutos ele encontra o Arlequim; e para evitar que apesar de todas as suas patifarias nós ainda fôssemos sentir pena quando o diabo viesse buscá-lo, e também para nos mostrar de perto toda intensidade do seu desespero, o poeta do antigo teatro de marionetes permite a ele tentar a salvação através de uma última e lamentável trapaça. Qual foi e porque ela não funcionou - vocês vão ouvir agora: O Arlequim avista de repente o Fausto e diz: Ah, boa noite, Seu Faustinho, boa noite. O senhor, a essa hora, ainda pela rua? Fausto: Ah, sim, meu servo, não encontro paz em lugar nenhum, nem na rua, nem em casa. Arlequim: Pois é bem feito para o senhor. Veja só em que miserê eu estou agora – e o senhor ainda me deve o pagamento do mês passado. Tenha a bondade de me pagar agora, estou realmente muito necessitado. Fausto: Ah, meu servo, eu nada tenho comigo – o diabo me deixou tão pobre, que agora não sou dono nem de mim mesmo. (À parte, ele diz) Preciso dar um jeito de me livrar do diabo me aproveitando desse tonto. – (Agora ele quer enganar o Arlequim e diz:) Sim, meu querido servo, eu realmente não tenho dinheiro algum, mas não gostaria de partir deste mundo, sem antes lhe pagar. Vamos então fazer assim: você me dá suas roupas para vestir, eu lhe dou as minhas para você vestir, assim você recebe seu pagamento e eu quito a minha dívida. Mas o Arlequim balança a cabeça: Oh, não, aí no final o diabo poderia se enganar e pegar o sujeito errado. Não, para não acontecer um erro desses, eu prefiro que o senhor fique com o dinheiro. Mas em troca o senhor poderia me fazer um favor. Fausto: Com prazer, por favor, me diga qual. Arlequim: Mande lembranças à minha avó por mim, ela está no inferno, número 11, logo à direita depois da entrada. O Arlequim então desaparece misteriosamente. Mas por detrás do palco escutamos ele cantar: Meus senhores, minhas senhoras O sino já vai dar doze horas. A brasa e o carvão, guardem bem Buscar o Doutor o diabo já vem. Então ouvimos as doze badaladas, e com trovões, enxofre e relâmpagos surge do inferno uma companhia inteira de demônios para buscar Fausto. Goethe assistiu a este teatro de marionetes quando era jovem. Antes de completar 30 anos ele começou a escrever o poema do Fausto, que veio a completar quando tinha 80. O seu Fausto também selou um pacto com o diabo, e é ele também que o diabo vem buscar ao final. Mas nos 250 anos,
desde a publicação do primeiro livro sobre o Doutor Fausto até à conclusão do Fausto de Goethe, a humanidade se transformou muito. Compreendeu-se cada vez mais que nem sempre era a cobiça, a maldade ou a preguiça, o que levava as pessoas de antigamente a praticar a magia, mas sim a sede de conhecimento e a grandeza espiritual. Goethe mostrou isso no seu Fausto, e por isso ao final, o diabo é obrigado a deixar a cena, dando lugar a uma legião de anjos que ocupam o palco inteiro. 64 Livro de ensino de história utilizado na Alemanha, assim chamado em referência ao seu autor, Friedrich Neubauer (1861-1953), pedagogo alemão. 65 No original, Kulturgeschichte , história da cultura. 66 Obra de história da Alemanha da metade do século XVI. 67 No original, Kauderwelsch , um jargão incompreensível que mistura palavras de diversas línguas ou também termos técnicos. 68 Tradução de Antonio Feliciano de Castilho.
Cagliostro Hoje vou contar a vocês sobre um grande vigarista. Grande não somente por empreender suas vigarices de forma tão descarada e impiedosa, mas também porque levava suas façanhas ao grau da perfeição. Suas vigarices por toda a Europa tornaram-no não só famoso, mas também venerado por dezenas de milhares de pessoas, sendo quase considerado um santo, e seu retrato circulou por toda parte de 1760 a 1780 em forma de gravuras em cobre, telas e esculturas. Ele praticava seus exorcismos, suas curas milagrosas, seus talentos de alquimista, seus tratamentos de rejuvenescimento, na época do Iluminismo, um tempo em que, como vocês sabem, as pessoas desconfiavam bastante de qualquer tradição relacionada ao mundo da fantasia e afirmavam desejar seguir apenas seu próprio intelecto livre; um tempo, em suma, no qual elas deveriam saber precaver-se contra um sujeito como esse tal Cagliostro. Como ainda assim, ou melhor, talvez justamente por tudo isso, ele foi tão bem sucedido em sua trajetória, sobre isso diremos ao final algumas palavras. Até hoje ninguém sabe exatamente de onde veio Cagliostro; uma coisa, porém, é certa: não veio de onde ele afirmava que vinha, nem Medina ou muito menos do Oriente, mas mais provavelmente da Itália ou talvez de Portugal. Sobre a juventude de Cagliostro pode-se afirmar com segurança que ele fez sua formação com um farmacêutico, e que paralelamente desenvolveu-se como autodidata em toda espécie de práticas inúteis, tais como busca de tesouros, falsificação de assinaturas, mendicância e outras
coisas do gênero. Jamais foi tolerado por muito tempo em lugar nenhum. Sua vida foi feita de andanças do começo ao fim. Entre tantas estações, nenhuma teve tanta importância quanto Londres, aonde ele chegou pela primeira vez em 1750. Ali ele conheceu a ordem dos maçons e provavelmente fez por onde para tornar-se um membro. As estranhas e fantásticas provas às quais ele foi submetido na ocasião – alguns de vocês talvez conheçam a “Flauta mágica”, com sua prova da água e do fogo, que são exames realizados na maçonaria –, essas experiências londrinas deram às suas fantasmagorias e castelos no ar uma marca característica definitiva. O objetivo de vida de Cagliostro havia se tornado realizar algo de excepcional no sentido maçônico. Os verdadeiros maçons formavam uma sociedade que nada tinha a ver com magia, mas que buscava objetivos em parte humanitários, em parte políticos. Ambos estes aspectos estavam intimamente relacionados, pois a atividade política dos maçons voltava-se contra a tirania implacável de muitos soberanos europeus daquela época. E também contra o papa, evidentemente. Estes objetivos um tanto realistas não pareciam suficientes para Cagliostro. Seu desejo era fundar uma nova maçonaria, a chamada maçonaria egípcia, uma espécie de sociedade de magia, cujas leis ele mesmo havia elaborado cuidadosamente. Sim, seus objetivos eram bem maiores. Essa maçonaria egípcia, ao contrário da autêntica, não deveria se opor ao papado, mas ter com ele uma relação amistosa. Cagliostro queria reconciliar os maçons e o papa e, como intermediário entre estes dois poderes, conquistar o poder supremo na Europa. Qualquer que tenha sido o grande sucesso que este homem extraordinário alcançou em toda Europa com suas vigarices, com as quais hoje não se chegaria de Berlim a Magdeburgo, de vez em quando ele também esbarrava com pessoas que não se deixavam enganar. Não estou falando aqui dos médicos, que o perseguiam amargurados por toda parte, pois no caso deles tratava-se muito mais de inveja profissional do que propriamente de um desejo de desvendar seus truques. Cagliostro lançou mão do velho truque dos charlatões: onde ele se estabelecia, fazia correr a fama de que atendia às pessoas pobres sem lhes cobrar nada. Essa promessa, ele cumpria à risca. Porém, para as muitas pessoas distintas que naturalmente procuravam seus cuidados médicos, ele em segredo dizia o quanto a sua filantropia e generosidade o haviam colocado em dificuldades financeiras. E a gente rica e as pessoas de alta classe sentiam-se assim honradas por ele aceitar seus presentes. Não é nos médicos que pensamos quando falamos das pessoas que souberam desmascará-lo. Também não foram os inúmeros cientistas e filósofos de renome que ele encontrou ao longo de sua vida, aqueles que perceberam suas artimanhas. Não, para falar sem reservas e de uma forma bastante grosseira e pesada de Cagliostro, foi preciso um sujeito com um senso prático e objetivo da vida, e não foi por acaso que um dos retratos mais hostis – mas também o mais preciso e vigoroso – da aparência e presença de Cagliostro nos tenha sido legado por um comerciante muito viajado: Jamais encontrei um charlatão tão descarado, que pisasse tanto nas pessoas, e tão nariz-empinado. É um sujeito baixinho, gordo, de ombros extremamente largos, pescoço gordo e rígido, cabeça redonda e cabelos negros, testa curta, sobrancelhas acentuadas e bem desenhadas, os olhos
são negros, brilhantes e sombrios, sempre em movimento, o nariz é bem definido, curvado e achatado, os lábios são grossos, redondos e afastados, o queixo é rígido e saliente, maxilar inferior redondo de metal, um homem cheio de vitalidade, de pele morena com nuances rubras, dono de uma voz cheia e poderosa. Assim é o prodígio, o visionário, médico filantropo e solícito, que há anos vive com luxo nestas redondezas, sem que ninguém saiba de onde vem o seu dinheiro. Só resta desejar que seus adoradores petrificados tenham a sorte de um dia ver alguém tratar este homem com o mesmo desprezo que ele os trata; rapidamente eles perceberiam que papel lamentável faria o seu débil fanfarrão, que não possui nem dons naturais nem cultura suficientes para resistir, um minuto apenas, a quem quer que seja. A pessoa, por certo, deveria ser forte o bastante para, caso fosse necessário, atirar com uma mão só o monstrengo pela janela e aos trancos e barrancos arrancar-lhe a confissão. Vocês vêm que esse honesto comerciante não tem papas na língua. Mas ele exagera um pouco. Pois não é uma obra do acaso que, em 40 anos de vida, Cagliostro não houvesse topado com alguém capaz de se impor diante dele. A origem dessa superioridade deu margem às mais diversas hipóteses. Muitos acreditam que ela vinha do olhar; todos aqueles, sobre quem ele lançava seu olhar sucumbiriam ao seu domínio. Acrescente-se a isso o fato de que naquela época as pessoas sentiam no fundo uma tentação por esse tipo de experiência. Quanto mais elas se afastavam da igreja, padres etc., tanto mais se interessavam por uma espécie de poder mágico natural, que elas acreditavam encontrar nos homens, mais ainda nos animais, e que chamavam de magnetismo. E o que faltava a Cagliostro, em termos de cultura e conhecimento, ele substituía por um extraordinário senso teatral. Basta ler a descrição de uma de suas conferências, pronunciada em todas as cidades por onde ele passava, para entender o porquê de tão estrondoso sucesso: Trajando um robe preto, um enorme chapéu preto de abas largas, ele ficava sentado sobre uma espécie de trono coberto por um baldaquim de brocado, dentro de uma sala quase que inteiramente mergulhada na escuridão e com as paredes cobertas por veludo negro. Para chegar até o trono, porém, ele percorria o chamado caminho de aço, um corredor formado pelos seus adeptos mais destacados cruzando as espadas erguidas sobre sua cabeça. As velas, que mal iluminavam a sala, estavam distribuídas em grupos de sete ou nove – números aos quais Cagliostro atribuía um significado especial – e dispostas em candelabros. Sem esquecer o aroma de incensos que emanava de recipientes de cobre e o jogo de luzes sobre uma grande jarra cheia de água, na qual o próprio Cagliostro previa o futuro ou pedia que uma criança fizesse profecias sobre ele. As conferências, por assim dizer, começavam quando ele puxava um misterioso rolo de pergaminho e passava a enumerar uma variedade de fórmulas secretas para se transformar trapos em seda, pequenas pedras preciosas em pedras do tamanho de um ovo de galinha etc. Vocês agora talvez perguntem, o que afinal pretendia Cagliostro com tudo isso? É impossível pensar que alguém que queira apenas viver bem e comer do bom e do melhor consiga tirar de si a força e a imaginação suficientes para, durante 20 anos, tirar o fôlego da Europa com suas invenções. Cagliostro dava no mínimo, tanta importância ao seu reino maçônico
imaginário e ao poder, quanto dava ao dinheiro. Mas isso não é tudo. Ninguém pode deixar-se hipnotizar durante décadas por fantasmagorias, nem falar da vida eterna, da pedra filosofal, do Sétimo Livro de Moisés ou de outros mistérios do gênero que ele descobriu, sem que por fim, ele mesmo venha a crer nestas coisas. Ou dito de forma mais precisa e correta: Cagliostro certamente não acreditava no que ele contava às pessoas, mas acreditava que seu poder de tornar credíveis as mentiras mais fantásticas tinha realmente o mesmo valor que a pedra filosofal, a vida eterna e o Sétimo Livro de Moisés juntos. A extraordinária força de Cagliostro vinha de sua crença em si mesmo, da crença no seu poder de convencimento, sua imaginação e seu conhecimento do ser humano. Essa crença tornou-se tão forte nele que se converteu numa espécie de religião secreta, ainda que diferente daquela que ele professava aos seus discípulos. Foi isso também o que despertou em Goethe um profundo interesse por este homem, sobre quem ele escreveu a peça “O grande copta” ⁶⁹ , como vocês devem ter visto ou ainda vão ver na escola. Mas o que vocês certamente não vão ouvir é que o próprio Goethe se fez passar por Cagliostro: não diante do público, mas diante da família de Cagliostro. Em sua obra “Viagem à Itália” ele conta como uma vez estava sentado à mesa de uma hospedaria em Palermo e a conversa girava em torno de Cagliostro e sua pobre família, que residia naquela cidade; como manifestou o desejo de conhecer a família desse homem extraordinário; como isso se mostrou difícil, e só foi possível na medida em que Goethe fingiu que ele mesmo havia encontrado Cagliostro e este lhe havia pedido que transmitisse saudações à sua família; quanta esperança este encontro despertou na família e quanto remorso sentiu Goethe por ter-se prestado a este papel. E como ele por fim, após retornar a Weimar e para fazer as pazes com sua consciência, enviou uma considerável quantia em dinheiro à pobre família, que acreditou ter recebido um presente de Cagliostro. Vocês vão perceber que eu na verdade não falei muito sobre a biografia de Cagliostro. Prefiro que seja assim. É que cada uma das etapas de sua vida é tão cheia de histórias complicadas, que só para contá-las seria necessário um livro enorme. Em todo caso, o fim dessa vida se resume no ditado do jarro que vai tantas vezes à fonte, até que um dia se quebra. Ao final de 30 anos, Cagliostro tinha ido tão longe, que onde quer que ele chegasse, ali estavam adormecidas histórias antigas e nada agradáveis, aguardando apenas sua aparição para despertarem novamente na boca do povo. E cada nova etapa ia tornando-se cada vez mais curta, a ponto de tudo transformarse numa fuga. E nessa mudança de rumo para pior, um grande jornal, Der Europäische Kurier , teve um papel tão decisivo e curioso, que para encerrar gostaria de falar sobre ele. Entre as diversas idiotices medicinais e químicas que Cagliostro tentava empurrar às pessoas, estava a história do porco. Em algum lugar ele escreveu que em Medina, de onde, como se sabe, ele afirmava que vinha, os habitantes se livravam de leões, tigres e leopardos engordando seus porcos com arsênico, soltando em seguida os animais na floresta, onde eles eram devorados pelas feras selvagens, que assim morriam envenenadas. Morand, o editor do Europäische Kurier , publicou a história em seu jornal. Cagliostro ficou furioso e lançou-lhe um estranho desafio. Em 3 de setembro de 1786 ele publicou um convite a Morand para que em 9 de novembro dividissem um leitão engordado daquela maneira, e apostou 5000 florins que o editor morreria e ele não. Bom, exigir que
alguém morra e ainda pague 5000 florins ao vencedor da aposta já é um pouco demais. Vocês podem imaginar que Morand recusou a proposta. Ele dedicou-se a publicar em seu Europäische Kurier uma coleção cada vez maior dos fatos e boatos que depunham contra Cagliostro. Este, por fim, fugiu para Roma, a cidade onde ele menos poderia se sentir seguro, devido às suas relações com os maçons. Amigos seus o advertiram que a Inquisição tinha intenção de prendê-lo. Mas Cagliostro estava cansado e decidiu ficar. Em 1789 o Papa Pio VI mandou detê-lo e encarcerá-lo no Castel Sant'Angelo e ordenou que a Inquisição abrisse um processo contra ele. A maior parte das coisas que sabemos hoje sobre Cagliostro deve-se a esse processo, que parece ter sido conduzido com grande minúcia, mas também com uma clemência surpreendente. Ele não poderia terminar de outra forma senão com uma condenação à morte por heresia. Mas em 1791 o papa comutou a pena em prisão perpétua, e ele veio a falecer mais tarde, não se sabe exatamente quando, na prisão de San Leone, próximo a Urbino. Querendo, pode-se tirar muitos ensinamentos desta história. Pode-se também facilitar as coisas e simplesmente dizer que sempre vai haver um imbecil para se passar a perna. Mas olhando com um pouco mais de atenção, há uma verdade profunda a se tirar da história de Cagliostro. Falei no início sobre o Iluminismo, uma época em que se criticavam fortemente as tradições cultivadas pelo Estado, pela religião, pela Igreja, e também uma época à qual, de fato, devemos agradecer por tanto progresso no campo da liberdade e da cultura. E exatamente durante esse Século das Luzes, Cagliostro soube fazer valer com tanto sucesso os seus talentos. Como isso foi possível? Resposta: as pessoas estavam tão firmemente convencidas de que as coisas sobrenaturais eram falsas, que jamais se deram ao trabalho de refletir seriamente sobre elas, e acabaram inevitavelmente tornando-se vítimas de um Cagliostro, que lhes apresentava o sobrenatural com a habilidade de um prestidigitador. Se elas tivessem convicções menos rígidas e um pouco mais de senso de observação, isso não teria lhes acontecido. Este é mais um ensinamento dessa história, o senso de observação e o conhecimento do ser humano em muitos casos vale mais do que um ponto de vista, por mais correto e defensável que ele possa ser. 69 No original, Der Großkophta.
As fraudes em filatelia Quero falar de um tema sobre o qual os mais experientes e espertos filatelistas não se cansam de aprender: de fraudes. De fraudes com selos. Desde que em 1840, Rowland Hill, um simples professor de escola, foi nomeado diretor geral dos correios da Inglaterra devido à sua invenção dos selos e agraciado com uma doação do governo de 400.000 marcos, milhões e
milhões foram ganhos graças a este pedacinho de papel. Muitas pessoas fizeram fortuna com selos desde então. Vocês sabem o quanto um selo pode valer, dependendo das circunstâncias, se pensarem no Senff, no Michel ou no Kohl. O mais valioso entre todos não é, como muita gente crê, o “Post office” de dois penny das Ilhas Maurício, e sim o selo de um cent da Guiana Inglesa, um selo provisório do ano de 1856, do qual aparentemente não restou mais do que um exemplar. Ele foi composto com o mesmo clichê rudimentar que o jornal local utilizava para seus anúncios de companhias marítimas. Este exemplar único foi descoberto há alguns anos por um jovem colecionador da Guiana em meio a antigos documentos da família. Daí ele foi parar na coleção La Renotière em Paris, que era a maior coleção de selos do mundo. Não se sabe quanto o proprietário pagou por ele, mas seu valor atual chega a 100.000 marcos. Em 1913 a coleção La Renotière já contava com mais de 120.000 selos, e seu valor era calculado em mais de dez milhões. É claro que só um milionário podia se divertir formando uma coleção como esta. Mas tendo ou não sido a sua intenção, ela também lhe rendeu alguns milhões. Sua origem remonta ao ano de 1778. A própria filatelia nasceu aproximadamente uns 15 anos antes. Naquela época, colecionar era certamente muito mais fácil do que é hoje. Não só porque a quantidade de selos que existia era muito menor e era muito mais fácil obter peças que hoje têm um preço exorbitante, e logo se tinha uma coleção completa, mas principalmente porque não havia selos falsos, pelo menos nenhuma daquelas falsificações produzidas para enganar os colecionadores. Se algum de vocês assina uma revista de filatelia, então sabe como são frequentes as notícias sobre falsificações, consideradas uma coisa banal e até inevitável. E como poderia ser diferente? É possível ganhar tanto dinheiro com selos e a filatelia se tornou um território tão vasto, que ninguém pode se dizer conhecedor de tudo. Até 1914, ou seja, antes que surgissem os inúmeros selos de guerra ou de ocupação, já foram recenseados 64.268 valores diferentes. Nós havíamos chegado então às falsificações. Vocês sabem que onde há uma coleção, há também falsificação, qualquer que seja o ramo, e que ao lado daquelas grosseiras e superficiais feitas para os idiotas, há aquelas que fazem os maiores especialistas arrancar os cabelos, e ainda as que só depois de décadas são reveladas como falsificação – se é que se consegue! Muitos colecionadores, sobretudo os iniciantes, acreditam poder se prevenir contra as falsificações juntando apenas selos usados. A razão disso é que originalmente vários Estados, principalmente o Vaticano, a Sardenha, Hamburgo, Hanover, Helgoland, Bergedorf mandavam fazer reimpressões a partir de moldes de composição que haviam se tornado raros, não eram mais usados e iam parar nas mãos dos colecionadores. Essas reimpressões, ou se preferirmos, falsificações, tinham por marca característica o fato de não serem carimbadas. Mas isto é uma exceção, que de modo algum pode ser generalizada. Nada mais absurdo do que pensar: “Este selo é falso porque ele não está carimbado”. Seria muito mais correto dizer: Este selo está carimbado, porque ele é falso. Pois na verdade é extremamente raro encontrar um selo falso que não esteja carimbado. Geralmente, só quando o falsificador – se queremos chamá-lo assim – é o próprio Estado. O falsificador particular que se arrisca a copiar um selo de acabamento refinado pode evidentemente fazê-lo utilizando um carimbo rudimentar. E uma vez concluída a falsificação, ele procura com minúcia os pontos fracos
de seu trabalho e tenta escondê-los com a marca do carimbo. Resumindo, ao colecionar apenas selos carimbados poderiam prevenir contra algumas poucas reimpressões, mas isso de forma alguma significaria estar livre da grande quantidade de selos falsificados. Poucos colecionadores saberão qual o país de maior reputação entre os falsificadores de selos e de onde vêm as mais perfeitas falsificações. É a Bélgica. E os belgas não se contentam apenas em falsificar os seus próprios selos – o mais célebre é o de cinco francos belgas –, mas apreciam também os de outros países, como por exemplo, o Deutsch-Marroko de uma peseta. ⁷⁰ Para dar saída à sua produção, os falsários criaram um truque formidável que lhes permite não só alcançar um maior faturamento, mas também prevenir-se contra penalidades legais. Eles apresentam seus selos explicitamente como falsificações. Com isso é claro que abrem mão de lucros astronômicos, na medida em que não vendem selos falsos como se fossem autênticos. Mas como a maior parte dos compradores age imbuída da mais pura intenção, os produtores podem cobrar um preço decente por estas reimpressões de selos, feitas – como eles dizem – meramente para fins científicos. Eles enviam prospectos aos pequenos comerciantes, nos quais exaltam as suas imitações impecáveis de selos fora de circulação, suas admiráveis realizações a partir de um procedimento inteiramente novo, a exatidão matemática de suas ilustrações, suas estampas, cores, papéis, de sua marcad'água, suas linhas dentadas e – não vamos esquecer – das marcas de carimbo. Para se precaver contra esse gênero de produtos, os grandes colecionadores lançaram a proposta de uma espécie de garantia ou carimbo para selos muito raros, com a marca evidente de uma firma conceituada que se responsabilizasse por sua autenticidade. Outros, porém, argumentaram com razão que um carimbo comercial, por minúsculo que fosse, iria descaracterizar um selo autêntico. Seria melhor, à medida que se fosse descobrindo uma a uma as falsificações de selos valiosos, aplicar sobre elas um carimbo que as identificasse e servisse como estigma. E cá entre nós, nem tudo que chamam de “reimpressão” é concebido necessariamente como uma falsificação. O famoso selo negro de 1 penny de 1864, por exemplo, foi reimpresso pela tipografia nacional da Inglaterra em vários exemplares para entrar na coleção de alguns príncipes ingleses. Aqueles entre vocês, que continuarem colecionando selos ao longo da vida, terão ainda um bocado de trabalho com falsificações e aprenderão muito mais do que eu poderia contar aqui hoje, e aos poucos irão também encontrando os recursos para combater essa prática. Vou citar hoje um único, mas essencial livro, o chamado “Manual de falsificações” ⁷¹ de Paul Orth. Mas há vários outros modos de enganar os colecionadores, e meios privados ou públicos de explorá-los, que não ocorrem através de falsificação. Devemos, sobretudo, pensar naqueles países que, por assim dizer, vivem do comércio de selos. Uma grande quantidade de Estados confiava no bolso dos colecionadores de selos para melhorar suas finanças, ao menos antigamente. A invenção dessa estranha fonte de renda poderia ser creditada a um inventivo habitante das Ilhas Cook. Os dez ou doze mil habitantes destas ilhas eram, até um tempo atrás, canibais. Junto com os primeiros utensílios e objetos de uso da civilização eles receberam também selos encomendados da Nova Zelândia. Eram selos muito simples, de papel gomado com uma moldura simples feita com caracteres de tipografia. Isso não impediu que os grandes comerciantes dos Estados Unidos e da Europa se mostrassem
bastante interessados e pagassem caro por esta emissão. Ninguém ficou mais espantado do que os habitantes das Ilhas Cook, quando viram surgir diante de si uma fonte de renda tão promissora e fácil. Imediatamente eles mandaram imprimir novas séries, diferentes das primeiras nos motivos e na cor. Poderia contar histórias semelhantes de vários Estados da América do Sul, do Paraguai principalmente, mas também dos pequenos principados indianos como Faridkot, Bengala, Bamra. Porém, alguns particulares foram ainda mais espertos do que os poderosos que lidavam com este tipo de negócio, como, por exemplo, aquele engenheiro que se comprometeu a fornecer gratuitamente dois milhões de selos novos à Guatemala, pedindo em troca nada menos do que todas as séries de selos antigos que se encontravam na tipografia nacional. Pode-se imaginar o quanto ele faturou com o negócio mais tarde. Ao final da guerra, quando a situação na Alemanha era muito difícil, até mesmo o Reichspost , o correio do Império, seguiu o exemplo destes pequenos reinados e principados e entregou seus estoques a colecionadores particulares. – Vocês querem que eu conte mais uma história de trapaça, que na verdade nada tem a ver diretamente com coleções de selos? É uma das mais engenhosas já concebidas. Talvez eu possa me arriscar, pois o que está em jogo na história é exatamente uma coleção. Aconteceu em 1912 em Wilhelmshaven. Um rico morador da cidade vendeu a um berlinense por 17.000 marcos uma bela coleção de selos, formada com zelo ao longo dos anos, e enviou-a registrada em seu sobrenome e com a solicitação de reembolso. Nesse meio tempo, o comprador havia enviado para Wilhelmshaven uma caixa supostamente cheia de livros, com a mesma assinatura e com pedido de reembolso. Em seguida ele solicitou por telégrafo que a caixa fosse reenviada a Berlim. As duas caixas chegaram a seu destino como previsto, e o tratante conseguiu receber a caixa contendo a coleção no guichê de expedições, sem precisar pagar qualquer reembolso, fazendo-se passar pelo remetente que havia solicitado a devolução. A caixa, supostamente cheia de livros, não continha mais do que papel picado e seu destinatário jamais foi encontrado. Eis aí então as tantas fraudes em filatelia, e o quanto elas atingem o colecionador de selos. Mas há outra vítima muito mais interessante para os golpistas e os falsários: o correio. Calculou-se que o consumo anual de selos na Alemanha seria de aproximadamente 6 bilhões = 6 mil milhões, e o consumo mundial, de 30 bilhões de unidades. Também estimou-se o valor de mercado dos selos utilizados na Alemanha em cinco bilhões de marcos. Pode-se dizer que o correio produz e consome 5.000 milhões de marcos anualmente em forma de pequenos papéis-moeda. Os selos podem ser vistos assim como cédulas bancárias, já que são usados não só para franquear cartas, mas, até certa quantia, também para se efetuar pagamentos. Apenas em um ponto eles se distinguem completamente do papel-moeda. Para copiar notas de 10 ou 100 marcos é preciso entender muito do trabalho em tipografia, além de dispor de equipamentos caros e complicados. Reimprimir selos, por sua vez, é extremamente fácil, e quanto mais rudimentar é a impressão do original, mais difícil fica distinguir o verdadeiro do falso. Foi assim que há alguns anos colecionadores experts declararam que o selo alemão de dez Pfennig era uma falsificação, enquanto o Reichspost acreditava que ele era autêntico. É impossível saber quantos selos desse tipo são falsificados – na verdade podemos dizer “cédulas bancárias falsas”, e é assim que elas são punidas pela lei –, pois o correio faz a contabilidade de
quanto ele ganha com a venda de selos anualmente, mas não dos milhões de marcos em selos colados que ele inutiliza. Há gente que afirma que a administração dos correios é alvo de uma fraude anual em torno de centenas de milhões de marcos. Não se pode provar isso, é claro, mas quando se pensa que é muito mais fácil ludibriar o correio, apenas apagando o carimbo dos selos inutilizados, do que fabricando selos falsos, vê-se que a opinião dessas pessoas não deveria ser inteiramente descartada. Elas chegam a afirmar que seria possível reconhecer de que região provém determinado tipo de falcatrua, conforme a preferência – assim, as falsificações em grande escala e por meio de impressão viriam principalmente do sul da Europa, enquanto que aquelas feitas amiúde, através de lavagem e limpeza, do norte. Tudo isto eu conto, porque por trás desta história há algo que diz respeito a cada colecionador. Eles querem acabar com os selos e substituílos por carimbos. Vocês todos já viram que hoje em dia as taxas postais para grandes remessas são franqueadas com carimbos e não mais com selos. Esse procedimento, dizem os adversários dos selos, deve passar a ser usado também para a correspondência particular, através da instalação de caixas de correio automáticas. Haveria assim caixas de 5, 8, 15, 25 Pfennig etc, conforme a taxa de remessa de cada carta. E para que a fenda se abrisse, seria preciso depositar na caixa a quantia correspondente em moedas. Por enquanto ainda não chegamos aí e a coisa ainda apresenta algumas dificuldades. Para começar, a união postal universal só reconhece selos, e não carimbos. Mas mesmo assim é bastante provável que na era da mecanização e da técnica os selos não tenham mais uma vida tão longa. E aqueles de vocês que não quiserem ser pegos de surpresa, talvez seja melhor pensarem bem e começarem a montar uma coleção de carimbos. Hoje já podemos ver como aumentou sua variedade, sua riqueza de detalhes, como eles chamam nossa atenção nos anúncios com palavras e imagens, e os adversários dos selos já prometeram que, para conquistar os colecionadores, pretendem lançar carimbos com paisagens, com cenas históricas, com brasões etc., para torná-los tão belos como eram os selos antigamente. 70 O posto dos correios que a Alemanha possuía no Marrocos passou a emitir selos em 1899, quando o então sultanato era alvo de interesses das potências europeias. 71 No original, Handbuch der Fälschungen.
Os bootleggers Os bootleggers : qual o sentido literal desta palavra, isto vamos escutar daqui a pouco. Foi bem sensato da parte do nosso programa colocar logo em seguida: “os contrabandistas de álcool dos Estados Unidos”. Senão vocês teriam que perguntar aos seus pais. Eles sabem que tipo de pessoa são os
bootleggers e viram muita coisa nos jornais nestas semanas sobre o famoso Jacques Diamond, um rico bootlegger que fugiu de seus inimigos para a Europa, mas acabou sendo preso em Colônia e repatriado aos Estados Unidos. Talvez então alguns adultos, que por acaso venham a escutar nosso programa para crianças, também se interessem por este tipo de pessoa cheia de esperteza e malandragem. Mas talvez eles se interessem também por outra questão: por que afinal devemos contar estas coisas às crianças? Devemos falar a elas sobre impostores e criminosos que desrespeitam as leis para fazer uma fortuna em dólares e, pior, assim conseguem alcançar seu objetivo? Sim, esta é uma questão que deve ser colocada, e eu ficaria com a consciência pesada, se simplesmente chegasse aqui e ficasse contando histórias com tiros de pistola disparados para todos os lados. Eu preciso dizer algumas palavras a vocês sobre as leis importantes e os grandes propósitos que constituem o pano de fundo das histórias em que os contrabandistas de álcool são os heróis. Eu não sei se vocês já ouviram falar sobre a questão do álcool. Mas todos vocês já viram um bêbado e basta observar uma destas criaturas para entender como os homens chegaram à ideia de que o Estado deveria proibir a venda de álcool. Isto, em todo caso, foi feito nos Estados Unidos na década de 20, através de uma emenda constitucional. Desde então reina ali a prohibition , ou seja, a proibição de ministrar álcool, a não ser para fins medicinais. Como se chegou a esta lei? Há uma série de razões, e se formos investigá-las iremos aprender um bocado de coisas significativas sobre os norte-americanos. Há 300 anos, num dia de dezembro, o pequeno navio Mayflower aportou no litoral rochoso do atual estado de Massachussets, onde fica Plymouth, trazendo os primeiros colonos europeus, os antepassados dos norte-americanos brancos. Hoje eles são chamados de os cem-por-cento, em virtude do apego que têm às suas convicções, de sua severidade e de seus inabaláveis princípios religiosos e morais. Estes primeiros imigrantes pertenciam na verdade à seita dos puritanos. Sua influência nos Estados Unidos é percebida até hoje claramente. Um dos efeitos deste puritanismo cristão é a prohibition. Os norte-americanos a chamam de a nobre experiência. Para muitos deles a prohibition não é só um assunto meramente da área da economia ou da saúde pública, mas principalmente de fundo religioso. Eles chamam os Estados Unidos de a pátria de Deus e dizem que o país tem um débito para com esta lei. Um dos seus mais fervorosos adeptos é Henry Ford, o magnata da indústria do automóvel. No seu caso, não por ele ser um puritano, mas como ele diz: é porque nós temos a prohibition que posso vender meus automóveis por um preço tão barato. Por quê? Antes o trabalhador médio deixava uma boa parte do seu ganho semanal no balcão do botequim. Agora que ele não pode mais desperdiçar dinheiro com bebida, ele pode economizar. Se ele começou a economizar, então ele vê que em breve já terá o suficiente para comprar um automóvel. Assim, Ford conta, eu multipliquei minhas vendas através da prohibition. E assim como ele, pensam muitos industriais norte-americanos. Através da prohibition as empresas não só aumentam suas vendas, mas conseguem também baratear a produção. Um trabalhador que não consome álcool é capaz naturalmente de desempenhar sua função com muito mais eficácia do que aquele que bebe regularmente, mesmo que não o faça em grande quantidade. Assim, em um mesmo espaço de tempo, a mesma mão de obra produzirá mais do que anteriormente, mesmo que este excedente
seja mínimo: para a economia de um país, este ganho mínimo de produtividade individual deve ser multiplicado pelo número total de trabalhadores e a quantidade total de horas de trabalho num período de dez anos. Por enquanto é isto, agora vocês já sabem o que é a prohibition e porque ela foi estabelecida. Vamos ver agora o que se deu com os bootleggers. Chamam a eles de “os canos de bota”, numa referência aos garimpeiros de Klondike, onde qualquer um andava com uma garrafa de aguardente enfiada no cano da bota. Se eu contar a vocês alguns dos inúmeros truques destes sujeitos, vocês não devem pensar que só por isso seria muito simples arranjar vinho, cerveja ou aguardente em qualquer lugar dos Estados Unidos. Não é o caso, pois a lei norte-americana pune tanto o vendedor como o consumidor. Certamente as punições impostas aos primeiros foram as mais duras. A crueldade destas penas foi, inclusive, uma das razões para os opositores da prohibition lutarem contra ela. O rigor da lei fez com que somente uma espécie de elite entre os homens mais inescrupulosos, aqueles mais destemidos e audaciosos, viessem a se tornar bootleggers. Vamos seguir seus passos primeiramente no mar, onde eles exerciam sua atividade. As leis determinavam que nenhum navio que transportasse álcool poderia se aproximar da costa norte-americana mais do que 14 milhas. Ali começavam as chamadas águas territoriais, e nesta fronteira até mesmo os navios de passageiros vindos da Europa precisavam declarar e certificar o seu estoque de bebidas alcoólicas. As grandes lojas exportadoras que desejavam vender suas bebidas nos Estados Unidos nem de longe pensavam em se expor aos riscos do contrabando. Elas enviam assim suas embarcações com a ordem de lançar ancora fora das águas territoriais. As autoridades marítimas norteamericanas chegam a avistar os barcos, mas não podem fazer nada contra eles. Mas são principalmente os pequenos barcos dos contrabandistas que observam seu trajeto. Dia e noite eles navegam pela rota do rum, a linha que demarca a fronteira por onde passa o contrabando da bebida. Sua tarefa é desviar a atenção da policia marítima e se aproveitar de toda e qualquer circunstância – seja aí a névoa baixa, a escuridão de uma noite sem lua, um dia de mar revolto ou até mesmo um funcionário da alfandega disposto a receber suborno – para fazer chegar com segurança seu carregamento à terra firme em algum ancoradouro secreto. Polícia e contrabandistas buscam o tempo inteiro superar um ao outro em presença de espírito e astúcia. Vou contar aqui a história de dois golpes pequenos, nos quais, com um truque semelhante, primeiro os contrabandistas e depois os fiscais da alfândega, se impuseram uns sobre os outros. Um barco ⁷² da marinha de guerra perseguia uma vez um petroleiro, pois a carga do navio lhe parecia suspeita. E no momento em que o barco estava alcançando o petroleiro, que não tinha um motor tão potente, os contrabandistas tiveram uma ideia inusitada: atirar ao mar um de seus homens. E enquanto o barco da marinha parou para socorrê-lo, o navio se afastou na velocidade de um relâmpago deixando para trás apenas um enorme sulco nas águas. Mas nem sempre, como já dissemos, as autoridades da alfândega levaram a pior. Temos aqui a história do vapor Frederic Bey, de Southampton, que transportava 100.000 caixas de licor e champagne, no valor de 180 milhões de francos. Esse navio, com seu misterioso capitão, conhecido pelo nome de Jimmy, era o pesadelo dos oficiais. As autoridades norte-americanas prometeram uma grande recompensa a quem capturasse Jimmy. Um homem muito jovem, de nome
Paddy, lançou-se na aventura. Com alguns dólares e um aperto de mãos em nome de toda a administração da alfândega dos Estados Unidos, ele partiu. Alguns dias depois, um imponente cargueiro, exatamente o Frederic Bey de Southampton, colidiu com um barco pesqueiro enquanto navegava pela rota do rum, próximo à região do arquipélago das Bahamas. O barco naturalmente socorreu os náufragos, trazendo-os para bordo, quatro homens e um jovem marinheiro chamado Paddy. Os quatro pescadores foram levados de volta à terra firme, como haviam pedido, mas o jovem marinheiro conseguiu autorização para se colocar a serviço a bordo do barco. E antes que se passasse a segunda noite, o jovem pendurou uma amarra para fora do navio, por onde subiram quatro homens. Com muita disposição e uma arma na mão, eles assumiram o controle do leme e do telefone. A partida estava ganha. Na sala de máquinas a tripulação acreditava estar seguindo as ordens do capitão Jimmy, e o Frederic Bey de Southampton seguiu até entrar no porto de Miami, onde as autoridades da alfândega o aguardavam, para então despejar no mar todo seu carregamento de 180 milhões de francos. A rota do rum, que é vigiada constantemente por aproximadamente 400 embarcações costeiras, é apenas um dos fronts onde se trava a luta entre os criminosos do álcool e o Estado. No interior há ainda os grandes lagos, na fronteira entre o Canadá e os Estados Unidos. Lá as coisas normalmente acontecem da seguinte forma: as autoridades da alfândega têm, por exemplo, três barcos. Então os contrabandistas utilizam doze. Na melhor das hipóteses, os três barcos conseguem apreender ou perseguir quatro ou cinco dos contrabandistas. Quando a situação se torna perigosa, os barcos perseguidos fazem a volta e retornam pacificamente ao Canadá. Os outros sete ou oito, por sua vez, chegavam sem problemas às margens do estado de Illinois. “E então porque a alfândega não utiliza doze barcos também?”, perguntei a um amigo dos Estados Unidos que me contou esta história. “Ora, aí os contrabandistas colocariam 36 barcos!” Em outras palavras: os lucros destas pessoas são tão altos que elas não hesitam diante de qualquer despesa para seguir tocando seu negócio. Mas não se deve pensar que sua vida é um mar de rosas. As coisas correriam melhor, se os seus únicos adversários fossem as autoridades da alfândega. Mas os verdadeiros e temíveis inimigos estão em outro lugar. São os hijackers – uma espécie de bandidos que ao invés de buscarem o estoque de bebidas alcoólicas para seus negócios nos navios, como fazem os bootleggers , vão se servir diretamente dos próprios bootleggers . Mas sem pagar, e sim roubando. O conflito de interesses entre os contrabandistas e os ladrões, eis aí do que se trata, dominou por muitos anos o famigerado submundo de Chicago. A maior parte dos assassinatos cometidos ali à luz do dia serviam para acerto de contas entre estas duas espécies de gentlemen. E Chicago é exatamente o cenário de uma aventura narrada por um certo Arthur Moss, um jornalista norte-americano. Ele estava a caminho de seu club quando percebeu um grupo de pescadores, aparentemente honestos cidadãos, descarregando uma quantidade de pequenos tubarões de um caminhão que cheirava a sal. Bom, o senhor Moss sabia que barbatana de tubarão era uma iguaria bastante apreciada, mas rara de se encontrar, e ele ficou admirado de ver que se havia providenciado um estoque tão grande para atender a demanda. Enquanto ele pensava sobre aquilo, chamou sua atenção o cuidado com que cada pequeno tubarão era rolado sobre o plano inclinado do veículo e levado com as mãos com toda precaução. Nesse momento aproximou-se do
caminhão um senhor, com ar tranquilo e inofensivo, e apesar da reação malhumorada e até mesmo hostil dos marinheiros, insistiu em examinar os peixes que todos tratavam com tanto cuidado. Afinal, o senhor tranquilo era um policial e o que se descobriu foi que dentro de cada peixe estava escondida uma garrafa de whisky. O que os bootleggers inventaram para fazer chegar seu líquido até um local seco vai além do que se pode imaginar. Disfarçados de policiais, eles atravessavam a fronteira com o carregamento de whisky escondido até no capacete. Organizavam funerais falsos para transportar aguardente dentro dos caixões. Usavam roupas de baixo de borracha e enchiam de licor. Vendiam bonequinhos e utensílios nos restaurantes, dentro dos quais se levava uma garrafa de licor. Breve já não haverá mais um objeto inofensivo que seja, um guarda-chuva, uma máquina fotográfica, botas de cano longo, dentro dos quais a polícia da alfândega não possa ver que esteja escondido algum estoque de whisky. Conta-se uma bela história de uma estação de trem próximo a New Orleans. Pequenos meninos negros chegam junto a um trem que para na estação, caminham ao lado dos vagões levando debaixo de suas roupas recipientes de diversas formas, nos quais se pode ler bem grande “chá gelado”. Um passageiro faz sinal e adquire o recipiente pelo preço de um terno, e esconde com cuidado. Mais um passageiro, então dez, vinte, cinquenta. “Minha senhora, meu senhor”, imploram os meninos, “bebam seu chá, só depois que o trem partir.” Todos dão uma piscada de olho, e então se sabe o que o aviso quer dizer... Um apito e o trem parte, no instante seguinte os passageiros levam à boca o recipiente. Mas na mesma hora todos torcem o nariz, pois o que havia dentro não passava de autêntico chá. Algumas semanas atrás os norte-americanos elegeram os membros da “Câmara de Representantes”, e o debate em torno da prohibition teve enorme importância. As eleições mostraram que ela tem um grande número de opositores. E não apenas, como vocês talvez pensem, entre aqueles que gostam de se embriagar, mas também entre as pessoas inteligentes, sóbrias e que sabem refletir, pessoas que são contra leis que são desrespeitadas pela metade da população do país e tornam os adultos, crianças malcomportadas, que fazem uma coisa porque é proibido; leis, cuja aplicação custa uma fortuna ao Estado e cuja violação custa a vida de muitos. Os primeiros a se manifestarem a favor dessas leis são exatamente os bootleggers , pois é através delas que eles constroem sua fortuna. Mas nós, europeus, que assistimos a tudo aqui de longe, iremos pensar se os suecos, os noruegueses, os belgas, que são muito menos radicais e combateram o consumo de álcool em seus países com leis muito mais brandas, não conseguiram resultados melhores do que os norte-americanos com sua violência e seu fanatismo. 72 No original, Kutter , chalupa.
Nápoles Quando alguém fala em Nápoles, no que vocês pensam imediatamente? Eu acho que no Vesúvio. Será que vocês vão ficar muito chateados, se hoje eu não contar nada sobre o Vesúvio? Pois é, se eu pudesse realizar meu maior desejo, – é um desejo horrível, mas o que eu posso fazer, ele me ocorreu uma vez – assistir a uma erupção do Vesúvio, isso seria realmente algo de diferente. Passei oito meses naquela região esperando. Cheguei até a subir no Vesúvio, olhei o interior da cratera. Mas o que pude ver de mais emocionante em Nápoles era um clarão vermelho que relampejava no céu, quando por vezes eu me sentava no jardim do restaurante, junto ao ponto mais alto da cidade, o Castel Sant'Elmo. E durante o dia? – vocês vão perguntar. Então vocês pensam que em Nápoles ainda sobra tempo para se visitar o Vesúvio? A pessoa já deve se dar por satisfeita se conseguir sair sã e salva em meio ao trânsito de carros, charretes, motocicletas, e com os nervos inteiros em meio à barulheira dos ambulantes, das buzinas, da campainha dos bondes elétricos, do grito prolongado dos meninos vendendo jornais. Não é nada fácil caminhar em meio a isso tudo. Logo na primeira vez em que cheguei a Nápoles o metrô estava sendo inaugurado. Eu pensei comigo: que ótimo, assim posso seguir com minhas malas direto da estação até a região do hotel. Mas eu ainda não conhecia Nápoles. Assim que o trem do metrô saiu do túnel, via-se uma multidão de garotos napolitanos pendurados nas janelas e portas e ocupando todos os bancos e lugares de pé nos vagões. Inaugurado há dois ou três dias, o metrô havia se tornado sua diversão preferida. Se o novo meio de transporte deveria servir a eles ou aos adultos sérios que precisavam cuidar dos seus negócios, isso não tinha a menor importância. Eles economizavam alguns soldi ⁷³ , o suficiente para pagar o bilhete, e ficavam indo e voltando de uma estação para outra. Assim os novos trens viviam entupidos, sem que aqueles que realmente tinham pressa pudessem chegar ao destino desejado. Os napolitanos não podem conceber a existência sem um amontoado de gente. Vou dar um exemplo a vocês: quando os antigos pintores alemães retratavam a Adoração dos Três Reis Magos, então vemos Melquior, Gaspar e Baltazar, junto com alguns servos talvez, aproximando-se do Menino Jesus com suas oferendas. Mas os napolitanos representaram a cena da Adoração como uma enorme aglomeração. Falo sobre isso exatamente porque estas representações se tornaram famosas no mundo inteiro. Aliás, é de Nápoles que vêm os mais belos presépios. No dia 6 de Janeiro, Dia de Reis, uma enorme quantidade de bonecos desfila pela cidade, e os presépios expostos superam uns aos outros em tamanho e na riqueza de seus detalhes. Mas aqui certamente não se deve pensar nos antigos judeus: aos napolitanos interessava muito mais a representação viva e fiel de tudo que eles encontravam no seu dia a dia, e por isso esses presépios, com os trajes e cenas da vida das pessoas comuns, são muito mais uma reprodução da
cidade de Nápoles do que de qualquer outra do Oriente. É claro, tanto lá quanto aqui existem aguadeiros, vendedores ambulantes, saltimbancos. Mas os vendedores de macarrão, de mariscos, os pescadores, que nós encontramos em meio ao povo dos presépios, são figuras autênticas típicas de Nápoles. Vocês mesmos podem chegar à conclusão de que uma multidão como essa não é formada só por anjos e homens exemplares. Mas se vocês querem realmente saber como se parecem as pessoas perigosas em Nápoles, não pensem em terríveis criminosos de barba negra, tais como Rinaldo Rinaldini. Não, os piores patifes napolitanos têm a aparência de cidadãos honestos e quase sempre exercem uma profissão completamente inofensiva. Não são criminosos que agem por conta própria, mas sim membros de uma sociedade secreta, que só reconhece como seus um pequeno número de ladrões e assassinos, sendo que outros membros servem apenas para proteger da polícia estes verdadeiros criminosos, escondendoos ou avisando-os em caso de perigo, e informando-lhes sobre a ocasião dos próximos delitos. Em troca, recebem então uma parte do produto do roubo. Essa sociedade criminosa feita de inúmeras ramificações se chama Camorra. Já que estamos falando mal dos napolitanos, vamos ver como eles se distinguem dos seus compatriotas de outras partes da Itália. Existe então aquela antiga lista dos sete pecados capitais; e como eles se distribuem entre as sete cidades mais importantes da Itália. Vocês já ouviram falar dos sete pecados capitais? Já vão ouvir. Pois os italianos distribuíram estes pecados por toda Itália. Cada cidade grande foi contemplada com um pecado: a soberba vive em Gênova, a avareza em Florença, a luxúria em Veneza, a ira em Bologna, a gula em Milão, a inveja em Roma, e em Nápoles, a preguiça. E é nesta cidade que ela realmente frutifica de forma muito particular. Não é só pelo fato de que as pessoas pobres que não têm o que fazer e ficam deitadas ao sol, dormindo, e quando acordam vão até o porto ou a alguma região turística para mendigar alguns centavos. Às vezes acontece mesmo de um pobre garoto arranjar trabalho. E o que faz o napolitano então? Ele abre mão de dois terços do pagamento e arruma um outro que possa fazer o trabalho no seu lugar. Ele prefere ganhar cinco liras e ficar deitado ao sol do que trabalhar e ganhar as 15 liras. Talvez venha da preguiça também, a grande paixão que o jogo de loto exerce sobreo povo de Nápoles, praticamente mais do que em qualquer outro lugar. A loto na Itália é o que nós chamamos aqui de loteria. Todo sábado às quatro horas as pessoas se amontoam na calçada em frente ao prédio onde os números são sorteados. E mesmo caindo na conversa das profecias de cartomantes ou na superstição dos números da sorte, as pessoas sempre tentam a sorte grande novamente. O clima talvez não seja a única explicação para a preguiça dos napolitanos. E em geral, ela se limita ao trabalho braçal, que eles realmente não apreciam. Mas quando se trata de comércio e negócios, aí eles estão no seu elemento. Os napolitanos são excelentes comerciantes e o banco de Nápoles tem mais de 500 anos, sendo um dos mais antigos da Europa. – Mas o que eu queria dizer: os napolitanos não apreciam muito o trabalho braçal não só porque o clima permite que se possa viver sem problema uma parte do ano ao relento, não só porque sempre sobra algo da farta quantidade de peixes e frutos do mar que se encontra armazenada ao ar livre, mas também porque o trabalho, pelo menos nas fábricas, é extremamente pesado. A indústria de
Nápoles, apesar da cidade em breve já contar com um milhão de habitantes, é até hoje bastante atrasada. Não se deve pensar aqui em indústrias com prédios novos, limpos e iluminados, como se encontra na Alemanha e em outras grandes cidades do mundo. Basta dar uma olhada na penúria dos barracões em Portici, Torre Annunziata, Biscragnano e Nocera, resumindo, em qualquer dos inúmeros subúrbios, ou basta tentar chegar a uma destas fábricas atravessando debaixo de sol as intermináveis ruas empoeiradas onde elas se situam, para entender porque muitos preferem o mais miserável ócio ao trabalho numa indústria sob estas condições. O principal produto da indústria napolitana são os alimentos. Primeiramente as conservas feitas de frutas que crescem nas encostas do Vesúvio e de tomates, então os macarrões, em todas as formas e tamanhos. Estes produtos vão principalmente para a Índia e os Estados Unidos, pois os outros países do Mediterrâneo produzem e exportam mais ou menos as mesmas coisas. Junto a isso há também grandes indústrias têxteis, mas que produzem apenas os modelos de tecido mais baratos. Em sua maioria não foram fundadas por napolitanos, mas sim por estrangeiros. Mas há um artigo que, quando se vê, imediatamente se percebe que foi feito em Nápoles, tantas são as ruas em que se encontram: são os móveis, e principalmente as camas. Outros produtos oferecidos pelo comércio são encontrados mais em determinadas ruas, próximas umas das outras, onde se têm dez ou 20 lojas que vendem a mesma coisa. Poderíamos pensar que desta forma os lojistas prejudicariam uns aos outros, mas não parece ser assim, ou então não se veria a mesma situação em outras cidades. Assim, há determinadas ruas em que se encontram principalmente produtos de couro; em outras ruas, uma em cada três lojas oferece livros antigos. Já numa outra estão sentados os relojoeiros, um do lado do outro. Por toda parte, as mercadorias destas lojas avançam para a rua: livros são expostos em caixas em frente às livrarias; camas e mesas ficam sobre as calçadas. Meias e vestidos ficam pendurados junto às portas e nas fachadas das lojas. Uma boa parte do comércio napolitano, contudo, se vira muito bem sem loja nenhuma e se dá por satisfeito apenas com o espaço da rua. Eu me lembro de um homem, sentado numa carroça encostada na esquina. Havia uma multidão em volta dele. O tampo da carroça estava aberto e o vendedor tirava alguma coisa dali de dentro, sem parar de elogiar a mercadoria. Eu não conseguia identificar o que realmente era, pois num instante o objeto desaparecia dentro de um embrulhinho de papel rosa ou verde. E assim ele levantava a mão bem alto e num piscar de olhos, o que quer que fosse era vendido por alguns soldi. Eu me pergunto se o que havia dentro dos embrulhos de papel eram bilhetes de loteria, pedacinhos de bolo com moedas escondidas ou frases com previsões para o futuro. O rosto do homem era tão misterioso quanto o de um mercador das 1001 noites. Mas o mais misterioso em tudo aquilo, como eu finalmente pude perceber, não eram as mercadorias, e sim a habilidade do vendedor em se livrar delas tão rapidamente. O que será que havia naqueles embrulhinhos de papel colorido? O que ele embrulhava naqueles papeizinhos? Só uma pasta de dente. Noutra ocasião, quando eu havia levantado cedo, vi um vendedor ambulante chegando e abrindo sua mala cheia de tralhas. Mas o jeito como ele fazia aquilo era um verdadeiro espetáculo teatral. Guarda-chuvas, tecidos de camisa, xales, cada peça ele apresentava separadamente ao seu público, com desconfiança, como se ele mesmo tivesse primeiro que testar a
mercadoria – então parecia que ele começava a se animar, mostrando admiração e surpresa com as coisas tão belas que ele tinha ali; abria então um lenço e pedia 500 liras – o que daria uns 80 marcos. De repente ele puxava o lenço, e a cada vez que dobrava o preço ia baixando, até que finalmente, quando a peça ficava pequena entre seus braços, ele anunciava o preço definitivo: 50 liras. Se uma cena como esta ocorre em cada esquina da cidade, então vocês imaginem só como deve ser um mercado em Nápoles. O mais curioso de todos é o mercado de peixes. Aqui os napolitanos degustam estrelas do mar, caranguejos, polvos, escargots, lulas e várias outras espécies de vermes como se fossem deliciosas guloseimas, coisas que só de olhar já causam arrepio. Devo dizer que não foi nada fácil para mim, pescar com a colher o primeiro pedaço de lula no caldo vermelho e apimentado em que ela estava boiando. Mas eu sempre achei que em terras estrangeiras não basta apenas abrir os olhos e, sempre que possível, falar a língua que as pessoas falam. É preciso tentar se adaptar aos costumes da gente do país, suas casas, seu sono, suas refeições. Depois que nos acostumamos um pouco, aí então a lula adquire um sabor delicioso. E afinal, porque deveria ser diferente? Quando se fala em gastronomia, os napolitanos são grandes especialistas. O que na Alemanha só se encontra nos mais finos restaurantes – por exemplo, a forma como a carne, o peixe etc. são exibidos ao cliente antes de serem preparados – em Nápoles isso vale até para os mais modestos botequins. Em toda parte, pode-se ver na vitrine do restaurante o estoque que o dono providenciou para o dia. As grandes comilanças acontecem no 7 de setembro. É quando se festeja em Nápoles a Piedigrotta, uma antiga festa romana que celebra a fertilidade e que se mantém viva até os dias de hoje. E como fazem então as pessoas pobres e suas famílias para neste dia conseguirem também algo de bom para encher suas tigelas? Durante o ano inteiro elas pagam toda semana 20 ou 30 soldi de seu ganho semanal ao dono da mercearia. No dia de Piedigrotta é feita a soma do saldo excedente e cada um tem direito então ao seu pedaço de cabrito assado, seu queijo e seu vinho. É assim que os napolitanos fazem seu seguro para a festa nacional, da mesma forma como nós fazemos seguro para a velhice e contra acidentes. No mais, o dia de Piedigrotta em Nápoles é impossível de se descrever com palavras. Imaginem vocês, que numa cidade com um milhão de habitantes todos os meninos e meninas tramaram uma conspiração para sair pelas ruas logo após o anoitecer, fazendo todo tipo de diabruras em frente às casas, nas praças, debaixo das pontes e dos arcos, sem parar até o romper da aurora. Mais ainda, imaginem que a maioria deles comprou uma destas terríveis cornetas coloridas que são vendidas em cada esquina a cinco centavos. E que eles correm em bandos por todos os lados, só pensando em encontrar algum inocente pelo caminho, para impedir sua passagem e colocá-lo na roda, cornetando seus ouvidos por todos os lados, até que a vítima caia quase desfalecida ou consiga escapar. Em compensação, há algo de doce e agradável para os ouvidos em outra parte da cidade. Pois neste dia acontece em Nápoles uma espécie de festival da canção. A maioria das canções, divulgadas todos os dias pelas ruas ao som do acordeon ou do piano são apresentadas pela primeira vez na festa de Piedigrotta e as mais belas são premiadas por um júri. Em Nápoles, quem sabe cantar bem torna-se quase tão famoso quanto quem sabe lutar boxe nos Estados Unidos.
Mas não há apenas os grandes feriados. Nesta cidade, praticamente todos os dias acontece alguma coisa. Cada bairro tem seu próprio padroeiro, que protege a localidade, e no dia deste santo a festa começa cedo. Na verdade, já com alguns dias de antecedência, quando são erguidos os mastros onde se penduram as lâmpadas verdes, azuis ou vermelhas, e as guirlandas são fixadas de um lado ao outro da rua. Para a decoração das ruas, os papéis de diversas cores são o elemento mais importante; seu brilho, sua mobilidade e seu desgaste rápido correspondem exatamente ao modo de ser dos moradores, cheios de vida e de um humor que muda constantemente. Matamoscas vermelhos, pretos, amarelos e brancos, altares feitos de papel lustroso fixados nos muros, rosáceas de papel esverdeado, espetadas nos pedaços de carne, saltam aos olhos em toda parte. As pessoas passam pelas ruas que jamais ficam vazias e anunciam em que bairro da cidade acontece hoje uma festa, e sem hesitar dirigem-se então para lá. Encontrei ali todo tipo de gente: do engolidor de fogo, que sossegadamente arruma os pratos flamejantes ao seu redor na calçada de uma rua larga e vai passando então de um para o outro colhendo as chamas, até o desenhista de silhuetas, que se instalou na sombra de um portal e coloca seus modelos sob a luz ofuscante do sol, para recortar fielmente seu perfil em papel preto lustroso ao preço de uma lira. Sem falar nos adivinhos e nos atletas; pessoas assim vocês também podem encontrar nas feiras anuais por aqui. Mas eu quero contar a vocês sobre uma espécie de pintor que só vi em Nápoles. Primeiramente eu não cheguei a vê-lo, o pintor mesmo, mas sim uma multidão ao redor de um espaço aparentemente vazio. Eu fui me aproximando. Então vi ali, ajoelhado no meio do emaranhado de gente o que parecia ser um sujeito baixo que pintava, com giz colorido sobre a pedra do calçamento, um Cristo e um rosto de Nossa Senhora. Sem a menor pressa. Todos observam como ele acrescenta cada detalhe ao seu trabalho; ele pensa com atenção onde vai usar o giz verde, o amarelo ou o marrom. Após um longo instante ele se levanta e se põe a esperar, calado, ao lado de sua obra, quinze minutos, ou mesmo meia hora, enquanto os admiradores atiram duas ou três moedas de cobre, até que pouco a pouco, os braços e pernas, a cabeça, o tronco do desenho sejam cobertos completamente. Então ele recolhe o dinheiro, e o desenho logo vai desaparecendo sob os passos de quem passa por ali. Cada festa é coroada com um espetáculo de fogos sobre o mar. Bom, na verdade eu deveria dizer: era coroada. Em todo caso, assim era naquela época, no ano de 1924, quando estive pela primeira vez na cidade. Mais tarde a prefeitura se deu conta da enorme quantia em dinheiro que ia pelos ares naquela noite e deu ordem para que se limitassem os fogos de artifício. Mas nas noites daquele tempo, de julho a setembro, uma faixa contínua de fogo se estendia ao longo da costa, de Nápoles até Salerno. Por vezes, viamse as bolas de fogo sobre Sorrento, às vezes sobre Minori ou Praiano, mas sobre Nápoles era sempre. E cada paróquia apresentava a cada ano um novo espetáculo de luzes, buscando superar a festa dos vizinhos. Pois assim contei a vocês um pouquinho sobre o dia a dia e um pouquinho sobre os dias de festa em Nápoles, e o mais curioso é ver como isto se mistura na cidade, como no dia a dia as ruas têm um ar de festa, cheias de música e de gente passeando à toa, com as roupas penduradas esvoaçando sobre elas feito bandeiras, e como o domingo tem também um aspecto de
dia útil, pois todo pequeno comerciante pode deixar sua loja aberta até tarde da noite. Para conhecer a cidade inteira seria preciso talvez se transformar num carteiro napolitano e passar um ano aqui. Então se descobriria mais porões, mansardas, pátios de fundos e esconderijos do que em muitas outras cidades juntas. E o próprio carteiro jamais seria capaz de conhecer Nápoles inteira. Quantas dezenas de milhares moram ali, sem jamais ter recebido uma carta sequer, sem sequer ter onde morar. A miséria é grande na cidade e em toda a região. É dali que parte a maioria dos emigrantes italianos. Passageiros do convés inferior num navio a vapor americano, dezenas de milhares já lançaram um último olhar sobre a sua cidade natal, tão bela ainda nessa hora do adeus, com suas escadarias enfileiradas até se perder de vista, seus pátios que se encaixam uns sobre os outros, suas igrejas perdidas num mar de casas. E é exatamente com esta vista que iremos deixar a cidade hoje. 73 Em italiano, moedas (plural de soldo : moeda, dinheiro).
A destruição de Herculano e Pompeia Vocês já ouviram falar do Minotauro? Ele era um monstro abominável que vivia em Tebas no meio de um labirinto, onde todo ano uma virgem era abandonada em sacrifício, vagando entre as centenas de bifurcações e cruzamentos até se perder e ser devorada pela terrível criatura, até o dia em que Teseu recebeu da filha do rei um novelo que fixou na entrada do labirinto para que pudesse encontrar o caminho de volta e conseguiu assim matar o Minotauro. A filha do rei de Tebas se chamava Ariadne. Um fio como esse que Ariadne ofereceu a Teseu seria bastante útil se entrássemos na Pompeia de hoje. O local é o maior labirinto, o lugar com o maior número de caminhos entrecruzados da Terra ⁷⁴ . Para qualquer direção que os olhos apontem não se vê nada além de um muro e do céu. Há 1800 anos, antes mesmo de Pompeia ser soterrada, já devia ser difícil se localizar dentro da cidade. A antiga Pompeia, como por exemplo a cidade de Karlsruhe aqui na Alemanha, consistia numa verdadeira rede de ruas que se cruzavam em ângulo reto; todos os locais que serviam de ponto de referência naquela época, lojas e placas de hospedarias, templos e prédios mais altos, tudo desapareceu. Onde antes havia escadarias e muros ligando as construções, hoje os espaços vazios entre as ruínas apontam em todas as direções. Tantas vezes me aconteceu, quando eu vinha de Nápoles ou Capri passear com algum amigo pela cidade fantasma, de querer chamar sua atenção para uma pintura na parede com as cores já meio apagadas, ou para um mosaico no piso de uma sala e tantas vezes me vi de repente sozinho, e nós precisávamos nos chamar mutuamente aos gritos, para saber onde estávamos e nos reencontrar. Não vão pensar que um passeio por esta Pompeia fantasma seria o mesmo que uma visita a um museu de antiguidades. Não, o ar abafado que paira a maior parte do tempo, as ruas
largas, uniformes e sem sombra, onde não se ouve um ruído e as cores já não têm brilho, tudo dá ao visitante uma sensação esquisita. O susto é inevitável, quando se escuta apenas os próprios passos ou de repente se depara com algum outro visitante solitário. E os vigias uniformizados, com aquela expressão de malandragem no rosto, típica dos napolitanos, também não ajudam muito. As casas na Grécia e Roma antigas quase nunca tinham janela; a luz e o ar entravam pela claraboia, uma abertura no teto, que correspondia a uma bacia no chão, aonde a chuva caía. Agora que suas cores já desapareceram, as paredes sem janela, que sempre tiveram um ar de severidade, dão às ruas um tom ainda mais grave. Nada mais belo e encantador, porém, que a vista do Vesúvio, com os bosques a seus pés e os vinhedos em suas encostas, quando o contemplamos por sobre as paredes estáticas ou através de um dos três ou quatro portais de Pompeia que ainda estão de pé. E assim também, tão encantadora e nem um pouco terrível, foi durante séculos a visão do vulcão para os moradores de Pompeia, cidade que ele um dia viria a destruir. Segundo uma tradição muito antiga, conta-se que na região da Campânia, onde se situam Herculano e Pompeia, encontram-se as entradas para o mundo subterrâneo. Mas desde que a História começou a ser escrita, não existe qualquer menção a uma erupção do Vesúvio. Durante muitos séculos o vulcão esteve adormecido; os pastores levavam seus rebanhos para pastar na cratera verdejante e Spartacus, o senhor de escravos, escondeu-se ali com seu exército inteiro. Terremotos sempre houve na região de Campânia, mas as pessoas estavam acostumadas a eles. E parece que durante muito tempo eram de intensidade fraca e se limitavam a um pequeno raio de extensão. Esta paz e tranquilidade de séculos, que a Terra parece que havia combinado com os homens – e naquela época os homens viviam tão pouco em paz entre si como hoje em dia – esta paz foi perturbada pela primeira vez por um terrível terremoto no ano de 64 depois de Cristo. Uma grande parte de Pompeia foi destruída já naquela época. E quando 16 anos mais tarde a cidade foi varrida completamente da face da Terra por muitos séculos, ela já não era uma cidade como as outras. No momento da erupção do Vesúvio, Pompeia se encontrava em plena renovação e remodelamento. Pois jamais os homens reconstruíram uma cidade destruída exatamente como ela era; eles sempre procuram tirar algo de bom da tragédia e tentam reconstruir as coisas de forma que elas fiquem mais seguras, melhores e mais belas. Assim aconteceu também com Pompeia, na época uma cidade rural de tamanho médio, com aproximadamente 20.000 habitantes. Os samnitas, uma minoria da população da Itália antiga, viviam ali isolados até pouco antes do nascimento de Cristo e quando os romanos ocuparam a região, mais ou menos 150 anos antes de sua destruição, Pompeia não chegou a sofrer tanto. A cidade não foi conquistada, apenas uma quantidade de súditos romanos foi assentada, com os quais os samnitas tiveram que dividir suas terras cultiváveis. Estes romanos começaram logo a organizar a cidade segundo seus usos e costumes, e como se encontravam num processo de transformação e reconstrução, acabaram naturalmente tirando vantagem do terremoto e de suas consequências. Resumindo, não restou muita coisa dos antigos samnitas na Pompeia que foi destruída pela erupção e muitos pesquisadores dedicados teriam preferido que o terremoto não tivesse acontecido, que a antiga cidade samnita tivesse sido soterrada pelo Vesúvio e fosse então
preservada para a posteridade, como aconteceu com a Pompeia romana. Afinal, cidades romanas nós conhecemos inúmeras, mas nenhuma cidade samnita. Pode-se dizer que sabemos tanto sobre o desaparecimento de Pompeia quanto saberíamos se houvesse acontecido em nossos dias. E as informações que temos encontram-se em duas cartas que uma testemunha ocular da erupção do Vesúvio endereçou ao historiador Tácito. Estas são talvez as cartas mais famosas que já se escreveu no mundo. Elas foram escritas por Plínio, o Jovem, um grande naturalista que tinha 18 anos na época da catástrofe e que se encontrava com seu tio em Miceno, perto de Nápoles. Seu tio, Plínio, o Velho, era comandante da frota romana e perdeu a vida durante a erupção. Vou ler agora o trecho de uma das cartas para vocês: Já fazia talvez uma hora que havia amanhecido, e mesmo assim pairava no céu um pálido lusco-fusco. As casas em nossa vizinhança balançavam tanto que já era perigoso permanecer no pátio estreito no qual havíamos nos refugiado. Assim, resolvemos deixar a cidade. A multidão nos seguiu desnorteada de medo e, como é comum nestes casos, todos acreditavam agir de forma correta ao fazer aquilo que os outros faziam. Era uma massa enorme, que nos empurrava e acelerava nossa marcha. Logo que nos afastamos da área onde ficam as casas nos deparamos com algo surpreendente e assustador. A região era completamente plana. Mas os veículos que havíamos providenciado para nossa fuga balançavam de um lado para o outro. Nem com a ajuda de pedras conseguíamos mantê-los no lugar. O mar parecia querer afluir de volta para seu fundo, era como se a praia o empurrasse para longe. E ela se tornava cada vez mais larga, deixando à vista uma quantidade enorme de animais marinhos sobre a terra seca. Diante de nós surgiu uma pavorosa nuvem negra; explosões incandescentes vinham desfazê-la por alguns instantes, então a nuvem se fechava novamente e ia se repartindo e aumentando, e de novo as chamas estouravam de dentro dela, parecendo raios, só que muito maiores. Assim escreve Plínio, e logo vocês vão escutar um pouco mais de seu relato. Mas como eu dizia a vocês: ele assistia a tudo de longe. A nuvem de fogo que ele descreve estava sobre o Vesúvio e ela não chegou a Pompeia. Pompeia não foi destruída como a Ilha de Martinica, literalmente consumida por uma nuvem ardente no começo do nosso século. O fogo não alcançou Pompeia. Sim, nem mesmo as correntes de lava, que tornaram as últimas erupções do Vesúvio tão devastadoras, chegaram a tocar a cidade: o que veio a soterrar Pompeia foi, na verdade, uma chuva. Mas uma chuva muito estranha. Em outro trecho de sua carta, Plínio conta como a nuvem sobre o Vesúvio era num momento negra, noutro, cinza claro. As escavações em Pompeia nos revelaram a causa deste fenômeno. Uma hora o vulcão lançava cinzas negras, e então novamente uma quantidade espantosa de pedrapomes cinza. Podem-se distinguir perfeitamente as camadas superpostas em Pompeia. Mas elas têm algo de particular. Graças às camadas de cinzas encontramos ali algo que não se vê em nenhum outro lugar da Terra. A imagem perfeitamente fiel e nítida dos homens que viveram ali há 2000 anos.
Isso aconteceu da seguinte forma: enquanto a chuva de pedras-pomes caía e literalmente, ia abatendo as pessoas e elas tentavam se proteger com lençóis e travesseiros, a chuva de cinzas descia e asfixiava a todos. Os cadáveres entre as pedras-pomes entraram em decomposição, e quando se realizou a escavação, foram encontrados apenas esqueletos. Totalmente diferente do que aconteceu com a camada de cinzas. Seja porque a cinza expelida pelo vulcão estava úmida, como querem crer alguns, seja porque as chuvas torrenciais após a erupção umedeceram as cinzas, de qualquer forma, ela veio se depositar entre cada dobra de roupa, em cada curva da orelha, entre os dedos, cabelos e lábios das pessoas. Ela se solidificou muito mais rápido do que os corpos poderiam se decompor, de forma que hoje temos uma farta quantidade de moldes de seres humanos, alguns enquanto caíam ao chão e lutavam contra a morte, outros, porém, tranquilos, como a esperar por seu fim, tal qual a menina que vemos deitada com os braços dobrados sob a cabeça. Dos 20.000 moradores, pouco mais de um décimo perdeu a vida na catástrofe, e muitas vezes vemos que a preocupação com os seus bens foi o que lhes impediu de buscar abrigo a tempo. Eles se trancaram em seus porões com seus tesouros de ouro e prata e, quando a erupção chegou ao fim, estavam soterrados; não havia mais como abrir a porta e eles morreram de fome. Outros sucumbiram sob os sacos que haviam enchido de joias e pratarias. Muitos, como o tio de Plínio, cuja carta continuarei a ler, ao invés de fugirem em direção ao interior, permaneceram na beira do mar, esperando pela melhor ocasião de sair remando. Mas o mar, revolvido pelo terremoto, era agora inalcançável, e aqueles que esperavam acabaram sendo soterrados. Pouco tempo depois [escreve Plínio] a nuvem que pairava sobre nós baixou a terra, cobrindo o mar e envolvendo todas as montanhas do continente. Eu olhei em volta, atrás de nós avançava uma fumaça negra, como uma corrente descontrolada. “Vamos sair daqui correndo enquanto ainda está claro”, eu disse à minha mãe, “se ficarmos na estrada, seremos esmagados pela fumaça na escuridão.” Mas assim que paramos, a noite nos envolveu. Não uma noite sem lua ou com nuvens que impõem uma treva, mas a noite de um quarto sem janelas. Não se ouve mais do que o grito estridente das mulheres, o choro das crianças e o gemido dos homens. Uns chamam pelos seus pais, outros pelos seus filhos, outro por sua esposa, pois só se pode reconhecer as pessoas por sua voz. Muitos lamentam por seu próprio destino, outros pelo destino de seus parentes. Por medo da morte muitos clamam para que ela venha o quanto antes. Outros ainda erguem as mãos para o céu implorando aos deuses, mas muitos creem também que já não há mais deuses e que o mundo inteiro mergulha em sua última noite, a noite eterna. Quando, por fim, a claridade foi voltando aos poucos, acreditávamos que não era a luz do dia, mas sim das chamas que se aproximavam. Mas elas não nos alcançavam. Então de novo a escuridão, e de novo uma chuva violenta com massa de cinzas. De tempos em tempos, precisávamos nos levantar e sacudir a cinza, se não ficaríamos soterrados debaixo dela, ou seríamos até esmagados pelo seu peso. De minha parte posso dizer que numa situação de tal perigo não pronunciei uma queixa sequer nem qualquer palavra que pudesse ser expressão de minha fraqueza. Eu imaginava que ali deveria perecer com todos os outros, e todos os outros deveriam perecer comigo. Era isto o que me servia de triste, mas enorme consolo.
Pode-se perceber através desta carta que ninguém imaginava no momento qual teria sido a causa da catástrofe. Alguns acreditavam que o sol estava prestes a se chocar com a Terra, outros que a Terra tinha saído voando pelos céus, alguns, como conta um historiador mais tarde, ainda pensavam ter visto entre as nuvens ardentes um gigante e acreditavam que havia estourado uma revolta dos deuses antigos. Vestígios de cinzas da terrível erupção chegaram até Roma, ao Egito e à Síria, aonde a notícia da catástrofe chegaria muito mais tarde. E então os sobreviventes retornaram. Não para se instalar ali novamente, pois sobre aquele solo, onde as cinzas haviam se acumulado de 15 até 30 metros, isso agora era impossível. Mas sim para remexer em busca dos seus pertences, que com sorte, talvez pudessem reencontrar. E muitos mais vieram a perder a vida nessa busca, ao serem soterrados pelas massas de cascalho que despencavam. Durante muitos séculos então, a cidade foi apagada da lembrança dos homens. E quando ela ressurgiu da terra no século passado, com suas lojas, hospedarias, teatros, escolas de luta, seus templos e banhos públicos, então a erupção do Vesúvio do ano de 79 d.C., que havia destruído a cidade dois milênios atrás, reapareceu aos nossos olhos sob uma luz inteiramente nova. Pois da mesma forma que ela significou para as pessoas daquele tempo a destruição de uma cidade que florescia, assim também ela significou para nós a conservação dessa cidade. Uma conservação minuciosa que nos permite lançar um olhar sobre sua vida cotidiana, através de centenas de inscrições com as quais os moradores cobriam suas paredes, assim como nós cobrimos as nossas com cartazes. Ali encontramos informações sobre suas discussões no conselho municipal, suas brigas de animais, suas disputas com superiores, seus ofícios, suas tabernas. Mas em meio a estas centenas de inscrições, nos deparamos ao final com uma que, podemos imaginar, teria sido a última, e que tenha sido gravada pela mão de um judeu ou de um cristão conhecedor destas histórias, ao ver o fogo se aproximar ameaçando a cidade. “Sodoma e Gomorra”, eis esta última e sinistra inscrição sobre os muros de Pompeia. 74 No original, Irrgarten , jardim de caminhos bifurcados, labirinto ou dédalo.
O terremoto de Lisboa Vocês alguma vez já tiveram que ficar esperando na farmácia, vendo o farmacêutico preparar uma receita? Ele pesa as substâncias e os pozinhos grama por grama com ajuda de pequeninos pesos de metal, até chegar à dose certa para fazer o medicamento. Pois da mesma forma que o farmacêutico, assim faço eu aqui quando vou contar alguma coisa para vocês no rádio. Os meus pesos são os minutos, e eu preciso medir exatamente o quanto disso e o quanto daquilo vou usar para chegar à mistura correta. “Ora essa!” vocês vão dizer. Se o senhor vai contar sobre o
terremoto de Lisboa, então que comece pelo princípio. E então continue contando o que aconteceu depois. Mas se eu fosse contar dessa forma, vocês não achariam muita graça. As casas indo abaixo, uma após a outra, as famílias perecendo, uma após a outra, o horror do incêndio se espalhando por toda a parte, da água, a escuridão e os saques, os gemidos dos feridos e as lamentações daqueles que procuravam por seus parentes – quem gostaria de escutar só essas coisas? – que afinal são as mesmas de qualquer catástrofe natural de grandes proporções. Mas o terremoto que destruiu Lisboa no dia 1º de novembro de 1755 não foi apenas uma calamidade como tantas outras, ele foi, em muitos aspectos, um acontecimento singular e espantoso. E é sobre isso que quero contar a vocês. Antes de tudo, foi um dos maiores e mais devastadores terremotos que já ocorreram na história. Mas não foi só por isso que a tragédia comoveu e atingiu o mundo inteiro naquele século. A destruição de Lisboa, naquela época, seria o equivalente hoje, à destruição de Chicago ou Londres. Na metade do século XVIII Portugal vivia o apogeu de seu poder colonial. Lisboa era um dos centros comerciais mais ricos do mundo; seu porto, situado na foz do rio Tejo, passava o ano inteiro cheio de navios e o cais era repleto de imensas casas de comércio de negociantes ingleses, franceses e alemães, principalmente de Hamburgo. A cidade contava com mais de 30.000 casas e uma população de mais de 250.000 habitantes, dos quais, aproximadamente, um quarto perdeu a vida neste terremoto. A corte do rei era famosa por sua severidade e seu esplendor, e muitos relatos publicados em Lisboa nos anos anteriores ao terremoto nos contam sobre o estranho ar de solenidade das cerimônias, quando, por exemplo, nas noites de verão os membros da corte e seus familiares chegavam em suas carruagens ao principal centro da cidade, a Praça do Rossio, reuniam-se e conversavam informalmente por alguns instantes, sem descer do veículo. A ideia que se fazia do rei de Portugal era a de um homem tão superior, que um dos folhetos distribuídos em toda Europa com descrições detalhadas da tragédia, sequer foi capaz de conceber que um rei de tamanha grandeza pudesse ter sido atingido por tal fatalidade. Mas da mesma forma que só se conhece a dimensão do desastre [assim escreve este estranho jornalista] quando tudo já passou, assim podemos também fazer ideia da lastimável e terrível situação quando pensamos que um grande rei passou um dia inteiro abandonado por todos em sua carruagem, com sua esposa e nas mais precárias condições. Os folhetos, nos quais se podiam ler coisas do gênero, eram o equivalente dos jornais de hoje em dia. Quem conseguia, colhia junto às testemunhas oculares as informações mais detalhadas possíveis, mandava imprimir e vendia. E é o trecho de um destes relatos, escrito por um inglês residente em Lisboa e que presenciou os acontecimentos, que quero ler para vocês depois. Há uma razão especial para que este acontecimento tenha comovido as pessoas de forma tão profunda, fazendo com que até 100 anos mais tarde ainda circulassem inúmeros panfletos com relatos sobre a tragédia. É que, por sua amplitude, este foi o maior de todos os terremotos de que já se tinha ouvido falar. Ele foi sentido de toda Europa até a África, e calculou-se que
com seus prolongamentos mais distantes chegou a abranger uma área de dois milhões e meio de quilômetros quadrados. Os tremores mais intensos alcançaram desde a costa do Marrocos, por um lado, até à costa da Andaluzia e da França, pelo outro. As cidades de Cádiz, Jerez e Algeciras foram quase completamente destruídas. Segundo uma testemunha, as torres da catedral de Sevilha tremeram como varas de bambu. Os tremores mais violentos, contudo, se propagaram pelo mar. Da Finlândia até à Indonésia foram sentidas fortes turbulências nas águas, e calcula-se que o tremor do oceano propagou-se desde a costa portuguesa até à foz do Elba numa velocidade espantosa em quinze minutos. Isso é o que foi registrado no momento do desastre. Mas o que mexeu mais profundamente com a imaginação das pessoas foram os fenômenos naturais observados semanas antes da catástrofe, os quais foram, com razão, compreendidos como sinais da futura tragédia. Em Locarno, no sul da Suíça, duas semanas antes do terremoto, vapores surgiram de debaixo da terra, transformando-se duas horas depois numa névoa vermelha que ao anoitecer caiu dos céus em forma de uma chuva púrpura. Diz-se que a partir de então foram observados na Europa ocidental terríveis furacões, acompanhados de chuvas torrenciais e inundações. Oito dias antes do tremor, o solo na região ao redor de Cádiz ficou coberto por uma enorme quantidade de vermes. Ninguém mais do que o grande filósofo alemão Immanuel Kant, de quem vocês talvez já tenham ouvido falar, se interessou por estes estranhos fenômenos. Nesta época ele era um jovem de 24 anos, nunca havia saído nem jamais sairia de sua cidade natal, Königsberg, mas com um zelo impressionante recolheu todas as notícias que pôde encontrar sobre este terremoto, e o pequeno livro que ele redigiu sobre o fato marcou o início da geografia científica na Alemanha, e sem duvida, o início da sismologia. Gostaria de contar a vocês sobre a trajetória dessa ciência, desde aquela descrição do terremoto de 1755 até os dias de hoje. Mas preciso agir com cautela, para que o nosso amigo inglês não se sinta pressionado pelo tempo e eu possa ler seu relato sobre o que viu do terremoto. Já vão 150 anos que ninguém lhe dá atenção e agora, quando tem a oportunidade de falar, ele aguarda impaciente e me autoriza a contar a vocês apenas algumas palavras sobre o que sabemos dos terremotos. Mas antes de tudo: a coisa não é como vocês imaginam. Pois eu aposto que se nós déssemos uma parada agora e eu pedisse a vocês que me descrevessem como é um terremoto, vocês pensariam primeiramente nos vulcões. É verdade que as erupções vulcânicas estão frequentemente associadas a um terremoto, ou pelo menos são anunciadas por eles. Assim, ao longo de 2000 anos, dos gregos antigos a Kant e em diante, até por volta de 1870, as pessoas acreditaram que os terremotos se originavam de gases e vapores ardentes do interior da Terra. Mas quando se passou a investigar as coisas com instrumentos de cálculo de uma precisão que vocês sequer podem imaginar – nem eu – e quando se pôde conferir tudo, chegou-se a uma conclusão completamente diferente, ao menos sobre os grandes terremotos, como o que se abateu sobre Lisboa. Eles não se originam do mais profundo interior da Terra, que até hoje se imagina ter uma forma líquida, ou melhor, uma espécie de lama ardente, mas sim de fenômenos que ocorrem na crosta terrestre. A crosta terrestre é uma camada de aproximadamente 3000 km de espessura, em constante instabilidade. As massas se encontram em constante deslocamento, sempre buscando chegar a um equilíbrio. Algumas das causas das perturbações
neste equilíbrio são conhecidas, outras ainda precisam ser descobertas através de pesquisa exaustiva. Até onde se sabe, pode-se afirmar que as transformações mais importantes se dão pelo constante resfriamento da Terra. Através dele surgem enormes tensões nas massas rochosas, tensão esta que acaba despedaçando essas massas rochosas, que se deslocam até encontrar um novo equilíbrio, o que nós sentimos como um terremoto. Outra causa das transformações é a erosão das montanhas, que consequentemente se tornam mais leves e depositam-se no fundo do mar que, então, fica mais pesado. Tempestades, principalmente aquelas que caem no outono, fazem também a superfície da Terra estremecer e, por fim, está sendo constatado o efeito da atração de corpos celestes sobre a superfície do nosso planeta. Mas, vocês vão dizer: se é assim, a Terra está tremendo o tempo todo. Vocês têm razão, é assim mesmo. A altíssima precisão dos instrumentos de sismologia de hoje em dia – só na Alemanha temos 13 observatórios de sismologia em diversas cidades –, faz com que estes aparelhos estejam sempre indicando alguma alteração, o que quer dizer: a Terra está sempre tremendo, só que de uma forma que nós geralmente não percebemos. Tanto pior quando de repente se pode perceber este tremor olhando para um céu límpido: para um céu límpido, literalmente. “Pois”, assim descreve o nosso amigo inglês, a quem finalmente damos a palavra: o sol brilhava com todo o seu esplendor. O céu, completamente limpo e claro, não dava o menor sinal de qualquer fenômeno natural quando entre 9 e 10 horas da manhã, enquanto eu estava sentado à escrivaninha, fui de repente surpreendido por um movimento da mesa que eu não sabia explicar de onde vinha. Enquanto eu tentava entender o que acontecia, a casa tremeu de cima a baixo. Debaixo da terra ecoou um trovão, como se uma tempestade estivesse caindo bem longe dali. Eu rapidamente larguei a pena sobre a mesa e dei um salto. O perigo era enorme, mas eu ainda tinha esperança de sair ileso daquela situação. Só que no instante seguinte já não havia mais qualquer dúvida. Ouvi um estalo terrível, como se todos os prédios da cidade estivessem desmoronando, os cômodos de minha casa balançaram tão forte que tudo foi arremessado ao chão de uma só vez. A todo instante eu achava que seria fatalmente atingido por alguma das enormes pedras que voavam das paredes vindo abaixo, enquanto as vigas do teto pareciam flutuar no ar. Porém, neste momento a escuridão tomou conta do céu a tal ponto que era impossível enxergar qualquer coisa. O cenário era como o das trevas do Egito ⁷⁵ , ou por causa da imensa poeira que subiu com o desmoronamento das casas, ou porque uma massa de vapor de enxofre subia de debaixo da terra. Enfim, a noite voltou a ficar clara e a violência dos tremores diminuiu. Consegui me acalmar um pouco e olhei em volta. Percebi que minha vida havia sido salva por um mero golpe do acaso. Pois se eu estivesse vestido, com certeza teria saído correndo para a rua e seria fatalmente atingido por um dos prédios que desmoronavam. Rapidamente calcei os sapatos, vesti o roupão e me apressei até a rua em direção ao cemitério da igreja de São Paulo, uma área mais elevada onde eu acreditava que estaria a salvo. As pessoas não conseguiam nem reconhecer a rua onde moravam, muitas sequer sabiam responder o que havia acontecido com elas, tudo e todos estavam dispersos e ninguém sabia aonde tinham ido parar seus pertences ou seus familiares. Na elevação onde se situava o cemitério da igreja pude então testemunhar o cenário de uma tragédia: até onde meus
olhos alcançavam eu podia ver uma enorme quantidade de barcos flutuando e batendo uns contra os outros, como se a mais violenta tempestade estivesse caindo. De uma vez só o imenso cais às margens do rio afundou arrastando junto todas as pessoas que pensavam estar em segurança ali. Nesse mesmo instante, os barcos e veículos onde tanta gente ia buscar refúgio foram tragados pelo mar. Através de outros relatos sabemos que, aproximadamente uma hora após o segundo e mais devastador tremor, aquela monstruosa onda de 20 metros que o inglês tinha visto de longe se abateu sobre a cidade. Quando a onda refluiu para o mar, deixou o leito do Tejo seco. O recuo da onda foi tão violento que arrastou junto toda a água do rio. E assim conclui o inglês: Quando a noite desceu sobre a cidade devastada, ela parecia estar debaixo de um mar de chamas: a claridade era tanta, que se podia até ler uma carta. As chamas subiam aos céus em pelo menos 100 pontos da cidade e queimaram sem cessar durante seis dias, devorando tudo aquilo que o terremoto havia deixado intacto. Petrificados pela dor, milhares olhavam fixamente para elas, enquanto mulheres e crianças imploravam pela ajuda dos anjos e de todos os santos. Enquanto isso, a terra continuou a tremer, com maior ou menor intensidade, às vezes até por 15 minutos sem parar. Eis então o que temos sobre o dia desta fatalidade, o 1º de novembro de 1755. O desastre é uma das raras tragédias diante das quais a humanidade se mostra tão desamparada quanto o era há 170 anos. Mas a técnica irá encontrar aqui também suas formas de remediar as coisas, ainda que percorrendo os desvios das previsões. Por enquanto, ao que parece, os órgãos dos sentidos de alguns animais ainda são com certeza mais eficazes que os nossos instrumentos de alta precisão. Os cães, por exemplo, demonstram uma agitação tão evidente dias antes de um terremoto que são utilizados nos observatórios de sismologia em regiões onde há incidência de tremores. E assim meu tempo de 20 minutos se passou, e eu espero que não tenha sido muito longo para vocês. 75 No original, ägyptische Finsternis , no sentido de uma escuridão total, em referência a uma das dez pragas impostas por Deus, descritas na Bíblia.
O incêndio do teatro de Cantão Contei a vocês sobre a erupção do Vesúvio que soterrou a antiga Pompeia e, da ultima vez, sobre o terremoto que destruiu a capital de Portugal no século XVIII. Hoje quero falar de um acontecimento que se deu na China quase 100 anos atrás. Se eu quisesse contar a vocês sobre alguma catástrofe ocorrida na China, poderia, como vocês bem sabem, mencionar outras e mais recentes do que esta do incêndio do teatro em Cantão. Basta vocês se
lembrarem dos conflitos de que todos os dias falam os jornais ou das inundações do Yang Tse no ano passado, sobre as quais nós naturalmente temos relatos muito mais precisos do que aqueles que tratam do antigo incêndio do teatro. Mas o que quero mesmo é falar de uma coisa que permita a vocês conhecer de verdade os chineses, e não há melhor lugar para isso do que no teatro. E aí não estou me referindo às peças que são apresentadas, ou aos atores – bom, eles também, mas isso virá depois – e sim ao público e ao espaço do teatro em si: o teatro chinês, que não se parece em nada com o que nós imaginamos ser um teatro. Um estrangeiro, ao se aproximar, irá pensar que o prédio é qualquer coisa, menos um teatro. Ele ouve uma barulheira desordenada de tambores, címbalos e instrumentos de corda rangendo. Um europeu, diante de um desses teatros, ou ouvindo um gramofone que toca música chinesa, pensaria estar ouvindo um coral de gatos desafinados. Ao entrar então no teatro, ele se sente como alguém que entra num restaurante e tem que atravessar uma cozinha suja: ele passa por uma espécie de lavanderia, onde quatro ou cinco homens curvados sobre bacias com água quente estão lavando lenços. Estes lenços são de enorme importância no teatro chinês. Com eles as pessoas lavam o rosto e as mãos antes e depois de cada xícara de chá e cada tigela de arroz, e os serventes passam num constante vaivém, retirando os lenços usados e trazendo novos, muitas vezes lançando-os com habilidade por sobre a cabeça do público. Come-se e bebe-se durante a apresentação, e os chineses passam facilmente longe do conforto e da solenidade que caracterizam o teatro para nós. Eles não exigem comodidade porque também a dispensam em suas casas. Saem de uma casa sem calefação para um teatro sem calefação, sentam-se em bancos de madeira com os pés sobre calços de pedra e não se incomodam. Estão pouco se lixando para solenidade. Pois entendem de teatro o bastante para se permitir a liberdade de a toda hora dar sua opinião sobre o espetáculo. Se quisessem agir assim apenas nas estreias – como acontece por aqui – então teriam que esperar um longo tempo, pois na China há peças que estão em cartaz há quatro ou cinco séculos, e mesmo as peças novas são adaptações de histórias que todos conhecem ou sabem quase de cor, seja na forma de romance, poema ou de outras peças. Bom, solenidade no teatro chinês não existe, e suspense também não; pelo menos não no desenlace da história. Mas para compensar há outro suspense, comparável talvez àquele que sentimos quando vemos um acrobata balançar no trapézio, ou malabaristas equilibrando pratos com uma vara na ponta do nariz. Na verdade, todo ator chinês deve ser também acrobata e malabarista, além disso, dançarino, cantor e esgrimista. Por quê? – isso vocês logo vão entender, se eu disser que no teatro chinês não existem elementos decorativos. O ator tem que representar não só o seu papel, mas também a decoração. E como ele faz isso? Eu vou explicar. Se ele precisa, por exemplo, cruzar uma soleira, atravessando uma porta que na verdade não existe, então ele ergue os pés de leve sobre o chão, como se estivesse saltando sobre algo. Mas se os passos são longos e os pés se levam mais alto, então ele está subindo uma escada. Ou se um general precisa escalar uma colina para observar a batalha, então o ator sobe numa cadeira. Se ele leva em sua mão um chicote, o público reconhece ali um cavaleiro. Um ator que anda pelo palco, junto com outros quatro atores andando curvados em torno dele, representa um mandarim sendo levado numa liteira. Se fazem um movimento brusco, então significa que o mandarim desceu da liteira. Atores que precisam desempenhar tantas funções assim certamente passam por um
longo aprendizado, que na maioria das vezes dura sete anos. Ali eles aprendem não só a cantar, fazer acrobacias e todas as outras coisas, mas também os papéis de aproximadamente 50 peças, nas quais eles podem ter que atuar a qualquer momento. Isto é indispensável, pois raramente se apresenta uma única peça por espetáculo. É muito mais frequente extrair-se uma cena de uma peça, outra de outra peça, costurando uma sequencia variada, de forma que numa única noite não é raro que seja apresentada uma dúzia de peças, uma após a outra. Por outro lado, se fosse apresentada uma única peça por inteiro, seriam necessários dois ou três dias, de tão longas que elas são. Mas em compensação, existem também peças bem curtas, nas quais um único homem aparece, e é de uma delas que vou ler um trecho para vocês agora. Ela se chama: “O sonho, um homem velho fala.” Quero contar a vocês uma bela história. É lamentável, como o céu é injusto; ele faz cair a chuva e a neve, mas nunca um barra de prata. Ontem à noite eu estava deitado na cama aquecida ⁷⁶ , virando de um lado para o outro sem conseguir adormecer. Eu estava acordado quando o vigia noturno fez soar a primeira e a segunda hora, e depois a terceira. Quando soou a terceira hora, eu tive um sonho. Sonhei que havia um tesouro ao sul da vila. Peguei uma pá e uma picareta e fui para o campo, para cavar em busca do tesouro. E realmente tive sorte; após alguns golpes no solo, consegui desenterrá-lo. Desenterrei um porão inteiro com sapatos de prata; eles estavam cobertos por uma enorme esteira de junco. Eu a levantei e olhei embaixo. Ah, então tive que rir: havia uma colônia de coral de 15 metros de altura, de autêntica cornalina vermelha e ágata branca. Juntei de sete a oito sacos de diamantes, seis cestos cheios de olho-de-gato, 33 relógios de pêndulo, 64 relógios de senhora, lindas botas e gorros, belos casacos e sobretudos, bolsinhas da moda, 72 barras grandes de ouro e para completar 33333 sapatos de prata. Eu tinha tanto ouro e prata que não sabia onde colocar. Será que eu deveria comprar terras e mandar construir um lugar para guardar tudo? Mas eu temia pela seca e as inundações. Ou eu deveria abrir um negócio de venda de grãos? Mas aí os ratos poderiam devorar tudo. Deveria eu emprestar dinheiro a juros? Para isso faltavam os fiadores. Deveria abrir uma loja de penhores? Aí eu temia ter que tirar dinheiro do meu próprio bolso; pois se o gerente sumisse com o meu dinheiro, como faria para encontrá-lo? Todas estas milhares de dificuldades me deixaram tão nervoso que eu despertei com a aflição: tudo tinha sido apenas um sonho! Eu tateei com as mãos procurando pela cama; nisso peguei o acendedor: eles tinham sido os sapatos de prata! Então alcancei o cachimbo de latão: ele tinha sido as barras de ouro! Depois de tatear aqui e ali por alguns instantes acabei encontrando um grande escorpião de cabeça verde que me deu uma picada tão forte quanto o grito que soltei em seguida. Naturalmente só os grandes atores apresentam estas peças pequenas em que atuam sozinhos diante do público. E a fama desses atores é tremenda. Onde quer que sejam vistos, são acolhidos com as maiores homenagens. Com muita frequência, são convidados por ricos comerciantes ou funcionários do governo a se apresentar com sua trupe em suas casas. E, contudo, não há um artista europeu sequer que pense em trocar de lugar com eles. Pois a ambição e a paixão dos atores chineses são tamanhas, que os mestres famosos entre eles vivem sob o medo constante dos atentados que seus rivais ciumentos estão sempre planejando. É impossível convidar
um ator ou uma atriz para uma refeição em qualquer lugar que não seja sua casa, tão forte é sua convicção de que a menor desatenção pode fazer deles vítimas de envenenamento. O chá que eles bebem durante uma apresentação é comprado em segredo cada vez numa loja diferente. A água com que o chá é feito, eles a trazem de casa numa chaleira própria, e só uma pessoa de sua inteira confiança pode prepará-lo. As grandes estrelas jamais pensariam em se apresentar se a orquestra não fosse regida pelo seu próprio maestro, pois acreditam que um rival maldoso poderia criar armadilhas através de erros de direção ou indicações enganosas durante o espetáculo. O público, por sua vez, presta uma atenção diabólica e está sempre pronto para reagir com zombaria e sarcasmo ao menor deslize. E ele não tem o menor constrangimento em atirar xícaras de chá nos artistas quando não está satisfeito com a atuação. O incêndio sobre o qual vou lhes contar agora é o maior incêndio em teatro de todos os tempos. Ele aconteceu em Cantão, em 25 de maio de 1845. O teatro, como de costume, era feito com estacas de bambu guarnecidas com esteiras. Ele havia sido construído especialmente para a apresentação durante os festejos em homenagem ao deus da guerra Kwan Jü. A apresentação deveria durar dois dias. O teatro ficava no meio de uma grande praça, cercado de centenas de barracas semelhantes, só que muito menores. Havia lugar para 3000 pessoas. Na tarde do segundo dia, quando tudo estava lotado, o palco foi decorado para representar um templo do deus da guerra. Mas, como eu já contei a vocês, não existem elementos decorativos no teatro, essa representação do templo era apenas uma chama de sacrifício que tremeluzia solitária no meio do palco. Num certo momento, ao sair de cena, um ator deixou aberta uma das portas do fundo do palco e uma rajada de vento derrubou a chama incendiando algumas esteiras estendidas sobre o palco. No instante seguinte, o palco inteiro estava em chamas e em poucos minutos o fogo consumia o prédio todo. O mais terrível era que no teatro havia apenas uma saída. Aqueles que por acaso estavam próximos a ela conseguiram se salvar, mas quem estava longe não teve qualquer chance. Algumas centenas de pessoas haviam chegado ao lado de fora do teatro, e logo a porta de entrada era destruída pelas chamas. De nada adiantaram as bombas e baldes d'água. Em questão de 15 minutos já não era mais possível se aproximar do foco do incêndio, tão forte era o calor, e assim 2000 pessoas perderam a vida ali. Um europeu que escuta uma notícia como esta naturalmente pensa com orgulho e satisfação em seus grandes teatros de pedra, que passam constantemente pela rigorosa inspeção dos fiscais de obras, nos quais há a presença dos bombeiros em cada apresentação e onde tudo é feito em nome da segurança do público. Caso acontecesse uma fatalidade, seriam poucas as chances de ela tomar proporções tão terríveis, mesmo que seja pelo fato de nossos teatros comportarem um número muito menor de espectadores. Mas justamente: na China todos os grandes eventos, sejam eles relacionados ao trabalho ou às festas, são moldados para atender a enormes massas de gente. E o sentimento de pertencer a uma massa é de longe muito mais forte nos chineses do que num europeu. Daí que a modéstia dos chineses, inconcebível para nós, é sua principal virtude e não está de forma alguma ligada a uma baixa autoestima, representa na verdade a consciência permanente que eles têm da imensa grandeza da massa popular à qual
pertencem. Esta modéstia encontra-se rigorosamente fundamentada nas regras de vida e tratados de seus grandes sábios Confúcio e Lao-Tsé, através de detalhadas normas de comportamento que qualquer pessoa pode entender e aprender. E através desta modéstia, estes grandes mestres dos chineses demonstraram aos seus compatriotas como se comportar de maneira a facilitar a vida em meio à grande massa, ao instilar neles um imenso respeito pelo Estado e, sobretudo, pelos seus funcionários, que não devemos imaginar como os funcionários públicos europeus. Os concursos, aos quais os funcionários chineses devem se submeter, exigem não só os conhecimentos técnicos, como nos nossos, mas também um conhecimento profundo de toda poesia e literatura e, principalmente, dos preceitos dos sábios que mencionei aqui. Sim, vendo por esse lado, é devido às convicções dos chineses que os seus teatros são tão pobres e vulneráveis aos incêndios. Pelo menos me disse um chinês, com quem conversei uma vez sobre essas coisas: Em nosso país pensamos que a casa mais sólida e mais vistosa deve ser o prédio do governo. E em seguida vêm os templos. Mas os locais de diversão não devem despertar atenção, pois isso dá margem para pensarem que a ordem e o trabalho nesta cidade são coisas de menor importância. E neste momento, em muitas cidades da China, eles realmente são uma coisa de menor importância, como vocês sabem. Mas devemos ter a esperança de que o teatro sangrento, diante do qual eles se veem obrigados a recuar, encontre em breve o seu fim ⁷⁷ . 76 No original, Ofenbett , cama construída sobre um forno de barro, antiga tradição chinesa. 77 Benjamin refere-se ao conflito entre os revolucionários comunistas conduzidos por Mao Tsé-Tung e nacionalistas liderados pelo general Chiang Kai-shek, que resultou na mais longa guerra civil do século XX (1927-1949).
O desastre ferroviário da ponte do Rio Tay Quando, no início do século passado, foram realizadas as primeiras experiências com fundição de ferro e os primeiros testes com máquinas a vapor, a situação era completamente diferente de hoje, quando técnicos e especialistas trabalham num avião, ou mesmo num foguete espacial, ou no que quer que seja. Hoje sabemos o que é a técnica. Estes estudiosos e engenheiros ganharam a atenção do mundo inteiro; jornais publicam notícias sobre seus trabalhos, grandes grupos empresariais investem dinheiro em suas pesquisas. Mas os homens, que na virada do século passado criaram aquelas invenções que transformaram o mundo – os inventores do tear mecânico ou da iluminação a gás, da fundição de ferro ou
da máquina a vapor – desses técnicos e engenheiros habilidosos ninguém sabia na verdade o que estavam fazendo, e até para eles mesmos, o alcance de seu trabalho era desconhecido. É difícil afirmar que qualquer uma destas grandes invenções tenha sido mais importante do que outras. Hoje em dia quase nem conseguimos vê-las separadas de sua utilização. Mesmo assim pode-se dizer que as transformações mais significativas do globo terrestre ao longo do século passado estão ligadas à estrada de ferro. É sobre um desastre ferroviário que vou contar hoje a vocês. Não pelo prazer de contar coisas terríveis, mas porque desejo entrar na história da técnica, especialmente na história da construção metálica. Vamos falar de uma ponte. Uma ponte que desaba. Certamente foi uma tragédia enorme para as 200 pessoas que ali perderam a vida, para seus familiares e tantos outros. Mas quero descrever esta fatalidade para vocês como um incidente de percurso numa luta muito maior, uma luta na qual os homens saíram vitoriosos e continuariam saindo vitoriosos, caso eles não insistissem em aniquilar o seu próprio trabalho. Quando estava pensando no que iria contar para vocês hoje, fui buscar novamente um dos meus livros preferidos. É um livro grosso, com ilustrações, do ano de 1840 mais ou menos, um livro na verdade que contém apenas bobagens e piadas. Mas hoje podemos extrair muitas coisas curiosas daquilo que na época era motivo de risada em forma de rima para as pessoas. Resumindo, o livro traz as aventuras de um duende tentando se virar no espaço sideral. E quando ele chega à região onde se encontram os planetas, depara-se com uma longa ponte de ferro fundido, que unia incontáveis corpos celestes. Uma ponte tão longa que não se podia ver seu começo e seu fim ao mesmo tempo, e cujos pilares se apoiavam nos planetas, ligava com sua pista de asfalto maravilhosamente lisa um globo ao outro. O tricentésimo trigésimo terceiro pilar estava apoiado sobre Saturno. Então nosso duende percebeu que o famoso anel de Saturno nada mais era do que uma varanda em volta do planeta, na qual seus moradores se sentavam à noite para tomar um ar fresco. Vejam vocês o que eu queria dizer, quando falei que naquela época as pessoas não faziam bem ideia de para que servia a técnica. Elas achavam aquilo tudo engraçado. E achavam também muito estranho que só se podia construir as coisas segundo modelos e cálculos, exatamente como é o caso das construções metálicas. As primeiras construções deste tipo eram mais uma espécie de brincadeira. A construção metálica começou com jardins de inverno e passagens, ou seja, nos prédios de luxo. Mas ela encontrou seu campo de aplicação muito rapidamente, e então surgiram construções inteiramente novas, que não buscavam inspiração em nenhum modelo do passado. Não só pelo fato de se basearem neste novo tipo de construção, mas também por servirem a necessidades inteiramente novas. Naquela época construíram-se os primeiros palácios de exposição, os primeiros pavilhões de mercados e, sobretudo, as primeiras estações de trem. “Estações ferroviárias” era o nome que se costumava usar, e ele fazia evocar as ideias mais esquisitas. Um pintor belga, Antoine Wiertz, homem de rara coragem, chegou mesmo a se oferecer para pintar as paredes das primeiras estações com grandes imagens solenes.
Mas antes de visitar a enorme embocadura do rio Tay, ( Firth of Tay ) com seus 3000 metros de largura, situada no meio da Escócia, vamos voltar um pouco atrás. No ano de 1814, Stephenson construiu sua primeira locomotiva; mas só em 1820, com a laminação dos trilhos, o caminho de ferro tornou-se possível. Vocês não devem imaginar, entretanto, que tudo saiu como que planejado, passo a passo. Não, os trilhos se tornaram imediatamente um objeto de disputa. Não havia extração de ferro que bastasse para satisfazer o plano da malha ferroviária da Inglaterra, era o que se afirmava na época – evidentemente, referindo-se a uma malha bem pequena. Alguns especialistas acreditavam de verdade que o certo seria fazer correr os veículos a vapor sobre estradas de granito. A primeira linha de caminho de ferro foi inaugurada em 1825, e a locomotiva de número 1 está exposta em um de seus terminais, mas eu tenho certeza que se vocês forem lá um dia, vão olhar e pensar que é um rolo compressor, jamais uma locomotiva. As linhas construídas na Europa, no continente, eram inicialmente trechos tão curtos que poderiam ser percorridos com o postilhão ou até mesmo a pé. Vocês já devem ter escutado alguma vez que Nuremberg e Fürth foram as duas primeiras cidades da Alemanha a serem ligadas por uma estrada de ferro; depois vieram Berlim e Potsdam, e assim por diante. Tudo era visto como uma grande curiosidade. E quando exigiram da linha ferroviária de Nuremberg um parecer técnico dos professores de medicina da universidade de Erlangen, eles concluíram que a linha não deveria sequer ter autorização para funcionar: os movimentos acelerados seriam a causa dos distúrbios cerebrais dos passageiros, sim, e a mera visão daqueles trens em disparada poderia levar as pessoas a um desmaio. Pelo menos, dever-se-ia construir uma proteção de madeira de três metros de altura em ambos os lados dos trilhos. Um moleiro entrou com um processo contra a segunda linha ferroviária da Alemanha, a que liga Leipzig a Dresden, porque ela interceptava o seu vento; e quando a linha precisou construir um túnel, novamente os médicos emitiram um laudo opondo-se, pois a mudança brusca de pressão atmosférica poderia causar apoplexia em pessoas mais velhas. Um grande sábio inglês, que de bobo não tinha nada, soube resumir muito bem o que as pessoas pensavam sobre a ferrovia naquela época: “Deslocar-se por um caminho de ferro”, dizia ele, “não é mais viajar, é simplesmente ser enviado para um destino, como se fosse um pacote.” E ao lado destas batalhas sobre os benefícios trazidos e os danos causados pela ferrovia, surgiam outras, as batalhas por material. Para nós é bastante difícil imaginar a perseverança que tinham estes primeiros engenheiros ferroviários e o enorme espaço de tempo que precisavam reservar para o seu trabalho. Ao dar início, em 1858, à construção de um túnel de doze quilômetros cortando o Mont Cenis, previa-se um período de sete anos de trabalho. E não poderia ser de outra forma com a ponte sobre o rio Tay. A isso se somava outra circunstância. Não era necessário pensar apenas no peso que a ponte deveria suportar, mas também nas terríveis tempestades que varriam o litoral da Escócia, sobretudo no outono e na primavera. Durante a construção dessa ponte, que foi de 1872 a 1878, houve meses em que os furacões não davam trégua, de forma que só se conseguia trabalhar cinco ou seis dias ao longo de quatro semanas. Quando finalmente a ponte estava quase pronta, no ano de 1877, uma tempestade de vento de intensidade jamais vista arrancou duas vigas de metal de 45 metros de
comprimento dos seus pilares de pedra, reduzindo anos de trabalho a nada. Tanto maior foi o triunfo, quando em maio de 1878, a ponte foi inaugurada com uma grande solenidade. Uma única voz discordava e advertia: era, porém, a voz do grande engenheiro inglês de pontes e estradas, J. Towler. Sua opinião era de que a estrutura não suportaria as grandes tempestades por muito tempo e que muito em breve se ouviria falar novamente da ponte sobre o rio Tay. Um ano e meio mais tarde, em 28 de dezembro de 1879, às 4 horas da tarde, o trem de passageiros, quase lotado, partia pontualmente de Edimburgo para Dundee. Era domingo, os seis vagões transportavam 200 passageiros. Era mais um daqueles dias de forte tempestade na Escócia. O trem deveria chegar a Dundee às 7:15 da noite, mas já eram 7:14 quando o primeiro sinal foi emitido da cabine da torre sul da ponte. O que se sabe sobre o que aconteceu com o trem após este último sinal, vou contar a vocês com as palavras de Theodor Fontane. É um trecho de seu poema chamado “A ponte sobre o Tay”. Segue o trem e passa pela torre, ofegante sob a chuva corre, Johnny diz: “Ainda tem a ponte! Nada há de ser, vamos em frente.” Vapor e caldeira na labuta, firme e forte, vencem esta luta. Com velocidade e força e arte superamos, sim, mais esta parte. Nossa ponte é nosso orgulho, ora! Hoje rio, lembrando de outrora, que penúria, quando só havia barco velho para a travessia; Tantas vezes o Natal sozinho passei junto ao cais sem ter vizinho vendo ao longe a luz de nossa casa sem poder passar ao outro lado. Do lado norte já nada se sabe Os olhos buscam mesmo onde não cabe E o povo da ribeira não tem paz
E o medo faz pensar que não há mais E o vento em fúria passa e tudo arrasta; Qual fogo que dos céus então se afasta Despenca no vazio, ardendo, o trem Nas águas turvas... E a noite vem. Não houve testemunhas do que aconteceu nesta noite. Nenhum daqueles que estavam no trem sobreviveu. Por isso ninguém sabe até hoje se foi a tempestade que rompeu o vão, enquanto o trem cruzava a ponte, ou se a locomotiva simplesmente descarrilou precipitando-se no vazio. A tempestade, ao que parece, foi de uma tal violência, que seu som cobria todos os ruídos. Entretanto, alguns engenheiros da época, sobretudo aqueles que haviam construído a ponte, afirmaram que a tempestade fizera o trem sair dos trilhos e lançar-se contra a mureta. O parapeito teria sido arrancado, e a ponte em si teria desmoronado só muito tempo depois. Não foi o estrondo de um trem que despencava o primeiro sinal da catástrofe a ser percebido, mas sim um clarão de fogo que chamou a atenção de três pescadores, sem que eles pudessem imaginar que vinha de uma locomotiva mergulhando no vazio. Quando estes homens avisaram então a estação sul da ponte e esta tentou entrar em contato com a estação norte, ninguém mais respondia. Os fios haviam sido arrancados. Então informaram ao chefe da estação de Tay, que partiu imediatamente numa locomotiva. Em 15 minutos ele chegava ao local. Com muita cautela ia conduzindo sobre a ponte. Depois de um quilômetro, mal alcançou o primeiro pilar central, o maquinista puxou o freio de uma forma tão brusca que a máquina quase saltou para fora dos trilhos. Sob o clarão da lua, ele havia percebido um abismo aberto. A parte central da ponte havia desaparecido.
Se vocês folhearem o programa da emissora, vão encontrar uma foto da ponte destruída, publicada, na época, no Jornal Ilustrado de Leipzig. Mesmo reconhecendo de imediato sua estrutura metálica, esta ponte tem algo de semelhante às pontes de madeira. É verdade que a construção metálica estava ainda em sua fase inicial e ainda não era vista como algo de plena confiança. Mas eu tenho certeza que vocês todos conhecem, ou pelo menos viram sua imagem, aquela construção na qual o ferro pela primeira vez se estende e se afirma cheio de orgulho, a obra na qual o engenheiro fez do seu cálculo um verdadeiro monumento. É a torre que Eiffel concluiu para a exposição universal de Paris, exatamente dez anos depois do desabamento da ponte sobre o rio Tay. A torre Eiffel, quando surgiu, não havia sido concebida para ter utilidade alguma, era apenas um símbolo, uma maravilha universal, como se diz. Mas então veio a invenção do radio-telégrafo. E num piscar de olhos a obra ganhou um sentido. Hoje a torre Eiffel é o transmissor dos parisienses. Eiffel e seus engenheiros ergueram a torre em 17 meses. Cada furo de rebite foi preparado milimetricamente nas oficinas. Cada uma das 12.000 peças metálicas foi milimetricamente projetada com antecedência, assim como os dois milhões e meio de rebites. Nenhum ruído de cinzel perturbava o silêncio no canteiro de obras, como em seu atelier também reinava o silêncio; pois a ideia do construtor era que, mesmo ao ar livre, o trabalho braçal fosse transferido para seguros andaimes e guindastes.
A enchente do rio Mississipi em 1927 Se vocês abrirem um mapa da área central dos Estados Unidos e procurarem o Mississipi, este gigantesco rio de 5000 quilômetros de extensão, vocês verão uma linha sinuosa e cheia de voltas que, de todo modo, vai se dirigindo claramente do norte para o sul, uma linha que chega a nos dar a impressão exata de se tratar de alguma estrada ou ferrovia. Mas a gente ribeira que vive à sua margem, fazendeiros, pescadores, os cidadãos mesmo, sabem o quanto as aparências enganam. O Mississipi está em constante movimento, e não apenas suas massas de água, que avançam desde a nascente até à foz, mas também suas margens, que se transformam continuamente. A dez ou até 50 milhas de distância do atual traçado do rio encontram-se inúmeros lagos, lagunas, pântanos e canais, que através do seu desenho mostram que nada mais são do que recortes do antigo leito do rio, que se deslocava ora para oeste, ora para leste. Enquanto o rio atravessa um terreno de rochas estáveis, aproximadamente até ao ponto mais ao sul no estado de Illinois, seu curso é relativamente reto. Porém, mais à frente, quando alcança os terrenos de aluvião, sobre este solo móvel ele mostra o quanto é traiçoeiro e turbulento. Jamais está satisfeito com o leito que ele escavou. E isso não é tudo: na primavera sobem as águas dos afluentes do baixo Mississipi, como o Arkansas, o Red River e o Quachita, não só enchendo pelos flancos o rio principal com sua massa d'água, mas
também criando uma espécie de barreira que represa o Mississipi e contribui para a enchente nos estados situados à margem do rio. Durante séculos, as terras eram inundadas todo ano numa área de centenas de milhas. As plantações, campos, assentamentos, florestas virgens, jardins, ficavam metros debaixo d'água e a região do rio se parecia com um oceano, cujas ilhas eram os cumes das montanhas. No início do século passado, começaram a ser tomadas providências para proteger alguns trechos da margem do humor instável do rio. Financiados por proprietários de terra das margens atingidas, foram construídos na época diques em diversos locais, que naturalmente protegiam as terras atrás deles, mas que por outro lado, prejudicavam os vizinhos, cujas terras sofriam ainda mais com as inundações. Dessa forma, a maioria das plantações situadas em regiões mais baixas conseguiu aos poucos se proteger. Para aliviar os custos dos agricultores o congresso americano deu a eles, a título de compensação, toda a extensão de terras alagadiças situadas detrás das plantações. Vocês podem imaginar o que significou para tais agricultores, que não possuíam nada além de suas terras, ter que derrubar os diques com suas próprias mãos, expondo suas plantações à força devastadora das águas. No entanto, foi exatamente isso que aconteceu, e assim chego ao mais terrível e desolador episódio da grande enchente de 1927. Como vocês talvez saibam, na foz do Mississipi está situada a importante cidade comercial de New Orleans. Em menos de duas semanas, as águas haviam atingindo um nível tão alto que este porto estratégico no delta do Mississipi parecia condenado à destruição. Para salvar New Orleans, só havia uma solução: dinamitar os diques de proteção na parte alta da cidade, abrindo assim um escoadouro para as águas em direção aos campos. Este foi o sinal de partida para uma cruel guerra civil, que só veio agravar os horrores da catástrofe natural. Os fazendeiros, cujas terras deveriam ser sacrificadas para salvar a capital, constituíam a parte mais pobre da população do estado. Sob o comando do líder de uma seita norte-americana, entre as muitas que existem, eles formaram uma tropa armada para impedir que os diques fossem dinamitados. Entre os milhares de fazendeiros, não havia a menor dúvida, era melhor lutar do que pagar com suas terras pela salvação da cidade. O governo não viu outra solução: nomear um general ditador das regiões alagadas e decretar o estado de sítio. Os fazendeiros, por sua vez, armaramse de metralhadoras para resistir à intervenção militar. O atual presidente dos Estados Unidos, Hoover, na época secretário de Estado, sofreu um atentado ao visitar a região da enchente. Mas o governo não se deixou intimidar e os diques foram dinamitados. New Orleans foi salva, mas 100.000 milhas quadradas ficaram debaixo d'água; o número de desabrigados naquelas regiões chegou a meio milhão. Os diques do Mississipi, que foram dinamitados naquela época, e até então não haviam sido rompidos pela força das águas, são uma das maiores realizações do governo dos Estados Unidos. A obra de 2500 km de comprimento estende-se em ambos os lados do rio até o Golfo do México. Não é raro que os diques cheguem a medir 50 metros de espessura e 10 metros de altura. Milhares e milhares de trabalhadores dedicaram-se ano após ano à construção ou à manutenção destes diques. Um serviço de vigilância eletrônico conecta todas as estações entre si. Toda semana os diques são inspecionados e muitos milhões são gastos anualmente com eles. Assim, eles se mostraram eficazes por mais de dez anos, zelando pela mais
absoluta tranquilidade dos moradores do entorno, até que a enchente da primavera de 1927 se abateu sobre todos. Em 16 de abril o telégrafo noticiou pela primeira vez que o rio havia transbordado. Estas primeiras mensagens tinham um tom bastante inofensivo e em Washington a esperança era de que os prejuízos não tomassem uma proporção maior. Mas este foi o erro. Dois dias mais tarde, sete estados já estavam completamente inundados. Grandes extensões do Missouri, Arkansas, Kentucky, Tennessee, Louisiana e Texas estavam debaixo d'água. Nos campos, a enchente alcançava de sete a oito metros. Dúzias de cidades, centenas de localidades, precisaram ser evacuadas, e infelizes daqueles que se puseram a caminho muito tarde ou, pior, dos que por indecisão preferiram ficar. Assim conhecemos a história de três irmãos, pequenos fazendeiros da região de Natchez. Eles acreditavam ter tempo ainda para salvar o seu gado. Enquanto os outros deixavam tudo para salvar a própria pele, eles procuraram abrigo nos estábulos, e antes que pudessem se dar conta, viram o caminho bloqueado por uma imensa torrente de água. Acabaram ilhados e assim permaneceram. Dos três, apenas um se salvou, e é dele que temos a assustadora descrição dos momentos que passaram sobre o topo de seu telhado, com os olhos fixos na corrente que subia sem parar, à medida que sua esperança ia diminuindo. Escutem um trecho do relato do sobrevivente: A água só nos deixava uma faixa estreita do telhado livre. Uma das chaminés já havia sido arrancada. Não se via mais nada do povoado em volta, totalmente destruído. Só da torre da igreja, ainda intacta e apontando para o céu, chegavam até nós as vozes daqueles que haviam conseguido se salvar. Ao longe ouvia-se as águas murmurando. Já não ouvíamos mais o barulho das casas desmoronando. Era como um naufrágio em meio ao oceano, a milhares de milhas de distância do continente. “Vamos ser arrastados”, John sussurrou, agarrando-se às telhas desesperado. Parecia mesmo que o telhado havia-se transformado numa balsa que era levada pela correnteza. Mas quando olhamos em direção à torre da igreja, que permanecia imóvel, vimos que não passava de uma ilusão. Tínhamos ficado no mesmo ponto, em meio ao turbilhão da correnteza. - Porém a luta começava agora. O rio, a princípio, havia seguido o trajeto da rua, mas agora os destroços bloqueavam seu caminho e o empurravam de volta. Era um verdadeiro turbilhão. A corrente arrastava cada tronco ou viga que surgisse em seu caminho e arremessava feito um projétil contra a casa. E sem dar trégua, arrastava e arremessava tudo novamente. Os muros tremiam sob os golpes incessantes. Não demorou muito e fomos bombardeados por dez ou doze destas vigas. A massa incontrolável d'água rugia enfurecida e a espuma já molhava nossos pés. Um gemido surdo soou de dentro da casa abaixo de nós, então escutamos o barulho das juntas estalando. Por vezes, quando mais uma viga batia com violência contra a casa, pensávamos que era o fim, que os muros iriam ceder e nos abandonar à fúria das águas. Por vezes, quando víamos um feixe de feno ou um barril vazio vir boiando em nossa direção, acenávamos cheios de alegria com um lenço, até nos darmos conta de nosso engano e mergulharmos de volta no silêncio de nosso medo. “Olhem, olhem lá!” – gritou John de repente, “um barco grande!” Com o braço esticado ele apontava para um ponto obscuro na distância. Eu não conseguia ver nada, e Bill tampouco, mas ele insistiu. E realmente era um
barco. Os remos batendo na água se aproximavam cada vez mais, até que finalmente percebemos. Ele vinha deslizando lentamente, parecia remar em círculo em volta de nós, sem, contudo, conseguir se aproximar. Eu só lembro que nesse momento nós parecíamos ter enlouquecido. Esticamos os braços e berramos a plenos pulmões. Gritamos injúrias contra o barco covarde, ao vêlo passar e ir se afastando, silencioso e sombrio. Aquilo tinha sido um barco realmente? - até hoje ainda não sei. Quando o vimos finalmente desaparecer ele havia levado nosso último fio de esperança. – A partir daquele instante aguardávamos o momento em que a casa iria desmoronar e nós seríamos tragados pelas águas. Ela já deveria estar completamente condenada, alguma parede mais resistente parecia ainda querer sustentar tudo, mas se ela fosse abaixo, levaria tudo consigo. Eu tremia principalmente com a ideia de que o teto não pudesse mais sustentar o nosso peso. A casa talvez ainda pudesse resistir a noite inteira, mas o teto começava a ceder diante do impacto constante das vigas. Nós havíamos nos refugiado do lado esquerdo, onde os caibros ainda estavam inteiros. Mas então eles também começaram a balançar ali, e podia-se prever que não iriam suportar por muito tempo se nós três ficássemos juntos sobre o mesmo ponto. – Num gesto quase que mecânico, meu irmão Bill colocou o cachimbo na boca. Ele revirou o bigode, franziu as sobrancelhas e murmurou qualquer coisa consigo mesmo. O perigo que aumentava diante dos seus olhos e contra o qual, com toda sua coragem, ele nada podia fazer, começou a deixá-lo impaciente. Com um desprezo carregado de cólera ele cuspiu algumas vezes na água. Então, enquanto a viga abaixo dele ia cedendo mais e mais, tomou uma decisão e desceu do telhado. “Bill, Bill”, eu gritei, tomado pelo terror, mas sabendo exatamente o que ele pretendia. Ele se virou e disse, tranquilo: “Adeus, Louis... você está vendo, não dá mais pra mim. Eu quero dar espaço pra vocês.” Então ele primeiro jogou fora seu cachimbo e em seguida pulou no meio da correnteza. “Adeus, meus irmãos...”, ele disse ainda, “eu não aguento mais”. E eu não consegui mais vê-lo. Ele era um péssimo nadador, provavelmente nem arriscou uma tentativa para se salvar. Ele não queria sobreviver à nossa ruína e à morte de nossos entes queridos. Este é o relato do terceiro irmão, o único desta família a ser resgatado por um dos barcos que saíram em busca de sobreviventes. Mais de 50.000 navios, lanchas e barcos a vapor, foram mobilizados. Até mesmo iates de luxo foram confiscados pelo governo para participar dos trabalhos de resgate. Esquadrilhas de aviões cruzavam os céus dia e noite levando alimentos e remédios, da mesma forma como no ano anterior, sob o comando de Charles Lindbergh, a população chinesa do vale do rio Yang Tse fora atendida. Nas margens do Mississipi, centenas de milhares de refugiados também foram vistos acampando a céu aberto, sem teto, sem roupas para o frio, entregues à fome, à chuva, e aos terríveis ciclones que nessa época do ano devastavam as regiões inundadas. Eis aqui então, livres de quaisquer amarras, alguns dos elementos que constituem a paisagem do Mississipi. Mas nós retornaremos, outra vez, às suas margens, onde mesmo nos tempos em que o rio corria pacificamente
sobre seu leito, nem sempre tudo era paz. Já faz muito tempo que eu pretendia contar a vocês a história da maior e mais perigosa sociedade secreta dos Estados Unidos. Comparada a ela, as façanhas de todos os contrabandistas de whisky e todas as gangues criminosas de Chicago parecem brincadeira de roda: eu falo da história da Ku-Klux-Klan. Então nos encontraremos novamente nas margens do Mississipi, mas desta vez diante do livre elemento da crueldade e da violência humanas. E os diques, que a lei ergueu contra elas, não foram mais resistentes do que aqueles feitos de pedra e de terra. Sobre essa história então, sobre a Ku-Klux-Klan, o juiz Richter e tantas outras personagens medonhas que povoavam ou até hoje povoam a selva humana do Mississipi – falaremos outro dia.
Histórias reais sobre cães Com certeza vocês acreditam que conhecem os cães. Mas eu penso que, depois de escutarem essa famosa descrição do cão, vai acontecer com vocês o mesmo que aconteceu comigo. Pois eu disse a mim mesmo, se a palavra cão ou cadela não aparecesse no texto, então talvez eu não tivesse adivinhado de que animal se trata. Eis o que acontece quando um grande pesquisador lança seu olhar sobre as coisas, elas então parecem tão novas e esquisitas, como se fossem algo jamais visto antes. Este pesquisador é Lineu. O mesmo que vocês conheceram quando estudaram botânica e segundo o qual, até hoje, as plantas são identificadas e classificadas. É assim que ele define um cão: Alimenta-se de carne, de animais em decomposição, de vegetais farináceos, nenhuma verdura, digere ossos, vomita se come capim, defeca sobre uma pedra: de uma brancura grega, extremamente ácido. Bebe lambendo, urina lateralmente, está em boa companhia até em número de cem, fareja o ânus de seu semelhante; nariz úmido, tem faro excelente, corre transversalmente, anda na ponta dos pés, transpira muito pouco, no calor deixa a língua pendurada; antes de dormir anda em volta do local escolhido; tem audição apurada durante o sono, sonha. A cadela é cruel contra os pretendentes ciumentos; no cio ela tem vários parceiros; ela os morde; profundamente unida durante o coito; período de gestação de nove semanas; gera de quatro a oito filhotes; os machos se parecem com o pai, as fêmeas com a mãe. Fiel acima de tudo; companheiro de casa do homem; abana o rabo quando seu dono se aproxima; não deixa que o dono lhe bata; quando alguém caminha, ele segue à frente, num cruzamento ele olha em volta; aprende com facilidade, encontra objetos perdidos, faz a ronda noturna, avisa quando alguém se aproxima, toma conta de bens, cerca o gado para que ele não vá para os campos, agrupa as renas, protege o gado e as ovelhas de animais selvagens, impõe respeito a leões, encontra a caça, aponta os patos, chega de mansinho aos saltos até à rede, traz o animal abatido pelo caçador sem mordiscar, na França faz girar o espeto de assar, na Sibéria puxa o trenó.
Pede comida junto à mesa; se roubou alguma coisa, enfia o rabo entre as pernas com temor; devora a comida com voracidade. Na casa é senhor entre os seus pares. Inimigo dos mendigos, ataca desconhecidos sem ser provocado. Cura feridas lambendo, de artrite a cancro. Acompanha música com uivos, intercepta no ar uma pedra que lhe atiram; desconfortável e malcheiroso quando há trovoada por perto. Sofre de verme solitário. Transmite raiva. Por fim fica cego e rói a si mesmo. Eis aqui, então, Lineu. Depois de uma descrição dessas, a maioria das histórias que se conta sobre cães ficam parecendo banais ou sem graça. Em todo caso, elas não podem rivalizar em estranheza e força de imagens com este retrato traçado; ainda mais aquelas histórias que as pessoas contam querendo demonstrar a inteligência dos cães. Não é mesmo uma ofensa para os cães querer contar histórias sobre eles tentando provar alguma coisa? Afinal, eles são interessantes apenas enquanto espécie? Será que cada cão não tem sua natureza única e especial? Não existem dois cães que sejam exatamente iguais, fisicamente ou mentalmente. Cada um tem sua natureza própria, suas qualidades e defeitos. E muitas vezes temos aí os mais acentuados contrastes, o que para os seus donos é uma fonte inesgotável de assunto para conversas. Cada um tem um cão mais esperto que o do vizinho! Mas se alguém conta as travessuras de seu cão, então a ocasião é ideal para se discorrer sobre o caráter do animal, e se ele passou por situações curiosas há material para uma biografia. Inclusive na sua morte, aparecem as particularidades do animal. Vamos falar agora de algumas destas peculiaridades. Certamente é comum também com outros animais, que um único tenha tantas singularidades que não se encontram em nenhum outro de sua espécie. Mas só com os cães esta percepção é tão evidente e variada, pois com nenhum outro animal – com exceção talvez do cavalo – o homem tem uma ligação tão estreita. E a origem de tudo é: o grande triunfo que o homem alcançou há milênios sobre o cão, ou melhor dizendo, sobre o lobo e o chacal. Pois na medida em que estes passaram a obedecer e se deixaram domesticar pelo homem, surgiram os primeiros cães. Estes primeiros cães, que apareceram por volta do fim da Idade da Pedra, nada têm a ver com os cães domésticos ou cães de caça de hoje em dia. Eles lembram muito mais os cães semisselvagens dos esquimós, que durante meses tinham que buscar alimento por conta própria, e se assemelham sob todos os aspectos ao lobo do Ártico. Ou então os cães assustadores e traiçoeiros dos povos kamchadal ⁷⁸ , com a mordida sempre pronta e que, segundo relatos de viajantes, não tinham o menor amor nem lealdade pelo seu dono, ao contrário, atacavam-lhes constantemente para matar. Este deveria ser o tipo de cão doméstico que acompanhava o homem no princípio. Pior ainda quando os cães, principalmente os dogues, depois de domesticados voltavam ao estágio de animais selvagens, em alguns casos tornando-se até mais ferozes e sanguinários do que já eram em seu estado primitivo. Eis aqui a história de Bezerillo, o mais célebre entre os cães de caça, encontrado pelos espanhóis de Hernan Cortez durante a conquista do México e adestrado da forma mais abominável possível.
O cão de caça mexicano era utilizado antigamente da forma mais monstruosa possível. Ele era adestrado para atacar os homens, atirá-los ao chão e até mesmo assassiná-los. Já para a tomada do México, os espanhóis usaram estes cães contra os indígenas, e um deles, de nome Bezerillo, tornou-se famoso, ou melhor dizendo, ganhou má fama. Hoje em dia não é mais possível saber se ele era uma espécie bastarda dos dogues cubanos, ou seja, o resultado do cruzamento destes cães com os cães de caça. Segundo as descrições, era um cão de porte médio, avermelhado, negro apenas em volta do focinho até os olhos. Desde o princípio demonstrava uma coragem e inteligência excepcionais. Tinha um status privilegiado entre os outros cães e ganhava duas vezes mais comida do que os restantes. Ao atacar costumava atirar-se em meio à multidão de indígenas, abocanhando-os pelo braço e levando-os como prisioneiros. Se eles obedeciam, o cão não lhes fazia nada de mais; se resistiam, o cão os arremessava ao chão no mesmo instante e os estrangulava. Sabia distinguir exatamente entre os indígenas que haviam se submetido ao poder do colonizador – e estes ele sequer tocava – daqueles considerados inimigos. Por mais cruel e feroz que pudesse ser, às vezes ele demonstrava ser mais humano que seus donos. Numa certa manhã, assim se conta, o capitão Jagn de Senadza decidiu, apenas para sua cruel satisfação, ordenar que Bezerillo dilacerasse uma velha prisioneira indígena. Ele entregou a ela um bilhete para que levasse ao governador da ilha, planejando soltar o cão logo que ela saísse, para que a atacasse e devorasse. Assim que a pobre e indefesa indígena viu o cão furioso partindo em sua direção, sentou-se apavorada sobre a terra e se dirigiu a ele de maneira comovente, pedindo que tivesse piedade e poupasse sua vida. Ao fazer isto, ela mostrou-lhe o bilhete, explicando que havia recebido uma ordem e lhe prometeu que levaria ao seu destinatário, pois precisava cumprir sua missão. Ao ouvir suas palavras, o furioso cão hesitou e, após refletir um instante, aproximou-se carinhosamente da velha senhora. Esta cena encheu os espanhóis de espanto e lhes pareceu ser algo sobrenatural e misterioso. Provavelmente por esta razão, a velha senhora indígena foi então libertada pelo governador. Bezerillo terminou seus dias numa batalha contra os caraíbas que o feriram com uma flecha envenenada. É fácil compreender porque os índios viam esses cães como ajudantes quadrúpedes de diabos bípedes. E agora a estranha história que se conta de uma raça de dogues selvagens que vagam em bandos na ilha de Madagascar:
Na ilha de Madagascar vagam grandes bandos de cães selvagens. Seu inimigo mortal é o jacaré, que os ataca e devora frequentemente quando eles nadam de uma margem à outra de um rio. Ao longo de anos e anos de luta contra este monstro, os cães inventarem um truque que lhes permite escapar da goela do jacaré. Eles se reúnem na margem em grande número antes de iniciar a travessia e começam a latir bem alto. Atraídos pela barulheira, todos os jacarés que se encontram nas proximidades emergem da água com suas cabeças enormes, exatamente no local onde está a matilha. Neste instante os cães correm em disparada até outro ponto da margem e então, fazem a travessia sem correr nenhum perigo, pois os jacarés são incapazes de alcançá-los. É interessante observar também que os cães trazidos para a ilha por imigrantes eram vítimas dos ataques dos jacarés, porém, mais tarde seus filhotes aprendiam o truque com os cães nativos e conseguiam escapar de uma morte certa. Os cães sabem, portanto, agir em seu próprio socorro. Mas como eles têm sido em grande medida solícitos com os homens! Penso nas tarefas mais ancestrais do ser humano, a caça, a guarda noturna, a migração, a guerra, nas quais os cães sempre colaboraram com os homens, nas mais diversas épocas da história e nas terras mais distantes do planeta. Alguns povos antigos, como por exemplo, o de Cólofon ⁷⁹ , criavam grandes tropas de cães para a guerra. Em todas as suas batalhas os cães eram os primeiros a atacar. Mas não penso apenas no papel heroico dos cães ao longo da história, mas também na companhia e assistência que prestam aos homens nas milhares de coisas que compõem a vida cotidiana. Aqui o número de histórias não tem fim. Vou contar apenas três, bem curtas, de um cão de engraxate, do cão-de-água que puxa charretes e do cão dos cortejos fúnebres. Perto da Pont-Neuf em Paris havia um pequeno engraxate, que havia amestrado uma cadela para mergulhar suas largas patas peludas na água e então pisar os pés dos cidadãos que passavam. Logo que as pessoas gritavam reclamando, o engraxate se apresentava e dessa forma aumentava cada vez mais seus ganhos. Enquanto ele se ocupava em atender um cliente, o cão se comportava de maneira exemplar, mas assim que o banquinho ficava livre, a história então recomeçava. Brehm conta ter conhecido um cão-de-água cuja inteligência era a alegria de todos. Ele era treinado para todo tipo de tarefa e compreendia, por assim dizer, qualquer palavra. Qualquer coisa que seu dono lhe mandasse buscar, ele ia sem hesitar e trazia. Ele dizia: “Vá buscar uma charrete!” – então o cão corria até uma estação de charretes, pulava num dos veículos, e começava a latir até que um condutor se pusesse a caminho; e caso ele tomasse o caminho errado, o cão começava a latir novamente, se necessário latindo em volta da charrete, até que ela chegasse à porta da casa de seu dono. Um jornal inglês conta: Em Campbelltown, na província de Argyllshire, todos os cortejos fúnebres que seguem o caminho da igreja até o cemitério são, com raríssimas exceções, acompanhados de um silencioso enlutado, no caso a figura de um grande cão negro. Ele toma sempre seu lugar ao lado das pessoas que caminham imediatamente atrás do caixão, orientando o
cortejo até o túmulo. Ele permanece ali até que sejam pronunciadas as últimas palavras em homenagem ao falecido, então faz a volta solenemente e, com passos lentos, abandona o cemitério. Este notável cão parece saber instintivamente quando e onde irá acontecer um sepultamento, pois aparece sempre no momento exato e sua presença já é vista como algo natural, já tantos anos se vão que ele se dedica a esta missão livremente escolhida. Sua ausência, ao contrário, é que seria de se estranhar. No princípio as pessoas tentavam afugentar o cão, que se postava diante do túmulo ainda aberto, mas o animal insistia e na primeira oportunidade retornava sempre à companhia dos familiares em luto. Por fim todos acabaram desistindo de espantar o silencioso enlutado e, desde então, ele participa oficialmente dos cortejos. O caso mais curioso, porém, foi aquele em que um barco a vapor particular chegou a um porto, trazendo o corpo e os familiares enlutados, e o cão já os esperava no cais para acompanhar, como de costume, o cortejo até o cemitério. Aliás, vocês sabiam que existe um dicionário de cães famosos? Ele foi elaborado por um homem que se ocupava com as coisas mais esquisitas possíveis; ele escreveu, por exemplo, um dicionário de sapateiros famosos, um livro inteiro com o título de “A sopa”, além de várias outras pequenas obras um tanto excêntricas. O livro sobre os cães é bastante útil. Todos os cães, dos quais já se ouviu falar ao longo da história, constam ali juntamente com os poetas e escritores que os criaram. Neste livro eu encontrei a bela e verdadeira história do cão Medor, que participou da Revolução de 1831 em Paris, da tomada do museu do Louvre, e que ali veio também a perder o seu dono. Vou contá-la a vocês agora para encerrar, da forma como o poeta Ludwig Börne a escreveu: Saindo da Coroação de Napoleão , dirigi-me então a um outro espetáculo, que deixava meu coração mais feliz. Fui visitar o nobre Medor. Se neste mundo fosse possível recompensar a virtude com honras, então Medor seria o imperador dos cães. Escutem a sua história. Os cidadãos que perderam a vida no assalto ao Louvre em julho foram sepultados na praça aberta em frente ao palácio, no lado onde se encontram as magníficas colunas. Quando foram colocar os cadáveres nas carroças para transportá-los até à sepultura, um cão saltou sobre um dos carros uivando numa lamentação de cortar o coração, e de cima do carro para dentro da grande vala, na qual se atiravam os mortos. Só com muito esforço conseguiram tirá-lo dali; ele teria sido queimado pela cal que despejavam na vala muito antes que a terra lhe cobrisse. Este era o cão que mais tarde o povo batizou de Medor. Durante toda a batalha ele havia permanecido ao lado de seu dono, tendo sido ele mesmo ferido. Desde a morte de seu dono ele não abandonava mais o túmulo, fazendo ouvir seu lamento dia e noite junto à porta de madeira que fechava o pequeno cemitério, ou vagava uivando em volta do Louvre. Ninguém dava atenção a Medor, pois ninguém o conhecia, nem poderia imaginar de onde vinha sua dor. Seu dono deveria ter sido um dos forasteiros que havia chegado a Paris naqueles dias, lutado em meio a tantos outros pela liberdade de seu país, dando seu sangue e sendo sepultado sem que ninguém soubesse seu nome. Só depois de algumas semanas passaram a se interessar por ele. Ele havia emagrecido até parecer quase um esqueleto e estava coberto de feridas purulentas. Deram a ele de comer, durante muito tempo ele não aceitou. Por fim, a compaixão persistente de
uma cidadã foi capaz de amenizar o sofrimento de Medor. Ela levou-o para sua casa, tratou e curou suas feridas e conseguiu revigorá-lo. Medor ficou mais tranquilo, mas seu coração permaneceu junto ao túmulo de seu dono, o local aonde sua benfeitora o levou após sua recuperação e que ele não abandonava já há sete meses. Várias vezes ele foi vendido por gente gananciosa a ricos apreciadores de raridades; uma vez chegou a ser levado para um lugar a 30 horas de Paris; mas uma vez mais ele retornou. Medor é visto frequentemente escavando a terra, procurando um pequeno pedaço de tecido, demonstrando alegria por ter encontrado, e então com tristeza novamente colocando sob a terra e cobrindo. Provavelmente um pedaço da camisa de seu dono. Se alguém lhe dá um pedaço de pão ou bolo, então ele o enterra, como se quisesse alimentar seu amigo no túmulo, então desenterra de novo, uma cena que todos vêm se repetir várias vezes no dia. Nos primeiros meses o vigia da guarda nacional do Louvre abrigou Medor na sala da guarda todas as noites. Mais tarde ordenaram que se construísse uma casinha junto ao túmulo de seu dono. Medor já encontrou seu Plutarco, seus rapsodos e pintores. Quando cheguei à praça do Louvre, ofereceramme biografias de Medor, o retrato de Medor e canções louvando suas façanhas. Por dez sous ⁸⁰ adquiri a imortalidade de Medor. O pequeno cemitério estava rodeado com uma larga barreira de gente, todas pessoas pobres do povo. Aqui estão sepultados seu orgulho e sua alegria. Aqui eles têm a sua ópera, seus bailes, sua corte e sua igreja. Feliz daquele que se aproximava o suficiente para acariciar Medor. Eu mesmo por fim consegui atravessar a multidão. Medor é um grande cão-de-água branco, eu me agachei para acariciá-lo; mas ele não me deu muita atenção, minha roupa era refinada demais. Mas se um homem em simples colete ou uma mulher com a roupa esfarrapada se aproximava e o acariciava, então ele correspondia alegremente. Medor sabe reconhecer muito bem os verdadeiros amigos de seu dono. Uma jovem menina, em trajes bastante surrados, chegou até junto dele. Ele saltou sobre ela, puxando-a e não deixou mais que ela se afastasse. Ele estava tão contente, tão à vontade com a pobre menina, não era necessário esperar que ela se curvasse, como uma elegante dama, pedindo alguma coisa e segurando delicadamente a borda do vestido. Em qualquer parte da roupa que ele puxava havia um pedaço de trapo que encaixava em sua boca. A criança sentia um orgulho enorme pela familiaridade que Medor demonstrava. Eu fui me afastando devagarinho, envergonhado de minhas lágrimas. Assim encerramos por hoje nossas histórias sobre cães. 78 Povo indígena original da península extremo-oriental da Sibéria. 79 Antiga cidade grega na Ásia Menor, atual Turquia. 80 Soldo ou moeda. Unidade monetária no valor de 5 centavos de franco.
Um dia maluco Trinta quebra-cabeças Talvez vocês conheçam um longo poema que começa assim: É noite escura, tão clara a lua, um carro cruza veloz a rua virando a esquina bem lentamente e dentro, de pé, sentava a gente em silêncio trocando ideias quando um coelho ferido de morte patinava num banco de areia Qualquer um pode perceber que há algo estranho com este poema. Na história que vocês vão escutar agora também há algo diferente que não soa bem, mas eu acredito que não seja tão fácil de perceber. Ou falando com mais clareza: alguns erros todos vocês vão encontrar – e então o melhor é marcar com um risco num pedaço de papel. A única coisa que vou revelar é que ao todo serão 15 riscos ao longo de toda história. Mas se vocês encontrarem apenas cinco ou seis, já está ótimo. Contudo, este é apenas um lado da história que vocês vão escutar agora. Além destes 15 erros, a história contém também 15 perguntas. E se por um lado, os erros aparecem na história muito sorrateiramente, para que ninguém os perceba, cada pergunta por sua vez se fará anunciar com uma gongada. Quem souber responder a uma das perguntas, pode assinalar dois pontos, pois muitas vezes é mais difícil responder as perguntas do que descobrir os erros. Como são 15 perguntas, quem souber responder a todas pode chegar assim a 30 pontos. Se acrescentarmos aí os erros riscados pode-se chegar a 45 pontos. Mas ninguém precisa chegar a tanto. Dez pontos já é um bom resultado. Vocês mesmos podem marcar os seus pontos. No próximo programa a rádio irá divulgar os erros e as respostas dos enigmas, então vocês mesmos poderão conferir quantos acertaram. Pois nesta história o importante é refletir. Nela não há nenhuma pergunta e nenhum erro que não se possa desvendar refletindo. Um último conselho: ninguém precisa tentar responder a todas as perguntas de primeira. Ao contrário, concentrem-se primeiro nos erros. Repetiremos todas as perguntas no final do programa. Acho que não preciso dizer a vocês que as perguntas não contêm erro nenhum. Agora atenção. O Heinz chega e conta: “Mas que dia! Já começou de manhã cedo – durante a noite mal preguei os olhos, de tanto pensar num enigma – bom, de manhã cedo soa a campainha, é a governanta surda de meu amigo Anton, trazendo-me uma carta dele.
Caro Heinz, escreve o Anton, esqueci meu chapéu ontem em sua casa. Por favor, entregue-o à minha governanta. Abraços, Anton. Mas a carta não termina aí, pois ele segue: Acabo de encontrar meu chapéu, desculpe pelo incômodo e obrigado pela atenção. Este é o Anton, o típico professor distraído. Por outro lado, um grande apreciador de enigmas e um especialista em decifrá-los. E ao ver sua carta, me ocorreu, eu bem que precisaria do Anton hoje. Talvez ele tenha a solução para o meu enigma. Na verdade, eu fiz uma aposta de que conseguiria desvendá-lo até amanhã. Eis o enigma ( gongo !): O camponês vê com frequência, o rei raramente, o Bom Deus nunca. O que é, o que é? Sim, esta teríamos que perguntar ao Anton. Agora mesmo ia perguntar à governanta se ele já foi para a escola – Anton é professor, como já dissemos – mas ela já tinha saído. Eu penso comigo, Anton deve estar na escola, coloco meu chapéu e desço. Mas já na escada me lembro de uma coisa: exatamente hoje começa o horário de verão, tudo começa uma hora mais cedo. Pego então o meu relógio e atraso ele em uma hora. Quando chego na rua percebo que esqueci completamente de me barbear. Na esquina, virando à esquerda, há um barbeiro. Em três minutos estou em frente à loja, há uma placa esmaltada dependurada: Barba, hoje 10 centavos, amanhã de graça. (Gongo!) : Barba, hoje 10 centavos, amanhã de graça. A placa esmaltada me pareceu estranha. Gostaria de saber por quê. Mesmo assim entrei, sentei-me numa cadeira e pedi que fizessem minha barba. Durante este tempo fiquei olhando para o espelho que estava pendurado à minha frente. De repente, o barbeiro me cortou. Do lado direito do rosto. E, sem dúvida, do lado direito de minha imagem no espelho via-se um pouco de sangue. A barba custava aqui 10 centavos. Paguei com uma nota de 20 marcos, recebi de troco exatos 19, em moedas de cinco marcos, cinco groschen ⁸¹ e 20 moedas de cinco centavos. Então o barbeiro, que era um jovem bem humorado, abriu a porta para mim e me disse enquanto eu saía: “Dê lembranças minhas ao Richard, quando o senhor encontrá-lo”. Richard era seu irmão gêmeo e tinha uma farmácia na Marktplatz. Eu pensei comigo, o melhor é ir direto à escola, para ver se encontro Anton. Mas ao chegar à Fahrgasse, vejo um aglomerado de gente em volta de um indivíduo, meio mágico, meio artista de rua, que apresentava seu espetáculo. Naquele momento ele desenhava um círculo na calçada com giz e dizia: “agora, em volta do mesmo ponto central, irei traçar outro círculo, cuja circunferência será cinco centímetros maior”. E foi o que ele fez. Então ele se levantou, olhou em volta com um sorriso misterioso e disse ( gongo! ): “Se agora eu desenhar um círculo gigantesco, digamos tão grande quanto o diâmetro da Terra, e se em volta deste círculo eu traçar um segundo, cuja circunferência também é cinco centímetros maior que a daquele círculo gigantesco – qual dos dois anéis será o mais largo: aquele formado pelas pequenas circunferências ou o outro, formado pelas circunferências gigantescas?” Pois então, eu também gostaria de saber.
Por fim consegui ir passando por entre as pessoas, mas logo notei que minha bochecha não havia parado de sangrar, e como eu estava na Marktplatz, entrei na farmácia para comprar um curativo, dizendo então ao farmacêutico: “Lembranças do seu irmão gêmeo, o barbeiro.” O farmacêutico era um homenzinho de idade bem avançada, além de um tipo bastante esquisito. E acima de tudo, extremamente preocupado. Toda vez que saía de sua loja no andar térreo, não só trancava a porta duas vezes, mas dava uma volta ao redor da casa inteira, e quando via que uma janela tinha ficado aberta, ia lá e fechava. O mais interessante sobre ele era sua coleção de objetos raros, que ele mostrava com prazer a todo visitante. Desta vez ele também não se fez rogar e me deixou ver tudo à vontade. Havia o crânio de um negro africano, de quando ele tinha seis anos de idade, e ao lado um crânio do mesmo negro, quando ele tinha 60 anos. Naturalmente o segundo era muito maior. Havia também uma foto de Frederico o Grande brincando no castelo de Sanssouci com seus dois cães de raça galgo. Ao lado estava uma faca muita antiga, sem lâmina e sem o cabo. E também um peixe voador empalhado. Além disso, pendurado na parede, via-se um grande relógio de pêndulo. Depois que paguei o curativo, o farmacêutico me perguntou ( gongo! ): “Se o pêndulo do meu relógio oscilar dez vezes para a direita e dez vezes para a esquerda, quantas vezes ele terá passado pelo meio?” Sim, isto é algo que eu também gostaria de saber. Enfim, este foi o farmacêutico. Agora eu teria que me apressar, se quisesse chegar à escola antes que a aula terminasse. Subi rapidamente num bonde e consegui ainda um assento livre no canto. Ao meu lado direito estava sentado um sujeito gordo e ao lado esquerdo uma pequena dama que falava sobre seu tio a um senhor sentado à sua frente ( gongo! ): “Meu tio”, ela dizia, “acabou de completar 100 anos, mas só fez aniversário 25 vezes em toda sua vida”. “Como pode ser?” Sim, também gostaria de saber como, mas então já havíamos chegado à escola. Como estava à procura de Anton, passei por todas as turmas. Os professores ficaram furiosos com o incômodo que eu causei. Mas que perguntas mais engraçadas eles também formulavam! Cheguei, por exemplo, numa aula de matemática, onde o professor tinha acabado de se aborrecer com um jovem aluno. Ele estava distraído na aula e agora o professor queria lhe aplicar um castigo. ( Gongo !): “Diga-me qual é a soma”, ele perguntou ao aluno, “de todos os números de 1 a 1000”. Qual não foi a surpresa do professor, quando o aluno depois de um minuto se levantou e deu a resposta certa: “501.000!” Como ele chegou a esse resultado com tanta rapidez? Sim, eu também gostaria de saber. Comecei tentando descobrir como achar a soma dos números de 1 a 10 o mais rápido possível – então consegui entender a astúcia do jovem aluno. Numa outra turma, a aula era de geografia. ( Gongo !) O professor estava desenhando um quadrado no quadro-negro. No meio deste quadrado ele desenhou um quadrado menor. Então traçou uma linha ligando cada canto do quadrado central com o canto mais próximo do quadrado maior, criando cinco áreas separadas. Uma área no centro, que era o pequeno quadrado, e mais quatro áreas em volta dele. Cada aluno deveria desenhar esta figura. Ela representava cinco países. E então o professor perguntou quantas cores diferentes seriam necessárias, para que cada país traga em sua bandeira
uma cor diferente de três ou quatro países. Eu pensei, para os cinco países são necessárias cinco cores diferentes. Mas não. Menos que cinco são o suficiente. E por quê? Sim, isso eu também gostaria de saber. Cheguei então a uma outra turma e a aula era de ortografia. Ali também o professor perguntava coisas bem engraçadas, por exemplo ( gongo !): “Como se escreve grama seca com cinco letras?” Ou então ( gongo !): “Como escrever 100 com apenas quatro noves?” Ou então ( gongo !): “Qual é a letra do meio no ABC?” Para encerrar, ele contou às crianças um conto de fadas ( gongo !): “Um mágico malvado havia transformado três princesas em três flores perfeitamente iguais, no meio de um campo. Só uma delas podia livrar-se do encantamento uma vez por mês e ir para sua casa. E numa ocasião, quando o dia clareava, ela falou ao seu marido, antes de ter que retornar ao campo para junto de suas companheiras e se transformar novamente numa flor: ‘Se você vier hoje de manhã e me colher, estarei livre e poderei ficar ao seu lado para sempre.’ E assim aconteceu.” A questão é saber como o marido reconheceu sua esposa, já que as flores eram exatamente iguais. Sim, isto eu também gostaria de saber. Mas já era hora de eu ter encontrado Anton, e como ele não estava na escola, achei melhor ir procurá-lo em casa. Anton não morava muito longe, no quinto andar de uma casa na Kramgasse. Eu subi as escadas e toquei a campainha. Imediatamente chegou sua governanta, que de manhã já havia estado em minha casa, e abriu a porta. Mas ela estava sozinha no apartamento: “o senhor Anton não está”, disse ela. Isso me deixou chateado. Mas eu pensei, desta vez serei esperto, vou até o quarto e ficarei esperando por ele. De sua janela tem-se uma bela vista para a rua. O único obstáculo era uma casa de dois andares em frente, que impedia a visão. Mas era possível ver sem dificuldades o rosto dos passantes, e erguendo a cabeça viam-se os pássaros revoando em volta das árvores. Não longe de nós via-se, do outro lado, o grande relógio da torre da estação. Ele marcava 14 horas em ponto. Peguei meu relógio de bolso para verificar. Exatamente, quatro horas. Assim esperei por três horas até que, vencido pelo cansaço, decidi passar à biblioteca de Anton. ( Gongo !) Infelizmente uma traça havia tomado conta dos livros. Cada dia ela havia devorado um volume. Agora ela estava na primeira página do primeiro volume de contos dos Irmãos Grimm. Quanto tempo ela levaria, pensei comigo, até que chegasse à última página do segundo volume dos Grimm? Sem levar em conta a capa. Sim, isso eu gostaria de saber. Mas nessa hora ouvi vozes do lado de fora no corredor. Ali estava a governanta, junto com um mensageiro do alfaiate, que vinha buscar o pagamento de um terno ( gongo !): Como o mensageiro sabia que a governanta era surda, ele simplesmente escreveu a palavra DINHEIRO ( Geld ) em letras grandes num bilhete. Mas a governanta não tinha nenhum dinheiro consigo, sendo assim acrescentou duas letras ao bilhete, pedindo um pouco de paciência ao mensageiro. Então, quais eram estas duas letras? Mas agora estou cansado de esperar. Desci e pensei em ir a algum lugar para comer alguma coisa, depois um dia tão cansativo. Quando cheguei à
rua, a lua já brilhava no céu. Há alguns dias atrás tinha feito lua nova, agora ela estava crescente de novo, e sua forma de fina foice pairava sobre os telhados como o início de um “Z” maiúsculo do alfabeto alemão. Eu estava exatamente em frente a uma confeitaria. Entrei e pedi um pedaço de torta de maçã com creme chantilly ( gongo !): Mas quando me serviram a torta de maçã com creme chantilly, ela não estava saborosa. Eu disse então ao garçom, o senhor traga-me, por favor, uma Nhá Benta ⁸² , que estava deliciosa. Então me levantei, e quando já estava na porta da confeitaria, o garçom veio correndo e falou: “O senhor não pagou pelo doce!” – "Eu a troquei pela torta de maçã”, eu disse a ele. – “Mas o senhor também não pagou pela torta”, respondeu o garçom. – “Sim, mas eu também não comi a torta!” – disse-lhe e fui embora. Nesta história, eu tenho razão? Sim, também gostaria de saber. Quando chego em casa, qual não foi a minha surpresa, ao deparar-me com Anton, que esperava por mim sentado já há cinco horas. Ele queria apenas se desculpar pela carta tola que havia me enviado mais cedo através da governanta. Não tinha sido problema algum, eu disse a ele, e lhe contei todo o meu dia, exatamente como contei a vocês agora. Anton balançava a cabeça sem parar. Por fim ele ficou tão espantado que não sabia mais o que dizer. Ainda balançando a cabeça, ele desceu a escadaria. Assim que ele dobrou a esquina percebi que desta vez ele realmente havia esquecido seu chapéu. Bom, e eu – eu certamente também havia me esquecido de alguma coisa: perguntar a ele qual a resposta da minha charada ( gongo !): O que o camponês vê com frequência, o rei raramente, o Bom Deus nunca? Mas talvez vocês já saibam a resposta e, sendo assim, até a próxima. Repetição das 15 perguntas: A primeira pergunta é uma antiga adivinhação popular alemã: O camponês vê com frequência, o rei raramente, o Bom Deus nunca. O que é o que é? Quando um barbeiro pendura em sua janela uma placa esmaltada que diz: Barba hoje 10 centavos, amanhã de graça – o que há de estranho? Se eu tenho um pequeno círculo e traço a partir do seu ponto central um outro círculo, cuja circunferência será cinco centímetros maior, então entre ambos surge um anel. Se agora eu desenhar um círculo gigantesco, digamos tão grande quanto o diâmetro da Terra, e se em volta deste círculo eu traçar um segundo, cuja circunferência também é cinco centímetros maior que a daquele círculo gigantesco, então entre ambos surgirá um outro anel – qual dos dois anéis será o mais largo: o primeiro ou o segundo? Se o pêndulo de um relógio oscilar dez vezes para a direita e dez vezes para a esquerda, quantas vezes ele terá passado pelo meio? Como pode um homem ter 100 anos de idade e só ter feito aniversário 25 vezes? Qual a forma mais rápida de se descobrir a soma de todos os números de 1 a 1000? Tentem primeiro com os números de 1 a 10.
Em volta de um país estão situados quatro outros países, sendo que cada um deles faz fronteira com dois outros países e mais este país localizado no centro. Quantas cores são no mínimo necessárias para que cada país possa se distinguir dos outros por sua cor? Como se escreve grama seca com cinco letras? Como é que se escreve 100 com apenas quatro noves? Qual é a letra do meio no ABC? Como se pode reconhecer pela manhã, entre três flores iguais, aquela que não passou a madrugada no campo? Quanto tempo leva uma traça para chegar da primeira página de um livro até à última página do próximo na fileira, sabendo que ela precisa de um dia para atravessar cada volume? Como pedir paciência a um credor acrescentando somente duas letras à palavra dinheiro ( Geld ) escrita num bilhete? Por que não se pode fazer igual àquele senhor que pede um pedaço de bolo, em seguida pede para trocá-lo por outro pedaço e então se recusa a pagar, afirmando que teria devolvido o primeiro? E mais uma vez a antiga adivinha alemã que vale quatro pontos, pois apareceu duas vezes: O que é, o que é: o camponês vê com frequência, o rei raramente, o Bom Deus nunca? Respostas das 15 perguntas O seu semelhante. Se o barbeiro estivesse falando sério, não deixaria uma placa esmaltada pendurada o tempo todo. O “amanhã”, quando se pode fazer a barba de graça, não chegará nunca. Os dois anéis têm a mesma largura. O pêndulo do relógio passou pelo meio 20 vezes. O homem nasceu dia 29 de fevereiro. Calcula-se assim: 999 + 1 = 1000; 998 + 2 = 1000; 997 + 3 = 1000; há 500 pares de números iguais a estes, então restará ainda 1000 num extremo e 0 no outro; aos 500.000 soma-se então mais 1000 e o resultado é 501.000. Da mesma forma pode-se calcular a soma dos números de 1 a 10, que dá 60. São necessárias três cores, sendo uma para o país situado no meio, uma para os países situados acima e abaixo do país central e uma terceira cor para os países que ficam à direita e à esquerda do país central. Palha.
999/9. B A flor é aquela que não estiver coberta de orvalho. Para chegar da primeira página do primeiro livro à última do segundo livro a traça precisa apenas de um segundo, pois numa estante de biblioteca a primeira página de um livro está encostada na última do próximo. Acrescentam-se as letras DU à palavra GELD (dinheiro) e tem-se GEDULD (paciência). O primeiro pedaço de bolo não pertence ao senhor, pois ele não pagou por ele. O senhor nem pode consumi-lo, nem usá-lo como moeda de troca. O seu semelhante. Lista dos 15 erros Heinz diz que é horário de verão e atrasa seu relógio em uma hora, quando deveria adiantá-lo em uma hora. Se a barbearia está situada virando à esquina e Heinz está a três minutos do local, é impossível que ele possa vê-la. Se Heinz levou um corte do lado direito do rosto, então a ferida estaria no lado esquerdo de sua imagem no espelho. Não se pode pagar 19 marcos com moedas de cinco marcos. Cinco groschen e 20 moedas de cinco centavos inteiram 1,50 marco. Heinz deveria receber além dos 19 marcos somente 90 centavos, pois havia pago com uma nota de 20 marcos a barba que custava 10 centavos. Se o barbeiro é um homem jovem, seu irmão gêmeo não poderia ser um homenzinho de idade avançada. Não se pode fechar uma janela pelo lado de fora. Não pode haver dois crânios de um mesmo homem, mesmo que ele esteja morto. A fotografia ainda não existia na época de Frederico o Grande. Uma faca sem lâmina e sem cabo não existe. Quando se ocupa um assento no canto, não se pode ter um passageiro vizinho à direita e à esquerda. Se a governanta de Anton está sozinha no apartamento e é surda, ela não pode atender a campainha. Se alguém mora no quinto andar, um prédio de dois andares não atrapalha sua vista e também não se pode ver o rosto dos passantes.
Se o relógio da estação indica 14 horas, então não são 4, e sim 2 horas. A forma em foice de uma lua crescente não se parece com o início de um “Z” maiúsculo, e sim de um “A” maiúsculo do alfabeto alemão. 81 Moeda de 10 centavos. 82 No original, Mohrenkopf , equivalente ao popular doce de chocolate com recheio de creme. Título original: Aufklärung für Kinder Todos os direitos desta edição reservados a
Rua Nova Jerusalém, 320 CEP. 21042-235 Rio de Janeiro RJ FONE [55 21] 3546 2838 [email protected] www.naueditora.com.br Tradução: Aldo Medeiros Revisão da tradução: Júlia Vilhena Rodrigues Revisão de português e copidesque: Angela Moss Projeto Editorial: Rita Ribes Pereira Coordenação editorial: Simone Rodrigues Capa e projeto gráfico: Estúdio Arteônica Ilustração Capa: Radio Tower Poster, de Big Ryan (iStock) Editoração eletrônica: Dionísio Reis Produção do arquivo epub: Melanie Guerra Conselho editorial: Alessandro Bandeira Duarte, Claudia Saldanha, Cristina Monteiro de Castro Pereira, Francisco Portugal, Maria Cristina Louro Berbara, Pedro Hussak e Vladimir Menezes Vieira. CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE
SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ B416h Benjamin, Walter, 1892-1940 A hora das crianças [recurso eletrônico]: narrativas radiofônicas de Walter Benjamin / Walter Benjamin ; tradução Aldo Medeiros. - 1. ed. - Rio de Janeiro : Nau Ed., 2015. 292 p. ; 21 cm. Tradução de: Rundfunkgeschichten für kinder ISBN 978-85-8128-065-3 (Ebook) 1. Conto infantojuvenil alemão. I. Título. 14-18686 CDD: 028.5 CDU: 087.5 A tradução desta obra contou com o apoio da FAPERJ, a quem os editores agradecem. É proibida a reprodução total ou parcial desta obra sem autorização expressa da Editora. Rio de Janeiro - 1 a edição