Mensagens 12 ano 9789724754468, 9781111143923


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Índice geral
Unidade 0 - Diagnóstico e Projeto de Leitura
Unidade 1 - Fernando Pessoa
1.1 Fernando Pessoa – Poesia do ortónimo
1.2 Bernardo Soares, Livro do Desassossego
1.3 Fernando Pessoa – Poesia dos heterónimos
1.4 Fernando Pessoa – Mensagem
Unidade 2 - Contos
Unidade 3 - Poetas contemporâneos
Unidade 4 - José Saramago
Glossaário
Dicionário de autores
Contracapa
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Mensagens 12 ano
 9789724754468, 9781111143923

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MENSAGENS MANUAL DO PROFESSOR

PORTUGUÊS 12.º ANO

Célia Cameira Ana Andrade Salomé Raposo 5HYLV¥R&LHQW¯ȃFD

Fernando Pinto do Amaral Rita Veloso

T

SIMULADOR DE EXAMES

MANUAL CERTIFICADO FACULDADE DE LETRAS UNIVERSIDADE DE LISBOA

2

Índice geral Unidade 0

Diagnóstico e Projeto de Leitura

pp. 10

Avaliação diagnóstica

Unidade 1

Fernando Pessoa

pp. EDUCAÇÃO LITERÁRIA 20

Mensagens cruzadas

22

Contextualização histórico-literária

pp.

Reflexão existencial: Alberto Caeiro, o primado das sensações 88

1.1 Fernando Pessoa – Poesia do ortónimo 30

Ricardo Reis

Contextualização literária O fingimento artístico

31

Autopsicografia

33

Isto A dor de pensar

36

Ela canta, pobre ceifeira

38

Gato que brincas na rua

O fingimento artístico: Ricardo Reis, o poeta «clássico» 94

Não sei se é sonho, se realidade Toda beleza é um sonho, inda que exista

97

Antes de nós nos mesmos arvoredos

98

Cada um cumpre o destino que lhe cumpre Álvaro de Campos O fingimento artístico: Álvaro de Campos; o poeta da modernidade

104

Pobre velha música! 108

1.2 Bernardo Soares, Livro do Desassossego 50

52

61

Perceção e transfiguração poética do real

113

Eu nunca fiz senão sonhar

1.4 Fernando Pessoa – Mensagem

O imaginário urbano

124

Tudo é absurdo

Quando outra virtude não haja em mim

84

Aniversário

Contextualização literária Primeira Parte − Brasão

128

O dos Castelos

130

Ulisses

134

D. Sebastião, Rei de Portugal

1.3 Fernando Pessoa – Poesia dos heterónimos 80

À dolorosa luz das grandes lâmpadas elétricas da fábrica Reflexão existencial: sujeito, consciência e tempo; nostalgia da infância

Contextualização literária

O quotidiano; Deambulação e sonho: o observador acidental 64

Afinal, a melhor maneira de viajar é sentir O imaginário épico: a exaltação do Moderno e o arrebatamento do canto

A nostalgia da infância 43

Vem sentar-te comigo, Lídia, à beira do rio Reflexão existencial: a consciência e a encenação da mortalidade

Sonho e realidade 40

O Guardador de Rebanhos II

Segunda Parte − Mar Português

Contextualização literária

136

O Infante

Alberto Caeiro

140

Mar Português

O fingimento artístico: Alberto Caeiro, o poeta «bucólico»

141

A Última Nau

O Guardador de Rebanhos I

Terceira Parte – O Encoberto 143

O Quinto Império

146

Nevoeiro

3 pp. GRAMÁTICA 32

Classificação de orações. Funções sintáticas. Coesão textual

33

Classificação de orações. Deixis

34

Deixis. Classificação de orações

37

Classificação de orações. Classes e subclasses de palavras. Funções sintáticas

38

Classificação de orações. Deixis. Coesão textual

41

Funções sintáticas

55

Deixis. Coesão textual

62

Coesão textual. Valor aspetual

66

Valor temporal e aspetual. Coerência textual

86

Classificação de orações. Funções sintáticas

90

pp. ESCRITA 34

Apreciação crítica: O Poeta, Marc Chagall (pintura)

38

Texto de opinião: Estória do Gato e da Lua, Pedro Serrazina (curta-metragem)

55 66 90

Apreciação crítica: «Cinegirasol», Os Azeitonas (videoclipe)

Texto de opinião: Filme do Desassossego, João Botelho (filme) Apreciação crítica: Sem Título, Mahboobeh Pakdel (cartoon)

99

Texto de opinião: «Para ser grande, sê inteiro: nada», Ricardo Reis (poema)

111

Exposição sobre um tema: Obras Públicas (Street Art − Graffiti) (reportagem)

131

Exposição sobre um tema: «Viriato», Mensagem, de Fernando Pessoa (poema)

Reprodução do discurso no discurso. Coesão textual.Funções sintáticas

144

Apreciação crítica: Paz, Jota A. (cartoon)

97

Valor temporal. Valor aspetual

pp. LEITURA

99

Subordinação. Coesão textual e deixis

114

Valor aspetual

129

Deixis. Classificação de orações. Valor aspetual

131

Deixis. Classificação de orações. Valor aspetual

137

Classificação de orações. Deixis. Funções sintáticas

147

Coesão textual. Valor aspetual. Classificação de orações.

46

Apreciação crítica: «Um mapa para os caminhos de Fernando Pessoa», Carlos Maria Bobone, Observador

71

Diário: Diário VIII, Miguel Torga

102

Artigo de opinião: «Nascer é um bom começo. O resto é discutível», Miguel Esteves Cardoso, Público

117

Memórias: Um garoto misterioso, Retalhos da Vida de um Médico, Fernando Namora

pp. 48

Síntese da subunidade 1.1: Poesia do ortónimo

73

Síntese da subunidade 1.2: Bernardo Soares, Livro do Desassossego

74

Mensagens em diálogo e em debate

75

Ficha formativa

93

Síntese da subunidade 1.3: Alberto Caeiro

pp. ORALIDADE 41 62

Texto de opinião: O Sono, Salvador Dalí (pintura) Texto de opinião: «As Cidades», Rodrigo Leão (videoclipe)

Texto de opinião: Fotógrafos da Natureza (reportagem

103

Síntese da subunidade 1.3: Ricardo Reis

SIC)

122

Síntese da subunidade 1.3: Álvaro de Campos

Diálogo argumentativo: Eixo do Mal, sobre a atribuição do Prémio Nobel da Literatura a Bob Dylan

148

Síntese da subunidade 1.4: Mensagem

150

Mensagens em diálogo e em debate

137

Apresentação oral: A dimensão simbólica dos heróis da Mensagem

151

Glossário

152

Ficha formativa

147

Texto de opinião: Mensagem, Luís Vidal Lopes (filme)

86

120

4 pp. FICHAS INFORMATIVAS

Unidade 1 – Fernando Pessoa

1.1 Fernando Pessoa – Poesia do ortónimo

Unidade 2

Contos

pp. EDUCAÇÃO LITERÁRIA

35

FI 1 O fingimento artístico

158

Mensagens cruzadas

39

FI 2 A dor de pensar

160

Contextualização histórico-literária

42

FI 3 Sonho e realidade

163

Contextualização literária

44

FI 4 A nostalgia da infância

165

«Sempre é uma companhia», Manuel da Fonseca

45

FI 5 Linguagem, estilo e estrutura

166

Dias solitários

172

O grande acontecimento

183

«George», Maria Judite de Carvalho

184

Encontro com o passado

189

Encontro com o futuro

1.2 Bernardo Soares, Livro do Desassossego 56

FI 1 Perceção e transfiguração poética do real

57

FI 2 Semântica I: valor temporal e valor aspetual

63

FI 3 O imaginário urbano

67

FI 4 O quotidiano

68

FI 5 Deambulação e sonho: o observador acidental

69

FI 6 Linguagem, estilo e estrutura

72

FI 7 Diário

1.3 Fernando Pessoa – Poesia dos heterónimos Alberto Caeiro 87 91 92

FI 1 O fingimento artístico: Alberto Caeiro, o poeta «bucólico» FI 2 Reflexão existencial: Alberto Caeiro, o primado das sensações FI 3 Linguagem, estilo e estrutura

100 101

169

Valor temporal

175

Sequências textuais

187

Valor modal

pp. ORALIDADE 169

Texto de opinião: E se fosse Consigo, «Violência no Namoro» (reportagem)

pp. ESCRITA 175

Texto de opinião: A solidão dos tempos modernos

FI 1 O fingimento artístico: Ricardo Reis, o poeta «clássico» FI 2 Reflexão existencial: a consciência e a encenação da mortalidade

191

Apreciação crítica: As Três Idades da Mulher, Gustav Klimt (pintura)

FI 3 Linguagem, estilo e estrutura

178

Ricardo Reis 96

pp. GRAMÁTICA

pp. LEITURA

Exposição sobre um tema: A telefonia

Álvaro de Campos 107

FI 1 O fingimento artístico: Álvaro de Campos: o poeta da modernidade

pp. 182

Síntese: «Sempre é uma companhia», Manuel da Fonseca

112

FI 2 O imaginário épico: A exaltação do Moderno; O arrebatamento do canto

197

Síntese: «George», Maria Judite de Carvalho

115

FI 3 Reflexão existencial: sujeito, consciência e tempo; nostalgia da infância

198

Mensagens em diálogo e em debate

116

FI 4 Linguagem, estilo e estrutura

199

Glossário

119

FI 5 Memórias

200

Ficha formativa

121

FI 6 Diálogo argumentativo

1.4 Fernando Pessoa – Mensagem 132

FI 1 Linguagem e estilo

135

FI 2 O imaginário épico: exaltação patriótica

138

FI 3 O imaginário épico: dimensão simbólica do herói

142

FI 4 O imaginário épico: natureza épico-lírica da obra

145

FI 5 O Sebastianismo

5 pp. FICHAS INFORMATIVAS

Unidade 2 – Contos

pp.

Ana Luísa Amaral

«Sempre é uma companhia», Manuel da Fonseca 170

FI 1 Caracterização das personagens. Relação entre elas Solidão e convivialidade

176

FI 2 Importância das peripécias inicial e final Linguagem e estilo. Caracterização do espaço: físico, psicológico e sociopolítico

179

FI 3 Linguística textual – sequências textuais

Figurações do poeta 228

Arte poética 229

FI 1 A complexidade da natureza humana. Metamorfoses da figura feminina

192

FI 2 As três idades da vida. O diálogo entre realidade, memória e imaginação

194

FI 3 Linguagem, estilo e estrutura

195

FI 4 Semântica II – valor modal

Soneto científico a fingir Tradição literária

230

As pequenas gavetas do amor Representações do contemporâneo

«George», Maria Judite de Carvalho 188

Visitações, ou poema que se diz manso

232

Metamorfoses

pp. GRAMÁTICA 210

Deixis. Coesão textual. Funções sintáticas

214

Valor aspetual. Deixis Valor temporal. Campo semântico e campo lexical. Classes e subclasses de palavras

pp. GRAMÁTICA

Unidade 3

Poetas contemporâneos

223

Funções sintáticas. Classificação de orações. Valor aspetual

228

Deixis

229

Classificação de orações

231

Funções sintáticas

pp. EDUCAÇÃO LITERÁRIA 206

Mensagens cruzadas Miguel Torga Figurações do poeta

209

Livro de Horas Arte poética

211

212

219

220

221

Debate: The Gift, Julio Pot (curta-metragem)

pp. ESCRITA

Tradição literária

214

Sísifo 220

S. Leonardo de Galafura

Exposição sobre um tema: «Viagem», Miguel Torga (filme promocional)

Texto de opinião: O poder das palavras e a importância da sua escolha para o estabelecimento da comunicação

Eugénio de Andrade

pp. LEITURA

Figurações do poeta

236

Agora as palavras

pp.

Arte poética

237

Síntese

A sílaba, Sílaba a sílaba

238

Mensagens em diálogo e em debate

Tradição literária

239

Glossário

Green God

240

Ficha formativa

Representações do contemporâneo 222

231

Arte poética

Representações do contemporâneo 213

pp. ORALIDADE

Adeus

Diário: Diários de José Saramago

6 pp. FICHAS INFORMATIVAS Unidade 3 – Poetas contemporâneos

pp.

Representações do amor

Miguel Torga

215

217

FI 1 Figurações do poeta Arte poética Tradição literária Representações do contemporâneo FI 2 Linguagem, estilo e estrutura Eugénio de Andrade

224

226

FI 1 Figurações do poeta Arte poética Tradição literária Representações do contemporâneo FI 2 Linguagem, estilo e estrutura Ana Luísa Amaral

233

235

277

Marcenda

278

Lídia

281

Ricardo Reis e Lídia

282

Ricardo Reis e Marcenda

283

Ricardo Reis e as duas Evas

284

Da indiferença à comoção Deambulação geográfica e viagem literária

286

Eu sou múltiplo

287

A cidade dezasseis anos depois

290

Primeira visita de Fernando Pessoa

291

Nova visita de Fernando Pessoa

FI 1 Figurações do poeta Arte poética Tradição literária Representações do contemporâneo

293

Ricardo Reis e Cesário

FI 2 Linguagem, estilo e estrutura

294

Ricardo Reis, Pessoa e Camões

295

A derradeira viagem

Intertextualidade: José Saramago, leitor de Luís de Camões, Cesário Verde e Fernando Pessoa

Memorial do Convento

Unidade 4

José Saramago

302

pp. EDUCAÇÃO LITERÁRIA 246

Mensagens cruzadas

248

Contextualização histórico-literária

O título e as linhas de ação 305

Contextualização literária Representações do século XX – O espaço da cidade

253

Regresso à pátria

258

Lisboa real

259

Lisboa: o vergonhoso espetáculo do mundo Lisboa anunciada

260 261

O título e as linhas de ação Linha de ação: construção do convento, a epopeia do trabalho

O Ano da Morte de Ricardo Reis 251

Contextualização literária

306

A promessa do rei

311

D. João V: o «Magnânimo»

313

D. Maria Ana Josefa Visão crítica I

315

Recrutamento à força

317

Epopeia da pedra – os verdadeiros heróis de A a Z

Lisboa profunda: rixas e funerais

318

Epopeia trágica

Festividades na cidade

319

Vida miserável Linha de ação: Baltasar e Blimunda, a sublimação do amor

Representações do século XX – O tempo histórico e os acontecimentos políticos 264

A morte de Fernando Pessoa

322

Baltasar Sete-Sóis

266

O discurso do poder: a alienação e a indiferença

323

Do auto da fé ao amor

269

325

A união de Blimunda e Baltasar

327

Blimunda Sete-Luas

271

A repressão e a ordem: a PVDE Movimentos contra o regime: a Revolta dos Marinheiros Ventos de Espanha: o massacre de Badajoz

328

Um homem e uma mulher

272

A Europa unida: comício contra o comunismo

270

Linha de ação: a construção da passarola, o elogio do Sonho 331

O sonho de voar

7 pp.

pp. LEITURA

Dimensão simbólica 348

Artigo de opinião: «Na morte de José Saramago», Vasco Graça Moura (Diário de Notícias)

334

Sete-Sóis e Sete-Luas Os três Bês – a «trindade terrestre» As vontades

335

O poder da música

301

Síntese: O Ano da Morte de Ricardo Reis

339

Voo e queda da passarola

351

Síntese: Memorial do Convento

352

Mensagens em diálogo e em debate

353

Glossário

354

Ficha formativa

Dimensão simbólica – A perpetuação do amor 343

A procura de Blimunda

pp. GRAMÁTICA 265

Coesão textual. Valor temporal

267

Valor aspetual

283

Valor modal

294

pp.

pp. FICHAS INFORMATIVAS

Unidade 4 – José Saramago

O Ano da Morte de Ricardo Reis 256

FI 1 Linguagem e estilo

Intertextualidade

263

296

Classificação de orações. Funções sintáticas. Coesão textual. Valor aspetual

FI 2 Representações do século XX – O espaço da cidade

268

FI 3 Texto e textualidade: intertextualidade

308

Valor modal

274

314

Funções sintáticas. Deixis. Classificação de orações

FI 4 Representações do século XX – O tempo histórico e os acontecimentos políticos

280

FI 5 Representações do amor

315

Intertextualidade

324

Coesão textual

297

FI 6 Intertextualidade: José Saramago, leitor de Luís de Camões, Cesário Verde e Fernando Pessoa

326

Valor temporal

298

FI 7 Deambulação geográfica e viagem literária

333

Sequências textuais. Valor aspetual

336

Sequências textuais

345

Valor aspetual

Memorial do Convento 309

FI 1 Linguagem e estilo

316

FI 2 Texto e textualidade: intertextualidade

320

FI 3 Linha de ação: construção do convento, a epopeia do trabalho

pp. ORALIDADE 262

Apresentação oral: «Inquietação», A Naifa (canção)

289

Texto de opinião: A importância do fado

321

FI 4 Visão crítica I

319

Texto de opinião: «Quem construiu Tebas, a de sete portas?», Bertolt Brecht (poema)

330

FI 5 Linha de ação: Baltasar e Blimunda, a sublimação do amor

Apresentação oral: Perfeito, Mauricio Bartok

337

FI 6 Tempo histórico e tempo da narrativa

341

FI 7 Linha de ação: a construção da passarola, o elogio do Sonho

329

(curta-metragem)

pp. ESCRITA 273

Apreciação crítica: Salazar (documentário)

342

FI 8 Visão crítica II

385

Apreciação crítica: Viver depois de ti (trailer)

346

FI 9 Dimensão simbólica

296

Exposição sobre um tema: The Maze Runner: Correr ou Morrer, Wes Ball (trailer)

349

FI 10 Caracterização das personagens. Relação entre elas

312

Apreciação crítica: Toda a Luz Tem a sua Sombra, Luc Vernimmen (cartoon)

340 345

Apreciação crítica: O Primeiro Voo, DreamWorks (curta-metragem)

Exposição sobre um tema: Intenção da fusão entre a História e a ficção em Memorial do Convento

O AVALIAÇÃO DIAGNÓSTICA PROJETO DE LEITURA Que livros ler? O que fazer? • Escrita • Oralidade Como divulgar?

DIAGNÓSTICO E PROJETO DE LEITURA

Henri Lebasque, Rapariga à Janela, s.d.

10

Unidade 0 // DIAGNÓSTICO E PROJETO DE LEITURA

Grupo I

AVALIAÇÃO DIAGNÓSTICA

A Lê atentamente o seguinte poema. Já foste rico e forte e soberano, Já deste leis a mundos e nações, Heroico Portugal, que o gram Camões Cantou, como o não pôde um ser humano!

COTAÇÕES Grupo I A 1. 2. 3.

10 pontos 10 pontos 10 pontos

B 4. 5.

10 pontos 10 pontos 50 pontos

PROFESSOR

MC

Educação Literária 14.3; 14.4; 14.7; 14.8; 15.1; 14.2 (12.o Ano). Leitura 7.1; 7.2; 7.4; 7.7.

CD 1 Faixa n.0 1

5

10

Zombando do furor do mar insano, Os teus nautas, em fracos galeões1, Descobriram longínquas regiões, Perdidas na amplidão do vasto oceano. Hoje vejo-te triste e abatido, E quem sabe se choras, ou então, Relembras com saudade o tempo ido? Mas a queda fatal não temas, não. Porque o teu povo, outrora tão temido, Ainda tem ardor no coração.

Júlio Pomar, Camões, 1990.

Saúl Dias, in Luís Adriano Carlos (ed.), Saúl Dias – Obra Poética, «Obras Clássicas da Literatura Portuguesa», 3.ª ed., Porto, Campo das Letras, 2001.

(MC – 11.o Ano).

A 1. A antítese presente nos versos 5 e 6 coloca em contraste a fragilidade das embarcações e os tempestuosos mares com as quais os enfrentaram. Este contraste concorre para a glorificação deste povo ao realçar a sua coragem e a sua ousadia («Zombando»), por ter enfrentado a fúria dos mares para alcançar o seu desígnio («Descobriram longínquas regiões / Perdidas na vastidão do vasto oceano.»). 2. A estrofe 4 aponta para os três tempos de Portugal: o passado, glorioso e heroico do seu «povo, outrora tão temido», expresso na 1.a e 2. a estrofes («Já foste rico e forte e soberano, / Já deste leis a mundos e nações»), («Zombando […], / Descobriram longínquas regiões, / Perdidas na amplidão do vasto oceano.»); o presente, de abatimento, de tristeza, visível na 3.a estrofe («Hoje vejo-te triste e abatido.»), de saudade desse passado glorioso («Relembras com saudade o tempo ido?»), atitude que pode conduzir à decadência; e o futuro, que, apesar do pessimismo e desânimo, se afigura bonançoso, pois o sujeito poético crê no entusiamo e na paixão do seu povo («Ainda tem ardor no coração.»), essenciais à mudança, asseverando a sua esperança para Portugal (Mas a queda fatal não temas, não.»).

1 Galeões: naus de guerra.

1. Refere o recurso expressivo presente nos versos 5 e 6 e explicita o modo como concorre para a glorificação do povo português. 2. Relaciona o conteúdo da última estrofe com os três tempos de Portugal representados no poema – o passado, o presente e o futuro –, fundamentando a tua resposta com elementos textuais. 3. Identifica a composição poética e caracteriza-a quanto à estrofe, ao metro e à rima.

Avaliação diagnóstica

11

PROFESSOR

B Lê atentamente o seguinte texto.

Que seria do mundo sem os portugueses

5

10

15

20

25

30

Que seria do mundo do futebol e de outros desportos sem os portugueses? E da arquitetura? E da ciência? E da literatura? E da engenharia espacial, mas também de prédios, museus e pontes? E das artes, da música, da academia, da investigação e tecnologia, do vinho, do turismo, da gastronomia […]. Isto, claro, para não falar dos portugueses de quinhentos que nos hão de inspirar para sempre por terem dado novos mundos ao mundo. Passamos a vida a identificar boas práticas e boas notícias de gente de fora. […] Esquecemo-nos de que nós, os portugueses, estamos sempre a fazer história. Não é só o Ronaldo que faz o mundo vibrar quando marca um golo. O Vhils também humaniza a paisagem aqui como na China; a Maria João Pires para tudo com a sua música; o António Horta Osório fala e é igualmente tido em conta dum canto ao outro neste universo macro e microeconomicista; o Siza e o Souto Moura rasgam a paisagem e abrem horizontes amplos; a Paula Rego redesenha a pintura; Pessoa, Sophia e Saramago serão lidos ao longo de séculos, e por aí adiante. Milhões de portugueses vivos e mortos, conhecidos e anónimos, falam a mesma língua há oito séculos e deixam vestígios pelo mundo. Todo o mundo. […]

35

40

45

50

55

60

Sei de apps criadas por portugueses que mudaram o mundo a meio mundo. E conheço autores e programadores que transformaram a outra metade deste mundo. Falo, por exemplo, da Color ADD, a melhor app inclusiva premiada pelas Nações Unidas, que permite a 350 milhões de daltónicos identificarem e verem as cores. Também sei de robots e invenções portuguesas fabulosas como a bússola que foi lançada para o espaço e permite medir o campo magnético de forma a saber a orientação dos satélites (e o que seria do mundo e da vida de cada um de nós sem os satélites!), mais os óculos de realidade aumentada a que um português adicionou equipamento de vídeo que permite ver para onde o olho está a olhar, e cuja câmara filma o olho, para através de um teclado virtual poder escrever apenas com os olhos. Se estes portugueses não salvam a humanidade, não sei quem a pode salvar, pois inventam tecnologia sofisticadíssima que cria acessibilidades e inclusão, salvando pelo menos parte da humanidade doente. […] Todos eles terão como ponto de partida e de chegada uma interrogação: que seria do mundo sem os portugueses? Confesso que a mim me soa mais como certeza e, daí, ter começado por retirar a interrogação do título.

Laurinda Alves, «Que seria do mundo sem os portugueses», in Observador, 24 de maio de 2016 (disponível em www.observador.pt, consultado em junho de 2016, texto adaptado).

4. Identifica o género do texto que acabaste de ler, fundamentando a tua opção com três marcas características do mesmo. 5. Relaciona os textos A e B do Grupo I, apresentando dois aspetos comuns.

3. O poema é um soneto, composto por duas quadras e dois tercetos, sendo os versos decassilábicos: Já / fos / te / ri / co e / for / te e / so / be / ra / no. A rima é interpolada e emparelhada nas quadras e cruzada nos tercetos, segundo o esquema rimático abba / abba / cdc / dcd. B 4. Estamos perante um artigo de opinião. Três marcas características são, por exemplo, explicitação de um ponto de vista: «Passamos a vida a identificar boas práticas e boas notícias de gente de fora. […] Esquecemo-nos de que nós, os portugueses, estamos sempre a fazer história.» (ll. 12-15); desenvolvimento de argumentos: «Milhões de portugueses vivos e mortos, conhecidos e anónimos, falam a mesma língua há oito séculos e deixam vestígios pelo mundo.» (ll. 28-31), e respetivos exemplos: «Sei de apps criadas por portugueses que mudaram o mundo a meio mundo.» (ll. 32-33); presença de discurso valorativo, neste caso, apreciativo, com a utilização de adjetivos como «boas» (l. 12), «fabulosas» (l. 41) e «sofisticadíssima» (l. 55). Também os recursos expressivos reforçam o juízo de valor apresentado, como, por exemplo, a hipérbole – «a Maria João Pires para tudo com a sua música» (ll. 19-20); a metáfora – «o Siza e o Souto Moura rasgam a paisagem e abrem horizontes amplos» (ll. 23-24), entre outros. 5. Os dois textos relacionam-se ao nível da temática. Em ambos se reflete sobre a situação de Portugal e dos portugueses e se expõe aspetos negativos e positivos acerca do nosso país. No texto A, o estado decadente do país contrasta com a esperança de um futuro melhor («Porque o teu povo, outrora tão temido, / Ainda tem ardor no coração.», vv. 13-14); no texto B, a tendência para menosprezarmos o que é nacional («Passamos a vida a identificar boas práticas e boas notícias de gente de fora. […] Esquecemo-nos de que nós, os portugueses, estamos sempre a fazer história.», ll. 12-15) é revertida através de vários exemplos de feitos atuais dos portugueses («Se estes portugueses não salvam a humanidade, não sei quem a pode salvar, pois inventam tecnologia sofisticadíssima que cria acessibilidades e inclusão, salvando pelo menos parte da humanidade doente.», ll. 52-57).

12

Unidade 0 // DIAGNÓSTICO E PROJETO DE LEITURA

COTAÇÕES

Grupo II

Grupo II 1.1 1.2 1.3 1.4 1.5 2. 3. 4.

5 pontos 5 pontos 5 pontos 5 pontos 5 pontos 5 pontos 10 pontos 10 pontos

Caros cidadãos de Portugal,

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50 pontos 10

PROFESSOR

MC

Gramática 17.1; 18.1; 18.2; 20.1. (MC – 11.o Ano).

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Estive há dias no vosso país (acho eu) e parece que cometi um erro. Disse que Cristóvão Colombo era vosso compatriota quando, ao que parece, ele nasceu em Génova. O que significa que era grego, ou assim. Enfim, os povos do sul da Europa acabam por ser todos muito parecidos. Também tenho dificuldade em distinguir africanos e chineses. Sendo oriundo de uma potência como o Luxemburgo, estive muito ocupado a estudar a longa história do meu país, e a conhecer a sua vasta geografia. Por isso, faltou-me disponibilidade para me dedicar à história de países mais pequenos, como o vosso. Além disso, no Luxemburgo temos pouquíssimo contacto com portugueses, pelo que a minha ignorância está desculpada, creio eu.

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Vamos ao essencial. O meu objetivo era comparar o socialismo com um período negro da história mundial. Por isso, escolhi inteligentemente uma época que os portugueses abominam: os Descobrimentos. Cristóvão Colombo era,

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na verdade, um socialista: ia sem saber para onde à custa dos contribuintes – e com que resultados? Nenhuns. Não admira que tenha sido esquecido pela história e que, hoje, alguns altos dignitários europeus nem saibam exatamente quem ele foi e onde nasceu. Diz-se que Cristóvão Colombo descobriu a América. Pois bem, eu já estive na América, e é enorme. Imaginem as vossas cidades de Málaga e Bordéus juntas. A América é ainda maior. Não é nada difícil de descobrir. Vê-se do espaço. Perguntem ao vosso compatriota Neil Armstrong. Ele foi a Júpiter, e sabe do que fala. Portugal é, sinceramente, a minha parte favorita de Angola, e tive o privilégio de poder confidenciar isto mesmo a Nelson Mandela, quando ele ainda jogava no Benfica. Nessa medida, […] o vosso país tem em mim um amigo. Creio que o desconhecimento mútuo é o melhor aliado da amizade. Quanto mais se conhece o outro, mais características desagradáveis lhe descobrimos. E eu já demonstrei que não faço a mínima ideia de quem vocês são e do que fizeram. Terei todo o prazer em defender, na Comissão Europeia, os vossos interesses, mal descubra quais são. Como dizia o vosso Cervantes: «Ser ou não ser, eis a questão.» Portugal tem de optar entre ser socialista, como Cristóvão Colombo, ou ser sábio e ajuizado, como eu. Avaliem a dimensão de ambas as figuras na história da Europa e do Mundo e decidam em conformidade. Gracias e hasta luego, como se diz aí. Cordialmente, Jean-Claude Juncker

Ricardo Araújo Pereira, «Boca do Inferno», in Visão, 29 de maio de 2014 (disponível em www.visao.sapo.pt, consultado em junho de 2016).

Avaliação diagnóstica

1. Para responderes a cada um dos itens de 1.1 a 1.5, seleciona a opção que te permite obter uma afirmação correta. 1.1 As funções sintáticas desempenhadas pelos segmentos sublinhados em «Estive há dias no vosso país […]» (l. 1) são, respetivamente, (A) modificador e complemento oblíquo. (B) complemento oblíquo e modificador. (C) predicativo do sujeito e modificador. (D) modificador e predicativo do sujeito. 1.2 No contexto em que ocorre, a palavra destacada em «Enfim, os povos do sul da Europa acabam por ser todos muito parecidos» (ll. 6-8) contribui para a coesão (A) (B) (C) (D)

lexical. frásica. interfrásica. referencial.

1.3 O segmento destacado em «Sendo oriundo de uma potência como o Luxemburgo […]» (ll. 9-10) desempenha a função sintática de (A) complemento do nome. (B) complemento do adjetivo. (C) modificador do nome restritivo. (D) complemento oblíquo. 1.4 As orações destacadas em «Ele foi a Júpiter e sabe do que fala» (ll. 39-40) são, respetivamente, (A) coordenada e subordinada substantiva completiva. (B) coordenada e subordinada substantiva relativa sem antecedente. (C) subordinante e subordinada substantiva relativa sem antecedente. (D) coordenada e subordinada adjetiva relativa restritiva. 1.5 A expressão destacada em «[…] o vosso país tem em mim um amigo» (l. 46) desempenha a função sintática de (A) modificador. (B) complemento oblíquo. (C) predicativo do complemento direto. (D) complemento indireto. 2. Classifica os deíticos «vosso» (l. 15), «hoje» (l. 30) e «aí» (l. 64). 3. Indica a função sintática do segmento destacado em «Avaliem a dimensão de ambas as figuras na história da Europa […]» (ll. 61-62). 4. Comprova que o texto respeita os princípios da coerência, apesar de apresentar dados incompatíveis com o nosso conhecimento do mundo.

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PROFESSOR

Grupo II 1.1. (D). 1.2. (C). 1.3. (B). 1.4. (B). 1.5. (A). 2. «vosso» – deítico pessoal; «hoje» – deítico temporal; «aí» – deítico espacial. 3. Complemento do nome. 4. O texto respeita todos os princípios de coerência, embora apresente informações opostas ao conhecimento que temos do mundo: a dimensão do Luxemburgo, apresentado como uma «potência»; os Descobrimentos como «um período negro da história mundial», abominado pelos portugueses; Neil Armstrong ser português e ter ido a Júpiter; Cervantes ser português e ter escrito uma expressão da autoria de Shakespeare, entre outras. A ironia que percorre todo o texto está ao serviço de uma crítica, não compremetendo a sua estrutura, sentido ou eficácia comunicativa.

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Unidade 0 // DIAGNÓSTICO E PROJETO DE LEITURA

COTAÇÕES Grupo III 40 pontos Grupo IV 30 pontos PROFESSOR

MC

Escrita 10.1; 11.1; 12.1; 12.2; 12.3; 12.4; 13.1. Oralidade 5.1; 5.2; 5.3; 5.4; 6.1; 6.2; 6.3.

Grupo III 1. Lê a afirmação de Roger Crowley, retirada de uma notícia. «[Os Descobrimentos] têm de ser vistos como um todo: uma revolução na navegação e na cartografia, que permitiu descobrir como unir o mundo fisicamente através de barcos, e ao mesmo tempo uma mudança radical no comércio. Em resumo, com os portugueses o mundo tornou-se global.» João Céu e Silva, «Lisboa foi a Silicon Valley do fim do século XV», in Diário de Notícias, 29 de março de 2016 (disponível em http://dn.pt, consultado em junho de 2016).

1.1 Redige um texto de opinião sobre a importância de Portugal e dos portugueses na globalização do mundo, no passado e no presente.

(MC – 11.o Ano).

Grupo III Sugestão de resposta: • O fenómeno da globalização teve início no séc. XV, com os Descobrimentos portugueses: o avanço das técnicas de navegação e da cartografia permitiu a união física dos mares; desenvolvimento e mundialização do comércio, através da troca de mercadorias; movimentação de recursos materiais e humanos (emigração); aproximação de culturas; desenvolvimento da economia da Europa Ocidental; … • Do séc. XV à atualidade: fenómeno da colonização; fenómeno da emigração para diversos pontos do globo e consequente influência e participação dos portugueses em diversas áreas (cultura, ciência, política, economia,…).

Grupo IV Observa, atentamente, o seguinte cartoon.

Cartoon de Lopes, o repórter pós-moderno

Grupo IV Sugestão de resposta: • O cartoon de Luís Afonso apresenta Portugal como um colchão insuflável, no meio do oceano, e o comentário por parte de um jornalista, dizendo que «ainda flutua»; isto é, ainda há esperança, muito provavelmente, os jovens terão um papel crucial no «salvamento» do país: • a importância da juventude na sociedade – os jovens são bastante importantes na sociedade, pelo seu espírito inovador, capacidade de mover os seus pares e os adultos e, sobretudo, pela sua índole sonhadora e vontade de transformar a sociedade; • áreas potenciais de transformação – mudança de mentalidades na sua família, no meio escolar e comunitário em que se inserem.

Luís Afonso, «País flutua» (disponível em http://www.sabado.pt/multimedia/ilustracoes.html).

A partir da leitura do cartoon, elabora um texto de opinião, de quatro a seis minutos, em que reflitas sobre o papel dos jovens enquanto agentes de mudança na sociedade. A tua exposição oral deve contemplar os seguintes tópicos: • leitura do cartoon, relacionando-o com o tema a abordar; • a importância da juventude na sociedade; • áreas potenciais de transformação; • ações de dinamização junto dos jovens.

Avaliação diagnóstica

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COTAÇÕES

Grupo V

Grupo V

Escuta atentamente a canção «A gente vai continuar», de Jorge Palma, do álbum No Tempo dos Assassinos (2002). Seleciona, para cada uma das questões abaixo apresentadas, a resposta que considerares mais correta, de acordo com o sentido da letra. 1. Inicialmente, o sujeito lírico incita (A) à continuação do estado reflexivo.

1. 2. 3. 4. 5.

6 pontos 6 pontos 6 pontos 6 pontos 6 pontos 30 pontos

(B) a uma mudança da postura corporal. (C) à continuação da postura corporal.

PROFESSOR

(D) a uma mudança de comportamento.

Grupo IV (cont.) • ações de dinamização junto dos jovens – é urgente fomentar ações deste tipo, de modo a consciencializá-los da sua influência na sociedade e da necessidade de mudança de mentalidades, aproximando-os de causas públicas e da política; por outro lado, é urgente criarmos condições para que os jovens não tenham de emigrar, podendo efetivamente transformar a sua pátria.

2. Simbolicamente, o vocábulo «estrada» pode ter como sinónimo (A) esperança. (B) desespero. (C) dinheiro. (D) saudade. 3. A expressão «ventos e mar» evoca (A) o clima português. (B) um passado de glória.

Grupo V

(C) a posição geográfica portuguesa.

MC

(D) os obstáculos à estrada.

Oralidade 1.1; 1.3; 1.4; 1.5. (MC – 11.o Ano).

4. Considerando as temáticas abordadas, não é contemplada a

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(A) do consumismo.

2. (A).

(B) das dependências.

3. (B). 4. (C).

(C) da desistência.

5. (D).

(D) da liberdade. 5. A mensagem global da canção é a de que devemos

▪ Link «A gente vai continuar», Jorge Palma

(A) saber desistir dos nossos sonhos quando perdemos. (B) esperar por ventos e mar favoráveis aos nossos sonhos.

▪ Documento Letra da canção «A gente vai continuar»

(C) perseguir os sonhos dos nossos antecessores. (D) perseguir os nossos sonhos enquanto houver esperança.

▪ Ficha formativa Soluções para projeção

Fotografia de Rita Carmo, Jorge Palma no CCB, 2016.

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PROJETO DE LEITURA

Que livros ler? A lista de livros apresenta vários títulos, dos quais terás de escolher um ou dois, de acordo com as indicações do teu professor, para desenvolveres um trabalho no âmbito do Projeto de Leitura.

LITERATURA PORTUGUESA

LITERATURA UNIVERSAL

DIONÍSIO, Mário, O Dia Cinzento e Outros Contos

Anónimo, As Mil e uma Noites (excertos escolhidos)

FERREIRA, José Gomes, Calçada do Sol: Diário Des-

BORGES, Jorge Luís, Ficções

grenhado de um Qualquer Nascido no Princípio do Século XX

CENDRARS, Blaise, Poesia em Viagem

GERSÃO, Teolinda, A Árvore das Palavras

BELLOW, Saul, Jerusalém – Ida e Volta

(poemas escolhidos)

KNOPFLI, Rui, Obra Poética (poemas escolhidos)

GARCÍA LORCA, Federico, Antologia Poética (poemas

MOURÃO-FERREIRA, David, Obra Poética (poemas

escolhidos)

escolhidos)

GARCÍA MÁRQUEZ, Gabriel, Cem Anos de Solidão

NAMORA, Fernando, Retalhos da Vida de um Médico

GOGOL, Nikolai, Contos de São Petersburgo

NEGREIROS, Almada, Nome de Guerra

KAFKA, Franz, Contos

PESSANHA, Camilo, Clepsydra

KAVAFIS, Konstandinos, Poemas e Prosas

PINA, Manuel António, Como se Desenha uma Casa

(poemas escolhidos)

RÉGIO, José, Poemas de Deus e do Diabo

LEVI, Primo, Se Isto é um Homem

SÁ-CARNEIRO, Mário de, Indícios de Oiro

MÁRAI, Sándor, As Velas Ardem até ao Fim MURAKAMI, Haruki, Auto-retrato do Escritor enquanto

Corredor de Fundo

LITERATURA DE EXPRESSÃO PORTUGUESA

NERUDA, Pablo, Vinte Poemas de Amor e uma Canção

AGUALUSA, José Eduardo, O Vendedor de Passados

Desesperada

ALMEIDA, Germano, Estórias de dentro de Casa

ORWELL, George, 1984

ANDRADE, Carlos Drummond de, Antologia Poética

PAMUK, Orhan, Istambul

(poemas escolhidos) ASSIS, Machado de, Memórias Póstumas de Brás Cubas

PAZ, Octavio, Antologia Poética (poemas escolhidos) PROUST, Marcel, Em Busca do Tempo Perdido. Vol. 1:

HONWANA, Luís Bernardo, Nós Matámos o Cão-Tinhoso

Do Lado de Swann

PATRAQUIM, Luís Carlos, O Osso Côncavo e Outros Poemas (poemas escolhidos)

STRINDBERG, August, Menina Júlia

TAVARES, Paula, Como Veias Finas da Terra

TABUCCHI, Antonio, O Tempo Envelhece Depressa WHITMAN, Walt, Folhas de Erva (poemas escolhidos) WOOLF, Virginia, A Casa Assombrada e Outros Contos XINGJIAN, Gao, Uma Cana de Pesca para o meu Avô

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O que fazer? A partir da obra que selecionaste, desenvolve uma das seguintes atividades propostas.

1. Exposição Prepara uma exposição, escrita (130 a 170 palavras) ou oral (5 a 7 minutos), de acordo com os seguintes tópicos: Introdução • informação sobre o autor e a obra. Desenvolvimento • apresentação do conteúdo global da obra (tema, organização); • semelhanças e diferenças em relação ao que estudaste em determinada unidade, apoiadas em exemplos. Conclusão • síntese dos aspetos mais relevantes da obra.

2. Apreciação crítica Faz uma apreciação crítica, escrita (200 a 300 palavras) ou oral (2 a 4 minutos), em que apresentes os seguintes tópicos: Introdução • informação sucinta sobre o autor e a obra, seguida de uma breve descrição do seu conteúdo. Desenvolvimento • comentário crítico da obra, fundamentado em argumentos suportados por excertos ilustrativos; • semelhanças e diferenças com o que estudaste em determinada unidade, apoiadas em exemplos. Conclusão • informação sobre a importância da divulgação e do conhecimento da obra; • recomendação da sua leitura.

3. Texto de opinião Elabora um texto de opinião, escrito (200 a 300 palavras) ou oral (4 a 6 minutos), em que apresentes os seguintes aspetos: Introdução • informação sucinta sobre o autor e a obra. Desenvolvimento • explicitação do teu ponto de vista sobre a obra, adotando uma perspetiva clara e pertinente, fundamentada em argumentos, suportados por excertos ilustrativos; • utilização de um discurso valorativo (juízo de valor explícito ou implícito) sobre a obra; • semelhanças e diferenças com o que estudaste em determinada unidade, apoiadas em exemplos. Conclusão • informação sobre a importância da divulgação e do conhecimento da obra; • recomendação da sua leitura.

Como divulgar? Partilha o teu texto escrito • no jornal da escola; • no blogue da biblioteca da tua escola; • no site de uma livraria online ou num site sobre livros que permita adicionar comentários de utilizadores.

Partilha o teu texto oral • sob a forma de apresentação oral à turma; • num programa da rádio da tua escola (acompanhando-o de músicas sugestivas); • sob a forma de vídeo/vlogue no YouTube, Facebook ou outro site de partilha de vídeos.

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FERNANDO PESSOA

EDUCAÇÃO LITERÁRIA

Contextualização histórico-literária

Almada Negreiros, Retrato de Fernando Pessoa (pormenor), 1964.

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mensaGens CrUzadaS Inês Pedrosa É escritora e colabora em programas de rádio (A Páginas Tantas, Antena 1) e televisão (O Último Apaga a Luz, RTP3). Foi diretora da Casa Fernando Pessoa entre 2008 e 2014. Além de contos, crónicas e biografias, publicou sete romances: A Instrução dos Amantes (1992), Nas Tuas Mãos (1997, Prémio Máxima de Literatura), Fazes-me Falta (2002), A Eternidade e o Desejo (2007), Os Íntimos (2010, Prémio Máxima de Literatura), Dentro de Ti Ver o Mar (2012) e Desamparo (2015). Os seus livros estão publicados na Alemanha, no Brasil, na Croácia, em Espanha e em Itália.

Escrever para desassossegar

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«Nunca conheci quem tivesse levado porrada/ Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.» A minha paixão por Fernando Pessoa nasceu neste Poema em Linha Recta, assinado por Álvaro de Campos, que descobri aos 13 anos. Trinta e três anos depois, em 2008, tive a alegria de organizar um concerto no Terreiro do Paço, em Lisboa, com rappers e grupos de hip-hop cantando a poesia de Pessoa e dos seus heterónimos. Mas Pessoa vive além da máquina da heteronímia; é o coração febril do tímido e arguto Fernando que bomba o sangue dos outros, distintos e iguais a ele. Criar personagens faz parte da natureza humana, todos somos vários, a não ser que escolhamos ser apenas sombras movidas por uma ambição qualquer, que sempre é nada. O engenheiro Campos é a figura pessoana que prefiro – navio iluminado ateando ondas na noite da língua e do pensamento. O génio de Pessoa consistiu em transformar em texto as experiências-limite da existência. O seu projeto não era o de criar novidades ou sensações literárias, mas de, escrevendo, sangrar a vida e compreender as paixões que a compõem. Foi um filósofo valente. O autor desse romance sem história onde

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todos os romances estão contidos, o Livro do Desassossego que nunca me canso de reler, e que é um vendaval de ideias e de intuições fulgurantes, usou todos os métodos, processos e correntes literárias, desfibrando-os, subvertendo-os, estoirando-os: depois dele, o belo e o bom nunca mais foram os mesmos – e, sobretudo, nunca mais foram absolutos. Pessoa é a velocidade supersónica e a imobilidade estelar; a máxima dispersão e o extremo rigor. Nos seus diários de juventude (Prosa Íntima e de Autoconhecimento, edição de Richard Zenith, Assírio & Alvim) escreve: «Sinto-me viver vidas alheias, em mim, incompletamente, como se o meu ser participasse de todos os homens, […] Com os meus passos treme a luz das estrelas. […] Pareceu-me sempre que ser era ousar; que querer era aventurar-se.» A aventura pessoana de explorar as múltiplas variantes do ser, na sua autenticidade radical, acompanha-nos para lá do tempo. Fernando Pessoa atreveu-se a escavar destemidamente a verdade da condição humana – é para isso que serve a literatura. Inês Pedrosa (texto inédito, 2017)

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Maria do Rosário Pedreira Licenciou-se em Línguas e Literaturas Modernas e foi professora durante cinco anos, o que a influenciou a escrever para jovens. Ingressou na carreira editorial em 1987, sendo atualmente responsável pelo lançamento de novos autores portugueses. Escreve poesia, ficção e literatura juvenil, tendo ainda um blogue dedicado aos livros.

Pessoa(s) sem fim

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Sou a mais nova de uma família grande e, como lá em casa cada um falava para seu lado e geralmente muito alto, tive de lutar bastante por atenção e tempo de antena. Consegui-os aos seis anos com umas quadras que, embora não tão boas como as de Fernando Pessoa, impressionaram os adultos. Mas em boa verdade a poesia estava dentro de mim desde sempre e é provável que tenha ouvido os primeiros poemas de Pessoa ainda na barriga da minha mãe: é que os meus pais cantavam ambos muito mal e preferiam recitar-nos versos a embalar-nos com canções desafinadas... Fizeram bem, porque a poesia é o género literário que consegue dizer mais coisas com menos palavras e, ainda por cima, goza da vantagem de ter música. E, se é certo que não temos de gostar todos dos mesmos poetas, com Fernando Pessoa podemos ficar descansados, porque ele, sozinho, é um monte de escritores para todos os gostos. Talvez seja por isso que o meu “Pessoa & heterónimos” favorito foi mudando ao longo do tempo. Até à adolescência, eu gostava mesmo era da Mensagem e de ver desfilar nas suas páginas a história e as figuras de um Portugal heróico que se atrevera ao mar das Descobertas e nos enchia de orgulho; lembro-me até de, numa festa da escola, recitar empoleirada numa cadeira, o «Mar Português» e, tantos anos decorridos, continuo a sabê-lo de cor. Depois, naquela idade em que os nossos sentidos parecem sobrepor-se à razão,

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agarrei-me com unhas e dentes ao Guardador de Rebanhos de Alberto Caeiro, no qual li que podíamos pensar com os olhos e os ouvidos, as mãos e os pés, o nariz e a boca, e que «pensar uma flor é vê-la e cheirá-la». Ele é que me entendia... Logo a seguir vieram os primeiros desgostos de amor (acontece a todos e faz parte da dolorosa maravilha que é crescer) e então foi a vez de Álvaro de Campos se tornar o meu poeta de eleição; nem precisava de ir ao volante de um Chevrolet pela Estrada de Sintra e olhar o modesto casebre na paisagem para perceber que, como ele escrevera, «A vida ali deve ser feliz, só porque não é a minha.» As paixonetas que chorava nessa altura felizmente passaram, mas dura até hoje a minha paixão pelos poemas do senhor engenheiro... Que tem, mesmo assim, um rival: já eu estava na faculdade, surgiu o Livro do Desassossego, assinado por Bernardo Soares, um maravilhoso texto em prosa feito de mil bocadinhos arrumados como as peças de um puzzle. Enquanto não o li, foi um desassossego. E depois de o ler também: como era possível um livro que não tinha sequer uma história ser tudo menos enfadonho? Confesso que com Ricardo Reis, que é o preferido da minha melhor amiga, não me lembro de sentir uma empatia por aí além; mas, enfim, nos anos que me restam sabe-se lá se ele não acaba por me conquistar. Maria do Rosário Pedreira (texto inédito, 2017)

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Unidade 1 // FERNANDO PESSOA

Contextualização histórico-literária 1888 Nascimento de Fernando Pessoa, em Lisboa.

1928 O General Carmona é eleito Presidente da República. António de Oliveira Salazar assume a pasta das Finanças no governo.

1890 Ultimatum Britânico: a Grã-Bretanha exige a retirada imediata das tropas portuguesas dos territórios entre Angola e Moçambique. O governo português cede e inicia-se uma mobilização patriótica a nível nacional.

1932 Salazar ascende a chefe de governo.

Datas e acontecimentos

1891 Revolta republicana a 31 de janeiro, no Porto, na tentativa de derrube da monarquia e de implantação da República. 1892 Crise financeira e bancarrota.

1933 Início do Estado Novo. 1935 Morte de Fernando Pessoa, no Hospital de São Luís dos Franceses, em Lisboa. Textos e obras

1908 Regicídio de D. Carlos e assassínio do seu herdeiro, D. Luís Filipe. Ascensão ao trono de D. Manuel II, segundo filho de D. Carlos. Avanço da causa republicana. 1910 Revolução republicana de 5 de outubro e Implantação da República. Constituição de um governo provisório, presidido por Teófilo Braga, e preparação de eleições. Início de um conturbado período político (até 1926, tomam posse 8 presidentes e são constituídos 45 governos). 1911 Aprovação da Constituição da I República e eleição de Manuel de Arriaga para Presidente da República. 1914-1918 I Guerra Mundial. Participação de Portugal na Guerra. 1917 Sidónio Pais é eleito Presidente da República, sendo assassinado no ano seguinte. 1926 Início do período de Ditadura Militar, com o general Gomes da Costa. * Algumas das revistas em que Pessoa publicou textos diversos.

1910-1932 Revista A Águia* (5 séries). 1911 Marânus, Teixeira de Pascoaes. 1914 A Confissão de Lúcio e Dispersão, Mário de Sá-Carneiro. 1915 Revista Orpheu* (2 n.os). 1916 Manifesto Anti-Dantas, Almada-Negreiros. Revistas Centauro (1 n.o) e Exílio (1 n.o). 1917 Revista Portugal Futurista* (1 n.º). 1922-1926 Revista Contemporânea* (3 séries, 13 n.os). 1924-1925 Revista Athena* (1 série, 5 n.os). 1927-1940 Revista Presença (54 n.os). 1934 Mensagem, Fernando Pessoa.

Contextualização histórico-literária

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1. Pessoa e a sua época

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[E]m 1915, Pessoa declara duas coisas importantes em carta a Côrtes-Rodrigues: a primeira é a sua consciência de que «ter uma ação sobre a humanidade, contribuir com todo o poder do meu esforço para a civilização» se tornaram os «graves e pesados fins» da sua vida; a segunda é a sua fundamental «ideia patriótica», que ele apresenta como «uma consequência de encarar a sério a arte e a vida». […] É em torno dos anos 20 que Pessoa tem maior atividade política. É um período de transição na vida nacional que sucede à agitada presidência de Sidónio Pais em 1918. A aura messiânica desta figura desperta um grande entusiasmo popular, mas num quadro de confusão e violência que culmina com o seu assassinato. É também, de novo, um tempo de paz depois do Armistício da Primeira Grande Guerra. Pode dizer-se que Pessoa vive o apogeu da afirmação nacionalista, movimento e ideologia nascido no século XVIII na Europa Ocidental e na América, que vai crescendo ao longo do século XIX e conduz à violência extrema das guerras no século XX. No contexto português, e na sequência dos traumas políticos do Ultimatum e do Regicídio, desde a Geração de 70 até à Renascença Portuguesa de 1910, a ideia de regeneração nacionalista adquire um tom de urgência que mobiliza todas as correntes ideológicas e atravessa todas as práticas culturais. Por outro lado, a história de Pessoa é de alguém cuja educação se faz em duas culturas nacionais, e para sempre fica dividido entre duas línguas e dois mundos. É, nisso, uma personagem atípica no drama do nacionalismo português, que tem em Antero e Pascoaes dois protagonistas. […] Poder-se-ia, então, descrever Pessoa como um republicano sebastianista, ou, talvez melhor, como um nacionalista liberal, mas com variações que podem ir, nada menos, que do anarquista ao monárquico. Ou seja, que podem abarcar polos opostos do espectro ideológico. E avulta na sua atuação pública, também, uma vontade fundamental de defesa da liberdade de expressão, quer nos manifestos de 1923 quer, mais tarde, como a sua violenta recusa de Salazar. Fernando Cabral Martins, Introdução ao Estudo de Fernando Pessoa, Lisboa, Assírio & Alvim, 2014, pp. 154-166.

Joshua Benoliel, Proclamação da República, Câmara Municipal de Lisboa, 5 de outubro de 1910.

Ilustração do Regicídio de 1 de fevereiro de 1908, no Terreiro do Paço, em Lisboa (autor desconhecido).

PROFESSOR

MC

Leitura 7.1; 7.3; 7.4; 8.1; 8.2. Educação Literária 16.1.

▪ Apresentação em PowerPoint Contextualização histórico-literária

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Unidade 1 // FERNANDO PESSOA

2. O Modernismo

O Notícias Ilustrado, 1929. 1 Orpheu: retoma do nome de uma per-

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sonagem da mitologia grega. Conhecido pelas suas qualidades musicais, é representado na literatura acompanhado da sua lira e como símbolo da música, da poesia e da arte. Finissecular: de fim de século. Paroxismo: excesso, exagero. Ultraísmo: movimento surgido em Madrid, em 1918, cujo principal objetivo era sintetizar todas as tendências da vanguarda mundial. Criacionismo: filosofia da liberdade, radicado nas infinitas capacidades criadoras do pensamento, que dinamicamente se liberta dos determinismos naturais e sociais. Imagismo: movimento literário modernista que teve no poeta norte-americano Ezra Pound (1885-1972) o seu maior impulsionador. Caracteriza-se pela produção de poemas breves, que recriam sensações visuais. Vorticismo: corrente vanguardista britânica, desenvolvida pelo pintor inglês Wyndham Lewis (1882-1957), que procurou conceber uma linguagem inovadora, capaz de representar as sensações de atividade e movimento próprias da civilização industrial, através do abstracionismo e da disposição concêntrica das figuras representadas. Congraçado: harmonizado, incluído.

* Consultar Glossário no final da

Unidade 1, p. 151.

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Pela sua abrangência cronológica, pela sua dispersão geocultural e até pelas suas contradições internas, o Modernismo constitui, antes de mais, um conceito difuso. [...] Numa perspetiva de largo alcance, pode dizer-se que o Modernismo se 5 estende desde os finais do século XIX (cerca de 1890, segundo alguns autores), até depois da 2.ª Guerra Mundial, mesmo até ao final dos anos 50, quando vão aflorando teorias e práticas culturais classificadas como pós-modernistas; numa perspetiva mais restrita, o Modernismo estende-se das vésperas da Primeira Guerra Mundial até à segunda guerra mundial, sendo que os 10 anos 20 e 30 são o seu tempo mais fecundo. Em Portugal, o aparecimento e a maturação do Modernismo relacionam-se com a relevância cultural assumida por algumas revistas e naturalmente pelos autores que nelas colaboram; os marcos decisivos da afirmação modernista são constituídos, em 1915, pelos dois números da revista Orpheu1 (um terceiro, já em provas, acabou por não 15 vir a público). A par desta, outras revistas servem de lugar de manifestação literária e doutrinária do Modernismo português: Centauro e Exílio (1916), Contemporânea (1922-1926) e Athena (1924-1925); entre 1927 e 1940 publica-se a revista Presença, que não só faz ecoar o legado cultural da chamada Geração de Orpheu como, segundo alguns autores, pode ser considerada o órgão cultural de um segundo Modernismo português. Um outro aspeto problemático da caracterização genérica do Modernismo tem que ver com a confluência, nesse tempo histórico-cultural, de múltiplos movimentos de uma forma ou de outra envolvidos na dinâmica modernista. Deparamos aqui com um importante componente da herança finissecular2 que se prolonga no Modernismo; com efeito, se no final do século XIX se multiplicam os «ismos» – uma multiplicação que é evidência de grande efervescência cultural e, simultaneamente, de uma certa crise ideológica –, no tempo do Modernismo essa tendência chega a assumir contornos de paroxismo3 ou então de provocação deliberada. O Ultraísmo4, o Criacionismo5, o Imagismo6, o Vorticismo7, o Construtivismo*, o Expressionismo*, o Cubismo* e ainda (no contexto do Modernismo português) o Sensacionismo*, o Intersecionismo*, um incipiente Paúlismo*, o Neopaganismo* e o Futurismo* [...] são alguns desses «ismos». Deles ficou, nalguns casos, testemunho notório da vocação inovadora e experimental do Modernismo; noutros casos, eles patenteiam [...] a necessidade de aprofundar e especializar facetas específicas da poética do Modernismo. [...] Do ponto de vista ideológico, o Modernismo incorpora e potencia valores que estimulam a reinterpretação da pessoa feita personagem, tendo em atenção um estádio civilizacional exteriormente pujante e eufórico, mas atravessado, no seu interior, por tensões e excessos de muito problemática harmonização. Noutros termos, dir-se-á que o tempo histórico-civilizacional do Modernismo é o de uma época de acentuada industrialização e de intenso desenvolvimento das comunicações que anulam distâncias, tudo congraçado8 num conceito quase obsessivo, traduzido na palavra mágica que na época se impõe: a Modernização, semanticamente relacionada com o termo-conceito Modernismo. Carlos Reis, O Conhecimento da Literatura, Coimbra, Edições Almedina, 2008, pp. 453-461.

Contextualização histórico-literária

3. A Geração de Orpheu

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Por inícios da guerra de 1914-18 reuniram-se os fatores de um movimento estético pós-simbolista em Lisboa. Aí se conheceram, entre outros, Fernando Pessoa, cuja adolescência se formara na África do Sul, dentro da cultura inglesa, Mário de Sá-Carneiro, que entre 1913-16 passou grande parte do tempo em Paris, Almada-Negreiros e Santa-Rita Pintor, que traziam de Paris as novidades literárias e sobretudo plásticas de futurismo e correntes afins. A estas e outras personalidades do grupo atribui a opinião pública sinais de degenerescência9, mas hoje é fácil reconhecer que eles produzem, em conjunto, a maior renovação poética portuguesa deste século. Particularidades de formação e temperamento relacionáveis com uma maior instabilidade social, e com influências cosmopolitas mais ou menos diretas, haviam-nos alheado tanto dos republicanos jacobinos como de um tradicionalismo mais ou menos novirromântico. Alguns manifestos como o Ultimatum de Almada-Negreiros e o de Álvaro de Campos, no Portugal Futurista, exprimem até o repúdio de todas as formas de idealismo romântico da pequena burguesia e também de todas as formas culturais que assumiam no tempo, quer esse idealismo, quer as suas mistificações. Pessoa colaborou em A Águia, mas dando do saudosismo uma versão extremista e provocatória, e rompendo as últimas amarras que o poderiam, dubiamente, prender ao senso comum do tempo. Neste grupo, e afins, cujos órgãos principais foram Orpheu (2 números, 1915), Eh real!/ (1 n.o, 1915), Centauro (1 n.o, 1916), Exílio (1 n.o, 1916), Ícaro (3 n.os, 1916), Portugal Futurista (1 n.o 1917), Contemporânea (1922-26, 3 séries, 13 n.os), Athena (1 série, 1924-25, 5 n.os), Revista Portuguesa (1923) e Sudoeste (S.W., 3 vols., 1935), nada há de definidamente programático: com a irreverência iconoclástica10, que utiliza todas as formas possíveis de publicidade, mesmo as mais cabotinas11, alternam apenas da metapsíquica12, da astrologia e uma religiosidade heterodoxa13 e esotérica14. Em vez do escândalo político à Gomes Leal, é o escândalo dos costumes e do senso comum que traz a notoriedade.

Frontispício do número 1 da revista Orpheu, 1915.

9 Degenerescência: declínio, degra-

dação. 10 Iconoclástica: que rejeita os mo-

11 12 13 14

delos literários do passado e qualquer inscrição social ou religiosa. Cabotinas: que se acham importantes, pretensiosas. Metapsíquica: ciência que estuda os fenómenos paranormais. Heterodoxa: que abule qualquer religião. Esotérica: que é relativa ao oculto ou ao sobrenatural.

António José Saraiva & Óscar Lopes, «Geração de “Orpheu”» in História da Literatura Portuguesa, 16.ª ed., Porto, Porto Editora, 2010, pp. 1039-1040.

José de Almada-Negreiros, Poetas do Orpheu, 1954.

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Unidade 1 // FERNANDO PESSOA

PROFESSOR

Consolida 1. Sugestão de tópicos Texto 1 • Desejo de Fernando Pessoa de agir sobre a humanidade, contribuindo com a sua arte para a civilização. • A ideia de patriotismo advém da sua forma de encarar a arte e a vida. • Anos 20: maior intervenção política de Pessoa. • Influência do presidente Sidónio Pais: misto de espírito messiânico, entusiasmo popular, mas também violência, que culminará com o assassinato presidencial. Texto 2 • Modernismo: conceito difuso. • Balizas temporais: latamente, entre finais do século XIX até depois da 2.a Guerra Mundial (anos 50); restritamente, das vésperas da 1.a Guerra Mundial até à 2.a Guerra Mundial. • Período mais fecundo: anos 20 e 30. • Em Portugal, os marcos do Modernismo constituem-se em 1915 com os dois números da revista Orpheu. • Várias revistas são lugares de manifestação literária e doutrinária do Modernismo. • O Modernismo é confluência de múltiplos movimentos – herança finissecular mas também consequência quer da grande efervescência cultural, quer de uma certa crise ideológica. • Alguns «ismos» portugueses: Futurismo, Sensacionismo, Intersecionismo, … • O Modernismo potencia a reinterpretação da pessoa feita personagem, num contexto pujante e eufórico exterior, contudo atravessado por tensões e excessos interiores. • O seu tempo histórico-civilizacional pauta-se pelo conceito de Modernização – acentuada industrialização e intenso desenvolvimento das comunicações. Texto 3 • O encontro de personalidades com percursos pelo estrangeiro (Fernando Pessoa – África do Sul; Mário de Sá-Carneiro, Almada-Negreiros e Santa-Rita Pintor – Paris) conduziu ao nascimento do movimento estético pós-simbolista. • Na altura, tiveram péssima aceitação por parte do público; atualmente, é incontornável o seu contributo na maior renovação poética portuguesa do século XX. • Constituem um grupo avesso ao tradicionalismo, ao novirromantismo burguês, que repudiam em alguns manifestos. • Órgãos principais deste grupo foram, por exemplo, Orpheu, Centauro, Exílio, … que escandalizam os costumes da época.

4. Algumas temáticas modernistas • A euforia do moderno e da tecnologia. • A relação poeto-dramática da heteronímia. • O tédio, a dissolução do sujeito, a morte. • A crise existencial (a máscara, o retrato, o espelho). • A exploração da psique (mente) humana. • A fragmentação, a despersonalização. • A sinceridade e o fingimento. • … Fonte: Carlos Reis, O Conhecimento da Literatura, Coimbra, Edições Almedina, 2008, pp. 462-468.

CONSOLIDA

1. Elabora tópicos que sistematizem as ideias-chave dos textos 1, 2 e 3, organizando-os sequencialmente.

Guilherme de Santa-Rita, Perspetiva dinâmica de um quarto ao acordar, 1912.

Pablo Picasso, Menina com Bandolim, 1910.

Amadeo de Souza-Cardoso, Retrato de Médico, 1917.

Paul Klee, Caminhos principais e caminhos secundários, 1929.

Contextualização histórico-literária

5. Eu… Fernando Pessoa

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CD 1 Faixa n.0 2

[NOTA BIOGRÁFICA] DE 30 DE MARÇO DE 1935 Nome completo: Fernando António Nogueira Pessoa. Idade e naturalidade: Nasceu em Lisboa, freguesia dos Mártires, no prédio n.º 4 do Largo de S. Carlos (hoje do Diretório) em 13 de junho de 1888. Filiação: Filho legítimo de Joaquim de Seabra Pessoa e de D. Maria Madalena Pinheiro Nogueira. Neto paterno do general Joaquim António de Araújo Pessoa, combatente das campanhas liberais, e de D. Dionísia Seabra; neto materno do conselheiro Luís António Nogueira, g , jurisconsulto j e que q foi Diretor-Geral do Ministério do Reino, e de D. Madalena Xavier Pinheiro. Ascendência geral: misto de fidalgos e judeus. Estado: Solteiro. Bilhete de Identidade de Fernando Pessoa. a.

Richard Zenith (ed.), «[Nota Biográfica] de 30 de março de 1935», in Escritos Autobiográficos, Automáticos e de Reflexão Pessoal, Lisboa, Assírio & Alvim, 2003, pp. 203-206.

CONSOLIDA PROFESSOR

1. Procede a uma audição atenta da Nota Biográfica completa, escrita pelo próprio Fernando Pessoa. Redige uma ideia-chave para cada um dos tópicos apresentados. Tópicos

MC

Oralidade 2.1. Educação Literária 16.1.

a) Ideologia política:

b) Posição religiosa:

▪ Link Grandes Portugueses – Fernando Pessoa

c) Posição patriótica:

▪ Link Fernando Pessoas – Um texto sobre Pessoa de José Saramago

d) Posição social:

▪ Áudio [Nota Biográfica] de 30 de março de 1935, de Fernando Pessoa Consolida

1.1 Depois de uma segunda audição do texto, verifica as tuas respostas.

1. a) defensor do sistema monárquico, mas, sendo inviável em Portugal, votaria pela República; b) cristão gnóstico; c) partidário de um nacionalismo rústico e defensor de um novo Sebastianismo; d) anticomunista e antissocialista.

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Unidade 1 // FERNANDO PESSOA

6. Ele… Fernando Pessoa

PROFESSOR

Consolida 1. a) V. b) F. Pessoa publicou textos poéticos e de estética ou filosofia em revistas e jornais; somente em 1942 a sua obra poética começa a sair em volume. c) F. [...] seres que procurou impor como reais [...]. d) V.

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Nasceu em Lisboa no dia 13 de junho de 1888. Após a morte do pai, em 1893, a mãe casa com o cônsul de Portugal em Durban, África do Sul. Vive e estuda em Durban até 1905; neste ano regressa a Portugal, instalando-se em Lisboa onde viverá, até à sua morte, em casa de familiares ou em quartos alugados. Trabalha como correspondente comercial em firmas diversas, na área da Baixa de Lisboa, junto ao Tejo. Publica em revistas e jornais textos poéticos e de estética ou filosofia que assina com o seu nome, o ortónimo Fernando Pessoa, ou com os nomes de Alberto Caeiro, Álvaro de Campos e Ricardo Reis, a quem ele atribui biografia e personalidade distintas da sua, procurando impô-los como seres reais: os heterónimos. Nunca se preocupou em fazer uma carreira literária, e era praticamente ignorado pelo público à data da sua morte em 1935. Só em 1942, sob a direção de João Gaspar Simões e Luís de Montalvor, a sua obra poética começa a sair em volume. Para Octavio Paz1, o seu segredo está escrito no seu nome: Pessoa quer dizer pessoa em português e origina-se de persona, máscara dos atores romanos. Roman Jakobson2 considera-o um dos grandes artistas mundiais nascidos durante a penúltima década do século [XIX] […]. Para Alain Bosquet3, ele é um dos temperamentos líricos mais consideráveis da nossa época […]. Antonio Tabucchi4 atribui-lhe um radicalismo intelectivo […]. Para Álvaro de Campos, Fernando Pessoa é o mais puramente intelectual da sua geração: «a sua força reside na análise intelectual do sentimento e da emoção, por ele levada a uma perfeição que quase nos deixa com a respiração suspensa.» Nuno Júdice, PESSOA, ETC…, Lisboa, Instituto Português do Livro, Ministério da Cultura, 1985, pp. 11-12. CONSOLIDA

1 Octavio Paz: Octavio Paz

Lozano (1914-1998), poeta, ensaísta, tradutor e diplomata mexicano. Recebeu o Nobel de Literatura de 1990. 2 Roman Jakobson: pensador russo (1896-1982), que se tornou num dos maiores linguistas do século XX e pioneiro da análise estrutural da linguagem. 3 Alain Bosquet: jornalista, poeta, ensaísta e romancista francês de origem russa (1919-1998). 4 Antonio Tabucchi: escritor italiano (1943-2012), professor de Língua e Literatura Portuguesa na Universidade de Siena. Dedicado ao estudo da figura de Fernando Pessoa, produziu ensaios sobre o autor e traduziu obras suas.

1. Com base no texto, classifica as afirmações como verdadeiras (V) ou falsas (F). Corrige as afirmações falsas. a) Fernando Pessoa estudou na África do Sul e, após o seu regresso a Portugal, vive em Lisboa, cidade onde nasceu, até à data da sua morte, em 1935. b) Pessoa dedicou-se à escrita, publicando numerosos livros ao longo da sua vida. c) As suas publicações, em jornais e revistas, foram assinadas com o seu nome ou com os nomes dos seus heterónimos, seres reais, com biografia e personalidade próprias. d) Pessoa é considerado um grande escritor por individualidades de renome mundial da literatura.

11 •

FERNANDO PESSOA

Poesia do ortónimo

POESIA DO ORTÓNIMO

EDUCAÇÃO LITERÁRIA

Poesia do ortónimo • O fingimento artístico • A dor de pensar • Sonho e realidade

• A nostalgia da infância • Linguagem, estilo e estrutura – recursos expressivos: a anáfora, a antítese, a apóstrofe, a enumeração, a gradação, a metáfora e a personificação LEITURA Textos informativos Apreciação crítica COMPREENSÃO DO ORAL Registos áudio e audiovisuais EXPRESSÃO ORAL Texto de opinião ESCRITA Apreciação crítica Texto de opinião GRAMÁTICA Classes e subclasses de palavras Sintaxe – funções sintáticas – classificação de orações Discurso, pragmática e linguística textual – coesão textual – deixis

Júlio Pomar, Fernando Pessoa, 1988.

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Unidade 1 // FERNANDO PESSOA

Contextualização literária

PROFESSOR

MC

Leitura 7.1; 7.2; 8.1.

1. Fernando Pessoa ortónimo

Consolida 1. O primeiro texto enfatiza a questão do fingimento artístico, em que as emoções são transfiguradas, intelectualizadas. É desta forma que exprime as suas permanentes inquietações sobre o mundo. O segundo texto remete para a demanda permanente de Pessoa – a ânsia de alcançar «esta vida e a outra que pressentiu». Entre a sensação (da «música») e o que está «do outro lado» há um «muro intransponível»; esta constante inquietação resulta em insatisfação e tristeza.

5

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Pessoa ortónimo distingue-se por traços peculiares: avesso ao sentimentalismo, as suas finas emoções são pensadas, ou são já vibrações da inteligência, vivências de estados imaginários: «Eu simplesmente sinto / Com a imaginação. / Não uso o coração.» Com musical suavidade, em breves poesias de metro geralmente curto, e através de símbolos consagrados (a noite, o rio, o mar, a brisa, a fonte, as rosas, o azul), mais raro de cunho moderno (o andaime, o cais), fiel à tradição poética «lusitana» e não longe, por vezes, da quadra popular, Pessoa exprime ou insinua a solidão interior, a inquietação perante o enigma indecifrável do mundo, o tédio, a falta de impulsos afetivos de quem, minado pelo demónio da análise, já nada espera da vida – ou então os vagos acenos do inefável, o breve acordar da infância, a magia da voz que se cala, mal o poeta se põe a escutar. Jacinto do Prado Coelho, «Pessoa», in Dicionário de Literatura: Literatura Portuguesa, Literatura Brasileira, Literatura Galega, Estilística Literária, 4.ª ed., vol. 3, Porto, Figueirinhas, 1989, pp. 821-822.

2. Pessoa: entre esta vida e a outra

▪ Apresentação em PowerPoint Contextualização Literária

5

1 Anima: (latim) alma.

Em Fernando Pessoa há a expressão musical e subtil do frio, do tédio e dos anseios da alma, de estados quase inefáveis em que se vislumbra por instantes «uma coisa linda», nostalgias de um bem perdido que não se sabe bem qual foi, oscilações quase impercetíveis de uma inteligência extremamente sensível, e até vivências tão profundas que não vêm «à flor das frases e dos dias» mas se insinuam pela eufonia dos versos, pelas reticências de uma linguagem finíssima. Lirismo puro (se impura, no dizer do poeta, é a humanidade em que se enraíza), voz de anima1 que se confessa baixinho, num tom menor, melancólico de uma resignação dorida, agravada, de quem sofre a vida incapaz de a viver. [...] 10 Quando lhe chega aos ouvidos uma vaga música desconhecida que não parece ser deste mundo, agradece e sorri, embora com tristeza, porque essa música vem sempre do outro lado do muro intransponível [...]. Existiu ou foi imaginada? Não sabe responder. Hesita entre uma fé ocultista [...] e a suspeita de que tudo é sonho ou aparência sem fundo, esta vida e a outra que pressentiu. Jacinto do Prado Coelho, Unidade e Diversidade em Fernando Pessoa, 8.ª ed., Lisboa, Editorial Verbo, 1985, pp. 41-42.

CONSOLIDA

1. Explicita as características pessoanas que os textos evidenciam.

Fernando Pessoa na Baixa de Lisboa.

Poesia do ortónimo – O fingimento artístico

O fingimento artístico

31

PROFESSOR

O fingimento artístico

PONTO DE PARTIDA

MC

1. Partindo do título do poema – «Autopsicografia» –, analisa os constituintes da palavra e esclarece o seu significado global.

Leitura 8.1; 8.2. Educação Literária 14.1; 14.2; 14.3; 14.4; 14.8; 14.9; 15.3. Gramática 17.1.

auto

psico

grafia

▪ Apresentação em PowerPoint Texto poético (características) Ponto de Partida

EDUCAÇÃO LITERÁRIA

CD 1 Faixa n.0 3

Autopsicografia O poeta é um fingidor.1 Finge tão completamente Que chega a fingir que é dor A dor que deveras sente. 5

10

1. Os radicais AUTO- (próprio); PSICO- (espírito) e -GRAFIA (escrita, descrição) sugerem as várias partes envolvidas no processo de escrita e que são indissociáveis. Educação Literária 1. A proposição que se expõe é a de que o poeta é um «fingidor», no sentido de construtor de imagens poéticas. O uso da terceira pessoa do singular torna a proposição universal, válida para todos os poetas.

E os que leem o que escreve, Na dor lida sentem bem, Não as duas que ele teve, Mas só a que eles não têm.

2. O ato de fingir, a dor sentida, em imagens poéticas, atinge um grau de perfeição estética de tal ordem («finge tão completamente»), que a «dor fingida» (a da escrita) se afigura mais real ao eu lírico do que a que sentiu (na realidade) e intelectualizou.

E assim nas calhas de roda Gira, a entreter a razão, Esse comboio de corda Que se chama coração.

3. O recurso expressivo é a perífrase («os que leem o que escreve», v. 5), introduzindo os leitores como elementos fundamentais para o processo literário. A poesia só faz sentido se for lida e interpretada pelos leitores.

Fernando Pessoa, Poesia do Eu – Obra Essencial de Fernando Pessoa (ed. Richard Zenith), 3.ª ed., Lisboa, Assírio & Alvim, 2014, p. 241. René Magritte, A Arte da Conversação, 1963.

1. Identifica a proposição presente no primeiro verso do poema, justificando o uso da terceira pessoa do singular. 2. Explica como se processa o ato de «fingir», tendo em conta os três últimos versos da primeira estrofe. 3. Indica o recurso expressivo que introduz uma nova entidade no poema, esclarecendo a sua relevância para o processo literário.

Recursos expressivos SIGA p. 383

4. Explicita como se processa a fruição artística por parte desta nova entidade.

4. A fruição da obra de arte dá-se pela intelectualização da dor fingida do poeta, isto é, a «dor lida», cuja intensidade é expressa pelo advérbio «bem», é fruto da interpretação do leitor.

1 Fingidor (do latim): aquele

que modela, forma, representa, esculpe.

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Unidade 1 // FERNANDO PESSOA

PROFESSOR

5. a) – 2; b) – 3; c) – 1. 6. O ato de fingimento, de intelectualização, é de tal modo intenso e completo que a primeira dor (a dor sentida) deixa de o ser para se transformar numa dor elaborada intelectualmente (a dor fingida). Em suma, o poeta transmuta as emoções e experiências vividas no real para o plano do intelecto e das ideias, transformando-as em imagens poéticas, disponibilizadas para a fruição e interpretação dos leitores. 7. O conector adverbial «assim» apresenta um valor inferencial, conclusivo, procedendo-se, nesta estrofe, à sistematização da teoria da criação poética, a partir de uma sucessão de metáforas. O «coração», ligado à emoção, é «um comboio de corda», um brinquedo sem autonomia, que alimenta a razão, fornecendo-lhe matéria-prima para a criação. A razão condiciona o movimento desse «comboio», mantendo-o entretido e, ao mesmo tempo, disciplinado «nas calhas de roda». Deste modo, o fingimento poético, a criação artística, é a transformação intelectual da emoção, a matéria-prima do intelecto, em imagens poéticas, sendo o poema um produto da intelectualização. Gramática 1. a) Oração subordinada adjetiva relativa restritiva; b) Oração subordinada adjetiva relativa restritiva; c) Oração subordinada adverbial consecutiva. 2. a) Predicativo do sujeito; b) Modificador; c) Modificador restritivo do nome; d) Sujeito.

5. Considerando as «dores» referidas nas duas primeiras estrofes, estabelece as correspondências adequadas, relativamente ao processo de criação artística. Dores

Processo de criação artística

a) dor sentida

1. interpretação/fruição subjetiva.

b) dor fingida

2. experiência emocional, imprescindível à criação literária.

c) «dor lida» (v. 6)

3. intelectualização da experiência, filtragem da emoção espontânea.

6. Expõe, por palavras tuas, o processo de criação poética, na perspetiva de Fernando Pessoa.

O fingimento artístico p. 35

FI

7. Explicita o sentido da última estrofe enquanto conclusão do poema.

GRAMÁTICA

1. Classifica as orações destacadas nos seguintes versos:

Coordenação e SIGA subordinação pp. 373-374

a) «Não as duas que ele teve» (v. 7). b) «Mas só a que eles não têm» (v. 8). c) «Que chega a fingir que é dor» (v. 3).

Funções sintáticas SIGA pp. 372-373

2. Identifica a função sintática dos elementos destacados. a) b) c) d)

«O poeta é um fingidor» (v. 1) «Na dor lida sentem bem» (v. 6) «E assim nas calhas de roda» (v. 9) «Esse comboio de corda» (v. 11)

3. Estabelece as correspondências corretas entre os exemplos textuais da coluna A e os mecanismos de construção da coesão textual acionados na coluna B. A

Coesão textual SIGA pp. 377-378

B

3. a) – 4; b) – 1; c) – 2.

a) «Que chega a fingir que é dor / A dor que deveras sente» (vv. 3-4)

1. Coesão gramatical: interfrásica. 2. Coesão gramatical: referencial.

b) «E os que leem o que escreve» (v. 5)

3. Coesão gramatical: frásica. 4. Coesão lexical: reiteração.

c) «Mas só a que eles não têm» (v. 8)

5. Coesão lexical: substituição.

Poesia do ortónimo – O fingimento artístico

EDUCAÇÃO LITERÁRIA

Isto

5

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PROFESSOR

MC

CD 1 Faixa n.0 4

Gramática 17.1.

Dizem que finjo ou minto Tudo que escrevo. Não. Eu simplesmente sinto Com a imaginação. Não uso o coração.

10

Tudo o que sonho ou passo, O que me falha ou finda, É como que um terraço Sobre outra cousa ainda. Essa cousa é que é linda.

15

Por isso escrevo em meio Do que não está ao pé, Livre do meu enleio, Sério1 do que não é. Sentir? Sinta quem lê!

Esrita 10.1; 11.1; 12.1; 12.2; 12.3; 12.4; 12.6; 13.1.

Norberto Nunes, Dizem que finjo ou minto, 2011.

Fernando Pessoa, op. cit., p. 262. 1 Sério: certo.

1. O poema parece ser uma resposta a possíveis reações à teoria da criação poética expressa em «Autopsicografia». 1.1 Confirma esta hipótese com elementos textuais. 2. Explicita a dicotomia imaginação/emoção presente nos três últimos versos da primeira estrofe. 3. Comprova que o sujeito poético, na segunda estrofe, utiliza um recurso expressivo para desenvolver esta dicotomia e reforçar a sua teoria.

Recursos expressivos SIGA p. 383

4. Atenta nos quatro primeiros versos da última estrofe e explica como se processa o ato de criação artística. 5. Relaciona o sentido do último verso do poema com os papéis do poeta e do leitor. 6. Refere a relação estabelecida entre o título do poema e o seu conteúdo. 7. Caracteriza o texto poético quanto à estrofe, métrica e rima.

Educação Literária 14.2; 14.3; 14.4; 14.8; 14.9; 15.2; 15.3.

Educação Literária 1.1 Os dois primeiros versos confirmam esta hipótese – «Dizem que finjo ou minto / Tudo que escrevo»: o sujeito indeterminado («Dizem») sugere que houve reações (erróneas e negativas) à sua teoria poética apresentada em «Autopsicografia». A essas «críticas» responde com um incisivo «Não», passando, seguidamente, a esclarecer o motivo por que «fingir», no seu enquadramento teórico, não é «mentir». 2. O sujeito poético refuta a acusação de que é alvo, afirmando a sinceridade e espontaneidade do ato de criação poética («simplesmente»), ao sentir «com a imaginação», não usando «o coração». Reforça a ideia de que a criação poética implica, apenas, a emoção intelectualizada, a que foi filtrada pela inteligência, ou seja, as sensações/ emoções são somente matéria poética «em bruto», que devem ser, primeiro, ficcionadas/imaginadas e só posteriormente materializadas em poesia. 3. O sujeito poético compara as suas emoções (os seus anseios, vivências, insucessos, isto é, a realidade que vive e experiencia) a «um terraço», uma espécie de capa («Sobre outra cousa ainda»), sobre aquilo que considera ser perfeito e que o fascina: a poesia, o produto da intelectualização dessas emoções . 4. O sujeito poético conclui, argumentando que, ao escrever, se distancia da realidade, liberta-se «[d]o que […] está ao pé» (o mundo material, o «coração», as aparências, o «terraço»), pois está ciente de que a criação da obra de arte, aquilo que é realmente verdadeiro e belo, só se pode concretizar através deste distanciamento. 5. Através da interrogação retórica «Sentir?» e da exclamação «Sinta quem lê!», ambas de clara intenção irónica, o sujeito poético vem, uma vez mais, reforçar a sua teoria: o distanciamento do poeta do «coração» no ato de criação, pela intelectualização das sensações, introduzindo um novo interveniente, o leitor, a quem reserva as emoções suscitadas pela leitura do poema.

34

Unidade 1 // FERNANDO PESSOA

PROFESSOR

6. A teoria poética que apresenta, tudo aquilo que escreve e como escreve, pode resumir-se no pronome demonstrativo «Isto», que intitula o poema. 7. A composição poética é constituída por três quintilhas, apresenta versos hexassilábicos («Di/zem/ que/ fin/jo ou/ min/to»), com rima cruzada e emparelhada, segundo o esquema ababb. Gramática 1. Deíticos pessoais e temporais: «finjo», «minto», «escrevo», «sinto», «uso», «sonho», «passo», «escrevo» (referente: o momento do ato enunciativo); deíticos pessoais: os pronomes «eu» e «me» e o determinante possessivo «meu» (referente: sujeito poético). 2. Subordinada substantiva completiva e subordinada adjetiva relativa restritiva . Escrita Sugestão de resposta: 1.1 Podemos observar, como pano de fundo, o entrelaçamento de linhas, constituindo algumas formas geométricas. Predomina o tom pastel, com o qual elementos a vermelho, azul, verde e preto contrastam. Desta geometrização, sobressai a figura (a azul e verde) do poeta (tendo em conta o título da pintura), que parece ter um momento de criação poética, já que toma alguns apontamentos no seu bloco de notas. Podemos também ver, do seu lado direito, um gato verde e, do seu lado esquerdo, uma garrafa com líquido transparente. Em cima da mesa (a vermelho e pastel), está uma faca e um fruto cortado ao meio. • Simbolicamente, representa-se o momento da criação poética, de inspiração e de trabalho artístico – note-se, por exemplo, a separação da cabeça do resto do corpo, a sugerir que a mente se encontra noutro lugar diferente, no mundo da imaginação e da ficção. Veja-se, ainda, que a cabeça está ao contrário e o coração está desenhado no seu estômago, enfatizando a excecionalidade do poeta – não pensa e não sente como um comum mortal. • Há uma relação de semelhança, já que tanto a composição plástica como os poemas de Pessoa estudados refletem sobre o que é a poesia e ser poeta. Podemos estabelecer uma conexão entre o fingimento artístico pessoano e O Poeta – a cabeça ao contrário sugere a intelectualização e as emoções «fingidas»; o coração fora do seu lugar pode remeter para o facto de a emoção ser relegada para um segundo plano nesta teoria artística.

GRAMÁTICA

1. Identifica os deíticos presentes no poema e indica o respetivo referente.

Deixis SIGA p. 378

2. Classifica as orações subordinadas presentes na frase «Dizem que finjo ou minto / tudo que escrevo.» (vv. 1-2).

Coordenação e SIGA subordinação pp. 373-374

ESCRITA

Apreciação crítica SIGA pp. 362-363

Apreciação crítica 1. Observa com atenção a pintura.

Marc Chagall, O Poeta, 1911.

1.1 Prepara uma apreciação crítica, tendo em conta os seguintes tópicos: • descrição sucinta; • descrição simbólica; • relação com os poemas de Pessoa estudados; • comentário crítico. No final, faz a revisão do teu texto. Verifica a construção das frases, a clareza do discurso, as repetições desnecessárias e a utilização dos conectores.

Ficha informativa

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FICHA INFORMATIVA 1 O fingimento artístico

5

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PROFESSOR

A noção de fingimento desempenha, na obra de Fernando Pessoa, um importante papel. Acaba por se relacionar com a de heteronímia e está presente sob uma forma explícita em alguns poemas, nomeadamente Autopsicografia e Isto. Diga-se, desde já, que a leitura que se faça destes poemas não pode ser literal; há nela, porque de poesia se trata, uma deriva de sentidos que, no entanto, não é suficiente para que se não possa ver em tais poemas uma arte poética [...]. Há, pois, uma multiplicidade de linguagens poéticas que nem sempre foi devidamente valorizada nas críticas, sobretudo provenientes dos presencistas, que punham a questão da autenticidade ou da sinceridade do poeta. [...] Gaspar Simões irá pôr reservas a tais pontos de vista num texto que é publicado, em 1937 [...]. Aí não se recusa liminarmente a importância do fingimento na criação artística: «Que um artista saiba fingir o que não sente no momento em que se exprime, está certo. [...] Toda a expressão superior de um sentimento pressupõe em quem o exprime, e enquanto o exprime, capacidade de fingimento. [...] Não é no ato de sofrer que o artista melhor se exprime, mas depois, mais tarde, quando a dor se transformou já em experiência» [...]. O que está em questão é sobretudo isto: o fingimento, a insinceridade, o engano, a não-verdade revertem para a obra de arte onde são postos entre parênteses ou suspensos ao visar-se uma objetividade capaz de anular derivas de natureza puramente subjetiva – «o artista não exprime as suas emoções» –, o que é conseguido pela opção por uma «literatura dramática», a qual, podendo decorrer da heteronímia, há de, em qualquer caso, conduzir a expressão verbal a essa objetividade que, de acordo com as poéticas da modernidade, é assumida na própria realização do poema. Fernando Guimarães, «Fingimento», in Fernando Cabral Martins (coord.), Dicionário de Fernando Pessoa e do Modernismo Português, Alfragide, Editorial Caminho, 2008, pp. 284-286.

CONSOLIDA

1. Elabora tópicos que sistematizem as ideias-chave do texto, organizando-os sequencialmente.

Fernando Pessoa na Baixa de Lisboa.

MC

Leitura 7.1; 7.3; 7.4; 8.1; 9.1.

Consolida Sugestão de tópicos: • A noção de fingimento possui um importante papel na poética de Pessoa, tanto na questão da heteronímia, como de forma explícita em poemas como «Autopsicografia» e «Isto», que constituem o delinear de uma arte poética. • Gaspar Simões afirma que uma expressão de arte superior pressupõe capacidade de fingimento; não é emotivamente que o artista melhor se exprime, mas quando a dor já se transformou em experiência. • Na modernidade, a obra de arte deve expressar-se com objetividade e obliterar conjeturas meramente subjetivas.

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Unidade 1 // FERNANDO PESSOA

PROFESSOR

MC

Educação Literária 14.1; 14.2; 14.3; 14.4; 14.8; 14.9; 15.3. Gramática 17.1.

A dor de pensar PONTO DE PARTIDA

1. Observa atentamente a pintura do pintor português Silva Porto. 1.1 Refere-te ao ambiente retratado e aos sentimentos que te suscita.

Ponto de Partida 1.1 Retrata-se um ambiente rural, de trabalho agrícola, no feminino. Apesar de representar uma lida do campo, este ambiente suscita tranquilidade, calma e serenidade. Educação Literária 1. A primeira parte (estrofes 1 a 3) centra-se num elemento exterior: a «ceifeira» e o seu «canto», procedendo-se à descrição de ambos; a segunda parte (estrofes 4 a 6), apresenta uma reflexão do sujeito poético, suscitada por essa focalização, com a expressão dos seus sentimentos e emoções. 2. O sujeito poético, apesar de partir da focalização objetiva no «canto» da «ceifeira» enquanto trabalha, caracteriza esta mulher através do adjetivo «pobre», apresentando, de seguida, uma possível explicação para o seu «canto»: «Julgando-se feliz talvez.» Esta aparente felicidade perpassa na sua voz «alegre», porém, o sujeito perceciona na mesma uma «anónima viuvez», ou seja, uma existência marcada pela perda, pela solidão. 3. A antítese «alegra e entristece» expressa os sentimentos antagónicos que a voz da ceifeira desperta no sujeito poético. Por um lado, «alegra», por vê-la feliz, em plena harmonia com a natureza; por outro, «entristece» porque está desenquadrado da realidade – das duras condições de vida do campo, das quais a «ceifeira» não tem consciência, pois, se tivesse, não encontraria motivos para cantar. 4. O contraste ocorre na forma como ambos percecionam a vida: a «ceifeira», julgando-se feliz, «canta sem razão», isto é, não revela ter consciência da sua difícil condição; o sujeito poético, pelo contrário, tem consciência de que não consegue sentir sem pensar, sem intelectualizar as suas emoções.

Silva Porto, Colheita – Ceifeiras, 1893.

EDUCAÇÃO LITERÁRIA

Ela canta, pobre ceifeira, Julgando-se feliz talvez; Canta, e ceifa, e a sua voz, cheia De alegre e anónima viuvez, 5

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Ondula como um canto de ave No ar limpo como um limiar, E há curvas no enredo suave Do som que ela tem a cantar. Ouvi-la alegra e entristece, Na sua voz há o campo e a lida, E canta como se tivesse Mais razões p’ra cantar que a vida.

CD 1 Faixa n.0 5

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Ah, canta, canta sem razão! O que em mim sente ‘stá pensando. Derrama no meu coração A tua incerta voz ondeando! Ah, poder ser tu, sendo eu! Ter a tua alegre inconsciência, E a consciência disso! Ó céu! Ó campo! Ó canção! A ciência Pesa tanto e a vida é tão breve! Entrai por mim dentro! Tornai Minha alma a vossa sombra leve! Depois, levando-me, passai! Fernando Pessoa, op. cit., p. 171.

Poesia do ortónimo – A dor de pensar

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1. Divide o poema em duas partes, sintetizando as ideias de cada uma delas. PROFESSOR

2. Demonstra que a descrição inicial da «ceifeira» e do seu canto é predominantemente subjetiva. 3. Explica os sentimentos que o canto da personagem desperta no sujeito poético, tendo em conta o recurso expressivo presente no verso 9.

Recursos expressivos SIGA p. 383

4. Esclarece o contraste estabelecido entre o sujeito poético e a «ceifeira» nos dois primeiros versos da quarta estrofe. 5. Relaciona a aspiração paradoxal do sujeito poético com a temática da dor de pensar presente na quarta estrofe. 6. Explicita o uso das apóstrofes nos versos 19 e 20, relacionando-o com os desejos expressos pelo sujeito poético.

FI

A dor de pensar p. 39

Recursos expressivos SIGA p. 383

7. Caracteriza o texto poético quanto à estrofe, métrica e rima.

GRAMÁTICA

1. Identifica o modo verbal em «Entrai» (v. 22), «Tornai» (v. 22), «passai» (v. 24), associanClasses e subclasses do-o ao estado de espírito do sujeito poético. SIGA 1.1 Aponta o(s) sujeito(s) dessas formas verbais e classifica-o(s).

de palavras pp. 368-371

2. Classifica as orações destacadas: a) b) c) d)

«Canta, e ceifa […]» (v. 3). «Ondula como um canto de ave» (v. 5). «Do som que ela tem a cantar» (v. 8). «O que em mim sente ‘stá pensando» (v. 14).

Coordenação e SIGA subordinação pp. 373-374

3. Completa a tabela, indicando a função sintática de cada segmento destacado nas alíneas. Segmento a) «Ela canta, pobre ceifeira,» (v. 1). b) «[…] e a sua voz, cheia / De alegre e anónima viuvez» (vv. 3-4). c) «De alegre e anónima viuvez» (v. 4). d) «[…] no enredo suave / Do som que ela tem a cantar» (vv. 7-8). e) «Derrama no meu coração» (v.15). f) «Tornai / Minha alma a vossa sombra leve» (vv. 22-23).

Funções sintáticas SIGA pp. 372-373

Função sintática

5. A aspiração do sujeito poético, presente nos versos «Ah, poder ser tu, sendo eu! / Ter a tua alegre inconsciência, / E a consciência disso!», encerra um paradoxo, pois deseja ter a inconsciência da ceifeira, por esta ser feliz ao não pensar, tendo consciência disso. 6. As sucessivas apóstrofes, dirigidas a elementos da Natureza, exprimem o desejo de ser «contagiado» por aquele contexto simples e harmonioso do campo, pela simplicidade primordial, o que o conduziria à paz de espírito e à felicidade de que se vê privado pela sua hiperlucidez. 7. Esta composição poética é constituída por seis quadras, apresenta versos de oito sílabas. Quanto à rima, é cruzada segundo o esquema rimático abab. Gramática 1. A 2.a pessoa do plural, «vós», corresponde aos elementos da Natureza evocados – «céu»; «campo» e «canção»; sujeito subentendido. 2. a) Coordenada copulativa; b) Subordinada adverbial comparativa; c) Subordinada adjetiva relativa restritiva; d) Subordinada substantiva relativa sem antecedente. 3. a) Modificador apositivo do nome; b) Complemento do adjetivo; c) Modificador restritivo do nome; d) Complemento do nome; e) Complemento oblíquo; f) Predicativo do complemento direto.

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Unidade 1 // FERNANDO PESSOA

EDUCAÇÃO LITERÁRIA

PROFESSOR

MC

Educação Literária 14.2; 14.3; 14.4; 14.5; 14.8; 14.9; 15.3; 15.7.

Gato que brincas na rua Como se fosse na cama, Invejo a sorte que é tua Porque nem sorte se chama.

Gramática 17.1; 18.2. Escrita 10.1; 11.1; 12.1; 12.2; 12.3; 12.4; 13.1.

5

Educação Literária 1. A comparação enfatiza o à-vontade e o conforto que o «gato» sente na rua, a sua casa. 2. O sujeito poético sente inveja da «sorte» do «gato» – da sua liberdade, felicidade, desejando ter a sua irracionalidade. O verso sublinha essa ausência de intelecto no «gato»: só o facto de atribuirmos um nome ou fazermos um juízo acerca de uma realidade pressupõe o uso do pensamento, capacidade que o gato não possui, logo «nem sorte se chama». 3. O «gato» rege-se por «leis fatais», tem «instintos gerais» e apenas usa os sentidos («E sentes só o que sentes.»). Assim, anda ao sabor do destino, orienta-se pelos seus instintos, sem intervenção da razão. 4. O «gato» é «feliz» porque é inconsciente e irracional – «Todo o nada que és é teu.». O sujeito poético, devido à sua racionalidade e introspeção («Eu vejo-me»; «Conheço-me») mostra-se fragmentado, despersonalizado, revelando angústia, infelicidade e sofrimento. O pensamento provoca dor e angústia, daí a inveja da vida do gato e o desejo de se evadir de si próprio. Gramática 1. «que brincas na rua»: oração subordinada adjetiva relativa restritiva; «Como se fosse na cama»: oração subordinada adverbial comparativa. 2. Todos são deíticos pessoais; as formas flexionadas de 2.a e 1.a pessoas, respetivamente, «eu» e «sou», são também deíticos temporais. O referente de a) é o «gato»; o de b) é o sujeito poético. 3. Coesão gramatical referencial. Escrita ▪ Link Estória do Gato e da lua, Pedro Serrazina

CD 1 Faixa n.0 6

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Bom servo das leis fatais Que regem pedras e gentes, Que tens instintos gerais E sentes só o que sentes. És feliz porque és assim, Todo o nada que és é teu. Eu vejo-me e estou sem mim, Conheço-me e não sou eu.

Pierre Bonnard, Gatos no Corrimão, 1909.

Fernando Pessoa, op. cit., p. 234.

1. Esclarece o valor expressivo da comparação nos dois primeiros versos do poema. 2. Identifica o sentimento suscitado pelo «gato» no sujeito poético, relacionando-o com o verso «Porque nem sorte se chama» (v. 4). 3. Explicita as regras de conduta pelas quais o «gato» se rege. 4. Explica o contraste entre o gato e o sujeito poético presentes na última estrofe, relacionando-o com a temática do poema.

GRAMÁTICA

1. Divide e classifica as orações presentes nos dois primeiros versos do poema.

Coordenação e SIGA subordinação pp. 373-374

2. Classifica os deíticos destacados e indica os seus referentes.

Deixis SIGA p. 378

a) «Todo o nada que és é teu» (v. 10). b) «Conheço-me e não sou eu» (v. 12). 3. Indica o mecanismo de coesão em «Eu vejo-me e estou sem mim» (v. 11).

ESCRITA

Coesão textual SIGA pp. 377-378

Texto de opinião SIGA pp. 364-365

Texto de opinião 1. A partir do visionamento da curta-metragem Estória do Gato e da Lua, redige um texto de opinião, exprimindo o teu ponto de vista sobre a importância da razão e da emoção na vida humana. Planifica, redige e revê cuidadosamente o teu texto. Estória do Gato e da Lua (1997) REAL. Pedro Serrazina

Ficha informativa

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FICHA INFORMATIVA 2 A dor de pensar

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PROFESSOR

Vocacionado para o exercício exaustivo de uma inteligência esquadrinhadora1 que, na clausura do eu, é vizinha impotente do caos obscuro da vida, e cuja presença vigilante se manifesta até quando a intuição ou a imaginação poéticas alcançam a sua hora, [Fernando Pessoa] experimentou, a par do orgulho de conhecer afirmando-se contra a voragem2, a pena mais frequente de lhe ser inacessível a felicidade dos que não conhecem. O privilégio de uma extraordinária lucidez paga-se caro. Quando mais humano mais desumano. [...] Pessoa padeceu dramaticamente o suplício da sua grandeza: «o emprego excessivo e absorvente da inteligência – diz ele na carta a Cabral Metello publicada na Contemporânea em fevereiro de 1923 –, o abuso da sinceridade, o escrúpulo da justiça, a preocupação da análise, que nada aceita como se pudesse ser o que se mostra, são qualidades que um dia poderão tornar-me notável; privam, porém, de toda a espécie de elegância porque não permitem nenhuma ilusão de felicidade». Pessoa e os heterónimos são unânimes em exprimir a nostalgia do estado de inconsciência, a nostalgia do en-soi 3, diria Sartre. [...] [O] tema é a cada passo retomado na poesia ortónima: «Doo-me até onde penso, / E a dor é já de pensar…». Não vale mais o bem-estar físico do gato que brinca, obediente às leis universais do instinto? Para quê essa cruel trituração mental que não conduz a nada? «Eu vejo-me e estou sem mim, / Conheço-me e não sou eu». [...] Um dos mais belos poemas ortónimos, «Ela canta, pobre ceifeira…», inclui a aspiração à vida instintiva. O poeta dirige-se à ceifeira, enfeitiçado pelo seu cantar: «Ah, poder ser tu, sendo eu! / Ter a tua alegre inconsciência / E a consciência disso!...» Mas aqui o poeta reconsidera, quer e não quer; formula a ambição impossível (e o sabê-lo impossível contagia de tristeza o canto da ceifeira) de ser conscientemente inconsciente. É que, se bem ponderarmos, «aquela alegria / que as coisas têm de fora» não passa de uma alegria acrescentada, por nós atribuída às coisas, por nós experimentada em seu nome graças à imaginação. Ser inconsciente é não ser [...]. Pessoa [...] oscila perplexo entre o horror de pensar e o horror da morte absoluta.

MC

Leitura 7.2; 7.3; 8.1.

Consolida 1. a) «[Fernando Pessoa] experimentou, a par do orgulho de conhecer afirmando-se contra a voragem, a pena mais frequente de lhe ser inacessível a felicidade dos que não conhecem.», ll. 4-6. b) «Pessoa e os heterónimos são unânimes em exprimir a nostalgia do estado de insconsciência, a nostalgia do en-soi, diria Sartre.» ll. 13-14. c) «Não vale mais o bem-estar físico do gato que brinca, obediente às leis universais do instinto? Para quê essa cruel trituração mental que não conduz a nada?», ll. 16-18. d) «Ser inconsciente é não ser [...]. Pessoa [...] oscila perplexo entre o horror de pensar e o horror da morte absoluta.», ll. 26-27.

1 Esquadrinhadora: que in-

vestiga os pormenores. 2 Voragem: atração para o

abismo.

Jacinto do Prado Coelho, Unidade e Diversidade em Fernando Pessoa, 8.ª ed., Lisboa, Editorial Verbo, 1985, pp. 97-101.

CONSOLIDA

1. Transcreve os passos do texto que comprovam a veracidade das seguintes afirmações: a) A utilização intensiva e constante da inteligência tem efeitos paradoxais no sujeito poético. b) A saudade de um estado não-pensante é comum ao ortónimo e aos heterónimos. c) A dor de pensar conduz ao desejo de ser inconsciente. d) O pensamento e a dor inerente são aspetos incontornáveis da vida humana.

3 En-soi: em si mesma.

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Unidade 1 // FERNANDO PESSOA

Sonho e realidade

PROFESSOR

MC

Oralidade 1.1; 1.3; 1.4; 2.1; 3.1; 5.1; 5.2; 5.3; 6.1; 6.2; 6.3.

PONTO DE PARTIDA

1. A partir do visionamento do trailer do filme A Origem, caracteriza o mundo onírico (mundo dos sonhos) aí apresentado.

Educação Literária 14.1; 14.2; 14.3; 14.4; 14.6; 14.8; 14.9; 15.3. Gramática 17.1. Ponto de Partida

EDUCAÇÃO LITERÁRIA ▪ Vídeo Trailer do filme A Origem

Texto A

1. O mundo onírico situa-se no subconsciente, os sonhos parecem-nos verdadeiros, enquanto sonhamos; apenas o acordar revela a sua estranheza. 5

Educação Literária 1. Primeira parte – estrofes 1 e 2: a possibilidade de alcançar a felicidade através do sonho; segunda parte – estrofe 3: o desalento provocado pela consciência da impossibilidade de alcançar a felicidade no sonho; terceira parte – estrofe 4: a certeza de que é no nosso íntimo, e não no sonho, que podemos alcançar a felicidade. 1.1 As expressões caracterizadoras do sonho – «terra de suavidade», «ilha extrema do sul», «palmares», «Áleas longínquas», «sombra ou sossego» – simbolizam um mundo oposto ao do quotidiano, sendo um lugar-comum para a representação de uma felicidade plena. 2. Na primeira estrofe, os dois últimos versos referem-se à possibilidade de existência de uma ilha ansiada, esquecida entre o sonho e a realidade, onde reina a felicidade («A vida é jovem e o amor sorri.»); na segunda estrofe, reforça-se a incerteza acerca da vivência dessa felicidade («Felizes, nós? Ah, talvez, talvez […]»); a terceira estrofe desfaz a dúvida – o facto de se pensar na «ilha» destrói o seu caráter idílico, introduzindo-se o caráter efémero do «bem» («O mal não cessa, não dura o bem.»); a última estrofe sugere que procuremos a felicidade no nosso íntimo, sendo que o advérbio «ali» já não se refere à «ilha», como na estrofe inicial, mas a «em nós». Apesar da evidente circularidade, há uma progressão do pensamento poético – de uma felicidade sonhada, dá-se o confronto com a realidade, concluindo-se que a felicidade está no interior de cada um e não na ilusão do sonho.

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CD 1 Faixa n.0 7

Não sei se é sonho, se realidade, Se uma mistura de sonho e vida, Aquela terra de suavidade Que na ilha extrema do sul se olvida. É a que ansiamos. Ali, ali A vida é jovem e o amor sorri. Talvez palmares inexistentes, Áleas longínquas sem poder ser, Sombra ou sossego deem aos crentes De que essa terra se pode ter. Felizes, nós? Ah, talvez, talvez, Naquela terra, daquela vez. Mas já sonhada se desvirtua, Só de pensá-la cansou pensar, Sob os palmares, à luz da lua, Sente-se o frio de haver luar. Ah, nesta terra também, também O mal não cessa, não dura o bem. Não é com ilhas do fim do mundo, Nem com palmares de sonho ou não, Que cura a alma seu mal profundo, Que o bem nos entra no coração. É em nós que é tudo. É ali, ali, Que a vida é jovem e o amor sorri.

A Origem (2010) REAL. Christopher Nolan

Texto B

CD 1 Faixa n.0 8

Toda beleza é um sonho, inda que exista. Porque a beleza é sempre mais do que é. Toda beleza vista Não está de mim ao pé. 5

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Dista de mim o que em ti vejo, mora Onde sonho. Se existes, não o sei Senão porque é agora Aquilo que sonhei. A beleza é uma música que, ouvida Em sonhos, para a vida transbordou. Mas não é bem a vida: É a vida que sonhou. Fernando Pessoa, op. cit., p. 290.

Fernando Pessoa, op. cit., p. 268.

1. Procede à divisão do Texto A em partes lógicas e apresenta uma frase-síntese para cada uma delas. 1.1 Transcreve as expressões que caracterizam simbolicamente o sonho e explicita o seu sentido.

Poesia do ortónimo – Sonho e realidade

2. Comenta o contributo dos dois últimos versos de cada estrofe do Texto A para o desenvolvimento temático do poema. 3. Tendo em conta a importância do sonho na poética modernista, explicita o sentido da última estrofe do Texto B. 4. Identifica os recursos expressivos presentes nos seguintes versos. a) b) c) d)

Recursos expressivos SIGA p. 383

«A vida é jovem e o amor sorri.» (Texto A, v. 6) «Felizes, nós?» (Texto A, v. 11) «O mal não cessa, não dura o bem.» (Texto A, v. 18) «Que cura a alma [...], / Que o bem nos entra no coração.» (Texto A, vv. 21-22)

4.1. Explica o valor expressivo da alínea a). 5. Compara o conceito de sonho presente nos dois poemas, nas suas semelhanças e nas suas diferenças.

FI

Sonho e realidade p. 42

GRAMÁTICA

1. Identifica as funções sintáticas desempenhadas pelos constituintes destacados. a) «Sombra ou sossego deem aos crentes» (Texto A, v. 9). b) «Só de pensá-la cansou pensar» (Texto A, v. 14). c) «A beleza é uma música» (Texto B, v. 9). d) «para a vida transbordou» (Texto B, v. 10).

ORALIDADE

Funções sintáticas SIGA pp. 372-373

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PROFESSOR

3. Na poética modernista, há uma transmutação entre sonho e vida: o sonho transporta-se para a vida e a vida transforma-se em sonho («A beleza é uma música que, ouvida / Em sonhos, para a vida transbordou»). Essa realidade híbrida, para os modernistas, é a essência da Arte. Assim, alcança-se a beleza numa «vida que sonhou», isto é, através da criação artística. 4. a) Personificação; b) Interrogação retórica; c) Antítese; d) Anáfora. 4.1. A personificação enfatiza os contornos idílicos da ilha do sul onde há juventude (eterna) e o amor acontece (contrariando a solidão). 5. O Texto B apresenta o sonho como o ideal a alcançar, a procura da perfeição, que somente nele terá a sua concretização, contrariamente ao que é exposto no Texto A, em que o sonho surge como evasão da realidade, como busca da felicidade. Contudo, verifica-se uma relação de semelhança ao apontar-se o nosso interior, o nosso íntimo, como o único espaço onde é possível a materialização da felicidade e do ideal de perfeição. Gramática 1. a) Complemento direto; complemento indireto; b) Complemento direto; c) Predicativo do sujeito; d) Modificador.

EXPRESSÃO ORAL

Oralidade

Texto de opinião 1. A partir da análise da pintura de Salvador Dalí, O Sono, prepara uma intervenção oral, de quatro a seis minutos, na qual exprimas o teu ponto de vista sobre os seguintes tópicos: • representação da dicotomia realidade-sono/sonho; • relação com os dois poemas estudados;

Texto de opinião SIGA pp. 364-365

• importância do mundo do sonho.

Salvador Dalí, O Sono, 1937.

▪ PowerPoint Proposta de correção da atividade de Oralidade Sugestão de resposta: • A representação da dicotomia realidade-sonho é conseguida através de uma cabeça grande e lassa, sem corpo, que assume a personificação do sono/ sonho. Essa cabeça está apoiada em muletas, que amparam o colapso do ser durante o sono. A imagem apresenta como cenário onírico um céu azul, com elementos desconexos da realidade – um casario, um bote –, tal como é típico dos sonhos. Destaque-se ainda a fragilidade do sono/sonho, sustentado por muletas, que, a qualquer momento, poderão entrar em desequilíbrio. • Além da temática comum (o sonho), os dois poemas estudados e a pintura representam a realidade e o sonho como sendo quase contíguos; a fronteira entre os dois mundos é muito ténue. • Durante o sono e o sonho, o ser humano é mais facilmente dominado pelo seu inconsciente, tudo é possível de ser realizado; vivemos aventuras e experiências únicas. No entanto, não passam de vivências sonhadas, não são reais.

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Unidade 1 // FERNANDO PESSOA

FICHA INFORMATIVA 3 Sonho e realidade

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Lê-se num apontamento de 1913: «Quem quisesse resumir numa palavra a característica principal da arte moderna encontrá-la-ia, perfeitamente, na palavra sonho. A arte moderna é arte de sonho. […] O maior poeta da época moderna será o que tiver mais capacidade de sonho»*. De qualquer modo, o sonho é determinante no tempo da Vanguarda, que é o tempo da Revolução: ele é a materialização da utopia1 como ideia. O messianismo2, o nacionalismo místico3 sebastianista que encontramos em Pessoa ou em Pascoaes são outros modos de exemplificar a centralidade do sonho. Escreve José Gil esta síntese: «Sendo um processo para recriar, no plano artístico, uma outra forma de vida, o sonho surge como uma experimentação. Não como uma experimentação da (ou sobre a) vida, mas antes como uma vida tornada experimental; simultaneamente, a vida real transforma-se em experimentação sonhada: a vida transmuta-se4 em sonho e o sonho em vida, tal como a sensação se torna ideia e a ideia emoção.»** […] Trata-se, pois, de um sonho que não é apenas sonho, mas uma realidade nova. […] O sonho vem ocupar o lugar da realidade, ele é o real absoluto. […] Se os sonhos são a matéria de que a arte se faz, eles mesmos são feitos de fragmentos da vida. Tal como a arte é montagem de sonhos, os sonhos são montagem de imagens da experiência vivida. Os conceitos de sonho e de arte tornam-se intermutáveis5.

Pierre Bonnard, Vista do Porto de Saint-Tropez, 1911.

Fernando Cabral Martins, Introdução ao Estudo de Fernando Pessoa, Lisboa, Assírio & Alvim, 2014, pp. 75-80.

1 Utopia: esperança irrealizável. 2 Messianismo: crença na vinda/

retorno de uma entidade enviada por um ser superior, que virá libertar a Humanidade ou um povo subjugado. 3 Místico: superior, divino, sagrado. 4 Transmuta-se: converte-se, transforma-se. 5 Intermutáveis: que se podem substituir reciprocamente.

* Jacinto do Prado Coelho e Georg

** José Gil, Fernando Pessoa ou a Meta-

Rudolf Lind (eds.), Páginas de Estética e de Teoria e Crítica Literárias, Lisboa, Ática, 1966, pp. 153 e 157.

física das Sensações, Lisboa, Relógio d’Água, 1987, p. 146.

CONSOLIDA

1. Para responderes aos itens de 1.1 a 1.4, seleciona a única opção correta, de acordo com o texto. 1.1 O sonho é a concretização (A) da Vanguarda e da Revolução. (B) da ideia como utopia.

(C) da utopia como ideia. (D) da arte experimentada.

PROFESSOR

MC

Leitura 7.1; 7.3; 8.1.

Consolida 1.1 (C). 1.2 (A). 1.3 (B).

1.2 O mundo do sonho torna-se (A) no real absoluto. (B) na experimentação sonhada.

(C) no real sonhado. (D) no sonho concretizado.

1.3 Na arte moderna, os conceitos de arte e sonho são (A) intransponíveis. (B) transmutáveis.

(C) intermédios. (D) intertextuais.

Poesia do ortónimo – A nostalgia da infância

A nostalgia da infância

PROFESSOR

MC

PONTO DE PARTIDA

Oralidade 1.1; 1.3. Educação Literária 14.1; 14.2; 14.3; 14.4; 14.6; 14.8.

1. A partir do visionamento do trailer do filme Os Coristas, partilha com os colegas o teu ponto de vista sobre a infância enquanto momento único na vida do ser humano.

EDUCAÇÃO LITERÁRIA

43

Os Coristas (2004) REAL. Christophe Barratier

Ponto de Partida

▪ Vídeo Trailer do filme Os Coristas

CD 1 Faixa n.0 9

1. Geralmente, a infância é considerada o momento mais feliz da nossa existência. No entanto, sabemos que há infâncias muito pouco felizes, condicionadas pelas circunstâncias adversas em que vivem, como é o caso da infância dos meninos deste filme, órfãos de guerra. Educação Literária

Pobre velha música! Não sei por que agrado, Enche-se de lágrimas Meu olhar parado. 5

10

Edvard Munch, Rua em Åsgårdstrand (pormenor), 1902.

Recordo outro ouvir-te. Não sei se te ouvi Nessa minha infância Que me lembra em ti. Com que ânsia tão raiva Quero aquele outrora! E eu era feliz? Não sei: Fui-o outrora agora. Fernando Pessoa, op. cit., p. 169.

1. Divide a composição poética em partes lógicas, indicando um título sugestivo para cada uma delas. 2. Identifica o estímulo sensorial presente na primeira estrofe e explicita os seus efeitos no sujeito poético. 3. Procede ao levantamento das expressões de dúvida que percorrem o poema, relacionando-as com o estado de espírito do eu lírico. 4. Apresenta uma interpretação plausível para o último verso, tendo em conta a mensagem global do poema.

1. O poema divide-se em três partes lógicas, correspondendo cada uma delas a uma estrofe. Possíveis títulos: primeira parte: sentimento de nostalgia suscitado pela música; segunda parte: recordação vaga e indefinida da infância; terceira parte: desejo de regresso ao passado, causado pelo estímulo musical. 2. O estímulo sensorial é auditivo e tem o efeito de emocionar o sujeito poético. Tal perturbação emocional e nostalgia devem-se ao facto de a música lhe suscitar recordações do tempo da sua infância. 3. As expressões de dúvida são: «Não sei por que» (v. 2), «E eu era feliz?» (v. 11) e «Não sei» (v. 6), que remetem para um estado de espírito de incerteza do sujeito lírico, nomeadamente, acerca dos motivos da sua emoção, no primeiro exemplo, e, nos restantes, acerca da realidade/verdade dessa felicidade na infância. 4. Apesar da incerteza de ter vivido uma infância feliz (devido à memória vaga desse tempo e, possivelmente, por essa felicidade ser apenas imaginada), o som da música tem o dom de o tornar feliz, no presente, «Fui-o outrora agora.» (v. 12). Da associação entre o «outrora» e o «agora», vivenciados em simultâneo, resulta a expressão da felicidade possível – a que permanece na memória e é presentificada através da melodia da canção.

44

Unidade 1 // FERNANDO PESSOA

FICHA INFORMATIVA 4 A nostalgia da infância

PROFESSOR

MC

Leitura 7.1; 7.3; 8.1.

Pablo Picasso, Mãe e Filho (pormenor), 1902.

1 2 3 4 5

Vera: verdadeira, genuína. Intrauterina: dentro do útero. Ventura: alegria, felicidade. Inefável: encantador. Retrotraía: recuava.

30

A saudade da infância, verdadeiro paraíso perdido, sentimento psicológico que sedimentaria a sua vera 1 personalidade, fora, ao mesmo tempo, a semente que fizera germinar a sua personalidade de artista. Podia a sua razão ter-lhe ministrado a ciência engenhosa de um ocultismo ao mesmo tempo inerente à sua primitiva 5 natureza de poeta e construção da sua amorosa identidade com o mistério. […] No seu fado estava ter sido feliz numa parte da sua vida que vizinhava diretamente com o inconsciente de onde provinha. Entre o nascimento e a consciência há uma zona intermédia em que, vivo, o ser humano ainda não pertence a este mundo: anos decorrem de vida já não intrauterina2, mas sub10 consciente no pleno sentido da expressão. É nesse período indeterminado da existência – a primeira infância – que se forma nos sedimentos celulares da personalidade ante-humana o tecido espiritual de que a consciência do adulto será revestida. Foi aí que Fernando Pessoa conheceu sem conhecer a felicidade do paraíso terrestre, a ventura3 de viver como se não soubesse 15 que vivia. E, assim, quando um dia se descobriu consciente, logo sentiu que a consciência era a grande dor da sua vida. E foi então que se gerou nele a saudade indefinida de uma ventura passada, ao mesmo tempo terrena e celeste, terrena porque havia no subconsciente da sua memória o vinco temporal que a própria vida nele fizera, celeste porque, sendo remota, e 4 5 20 indeterminada, e inefável , naturalmente se retrotraía a uma época anterior à do seu próprio nascimento. Profundamente entranhada na sua vida, a poesia em que Fernando Pessoa exprimiu a nostalgia desse bem perdido não representa, pois, o engenhoso traduzir em formas verbais de uma conceção do mundo mais ou menos habilmente elaborada. […] Se alguma coisa há 25 de premeditado na sua obra – não é o sentimento de que provinha de uma outra pátria e que nesta fora um desterrado saudoso da felicidade que nesse remoto paraíso conhecera. Aliás, se bem estudarmos a poesia dos grandes poetas em cuja obra há alguma coisa mais que fugitiva emoção carnal – lá encontraremos, em todos eles, esse mesmo sentimento indefinido, essa mesma nostalgia de um paraíso perdido. […] Tem toda ela uma origem comum: o primitivismo de que brota a própria inspiração em que se gera. João Gaspar Simões, Fernando Pessoa: Ensaio Interpretativo da sua Vida e da sua Obra, Alfragide, Texto Editores, 2010, pp. 86-87.

Consolida 1. a) V. b) F. É a saudade de ter sido inconscientemente feliz que conduz à nostalgia da infância; c) F. A ideia de um paraíso perdido não é caso único na literatura, os grandes autores evidenciam essa mesma temática.

CONSOLIDA

1. Classifica as afirmações que se seguem como verdadeiras (V) ou falsas (F). Corrige as afirmações falsas. a) Os conceitos de felicidade e de inconsciência estão interligados na poética de Fernando Pessoa. b) É a saudade de ter sido conscientemente feliz que conduz à nostalgia da infância. c) A ideia de um paraíso perdido em Fernando Pessoa é caso único na literatura.

Ficha informativa

45

FICHA INFORMATIVA 5 Linguagem, estilo e estrutura

5

PROFESSOR

[Fernando Pessoa] tinha o seu laboratório de linguagem. [...] Era realmente dentro dele que se produzia a obra, que se aceleravam os mecanismos que acompanham a produção de palavras, de metáforas, de versos, de poemas. [...] Numa quantidade enorme de poemas, o questionamento acerca do sentir, acerca do movimento de construção da linguagem poética, acerca do ato de escrever no momento em que este se desencadeia, acerca do pensamento e da experiência, e da experiência do pensamento, acerca da realidade «esculpida» e criada pela palavra poética e acerca da realidade dita por certa sensação, não traça apenas os contornos dos «temas», mas oferece-se também como matéria sensível da língua trabalhada. José Gil, «O laboratório poético», in Carlos Reis e António Apolinário Lourenço (coord.), História Crítica da Literatura Portuguesa, Lisboa, Editorial Verbo, 2015, pp. 144-145.

5

10

15

Nos seus poemas, sempre rimados, Pessoa prefere em regra o verso curto de número de sílabas par ou ímpar, e a concisão da quadra ou da quintilha; alia assim a leveza da forma à subtil densidade do pensamento. O caráter alado1 destes poemas postula2 ao mesmo tempo uma linguagem selecionada mas simples, com vocábulos de cariz romântico ou simbolista mas um núcleo de palavras nuas e correntes que o poeta habilmente rejuvenesce e enche de sentido. A sua grandeza consiste em atingir os efeitos estéticos mais penetrantes com um mínimo de estímulos, extrema economia de meios. São certas palavras, certos símbolos que sugerem aqui o inefável, a magia das visões ou a indecisão dos sentimentos […]. Mas a expressão é límpida, a sintaxe sem pregas obscuras. Clássico pela constância e universalidade dos temas, pela severa redução do real ao não-real, que é a realidade que fica, Pessoa é-o igualmente pela sobriedade translúcida, pela facilidade aparente […], pela discrição dos sentimentos mentalizados ou já de raiz intelectual, de qualquer modo serenados, clarificados, contidos. Jacinto do Prado Coelho, Unidade e Diversidade em Fernando Pessoa, 8.ª ed., Lisboa, Editorial Verbo, 1985, pp. 42, 43, 129, 130.

Juan Gris, Homem no Café, 1912.

CONSOLIDA

1. Com base nos textos que acabaste de ler, corrige as afirmações incorretas. a) No conjunto da poesia pessoana, a construção da linguagem poética torna-se matéria temática e reflexão sobre a própria língua «esculpida». b) A poética do ortónimo conjuga uma forma complexa com um conteúdo simples. c) A realidade que permanece resulta da universalidade dos temas.

MC

Leitura 7.1; 7.3; 8.1.

Consolida 1. b) A poética do ortónimo conjuga uma forma simples com um conteúdo complexo; c) A realidade que permanece resulta da «redução do real ao não-real».

1 Alado: leve, arejado. 2 Postula: requer.

46

Unidade 1 // FERNANDO PESSOA

LEITURA

PROFESSOR

MC

Leitura 7.1; 7.2; 7.3; 7.4; 7.7.

Apreciação crítica

Um mapa para os caminhos de Fernando Pessoa 25

30

Adolfo Rodríguez Castañé, Retrato de Fernando Pessoa, 1912.

5

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Parece que, em certa tarde passada na Brasileira, Fernando Pessoa terá esboçado em linguagem de matemático, entre gráficos e quejandos1, um «Intersecionismo explicado aos Inferiores». […] Faltará, a estas poucas linhas, a dimensão do génio, pois que assim também o livro de Pierre Hourcade – A mais incerta das certezas – poderia ser interpretado à maneira intersecionista. Também neste livro se entretecem2 e deslindam3 vários planos, subordinados a uma metódica disciplina que tanto lembra a militar quanto a de Euclides4. É separadamente um marco historiográfico, um precioso instrumento de análise e um retrato subtil da personalidade de Pessoa; mas conjuntamente é também uma preciosidade historiográfica, uma análise subtil e um retrato da obra que revela em cada heterónimo a marca de água do poeta de Orpheu. É um tesouro histórico porque é a grande obra do primeiro tradutor francês de Pessoa, obra essa que a morte acabou por ele. Hourcade conheceu Pessoa, reconheceu-lhe o génio – acompanhado nisso pelos seus comparsas da Presença – antes de lhe reconhecer a fama, e fez tudo por estudá-lo. […] Hourcade procura perceber a evolução poética de

35

40

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55

Fernando Pessoa através da análise cronológica da sua obra. O escrutínio5 pormenorizado permitiria deslindar interesses moços a que o ânimo já madurado não ligaria, hábitos de meia-idade que a juventude não permitiria. […] O livro […] resiste pela qualidade da análise de Hourcade. O francês é um intérprete modesto, que não quer descobrir a Atlântida debaixo do Mar Salgado, nem a si próprio por detrás da autopsicografia. Não é fantasioso, está concentrado na letra dos poemas e naquilo que um observador sensato reconhece em cada um. O método acaba por tornar as análises um pouco fragmentadas, mas nunca excessivas. […] As teses vão sendo explicadas mediante o cotejo6 das datas dos poemas e uma leitura aproximada dos mais representativos de cada fase. Não pense o leitor inocente, todavia, que terá um compêndio de melhores momentos pessoanos engordado pela análise; este é um livro técnico, alfaia7 para estudiosos com a poesia na ponta da língua. O conhecimento da obra de Pessoa está sempre subentendido, de tal modo que algumas passagens podem perder o leitor que não tenha a guia pessoana na cabeça. […] Sob a crosta especializada, há um vivo retrato de Pessoa neste livro. Percebemos aqui e ali um poeta algo indeciso ou inseguro com a sua produção, uma cabeça introspetiva, um Homem com certo desejo de glória e de choque mas com uma muito maior pulsão8 para a auscultação de si próprio. […] É um trabalho importante, claro na exposição, e que muito nos poderá ajudar a nós, inferiores, a perceber tudo aquilo que Pessoa não deixou em didascálias do seu drama em gente.

Carlos Maria Bobone, «Um mapa para os caminhos de Fernando Pessoa», in Observador, 2016 (disponível em http://observador.pt/, consultado em outubro de 2016).

Poesia do ortónimo

1. Para responderes aos itens de 1.1 a 1.4, seleciona a única opção que permite obter uma afirmação correta.

PROFESSOR

1.1 (A); 1.2 (D); 1.3 (B); 1.4 (C). 2. Por exemplo: descrição do objeto em apreciação («É separadamente um marco historiográfico, um precioso instrumento de análise e um retrato subtil da personalidade de Pessoa; mas conjuntamente é também uma preciosidade historiográfica, uma análise subtil e um retrato da obra que revela em cada heterónimo a marca de água do poeta de Orpheu.» (ll. 11-17)); e linguagem valorativa («É separadamente um marco historiográfico […]» (ll. 11-12), «um precioso instrumento de análise […]» (ll. 12-13)).

1.1 O segundo parágrafo tem como principal função (A) (B) (C) (D)

descrever sucintamente a obra que vai ser apreciada. apelar concisamente à aquisição da obra que vai ser apreciada. estabelecer um paralelismo entre o intersecionismo de Pessoa e Hourcade. esclarecer o papel do intersecionismo na obra que vai ser apreciada.

1.2 Com o excerto «Hourcade conheceu Pessoa, reconheceu-lhe o génio […] antes de lhe reconhecer a fama, e fez tudo por estudá-lo.» (ll. 20-23), pretende-se transmitir (A) (B) (C) (D)

uma informação historiográfica sobre Pessoa e a sua obra. uma referência objetiva sobre Pessoa e a sua obra. um comentário depreciativo sobre Pessoa e a sua obra. um juízo apreciativo sobre Pessoa e a sua obra.

1.3 Para uma leitura profícua do livro de Pierre Hourcade, os conhecimentos sobre a poética de Pessoa são sempre (A) irrelevantes. (B) implícitos. (C) ignorados. (D) defraudados. 1.4 No último parágrafo, apresenta-se (A) uma síntese final da obra apreciada. (B) um apelo final à aquisição da obra apreciada. (C) um comentário crítico final acerca da obra apreciada. (D) um resumo da obra apreciada. 2. Identifica duas marcas de género de texto que acabaste de ler e exemplifica cada uma delas com exemplos textuais.

Carlos Botelho, Madrugada, 1945.

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1 2 3 4

5 6 7 8

Quejandos: coisas similares. Entretecem: entrelaçam. Deslindam: descobrem. Euclides: o mais importante matemático da Antiguidade Clássica, muitas vezes, referido como o «Pai da Geometria». A geometria euclidiana é caracterizada pelo espaço imutável, simétrico e geométrico. Escrutínio: exame minucioso. Cotejo: verificação. Alfaia: utensílio agrícola. Pulsão: impulso.

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SÍNTESE

Fernando Pessoa – Poesia do ortónimo

• Fingimento artístico ≠ sinceridade humana. • Intelectualização das emoções e das sensações experienciadas. O fingimento artístico

• A imaginação sobrepõe-se ao coração. • Recusa da espontaneidade e emotividade literárias: a poesia é um produto intelectual.

• A intelectualização excessiva causa sofrimento, angústia e frustração. A dor de pensar

• Dicotomia consciência/inconsciência; pensar/sentir. • Desejo de evasão: ser outro inconsciente e feliz. • Impossibilidade de ser conscientemente inconsciente.

• Transmutação entre a realidade e o mundo onírico. Sonho e realidade

• Evasão e refúgio, através do sonho. • Indistinção entre estados ilusórios e reais.

• A nostalgia de uma infância idealizada e estilizada. • A infância como paraíso perdido. A nostalgia da infância

• A infância como símbolo da inocência, inconsciência e felicidade. • Desejo frustrado de reviver a infância no presente. • Saudade de um passado («fingido artisticamente») feliz.

• Presença de formas da lírica tradicional portuguesa: quadras e quintilhas e versos frequentemente em redondilha menor e maior. • Tendência para a regularidade estrófica, métrica e rimática. • Musicalidade: presença de rima, aliterações e transporte. Linguagem, estilo e estrutura

• Vocabulário simples, mas pleno de símbolos. • Construções sintáticas simples. • Uso da pontuação expressiva.

PROFESSOR

▪ Apresentação em PowerPoint Síntese da subunidade

• Recursos expressivos abundantes (metáfora, antítese, comparação, repetição, interrogação retórica, …)

12 •

EDUCAÇÃO LITERÁRIA

Bernardo Soares, Livro do Desassossego • Perceção e transfiguração poética do real • O imaginário urbano • O quotidiano

• Deambulação e sonho: o observador acidental • Linguagem, estilo e estrutura – a natureza fragmentária da obra LEITURA Textos informativos Diário COMPREENSÃO DO ORAL Registos áudio e audiovisuais EXPRESSÃO ORAL Texto de opinião ESCRITA Apreciação crítica Texto de opinião GRAMÁTICA Discurso, pragmática e linguística textual – coerência textual – coesão textual Semântica – valor temporal – valor aspetual

Robert Delaunay, A Cidade (pormenor), 1910-1911.

BERNARDO SOARES

Poesia do ortónimo

LIVRO DO DESASSOSSEGO

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50

Unidade 1 // FERNANDO PESSOA

Contextualização literária

PROFESSOR

MC

1. Bernardo Soares: semi-heterónimo

Educação Literária 16.1.

O «eu» e o «outro»

5

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1 «Livro do Desasocego»: orto-

grafia original. 2 Guarda-livros: empregado do comércio que tem por função fazer o registo da contabilidade e das transações do estabelecimento.

15

Era um homem que aparentava trinta anos, magro, mais alto que baixo, curvado exageradamente quando sentado, mas menos quando de pé, vestido com um certo desleixo não inteiramente desleixado. Na face pálida e sem interesse de feições um ar de sofrimento não acrescentava interesse, e era difícil definir que espécie de sofrimento esse ar indicava – parecia indicar vários, privações, angústias, e aquele sofrimento que nasce da indiferença que provém de ter sofrido muito. Jantava sempre pouco, e acabava fumando tabaco de onça. Reparava extraordinariamente para as pessoas que estavam, não suspeitosamente, mas com um interesse especial; mas não as observava como que perscrutando-as, mas como que interessando-se por elas sem querer fixar-lhes as feições ou detalhar-lhes as manifestações de feitio. Foi esse traço curioso que primeiro me deu interesse por ele. […] Fui o único que, de alguma maneira, estive na intimidade dele. Mas – a par de ter vivido sempre com uma falsa personalidade sua, e de suspeitar que nunca ele me teve realmente por amigo – percebi sempre que ele alguém havia de chamar a si para lhe deixar o livro que deixou. Agrada-me pensar que, ainda que ao princípio isto me doesse, quando o notei, por fim vendo tudo através do único critério digno de um psicólogo, fiquei do mesmo modo amigo dele e dedicado ao fim para que ele me aproximou de si – a publicação deste seu livro. Fernando Pessoa, «Prefácio», in Richard Zenith (ed.), Livro do Desassossego: composto por Bernardo Soares, ajudante de guarda-livros na cidade de Lisboa, 7.ª ed., Lisboa, Assírio & Alvim, 2014, pp. 31-33.

O «outro» e o «eu»

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Talvez Soares não tenha estado associado [às] primeiras tentativas de um texto narrativo, mas a necessidade de se afastar do que poderia ser uma exposição autobiográfica tenha decidido Pessoa a encontrar um personagem para lhes dar uma outra autoria. No entanto, não se trata em rigor de um heterónimo, e quando publica outros excertos em fases diversas da sua vida, embora refira que se trata de trechos do «Livro do Desasocego»1, composto por «Bernardo Soares, ajudante de guarda-livros na cidade de Lisboa», o seu nome aparece associado a essas publicações, o que nunca sucede quando publica em nome dos heterónimos. […] [H]á uma tendência que, à medida que o personagem Soares ganha corpo, nos faz ver cada vez mais Pessoa à sua transparência, o que se deve a pontos coincidentes das duas biografias: a do guarda-livros2 e a do empregado de comércio na Baixa. Talvez seja essa pulsão «censurada» para revelar aspetos de si próprio, que tenha levado Pessoa a nunca conferir a Bernardo Soares o estatuto de heterónimo, inventando para ele um meio-caminho entre a ficção e a realidade. Nuno Júdice, «Prefácio», in Ivo Castro (coord.), Obra Essencial de Fernando Pessoa, Livro do Desassossego, vol. 3, Lisboa, INCM/Alêtheia/Expresso, 2015, pp. 4-6.

Joshua Benoliel, Rua da Bica de Duarte Belo e Início da Calçada da Bica Pequena, 1915.

Contextualização literária

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2. Livro do Desassossego «O Livro sem fim»

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O Livro do Desassossego não é um livro. Este paradoxo é mais um dos muitos que percorrem a obra de Pessoa ou, se quisermos, será um oxímoro1. É sem dúvida um conjunto de projetos de livro, iniciados em momentos vários da vida de Pessoa, e, em cada um deles, o Livro anterior transforma-se noutro livro sem perder o que antes tinha sido escrito para esse futuro livro nunca terminado nem organizado. O Livro é de certo modo o que cada leitor quiser, podendo ser arrumado das mais diversas formas, como tem sido ao longo dos anos e dos editores. [...] Pessoa escreve-o desde o início da sua carreira literária. São de 1913 os primeiros textos que lhe são destinados, e logo surge a interrogação sobre a natureza do que escrevia [...]: «Este livro é só um estado de alma, analisado de todos os lados, percorrido em todas as direções.» Nuno Júdice, op. cit., pp. 4-6.

«Texto ao rés do chão da vida»

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[O] Livro do Desassossego é um texto que Fernando Pessoa nunca teve, material, fisicamente, diante dos olhos. Assim, e só por isso, sendo dele é ainda mais nosso do que normalmente são os seus outros textos. Quer isto dizer que o Livro do Desassossego, mau grado a sua narratividade truncada, os seus espaços de ausência, a sua inorganicidade expressiva, oferece ao leitor um texto paradoxalmente contínuo e saturado [...], texto que cria o seu mal-ficto2 autor Bernardo Soares e lhe confere uma espessura que Pessoa, imaginando-o e desejando-o enquanto escrita, nunca teve ocasião de contemplar. [...] Que existe no Livro do Desassossego que não conheçamos dos outros textos de Pessoa? Talvez só isto: [...] o Livro comporta todos os textos de Fernando Pessoa, todas as suas mais características tonalidades desde o ultrassimbolismo sonambúlico dos jovens anos até ao simbolismo (ultra também, ou menos ultra) de fim de percurso e vida. O que, há trinta anos, a análise estilística minuciosa e inovadora de Jacinto do Prado Coelho se esforçou por nos mostrar, sem poder, apesar de tudo, articular num só movimento a diversidade e a unidade do universo de Pessoa, oferece-se, por assim dizer, ostensivamente, numa trama única, sem artifício visível, neste texto natural e organicamente tecido com todos os textos espetacularmente autónomos e unilateralmente unificados que nós chamamos Caeiro, Reis, Campos, mas também António Mora ou Fernando Pessoa ele-mesmo. Supertextualidade ou infratextualidade pessoana? Nem uma coisa nem outra. Apenas texto ao rés do escritório, ao rés do chão da vida de quem só habitou mansardas3 rentes ao infinito, texto onde vem inscrever-se, sem efeitos de premeditação visível, uma visão do mundo, dos outros, de um sujeito que se observa observando-os e observando-se até aos limites da esquizofrenia. Eduardo Lourenço, Fernando Pessoa, Rei da Nossa Baviera, Lisboa, Gradiva, 2008, pp. 113-121.

Amadeo de Souza-Cardoso, Máquina de Escrever, 1917. 1 Oxímoro: recurso expressivo que

associa duas palavras com significados logicamente opostos ou incompatíveis. 2 Ficto: fingido, simulado. 3 Mansardas: vãos do telhado de um edifício aproveitados para habitação; águas-furtadas. Ideias fundamentais: • O Livro, apesar de se afigurar uma narrativa incompleta, cortada, com «espaços de ausência», e de apresentar uma estrutura aparentemente desorganizada, surge, paradoxalmente, aos olhos do leitor como um todo completo, consistente e coerente. • O «Livro comporta todos os textos de Fernando Pessoa» e, consequentemente, as várias e distintas influências e características, manifestadas na sua obra ao longo da vida. • A diversidade e a unidade do universo pessoano são expostas num «texto natural», «sem artifício visível», composto por todos os textos, simultaneamente «autónomos» e «unificados», representativos dos heterónimos e do ortónimo, distintos mas interligados por um elemento comum e constante: Fernando Pessoa. • Não se trata de uma interpretação para além do texto ou oculta no texto, feita pelo próprio Pessoa, mas sim de um texto que expõe uma visão do mundo, dos outros e de si próprio, onde todos dialogam. Um texto de quem buscou incessantemente o infinito.

52

Unidade 1 // FERNANDO PESSOA

Perceção e transfiguração poética do real

PROFESSOR

MC

PONTO DE PARTIDA

Oralidade 4.1; 4.2.

1. Visiona o excerto do documentário Livro do Desassossego e pronuncia-te, oralmente, acerca dos seguintes tópicos: a) duração da escrita e completude da obra; b) o semi-heterónimo, Bernardo Soares, segundo Fernando Pessoa; c) características do Livro do Desassossego; d) forma de ler o livro corretamente.

Educação Literária 14.1; 14.2; 14.3; 14.4; 14.5; 14.7; 14.9; 15.3; 16.2. Gramática 17.1; 18.2. Escrita 10.1; 11.1; 12.1; 12.2; 12.3; 12.4; 13.1.

▪ Link Grandes Livros – «Livro do Desassossego»

EDUCAÇÃO LITERÁRIA

Ponto de Partida 1. a) O Livro do Desassossego demorou vinte anos a ser escrito, não tendo sido concluído. b) Bernardo Soares é um semi-heterónimo porque, não sendo a personalidade a de Fernando Pessoa, é não diferente da sua, mas uma simples mutilação dela; é ele menos o raciocínio e a afetividade; é alguém algures entre uma coisa e outra, um quase ele. c) É um livro incompleto, em permanente mutação, pelos textos que vão sendo descobertos e acrescentados: um livro composto por fragmentos. d) Abrindo-o ao acaso, andar para trás e para a frente, traçar o nosso próprio mapa; não existe uma ordem pré-definida para a sua leitura, ficando esta ao critério do leitor.

Livro do Desassossego (2009) REAL. João Osório

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Eu nunca fiz senão sonhar. Tem sido esse, e esse apenas, o sentido da minha vida. Nunca tive outra preocupação verdadeira senão a minha vida interior. As maiores dores da minha vida esbatem-se-me quando, abrindo a janela para a rua do meu sonho, esqueço a vista no seu movimento. Nunca pretendi ser senão um sonhador. A quem me falou de viver nunca prestei atenção. Pertenci sempre ao que não está onde estou e ao que nunca pude ser. Tudo o que não é meu, por baixo que seja, teve sempre poesia para mim. Nunca amei senão coisa nenhuma. Nunca desejei senão o que nem podia imaginar. À vida nunca pedi senão que passasse por mim sem que eu a sentisse. Do amor apenas exigi que nunca deixasse de ser um sonho longínquo. Nas minhas próprias paisagens interiores, irreais todas elas, foi sempre o longínquo que me atraiu, e os aquedutos que se esfumavam quase na distância das minhas paisagens sonhadas tinham uma doçura de sonho em relação às outras partes da paisagem – uma doçura que fazia com que eu as pudesse amar. A minha mania de criar um mundo falso acompanha-me ainda, e só na minha morte me abandonará. Não alinho hoje nas minhas gavetas carros de linha e peões de xadrez – com um bispo ou um cavalo acaso sobressaindo – mas tenho pena de o não fazer... e alinho na minha imaginação, confortavelmente, como quem no inverno se aquece a uma lareira, figuras que habitam, e são constantes e vivas, na minha vida interior. Tenho um mundo de amigos dentro de mim, com vidas próprias, reais, definidas e imperfeitas. Alguns passam dificuldades, outros têm uma vida boémia, pitoresca e humilde. Há outros que são caixeiros-viajantes (poder sonhar-me caixeiro-viajante foi sempre uma das minhas grandes ambições – irrealizável infelizmente!). Outros moram em aldeias e vilas lá para as fronteiras de um Portugal dentro de mim; vêm à cidade, onde por acaso os encontro e reconheço, abrindo-lhes os braços, emotivamente... E quando sonho isto, passeando no meu quarto, falando alto, gesticulando... quando sonho isto, e me visiono encontrando-os, todo eu me alegro, me realizo, me pulo, brilham-me os olhos, abro os braços e tenho uma felicidade enorme, real, incomparável. Ah, não há saudades mais dolorosas do que as das coisas que nunca foram! O que eu sinto quando penso no passado que tive no tempo real, quando choro sobre o cadáver da vida da minha infância ida,... isso mesmo não atinge o fervor doloroso e trémulo com que choro sobre não serem reais as figuras humildes dos meus sonhos, as próprias figuras secundárias que me recordo de ter visto uma só vez, por acaso, na minha

Bernardo Soares, Livro do Desassossego – Perceção e transfiguração poética do real

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PROFESSOR

Educação Literária 1. Verifica-se uma relação de semelhança, de proximidade, entre a nota inicial e a primeira frase do texto, dado o mundo de «faz-de-conta», próprio da infância, ser assumido pelo sujeito da enunciação como a sua forma de viver. Assim, ao nomear a infância, tempo de brincadeiras, de jogos, atribui um caráter lúdico à criação desse «mundo interior», mas, simultaneamente, concede realidade e valor à matéria lúdica a partir da qual constrói o sonho. 2.1. Bernardo Soares afirma ser o «sonho» a única verdade na sua vida e a sua orientação, o seu propósito («Tem sido esse, e esse apenas, o sentido da minha vida»). O investimento afetivo nessa realidade ficcional, na sua «vida interior», por ser o que o separa do real, permite a atenuação do sofrimento e das angústias («As maiores dores esbatem-se-me»). Maurice de Vlaminck, A Aldeia, c. 1912.

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pseudovida, ao virar uma esquina da minha visionação, ao passar por um portão numa rua que subi e percorri por esse sonho fora. A raiva de a saudade não poder reavivar e reerguer nunca é tão lacrimosa contra Deus, que criou impossibilidades, do que quando medito que os meus amigos de sonho, com quem passei tantos detalhes de uma vida suposta, com quem tantas conversas iluminadas, em cafés imaginários, tenho tido, não pertenceram, afinal, a nenhum espaço onde pudessem ser, realmente, independentes da minha consciência deles! Oh, o passado morto que eu trago comigo e nunca esteve senão comigo! As flores do jardim da pequena casa de campo que nunca existiu senão em mim. As hortas, os pomares, o pinhal, da quinta que foi só um meu sonho! As minhas vilegiaturas1 supostas, os meus passeios por um campo que nunca existiu! As árvores à beira da estrada, os atalhos, as pedras, os camponeses que passam… tudo isto, que nunca passou de um sonho, está gravado na minha memória a fazer de dor e eu, que passei horas a sonhá-los, passo horas depois a recordar tê-los sonhado e é na verdade saudade que eu tenho, um passado que eu choro, uma vida-real morta que fito, solene no seu caixão. Há também as paisagens e as vidas que não foram inteiramente interiores. Certos quadros, sem subido relevo artístico, certas oleogravuras que havia em paredes com que convivi muitas horas – passaram a realidade dentro de mim. Aqui a sensação era outra, mais pungente e triste. Ardia-me não poder estar ali, quer eles fossem reais ou não. Não ser eu, ao menos, uma figura a mais desenhada ao pé daquele bosque, ao luar que havia numa pequena gravura dum quarto onde dormi já não em pequeno! Não poder eu pensar que estava ali oculto, no bosque à beira do rio, por aquele luar eterno (embora mal desenhado), vendo o homem que passa num barco por baixo do debruçar-se de um salgueiro! Aqui o não poder sonhar inteiramente doía-me. As feições da minha saudade eram outras. Os gestos do meu desespero eram diferentes. A impossibilidade que me torturava era de outra ordem de angústia. Ah, não ter tudo isto um sentido em

2.2. A metáfora «abrindo a janela para a rua do meu sonho» («para dentro» de si, «para a rua dos [s]eus devaneios») exprime a facilidade – o abrir da janela e o contemplar do movimento de uma rua – com que o sujeito se entrega ao devaneio e se esquece de si, participando completamente naquilo que contempla. A «janela», lugar privilegiado do olhar, leva o sujeito do exterior para o interior de si, «abrindo» um mundo de perceções e sensações, originadas pela memória. 3. A segunda frase afigura-se uma explicação do sentido da primeira, ou seja, Bernardo Soares afirma ser, em primeiro lugar, desde sempre e eternamente um sonhador (algo que remonta à sua infância) explicando, de seguida, como se processa a criação desse mundo de «faz-de-conta», feito por analogia com a sua infância: o alinhar, o criar, na sua «imaginação», como alinhava, em criança, nas suas «gavetas carros de linha e peões de xadrez», «figuras que habitam» a sua «vida interior».

1 Vilegiatura: férias.

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Unidade 1 // FERNANDO PESSOA

PROFESSOR

4. O mundo que Soares tem dentro de si é interiormente verdadeiro, «um mundo de amigos» (l. 19), de vidas reais dentro de um mundo «falso», falso na aceção de que tudo o que é exterior não é real. Esta realidade/verdade interior é sustentada na adjetivação expressiva: «próprias, reais, definidas e imperfeitas» (l. 19), isto é, estes amigos são completos, reais, não lhes faltando a imperfeição, característica de um ser real, e uma vida tipicamente real, visível na descrição (ll. 20-24), reforçada pelos verbos («passam», «têm», «são», «moram», «vêm»). 5.1 O sujeito, no momento em que sonha com esse «mundo de amigos» e os encontra, é invadido pela felicidade. Sente-se como uma criança, feliz com as suas brincadeiras («me alegro», «me pulo, brilham-me os olhos, abro os braços», ll. 26-27). No entanto, à medida que toma consciência de que tudo não passa de um sonho, sente saudades, «raiva», uma angústia e uma dor profundas («saudades mais dolorosas», l. 28; «o fervor doloroso e trémulo com que choro», ll. 30-31). 5.2 A reflexão culmina com a metáfora «uma vida-real morta que fito, solene no seu caixão» (l. 47), reveladora do sofrimento do sujeito, que se coloca no mundo exterior a fitar (e a antecipar) a morte do seu mundo interior, sentindo saudades dessa «vida» que, durante algum tempo, foi uma realidade para si, um espaço de felicidade. Agora, consciente de que tudo não passara de um sonho, sofre e chora a sua perda. 6. O desespero do sujeito surge da consciência da impossibilidade de estar no mesmo espaço que o sonhado e ter de lidar com a realidade, com o mundo exterior, de não poder coexistir e interagir com o irreal, com o sonhado, sem ter de o exprimir por palavras e, no limite, de tornar-se inconsciente e fundir-se totalmente com o sonho, tornando-se ele próprio o sonho.

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Deus, uma realização conforme o espírito de meus desejos, não sei onde, por um tempo vertical, consubstanciado2 com a direção das minhas saudades e dos meus devaneios! Não haver, pelo menos só para mim, um paraíso feito disto! Não poder eu encontrar os amigos que sonhei, passear pelas ruas que criei, acordar, entre o ruído dos galos e das galinhas, e o rumorejar matutino da casa, na casa de campo em que eu me supus... e tudo isto mais perfeitamente arranjado por Deus, posto naquela perfeita ordem para existir, na precisa forma para eu o ter que nem os meus próprios sonhos atingem senão na falta de uma dimensão do espaço íntimo que entretém essas pobres realidades... Ergo a cabeça de sobre o papel em Jean-François Raffaëlli, Aldeia na Primavera (pormenor), s.d. que escrevo... É cedo ainda. Mal passa o meio-dia e é domingo. O mal da vida, a doença de ser consciente, entra em o meu próprio corpo e perturba-me. Não haver ilhas para os inconfortáveis, alamedas vetustas3, inencontráveis de outros, para os isolados no sonhar! Ter de viver e, por pouco que seja, de agir; ter de roçar pelo facto de haver outra gente, real também, na vida! Ter de estar aqui escrevendo isto, por me ser preciso à alma fazê-lo, e mesmo isto não poder sonhá-lo apenas, exprimi-lo sem palavras, sem consciência mesmo, por uma construção de mim próprio em música e esbatimento, de modo que me subissem as lágrimas aos olhos só de me sentir expressar-me, e eu fluísse, como um rio encantado, por lentos declives de mim próprio, cada vez mais para o inconsciente e o Distante, sem sentido nenhum exceto Deus. Bernardo Soares, Livro do Desassossego: composto por Bernardo Soares, ajudante de guarda-livros na cidade de Lisboa (ed. Richard Zenith), 7.ª ed., Lisboa, Assírio & Alvim, 2014, pp. 110-112.

1. Estabelece uma relação entre a nota inicial parentética e a primeira frase do texto «Eu nunca fiz senão sonhar» (l. 2), considerando a intenção do Perceção e transfiguração FI poética do real sujeito da enunciação. p. 56 2. No primeiro parágrafo, Bernardo Soares evidencia a importância do «ato de sonhar». 2.1 Comprova a veracidade da afirmação. 2.2 Indica o valor expressivo da metáfora aí presente.

2 Consubstanciado: unido ou

consolidado. 3 Vetustas: muito velhas, antigas; a que a idade conferiu respeitabilidade; venerabilidade.

Recursos expressivos SIGA p. 383

3. Esclarece a relação existente entre a frase «A minha mania de criar um mundo falso acompanha-me ainda, e só na minha morte me abandonará» (ll. 15-16) e o conteúdo da frase imediatamente a seguir (ll. 16-20). 4. Demonstra que o «mundo de amigos» que Soares constrói, apesar de ser exteriormente falso, é interiormente verdadeiro.

Bernardo Soares, Livro do Desassossego – Perceção e transfiguração poética do real

5. Atenta no segmento textual das linhas 24 a 47.

PROFESSOR

5.1 Explicita a alteração do estado de espírito do sujeito, indicando o que a motivou. 5.2 Explica o valor expressivo da metáfora com que encerra a sua reflexão.

Recursos expressivos SIGA p. 383

6. Considera os dois últimos parágrafos e indica as razões do desespero manifestado pelo sujeito. 7. No fragmento analisado, encontram-se as várias temáticas da poesia de Fernando Pessoa ortónimo. 7.1 Identifica-as e transcreve uma expressão textual pertinente para cada temática. Temáticas

Fernando Pessoa ortónimo

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Bernardo Soares

Fingimento artístico Sonho e realidade Nostalgia da infância

7.1 Sugestão de resposta: Fingimento artístico: «A minha mania de criar um mundo falso acompanha-me ainda, e só na minha morte me abandonará» (ll. 14-15), «[…] alinho na minha imaginação […] figuras que habitam, e são constantes e vivas, na minha vida interior. Tenho um mundo de amigos dentro de mim, com vidas próprias, reais, definidas e imperfeitas» (ll. 17-20); Sonho e realidade: «Eu nunca fiz senão sonhar. Tem sido esse, e esse apenas, o sentido da minha vida» (l. 1), «Nunca pretendi ser senão um sonhador. A quem me falou de viver nunca prestei atenção. Pertenci sempre ao que não está onde estou e ao que nunca pude ser» (ll. 5-6); Nostalgia da infância: «[…] choro sobre o cadáver da vida da minha infância ida, ...» (ll. 29-30), «Oh, o passado morto que eu trago comigo e nunca esteve senão comigo!» (ll. 39-40); Dor de pensar: «Aqui o não poder sonhar inteiramente doía-me» (l. 56), «O mal da vida, a doença de ser consciente, entra em o meu próprio corpo e perturba-me» (ll. 79-80).

Dor de pensar

Gramática 1. a) V. b) F. […] indicativo […] do caráter real […]. c) V. d) F. […] coesão referencial […].

GRAMÁTICA

1. Classifica as seguintes afirmações como verdadeiras (V) ou falsas (F), corrigindo as falsas. a) O predomínio da deixis pessoal (1.ª pessoa) comprova a manifestação da interioridade do sujeito da enunciação. b) A preferência pelos verbos no modo conjuntivo revela a assunção do caráter irreal do «mundo falso» criado pelo sujeito da enunciação. c) Nos dois últimos parágrafos, a utilização de verbos auxiliares modais, como «poder estar», «poder eu pensar», «ter de viver», «ter de roçar», contribuem para a expressão da tomada de consciência da impossibilidade do espaço sonhado. d) No terceiro parágrafo do texto, verifica-se o predomínio de mecanismos de construção da coesão interfrásica a indicar a retoma de duas «realidades» presentes na «vida interior» do sujeito: o «eu» e os «outros». ESCRITA

Apreciação crítica

Apreciação crítica SIGA pp. 362-363

1. Visiona o videoclipe do single «Cinegirasol», do grupo Os Azeitonas, com argumento de Nuno Markl. 1.1 Redige uma apreciação crítica Cinegirasol (2016) REAL. Bruno Caetano e Rui Telmo Romão sobre o videoclipe, na qual incluas a abordagem dos seguintes tópicos: • o videoclipe (o cinema) enquanto transfiguração do real e criação de mundos imaginários; • relação com o fragmento analisado do Livro do Desassossego, de Bernardo Soares.

▪ Link «Cinegirasol», de Os Azeitonas Escrita Sugestão de resposta: • O videoclipe apresenta um jovem apaixonado por uma rapariga, tendo como rival um galã à moda de Hollywood para quem as atenções desta se direcionam. É através do cinema trazido à aldeia, o «Cinegirasol», que consegue o seu intento: um final feliz. • O jovem tenta conquistar a amada através da projeção da vida real na tela, ou seja, transformando-se no herói de várias películas, nas quais salva sempre a donzela das garras do vilão, o galã da realidade, que é transfigurado, inclusive, em King-Kong e em Tiranossauros Rex. • A metamorfose do real e a vivência dos sonhos aproximam este pequeno filme do fragmento analisado: a infância/juventude enquanto tempo do sonho, da criação de mundos imaginários, e a transfiguração da realidade consoante a vivência do sujeito. Separa-os o «final feliz» do videoclipe, uma vez que o sujeito do fragmento experiencia a angústia por ter consciência da realidade e da impossibilidade da concretização do sonho.

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Unidade 1 // FERNANDO PESSOA

FICHA INFORMATIVA 1 Perceção e transfiguração poética do real

PROFESSOR

MC

Leitura 7.3; 7.4; 7.5; 8.1.

Sigo o curso dos meus sonhos, fazendo das imagens degraus para outras imagens; desdobrando, como um leque, as metáforas casuais em grandes quadros de visão interna; desato de mim a vida, e ponho-a de banda como a um traje que aperta.

Consolida 1. Bernardo Soares perceciona a realidade através da visão, considerando as imagens que capta a base para a criação de novas imagens, «as metáforas casuais», que desdobra, criando um vasto mundo imaginário («grandes quadros de visão interna»). A abordagem de Silvina Rodrigues Lopes aproxima-se desta análise, ao apontar o ato de ver como o ponto de partida para a transposição do real, só possível, segundo Soares, através da prosa que lhe permite interiorizar tudo sem alongar temporalmente as suas deambulações. A linguagem verbal, «meio por excelência da visão», funciona como elemento conciliador do sonho e da realidade, permitindo a consciência da irrealidade do primeiro. A captação do real, dos elementos/ imagens mais banais do quotidiano, processa-se através dos vários sentidos, integrados no ato de ver, e a sua transfiguração dá-se através da escrita que cria a ilusão de um «novo mundo», imaginário, distinto do mundo exterior.

Bernardo Soares, Livro do Desassossego: composto por Bernardo Soares, ajudante de guarda-livros na cidade de Lisboa (ed. Richard Zenith), 7.ª ed. Lisboa, Assírio & Alvim, 2014. p. 435.

Sonhar é ver

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1 Prolixidade: abundância. 2 Trompe-l’oeil: técnica artística

que cria uma ilusão ótica que faz com que formas de duas dimensões aparentem possuir três dimensões.

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Ver é no Livro do Desassossego um modo de se pensar, e ao mundo, mas, para além disso, é uma experiência, na escrita, dos limites da consciência. Experiência da distância e do encontro. Da distância como condição do encontro. Comecemos por falar de um fragmento […] onde se expõe como razão principal para escrever em prosa, e «razão que toca no sentido íntimo de toda a valia da arte», o facto de esta permitir a transposição de tudo e de exceder as outras artes. […] As razões de Bernardo Soares não assentam numa dialética mas na ideia de transposição, pelo que elas implicam em primeiro lugar a recusa de um desenvolvimento, no tempo, de uma interiorização do exterior. […] A escrita como transposição de elementos heterogéneos à ordem do sentido, e uma vez que a linguagem verbal é uma dupla mediação em relação à perceção, mostra a artificialidade do mais imediato, o pensamento como mediador essencial e não subordinado à ideia ou à consciência. A linguagem verbal é considerada meio por excelência da visão, sendo que esta, enquanto experiência primordial de configuração, é perturbadora das outras dimensões da escrita: a meditação é irrompida de imagens que, por ironia ou por premência obscura, vão desfazendo o pleno do sentido que a distância intelectual permite; o sonho, exacerbado pela consciência do sonho, e transportado à negação da sua irrealidade e tornado exterior; a dimensão contemplativa vai ao ponto em que o desejo de ver deixa diante de si o apocalíptico, o caos. Ver é metonimicamente captação de real: «Basta que eu veja nitidamente, com os olhos ou com os ouvidos, ou com outro sentido qualquer, para que eu sinta que aquilo é real». […] No Livro do Desassossego a relação do texto, corpus fragmentado, à energia que nele se desloca em continuidade, dá-se na prolixidade1 de artifícios, exercício de esgotamento das imagens e dos sentidos e experiência da visão-sonho […]. Integrando a artificialidade no mais banal quotidiano, o da vida prática, codificada, a escrita produz um efeito de trompe-l’oeil 2. Detritos de imagens e imagens-detritos parodiam a representação; investidos da imensa ironia da sua opacidade, fazem alastrar a todo o campo a suspeita de que o real não coincide jamais com a figura. Silvina Rodrigues Lopes, «Des-figurações (sobre o Livro do Desassossego)», in Colóquio-Letras, n.º 102, março de 1988, pp. 61-67. CONSOLIDA

1. Indica como se processa, segundo os textos de Bernardo Soares e de Silvina Rodrigues Lopes, a perceção e a transfiguração poética do real.

Ficha informativa

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FICHA INFORMATIVA 2 Semântica I

PROFESSOR

1. Valor temporal

MC

Gramática 19.1; 19.2; 19.3.

Tempo: categoria gramatical que localiza temporalmente o que é expresso num enunciado. «Uma situação localiza-se temporalmente em relação a um outro tempo, que tanto pode ser o da enunciação como um outro, marcado de diversas formas na frase ou em sequência de frases.» Mira Mateus et al., Gramática da Língua Portuguesa, 6.ª ed., Lisboa, Caminho, 2003, p. 129.

a) Formas de expressão do tempo A categoria tempo pode ser expressa de diferentes formas, muitas vezes associadas. Formas de expressão do tempo

Exemplos

▪ Apresentação em PowerPoint Semântica I Consolida 1. a) Flexão verbal: «esbatem», «esqueço», «abrindo»; orações temporais: «quando […] esqueço a vista no seu movimento», «abrindo a janela para a rua do meu sonho». b) Flexão verbal: «alinho»; advérbio de tempo: «hoje». c) Flexão verbal: «tenho».

• Localização temporal (oposição presente/passado/futuro): Flexão verbal

Os alunos leem o Livro do Desassossego.

Fontes:

Os alunos leram o Livro do Desassossego.

• Dicionário Terminológico (disponível em http://dt.dge. mec.pt, consultado em julho de 2016).

Os alunos lerão o Livro do Desassossego. • Localização temporal (oposição presente/passado/futuro): Verbos auxiliares

Os alunos leem o Livro do Desassossego.

• Mira Mateus et al., Gramática da Língua Portuguesa, 6.ª ed., Lisboa, Caminho, 2003.

Os alunos tinham lido o Livro do Desassossego. Os alunos vão ler o Livro do Desassossego. • Localização temporal (oposição presente/futuro):

Advérbios ou expressões de tempo

Os alunos leem o Livro do Desassossego, [agora/neste momento]. Os alunos leem o Livro do Desassossego, [amanhã à noite/na próxima semana].

Orações temporais

Os alunos leram o Livro do Desassossego, [quando estudaram Fernando Pessoa]. Os alunos leram o Livro do Desassossego, [antes de estudarem Fernando Pessoa].

CONSOLIDA

1. Identifica, nos seguintes excertos, as formas de expressão do tempo. a) «As maiores dores da minha vida esbatem-se-me quando, abrindo a janela para a rua do meu sonho, esqueço a vista no seu movimento» (ll. 2-4). b) «Não alinho hoje nas minhas gavetas carros de linha […]» (l. 15). c) «Tenho um mundo de amigos dentro de mim […]» (ll. 18-19).

Columbano Bordalo Pinheiro, Rua Animada (pormenor), s.d.

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Unidade 1 // FERNANDO PESSOA

PROFESSOR

Consolida 1. a) Relação de simultaneidade. b) Relação de simultaneidade. c) Relação de anterioridade. d) Relação de posterioridade. 2. a) Orações subordinadas adverbiais temporais – «quando sonho isto e [quando] me visiono encontrando-os»: indica o momento em que se dão as ações alegrar, realizar e pular; a flexão verbal localiza temporalmente as ações realizadas no momento em que sonha e se visiona, encontrando-os, e indica a relação de simultaneidade entre duas situações: a de sonhar e visionar encontrando-os e a de se alegrar, realizar e pular. b) O advérbio de modo «mal», associado à forma verbal «passa», no presente do indicativo, e ao nome «meio-dia», que nos indica uma localização temporal específica, informa-nos de que pouco tempo passara dessa hora, e o nome «domingo», expressão temporal, que, associado à forma verbal no presente do indicativo, localiza a ação num dia concreto da semana.

b) Relações de ordem cronológica Através da categoria tempo, é possível estabelecer relações de ordem cronológica entre o tempo do enunciado e um ponto de referência que pode coincidir ou não com o tempo da enunciação: o momento em que o enunciado é produzido ou outro momento escolhido pelo locutor como referência temporal. Estas relações podem ser de anterioridade, de simultaneidade ou de posterioridade. Relações de ordem cronológica

Relação de simultaneidade

Exemplos • entre duas situações: Os alunos entraram na sala, quando a professora estava a escrever o sumário no quadro. • face ao momento em que o enunciado é produzido: Neste momento, os alunos estudam o Livro do Desassossego.

Relação de anterioridade

Relação de posterioridade

• entre duas situações: Os alunos viram o Filme do Desassossego antes de lerem o livro de Bernardo Soares. • face ao momento em que o enunciado é produzido: Os alunos estiveram atentos na aula. Em 1935, morre Fernando Pessoa. • entre duas situações: Os alunos saíram depois de terem visto o filme. • face ao momento em que o enunciado é produzido: Os alunos vão ver o Filme do Desassossego na próxima aula.

CONSOLIDA

1. Indica, para cada excerto, a relação de ordem cronológica entre o tempo do enunciado e o respetivo ponto de referência. a) «A minha mania de criar um mundo falso acompanha-me ainda» (l. 14). b) «E quando sonho isto […] todo eu me alegro […]» (ll. 24-26). c) «[…] passei horas a sonhá-los […]» (l. 45). d) «[…] passo horas depois a recordar tê-los sonhado […]» (ll. 45-46). 2. Identifica, nos seguintes excertos, as formas de expressão do tempo e explicita as informações que nos fornecem. a) «[…] quando sonho isto, e me visiono encontrando-os, todo eu me alegro, me realizo, me pulo […]» (ll. 25-26). b) «Mal passa o meio-dia e é domingo» (ll. 78-79).

Claude-Émile Schuffenecker, Sem Título (pormenor), s.d.

Ficha informativa

2. Valor aspetual Aspeto: categoria gramatical que exprime a estrutura temporal interna de uma situação. Aspeto gramatical Valor construído através da combinação entre a informação dada pelo aspeto lexical (decorrente do significado de uma ou mais palavras) e pelo valor dos tempos verbais, de verbos auxiliares, de estruturas de quantificação, de advérbios ou locuções adverbiais, de orações subordinadas ou de modificadores. Através da combinação de elementos deste tipo, é possível representar uma situação como concluída (valor perfetivo), não concluída (valor imperfetivo), genérica, habitual ou iterativa. Aspeto gramatical

Exemplos

Valor perfetivo

Fernando Pessoa morreu em 1935.

• O acontecimento/facto expresso pelo verbo é apresentado como concluído. O pretérito perfeito simples é normalmente o tempo verbal associado a este valor. Valor imperfetivo • O acontecimento/facto expresso pelo verbo é apresentado como não concluído. O pretérito imperfeito do indicativo é o tempo verbal normalmente associado a este valor.

Os alunos já terminaram a leitura do Livro do Desassossego. Ontem, acabei de estudar à meia-noite.

Bernardo Soares deambulava no seu mundo interior. Os alunos discutiam o mundo imaginário de Soares quando a campainha tocou. Estou a tentar ler dez páginas por dia.

Situação genérica • A situação apresentada no enunciado considerada plural, atemporal e verdadeira.

é

O presente do indicativo é o tempo verbal que melhor transmite esta situação.

O Homem é um ser racional. Quem espera sempre alcança.

Situação habitual • A situação é apresentada no enunciado como habitual, decorrendo num intervalo de tempo construído como não delimitado. O presente do indicativo e o pretérito imperfeito do indicativo são os tempos verbais mais associados a esta situação. Situação iterativa • A situação apresentada no enunciado repete-se várias vezes num intervalo de tempo delimitado ou não delimitado. O pretérito perfeito composto do indicativo é o tempo verbal que melhor transmite esta situação.

Os jovens ouvem música todos os dias. Na infância, Bernardo Soares costumava criar amigos imaginários.

As atividades sobre Fernando Pessoa têm sido muito interessantes. Os alunos, muitas vezes, emocionam-se com a leitura dos poemas. Escrevemos frequentemente um texto sobre a matéria, nas aulas de Português.

Raoul Dufy, Janela Aberta (pormenor), 1928.

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Unidade 1 // FERNANDO PESSOA

CONSOLIDA PROFESSOR

Consolida 1. a) Situação iterativa. b) Situação habitual. c) Valor imperfetivo. d) Situação habitual. e) Situação genérica. f) Valor perfetivo. g) Situação habitual. h) Valor perfetivo. i) Valor imperfetivo. 2.1 A junção de expressões que veiculam valores de tempo (orações subordinadas, locuções adverbiais, modificadores, estruturas de quantificação) conduz à alteração do aspeto gramatical dos enunciados: em a) de valor imperfetivo a situação habitual; em b) de situação habitual a situação iterativa; em c) de situação habitual a situação iterativa (a substituição do presente pelo pretérito perfeito composto do indicativo provocou a alteração do aspeto gramatical); e em d) de valor perfetivo a situação iterativa. 3. a) – 2 (Já comecei a estudar para o teste); b) – 1 (Naquele tempo, Bernardo Soares vivia no mundo do sonho.); c) – 4 (Todas as aulas lemos excertos importantes.); d) – 3 (Enquanto deambula, Bernardo Soares centra-se nos pormenores que o rodeiam).

1. Indica o aspeto gramatical expresso nos seguintes excertos: a) «Tem sido esse […] o sentido da minha vida» (l. 1). b) «As maiores dores da minha vida esbatem-se-me quando […] esqueço a vista no seu movimento» (ll. 2-4). c) «[…] os aquedutos […] tinham uma doçura de sonho […]» (ll. 11-12). d) «Alguns passam dificuldades, outros têm uma vida boémia […]» (l. 20). e) «Ah, não há saudades mais dolorosas do que as das coisas que nunca foram!» (l. 28). f) «[…] passei horas a sonhá-los […]» (l. 45). g) «[…] passo horas depois a recordar […]» (ll. 45-46). h) «Certos quadros […] passaram a realidade dentro de mim.» (ll. 48-50). i) «Ardia-me não poder estar ali […]» (l. 51). 2. Atenta agora nas alterações feitas nos seguintes excertos: a) Todas as noites, durante o sono, «[…] os aquedutos […] tinham uma doçura de sonho […]». b) Às quartas e às quintas-feiras, «[a]lguns passam dificuldades, outros têm uma vida boémia […]». c) Tenho passado «horas depois a recordar […]». d) Naquele ano de 1931, muitas vezes, «[c]ertos quadros […] passaram a realidade dentro de mim». 2.1 Infere acerca das consequências dessas alterações, no que diz respeito ao aspeto gramatical. 3. Identifica de que forma se expressa o valor aspetual dos enunciados, estabelecendo as correspondências adequadas. Enunciados

Expressão do valor aspetual

a) Já comecei a estudar para o teste.

1. Locução adverbial

b) Naquele tempo, Bernardo Soares vivia no mundo do sonho.

2. Verbo auxiliar 3. Oração subordinada

c) Todas as aulas lemos excertos importantes. 4. Estrutura de quantificação d) Enquanto deambula, Bernardo Soares centra-se nos pormenores que o rodeiam.

5. Modificador

Bernardo Soares, Livro do Desassossego – O imaginário urbano

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O imaginário urbano PONTO DE PARTIDA

1. Visiona o vídeo da Lipton, criado pela agência publicitária FunnyHow, e pronuncia-te acerca da forma como o ser humano atenta na realidade circundante.

EDUCAÇÃO LITERÁRIA

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CD 1 Faixa n.0 10

Diego Rivera, Mural Indústria de Detroit (pormenor), Instituto de Artes de Detroit, 1932-1933.

Tudo é absurdo. Este empenha a vida em ganhar dinheiro que guarda, e nem tem filhos a quem o deixe nem esperança que um céu lhe reserve uma transcendência desse dinheiro. Aquele empenha o esforço em ganhar fama, para depois de morto, e não crê naquela sobrevivência que lhe dê o conhecimento da fama. Esse outro gasta-se na procura de coisas de que realmente não gosta. Mais adiante, há um que …1 Um lê para saber, inutilmente. Outro goza para viver, inutilmente. Vou num carro elétrico, e estou reparando lentamente, conforme é meu costume, em todos os pormenores das pessoas que vão adiante de mim. Para mim os pormenores são coisas, vozes, frases. Neste vestido da rapariga que vai em minha frente decomponho o vestido em o estofo de que se compõe, o trabalho com que o fizeram – pois que o vejo vestido e não estofo – e o bordado leve que orla a parte que contorna o pescoço separa-se-me em retrós de seda, com que se o bordou, e o trabalho que houve de o bordar. E imediatamente, como num livro primário de economia política, desdobram-se diante de mim as fábricas e os trabalhos – a fábrica onde se fez o tecido; a fábrica onde se fez o retrós, de um tom mais escuro, com que se orla de coisinhas retorcidas o seu lugar junto ao pescoço; e vejo as secções das fábricas, as máquinas, os operários, as costureiras, meus olhos virados para dentro penetram nos escritórios, vejo os gerentes procurar estar sossegados, sigo, nos livros, a contabilidade de tudo; mas não é só isto: vejo, para além, as vidas domésticas dos que vivem a sua vida social nessas fábricas e nesses escritórios... Toda a vida social jaz a meus olhos só porque tenho diante de mim, abaixo de um pescoço moreno, que de outro lado tem não sei que cara, um orlar irregular regular verde-escuro sobre um verde-claro de vestido. Para além disto pressinto os amores, as secrecias2 [sic] 3, a alma, de todos quantos trabalharam para que esta mulher que está diante de mim no elétrico use, em torno do seu pescoço mortal, a banalidade sinuosa de um retrós de seda verde-escura fazendo inutilidades pela orla de uma fazenda verde menos escura. Entonteço. Os bancos de elétrico, de um entretecido de palha forte e pequena, levam-me a regiões distantes, multiplicam-se-me em indústrias, operários, casas de operários, vidas, realidades, tudo. Saio do carro exausto e sonâmbulo. Vivi a vida inteira. Bernardo Soares, op. cit., pp. 253-254.

… – espaço deixado em branco pelo autor. 2 Secrecias: secretismos, segredos. 3 [sic]: advérbio que, entre parênteses, indica que a transcrição da palavra/texto é fiel; do latim sic, «assim; tal e qual». 1

PROFESSOR

MC

Oralidade 1.1; 1.3; 2.1; 3.1; 5.1; 5.2; 5.3; 6.1; 6.2; 6.3. Educação Literária 14.2; 14.3; 14.4; 14.7; 14.9; 15.3. Gramática 18.2; 19.2; 19.3.

Ponto de Partida ▪ Vídeo Awake – Estamos realmente atentos ao que nos rodeia? 1. Muitas pessoas, no frenesim do dia a dia, não reparam (ou simplesmente ignoram) noutras que podem precisar de ajuda. O vídeo revela esse comportamento tão comum e recorrente e demonstra que, muitas vezes, somente quando somos confrontados diretamente com o nosso alheamento e indiferença relativamente a essas pessoas nos apercebemos de que não nos encontramos realmente atentos à realidade circundante. Assim, a publicidade alerta para a necessidade de olharmos mais à nossa volta, terminando com exemplos de quem não olha apenas para si. Educação Literária 1. O sujeito da enunciação encontra-se num «carro elétrico», o que lhe permite a observação das pessoas que o circundam, fator externo desencadeador da reflexão inicial. Esta observação advém, igualmente, de um fator interno: a tendência do sujeito em focalizar-se nos pormenores, nomeadamente «das pessoas que vão adiante de [si]». Note-se a utilização do verbo «reparar», que implica a examinação, a análise da realidade circunstante.

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Unidade 1 // FERNANDO PESSOA

PROFESSOR

2. A trivialidade do ato de viajar num elétrico e a observação de quem o rodeia transforma-se numa «viagem interior» a partir da fixação nos pormenores do «vestido da rapariga que vai em sua frente». A focalização no pormenor da gola aciona o seu desdobramento nas «fábricas e [n]os trabalhos». Dá-se a transfiguração de algo banal, criando-se um «imaginário urbano», cuja modernidade é destacada pela tónica colocada nas «fábricas». Esta deambulação onírica do sujeito estende-se para o interior «de todos quantos trabalharam» na feitura do vestido, antevendo os seus «amores» e os seus segredos. 3.1 Esta nova deambulação é assinalada por duas metáforas associadas aos «bancos de elétrico»: «levam-me a regiões distantes» e «multiplicam-se-me». A primeira indicia a passagem do mundo físico para o mundo do sonho; a segunda exprime a transfiguração deste objeto em «indústrias, operários, casas de operários, vidas, realidades, tudo». Saliente-se, neste «multiplicar», a gradação do concreto («fábricas, operários, casas de operários) para o abstrato («vidas, realidades, tudo»), a destacar o caráter infindo do sonho, dado poder encerrar «tudo». 3.2 A deambulação conduz o sujeito a um estado de exaustão, agindo de modo mecânico, automático, pela sensação de ter vivido «a vida inteira» naquele breve momento. 4.1 A utilização de verbos associados à visão estabelece a dicotomia entre «olhar» e «sonhar». O ato de «reparar lentamente em todos os pormenores» é aquele que aciona as deambulações oníricas. Ao longo do fragmento, o verbo ver é utilizado tanto na perceção do real objetivo como na sua transfiguração. O sujeito decompõe e separa os objetos alvo do ato de reparar e, depois, desdobra-os, multiplica-os, operando-se a metamorfose do real. Gramática 1. a) Coesão lexical: reiteração; b) Coesão gramatical: referencial; c) Coesão lexical: substituição (holonímia/meronímia); d) Coesão lexical: substituição (antonímia). 2. a) Situação genérica; b) Valor perfetivo..

▪ Link «As Cidades», Rodrigo Leão ▪ Apresentação em PowerPoint Correção da atividade de Oralidade

1. A reflexão inicial do sujeito da enunciação é desencadeada por fatores externos e internos. Justifica a afirmação. 2. Identifica o que, num primeiro momento, suscita a transformação da deambulação física em deambulação onírica, explicitando o modo como se processa o transfigurar do real e a criação de um «imaginário urbano». 3. No penúltimo parágrafo, um novo objeto, «[o]s bancos de elétrico», desencadeia uma nova deambulação no sujeito da enunciação. 3.1 Identifica os recursos expressivos aí presentes e indica o seu valor expressivo.

Recursos expressivos SIGA p. 383

3.2 Aponta os efeitos desta deambulação no estado de espírito do sujeito. 4. Segundo Fernando Pessoa, Bernardo Soares «reparava extraordinariamente para as pessoas […] interessando-se por elas sem querer fixar-lhes as feições». 4.1 Estabelece uma relação entre esta afirmação e a utilização dos verbos que estabelecem a dicotomia olhar/sonhar ao longo do fragmento. GRAMÁTICA

1. Identifica os tipos de coesão textual presentes nas expressões destacadas:

Coesão textual SIGA pp. 377-378

a) «Um lê para saber, inutilmente. Outro goza para viver, inutilmente.» (l. 7). b) «Neste vestido da rapariga que vai em minha frente decomponho o vestido em o estofo de que se compõe, o trabalho com que o fizeram […]» (ll. 10-11). c) «[…] e vejo as secções das fábricas, as máquinas, os operários, as costureiras […]» (ll. 16-17). d) «[…] um orlar irregular regular verde-escuro sobre um verde-claro de vestido» (l. 22). 2. Identifica o aspeto gramatical expresso nas seguintes frases:

FI

Valor aspetual pp. 59-60

a) «Tudo é absurdo» (l. 1). b) «Vivi a vida inteira» (l. 30). ORALIDADE

EXPRESSÃO ORAL

Texto de opinião SIGA pp. 364-365

Texto de opinião 1. A partir do vídeo da canção «As Cidades», de Rodrigo Leão, elabora um texto de opinião, de quatro a seis minutos, no qual apresentes o teu ponto de vista acerca das relações interpessoais nas grandes cidades. Planifica o teu texto oral, elaborando um plano de suporte, com tópicos, argumentos e respetivos exemplos.

«As Cidades» Rodrigo Leão

Ficha informativa

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FICHA INFORMATIVA 3 O imaginário urbano

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[O] narrador do Livro metamorfoseia1 a cidade, vista do alto (da janela do andar de onde mora, ou do parapeito do escritório), reinventando-a a partir de si. Entregar-se ao hábito de viajar nas sensações significa, assim, borrar a fronteira que separa a realidade exterior da interior. Por isso, no Livro, a cidade, que por vezes recebe o nome de Lisboa, não é um espaço objetivo, […] é o nome de um espaço urbano dimensionado por um espírito em solitude. […] [A] cidade de Soares […] é […] núcleo dinâmico de imagens, sons e ritmos para o sonho. Se através dessa cidade-paleta Soares pinta a paisagem onírica do Livro, é natural considerar que o espaço urbano recriado se torna novo estímulo para as sensações. Isso equivale a dizer que, à maneira do ortónimo, Soares se torna capaz de sentir aquilo que os seus sentidos não percebem; de sentir o que a sua imaginação (re)cria: «Pessoa/Soares transubstancia-se2 nos aspetos da sua cidade, a ponto de não sabermos mais o que é dele e o que é da cidade. É a imagem de um exterior em que um interior se imprimiu, como uma pegada» (Perrone-Moisés, 1986: 17)*. E o que é que a imaginação de Bernardo Soares cria? A partir do ponto de vista do narrador, a cidade transforma-se num tecido espacial maleável, por vezes amorfo3, cuja plasticidade é constantemente remodelada por ele. Esse processo de distorção da paisagem ocorre a partir de quatro procedimentos, que encontram exemplificação em muitos fragmentos do Livro: 1) recombinando os seus espaços constituintes; 2) contaminando esses espaços supostamente objetivos com espaços contíguos, similares, mas provenientes do sonho; 3) inserindo na paisagem urbana espaços transplantados, em geral, do campo; 4) apagando, através de um corte na descrição, e em seguida fazendo reaparecer, através de outro corte, a paisagem descrita. Isto posto, podemos afirmar […] que esses procedimentos tornam a cidade um fruto da consciência imaginativa, um espaço de ficção colado ao sujeito percetor. A cidade […] é, portanto, sempre «a outra cidade» […] esvaziada e, em seguida, repovoada pelo poeta, pelo narrador Soares, com as esfoladuras4 da sua memória, com os entalhes5 da sua imaginação. Olhar para a cidade significa, portanto, […] olhar para as pegadas impressas numa rua exterior por um eu misterioso que habita em si. Caio Gagliardi, «De uma Mansarda Rente ao Infinito: A Outra Cidade no Livro do Desassossego», in 9(5('$6í5HYLVWDGD$VVRFLDomR,QWHUQDFLRQDOGH/XVLWDQLVWDV, vol. 17, Santiago de Compostela, Associação Internacional de Lusitanistas, junho 2012, pp. 29-31.

Carlos Botelho, Vista de Lisboa com o Tejo, 1950.

PROFESSOR

MC

Leitura 7.3; 7.4; 7.5; 8.1.

Consolida 1. A cidade de Lisboa representa para Bernardo Soares uma fonte inesgotável de «imagens, sons e ritmos para o sonho». A transfiguração destes na imaginação cria novas imagens que despertam outras sensações no sujeito, conduzindo a uma nova (re) criação, a qual apresenta uma disposição diferente da paisagem inicial, e na qual insere elementos provenientes de espaços distintos do urbano e provenientes do sonho. Cria-se, assim, «outra cidade», dimensionada pelo sujeito.

1 Metamorfoseia: transforma. 2 Transubstancia-se: converte-se

uma substância noutra; transforma-se. 3 Amorfo: sem forma. 4 Esfoladuras: arranhões. 5 Entalhes: cortes. * Fernando Pessoa, Bernardo Soa-

CONSOLIDA

1. Refere o que representa a cidade de Lisboa para Bernardo Soares e como se processa a sua metamorfose em imaginário urbano.

res – Livro do Desassossego, São Paulo, Brasiliense, 1986.

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Unidade 1 // FERNANDO PESSOA

O quotidiano; Deambulação e sonho: o observador acidental

PROFESSOR

MC

Educação Literária 14.1; 14.2; 14.3; 14.4; 14.9; 15.2; 15.7. Gramática 17.1; 18.1; 19.2; 19.3.

PONTO DE PARTIDA

Escrita 10.1; 11.1; 12.1; 12.2; 12.3; 12.4; 13.1.

1. Observa a pintura de René Magritte e descreve-a sucintamente.

Ponto de Partida A pintura apresenta um homem de costas, que se encontra diante de um espelho, no entanto, o reflexo do espelho afigura-se a duplicação da sua representação de costas. Educação Literária 1. Bernardo Soares realça, no início do fragmento, a sua capacidade infinita de percecionar livre e aleatoriamente a realidade, assumindo-se, assim, este parágrafo, como a introdução do texto que parte das sensações que a visão das costas de um homem suscitou em si para uma reflexão acerca do Homem. 2.1 Bernardo Soares observa as costas de um homem normal, como tantos outros que ele vê todos os dias, centrando-se no «casaco de um fato modesto», numa «pasta velha debaixo do braço esquerdo» e num «guarda-chuva enrolado, que trazia pela curva da mão direita», que acompanhava a cadência da sua marcha com o bater da sua ponta no chão. 2.2 A observação condu-lo a uma deambulação interior, suscitada pela súbita «ternura» que sente pela banalidade quotidiana daquele homem, pela «comum vulgaridade humana»: vê-o como «chefe de família», provavelmente com um lar feliz e humilde, e com uma vida composta por prazeres simples e pequenas tristezas. Ou seja, a ternura advém da inconsciência do homem, da «inocência de viver sem analisar», que se conforma com o que a vida lhe dá, sem questionar, aproximando-se, assim, dos restantes animais («naturalidade animal daquelas costas vestidas»). 3. O olhar do sujeito desvia-se para todos aqueles que se encontram na rua, aprofundando a reflexão acionada pela visão anterior: apesar de os seus atos parecerem conscientes, de aparentemente serem distintos, todos eles são iguais e «igualmente estúpidos», por lhes faltar a consciência da inconsciência. Sem isso são meros «fantoches», talvez nas mãos do Destino.

René Magritte, A Reprodução Interdita, 1937.

EDUCAÇÃO LITERÁRIA

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Quando outra virtude não haja em mim, há pelo menos a da perpétua novidade da sensação liberta. Descendo hoje a Rua Nova do Almada, reparei de repente nas costas do homem que a descia adiante de mim. Eram as costas vulgares de um homem qualquer, o casaco de um fato modesto num dorso de transeunte ocasional. Levava uma pasta velha debaixo do braço esquerdo, e punha no chão, no ritmo de andando, um guarda-chuva enrolado, que trazia pela curva na mão direita. Senti de repente uma coisa parecida com ternura por esse homem. Senti nele a ternura que se sente pela comum vulgaridade humana, pelo banal quotidiano do chefe de família que vai para o trabalho, pelo lar humilde e alegre dele, pelas pequenas alegrias e tristezas de que forçosamente se compõe a sua vida, pela inocência de viver sem analisar, pela naturalidade animal daquelas costas vestidas. Desvio os olhos das costas do meu adiantado, e passando-os a todos mais, quantos vão andando nesta rua, a todos abarco nitidamente na mesma ternura absurda e fria que me veio dos ombros do inconsciente a quem sigo. Tudo isto é o mesmo que ele; todas estas raparigas que falam para o atelier, estes empregados jovens que riem para o escritório, estas criadas de seios que regressam das compras pesadas, estes moços dos primeiros fretes – tudo isto é uma mesma inconsciência diversificada por caras e corpos que se distinguem, como fantoches movidos pelas cordas que vão dar aos mesmos dedos da mão de quem é invisível. Passam com todas as atitudes com que se define a consciência, e não têm consciência de nada, porque não têm consciência de ter consciência. Uns inteligentes, outros estúpidos, são todos igualmente estúpidos. Uns velhos, outros jovens, são da mesma idade. Uns homens, outros mulheres, são do mesmo sexo que não existe. Volvi os olhos para as costas do homem, janela por onde vi estes pensamentos. A sensação era exatamente idêntica àquela que nos assalta perante alguém que dorme. Tudo o que dorme é criança de novo. Talvez porque no sono não se possa fazer mal, e se não dá conta da vida, o maior criminoso, o mais fechado egoísta, é sagrado, por uma magia natural, enquanto dorme. Entre matar quem dorme e matar uma criança não conheço diferença que se sinta. Ora as costas deste homem dormem. Todo ele, que caminha adiante de mim com passada igual à minha, dorme. Vai inconsciente. Vive inconsciente. Dorme, porque

Bernardo Soares, Livro do Desassossego – O quotidiano; Deambulação e sonho: o observador acidental

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todos dormimos. Toda a vida é um sono. Ninguém sabe o que faz, ninguém sabe o que quer, ninguém sabe o que sabe. Dormimos a vida, eternas crianças do Destino. Por isso sinto, se penso com esta sensação, uma ternura informe e imensa por toda a humanidade infantil, por toda a vida social dormente, por todos, por tudo. É um humanitarismo direto, sem conclusões nem propósitos, o que me assalta neste momento. Sofro uma ternura como se um deus visse. Vejo-os a todos através de uma compaixão de único consciente, os pobres diabos homens, o pobre diabo humanidade. O que está tudo isto a fazer aqui? Todos os movimentos e intenções da vida, desde a simples vida dos pulmões até à construção de cidades e a fronteiração de impérios, considero-os como uma sonolência, coisas como sonhos ou repousos, passadas involuntariamente no intervalo entre uma realidade e outra realidade, entre um dia e outro dia do Absoluto. E, como alguém abstratamente materno, debruço-me de noite sobre os filhos maus como sobre os bons, comuns no sono em que são meus. Enterneço-me com uma largueza de coisa infinita.

Autor desconhecido, Travessa da Espera, Lisboa, c. 1900.

Bernardo Soares, op. cit., pp. 91-93.

1. Explica o sentido do primeiro parágrafo, considerando a sua função na estrutura do fragmento. 2. A deambulação física conduz Bernardo Soares à observação do que o rodeia, centrando-se nas costas de um homem. 2.1 Identifica os elementos nos quais fixa a sua atenção.

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O quotidiano p. 67

2.2 Esclarece o modo como se processa a passagem para uma deambulação interior, tendo em conta o sentimento que este homem desperta em si. 3. Explicita a reflexão feita pelo sujeito da enunciação suscitada pela mudança do foco da observação. 4. Indica o recurso expressivo presente em «Volvi os olhos para as costas do homem, janela por onde vi estes pensamentos» (l. 25) e refere a sua Recursos expressivos SIGA p. 383 expressividade. 5. Interpreta a analogia entre o sono e as crianças. 6. Esclarece a relação que é estabelecida entre o «eu» e os «outros». 7. Relaciona o modo como Bernardo Soares reparava nas pessoas com a pintura de René Magritte.

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PROFESSOR

4. As costas do homem representam para o sujeito uma «janela», lugar privilegiado do olhar, metáfora que exprime a interiorização suscitada pela observação do real, aquilo que o transporta para o seu interior, para as suas reflexões («por onde vi estes pensamentos»). 5. O sono é o estado durante o qual o ser humano se liberta de toda a carga negativa que o compõe, assemelhando-se a uma criança ingénua e inocente. O homem dorme, toda a humanidade dorme, porque «ninguém sabe o que faz, ninguém sabe o que quer, ninguém sabe o que sabe», isto é, o ser humano, apesar de se caracterizar por ter consciência, age dominado pela inconsciência, não se reconhece como ser capaz de refletir na sua própria existência e na do mundo, atuando como uma criança, feliz com o pouco que possui e que lhe é dado. 6. O «eu», ao adotar a posição de espectador, afasta-se dos «outros», não se incluindo nessa mole humana caracterizada pela inconsciência. Assume-se, em primeiro lugar, como único ser consciente, olhando para a humanidade como «um deus», omnisciente, sentindo compaixão pelos «outros». Depois, é invadido por uma ternura materna e, como tal, infinita, ao olhar para «os outros» e ver neles somente a ingenuidade e a inocência das crianças. 7. A perspetiva do «outro» de Bernardo Soares é a que surge representada na pintura de René Magritte, dado centrar a sua atenção nas pessoas sem se interessar pelas suas feições, como se não existissem. Esta perspetiva é visível no excerto quando, ao descer a rua, repara «nas costas do homem que a descia adiante» de si, umas «costas vulgares de um homem qualquer».

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Unidade 1 // FERNANDO PESSOA

PROFESSOR

7. Na sua deambulação pela Rua Nova do Almada, o sujeito observa acidentalmente algo banal, as costas de um homem, partindo destas para uma reflexão sobre a inconsciência daquelas costas, daquele homem, da humanidade. Vê-os, no sonho, em toda a sua pobre existência humana, entre o nascimento e a morte, numa espécie de sonolência, e, debruçando-se sobre eles, num ato maternal, enternece-se com a sua inocência e ingenuidade. 8. A prosa banal surge na descrição objetiva do que observa na sua deambulação (a descrição física do homem, ll. 4-7), sendo substituída pela «prosa de bom porte» na reflexão original adveniente dessa observação. Ao nível da sintaxe e da semântica, podemos registar algumas ocorrências irregulares, sempre ao serviço do distinguir e subtilizar: «ritmo de andando» (l. 6), «estes moços dos primeiros fretes» (ll. 17-18), «Sofro uma ternura» (ll. 40-41), «como se um deus visse» (l. 41), «penso com esta sensação» (l. 36). Os recursos expressivos, utilizados, igualmente, na distinção e na subtilização, mas também na expressão do impossível: as metáforas («Tudo o que dorme é criança de novo», l. 27; «as costas deste homem dormem», l. 31; «Dormimos a vida», l. 35;…), as antíteses («Uns velhos, outros jovens», ll. 22-23; «Uns homens, outros mulheres», l. 23), seguidas de um paradoxo construído a partir das mesmas («são da mesma idade», l. 23; «são do mesmo sexo que não existe», ll. 23-24);… Gramática 1. Relações de simultaneidade. 2. a) Valor imperfetivo; b) Valor perfetivo; c) Situação habitual; d) Situação genérica. 3. O texto é coerente porque constitui uma reflexão do sujeito da enunciação sobre a ausência do uso da razão (inconsciência) por parte dos seres humanos. Assim, através da quebra da regra da não contradição, reforça o seu ponto de vista ao afirmar a inexistência de diferenças entre os homens em geral: apesar de aparentemente distintos ao nível da inteligência, da idade e do sexo, são todos iguais por serem inconscientes. Escrita

▪ Vídeo Filme do Desassossego ▪ Apresentação em PowerPoint Proposta de correção da atividade de Escrita

7. Relaciona, sucintamente, o fragmento com o título que o antecede, «O quotidiano; Deambulação e sonho: o observador acidental». 8. Indica três características da linguagem e do estilo do Livro do Desassossego presentes neste excerto, fundamentando a tua resposta com elementos textuais.

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O quotidiano; Deambulação e sonho: a observador acidental pp. 67-68

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Linguagem, estilo e estrutura pp. 69-70

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Valor temporal pp. 57-58

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Valor aspetual pp. 59-60

GRAMÁTICA

1. Indica as relações de ordem cronológica estabelecidas entre as formas verbais e os respetivos pontos de referência na frase: «Descendo hoje a Rua Nova do Almada, reparei de repente nas costas do homem que a descia adiante de mim» (ll. 3-4). 2. Identifica o aspeto gramatical expresso nos seguintes enunciados:

a) «Levava uma pasta velha debaixo do braço esquerdo, e punha no chão […] um guarda-chuva enrolado, que trazia pela curva na mão direita» (ll. 5-7). b) «Volvi os olhos para as costas do homem, janela por onde vi estes pensamentos» (l. 25). c) «Vive inconsciente» (l. 32) d) «Toda a vida é um sono» (l. 33). textual 3. Demonstra que o seguinte excerto, apesar de apresentar dados SIGA Coerência pp. 376-377 incompatíveis com o nosso conhecimento do mundo, é coerente. «Uns inteligentes, outros estúpidos, são todos igualmente estúpidos. Uns velhos, outros jovens, são da mesma idade. Uns homens, outros mulheres, são do mesmo sexo que não existe» (ll. 22-24).

ESCRITA

Texto de opinião SIGA pp. 364-365

Texto de opinião 1. Visiona, atentamente, um excerto do Filme do Desassossego. Num texto de opinião, apresenta o teu ponto de vista sobre esta recriação do Livro do Desassossego, considerando os seguintes tópicos: • estrutura circular do filme; • comparação com os fragmentos analisados do Livro e as respetivas temáticas; • relação entre o criador e as personagens criadas. No final, faz a revisão do teu texto. Verifica a construção das frases, a clareza do discurso, as repetições desnecessárias e a utilização dos conectores.

Filme do Desassossego (2010) REAL. João Botelho

Ficha informativa

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FICHA INFORMATIVA 4 O quotidiano

PROFESSOR

Contento-me, afinal, com muito pouco: o ter cessado a chuva, o haver um sol bom neste Sul feliz, bananas mais amarelas por terem nódoas negras, a gente que as vende porque fala, os passeios da Rua da Prata, o Tejo ao fundo, azul esverdeado a ouro, todo este recanto doméstico do sistema do Universo. Bernardo Soares, Livro do Desassossego: composto por Bernardo Soares, ajudante de guarda-livros na cidade de Lisboa (ed. Richard Zenith), 7.ª ed., Lisboa, Assírio & Alvim, 2014, p. 167.

Quotidianidade lisboeta

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Leitura 7.1; 7.3; 7.4; 7.5; 8.1.

Consolida 1. a) V. b) F. […] assemelha-se à rotina e à sensaboria do dia a dia de Bernardo Soares, pois «Tudo é igual, vulgar e monótono, como, aliás, tudo aquilo que o rodeia» (l. 19).

Morador dum quarto alugado num segundo andar da Rua dos Douradores, ajudante de guarda-livros no escritório do mesmo prédio, num quarto andar, sobre a cidade e o Infinito, «transeunte de corpo e alma» pelas ruas da Baixa e do Sonho, Bernardo Soares é um digno sucessor do seu constante e comovidamente evocado Cesário Verde. Como ele, ligado à atividade comercial, como ele, passeante anónimo e atento, mesmo quando distraído, Bernardo Soares faz da sua errância por Lisboa […] um verdadeiro exercício dos sentidos. A sua Lisboa é a cidade do quotidiano, onde a náusea, o tédio e o gozo se misturam com todas as cores, todos os sons e todos os cheiros que sobre ela pairam diariamente. […] No 2.º andar da Rua dos Douradores, no 4.º andar da Rua dos Douradores, pela Rua da Prata, da Alfândega, do Arsenal, dos Fanqueiros, pela Praça da Figueira, pelo Terreiro do Paço, com o Tejo sempre ao lado, um céu em permanente metamorfose policromática, e todas as paisagens que os olhos da alma alcançam, vive Bernardo Soares a sua «vil» vida quotidiana de transeunte incógnito. O seu dia a dia é, pois, constituído pelo trabalho, as refeições no restaurante, as estadas no café, a deambulação pela cidade, a meditação, a escrita, o sonho diário. Tudo é igual, vulgar e monótono, como, aliás, tudo aquilo que o rodeia. […] Como uma objetiva móvel ou fixa, pronta a disparar a qualquer momento, Bernardo Soares vai focando a massa humana que desfila à sua frente […]. Mas também a azáfama das ruas em atividade é registada: os carroceiros carregando os caixotes, as vendedeiras, os jornais do dia, a agitação colorida da Praça da Figueira, os moços dos fretes fingindo que trabalham. La Salette Loureiro, A Cidade em Autores do Primeiro Modernismo: Pessoa, Almada e Sá-Carneiro, Lisboa, Editorial Estampa, 1996, pp. 178-197. CONSOLIDA

1. Com base no texto, classifica as afirmações como verdadeiras (V) ou falsas (F), corrigindo as falsas. a) Bernardo Soares assemelha-se a Cesário Verde pela deambulação, perceção e registo da realidade circundante. b) O quotidiano lisboeta contrasta com a vivacidade do dia a dia de Soares.

Joshua Benoliel, A Brazileira, Chiado, Lisboa, 1925.

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Unidade 1 // FERNANDO PESSOA

FICHA INFORMATIVA 5 Deambulação e sonho: o observador acidental

PROFESSOR

Consolida

Em certos momentos muito claros da meditação, como aqueles em que, pelo princípio da tarde, vagueio observante pelas ruas, cada pessoa me traz uma notícia, cada casa me dá uma novidade, cada cartaz tem um aviso para mim.

1. As ruas de Lisboa são perspetivadas por Bernardo Soares não só como o seu «berço», mas também como «lugar de significação», espaço onde se debate consigo mesmo e que lhe provoca «descrença» e «desassossego» (l. 3). 2. Bernardo Soares deambula pela cidade de Lisboa, cidade em desenvolvimento, que lhe oferece continuamente novas realidades para observar. Esta deambulação exterior transforma-se frequentemente numa deambulação interior (em sonho) ao proceder a um «exercício decifrativo» daquilo que o rodeia («cada pessoa que encontro assume aspetos de símbolos»), embrenhando-se totalmente no sonho, como um «barco singrando num turismo infinito». Outras vezes, a deambulação física surge em simultâneo com o devaneio, seguindo «pela rua, pela tarde e pela leitura sonhada».

Bernardo Soares, Livro do Desassossego: composto por Bernardo Soares, ajudante de guarda-livros na cidade de Lisboa (ed. Richard Zenith), 7.ª ed., Lisboa, Assírio & Alvim, 2014, p. 294.

O olhar do flâneur 1

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1 Flâneur: aquele que passeia sem

destino e sem pressa. 2 Introjetivo: instrospetivo; que

Um dos meus passeios prediletos […] é o de seguir lentamente pela rua fora antes da abertura das lojas e dos armazéns. A rua que é aqui o berço é também para Bernardo Soares arena de combate, lugar de significação, de descrença e de desassossego, dependendo de estar só ou imerso na multidão. […] No advento da industrialização e das grandes concentrações urbanas, o citadino descobre a força e o desencanto de uma nova mirada. O flâneur é esse citadino, a um tempo marginal (porque não produtivo ou criticamente produtivo) e representativo da cidade que continuamente lê, e onde, a espaços intervalares, propositadamente se perde [vagueio indefinidamente]. […]. O flâneur que exerce na multidão a escrita do seu olhar – Há dias em que cada pessoa que encontro assume aspetos de símbolos […] que formam uma escrita poética ou oculta – é, portanto, um melancólico. Em fase de exercício alegórico. Mas não o é menos quando, contrapondo-se a esse exercício decifrativo, toma a rua como berço […] e a cidade como a pátria reencontrada – Oh, Lisboa, meu lar! Conforta-se de tristeza, enfaticamente acarinhado, no prolongamento das ruas, pela sua própria melancolia […]. Lisboa não é só o espaço para ver, o lugar para olhar, mas o espaço da visão envolvente, o lugar onde o olhar se vê. E por dois motivos: é que o olhar percecionante de Bernardo Soares não só é cortado por outro olhar – o introjetivo2 que o liga ao fundo – como é esfericamente alargado por um olhar circundante que o suspende de um cosmos invisível. Se o dominador olho do flâneur vai até à janela, alta acima dos telhados, de onde pode ver a cidade, o do sonho desvia-se do fisicamente olhado, barco singrando num turismo infinito, ou torna simultânea a sua leitura de uma outra – sigo, simultaneamente, pela rua, pela tarde e pela leitura sonhada.

analisa o interior.

Ricardina Guerreiro, «De luto por existir», in A Melancolia de Bernardo Soares à Luz de Walter Benjamin, Lisboa, Assírio & Alvim, 2004, pp. 159-163 (texto adaptado).

CONSOLIDA

1. Refere-te à forma como Bernardo Soares perspetiva as ruas de Lisboa e indica os efeitos que provocam no seu estado de espírito. 2. Explicita como se processam a deambulação e o sonho em Bernardo Soares, considerando o facto de ser um observador acidental.

Ficha informativa

69

FICHA INFORMATIVA 6 Linguagem, estilo e estrutura

5

Sou, em grande parte, a mesma prosa que escrevo. Desenrolo-me em períodos e parágrafos, faço-me pontuações, e, na distribuição desencadeada das imagens, visto-me, como as crianças, de rei com papel de jornal, ou, no modo como faço ritmo de uma série de palavras, me touco, como os loucos, de flores secas que continuam vivas nos seus sonhos. Bernardo Soares, Livro do Desassossego: composto por Bernardo Soares, ajudante de guarda-livros na cidade de Lisboa (ed. Richard Zenith), 7.ª ed., Lisboa, Assírio & Alvim, 2014, p. 182.

PROFESSOR

MC

Leitura 7.1; 7.3; 7.4; 7.5; 8.1.

Sugestão ao professor: para uma melhor compreensão do texto «A prosa do Livro do Desassossego» (p. 70), sugere-se a leitura prévia do fragmento «Meditei hoje […]» e a elaboração de uma síntese das ideias fundamentais sobre a escrita, segundo Bernardo Soares.

1. A natureza fragmentária da obra

5

10

15

A composição do Livro do Desassossego percorre quase toda a vida adulta de Pessoa, desde os seus 25 anos de idade até ao ano anterior à sua morte, pelo menos. […] Numa carta dirigida ao poeta Armando Côrtes-Rodrigues, em 2-9-1914, caracterizou o livro como uma «produção doentia», que ia «complexamente e tortuosamente avançando», e em 19-11-1914, para o mesmo amigo, escreveu: «O meu estado de espírito obriga-me agora a trabalhar bastante, sem querer, no Livro do Desassossego […]. Mas tudo fragmentos, fragmentos, fragmentos». Juntando as referências contidas nas duas cartas, poderíamos propor «fragmentos complexa e tortuosamente avançando» como uma justa caracterização do Livro em progresso – uma progressão que nunca chega a um término. Os «fragmentos» eram-no em dois sentidos: 1) por serem unidades discretas que, embora sendo temática e estilisticamente relacionáveis com outros fragmentos, tinham – cada uma delas – perfeita autonomia; 2) por estas «unidades» serem, frequentemente, pouco unas, salpicadas de lacunas ou abandonadas a meio, sobretudo na fase inicial. Acresce o facto de o autor nunca ter estabelecido uma ordem para os cerca de 500 fragmentos que deixou, pelo que são infinitamente combináveis, segundo variados critérios, incluindo o da mera aleatoriedade. Richard Zenith, «Livro do Desassossego», in Fernando Cabral Martins (coord.), Dicionário de Fernando Pessoa e do Modernismo Português, Lisboa, Editorial Caminho, 2008, pp. 413-414.

2. (Des)construção do biográfico

5

Não sendo suscetível de uma classificação como diário, autobiografia ou memórias, mas pretendendo-se narração de uma «autobiografia sem factos», de uma «história sem vida», o Livro do Desassossego, ao mesmo tempo que se distancia de um modelo tradicional dos géneros, afirma-se como uma escrita na qual a noção de biográfico é (des)construída no exterior de uma lógica dos factos ou de uma lógica do encadeamento de interpretações. O biográfico é nele jogo, experimentação e, por isso, […] este se impõe na ausência de um fio de memória que estabeleça a unidade. […] Escrever é virar a página e recomeçar. Silvina Rodrigues Lopes, «A ficção da memória e a inscrição do esquecimento no “Livro do Desassossego”», in Colóquio-Letras, n.º 77, janeiro de 1984, p. 19.

Francis Smith, Trecho de Lisboa com o Tejo (pormenor), s.d.

70

Unidade 1 // FERNANDO PESSOA

3. «Prosa de bom porte»

PROFESSOR

Consolida 1. O texto 1 refere o caráter fragmentário do Livro do Desassossego, assumido pelo próprio Fernando Pessoa: «Mas tudo fragmentos, fragmentos, fragmentos». Segundo Richard Zenith, os textos que compõem o Livro são assim classificados por serem unidades com autonomia e por, frequentemente, se encontrarem incompletas (com hiatos ou inacabadas). O texto 2 aborda a dificuldade de classificação genológica do Livro, uma vez que o autor, ao classificá-lo como «autobiografia sem factos» e «história sem vida», afasta qualquer classificação. No entanto, ao longo do mesmo, ele joga com o cariz biográfico, pois os textos não apresentam uma ligação, não havendo um retomar do texto anterior, como se o que foi escrito tivesse sido esquecido. Assim, cada texto assume-se como uma unidade nova e autónoma («Escrever é virar a página e recomeçar»). 2. O Livro do Desassossego encontra-se escrito em prosa, caracterizada por Bernardo Soares como «prosa de bom porte», ou seja, de valor, cuidada. Verifica-se o afastamento da expressão banal, procurando-se originalidade, típica da escrita modernista que domina o livro. Ao nível gramatical, a sintaxe afigura-se complexa pelo incumprimento, intencional, dos mecanismos de construção da coesão frásica; os recursos expressivos tanto são utilizados literalmente (a sinédoque), como de modo intrincado através do paradoxo, do oxímoro e de encadeamentos de metáforas, com rigor gramatical. Esta aparente contradição justifica-se pela intenção de «distinguir e subtilizar», de dizer «impossivelmente». * Fernando Pessoa, Livro

do Desassossego, por Bernardo Soares, I e II (recolha e transcrição dos textos por Maria Aliete Galhoz e Teresa Sobral Cunha; prefácio e organização de Jacinto do Prado Coelho), Lisboa, Ática, 1982.

5

A forma discursiva em que Bernardo Soares realiza a escrita literária é a «prosa», na circunstância caracterizada como «prosa de bom porte». A caracterização que faz da prosa posta ao serviço da escrita literária não deixa de ser estranha. A aceção em que o termo «porte» é aqui utilizado, no sentido de valor, não é muito corrente. Corresponde, porém, a uma procura de originalidade, de afastamento da expressão banal, muito típica da escrita modernista dominante no Livro quando ele mais próximo está do diário que dá conta do viver e das reflexões do ajudante de guarda-livros na cidade de Lisboa. A «prosa» é, aliás, a forma que ele escolheu para […] «interpelar a vida» e «dizer o que as almas sentem!». Fernando J. B. Martinho, «“Autoconsciência literária em Bernardo Soares”, com uma coda sobre o Livro como um livro de sabedoria», in Patrícia Soares Martins et al. (org.), Central de Poesia: o Livro do Desassossego, Lisboa, CLEPUL – Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, 2014, p. 34.

4. A prosa do Livro do Desassossego

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A sintaxe, que marca a prosa do Livro, exemplifica-se com ruturas de categorização, que, num esforço de concisão clássica, todavia alheio a características marcantes da língua, extrai «aquela rapaz» de «aquela rapariga é um rapaz» (I. p. 22)*. Ou então sobrepõe à estreiteza clássica o estreitamento de um foco subjetivo, que torna de algum modo literais figuras como a sinédoque totalizante. Assim, quando o guarda-livros nos propõe que um «ruído de rodas faz carroça», isso é tão correto quanto deveras apenas se ouça aquilo que se refere. Em suma, a prosa de Soares substitui às feições da língua, que são o próprio e o irregular, a posse literária e individual das capacidades associadas de distinguir e subtilizar (I. p. 15)*. A irregularidade é semântica. […] Na prosa pessoana surge-nos uma contaminação da meticulosidade gramatical com as figuras do paradoxo, enlaces de metáforas e oxímoros. Veja-se esta prosa como sendo alimentada por uma capacidade rítmica peculiar, que poderemos alinhar com as espécies da subtilização. Esse ritmo, não deixa de referir o semi-heterónimo, é dissolvente e torna todas as coisas outras coisas quaisquer (II, p. 240)*. Tornando qualquer, os ritmos dissolvem tudo o que no plano da lógica e da história da língua se opõe ao que vai sendo impossivelmente dito. Américo António Lindeza Diogo, «Livro (o) do Desassossego», in José Augusto Cardoso Bernardes et al. (dir.), Biblos, Enciclopédia das Literaturas de Língua Portuguesa, vol. 3, Lisboa, Editorial Verbo, 1999, p. 188.

CONSOLIDA

1. Indica as informações essenciais acerca do Livro do Desassossego presentes nos textos 1 e 2. 2. Considerando os textos 3 e 4, sintetiza alguma das principais características da prosa do Livro.

Bernardo Soares, Livro do Desassossego

LEITURA

PROFESSOR

Diário

MC

1. Lê atentamente o excerto do Diário VIII, de Miguel Torga.

5

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15

20

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FI

Diário p. 72

S. Martinho de Anta, 20 de outubro de 1955 – O solar da família, térreo, de telha vã, encimado pelo seu brasão de armas esquartelado1, com enxadões2 em todos os campos… Foi desta realidade que parti, e é a esta realidade que regresso sempre, por mais voltas que dê nos caminhos da vida. […] Há tempos, em Lovios, no Gerês espanhol, depois de conversar com vários habitantes da povoação, interessei-me por um tumor a despontar no pescoço de uma velhota. − É doutor… − informou o meu companheiro. − Que doutor! Ele é como nós!... E sou. Tudo menos trânsfuga3 da minha classe. Nasci povo, povo continuo, e povo quero morrer. A burguesia compra-me Guilherme Filipe, Retrato de Miguel Torga. algum suor e alguns livros, mas é confiado na subversão do seu poder que vivo. Aliás, quer profissionalmente, quer literariamente, ainda é quando ponho as mãos e molho a pena nas chagas e no sangue dos meus que dou o melhor de mim. Foi na clínica rural que me senti médico a sério, e cuido que as coisas mais válidas que escrevi sabem à terra nativa que trago agarrada aos pés. […] E quando aqui chego, embrulhado na cultura e no diploma – que, de resto, só me ajudaram a consciencializar o meu caso –, é o bilhete de identidade passado pela tal camponesa galega que me deixa bater sem constrangimentos à porta do ninho. Nem o dono que me manda entrar, nem os vizinhos que, curiosos, espreitam dos seus buracos, me podem estranhar. Sou como eles… Miguel Torga, Diário, vols. V a VIII, 5.ª ed., Alfragide, Dom Quixote, 2010, pp. 278-279. 1 Esquartelado: diz-se do brasão divi-

dido em quatro partes iguais. 2 Enxadões: enxadas grandes.

3 Trânsfuga: aquele que renega os

seus princípios; desertor.

1.1 A partir da leitura deste registo, é possível inferir algumas informações autobiográficas do sujeito da enunciação. Indica-as. 1.2 Demonstra que as considerações iniciais acerca da sua origem conduzem à recordação de um facto vivido, o qual propicia uma reflexão por parte do sujeito. 1.3 Identifica o recurso expressivo presente em «à porta do ninho» (l. 25) e refere a sua expressividade.

Recursos expressivos SIGA p. 383

1.4 Destaca algumas marcas linguísticas que evidenciem a implicação do eu no discurso.

Leitura 7.1; 7.3; 7.4; 7.5; 7.7; 8.1.

1.1 A partir da leitura do registo, é possível inferir que o sujeito da enunciação é natural de S. Martinho de Anta («O solar da família […]. Foi desta realidade que parti»), que é médico («interessei-me por um tumor a despontar no pescoço de uma velhota.», «– É doutor…»), tendo exercido a sua profissão no meio rural («em Lovios, no Gerês espanhol», «Foi na clínica rural que me senti médico a sério»), e que se dedicava também à escrita («A burguesia compra-me […] alguns livros», «[…] molho a pena nas chagas e no sangue dos meus», «as coisas mais válidas que escrevi»). 1.2 As considerações iniciais acerca das suas origens despertam no sujeito um sentimento de pertença que o conduz à recordação das palavras daquela velhota de Loivos, no Gerês espanhol – «Que doutor! Ele é como nós!...» (l. 14) – e a uma reflexão acerca desse reconhecimento enquanto seu semelhante. De facto, o eu afirma-se, orgulhosamente, parte integrante desse povo («E sou. Tudo menos trânsfuga da minha classe», ll. 15-16), sentindo-se grato por este ter contribuído para se sentir profissionalmente realizado e por ser, juntamente com a «terra nativa», fonte de inspiração da sua escrita, «[d]as coisas mais válidas que [escreveu]». 1.3 A metáfora apresenta um duplo sentido: primeiro, representa o aconchego do lar para quem ali reside; segundo, transmite o sentimento de pertença do sujeito àquele lugar, por se sentir um elemento do povo. 1.4 Formas verbais na 1.a pessoa do singular («parti», «regresso», «sou», «Nasci», «continuo», «chego»,…); referências deíticas pessoais (as formas flexionadas de 1.a pessoa; os pronomes pessoais «me» (reiterado) e «mim»; os determinantes possessivos «minha» e «meu») e espaciais (os determinantes demonstrativos «desta» e «esta»; o advérbio de lugar «aqui»); formas flexionadas que exprimem sentimentos, estados, intenções, crenças («sou», «dou», «senti», «cuido»); a linguagem acessível («Nasci povo, povo continuo, e povo quero morrer»); um discurso subjetivo, marcado pela conotação («é quando ponho as mãos e molho a pena nas chagas e no sangue dos meus que dou o melhor de mim»; «sabem à terra nativa que trago agarrada aos pés.»; «o bilhete de identidade passado pela tal camponesa galega»).

72

Unidade 1 // FERNANDO PESSOA

FICHA INFORMATIVA 7 PROFESSOR

MC

Leitura 7.1; 7.3; 7.4; 7.5; 7.7; 8.1.

Diário 1. O que é? [R]egisto quotidiano de eventos e vivências, o diário assenta a sua especificidade, antes de mais, no tipo de narração que privilegia: a narração intercalada, justamente caracterizada pelo facto de ser uma enunciação narrativa intermitente, ocorrida em momentos de pausa da história, neste caso constituída pelas experiências que o dia a dia vai propiciando ao narrador. Carlos Reis e Ana Cristina M. Lopes, «Diário», in Dicionário de Narratologia, 7.ª ed., Coimbra, Almedina, 2000, p. 105.

2. Quais as temáticas abordadas? Nível do conteúdo – temáticas da escrita diarística Conjugação de interioridade e de exterioridade no registo do quotidiano: • Itinerário intelectual do sujeito da escrita: sonhos, ficções, pensamentos, ideias, ideais, reflexões sobre problemáticas que o afetam, que afetam o seu país ou o mundo. • Radiografia de uma época e de um homem nela presente e empenhado: contexto histórico, político e social em que se insere o eu. • Incidentes e impressões de viagens. • Testemunho de situações importantes ou insignificantes. • Descoberta e conquista pelo eu da sua própria liberdade: comentários sobre si mesmo (confessionalismo).

Fontes: • Ana Maria Machado, «Diarística e autobiografia. A construção do eu», in Cristina Martins et al. (org.), Os Programas de Português dos Ensinos Básico e Secundário, Actas das III Jornadas Científico-pedagógicas do Português, Coimbra, Instituto de Língua e Literatura Portuguesas da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, 2008. • Carlos Reis e Ana Cristina M. Lopes, Dicionário de Narratologia, 7.ª ed., Coimbra, Almedina, 2000. • Clara Rocha, «Diário», in José Augusto Cardoso Bernardes et al. (dir), Biblos, Enciclopédia das Literaturas de Língua Portuguesa, vol. 3, Lisboa, Editorial Verbo, 1999. • Maurice Blanchot, O livro por vir (trad. Leyla Perrone Moisés), São Paulo, Martins Fontes, 2005.

3. Que características apresenta? Características técnico-compositivas • Sucessão de notas datadas: narração intercalada. • Escrita reatada diariamente (ou periodicamente), fragmentária: o eu vai-se constituindo por acrescento e por sobreposição, surgindo disperso ao sabor dos dias e dos momentos. • Coincidência entre o sujeito da enunciação e o sujeito do enunciado. • Escrita em prosa ou em verso, mas geralmente em prosa. • Marcas autobiográficas. • Marcas de implicação do eu no discurso: – linguagem acessível: registo informal; – discurso subjetivo, frequentemente conotativo; – formas verbais na 1.ª pessoa; – referências deíticas pessoais, temporais e espaciais; – verbos que expressam sentimentos, estados, intenções, crenças (acreditar, pretender, crer, estar, parecer, ser, surpreender, …).

73

SÍNTESE

Livro do Desassossego, Bernardo Soares

• A supremacia do ato de sonhar: «Eu nunca fiz senão sonhar.» Perceção e transfiguração poética do real

• A captação do real processa-se através dos vários sentidos integrados no ato de ver: ponto de partida para a transposição do real. • A focalização em pormenores banais do quotidiano e o seu desdobramento, a sua transfiguração em novas imagens no seu interior, criando a ilusão de um «novo mundo» distinto do mundo exterior. • O sonho: a única verdade na vida do sujeito da enunciação. • Um mundo de perceções e de sensações originadas pela memória.

O imaginário urbano

• Um mundo (re)criado («outra cidade»): disposição distinta da paisagem inicial, composto por elementos provenientes de espaços distintos do urbano e do sonho. • A modernidade: «fábricas», «máquinas», «operários», «ruas», «automóveis»,… • Lisboa, a cidade do quotidiano: a massa humana, a azáfama das ruas em atividade.

O quotidiano

• A vida quotidiana do sujeito, transeunte incógnito. • A comparação do eu com as ruas da cidade que surgem como a materialização daquilo que sente: prolongamento do interior para o exterior.

Deambulação e sonho: o observador acidental

• A focalização nos pormenores da realidade circundante: a observação acidental de algo banal conduz à reflexão e ao sonho. • A passagem da deambulação física para a deambulação onírica: metamorfose do exterior e projeção das imagens interiores no exterior. • A natureza fragmentária da obra – «Mas tudo fragmentos, fragmentos, fragmentos»: – composta por cerca de 500 fragmentos, infinitamente combináveis, incluindo a aleatoriedade;

Linguagem, estilo e estrutura

– fragmentos = unidades autónomas, não havendo uma retoma da anterior, incompletas, com hiatos ou inacabadas. • Linguagem e estilo – ao serviço do «distinguir e subtilizar», do dizer «impossivelmente»: – prosa cuidada que, quando se aproxima da escrita diarística, se afasta da expressão banal, procurando-se originalidade, típica da escrita modernista que domina o livro; – sintaxe complexa: incumprimento intencional dos mecanismos de coesão frásica; – recursos expressivos utilizados literalmente (sinédoque) ou de modo intrincado, com rigor gramatical, através de paradoxos, oxímoros, encadeamento de metáforas.

Deambulação

O sonho O imaginário urbano

O quotidiano

O observador acidental

Transfiguração poética do real

Perceção do real

PROFESSOR

▪ Apresentação em PowerPoint Síntese da subunidade

74

Bernardo Soares, Livro do Desassossego

Mensagens

PROFESSOR

MC

Educação Literária 15.5; 16.2.

em diÁLogo

Escrita 10.1; 11.1; 12.1; 12.2; 12.3; 12.4; 13.1. Oralidade 3.1; 4.1; 4.2; 5.1; 5.2; 5.3; 6.4. Escrita

Bernardo Soares, no Livro do Desassossego, afirma: «[…] gozo de sentir-me coevo de Cesário Verde, e tenho em mim, não outros versos como os dele, mas a substância igual à dos versos que foram dele.»

Mensagens em diálogo A deambulação pelas ruas da cidade de Lisboa é comum a Cesário Verde e a Bernardo Soares, permitindo-lhes observar a realidade circundante e percecioná-la através dos sentidos, nomeadamente, da visão. Em «O sentimento dum ocidental», a descrição das ruas da cidade, ao anoitecer, invadidas pela soturnidade e pela melancolia, desperta no sujeito poético «um desejo absurdo de sofrer». Efeito semelhante têm essas ruas tristes em Soares, que é invadido por «uma tristeza de todo o ser», pela amargura. Desta observação do real quotidiano sobressaem, em ambos, as cores e as formas dos objetos que ativam a imaginação e conduzem à transfiguração poética. Cesário, por exemplo, centra-se, no poema «Num bairro moderno», num pormenor do quotidiano, as frutas e os legumes de uma giga, procedendo à sua transfiguração numa figura feminina. Esta perceção subjetiva da realidade objetiva é uma constante em Bernardo Soares, uma vez que tudo o que observa no seu quotidiano é matéria para proceder ao seu desdobramento e à sua transfiguração, como a gola da rapariga sentada à sua frente no elétrico.

Bernardo Soares, Livro do Desassossego: composto por Bernardo Soares, ajudante de guarda-livros na cidade de Lisboa (ed. Richard Zenith), 7.ª ed., Lisboa, Assírio & Alvim, 2014, p. 41.

DESAFIO

Redige uma exposição, de 130 a 170 palavras, sobre a expressão do quotidiano e a perceção e transfiguração poética do real em Bernardo Soares e Cesário Verde, fundamentando o teu texto em referências textuais pertinentes.

Mensagens

em deBAte Será a consciência uma bênção ou uma maldição? DESAFIO

Prepara um debate, de trinta a quarenta minutos, respeitando o tema apresentado e relacionando-o com Fernando Pessoa ortónimo (dor de pensar) e Bernardo Soares. Planifica a tua intervenção oral, tendo em conta as características discursivas do género solicitado e participa oportuna e construtivamente na interação oral. Não esqueças a concisão do teu discurso e o respeito pelos princípios de cortesia.

Mensagens em debate ▪ Apresentação em PowerPoint Debate: sugestões de tópicos de abordagem ▪ Teste interativo Pessoa (ortónimo) e Livro do Desassossego

Graham Dean, Correspondente, 1987.

Ficha formativa

75

Grupo I A Lê com atenção o poema de Fernando Pessoa. Ó sino da minha aldeia, Dolente1 na tarde calma, Cada tua badalada Soa dentro da minha alma. 5

10

15

COTAÇÕES Grupo I A 1. 2. 3.

E é tão lento o teu soar, Tão como triste da vida, Que já a primeira pancada Tem o som de repetida.

B 4. 5.

Por mais que me tanjas2 perto Quando passo, sempre errante, És para mim como um sonho. Soas-me na alma distante.

1 Dolente: doloroso, magoado, triste. 2 Tanger: tocar (um instrumento musical).

1. Identifica o estímulo exterior que ativa o processo de intelectualização, explicitando o seu efeito sobre o sujeito lírico. 2. Clarifica o sentido da penúltima estrofe. 3. Caracteriza o poema quanto à estrofe, métrica e rima.

B Lê o seguinte excerto do Livro do Desassossego.

10

20 pontos 20 pontos 20 pontos

20 pontos 20 pontos 100 pontos

PROFESSOR

A cada pancada tua, Vibrante no céu aberto, Sinto mais longe o passado, Sinto a saudade mais perto. Fernando Pessoa, op. cit., p. 42.

5

FICHA FORMATIVA

Amo, pelas tardes demoradas de verão, o sossego da cidade baixa, e sobretudo aquele sossego que o contraste acentua na parte que o dia mergulha em mais bulício. A Rua do Arsenal, a Rua da Alfândega, o prolongamento das ruas tristes que se alastram para leste desde que a da Alfândega cessa, toda a linha separada dos cais quedos – tudo isso me conforta de tristeza, se me insiro, por essas tardes, na solidão do seu conjunto. Vivo uma era anterior àquela em que vivo; gozo de sentir-me coevo de Cesário Verde, e tenho em mim, não outros versos como os dele, mas a substância igual à dos versos que foram dele. Por ali arrasto, até haver noite, uma sensação de vida parecida com a dessas ruas. De dia elas são cheias de um bulício que não quer dizer nada; de noite são cheias de uma falta de bulício que não quer dizer nada. Eu de dia sou nulo, e de noite sou eu.

Grupo I A 1. O estímulo auditivo é o som das badaladas do «sino». Esta cadência «dolente» é intelectualizada («Cada tua badalada / Soa dentro da minha alma.», vv. 3-4), produzindo no eu lírico tristeza («Tão como triste da vida», v. 6) e conduzindo à evocação do passado e do sonho («Que já a primeira pancada / Tem o som de repetida.», vv. 7-8; «És para mim como um sonho / Soas-me na alma distante.», vv. 11-12). 2. Esta estrofe sintetiza a temática do poema. Através do pensamento, o passado e o presente; a realidade e o sonho confluem na expressão poética. O sujeito lírico, «errante», peregrino da verdade e do sentido da vida, conclui que, apesar da proximidade espacial e temporal do toque do sino («Por mais que me tanjas perto / Quando passo […]»,vv. 9-10), o seu som transporta quer para o mundo onírico, quer para o passado («És para mim como um sonho. / Soas-me na alma distante.», vv. 11-12). 3. O poema é constituído por quatro quadras, com rima cruzada nos versos pares e solto nos restantes. Os versos têm sete sílabas métricas (redondilha maior) – «Ó/ si/no/ da/ mi/ nha al/dei/a».

76

Unidade 1 // FERNANDO PESSOA

PROFESSOR

Grupo I B 4. O sossego das tardes de verão produz em Bernardo Soares a sensação de estar naquele espaço numa época anterior à sua, a época de Cesário Verde, suscitando-lhe prazer por considerar sentir o mesmo que o poeta quando deambulava pelos mesmos lugares, ou seja, sentir a sua perceção da realidade, a essência das coisas, expressa nos seus versos. 5. A expressão do quotidiano da cidade de Lisboa está presente na descrição do sossego que se faz sentir na baixa, pelas suas ruas, nas «tardes demoradas de verão», a indicar ser um ato do dia a dia do sujeito, bem como na forma como é descrita a massa humana: algo que é habitualmente percecionado (repetição da forma verbal «passam»), com pormenores só possíveis após uma observação reiterada (a locução adverbial «de sempre» com valor adjetival a caracterizar os passeios dos «reformados de tudo», a utilização do nome «vadios» e do adjetivo «parados» a qualificar os «donos das lojas», o não serem frequentes os automóveis, «ali», naquela hora).

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Não há diferença entre mim e as ruas para o lado da Alfândega, salvo elas serem ruas e eu ser alma, o que pode ser que nada valha, ante o que é a essência das coisas. Há um destino igual, porque é abstrato, para os homens e para as coisas – uma designação igualmente indiferente na álgebra do mistério. Mas há mais alguma coisa... Nessas horas lentas e vazias, sobe-me da alma à mente uma tristeza de todo o ser, a amargura de tudo ser ao mesmo tempo uma sensação minha e uma coisa externa, que não está em meu poder alterar. Ah, quantas vezes os meus próprios sonhos se me erguem em coisas, não para me substituírem a realidade, mas para me confessarem seus pares em eu os não querer, em me surgirem de fora, como o elétrico que dá a volta na curva extrema da rua, ou a voz do apregoador noturno, de não sei que coisa, que se destaca, toada árabe, como um repuxo súbito, da monotonia do entardecer! Passam casais futuros, passam os pares das costureiras, passam rapazes com pressa de prazer, fumam no seu passeio de sempre os reformados de tudo, a uma ou outra porta reparam em pouco os vadios parados que são donos das lojas. Lentos, fortes e fracos, os recrutas sonambulizam em molhos ora muito ruidosos ora mais que ruidosos. Gente normal surge de vez em quando. Os automóveis ali a esta hora não são muito frequentes; esses são musicais. No meu coração há uma paz de angústia, e o meu sossego é feito de resignação. Passa tudo isso, e nada de tudo isso me diz nada, tudo é alheio ao meu destino, alheio, até, ao destino próprio – inconsciência, círculos de superfície quando o acaso deita pedras, ecos de vozes incógnitas – a salada coletiva da vida. Bernardo Soares, op. cit., pp. 41-42.

4. Esclarece a intenção de Bernardo Soares ao afirmar sentir-se «coevo de Cesário Verde». 5. Comprova a presença da expressão do quotidiano neste fragmento.

Grupo II Lê atentamente o seguinte texto.

Sacrifício freudiano 1 Saudosismo: movimento literário

e filosófico português do início do século XX, cujo mentor foi Teixeira de Pascoaes. Preconizava a renovação intelectual do país por meio de um regresso à tradição cultural portuguesa, nomeadamente através da exaltação da saudade (traço peculiar da alma portuguesa) e do culto de um patriotismo místico de caráter messiânico. 2 Freudianamente: de modo freudiano; relativo às teorias de Freud, à psicanálise.

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Falamos de Pessoa, e às vezes esquecemo-nos da importância de Teixeira de Pascoaes. Foi com ele e com os saudosistas que Pessoa começou a colaborar, ao alcançar a plena maturidade como escritor. Muito cedo, porém, Pessoa chegou à conclusão de que o Saudosismo1 não oferecia bases suficientemente sólidas para a tarefa de regeneração que se tinha imposto, e expressou a sua rutura, sem negar a admiração pelo poeta Pascoaes e sem deixar de concordar, tal como ele preconizava, que essa regeneração devia partir da Poesia (enquanto caminho privilegiado para o conhecimento da realidade para além da sua superfície fenomenológica) e que deveria ser realizada por um Poeta.

Ficha formativa

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Sabe também quão extraordinário será o trabalho desse Poeta, que deverá assumir toda a poesia (portuguesa, europeia e outra) e que, para isso, vai precisar de toda uma galáxia de poetas. Dado não existirem fora dele, acabaria por reduzi-los aos que no seu interior vinham representando o seu singular «drama em gente». Mas antes, devia sacrificar freudianamente2 o pai – Pascoaes. E assim, na magnífica ficção ou encenação da sua noite de glória de 1914, iriam aparecer no palco, de maneira tão natural como necessária, os seus heterónimos maiores à volta do mestre, Caeiro. No poema X do Guardador de Rebanhos consuma-se poeticamente o sacrifício, numa paisagem que sempre imaginei como um longo fade-out 3 cinematográfico da baixa lisboeta com o fundo da serra do Marão. Sem a sombra do pai, Pessoa já pode iniciar o seu caminho de perfeição e redenção. E assim se vão seguindo os anos de euforia até ao desaparecimento de Caeiro e ao exílio de Ricardo Reis, enquanto António Mora tenta, em vão, erguer um sistema filosófico, fundamento do projeto pessoano, aliado à poesia dos poetas que, assumidos, absorvidos e sublimados, deverão engendrar o Poeta definitivo, o novo Euforion4, o Supra-Camões. Desse magnífico edifício, nem os alicerces se mantêm de pé: só pedras, tijolos, montes de cal e areia, fragmentos inacabados de estruturas de ferro e formigão. Fragmentos, fragmentos de fragmentos, fragmentos de fragmentos de fragmentos. Campos envelhece ao tempo que Pessoa se deixa envelhecer através dum Bernardo Soares definitivamente configurado para a ocasião, e ambos se agarram à nostalgia e à construção e à contemplação ensimesmada de um novo edifício – uma nova realidade, já a única consistente para Pessoa – feita só de sonhos e de palavras.

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COTAÇÕES Grupo II A 1.1 1.2 1.3 1.4 1.5 1.6 1.7 2.1 2.2 2.3

5 pontos 5 pontos 5 pontos 5 pontos 5 pontos 5 pontos 5 pontos 5 pontos 5 pontos 5 pontos 50 pontos

PROFESSOR

Grupo II 1.1 (B). 1.2 (C). 1.3 (C).

Perfecto E. Cuadrado, in O editor, o escritor e os seus leitores, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2012, p. 92.

1. Para responderes aos itens de 1.1 a 1.7, seleciona a única opção que permite obter uma afirmação correta. 1.1 O rompimento de Fernando Pessoa com o Saudosismo de Teixeira de Pascoaes deveu-se, segundo o autor, (A) (B) (C) (D)

à consciência da maturidade alcançada enquanto escritor. ao distanciamento entre os fundamentos deste e o seu ideal de regeneração. ao desejo de afirmação como criador de princípios exclusivos. à total discordância com as bases do seu pensamento.

1.2 A posição de Pessoa era conciliadora com a proposta de Pascoaes, no que concerne ao meio pelo qual se daria a regeneração, a Poesia, por ser (A) (B) (C) (D)

realizada por um Poeta. aquele um profundo conhecedor do Saudosismo. o meio primordial de explicitação e de conhecimento da realidade. um dos muitos meios de acesso ao conhecimento da realidade.

1.3 Com o poema X de O Guardador de Rebanhos, (A) (B) (C) (D)

surgem os heterónimos à volta do Mestre. dá-se a primeira das noites de glória do Poeta. dá-se o afastamento total em relação a Pascoaes. dá-se o sacrifício de Caeiro e de Fernando Pessoa.

3 Fade-out: técnica cinematográ-

fica que consiste no escurecimento da imagem até ao seu desaparecimento gradual. 4 Euforion: gramático e poeta grego (275 a.C. – 200 a.C.), autor de obras que refletiam grande erudição. Alcançou notoriedade por ter escrito breves poemas, épicos ou de temáticas mitológicas pouco conhecidas, que apresentavam como principal arquétipo os poemas homéricos, procurando surpreender e maravilhar o leitor.

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Unidade 1 // FERNANDO PESSOA

COTAÇÕES Grupo III 50 pontos

PROFESSOR Grupo II 1.4 (A). 1.5 (D). 1.6 (B). 1.7 (C). 2.1 «(poeta) Pascoaes». 2.2 Subordinada substantiva completiva. 2.3 Complemento do nome. Grupo III Sugestão de tópicos: • Habitamos numa autêntica «salada coletiva», em que os vários tipos sociais se entrecruzam. • Porém, tal não significa que haja um espírito de entreajuda, essencial numa sociedade solidária. Muito pelo contrário, a coabitação muitas vezes afasta, em vez de aproximar. Podemos estar fisicamente perto dos outros, contudo, distantes no que diz respeito à solidariedade (exemplos: indiferença perante os que sofrem, os que são assaltados ao nosso lado, aos mendigos que nos pedem auxílio, …). • Apesar de ser mais fácil fingir que não é da nossa conta, há muitas pessoas que não ficam alheias ao sofrimento que as rodeia. Organizações de voluntariado, com maior ou menor dimensão, dão uma voz coletiva à solidariedade (exemplo: Caritas, Helpo, Banco Alimentar, …). • Cada vez mais o espírito de solidariedade é necessário na nossa sociedade, sobretudo para colmatar as injustiças e a solidão. Em organizações ou em atos individuais, é fundamental darmo-nos aos outros; em troca receberemos mais do que o que estávamos à espera.

▪ Ficha formativa Soluções para projeção

1.4 O projeto do «Supra-Camões», do «Poeta definitivo», emergiria da fusão de um sistema filosófico com (A) (B) (C) (D)

a poesia de Caeiro e de Reis. a sublimação dos heterónimos. o projeto de António Mora. o novo Euforion.

1.5 O autor do texto, com a associação do projeto pessoano a um «magnífico edifício» (l. 26), do qual nada restaria a não ser escombros, recorre a uma (A) (B) (C) (D)

gradação. hipérbole. metonímia. metáfora.

1.6 O aspeto gramatical em «E assim se vão seguindo os anos de euforia até ao desaparecimento […]» (l. 21) expressa (A) (B) (C) (D)

uma situação genérica. uma situação iterativa. um valor perfetivo. um valor imperfetivo.

1.7 A reiteração da palavra «fragmentos» (l. 28) contribui para a construção da coesão (A) (B) (C) (D)

frásica. interfrásica. lexical. referencial.

2. Responde de forma correta aos itens apresentados. 2.1 Indica o referente do pronome destacado em «tal como ele preconizava» (l. 7). 2.2 Classifica a oração destacada em «Sabe também quão extraordinário será o trabalho desse Poeta» (l. 10). 2.3 Refere a função sintática do segmento «de um novo edifício» (l. 31).

Grupo III Tendo em conta que convivemos numa «salada coletiva da vida» (expressão que finaliza o texto de Bernardo Soares), defende um ponto de vista pessoal sobre a questão da relevância da solidariedade social no mundo de hoje. Elabora um texto de opinião bem estruturado, com um mínimo de duzentas e um máximo de trezentas palavras, fundamentando o teu ponto de vista, recorrendo, no mínimo, a dois argumentos, e ilustra cada um deles com, pelo menos, um exemplo significativo.

13 •

FERNANDO PESSOA

POESIA DOS HETERÓNIMOS

EDUCAÇÃO LITERÁRIA Poesia dos heterónimos

• O fingimento artístico: – Alberto Caeiro, o poeta «bucólico» – Ricardo Reis, o poeta «clássico» – Álvaro de Campo, o poeta da modernidade

• Reflexão existencial: – Alberto Caeiro: o primado das sensações – Ricardo Reis: a consciência e a encenação da mortalidade – Álvaro de Campo: sujeito, consciência e tempo; nostalgia da infância

• O imaginário épico (Álvaro de Campos) – matéria épica: a exaltação do Moderno – o arrebatamento do canto

• Linguagem, estilo e estrutura – formas poéticas e formas estróficas, métrica e rima – recursos expressivos: a aliteração, a anáfora, a anástrofe, a enumeração, a gradação, a metáfora, a personificação e a onomatopeia

LEITURA Textos informativos Artigo de opinião Memórias COMPREENSÃO DO ORAL Registos áudio e audiovisuais Diálogo argumentativo EXPRESSÃO ORAL Texto de opinião Diálogo argumentativo ESCRITA Apreciação crítica Texto de opinião Exposição sobre um tema

Poesia do ortónimo

GRAMÁTICA Sintaxe – funções sintáticas – classificação de orações Discurso, pragmática e linguística textual – reprodução do discurso no discurso – coesão textual – deixis Semântica – valor temporal – valor aspetual

Amadeo de Souza-Cardoso, Par Ímpar, 1915-1916.

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Unidade 1 // FERNANDO PESSOA

Contextualização literária

PROFESSOR

MC

Leitura 7.1; 7.3; 7.4; 8.1, 9.1.

A questão da heteronímia

Educação Literária 16.1.

▪ Link RTP Ensina – «Fernando Pessoa e os seus heterónimos»

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A palavra heterónimo deriva do grego e significa «outro nome». Pessoa usou este neologismo, o qual se distingue da palavra pseudónimo, pois esta é entendida como um nome suposto que substitui o nome próprio do autor, sem que isso altere a sua personalidade literária. […] O recurso aos heterónimos consiste, pois, numa passagem da expressão pessoal, isto é, de uma personalidade que seria a do autor, para uma personificação estética que é já a do texto ou da escrita. É com este sentido que Pessoa utilizou aquela expressão, de modo que a rotação que se faz da personalidade propriamente dita para a personificação estética implica múltiplas questões que foram abordadas pelo poeta ou estão implícitas em tal noção: o papel desempenhado pelo autor, a sinceridade ou autenticidade, o fingimento (expressão que se torna central na sua poética e que o início de um poema seu consagrou: «o poeta é um fingidor»), o caráter dramático da poesia, a redução da subjectividade, etc. O facto de o caso pessoano ser paradigmático quanto a esta questão tem originado uma ampla discussão quanto ao valor e ao sentido dos heterónimos, a qual, no entanto, se tem ressentido de alguns ocasionais equívocos. Um deles terá sido induzido a partir de declarações do próprio Pessoa. É quando se refere a um fator psicológico, o da por ela designada «histeroneurastenia», que o levaria à despersonalização e àquilo que ele também definiu como sendo «uma tendência nata em mim para a mistificação». Fernando Guimarães, «Heteronímia», in Fernando Cabral Martins (coord.), Dicionário de Fernando Pessoa e do Modernismo Português, Alfragide, Editorial Caminho, 2008, pp. 327-328.

Fernando Pessoa em Lisboa

Contextualização literária

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1. Lê a seguinte carta de Fernando Pessoa a Adolfo Casais Monteiro, explicando na primeira pessoa a génese da sua heteronímia.

Caixa Postal 147 Lisboa, 13 de janeiro de 1935.

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Meu prezado camarada: Muito agradeço a sua carta, a que vou responder imediata e integralmente. Antes de, propriamente, começar, quero pedir-lhe desculpa de lhe escrever neste papel de cópia. [...] Passo agora a responder à sua pergunta sobre a génese dos meus heterónimos. Vou ver se consigo responder-lhe completamente. Começo pela parte psiquiátrica. A origem dos meus heterónimos é o fundo traço de histeria1 que existe em mim. Não sei se sou simplesmente histérico, se sou, mais propriamente, um histeroneurasténico2. Tendo para esta segunda hipótese, porque há em mim fenómenos de abulia3 que a histeria, propriamente dita, não enquadra no registo dos seus sintomas. [...] A histeria assume principalmente aspetos mentais; assim tudo acaba em silêncio e poesia... Isto explica, tant bien que mal 4, a origem orgânica do meu heteronimismo. Vou agora fazer-lhe a história direta dos meus heterónimos. [...] Desde que me conheço como sendo aquilo a que chamo eu, me lembro de precisar mentalmente, em figura, movimentos, caráter e história, várias figuras irreais que eram para mim tão visíveis e minhas como as coisas daquilo a que chamamos, porventura abusivamente, a vida real. [...] Esta tendência para criar em torno de mim um outro mundo, igual a este mas com outra gente, nunca me saiu da imaginação. Teve várias fases, entre as quais esta, sucedida já em maioridade. [...] E assim arranjei, e propaguei, vários amigos e conhecidos que nunca existiram, mas que ainda hoje, a perto de trinta anos de distância, oiço, sinto, vejo. Repito: oiço, sinto, vejo... E tenho saudades deles. [...] Aí por 1912, salvo erro (que nunca pode ser grande), veio-me à ideia escrever uns poemas de índole pagã. Esbocei umas coisas em verso irregular (não no estilo Álvaro de Campos, mas num estilo de meia regularidade), e abandonei o caso. Esboçara-se-me, contudo, numa penumbra mal urdida, um vago retrato da pessoa que estava a fazer aquilo. (Tinha nascido, sem que eu soubesse, o Ricardo Reis.) Ano e meio, ou dois anos depois, lembrei-me um dia de fazer uma partida ao Sá-Carneiro – de inventar um poeta bucólico, de espécie complicada, e apresentar-lho, já me não lembro como, em qualquer espécie de realidade. Levei uns dias a elaborar o poeta mas nada consegui. Num dia em que finalmente desistira – foi em 8 de março de 1914 – acerquei-me de uma cómoda alta, e, tomando um papel, comecei a escrever, de pé, como escrevo sempre que posso. E escrevi trinta e tantos poemas a fio, numa espécie de êxtase cuja natureza não conseguirei definir. Foi o dia triunfal da minha vida, e nunca poderei ter outro assim. Abri com um título, O Guardador de Rebanhos. E o que se seguiu foi o aparecimento de alguém em mim, a quem dei desde logo o nome de Alberto Caeiro. Desculpe-me o absurdo

1 Histeria: doença nervosa,

que pode conduzir a um comportamento pautado pelo exagero emocional e afetivo. 2 Histeroneurasténico: indivíduo que padece de neurose: perturbações mentais (tristeza, apatia) e indisposição física. 3 Abulia: apatia; inércia. 4 Tant bien que mal: nem bem nem mal.

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Unidade 1 // FERNANDO PESSOA

PROFESSOR

Consolida

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1. O poeta considera que a histeroneurastenia (doença do foro psiquiátrico) está na origem da sua tendência para a despersonalização, facto que se verifica desde criança. 2. É, efetivamente, um «dia triunfal», uma vez que foi invadido por uma inspiração avassaladora, da qual resultou uma imparável e intensa produção literária – de pé, e em êxtase, escreveu trinta e tal poemas de «O Guardador de Rebanhos», surgindo, assim, o seu Mestre, Alberto Caeiro.

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3. Personalidade literária com nome, biografia e características estilísticas e linguísticas diferentes dos do ortónimo. 55

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5 Coterie: grupo de pessoas

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que se apoiam mutuamente para defender um interesse comum. 6 Helenista: que ou quem é

entendido na língua e cultura da Grécia antiga.

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da frase: aparecera em mim o meu mestre. Foi essa a sensação imediata que tive. [...] Aparecido Alberto Caeiro, tratei logo de lhe descobrir – instintiva e subconscientemente – uns discípulos. Arranquei do seu falso paganismo o Ricardo Reis latente, descobri-lhe o nome, e ajustei-o a si mesmo, porque nessa altura já o via. E, de repente, e em derivação oposta à de Ricardo Reis, surgiu-me impetuosamente um novo indivíduo. Num jato, e à máquina de escrever, sem interrupção nem emenda, surgiu a Ode Triunfal de Álvaro de Campos – a Ode com esse nome e o homem com o nome que tem. Criei, então, uma coterie5 inexistente. Fixei aquilo tudo em moldes de realidade. Graduei as influências, conheci as amizades, ouvi, dentro de mim, as discussões e as divergências de critérios, e em tudo isto me parece que fui eu, criador de tudo, o menos que ali houve. Parece que tudo se passou independentemente de mim. […] Mais uns apontamentos nesta matéria... Eu vejo diante de mim, no espaço incolor mas real do sonho, as caras, os gestos de Caeiro, Ricardo Reis e Álvaro de Campos. Construí-lhes as idades e as vidas. Ricardo Reis nasceu em 1887 (não me lembro do dia e mês, mas tenho-os algures), no Porto, é médico e está presentemente no Brasil. Alberto Caeiro nasceu em 1889 e morreu em 1915; nasceu em Lisboa, mas viveu quase toda a sua vida no campo. Não teve profissão nem educação quase alguma. Álvaro de Campos nasceu em Tavira, no dia 15 de outubro de 1890 (às 1.30 da tarde, diz-me o Ferreira Gomes; e é verdade, pois, feito o horóscopo para essa hora, está certo). Este, como sabe, é engenheiro naval (por Glasgow), mas agora está aqui em Lisboa em inatividade. Caeiro era de estatura média, e, embora realmente frágil (morreu tuberculoso), não parecia tão frágil como era. Ricardo Reis é um pouco, mas muito pouco, mais baixo, mais forte, mas seco. Álvaro de Campos é alto (1,75 m de altura, mais 2 cm do que eu), magro e um pouco tendente a curvar-se. Cara rapada todos – o Caeiro louro sem cor, olhos azuis; Reis de um vago moreno mate; Campos entre branco e moreno, tipo vagamente de judeu português, cabelo, porém, liso e normalmente apartado ao lado, monóculo. Caeiro, como disse, não teve mais educação que quase nenhuma – só instrução primária; morreram-lhe cedo o pai e a mãe, e deixou-se ficar em casa, vivendo de uns pequenos rendimentos. Vivia com uma tia velha, tia-avó. Ricardo Reis, educado num colégio de jesuítas, é, como disse, médico; vive no Brasil desde 1919, pois se expatriou espontaneamente por ser monárquico. É um latinista por educação alheia, e um semi-helenista6 por educação própria. Álvaro de Campos teve uma educação vulgar de liceu; depois foi mandado para a Escócia estudar engenharia, primeiro mecânica e depois naval. Numas férias fez a viagem ao Oriente de onde resultou o Opiário. Ensinou-lhe latim um tio beirão que era padre. Como escrevo em nome desses três?... Caeiro por pura e inesperada inspiração, sem saber ou sequer calcular que iria escrever. Ricardo Reis, depois de uma deliberação abstrata, que subitamente se concretiza numa ode. Campos, quando sinto um súbito impulso para escrever e não sei o quê. […] Caeiro escrevia mal o português, Campos razoavelmente mas com lapsos como dizer «eu próprio» em vez de «eu mesmo», etc., Reis melhor do que eu, mas com um purismo que

Contextualização literária

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considero exagerado. O difícil para mim é escrever a prosa de Reis – ainda inédita – ou de Campos. A simulação é mais fácil, até porque é mais espontânea, em verso. [...] Creio assim, meu querido camarada, ter respondido, ainda com certas incoerências, às suas perguntas. Se há outras que deseja fazer, não hesite em fazê-las. Responderei conforme puder e o melhor que puder. O que poderá suceder, e isso me desculpará desde já, é não responder tão depressa. Abraça-o o camarada que muito o estima e admira. Fernando Pessoa Fernando Pessoa, Antologia Poética – Fernando Pessoa (ortónimo), Álvaro de Campos, Alberto Caeiro e Ricardo Reis (prefácio de Francisco Vale), Lisboa, Relógio D’Água, 2013, pp. 247-254.

CONSOLIDA

1. Baseando-te nas palavras de Fernando Pessoa, indica a causa psicossomática que está na origem da sua tendência para a despersonalização. 2. Explica por que motivo o autor considera o dia 8 de março de 1914 como «o dia triunfal» da sua vida. 3. Partindo da leitura da carta de Fernando Pessoa, define, por palavras tuas, a palavra heterónimo. 4. Completa o esquema com as informações relativas aos três heterónimos.

Alberto Caeiro

Nascimento (local e data) Formação e profissão Características físicas Contexto de escrita heteronímica Características estilísticas

Ricardo Reis

Álvaro de Campos os

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4. Alberto Caeiro Nascimento: 1889, Lisboa (morreu em 1915). Formação e profissão: instrução primária; sem profissão. Características físicas: estatura média, não parecia tão frágil como era; cara rapada; louro sem cor, olhos azuis. Contexto de escrita heteronímica: «pura e inesperada inspiração, sem saber ou sequer calcular que iria escrever». Características estilísticas: «escrevia mal o português» Ricardo Reis Nascimento: 1887, Porto. Formação e profissão: universitária; médico. Características físicas: mais baixo, mais forte do que Caeiro, mas seco; cara rapada; um vago moreno mate. Contexto de escrita heteronímica: «depois de uma deliberação abstrata, que subitamente se concretiza numa ode». Características estilísticas: escreve «melhor do que eu, mas com um purismo que considero exagerado». Álvaro de Campos Nascimento: 15 de outubro de 1890, Tavira. Formação e profissão: universitária; engenheiro naval. Características físicas: «alto (1,75 m de altura, mais 2 cm do que [Fernando Pessoa]); magro e um pouco tendente a curvar-se»; «cara rapada; entre branco e moreno, tipo vagamente de judeu português, cabelo liso e normalmente apartado ao lado, monóculo.» Contextos de escrita heteronímica: num «súbito impulso para escrever e não sei o quê». Características estilísticas: escreve «razoavelmente mas com lapsos como dizer "eu próprio" em vez de "eu mesmo", etc.».

▪ Apresentação em PowerPoint Correção da atividade 4

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Unidade 1 // FERNANDO PESSOA

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MC

Oralidade 1.1; 1.3; 1.4; 2.1; 3.1; 5.1; 5.2; 5.3; 6.1; 6.2; 6.3.

Alberto Caeiro O fingimento artístico: Alberto Caeiro, o poeta «bucólico1» PONTO DE PARTIDA

Educação Literária 14.1; 14.2; 14.3; 14.4; 14.8; 15.3. Gramática 17.1.

1. Observa a pintura abaixo apresentada e descreve-a oralmente, de acordo com os seguintes tópicos:

Ponto de Partida 1. Representa-se um ambiente bucólico, onde se destaca um rebanho de ovelhas e o seu pastor, que assumem a centralidade da pintura. A mensagem veiculada é de harmonia entre vários elementos da Natureza. Possíveis sensações suscitadas: conforto, tranquilidade, proteção, …

• a situação representada; • a mensagem veiculada; • as sensações que te suscita.

EDUCAÇÃO LITERÁRIA

CD 1 Faixa n.0 11

O Guardador de Rebanhos I

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Charles-Émile Jacque, Paisagem com Rebanho, 1872.

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Eu nunca guardei rebanhos, Mas é como se os guardasse. Minha alma é como um pastor, Conhece o vento e o sol E anda pela mão das Estações A seguir e a olhar. Toda a paz da Natureza sem gente Vem sentar-se a meu lado. Mas eu fico triste como um pôr do sol Para a nossa imaginação, Quando esfria no fundo da planície E se sente a noite entrada Como uma borboleta pela janela. Mas a minha tristeza é sossego Porque é natural e justa E é o que deve estar na alma Quando já pensa que existe E as mãos colhem flores sem ela dar por isso. Como um ruído de chocalhos Para além da curva da estrada, Os meus pensamentos são contentes. Só tenho pena de saber que eles são contentes, Porque, se o não soubesse, Em vez de serem contentes e tristes, Seriam alegres e contentes. 1 Bucólico: campestre, relativo à

vida dos pastores, à natureza e às coisas simples da vida.

Alberto Caeiro – O fingimento artístico

Pensar incomoda como andar à chuva Quando o vento cresce e parece que chove mais.

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Educação Literária 1. O sujeito poético apresenta-se como «um pastor», usando essa máscara poética pela semelhança existente entre ambos: um e outro deambulam; um e outro vivem em comunhão com a Natureza; um e outro observam o ambiente que os rodeia.

Não tenho ambições nem desejos. Ser poeta não é uma ambição minha. É a minha maneira de estar sozinho. E se desejo às vezes, Por imaginar, ser cordeirinho (Ou ser o rebanho todo Para andar espalhado por toda a encosta A ser muita cousa feliz ao mesmo tempo), É só porque sinto o que escrevo ao pôr do sol, Ou quando uma nuvem passa a mão por cima da luz E corre um silêncio pela erva fora.

2. O sujeito poético vive em plena sintonia com os elementos da Natureza, sendo para ele essencial a ausência de pessoas para a criação do ambiente de paz de que fala nos vv. 7-8. Essa «paz da Natureza» só é possível «sem gente», longe das multidões.

Quando me sento a escrever versos Ou, passeando pelos caminhos ou pelos atalhos, Escrevo versos num papel que está no meu pensamento, Sinto um cajado nas mãos E vejo um recorte de mim No cimo dum outeiro, Olhando para o meu rebanho e vendo as minhas ideias, Ou olhando para as minhas ideias e vendo o meu rebanho, E sorrindo vagamente como quem não compreende o que se diz E quer fingir que compreende. Saúdo todos os que me lerem, Tirando-lhes o chapéu largo Quando me veem à minha porta Mal a diligência levanta no cimo do outeiro. Saúdo-os e desejo-lhes sol, E chuva, quando a chuva é precisa, E que as suas casas tenham Ao pé duma janela aberta Uma cadeira predileta Onde se sentem, lendo os meus versos. E ao lerem os meus versos pensem Que sou qualquer cousa natural – Por exemplo, a árvore antiga À sombra da qual quando crianças Se sentavam com um baque2, cansados de brincar, E limpavam o suor da testa quente Com a manga do bibe riscado. Alberto Caeiro, Poesia de Alberto Caeiro (ed. Fernando Cabral Martins & Richard Zenith), 3.ª ed., Lisboa, Assírio & Alvim, 2014, pp. 21-23.

2 Baque: estrondo (que faz

o corpo quando cai).

3. As perceções sensoriais assumem um papel crucial, pois a realidade é percecionada pelo sujeito poético através dos cinco sentidos, tomando, dessa forma, conhecimento do mundo que o rodeia. São exemplos desta realidade os seguintes versos: – perceções táteis: «Conhece o vento e o sol», v. 4; «Quando esfria no fundo da planície», v. 11, «E limpavam o suor da testa quente», v. 64; – perceções visuais: «A seguir e a olhar.», v. 6; «Ou quando uma nuvem passa a mão por cima da luz», v. 37; «E vejo um recorte de mim», v. 43; – perceções auditivas: «Como um ruído de chocalhos», v. 19; «E corre um silêncio pela erva fora.», v. 38; «Se sentavam com um baque [...]», v. 63.

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Unidade 1 // FERNANDO PESSOA

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4. O sujeito poético recusa o pensamento, considerando que todo o ato intelectual constitui um obstáculo à felicidade plena («Pensar incomoda como andar à chuva», v. 26; «Os meus pensamentos são contentes. / Só tenho pena de saber que eles são contentes, / Porque, se o não soubesse, / Em vez de serem contentes e tristes, / Seriam alegres e contentes», vv. 21-25). 5. A figura metafórica do pastor é a escolha perfeita para o desenvolvimento do processo do fingimento artístico, optando-se por uma persona distinta do ortónimo. Esta despersonalização cria um ser literário que age espontaneamente, percecionando o mundo através dos sentidos, vivendo em plenitude e felicidade com a Natureza, abolindo a introspeção e a intelectualização. 6. A última estrofe serve de fecho do poema, introduzindo o leitor como peça fundamental no processo literário, sugerindo-lhe como há de ler os seus poemas e como o há de perspetivar, enquanto poeta. Gramática 1.1 Por exemplo: a) «Onde se sentem» (v. 58); b) «e desejo-lhes sol» (v. 53) / «E limpavam o suor da testa quente» (v. 64); c) Quando me veem à minha porta» (v. 51) / «Mal a diligência levanta no cimo do outeiro» (v. 52); d) «que as suas casas tenham» (v. 55) / «Que sou qualquer cousa natural» (v. 60). 1.2 a) Complemento direto / complemento indireto; b) Predicativo do sujeito; c) Modificador restritivo do nome / modificador.

1. Na primeira estrofe, o sujeito poético apresenta-se como «um pastor». Explica porquê, tendo em conta as razões apresentadas. 2. Estabelece a relação existente entre o sujeito poético, a Natureza e as pessoas. 3. Refere-te ao papel das perceções sensoriais ao longo do poema, transcrevendo exemO fingimento artístico plos significativos. FI p. 87

4. Explica a posição do sujeito poético perante o ato de «pensar», comprovando-a com elementos textuais. 5. Podemos considerar Alberto Caeiro um «pastor» por metáfora. Justifica a escolha desta figura bucólica, tendo em conta a teoria pessoana do fingimento artístico. 6. Esclarece a importância da última estrofe.

GRAMÁTICA

1. Atenta na última estrofe. 1.1 Seleciona um exemplo de oração: a) b) c) d)

subordinada adjetiva relativa restritiva; coordenada copulativa; subordinada adverbial temporal; subordinada substantiva completiva.

Coordenação e SIGA subordinação pp. 373-374

1.2 Identifica as funções sintáticas dos elementos destacados. Funções sintáticas a) «Saúdo-os e desejo-lhes sol» (v. 53). SIGA pp. 372-373 b) «Que sou qualquer cousa natural» (v. 60). c) «E limpavam o suor da testa quente / Com a manga do bibe riscado.» (vv. 64-65).

ORALIDADE

EXPRESSÃO ORAL

Texto de opinião SIGA pp. 364-365

Texto de opinião

Oralidade ▪ Apresentação em PowerPoint Correção da atividade de Oralidade Sugestão de resposta: 1.1 Semelhanças: tanto o «guardador de rebanhos» como os fotógrafos estão em estreito contacto com a natureza; o seu amor e admiração pelos elementos que a compõem são nítidos. Detêm-se em pormenores que nos rodeiam mas que, no nosso dia a dia, nos escapam. Diferenças: enquanto o «guardador de rebanhos» parece espontâneo, intuitivo e segue apenas os seus sentidos, o trabalho dos profissionais de fotografia é pensado e arquitetado (construção de esconderijos, montagem de câmaras,…). O «guardador de rebanhos» deambula pelo campo; ao contrário dos fotógrafos que têm uma atitude estática, que exige espera e paciência.

1. Visiona um excerto da Reportagem Especial da SIC – Fotógrafos de Natureza. 1.1 Elabora um texto de opinião, de quatro a seis minutos, em que relaciones o «guardador de rebanhos» de Caeiro com estes fotógrafos da natureza. Planifica o teu texto, elaborando tópicos de suporte à intervenção que te permitam produzir um discurso linguisticamente correto, com diversificação de vocabulário e das estruturas utilizadas.

Fotógrafos da Natureza Reportagem SIC

Ficha informativa

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FICHA INFORMATIVA 1 O fingimento artístico: Caeiro, o poeta «bucólico» 1. Caeiro, o poeta do campo Alberto Caeiro, o primeiro do célebre trio de heterónimos a surgir, era um poeta do campo, sem estudos. Reconhecido pelos outros como «Mestre», Caeiro pregava a perceção direta das coisas, sem filosofias: 5

O essencial é saber ver, Saber ver sem estar a pensar, Saber ver quando se vê, E nem pensar quando se vê Nem ver quando se pensa. (de O Guardador de Rebanhos, XXIV)

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Caeiro dizia-se «o único poeta da Natureza», mas a sua visão da natureza era idealizada, a apreciação que dela fazia abstrata e a sua poesia quase pura filosofia. Falar de ver coisas diretamente implica já não estar a vê-las diretamente. Caeiro foi um instante de nirvana1 poético, uma impossibilidade consubstanciada em versos transparentes, belos e precisos como cristal. O próprio Pessoa ficou deslumbrado. Numa carta escrita a Côrtes-Rodrigues, em 2 de setembro de 1914, garantiu: «Se há parte da minha obra que tenha um “cunho de sinceridade”, essa parte é... a obra de Caeiro.» Dezanove anos depois, numa carta a João Gaspar Simões, classificou O Guardador de Rebanhos como a sua melhor obra, que não poderia «jamais igualar, porque procede de um grau e tipo de inspiração [...] que excede o que eu racionalmente poderia gerar dentro de mim». Richard Zenith, )RWRELRJUDILDVGR6pFXOR;;í)HUQDQGR3HVVRD, 3.ª ed., Maia, Círculo de Leitores e Temas e Debates, 2013, pp. 99-100.

2. Caeiro, o homem instintivo

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Ao «fingir» em Caeiro um homem instintivo que vive só para fora, levado pela mão das Estações, Pessoa obedecia ao anseio profundo de fugir à viscosidade interior, de forçar as portas do «cárcere do Ser» em que se debatia, apelando para o remédio radical: suprimir o eu, mero intervalo entre incoercíveis2, abolir o pensamento, dissonância trágica do Universo, reintegrando o homem no seio da Natureza. Jacinto do Prado Coelho, Unidade e Diversidade em Fernando Pessoa, 8.ª ed., Lisboa, Editorial Verbo, 1985, p. 189.

Paul Sérusier, O Vale Azul, 1906. PROFESSOR

MC

Leitura 7.1; 7.3; 8.1.

Consolida 1. Caeiro parece um poeta simples, que vive de um modo rústico, em pleno contacto com a Natureza; espontâneo em termos de criação artística. No entanto, à luz do primeiro texto, podemos compreender que esse bucolismo serve de máscara a «uma visão da Natureza idealizada» e que a sua poesia é «quase pura filosofia». 2. O fingimento artístico de Caeiro consiste em (tentar) abolir o pensamento, ser parte da harmonia universal da Natureza, viver tranquila e alegremente no seio da mãe Terra. Em termos de criação artística, nega a intelectualização de emoções, optando pela verbalização poética da sensação pura. Liberta, de certo modo, o seu «criador» da excessiva introspeção, da dor de pensar, que tanto o angustia, permitindo-lhe, assim, «fugir à viscosidade interior» e «abolir o pensamento, dissonância trágica do Universo».

CONSOLIDA 1 Nirvana: estado de pleni-

1. Esclarece a razão pela qual Alberto Caeiro é considerado o poeta «bucólico». 2. Explica em que consiste o fingimento artístico de Caeiro e de que forma «liberta» o seu criador.

tude e paz interiores, imune a influências externas. 2 Incoercíveis: realidades que não se podem apreender na totalidade.

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Unidade 1 // FERNANDO PESSOA

PROFESSOR

MC

Oralidade 1.1; 1.3. Educação Literária 14.2; 14.3; 14.4; 14.8; 14.9; 15.3. Gramática 17.1; 18.2; 19.3.

Ponto de Partida

▪ Vídeo Documentário Ainda há pastores, de Jorge Pelicano 1. Vantagens: o contacto com a Natureza, a vida calma, ter tempo para si e para os seus pensamentos,… Desvantagens: o isolamento, a falta do contacto com o desenvolvimento urbano e tecnológico,…

Reflexão existencial: Alberto Caeiro, o primado das sensações PONTO DE PARTIDA

1. A partir de excertos do filme Ainda há pastores?, de Jorge Pelicano, apresenta as vantagens e desvantagens desta profissão, nos dias de hoje. Ainda há pastores? (2006) REAL. Jorge Pelicano

O Guardador de Rebanhos II

Educação Literária 1. A comparação que inicia este poema realça a importância e a centralidade que o olhar tem para o sujeito poético na perceção da realidade. Tal como o girassol acompanha o movimento do sol, também o sujeito poético no seu movimento deambulatório acompanha o mundo da Natureza que o rodeia. 2. À medida que deambula pela Natureza, o sujeito poético capta, através dos sentidos, neste caso, a visão, tudo o que vai observando e registando poeticamente. Na primeira estrofe, são evidentes estes elementos: movimento deambulatório («Tenho o costume de andar pelas estradas», v. 2); perceções visuais («Olhando para a direita e para a esquerda, / E de vez em quando olhando para trás… / E o que vejo a cada momento / É aquilo que nunca antes eu tinha visto», vv. 3-6). 3. A mensagem transmitida nestes versos é a de que o sujeito poético possui um «olhar» virginal, primordial, sobre o Mundo. «Pasma-se», inocentemente, perante as sucessivas novidades ao seu redor: vê tudo como se fosse a primeira vez. 4. A maiúscula permite enfatizar este vocábulo e o conceito que encerra. Na poesia de Caeiro, a apreensão da Natureza, através das sensações, é essencial para alcançar o conhecimento do real.

CD 1 Faixa n.0 12

EDUCAÇÃO LITERÁRIA

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O meu olhar é nítido como um girassol. Tenho o costume de andar pelas estradas Olhando para a direita e para a esquerda, E de vez em quando olhando para trás… E o que vejo a cada momento É aquilo que nunca antes eu tinha visto, E eu sei dar por isso muito bem… Sei ter o pasmo comigo Que teria uma criança se, ao nascer, Reparasse que nascera deveras… Sinto-me nascido a cada momento Para a eterna novidade do mundo… Creio no mundo como num malmequer, Porque o vejo. Mas não penso nele Porque pensar é não compreender… O mundo não se fez para pensarmos nele (Pensar é estar doente dos olhos) Mas para olharmos para ele e estarmos de acordo. Eu não tenho filosofia: tenho sentidos… Se falo na Natureza não é porque saiba o que ela é, Mas porque a amo, e amo-a por isso, Porque quem ama nunca sabe o que ama Nem sabe porque ama, nem o que é amar… Amar é a eterna inocência, E a única inocência é não pensar… Alberto Caeiro, op. cit., pp. 24-25.

Henri Matisse, Ramo de Girassóis, 1898.

Alberto Caeiro – Reflexão existencial

1. Explica a comparação que inicia este poema «O meu olhar é nítido como um girassol», referindo-te ao seu valor expressivo.

PROFESSOR

MC 2. Seleciona os versos da primeira estrofe que remetem para o movimento deambulatório e a perceção visual, relacionando-os. 3. Explicita o sentido dos versos «Sinto-me nascido a cada momento / Para a eterna novidade do mundo…» (vv. 11-12). 4. Justifica o emprego de letra maiúscula em «Natureza» (v. 20). 5. Esclarece a dicotomia sentir (ver)/pensar, presente ao longo do poema, apoiando-te em elementos textuais. 6. Identifica os recursos expressivos presentes nos versos seguintes.

FI

Reflexão existencial p. 91

Recursos expressivos SIGA p. 383

a) «Porque o vejo. Mas não penso nele / Porque pensar é não compreender…» (vv. 14-15). b) «(Pensar é estar doente dos olhos)» (v. 17). c) «Porque quem ama nunca sabe o que ama / Nem sabe porque ama, nem o que é amar…» (vv. 22-23). 7. Clarifica o sentido da última estrofe.

Leitura 7.1; 7.3; 8.1.

5. A dicotomia sentir/pensar assenta na rejeição da análise filosófica e do pensamento, como percursos para atingir o conhecimento. Eleva-se o sensacionismo (perceção da realidade através dos sentidos) como o único saber verdadeiro, revelando a primazia das sensações sobre a intelectualização. Esta dicotomia surge sintetizada nos versos «Creio no mundo como num malmequer, / Porque o vejo. Mas não penso nele / Porque pensar é não compreender…» (vv. 13-15); «(Pensar é estar doente dos olhos)» (v. 17); e «Eu não tenho filosofia: tenho sentidos…» (v. 19). 6. a) Anáfora; b) Metáfora; c) Repetição. 7. O sentido da última estrofe é: amar é não pensar. 8. O poema apresenta quatro estrofes com número irregular de versos. Predomina o verso livre e longo, sem rima, próximo da prosa.

8. Caracteriza o poema quanto à estrofe, metro e rima.

GRAMÁTICA

Perguntar ofende Em português, certas perguntas podem conduzir rapidamente a um envolvimento físico – não com mulheres, lamentavelmente, mas com homens. [...]

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As perguntas em causa são inocentes e algumas até simpáticas. No entanto, todas elas resultam em violência física. O exemplo mais gritante é: «O que é que tu queres?» É uma pergunta que revela preocupação, interesse 25 pelas necessidades do outro e sugere uma certa vontade de as satisfazer. [...] E, no entanto, é das questões que mais vezes servem de prefácio a cenas de pancadaria. Impressionante, também, é o sucesso de «Estás a olhar?» Não há mal em olhar, antes pelo contrário. Qualquer pessoa que não tenha os olhos fechados está, em princípio, a olhar. É, ao mesmo tempo, a operação poética por excelência para Alberto Caeiro e um dos métodos mais eficazes de fazer 35 35 deflagrar zaragatas. Fazem falta estudos sobre a heteronímia arruaceira de Pessoa.

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Há também um bom número de questões que têm a ver com isto. Não com isto que acabou de ser dito, mas com uma dada situação que não recebe designação mais específica do que «isto». Por exemplo, quando uma das partes prestes a entrar em conflito pergunta à outra «Isto é assim?» Vista de fora, é uma questão eminentemente filosófica. Trata-se de uma investigação importante, a que pretende saber se isto é assim ou se, pelo contrário, 30 é de outra maneira. Mas não costuma comover o espírito dos envolvidos na conversa. [...] Há que ter cuidado com estas expressões. E cuidado redobrado quando se recomenda cuidado. «Vê lá se tens cuidadi35 nho» também costuma dar sarilho. Ricardo Araújo Pereira, «Perguntar ofende», in Visão, 12.04.2012 (disponível em http://visao.sapo.pt, consultado em julho de 2016).

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Unidade 1 // FERNANDO PESSOA

PROFESSOR

Gramática 1.1 (C). 1.2 (B). 1.3 (D). 1.4 (A). 1.5 (C). Escrita Sugestão de resposta: 1.1 Descrição sucinta: em cima, em tons de azul e branco, podemos ver o céu, o gelo e o oceano. À deriva, numa «prancha» de gelo, está um pinguim, sozinho, e prestes a cair a uma cascata. A cascata, em tons de castanho e amarelo, é construída com chaminés de fábricas, cujos fumos vão formar o mar em que se encontra o pinguim. Relação com a poesia de Caeiro: Muitos poemas de Caeiro têm como temática principal a Natureza. Porém, ao passo que Caeiro apresenta a Natureza como um local idílico e em harmonia, este cartoon denuncia uma situação que está a desequilibrar o meio ambiente – a questão do degelo e consequente destruição do habitat animal, provocado pela poluição por ação humana. Comentário crítico: quer a poesia de Caeiro quer o cartoon convidam-nos a prestar maior atenção à mãe Terra; A poesia de Caeiro mostra-nos a sua beleza e a sua simplicidade genesíaca; o cartoon alerta-nos para o cuidado que devemos ter com o nosso planeta, que corre risco iminente de se desmoronar.

▪ Apresentação em PowerPoint Correção de atividade de Escrita

1. Para responderes aos itens de 1.1 a 1.5, seleciona a única opção que te permite obter uma afirmação correta. 1.1 As aspas que isolam as perguntas servem o propósito de introduzir o (A) (B) (C) (D)

diálogo no discurso do locutor. discurso indireto no discurso do locutor. discurso direto no discurso do locutor. discurso indireto livre no discurso do locutor.

Reprodução do discurso SIGA no discurso pp. 379

1.2 Nos contextos em que ocorrem, as expressões «Por exemplo» (l. 24) e «pelo contrário» (l. 29) contribuem para a coesão (A) lexical. (B) interfrásica.

(C) frásica. (D) referencial.

Coesão textual SIGA pp. 377-378

1.3 No contexto em que ocorre, o vocábulo destacado em «a que pretende saber» (ll. 28-29) contribui para a coesão (A) lexical. (C) frásica. (B) interfrásica. (D) referencial. 1.4 Nos contextos em que ocorrem, as palavras «pancadaria» (l. 10) e «zaragatas» (l. 18) contribuem para a coesão (A) lexical. (B) interfrásica.

(C) frásica. (D) referencial.

1.5 Os elementos destacados na frase «Fazem falta estudos sobre a heteronímia Funções sintáticas arruaceira de Pessoa» (ll. 19-20) desempenham a função SIGA pp. 372-373 sintática de (A) complemento do nome. (B) predicativo do sujeito.

ESCRITA

Apreciação crítica SIGA pp. 362-363

Apreciação crítica 1. Observa o cartoon. 1.1 Prepara uma apreciação crítica, em que faças uma descrição sucinta do cartoon, estabeleças uma relação com a poesia de Caeiro e apresentes o teu comentário crítico. Planifica, redige e revê o teu texto, de modo a aperfeiçoares a sua versão final.

Mahboobeh Pakdel, Sem Título, 2016.

(C) sujeito. (D) complemento do adjetivo.

Ficha informativa

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FICHA INFORMATIVA 2 Reflexão existencial: Alberto Caeiro, o primado das sensações 1. A primazia dos sentidos Nesta aventura, o que se opõe ao conhecimento intelectual, à linguagem como nomenclatura, são pois os sentidos, as sensações. Para além de serem pelos seus nomes genéricos referidos, as imagens desses sentidos surgem: o tato, a vista, o ouvido, o gosto, o olfato. (Citei-as como repararam, desculpe-se a homenagem, segundo a ordem do espantoso verso de Cesário Verde.)

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Mas é claro que o sentido dominante é a vista. Desde logo, Jacinto do Prado Coelho o acentuou. E subtilmente notou que essa «predominância» se deve a que «a vista é o menos sensual de todos eles» [os sentidos]. Assim como mostrou que essa dominância leva a que se «sublinhe o ato de ver, não o objeto da visão: “Vejo.” “Vi como um danado”.»

Gustave Loiseau, Árvores ao longo do rio, 1892.

Manuel Gusmão, A Obra de Alberto Caeiro, Coleção «Textos Literários», Lisboa, Editorial Comunicação, 1986, pp. 47-48.

2. O (re)encontro com as coisas naturais

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O que a poesia de Caeiro diz é a ficção de uma linguagem (realmente) nova, de um projeto de vida e de visão do mundo. Trata-se de um projeto de (re)encontro com as coisas naturais e de adequação à sua realidade evidente e opaca, à sua diversidade e permanente diferença. Este projeto implica dizer uma aceitação da aparência das coisas, que é também uma descoberta delas, tais como se revelam nas sensações, e na medida em que os sentidos se libertem das conceções comuns e herdadas, das palavras, das ideias, teorias, valorações e imagens feitas, que ocultam a irredutível natureza dessas coisas. Assim, neste projeto, diz-se uma suspeita intransigente em relação ao pensamento e à consciência, assim como em relação a toda a ação humana de intervenção no mundo. A filosofia e a ciência são recusadas, e a própria linguagem é suspeita de ser já uma organização do modo de ver as coisas que falha a sua realidade e as oculta. Em última instância, um tal projeto parece implicar uma espécie de anulação da subjetividade própria, como única maneira de aderir às coisas «do mundo», como única maneira de realizar o sonho de se ser real como as coisas. É preciso denunciar, criticar as ilusões da linguagem para encontrar as coisas, que são mudas e sem sentido. […] Em Caeiro, imagina-se o encontro e a descoberta da «eterna novidade do mundo», numa atitude de «pasmo essencial», num presente absoluto, no fundo num tempo sem tempo que é o da visão «originária»: a visão em que se vê tudo sempre da primeira vez, em que não há reencontros, mas encontros sempre novos e puros. Manuel Gusmão, op. cit., pp. 66-68.

CONSOLIDA

1. Refere o percurso para o «(re)encontro com as coisas naturais».

PROFESSOR

MC

Leitura 7.1; 7.3; 8.1.

Consolida 1. O melhor percurso para esse «(re) encontro» é através das sensações, porque são despojadas de preconceitos ou juízos de valor, que constituem obstáculos à aceitação e adesão «às coisas do “mundo”».

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Unidade 1 // FERNANDO PESSOA

FICHA INFORMATIVA 3 Linguagem, estilo e estrutura

PROFESSOR

MC

Leitura 7.1; 7.3; 7.4; 8.1.

1. Linguagem em Caeiro

Consolida 1. As palavras são importantes para transmitir a sua visão inocente e nua da realidade. Procura palavras «encostadas» às «ideias»; um ideal estilístico espontâneo «como se escrever fosse uma coisa que lhe acontecesse/como dar-lhe o sol de fora». 2. O «Caeiro filosófico» tem um estilo antimetafísico, debate-se com questões concetuais e apresenta uma linguagem mais complexa (verbos existenciais, nomes predicativos, antíteses e silogismos). O «Caeiro instintivo», aquele que realmente deseja ser, apresenta um estilo fresco e inocente, pleno de visualismo. Esta simplicidade traduz-se numa linguagem em que predominam as copulativas, coloquialismos e comparações.

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Às palavras procura transmitir Caeiro a inocência, a nudez da sua visão. Daí, algumas vezes, a simplicidade quase infantil do estilo, as séries paratáticas1, a familiaridade de algumas expressões, as imagens e comparações comezinhas2, realistas, caseiras ou de ar livre. Mas como podia Caeiro exprimir linguisticamente a infinita diversidade, as incontáveis metamorfoses3 do mundo? A linguagem situa-nos numa esfera de abstrações: dá-nos conceitos cómodos, insinua uma visão esquemática de acordo com os imperativos práticos da vida. Jacinto do Prado Coelho, Unidade e Diversidade em Fernando Pessoa, 8.ª ed., Lisboa, Editorial Verbo, 1985, pp. 25-26.

2. Estilo e estrutura em Caeiro

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O ideal estilístico de Caeiro, mais de uma vez expresso nos seus poemas, requer a espontaneidade lisa, a palavra direta, encostada à ideia, a formulação natural, viril e fluente, «como se escrever fosse uma coisa que lhe acontecesse/como dar-lhe o sol de fora» [...]. No estilo, porém, [...] projeta-se a íntima contradição entre o Caeiro filósofo antimetafísico4, árido, avezado5 a esgrimir com conceitos, e o Caeiro instintivo que ele pretende ser, com a frescura do seu visualismo, a virgindade radiante das suas experiências de camponês-poeta. O primeiro é quem sobretudo tem em mira «a identificação, a definição com verbos existenciais e nomes predicativos» para ensinar o que a Natureza é e o que nós devemos ser; não poupa as antíteses, os paradoxos, os silogismos6 bem desenrolados. O segundo acumula copulativas, emprega os termos pitorescos da fala popular, repisa os demonstrativos neutros, atenua a aridez dos raciocínios com imagens e comparações caseiras ou de ar livre. Jacinto do Prado Coelho, op. cit., pp. 124-125.

1 Paratáticas: justaposição de fra-

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ses sem uso de conjunção coordenativa ou subordinativa. Comezinhas: simples. Metamorfoses: transformações. Antimetafísico: que se opõe à metafísica, que se opõe à explicação da existência humana e da realidade além da física. Avezado: habituado. Silogismos: raciocínio baseado em duas proposições (as premissas), das quais se deduz uma terceira (a conclusão).

3. Outras características importantes: • Verso livre; irregularidade estrófica; ausência de rima. • Vocabulário simples. • Adjetivação escassa. • Predomínio de verbos transitivos (sobretudo, «ver» e «olhar»), no presente do indicativo. • Predomínio de construções sintáticas coordenadas. • Predomínio da comparação e da metáfora. CONSOLIDA

1. Explicita a importância das palavras para Caeiro. 2. Esclarece a «contradição» entre o estilo do «Caeiro filósofo» e do «Caeiro instintivo».

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SÍNTESE

Poesia dos heterónimos – Alberto Caeiro, o Mestre

• Contemplação da Natureza. O fingimento artístico: o poeta «bucólico»

• Integração, comunhão e harmonia com os elementos naturais e afastamento social. • Simplicidade e felicidade primordiais. • Existência tranquila no tempo presente. • Bucolismo como máscara poética.

• Sensacionismo: a sensação sobrepõe-se ao pensamento. Reflexão existencial: o primado das sensações

• O poeta do olhar. • Observação objetiva da realidade. • Rejeição do pensamento abstrato e da intelectualização. • «Filosofia» da antifilosofia (pensamento antipensamento).

• Linguagem familiar e tom oralizante. • Presença de máximas e de aforismos. • Vocabulário concreto (sobretudo do campo lexical da natureza).

Linguagem, estilo e estrutura

• Predomínio de construções sintáticas coordenadas e subordinadas adverbiais (comparativas, causais e temporais). • Predomínio do presente do indicativo. • Verso livre e longo. • Irregularidade estrófica, rítmica e métrica. • Ausência de rima (versos soltos). • Recursos expressivos predominantes: comparação, metáfora, anáfora, repetição.

PROFESSOR

▪ Apresentação em PowerPoint Síntese da subunidade

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Unidade 1 // FERNANDO PESSOA

Ricardo Reis

PROFESSOR

MC

O fingimento artístico: Ricardo Reis, o poeta «clássico»

Oralidade 1.1; 1.3; 1.4; 1.7; 2.1; 3.1; 5.1; 5.2; 5.3; 6.1; 6.2. Educação Literária 14.1; 14.2; 14.3; 14.4; 14.6; 14.8; 14.9; 15.3; 15.4.

PONTO DE PARTIDA

Gramática 17.1.

1. Visiona, atentamente, o vídeo da canção «O tempo não para», de Mariza, do álbum Best of, e discute com os teus colegas a relação sugerida entre o tempo e a vida.

Ponto de Partida

▪ Link «O tempo não para», Mariza ▪ Documento Letra da canção «O tempo não para» Sugestão de resposta: 1. Na ânsia de viver intensamente, agarrando o tempo que «não para» e que é sempre escasso («coisa rara»), acabamos por não usufruir do momento presente na sua plenitude («algum sorriso eu perdi»). Devemos ter a serenidade de abrandar o ritmo de vida, pensar apenas no presente e ter uma maior atenção ao que nos rodeia, «Vou pedir ao tempo que me dê mais tempo / Para olhar para ti». Ode − Poema destinado a ser cantado, podendo igualmente significar qualquer forma de canto alegre ou triste ou o ato de cantar. […] O sentido da palavra modificou-se, todavia, passando a significar uma poesia rimada de assunto elevado, normalmente escrita em forma de dedicatória de acordo com um estilo e sentimentos nobres. [...] A ode apresentava também como principais características a elaboração estrófica, bem como formalidade e nobreza no tom e no estilo. Fonte: Ana Ladeira, «Ode», in Carlos Ceia (org.), E-dicionário de Termos Literários (consultado em agosto de 2016, texto adaptado).

1 Fitemos: fixemos. 2 Fado: destino. 3 Pagãos: os que seguem uma reli-

EDUCAÇÃO LITERÁRIA

CD 1 Faixa n.0 13

Vem sentar-te comigo, Lídia, à beira do rio. Sossegadamente fitemos1 o seu curso e aprendamos Que a vida passa, e não estamos de mãos enlaçadas. (Enlacemos as mãos). 5

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Depois pensemos, crianças adultas, que a vida Passa e não fica, nada deixa e nunca regressa, Vai para um mar muito longe, para ao pé do Fado2, Mais longe que os deuses. Desenlacemos as mãos, porque não vale a pena cansarmo-nos. rmo-nos. Quer gozemos, quer não gozemos, passamos como o rio. Mais vale saber passar silenciosamente E sem desassossegos grandes. Sem amores, nem ódios, nem paixões que levantam a voz, Nem invejas que dão movimento de mais aos olhos, Nem cuidados, porque se os tivesse o rio sempre correria, eria, E sempre iria ter ao mar. Amemo-nos tranquilamente, pensando que podíamos, os, Se quiséssemos, trocar beijos e abraços e carícias, Mas que mais vale estarmos sentados ao pé um do outro tro Ouvindo correr o rio e vendo-o. Colhamos flores, pega tu nelas e deixa-as No colo, e que o seu perfume suavize o momento — Este momento em que sossegadamente não cremos em nada, Pagãos3 inocentes da decadência.

gião assente na crença em vários deuses. John William Waterhouse, Bóreas, 1903.

Ricardo Reis – O fingimento artístico

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Ao menos, se for sombra antes, lembrar-te-ás de mim depois Sem que a minha lembrança te arda ou te fira ou te mova, Porque nunca enlaçamos as mãos, nem nos beijamos Nem fomos mais do que crianças.

PROFESSOR

E se antes do que eu levares o óbolo4 ao barqueiro sombrio5, Eu nada terei que sofrer ao lembrar-me de ti. Ser-me-ás suave à memória lembrando-te assim — à beira-rio, Pagã triste e com flores no regaço. Ricardo Reis, Poesia (ed. Manuela Parreira da Silva), 2.ª ed., Lisboa, Assírio & Alvim, 2007, pp. 49-50.

4 Óbolo: moeda grega que era colocada na boca dos mortos para pagar

a travessia do rio Estige até ao Hades, mundo dos mortos. 5 Barqueiro sombrio: referência a Caronte, barqueiro que fazia a tra-

vessia.

1. O poema pode ser dividido em três partes. Associa cada parte ao respetivo assunto. Partes constitutivas

Assunto

1. Estrofes 1 e 2

a) Refreamento do impulso amoroso, causado pela intelectualização dos sentimentos.

2. Estrofes 3 a 6

b) Abdicação voluntária do prazer, de modo a evitar o sofrimento provocado pela antevisão da morte.

3. Estrofes 7 e 8

c) Convite para desfrutar, tranquilamente, da vida, para contemplar a Natureza, seguido de ímpeto amoroso.

2. Enumera os «desassossegos grandes» (v. 12) a que o sujeito poético faz referência e indica porque devemos evitá-los. 3. Explicita três características da filosofia de vida presentes nas seis primeiras estrofes. Fundamenta a tua resposta com elementos textuais.

FI

O fingimento artístico p. 96

DS

Breve dicionário de símbolos

4. Esclarece a perspetiva de morte patente nas duas últimas estrofes. 5. Apresenta o valor simbólico das seguintes palavras do poema. a) b) c) d) e)

«Rio» (vv. 1, 10, 15, 20) «Crianças» (vv. 5, 28) «Mar» (vv. 7, 16) «Flores» (vv. 21, 32) «Sombra» (v. 25)

95

5.1 Elabora uma apresentação oral, de cinco a sete minutos, em que relaciones a mensagem da canção escutada no Ponto de Partida com o poema.

Educação Literária 1. – c); 2. – a); 3. – b). 2. Os «desassossegos grandes» enumerados correspondem aos «amores», «ódios», «paixões», «invejas» e «cuidados» (est. 4); isto é, emoções e sentimentos que nos perturbam a tranquilidade. De nada adianta agitarmo-nos porque, tal como o rio segue o seu curso até ao mar, a nossa vida segue implacavelmente o seu curso até ao seu fim. 3. As três características da filosofia de vida presentes nas seis primeiras estrofes são: – fruição contemplativa e serena da Natureza: «Vem sentar-te comigo, Lídia, à beira do rio. / Sossegadamente fitemos o seu curso e aprendamos», vv. 1-2. – fruição moderada dos prazeres fugazes que são concedidos: «Amemo-nos tranquilamente […]», v. 17; «Mas que mais vale estarmos sentados ao pé um do outro / Ouvindo correr o rio e vendo-o.», vv. 19-20. – consciência da efemeridade da vida e da importância de usufruir o momento presente: «Colhamos flores, pega tu nelas e deixa-as / No colo, e que o seu perfume suavize o momento», vv. 21-22. 4. A visão de morte coaduna-se com a perspetiva que dela se tinha na Antiguidade Clássica, em que os deuses e o Fado comandavam as vidas humanas e ditavam a sua morte. Perante esta mundivisão, torna-se necessário aceitar a morte, momento em que apenas devemos recordar o que foi agradável na vida, sem apego a nada nem a ninguém, para que a separação final não traga mais sofrimento. 5. a) «Rio» – símbolo da vida, salienta a sua transitoriedade e o caráter irreversível do tempo que passa; b) «Crianças» – símbolo da inocência e da felicidade, enfatiza o estado de ingenuidade e aceitação que se pretende atingir; c) «Mar» – símbolo da morte, destaca a inevitabilidade desta situação-limite: todos os rios (vidas) desaguam no mar (morte); d) «Flores» – símbolo da vida, remete para a beleza efémera da vida humana; e) «Sombra» – símbolo da morte, sublinha o estado espectral no post mortem, penumbra de nós mesmos. 5.1 No poema, o sujeito lírico convida a sua interlocutora para se sentar junto a ele e observar o rio. Tem um primeiro impulso de relacionamento amoroso, logo refreado pela Razão. Não vale a pena qualquer envolvimento emocional, porque só iria perturbar a tranquilidade presente e seria um sofrimento acrescido, no futuro, quando a morte chegasse. Relação de contraste com a canção: enquanto que no poema se adota uma postura contemplativa e passiva, na canção, apela-se à ação e ao relacionamento amoroso, à fruição amorosa do momento.

96

Unidade 1 // FERNANDO PESSOA

FICHA INFORMATIVA 1 O fingimento artístico: Ricardo Reis, o poeta «clássico»

PROFESSOR

MC

Leitura 7.1; 7.3; 7.4; 8.1.

Consolida 1. As aspas remetem para o fingimento artístico do heterónimo Ricardo Reis, desta feita, a estilização de uma poética «clássica». Esta ficção da cosmogonia pessoana corresponde a uma vertente mais conservadora, de tendência clássica. De facto, esta opção classicista espelha-se quer na forma (composição em ode; versificação; vocabulário; sintaxe), quer nas temáticas (o prazer relativo e sem perturbações, ataraxia epicurista; a aceitação e autodisciplina estoicas; o carpe diem moderado; a crença no Fado, nos deuses, na mitologia e nas tradições clássicas). Contudo, toda esta construção artística não impede o sujeito lírico de sofrer perante a inexorabilidade do Tempo e a efemeridade da vida, obsessões constantes da sua poesia.

5

Esse «ver por dentro» permitiria a Pessoa criar uma cosmogonia1 em que, vizinho de Campos ou de Caeiro, mas deles separado, surge Ricardo Reis: seguidor da cultura neoclássica, da filosofia epicurista e estoica, defensor da aurea mediocritas 2, da justa medida, recorrendo a uma rigorosa versificação, a latinismos, a termos eruditos, à mitologia. […] Esse reconhecimento de que nada vale a intervenção humana, de que o prazer e a dor, a serem sentidos, deverão sê-lo placidamente3, é uma temática recorrente nestas odes, que se caracterizam pela intelectualização das emoções, ou pela sua supressão, pelo deleite epicurista contemplativo […] ou estoica contemplação da inevitabilidade da passagem do tempo e da chegada da morte […]. Ana Luísa Amaral, Prefácio «Porque alta vive, a Lua», in Obra Essencial de Fernando Pessoa – Poesia de Ricardo Reis, Lisboa, INCM/Alêtheia/Expresso, 2015, pp. 5-6.

Principais influências filosóficas da cultura clássica em Ricardo Reis

Epicurismo

• Efemeridade da vida e inevitabilidade da morte. • Busca da felicidade relativa e da ausência de sofrimento (ataraxia). • Altivez e indiferença (egoísmo epicurista) – abdicação pessoal e consciente. • Perceção direta da realidade e do ciclo da Natureza.

Estoicismo

• • • •

Aceitação das leis do Destino e do Tempo. Supressão do desejo, do prazer, da angústia e do lamento. O acaso4 inabilita a providência5. Autodisciplina e despojamento de bens materiais e espirituais.

Neopaganismo

• (Re)aparecimento dos antigos deuses (e geralmente os deuses do mundo grego ou latino) na arte ou na literatura, a partir do século XVIII. • Renascimento da essência pagã, pela eliminação da racionalidade abstrata e pela rejeição da metafísica ocidental. • Cosmovisão6 hierárquica ascendente – animais, homens, deuses e Fado.

Horacianismo

• Visão estoico-epicurista da existência. • Perceção aguda da transitoriedade temporal, da brevidade da vida e inevitabilidade da morte e do Destino. • Inutilidade do esforço e da indagação sobre o futuro. • Apelo ao carpe diem7, à entrega moderada ao prazer. • Culto da aurea mediocritas (apologia de uma vida calma e simples, longe do bulício das cidades, com um mínimo de dor ou gozo). • Presença do locus amoenus8. • Autodomínio que evita as paixões e aceitação voluntária do destino.

1 Cosmogonia: descrição hipotética da

génese do mundo. 2 Aurea mediocritas: ideal de uma

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8

existência tranquila, em que se evitam os excessos e se procura a felicidade na mediania. Placidamente: tranquilamente Acaso: ocasião imprevista. Providência: felicidade. Cosmovisão: conceção do mundo. Carpe diem: expressão usada para convidar a aproveitar o momento presente, sem preocupações com o futuro. Locus amoenus: lugar ameno, idílico, tranquilo, bucólico, pastoril.

Fonte: Fernando Cabral Martins (coord.), Dicionário de Fernando Pessoa e do Modernismo Português , Alfragide, Editorial Caminho, 2008. CONSOLIDA

1. Explica o uso das aspas em Ricardo Reis, o poeta «clássico», tendo em conta a informação apresentada.

Ricardo Reis – Reflexão existencial

Reflexão existencial: a consciência e a encenação da mortalidade

PROFESSOR

MC

Gramática 19.2; 19.3.

1. Visiona o sketch «Rústicos pelo Epicurismo», do grupo humorístico Gato Fedorento, e justifica o título atribuído.

Ponto de Partida

Rústicos pelo Epicurismo (2008) Gato Fedorento CD 1 Faixa n.0 14

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Passamos e agitamo-nos debalde1. Não fazemos mais ruído no que existe Do que as folhas das árvores Ou os passos do vento. Tentemos pois com abandono assíduo Entregar nosso esforço à Natureza E não querer mais vida Que a das árvores verdes.

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Inutilmente parecemos grandes. Salvo nós nada pelo mundo fora Nos saúda a grandeza Nem sem querer nos serve. Se aqui, à beira-mar, o meu indício Na areia o mar com ondas três o apaga. Que fará na alta praia Em que o mar é o Tempo? Ricardo Reis, op. cit., pp. 79-80.

1 Debalde: em vão.

1. Explicita a relação que se estabelece entre «nós» e os elementos da Natureza nas duas primeiras estrofes. 2. Baseando-te nos conceitos filosóficos subjacentes à poética de Ricardo Reis, interpreta o sentido da terceira estrofe. 3. Fundamenta a passagem da primeira pessoa do plural (estrofes 1 a 4) para a primeira pessoa do singular (estrofe 5). 4. Considerando a consciência e a encenação da mortalidade presentes na poesia de Ricardo Reis, explicita o valor expressivo da interrogação retórica presente na última estrofe.

FI

GRAMÁTICA

Valor temporal e valor aspetual pp. 57-60

1. Indica a relação de ordem cronológica entre o tempo do enunciado e o respetivo ponto de referência. a) «Passou o vento» (v. 2)

▪ Link Gato Fedorento, «Rústicos pelo Epicurismo» 1. O título justifica-se pois são homens do campo que defendem o pensamento epicurista, nomeadamente: a inevitabilidade da morte; a fruição da vida (sobretudo, através das sensações); existência de uma vida tranquila, até que chegue o momento fatal, dado que é algo inelutável.

Antes de nós nos mesmos arvoredos Passou o vento, quando havia vento, E as folhas não falavam De outro modo do que hoje. 5

Oralidade 1.1; 1.3; 1.4; 1.7; 2.1. Educação Literária 14.1; 14.2; 14.3; 14.4; 14.8.

PONTO DE PARTIDA

EDUCAÇÃO LITERÁRIA

97

b) «Passamos e agitamo-nos» (v. 5)

c) «Que fará» (v. 19)

2. Identifica o aspeto gramatical em «quando havia vento, / E as folhas não falavam» (vv. 2-3).

Educação Literária 1. Tanto o «nós» como os elementos da Natureza fazem parte da mesma realidade transitória, sujeitos às mesmas condições, neste caso, à passagem do tempo e do vento. Estabelece-se, assim, uma relação de semelhança entre o Homem e a Natureza: (vv. 6-8). No entanto, o que para a Natureza faz parte do seu ciclo habitual, para o Homem, fruto da consciência da passagem do tempo, é motivo de agitação e perturbação . 2. Na terceira estrofe, aconselha-se tranquilidade (ataraxia epicurista) em identificação e em comunhão com a Natureza (Epicurismo); usufruto do momento presente (carpe diem horaciano); aceitação «com abandono» (estoico) do tempo de vida que nos é concedido. 3. O «nós» presente nas quatro primeiras estrofes remete para um Fado comum a todos os seres humanos. Na última estrofe, o eu dá um exemplo na primeira pessoa, uma vivência pessoal da fugacidade da vida, da passagem inelutável do Tempo e da pequenez dos nossos atos (vv. 17-18), reforçando a ideia da debilidade humana, perante forças maiores. 4. O sujeito poético tem consciência de que a única certeza do Homem é a morte: a vida não é mais do que o adiamento da hora fatal. A poesia de Reis «encena», isto é, prepara de antemão e de forma dramática, no sentido teatral, esse momento inevitável de niilismo. A interrogação retórica enfatiza todos estes aspetos: intensifica a noção de brevidade da vida e a consciência da mortalidade, pondo em evidência o contraste entre a fragilidade humana e a grandiosidade/inexorabilidade do Tempo, «encenando»/ prevendo o instante final. Gramática 1. a) Relação de anterioridade; b) Relação de simultaniedade; c) Relação de posterioridade; 2. Situação habitual.

98

Unidade 1 // FERNANDO PESSOA

PROFESSOR

MC

Oralidade 1.1; 1.3; 1.4; 1.7; 4.1; 4.2. Educação Literária 14.1; 14.2; 14.3; 14.4; 14.8; 14.9.

PONTO DE PARTIDA

1. A partir da leitura da tira de Calvin & Hobbes, discute com os teus colegas a importância do Destino no quotidiano da vida dos Homens.

Gramática 17.1; 18.2. Escrita 10.1; 11.1; 12.1; 12.2; 12.3; 12.4; 13.1. Ponto de Partida Sugestão de resposta: 1. A tira mostra como a noção de «Destino» pode ser relativa: por um lado, há situações que parecem ser coincidências ou estar predestinadas, sem que nós possamos agir contrariamente a essas «forças» (fatalismo de Calvin). Por outro lado, Hobbes demonstra-lhe (matreira e dolorosamente) que o Destino somos nós que o traçamos.

Bill Watterson, Calvin & Hobbes – Monstros de Outro Planeta!, Lisboa, Gradiva, 1993, p. 52.

EDUCAÇÃO LITERÁRIA

Cada um cumpre1 o destino que lhe cumpre2, E deseja o destino que deseja; Nem cumpre o que deseja, Nem deseja o que cumpre.

Educação Literária 1. Na primeira ocorrência, o verbo «cumprir» tem como aceção «sujeitar-se a»; na segunda ocorrência, o verbo «cumprir» tem como significado «caber, pertencer». Assim, desfazendo a polissemia, podemos interpretar o verso da seguinte forma: «cada um sujeita-se ao destino que lhe cabe». 2. Os recursos expressivos são a comparação e a anástrofe. Ambos concorrem para enfatizar o facto de o Homem ser um joguete nas mãos do Fado. A anástrofe evidencia a comparação dos Homens com as «pedras na orla dos canteiros», pondo-as em primeiro lugar na frase; a comparação destaca a pequenez humana e o desdém com que o Fado trata o Homem. 3. Na última estrofe do poema, estão implícitas várias ideias filosóficas: – Epicurismo: o presente é o único tempo, privilegiando-se o prazer de cada momento, a busca da felicidade relativa e a ausência de perturbação (ataraxia) – «Cumpramos o que somos», v. 11; – Estoicismo: aceitação das leis do Destino e do Tempo – «Nada mais nos é dado.», v. 12; – Horacianismo: inutilidade do esforço e da indagação sobre o futuro – «Não tenhamos melhor conhecimento / Do que nos coube que de que nos coube.», vv. 9-10.

CD 1 Faixa n.0 15

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Como as pedras na orla dos canteiros O Fado nos dispõe, e ali ficamos; Que a Sorte nos fez postos Onde houvemos de sê-lo. Não tenhamos melhor conhecimento Do que nos coube que de que nos coube. Cumpramos o que somos. Nada mais nos é dado. Ricardo Reis, op. cit., p. 123. George Seurat, Homem inclinado no parapeito, 1881.

1. Interpreta o sentido do primeiro verso do poema, desconstruindo a polissemia do verbo «cumprir». 2. Identifica e esclarece o valor dos recursos expressivos em «Como as pedras na orla dos canteiros / O Fado nos dispõe [...]» (vv. 5-6). 3. Explicita a filosofia de vida defendida na última estrofe do poema.

Recursos expressivos SIGA p. 383

FI

Reflexão existencial p. 100

FI

Linguagem, estilo e estrutura p. 101

4. Caracteriza o poema quanto à forma estrófica, métrica e rimática. 1 Cumpre: executa, sujeita-se a. 2 Cumpre: cabe, pertence.

5. Indica três características da linguagem e do estilo de Ricardo Reis presentes neste poema, fundamentando a tua resposta com elementos textuais.

Ricardo Reis – Reflexão existencial

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FICHA INFORMATIVA 2 GRAMÁTICA

PROFESSOR

1. Para responderes aos itens de 1.1 a 1.4, seleciona a única opção que te permite obter uma afirmação correta. 1.1 Em «Cada um cumpre o destino que lhe cumpre» (v. 1) e «Nem cumpre o que deseja» (v. 3), as orações destacadas são, respetivamente, subordinadas (A) (B) (C) (D)

substantiva completiva e substantiva relativa sem antecedente. SIGA substantiva completiva e adjetiva relativa restritiva. adjetiva relativa restritiva e substantiva completiva. adjetiva relativa restritiva e substantiva relativa sem antecedente.

Subordinação p. 374

1.2 No contexto em que ocorrem «Cada um cumpre o destino que lhe cumpre, / E deseja o destino que deseja» (vv. 1-2), os vocábulos destacados contribuem para a coesão (A) lexical. (B) referencial.

(C) interfrásica. (D) frásica.

Coesão textual SIGA pp. 377-378

1.3 No contexto em que ocorrem «Nem cumpre o que deseja, / Nem deseja o que cumpre.» (vv. 3-4), as expressões destacadas contribuem para a coesão (A) lexical. (B) referencial.

(C) interfrásica. (D) frásica.

1.4 Em «O Fado nos dispõe, e ali ficamos» (v. 6), os vocábulos destacados são, respetivamente, deíticos de (A) espaço e tempo. (B) pessoa e espaço.

(C) espaço e pessoa. (D) pessoa e tempo.

Deixis SIGA p. 378

ESCRITA Texto de opinião SIGA pp. 364-365

Texto de opinião 1. Lê o poema seguinte.

5

Para ser grande, sê inteiro: nada Teu exagera ou exclui. Sê todo em cada coisa. Põe quanto és No mínimo que fazes. Assim em cada lago a lua toda Brilha, porque alta vive. Ricardo Reis, op. cit., p. 212.

Num texto bem estruturado, apresenta a tua opinião sobre a temática abordada no poema, tendo em conta a filosofia de vida preconizada na poesia de Ricardo Reis. Fundamenta o teu ponto de vista recorrendo, no mínimo, a dois argumentos e ilustra cada um deles com, pelo menos, um exemplo significativo.

4. A ode organiza-se em três quadras; quanto à métrica, os dois primeiros versos de cada estrofe são versos longos (decassílabos - «Ca/da um/ cum/ pre o/ des/ti/no/ que/ lhe/ cum/pre»), seguidos de dois versos mais breves (hexassílabos - «Nem/ cum/pre o/ que/ de/se/ja»). Quanto à rima, os versos são soltos ou brancos. 5. Por exemplo: a latinização da sintaxe («Como as pedras na orla dos canteiros / O Fado nos dispõe», vv. 5-6); os versos, brancos e medidos; versos repletos de partículas gramaticais («Do que nos coube que de que nos coube», v. 10); polissemia vocabular, ambiguidade com propósitos estéticos («Cada um cumpre o destino que lhe cumpre», v. 1). Gramática 1.1 (D); 1.2 (A); 1.3 (C); 1.4 (B). Escrita Sugestão de resposta: Temática do poema: – A nobreza e a grandiosidade de caráter demonstram-se através do empenho integral que dedicamos às nossas ações, sem exageros nem omissões. Filosofia de vida em Reis: – Apesar da consciência da fugacidade da vida e da mortalidade (Epicurismo), devemos fruir, em plenitude, os momentos que nos são proporcionados, porém sem excessos (Horacianismo); – Se quisermos ser como a «lua», altos na nossa dignidade, «brilhando em todos os lagos», devemos, de facto, pôr quanto somos no mínimo que fazemos, porque só assim nos podemos realizar: • pessoalmente (exemplos: na família, na escola, na sociedade); • socialmente (exemplos: ações de voluntariado, projetos comunitários, política, …) Reflexão final: – Hoje em dia, com o frenesim quotidiano, esquecemo-nos dos outros e até de nós mesmos. Fazemos tudo pela metade e sem a dedicação que nos torna «altos como a lua». Há que parar e pensar nas linhas condutoras da filosofia de vida de Reis, que tantos ensinamentos ainda hoje nos pode dar. ▪ Apresentação em PowerPoint Correção da atividade de Escrita

100

Unidade 1 // FERNANDO PESSOA

FICHA INFORMATIVA 2 Reflexão existencial: a consciência e a encenação da mortalidade

PROFESSOR

MC

Leitura 7.1; 7.3; 7.4; 8.1.

1. A consciência de ser efémero

Consolida 1. Ricardo Reis, consciente da efemeridade da vida e do sofrimento que isso lhe provoca, refugia-se no Epicurismo e no Estoicismo, procurando assim fruir a vida sem desassossegos ou dúvidas existenciais e renunciar voluntariamente ao prazer numa atitude de autodisciplina.

5

Ricardo Reis (latinista e semi-helenista, «pagão por caráter») segue Caeiro no amor da vida rústica, junto da Natureza; mas, enquanto o mestre, menos culto e complicado, é um homem franco, alegre, Reis é um ressentido, que severamente se molda a si mesmo; sofre por se saber efémero, dói-lhe o desprezo dos deuses, aflige-o a imagem antecipada da Morte, conhece a dureza do Fatum; por isso, busca o refúgio de um epicurismo temperado de estoicismo, tal como em Horácio, seu modelo literário: «Abdica / E sê rei de ti próprio.» Lúcido e cauteloso, sabiamente constrói para si uma felicidade relativa, feita de resignação altiva e de temperado gozo dos prazeres que não comprometem a liberdade interior. Jacinto do Prado Coelho, «Pessoa, Fernando» in Dicionário de Literatura: Literatura Portuguesa, Literatura Brasileira, Literatura Galega, Estilística Literária, 4.ª ed., vol. 3, Porto, Figueirinhas, 1989, p. 821.

2. A encenação da mortalidade

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[E]m consequência da aprendizagem da efemeridade da vida, [...] renunciemos estoicamente ao gozo momentâneo: «Quer gozemos, quer não gozemos, passamos como o rio.» E então, mais vale a serenidade, a calma, «Mais vale saber passar silenciosamente e sem desassossegos grandes». E preconiza-se uma filosofia de vida que consiste em recusar, renunciar voluntariamente ao prazer momentâneo, evitando os amores, os ódios, as paixões, as invejas, os cuidados. É que, com eles ou sem eles, o nosso destino final é o mesmo: passar, ir para o tal «mar muito longe, para ao pé do Fado» [...]. Saibamos ter a ciência de aceitar o destino que nos dão os deuses – a vida breve – e limitemo-nos a durar enquanto vivemos, «só mornos ao sol quente / e refletindo um pouco». A única liberdade que nos é concedida pelos deuses é fazer como eles: – não nos pensarmos e submeter-nos voluntariamente a um destino involuntário. Jacinto do Prado Coelho, «Futurismo» in Dicionário de Literatura: Literatura Portuguesa, Literatura Brasileira, Literatura Galega, Estilística Literária, 4.ª ed., vol. 2, Porto, Figueirinhas, 1989, pp. 355-356.

CONSOLIDA Jean Metzinger, Maré Baixa, 1904.

1. Esclarece de que forma é tratada a questão da efemeridade da vida em Ricardo Reis.

Ficha informativa

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FICHA INFORMATIVA 3 Linguagem, estilo e estrutura

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A estética defendida nas odes de Reis visa uma impersonalidade austera, a desafiar as injúrias do tempo. O que interessa é modelar o pensamento, porque a expressão virá a reboque, obediente. […] Esta dissociação de conteúdo e forma é, não obstante, apenas teórica. Ao trabalhar o estilo, Reis impõe-se uma disciplina que lhe vai enrijando a própria alma. Escrupuloso, solene, enche os versos, brancos e medidos, de troços de linguagem aforística1, retesa2, a obrigar o leitor a uma espécie de ascese3 para compreender e aderir. Estilo abstrato e difícil, elíptico, da inteligência para a inteligência, entrecortado de incidentes. Há versos carregados de partículas gramaticais, como este, de arestas cortantes: «Do que nos coube que de que nos coube.» Se o epicurismo é o fundo da filosofia de Reis, o seu estilo, de uma dureza estoica, não afaga a imaginação sensual. O nível erudito do vocabulário cifra-se em termos da altura de […] estígio4, ínfero5, núbil 6, óbolo, vólucres 7 […]. Ao mesmo tempo encontramos arcaísmos mais ou menos recuados, mais ou menos em desuso, como per em vez de por, refusar por recusar […]. Neste clima latinizante [também ao nível sintático] e arcaizante, as raras palavras comezinhas, como puxar, apoquentar, perceber, ganham um sabor literário não isento de afetação. Reis gosta de imprimir às palavras um cunho semântico original: usar significa nele usufruir, indício, pegada […]. Não despreza o processo de rejuvenescimento, […] que consiste em atribuir às palavras sentidos próximos do etimológico […]. Este processo, modalidade do que se chama, em semântica, «restituição da motivação», se por um lado delimita com rigor os conceitos, por outro serve para iluminar duas faces do mesmo semantema8, ambiguidade com virtualidades estéticas. […] Às vezes, para sintetizar forçando o leitor a maior tensão, Reis é voluntariamente omisso ou pouco rigoroso. Jacinto do Prado Coelho, Unidade e Diversidade em Fernando Pessoa, 8.ª ed., Lisboa, Editorial Verbo, 1985, pp. 131-134.

CONSOLIDA

Forma poética Versificação Estilo Sintaxe

MC

e) Semântica f) Vocabulário g) Conteúdo/forma

Leitura 7.1; 7.3; 8.1.

Consolida a) «Odes»; b) Versos «brancos e medidos»; c) «Abstrato e difícil, elíptico»; d) «Clima latinizante [também ao nível sintático]»; e) Fomenta o gosto de «imprimir às palavras um cunho semântico original», cultivando a «ambiguidade com virtualidades estéticas»; f) «Nível erudito do vocabulário», presença de «arcaísmos», também «as raras palavras comezinhas [...] ganham um sabor literário não isento de afetação»; g) Conteúdo e forma estão relacionados: «Esta dissociação de conteúdo e forma é, não obstante, apenas teórica. Ao trabalhar o estilo, Reis impõe-se uma disciplina que lhe vai enrijando a própria alma.»

1 Aforística: que expressa um

princípio de forma breve. 2 Retesa: enérgica. 3 Ascese: demanda de aperfei-

4

1. Refere-te a cada um dos tópicos da linguagem, estilo e estrutura da poética de Ricardo Reis, selecionando a informação relevante do texto. a) b) c) d)

PROFESSOR

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çoamento espiritual através do afastamento do mundo e da abdicação dos deleites relacionados com a vida terrena. Estígio: relativo a Estige, um dos rios do Hades, a Terra dos Mortos, na mitologia grega. Ínfero: inferior, infernal. Núbil: casadoiro. Vólucres: que têm vida curta, efémeros. Semantema: radical de uma palavra contendo o seu sentido fundamental.

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Unidade 1 // FERNANDO PESSOA

LEITURA

PROFESSOR

MC

Leitura 7.1, 7.2; 7.3; 7.4; 7.5, 7.7.

Artigo de opinião

Gramática 17.1; 18.2. Leitura 1. Tema explorado: cada ser humano pensa ser, erradamente, o «centro do mundo». 2. Título apelativo: «Nascer é um bom começo. O resto é discutível.». Introdução (parágrafo 1): apresentação do tema, abdicação voluntária do nosso ego e aceitação de que o melhor é apenas «ler», «assistir» e «pertencer». Desenvolvimento (parágrafos 2, 3, 4 e 5): apresentação de argumentos e de exemplos que têm como objetivo defender a opinião de que toda a tentativa de sermos o centro do mundo, ou termos a veleidade de conhecer a «verdade que é verdadeira para todos», é um erro crasso. Todas estas vanidades apenas nos impedem de usufruir dos escassos momentos de prazer de que dispomos. Conclusão (último parágrafo): coincide com o título; circularmente, reforça-se o ponto de vista de que não é fácil viver, porém nascer (estarmos vivos) já é um bom começo. 3. Por exemplo: – Discurso valorativo: «É porque a verdade é mesmo assim: não existe.», ll. 30-31; «Perdemos muito tempo a não vivermos no mundo a que pertencemos.», ll. 16-17, «Nascer é um bom começo. O resto é discutível» ll. 41-42; – Explicitação de um ponto de vista: «Não somos porque não podemos ser. Nenhum de nós tem qualquer importância ou influência no mundo das coisas que importam ou influem.», ll. 12-15; – Clareza e pertinência da perspetiva adotada: «O que existe é a avaliação da qualidade dos erros.» (ll. 32-33); – Argumentos desenvolvidos: «Uns são heroicos mas estúpidos. Outros são cobardes mas convincentes.» (ll. 33-35); – Exemplo: «O erro mais humano é achar que um ser humano é capaz, com muito esforço e muita inteligência, de se aproximar de uma verdade que é verdadeira para todos; quase todos ou, simplesmente, para uma triste maioria.», ll. 35-40. 4. Há uma relação de semelhança, a vários níveis, relativamente à filosofia de vida presente na poesia de Reis: a abdicação do nosso egocentrismo e da falsa superioridade perante o outro; a consciência da inexorabilidade do Tempo e do prazer relativo que nos é concedido e de que não vale a pena procurarmos verdades absolutas, porque estas não existem. Gramática 1. Coesão gramatical referencial. 1.1 O antecedente é comum: «[d]os erros», l. 33.

O prazer de viver Nascer é um bom começo. O resto é discutível.

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É bom esquecermo-nos de nós próprios e não ligarmos ao que sentimos. Às vezes é melhor não pensar e só ler. Ou não fazer nada – e só assistir. É melhor não procurar – e só pertencer. A coisa mística é quase sempre uma questão de preguiça produtiva. É deixar de fazer o esforço de participar ou de concorrer para conseguirmo-nos convencer, ludibriados com grande custo, de que somos o centro do mundo. Não somos porque não podemos ser. Nenhum de nós tem qualquer importância ou influência no mundo das coisas que importam ou influem. Perdemos muito tempo a não vivermos no mundo a que pertencemos. Perdemos muito tempo sem olhar para tudo o que existe à nossa volta. Querermos ser importantes e influentes não impressiona ou muda nada ou ninguém. Mas tira a

cada um de nós o tempo e o prazer, já de si poucos, de viver. A sabedoria é um engano diferente 25 dos outros: ensina-nos a ter a certeza de que estamos (e somos, fundamentalmente) enganados. Mas não é por haver outros que estão ainda mais enganados ou, Deus nos livre, por haver outros que 30 têm razão. É porque a verdade é mesmo assim: não existe. O que existe é a avaliação da qualidade dos erros. Uns são heroicos mas estúpidos. Outros são cobardes mas convincen35 tes. O erro mais humano é achar que um ser humano é capaz, com muito esforço e muita inteligência, de aproximar-se de uma verdade que é verdadeira para todos; quase todos ou, simplesmente, para uma 40 triste maioria. Nascer é um bom começo. O resto é discutível.

Miguel Esteves Cardoso, «O prazer de viver», Público, 28 de maio de 2016 (disponível em www.publico.pt, consultado em julho de 2016, texto adaptado).

1. Identifica o tema desenvolvido ao longo do texto e relaciona-o com o ponto de vista do autor. 2. Explicita a estrutura do texto quanto à sua organização externa e interna. 3. Refere três marcas discursivas típicas do artigo de opinião presentes no texto, ilustrando a tua resposta. 4. Relaciona a temática do texto com a filosofia de vida presente na poética de Ricardo Reis.

GRAMÁTICA

1. Identifica o tipo de coesão textual que os elementos destacados permitem construir «Uns são heroicos mas estúpidos. Outros são cobardes mas convincentes.» (ll. 33-35). 1.1 Indica os respetivos antecedentes.

Coesão textual SIGA pp. 377-378

Alberto Caeiro

SÍNTESE

Poesia dos heterónimos – Ricardo Reis, «o clássico»

• Neoclassicismo: revivalismo da cultura da Antiguidade Clássica (sobretudo, a grega). • Neopaganismo: hierarquização ascendente – animais, homens, deuses e Fado, que a todos preside.

O fingimento artístico: o poeta «clássico»

• Epicurismo: demanda da felicidade e do prazer relativos; indiferença perante as emoções excessivas e preferência pelo estado de ataraxia (serenidade e ausência de perturbação ou inquietação). • Estoicismo: aceitação das leis do Tempo e do Destino; resignação perante a frágil condição humana e o sofrimento; culto da autodisciplina e da abdicação voluntária de sentimentos e compromissos. • Horacianismo: carpe diem (fruir o momento com moderação). • Contemplação da Natureza e desejo de com ela aprender a viver; afastamento social e rejeição da práxis (proatividade). • Classicismo como máscara poética.

• Consciência da efemeridade da vida; da inexorabilidade do Tempo e da inevitabilidade da Morte. • Tragicidade da vida humana. Reflexão existencial: a consciência e encenação da mortalidade

• A vida como «encenação» da hora fatal (previsão e preparação da morte): despojamento de bens materiais, negação de sentimentos excessivos e de compromissos. • Intelectualização de emoções e contenção de impulsos. • Vivência moderada do momento (o presente como único tempo que nos é concedido). • Preocupação obsessiva com a passagem do Tempo e com a inelutável Morte (apesar do esforço empreendido na construção da máscara poética).

• Linguagem culta, erudita e latinizante. • Estilo e forma complexos espelham o conteúdo. • Tom didático e moralista (conselhos expressos no imperativo ou no conjuntivo com valor exortativo). • Tom coloquial na presença de um interlocutor. • Preferência pela composição poética em ode. Linguagem, estilo e estrutura

• Regularidade estrófica, rítmica e métrica (versos predominantemente decassilábicos e hexassilábicos). • Ausência de rima (versos soltos). • Predomínio de construções sintáticas subordinadas e com influência da sintaxe latina (alteração da ordem padrão dos constituintes sintáticos). • Privilégio do presente do indicativo e uso frequente da primeira pessoa do plural; utilização do gerúndio com valor aspetual imperfetivo. • Recursos expressivos predominantes: anástrofe, metáfora, aliteração, apóstrofe.

PROFESSOR

▪ Apresentação em PowerPoint Síntese da subunidade

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Unidade 1 // FERNANDO PESSOA ESSOA

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Educação Literária 14.1; 14.2; 14.3; 14.4; 14.6; 14.8; 14.9; 15.3; 15.4.

Ponto de Partida Sugestão de resposta: 1. Perceções sensitivas: – Apelo aos sentidos, privilegiando-se sobretudo a visão, com a presença alternada de cores quentes e frias. O cromatismo organiza-se em tons pastel azul, rosa e alaranjado, numa combinação contrastiva que permite destacar a figura. Movimento: – O predomínio de formas circulares convoca a concentração do olhar e nelas estão integradas várias formas geométricas. Deste conjunto de formas resulta uma perceção bidimensional, sobressaindo uma imagem que pode ser interpretada pelo observador como uma figura ou como um fundo, por estarem aqui trabalhadas questões de fundo e de espaço. A preponderância destas formas circulares confere movimento ondulatório à pintura, dando dinamismo à obra.

Álvaro de Campos O fingimento artístico: Álvaro de Campos, o poeta da modernidade C PONTO DE PARTIDA

1. Observa a pintura de Amadeo de Souza-Cardoso e refere-te aos seguintes aspetos: • perceções sensitivas; • movimento. EDUCAÇÃO LITERÁRIA

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Afinal, a melhor maneira de viajar é sentir. Sentir tudo de todas as maneiras. Sentir tudo excessivamente, Porque todas as coisas são, em verdade, excessivas E toda a realidade é um excesso, uma violência, Uma alucinação extraordinariamente nítida Que vivemos todos em comum com a fúria das almas, O centro para onde tendem as estranhas forças centrífugas Que são as psiques humanas no seu acordo de sentidos. Quanto mais eu sinta, quanto mais eu sinta como várias pessoas, Quanto mais personalidades eu tiver, Quanto mais intensamente, estridentemente as tiver, Quanto mais simultaneamente sentir com todas elas, Quanto mais unificadamente diverso, dispersadamente atento, Estiver, sentir, viver, for, Mais possuirei a existência total do universo, Mais completo serei pelo espaço inteiro fora, Mais análogo serei a Deus, seja ele quem for, Porque, seja ele quem for, com certeza que é Tudo, E fora d'EIe há só EIe, e Tudo para Ele é pouco. Cada alma é uma escada para Deus, Cada alma é um corredor-Universo para Deus, Cada alma é um rio correndo por margens de Externo Para Deus e em Deus com um sussurro soturno.

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Sursum corda!1 Erguei as almas! Toda a Matéria é Espírito, Porque Matéria e Espírito são apenas nomes confusos Dados à grande sombra que ensopa o Exterior em sonho E funde em Noite e Mistério o Universo Excessivo! Sursum corda! Na noite acordo, o silêncio é grande. As coisas, de braços cruzados sobre o peito, reparam Com uma tristeza nobre para os meus olhos abertos Que as vê como vagos vultos noturnos na noite negra.

Amadeo de Souza-Cardoso, Abstração, 1913.

Álvaro de Campos – O fingimento artístico

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Sursum corda! Acordo na noite e sinto-me diverso. Todo o Mundo com a sua forma visível do costume, Jaz no fundo dum poço e faz um ruído confuso, Escuto-o, e no meu coração um grande pasmo soluça.

Sursum corda! Reparo para ti e todo eu sou um hino! Tudo em mim como um satélite da tua dinâmica íntima Volteia serpenteando ficando como um anel Nevoento, de sensações reminiscidas e vagas, Em torno ao teu vulto interno túrgido e fervoroso.

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Ocupa de toda a tua força e de todo o teu poder quente Meu coração a ti aberto! Como uma espada trespassando meu ser erguido e extático, Interseciona com o meu sangue, com a minha pele e os meus nervos, Teu movimento contínuo, contíguo a ti-própria sempre.

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Sou um monte confuso de forças cheias de infinito Tendendo em todas as direções para todos os lados do espaço, A Vida, essa coisa enorme, é que prende tudo e tudo une E faz com que todas as forças que raivam dentro de mim Não passem de mim, não quebrem meu ser, não partam meu corpo, Não me arremessem, como uma bomba de Espírito que estoira Em sangue e carne e alma espiritualizados para entre as estrelas, Para além dos sóis de outros sistemas e dos astros remotos.

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Educação Literária 1. Logo desde o primeiro verso, exalta-se o «sentir», pois é através do processo sensorial que se atingirá a compreensão do mundo. Não existe uma realidade propriamente dita, apenas as sensações, diversas e fragmentadas, permitem a perceção de «pedaços» do real. Assim, o verso resume o desejo do poeta na demanda de conhecer e apreender o cosmos, desdobrando-se nas diversas maneiras de sentir (as sensações permitem-nos «viajar» tanto exterior como interiormente).

Sursum corda! Ó Terra, jardim suspenso, berço Que embala a Alma dispersa da humanidade sucessiva! Mãe verde e florida todos os anos recente, Todos os anos vernal2, estival, outonal, hiemal3 Todos os anos celebrando às mancheias as festas de Adónis4 Num rito anterior a todas as significações, Num grande culto em tumulto pelas montanhas e os vales! Grande coração pulsando no peito nu dos vulcões, Grande voz acordando em cataratas e mares, Grande bacante5 ébria6 do Movimento e da Mudança, Em cio de vegetação e florescência rompendo Teu próprio corpo de terra e rochas, teu corpo submisso À tua própria vontade transtornadora e eterna! Mãe carinhosa e unânime dos ventos, dos mares, dos prados, Vertiginosa mãe dos vendavais e ciclones, Mãe caprichosa que faz vegetar e secar. Que perturba as próprias estações e confunde Num beijo imaterial os sóis e as chuvas e os ventos!

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Tudo o que há dentro de mim tende a voltar a ser tudo. Tudo o que há dentro de mim tende a despejar-me no chão, No vasto chão supremo que não está em cima nem em baixo Mas sob as estrelas e os sóis, sob as almas e os corpos Por uma oblíqua posse dos nossos sentidos intelectuais.

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2. O eu lírico, ao longo do poema, exibe um sentimento de euforia perante tudo o que o rodeia e o que encerra dentro de si. Deseja «Sentir tudo de todas as maneiras» (v. 2), desejando abraçar excessivamente o Universo e aproximar-se do plano divino. Ambiciona «diversificar-se» em pessoas, objetos e elementos naturais: quanto mais múltiplo for, mais e maiores são as perceções sensitivas. O sujeito lírico, no final do poema, confessa: «Sou um formidável dinamismo obrigado ao equilíbrio / De estar dentro do meu corpo, de não transbordar da minh’alma.» (vv. 99-100).

1 Sursum corda!: «Corações ao alto!» Exorta-

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5 6

ção inicial do sacerdote, convidando os fiéis a prepararem as suas almas para a participação na sagrada comunhão. Vernal: primaveril. Hiemal: invernal. Adónis: o mito de Adónis tem origem na Grécia Antiga e conta a história de um jovem tão belo que inspirava paixão a homens e mulheres. A sua principal amante foi Afrodite. O mito relaciona-se ainda com os ritos simbólicos do ciclo da Natureza. Após a sua morte, Afrodite terá instituído uma celebração anual para perpetuar a memória do seu amor. Bacante: mulher que participava nas festas em honra de Baco, deus do vinho. Ébria: embriagada, bêbeda.

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Unidade 1 // FERNANDO PESSOA

PROFESSOR

3. Por exemplo: – Momentos futuristas – «Sou uma grande máquina movida por grandes correias / De que só vejo a parte que pega nos meus tambores» (vv. 83-84) e «Meu corpo é um centro dum volante estupendo e infinito / Em marcha sempre vertiginosamente em torno de si» (vv. 87-88). Apresenta-se a apologia da era moderna da máquina, com especial enfoque na Força e na Vertigem. – Momentos sensacionistas – «Quan-to mais unificadamente diverso, dispersadamente atento, / Estiver, sentir, viver, for, / Mais possuirei a existência total do universo» (vv. 14-16). É visível a exacerbação sensacionista e as perceções sensitivas aparecem como uma colagem de imagens, resultante das diversas sensações fragmentadas. 4. Sugestão de resposta: A exortação tem como objetivo levar o interlocutor a aderir ao conhecimento do mundo através dos sentidos, perpetuando o processo sensorial que o eu lírico apologiza «Sobrevive-me em minha vida em todas as direções!» (v. 107). Note-se o uso do imperativo, a gradação e o tom hiperbólico em «Freme, treme, espuma, venta, viola, explode» (v. 102), que vêm revigorar o apelo.

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Sou uma chama ascendendo, mas ascendo para baixo e para cima, Ascendo para todos os lados ao mesmo tempo, sou um globo De chamas explosivas buscando Deus e queimando A crosta dos meus sentidos, o muro da minha lógica, A minha inteligência limitadora e gelada. Sou uma grande máquina movida por grandes correias De que só vejo a parte que pega nos meus tambores, O resto vai para além dos astros, passa para além dos sóis, E nunca parece chegar ao tambor donde parte... Meu corpo é um centro dum volante estupendo e infinito Em marcha sempre vertiginosamente em torno de si, Cruzando-se em todas as direções com outros volantes, Que se entrepenetram e misturam, porque isto não é no espaço Mas não sei onde espacial de uma outra maneira-Deus. Dentro de mim estão presos e atados ao chão Todos os movimentos que compõem o universo, A fúria minuciosa e dos átomos A fúria de todas as chamas, a raiva de todos os ventos, A espuma furiosa de todos os rios, que se precipitam, E a chuva como pedras atiradas de catapultas De enormes exércitos de anões escondidos no céu. Sou um formidável dinamismo obrigado ao equilíbrio De estar dentro do meu corpo, de não transbordar da minh'alma. Ruge, estoira, vence, quebra, estrondeia, sacode, Freme, treme, espuma, venta, viola, explode, Perde-te, transcende-te, circunda-te, vive-te, rompe e foge, Sê com todo o meu corpo todo o universo e a vida, Arde com todo o meu ser todos os lumes e luzes, Risca com toda a minha alma todos os relâmpagos e fogos Sobrevive-me em minha vida em todas as direções! Álvaro de Campos, Poesia de Álvaro de Campos (ed. Teresa Rita Lopes), 2.ª ed., Lisboa, Assírio & Alvim, 2013, pp. 251-255.

1. Esclarece o sentido do verso inicial «Afinal, a melhor maneira de viajar é sentir». 2. Explicita o sentimento e os desejos do eu lírico, ao longo do poema.

FI

O fingimento artístico p. 107

3. Seleciona dois momentos em que sejam evidentes traços futuristas e sensacionistas, Recursos expressivos fundamentando a tua seleção. SIGA p. 383

4. Expressa o teu ponto de vista acerca da exortação final do poema.

Robert Delaunay, Ritmo (pormenor), 1934.

Ficha informativa

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FICHA INFORMATIVA 1 O fingimento artístico: Álvaro de Campos, o poeta da modernidade 1. Futurismo

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Constitui, em Portugal, uma das facetas do chamado «Modernismo». Derivação do Futurismo de Marinetti, cujo primeiro manifesto saiu no Figaro em 22-II-1909, tem cariz agressivo e escandaloso, propõe-se cortar com o passado exprimindo em arte o dinamismo da vida moderna, «a nossa turbilhonante vida de aço, de orgulho, de febre e de velocidade». Facto curioso, assinalado por Pedro da Silveira: a 5 de agosto do mesmo ano, o Diário dos Açores (Ponta Delgada) transcrevia aquele manifesto (e seria o único jornal a fazê-lo), publicando também uma entrevista de Marinetti – ambos os textos em versão portuguesa do poeta Luís Francisco Bicudo (1884-1918). Anos depois, um heterónimo de Fernando Pessoa – Álvaro de Campos, autor da «Ode Marítima» e da «Ode Triunfal» - e Mário de Sá-Carneiro, pelo poema intitulado «Manucure», «semifuturista com intenção de blague», na sua própria classificação, filiam-se no Futurismo. Aquelas três composições saíram em 1915 nos nºs 1 e 2 de Orpheu. [..] Em Fernando Pessoa observa-se a influência direta dum precursor do Futurismo, Walt Whitman, a quem Álvaro de Campos consagra a «Saudação a Walt Whitman». Jacinto do Prado Coelho, «Futurismo», in Dicionário de Literatura: Literatura Portuguesa, Literatura Brasileira, Literatura Galega, Estilística Literária, 4.ª ed., vol. 2, Porto, Figueirinhas, 1989, pp. 355-356.

2. Sensacionismo

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O Sensacionismo foi o último ismo criado por Pessoa, na cumplicidade, uma vez mais, do seu compagnon de route1, Sá-Carneiro, à semelhança do que aconteceu com outros ismos anteriores, tais como Paulismo e Intersecionismo. Pela sua teorização e prática deixou-se Pessoa deixar-se entusiasmar bastante, já que ele lhe pareceu ser uma hipótese feliz de conciliação de contrários, ajudando-o a construir uma corrente literária, que era, simultaneamente, nacionalista e cosmopolita, neossimbolista e acolhedora dos ismos de vanguarda. Tendo como princípio fundamental sentir tudo de todas as maneiras e ser tudo e ser todos, o Sensacionismo foi para Pessoa a arte da soma-síntese, como lhe chamou, um todo no qual as partes, mesmo as mais díspares, se harmonizavam, como se de um atanor alquímico2 se tratasse. Deste modo, o Sensacionismo concedia uma abertura a Pessoa que os outros ismos não lhe tinham permitido. Nas inúmeras páginas teóricas que nos deixou sobre esta corrente, disse Pessoa que o Sensacionismo admitia todas as outras correntes, assim como a literatura englobava todas as artes, apresentando-se, assim, híbrido e interdisciplinar, quanto à sua natureza. Fernando Cabral Martins, «Sensacionismo», in Fernando Cabral Martins (coord.), Dicionário de Fernando Pessoa e do Modernismo Português, Alfragide, Editorial Caminho, 2008, p. 786.

CONSOLIDA

1. Elabora tópicos que sistematizem as ideias-chave dos textos.

PROFESSOR

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Leitura 7.1; 7.4; 8.1; 8.2.

1. Texto 1 • Em Portugal, o Futurismo constitui uma das facetas do chamado «Modernismo». • Derivado do Futurismo de Marinetti, possui um cariz agressivo e escandaloso, propõe um corte com o passado, exprimindo em arte o dinamismo da vida moderna. • Composições futuristas: «Ode Marítima», «Ode Triunfal», «Manucure» (1915, n.os 1 e 2 de Orpheu) • Influência de Walt Whitman em Fernando Pessoa, homenageado por Álvaro de Campos em «Saudação a Walt Whitman». Texto 2 • O Sensacionismo foi o último ismo criado por Pessoa e Sá-Carneiro. • Permitia a conciliação de contrários, construindo uma corrente literária de cariz nacionalista e cosmopolita, neossimbolista e hospedeira dos ismos de vanguarda. • A arte da soma-síntese - sentir tudo de todas as maneiras e ser tudo e ser todos. • Para Pessoa, o Sensacionismo admite todas as outras correntes, tal como a literatura engloba todas as artes, isto é, possui uma natureza híbrida e interdisciplinar.

1 Compagnon de route: companheiro

de viagem. 2 Atanor alquímico: forno utilizado

para a realização das experiências na alquimia, disciplina pré-científica, de caráter esotérico, que contribuiu para o desenvolvimento da química e que tinha como principais objetivos a descoberta da panaceia (suposto remédio para todas as doenças físicas e morais) e da pedra filosofal (substância que seria capaz de converter os metais não nobres em ouro).

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Unidade 1 // FERNANDO PESSOA

PROFESSOR

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Educação Literária 14.2; 14.3; 14.4; 14.8; 14.9; 15.1; 15.2. Escrita 10.1; 11.1; 12.1; 12.2; 12.3; 12.4; 13.1.

O imaginário épico: a exaltação do Moderno e o arrebatamento do canto PONTO DE PARTIDA

1. Visiona o vídeo da música de Rodrigo Leão, «A Vida Secreta das Máquinas», do CD homónimo, e apresenta uma justificação plausível para o seu título. «A Vida Secreta das Máquinas» Rodrigo Leão (2014)

Ponto de Partida

▪ Link «A Vida Secreta das Máquinas», Rodrigo Leão ▪ Apresentação PowerPoint Texto integral «Ode triunfal» 1. O compositor, quando observa os mecanismos a trabalhar, ao registar os seus ruídos ritmados e sincronizados, adivinha-lhes toda uma vivência íntima e secreta. Nesta existência mecânica oculta, as máquinas produzem música, que o autor vai acompanhando com o seu instrumental.

EDUCAÇÃO LITERÁRIA

Ode triunfal À dolorosa luz das grandes lâmpadas elétricas da fábrica Tenho febre e escrevo. Escrevo rangendo os dentes, fera para a beleza disto, Para a beleza disto totalmente desconhecida dos antigos. 5

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1 Platão: filósofo e matemático

grego (séculos IV-III a.C.). 2 Virgílio: poeta romano que ficou

célebre pela sua epopeia Eneida (século I a.C.). 3 Alexandre Magno: rei da Macedónia, famoso pelas suas conquistas na Antiguidade (século IV-V a.C.). 4 Ésquilo: dramaturgo grego, considerado o «pai» da tragédia (século I a.C.). 5 Êmbolos: discos ou cilindros com deslocação oscilante nas cavidades cilíndricas de alguns maquinismos.

CD 1 Faixa n.0 16

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Ó rodas, ó engrenagens, r-r-r-r-r-r-r eterno! Forte espasmo retido dos maquinismos em fúria! Em fúria fora e dentro de mim, Por todos os meus nervos dissecados fora, Por todas as papilas fora de tudo com que eu sinto! Tenho os lábios secos, ó grandes ruídos modernos, De vos ouvir demasiadamente de perto, E arde-me a cabeça de vos querer cantar com um excesso De expressão de todas as minhas sensações, Com um excesso contemporâneo de vós, ó máquinas! Em febre e olhando os motores como a uma Natureza tropical — Grandes trópicos humanos de ferro e fogo e força — Canto, e canto o presente, e também o passado e o futuro, Porque o presente é todo o passado e todo o futuro E há Platão1 e Virgílio2 dentro das máquinas e das luzes elétricas Só porque houve outrora e foram humanos Virgílio e Platão, E pedaços do Alexandre Magno3 do século talvez cinquenta, Átomos que hão de ir ter febre para o cérebro do Ésquilo4 do século cem, Andam por estas correias de transmissão e por estes êmbolos5 e por estes volantes, Rugindo, rangendo, ciciando, estrugindo, ferreando, Fazendo-me um excesso de carícias ao corpo numa só carícia à alma.

Álvaro de Campos – O imaginário épico

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Ah, poder exprimir-me todo como um motor se exprime! Ser completo como uma máquina! Poder ir na vida triunfante como um automóvel último-modelo! Poder ao menos penetrar-me fisicamente de tudo isto, Rasgar-me todo, abrir-me completamente, tornar-me passento A todos os perfumes de óleos e calores e carvões Desta flora estupenda, negra, artificial e insaciável! […]

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Ó fazendas nas montras! ó manequins! ó últimos figurinos! Ó artigos inúteis que toda a gente quer comprar! Olá grandes armazéns com várias secções! Olá anúncios elétricos que vêm e estão e desaparecem! Olá tudo com que hoje se constrói, com que hoje se é diferente de ontem! Eh, cimento armado, beton de cimento, novos processos! Progressos dos armamentos gloriosamente mortíferos! Couraças, canhões, metralhadoras, submarinos, aeroplanos! Amo-vos a todos, a tudo, como uma fera. Amo-vos carnivoramente. Pervertidamente e enroscando a minha vista Em vós, ó coisas grandes, banais, úteis, inúteis, Ó coisas todas modernas, Ó minhas contemporâneas, forma atual e próxima Do sistema imediato do Universo! Nova Revelação metálica e dinâmica de Deus! […]

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(Na nora do quintal da minha casa O burro anda à roda, anda à roda, E o mistério do mundo é do tamanho disto. Limpa o suor com o braço, trabalhador descontente. A luz do sol abafa o silêncio das esferas E havemos todos de morrer, Ó pinheirais sombrios ao crepúsculo, Pinheirais onde a minha infância era outra coisa Do que eu sou hoje...) Mas, ah outra vez a raiva mecânica constante! Outra vez a obsessão movimentada dos ómnibus6. E outra vez a fúria de estar indo ao mesmo tempo dentro de todos os comboios De todas as partes do mundo, De estar dizendo adeus de bordo de todos os navios, Que a estas horas estão levantando ferro ou afastando-se das docas. Ó ferro, ó aço, ó alumínio, ó chapas de ferro ondulado! Ó cais, ó portos, ó comboios, ó guindastes, ó rebocadores! 6 Ómnibus: autocarros.

Umberto Boccioni, Dinamismo de um Ciclista (pormenor), 1913.

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Unidade 1 // FERNANDO PESSOA

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Pablo Picasso, Fábrica na Horta do Ebro, 1909.

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Eh-lá grandes desastres de comboios! Eh-lá desabamentos de galerias de minas! Eh-lá naufrágios deliciosos dos grandes transatlânticos! Eh-lá-hô revoluções aqui, ali, acolá, Alterações de constituições, guerras, tratados, invasões, Ruído, injustiças, violências, e talvez para breve o fim, A grande invasão dos bárbaros amarelos pela Europa, E outro Sol no novo Horizonte! Que importa tudo isto, mas que importa tudo isto Ao fúlgido e rubro ruído contemporâneo, Ao ruído cruel e delicioso da civilização de hoje? Tudo isso apaga tudo, salvo o Momento, O Momento de tronco nu e quente como um fogueiro, O Momento estridentemente ruidoso e mecânico, O Momento dinâmico passagem de todas as bacantes Do ferro e do bronze e da bebedeira dos metais. Eia comboios, eia pontes, eia hotéis à hora do jantar, Eia aparelhos de todas as espécies, férreos, brutos, mínimos, Instrumentos de precisão, aparelhos de triturar, de cavar, Engenhos, brocas, máquinas rotativas! Eia! eia! eia! Eia eletricidade, nervos doentes da Matéria! Eia telegrafia-sem-fios, simpatia metálica do Inconsciente! Eia túneis, eia canais, Panamá, Kiel, Suez! Eia todo o passado dentro do presente! Eia todo o futuro já dentro de nós! eia! Eia! eia! eia! Frutos de ferro e útil da árvore-fábrica cosmopolita! Eia! eia! eia! eia-hô-ô-ô! Nem sei que existo para dentro. Giro, rodeio, engenho-me. Engatam-me em todos os comboios. Içam-me em todos os cais. Giro dentro das hélices de todos os navios. Eia! eia-hô! eia! Eia! sou o calor mecânico e a eletricidade! Eia! e os rails 7 e as casas de máquinas e a Europa! Eia e hurrah por mim-tudo e tudo, máquinas a trabalhar, eia! Galgar com tudo por cima de tudo! Hup-lá!

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7 Rails: trilhos, carris.

Hup-lá, hup-lá, hup-lá-hô, hup-lá! Hé-há! He-hô! H-o-o-o-o! Z-z-z-z-z-z-z-z-z-z-z-z! Ah não ser eu toda a gente e toda a parte! Álvaro de Campos, op. cit., pp. 81-90.

Álvaro de Campos – O imaginário épico

1. Em grupos de trabalho, analisa o poema, explicitando e exemplificando as seguintes linhas de leitura. Estrutura interna

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O imaginário épico p. 112

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PROFESSOR

Educação Literária

Linhas de leitura

Título

• Fundamentação do título e seu simbolismo.

Introdução

• Localização espácio-temporal. • Estado de espírito do eu lírico. • Ação do sujeito poético («proposição»).

▪ Apresentação em PowerPoint Correção do trabalho de grupo, «Ode triunfal» Escrita

Traços futuristas • Cântico da era moderna e do progresso. • Fusão de todas as eras no Momento presente. • Fusão do eu com a máquina. • Fusão de todos os génios nos maquinismos. • Universalidade. • Valorização de uma nova forma de beleza «totalmente desconhecida dos antigos».

Desenvolvimento

Traços sensacionistas • Presença dos cinco sentidos. • Simultaneidade e exacerbação sensoriais.

Traços disfóricos1 • Identificação de momentos disfóricos. • Temas abordados. • Simbolismo associado a esses momentos.

• Interpretação e simbolismo do último verso. • Relação com a introdução.

Conclusão

Estrutura, linguagem e estilo Estrutura externa

• Classificação da composição poética. • Classificação estrófica, métrica e rimática.

Linguagem

• Diferentes registos de língua. • Campos lexicais.

Estilo

• Inovação poética. • Estruturas rítmicas.

Recursos expressivos/ linguísticos/estilísticos (exemplos)

• • • • • •

Apóstrofe. Aliteração. Anáfora. Metáfora. Enumeração. Gradação.

• • • • •

Onomatopeia. Interjeição. Empréstimo. Neologismo. Pontuação.

• Tempos verbais. • Construções sintáticas: – nominais; – gerundivas; – infinitivas.

▪ Link Reportagem Obras Públicas (Street Art – Graffiti) ▪ Apresentação em PowerPoint Correção da atividade de Escrita Sugestão de resposta: 1. • As várias denominações: graffiti, arte urbana, arte pública, street art – espelham a evolução desta forma de arte e o modo como tem sido entendida. • História: esta modalidade artística nasceu nos anos 90 do século XX, em Portugal, clandestinamente, era considerada ilegal e vista como ato de vandalismo público. Porém, o seu colorido, a qualidade estética das obras foram-se impondo no panorama urbanístico, integrando-se nas cidades. • Atualmente: o graffiti é considerado uma arte pública, com intervenções planeadas na paisagem citadina, tirando do esquecimento edifícios e comunidades. Estas «operações» artísticas são ainda mais importantes em locais considerados problemáticos, nomeadamente, em bairros sociais. Esta forma de arte já não está circunscrita aos grandes centros urbanos, tem-se descentralizado e está presente em todo o país. As redes sociais têm auxiliado na divulgação desta arte e, hoje em dia, está a par de outras manifestações de arte, sendo mais um motivo de atração turística nas cidades.

O arrebatamento do canto é conseguido através de… 1 Disfóricos: associados a significa-

dos negativos, de inquietação.

ESCRITA

Exposição sobre um tema

Exposição sobre um tema SIGA pp. 360-361

1. Inicialmente, tal como o Modernismo, o graffiti provocou choque e escândalo. Visiona a reportagem especial Obras Públicas (Street Art – Graffiti). Toma notas e regista as ideias principais veiculadas sobre esta forma de arte. Redige uma exposição, entre cento e trinta e cento e setenta palavras, subordinada ao tema Graffiti: História e atualidade. Planifica, redige e revê o teu texto, de forma a aperfeiçoá-lo. Obras Públicas (Street Art – Graffiti), Rita Neves.

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Unidade 1 // FERNANDO PESSOA

FICHA INFORMATIVA 2 6 O imaginário épico

PROFESSOR

MC

Leitura 7.1; 7.3; 7.4; 8.1.

1. Matéria épica: a exaltação do Moderno

Consolida 1. a) Exaltação da civilização cosmopolita e da Modernidade enquanto nova era do progresso humano; b) Superior capacidade de «construção e desenvolvimento ordenado de um poema»; o poder da força da sensação, da emoção, aliadas a uma construção poética inovadora, tornam Álvaro de Campos o supra-Camões, com aptidão para integrar todas as eras num poema de índole épica; c) «Ode Triunfal»: poema longo; estilo eloquente e exaltação épica (com exclamações e interjeições); ritmo «esfuziante» e «torrencial»; abundância de recursos expressivos; inovação e versatilidade gráfica expressiva; …

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Quando Álvaro de Campos aparece no Orpheu é de imediato associado ao Futurismo. Mas a sua relação com a Vanguarda é complexa. [...] [E]le é o manifesto vivo da sede do cosmopolitismo1 do Modernismo português. Álvaro de Campos é a Europa, mais que Futurismo ou, até, Sensacionismo. Lisboa é só uma cidade a que vai voltando, e onde acaba por se deixar ficar. A figura de Álvaro de Campos é assim apresentada no prefácio que Pessoa destina a uma antologia em inglês da poesia sensacionista portuguesa: «Há nele toda a pujança da sensação intelectual, emocional e física que caracterizava Whitman; mas nele verifica-se o traço precisamente oposto – um poder de construção e desenvolvimento ordenado de um poema que nenhum poeta desde Milton2 jamais alcançou. A «Ode triunfal» de Álvaro de Campos, whitmanescamente caracterizada pela ausência de estrofe e de rima (e regularidade), possui uma construção e um desenvolvimento ordenado que estultifica3 a perfeição que «Lycidas»4, por exemplo, pode reivindicar neste particular». [...] Portanto, a «pujança da sensação», mais o poder de síntese, a mais violenta emoção a que se acrescenta a construção, tornam Álvaro de Campos o modernista perfeito. O princípio de «desenvolvimento ordenado» que reivindica [...] vem sublinhar a sua qualidade de protagonista do «drama em gente», como se fosse ele o melhor exemplo do supra-Camões5 capaz de integrar todas as eras num grande gesto poético. Fernando Cabral Martins, Introdução ao Estudo de Fernando Pessoa, Lisboa, Assírio & Alvim, 2014, pp. 141-142 (texto adaptado).

2. O arrebatamento do canto

1 Cosmopolitismo: estilo de vida

2

3 4

5

que consiste em estar aberto a diferentes culturas e hábitos. Milton: (1608-1676) considerado um dos maiores poetas ingleses destacando-se o seu poema épico Paradise Lost. Estultifica: diminui. Lycidas: «poema elegíaco, evocativo da morte prematura de um jovem estudante de Cambridge, de John Milton. Supra-Camões: Fernando Pessoa defendia que surgiria um grande poeta, que faria renascer a vida pública portuguesa e que destronaria Camões. Hoje, considera-se que o supra-Camões seria o próprio Fernando Pessoa.

5

10

O primeiro dos poemas sensacionistas de Álvaro de Campos foi a Ode Triunfal, escrita em verso livre e amplo (num total de 237 versos) e em estilo profundamente inovador [...], marcado pela grandiloquência (visível, nomeadamente, nas exclamações e interjeições), pela exaltação épica (Eia! Hé-lá!), pelo ritmo esfuziante, torrencial; pelas anáforas, apóstrofes repetidas, enumerações, exclamações, interjeições, onomatopeias, neologismos (ex: ferreando), fonemas substantivados (verso 5: Ó rodas, ó engrenagens, r-r-r-r-r-r-r eterno!), estrangeirismos (souteneur, music-hall – la foule), grafismos inovadores, frases nominais e infinitivas, oxímoros, misturas semânticas ousadas: máquinas com Filósofos / termos técnicos com referências míticas; expressões populares com expressões eruditas. Amélia Pinto Pais, História da Literatura em Portugal, vol. III, Perafita, Areal Editores, 2004, p. 110.

CONSOLIDA

1. Seleciona os traços épicos mencionados nos textos ao nível de: a) temática;

b) técnica compositiva;

c) canto arrebatador.

Álvaro de Campos – Reflexão existencial

113

Reflexão existencial: sujeito, consciência e tempo; nostalgia da infância PONTO DE PARTIDA

1. Visiona o trailer do filme O Estranho Caso de Benjamin Button e explica no que consiste a estranheza deste caso.

EDUCAÇÃO LITERÁRIA

CD 1 Faixa n.0 17

Aniversário No tempo em que festejavam o dia dos meus anos, Eu era feliz e ninguém estava morto. Na casa antiga, até eu fazer anos era uma tradição de há séculos, E a alegria de todos, e a minha, estava certa com uma religião qualquer. 5

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15

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30

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos, Eu tinha a grande saúde de não perceber coisa nenhuma, De ser inteligente para entre a família, E de não ter as esperanças que os outros tinham por mim. Quando vim a ter esperanças, já não sabia ter esperanças. Quando vim a olhar para a vida, perdera o sentido da vida. Sim, o que fui de suposto a mim-mesmo, O que fui de coração e parentesco, O que fui de serões de meia-província, O que fui de amarem-me e eu ser menino. O que fui – ai, meu Deus!, o que só hoje sei que fui... A que distância!... (Nem o acho...) O tempo em que festejavam o dia dos meus anos! O que eu sou hoje é como a humidade no corredor do fim da casa, Pondo grelado nas paredes... O que eu sou hoje (e a casa dos que me amaram treme através das minhas lágrimas), O que eu sou hoje é terem vendido a casa, É terem morrido todos, É estar eu sobrevivente a mim-mesmo como um fósforo frio... No tempo em que festejavam o dia dos meus anos... Que meu amor, como uma pessoa, esse tempo! Desejo físico da alma de se encontrar ali outra vez, Por uma viagem metafísica e carnal, Com uma dualidade de eu para mim... Comer o passado como pão de fome, sem tempo de manteiga nos dentes! Vejo tudo outra vez com uma nitidez que me cega para o que há aqui...

Amedeo Modigliani, O Rapaz, c. 1918.

PROFESSOR

MC

Educação Literária 14.1; 14.2; 14.3; 14.4; 14.8; 15.1; 15.2. Gramática 19.3.

Ponto de Partida

▪ Vídeo Trailer O Estranho Caso de Benjamin Button 1.1 A estranheza deste caso está no facto da personagem nascer idosa (cerca de 80 anos) e de rejuvenescer com a passagem do tempo, morrendo bebé . Educação Literária 1. a) «a humidade no corredor do fim da casa»; b) «O aparador com muitas coisas – doces, frutas, o resto na sombra debaixo do alçado»; c) «É terem morrido todos»; d) «Eu era feliz». 2. Estes versos explicitam a relação do sujeito poético com a sua consciência e com o decurso do tempo. A infância é o tempo da inconsciência: as crianças, na sua inocência, são felizes sem compreenderem o que é «ter esperança» ou «qual é o sentido da vida». À medida que o tempo decorre, essa inocência vai-se perdendo e dá lugar ao questionamento e à racionalização das emoções, o que leva progressivamente ao afastamento do conceito de felicidade. Podemos concluir que a passagem do tempo e (hiper)lucidez/consciência constituem entraves ao nosso conforto e perturbam a nossa serenidade e felicidade.

114

Unidade 1 // FERNANDO PESSOA

PROFESSOR

3. As comparações «O que eu sou hoje é como a humidade no corredor do fim da casa, / Pondo grelado nas paredes...» (vv. 19-20) e «É estar eu sobrevivente a mim-mesmo como um fósforo frio...» (v. 24) põem em evidência a ação nefasta do tempo e da consciência exacerbada que conduziram à degradação do estado físico e espiritual do eu lírico. 4. O sentimento expresso é a saudade, a nostalgia da infância, o que conduz ao desejo de voltar a esse tempo da felicidade perdida, «Desejo físico da alma de se encontrar ali outra vez, / Por uma viagem metafísica e carnal» (vv. 27-28 ). 5. As memórias e os laços afetivos com o passado da sua infância são tão intensos que este parece estar próximo temporalmente – «(Nem o acho...)»; vendo-o com maior clareza do que ao próprio momento presente – «com uma nitidez que me cega para o que há aqui...». 6. A penúltima estrofe funciona como conclusão do poema, desvendando quer o estado de espírito predominante do eu lírico, quer os motivos conducentes a essa situação emocional. Em primeiro lugar, ordena ao seu coração que não se deixe contagiar mais pelo excesso de intelectualização, causa de sofrimento e desespero. Seguidamente, surge a confissão sobre a vivência atual da passagem do tempo, sem motivos de alegria ou celebração, à qual se junta a consciência da inevitabilidade da velhice (e da morte), o que contribui para a exasperação evidente. Assim, todas estas circunstâncias produzem um sentimento de fúria, raiva, desejando colericamente «ter trazido o passado roubado na algibeira!...» (v. 44). Gramática 1. Na primeira estrofe, predomina o valor aspetual habitual, uma vez que se refere o hábito (no passado) de celebrar (todos os anos) o aniversário do sujeito poético – «No tempo em que festejavam o dia dos meus anos» (v. 1). Nos cinco primeiros versos da terceira estrofe, deparamo-nos com o aspeto perfetivo, reforçando a ideia de que essa realidade prazenteira acabou, não perdurando no presente – «O que fui de amarem-me e eu ser menino.» (v. 14).

35

A mesa posta com mais lugares, com melhores desenhos na louça, com mais copos, O aparador com muitas coisas – doces, frutas, o resto na sombra debaixo do alçado –, As tias velhas, os primos diferentes, e tudo era por minha causa, No tempo em que festejavam o dia dos meus anos...

40

Para, meu coração! Não penses! Deixa o pensar na cabeça! Ó meu Deus, meu Deus, meu Deus! Hoje já não faço anos. Duro. Somam-se-me dias. Serei velho quando o for. Mais nada. Raiva de não ter trazido o passado roubado na algibeira!...

45

O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!... Álvaro de Campos, op. cit., p. 403.

1. Preenche a tabela seguinte, com a informação adequada: Passado

Presente

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos

Cenário

«o que eu sou hoje»

«A mesa posta com mais lugares, com melhores desenhos na loiça, com mais copos»

b) «

a) «

«terem vendido a casa»

»

»

Família

«As tias velhas, os primos diferentes»

c) «

Estado de espírito do eu lírico

d) «

«É estar eu sobrevivente a mim-mesmo»

»

»

2. A partir dos versos 9 e 10, explicita a relação entre o sujeito, a consciência e o tempo. 3. Clarifica o valor expressivo das comparações presentes na quarta estrofe.

FI

Reflexão existencial p. 115

4. Atenta na estrofe 5 e identifica o sentimento e o desejo expressos pelo sujeito poético. 5. Apresenta uma interpretação para os seguintes versos – «A que distância!... / (Nem o acho...)» (vv. 16-17) e «Vejo tudo outra vez com uma nitidez que me cega para o que há aqui...» (v. 31). 6. Esclarece a importância da penúltima estrofe, tendo em conta o conteúdo do poema.

GRAMÁTICA

FI

Valor aspetual pp. 59-60

1. Identifica o contraste entre o aspeto gramatical expresso na primeira estrofe e nos cinco primeiros versos da terceira estrofe, fundamentando essa oposição.

Ficha informativa

115

FICHA INFORMATIVA 3

Reflexão existencial: sujeito, consciência e tempo; nostalgia da infância 1. Álvaro de Campos e a fase metafísica

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15

Nesta fase «metafísica», Campos despreocupa-se inteiramente de ser moderno. [...] A sua linguagem perde o amplo fôlego marítimo das grandes odes mas torna-se mais íntima, mais intensa e adquire toda a dramaticidade que faz dele o protagonista do «drama em gente». [...] Campos dramatiza a permanente angústia de Pessoa de ser simultaneamente dois: o que sente e o que pensa que o célebre verso do poema «Ela canta, pobre ceifeira» traduz: «O que em mim sente ‘stá pensando.» [...] Mas enquanto Pessoa se limita a falar disso, Campos confere intensidade dramática a essa relação do eu sujeito, o que se vê ser, com o eu objeto, o que é visto a existir porque os põe a ambos a contracenar: o que tem a consciência de estar existindo, o que assiste a si próprio, comenta os gestos do que existe, o que movimenta um corpo no espaço e no tempo. [...] Curiosamente há um desfasamento de tempo entre o que se assiste e o que «vai tencionar escrever estes versos». A escrita do poema é portanto posterior: noutro verso diz «Sim. Todos os poemas são sempre escritos no dia seguinte» [...]. Para que o pensar não se cruzasse com o sentir, Campos suplica: «Para, meu coração! Não penses! Deixa o pensar na cabeça!» Mas o coração, ou a cabeça, não lhe obedecem. E exclama: «Que náusea no estômago real que é a alma consciente!» Teresa Rita Lopes, «Campos, Álvaro de», in Fernando Cabral Martins (coord.), Dicionário de Fernando Pessoa e do Modernismo Português, Alfragide, Editorial Caminho, 2008, pp. 129-131.

2. Álvaro de Campos e Fernando Pessoa

5

Perante este Campos decaído, cosmopolita, melancólico, devaneador, irmão do Pessoa ortónimo no ceticismo, na dor de pensar e nas saudades da infância ou de qualquer coisa irreal, compreende-se que seja o único heterónimo que comparticipe da vida extraliterária de Fernando Pessoa. Jacinto do Prado Coelho, Unidade e Diversidade em Fernando Pessoa, 8.ª ed., Lisboa, Editorial Verbo, 1985, p. 65.

CONSOLIDA

1. Procede ao levantamento das temáticas e das características estilísticas desta face poética de Álvaro de Campos.

Albert Gleizes, Mulher e Criança, 1920.

PROFESSOR

MC

Leitura 7.1; 7.3; 8.1.

Consolida 1. Exemplos de temáticas: «angústia [...] de ser»; «a consciência de estar existindo»; «o que assiste a si próprio»; «comenta os gestos do que existe, o que movimenta um corpo no espaço e no tempo»; «pensar» versus «sentir»; «ceticismo»; «dor de pensar»; «saudades da infância ou de qualquer coisa irreal»; … Características estilísticas de feição intimista («uma personagem a sós consigo, encerrada nas quatro paredes de si própria»); plenas de «dramaticidade»; linguagem «perde o amplo fôlego [...] das grandes odes», tornando-se mais íntima, intensa e dramática.

116

Unidade 1 // FERNANDO PESSOA

FICHA INFORMATIVA 4 6 Linguagem, estilo e estrutura

PROFESSOR

MC

Leitura 7.1; 7.3; 7.4; 8.1.

Consolida 1. c) Campos é o poeta da criação emotiva e espontânea, independentemente do seu estado de espírito.

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Após a descoberta do futurismo e de Whitman, Campos adotou, além do verso livre, já usado pelo seu outro mestre Caeiro, um estilo esfuziante, torrencial, espraiado em longos versos de duas ou três linhas, anafórico, exclamativo, interjetivo, monótono pela simplicidade dos processos, pela reiteração de apóstrofes e enumerações de páginas e páginas, mas vivificado pela fantasia verbal perdulária1, inexaurível2. [E]m estilo vagabundo, vertiginoso, cantou ele ora a hipertrofia3 de uma personalidade viril que tudo integra em si e não respeita limites […], ora os impulsos que emergem da lava sombria do inconsciente, o masoquismo, a volúpia4 sensual de ser objeto, vítima, a prostituição febril às máquinas, à Humanidade, ao mundo, a ponto de se tornar «um monte confuso de forças», um eu-Universo, disperso nas coisas mais díspares. […] A partir de 1916, Campos é o poeta do abatimento, da atonia5, da aridez interior, do descontentamento de si e dos outros. […] Decadente, não já no sentido histórico-literário da palavra, mas por se ter despenhado da exaltação heroica, nervosamente conseguida, dos longos poemas à Whitman. […] O estilo ressente-se da modorra6 como das crises de histerismo. Atira desordenadamente ao papel desejos, pensamentos, imagens que lhe ocorrem, num estado de semi-inconsciência, à deriva. […] Brusco e opresso, as suas palavras são agora mais humanas, lateja nelas maior sinceridade. […] No íntimo, a divergência é mais temperamental, e daí estilística, do que de opiniões ou preocupações. E palpável sobretudo na poesia. Campos, desordenado, febril, ora nos surge na dependência da circunstância exterior, do estado dos nervos, das sensações do momento, ora mergulha em si próprio para sentir o terror do mistério de todas as coisas; em qualquer caso é o poeta da inspiração sem comando, da expressão solta e desleixada, dos hiatos da inteligência que organiza e clarifica. Jacinto do Prado Coelho, Unidade e Diversidade em Fernando Pessoa, 8.ª ed., Lisboa, Editorial Verbo, 1985, pp. 61-66.

Robert Delaunay, A Janela, 1912. CONSOLIDA

1. Identifica a única afirmação falsa e corrige-a.

1 Perdulária: excessiva, exagerada. 2 Inexaurível: inesgotável. 3 Hipertrofia: crescimento ou

desenvolvimento excessivo. 4 Volúpia: satisfação, deleite. 5 Atonia: inércia, passividade

moral ou intelectual. 6 Modorra: sonolência, prostra-

ção, apatia, insensibilidade.

a) A disforia em que Campos decai espelha-se no estilo abúlico e sonolento do seu discurso. b) Inspirado no grande poeta modernista norte-americano, o discurso poético de Campos ganha um cariz eufórico, excessivo, dinâmico, apesar de processualmente repetitivo. c) Campos é o poeta da criação racional, independentemente do seu estado de espírito. d) O cântico congrega a multiplicidade da civilização mecânica e pluralidade de sentimentos e sensações do eu lírico.

Memórias

LEITURA

PROFESSOR

Memórias

MC

1. Lê atentamente um excerto de Retalhos da Vida de um Médico, de Fernando Namora.

Leitura 7.1; 7.3; 7.4; 7.7; 8.1. Gramática 17.1; 18.3.

Um garoto misterioso

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Ora aconteceu que, certa manhã, um dos meninos entrou alarmado pela sala, fugido a uma pedrada que estilhaçou a vidraça da janela. A professora correu lá fora, a tempo de lobrigar1 um garoto feio […], saltando a cerca. O garoto teria aparecido por ali, atraído pela algazarra do recreio, e resolvera à pedrada qualquer desavença com um dos alunos da classe. Não valia a pena pensar mais nisso. Tempos depois o nosso orçamento permitia-nos distribuir um almoço às crianças inscritas na clínica; e a essa hora vimos por ali, rondando, de olhos ariscos e pardos, um garoto desconhecido. Esperava pacientemente, de longe, que as empregadas servissem o almoço e escondia-se sempre que alguém o chamava; uma delas reparou, mais tarde, que ele vinha espreitar o balde dos restos, despejando-o numa marmita de barro, mal se sentia livre da nossa vigilância. E escapava-se logo, numa pressa assustada, como se gatunos o acossassem2 de todas as bandas. Impressionados, tentámos conquistá-lo. Aceitou sem agradecimento a oferta do almoço, receando, por certo, que a nossa generosidade ocultasse uma cilada, mas não teve uma palavra para nos dizer da sua vida, do seu poiso ou o nome dos pais. Calava-se, duro, boca retraída, numa altiva amargura. Se alguém o espiava do outro lado da mesa, cobria o prato com os braços, num alarme selvagem, os cabelos descaídos sobre o rosto sardento. O garoto e os seus mistérios tornaram-se o acontecimento da clínica. […] A lavadeira foi encarregada de investigar o caso. Era uma destas pessoas glutonas da vida alheia, que se gabam de conhecer as intimidades de cada família. Pois teve de confessar, para seu desdouro3, que não descobrira a mais velada ligação entre os moradores das proximidades e o nosso misterioso hóspede. E nós bem sabíamos que seriam inúteis outras investigações: a lavadeira teria preferido remover a província antes de dar conta do seu fracasso. E o balde dos restos continuou a ser esvaziado – mesmo naquelas horas em que a clínica não funcionava, cerca e portão fechados. Desistimos de aliciar a confiança e as simpatias do nosso protegido.

José Malhoa, Gritando ao Rebanho (pormenor), 1891.

Fernando Namora, Retalhos da Vida de um Médico, Lisboa, Editorial Caminho, 2016, pp. 54-55.

1. Para responderes aos itens de 1.1 a 1.6, seleciona a única opção que te permite obter uma afirmação correta. 1.1 Este excerto é representativo (A) (B) (C) (D)

de experiências de viagens pela província. do percurso académico do eu narrador. da vivência de uma escola de província. da vida profissional do eu narrador.

1 Lobrigar: avistar, ver. 2 Acossassem: perseguissem. 3 Desdouro: vergonha.

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118

Unidade 1 // FERNANDO PESSOA

1.2 Neste texto memorialístico, a seriação cronológica está PROFESSOR

1.1 (D); 1.2 (B); 1.3 (C); 1.4 (A); 1.5 (A); 1.6 (C); 2. O locutor relembra um episódio passado em contexto profissional, numa clínica de província, envolvendo um «garoto» fora do habitual. Esta situação remete, ainda, para a vida pública e diária de uma região portuguesa, por essa altura, focando, sobretudo, as dificuldades das classes sociais mais vulneráveis, das quais o «garoto» é representante.

(A) (B) (C) (D)

ausente. presente e é indefinida. presente e é definida. ao serviço da memória.

1.3 Deste relato de memórias sobressai (A) (B) (C) (D)

o plano pessoal do eu narrador. uma vivência subjetiva. o testemunho de um contexto social. o discurso interiorizado do eu.

1.4 Da caracterização da criança, resulta uma imagem de (A) (B) (C) (D)

ternura e mistério. indiferença e mistério. arrogância e altivez. ternura e arrogância.

1.5 Em «Tempos depois o nosso orçamento permitia-nos distribuir um almoço às crianças inscritas na clínica» (ll. 6-7), as expressões destacadas são, respetivamente, deíticos de (A) (B) (C) (D)

tempo e pessoa. pessoa e espaço. espaço e pessoa. pessoa e tempo.

1.6 Em «num alarme selvagem, os cabelos descaídos sobre o rosto sardento» (ll.16-17), os adjetivos desempenham a função sintática de (A) (B) (C) (D)

complemento do nome. modificador apositivo do nome. modificador restritivo do nome. predicativo do sujeito.

2. Confirma o caráter memorialista do texto.

Manuel Henrique Pinto, O Adormecido, 1891.

FI

Memórias p.119

Ficha informativa

FICHA INFORMATIVA 5

Memórias O que são?

5

10

A expressão «memorialismo» designa um conjunto de textos atinentes a uma determinada prática da literatura do eu, em que se joga a correlação de forças privado/público com manifesta prevalência do segundo termo. Um dos traços que permitem caracterizar o género, distinguindo-o, por exemplo, da autobiografia, prende-se justamente com o peso que a exterioridade detém nesses relatos. Sem anular a representação do privado e do íntimo, o memorialista assume-se como ator da História e dá-nos o seu testemunho do tempo e do espaço em que viveu. [...] Outro aspeto importante para a definição do género, a ponto de lhe originar o nome, é o papel que nele desempenha a memória. Memória que permite o retorno do sujeito a si mesmo, sobre si mesmo, recriação seletiva de um passado cujos pormenores se foram apagando por força da inexorável amnésia que ao longo da vida vai filtrando as recordações, ou que pelo contrário se fixaram como marcos ou nós obsessivos de um percurso vital. Clara Rocha, «Memorialismo», in José Augusto Cardoso Bernardes et al. (dir.), Biblos, Enciclopédia das Literaturas da Língua Portuguesa, vol. 3, Lisboa, Verbo, 1999, p. 627.

Quais são as suas características? Nível do conteúdo – temáticas da escrita memorialista Preponderância da exterioridade sobre a interioridade no registo memorialista: • «O autor de memórias contribui para a história da sua época mais do que para a sua própria história; a sua história pessoal inscreve-se na história geral e objetiva» (Georges Gusdorf). • Ao contrário do eu da autobiografia, o eu das memórias é uma figura pública que não se pertence, por pertencer aos outros e à História. • Tipo de evocações históricas: episódios do mundo histórico-político, militar e diplomático, experiências de viagens, anedotas da vida académica, escrita como uma responsabilização moral. • Tipo de evocações intimistas: visão da «comédia humana», religação com os espaços e as presenças familiares, a autenticidade e a pacificação que o teatro do mundo não pode dar.

Características técnico-compositivas • Escrita em prosa. • Seriação cronológica de eventos e referências toponímicas. • Discurso objetivo (ocorrências exteriores) e subjetivo (vivências pessoais). • Marcas autobiográficas (coincidência entre o sujeito da enunciação e o sujeito do enunciado): formas verbais na 1.ª pessoa (menos frequentemente na 3.ª pessoa); referências deíticas pessoais, temporais e espaciais. • Verbos que expressam sentimentos, lembranças, intenções (sentir, lembrar-se, descobrir, procurar, observar, …). Fonte: Clara Rocha, «Memorialismo», in José Augusto Cardoso Bernardes et al. (dir.), Biblos Enciclopédia das Literaturas da Língua Portuguesa, vol. 3, Lisboa, Verbo, 1999, pp. 627-631.

George Seurat, Menino Sentado no Prado, 1883.

119

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Unidade 1 // FERNANDO PESSOA

PROFESSOR

MC

Oralidade 1.1; 1.3; 1.4; 1.5; 1.6; 1.7; 1.8; 2.1; 3.1; 4.1; 4.2; 5.1; 5.2; 5.3; 6.1; 6.2; 6.3.

Oralidade

ORALIDADE

COMPREENSÃO DO ORAL

Diálogo argumentativo 1. Visiona um excerto do programa Eixo do Mal, da SIC Notícias, a propósito da atribuição do prémio Nobel da Literatura a Bob Dylan.

Eixo do Mal (2016) SIC Notícias

▪ Link Eixo do Mal (16-10-2016), SIC Notícias

Primeira visualização

▪ Apresentação em PowerPoint Correção da atividade 2

1.1 Classifica, como verdadeiras (V) ou falsas (F), as afirmações que se seguem, corrigindo as falsas. a) O vídeo inicial serve para estabelecer um afastamento entre as culturas portuguesa e americana. b) As imagens aludem simultaneamente ao cariz popular e genial dos dois ícones da música. c) Para o primeiro interveniente, Pedro Marques Lopes, uma obra de arte não pode ser popular. d) Suscitar emoções e falar-nos de nós próprios são duas das funções da literatura. e) O livro Chronicles, de Bob Dylan, é uma coletânea de crónicas. f) Podemos concluir que Pedro Marques Lopes está contra a atribuição do prémio Nobel a Bob Dylan. g) O segundo interveniente, Daniel Oliveira, refere a constante necessidade de a Academia sueca tomar posições controversas, ao invés de premiar o mérito. h) Com a enumeração de génios da literatura pretende-se provar que o valor artístico é sempre laureado. i) Podemos concluir que este segundo interveniente é a favor da atribuição do prémio Nobel a Bob Dylan. j) Para o terceiro participante, Luís Pedro Nunes, Bob Dylan é a própria «obra literária» e o mais importante é discutirem-se assuntos culturais.

▪ Apresentação em PowerPoint Correção da atividade de Oralidade 1.1 a) F. Serve para estabelecer um paralelismo entre as duas culturas; b) V; c) F. Uma obra de arte pode ser popular; d) V; e) F. Chronicles é uma autobiografia; f) F. Pedro Marques Lopes mostra-se a favor desta atribuição; g) V; h) F. Grandes nomes da Literatura nunca receberam qualquer prémio Nobel; i) F. O segundo interveniente põe em causa a atribuição do prémio quando questiona se Bob Dylan será o melhor poeta do mundo; j) V.

Segunda visualização

FI

Diálogo argumentativo p. 121

2. Concentra-te no diálogo entre os três intervenientes e refere-te aos seguintes itens. a) Tema/problema; b) Argumentação; c) Finalidade do diálogo;

ORALIDADE

d) Concisão do discurso; e) Princípios de cortesia; f) Recursos não-verbais.

EXPRESSÃO ORAL

Diálogo argumentativo 1. Prepara um diálogo argumentativo, de oito a doze minutos, subordinado ao tema «pensamento=sofrimento» (com argumentação, soluções e exemplos literários), em que assumas a perspetiva literária de uma persona de Fernando Pessoa – Pessoa, ortónimo, Bernardo Soares, Alberto Caeiro, Ricardo Reis ou Álvaro de Campos. Planifica a tua intervenção oral, tendo em conta as características discursivas do género solicitado e participa oportuna e construtivamente na interação oral. Não esqueças a concisão do teu discurso e o respeito pelos princípios de cortesia.

Ficha informativa

121

FICHA INFORMATIVA 6

Diálogo argumentativo O que é o diálogo argumentativo? Género literário e filosófico-literário em que dois ou mais interlocutores, com orientações espirituais, filosóficas, morais, ideológicas ou estético-literárias diferentes, discutem entre si problemas de natureza diversa, com finalidades filosóficas, políticas, morais, pedagógicas ou outras. A elaboração de um discurso correto e elegante (ars recte et bene dicendi1) é imprescindível e tem como finalidade fundamental persuadir os interlocutores, mediante a apresentação de argumentos e respetivos exemplos. Sendo eminentemente pragmático, o diálogo argumentativo tem em consideração o contexto extraverbal, o interlocutor e a matéria em causa.

Quais as fases do diálogo argumentativo? A sequência do diálogo argumentativo pode ser dividida em quatro fases. 1. É necessário e útil que as regras de participação sejam explícitas e acordadas por todos os intervenientes. 2. Toda a interação surge de um problema, de uma diferença de opiniões, que será resolvido através do diálogo argumentativo. Os participantes devem ser claramente confrontados com o problema, e tomar conhecimento da finalidade da discussão. 3. Na fase da argumentação, cada interveniente tem a obrigação, utilizando os recursos adequados, de contribuir para que a finalidade do diálogo argumentativo seja alcançada. 4. No fecho da interação, as metas deverão ter sido atingidas e/ou todos os participantes deverão estar de acordo em dar por finalizada a discussão.

Quais as marcas do diálogo argumentativo? • Encadeamento lógico dos tópicos tratados. • Caráter persuasivo, desenvolvido através da aplicação de um conjunto sistematizado de preceitos para alcançar a consecução de um determinado fim ou objetivo. • Defesa de um ponto de vista sustentado por argumentos válidos e exemplos universais e significativos. • Concisão do discurso, de modo a assegurar a eficácia comunicativa, o discurso deve: – conter a informação necessária e suficiente; – ser verdadeiro e apresentar provas autênticas; – ser pertinente e conter informação relevante; – ser claro, breve e ordenado. • Respeito pelo princípio de cortesia: Princípio pragmático fortemente regulador da interação discursiva entre os interlocutores. Concretiza-se nas estratégias discursivas adotadas pelos mesmos a fim de evitar ou reduzir os conflitos, devendo para tal observar-se princípios de cordialidade como: – saudar adequadamente o(s) interlocutor(es); – empregar as formas de tratamento apropriadas entre locutores; – tomar e dar a palavra ordenadamente; – não interromper o(s) interlocutor(es); – não manifestar falta de atenção; – não proferir insultos, injúrias ou acusações gratuitas, ... Recursos não-verbais (postura, tom de voz, ritmo, entoação, expressividade, silêncio e olhar).

Pierre Auguste Renoir, Conversa num Jardim de Rosas, 1876.

1 Ars recte et bene dicendi: arte

de dizer com correção e de maneira adequada (princípios da Retórica, disciplina que estuda a arte de bem falar).

Fontes: Dicionário Terminológico, DGIDC, 2008; Mira Mateus et al., Gramática da Língua Portuguesa, 6.ª ed., Lisboa, Caminho, 2003, pp. 67-73.

122

Unidade 1 // FERNANDO PESSOA

SÍNTESE

Poesia dos heterónimos – Álvaro de Campos, TÍTULO o poeta da modernidade

• Deliberada postura provocatória e transgressora da moral, com o propósito de escandalizar e chocar. • Futurismo: apologia da civilização contemporânea moderna, industrial e tecnológica. O fingimento artístico: o poeta da modernidade

• Sensacionismo: exacerbação e simultaneidade das sensações; a sensação como método cognitivo da realidade. • Apologia da vertigem sensorial – «sentir tudo de todas as maneiras» –, congregando em si toda a complexidade sensitiva. • Concatenação no momento presente de todos os tempos e de todos os génios do passado. • Tensão, insatisfação e frustração perante a incapacidade de abarcar a totalidade das sensações.

O imaginário épico: a exaltação do Modernismo e o arrebatamento do canto

Reflexão existencial: sujeito, consciência e tempo; nostalgia da infância

• Matéria épica: a exaltação do Moderno: – elogio do cosmopolitismo; – exaltação eufórica da máquina, da força, da velocidade, da agressividade, do excesso; – integração de todos os tempos e de todo o progresso num poema; – emoção violenta e «pujança da sensação», com pendor épico; – a nova poesia como expressão da civilização moderna. • O arrebatamento do canto: – o cântico reflete a grandiosidade da matéria épica; – poema extenso, com versos livres e longos; – estilo esfuziante e torrencial; – ritmo estonteante; – êxtase discursivo: abundância de recursos expressivos; onomatopeias, empréstimos, neologismos, interjeições, pontuação expressiva, … • Consciência dramática da identidade fragmentada. • Ceticismo perante a realidade e a passagem do tempo. • Angústia existencial, solidão, abulia, cansaço e morbidez. • Introspeção e pessimismo – dor de pensar. • A náusea, a abjeção e o «sono» da vida quotidiana. • Evasão para o mundo da infância feliz, irremediavelmente perdido. • Verso livre e, normalmente, longo. • Irregularidade estrófica, rítmica e métrica. • Ausência de rima (versos soltos). • Linguagem simples, objetiva, prosaica, onomatopeias, neologismos, empréstimos, topónimos e antropónimos.

Linguagem, estilo e estrutura

• Inclusão de vários registos de língua (do literário ao calão). • Vocabulário concreto (sobretudo do campo lexical da Mecânica e da Indústria). • Construções sintáticas nominais, gerundivas, infinitivas e, por vezes, presença de frases atípicas, experimentais. • Privilégio do presente do indicativo. • Recursos expressivos predominantes: aliteração, anáfora, apóstrofe, enumeração, gradação e metáfora. • Nas composições intimistas, o fôlego modernista e épico decai num estilo abúlico e deprimido.

PROFESSOR

▪ Apresentação em PowerPoint Síntese da subunidade

14 •

EDUCAÇÃO LITERÁRIA • O Sebastianismo

• O imaginário épico: – natureza épico-lírica da obra – estrutura da obra – dimensão simbólica do herói – exaltação patriótica • Linguagem, estilo e estrutura: – estrutura estrófica, métrica e rima – recursos expressivos: a apóstrofe, a enumeração, a gradação, a interrogação retórica e a metáfora COMPREENSÃO DO ORAL Registos áudio e audiovisuais EXPRESSÃO ORAL Apresentação oral Texto de opinião Debate ESCRITA Exposição sobre um tema Apreciação crítica GRAMÁTICA Sintaxe – funções sintáticas – classificação de orações Discurso, pragmática e linguística textual – coesão textual – deixis Semântica – valor aspetual

José Malhoa, As Nuvens, 1915.

FERNANDO PESSOA MENSAGEM

Poesia do ortónimo

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Unidade 1 // FERNANDO PESSOA

Contextualização literária

PROFESSOR

MC

Leitura 7.1; 7.3; 7.4; 8.1.

1. Mensagem, de Fernando Pessoa

Consolida 1. A História de Portugal surge, em Mensagem, através de uma série de quadros ou de retratos nos quais se mostram, sequencialmente, vários «reis, heróis, navegadores ou profetas», que apresentam um sentido oculto, ou seja, não representam só o passado, mas também o futuro. Em Mensagem, não é contada a nossa História, pois, partindo do pressuposto de que o leitor já detém esse conhecimento, Fernando Pessoa apresenta uma profecia quanto ao destino singular de Portugal, interrogando o «futuro do passado», isto é, revelando o que do passado deve ser retomado, as lições que dele podem ser colhidas para a construção desse futuro e, consequentemente, para o cumprimento do destino português.

5

10

15

20

25

1 Críptico: codificado; que tem

um sentido oculto.

Publicada em 1934 para concorrer aos prémios do Secretariado de Propaganda Nacional, Mensagem constitui o único livro vindo a lume em vida de Fernando Pessoa. Tendo como título Portugal até à fase das provas tipográficas, esta obra poderá ter sido encarada por muitos leitores como um pouco lateral ou descentrada em relação aos tópicos mais recorrentes ou divulgados no conjunto da galáxia pessoana, sobretudo os que nos habituámos a associar aos heterónimos Caeiro, Reis ou Campos. E todavia, a sua leitura corresponde hoje a uma experiência-limite, das que mais intensamente nos fazem mergulhar até ao indecifrável âmago dessa galáxia. Organizada em torno de algumas figuras centrais da História de Portugal, Mensagem tem sido comparada com Os Lusíadas, já que ambas as obras se baseiam nessa mesma História. No entanto, aquilo que em Camões é a narrativa empolgante de um passado glorioso e indissoluvelmente vinculado à nossa identidade coletiva transforma-se em Pessoa numa série de retratos ou de quadros por onde desfilam reis, heróis, navegadores ou profetas, numa sequência que, de um modo críptico1, nos fala mais do futuro que do passado. Por isso Os Lusíadas são uma epopeia e nos custa aplicar com a mesma desenvoltura à Mensagem essa palavra tão carregada de sentido desde a Antiguidade. Enquanto Camões nos conta a nossa História, a atitude de Pessoa é a de subentender nos leitores o conhecimento dessa História, poupando-se ao esforço aliás inglório de no-la recontar três séculos e meio depois. Assim, mais do que uma «epopeia» no sentido clássico do termo, Mensagem corresponde talvez a uma profecia – uma profecia obscura e luminosa como são todas as profecias dignas desse nome – que interroga o «futuro do passado» a partir da singularidade do destino português e da posição geográfica de Portugal, como rosto da Europa aberto ao Atlântico. Se é verdade que «as nações todas são mistérios», é o desvendamento do mistério português que interessa a Pessoa, entrando nesse mistério toda a herança do passado, claro que sim, mas acima de tudo as lições mais ou menos ocultas que dele podemos colher quanto ao futuro. Fernando Pinto do Amaral, «A matéria dos sonhos», in Ivo Castro (coord.), Mensagem e outros poemas, Lisboa, INCM/Alêtheia/Expresso, 2015, pp. 3-4. CONSOLIDA

1. Indica, sucintamente, o modo como se processa a abordagem da História de Portugal na obra Mensagem, de Fernando Pessoa, explicitando o que sobressai no «desvendamento do mistério português».

John Henry Amshewitz, Mural Partida de Vasco da Gama, Biblioteca William Cullen, Universidade de Witwatersrand, Joanesburgo, África do Sul, 1936.

Contextualização literária

2. A estrutura formal e simbólica da Mensagem Estrutura externa BENEDICTUS DOMINUS DEUS NOSTER QUI DEDIT NOBIS SIGNUM 1

II

BRASÃO

Bellum sine bello 2

PRIMEIRA PARTE

Os Castelos

III As Quinas

IV A Coroa V

Possessio maris 3

MAR PORTUGUÊS

SEGUNDA PARTE

O Timbre

Paxin excelsis 4

O ENCOBERTO

Os Símbolos

II Os Avisos

III Os Tempos

O Timbre (um Grifo)

Primeiro: «Ulisses» (s/d) Segundo: «Viriato» (22-1-1934) Terceiro: «O Conde D. Henrique» (s/d) Quarto: «D. Tareja» (24-9-1928) Quinto: «D. Afonso Henriques» (s/d) Sexto: «D. Dinis» (9-2-1934) Sétimo: (I) «D. João o Primeiro» (12-2-1934) Sétimo: (II) «D. Filipa de Lencastre» (26-9-1928) Primeira: «D. Duarte, Rei de Portugal» (26-9-1928) Segunda: «D. Fernando, Infante de Portugal» (21-7-1913) Terceira: «D. Pedro, Regente de Portugal» (15-2-1934) Quarta: «D. João, Infante de Portugal» (28-3-1930) Quinta: «D. Sebastião, Rei de Portugal» (20-2-1933) «Nun’Álvares Pereira» (28-12-1928) A cabeça do grifo: «O Infante D. Henrique» (26-9-1928) Uma asa do grifo: «D. João O Segundo» (26-9-1928) A outra asa do grifo: «Afonso de Albuquerque» (26-9-1928)

I. «O Infante» (s/d) II. «Horizonte» (s/d) III. «Padrão» (13-9-1918) IV. «O Mostrengo» (9-9-1918) V. «Epitáfio de Bartolomeu Dias» (s/d) VI. «Os Colombos» (2-4-1934)

I

TERCEIRA PARTE

Primeiro: «O dos Castelos» (8-12-1928) Segundo: «O das Quinas» (8-12-1928)

Os Castelos

Os Campos

A Coroa

I

VII. VIII. IX. X. XI. XII.

Os Campos (dos castelos e das quinas)

«Ocidente» (s/d) «Fernão de Magalhães» (s/d) «Ascensão de Vasco da Gama» (10-1-1922) «Mar Português» (s/d) «A Última Nau» (s/d) «Prece» (31-12-1921 / 1-1-1922)

Primeiro: «D. Sebastião» (s/d) Segundo: «O Quinto Império» (21-2-1933) Terceiro: «O Desejado» (18-1-1934) Quarto: «As Ilhas Afortunadas» (26-3-1934) Quinto: «O Encoberto» (21-2-1933 / 11-2-1934) Primeiro: «O Bandarra» (28-3-1930) Segundo: «António Vieira» (31-7-1929) Terceiro: «Screvo meu livro à beira-mágoa» (10-12-1928) Primeiro: «Noite» (s/d) Segundo: «Tormenta» (26-2-1934) Terceiro: «Calma» (15-2-1934) Quarto: «Antemanhã» (8-7-1933) Quinto: «Nevoeiro» (10-12-1928) Valete, Frates5

1 Bendito Seja Deus Nosso Senhor Que Nos Deu O Sinal: epí-

3 A Posse do Mar: as Descobertas marítimas, além da gran-

grafe que sintetiza eficientemente o conteúdo do livro, no qual o poeta se preocupa em interpretar os sinais divinos em que se inscreve a grandeza da Pátria. 2 A Guerra Sem Guerra: apelo a uma “guerra” sem armas convencionais – o sonho, a resistência ao imobilismo, a inquietude humana, a ânsia de Absoluto, a vontade, a aceitação do destino providencial que nos cabe como Povo e o espírito de missão que lhe está associado.

deza histórica que concedem a Portugal, são um sinal premonitório do futuro «Império Espiritual». 4 Paz no Céu/Paz nas Alturas: nos termos em que se sustenta o Quinto Império pessoano, os novos tempos serão de felicidade, de paz e de fraternidade universal. 5 Saúde, irmãos/Adeus, irmãos: saudação latina, que pode ter um sentido exortativo nacionalista; tem de ler-se em conjunção com a epígrafe pacifista «Pax in excelsis».

As Quinas

125

126

Unidade 1 // FERNANDO PESSOA

Estrutura simbólica

PROFESSOR

MC

Leitura 7.1; 7.2; 7.3; 7.4; 8.1. Educação Literária 14.2; 14.3; 14.4; 14.6; 16.1.

▪ Apresentação em PowerPoint Estrutura formal e simbólica da Mensagem ▪ Documentos − «A estrutura da Mensagem: a simbologia dos números» − Os símbolos unificantes da Mensagem

5

Pessoa procura fazer um livro para ser lido, e que possa, num sentido radical, ser popular. O resultado é um livro fortemente estruturado, que se pode definir como «um livro de poemas, formando realmente um só poema», organizado em torno dos números do brasão de Portugal, sobretudo o 5 das quinas. […] No centro de Mensagem estão os símbolos como tema e como processo, sejam eles os nomes dos heróis, as imagens-chave da história, as cifras1 heráldicas2 do brasão, sejam, enfim, as palavras da língua portuguesa, com a sua capacidade de transmitir os fundamentos identificadores do «ser português». Fernando Cabral Martins, «Mensagem», in Fernando Cabral Martins (coord.), Dicionário de Fernando Pessoa e do Modernismo Português, Alfragide, Editorial Caminho, 2008, pp. 456, 458.

− Mensagem: o título Três Partes = Três Épocas

Brasão

Mar Português

O Encoberto

Idade do Pai

Idade do Filho

Idade do Espírito

As pedras basilares da nacionalidade portuguesa.

Os que, recolhendo a herança, a dilataram pelos mares e continentes.

Idade que ainda não veio, embora tenha sido anunciada; o Espírito encoberto que espera o Desejado.

Génese

Vida

Morte e renascimento

Os fundadores e construtores do império.

Realização do império territorial sonhado.

Fim das energias do império. Renascimento do império, não material, mas espiritual: Quinto Império.

Brasão3

John William Waterhouse, Destino (pormenor), 1900.

1 Cifras: código; simbologias. 2 Heráldica: conjunto de emble-

mas ou símbolos convencionais usados nos brasões. 3 Brasão: distintivo das famílias nobres ou daqueles que foram distinguidos pelos seus feitos. 4 Grifo: animal fabuloso com cabeça e asas de águia e corpo de leão.

I. Os Campos: espaço com a mesma simbologia da terra, enquanto princípio passivo, que permite a ação, e enquanto espaço de fecundidade, de vida (a obra realizada pelos fundadores e construtores do império). II. Os Castelos: os valores da fundação e da defesa da nacionalidade (força, nobreza e coragem, de inspiração divina) colocados a par do mistério e do enigma como portadores da origem e do futuro. III. As Quinas: transposição heráldica das chagas de Jesus, que foram, segundo uma lenda, oferecidas pelo próprio Cristo ao nosso primeiro rei, nos momentos que antecederam a Batalha de Ourique. As figuras nacionais consagradas nestes cinco poemas são heróis-mártires: reis e infantes que contribuíram com o seu sacrifício ou o seu sangue para cimentar a mística nacional. IV. A Coroa: símbolo de perfeição e de poder; promessa de imortalidade. Representada não por um rei, mas pelo arquétipo do herói-cavaleiro puro, o Condestável D. Nuno Álvares Pereira, que coroa simbolicamente o fundador da dinastia de Avis, D. João I. V. O Timbre: o grifo4, a substituir o dragão (espécie de serpente alada), vinca, em termos icónicos, uma dupla natureza celeste (a águia) e terrestre (o leão), as duas qualidades de sabedoria e de força de Cristo: a atuação dessas duas realidades positivas na história mítica de Portugal. A cabeça do grifo representa o Espírito, a Sabedoria, o Sonho inspirado do Alto; as asas transportam o sonho, do plano celeste ao terrestre.

Contextualização literária

127

Fontes:

Mar Português • Glorificação das grandes descobertas marítimas portuguesas: entre a época do Infante e a de D. Sebastião, Portugal assume-se como a cabeça da Cristandade ocidental, percorrendo mares desconhecidos e revelando mundos ignorados, aos quais vai fazer chegar a mensagem cristã. • Descreve-se, primeiro, a epifania5 oceânica do novo povo eleito, depois a sua perdição na noite e na tormenta e, enfim, a sua prece a Deus, para o ressurgimento ou a reconquista da Distância, símbolo que eleva desde o sentido literal, de distância geográfica para a Ásia e as Américas, até ao sentido místico de distância para o mistério do absoluto ou do divino.

O Encoberto • A constatação de um tempo e de um espaço perdidos, envoltos nas brumas da memória, e o sofrimento do eu poético por ver dormir o seu povo, que tinha perdido a sua identidade e os seus referentes. É neste momento que o poeta explicita o significado do Quinto Império, recorrendo a uma linguagem que deixa antever esse tempo de prosperidade espiritual, numa estrutura tripartida: I. Os Símbolos: correspondem à própria linguagem da existência; os cinco grandes mitos portugueses; II. Os Avisos: as profecias dos três grandes arautos6 do messianismo português III. Os Tempos: desvelam-se os sinais que indiciam a proximidade de «O Encoberto». Inicia-se com o poema «Noite» e termina com «Nevoeiro», depois do poema «Antemanhã», ou seja, à noite sucede a manhã (simbolizada na possibilidade de nascimento, encerrada no valor simbólico do nevoeiro) – ao Caos segue-se a Ordem, ao nada sucede a Obra.

• António Apolinário Lourenço (ed.), «Introdução», in Fernando Pessoa, Mensagem, Braga, Angelus Novus, 1994, pp. 24-30. • António Quadros, «A estrutura simbólica da Mensagem», in José Augusto Seabra (ed. crítica), Fernando Pessoa, Mensagem/Poemas Esotéricos, Porto, Fundação Eng. António de Almeida, 1993, pp. 233237. • Conceição Jacinto e Gabriela Lança, A Análise do Texto – Mensagem, Fernando Pessoa, Porto, Porto Editora, 1998, pp. 33-36, 63-66. • Silvina Rodrigues Lopes (ed.), «Introdução», in Fernando Pessoa, Mensagem, Lisboa, Editorial Comunicação, 1986, pp. 22-28.

5 Epifania: compreensão súbita e

intuitiva do significado essencial de algo; revelação. 6 Arautos: mensageiros; defensores.

CONSOLIDA PROFESSOR

1. Classifica como verdadeiras (V) ou falsas (F) as seguintes afirmações, corrigindo as falsas. a) Os números assumem principal relevância na estrutura de Mensagem. b) Os símbolos surgem na obra como tema e, igualmente, como único ponto de chegada. c) As palavras da língua portuguesa, não sendo símbolos, transmitem os fundamentos identificadores do «ser português». d) As três partes de Mensagem correspondem ao ciclo vital. e) Em «Brasão», procede-se, primeiro, à apresentação do espaço construído, espaço da vida de um país e, depois, dos seus fundadores e construtores, cujas ações, altos sacrifícios e sonhos negaram a construção de um império. f) «Mar Português» representa o império construído pela posse do Mar, mas também a queda do mesmo. g) «O Encoberto» apresenta um Portugal vivo, com força e identidade, e, através dos seus profetas e dos sinais que se vão revelando, antevê-se um tempo de prosperidade espiritual: o Quinto Império.

James Abbott McNeill Whistler, Noturno, 1866.

Consolida 1. a) V. b) F. «[…] e, igualmente, como meio para atingir um fim». c) F. «[…] são símbolos que transmitem […]». d) V. e) F. «[…] espaço da génese de um país, […] permitiram a construção de um império». f) V. g) F. «[…] um Portugal moribundo, sem força e sem identidade, porém, […]».

128

Unidade 1 // FERNANDO PESSOA

Fernando Pessoa, Mensagem

PROFESSOR

MC

Educação Literária 14.1; 14.2; 14.3; 14.4; 14.7; 14.9; 16.1.

PRIMEIRA PARTE − BRASÃO

Gramática 17.1; 19.3.

BELLUM SINE BELLO

Abrange os primórdios da nacionalidade, desde o lendário Ulisses, o temido Viriato, os Henriques (pai, mãe e filho), criadores da nacionalidade, e de todos os principais protagonistas e fundadores de Portugal (Os Castelos), até à dinastia de Avis (As Quinas), o herói Nun’Álvares (A Coroa), personificação da independência, e terminando com os três impulsionadores da expansão (O Timbre). Aponta no fim para os promotores dos Descobrimentos e a segurança do descoberto. Nesta parte predomina o elemento Terra – a base de Portugal, a apropriação dos espaços lar, Povo, Nação; o alargamento das fronteiras; a segurança; o povoamento; a independência. J. Oliveira Macêdo, Sob o Signo do Império, Porto, Edições Asa, 2002.

EDUCAÇÃO LITERÁRIA

O dos Castelos A Europa jaz1, posta nos cotovelos: De Oriente a Ocidente jaz, fitando2, E toldam-lhe românticos cabelos Olhos gregos, lembrando. 5

10

O cotovelo esquerdo é recuado; O direito é em ângulo disposto. Aquele diz Itália onde é pousado; Este diz Inglaterra onde, afastado, A mão sustenta, em que se apoia o rosto. Fita, com olhar sfíngico3 e fatal, O Ocidente, futuro do passado. O rosto com que fita é Portugal. Fernando Pessoa, Mensagem (ed. Fernando Cabral Martins), Lisboa, Assírio & Alvim, 2014, p. 15.

1 Jaz: está deitada, prostrada. 2 Fitando: fixando o olhar. 3 Sfíngico: esfíngico, enigmá-

tico, misterioso. A esfinge é uma criatura mitológica com rosto de mulher, corpo de leão e asas de ave de rapina, que propunha enigmas, devorando todos aqueles que os não decifrassem.

CD 1 Faixa n.0 18

Mensagem

1. Neste primeiro poema da Mensagem, o sujeito poético procede à apresentação da Europa. 1.1 Indica o recurso expressivo em que a mesma assenta, referindo os elementos que a compõem.

FI

Imaginário épico: exaltação patriótica p. 135

Recursos expressivos SIGA p. 383

1.2 Justifica a orientação do corpo «De Oriente a Ocidente» (v. 2). 1.3 Explicita a utilização reiterada do verbo jazer e relaciona-a com as formas verbais «fitando» (v. 2) e «lembrando» (v. 4). 2. Refere o valor simbólico da disposição dos cotovelos, na segunda estrofe. 3. Explica o sentido da terceira estrofe do poema, relacionando-o com o monóstico final.

Lê a seguinte prancha, retirada da banda desenhada Astérix e Cleópatra. TALVEZ O POSSAMOS COLAR?!

ÉS UM DESASTRADO! FELIZMENTE, NINGUÉM VIU. A ÚNICA COISA A FAZER É ENTERRAR O NARIZ NA AREIA.

POUCO DEPOIS... PRONTO!

PROFESSOR

Educação Literária 1.1 A apresentação da Europa assenta na personificação: uma figura feminina deitada, apoiada nos cotovelos, com «românticos cabelos» e «olhos gregos», sustentando o rosto, Portugal, com a mão direita. 1.2 «De Oriente a Ocidente» representa o processo evolutivo da civilização europeia, isto é, nasceu a Oriente e estendeu-se para Ocidente, acumulando várias influências: do Norte («românticos cabelos») e do Sul («olhos gregos»). 1.3 A reiteração do verbo jazer, verbo com conotação negativa e fúnebre, exprime o estado de inação, de letargia da Europa, que é apresentada numa atitude contemplativa, a recordar as glórias do passado, atitude que se prolonga temporalmente, como se pode verificar no uso do gerúndio nas formas verbais «fitando» e «lembrando».

GRAMÁTICA

BRAVO, OBÉLIX! BRAVO!

129

NÃO PASSARÁ PELA CABEÇA DE NINGUÉM VIR PARA AQUI FAZER ESCAVAÇÕES.

2. A disposição dos cotovelos simboliza as origens culturais europeias: a cultura greco-latina (Itália) e o império britânico (Inglaterra).

x!!! eiafi

id

ANDA, PANORAMIX, DESPACHA-TE. EU JÁ TE EXPLICO.

MAS O MEU EXPLICAR? MAS EXPLICAR RETRATO AINDA NÃO ESTÁ O QUÊ? ACABADO!

3. O olhar «esfíngico e fatal», simultaneamente marcado pelo mistério e pelo destino, é o de um rosto concreto, o de Portugal, que se focaliza no «Ocidente, futuro do passado». Isto é, Portugal encontra-se predestinado a uma missão, pelo estatuto de potência civilizadora de que já usufruiu: retirar a Europa do estado presente de apatia e de decadência, dando continuidade a esse passado glorioso, fazendo renascer o velho continente para uma nova glória, para um novo império.

É UMA PENA. ESTAVA TÃO PARECIDO... SOBRETUDO A ESFINGE...

MAS...

a esfinge?!

Gramática ▪ Imagem para projeção E AGORA JÁ SABEM A RAZÃO PELA QUAL A ESFINGE NÃO TEM NARIZ. O QUE É, ALIÁS, UMA PENA, POIS ESSE NARIZ, QUE NUNCA FOI ENCONTRADO, ERA UM BELO NARIZ. EMBORA NÃO FOSSE TÃO BELO COMO O DE CLEÓPATRA, QUE ERA, COMO JULGAMOS JÁ LHES TER DITO, MUITO BONITO.

René Goscinny e Albert Uderzo, Astérix e Cleópatra, Alfragide, Asa, 2006, p. 22.

1. Transcreve os vários deíticos presentes nos balões de fala e classifica-os. 2. Classifica a oração introduzida por «pois», na décima vinheta. 3. Indica o aspeto gramatical presente no balão da sexta vinheta.

Deixis SIGA p. 378 Coordenação SIGA e subordinação pp. 373-374

FI

Valor aspetual pp. 59-60

1. Deíticos pessoais: vocativos («Obélix», «Ideiafix», «Panoramix»); formas flexionadas de 2.a pessoa («És», «tens») e de 1.a pessoa («Vamos», «percamos», «direi»); pronomes pessoais de 1.a pessoa («nos») e de 2.a pessoa («te»), determinante possessivo de 1.a pessoa («meu»). Deíticos espaciais: advérbio de lugar «aqui» e a forma verbal «Vamos» a indicar movimento. Deíticos temporais: as formas flexionadas de 1.a e de 2.a pessoas no presente, a situar o ato enunciativo («És», «tens», «Vamos», «percamos»), e no futuro, a exprimir uma relação de posterioridade («direi»). 2. Oração coordenada explicativa. 3. Aspeto imperfetivo.

130

Unidade 1 // FERNANDO PESSOA

PROFESSOR

MC

EDUCAÇÃO LITERÁRIA

Educação Literária 14.1; 14.2; 14.3; 14.4; 14.5; 14.6; 14.8; 14.9; 15.5; 16.2.

Ulisses1

Gramática 17.1; 19.3. Escrita 10.1; 11.1; 12.1; 12.2; 12.3; 12.4; 13.1. 5

▪ Documentos – Etimologia do topónimo «Lisboa» – A «Lenda da Fundação de Lisboa» Educação Literária 1. O primeiro verso encerra um paradoxo, pois o «mito» é definido como «nada» e «tudo», dois termos que se excluem totalmente, por serem opostos. É «nada» na ordem da existência, porque designa o que não existe; é «tudo» por ser a base de explicações que entram na realidade, na ausência do conhecimento das causas ou origens. 2. O «sol», que nasce e que se põe todos os dias aos olhos de todos, que ilumina os «céus», é o «nada», um «mito», tal como o Universo. Este «sol» revelador é «Deus», que, apesar de «morto», o «nada», vive na fé do ser humano (ressurreição), sendo a sua motivação, a sua força impulsionadora, o «tudo». Assim, «sol» e «Deus» são exemplos de mitos: um relacionado com o ciclo da natureza, outro relacionado com a religião. 3.1 O deítico pessoal «Este» apresenta como referente «Ulisses»; o espacial «aqui», Lisboa/Portugal; e o pessoal «nos», os portugueses. O sujeito poético presentifica, assim, a importância do mito de Ulisses para a (re)fundação de Portugal. 3.2 Ulisses é caracterizado antiteticamente como o «nada» e o «tudo», como se pode verificar nos pares «por não ser» / «existindo» (v. 7); «Sem existir» / «nos bastou» (v. 8) «Por não ter vindo» / «foi vindo / E nos criou» (vv. 9-10). 3.3 O sujeito lírico retoma, da tradição popular, o mito da fundação de Lisboa por Ulisses e, consequentemente, de Portugal, conferindo-lhe uma origem mítica. Também, a partir das características desta figura – a coragem, a ousadia e a perseverança demonstradas, na Odisseia, na superação dos obstáculos e dos perigos, nomeadamente, na longa viagem de regresso a Ítaca –, aponta a vocação marítima dos portugueses, a força revelada na empresa dos Descobrimentos e na criação de um vasto Império.

CD 1 Faixa n.0 19

O mito2 é o nada que é tudo. O mesmo sol que abre os céus É um mito brilhante e mudo – O corpo morto de Deus, Vivo e desnudo.

10

Este, que aqui aportou, Foi por não ser existindo. Sem existir nos bastou. Por não ter vindo foi vindo E nos criou.

15

Assim a lenda se escorre A entrar na realidade, E a fecundá-la decorre. Em baixo, a vida, metade De nada, morre. Fernando Pessoa, op. cit., p. 19.

1. Explicita o caráter paradoxal do primeiro verso do poema.

FI

O imaginário épico: dimensão simbólica do herói pp. 138-139

2. Relaciona as referências ao «sol» e a «Deus» com a definição inicial de «mito». 3. Atenta na segunda estrofe. 3.1 Classifica os deíticos aí presentes, indicando os respetivos referentes, e conclui acerca da expressividade da sua utilização. 3.2 Comprova que a personagem referida é apresentada antiteticamente, segundo a estrutura da definição do «mito»: o «nada» e o «tudo». 3.3 Apresenta uma explicação para a seleção desta figura mítica enquanto fundadora de Lisboa e, metonimicamente, de Portugal.

FI

O imaginário épico: exaltação patriótica p. 135

4. Centra-te, agora, na terceira estrofe. 4.1 Refere o valor expressivo do conector inicial. 4.2 Explica, por palavras tuas, o sentido dos versos desta estrofe.

1 Ulisses: figura mitológica, personagem principal da

2 Mito: relato simbólico, passado de geração em gera-

Odisseia, de Homero, e uma figura à parte na narrativa da Guerra de Troia (Ilíada), foi um dos mais ardilosos guerreiros de toda a epopeia grega, mesmo depois da guerra, na sua longa viagem de retorno ao seu reino, Ítaca, durante a qual, segundo a lenda, terá fundado a cidade de Lisboa: Olissipo, em grego.

ção dentro de um grupo, que narra e explica a origem de determinado fenómeno, ser vivo, acidente geográfico, instituição, costume social, etc.; construção mental de algo idealizado, sem comprovação prática.

Mensagem

131

PROFESSOR

GRAMÁTICA

1. Indica a única opção que te permite obter uma afirmação correta. 1.1. Os constituintes destacados em «O mito é o nada que é tudo» (v. 1) desempenham a função sintática de Funções sintáticas (A) (B) (C) (D)

SIGA pp. 372-373

complemento direto. complemento indireto. predicativo do sujeito. sujeito.

1.2 O pronome «Este» (v. 6) tem como referente (A) (B) (C) (D)

Deixis SIGA p. 378

O mito. O corpo morto de Deus. O mesmo sol. Ulisses.

FI

pp. 59-60

ESCRITA

▪ Apresentação em PowerPoint Correção da atividade de Escrita

1. Lê, com atenção, o poema «Viriato1» da Mensagem.

10

Teu ser é como aquela fria Luz que precede a madrugada, E é já o ir a haver o dia Na antemanhã, confuso nada. Fernando Pessoa, op. cit., p. 20.

Nação porque reencarnaste, Povo porque ressuscitou Ou tu, ou o de que eras a haste – Assim se Portugal formou.

• Viriato (pastor e chefe mítico de um território lendário, a Lusitânia) surge, no poema, como um símbolo, apelando o sujeito poético à perduração («memória em nós») do seu instinto patriótico («raça») que imbuiu os fundadores da nacionalidade, ao materializarem essa nação embrionária – a Lusitânia. • Mitos como modelos a seguir – paradigmas de coragem; patriotismo; espírito de sacrifício; altruísmo; … São alicerces e forças motrizes na construção da nossa identidade individual e nacional, exortando-nos à ação…

Exposição sobre um tema SIGA pp. 360-361

Exposição sobre um tema

5

1.1 (C); 1.2 (D); 1.3 (B)

Sugestão de tópicos:

habitual e perfetivo. genérico e perfetivo. genérico e imperfetivo. habitual e imperfetivo.

Se a alma que sente e faz conhece Só porque lembra o que esqueceu, Vivemos, raça, porque houvesse Memória em nós do instinto teu.

Gramática

Escrita

1.3 As situações descritas em «O mito é o nada que é tudo» (v. 1) e «E nos criou» (v. 10) apresentam, respetivamente, um valor aspetual Valor aspetual (A) (B) (C) (D)

4.1 O conector «Assim» apresenta um valor conclusivo, introduzindo, desta forma, a conclusão do poema: o modo como a lenda fecunda a realidade, tornando-a dependente da mesma. 4.2 A «lenda» (o «mito») fecunda a realidade, propaga-se de geração em geração, mantendo-se viva. A vida, porém, se não for movida pela força do mito, fica reduzida a «metade de nada», pois, sendo efémera e transitória, fatalmente «morre».

1 Viriato: pastor dos Montes Hermínios, que se distin-

guiu na resistência heroica à invasão romana, como chefe militar dos Lusitanos, entre 147 e 139 a.C., ano em que foi morto à traição.

1.1 Redige um texto expositivo, de cento e trinta a cento e setenta palavras, a partir da leitura do poema, sobre a importância da influência do mito na atuação do ser humano e na construção da sua própria História.

132

Unidade 1 // FERNANDO PESSOA

FICHA INFORMATIVA 1

Linguagem e estilo

PROFESSOR

MC

Leitura 8.1.

1. Estrutura estrófica, a métrica e a rima

Educação Literária 14.8; 14.9.

5

10

Vistos no conjunto, os 44 poemas que constituem a Mensagem poderão ser considerados quanto ao esquema estrófico, ao rítmico e ao rímico. Pelo que se refere ao esquema estrófico, cabe-nos observar que há 3 poemas monóstrofos, 15 de duas estrofes, 18 de três, 5 de quatro, 2 de cinco e 1 de seis. […] As estrofes dos poemas da Mensagem poderão ser classificadas em pares e ímpares, […], e, quanto ao número de versos, em monósticos, dísticos, tercetos, quadras e quartetos, quintilhas, sextilhas, sétimas, nonas e décimas. Pelo que diz respeito ao esquema rítmico, há também na Mensagem uma vasta gama de ritmos, indo do dissílabo ao dodecassílabo, passando pelos versos de três, quatro, seis, sete, oito, nove e dez sílabas. Finalmente, quanto ao esquema rímico, nota-se também uma grande variedade, que vai dos versos brancos aos versos rimados, dividindo-se estes em emparelhados, cruzados, interpolados, misturados, e que vai da rima rica à rima pobre, da rima aguda à rima grave e esdrúxula. António Cirurgião, O «olhar esfíngico» da Mensagem de Pessoa, Lisboa, ICALP, 1990, p. 15.

Exemplificação Poema: «O dos Castelos» Estrutura estrófica

• quatro estrofes irregulares: par / ímpar / par / ímpar – quadra / quintilha / dístico / monóstico.

Métrica

• versos decassilábicos: «A Eu/ro/pa/ jaz/, pos/ta/ nos/ co/to/ve/los»; • último verso da primeira estrofe: verso hexassilábico – «O/lhos/ gre/ gos/, lem/bran/do».

Rima

• rima cruzada: primeira e segunda estrofes; • versos soltos ou brancos: terceira e quarta estrofes.

2. Linguagem e estilo

5

10

A linguagem de Mensagem apresenta-se multifacetada, como múltiplas são as faces de Fernando Pessoa. Aparenta a diversidade e a força das Odes de Álvaro de Campos: densa, obscura, culta, apelativa. Vai buscar ao latim, e ao seu caráter anastrófico e mítico, bases para poemas ao modo de Ricardo Reis. Intimiza a lírica ao sabor de Alberto Caeiro e do «menino de sua mãe», simples, cordial. Retrata um ortónimo, filósofo, solitário, sofredor, patriota, místico. […] A expressividade não calculada pelos cânones, a que o poeta era avesso, distende-se no entanto por todos os campos funcionais, linguísticos, lexicais, morfossintáticos, estilísticos, prosódicos e poéticos. J. Oliveira Macêdo, Sob o Signo do Império, Porto, Edições Asa, 2002, p. 209.

William Turner, Sol Levante, c. 1835-1840.

Ficha informativa

Características da linguagem • • • • • • • • • • • • • •

Adjetivo de características abrangentes. Adjetivo duplicado. Adjetivo nominalizado. Adjetivo separado do nome e realçado entre vírgulas. Advérbio de modo repetido. Emprego típico do particípio. Interjeição emotiva e apelativa. Inversão da ordem habitual das frases. Neologismos. Nomes conceituais. Repetição do verbo. Verbo intransitivo empregado transitivamente. Verbo nominalizado, de sabor latino, no infinitivo. ...

Recursos expressivos • • • • • •

Exemplos • • • • • • • • • • • • • •

Desnudo; ungido. Com bruta e natural certeza. Ai dos felizes. Que arcanjo teus sonhos veio / Velar, maternos, um dia? Assim vivi, assim morri. À espada em tuas mãos achada. Ai dos felizes; Ah, quando. Três impérios do chão lhe a sorte apanha. Almar; beira-mágoa; praiar. Mito; brasão; mistério; vigília. Baste, basta, bastar. Assim vivi, assim morri a vida. O querer; o ser; o saber; ter é tardar. …

Exemplos

Aliteração. Anáfora. Anástrofe. Antítese. Apóstrofe. Comparação.

• • • • • •

• Enumeração. • Gradação.

• •

• • • • •

• • • • •

Interrogação retórica. Metáfora. Metonímia. Personificação. …

133

Formidável vulto; […] os medos do mar sem fundo. É o som […] / É a voz […]. Que, da obra ousada, é minha a parte feita. A vida é breve, a alma é vasta. Ó mar anterior a nós […]. É rumor dos pinhais que, como um trigo / De império, ondulam sem se poder ver. A árvore, a praia, a flor, a ave, a fonte. Quando a nau se aproxima […] / Mais perto […] / E no desembarcar […]. Inutilmente? Não, porque o cumpri. Em baixo, a vida, metade / De nada, morre. (D. Filipa): princesa do Santo Graal […]; Madrinha de Portugal! A Europa jaz, posta nos cotovelos. …

PROFESSOR

Consolida 1. a) «esfíngico e fatal», «brilhante e mudo», «Vivo e desnudo»; b) «porque houvesse / Memória em nós do instinto teu»; c) «O mito é o nada que é tudo / […] / É um […]»; «[…] existindo / Sem existir […]», «Por não ter vindo foi vindo»; d) «E é já o ir a haver o dia»; e) «E toldam-lhe românticos cabelos / Olhos gregos lembrando»; f) «Teu ser é como aquela fria / Luz […]».

CONSOLIDA

1. Retira, dos poemas lidos, exemplos das seguintes características da linguagem e do estilo: a) adjetivo duplicado; d) verbo nominalizado; b) inversão da ordem e) anástrofe; habitual das frases; f) comparação. c) repetição do verbo;

Fontes: • Jacinto do Prado Coelho, Diversidade e Unidade em Fernando Pessoa, 8.ª ed., Lisboa, Editorial Verbo, 1985. • J. Oliveira Macêdo, Sob o Signo do Império, Porto, Edições Asa, 2002.

134

Unidade 1 // FERNANDO PESSOA

PROFESSOR

MC

Oralidade 1.1; 1.3; 1.4; 2.1. Educação Literária 14.1; 14.2; 14.3; 14.4; 14.7; 14.9; 15.1; 15.2;16.1; 16.2.

Ponto de Partida 1. A canção narra como nasceu a lenda de D. Sebastião e a forma como foi alimentada pelo povo, apontando, desde o início, para o misticismo que rodeia este rei: a referência a um «labirinto», no qual se terá perdido, às «bruxas e adivinhos» que «Juravam que nas manhãs, de cerrado nevoeiro, / Vinha D. Sebastião», às pessoas que afirmavam tê-lo visto, os elementos encontrados a par de «Pedaços de nevoeiro»; a utilização da forma verbal no futuro do indicativo em «Depois de Alcácer Quibir / Virá D. Sebastião», a sugerir a esperança no seu regresso. Deu-se assim o nascimento da lenda «entre a bruma do passado»; ao rei ainda hoje lhe chamam «o Desejado», o que remete para a sua continuidade e permanência como mito, apesar de nunca mais ter voltado.

PONTO DE PARTIDA

1. Ouve a canção do Quarteto 1111 «A Lenda D’El Rei D. Sebastião», do álbum com o mesmo nome (1996). Apelando aos teus conhecimentos sobre este rei, pronuncia-te oralmente acerca do modo como o mito sebastianista é explorado na canção. EDUCAÇÃO LITERÁRIA

▪ Link «A lenda d'El-Rei D. Sebastião», Quarteto 1111 ▪ Documento Letra da canção «A Lenda d' El-Rei D. Sebastião» Educação Literária 1. D. Sebastião surge como a última chaga de Cristo, a última Quina do «Brasão», por ser o último herói-mártir: pereceu na luta pelo alargamento do Império (1578 – Alcácer Quibir), o que conduziu à queda do mesmo, com a perda da independência, em 1580. 2.1 O vocábulo «louco» ocorre como sinónimo de ambicioso, de sonhador. Foi o sonho de «grandeza», para além dos limites impostos pelo Destino («Qual a Sorte a não dá»), a ambição de alargamento do Império que moveram D. Sebastião para tal empresa. A sua «certeza» (v. 3), a sua convicção de alcançar o Ideal almejado foi superior a ele mesmo («Não coube em mim», v. 3). 2.2 Relação de causa-consequência, expondo-se nos três primeiros versos a causa, o desejo de «grandeza», e nos dois últimos a consequência, a morte no «areal», em Alcácer Quibir. O ser mortal aparece em contraste com o ser imortal no verso 5, pois morreu o «ser que houve» (Passado – Pretérito perfeito), mas «não o que há» (Presente), ou seja, a sua memória permanece: o seu mito a fecundar a realidade. 3. O sujeito poético faz a apologia da «loucura», enquanto força criadora, do sonho, da busca do Ideal, exortando a que «outros» se deixem imbuir por aquilo que o moveu em toda a sua dimensão (atente-se no valor exortativo do presente do conjuntivo: «tomem», v. 6). Sem esta «loucura», sem o desejo por algo maior, o homem nada mais é do que um animal, que se limita a procriar e a esperar a morte.

CD 1 Faixa n.0 20

D. Sebastião, Rei de Portugal

5

Louco, sim, louco, porque quis grandeza Qual a Sorte a não dá. Não coube em mim minha certeza; Por isso onde o areal está Ficou meu ser que houve, não o que há.

10

Minha loucura, outros que me a tomem Com o que nela ia. Sem a loucura que é o homem Mais que a besta sadia, Cadáver adiado que procria? Fernando Pessoa, op. cit., p. 33.

1. Indica uma possível intenção de Fernando Pessoa ao apresentar D. Sebastião como a última das Quinas.

FI

O Sebastianismo p. 145

2. O sujeito poético autocaracteriza-se como «louco». 2.1 Clarifica o significado do vocábulo «louco» no contexto em que surge e refere o motivo dessa «loucura». 2.2 Identifica a relação de sentido estabelecida entre os dois últimos versos da primeira estrofe e os anteriores, explicitando a dicotomia presente no verso 5. 3. Demonstra o caráter exortativo da segunda estrofe, esclarecendo o valor expressivo da interrogação retórica presente nos versos finais.

Recursos expressivos SIGA p. 383

Ficha informativa

135

FICHA INFORMATIVA 2 O imaginário épico: exaltação patriótica

5

10

15

20

25

30

O Nacionalismo de Pessoa funda-se na ideia de pátria, enquanto nação ligada por instituições comuns, tradições históricas e, sobretudo, por uma língua. Por essa razão, Pessoa decidiu partilhar com o conjunto humano português que constituía a pátria – «o que vem a ser uma Pátria? […] um conjunto humano tomando consciência de si próprio como diferente dos outros conjuntos» […] – os usos, os modelos morais, a arte, e sobretudo a memória coletiva. Acolheu-se a esse «ninho de valores afetivos» e nele sentiu o pulsar de uma nação dilacerada, incapaz de articular esforços e de congregar vontades. Uma nação que vivia voltada para trás na veneração de um passado. Foi essa pátria enrolada para dentro que Pessoa tomou em mãos transformar numa nação «criadora de civilização». E no seu dinamismo patriótico intervém ativamente com a sua palavra. […] Anuncia o poder do sonho com a sua Mensagem: «Deus quer, o homem sonha, a obra nasce». […] Obra ilusoriamente estática, mas, na verdade, atravessada de grande dinamismo animado pela pena do poeta que, com o poder performativo1 da sua palavra, ressuscita as personagens que nela desfilam e perante o olhar maravilhado e extasiado dos Portugueses, espectadores dessa retrospetiva histórica, evoca prospetivamente2 os feitos desses heróis do Portugal ido e transmuta3 essa audiência em atores do futuro do passado. Com ela, ambicionou criar um movimento perpétuo e contínuo de influência/ação a ação/influência que levasse à construção do Portugal futuro. Por isso, nesse altar faustosamente ornado, que é a Mensagem, prestou o devido culto aos heróis nacionais desaparecidos e, graças ao poder do seu verbo, fê-los regressar do Hades4, para que transmitissem a esse Ulisses que é o povo português a força anímica5 das suas almas. Neste seu poema épico, ordena e simultaneamente dramatiza a história de Portugal, tal o imaginário a construiu: da fundação de Portugal – «Brasão», símbolo de uma origem predestinada e representante de um património divino a defender –, o poeta navegou até ao «Mar Português», símbolo de um Portugal criador de civilização, para em seguida mergulhar no nevoeiro com «O Encoberto», símbolo salvífico6 da nação (o que cada português tem oculto dentro de si: o espírito do homem das descobertas), e, finalmente, deixar no ar, a repercutir, o eco do seu «há de ser», imperativo de um futuro a cumprir. A nação que ambicionava «criadora de civilização» não podia, na sua perspetiva, ser constituída por um simples agregado humano, mas sim representar uma «alma coletiva» capaz de congregar os ânimos e de lançar o desafio ao destino. Luísa Medeiros, «Nacionalismo», in Fernando Cabral Martins (coord.), Dicionário de Fernando Pessoa e do Modernismo Português, Lisboa, Editorial Caminho, 2008, pp. 502-503.

PROFESSOR

MC

Consolida Tópicos: • O Nacionalismo de Fernando Pessoa assenta no conceito de pátria como nação: conjunto humano unido por instituições comuns, tradições históricas e, principalmente, uma língua. • Intenção do poeta, com a Mensagem: transformação da sua pátria (que se encontrava num estado de profunda letargia, incapaz de agir coletivamente, olhando apenas para o passado) em «nação criadora de civilização» através do poder do sonho. • Modo de cumprir esta missão, plena de vigor patriótico: evocação, através do poder da sua escrita, com os olhos sempre postos no futuro, dos heróis passados de Portugal (exemplos da vontade de mudança e da capacidade de ação), de modo a influenciar os portugueses, transformando-os em agentes da construção do Portugal futuro. • Poema épico dividido em partes ordenadas e dramatizadas: «Brasão» (a origem predestinada e o património divino a defender); «Mar Português» (a capacidade criadora de Portugal); e «O Encoberto» (envolto em nevoeiro, mas símbolo do espírito do homem das descobertas que cada português encerra em si), parte que encerra o imperativo do futuro a cumprir. • Nação «criadora de civilização»: a que representa uma «alma coletiva», com capacidade de agir coletivamente.

1 Performativo: que, ao ser profe-

2 3 4

CONSOLIDA

1. Elabora tópicos que sistematizem as ideias-chave do texto, organizando-os sequencialmente.

Leitura 8.1; 8.2.

5 6

rido, corresponde à ação a que se refere. Prospetivamente: com os olhos postos no futuro. Transmuta: transforma. Hades: o reino dos mortos, o local para onde a alma das pessoas se dirigiria após a morte (mitologia grega). Anímica: relativo a ou próprio da alma; psicológica; psíquica. Salvífico: que salva; salvador.

136

Unidade 1 // FERNANDO PESSOA

PROFESSOR

MC

SEGUNDA PARTE – MAR PORTUGUÊS

Oralidade 1.1; 1.3; 3.1; 5.1; 5.2; 5.3.

Está impregnada de Água, a possessio maris, que adquire o auge nas Descobertas Marítimas. Mar que une, não mais separa, mar onde sobressaem o Ocidente, o Infante, o Padrão, os medos, os navegantes, as naves. Mar, realização do sonho da expansão. Entre a época do Infante e a de D. Sebastião, último rei da dinastia de Avis, Portugal assume-se como a cabeça da Cristandade ocidental, percorrendo mares desconhecidos e revelando mundos ignorados. Mas este processo de descoberta e de conhecimento é também um processo de autodescoberta e de reconhecimento.

Educação Literária 14.1; 14.2; 14.3; 14.4; 14.7; 14.9; 15.1; 16.1. Gramática 17.1; 19.3.

▪ Vídeo Notícia – Expo Infante D. Henrique Ponto de Partida 1. O Infante D. Henrique, o Navegador, foi uma figura complexa e muito versátil: o impulsionador da escola de Sagres, de onde saíram inovações tecnológicas que desbloquearam a descoberta do mundo; protetor da universidade; o grande príncipe da primeira metade do séc. XV português; o pai da globalização: o mundo estava bloqueado até à passagem do Cabo Bojador, sendo que, a partir do momento em que se iniciaram os Descobrimentos, impulsionados pelo Infante, a história do mundo mudou. Educação Literária 1.1 O valor de verdade universal é expresso, em primeiro lugar, pela estrutura tripartida do mesmo, surgindo nas duas primeiras partes os elementos essenciais para que se dê a criação da obra: a vontade de Deus e o sonho do homem. As formas verbais no presente do indicativo («quer», «sonha» e «nasce»), a exprimir um valor aspetual genérico, contribuem para que as situações descritas ocorram como atemporais e permanentes. 1.2 A relação estabelecida é de causa-efeito: sem a vontade de Deus, o homem não sonharia e a obra nunca poderia nascer: porque Deus quer, porque o homem sonha, a obra nasce. 1.3 Os três últimos versos da primeira estrofe expõem o desejo de Deus, o agente da vontade: a unidade da Terra através do mar, predestinando o Infante, através da sua sagração, para essa missão. O Infante sonhou e levou a cabo a sua missão («foste desvendando a espuma», v. 4). Na segunda estrofe, dá-se a realização da obra: as Descobertas, a unificação do mundo através do mar («E viu-se a terra inteira, de repente, / Surgir, redonda, do azul profundo.», vv. 7-8). 2. A gradação exprime o modo progressivo como as Descobertas se realizaram: primeiro a descoberta das ilhas, depois dos continentes e, finalmente, a ligação por mar dos vários pontos da Terra. 3. A predestinação do Infante, a sua sagração por Deus (note-se a proximidade com o vocábulo «Sagres», símbolo do início do sonho), é transposta para o seu povo, o povo português, eleito para grandes façanhas.

POSSESSIO MARIS

Fontes: António Apolinário Lourenço (ed.), Fernando Pessoa, Mensagem, Braga, Angelus Novus, 1994; J. Oliveira Macêdo, Sob o Signo do Império, Porto, Edições Asa, 2002.

PONTO DE PARTIDA

1. Vê a notícia sobre a Expo Infante D. Henrique (SIC Notícias) que teve lugar em Lisboa. Conclui, a partir da informação veiculada, acerca da importância desta figura histórica para o desenvolvimento de Portugal e do Mundo. Expo Infante D. Henrique SIC Notícias

EDUCAÇÃO LITERÁRIA

O Infante

CD 1 Faixa n.0 21

Deus quer, o homem sonha, a obra nasce. Deus quis que a terra fosse toda uma, Que o mar unisse, já não separasse. Sagrou-te, e foste desvendando a espuma. 5

10

E a orla branca foi de ilha em continente, Clareou, correndo, até ao fim do mundo, E viu-se a terra inteira, de repente, Surgir, redonda, do azul profundo. Quem te sagrou criou-te português. Do mar e nós em ti nos deu sinal. Cumpriu-se o Mar, e o Império se desfez. Senhor, falta cumprir-se Portugal! Fernando Pessoa, op. cit., p. 49.

1. Atenta no verso «Deus quer, o homem sonha, a obra nasce». 1.1 Comprova que este verso apresenta um valor de verdade universal.

FI

O imaginário épico: dimensão simbólica do herói pp. 138-139

1.2 Refere a relação de sentido estabelecida entre os três termos do verso. 1.3 Esclarece o modo como se desenvolvem ao longo da primeira e da segunda estrofes.

Mensagem

2. Explica a expressividade da gradação presente na segunda estrofe.

Recursos expressivos SIGA p. 383

3. Explicita a forma como o valor simbólico da forma verbal «sagrou» é transposto para o povo português. 4. Estabelece uma relação entre o verso «Cumpriu-se o Mar, e o Império se desfez» (v. 11) e a mudança de interlocutor no final do poema. 5. Analisa o poema quanto à estrutura estrófica, métrica e rimática.

GRAMÁTICA Coordenação e SIGA subordinação pp. 373-374

1. Classifica as orações destacadas nos seguintes versos: a) «Deus quer, o homem sonha, a obra nasce.» (v. 1). b) «Que o mar unisse, já não separasse.» (v. 3). c) «Quem te sagrou criou-te português.» (v. 9). 2. Classifica os deíticos presentes na última estrofe e indica os respetivos referentes.

Deixis SIGA p. 378

3. Indica as funções sintáticas das expressões destacadas nos versos que se seguem: a) «E a orla branca foi de ilha em continente» (v. 5). b) «Surgir, redonda, do azul profundo.» (v. 8). c) «Quem te sagrou criou-te português.» (v. 9).

ORALIDADE

Funções sintáticas SIGA pp. 372-373

EXPRESSÃO ORAL

4. Cumpriram-se o desejo de Deus e o sonho do Infante: o desvendamento do mar e a unificação da terra; mas deu-se a queda desse Império (Alcácer Quibir), agora pertencente ao passado, sendo a pátria presente obscura, sem qualquer rumo. Eis porque se dá a mudança de interlocutor, do Infante para Deus: o sujeito poético dirige-Lhe um apelo urgente («falta», no presente, v. 12), o cumprimento de Portugal, um novo ciclo, tal como o apontado no início do poema: uma nova vontade divina, um novo sonho do homem e uma nova obra/ação, desta vez espiritual, pois o Império material já foi cumprido. 5. O poema é composto por três quadras, com versos decassilábicos («Que o/mar/u/ni/sse,/já/não/se/pa/ra/ sse») e rima cruzada nas três estrofes. Gramática 1. a) Orações coordenadas assindéticas; b) Oração subordinada substantiva completiva; c) Oração subordinada relativa sem antecedente. 2. Deíticos pessoais: «te», «-te», «ti», referente: «O Infante»; «nós», «nos», referente: os portugueses; «Senhor», referente: «Deus».

Oralidade – Os heróis são apresentados, todos eles, como «sonhadores» e «loucos»: Ulisses (a coragem, a determinação); Viriato (o instinto de defesa do território, a ousadia, a inteligência); D. Sebastião, «mártir da realidade» (o desejo de grandeza, a «loucura» de querer ir mais além); e o Infante (o sonho de alargamento do Império, a sede de conhecimento); – O que os moveu, as suas atitudes, é o que se encontra ocultado, adormecido, à espera que outros se inspirem no seu heroísmo (na sua faceta mítica, não na histórica, factual), o retomem e deem continuidade ao seu sonho, à sua «loucura»; –…

1. Lê o seguinte excerto:

10

PROFESSOR

3. a) Complemento oblíquo; b) Modificador do nome apositivo; c) Predicativo do complemento direto.

Apresentação oral

5

137

Só os sonhadores, os loucos, os mártires da realidade, cujo paradigma é D. Sebastião, […] merecem louvor, pois só eles sabem que «la vraie vie est ailleurs1». Algures, mas no algures desta vida transcendendo-a de dentro por essa forma de heroísmo «oposto ao mundo» a que Pessoa se referiu. Como D. Sebastião, eles não ficaram soterrados sob as areias da realidade, mas ocultados, adormecidos, à espera de regressar ao que eram e jamais deixaram de ser. Eduardo Lourenço, «Prefácio», in Teresa Sobral Cunha (ed.), Mensagem – Fernando Pessoa, Lisboa, Relógio D’Água, 2013, p. 17.

▪ Apresentação em PowerPoint Correção da atividade de Escrita Alonso Sánchez Coello, D. Sebastião, 1575.

1.1 Partindo do excerto acima transcrito e dos poemas já analisados, prepara uma apresentação oral, de cinco a sete minutos, sobre a dimensão simbólica dos heróis da Mensagem.

1 «La vrai vie est ailleurs»: a verda-

deira vida está noutro lugar. Esta frase do poeta francês Arthur Rimbaud é citada para aludir a esse desejo de fuga.

138

Unidade 1 // FERNANDO PESSOA

FICHA INFORMATIVA 3 O imaginário épico: dimensão simbólica do herói

PROFESSOR

MC

Leitura 7.1; 7.3; 7.4; 8.1; 8.2.

Consolida 1. Texto 1: • Herói é aquele que se distingue dos demais por, na defesa de um ideal, transpor os limites expectáveis da condição humana. Texto 2: • A construção de uma memória coletiva e de uma identidade própria de um povo advém da identificação deste com os seus mitos. • As transformações operadas pelo mito resultam daquilo que este representa para o povo e da história que encerra, não tendo necessariamente de existir, pois o que interessa é o significado que adquire na vida do grupo, tornando-se, assim, História desse grupo. • O mito passa a existir a partir do momento em que se transforma num conjunto de valores comuns a um povo, que não se encontram dependentes das noções de tempo e de espaço, contrariamente ao facto histórico concreto. • Os heróis da Mensagem encerram, para além do valor de referentes históricos, os aspetos modelares dos heróis essenciais para a construção do futuro ambicionado.

1. Noção de herói Herói (do grego: «senhor», «príncipe») é aquele que se eleva acima da medida humana comum, pela sua energia, coragem e sabedoria, na defesa de um ideal: no combate contra seres humanos ou contra forças brutas da natureza; na fundação/ libertação de uma cidade, de um país ou de um território. Artur Veríssimo, «Herói», in Dicionário da Mensagem, Lisboa, Areal Editores, 2000, p. 56.

2. O mito na Mensagem

5

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O grupo (que bem pode ser um Povo) reconhece-se nos seus mitos, o que contribui para a construção de uma memória coletiva e de uma identidade própria, aspetos que prefiguram também um futuro comum. […] O que interessa é que o mito seja história e tenha um sentido para a comunidade que o vive. É no modo como o mito recria e sonha a vida do grupo que se torna História desse grupo. Por isso, Ulisses «sem existir nos bastou» […], que «o mito é nada que é tudo» […]. Foi a vivência interior do que ele para nós representa que fez dele História e não o facto de ele ter existido ou não fisicamente. […] O mito é sempre verdadeiro? Sim, pois tipifica uma situação existencial comum a um povo; é um conjunto de valores que não tem tempo nem espaço, ao contrário do facto histórico concreto. Repare que, na Mensagem, se distingue em D. Sebastião o «ser que houve», fisicamente morto em Alcácer, do «ser que há», que permanece vivo na nossa memória coletiva como exemplo, como alma representativa de um conjunto de valores cuja autenticidade não depende do tempo histórico. Transformação idêntica no sentido da criação de um cenário mítico sofrem todos os heróis que a Mensagem integra. Sem perderem o seu valor de referentes históricos, deles interessa como vivência individual e coletiva «o ser que há», não «o que houve», ou seja, o que neles se reveste da exemplaridade necessária à construção do futuro que a obra obsessivamente procura. Artur Veríssimo, «Mito», in Dicionário da Mensagem, Lisboa, Areal Editores, 2000, pp. 92-93.

John William Waterhouse, Ulisses e as Sereias, 1891.

Ficha informativa

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3. Os heróis e a predestinação nacional PROFESSOR

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Há […] na Mensagem dois tipos de heroísmo. Normalmente os heróis agem pelo instinto, sem terem a visão do sentido e alcance dos seus atos na marcha dos tempos: Viriato é já o portador do instinto obscuro que vai animar o Conde D. Henrique. «Todo o começo é involuntário. / Deus é o agente. / O herói a si assiste, vário / E inconsciente». Já D. Duarte é um herói voluntário, unidade moral que se opõe ao mundo, cumprindo o seu dever contra o Destino e gozando a recompensa apenas na ideia de o ter cumprido. Subordinado à «regra de ser Rei», a si mesmo se edificou. A Mensagem é também um elogio do Português, desvendador e dominador de mundos. O que o define não é a ânsia do poderio terreno mas a fome de Absoluto, um ideal cujo escopo pertence à «alma interna». D. Pedro, regente de Portugal, «indiferente ao que há em conseguir/Que seja só obter», vive e morre «fiel à palavra dada e à ideia tida. Tudo mais é com Deus!». […] Os heróis da Mensagem olham e agem obsidiados1 por um misticismo2 de objeto longínquo, indeterminado. Não gritam a plenitude humana do triunfo. A insatisfação é o seu fado: sem a grandeza de alma que os torna infelizes nada vale a pena. […] A galeria dos heróis, que Deus sagrou «em honra e em desgraça» para a nostalgia e demanda3 do Infinito («O mar sem fim é português»), está na Mensagem em função do futuro que nebulosamente prenunciam. Depois dos medalhões do «Mar Português» vêm os símbolos e avisos do Encoberto. O passado, na lógica misteriosa das nações, inclui o porvir4. Os pinhais de D. Dinis, ao serem agitados pelo vento, sussurram como «um trigo de Império», prefiguram o marulho das ondas que as naus profundas hão de sulcar. O plano transcendente vai-se realizando, tem de ser. A predestinação5 nacional lê-se nas trovas do Bandarra6. Por isso o poeta sabe com íntima certeza que Portugal vai cumprir-se.

Consolida 2. a) «os heróis agem pelo instinto, sem terem a visão do sentido e alcance dos seus atos na marcha dos tempos» (ll. 1-2); «herói voluntário, unidade moral que se opõe ao mundo, cumprindo o seu dever contra o Destino e gozando a recompensa apenas na ideia de o ter cumprido» (ll. 5-7). b) «A galeria dos heróis […] está na Mensagem em função do futuro que nebulosamente prenunciam» (ll. 16-18); «O passado, na lógica misteriosa das nações, inclui o porvir» (ll. 19-20); «A predestinação nacional lê-se nas trovas do Bandarra. Por isso o poeta sabe com íntima certeza que Portugal vai cumprir-se» (ll. 22-24).

Jacinto do Prado Coelho, Diversidade e Unidade em Fernando Pessoa, 8.ª ed., Lisboa, Editorial Verbo, 1985, pp. 51-53.

CONSOLIDA

1 Obsidiados: obcecados, persegui-

dos; cercados. 2 Misticismo: crença na possível

1. Elabora tópicos que sistematizem as ideias-chave dos textos 1 e 2, organizando-os sequencialmente.

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2. Centra-te no texto 3 e fundamenta as afirmações com transcrições textuais.

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a) Há na Mensagem dois tipos de heroísmo. b) Toda a matéria da Mensagem converge para a edificação de um Portugal futuro.

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comunicação entre o homem e a divindade. Demanda: ação de procurar alguma coisa; busca, diligência. Porvir: o tempo que está por vir, por acontecer; futuro. Predestinação: destinação a grandes feitos; determinação antecipada do destino de (algo ou alguém). António Gonçalves de Bandarra (1500-1556): tendo exercido a profissão de sapateiro, dedicou-se à divulgação em verso de profecias de cariz messiânico. As Trovas do Bandarra influenciaram o pensamento sebastianista e messiânico de Padre António Vieira e de Fernando Pessoa.

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Unidade 1 // FERNANDO PESSOA

PROFESSOR

MC

Oralidade 1.1; 1.3; 1.4; 3.1. Educação Literária 14.1; 14.2; 14.3; 14.4; 14.6; 14.9; 15.1; 15.7.

PONTO DE PARTIDA

1. Ouve, atentamente, a versão musicada do poema «Mar Português», do álbum Quinta das Lágrimas (2008) do grupo galego Milladoiro, cointerpretada por Mafalda Arnauth.

Ponto de Partida

1.1 Estabelece uma comparação entre a canção e o poema, atendendo ao ritmo e à expressividade da pontuação.

▪ Link «Mar Português», Milladoiro & Mafalda Arnauth 1. A canção apresenta um ritmo lento, melancólico, de acordo com a mensagem veiculada na primeira estrofe: o sofrimento das mães, dos filhos e das noivas. As apóstrofes e as frases exclamativas traduzem-se, na canção, na elevação do tom da voz, visível, também, na resposta à interrogação inicial da segunda estrofe. Verifica-se a aceleração do ritmo e novamente a elevação do tom no último verso, a expressar a glória vinda do mar. Educação Literária 1. Primeira sextilha: as consequências da aventura marítima – o sofrimento e o sacrifício do povo português; segunda sextilha: considerações do sujeito poético acerca do sacrifício e do sofrimento, considerados necessários para alcançar a glória. 2. Apóstrofe («Ó mar salgado»): invo-cação do responsável pelo sofrimento do povo; metáfora e hipérbole («quanto do teu sal / São lágrimas de Portugal!»): o mar adquire a propriedade salgada das lágrimas dos portugueses; o sal surge, assim, como símbolo do sofrimento, das inúmeras tragédias ocorridas no mar. 3. A repetição do vocábulo «quanto» (quatro vezes) confere dramatismo à evocação das situações provocadas pela expansão marítima, realçando a dimensão do sofrimento («Por te cruzarmos»), nomeadamente no seio das famílias: «mães», «filhos» e «noivas». 4. A estrofe apresenta uma estrutura circular ao terminar como inicia, com uma apóstrofe ao «mar» («Ó mar salgado», «ó mar!»), encerrando em si toda a aventura marítima: o alcançar do sonho, a glória da conquista («Para que fosses nosso») e a dimensão dos sacrifícios feitos pelo povo português. 5.1 A interrogação retórica «Valeu a pena?» introduz a segunda parte do poema, de caráter filosófico, na qual o sujeito poético apresenta considerações acerca daquilo que é essencial para a concretização do Sonho. 5.2 A primeira consideração, presente nos versos 7 e 8, aponta para a grandeza da alma humana, afirmando valerem a pena todos os sacrifícios para se atingir o ideal sonhado. A segunda, presente nos versos 9 e 10, parte da metáfora «Quem quer passar além do

CD 1 Faixa n.0 22

EDUCAÇÃO LITERÁRIA

Mar Português

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Ó mar salgado, quanto do teu sal São lágrimas de Portugal! Por te cruzarmos, quantas mães choraram, Quantos filhos em vão rezaram! Quantas noivas ficaram por casar Para que fosses nosso, ó mar! Valeu a pena? Tudo vale a pena Se a alma não é pequena. Quem quer passar além do Bojador Tem que passar além da dor. Deus ao mar o perigo e o abismo deu, Mas nele é que espelhou o céu. Fernando Pessoa, op. cit., p. 60.

1. Apresenta, de forma sucinta, o assunto de cada sextilha. 2. Indica os recursos expressivos presentes nos dois primeiros versos do poema e comenta a sua expressividade.

Recursos expressivos SIGA p. 383

3. Refere os efeitos de sentido da repetição do vocábulo «quanto». 4. Explica o valor simbólico da circularidade da primeira estrofe. 5. Atenta na segunda estrofe. 5.1 Conclui acerca da função da interrogação retórica presente no primeiro verso da segunda estrofe. 5.2 Interpreta o sentido das considerações do sujeito poético ao longo da estrofe, esclarecendo o valor expressivo das metáforas aí presentes.

Mensagem

EDUCAÇÃO LITERÁRIA

A Última Nau

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PROFESSOR

5.2 (cont.) Bojador», isto é, ultrapassar o medo, o desconhecido, os obstáculos, no sentido de obter a glória desejada, para, de seguida, apresentar aquilo que é essencial para tal: a luta pelo Ideal, pelo Sonho, indo além dos limites da condição humana. A terceira consideração corresponde aos dois últimos versos, nos quais estão representados os perigos do mar e os sacrifícios feitos («o perigo e o abismo»), mas, também, na metáfora «espelhou o céu», o sonho realizado, a glória alcançada. Assim, o «mar» simboliza, por um lado, o sofrimento e as dificuldades e, por outro, a concretização, a glória, o Absoluto.

CD 1 Faixa n.0 23

Levando a bordo El-Rei D. Sebastião, E erguendo, como um nome, alto o pendão Do Império, Foi-se a última nau, ao sol aziago Erma, e entre choros de ânsia e de pressago Mistério. Não voltou mais. A que ilha indescoberta Aportou? Voltará da sorte incerta Que teve? Deus guarda o corpo e a forma do futuro, Mas Sua luz projeta-o, sonho escuro E breve.

MC

Ah, quanto mais ao povo a alma falta, Mais a minha alma atlântica se exalta E entorna, E em mim, num mar que não tem tempo ou spaço, Vejo entre a cerração teu vulto baço Que torna. Não sei a hora, mas sei que há a hora, Demore-a Deus, chame-lhe a alma embora Mistério. Surges ao sol em mim, e a névoa finda: A mesma, e trazes o pendão ainda Do Império. Fernando Pessoa, op. cit., p. 61.

1. O título «A Última Nau» apresenta um duplo sentido. Explicita-o. 2. Explica o contraste existente entre o povo português e o sujeito poético na terceira estrofe. 3. Considerando a primeira e a última estrofes, comprova que o poema está estruturado em forma de viagem, de ida e volta da «última nau», explicitando o estado de espírito geral, patente no início, e o do sujeito poético, nos versos finais. 4. Indica de que forma o mito sebastianista está presente ao longo do poema, fundamentando a tua resposta com elementos textuais.

FI

O Sebastianismo p. 145

Educação Literária 14.1; 14.2; 14.3; 14.4; 14.6; 14.9; 15.1; 15.7.

Educação Literária 1. «A Última Nau» foi a que conduziu D. Sebastião rumo a Alcácer Quibir, onde pereceu: simboliza a morte do rei, a queda do Império (a sua última nau) e a perda da identidade/independência portuguesa. 2. O povo português encontra-se num estado de apatia, sem ânimo («ao povo a alma falta», v. 13), contrariamente ao sujeito poético, que, eufórico e estimulado pelos exemplos míticos do passado («a minha alma atlântica se exalta», v. 14), sente despertar em si um nacionalismo também mítico («E entorna», v. 15), ao vislumbrar no seu interior o regresso do rei, embora «vulto baço», e a regeneração nacional num reino espiritual, pois «não tem tempo ou espaço» (v. 16). 3. Na primeira estrofe, a «última nau» «foi-se», levando «a bordo D. Sebastião» e o Império que este representa («alto o pendão / Do Império»), rumo ao «Mistério». Esta viagem de ida provoca no povo uma tristeza profunda, como que se pressagiasse a tragédia iminente («sol aziago / Erma», «ânsia e de pressago / Mistério»). Na última estrofe, a «mesma» nau traz D. Sebastião do «Mistério» («Surges») e o Império que representa («trazes o pendão ainda / Do Império»). O sujeito poético exibe a certeza de que o regresso do Rei será uma realidade, apesar de ocorrer num futuro incerto («Não sei a hora, mas sei que há a hora»), revelando confiança e esperança («ao sol», «a névoa finda»). 4. O mito sebastianista está presente no desaparecimento misterioso da «última nau» e de D. Sebastião (vv. 1, 4 e 7) e na associação destes ao fim do Império português (vv. 2-4); nos presságios de desgraça associados à partida (vv. 4-6); na incerteza quanto ao destino do Rei (vv. 7-8); na expectativa quanto ao seu regresso (vv. 8-12; 17-18; 22-24).

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Unidade 1 // FERNANDO PESSOA

FICHA INFORMATIVA 4 6 O imaginário épico: natureza épico-lírica da obra

PROFESSOR

MC

Leitura 7.1; 7.3; 8.1.

1. Poesia epo-lírica

Educação Literária 14.4. Consolida 1. «Mar Português» – discurso épico: valorização dos sacrifícios e da capacidade de superação dos obstáculos na conquista do mar, visível no uso narrativo da 3.a pessoa («[…] quantas mães choraram, / Quantos filhos em vão rezaram! / Quantas noivas ficaram por casar»), veiculando uma visão heroica e mítica dos seus protagonistas e de Portugal («Para que fosses nosso, ó mar!», «Mas nele é que espelhou o céu»); discurso lírico: expressão da subjetividade, num discurso de 1ª pessoa: os sentimentos do sujeito poético perante a dor provocada pela conquista do mar («Ó mar salgado, quanto do teu sal / São lágrimas de Portugal!»; «Para que fosses nosso, ó mar!»); redução da matéria épica a imagens simbólicas («Bojador»: os obstáculos a ultrapassar para obtenção da glória; «o perigo e o abismo»: os sacrifícios da empresa marítima; «espelhou o céu»: a glorificação).

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A poesia da Mensagem é uma poesia épica sui generis, melhor diríamos epo-lírica, não só pela forma fragmentária como pela atitude introspetiva, de contemplação no espelho da alma, e pelo tom menor adequado. […] Dum modo geral interioriza, mentaliza a matéria épica, integrando-a na corrente subjetiva, reduzindo essa matéria a imagens simbólicas pelas quais o poeta liricamente se exprime. Há assim na Mensagem uma dupla face de tédio e ansiedade, de cética lucidez e intuição divinatória. Jacinto do Prado Coelho, «Mensagem», in Dicionário de Literatura: Literatura Portuguesa, Literatura Brasileira, Literatura Galega, Estilística Literária, vol. 2, Porto, Figueirinhas, 1989, p. 635.

2. Discurso épico e discurso lírico Características do discurso épico • Exaltação de acontecimentos memoráveis e extraordinários, capazes de interessar a um povo e mesmo à própria humanidade, veiculando uma visão heroica do mundo. • A ação situa-se num passado histórico, em que se desenrolaram as ações pela consolidação do poder de uma nação. • O presente surge como o resultado consequente desse passado remoto e mítico que se projeta, por sua vez, no futuro, através das realizações e proezas dos heróis, mediante momentos de visão profética, nos quais a vontade divina se revela, deixando antever um porvir glorioso. • Protagonistas de alta estirpe (social e moral) que se impõem como seres superiores, de qualidades excecionais, capazes de executarem feitos extraordinários, gloriosos e singulares – mitificação do herói. • O recurso ao maravilhoso confere grandeza à ação e transpõe a verdade histórica para a dimensão do mito.

Fontes:

• Uso narrativo da terceira pessoa.

• Carlos Reis, O Conhecimento da Literatura, 2.ª ed., Coimbra, Almedina, 2008. • José Augusto Cardoso Bernardes, «Lírico (Modo)», in José Augusto Cardoso Bernardes et al. (dir.), Biblos, Enciclopédia das Literaturas de Língua Portuguesa, vol. 3, Lisboa, Editorial Verbo, 1999. • Manuel Ferro, «Epopeia», in José Augusto Cardoso Bernardes et al. (dir.), Biblos, Enciclopédia das Literaturas de Língua Portuguesa, vol. 2, Lisboa, Editorial Verbo, 1999.

Características do discurso lírico • Poemas breves que encerram um valor próprio e isolados dos restantes. • Interiorização, mentalização da matéria épica, que é reduzida a imagens simbólicas através das quais o sujeito poético se exprime. • Expressão da subjetividade: presença frequente da primeira pessoa do presente e consequente hegemonia da função emotiva (expressão ou representação de sentimentos). • Confluência íntima entre o eu e o mundo, o tempo e o espaço.

CONSOLIDA

1. Identifica, no poema «Mar Português», características do discurso épico e do discurso lírico, transcrevendo exemplos significativos.

Mensagem

TERCEIRA PARTE – O ENCOBERTO

PAX IN EXCELSIS

Está imbuída de desejos e sonhos de um Portugal novo, perante o espetáculo deprimente de uma Nação decaída. É o Sebastianismo a criar expectativas – o ar, o vento, o sopro vital, a aragem, o sonho, que trazem em si memórias do passado para a recriação do presente. Ar, símbolo do futuro, que começa pelo sonho até à glorificação e reino de felicidade, trazidos pelo Encoberto: os Símbolos, as cinco máscaras da utopia nacional («D. Sebastião», «O Quinto Império», «O Desejado», «As Ilhas Afortunadas», «O Encoberto»), os Avisos dos três grandes arautos do messianismo português («O Bandarra», «António Vieira» e Fernando Pessoa), os Tempos, que se desenvolvem de acordo com uma evolução dialética («Noite», «Tormenta», «Calma», «Antemanhã» e «Nevoeiro»). Fontes: António Apolinário Lourenço (ed.), Fernando Pessoa, Mensagem, Braga, Angelus Novos, 1994; J. Oliveira Macêdo, Sob o Signo do Império, Porto, Edições Asa, 2002.

EDUCAÇÃO LITERÁRIA

O Quinto Império

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Triste de quem vive em casa, Contente com o seu lar, Sem que um sonho, no erguer de asa, Faça até mais rubra a brasa Da lareira a abandonar!1

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Triste de quem é feliz! Vive porque a vida dura. Nada na alma lhe diz Mais que a lição da raiz – Ter por vida a sepultura.

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Eras sobre eras se somem No tempo que em eras vem. Ser descontente é ser homem. Que as forças cegas se domem Pela visão que a alma tem!

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E assim, passados os quatro Tempos do ser que sonhou2, A terra será teatro Do dia claro, que no atro3 Da erma noite começou.

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Grécia, Roma, Cristandade, Europa — os quatro se vão Para onde vai toda idade. Quem vem viver a verdade Que morreu D. Sebastião? Fernando Pessoa, op. cit., p. 72.

CD 1 Faixa n.0 24

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PROFESSOR

MC

Educação Literária 14.1; 14.2; 14.3; 14.4; 14.8; 14.9; 15.1. Escrita 10.1; 11.1; 12.1; 12.2; 12.3; 12.4; 12.5; 12.6; 13.1.

Educação Literária 1.1 Primeira parte (duas primeiras estrofes): o sujeito poético reflete acerca da apatia do ser humano, lamentando a vida daqueles que levam uma existência medíocre, conformista, sem quaisquer ambições. Segunda parte (terceira estrofe): apresenta uma constatação e um desejo – o tempo não para e as eras sucedem-se porque o homem é um ser insatisfeito; o sujeito almeja que o homem abandone a ambição cega da conquista da materialidade e procure a plenitude existencial. Terceira parte (duas últimas estrofes): apresenta o anúncio de uma nova era, de um novo império – o Quinto Império. 2. Os versos 1, 2 e 6 são aparentemente paradoxais por apresentarem ideias contrárias: «triste» quem é «contente» e «Triste de quem é feliz!». No entanto, aqueles, a quem o sujeito poético alude, estão realmente contentes e felizes, ele é que os considera tristes pelas razões que expõe ao longo das duas estrofes. Na primeira estrofe, por se contentarem com a mediocridade, com a banalidade do dia a dia e com o aconchego do lar, sem ousarem sonhar, recusando quaisquer sinais de partida. Na segunda estrofe, por aceitarem a vida tal como esta lhes surge, limitando-se a sobreviver, num total imobilismo, sem qualquer desejo de ação.

1 vv. 4-5: referência a um antigo costume

romano: sempre que mudavam de cidade, os romanos levavam parte das brasas que ardiam nas lareiras das suas antigas casas para as novas, para manter viva a ligação à respetiva terra de origem. 2 vv. 16-17: referência bíblica (Daniel 7, 1-8): interpretação do sonho de Nabucodonosor, rei da Babilónia, com uma estátua feita de vários materiais que representariam quatro impérios. 3 Atro: negro; funesto.

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Unidade 1 // FERNANDO PESSOA

PROFESSOR

3. O verso 13 encontra-se no centro do poema, salientando a condição essencial para a mudança, para o avanço, para o progresso: a insatisfação humana, a sua capacidade de sonhar, de lutar pelos seus ideais. O mundo avança, não com o conformismo, mas com a vontade de alcançar sempre mais e de ir mais longe. 4. O conector «assim» apresenta um valor conclusivo, neste caso, das ideias expressas na estrofe anterior. É assim, ou seja, através do descontentamento humano, da sua insatisfação, que as «eras» se sucedem, tendo passado «os quatro / Tempos do ser que sonhou», anunciando-se um novo tempo. 5. Estes versos estabelecem um contraste, através da antítese, entre um passado de trevas, de isolamento («atro / Da erma noite») e um futuro de luz, um Quinto Império («o dia claro») que se avizinha («começou») e que sucederá aos «quatro / Tempos». Atente-se na metáfora «A terra será teatro / Do dia claro» a transmitir a ideia de que o mundo assistirá ao surgimento deste novo Império, que terá como centro Portugal. 6. A interrogação tem o sentido de apelo, um apelo à construção do Quinto Império que se distinguirá dos anteriores por ser civilizacional e espiritual, um Império da «verdade» e da paz universal. Este novo tempo dependerá do regresso de D. Sebastião, enquanto mito, pois «O mito é o nada que é tudo» (poema «Ulisses»).

1. O poema pode ser dividido em três partes lógicas. 1.1 Delimita-as e sintetiza o conteúdo de cada uma delas. 2. Explicita o modo como o sujeito poético fundamenta o aparente caráter paradoxal dos versos iniciais das duas primeiras estrofes (vv. 1-2 e 6). 3. Justifica a centralidade do verso 13. 4. Estabelece uma relação entre o conector que introduz a terceira parte do poema e a Recursos expressivos estrofe imediatamente anterior. SIGA p. 383

5. Explica, por palavras tuas, o sentido dos três últimos versos da quarta estrofe, relacionando-os com o uso da metáfora e da antítese.

FI

O Sebastianismo p. 145

6. Interpreta o sentido da interrogação que encerra o poema.

ESCRITA

Apreciação crítica

Apreciação crítica SIGA pp. 362-363

1. Observa o cartoon de Jota A.

▪ Imagem Cartoon Paz, de Jota A. ▪ Apresentação em PowerPoint Correção da atividade de Escrita Escrita Sugestão de tópicos: – Descrição sucinta do cartoon: a pomba da Paz a sobrevoar uma cidade, num avião comandado por si, lançando armas com o respetivo cano contorcido, de forma a inviabilizar a sua utilização. – Relação com o Império a edificar, implícito no poema «O Quinto Império»: o cartoon apresenta um apelo à Paz no Mundo, pela inutilização das armas, pela sua destruição, e o poema apresenta, também, um apelo à ação, à criação de um Império de Paz e de fraternidade universal, um Império da «verdade». – Comentário crítico: perante a violência a que diariamente assistimos, seja nos inúmeros países que se encontram em guerra, seja nos ataques terroristas que têm assolado o mundo, ou ataques individuais, pela facilidade de aquisição de armas, o cartoon recorre a ícones comuns à humanidade, a pomba da Paz e o lançamento de armamento, num apelo à recusa de tudo quanto é bélico.

Jota A., Paz, in World Press Cartoon, Sintra, 2010, Lisboa, 2010, p. 280.

1.1 Redige uma apreciação crítica, tendo em conta os seguintes aspetos: • descrição sucinta do cartoon; • relação com o Império a edificar, implícito no poema «O Quinto Império»; • comentário crítico. Entrega o teu trabalho em formato digital, estruturado graficamente de forma a ser publicado. Solicita ao teu professor que te disponibilize o cartoon para integrares no teu texto.

Ficha informativa

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FICHA INFORMATIVA 5 O Sebastianismo

PROFESSOR

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1. D. Sebastião e o «Encoberto»

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O sebastianismo não diz necessariamente respeito apenas a D. Sebastião, pois que, numa perspetiva mais vasta, se trata de um mito messiânico, isto é, de um mito que se funda na esperança da vinda de um Salvador, que virá libertar o povo e restaurar o prestígio nacional. […] D. Sebastião que há de regressar é o «Encoberto» do Bandarra, é um espectro1, uma ideia, um símbolo, uma possibilidade de redenção2 da Pátria; nada tem a ver com o rei que o D. Sebastião fisicamente foi. A Mensagem distingue-os de forma lapidar3: o D. Sebastião ente histórico é o «ser que houve», que morreu em Alcácer Quibir; o D. Sebastião que, Encoberto, há de regressar é o «ser que há», isto é, o que vive na lenda que fecunda o sonho e a loucura, vividos como energia criativa […]. É no que ele [o mito] tem de arquetípico4 que a identidade nacional se revê: de um lado, a espera inconsequente que acentua o nosso atraso, do outro, a procura da revitalização nacional, sob o estandarte de um sonho comum. É no inconsciente nacional que o mito do Encoberto se guarda; é o desejo latente de renovação nacional que promove o seu regresso. […] O mito do Encoberto […] emerge na Mensagem como um verdadeiro mito nacional, núcleo do profetismo que encharca a Terceira Parte da obra. E, como todos os mitos, «afeta o homem na sua totalidade, não se dirigindo apenas ao intelecto, mas tocando-lhe o coração, incentivando-lhe a imaginação e motivando-lhe a vontade» […]. Apresenta-se como um motor poderoso do processo histórico, torna-se o sonho pelo qual vale a pena viver. Por isso, a Mensagem pode proclamar a sua fé inabalável no Quinto Império e no futuro que este deixa adivinhar. O futuro que começa com o grito redentor − «É a hora!» − com que a obra termina.

Leitura 7.1; 7.3; 7.4; 8.1.

Lima de Freitas, Painel de azulejos da Estação do Rossio, Lisboa, D. Sebastião: o Encoberto (pormenor), 1995.

Artur Veríssimo, «Sebastianismo», in Dicionário da Mensagem, Lisboa, Areal Editores, 2000, pp. 124-126.

2. O Quinto Império

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Na Mensagem, tudo parece confluir para a ideia de Quinto Império, seja em considerações paradoxalmente tecidas de luz e de mistério, seja pelo recurso à profecia ou à simbologia ocultista5 que atravessa a obra. O Império da procura pessoana é espiritual e constrói-se na esfera de uma identidade cultural, um império que a vontade e a esperança transformadoras hão de por força (re)criar contra a decadência presente. O Quinto Império, o da paz universal, pressupõe o regresso de um Messias. Quem poderia ser o eleito senão D. Sebastião? Por isso, o eu da Mensagem, do fundo da sua inquietação e do seu irredutível inconformismo, anseia por esse regresso de D. Sebastião, que enverga já as vestes do Desejado, […] antes de, dando forma ao sonho e à esperança, se realizar como o mito português do Encoberto, ou seja, como vida, como despertar da Nação adormecida. Artur Veríssimo, «Império (Quinto)», op. cit., pp. 65-68.

1 Espectro: fantasma 2 Redenção: libertação; resgate; sal-

vação. 3 Lapidar: conciso; nítido; claro. 4 Arquetípico: modelar. 5 Ocultista: o ocultismo defende

«que o mundo invisível é fator e criador perpétuo do mundo visível, isto é, que toda a realidade exterior corresponde a uma outra que, participando do mistério, é interior e a cujo conhecimento não se acede por via da ciência. O que no mundo visível (plano exotérico) tem existência vive, no mundo invisível (plano esotérico), como essência em condições de eternidade (Artur Veríssimo, «Ocultismo», in Dicionário da Mensagem, Lisboa, Areal Editores, 2000, p. 102).

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Unidade 1 // FERNANDO PESSOA

PONTO DE PARTIDA PROFESSOR

MC

Oralidade 1.1; 1.3; 3.1; 5.1; 5.2; 5.3; 6.1; 6.2; 6.3. Educação Literária 14.1; 14.2; 14.3; 14.4; 14.7; 14.9; 15.3; 15.7; 16.2. Gramática 17.1; 18.2.

1. Procede a uma audição atenta da canção «Amor a Portugal», de Dulce Pontes, do álbum Momentos (2010). Associa, sucintamente, a letra da canção à Terceira Parte da Mensagem, «O Encoberto». EDUCAÇÃO LITERÁRIA

Ponto de Partida

Nevoeiro

▪ Links – «Amor a Portugal», de Dulce Pontes – «Nevoeiro», por Carlos do Carmo ▪ Documento Letra da canção «Amor a Portugal»

Nem rei nem lei, nem paz nem guerra, Define com perfil e ser Este fulgor1 baço da terra Que é Portugal a entristecer – Brilho sem luz e sem arder, Como o que o fogo-fátuo2 encerra.

1. Canção: Portugal na «escuridão», decadente; a crença na força interior do povo, no seu sonho de uma pátria renascida, povo que será conduzido à ação pela força do amor; a certeza de que Portugal se cumprirá pelo poder do Amor. Terceira Parte: Mensagem – crença nas capacidades da alma portuguesa e de que esta, fecundada pelo mito, se erguerá, como no passado. A certeza de um Portugal a cumprir-se, a crença no Quinto Império, um império de Amor entre os homens. Educação Literária 1.1 O sujeito poético aponta a crise generalizada da nação que se encontra num estado de indefinição total, sem ninguém que a governe e sem leis por que se governe, sem tempos de paz, mas também sem conflitos graves («Nem rei nem lei, nem paz nem guerra», v. 1). É um país sem identidade («fulgor baço da terra», v. 3), «Brilho sem luz e sem arder / Como o que o fogo-fátuo encerra», vv. 5-6), que esmorece, que decai («Que é Portugal a entristecer», v. 4). 1.2 a) Enumeração e antítese; b) Metáfora e antítese; c) Antítese, metáfora e comparação. 2.1 Estes versos remetem para uma crise de valores, para a ausência daquilo que define o ser humano: os portugueses não sabem o que são; não sabem o que querem; não sabem distinguir entre o bem e o mal. 2.2 A expressão acentua o contraste entre o desânimo nacional do presente e uma esperança ténue num futuro melhor. No «meio» deste desalento, o sujeito exprime a esperança de que no íntimo de cada um resida um desejo de mudança, uma «ânsia distante», que ainda se encontra longe (talvez perdida no passado), mas que «chora perto», indiciando a proximidade da grande transição, da renovação de Portugal.

5

10

CD 1 Faixa n.0 25

Ninguém sabe que coisa quer. Ninguém conhece que alma tem, Nem o que é mal nem o que é bem. (Que ânsia distante perto chora?) Tudo é incerto e derradeiro. Tudo é disperso, nada é inteiro. Ó Portugal, hoje és nevoeiro... É a Hora! Valete, Fratres.3 Fernando Pessoa, op. cit., p. 91.

1 Fulgor: o brilho, a luz transmitida

ou refletida por qualquer corpo. 2 Fogo-fátuo: luz que aparece à noite, geralmente emanada de terrenos pantanosos ou de sepulturas, e que é atribuída à com-

bustão de gases provenientes da decomposição de matérias orgânicas. 3 Valete, Fratres: saúde, irmãos / Adeus, irmãos.

1. O sujeito expõe, na primeira estrofe, o retrato geral do país.

FI

O imaginário épico p. 142

1.1 Explicita os aspetos caracterizadores de Portugal, apoiando a tua resposta em citações textuais. 1.2 Identifica os recursos expressivos presentes nos seguintes versos: Recursos a) «Nem rei nem lei, nem paz nem guerra» (v. 1). SIGA expressivos p. 383 b) «Este fulgor baço da terra» (v. 3). c) «Brilho sem luz e sem arder / Como o que o fogo-fátuo encerra.» (vv. 5-6).

Mensagem

2. Na segunda estrofe, o sujeito poético procede a uma análise mais pormenorizada do estado de Portugal. 2.1 Explica, por palavras tuas, o sentido dos três primeiros versos. 2.2 Apresenta uma justificação para a ocorrência da expressão parentética no meio da estrofe. 2.3 Interpreta os três últimos versos e relaciona-os com o título do poema, tendo em consideração o valor simbólico do «nevoeiro».

DS

Breve dicionário de símbolos

3. Estabelece uma relação entre o monóstico final e a saudação que encerra a Mensagem, identificando o destinatário dos mesmos.

FI

O imaginário épico p. 142

GRAMÁTICA

1. Classifica os mecanismos de construção da coesão lexical e/ou gramatical destacados nos seguintes versos: Coesão textual SIGA pp. 377-378

a) «Como o que o fogo-fátuo encerra» (v. 6). b) «Nem o que é mal nem o que é bem» (v. 9). c) «Tudo é disperso, nada é inteiro» (v. 12). 2. Atenta no seguinte verso: «Ó Portugal, hoje és nevoeiro...» (v. 13).

FI

Valor aspetual pp. 59-60

2.1 Indica o aspeto gramatical expresso. 2.2 Identifica as formas de expressão do tempo. 3. Classifica as orações destacadas. a) «Este fulgor baço da terra / Que é Portugal a entristecer» (vv. 3-4). b) «Nem o que é mal nem o que é bem» (v. 9). c) «Tudo é disperso, nada é inteiro» (v. 12).

ORALIDADE

EXPRESSÃO ORAL

Coordenação e SIGA subordinação pp. 373-374

Texto de opinião SIGA pp. 364-365

Texto de opinião 1. Procede à visualização da parte final do filme Mensagem, de Luís Vidal Lopes, baseado no livro homónimo de Fernando Pessoa.

• estabelecer um paralelo com a obra que acabaste de estudar.

PROFESSOR

2.3 Os versos 11 e 12 assinalam a indefinição que envolve Portugal, através da anáfora do pronome indefinido «Tudo», associado ao verbo ser («é»), e dos adjetivos «incerto», «disperso»; «nada é inteiro» a exprimir a fragmentação da imagem nacional, para a qual parece não haver esperança («derradeiro»). O desalento é geral e a dispersão, típica do nevoeiro, estende-se a todo o país: «Ó Portugal, hoje és nevoeiro…». O «nevoeiro» surge como metáfora de Portugal, algo indeterminado, indistinto, mas para o qual existe esperança, uma vez que este «nevoeiro», símbolo igualmente do mito sebastianista, representa apenas uma fase, antecedendo uma revelação importante: o Quinto Império. 3. Os destinatários são os portugueses do presente da enunciação. «É a Hora!» afigura-se um grito, um apelo: está na hora de se sair desta tristeza nacional, é a hora da mudança, do desvendar do «Encoberto», da ressurreição de Portugal, da edificação do Quinto Império. Despedindo-se, com a expressão latina «Valete, Fratres», o sujeito acrescenta-lhe um novo sentido: uma exortação aos portugueses, tal como no monóstico, para se reerguerem e lutarem por um Novo Portugal, pela construção de um império de fraternidade humana. Gramática 1. a) Coesão gramatical referencial; b) Coesão gramatical interfrásica; c) Coesão lexical: antonímia. 2.1 Situação genérica. 2.2 Advérbio de tempo «hoje» e a flexão verbal: «és». 3. a) Oração subordinada adjetiva relativa restritiva; b) Orações subordinadas substantivas relativas sem antecedente; c) Orações coordenadas copulativas assindéticas.

▪ Vídeo Sequência final do filme Mensagem, de Luís Vidal Lopes ▪ Apresentação em PowerPoint Correção da atividade de Oralidade

Prepara um texto de opinião, de quatro a seis minutos, no qual deves: • apresentar o teu ponto de vista acerca do final proposto por Luís Vidal Lopes;

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Mensagem (1988) REAL. Luís Vidal Lopes

Oralidade – Ponto de vista: pessoal. – Paralelo filme-obra: • Fernando Pessoa morre, no final do filme, ciente de que era a sua «hora», morrendo contente, «porque tudo é real, tudo está certo». O Poeta, após revisitar toda a Mensagem, e de se ouvir o poema «Nevoeiro», desaparece num barco, rumo ao incerto: veio o Encoberto do nevoeiro, ele parte, no nevoeiro, pois a sua missão foi cumprida. • Na Mensagem, Fernando Pessoa surge como um arauto do messianismo, clamando, no final, «É a hora!», a hora de cumprir Portugal e de ele cumprir o seu desígnio. •…

148

SÍNTESE

Mensagem, Fernando Pessoa

Estrutura simbólica Mensagem Mar Português

Brasão

O Encoberto

Evolução do Império Português

Idade do Pai

Idade do Filho

Idade do Espírito

Os fundadores da nação portuguesa

Os que deram continuidade ao Pai e alargaram o Império

Idade ainda não concretizada, mas já anunciada

As fases da existência

Nascimento/génese

Realização (vida)

Morte e Renascimento (ressurreição)

Prenúncio do «nascimento» de um império espiritual, cultural, de fraternidade humana, de Paz Universal: Quinto Império

O Sebastianismo • Mito gerado à volta da figura do rei D. Sebastião: 1.º Crença do povo no seu regresso, após a derrota em Alcácer Quibir (D. Sebastião ente histórico, o «ser que houve», símbolo da decadência), como salvador da pátria: a possibilidade teórica do regresso físico do rei ajudou a criar a auréola de mito. 2.º O regresso iminente do Encoberto foi garante de sobrevivência política, seja porque congregou sob o mesmo pendão do sonho a Nação destroçada, seja porque estimulou o instinto de conservação nacional, seja ainda porque foi o lugar do refúgio contra uma morte anunciada. 3.º Mito messiânico que se funda na esperança da vinda de um Salvador, que virá salvar e libertar o povo e restaurar o prestígio nacional. • D. Sebastião mítico surge, na moderna poesia portuguesa, como paradigma da loucura heroica, como potenciador da esperança no ressurgimento da Pátria adormecida. • Mito do Encoberto: espectro, ideia, símbolo, o «ser que há», que fecunda o sonho e a loucura – o verdadeiro mito nacional, núcleo do profetismo que impregna a Terceira Parte da Mensagem, impulsionador do homem e, consequentemente, da História.

O Quinto Império

PROFESSOR

▪ Apresentação em PowerPoint Síntese da subunidade

• Império construído na esfera de uma identidade cultural, um império que a vontade e a esperança transformadora hão de por força (re)criar contra a decadência presente, contra a Nação adormecida. • Império civilizacional, de paz universal, espiritual, tendo como centro Portugal, que pressupõe o regresso de um Messias: o D. Sebastião mítico, coordenada simbólica da sua edificação. • Representação mental, uma atitude perante a nação e a nossa própria existência: a procura do nosso ser no mundo, como indivíduos e como Povo historicamente predestinado a recuperar o prestígio perdido.

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O imaginário épico Pátria = nação: conjunto humano unido por instituições comuns, tradições históricas e, acima de tudo, uma língua comum. • Intenção do poeta: transformação da sua pátria (decadente, incapaz de agir coletivamente e virada para um passado glorioso) em «nação criadora de civilização» através do poder do sonho. Exaltação patriótica

• Processo: evocação, com os olhos postos no futuro, dos heróis passados de Portugal, exemplos da vontade de mudança e da capacidade de ação, de modo a influenciar os portugueses, transformando-os em agentes de construção do Portugal futuro. Mensagem: • «Brasão»: a origem predestinada e o património divino a defender. • «Mar Português»: a capacidade criadora de Portugal. • «O Encoberto»: envolto em nevoeiro, mas símbolo do espírito do homem das Descobertas que cada português encerra em si.

Herói: aquele que se eleva acima da medida humana comum na defesa de um ideal, pela sua energia, coragem e sabedoria. Mito: conjunto de valores que não tem tempo nem espaço, contrariamente ao facto histórico concreto, e que tipifica uma situação existencial comum a um povo.

Dimensão simbólica do herói

• Transformação do mito em História: o modo como recria e sonha a vida de um grupo (Ulisses transformou-se em História para os portugueses por aquilo que representa na sua vivência interior; D. Sebastião permanece vivo na nossa memória coletiva como exemplo, como alma representativa de um conjunto de valores essenciais à construção do futuro). • Reconhecimento de um povo nos seus mitos: contributo para a construção de uma memória coletiva e de uma identidade própria, aspetos que prefiguram também um futuro comum. Dois tipos de herói: • o que age por instinto sem apresentar consciência do alcance dos seus atos no futuro. • voluntário, consciente dos seus atos e de ter cumprido um dever contra o Destino. Aspeto comum aos heróis: encontram-se envoltos por um misticismo de algo a cumprir, existem em função do futuro que nebulosamente prenunciam.

Poesia épica sui generis – epo-lírica.

Natureza épico-lírica da obra

• Discurso épico: – passado histórico: exaltação de acontecimentos memoráveis e extraordinários, que veiculam uma visão heroica do mundo, protagonizados por figuras de alta estirpe (social e moral) que se impõem como seres superiores, de qualidades excecionais, capazes de executarem feitos extraordinários, gloriosos e singulares; – presente: o resultado consequente desse passado remoto e mítico que se projeta no futuro; – recurso ao maravilhoso: confere grandeza à ação e transpõe a verdade histórica para a dimensão do mito; – uso narrativo da terceira pessoa. • Discurso lírico: – brevidade dos poemas, que encerram um valor próprio e isolado dos demais; – interiorização, mentalização da matéria épica que é reduzida a imagens simbólicas através das quais o sujeito poético se exprime; – expressão da subjetividade: presença «dominante» da primeira pessoa do presente; – confluência íntima entre o eu e o mundo, o tempo e o espaço.

150

Unidade 1 // FERNANDO PESSOA

Mensagens PROFESSOR

MC

Educação Literária 15.5; 16.2. Escrita 10.1; 11.1; 12.1; 12.2; 12.3; 12.4; 13.1. Oralidade 3.1; 4.1; 4.2; 5.1; 5.2; 5.3; 6.4.

Escrita Mensagens em diálogo Sugestão de tópicos Exaltação patriótica: • Os Lusíadas: enaltecimento da História de Portugal – descoberta do caminho marítimo para a Índia por Vasco da Gama, ação central de Os Lusíadas, e narração dos feitos/ heróis históricos, dignos de glorificação; … • Mensagem: os heróis da Primeira e da Segunda Partes (arquétipos, enaltecidos pelas qualidades: Ulisses, Viriato, D. Sebastião, o Infante,…); «Mar Português: espaço de glória; … Figura de D. Sebastião e os apelos dos Poetas: • Os Lusíadas: D. Sebastião é o ser histórico a quem o Poeta dedica o seu Poema e a quem exorta à renovação de Portugal, à restauração de um império material (perante a decadência que vê da Pátria e dos portugueses, mas reconhecendo que, entre estes, há quem apresente as qualidades dos heróis exaltados); • Mensagem: D. Sebastião é «o ser que há», o mito sebastianista, símbolo da ambição, do sonho de grandeza que dissipará o «nevoeiro» (o Portugal decadente, letárgico), e trará consigo o Encoberto e o Quinto Império, um império espiritual; …

em diÁLogo Ao lermos Os Lusíadas, de Luís de Camões, e Mensagem, de Fernando Pessoa, facilmente verificamos a intertextualidade entre as duas obras. DESAFIO

Redige um texto expositivo, de cento e trinta a cento e setenta palavras, no qual estabeleças um paralelo entre a Mensagem e Os Lusíadas, tendo em consideração os seguintes tópicos: • Exaltação patriótica; • Figura de D. Sebastião; • Apelos dos poetas.

Mensagens

em deBAte Acolhimento dos refugiados – ato humanitário ou imprudente? DESAFIO

Prepara um debate, de trinta a quarenta minutos, sobre o tema apresentado, relacionando-o com os valores subjacentes ao Quinto Império da Mensagem, de Fernando Pessoa. Planifica a tua intervenção oral, tendo em conta as características discursivas do género solicitado e participa oportuna e construtivamente na interação oral. Não esqueças a concisão do teu discurso e o respeito pelos princípios de cortesia.

Mensagens em debate

▪ Apresentação em PowerPoint Debate: sugestões de abordagem ▪ Teste interativo Heterónimos e Mensagem

Amnistia Internacional Internacional, Núcleo de Chaves Chaves, Campanha SOS Europa – as pessoas acima das fronteiras, 2015.

Refugiados na Grécia Grécia, SIC Notícias Notícias, janeiro 2016. Fotografia de Marko Djurica/Reuters.

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GLOSSÁRIO B Bucolismo: representação da paz e perfeição da vida do campo, do espaço dos pastores, da ingenuidade dos costumes, do quotidiano tranquilo, em simples contacto com a natureza. Este ideal de vida contrasta com os sobressaltos e inquietações da vida urbana.

C Construtivismo: movimento artístico do primeiro quartel do séc. XX, que sugeria a construção geométrica das formas, recorrendo a elementos não figurativos e valorizando os aspetos técnicos da obra. Cubismo: movimento artístico fundado por Pablo Picasso (1881-1973) e George Braque (1882-1963), que se caracterizou pelo afastamento da representação tradicional do espaço, defendendo a reprodução simultânea de diferentes planos e ângulos de um objeto.

E Epopeia: poema narrativo longo que representa e celebra um feito heroico de interesse nacional e universal num estilo elevado e sublime. Expressionismo: movimento artístico de vanguarda, do início do séc. XX, que privilegia a visão pessoal do artista e a forma intensamente subjetiva como sente a realidade.

F Futurismo: movimento artístico de vanguarda, que celebra a vida moderna e a tecnologia do futuro. O Futurismo português foi um episódio efémero na renovação artística no país – iniciou-se com uma «sessão futurista» no Teatro República de Lisboa, no dia 14-5-1917, e findou com a publicação da revista Portugal Futurista, que teve um único número, em novembro do mesmo ano.

Modernismo: movimento artístico que designa o período literário português no qual coabitam duas tendências literárias: a que consiste no aprofundamento das correntes literárias de fim de século e a que se alinha com as propostas de rutura das vanguardas.

N Neopaganismo: conjunto de movimentos religiosos modernos influenciados pelas crenças pagãs pré-cristãs da Europa.

O Orpheu: revista emblemática do Modernismo português, que deu nome e expressão a toda uma geração de poetas. Em 1915, a 25 de março (sob a direção de Luís de Montalvor e Ronald de Carvalho) e a 28 de junho (sob a direção de Pessoa e Mário de Sá-Carneiro) saem os dois números da revista Orpheu. Nessa publicação, Pessoa apresenta a peça O Marinheiro e os poemas de Chuva Oblíqua assinados com o seu nome, e ainda, de Álvaro de Campos, o Opiário e as grandes Ode Triunfal e Ode Marítima.

P Paulismo: processo criativo do Modernismo português que se caracteriza pela descrição de impressões complexas, pela associação ou transposição de ideias aparentemente desconexas.

S Sensacionismo: corrente vanguardista, surgida durante o primeiro Modernismo português, que preconizava as sensações como elementos preponderantes de uma experiência.

I

S

Intersecionismo: movimento vanguardista desenvolvido durante o primeiro Modernismo português; defendia que a sobreposição e o cruzamento de planos ou sensações eram elementos predominantes de uma vivência artística.

Vanguarda: (da expressão militar francesa avant-garde) o termo foi utilizado nas primeiras décadas do séc. XX para designar os movimentos artísticos que defendiam a rutura com a tradição cultural europeia.

M

Bibliografia/Webgrafia do Glossário

Misticismo: Crença que assenta na aceitação do conhecimento por intuição, na devoção a uma ideia, a uma causa. Segundo Fernando Pessoa, «significa essencialmente confiança na intuição». «O místico é um homem que sente que não tem em si a força do pensamento para atingir a verdade pelo pensamento», procurando para tal uma via espiritual.

Carlos Ceia (org.), E-dicionário de Termos Literários (disponível em http:// www.edtl.fcsh.unl.pt). Fernando Cabral Martins (coord.), Dicionário de Fernando Pessoa e do Modernismo Português, Alfragide, Editorial Caminho, 2008. Carlos Reis, António Apolinário Lourenço (dir.), História Crítica da Literatura Portuguesa, vol. 8, Lisboa, Editorial Verbo, 2005.

152

Unidade 1 // FERNANDO PESSOA

Grupo I

FICHA FORMATIVA

A Lê atentamente o poema que se segue.

1

D. Dinis

COTAÇÕES Grupo I A 1. 2. 3. B 4. 5.

20 pontos 20 pontos 20 pontos

20 pontos 20 pontos 100 pontos

5

10

Na noite escreve um seu Cantar de Amigo O plantador de naus a haver, E ouve um silêncio múrmuro consigo: É o rumor dos pinhais que, como um trigo De Império, ondulam sem se poder ver. Arroio2, esse cantar, jovem e puro, Busca o oceano por achar; E a fala dos pinhais, marulho3 obscuro, É o som presente desse mar futuro, É a voz da terra ansiando pelo mar. Fernando Pessoa, op. cit., p. 24.

1 D. Dinis: foi o sexto rei de Portugal (1261-

PROFESSOR

Grupo I A 1. D. Dinis é apresentado como poeta/ trovador («[…] escreve um seu Cantar de Amigo») e como «O Lavrador», «O plantador de naus a haver». Esta metáfora remete para os pinheiros mandados plantar por D. Dinis em Leiria e, metonimicamente, para a madeira com que as naus dos Descobrimentos foram construídas. 2. O ato de escrever dá-se à noite, ligando-se ao sonho, ao «silêncio múrmuro consigo», só a si dado a ouvir. O rei «ouve», ou seja, antevê, profeticamente, pela inspiração e pelo sonho, a riqueza e a grandiosidade do «Império» (atente-se no vocábulo «trigo», associado aos «pinhais», a significar alimento, a matéria com que as naus foram construídas). O paradoxo «ondulam sem se poder ver» (sugestão da ondulação do mar) reforça a dimensão simbólica desta figura, ao indiciar-se a realização do sonho: o cumprimento do mar. Assim se dá o ato de fecundação: o rei, ao lançar a semente à terra, cria o material de que se alimentaria o sonho da expansão marítima dos portugueses.

1325). Com o cognome «O Lavrador», pelo impulso que deu à agricultura, nomeadamente com o alargamento do pinhal de Leiria, de onde sairia a matéria prima para a construção das naus, e «Rei Poeta», devido

à sua obra literária. Foi um dos principais responsáveis pela criação da identidade nacional. 2 Arroio: regato. 3 Marulho: ruído produzido pela agitação das ondas do mar.

Apresenta as tuas respostas de forma estruturada. 1. Indica as duas facetas do rei D. Dinis postas em evidência no início do poema, explicitando o valor expressivo da metáfora do segundo verso. 2. Destaca, de forma fundamentada, os aspetos que, na primeira estrofe, remetem para a dimensão simbólica desta figura histórica. 3. Relaciona o conteúdo dos três primeiros versos da segunda estrofe com o sentido das antíteses finais.

Ficha formativa

B Lê o seguinte poema de «O Guardador de Rebanhos», de Alberto Caeiro.

XXXVI E há poetas que são artistas E trabalham nos seus versos Como um carpinteiro nas tábuas!...

5

Que triste não saber florir! Ter que pôr verso sobre verso, como quem constrói um muro E ver se está bem, e tirar se não está!... Quando a única casa artística é a Terra toda Que varia e está sempre bem e é sempre a mesma.

10

15

Penso nisto, não como quem pensa, mas como quem não pensa, E olho para as flores e sorrio... Não sei se elas me compreendem Nem se eu as compreendo a elas, Mas sei que a verdade está nelas e em mim E na nossa comum divindade De nos deixarmos ir e viver pela Terra E levar ao colo pelas Estações contentes E deixar que o vento cante para adormecermos, E não termos sonhos no nosso sono. Alberto Caeiro, Poesia de Alberto Caeiro (ed. Fernando Cabral Martins & Richard Zenith), 3.ª ed., Lisboa, Assírio & Alvim, 2014, p. 72.

4. Explicita o conceito de arte poética apresentado no poema. 5. Apresenta uma interpretação possível para o último verso do poema.

Grupo II Lê o seguinte texto.

Citações

5

Vou falar da receção dos grandes poetas. Um comediante inglês afirmou há dias que a obra de Shakespeare está cheia de clichés e de banalidades. Citou vários exemplos: «To be or not to be... », «My kingdom for a horse...», «Brave new world...» e assim por diante. Traduzi logo essa irrefutável constatação para o equivalente português de Camões e de Fernando Pessoa. N’Os Lusíadas é um ver se te avias e o Pessoa vai pelo mesmo caminho sobretudo quando também dá jeito para o patriotismo. O Camões já era utilíssimo para se perceber na praia onde a terra acaba e o mar começa, mas agora graças ao Pessoa também se ficou a saber que o mar é salgado por causa das nossas mães terem chorado tanto. Quanto a mim a culpa é

153

PROFESSOR

3. O «cantar» de D. Dinis, o seu sonho, ainda é um «arroio», um regato «jovem e puro», nos inícios da sua existência, que corre em direção a um «Oceano por achar», isto é, deste ato de sonhar, ainda em embrião, surgirá a necessidade de lhe dar continuidade até à concretização. Os pinhais, a sua «fala», que surge ao rei como «marulho» ainda longínquo, representam o presente, «a voz da terra», o criar das condições para que o «mar futuro se cumpra», para que o sonho («ansiando pelo mar») se concretize. D. Dinis é apresentado como uma espécie de intérprete de uma vontade superior: o seu ato criador do presente assume-se como uma promessa de um futuro grandioso que se cumprirá («Deus quer, o homem sonha, a obra nasce»). B 4. Compara-se, ironicamente, a arte de alguns «poetas que são artistas» ao labor artesanal e manual de um «carpinteiro» ou de «quem constrói um muro». Esta tarefa exige-lhes uma revisão constante do seu trabalho, com sucessivas retificações («E ver se está bem, e tirar se não está!…»). O eu lírico tem pena deles e lastima esta ars poetica – «Que triste não saber florir!». Este lamento representa, simultaneamente, a sua conceção de escrever poesia – tão natural como florir –, tendo como inspiração a Natureza («Quando a única casa artística é a Terra toda / Que varia e está sempre bem e é sempre a mesma.»). 5. Alberto Caeiro recusa o pensamento, a metafísica, os conceitos filosóficos e tudo o que não pode ser apreendido, alcançado através das perceções sensoriais. Este verso vai ao encontro dessa «antifilosofia»: a abolição dos sonhos no sono é a erradicação de qualquer vestígio de racionalização/intelectualização, dado que os sonhos são manifestações do nosso inconsciente no nosso consciente.

154

Unidade 1 // FERNANDO PESSOA

10

FICHA FORMATIVA 15

COTAÇÕES Grupo II A 1.1 1.2 1.3 1.4 1.5 1.6 1.7 2.1 2.2 2.3

5 pontos 5 pontos 5 pontos 5 pontos 5 pontos 5 pontos 5 pontos 5 pontos 5 pontos 5 pontos

20

25

toda deles, quem os mandou escrever entre aspas? O pior é que às vezes as citações sem aspas se despegam do contexto e resultam em disparate. No caso de Fernando Pessoa um dos mais despegados disparates é esse negócio que vem sempre a despropósito de a língua portuguesa ser a pátria dele (ou minha, ou tua, ou de quem a apanhar) quando o que o desassossegado fingidor estava a dizer era que não tinha nenhum sentimento político ou social e que nada lhe pesaria que invadissem ou tomassem Portugal (mentiroso!), desde que não o incomodassem pessoalmente e não usassem a sintaxe errada e a ortografia sem ípsilon. De modo que quem o cita sem aspas é que deveria ter mais cuidadinho com a pátria e com a língua. Quanto ao mar salgado pelas lágrimas da mamã, vejam só no que resultou. Estava eu num voo para o Brasil quando oiço um murmúrio ao meu lado. Pensei que era a colega que também ia ao congresso a rezar com medo das poças de ar. Erro meu e alguma má fortuna, porque a meio da ladainha a douta compatriota desencostou a cabeça da janela donde contemplava o ignoto mar oculto pelas nuvens e exclamou, a querer partilhar comigo o seu proprietário amor ardente: «Para que fosses nosso / oh mar!» E eu? Esta vida de bordo há de matar-me. Eu nada. Mas a ponderar num silêncio com aspas que nessas coisas, como aliás em todas, nunca se deve ser dogmático. Salvo erro, naturalmente. Hélder Macedo, «Citações», in Richard Zenith (org.), Fernando Pessoa: o editor, o escritor e os seus leitores, Fundação Calouste Gulbenkian, 2012, p. 24.

50 pontos Grupo III 50 pontos

1. Para responderes aos itens de 1.1 a 1.7, seleciona a única opção que permite obter uma afirmação correta.

1.2 (C).

1.1 Ao referir, no início do texto, «Vou falar da receção dos grandes poetas» (l. 1), o autor pretende (A) criticar o modo como os escritores são acolhidos em vários locais. (B) criticar o modo como muitas expressões são estereotipadas. (C) enaltecer os portugueses relativamente aos ingleses. (D) enaltecer a transformação de determinadas expressões em lugares-comuns.

1.3 (D).

1.2 Segundo o autor, as citações sem aspas de Pessoa conduzem, invariavelmente,

PROFESSOR

Grupo II 1.1 (B).

1.4 (B). 1.5 (C). 1.6 (A). 1.7 (D). 2.1 Oração subordinada substantiva relativa sem antecedente. 2.2 Relação de simultaneidade. 2.3 Complemento oblíquo.

(A) (B) (C) (D)

ao uso incorreto da sintaxe. à interpretação de que o mar é salgado por causa das lágrimas das mães. a uma interpretação errada da intencionalidade deste. à conclusão de que o poeta queria que invadissem ou tomassem Portugal.

1.3 O autor, ao longo do texto, revela-se profundamente (A) (B) (C) (D)

dogmático. tolerante. autoritário. irónico.

1.4 O uso do parênteses em «(mentiroso!)» (l. 16) (A) (B) (C) (D)

apresenta uma conclusão do autor. introduz um aparte do autor do texto. destaca um aparte de Pessoa. introduz uma explicação do autor.

Ficha formativa

155

PROFESSOR

1.5 Na expressão «num silêncio com aspas» (l. 25), o autor utiliza uma (A) (B) (C) (D)

Sugestão de tópicos:

hipérbole. antítese. metáfora. metonímia.

1.6 O aspeto gramatical presente em «Um comediante inglês afirmou há dias […]» (l. 2) expressa (A) (B) (C) (D)

um valor perfetivo. um valor imperfetivo. uma situação habitual. uma situação iterativa.

1.7 Os vocábulos destacados na frase «Quanto a mim a culpa é toda deles, quem os mandou escrever entre aspas?» (ll. 9-10) contribuem para a construção da coesão (A) (B) (C) (D)

interfrásica. lexical. frásica. referencial.

2. Responde de forma correta aos itens apresentados. 2.1 Classifica a oração «quem o cita sem aspas» (l. 17). 2.2 Indica a relação de ordem cronológica presente em «Estava eu num voo para o Brasil quando oiço um murmúrio ao meu lado» (ll. 19-20). 2.3 Identifica a função sintática do vocábulo destacado em «a querer partilhar comigo o seu proprietário amor ardente» (ll. 23-24).

Grupo III

5

Grupo III

Chegou o tempo de existirmos e nos vermos tais como somos. […] Aceitemo-nos com a carga inteira do nosso passado que de qualquer modo continuará a navegar dentro de nós. Mas não autorizemos ninguém a simplificar e a confiscar para benefício dos privilegiados da fortuna, do poder ou da cultura, uma imagem de Portugal mutilada e mutilante através da qual nos privemos de um futuro cuja definição e perfil é obra e aposta da comunidade inteira e não dos seus guias providenciais. Eduardo Lourenço, O Labirinto da Saudade, 7.ª ed., Lisboa, Gradiva, 2010, pp. 116-117.

Considerando o excerto acima transcrito, num texto de opinião bem estruturado, de duzentas a trezentas palavras, apresenta o teu ponto de vista sobre a rejeição da subserviência (obediência incondicional) e a apologia da ação (atitude interventiva) comum enquanto impulsionadoras da mudança e do progresso de Portugal. Fundamenta o teu ponto de vista recorrendo, no mínimo, a dois argumentos, e ilustra cada um deles com, pelo menos, um exemplo significativo.

• A «carga inteira do nosso passado» faz parte do povo português, «continuará a navegar dentro de nós», devendo ser encarada como uma lição de erros a não repetir, de atitudes e de atos individuais e/ou coletivos a adaptar aos novos tempos; • A imagem negativa desse passado, «mutilada e mutilante», por ser, muitas vezes, arma dos mais poderosos para influenciar e conduzir a vontade de um povo, não pode ser justificação para um estado de apatia e de letargia, nem condicionar a atuação dos cidadãos: o «futuro cuja definição e perfil é obra e aposta da comunidade inteira e não dos seus guias providenciais»; • A rejeição da subserviência, isto é, da aceitação tácita, servil e muitas vezes aduladora de quaisquer resoluções internas e externas que afetam o país, é um dos exemplos a retomar desse passado longínquo, anterior a Alcácer Quibir, pois conduziu à fundação, cimentação e alargamento de um Império; • A apologia da ação comum, da união de forças (culturais, políticas, científicas, humanitárias,…), e não individual, lutando cada um por si e para si, é determinante para a mudança e para o progresso de Portugal; •…

▪ Ficha formativa Soluções para projeção

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CONTOS

EDUCAÇÃO LITERÁRIA

Contextualização histórico-literária Manuel da Fonseca, «Sempre é uma companhia»

• Caracterização das personagens. Relação entre elas • Solidão e convivialidade • Importância das peripécias inicial e final • Caracterização do espaço: físico, psicológico e sociopolítico Maria Judite de Carvalho, «George» • A complexidade da natureza humana • Metamorfoses da figura feminina • As três idades da vida • O diálogo entre realidade, memória e imaginação • Linguagem, estilo e estrutura: – o conto: unidade de ação; brevidade narrativa; concentração de tempo e espaço; número limitado de personagens – a estrutura da obra – discurso direto e indireto – recursos expressivos LEITURA Exposição sobre um tema COMPREENSÃO DO ORAL Registos áudio e audiovisuais EXPRESSÃO ORAL Texto de opinião Debate ESCRITA Texto de opinião Apreciação crítica GRAMÁTICA Semântica – valor temporal – valor modal Discurso, pragmática e linguística textual – sequências textuais

Maurice de Vlaminck, Paisagem com Caminho, s.d.

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mensaGens CrUzadaS Teolinda Gersão estudou nas Universidades de Coimbra, Tübingen e Berlim,e foi professora na Universidade Nova de Lisboa, antes de se dedicar à escrita a tempo inteiro. Ganhou numerosos prémios literários e foi escritora-residente na Universidade de Berkeley. É autora de 17 livros e está traduzida em 14 países.

O conto convida(-te)

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Gostas tanto de ler que trazes sempre um livro contigo? Na tua idade (e até hoje) eu era como tu! Recomendo-te, além dos portugueses, autores como Maupassant, Machado de Assis,Tolstoi, Dostojevsky, Tchekov, Clarice Lispector, Truman Capote, Lydia Davies. Borges, que nunca escreveu um romance, considerava o conto uma forma de todos os tempos e sem fim, mesmo que o romance morresse um dia (o que não vai acontecer!) É verdade que os contos existem muito antes da escrita, porque o ser humano precisa de histórias para saber quem é: a literatura não é (só) divertimento, é uma tentativa empenhada de perceber o mundo. Ou não gostas de ler, só lês quando és obrigado/a? Nem imaginas o que tens perdido!... Os contos são ideais para ti: são breves, as situações chegam depressa a um desfecho por vezes surpreendente. Podes lê-los em qualquer parte, autocarro, sala de espera, combóio... Vais lembrar-te dos que te provocaram ou comoveram. Como se abrisses uma mensagem. Se não desistires, vais entender, sim. Há mensagens que nos ficam na memória, mesmo que não queiramos.

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Leste na infância um conto cuja mensagem era: só podes contar contigo? Se não leste, vai (re)lê-lo agora, é um conto para todas as idades, que revela uma verdade universal e dura: Não esperes sentado que a vida te apareça feita, se não a fizeres tu mesmo nunca serás nada. Tens 17 ou 18 anos, a infância acabou, este mundo não é para quem anda à deriva ou depende dos outros. Aprende a ser autónomo, vai à luta. E não contes com ninguém, conta CONTIGO. Como se chama este conto de Grimm? Os dez anõezinhos da tia Verde-Água. Claro (como água!) Não te limites a sorrir, nem encolhas os ombros. Lê o conto de novo, deixa-o entrar em ti. E vou ainda dizer-te outra coisa verdadeira, ouve-a bem, porque depois vou-me embora: Nenhum texto literário é para ser lido apenas uma vez.

Teolinda Gersão (texto inédito, 2017) Por vontade expressa da autora, os seus textos não seguem o AO 90.

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Pedro Mexia Nasceu em Lisboa, em 1972. Licenciou-se em Direito na Universidade Católica Portuguesa. Foi crítico e cronista nos jornais Diário de Notícias e Público; escreve atualmente no semanário Expresso. Participa no programa de comentário Governo Sombra (TSF – TVI24), e tem também um programa semanal na rádio Radar e uma rubrica de cinema na Antena 3. Foi subdiretor e diretor interino da Cinemateca Portuguesa. Publicou sete livros de poesia, sete coletâneas de crónicas, quatro volumes de diários e algumas traduções de poesia e prosa. Encenou duas peças de teatro. Coordena a coleção de poesia das Edições Tinta da China. Integrou recentemente o júri do Prémio Camões.

Duas solidões 5

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A solidão em Manuel da Fonseca é a solidão do Portugal profundo. Uma aldeia do Alentejo, esquecida, vagarosa, mergulhada numa «magoada penumbra», uma aldeia onde «o entardecer demora anos». Batola é uma personagem castiça, como a alcunha sugere. Um homem que tem medo da mulher com quem se casou. Um homem ridículo e raivoso, que se vinga das humilhações através da violência. E o conto apresenta essa violência como um dado de facto, trivial naquela sociedade campestre. Manuel de Fonseca, humanista, generoso com as suas personagens, não esconde as situações terríveis em que se encontram, dos ceifeiros exaustos trabalhando de sol a sol aos numerosos suicidas, quase uma epidemia em terras alentejanas. O centro da aldeia é a venda do Batola, a loja ou café local. Um centro onde não se passa nada, os dias todos iguais de cansaço e mudez, à vista da mesma paisagem rasa. A aldeia necessita de um «extraordinário acontecimento», que é na verdade um acontecimento banal: um rádio, comprado à experiência, que traz música, histórias de cidades, notícias da guerra. E basta isto, tão pouco, para dar à solidão aldeã uma ligação ao mundo, às notícias, à política, à festa, até à ideia de comunidade. O rádio traz assunto de conversa, vai matando o tempo, faz companhia. E a possibilidade de uma simples máquina quebrar a isolamento demonstra o estado de solidão funda em que as pessoas se encontravam, gente grata com qualquer novidade, gente tristíssima só de pensar que pode perder o seu único, e fraco, consolo.

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Diferente é a solidão do conto de Maria Judite de Carvalho, uma das grandes ficcionistas portuguesas, melancólica e desesperançada, mesmo quando combativa. A protagonista é uma mulher, George, uma mulher com «nome de homem», nome esquisito, «estrangeiro», talvez um «nome artístico», ou talvez uma abreviatura. Em contraste com a escrita de Manuel da Fonseca, direta e transparente, a prosa de Maria Judite de Carvalho é densa, enigmática. Não diz tudo o que quer dizer, deixa sugestões, alusões, interrogações. George abandonou o lugar onde nasceu. Fez-se à estrada, viveu em cidades, chegou a terras de além-mar. Partiu com uma pequena mala de cabedal, e escolheu o seu destino. Teve amores, dedicou-se à pintura, acumulou experiências inacessíveis aos habitantes de uma vila portuguesa, localidade acanhada, onde cheira a queimado, terra perdida, «cu de Judas». George vive em Amsterdão, cidade cosmopolita, progressista, cidade aberta. Mas pressentimos que é uma forasteira em Amsterdão, que não pertence verdadeiramente. Chegada à meia-idade, a emigrante vem a Portugal vender a casa de família, porque os pais morreram entretanto. É como se se desfizesse do passado. Encontra então uma mulher mais velha e outra mais nova, versões talvez daquilo que ela foi um dia, daquilo que podia ter sido, daquilo que o futuro lhe reserva. George partiu com um desejo de liberdade, mas volta a Portugal, e volta de Portugal, com o antigo sabor a solidão. Pedro Mexia (texto inédito, 2017)

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Unidade 2 // CONTOS

Contextualização histórico-literária Datas e acontecimentos

Textos e obras

1926 Início do período de Ditadura Militar, com o general Gomes da Costa.

1928-1945 Revistas e jornais de matriz ideológica: Liberdade (1928-36), Gládio (1935), Síntese (1939), Seara Nova (1937-40), Vértice (1945), entre outros.

1932 Salazar ascende a chefe de governo da Ditadura Militar. 1936-1939 Guerra Civil de Espanha. 1939 Alemanha invade a Polónia: início da II Guerra Mundial. Salazar declara a neutralidade portuguesa no conflito europeu. 1940 Já aliados, Itália e Alemanha assinam pacto com o Japão. 1941 A Alemanha invade a URSS e Portugal divulga um comunicado congratulando-se por tal facto. Ataque japonês à base de Pearl Harbor dos EUA. 1942 Domínio de quase toda a Europa pelos alemães e seus aliados. Portugal mantém relações político-diplomáticas e económicas com Itália e Alemanha. 1945 Fim da II Guerra Mundial, com a rendição da Alemanha. Criação da ONU com 50 países fundadores, promovendo a cooperação internacional para a paz mundial e a defesa dos direitos humanos dos povos.

1939 Gaibéus, Alves Redol. 1941 Esteiros, Soeiro Pereira Gomes. 1941-1944 «Novo Cancioneiro», coleção de poesia, na qual participaram, p.e., Carlos de Oliveira, Manuel da Fonseca, Mário Dionísio, Fernando Namora, Sidónio Muralha. 1944 Alcateia, Carlos de Oliveira. 1944 O Dia Cinzento, Mário Dionísio. 1945 Casa da Malta, Fernando Namora. 1951 O Fogo e as Cinzas, Manuel da Fonseca. 1958 Seara de Vento, Manuel da Fonseca. 1959 Tanta Gente, Mariana, Maria Judite de Carvalho.

1947 URSS recusa o pedido de Portugal para aderir à ONU por reconhecer que o Estado Novo era um regime fascista.

1973 Tempo de solidão, Manuel da Fonseca.

1955 Portugal entra para a ONU.

1983 Além do Quadro, Maria Judite de Carvalho.

1961-1974 Guerra Colonial Portuguesa.

1995 Seta Despedida, Maria Judite de Carvalho.

1974 Revolução do 25 de Abril e fim de um regime de ditadura.

Contextualização histórico-literária

1. Neorrealismo

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PROFESSOR

Em termos genéricos, o Neorrealismo português constitui um movimento literário desenvolvido entre finais dos anos 30 e finais dos anos 50 do século XX, num contexto particular: vivia-se então o tempo histórico-político do salazarismo1 [...]. Ao movimento neorrealista [...] ligam-se sobretudo escritores, críticos e ensaístas que formam uma geração congraçada2 por alguns fatores comuns: nascidos em grande parte na segunda década do século, tendo-se formado intelectualmente num tempo de crise social e económica muito aguda, seguindo um ideário cultural marxista, manifestando um certo distanciamento (que chega a ser oposição declarada) em relação ao legado modernista, enunciando uma linguagem artística comprometida e antiesteticista, os escritores, críticos e ensaístas que associamos ao Neorrealismo português configuram uma unidade relativa, não isenta de diferenças internas [...]. Títulos significativos: Seara Nova, Cadernos da Juventude, O Diabo, Altitude, Sol Nascente, Síntese, Vértice, etc. [...]. Nessas publicações e naturalmente também para além delas afirmam-se as figuras mais destacadas do Neorrealismo português: Alves Redol, Afonso Ribeiro, Soeiro Pereira Gomes, Manuel da Fonseca, Mário Braga e Carlos de Oliveira [...]. [A]o contrário daquilo que o termo Neorrealismo pode sugerir, ele não foi um simples prolongamento do Realismo literário do século XIX [...]. Com efeito, se existem afinidades entre o Neorrealismo e o Realismo oitocentista, elas situam-se não no plano ideológico, mas no plano ético3: para ambos, trata-se, antes de tudo, de ligar a literatura à sociedade, fazendo dela um instrumento de ativa intervenção social. [...] Importa, aliás, notar que o próprio termo Neorrealismo, como tantas vezes acontece em história literária, não constitui uma designação pacífica [...]. O certo, porém, é que essa foi a expressão que acabou por triunfar e hoje sabe-se bem o que ela designa, na Literatura Portuguesa do século XX: uma projeção, no domínio da criação literária, de orientações culturais ideologicamente fundadas no materialismo histórico4 e dialético; uma análise, através da literatura, da dialética das transformações sociais e em particular da luta de classes, num quadro económico-social capitalista; uma denúncia das contradições que afetavam esse cenário económico-social: a exploração do homem pelo homem, luta pela posse de terra, a sobrevivência de mecanismos de exploração quase feudais, etc. Para além disso, o Neorrealismo tentou também articular certos géneros literários dominantes, o romance e o conto, e determinadas categorias literárias, a personagem e o espaço; procurava-se desse modo incutir vigor persuasivo a uma mensagem literária que se pretendia fortemente interventora [...].

MC

Leitura 7.1; 7.3; 8.1.

Consolida 1. O elo de relação entre as duas correntes literárias estabelece-se, sobretudo, ao nível do plano ético: ambas defendem um papel de intervenção social da Literatura que deveria contribuir para a mudança da sociedade . 2. Por exemplo: denúncia das contradições da sociedade capitalista, transformações sociais, luta de classes, exploração do homem pelo homem, …

▪ Apresentação em PowerPoint Contextualização histórico-literária

1 Salazarismo: ideário político, eco-

nómico e social desenvolvido pelo político português António Oliveira Salazar (1889-1970), de pendor antiliberal, conservador, católico, nacionalista e antidemocrático. 2 Congraçada: unida. 3 Ético: relativo ao código moral, que rege a conduta dos indivíduos em sociedade. 4 Materialismo histórico: tese segun-do a qual, os fatores económicos são a causa de toda a realidade social e histórica e são responsáveis pelas suas transformações.

Carlos Reis, «O Neorrealismo português e a sua evolução», in Carlos Reis (dir.) História Crítica da Literatura Portuguesa, vol. 9, Lisboa, Editorial Verbo, 2005, pp. 15-16.

CONSOLIDA

1. Estabelece uma relação entre Realismo e Neorrealismo. 2. Indica três áreas temáticas de intervenção social da literatura neorrealista.

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Dórdio Gomes, Cabeça de Ceifeiro Alentejano, 1941.

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Unidade 2 // CONTOS

2. A ficção portuguesa do Neorrealismo ao Pós-Modernismo

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A produção narrativa portuguesa subsequente ao Neorrealismo é aqui considerada no que toca àqueles autores, obras e tendências que se estendem até meados dos anos 70, quando a Revolução do 25 de Abril vem criar condições de produção literária distintas das que até então vigoravam. Isto significa que não estará em causa apenas aquela ficção que sucede ao desvanecimento do movimento neorrealista, mas também a que em paralelo o acompanhou, sem com ele se identificar; ao mesmo tempo, os anos 50, 60 e ainda parte dos anos 70 serão, na ficção portuguesa contemporânea, décadas de mudança. [...] Maria Judite de Carvalho é uma das vozes mais significativas dessa renovação [da narrativa portuguesa subsequente ao Neorrealismo]; dotada de um extraordinário talento de contista, associado à singular representação do mundo que, sobretudo nos seus contos, se dá a conhecer [...]. [N]o mundo dos seus contos [...] perpassam pequenas ambições e grandes frustrações, solidões e desencantos calados, tudo projetado num cenário que, sendo marcadamente feminino, é atravessado por um calor humano inesquecível [...]. Carlos Reis, «A ficção portuguesa do Neorrealismo ao Pós-Modernismo», in Carlos Reis (dir.), História Crítica da Literatura Portuguesa, vol. 9, Lisboa, Editorial Verbo, 2005, pp. 235, 243, 244.

3. O Pós-Modernismo e a ficção portuguesa do fim do século Armando Alves, Sem título, 1954.

PROFESSOR

MC

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Leitura 7.1; 7.3; 7.4; 8.1.

Consolida 1. «Isto significa que não estará em causa apenas aquela ficção que sucede ao desvanecimento do movimento neorrealista, mas também a que em paralelo o acompanhou, sem com ele se identificar; ao mesmo tempo, os anos 50, 60 e ainda parte dos anos 70 serão, na ficção portuguesa contemporânea, décadas de mudança.» (ll. 4-8). 2. Dois marcos importantes são a Revolução de 25 de Abril de 1974 e o fim do século, coincidente com o fim do milénio, que se refletem nas «tendências da ficção portuguesa contemporânea», por exemplo: na interação com um presente dividido, desalentado e em discórdia; na projeção literária da vivência (muitas vezes dolorosa) do salazarismo e da Revolução.

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A evolução da ficção portuguesa no último quartel do século XX acha-se balizada por dois marcos cronológicos e, mais do que isso, por aquilo que eles significam na consciência coletiva que os assimila: pela Revolução de 25 de Abril de 1974, acontecimento histórico com profundas implicações no plano da criação literária em geral; e pelo fim do século propriamente dito, tendo em atenção o que ele significou de consciência mais ou menos nítida [...] de uma dupla passagem para outro tempo, ou seja, para o século seguinte e para o novo milénio que com ele veio. [...] [E]ste último quartel de século é fortemente marcado [...] pela crescente abertura a temas, a valores e a estratégias discursivas post-modernistas. [...] [N]ão podemos ignorar que algumas das mais interessantes tendências da ficção portuguesa contemporânea devem muito a um diálogo ativo com o presente histórico de fraturas, conflitos e desencantos a que o último quartel do século XX deu lugar [...]. [A] marca de um tempo que projetou na linguagem, nos seus labirintos e nas suas tensões internas o testemunho das ilusões e desilusões de uma geração que viveu de forma não raro traumática a Revolução e os seus desafios. Carlos Reis, «O Pós-Modernismo e a ficção portuguesa do fim do século», op. cit., pp. 287-299. CONSOLIDA

1. Transcreve do primeiro texto elementos que comprovem que houve vozes literárias paralelas e não coincidentes com o Neorrealismo no panorama nacional. 2. Identifica duas referências históricas do Pós-Modernismo e esclarece de que forma influenciaram a Literatura Portuguesa.

Contextualização literária

Contextualização literária

PROFESSOR

MC

1. O conto

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Educação Literária 14.10.

Definição e características do conto Género do modo narrativo onde convive com outras categorias históricas como o romance, a novela ou a epopeia. É esta convivência com outros géneros dentro do mesmo modo a principal responsável por uma certa miscigenação1 de propriedades discursivas que se verifica em alguns contos.

▪ Apresentação em PowerPoint Contextualização literária

1 Miscigenação: cruzamento.

Henriqueta Maria Gonçalves, «Conto», in José Augusto Cardoso Bernardes et al. (dir.), Biblos, Enciclopédia das Literaturas de Língua Portuguesa, vol. 1, Lisboa, Editorial Verbo, 1999, p. 1267.

Características • Brevidade da ação. Ação

• Concentração dos acontecimentos, sem inserção de intrigas secundárias. • Unidade da ação ou sequência de microações. Fontes:

Personagens

• Número reduzido de personagens, por vezes, próximas da categoria-tipo. • Centralidade de uma das personagens, que dá unidade ao conto.

Tempo

• Brevidade temporal: recurso ao sumário e à elipse. • Desvalorização da pausa descritiva.

Espaço

• Limitação espacial (raramente as personagens se deslocam para outro espaço).

Discurso: modos de expressão

• Predomínio da narração e do diálogo em detrimento dos restantes modos de expressão (descrição,…)

Tendências modernas do conto As tendências modernas do conto revelam características comuns ao romance, merecendo destaque especial o conjunto das seguintes características: • a análise psicológica; • a ambiguidade; • a anedota humorística ao serviço de um certo ceticismo; • a tendência para o experimentalismo; • a acusação do ruído do mundo contemporâneo; • as problemáticas de cunho existencialista; • a interpenetração lírica. Eduardo Viana, Paisagem – Figuras ao Portão, s.d.

• Carlos Reis, Ana Cristina M. Lopes, Dicionário de Narratologia, 7.ª ed., Coimbra, Almedina, 2000. • Henriqueta Maria Gonçalves, «Conto», in José Augusto Cardoso Bernardes et al. (dir.), Biblos, Enciclopédia das Literaturas de Língua Portuguesa, vol. 1, Lisboa, Editorial Verbo, 1999. • Massaud Moisés, Criação Literária, São Paulo, Edições Melhoramentos, 1979.

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Unidade 2 // CONTOS

PROFESSOR

Sugestão de consolidação: Análise do conto «O homem da rua», de Mia Couto, considerando os seguintes tópicos: • características do conto; • classificação tipológica;

Estrutura do conto Numa sequência textual de tipo narrativo procede-se à representação de acontecimentos protagonizados por um ou mais sujeitos, articulam-se os acontecimentos referidos de modo cronológico e causal e opõe-se uma situação inicial a uma situação final, de modo a que a intriga constitua um todo articulado e coeso. Paulo Nunes da Silva, Tipologias Textuais – Como Classificar Textos e Sequências, Coimbra, Almedina, 2012, p. 133.

• características temáticas (tendências modernas do conto); • estrutura (momentos essenciais).

Estrutura do conto

▪ Documento Conto «O homem da rua», de Mia Couto

INTRODUÇÃO

(estes materiais encontram-se disponíveis no Caderno de Apoio ao Professor).

Situação / Peripécia inicial

▪ Apresentação em PowerPoint Correção da atividade

• Exposição do conjunto de circunstâncias com base nas quais se vai desenrolar a intriga: enquadramento geral, apresentando o(s) protagonista(s), o tempo e o espaço (físico, social, cultural...) em que decorre a ação.

DESENVOLVIMENTO

• Acontecimento(s) que altera(m) o equilíbrio e a imobilidade próprios da situação inicial. Complicação

• Constitui a resposta à pergunta «nessa altura, o que é que aconteceu?». • Acontecimento(s) causador(es) de outro(s) que se insere(m) na reação.

Reação

Resolução

• Acontecimento que constitui o nó da ação e que se desenrola até à fase de resolução. • Representa a resposta à questão «qual foi o acontecimento decisivo desta história?». • Inclui o verdadeiro clímax da intriga.

• Carlos Reis, Ana Cristina M. Lopes, Dicionário de Narratologia, 7.ª ed., Coimbra, Almedina, 2000.

• Assinala o fim da narrativa propriamente dita (ou seja, do(s) acontecimento(s) que nela está/estão incluído(s)).

• Paulo Nunes da Silva, Tipologias Textuais – Como Classificar Textos e Sequências, Coimbra, Almedina, 2012.

Silva Porto, A Charneca de Belas ao Pôr-do-Sol, 1879.

CONCLUSÃO

Fontes:

Situação / Peripécia final

• Enquadra o(s) protagonista(s) num novo contexto, revelando, explícita ou implicitamente, de que maneira foi/foram afetado(s) ou modificado(s).

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«Sempre é uma companhia»

MANUEL DA FONSECA

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Como alguns outros escritores da geração neorrealista em que se situa, Manuel da Fonseca é acentuadamente uma vocação poética transportada para a prosa de ficção e, talvez por isso, praticando no género um rigor linguístico e uma contenção narrativa que justificam a qualificação de «classicismo» atribuída à sua obra, sem que se excluam dela a vibração dramática, a intensidade trágica do fatum e a frequente nota picaresca. O poeta e o narrador identificam-se, a tal ponto que se «torna impossível encontrar uma separação essencial entre a sua poesia e a sua prosa de ficção (elas interpenetram-se), como entre o seu conto e o seu romance, as personagens das suas narrativas e as da sua poesia» (Mário Dionísio). Nessa caracterização enquadram-se Aldeia Nova (contos, 1942), Cerromaior (romance, 1943), O Fogo e as Cinzas (contos, 1951), Seara de Vento (romance, 1958), O Anjo no Trapézio (contos, 1968) e Tempo de Solidão (contos, 1973). Escritor alentejano, Manuel da Fonseca é exemplo de «um regionalismo muito peculiar que trouxe para a literatura, com verdade, a atmosfera típica das vilas do Alentejo, mas que a transcende pelo sentido simbólico, de transfiguração poética, com que esse regionalismo é chamado a exprimir uma visão generosa da vida» (Jorge de Sena). A visão reflete uma ideologia, mas, por outro lado, exprime uma personalidade que na literatura intentou e encontrou o estilo poético adequado – o estilo que é o homem na sua natural respiração literária. Jacinto do Prado Coelho (seleção, prefácio e notas biobibliográficas) & Álvaro Salema (colaboração), Antologia da Ficção Portuguesa Contemporânea, Lisboa, Instituto de Cultura Portuguesa/Secretaria de Estado da Cultura/Presidência do Conselho de Ministros, 1979, p. 122.

PONTO DE PARTIDA

CD 2 Faixa n.0 1

1. Escuta o hino comemorativo dos 80 anos da rádio pública em Portugal − «Um não sei quê de alegria», com letra de Tiago Torres da Silva e música de Tozé Brito. Discute com os teus colegas: a) a importância da rádio quando surgiu; b) vantagens da rádio em relação a outros meios de comunicação; c) a evolução da rádio ao longo dos tempos.

«Um não sei quê de alegria» Letra Tiago Torres Música Tozé Brito

PROFESSOR

MC

Educação Literária 14.1; 14.2; 14.3; 14.4; 14.5; 14.6; 14.7; 14.8; 14.9; 14.10; 15.1; 15.2. Gramática 19.1; 19.2. Oralidade 1.1; 4.1; 4.2; 5.1; 5.2; 5.3; 6.4.

Ponto de Partida

▪ Link Áudio «Um não sei quê de alegria» 1. a) A rádio veio preencher o vazio que era a vida das pessoas; permitiu o acesso à informação do que se passava no mundo, onde quer que se estivesse; reuniu as pessoas em volta do aparelho – facilitou a sociabilização e o convívio. b) A rádio pode ir connosco para qualquer lado; os aparelhos de rádio são muito fáceis de transportar; podemos ouvir a rádio enquanto realizamos outras tarefas. c) Hoje em dia, a rádio tornou-se um meio de comunicação mais interativo, permitindo a participação dos ouvintes nos programas de rádio em direto, por exemplo. Atualmente, também se pode ouvir a rádio no telemóvel, no computador e noutros dispositivos.

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Unidade 2 // MANUEL DA FONSECA

EDUCAÇÃO LITERÁRIA

PROFESSOR

Nota:

Sempre é uma companhia

A divisão do texto é da responsabilidade das autoras.

Dias solitários ▪ Apresentação em PowerPoint Texto narrativo (características)

1 Venda: pequena mercearia, por

vezes, associada a um bar. Avia: prepara; serve. Fregueses: clientes. Estio: verão. Palestrar: conversar; tagarelar. Faina: trabalho; lida. Errava: perdia; vagueava. Pego: o sítio mais fundo da ribeira. 9 Córregos: caminhos apertados entre montes. 10 Estiraçado: estendido ao comprido. 11 Plainos: planícies. 2 3 4 5 6 7 8

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António Barrasquinho, o Batola, é um tipo bem achado. Não faz nada, levanta-se quando calha, e ainda vem dormindo lá dos fundos da casa. É a mulher quem abre a venda1 e avia2 aquela meia dúzia de fregueses3 de todas as manhãzinhas. Feito isto, volta à lida da casa. Muito alta, grave, um rosto ossudo e um sossego de maneiras que se vê logo que é ela quem ali põe e dispõe. Pois quando entra para os fundos da casa, vem saindo o Batola com a cara redonda amarfanhada num bocejo. Que pessoas tão diferentes! Ele quase lhe não chega ao ombro, atarracado, as pernas arqueadas. De chapeirão caído para a nuca, lenço vermelho amarrado ao pescoço, vem tropeçando nos caixotes até que lá consegue encostar-se ao umbral da porta. Fica assim um pedaço, a oscilar o corpo, enquanto vai passando as mãos pela cara, como que para afastar os restos do sono. Os olhos, semicerrados, abrem-se-lhe um pouco mais para os campos. Mas fecha-os logo, diante daquela monotonia desolada. Dá meia volta, enche a medida com o melhor vinho que há na venda, coloca-a sobre 15 o balcão. Ao lado, um copo. Puxa o caixote, senta-se e começa a beber a pequenos goles. De quando em quando, cospe por cima do balcão para a terra negra que faz de pavimento. Enterra o queixo nas mãos grossas e, de cotovelo vincado na tábua, para ali fica com um olhar mortiço. Às vezes, um rapazito entra na venda: 20 – Tio Batola, cinco tostões de café. O chapeirão redondo volta-se, vagaroso: – Hã?... – Cinco tostões de café! Batola demora os olhos na portinha que dá para os fundos da casa. Mas 25 é inútil esperar mais. «Ah, se a mulher não vem aviar o rapazito é porque não quer, pois está a ouvir muito bem o que se passa ali na loja!» Quando se assegura que é esta e não outra a verdade dos factos, Batola tem de levantarse. Espreguiça-se, boceja, e arrasta-se até à caixa de lata enferrujada. Mede o café a olho, um olho cheio de tédio, caído sobre o canudinho de papel. 30 Volta a encher o copo, atira-se para cima do caixote. E, no jeito que lhe fica depois de vazar o vinho goela abaixo, num movimento brusco, e de ter cuspido com uns longes de raiva, parece que acaba de se vingar de alguém. Tais momentos de ira são pedaços de revolta passiva contra a mulher. É uma longa luta, esta. A raiva do Batola demora muito, cresce com o tempo, 35 dura anos. Ela, silenciosa e distante, como se em nada reparasse, vai-lhe trocando as voltas. Desfaz compras, encomendas, negócios. Tudo vem a fazer-se como ela entende que deve ser feito. E assim tem governado a casa. Batola vai ruminando a revolta sentado pelos caixotes. Chegam ocasiões em que nem pode encará-la. De olhos baixos, põe-se a beber de manhã

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à noite, solitário como um desgraçado. O fim daquelas crises tem dado que falar: já muitas vezes, de há trinta anos para cá, aconteceu a gente da aldeia ouvir gritos aflitivos para os lados da venda. Era o Batola, bêbado, a espancar a mulher. Tirando isto, a vida do Batola é uma sonolência pegada. Agora, para ali está, diante do copo, matando o tempo com longos bocejos. No estio4, então, o sol faz os dias do tamanho de meses. Sequer à noite virá alguém à venda palestrar5 um bocado. É sempre o mesmo. Os homens chegam com a noitinha, cansados da faina6. Vão direito a casa e daí a pouco toda a aldeia dorme. Está nestes pensamentos o Batola quando, de súbito, lhe vem à ideia o velho Rata. Que belo companheiro! Pedia de monte a monte, chegava a ir a Ourique, a Castro, à Messejana. Até fora a Beja. Voltava cheio de novidades. Durante tardes inteiras, só de ouvi-lo parecia ao Batola que andava a viajar por todo aquele mundo. Mas o velho Rata matara-se. Na aldeia, ninguém ainda atina ao certo com a razão que levou o mendigo a suicidar-se. Nos últimos tempos, o reumatismo tolhera-lhe as pernas, amarrando-o à porta do casebre. De quando em quando, o Batola matava-lhe a fome; mas nem trocavam uma palavra. Que sabia agora o Rata? Nada. Encostado à parede de pernas estendidas, errava7 o olhar enevoado pelos longes. Veio o Verão com os dias enormes, a miséria cresceu. Uma tarde, lá se arrastou como pôde e atirou-se para dentro do pego8 da ribeira da Alcaria. Aos poucos o tempo apagou a lembrança do Rata, o mendigo. Só o Batola o recorda lá de vez em quando. Mas, agora, abandonou a recordação e o vinho, e vai até ao almoço. Nunca bebe durante as refeições. Depois, o sol desanda para trás da casa. Começa a acercar-se a tardinha. Batola, que acaba de dormir a sesta, já pode vir sentar-se, cá fora, no banco que corre ao longo da parede. A seus pés, passa o velho caminho que vem de Ourique e continua para o sul. Por cima, cruzam os fios da eletricidade que vão para Valmurado, uma tomada de corrente cai dos fios e entra, junto das telhas, para dentro da venda. E o Batola, por mais que não queira, tem de olhar todos os dias o mesmo: aí umas quinze casinhas desgarradas e nuas; algumas só mostram o telhado escuro, de sumidas que estão no fundo dos córregos9. Depois disso, para qualquer parte que volte os olhos, estende-se a solidão dos campos. E o silêncio. Um silêncio que caiu, estiraçado10 por vales e cabeços, e que dorme profundamente. Oh, que despropósito de plainos11 sem fim, todos de roda da aldeia, e desertos!

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PROFESSOR

Educação Literária 1. A passividade e a inércia de Batola estão patentes na dupla negação «não faz nada» (l. 1), no uso do advérbio aliado ao uso do gerúndio «ainda vem dormindo» (l. 2) e na indefinição temporal presente na expressão «levanta-se quando calha» (ll. 1-2). 2. Contrariamente ao marido, a mulher do Batola é apresentada como exemplo de dinamismo: «abre a venda e avia» (l. 3), «volta à lida da casa» (l. 4), «é ela quem ali põe e dispõe» (l. 5). 3. Muitas vezes, o Batola bebe excessivamente e acaba por espancar a mulher («De olhos baixos, põe-se a beber de manhã à noite, solitário como um desgraçado. [...] já muitas vezes, de há trinta anos para cá, aconteceu a gente da aldeia ouvir gritos aflitivos para os lados da venda. Era o Batola, bêbado, a espancar a mulher»). Outras vezes, recorre à memória para evocar o passado e o seu amigo Rata: («Está nestes pensamentos o Batola quando, de súbito, lhe vem à ideia o velho Rata. Que belo

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Unidade 2 // CONTOS

PROFESSOR

Educação Literária (cont.) companheiro! Pedia de monte a monte, chegava a ir a Ourique, a Castro, à Messejana. Até fora a Beja. Voltava cheio de novidades. Durante tardes inteiras, só de ouvi-lo parecia ao Batola que andava a viajar por todo aquele mundo»). Quer a agressividade originada pelo consumo excessivo de álcool quer a fuga ao presente, através das recordações do passado, mostram-nos um homem só e desalentado, cuja vida vazia já nada tem para lhe oferecer. 4. A vivência do presente é dolorosa e assemelha-se a uma morte simbólica, na medida em que o Batola não vive realmente, sobrevive à passagem do tempo, numa sucessão de dias vazios, em que o tédio é a sua principal companhia. É na evocação do velho Rata e no movimento dialético entre um presente apático e desinteressante e um passado festivo e cheio de novidades trazidas no discurso do velho que se cria, no Batola, a sensação de uma mudança do ritmo de vida «Durante tardes inteiras, só de ouvi-lo parecia ao Batola que andava a viajar por todo aquele mundo », ll. 61-63). 5.1 O «ainda» sugere que, talvez, mais tarde, os habitantes da aldeia viessem a conhecer o motivo que conduzira ao suicídio do velho Rata, porque naquele momento ainda não o conheciam. É o narrador que apresenta uma explicação para essa morte: o facto de ficar preso à monotonia do tempo e do espaço, aliados a uma condição de miséria e à incapacidade física, originada pelo reumatismo, teria levado o velho a pôr termo à vida. 6. Comportamento/atitude do Batola: «Espreguiça-se, boceja, arrasta-se» (l. 28); «um olho cheio de tédio» (l. 29); «solitário como um desgraçado» (l. 40); «sonolência pegada» (l. 47); «matando o tempo com longos bocejos» (ll. 48-49); «não tem ninguém para conversar» (l. 91); «não tem nada que fazer» (l. 92); «lá se vai deitar o Batola derrotado por mais um dia» (ll. 90-100). Espaço: «(tem de) olhar todos os dias o mesmo» (l. 71); «estende-se a solidão dos campos. E o silêncio» (l. 82); «breve a aldeia ficará adormecida» (l. 90); «o mundo parece que vai ficar para sempre naquela magoada penumbra» (ll. 86-87). Tempo: «O entardecer demora anos» (l. 85); «A noite vem de longe, cansada» (l. 85); «tomba tão vagarosamente» (l. 86).

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Carregado de tristeza, o entardecer demora anos. A noite vem de longe, cansada, tomba tão vagarosamente que o mundo parece que vai ficar para sempre naquela magoada penumbra. Lá vêm figurinhas dobradas pelos atalhos, direito às casas tresmalhadas da aldeia. Nenhuma virá até à venda falar um bocado, desviar a atenção daquele poente dolorido. São ceifeiros, exaustos da faina, que recolhem. Breve, a aldeia ficará adormecida, afundada nas trevas. E António Barrasquinho, o Batola, não tem ninguém para conversar, não tem nada que fazer. Está preso e apagado no silêncio que o cerca. Ergue-se pesadamente do banco. Olha uma última vez para a noite derramada. Leva as mãos à cara, esfrega-a, amachucando o nariz, os olhos. Fecha os punhos, começa a esticar os braços. E abre a boca num bocejo tão fundo, o corpo torcido numa tal ansiedade, que parece que todo ele se vai despegar aos bocados. Um suspiro estrangulado sai-lhe das entranhas e engrossa até se alongar, como um uivo de animal solitário. Quando consegue dominar-se, entra na venda, arrastando os pés. E, sem pressentir que aquela noite é a véspera de um extraordinário acontecimento, lá se vai deitar o Batola, derrotado por mais um dia. Manuel da Fonseca, «Sempre é uma companhia», in O Fogo e as Cinzas, Alfragide, Editorial Caminho, 2011, pp. 149-153.

1. No início do texto, Batola é apresentado como uma personagem passiva, dominada pela inércia. Comprova esta afirmação com elementos textuais. 2. Caracteriza a mulher do Batola, com base no segundo parágrafo do texto, referindo os aspetos que a distinguem claramente do marido.

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Caracterização das personagens. Relação entre elas p. 170

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Solidão e convivialidade p. 171

3. Para fugir à solidão que o persegue, Batola acaba por recorrer a alguns escapes. Enumera-os, fundamentando a tua resposta e explicitando o que revelam sobre o caráter da personagem. 4. Justifica a afirmação: O tédio e o vazio existencial, em alguns momentos da narrativa, dão lugar ao ânimo, ao alento e a um despertar para a vida, em alguns outros.

Manuel da Fonseca – «Sempre é uma companhia»

5. «Mas o velho Rata matara-se. Na aldeia, ninguém ainda atina ao certo com a razão que levou o mendigo a suicidar-se.» 5.1 Apresenta uma hipótese para o uso do vocábulo destacado no contexto do enunciado. 6. Completa a tabela com elementos textuais, comprovando que o comportamento do Batola está em sintonia com o espaço e o tempo.

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PROFESSOR

7. a) Enumeração – demonstra a inércia do Batola e a dificuldade que tem para agir; b) Hipérbole – demonstrar a lentidão da passagem do tempo; c) Gradação – mostra como a raiva do Batola se vai acumulando e gradualmente aumentando. Gramática

Comportamento/atitude do Batola

Espaço

Tempo

1. a) posterioridade; b) anterioridade; c) simultaneidade. Oralidade

«para ali fica com olhar mortiço»

«Monotonia desolada»

«O entardecer demora anos»

7. Identifica os recursos presentes nas expressões seguintes e explica sucintamente o seu efeito expressivo.

Recursos expressivos SIGA p. 383

a) «Espreguiça-se, boceja e arrasta-se até à caixa de lata enferrujada.» (l. 28) b) «Carregado de tristeza, o entardecer demora anos.» (l. 85) c) «A raiva do Batola demora muito, cresce com o tempo, dura anos.» (ll. 34-35) GRAMÁTICA

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Valor temporal pp. 57-58

1. Indica a relação de ordem cronológica presente em cada uma das frases. a) «Depois disso, para qualquer parte que volte os olhos, estende-se a solidão dos campos.» (ll. 81-82) b) «Pedia de monte a monte, chegava a ir a Ourique, a Castro, à Messejana. Até fora a Beja. Voltava cheio de novidades.» (ll. 58-61) c) «Está nestes pensamentos o Batola quando, de súbito, lhe vem à ideia o velho Rata.» (ll. 56-58)

ORALIDADE

EXPRESSÃO ORAL

Texto de opinião

Texto de opinião SIGA pp. 364-365

1. Passadas várias décadas sobre a realidade retratada, a violência nas relações continua a existir. 1.1 Visiona uma parte do programa E Se Fosse Consigo?, dedicado à «Violência no Namoro», e prepara um texto de opinião, de quatro a seis minutos, sobre o tema da violência no namoro, tendo em conta os seguintes tópicos:

«Violência no Namoro» SIC Notícias

• Qual a relação entre os comportamentos de violência no passado e na atualidade? • O que farias perante uma situação de violência no namoro? • Qual poderá ser o contributo dos cidadãos em geral e da sociedade para que este problema seja solucionado?

▪ Link E Se Fosse Consigo, «Violência no Namoro», 2016 (SIC Notícias) ▪ Apresentação em PowerPoint Correção da atividade de Oralidade Sugestão de resposta: 1.1 Antigamente, os atos de violência deviam-se, em grande parte, à discriminação sexual, ao machismo e ao consumo excessivo de álcool, fatores que conduziam a atos de agressividade. Atualmente, as pessoas são mais escolarizadas, no entanto, continuam a existir agressores e vítimas que dão continuidade a uma prática de desrespeito e violência contra o outro, quer a nível psicológico quer físico. Um certo padrão de violência tem-se mantido ao longo de várias décadas e tem-se mesmo alargado, tornando-se cada vez mais comum entre jovens casais de namorados. Os problemas pessoais, originadores de pequenos conflitos, a crise financeira, a necessidade de controlo absoluto do outro ou, simplesmente, o ciúme continuam a desencadear atos de violência nos casais e, em particular, entre os mais jovens. As vítimas são, muitas vezes, pessoas frágeis que dependem do outro a algum nível e acreditam que os atos de violência são isolados e não voltarão a repetir-se. Reconhecidos, atualmente, como crime público, os atos de violência no namoro são graves e devem ser punidos. Campanhas de prevenção, sessões de esclarecimento com testemunhos de vítimas e relatos na primeira pessoa poderão ser excelentes veículos de prevenção destes atos de violência, que, em última instância, dependerão sempre da vontade de quem os pratica.

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Unidade 2 // CONTOS

FICHA INFORMATIVA 1 Caracterização das personagens. Relação entre elas

PROFESSOR

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Leitura 7.1; 7.3; 7.4; 8.1.

▪ Apresentação em PowerPoint Caracterização das personagens

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Nuno San-Payo, O Tempo a Passar (pormenor), s.d.

No lote de personagens, esclarece-nos Isabel Rocheta, «mais do que os fortes, encontramos os fracos, mais do que o herói encontramos o anti-herói, caracterizando uma sociedade que afasta do seu centro (que descentra) a maioria dos seus cidadãos». Assim, os dramas íntimos vividos pelas diversas figuras humanas que se movem em O Fogo e as Cinzas estão ligados ao curso histórico-social do coletivo em que se enquadram. A par da incorporação nos textos desse registo social crítico, Manuel da Fonseca é senhor de uma estética orientada «para a expressão de um humanismo concreto, atuante». Batola é definido pelo nome próprio, o sobrenome e a alcunha; da mulher, nem sequer é dito o nome próprio. Sabemo-la expedita, trabalhadora incansável: é ela «quem abre a venda» e atende os fregueses; depois, «volta à lida da casa». À descrição física da mulher de Batola segue-se a informação sobre o seu modo de estar e ser: o «sossego de maneiras» que a caracteriza é, afinal, sintoma da circunstância de pôr e dispor no governo quer da casa, quer do negócio. Mais adiante, será confirmada esta característica dominadora; ela «vai-lhe trocando as voltas. Desfaz compras, encomendas, negócios. Tudo vem a fazer-se como ela entende que deve ser feito». A cena escolhida para apresentar o casal situara-o num ponto entre espaço privado e público. Batola e mulher cruzam-se sem que dirijam palavra um ao outro, adivinhando-se a ausência de comunicação entre eles. As causas para essa situação vão sendo progressivamente deslindadas, a partir do momento em que voz narradora e protagonista se começam a confundir. Mendigo e viajante, Rata figura o mensageiro, aquele que traz notícias do que se passa extra muros. Ao escutá-lo durante «tardes inteiras», também Batola parecia viajar por «todo aquele mundo». Esta hipérbole (o mais longe que Rata viajara fora até Beja) elucida o impressionante isolamento dos habitantes de Alcaria. Quando ficou impossibilitado de viajar «pelos longes», Rata suicidou-se. Após o suicídio de Rata, a saudade que, «de vez em quando», Batola sente, agudiza-lhe a solidão. Não admira que assim seja, pois as novas trazidas por aquele companheiro eram a única hipótese de vencer o silêncio do meio. Os homens de Alcaria são apresentados como «figurinhas» (de presépio?) que vivem em casas «tresmalhadas». Atendendo a esta caracterização das casas (continente), os homens que as habitam (conteúdo) são aparentados com gado. Aliás, explicitar-se-á adiante, eles são «o rebanho que se levanta com o dia, lavra, cava a terra, ceifa e recolhe vergado pelo cansaço e pela noite. Mais nada que o abandono e a solidão». A tudo isto acresce a falta de esperança numa vida melhor. Batola não enfrenta aquele tipo de problemas. Pelo contrário, ele dá-se ao luxo de preguiçar, bebe «o melhor vinho que há na venda», carrega um fio de ouro no colete. Todavia, consciente da vida difícil dos demais aldeãos, ele é solidário. E partilha a condição animalesca dos conterrâneos: como já vimos, «rumina» a revolta; os suspiros saem-lhe «como um uivo de animal solitário». Violante F. Magalhães, in Maria Isabel Rocheta & Serafina Martins (coord.), Conto Português [séculos XIX-XXI]: Antologia Crítica, vol. 3, Porto, Edições Caixotim, 2011, pp. 103-107 (texto adaptado).

Ficha informativa

Solidão e convivialidade 1. Solidão

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[S]urgem-nos como figuras centrais ou, pelo menos, importantes, «os velhos». São personagens para quem a temporalidade é vivência dolorosa. Incapazes (ou incapacitados) de acompanhar a dinâmica temporal, recusam a mudança que o evoluir do tempo acarreta, recusando também o tempo que é medida inflexível dessa mudança. São quase sempre personagens em desespero, marcadas pela solidão. Reagem sobretudo pela evasão que de vários modos se concretiza, como dissemos: álcool, loucura, suicídio. Em O Fogo e as Cinzas as personagens surgem isoladas na sua angústia e na sua impotência. Em nenhum dos contos os protagonistas estão coletivamente organizados, em condições de agir, de lutar. Pelo contrário, é muitas vezes sublinhado o clima de apatia sonolenta em que se arrastam por diversas causas (tédio, solidão, fome, alcoolismo…). São muitas, e recorrentes, as expressões que caracterizam neste sentido ambientes, vozes, gestos e, sobretudo, o olhar. Dir-se-ia que as personagens não encontram a sua identidade; o contexto em que estão inseridas impede-as de, reconhecendo-se no passado, se afirmarem no presente e projetarem no futuro. Maria Isabel Rocheta, «Sobre O Fogo e as Cinzas de Manuel da Fonseca», in Maria de Lourdes Belchior, Maria Isabel Rocheta & Maria Alzira Seixo, Três Ensaios sobre a obra de Manuel da Fonseca, Lisboa, Seara Nova, 1980, pp. 72-73 (texto adaptado).

2. Da solidão à convivialidade

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Na expressão «Sempre é uma companhia», o advérbio «sempre» tem o sentido não de todo o tempo, mas de ao menos. Chegados ao final do conto, os leitores pressentem que as ingratas condições de vida (ao nível económico, laboral) dos habitantes de Alcaria não serão modificadas; os efeitos do isolamento continuarão a ser sentidos por todos. Mas a inquietação de saber novas do mundo, de se sentirem integrados culturalmente, de terem a oportunidade de gerar uma nova dinâmica de relações pessoais, de vencerem a solidão, o silêncio, o abandono, encontrarão resposta na voz do rádio – afinal, um alento para aquela comunidade isolada social e geograficamente. Violante F. Magalhães, in Maria Isabel Rocheta & Serafina Martins (coord.), Conto Português [séculos XIX-XXI]: Antologia Crítica, vol. 3, Porto, Edições Caixotim, 2011, pp. 108-109.

Edvard Munch, Melancolia, 1894-1895.

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Unidade 2 // CONTOS

EDUCAÇÃO LITERÁRIA

PROFESSOR

MC

Educação Literária 14.1; 14.2; 14.3; 14.4; 14.5; 14.7; 14.9; 14.10; 15.1; 15.2; 15.3.

O grande acontecimento

Gramática 18.3. Escrita 10.1; 11.1; 12.1; 12.2; 12.3; 12.4; 13.1.

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Educação Literária 1. Um «extraordinário acontecimento» originou a rutura da rotina – a chegada de um carro à porta da venda, algo que não se via há muitos anos: «na tarde seguinte apareceu uma nuvenzinha de poeira para as bandas do sul: ouvia-se ronronar um motor. Pouco depois, o carro parou à porta da venda. Fazia anos que tal se não dava na aldeia.» (ll. 1-3). 2. O vendedor era uma pessoa muito segura de si, dinâmica, determinada e muito observadora. Graças a estas características, consegue convencer facilmente o Batola a ficar com a telefonia, usando diversas estratégias de persuasão: «poisa a mão sobre o ombro de Batola» (l. 40); «Sem dar tempo a qualquer resposta, ordena» (l. 43); «Mostra os papéis, gesticula e sorri, sorri sempre» (l. 48).

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1 Infusa: bilha. 2 Instado: solicitado.

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De facto, na tarde seguinte apareceu uma nuvenzinha de poeira para as bandas do sul: ouvia-se ronronar um motor. Pouco depois, o carro parou à porta da venda. Fazia anos que tal se não dava na aldeia. Pelas portas, apareceram mulheres e crianças. Dois homens saíram do carro. Um deles trazia fato de ganga, o outro, bem vestido, adiantou-se até à porta: – Não nos pode dispensar uma bilha de água? Batola, daí a pouco, sai com a infusa1 a escorrer. O do fato de ganga, que havia tirado a tampazinha da frente do carro, pôs-se a deitar a água para dentro. Enquanto isto acontece, o sujeito bem vestido dá uma mirada pela aldeia, pelos campos. Sopra, afogueado: – Que sítio!... Mas ao ver os fios da eletricidade e a ligação que entra junto das telhas da casa, olha para o Batola com atenção, medindo-o de alto a baixo. Entra na venda, põe-se a observar as prateleiras. O exame parece agradar-lhe. Volta-se, sorridente, para o Batola, que lhe segue, desconfiado, todos os movimentos: – Tem cerveja? – Ná. Só vinho... – Traga o vinho. Muito instado2, Batola bebe também. E aqui começa uma conversa que ele não entende. Só percebe, e isso agrada-lhe, que o homem é simpático e franco. Mas agora há uma pergunta a que tem de responder. – Não, senhor... O sujeito vai à porta, e diz para o motorista: – Calcinhas, traz aí uma caixa do modelo pequeno. A caixa é colocada sobre o balcão. De dentro sai uma outra caixa, mas de madeira polida. Ao meio tem um retângulo azul, cheio de letras e, em baixo, ao comprido, quatro grandes botões negros. – Não tem uma tomada? Só nesse momento o Batola compreende. A princípio, apenas saem ruídos ásperos da caixinha, mas, aos poucos, desaparecem. Vem então uma 30 música modulada, grave. – Hem? Que tal? Esfregando as mãos, começa a enumerar rapidamente as qualidades de um tal aparelho: – É o último modelo chegado ao país. Quando se quer, é música toda 35 a noite e todo o dia. Ou então canções. E fados e guitarradas! Notícias de todo o mundo, desde manhã até à noite, notícias da guerra!... Aponta para o retângulo azul: – Olhe, aqui, é Londres; aqui, a Alemanha; aqui, a América. É simples: vai-se rodando este botãozinho... 40 Poisa a mão sobre o ombro do Batola, e exclama: – Dou-lhe a minha palavra de honra que não encontra nenhum aparelho pelo preço deste!

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Sem dar tempo a qualquer resposta, ordena: – Traz a pasta, Calcinhas! Vem a pasta. Batola, aturdido, olha para os papéis de várias cores que vão aparecendo sobre o balcão. A música, vibrante, enche a venda, ressoa pelos campos. – Aqui é Londres, hem! – grita o homem. – O senhor sabe ler? Então leia aqui! Mostra os papéis, gesticula e sorri, sorri sempre. Batola coça o queixo com os dedos grossos. Olha as contas que o outro lhe mostra, olha de soslaio para a mulher. Volta a coçar-se. E tudo isto se repete durante uma longa hora. Batola, por fim, cabisbaixo, emudece, como que vencido. Rapidamente, o vendedor preenche, sobre o balcão, um largo impresso e, depois, doze letras. São as prestações. Dá a caneta ao Batola que se põe a assinar penosamente papelinho a papelinho. Está quase a acabar a difícil tarefa quando a mulher o interrompe, numa voz lenta e carregada: – António, tu não compras isso. Então, inicia-se uma luta entre o vendedor e a mulher. Mas as frases e o sorriso do homem bem vestido não surtem agora o mesmo efeito: vão-se sumindo, sem remédio, diante daquele rosto ossudo e decidido. Ali, só há uma palavra: – Não. A cara redonda do Batola começa a encher-se de fundas rugas. Num repente, pega na caneta e assina o resto das letras: – Pronto! Quem manda sou eu! Os olhos da mulher trespassam-no. Volta o rosto pálido para o vendedor de telefonias, torna a voltar-se para o marido. Por momentos, parece alheada de tudo quanto a cerca. Vagarosa, no tom de quem acaba de tomar uma resolução inabalável, apruma-se, muito alta, dominadora, e diz: – António, se isso aqui ficar eu saio hoje mesmo de casa. Escolhe. Toda a gente da aldeia que enche a venda sabe que ela fará o que acaba de dizer. Até o vendedor pressente que assim será. Pensativo, olha para o Batola. De súbito, tira um papel qualquer de dentro da pasta e adianta-se: – Bem, a senhora não se exalte. Faz-se uma coisa: a telefonia fica à experiência, durante um mês. Se não quiserem, devolvem-na; nós devolvemos as letras. Assine aqui, Sr. Barrasquinho. Pronto. Agora já a senhora pode ficar descansada. – Mas – pergunta ainda a mulher – quanto se paga de aluguer por esse mês? – Nada! – responde o homem, de novo risonho. – Por isso não se paga nada! E, ao meter os papéis dentro da pasta, repara que já é muito tarde. Apressado, conta que veio por ali devido a um engano no caminho. Sai da venda, entra no carro, e diz ao Batola, aproveitando o ruído do motor: – Você, agora, arrume a questão: tem um mês para a convencer. Mal o carro parte, deixando uma nuvem de poeira à retaguarda, atira a pasta para o assento de trás, e grita alegremente: – Hem, Calcinhas! Levou-me uma tarde inteira, mas foi. Foi de esticão! De facto, era sol-posto, pelos atalhos, os ceifeiros recolhiam à aldeia. Mas, nessa tarde, vieram todos à venda, onde entraram com um olhar admirado. Uma voz forte, rápida, dava notícias da guerra.

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Educação Literária 3.1 A mulher do Batola é determinada e autoritária e gosta de ser ela a decidir: «no tom de quem acaba de tomar uma resolução inabalável, apruma-se, muito alta, dominadora» (l. 68-69); «Toda a gente da aldeia […] sabe que ela fará o que acaba de dizer» (l. 71). 4. Após a chegada da telefonia, tudo muda. Na aldeia, depois do dia de trabalho, os ceifeiros passam a frequentar a venda e só de lá saem alta noite. Na venda do Batola, todos conversam sobre temas diversificados e, por vezes, param para ouvir as notícias e a música. Certa vez, até fizeram uma festa em que todos dançaram. O Batola, por sua vez, ganha novo alento com as notícias do mundo trazidas pela telefonia e até se levanta cedo para atender os clientes. «Até as mulheres vêm para a venda depois da ceia», o que revela um avanço nas mentalidades e uma mudança de atitude.

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Unidade 2 // CONTOS

PROFESSOR

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Educação Literária 5. «E os dias passam agora rápidos para António Barrasquinho, o Batola» (l. 107); «E os dias custaram tão pouco a passar que o fim do mês caiu de surpresa em cima da aldeia da Alcaria» (ll. 117-118); «O mês passou de tal modo veloz» (ll. 126-127). 6. Metáfora e enumeração. A metáfora revela que os homens voltavam à sua triste rotina, agindo como um rebanho, todos faziam exatamente o mesmo todos os dias; a enumeração serve para mostrar as rotinas que se repetem diariamente nos trabalhos do campo. Representam o regresso aos dias de vazio e monotonia. 7. Quando todos sentiam uma enorme tristeza por ficarem sem a telefonia, e o Batola, desalentado, parece não querer oferecer resistência à mulher, é ela que submissamente lhe pede para que fiquem com a telefonia. Este facto revela-se surpreendente porque fora ela a opor-se à compra da telefonia e, durante o tempo que ela permanecera na venda, aparecia lá muito pouco, sem manifestar o que sentia em relação ao objeto que, afinal, como todos os outros, considerava uma agradável companhia.

3 Se quedaram: ficaram quietos. 4 Vaticínios: prognósticos;

anúncios antecipados do que acontecerá. 5 Taciturnos: tristonhos. 6 Desalentado: sem alento, desanimado.

110

115

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130

Só de lá saíram depois de a voz se calar. Cearam à pressa, e 90 voltaram. Era já alta noite quando recolheram a casa, discutindo ainda, pelas portas, numa grande animação. Um sopro de vida paira agora sobre a aldeia. Todos sabem o que acontece fora dali. E sentem que não estão já tão distantes as suas pobres casas. Até as mulheres vêm para a venda 95 depois da ceia. Há assuntos de sobra para conversar. E grandes silêncios quando aquela voz poderosa fala de cidades conquistadas, divisões vencidas, bombardeamentos, ofensivas. Também silêncio para ouvir as melodias que vêm de longe até à aldeia, e que são tão bonitas!... 100 Acontece até que, certa noite, se arma uma festa na venda do Batola. Até as velhas dançaram ao som da telefonia. Nos intervalos, os homens bebiam um copo, junto ao balcão, os pares namoravam-se, pelos cantos. Por fim, mudou-se de posto para ouvir as notícias do mundo. Todos se quedaram3, atentos. – Ah! – grita de repente o Batola. – Se o Rata ouvisse estas coisas não se matava! Mas ninguém o compreende, de absorvidos que estão. E os dias passam agora rápidos para António Barrasquinho, o Batola. Até começou a levantar-se cedo e a aviar os fregueses de todas as manhãzinhas. Assim, pode continuar as conversas da véspera. Que o Batola é, de todos, o que mais vaticínios4 faz sobre as coisas da guerra. Muito antes do meio-dia já ele começa a consultar o velho relógio, preso por um fio de ouro ao colete. Só a mulher quase deixou de aparecer na venda. E ninguém sabe que pensa ela do que contam as vozes desconhecidas aos homens da aldeia, pois, através do tabique de ripas separadas por grandes fendas, ouve-se tudo que se passa na venda. Ouve-se e vê-se, querendo, a alegria que certas notícias trazem aos ceifeiros, o gosto e o propósito que eles têm ao ouvir determinada voz que é de todas a mais desejada e acreditada. E os dias custaram tão pouco a passar que o fim do mês caiu de surpresa em cima da aldeia da Alcaria. Era já no dia seguinte que a telefonia deixaria de ouvir-se. Iam todos, de novo, recuar para muito longe, lá para o fim do mundo, onde sempre tinham vivido. Foi a primeira noite em que os homens saíram da venda mudos e taciturnos5. Fora esperava-os o negrume fechado. E eles voltavam para a escuridão, iam ser, outra vez, o rebanho que se levanta com o dia, lavra, cava a terra, ceifa e recolhe vergado pelo cansaço e pela noite. Mais nada que o abandono e a solidão. A esperança de melhor vida para todos, que a voz poderosa do homem desconhecido levava até à aldeia, apagava-se nessa noite para não mais se ouvir. Dentro da venda, o Batola está tão desalentado6 como os ceifeiros. O mês passou de tal modo veloz que se esqueceu de preparar a mulher. Sobe ao balcão, desliga o fio e arruma o aparelho. Um pouco dobrado sobre as pernas arqueadas, com o chapeirão a encher-lhe a cara de sombra, observa magoadamente a preciosa caixa. Assim está, quando um pressentimento o obriga a voltar a cabeça: junto da porta que dá para os fundos da casa, a mulher olha-o com um ar submisso. «Que terá acontecido?», pensa o Batola, admirado de a ver ainda levantada àquela hora. – António – murmura ela, adiantando-se até ao meio da venda. – Eu queria pedir-te uma coisa...

Manuel da Fonseca – «Sempre é uma companhia»

135

Suspenso, o homem aguarda. Então, ela desabafa, inclinando o rosto ossudo, onde os olhos negros brilham com uma quase expressão de ternura: – Olha... Se tu quisesses, a gente ficava com o aparelho. Sempre é uma companhia neste deserto. Manuel da Fonseca, op. cit., pp. 154-160.

1. Explicita de que forma a rotina diária e a monotonia da aldeia foram quebradas, fundamentando a tua resposta. 2. Caracteriza o vendedor tendo em conta a forma como aborda o Batola e relaciona as suas características com o modo como acaba por concretizar a venda da telefonia. 3. Após a decisão de Batola comprar a telefonia, a sua mulher opõe-se a que o faça. 3.1 Indica de que modo esta atitude se coaduna com a sua personalidade, transcrevendo elementos textuais que demonstrem o caráter da mulher. 4. Regista as mudanças ocorridas após a chegada da telefonia.

FI

Caracterização do espaço: físico, psicológico e sociopolítico p. 177

175

PROFESSOR

Gramática 1. Por exemplo: descritiva – «o homem é simpático e franco.» (l. 19) (caracterização do vendedor: presença de adjetivos); narrativa – «De facto, na tarde seguinte apareceu uma nuvenzinha de poeira para as bandas do sul: ouvia-se ronronar um motor. Pouco depois, o carro parou à porta da venda.», ll. 1-2, (chegada à aldeia de um carro: verbo no pretérito perfeito); dialogal – «− Mas – pergunta ainda a mulher − quanto se paga de aluguer por esse mês? – Nada! – responde o homem, de novo risonho. − Por isso não se paga nada.», ll. 77-78 – (conversa entre a mulher do Batola e o vendedor: sinais que indicam discurso direto, marcadores discursivos).

Após a chegada da telefonia

Na aldeia

▪ Apresentação em PowerPoint Correção da atividade de Escrita

Na venda do Batola

Escrita

5. Demonstra, com elementos textuais, de que forma o tempo adquire uma nova dimensão, após a chegada da telefonia. 6. Identifica os recursos expressivos presentes em «E eles voltavam para a escuridão, iam ser, outra vez, o rebanho que se levanta com o dia, lavra, cava a terra, ceifa e recolhe vergado pelo cansaço e pela noite.» (ll. 121-123) e explicita a sua intencionalidade.

Recursos expressivos SIGA p. 383

FI

Importância das peripécias inicial e final p. 176

FI

Sequências textuais pp. 179-181

7. Explicita o facto surpreendente que encerra o conto. Fundamenta a tua resposta. GRAMÁTICA

1. Transcreve exemplos ilustrativos de sequências textuais – descritiva, narrativa e dialogal. Justifica a tua escolha. ESCRITA

Texto de opinião SIGA pp. 364-365

Texto de opinião Hoje, ao contrário do isolamento de outrora, a generalidade da população tem ao seu dispor uma grande diversidade de meios de comunicação. No entanto, a solidão, a tristeza e a melancolia subsistem. Num texto de opinião, de duzentas a trezentas palavras, pronuncia-te sobre a solidão dos tempos modernos, explicitando o teu ponto de vista sobre esta temática. Fundamenta o teu ponto de vista recorrendo, no mínimo, a dois argumentos e ilustra um deles com, pelo menos, um exemplo significativo.

Sugestões de resposta: – Antigamente, as pessoas sofriam de solidão, porque não tinham como comunicar, viviam isoladas geograficamente. – O que se passava no resto do mundo era uma incógnita, porque não havia meios de comunicação e as pessoas não tinham acesso à informação. – Os dias eram vazios, o trabalho duro e, quando chegava a noite, as pessoas, exaustas, já não tinham vontade de conviver. – Atualmente, os meios de comunicação existem nos mais variados formatos; o telemóvel ou o computador permitem-nos fazer uma chamada de qualquer parte do mundo, encurtando as distâncias. As redes sociais proliferam e multiplicam-se e permitem às pessoas estarem 24 horas por dia contactáveis. – Embora o que se viva atualmente em termos de comunicação seja radicalmente oposto ao que se vivia no passado, a solidão subsiste e mesmo os mais jovens vivem dolorosamente sós, desacompanhados e sem ter com quem partilhar os seus problemas ou as suas expectativas. – Apesar de em permanente comunicação virtual, na realidade, os jovens estão cada vez mais isolados do convívio social e familiar, o que acaba por originar uma profunda solidão e por lhes trazer sérios problemas emocionais.

176

Unidade 2 // CONTOS

FICHA INFORMATIVA 2 Importância das peripécias inicial e final

PROFESSOR

MC

Leitura 7.1; 7.3; 7.4; 8.1.

5

Há uma estrutura temporal que se articula à volta de um antes e um depois. Assistimos à transformação de uma aldeia, que passa de uma situação de estagnação (tempo de marasmo e de solidão) para um novo tempo, através da chegada da telefonia (responsável pela rutura). [...] No conto «Sempre é uma companhia» as transformações são vistas como contemporâneas do tempo da narração: o ponto de origem da enunciação desloca-se com o narrado. Por outro lado, neste conto, ao contrário dos outros, o passado ocupa um lugar minoritário, servindo para marcar o início e o fim de uma nova era na aldeia (a experiência de um mês com a telefonia). Idalina Matos Lejeune, Memória e Arte de Contar em Manuel da Fonseca, Lisboa, Edições Colibri, p. 116.

Linguagem e estilo

5

10

1 Monossémicos: que têm

apenas um sentido. 2 Dubitativas: que expri-

mem dúvida.

A descrição e a narração alternam com o monólogo ou, mais frequentemente, com o diálogo de personagens; o narrador assume apenas o discurso narrativo propriamente dito, não introduzindo comentários de cariz político, moralizante, jocoso, etc., que pudessem constituir um «discurso de autor». O narrador parece assim desempenhar uma função estritamente narrativa; no entanto, na descrição de personagens e paisagens e na apresentação de diálogos, ele introduz sobriamente a sua ótica. Isto é particularmente flagrante em textos como […] «Sempre é uma companhia», perante os quais podemos ser levados a atribuir ao narrador uma função ideológica. […] A utilização de regionalismos e expressões populares, bem como a estrutura sintática das falas, confere relevo a estas figuras, marcando a sua inserção no seu espaço e no seu tempo próprios. […] Um outro elemento de coerência interna: a simplicidade da linguagem utilizada, recorrendo a vocábulos do quotidiano, a termos monossémicos1, reforçando a legibilidade dos contos – legibilidade que acentua (ou é mesmo condição) da impressão de 15 realidade que deles se desprende. O discurso narrativo é aqui um discurso «ordenado», respeitador do Dicionário e das regras de Gramática; um discurso acessível, um discurso claro, portanto. […] A sobriedade da narração, que evita a ênfase – as aspas, o itálico, o ponto de exclamação; a sua desmodalização (escassez de expressões dubi20 tativas2 – «dir-se-ia», «talvez», «provavelmente»), concorrem para esta impressão. De facto, a linguagem aqui utilizada parece preencher predominantemente uma função «referencial». Por outras palavras, a atenção do leitor é predominantemente canalizada para o processo narrado – entendendo-se que este envolve aqui personagens mas também narradores, pois 25 a narração surge quase sempre como voz originária do espaço contado. Maria Isabel Rocheta, «Sobre O Fogo e as Cinzas de Manuel da Fonseca», in Maria de Lourdes Belchior, Maria Isabel Rocheta & Maria Alzira Seixo, Três Ensaios sobre a obra de Manuel da Fonseca, Lisboa, Seara Nova, 1980, pp. 63-67. Armando Alves, Sem Título (pormenor) 2003.

Ficha informativa

Caracterização do espaço: físico, psicológico e sociopolítico

177

PROFESSOR

Consolida 1. a); c).

1. Alentejo – o espaço em Manuel da Fonseca

5

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Manuel da Fonseca, um inato contador de histórias (uma raça quase em extinção), manifestando na sua obra um trânsito espontâneo entre a poesia e a narrativa, nela fez do Alentejo um símbolo simultaneamente com uma carga geográfica, sociopolítica e autobiográfica. Se Manuel da Fonseca revelou o Alentejo, por outro lado, o Alentejo revelou Manuel da Fonseca, ou seja, na sua obra, a doação da sua voz ficcional à paisagem e aos seus povoadores (campaniças, malteses e ganhões) não só não apaga o eu autoral como o revela. O lirismo telúrico e a socialidade épica conjugam-se, ou melhor, fundem-se num corpo único, oscilando entre a tragédia da planície alentejana e uma mitológica esperança num mundo novo, embora sem uma territorialidade visível. […] Na sua obra coexiste um energismo vitalista que se confronta com a rotina do tempo cíclico da vida rural ou do mundo cinzento de uma burguesia provinciana, daí, nas suas poesias, o apelo reiterado às metáforas da navegação e da partida. Vítor Viçoso, A Narrativa no Movimento Neo-Realista – As Vozes Sociais e os Universos da Ficção, Lisboa, Edições Colibri, 2011, p. 121.

2. Alentejo – a imensidão que aprisiona

5

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A incomunicabilidade em relação ao mundo fechava-os numa clausura irremediável [...]. Com a rádio, as notícias da 2.ª Guerra Mundial, sempre ansiosamente recebidas pelos clientes da venda, eram como que um modo de libertação, pois constituíam um elo com o resto do mundo. O acesso à informação implicava também uma tomada de posição e um compromisso com todos aqueles que se empenhavam na luta contra o nazi-fascismo. [...] Há, por outro lado, espaços de hiperbolizada disforia1 seja no plano da paisagem, seja no plano das relações económico-sociais dominantes, que projetam frustrados desejos de fuga e errância2. Nas narrativas de Manuel da Fonseca, a planície alentejana surge simultaneamente ora como espaço agorafóbico (o pavor das extensas superfícies) ora como claustrofóbico3. A sua imensidão uniforme, pontuada aqui e além por oliveiras, carrasqueiras e sobreiros, abre-nos os olhos para a infinitude que é ao mesmo tempo sentimento de clausura e desejo de viagem. Vítor Viçoso, «As raízes do lugar, a memória e a errância na obra de Manuel da Fonseca», in Carina Infante do Carmo & Violante F. Magalhães (coord.), Nova Síntese: Textos e Contextos do Neorrealismo, n.º 6, Lisboa, Edições Colibri, 2012, pp. 16-17.

CONSOLIDA

1. Com base nos textos que acabaste de ler, seleciona as opções que os sintetizam. a) A objetividade e a simplicidade marcam a linguagem em Manuel da Fonseca. b) A linguagem não contribui para a caracterização das personagens. c) Em Manuel da Fonseca, o espaço influencia diretamente as personagens e os sentimentos de angústia, solidão ou tédio que elas manifestam.

Júlio Pomar, Gadanheiro, 1945.

1 Disforia: sensação ou estado de

mal-estar, ansiedade e depressão. 2 Errância: andar sem destino

certo. 3 Claustrofóbico: que provoca

medo patológico, fobia da clausura ou de espaços fechados.

178

Unidade 2 // CONTOS

LEITURA

PROFESSOR

MC

Exposição sobre um tema

Leitura 7.1; 7.2; 7.4.

A telefonia

1.1 (B). 1.2 (D). 2. A exposição é um texto conciso, de caráter demonstrativo, apresenta informações pormenorizadas sobre um determinado assunto, neste caso, a história da telefonia, Deve privilegiar-se o uso da 3.a pessoa gramatical («Foi, pois, em 1902 que um aluno», l. 9) e ter uma linguagem objetiva, sem recurso a opiniões pessoais («Daqui resultou o aparecimento de várias pequenas emissoras […]» l. 9).

5

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1 Senfilistas: especialistas

Durante a Primeira Grande Guerra foi marcante o interesse crescente, no estrangeiro, por esse novo e fascinante fenómeno, chamado radiodifusão. Naturalmente que os «senfilistas»1 portugueses não podiam ficar indiferentes, e foram eles – amadores anónimos – que trouxeram até Portugal audições de concertos estrangeiros. Havia, porém, um problema: a grande barreira a uma boa receção era o Posto Telefónico de Monsanto, pois que, numa área para mais de mil metros, a interferência não era passível de ser eliminada. Foi, pois, em 1902 que um aluno da Escola Politécnica de Lisboa realizou os seus primeiros ensaios de TSF2. Como resultado de tal ousadia, a Polícia de Segurança do Estado invadiu-lhe a casa e apreendeu-lhe todo o material. É que, naquela época, não era permitido o uso de aparelhagem de rádio. Em 1914, Fernando Gardelho Medeiros efetua as primeiras tentativas radiofónicas. Porém, por razões ainda hoje não esclarecidas, abandonou o projeto, só o retomando cerca de seis anos depois com a sua emissora Rádio Hertz, que, mais tarde, passou para Rádio Continental. Era o tempo dos grandes entusiasmos, das contínuas descobertas, da maravilha, da novidade, de uma nova forma de comunicação feita por amadores. Daqui resultou o aparecimento de várias pequenas emissoras, sobretudo, de cunho bairrista e coletivista, que funcionavam consoante as disponibilidades dos seus proprietários, o que, no fundo, pouco mais dava do que um par de horas semanais. […]

em telefonia sem fios. 2 TSF: sigla de telefonia sem

José Matos Maia, A Telefonia – Memórias da Rádio, 2.ª ed., Lisboa, Âncora Editora, 2009, pp. 51-53.

fios.

1. Para responderes a cada um dos itens de 1.1 a 1.2, seleciona a opção correta. 1.1 O interesse pela radiodifusão (A) (B) (C) (D)

estava generalizado a todo o mundo, no início do séc. XX. aumentava no estrangeiro, no início do séc. XX. era inexistente em Portugal, no início do séc. XX. era muito forte por toda a parte desde o final do séc. XIX. 1.2 Em Portugal, a transmissão de rádio era difícil devido à falta de (A) (B) (C) (D)

material adequado. pessoal adequado. emissões adequadas. tecnologia de receção do sinal.

2. Identifica as marcas de género do texto que acabaste de ler e exemplifica cada uma delas com exemplos textuais.

Tipo de telefonia.

Ficha informativa

179

FICHA INFORMATIVA 3 Linguística textual

PROFESSOR

MC

Texto e textualidade – O texto é prototipicamente uma sequência autónoma de enunciados, orais ou escritos, de extensão variável, com um princípio e um fim delimitados, cuja concretização/atualização de sentido é realizada por um leitor ou por um ouvinte. Fonte: Dicionário Terminológico, DGIDC, 2008 (disponível em linha).

Gramática 18.3.

▪ Apresentação em PowerPoint Linguística textual ´

Sequência textual – unidades textuais com uma estrutura interna específica, superiores ao enunciado e inferiores ao texto; são dotadas de alguma autonomia, mas relacionam-se entre si para formar um todo coeso e coerente; apesar de poderem ser interrompidas por outras sequências, é possível identificá-las pelas suas propriedades específicas; um texto é incluído num determinado género em função do tipo de sequência textual predominante – narrativa, descritiva, argumentativa, explicativa ou dialogal. Sequência textual

Características • Ações realizadas por personagens num determinado tempo e espaço.

Narrativa (conto, novela, romance, poema épico, notícia, …)

Algumas marcas linguísticas

• Verbos de ação.

• Sucessão cronológica e relação de causalidade entre essas ações.

• Formas verbais no pretérito perfeito, mais-que-perfeito do indicativo ou no presente histórico.

• Oposição de uma situação/peripécia inicial a uma situação/ peripécia final.

• Marcadores e conectores (temporais e espaciais, causais e conclusivos).

• Avaliação (ou lição de moral).

Descritiva (frequentemente em textos de predominância narrativa, mas também em folheto turístico, discurso panegírico1, retrato falado, …)

• Caracterização de um referente (humano, não-humano, objeto, espaço) por meio de qualificações e predicações. • Movimentos descritivos típicos: do geral para o particular (ou vice-versa); das propriedades físicas para as psicológicas (ou vice-versa).

• Verbo ser e outros que especificam qualidades, estados, propriedades. • Formas verbais no presente e no pretérito imperfeito do indicativo. • Nomes e adjetivos (referência a objetos e suas características). • Vocabulário expressivo (recursos expressivos e apelo aos sentidos). • Marcadores e conectores (aditivos e enumerativos).

Argumentativa (sermão, apreciação crítica, artigo de opinião, discurso político, debate, diálogo argumentativo, publicidade,...)

• Apresentação de um ponto de vista, propondo ou refutando uma tese. • Justificação (através da apresentação de dados, argumentos e exemplos). • Conclusão lógica e assertiva. • Objetivo: convencer/persuadir o destinatário.

André Mare, A Datilógrafa, 1922.

• Verbos de opinião e crença. • Formas verbais no presente, pretérito perfeito e futuro do indicativo, ancorados na situação de enunciação (eu, aqui, agora). • Marcadores e conectores discursivos (contrastivos, concessivos, explicativos, conclusivos).

Fontes: • Paulo Nunes da Silva, TipoloJLDV7H[WXDLVí&RPR&ODVVLILFDU Textos e Sequências, Coimbra Edições Almedina, 2012, pp. 131-175. • Olívia Maria Figueiredo & Eunice Barbieri de Figueiredo, ,WLQHUiULR*UDPDWLFDOí*UDPitica do Discurso e Gramática da Língua, Porto, Porto Editora, 2009, pp. 73-100.

1 Panegírico: de louvor, elogioso.

180

Unidade 2 // CONTOS

Sequência textual

Características • Problematização/questionamento acerca de uma determinada situação ou objeto.

Explicativa (exposição sobre um tema, verbete de enciclopédia, artigo de divulgação científica, manual escolar, …)

• Resolução/resposta adequada à questão levantada. • Conclusão – juízo de valor ou asserção incontestável em função da resposta que se propôs. • Comum em textos de natureza didática e científica: o emissor explica ao recetor determinada ideia, conceito ou teoria. • Dois ou mais interlocutores alternam na tomada de palavra, em presença ou à distância, oralmente ou por escrito.

Dialogal (teatro, debate, entrevista, mesa-redonda, conversa telefónica, banda desenhada,…)

José Malhoa, Lendo o Jornal, 1905.

• O enunciador ancora o enunciado na situação de enunciação (eu, aqui, agora). • Este tipo de texto materializase com algumas diferenças de acordo com o grau de formalidade do diálogo.

Algumas marcas linguísticas • Formas verbais no presente, no pretérito perfeito e no futuro do indicativo. • Verbos copulativos e transitivos diretos. • Predomínio da 3.ª pessoa. • Construções impessoais (verifica-se, deve-se, …). • Linguagem objetiva e precisa. • Léxico especializado. • Marcadores e conectores discursivos (causais, consecutivos, confirmativos, conclusivos). • Elementos deíticos. • Formas de tratamento. • Geralmente, e na escrita, indicadores que assinalam o discurso direto (dois pontos, parágrafo, travessão, verbos introdutores do discurso). • Marcadores discursivos conversacionais e segmentos de retoma e reformulação.

Organização das sequências textuais Quando os textos se compõem de mais do que uma sequência, é importante assinalar os modos de integração de diferentes tipos de sequências num mesmo texto, isto é, de que maneiras as diversas sequências [...] se interligam. Explicitamos, a seguir, os casos possíveis de articulação das sequências textuais. PROFESSOR

Consolida 1. Texto − sequência independente de enunciados (orais ou escritos), com um princípio e um fim demarcados, cuja interpretação é feita por um leitor ou ouvinte. Sequência textual – excerto de um texto, com alguma autonomia e com uma organização interna distinta, ao nível da forma e do conteúdo. Hierarquicamente, a sequência textual encontra-se entre as frases e o texto. Há diferentes tipos de sequências textuais, como, por exemplo, narrativas e descritivas.

Sequências coordenadas (ocorrem em sucessão)

Seq.1 + Seq. 2 + Seq. 3 + Seq. n

Sequências alternadas (ocorrem paralelamente)

[Seg. 1... [Seq. 2... [Seq. 1 continuação ... [Seq. 2 continuação ... Seq. 1 fim] Seq. 2 fim]

Sequências inseridas (ocorrem encaixadas)

[Seq. 1... [Seq. 2]... Seq. 1] [...]

Paulo Nunes da Silva, 7LSRORJLDV7H[WXDLVí&RPR&ODVVLILFDU7H[WRVH6HTXrQFLDV, Coimbra, Edições Almedina, 2012, pp. 128-129 (texto adaptado, destacados nossos). CONSOLIDA

1. Define, por palavras tuas, texto e sequência textual.

Ficha informativa

181

FICHA INFORMATIVA 6 2. Identifica as sequências textuais predominantes nos excertos, justificando a tua resposta com duas marcas linguísticas presentes. A − E debaixo desta aparência tão modesta, ou desta hipocrisia tão santa, testemunham constantemente os dois grandes Doutores da Igreja Latina, e Grega, que o dito Polvo é o maior traidor do mar. […] Fizera mais Judas? Não fizera mais; porque nem fez tanto. Judas abraçou a Cristo, mas outros O prenderam: o Polvo é o que abraça e mais o que prende. Judas com os braços fez o sinal, e o Polvo dos próprios braços faz as cordas. Judas é verdade que foi traidor, mas com lanternas diante: traçou a traição às escuras, mas executou-a muito às claras. O Polvo escurecendo-se a si tira a vista aos outros, e a primeira traição, e roubo, que faz, é à luz, para que não distinga as cores. Vê, Peixe aleivoso, e vil, qual é a tua maldade, pois Judas em tua comparação já é menos traidor! Padre António Vieira, Padre António Vieira: Obra Completa coord. Carlota Urbano, Margarida Miranda e José Carlos Lopes de Miranda, Tomo II, Vol. X: Sermões Hagiográficos I, Lisboa, Círculo de Leitores, 2013, p. 163.

B − Até que, como uma expetativa de teatro, apareceu Sofia. Tinha um vestido branco, colado como borracha, e um corpo intenso e maleável. Uma forte adstringência apertava-a contra si, endurecia-lhe o boleado das curvas como duas maxilas cerradas. A cinta fechada disparava-lhe os seios, uma luz inquieta iluminava-lhe os olhos. E era assim como se uma descarga da terra a atravessasse toda, a revolteasse num duro arranque de ira… Apertei-lhe a mão com calor, subitamente infeliz. A noite adormecia sobre a terra, cálida, tranquila, como uma nudez saciada. Vergílio Ferreira, Aparição, Venda Nova, Bertrand Editora, 1999, pp. 35-36.

C − Uma cabeça de fotógrafo, agitada, espreitou pela porta e explicou: – É o Vasconcelos, coitado. Acho que três tipos lhe deram um excerto de porrada para lhe roubar o relógio… – Não quero saber – Bernardo acordou do transe, saltou espevitado pela energia, e apontou um dedo categórico ao Vasconcelos: – Não quero saber de histórias! És o meu único repórter disponível. Arrancas já para Grudemil e ouves-me esse bispo, os vizinhos, o dono do cão, as autoridades… Vasconcelos tentou levantar a mão direita num aceno explicativo, oscilou e catapum!, desabou redondo no chão: – Desmaiou – observou o fotógrafo com argúcia. – Não há problema – adiantou-se Eduarda, heroica. – Eu sigo para Grudemil.

PROFESSOR

A – Sequência argumentativa: verbos no presente do indicativo («o dito Polvo é o maior traidor do mar»); conectores discursivos («porque», «mas», «pois»). B – Sequência descritiva: verbos no pretérito imperfeito do indicativo («Tinha»); abundância de adjetivos («um corpo intenso e maleável »). C – Sequência dialogal: verbos no presente do indicativo («Não quero saber»); marcas indicadoras do discurso direto («– É o Vasconcelos»: uso do travessão, parágrafo). D – Sequência explicativa: construções sintáticas com o verbo ser («Que virtude é essa do éter»); léxico especializado («éter», «âmbar»). E – Sequência narrativa: verbos no pretérito perfeito do indicativo e mais-que-perfeito do indicativo («aconteceu», «Tinham andado»); verbos de ação («viera buscar»).

Mário de Carvalho, Era bom que trocássemos umas ideias sobre o assunto, Porto, Coleção «Mil Folhas» (Público), 2002, p. 103.

D − Que virtude é essa do éter, perguntou Blimunda, É ser parte da virtude geral que atrai os seres e os corpos, e até as coisas inanimadas, se os libertam do peso da terra, para o sol, Diga isso por palavras que eu perceba, padre, Para que a máquina se levante ao ar, é preciso que o sol atraia o âmbar que há de estar preso nos arames do teto, o qual, por sua vez, atrairá o éter que teremos introduzido dentro das esferas, o qual, por sua vez, atrairá os ímanes que estarão por baixo, os quais, por sua vez, atrairão as lamelas de ferro de que se compõe o cavername da barca, e então subiremos ao ar, com o vento, ou com o sopro dos foles, se o vento faltar, mas torno a dizer, faltando o éter, falta-nos tudo. José Saramago, Memorial do Convento, Alfragide, Editorial Caminho, 2013, pp. 124-125.

E − Tinham andado os três às voltas com o morto, tinham-no embrulhado num cobertor, tinham-lhe envolvido a cabeça no plástico que servia de toalha à mesa da sala (e com cordéis; bem atado para não deixar verter o sangue), tinham-no até calçado com os sapatos que Mena viera buscar cá acima, e isto é que não cabe na cabeça de ninguém, porquê calçá-lo, porquê essa repugnância de enterrarem o homem em peúgas. Mas aconteceu, foi assim. José Cardoso Pires, A Balada da Praia dos Cães, Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1999, p. 236.

Edvard Munch, Rapariga na Praia, 1896.

182

SÍNTESE

«Sempre é uma companhia», Manuel da Fonseca Solidão

Convivialidade

O sentimento de solidão inicial, potenciado pela imensidão do espaço e pelo silêncio dos campos sem fim, acompanha os sentimentos de vazio e inércia, vividos pelas personagens.

A venda do Batola, espaço de tristeza e solidão, transforma-se num espaço privilegiado de convivialidade, onde as pessoas se sentem livres e felizes, com vontade de viver.

Importância da Peripécia inicial



Importância da Peripécia final

Responsável pela rutura

Contextualiza a ação

TELEFONIA

ANTES – – – –

Representa a mudança ocorrida

Tempo de marasmo e solidão Ausência de comunicação Desalento e inércia Falta de energia para agir

Elemento impulsionador da mudança

DEPOIS – – – –

Tempo de convívio e encontro Comunicação entre as pessoas Curiosidade e alento Impulso para agir

Linguagem e estilo – – – – –

Narrador heterodiegético, por vezes, subjetivo, com uma função ideológica Simplicidade da linguagem: predomínio de termos monossémicos Escassez de expressões dubitativas Presença de regionalismos e expressões populares Predomínio da linguagem denotativa com função informativa ou referencial

Caracterização do espaço Psicológico

Físico • Planície alentejana − campos solitários • Alcaria − pequena aldeia perdida no Alentejo, com «quinze casinhas desgarradas e nuas» • A venda do Batola – espaço de desleixo, de decrepitude e de sujidade

Sociopolítico

1.º Momento

• Alentejo rural dos anos 40

• O espaço surge em uníssono com os protagonistas

• II Guerra Mundial

• A negatividade do espaço estende-se ao retrato das personagens • O espaço é opressivo 2.º Momento • Com a chegada da telefonia, tudo e todos se tornam mais próximos

PROFESSOR

• A comunicação entre as pessoas leva a uma mudança de perspetiva sobre o espaço – o que antes era longe parece agora mais perto

▪ Apresentação em PowerPoint Síntese da subunidade

• O espaço que aprisionava torna-se libertador

• Estado Novo – ditadura civil em Portugal, sob a liderança de Oliveira Salazar

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«George» MARIA JUDITE DE CARVALHO

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Escritora portuguesa (Lisboa, 1921). Estreou-se com Tanta Gente, Mariana, livro que contém já algumas características que se irão manter na sua obra: aí se verifica já a tendência para os textos curtos, alternando entre a novela (que por norma abre os diferentes volumes) e os contos, ou, nos livros mais recentes, a crónica, escolhendo dispersos em várias publicações. A técnica de escrita da autora oscila entre a narrativa intimista em 1.ª ou em 2.ª pessoa, com uso de cambiantes de monólogo; predomina assim uma consciência única a espelhar a estreiteza da vida narrada, operando por efeitos de objetivação ou de distanciação, numa aparente frieza descritiva mesmo nos casos em que a história é (é-o com frequência) dramática. Maria Judite de Carvalho conta episódios de gente banal e limitada por circunstâncias do meio, a que uma temporalidade sem sobressaltos, pelo menos os exteriores, dá contornos de monotonia. […] De tudo isso resulta a carga de extrema veemência realista destes textos, retratos da sociedade portuguesa de que são contemporâneos: a autora faz a crónica de um tempo português estagnado, sobretudo para a classe média e a pequena burguesia, através de personagens resignadas que sobrevivem num mundo sem horizontes. A vida interior é privilegiada na narração, não só pelo uso do monólogo, mas porque este é corolário de um mundo de incomunicabilidade e isolamento. […] No recorte clássico do seu estilo de meridiana limpidez, esta escritora dá voz a um intimismo e um realismo para além do tempo, pois representa a inquietação da consciência moderna, contrariando pelo impulso da escrita, plena de vigor, o mundo decadente que tão finamente radiografa. Paula Morão, «Maria Judite de Carvalho», in José Augusto Cardoso Bernardes et. al. (dir.), Biblos, Enciclopédia das Literaturas de Língua Portuguesa, vol. 1, Lisboa, Editorial Verbo, 1999, pp. 1020-1022.

PONTO DE PARTIDA

1. Visiona o programa Ler Mais Ler Melhor − «Vida e obra de Maria Judite de Carvalho». 1.1 Classifica, como verdadeiras (V) ou falsas (F), as afirmações que se seguem, corrigindo as falsas. a) O interlocutor começa por recordar a infância feliz da autora. b) Os seus textos representam a consciência em movimento, o interior da alma, desenvolvendo-se ao ritmo dessa consciência. c) Menospreza o monólogo interior, recorrendo sistematicamente ao diálogo. d) Os seus textos convidam a uma introspeção fechada sobre si mesma e alheada do exterior.

PROFESSOR

MC

Educação Literária 14.1; 14.2; 14.3; 14.4; 14.5; 14.7; 14.8; 14.9; 14.10; 15.1; 15.2; 15.3. Oralidade 1.1; 1.3; 1.4; 2.1.

Ponto de Partida

▪ Link Programa Ler Mais Ler Melhor − «Vida e obra de Maria Judite de Carvalho» 1.1 a) F. O interlocutor começa por recordar a infância soturna, sombria, difícil da autora; b) V; c) F. Utiliza a técnica do monólogo interior, articulada com o diálogo; d) F. Os seus textos convidam à introspeção mas também ao conhecimento do país.

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Unidade 2 // CONTOS

EDUCAÇÃO LITERÁRIA

George Encontro com o passado

PROFESSOR

Nota: A divisão do texto é da responsabilidade das autoras. Educação Literária 1. Sugestão de resposta: O leitor depara-se com um nome estrangeiro – aparentemente masculino – no título. Quando começa a leitura do conto, apercebe-se de que a personagem principal, afinal, é feminina. 2. a) Se a localização espácio-temporal é vaga – sabemos apenas que as personagens caminham numa «longa rua» e que George já não vinha a tal lugar há «mais de vinte anos» – o modo como caminham é revelador, «Andam lentamente, mais do que se pode, como quem luta sem forças contra o vento, ou como quem caminha, também é possível, na pesada e espessa e dura água do mar.» (ll. 1-3), mostrando o esforço com que se movem e revelando uma certa renitência em se encontrarem. Tendo em conta estas subtilezas narrativas, apercebemo-nos de que se trata do regresso de George a um lugar, ao qual não vinha há muito tempo, e de um (re)encontro nada fácil entre personagens.

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Andam lentamente, mais do que se pode, como quem luta sem forças contra o vento, ou como quem caminha, também é possível, na pesada e espessa e dura água do mar. Mas não há água nem vento, só calor, na longa rua onde George volta a passar depois de mais de vinte 5 anos. Calor e também aquela aragem macia e como que redonda, de forno aberto, que talvez venha do sul ou de qualquer outro ponto cardeal ou colateral, perdeu a bússola não sabe onde nem quando, perdeu tanta coisa sem ser a bússola. Perdeu ou largou? Caminham pois lentamente, George e a outra cujo nome quase 10 quis esquecer, quase esqueceu. Trazem ambas vestidos claros, amplos, e a aragem empurra-os ao de leve, um deles para o lado esquerdo de quem vai, o outro para o lado direito de quem vem, ambos na mesma direção, naturalmente. O rosto da jovem que se aproxima é vago e sem contornos, uma 15 pincelada clara, e quando os tiver, a esses contornos, ele será o rosto de uma fotografia que tem corrido mundo numa mala qualquer, que tem morado no fundo de muitas gavetas, o único fetiche de George. As suas feições ainda são incertas, salpicando a mancha pálida, como acontece com o rosto das pessoas mortas. Mas, tal como essas pessoas, tem, vai ter, uma voz muito real e viva, uma voz que a cal e as pás de terra, e a pedra e o tempo, e ainda a distância e a confusão da vida de George, não prejudicaram. Quando falar não criará espanto, um simples mal-estar. Agora estão mais perto e ela encontra, ainda sem os ver, dois olhos largos, semicerrados, uma boca fina, cabelos escuros, lisos, sobre um pescoço alto de Modigliani1. Mas nesse tempo, dantes, não sabia quem era Modigliani e outros que tais, não eram lá de casa, os pais tinham sido condenados pelas instâncias supremas à quase ignorância, gente de trabalho, diziam como se os outros não trabalhassem, e sorriam um pouco com a superioridade dessa mesma ignorância se a ouviam falar de um livro, de um filme, de um quadro nem pensar, o único que tinham visto talvez fosse a velha estampa desbotada do Angelus2 que estava na casa de jantar. Com superioridade, pois, e também com uma certa indignação. Ou seria mesmo vergonha? Como quem ouve um filho atrasado dizer inépcias3 diante de gente de fora que depois, Senhor, pode ir contar ao mundo o que ouviu. E rir. E rir. Já não sabe, não quer saber, quando saiu da vila e partiu à descoberta da cidade grande, onde, dizia-se lá em casa, as mulheres se perdem. Mais tarde partiu por além terra, por além mar. Fez loiros os cabelos, de todos os loiros, um dia ruivos por cansaço de si, mais tarde castanhos, loiros de novo, esverdeados, nunca escuros, quase pretos, como dantes eram. Teve muitos amores, grandes e não tanto, definitivos e passagei1 Modigliani: Amedeo Clemente Modigliani (1884-

1920), artista plástico e escultor italiano que viveu em Paris. Tornou-se célebre sobretudo pelos seus retratos femininos, caracterizados por rostos e pescoços alongados.

2 Angelus: Arcanjo Gabriel, no momento da Anuncia-

ção a Santa Maria. 3 Inépcias: imbecilidades, tolices.

Maria Judite de Carvalho – «George»

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ros, simples amores, casou-se, divorciou-se, partiu, chegou, voltou a partir e a chegar, quantas vezes? Agora está – estava −, até quando? em Amsterdão. Depois de ter deixado a vila, viveu sempre em quartos alugados mais ou menos modestos, depois em casas mobiladas mais ou menos agradáveis. As últimas foram mesmo francamente confortáveis. Vives numa casa mobilada sem nada de teu? Mas deve ser um horror, como podes? teria dito a mãe, se soubesse. Não o soube, porém. As cartas que lhe escrevia nunca tinham sido minuciosas, de resto detestava escrever cartas e só muito raramente o fazia. Depois o pai morreu e a mãe logo a seguir. Uma casa mobilada, sempre pensou, é a certeza de uma porta aberta de par em par, de mãos livres, de rua nova à espera dos seus pés. As pessoas ficam tão estupidamente presas a um móvel, a um tapete já gasto de tantos passos, aos bibelots acumulados ao longo das vidas e cheios de recordações, de vozes, de olhares, de mãos, de gente, enfim. Pega-se numa jarra e ali está algo de quem um dia apareceu com rosas. Tem alguns livros, mas poucos, como os amigos que julga sinceros, sê-lo-ão? Aos outros livros, dá-os, vende-os a peso, que leve se sente depois! í3DUHFHPHTXHjVYH]HVID]HVLVVRHQILPWRGDHVVDGHVHUWLILFDomRFRPHVIRUoRFRP sofrimento − disse-lhe um dia o seu amor de então. í7DOYH]– respondeu −, talvez. Mas prefiro não pensar no caso. Queria estar sempre pronta para partir sem que os objetos a envolvessem, a segurassem, a obrigassem a demorar-se mais um dia que fosse. Disponível, pensava. Senhora de si. Para partir, para chegar. Mesmo para estar onde estava. Os pais não sabiam compreender esse desejo de liberdade, por isso se foi um dia com uma velha mala de cabedal riscado, não havia outra lá em casa. Mas prefere não pensar nos primeiros tempos. E as suas malas agora são caras, leves, malas de voar, e com rodinhas. A outra está perto. Se houve um momento de nitidez no seu rosto, ele já passou, George não deu por isso. Está novamente esfumado. A proximidade destrói ultimamente as imagens de George, por isso a vai vendo pior à medida que ela se aproxima. É certo que podia pôr os óculos, mas sabe que não vale a pena tal trabalho. Param ao mesmo tempo, espantam-se em uníssono, embora o espanto seja relativo, um pequeno espanto inverdadeiro, preparado com tempo. í7X" í7X*L" Tão jovem, Gi. A rapariguinha frágil, um vime, que ela tem levado a vida inteira a pintar, primeiro à maneira de Modigliani, depois à sua própria maneira, à de George, pintora já com nome nos marchands das grandes cidades da Europa. Gi com um pregador de oiro que um dia ficou, por tuta e meia, num penhorista qualquer de Lisboa. Em tempos tão difíceis. − Vim vender a casa. − Ah, a casa. É esquisito não lhe causar estranheza que Gi continue tão jovem que podia ser sua filha. Quieta, de olhar

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(cont.) 2. b) O conto tem uma abertura comparável ao início de um filme; num plano geral, à distância, mostra-nos duas personagens femininas que irão cruzar-se. Como uma câmara que se aproxima, passa-se a uma perspetiva mais particular, que evidencia o rosto da personagem de quem George se vai aproximando, se bem que no início a sua imagem esteja desfocada. No terceiro parágrafo, a focalização centra-se na definição desse rosto, agora pormenorizadamente retratado. c) A função do narrador é determinante: é quem «segura a câmara» e conduz o leitor na descoberta inicial da história e das personagens, que apenas permite entrever. No terceiro parágrafo, parece «oferecer a câmara» a George e é através da sua focalização que observamos a «jovem». Por outro lado, mostra-se omnisciente, dado que é detentor de conhecimento de pormenores que antecipa («Quando falar não criará espanto, um simples mal-estar.», l. 21), ou sobre os quais especula («Perdeu ou largou?»).

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Unidade 2 // CONTOS

PROFESSOR

(cont.) 2. d) As sensações desempenham um papel fundamental, conferindo maior dinamismo descritivo e vivacidade à narrativa, transportando o leitor para «dentro desta tela»: «na pesada e espessa e dura água do mar» (ll. 2-3); «Calor e também aquela aragem macia» (l. 5). 3. Esta fotografia é bastante importante porque nos permite inferir acerca da proximidade, mesmo inseparabilidade, das duas personagens, apesar da distância que as separava. No entanto, repare-se que a fotografia nunca se encontra em lugar de destaque, muito pelo contrário, tem seguido mundo «numa mala qualquer» (l. 16) ou, ainda, «tem morado no fundo de muitas gavetas» (l. 18), como que esquecida ou negligenciada. 4. A reação dos pais aos momentos em que se conversava sobre cultura era previsível e resultante da sua pouca instrução. Reagiam com «a superioridade dessa (…) ignorância» (l. 27), «indignados» e talvez «envergonhados» com o facto de a filha debater assuntos culturais, que desconheciam. 5.1 Nestes parágrafos, são referidas diversas transformações, interiores e exteriores, da personagem George. Para além da mudança constante de residência («da vila […] partiu à descoberta da cidade grande» (ll. 33-34) e «mais tarde partiu por além terra, por além mar») (ll. 34-35), George muda a sua aparência regularmente («Fez loiros os cabelos, de todos os loiros, um dia ruivos por cansaço de si, mais tarde castanhos, loiros de novo, esverdeados, nunca escuros, quase pretos, como dantes eram», ll. 35-37). Interiormente, há evidências de diversas metamorfoses, quer ao nível da inconstância amorosa, quer no desapego aos bens materiais que lhe permitiam a liberdade necessária para mudar, partir a qualquer momento («Teve muitos amores, grandes e não tanto, definitivos e passageiros, simples amores, casou-se, divorciou-se, partiu, chegou, voltou a partir e a chegar, quantas vezes?», ll. 37-39).

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esquecido, vazio, e que não se espante com a venda assim anunciada, tão subitamente, sem preparação, da casa onde talvez ainda more. í4XHSHQVDVID]HU*L" í3DUWLUQmRp"(PTXHVHSRGHSHQVDUDTXLQHVWHFXGH-XGDVVHQmRHPSDUWLU" Ainda não me fui embora por causa do Carlos, mas... O Carlos pertence a isto, nunca se irá embora. Só a ideia o apavora, não é? í6LP6yDLGHLD í5LVHGHSDUWLUFRPRQyVQRVULPRVGHXPDFRLVDLPSRVVtYHOGHXPDLGHLDORXFD 4XHUFRPSUDUXPDWHUUDFRQVWUXLUXPDFDVDDVHXPRGR5HFHEHXXPDKHUDQoDHVy sonha com isso. Creio que é a altura de eu... í&UHLRTXHVLP í3RLVQmRpYHUGDGH" í$LQGDGHVHQKDV" í6HQmRGHVHQKDVVHGDYDHPPDOXFD(HOHVDFKDPTXHHXWHQKRPXLWRMHLWLQKRTXH hei de um dia ser uma boa senhora da vila, uma esposa exemplar, uma mãe perfeita, tudo isso com muito jeito para o desenho. Até posso fazer retratos das crianças quando tiver tempo, não é verdade? íeRTXHHOHVDFKDPQmRp" í$PmHHVWiDDFDEDURPHXHQ[RYDO í(XVHL Há um breve silêncio, depois George diz devagar: í4XHFDORUFKHLUDDTXHLPDGRRDU7HUiVLGRVHPSUHDVVLP" í)DUWRPHGHGL]HUFKHLUDDTXHLPDGRRDU1LQJXpPPHRXYH í1LQJXpPRXYHQLQJXpPQmRVDEHV"4XHDSUHQGHVWHFRPDYLGDPXOKHU" A sua voz está mole, pegajosa, difícil, as palavras perdem o fim, desinteressadas de si próprias, é como se se preparassem para o sono. í&UHLRTXHHVWRXDWUDVDGD− diz então, olhando para o relógio. í(VWRXPHVPRí DFUHVFHQWDROKDQGRPHOKRUí(QmRSRVVRSHUGHURFRPERLR$PDQKmEHPFHGRVLJR para Amsterdão. Estou a viver em Amsterdão, agora. Tenho lá um atelier. í$PVWHUGmRp"2QGHILFDLVVR" Mas é uma pergunta que não pede resposta. Gi fá-la por fazer e sorri o seu lindo sorriso branco de 18 anos. Depois ambas dão um beijo rápido, breve, no ar, não se tocam, nem tal seria possível, começam a mover-se ao mesmo tempo, devagar, como quem anda na água ou contra o vento. Vão ficando longe, mais longe. E nenhuma delas olha para trás. O esquecimento desceu sobre ambas. Maria Judite de Carvalho, «George», in Maria Isabel Rocheta & Serafina Martins (coord.), Conto Português [séculos XIX-XXI]: Antologia Crítica, vol. 3, Porto, Edições Caixotim, 2011, pp. 115-118.

Maria Judite de Carvalho – «George»

1. Explica a razão pela qual o título «George» suscita, desde logo, surpresa. 2. Comprova a utilização de uma técnica narrativa que se aproxima da linguagem cinematográfica, nos quatro primeiros parágrafos do conto, referindo-te aos seguintes aspetos: a) localização espácio-temporal; b) perspetivas/planos (ação e personagens);

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PROFESSOR A complexidade da natureza humana p. 188

c) função do narrador; d) papel das sensações.

3. Explica a relevância da «fotografia que tem corrido mundo» (l. 6) para a compreensão da relação entre as duas personagens. 4. Esclarece como a reação dos pais, ao ouvir falar de arte, revela a sua condição sociocultural. 5. Atenta nos parágrafos cinco a oito. 5.1 Sintetiza as metamorfoses (transformações) da figura feminina aí referidas. 5.2 Explicita o sentido de «Uma casa mobilada, sempre pensou, é a certeza de uma porta aberta de par em par, de mãos livres, de rua nova à espera dos seus pés.» (ll. 46-47), tendo em conta o perfil psicológico de George. 6. Seleciona três indícios de que Gi poderá ser considerada um alter ego (outro eu) de George, fundamentando a tua escolha.

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Metamorfoses da figura feminina p. 188

7. Estabelece a relação entre o último parágrafo do excerto apresentado e o início do conto. 8. Refere três aspetos linguísticos ou estilísticos típicos da prosa de Maria Judite de Carvalho.

GRAMÁTICA

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Linguagem, estilo e estrutura p. 194

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Valor modal pp. 195-196

1. Estabelece as correspondências corretas, de acordo com as diferentes modalidades expressas nos enunciados, referindo-te aos recursos mobilizados. Enunciado

Modalidade

a) Se já leram a ficha informativa, podem começar o exercício!

1. Epistémica (valor de certeza)

b) «Creio que estou atrasada» (l. 109)

2. Deôntica (valor de permissão)

c) «As pessoas ficam tão estupidamente presas a um imóvel […]» (ll. 47-48)

3. Epistémica (valor de probabilidade)

d) «Calor e também aquela arajem […] que talvez venha do Sul […]» (ll. 5-6)

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4. Apreciativa 5. Deôntica (valor de obrigação)

5.2 As casas já mobiladas permitem à personagem abandoná-las, sem grandes preocupações, sempre que deseje mudar (ou se canse?) de um determinado espaço. Este facto está de acordo com o perfil psicológico de George – tem um espírito aventureiro, não tem medo de novos desafios, detesta sentir-se presa, nunca prescindindo da sua liberdade. Por outro lado, revelam desapego pelos bens materiais. 6. Há fortes indícios de que Gi é um outro eu (ainda jovem, de dezoito anos) de George: por exemplo, a simultaneidade dos atos («Param ao mesmo tempo, espantam-se em uníssono», l. 68); a habilidade e necessidade de desenhar e pintar («Se não desenhasse dava em maluca», l. 96); e, finalmente, o pregador de ouro que George havia penhorado em Lisboa encontra-se ainda com Gi («Gi com um pregador de oiro que um dia ficou, por tuta e meia, num penhorista qualquer de Lisboa.», ll. 76-78). Por tudo isto, podemos inferir que Gi é George, uma memória da sua juventude, aqui recordada em diálogo consigo mesma. 7. Há uma relação de semelhança. No fim do último parágrafo do excerto, as personagens «começam a mover-se ao mesmo tempo, devagar, como quem anda na água ou contra o vento. Vão ficando longe, mais longe.» (ll. 115-116). Na parte inicial do conto, «Andam lentamente, mais do que se pode, como quem luta sem forças contra o vento, ou como quem caminha, também é possível, na pesada e espessa e dura água do mar.», ll. 1-3. Fecha-se um círculo: a revisitação ao tempo da sua juventude, através da memória e introspeção, terminou. Simbolicamente, o tempo da juventude ficou irremediavelmente perdido. 8. Por exemplo: uso da ironia «triste»; sarcasmo («os pais tinham sido condenados pelas instâncias supremas à quase ignorância, gente de trabalho, diziam como se os outros não trabalhassem», ll. 25-26); interrogações retóricas («[…] sê-lo-ão?», l. 51); reiterações («cheira a queimado, o ar.», l. 104). Gramática 1. a) – 2 (Recurso: verbo auxiliar poder; ponto de exclamação); b) – 1 (Recurso: verbo crer no presente); c) – 4 (Recursos: adjetivo «presas» e advérbio «estupidamente»); d) – 3 (Recurso: advérbio «talvez»).

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Unidade 2 // CONTOS

FICHA INFORMATIVA 1 A complexidade da natureza humana

PROFESSOR

MC

Leitura 7.1; 7.3; 7.4.

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[I]ndicia[-se] a linguagem como representação do mundo ou, se quisermos, do real: a escritora desenha retratos ou quadros [...] de uma sociedade, composta de personagens homens e mulheres, vistos tanto em situação como entrando nas suas consciências, num notável trabalho sobre o monólogo interior e outras técnicas de que é cultora exímia. Lembre-se o traquejo de reportagem e de registo jornalístico, representado nas suas crónicas, textos curtos ou mais longos, demonstrando a agudeza da observação e o realismo da arte de criar cenas e cenários. [...] Assim, temas como o já mencionado retrato social juntam-se à criação dos universos interiores de personagens entregues aos seus pequenos mundos, ao quotidiano, ao malogro, à felicidade precária, às estratégias de sobrevivência e de desistência de gente comum, equilibrada no arame dos dias [...]. A obra de Maria Judite descreve um tempo que, nos anos 60, era de fechamento e desistência, mas depois de 1974 prossegue a linha do profundo conhecimento de um tempo e de uma sociedade em que os leitores se podem continuar a rever. Paula Morão & Cristina Almeida Ribeiro (org.), 0DULD-XGLWHGH&DUYDOKRí3DODYUDV7HPSR3DLVDJHP, V. N. Famalicão, Edições Húmus, 2015, p. 8.

Metamorfoses da figura feminina

Amedeo Modigliani, A Mulher de Tranças Enroladas, 1917.

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Abreviatura provável de Georgina, o nome desta pintora consagrada de quarenta e cinco anos evoca o pseudónimo literário de duas conhecidas romancistas do século XIX: a francesa George Sand (1804-1876) e a inglesa George Eliot (1819-1880), que com a protagonista apresentam em comum, não apenas o sucesso num mundo predominantemente masculino, mas também um estilo de vida normalmente interdito às mulheres – e ainda hoje pouco aceite no sexo feminino, se bem que por muitos visto como sinal de emancipação. Pleno de sugestões, o nome da personagem condensa assim, se não o essencial da sua personalidade, pelo menos a parte que nela se diria indissociável da sua pertença a uma elite intelectual e artística cuja diferença passa não só pela independência económica conseguida graças ao seu próprio esforço, mas também, com alguma frequência, pelo escândalo das ligações sentimentais à margem das convenções – às vezes mesmo pela adoção de comportamentos e formas de apresentação pouco comuns (o hábito de fumar em público ou o uso frequente de indumentária masculina por parte de George Sand, por exemplo… as diversas e por vezes extravagantes cores que vão tingindo os cabelos de George). […] Acresce, em George, a consciência plena do envelhecimento e da solidão, que combate iludindo-se com a possibilidade de vir a escapar à última graças ao dinheiro acumulado ao longo de anos de uma bem-sucedida carreira artística. Famosa além-fronteiras, George configura, pois, o protótipo da mulher independente e profissionalmente realizada, aparentemente sem razões para lamentar o passado e, ainda menos, temer o futuro. E, no entanto, esse temor assalta-a de modo tão imprevisto quanto cruel ao regressar à terra natal. É aí, nessa vila parada do interior, de onde partira vinte e três anos antes em busca da liberdade que lhe permitira tornar-se uma artista de renome e aonde jamais regressara, que vamos encontrá-la no início do conto. Maria João Pais do Amaral, in Maria Isabel Rocheta & Serafina Martins (coord.), Conto Português [séculos XIX-XXI]: Antologia Crítica, vol. 3, Porto, Edições Caixotim, 2011, pp. 121-123.

Maria Judite de Carvalho – «George»

PONTO DE PARTIDA

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1. A partir da audição da canção de Miguel Araújo «Dona Laura» (Crónicas da Cidade Grande, 2014), relaciona a Laurinha com George.

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Educação Literária 14.1; 14.2; 14.3; 14.4; 14.5; 14.7; 14.8; 14.9; 14.10; 15.1; 15.2; 15.3. Escrita 10.1; 11.1; 12.1; 12.2; 12.3; 12.4; 12.5; 13.1.

EDUCAÇÃO LITERÁRIA Ponto de Partida

Encontro com o futuro

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Agora está à janela a ver o comboio fugir de dantes, perder para todo o sempre árvores e casas da sua juventude, perder mesmo a mulher gorda, da passagem de nível, será a mesma ou uma filha ou uma neta igual a ela? Árvores, casas e mulher acabam agora mesmo de morrer, deram o último suspiro, adeus. Uma lágrima que não tem nada a ver com isto mas com o que se passou antes – que terá sido que já não se lembra? –, uma simples lágrima no seu olho direito, o outro, que esquisito, sempre se recusa a chorar. É como se se negasse a compartilhar os seus problemas, não e não. A figura vai-se formando aos poucos como um puzzle gasoso, inquieto, informe1. Vê-se um pedacinho bem nítido e colorido mas que logo se esvai2 para aparecer daí a pouco, nítido ainda, mas esfumado. George fecha os olhos com a força possível, tem sono, volta a abri-los com dificuldade, olhos de pupilas escuras, semicirculares, boiando num material qualquer, esbranquiçado e oleoso. À sua frente uma senhora de idade, primeiro esboçada, finalmente completa, olha-a atentamente. De idade não, George detesta eufemismos, mesmo só pensados, a mulher velha. Tem as mãos enrugadas sobre uma carteira preta, cara, talvez italiana, italiana, sim, tem a certeza. A velha sorri de si para consigo, ou então partiu para qualquer lugar e deixou o sorriso como quem deixa um guarda-chuva esquecido numa sala de espera. O seu sorriso não tem nada a ver com o de Gi – porque havia de ter? –, são como o dia e a noite. Uma velha de cabelos pintados de acaju3, de rosto pintado de vários tons de rosa, é certo que discretamente mas sem grande perfeição. A boca, por exemplo, está um pouco esborratada. Sem voz e sem perder o sorriso diz: í9HUiTXHKiGHSDVVDUWXGRSDVVD$PDQKmpVHPSUHRXWURGLD6yKiXPDFRLVDXPFULPH que ninguém nos perdoa, nada a fazer. Mas isso ainda está longe, muito longe, para quê pensar QLVVR"$LQGDQLQJXpPDDFXVDDLQGDQLQJXpPDFRQGHQD4XHLGDGHWHP" í4XDUHQWDHFLQFRDQRV3RUTXr" íePXLWRQRYD− afirma. − Muito nova. í6LQWRPHYHOKDjVYH]HV íeQRUPDO(XWHQKRTXDVHDQRV&RPRHVWDYDDFKRUDUSHQVHL Encolhe os ombros, responde aborrecida: í1mRWLYHGHVJRVWRQHQKXPQHQKXP8PHQFRQWURXPVLPSOHVHQFRQWUR Também tenho muitos encontros, eu. Não quero tê-los mas sou obrigada a isso, vivo tão Vy&KHJXHLjLJQRPtQLD4 de pedir a pessoas conhecidas retratos da minha família. Não tinha nenhum, só um retrato meu, em rapariguinha. E retratos de amigos, também. De amigos desaparecidos, levados pelas tempestades, os mais queridos, naturalmente. Porque... o tal crime de que lhe falei, o único sem perdão, a velhice... Um dia vai acordar na sua casa mobilada...

▪ Link Canção «Dona Laura», Miguel Araújo ▪ Documento Letra da canção «Dona Laura» 1. Relação de semelhança, tendo em conta o desejo de fuga à realidade circundante, marcada pela pobreza cultural, e a procura de um mundo novo, capaz de dar resposta aos anseios e ambições pessoais. Educação Literária 1. a) «comboio»; b) «fugir de dantes»; c) encerrar a revisitação à sua juventude, aos locais onde viveu e à pessoa que foi; d) «passagem de nível»; e) «será a mesma ou uma filha ou uma neta igual a ela?»; f) as pessoas que se acomodaram à vida na vila não evoluíram, estagnaram; a geração seguinte é igual à anterior. 2. Como se assistíssemos à pintura de uma tela, o retrato desta «figura» vai ganhando contornos aos nossos olhos, até se tornar nítido e ser descrito com algum detalhe. Podemos dizer que a técnica descritiva (desenhar retratos através das palavras) se harmoniza com a profissão de pintora de George.

1 Informe: irregular. 2 Esvai: evapora, dissipa. 3 Acaju: cor castanha averme-

lhada. 4 Ignomínia: vergonha, afronta.

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Unidade 2 // CONTOS

PROFESSOR

2.1 A antítese reforça a indefinição dos contornos do rosto da «figura» que se descreve, bem como o esforço necessário para o delinear com clareza. 3.1 Esta nova personagem, diante de si, no comboio, tem cerca de setenta anos, é reservada, (sorri de si para consigo», l. 16) e exibe uma certa sofisticação discreta (uma carteira cara, maquilhagem, cabelos pintados). Autocaracteriza-se como solitária e considera que o único crime que cometeu foi ter envelhecido. 3.2 Há alguns indícios de que Georgina se trata de um “outro eu” de George: a confissão que possui uma única fotografia sua «em rapariguinha», como memória do seu passado, e ainda o facto de “adivinhar” que George vive em casas mobiladas. 4. George sente-se incomodada com o diálogo travado com Georgina, apesar de não o querer admitir explicitamente («Estou a incomodá-la, parece-me. − Dói-me simplesmente a cabeça.», ll. 45-46). Prefere pensar em algo mais aprazível, como nas suas exposições e nas viagens que gostaria de realizar («deixa-se embalar por pensamentos mais agradáveis, […] a exposição que vai fazer, aquele quadro que vendeu muito bem o mês passado, a próxima viagem aos Estados Unidos», ll. 48-50). 5. O «calor», o cheiro «a queimado» que sentiu e que tanto a incomodou, aquando do encontro com Gi (expresso em a), dissipa-se no excerto final b). A personagem «suspira», respira «tranquila», após os dois encontros com os seus duplos. 6. O último parágrafo vem esclarecer o estado de espírito da personagem, na sequência das «viagens» interiores, que vão da memória da sua juventude à projeção de si própria num futuro, ainda longínquo, porém perturbador. Reencontra-se e, com alguma serenidade, escolhe viver a realidade que a sua profissão e condição social lhe permitem, numa atitude de aceitação do curso do tempo, que a marcha do comboio, afinal, simboliza.

40

45

50

55

í&RPRVDEHTXH í(YHUiTXHHVWiVyHROKDUiSDUDRHVSHOKRFRPPDLVDWHQomRHYHUiTXHHVWiYHOKD,UUHmediavelmente velha. í7HQKRXPWUDEDOKRTXHPHDJUDGD í1mRVHMDWRQWDPHQLQD2XWURGLDYDLUHSDUDURXWDOYH]MiWHQKDGDGRSRULVVRTXHHVWiD ver pior, e outro ainda que as mãos lhe tremem. E, se for um pouco sensata, ou se souber olhar em volta, descobrirá que este mundo já não lhe pertence, é dos outros, dos que julgam que Baden Powell 5 é um tipo que toca guitarra e que Lévi-Strauss 6 é uma marca de calças. í,VVRpLJQRUkQFLDQmRWHPQDGDDYHUFRPDLGDGH í7DOYH]VHMDLJQRUkQFLDWDPEpP7DOYH]VHMD(VWRXDLQFRPRGiODSDUHFHPH í'yLPHVLPSOHVPHQWHDFDEHoD í'HVFXOSH George fecha os olhos com força e deixa-se embalar por pensamentos mais agradáveis, bem-vindos: a exposição que vai fazer, aquele quadro que vendeu muito bem o mês passado, a próxima viagem aos Estados Unidos, o dinheiro que pôs no banco. O dinheiro no banco, nos bancos, é uma das suas últimas paixões. Ela pensa – sabe? – que com dinheiro ninguém está totalmente só, ninguém é totalmente abandonado. A velha Georgina já o deve ter esquecido. A velhice também traz consigo, deve trazer, um certo esquecimento das coisas essenciais, pensa. Abre os olhos para lho dizer, para lho pensar, para lho atirar em silêncio à cara enrugada, mas a velha já ali não está. O calor de há pouco foi desaparecendo e agora já não há vestígios daquela aragem de forno aberto. O ar está muito levemente morno e quase agradável. George suspira, tranquilizada. Amanhã estará em Amsterdão na bela casa mobilada onde, durante quanto tempo?, vai morar com o último dos seus amores. Maria Judite de Carvalho, op. cit., pp. 118-120. 5 Baden Powell: Robert Stephenson Smyth Baden-

6 Lévi-Strauss: Claude Lévi-Strauss (1908-2009),

-Powell (1857-1941), tenente-general do Exército Britânico, fundador do escotismo.

antropólogo, professor e filósofo belga. É considerado o fundador da antropologia estruturalista.

Maria Judite de Carvalho – «George»

1. A partir do primeiro parágrafo, preenche o esquema seguinte. George encontra-se no a) «

PROFESSOR

com o propósito de »

Mulher gorda localiza-se na d) « »

b) «

simbologia »

c) «

questão colocada e) «

»

simbologia f) «

»

2. Explica como a construção da «figura», no segundo parágrafo, está em sintonia com a profissão da personagem. 2.1 Identifica e esclarece o valor expressivo do recurso presente na expressão «nítido ainda, mas esfumado» (l. 10).

Recursos expressivos SIGA p. 383

3. Atenta no terceiro parágrafo e no diálogo entre George e a sua interlocutora. 3.1 Caracteriza, sinteticamente, esta nova personagem. 3.2 Retira dois elementos textuais que indiciem Georgina como réplica de George, justificando a tua seleção.

FI

As três idades da vida p. 192

4. Refere os efeitos do diálogo em George e interpreta as suas reações. 5. Explicita o contraste existente entre os excertos seguintes. a) «Há um breve silêncio, depois George diz devagar: − Que calor, cheira a queimado, o ar. Terá sido sempre assim?» (ll. 104-105, p. 186 ) b) «O calor de há pouco foi desaparecendo e agora já não há vestígios daquela aragem de forno aberto. O ar está muito levemente morno e quase agradável.» (ll. 56-57, p. 190) 6. Explica a relevância do último parágrafo enquanto conclusão da narrativa, tendo em O diálogo entre realidade, conta as «viagens» de George pela memória e pela imaginação, ao FI memória e imaginação. p. 193 longo do conto.

ESCRITA

Apreciação crítica

Apreciação crítica SIGA pp. 362-363

1. Observa a pintura de Gustav Klimt. 1.1 Prepara uma apreciação crítica, de duzentas a trezentas palavras, na qual apresentes a descrição objetiva e simbólica da pintura, relacionando-a com o conto «George», e apresenta igualmente o teu comentário crítico. No final, faz a revisão do teu texto.

Gustav Klimt, As Três Idades da Mulher, 1905.

191

▪ Apresentação em PowerPoint Correção da atividade de escrita Escrita 1.1 A pintura de Klimt apresenta três figuras femininas: uma ainda criança, outra jovem e uma já idosa, sobre um cenário preto (em cima) e castanho (de textura rugosa). As cores que envolvem as duas figuras mais novas são alegres e vivas; as que circundam a figura mais velha são menos coloridas. Enquanto nas mais novas sobressaem os seus rostos belos, na mais idosa, cujo rosto não se vê, destacam-se as rugas nos membros superiores. Simbolicamente, representam (tal como o título sugere) as três fases da vida da Mulher – a criança e a jovem progenitora são símbolos de vitalidade (os elementos que rodeiam as suas cabeças lembram flores, metáforas de vida e fertilidade); a idosa simboliza a proximidade da morte (indiciada aqui pelo contorno das suas formas, a insinuar as de um caixão, e pelos tons escuros, de terra). Também em George estão presentes três fases da Mulher: Gi representa a juventude, George a mulher emancipada e independente, Georgina a proximidade da morte. Tal como no quadro, reencontram-se num mesmo espaço, sendo que no conto encetam diálogos. Revelador da perspetiva da velhice e da morte é, no quadro, a representação da idosa mais afastada das outras figuras e de rosto voltado e, no conto, os efeitos perturbadores e incómodos do diálogo com Georgina.

192

Unidade 2 // CONTOS

FICHA INFORMATIVA 2 As três idades da vida

Maria Judite de Carvalho, Sem Título, 1992.

30

PROFESSOR

MC

Leitura 7.1; 7.3; 8.1.

35

Ausente enquanto figura, a infância está presente no conto de Maria Judite na medida em que o regresso à terra natal constitui sempre um retorno aos primeiros anos de vida – e, neste caso, sendo o objetivo vender a 5 casa dos pais entretanto desaparecidos, equivale ao seu apagamento definitivo, à sua morte, a um adeus para sempre à juventude – a uma despedida. [...] No início e no final do primeiro encontro, George e Gi movem-se lentamente, como para simbolizar a 10 resistência da primeira, tanto a reencontrar o passado como a despedir-se dele – ou, muito simplesmente, a dificuldade de o ressuscitar, a impossibilidade de o fazer de facto voltar, exemplarmente expressa na comparação «como quem anda na água ou contra o vento», 15 que retoma de forma abreviada, a frase de abertura do conto: «Andam lentamente, mais do que se pode, como quem luta sem forças contra o vento, ou como quem caminha, também é possível, na pesada e espessa e dura água do mar.» Fecha-se assim por completo um 20 círculo – o círculo do regresso à juventude. Tudo se passa, porém, diversamente aquando do segundo encontro, onde a deslocação rápida do comboio simboliza em simultâneo a morte definitiva do passado e a aceleração da marcha do tempo em direção 25 à velhice (daí que a aparição de Georgina tarde menos que a da figura de Gi). [...] Pôde a personagem deambular incessantemente entre o presente e vários momentos do passado, imobilizado num dos seus instantes na fotografia que ressuscita Gi e assim se associa à rememoração. Nada, porém, lhe devolverá intacto esse passado que acabou de enterrar para sempre ao tomar o comboio que dele a afasta, bem como do presente, para um futuro longínquo… e afinal tão ou mais dececionante quanto o primeiro. Pode ainda George fugir desse futuro por um esforço mental de deslocação em direção a outro, mais próximo e tranquilizante: o da sua próxima exposição, da sua próxima viagem aos Estados Unidos, do seu regresso a Amesterdão, que acaba de encetar… Nada impedirá o tempo de avançar [...]. Muito pelo contrário. A fuga para a frente será sempre uma fuga para a frente – para o futuro da velhice e da solidão, para a Morte. Maria João Pais do Amaral, in Maria Isabel Rocheta & Serafina Martins (coord.), Conto Português [séculos XIX-XXI]: Antologia Crítica, vol. 3, Porto, Edições Caixotim, 2011, pp. 130-131.

Ficha informativa

O diálogo entre realidade, memória e imaginação

5

10

15

20

O reencontro com esse passado, de que a personagem não guardara senão uma velha fotografia sua, acaba também por projetá-la no futuro, obrigando-a a confrontarse, primeiro, com a sua juventude, logo após a referência à fotografia que é ponto de partida para longa analepse pontuada de uma ou de outra menção breve ao presente; depois, com a sua velhice – ambas figuradas nestas duas imagens de mulher com quem enceta diálogo e que são afinal os seus duplos com nomes que constituem formas curtas ou alongadas de George: Gi, a jovem frágil de dezoito anos, e Georgina, a mulher idosa a rondar os setenta. Assim se configura, no conto, por meio do cruzamento de imagens e de tempos diferentes, o balanço de toda uma vida. [...] Em diálogo com Georgina, que lhe aponta as lágrimas derramadas sobre a juventude perdida, de que acabara de despedir-se ao afastar-se para sempre de Gi, afirma não ter tido «desgosto nenhum», apenas «um encontro, um simples encontro». Recusa-se igualmente a dar crédito às palavras de desengano daquele seu alter ego1 sobre o que espera no futuro, quando Georgina lhe indica a solidão por única companhia certa na velhice. Prefere então afundar-se no esquecimento que lhe proporcionam o seu dinheiro, o seu sucesso enquanto pintora, os seus múltiplos amores, as suas metamorfoses constantes, as mudanças, as viagens – contínuas deslocações físicas e mentais a que se força para se sentir liberta e realizada e que configuram afinal a sua alienação. Passado e futuro, porém, colheram-na já a meio deste percurso, de fugitiva, cruzando-se com o presente. Dizendo talvez melhor: passado e futuro tornam-se presentes, como se, abolidas as fronteiras do tempo, a personagem tivesse acesso a uma outra dimensão de existência, e uma outra perceção do tempo. Maria João Pais do Amaral, op. cit., pp. 123, 129.

CONSOLIDA

1. Faz corresponder às três idades da vida os conceitos de memória, imaginação e realidade, presentes no diálogo interior de George.

Noronha da Costa, Sem Título, 1967.

193

PROFESSOR

Consolida 1. No diálogo interior de George, revisita-se o passado da juventude, através da memória. A recordação de Gi, com dezoito anos, é desencadeada pela única fotografia que possui, quando George regressa à sua terra natal para vender a casa de família. Já no comboio, e após o primeiro «encontro» com Gi, George imagina-se envelhecida e com cerca de setenta anos. Esta projeção no futuro leva-a ao «diálogo» com Georgina, que a deixa perturbada. George regressa, no fim do conto, à sua realidade de mulher de quarenta e cinco anos, bem-sucedida e com uma vida confortável.

1 Alter ego: outro eu.

194

Unidade 2 // CONTOS

FICHA INFORMATIVA 3 Linguagem, estilo e estrutura

PROFESSOR

MC

Leitura 7.1; 7.3; 8.1; 8.2.

1. «Uma visão da vida»

Consolida 1. Temáticas mais recorrentes de Maria Judite de Carvalho: • Retrato da vida social – quer perspetivando as personagens no seu contexto situacional, quer penetrando na sua consciência. • Mundividência interior das personagens. • O fracasso e a felicidade efémera. • Métodos de sobrevivência, afastamento e abandono num mundo volátil, em constante mudança.

5

10

Metamorfoses da personagem George: • Ascensão a uma elite cultural, a uma situação completamente díspar da condição sociocultural da sua família. • Autonomia e conforto financeiros, conseguidos através do seu próprio talento e trabalho (estatuto económico diferente do que teve na juventude). • Mudanças exteriores – várias cores de cabelo. • Consciência da metamorfose decorrente do passar do tempo – o envelhecimento e o receio da solidão. Características estilísticas da obra: • Perante uma perspetiva pessimista da condição humana, o tom narrativo é contido, de aceitação e, por vezes, irónico. • Perspicácia e agudeza na distinção dos conceitos essenciais. • Presença de elipses, repetições e interrogações retóricas. • Clareza na apresentação das ideias («as ideias passadas a ferro»).

1 Assomo: indício.

[Maria Judite de Carvalho] [...] não narra só pelo prazer de narrar, e menos ainda para explorar virtualidades da língua; narra pela íntima necessidade de exprimir uma visão da vida, muitas vezes implícita, outras expressa em considerações da narradora – visão pessimista, porque a vida tem pouco sentido, o tempo nos gasta e degrada, os seres humanos são visceralmente egoístas e doentes de solidão, a sociedade injusta e mesquinha, pelo menos nas camadas burguesa e pequeno-burguesa, a que pertencem as personagens; mas o tom da narração não é indignado, antes de serena, melancólica aceitação, e até de ironia triste [...]. Na ironia pode haver ora um assomo1 de compaixão ora uma ponta de sarcasmo, espécie de castigo para a hipocrisia das pessoas, defesa que utilizam perante si próprias como perante os outros. Situações e vivências são desveladas pouco a pouco, sugeridas com extrema subtileza, com a «fina arte de desenhar as interseções onde as coisas tocam os significados vitais» (Fernando Mendonça). A linguagem obedece aqui da melhor maneira à lucidez do olhar desencantado e a uma estética de contenção, de medida, que se harmoniza com o pudor dos sentimentos e dos lances dramáticos. Jacinto do Prado Coelho (seleção, prefácio e notas biobibliográficas) & Álvaro Salema (colaborador), Antologia da Ficção Portuguesa Contemporânea, Lisboa, Instituto de Cultura Portuguesa, Secretaria de Estado da Cultura/Presidência do Conselho de Ministros, 1979, p. 182.

2. «Um trabalho sem fim»

5

Não dispondo de uma matéria ajustável ao que pretende representar e construir, o escritor tem de interrogar a linguagem, abri-la, fazê-la falar, no que diz respeito às suas capacidades, mas, no caso de Maria Judite de Carvalho, trata-se de um trabalho sem fim, tão circular e inglório, como o processo rememorativo das suas personagens e que, por isso, apenas avançará por saltos. [...] As elipses, as reiterações, as perguntas retóricas ao leitor (muitas vezes puras constatações sob uma forma irónica), os processos de objetualização metafórica (as ideias passadas a ferro), as imagens e os motivos (muito frequentemente os mesmos) dominam o texto e criam a sua espessura de uma forma única. José Nobre da Silveira, «Maria Judite de Carvalho e a questão da literatura», in Paula Morão & Cristina Almeida Ribeiro (org.), 0DULD-XGLWHGH&DUYDOKRí3DODYUDV7HPSR3DLVDJHP, V. N. Famalicão, Edições Húmus, 2015, pp. 124, 126.

CONSOLIDA

1. Elabora tópicos que sistematizem as • temáticas mais recorrentes de Maria Judite de Carvalho sobre a complexidade da natureza humana; • metamorfoses da personagem George; • características estilísticas da obra.

Ficha informativa

195

FICHA INFORMATIVA 4 Semântica II

PROFESSOR

Gramática

Valor modal

MC 19.4.

«A modalidade é a forma de exprimir, por meios linguísticos, atitudes e opiniões dos falantes ou das entidades referidas pelo sujeito sobre o conteúdo proposicional dos enunciados que produzem.»

▪ Apresentação em PowerPoint Semântica II

Paiva Raposo et al., Gramática do Português, Vol. I, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2013, p. 623.

Tipos de modalidade Modalidade epistémica • Valor de certeza: o locutor assume uma posição de certeza e precisão relativamente à verdade do conteúdo do seu enunciado. (1) Maria Judite de Carvalho era também pintora. (2) Estou certo de que o conto nos obriga a refletir sobre a vida. (3) Os alunos não leram o conto. • Valor de probabilidade: o locutor não tem a certeza daquilo que afirma, mas tenta chegar a uma conclusão a partir de conhecimentos prévios. (4) Provavelmente, os alunos leram o conto. (5) É provável que os alunos tenham lido o conto. (6) Os alunos devem ter lido o conto.

Modalidade deôntica • Valor de obrigação: o locutor procura impor ou proibir a realização daquilo que é expresso no seu enunciado. (1) Resolve o questionário do conto. (2) Tens de resolver os exercícios! (3) Não escrevas na carteira! • Valor de permissão: o locutor apresenta uma possibilidade de escolha ao interlocutor, dentro das hipóteses que lhe propõe.

Maria Judite de Carvalho, Sem Título, 1991.

(4) Autorizo que resolvam o questionário na aula ou em casa. (5) O teu colega pode resolver o questionário amanhã. (6) Se já resolveram o questionário, permito que descansem um pouco.

Modalidade apreciativa O locutor exprime um juízo de valor (opinião ou apreciação), positivo ou negativo, sobre uma situação desejável ou indesejável: (1) Infelizmente, a apresentação do trabalho correu mal. (2) É bom que leias o livro todo! (3) Lamento que tenhas perdido o teu livro.

Fontes: • Dicionário Terminológico (disponível em http://dt.dge.mec. pt, consultado em outubro de 2016). • Paiva Raposo et al., Gramática do Português, vol. I, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2013. • Mira Mateus et al., Gramática da Língua Portuguesa, 6.ª ed., Lisboa, Caminho, 2003.

196

Unidade 2 // CONTOS

FICHA INFORMATIVA 4 PROFESSOR

Consolida 1. a) Modalidade epistémica: valor de certeza / Recurso: verbo ser no presente do modo indicativo. b) Modalidade apreciativa / Recursos: verbo adorar («Adorei»); ponto de exclamação. c) Modalidade epistémica: valor de probabilidade / Recursos: advérbio «talvez»; verbo no conjuntivo («acabemos»). d) Modalidade deôntica: valor de obrigação / Recursos: verbo principal apanhar no imperativo («apanha»); ponto de exclamação. e) Modalidade apreciativa / Recurso: advérbio «infelizmente». f) Modalidade deôntica: valor de obrigação / Recurso: adjetivo «obrigatória». g) Modalidade epistémica: valor de certeza / Recurso: expressão «Não há dúvida de que». h) Modalidade deôntica: valor de permissão / Recurso: verbo auxiliar poder («podes»).

Expressão da modalidade Exemplos Verbos auxiliares modais

dever, haver (de), poder, ter (de)

Verbos principais

achar, acreditar, crer, esperar, julgar, obrigar, permitir, precisar (de), pretender, querer, saber, etc.

Advérbios e locuções adverbiais

certamente, felizmente, infelizmente, necessariamente, possivelmente, provavelmente, se calhar, talvez, etc.

Adjetivos

agradável, bonito, certo, duvidoso, fantástico, interessante, necessário, obrigatório, péssimo, possível, provável, etc.

Nomes

necessidade, possibilidade, probabilidade, etc.

Modos verbais

indicativo, conjuntivo, imperativo

Expressões

a minha opinião, não há dúvida de que, sem dúvida, ser capaz (de), ser lógico, ser necessário, ser possível, ser preciso, ser provável, ter a certeza de que, todos sabem que, etc.

Pontuação

ponto de exclamação ou reticências, na escrita; a entoação, na oralidade

CONSOLIDA

1. Preenche a tabela, indicando o tipo de modalidade presente em cada enunciado e o(s) recurso(s) utilizado(s) para exprimir o respetivo valor modal. Enunciado a) Gi, George e Georgina representam as várias idades da personagem. b) Adorei o conto! c) Talvez acabemos amanhã a abordagem do conto. d) Apanha o comboio, George! e) Infelizmente, a velhice chegará. f) A leitura integral do conto é obrigatória. g) Não há dúvida de que a fotografia reaviva a memória. h) Podes vender os quadros.

Claude Monet, Estação de São Lázaro, Paris, Chegada de Comboio (pormenor), 1877.

Modalidade

Recurso(s)

197

SÍNTESE

«George», Maria Judite de Carvalho Metamorfoses da figura feminina

Inquietação e insatisfação

Passagem do tempo

• Partida da vila e concretização do sonho de ser pintora. • Alteração de visual (cor de cabelo). • Inconstância amorosa. • Mudanças frequentes de residência.

• Juventude • Idade adulta • Velhice

As três idades da vida

Gi – 18 anos

George – 45 anos

Georgina – quase 70 anos

A «rapariguinha» do retrato: a inocência, a juventude, a vida familiar na vila.

A mulher independente, profissional e financeiramente bem-sucedida.

A velhice, o espectro da solidão e da inevitabilidade da morte.

MEMÓRIA

REALIDADE

IMAGINAÇÃO

Diálogo Presentificação/atualização de réplicas de si própria, através da recordação ou projeção no futuro, em interlocução.

A complexidade da natureza humana

As relações interpessoais (sociais e familiares).

A introspeção e a avaliação do projeto e percurso de vida.

A relativização do sucesso e do fracasso.

A fragmentação do eu, a passagem do tempo, a solidão e a morte.

Linguagem, estilo e estrutura • Discurso sucinto marcado pela clareza das ideias e dos conceitos essenciais. • Narrativa fotográfica que capta a fragmentação do tempo, do espaço e das personagens. • Tom contido mas irónico, perante a complexidade da natureza humana e suas fragilidades.

PROFESSOR

• Relevância das sensações. • Recursos expressivos recorrentes: comparação, elipse, repetição, interrogação retórica, metáfora, …

▪ Apresentação em PowerPoint Sìntese da subunidade

198

Unidade 2 // CONTOS

Mensagens PROFESSOR

MC

Educação Literária 15.5; 16.2. Escrita 10.1; 11.1; 12.1; 12.2; 12.3; 12.4; 13.1. Oralidade 3.1; 4.1; 4.2; 5.1; 5.2; 5.3; 6.4.

Escrita Mensagens em diálogo Existe uma relação de semelhança entre a protagonista da Farsa de Inês Pereira e a do conto «George», no que diz respeito ao inconformismo perante o contexto familiar em que se inserem. Inês, em nítido conflito com a mãe, não admite ser submetida ao seu controlo nem à obrigação de realizar as tarefas domésticas, que detesta, mas que, para a mãe, fazem parte de uma educação esmerada. Em «George», torna-se evidente que a protagonista não é compreendida no seu seio familiar, nomeadamente, nas questões culturais. Para os progenitores, o verdadeiro trabalho é o manual, toda a atividade intelectual é menosprezada. Assim, uma filha que fale de arte é um embaraço, uma vergonha. Inconformadas com a sua situação, as protagonistas traçam projetos de vida que conseguem concretizar. Embora Inês Pereira passe por um desaire amoroso com o seu primeiro casamento (do qual se torna prisioneira), a morte do marido liberta-a para realizar o sonho de ter um novo marido rico e que faça tudo a seu contento (Pero Marques). Para George, o seu projeto de vida passa por fazer o que mais gosta como profissão – desenhar e pintar. Para isso, sai de casa e do país e, através do seu talento e trabalho, torna-se famosa e alcança um estatuto financeiro confortável. Apesar dos séculos que separam a escrita dos dois textos, podemos concluir que abordam temáticas semelhantes: a condição feminina e o inconformismo perante o meio familiar. A forma como as protagonistas vão resolver essa insatisfação é que é diferente, talvez por uma questão de época histórica ou devido ao caráter distinto das duas mulheres.

em diÁLogo Relê o seguinte excerto de «George», de Maria Judite de Carvalho.

Mas nesse tempo, dantes, não sabia quem era Modigliani e outros que tais, não eram lá de casa, os pais tinham sido condenados pelas instâncias supremas à quase ignorância, gente de trabalho, diziam como se os outros não trabalhassem, e sorriam um pouco com a superioridade dessa mesma ignorância se a ouviam falar de um livro, de um filme, de um quadro nem pensar, o único que tinham visto talvez fosse a velha estampa desbotada do Angelus que estava na casa de jantar. Maria Judite de Carvalho, «George», in Maria Isabel Rocheta & Serafina Martins (coord.), Conto Português [séculos XIX-XXI]: Antologia Crítica, vol. 3, Porto, Edições Caixotim, 2011, pp. 115-116.

DESAFIO

Redige uma exposição, de duzentas a trezentas palavras, sobre a relação entre o inconformismo perante o contexto familiar e o projeto de vida das protagonistas da Farsa de Inês Pereira e do conto «George», fundamentando o teu texto com referências textuais pertinentes.

Mensagens

em deBAte Hoje em dia, ainda é pertinente a luta pela igualdade de género? DESAFIO

Prepara um debate, de trinta a quarenta minutos, respeitando o tema apresentado e relacionando-o com os contos «Sempre é uma companhia», de Manual da Fonseca e «George», de Maria Judite de Carvalho. Planifica a tua intervenção oral, tendo em conta as características discursivas do género solicitado e participa oportuna e construtivamente na interação oral. Não esqueças a concisão do teu discurso e o respeito pelos princípios de cortesia.

Mensagens em debate ▪ Apresentação em PowerPoint Debate: sugestões de abordagem ▪ Teste interativo Contos «Sempre é uma companhia» e «George»

Samuel Akinfenwa Onwusa, Espanha, cartoon vencedor do terceiro lugar do concurso da ONU – Comic and Cartoon on Gender Equality, 2015.

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GLOSSÁRIO C Conto: narrativa curta e linear, envolvendo poucas personagens; é geralmente concentrada numa única ação, de curta duração temporal e num só espaço. Desta necessidade de brevidade deriva a grande arte do conto, que, mais do que qualquer outro género em prosa, exige que o escritor seja um verdadeiro alquimista na manipulação da palavra. A partir dos anos 50 e 60 do séc. XX, o conto começa, aos poucos, a perder contorno de «intriga» ou de «situação» a ser narrada, para se perder na interioridade de um eu-narrador em conflito com o meio ou perdido no seu próprio labirinto.

N Neorrealismo: corrente literária que em Portugal se desenvolve entre finais dos anos 30 e finais dos anos 50 do séc. XX, num contexto sociopolítico de ditadura salazarista. Para os neorrealistas, a arte e a literatura implicavam uma dimensão política. O real ficcionado na literatura não é apenas uma dádiva do engenho do escritor, e muito menos uma cópia do real, mas uma construção simples que conta com a sua capacidade artesanal para reinventar o mundo através das palavras. Escrever sobre o real em mudança implica transfigurá-lo. Com o Neorrealismo, assistimos à politização da palavra, implicando a tendência para uma arte comprometida, que, no contexto nacional, se traduziu também numa cultura de contrapoder, assente numa clara mensagem social.

M

passam a ser recorrentes no novo código literário: a indiferenciação de modalidades narrativas, o gosto da reescrita e da paródia, a sedução pela alteração e correção dos acontecimentos do passado, o gosto do fantástico e a tendência para o aleatório. Peripécia: eventualidade ou conjunto de eventualidades que alteram uma situação de equilíbrio. Constitui-se como a sequência narrativa por excelência, pois é a que faz, efetivamente, avançar a ação, criando novas situações. É, assim, uma alteração inesperada que vai condicionar a maneira de agir das personagens.

T Telefonia: sinónimo de rádio. As primeiras experiências de radiodifusão foram feitas por Marconi em 1894. Em Portugal, em 1923, foi criada a Sociedade Portuguesa de Amadores de Telefonia sem Fio, precursora das rádios de hoje. Em 1935, nasceu a Emissora Nacional de Radiodifusão, atual Antena 1. Em 1976, a Emissora Nacional passa a chamar-se Rádio Difusão Portuguesa (RDP). Desde então, muitas outras rádios foram criadas em Portugal, passando também a ocupar um lugar importante nas emissões pela internet.

Bibliografia/Webgrafia do Glossário

Monólogo interior: técnica narrativa que viabiliza a representação da corrente da consciência de uma personagem. Expressa-se o tempo vivencial da personagem, diferente do tempo cronológico linear que comanda o desenrolar da ação. É fundamentalmente na narrativa moderna e pósmoderna que se assiste a uma incursão nesse tempo subjetivo. O narrador «desaparece» e a voz da personagem atinge o limite possível da sua autonomização.

Carlos Ceia (org.), E-dicionário de Termos Literários (disponível em http:// www.edtl.fcsh.unl.pt).

P

http://ensina.rtp.pt (consultado em novembro de 2016).

Pós-Modernismo: tendência literária das últimas décadas do séc. XX. Com uma forte influência norte-americana, esta nova conceção de arte torna-se emergente, em Portugal, principalmente após a publicação de O Delfim, de José Cardoso Pires (1968). O novo período consubstancia-se na existência de marcas inovadoras a diversos níveis, sendo vertidas na escrita através de utilizações modalizadas, diferentes dos períodos anteriores. Refiram-se as marcas que

Carlos Reis Ana Cristina Lopes, Dicionário de Narratologia, 7.a ed., Coimbra, Almedina, 2000. Carlos Reis (dir.), História Crítica da Literatura Portuguesa, vol. 9, Lisboa, Editorial Verbo, 2005. Vítor Viçoso, A Narrativa no Movimento Neorrealista − Vozes Sociais e os Universos da Ficção, Lisboa, Biblioteca Nacional de Portugal, 2011. http://ev.instituto_camoes.pt (consultado em novembro de 2016).

200

Unidade 2 // CONTOS

Grupo I

FICHA FORMATIVA

A Lê o seguinte excerto do conto «Sempre é uma companhia».

COTAÇÕES Grupo I 5

A 1. 2. 3. 4. 5.

20 pontos 20 pontos 20 pontos 20 pontos 20 pontos 100 pontos

PROFESSOR

Grupo I

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A 1. A personagem principal, Batola, é um homem preguiçoso, entediado, invadido pela inércia. Por vezes, sente-se irado, enraivecido com a mulher, embriaga-se e acaba por mostrar a sua revolta. Nos momentos em que está calmo, é «solitário», estando em total sintonia com o espaço circundante, onde nada de novo se passa («tem de olhar todos os dias o mesmo», ll. 25-26) e tudo parece distante e solitário («Oh, que despropósito de plainos sem fim, todos de roda da aldeia, e desertos!», ll. 29-30). 2. Batola recorda o velho Rata porque se sente profundamente solitário, sem ninguém que lhe faça companhia: «os homens […] vão direito a casa e daí a pouco toda a aldeia dorme» (ll. 11-12). Quando o velho Rata era vivo e ainda podia viajar fazia companhia ao Batola, que gostava de ouvir as histórias que o mendigo contava «durante tardes inteiras», (l. 15). O velho Rata preenchia a solidão de Batola. 3.1 Os recursos expressivos presentes na expressão são a gradação e a hipérbole, através das quais se pretende revelar a forma como o Batola vai contendo a raiva, guardando-a para si, de tal modo que, quando a liberta, parece que a acumulou durante anos, exteriorizando-a de forma violenta.

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Batola demora os olhos na portinha que dá para os fundos da casa. Mas é inútil esperar mais. «Ah, se a mulher não vem aviar o rapazito é porque não quer, pois está a ouvir muito bem o que se passa ali na loja!» Quando se assegura que é esta e não outra a verdade dos factos, Batola tem de levantar-se. Espreguiça-se, boceja, e arrasta-se até à caixa de lata enferrujada. Mede o café a olho, um olho cheio de tédio, caído sobre o canudinho de papel. Volta a encher o copo, atira-se para cima do caixote. E, no jeito que lhe fica depois de vazar o vinho goela abaixo, num movimento brusco, e de ter cuspido com uns longes de raiva, parece que acaba de se vingar de alguém. […] Agora, para ali está, diante do copo, matando o tempo com longos bocejos. No estio, então, o sol faz os dias do tamanho de meses. Sequer à noite virá alguém à venda palestrar um bocado. É sempre o mesmo. Os homens chegam com a noitinha, cansados da faina. Vão direito a casa e daí a pouco toda a aldeia dorme. Está nestes pensamentos o Batola quando, de súbito, lhe vem à ideia o velho Rata. Que belo companheiro! Pedia de monte a monte, chegava a ir a Ourique, a Castro, à Messejana. Até fora a Beja. Voltava cheio de novidades. Durante tardes inteiras, só de ouvi-lo parecia ao Batola que andava a viajar por todo aquele mundo. Mas o velho Rata matara-se. Na aldeia, ninguém ainda atina ao certo com a razão que levou o mendigo a suicidar-se. Nos últimos tempos, o reumatismo tolhera-lhe as pernas, amarrando-o à porta do casebre. De quando em quando, o Batola matava-lhe a fome; mas nem trocavam uma palavra. Que sabia agora o Rata? Nada. Encostado à parede de pernas estendidas, errava1 o olhar enevoado pelos longes. Veio o verão com os dias enormes, a miséria cresceu. Uma tarde, lá se arrastou como pôde e atirou-se para dentro do pego2 da ribeira da Alcaria. Aos poucos o tempo apagou a lembrança do Rata, o mendigo. Só o Batola o recorda lá de vez em quando. […] E o Batola, por mais que não queira, tem de olhar todos os dias o mesmo: aí umas quinze casinhas desgarradas e nuas; algumas só mostram o telhado escuro, de sumidas que estão no fundo dos córregos3. Depois disso, para qualquer parte que volte os olhos, estende-se a solidão dos campos. E o silêncio. Um silêncio que caiu, estiraçado4 por vales e cabeços, e que dorme profundamente. Oh, que despropósito de plainos5 sem fim, todos de roda da aldeia, e desertos! Manuel da Fonseca, «Sempre é uma companhia», in O Fogo e as Cinzas, Alfragide, Caminho, 2011, pp. 150-153. 1 Errava: perdia; vagueava. 2 Pego: o sítio mais fundo da ribeira. 3 Córregos: caminhos apertados entre montes.

4 Estiraçado: estendido ao comprido. 5 Plainos: planícies.

Apresenta, de forma bem estruturada, as tuas respostas aos itens que se seguem. 1. Descreve a personagem principal, relacionando a sua maneira de ser com o espaço envolvente. 2. Explicita o motivo que leva o Batola a recordar o velho Rata, referindo a importância que o mesmo tinha na vida do protagonista. 3. «A raiva do Batola demora muito, cresce com o tempo, dura anos». 3.1 Identifica o(s) recurso(s) expressivo(s) presente(s) na frase e refere a sua expressividade.

Ficha formativa

B Lê o seguinte poema de Álvaro de Campos.

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O que há em mim é sobretudo cansaço – Não disto nem daquilo, Nem sequer de tudo ou de nada: Cansaço assim mesmo, ele mesmo, Cansaço. A subtileza das sensações inúteis, As paixões violentas por coisa nenhuma, Os amores intensos por o suposto em alguém, Essas coisas todas – Essas e o que falta nelas eternamente – Tudo isso faz um cansaço, Este cansaço, Cansaço. Há sem dúvida quem ame o infinito, Há sem dúvida quem deseje o impossível, Há sem dúvida quem não queira nada – Três tipos de idealistas, e eu nenhum deles: Porque eu amo infinitamente o finito, Porque eu desejo impossivelmente o possível, Porque quero tudo, ou um pouco mais, se puder ser, Ou até se não puder ser... E o resultado? Para eles a vida vivida ou sonhada, Para eles o sonho sonhado ou vivido, Para eles a média entre tudo e nada, isto é, isto... Para mim só um grande, um profundo, E, ah com que felicidade infecundo, cansaço, Um supremíssimo cansaço, Íssimo, íssimo, íssimo, Cansaço... Álvaro de Campos, Poesia de Álvaro de Campos (ed. Teresa Rita Lopes), Lisboa, Assírio & Alvim, 2013, p. 523.

4. Refere o estado de espírito do sujeito poético e analisa as suas causas. 5. Contrasta o eu lírico com os «três tipos de idealistas» presentes na terceira estrofe.

201

PROFESSOR

Grupo I B 4. As causas que conduziram a um estado de espírito de extremo cansaço são várias. As sensações exacerbadas e as «sensações inúteis» «As paixões violentas por coisa nenhuma»; «Os amores intensos por o suposto em alguém»; a incapacidade para abarcar sensorialmente tudo de todas as maneiras, levando à frustração; o querer tudo de todas as formas levam-no ao estado de exaustão primordial, de um «Cansaço assim mesmo, ele mesmo, / Cansaço». 5. Na terceira estrofe, e em tom irónico, o eu lírico demarca-se dos «três tipos de idealistas», não se identificando com quem «am[a] o infinito», nem com quem «desej[a] o impossível, nem mesmo com quem «não [quer] nada». São idealistas porque ambicionam o «infinito», o «impossível» ou o «nada». O sujeito poético, apesar de se ficar pelo «finito» e pelo «possível», transpõe para um plano utópico (irreal) as suas ações: amar «infinitamente»; desejar «impossivelmente» e querer «tudo». Esta exacerbação (e consequente deceção inevitável extenuam-no («Para mim só um grande, um profundo, / E, ah com que felicidade infecundo, cansaço», vv. 26-27).

▪ Ficha formativa Soluções para projeção

202

Unidade 2 // CONTOS

Grupo II

COTAÇÕES Lê o seguinte texto.

Grupo II A 1.1 1.2 1.3 1.4 1.5 1.6 1.7 2. 3.1

Controvérsias e incomodidades do neorrealismo 5 pontos 5 pontos 5 pontos 5 pontos 5 pontos 5 pontos 5 pontos 5 pontos 10 pontos 50 pontos

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Grupo III 50 pontos 15

PROFESSOR

Grupo II 1. 1.1 (A).

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1.2 (B). 1.3 (A). 1.4 (C). 1.5 (C). 1.6 (D).

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1.7 (C). 2. Oração subordinada adjetiva relativa restritiva. 3. Modalidade epistémica – valor de certeza.

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A modernidade neorrealista não é uma questão fácil e isenta de discussão, mesmo se ambicionava ser, conforme dizia Mário Dionísio, a foz dos afluentes da modernidade literária. Tal dado não significa, entretanto, uma exclusão liminar. Primeiro porque modernidade e modernismo não se sobrepõem do ponto de vista concetual e histórico. Depois, e sem escamotear1 a alergia antimodernista de setores significativos do neorrealismo e a prevalência de poetas não neorrealistas na consagração e apropriação de Pessoa, convém dizer que Dionísio e outros companheiros sentiram afinidades com o Orpheu que, então, começava a ser verdadeiramente lido e estudado. Considere-se a força atrativa de Álvaro de Campos na poética de Joaquim Namorado ou Manuel da Fonseca. […] É a Eduardo Lourenço que remonta a exclusão do neorrealismo em relação à literatura desenvolta dos anos 50. Num artigo publicado em 1966 na revista O Tempo e o Modo, «Uma literatura desenvolta ou os filhos de Álvaro de Campos», o ensaísta associa aos anos de 1953-1963 a maioridade na ficção portuguesa contemporânea: José Cardoso Pires, Almeida Faria, Agustina Bessa-Luís, Maria Isabel Barreno ou Maria Judite de Carvalho reconduzem a prosa à matéria-prima linguística e a uma «neutralidade ética inegável ou, antes, [a uma] indiferença ética profunda» e objetivada do real para que concorrem, em graus diversos, o humor ou o erotismo. Aí radica o motivo da referência tutelar2 ao heterónimo pessoano. No essencial, Lourenço demarca esta vaga do neorrealismo. A ele não reconhece capacidade de superar o paradigma3 romântico, patente nas personagens de recorte coletivo e épico; no sonho de ter um leitor de origem trabalhadora; e na veiculação de mensagens ideologicamente marcadas e determinadas pela função de espelhar a realidade social. Em Sentido e Forma da Poesia Neorrealista (1968), […] Lourenço insiste, com razão, na metáfora sacrificial4 do neorrealismo, mas não dá relevo à revitalização do discurso poético que vários destes autores levaram a cabo, para além do paradigma romântico (melodramático e panfletário5) da literatura como missão. O grande problema que se coloca à exclusão proposta por Lourenço é o perigo de se convocar um conceito rígido de tempo histórico em literatura que, por força, é múltiplo e exige uma visão sistémica6 e matizada7. A distância que nos separa do neorrealismo faz dele um objeto poliédrico8 muito mais complexo do que dariam a entender a crispação dos jovens neorrealistas […]. Se nos colarmos ao quente das contendas que envolveram a afirmação do/ou a contestação ao neorrealismo, facilmente se cai numa leitura progressivista9, o que, é sabido, não quadra10 bem com a historicidade das obras de arte. Carina Infante do Carmo, «Algumas razões por que não se pode deixar de ler os neorrealistas», Vértice, n.º 162, Universidade do Algarve/Centro de Estudos Comparatistas, 2012, pp. 65-66. 1 2 3 4 5 6

Escamotear: fazer desaparecer. Tutelar: que ampara, protege (como tutor). Paradigma: modelo, padrão. Sacrificial: abandonado voluntariamente. Panfletário: que tem caráter satírico e polémico. Sistémica: global.

7 Matizada: diversificada. 8 Poliédrico: de muitas faces. 9 Progressivista: que impõe a necessidade de

mudanças. 10 4XDGUD: calha.

Ficha formativa

1. Para responder a cada um dos itens de 1.1 a 1.7, seleciona a única opção que te permite obter uma afirmação correta. 1.1 Alguns escritores neorrealistas (A) (B) (C) (D)

simpatizavam com os escritores do Orpheu. tornaram-se modernistas e seguidores dos escritores do Orpheu. contribuíram definitivamente para o sucesso da revista Orpheu. não se reviam na estética do Modernismo.

1.2 O pioneiro da desvalorização do neorrelismo no contexto da literatura dos anos 50 foi (A) Fernando Pessoa. (B) Eduardo Lourenço.

(C) Mário Dionísio. (D) Álvaro de Campos.

1.3 O neorrealismo é demarcado da produção literária dos anos 50, porque (A) (B) (C) (D)

continua a visar as classes trabalhadoras. veicula mensagens ideologicamente vazias. revela uma indiferença ética profunda perante o real. faz referências tutelares a Álvaro de Campos.

1.4 A expressão «a foz dos afluentes da modernidade literária» (ll. 2-3) contém (A) uma comparação. (B) uma hipérbole.

(C) uma metáfora. (D) uma enumeração.

1.5 O pronome destacado em «A ele não reconhece capacidade» (l. 19) tem como antecedente. (A) «heterónimo pessoano». (B) «Lourenço».

(A) complemento direto. (B) sujeito.

(C) complemento indireto. (D) predicativo do sujeito.

1.7 A utilização de «Primeiro» (l. 3) contribui para a coesão (A) frásica. (B) lexical.

PROFESSOR

Grupo III Sugestão de tópicos: • Face ao tempo gasto nas atividades diárias, quanto tempo dedicam os jovens ao sono e ao descanso?; • Consequências para a vida familiar (as pessoas quase não se encontram e não comunicam); • Consequências para a vida escolar (os jovens ficam com pouco tempo livre para dedicar ao estudo); • Consequências para a saúde (a falta de descanso e as poucas horas de sono originam problemas de saúde: nervosismo, irritabilidade, dificuldade de concentração; • Consequências para o ego (a autoestima diminui porque os jovens sentem que não são capazes de fazer tudo aquilo que a sociedade espera delas); • De que forma a sociedade pressiona os jovens a terem este comportamento?; • O que podem os jovens fazer para alterar esta situação?; • Argumentos e exemplos ilustrativos das situações apresentadas.

(C) «neorrealismo». (D) «o motivo da referência tutelar».

1.6 O segmento «uma questão fácil e isenta de discussão» (l. 1) desempenha a função sintática de

(C) interfrásica. (D) referencial.

2. Classifica a oração «que envolveram a afirmação do/ou a contestação ao neorrealismo […]» (ll. 32-33). 3. Considera a afirmação «É a Eduardo Lourenço que remonta a exclusão do neorrealismo em relação à literatura desenvolta dos anos 50.» (ll. 10-11). 3.1 Identifica a modalidade desta proposição e o seu valor.

Grupo III Na atualidade, a vivência acelerada do tempo, as rotinas diárias, as múltiplas tarefas a que se dedicam os jovens, aliadas às suas responsabilidades escolares e familiares, são fatores originadores de cansaço físico e psicológico. Num texto de opinião bem estruturado, reflete sobre a questão apresentada e sobre a forma como podemos alterar esta realidade, explicitando claramente o teu ponto de vista e fundamentando-o com argumentos e exemplos.

203

▪ Ficha formativa Soluções para projeção

3

POETAS CONTEMPORÂNEOS

EDUCAÇÃO LITERÁRIA Poetas contemporâneos Miguel Torga Eugénio de Andrade • Figurações do poeta • Arte poética • Tradição literária • Representações do contemporâneo • Linguagem, estilo e estrutura – poemas poéticos e formas estróficas – métrica – recursos expressivos

LEITURA Textos informativos Diário COMPREENSÃO DO ORAL Registos áudio e audiovisuais EXPRESSÃO ORAL Debate ESCRITA Exposição sobre um tema Texto de opinião GRAMÁTICA Classes e subclasses de palavras – Advérbio e locuções adverbiais Sintaxe – funções sintáticas – classificação de orações Lexicologia – campo semântico e campo lexical Semântica – valor temporal – valor aspetual Discurso, pragmática e linguística textual – coesão textual – deixis

Ana Luísa Amaral

Henri Le Sidaner, Janela para o Porto Honfleur, 1922.

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mensaGens CrUzadaS Fernando Pinto do Amaral Fernando Pinto do Amaral nasceu em Lisboa em 1960. Frequentou a Faculdade de Medicina, mas abandonou o curso, vindo a licenciar-se em Línguas e Literaturas Modernas, concluindo o Mestrado e o Doutoramento em Literatura Portuguesa. Professor do Departamento de Literaturas Românicas da Faculdade de Letras de Lisboa, é desde 2009 Comissário do Plano Nacional de Leitura. Publicou sete livros de poesia, dois volumes de ensaio. Publicou ainda o álbum 100 Livros Portugueses do Século XX (Instituto Camões, 2002), um livro para crianças, o volume de contos Área de Serviço e Outras Histórias de Amor (2006) e o romance O Segredo de Leonardo Volpi (2009). O seu «Fado da Saudade», cantado por Carlos do Carmo, recebeu em Espanha o Prémio Goya para melhor canção original em 2008.

Escrever para desassossegar

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Ninguém sabe definir com rigor o que é a poesia. Ela desperta-nos emoções nem sempre fáceis de explicar, mas constrói-se com palavras, com as mesmas palavras que utilizamos todos os dias e que em certas ocasiões parecem mais «carregadas de sentido» (Ezra Pound), como se ganhassem uma intensidade especial, que se concentra em cada poema e o transforma num organismo vivo. Quando um poeta escreve, não o faz para compreender racionalmente o mundo, como faria um cientista no seu laboratório. Ele não pretende chegar a uma verdade científica, objetiva, aceite por todos sem contestação. Também ao contrário dos chamados livros de auto-ajuda onde algumas pessoas tentam encontrar respostas rápidas e reconfortantes para as suas angústias, a poesia não nos oferece receitas fáceis para a nossa vida. Ao olhar para si mesmo ou para o mundo que o rodeia, o poeta abre as palavras a novos sentidos e a novos horizontes, atingindo por vezes fronteiras inesperadas que lhe permitem o encontro com uma nova dimensão – uma dimensão capaz de transfigurar a realidade, ou seja, capaz de inventar outra realidade

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a partir daquela com que se confronta no quotidiano e ultrapassando os seus limites. Assim, um bom poema é sobretudo aquele que nos perturba e nos desarruma as ideias a que estamos mais habituados. E o poeta é alguém que se aventura em busca daquilo que não sabe se vai encontrar, como se desvendasse um segredo, que só de vez em quando se transmite aos leitores, alimentando o mistério de cada leitura. Na diversidade das suas vozes, a poesia portuguesa contemporânea continua a refletir as inquietações de uma sociedade que mudou muito nas últimas décadas e na qual cada autor se apresenta não tanto como porta-voz de uma mensagem coletiva, mas sobretudo como o detentor de um olhar pessoal, que exprime e dá forma a um universo singular – universo esse que, de certo modo, permanece desconhecido para o próprio poeta, e ainda bem. Porque, quando se lê ou se escreve poesia, só esse desconhecido vale a pena.

Fernando Pinto do Amaral (texto inédito, 2017)

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José Prata Nascido em 1967, foi jornalista durante cerca de 15 anos, quase sempre nas secções culturais de revistas ou jornais. Em 2006, criou a editora Lua de Papel, que dirige desde então; escreveu contos dispersos e um romance, Os Coxos Dançam Sozinhos, editado em 2001. Casado, tem duas filhas saudavelmente viciadas na leitura.

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Em tempos, ainda jornalista, entrevistei Martin Amis, um dos mais conceituados escritores de língua inglesa. O autor, que domina diferentes géneros literários, estava em Portugal a promover um livro de contos, Água Pesada. E a certa altura confessava, em palavras mais ou menos assim: «Admiro muito os poetas. Escrever um romance não é fácil, mas é mais fácil do que escrever contos, que por sua são mais fáceis do que poemas. A Poesia é o género mais difícil de todos.» E a razão, argumentava Martin Amis, é simples. Os poemas são um exercício que alia frequentemente uma grande disciplina formal a um enorme poder de síntese. É como tentar conter um mundo inteiro em três ou quatro versos. Não há espaço para descrição detalhada da paisagem deslumbrante que vemos à nossa frente, mesmo porque essa paisagem é quase sempre interior (ou interiorizada). Podemos ler no papel, preto no branco, «o sino da minha aldeia»; mas as palavras estão ali em primeiro lugar para desvendar a alma do poeta. Pouco importa o metal com que o sino foi fundido, ou a alvenaria do campanário, a aldeia é uma ideia no coração de quem

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a escreve, é um sentimento que convoca todo um universo infinito de outros sentimentos, toda uma história (e um percurso) eminentemente pessoal; o que interessa, pois, é apenas a metafórica badalada «dentro da minha alma», ou no caso do poema de Pessoa, a saudade, a nostalgia, a procura de uma raiz que o prenda à terra. Mas se a poesia é escrava do belo, é também um espaço de liberdade único na literatura. Porque mesmo quando presa a métricas ou rimas cruzadas, mesmo quando manietada em versos alexandrinos (ou talvez por isso mesmo) encontra sempre uma forma de fugir do concreto; no poema é toda a linguagem que conspira (ou que pode conspirar) para transcender a razão. E fá-lo evocando a sonoridade (mesmo quando a leitura é muda, declamamos sempre o poema), o jogo, o non-sense o prazer lúdico de transgredir a língua que a serve. E a isto chama-se liberdade. Poética.

José Prata (texto inédito, 2017)

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Unidade 3 // POETAS CONTEMPORÂNEOS

Miguel Torga PROFESSOR

MC

Educação Literária 14.1; 14.2; 14.3; 14.4; 14.7; 14.8; 14.9; 15.1; 15.2; 15.3. Oralidade 1.1; 1.3; 1.4; 2.1.

Sugestão ao professor ▪ Apresentação em PowerPoint Texto poético (características) ▪ Link A Terra Antes do Céu, filme de João Botelho sobre Miguel Torga Ponto de Partida ▪ Vídeo Miguel Torga, o meu Portugal, de Ângelo Peres 1. a) Mito de Anteu – o gigante que recuperava forças em contacto com a terra; b) Tal como Anteu, Torga precisa da proximidade com a terra para se retemperar e recuperar forças; c) O poeta considera-se um geófago porque afirma precisar de «comer» terra, alimenta-se desta, precisa da presença física da terra e quase se sente, ele próprio, uma parte dela; d) A natureza, a terra, as serras, as planícies, Portugal, a sua pátria e o Homem e a sua condição.

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É em São Martinho de Anta, no distrito de Vila Real, que nasce, a 12 de agosto de 1907, Adolfo Correia Rocha. […] 5 Os pais, camponeses pobres, marcaram-no decisivamente […]. No pai, […] admira a tenacidade, a grandeza de caráter, o sentido de justiça e aquele amor à terra que é sua marca distintiva. Com a 10 mãe, […] mantém uma relação de afeto e cumplicidade […]. Depois de fazer a instrução primária na escola de S. Martinho de Anta, vai para o Porto, durante um ano, como 15 criado de servir, tendo, depois, o mesmo destino de todas as crianças menos abonadas da região – o Seminário de Lamego. […] Mas a falta de vocação sacerdotal era manifesta. É assim que, aos 13 anos, em 1920, parte para o Brasil […]. Aí frequenta, em 1924, o Ginásio Leopoldinense e, em 1925, regressa a Portugal, onde vai continuar os estudos, pagos pelo tio como recompensa dos cinco anos de trabalho na Fazenda de Santa Cruz. Conclui o curso dos liceus em três anos e matricula-se na Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra, que frequenta entre 1928 e 1933 […]. Em 1928 publica a sua primeira obra em verso […]. Terminado o curso de Medicina, Adolfo Rocha regressa a S. Martinho e exerce, depois, como clínico geral, em Vila Nova de Miranda do Corvo. Em 1934 publica, já com o pseudónimo Miguel Torga, A Terceira Voz. Miguel, como Cervantes e Unamuno, duas referências da cultura ibérica; Torga, como a urze resistente da sua terra transmontana. Isabel Vaz Ponce de Leão, O Essencial sobre Miguel Torga, Lisboa, INCM, 2007, pp. 3-6.

PONTO DE PARTIDA

1. Visiona um excerto do documentário Miguel Torga, o meu Portugal, e regista as ideias-chave de cada um dos seguintes tópicos: a) mito com o qual o poeta se identifica; b) motivo que o leva a identificar-se com esse mito; c) razões que levam Miguel Torga a considerar-se um geófago; d) temáticas abordadas pelo poeta na sua obra.

Miguel Torga, o meu Portugal (2007) REAL. Ângelo Peres

Miguel Torga

Figurações do poeta EDUCAÇÃO LITERÁRIA

PROFESSOR

MC

CD 2 Faixa n.0 2

Livro de Horas1

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Educação Literária 14.1; 14.2; 14.4; 14.7; 14.8; 14.9. Gramática 17.1.

Aqui, diante de mim, Eu, pecador, me confesso De ser assim como sou. Me confesso o bom e o mau Que vão ao leme da nau Nesta deriva em que vou. Me confesso Possesso De virtudes teologais2, Que são três, E dos pecados mortais3, Que são sete, Quando a terra não repete Que são mais. Me confesso O dono das minhas horas. O das facadas cegas e raivosas, E o das ternuras lúcidas e mansas. E de ser de qualquer modo Andanças Do mesmo todo. Me confesso de ser charco E luar de charco, à mistura. De ser a corda do arco Que atira setas acima E abaixo da minha altura. Me confesso de ser tudo Que possa nascer em mim. De ter raízes no chão Desta minha condição. Me confesso de Abel e de Caim4.

Sebastiano Ricci, Caim matando Abel por este ter sido preferido por Deus, s.d.

Sugestão ao professor Audição de músicas do projeto ouTorga, um tributo a Torga.

▪ Link «ouTorga, Livro de Horas», de Isabel Martinho e João Mascarenhas

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Me confesso de ser Homem. De ser um anjo caído Do tal Céu que Deus governa; De ser um monstro saído Do buraco mais fundo da caverna. Me confesso de ser eu. Eu, tal e qual como vim Para dizer que sou eu Aqui, diante de mim!

Miguel Torga, O Outro livro de Job, in Poesia Completa, Vol. I, Lisboa, Dom Quixote, 2007, pp. 85-86.

1 Livro de Horas: livro criado por

devotos no final da Idade Média. Continha eventos religiosos, orações comuns e os salmos penitenciais. 2 Virtudes teologais: fé, esperança e caridade (ou amor) – as virtudes que, segundo o cristianismo, devem ser cultivadas na relação dos Homens com Deus. 3 Pecados capitais: sete vícios humanos (gula, avareza, luxúria, ira, inveja, preguiça e soberba). 4 Abel e Caim: filhos de Adão e Eva. Segundo o Antigo Testamento, Caim matou o seu irmão.

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Unidade 3 // POETAS CONTEMPORÂNEOS

PROFESSOR

Educação literária 1. O sujeito poético diz-se disponível para se confessar, perante si mesmo, dando-nos o vibrante testemunho de que no seu interior de poeta coexistem o bom e o mau e reconhecendo a divisão interior do eu. 2.1 O poeta figura no poema como alguém em quem o bem e o mal não são dissociáveis, as virtudes e os pecados. Esta é, todavia, uma condição inerente a toda a Humanidade. Por isso, o eu afirma: «Eu, pecador, me confesso» (v. 2); «Me confesso o bom e o mau» (v. 4), «Me confesso de ser Homem» (v. 32). 3.1. O uso anafórico do pronome pessoal de primeira pessoa «me», o uso de formas verbais de 1.a pessoa «sou», «confesso»,«vou», «vim»; os pronomes pessoais «eu» e «mim» são marcas evidentes da presença do eu e da subjetividade. 4. A condição do sujeito está intimamente ligada à terra, como nos comprovam os versos «De ter raízes no chão / Desta minha condição.» (vv. 29-30) e «De ser o monstro saído / Do buraco mais fundo da caverna.» (vv. 35-36). O poeta revela, na sua mensagem, a sua vertente confessional de sinceridade e de transmontano. 5.1 O sujeito poético começa por afirmar que vem confessar-se perante si mesmo e, ao longo do poema, apresenta e confirma os motivos da sua confissão ao mostrar que, em si, coabitam o bom e o mau de forma indissociável; progride na sua confissão e mostra que essa divisão interior é evidente nas dicotomias vividas e que esta sua condição está enraizada («De ter raízes no chão / Desta minha condição», vv. 29-30), ou seja, faz parte da sua condição de Homem. Na última estrofe, o poeta retoma a sua intenção de confissão e, embora dividido, permanece diante de si, corajosamente, a afirmar-se – o retorno à síntese inicial remete-nos também para a oração e para a penitência expressas no título do poema. 6. a) personificação; b) metáfora; c) antítese; d) metáfora. Gramática 1. Deítico espacial – «Aqui»; deíticos pessoais – «mim», «eu», «me»; deíticos pessoais e temporais – «confesso», «sou», «vou». 2.1 «E» – coesão interfrásica; «Que» – coesão referencial. 2.2 «pecados mortais». 3. a) Complemento do nome; b) Modificador; c) Predicativo do sujeito.

1. Refere a intenção manifestada pelo sujeito poético no início do poema, explicando o que ela revela em relação à consciência do eu. 2. Em todo o poema, a figuração do poeta assume uma dimensão humanista que se estende para lá do individual.

FI

Figurações do poeta p. 215

2.1 Comprova a veracidade desta afirmação, recorrendo a elementos textuais. 3. A presença de um eu que afirma a sua subjetividade é visível ao longo de todo o poema. 3.1 Comprova esta afirmação recorrendo a elementos textuais. 4. Explica de que forma a condição humana expressa no poema está intimamente ligada à Terra e às serranias transmontanas. 5. A última estrofe representa o retorno à síntese inicial do eu. 5.1 Explicita a intencionalidade presente neste retorno, tendo em conta o conteúdo do poema. 6. Identifica o recurso expressivo presente nos versos seguintes.

Recursos expressivos SIGA p. 383

Versos a) «Quando a terra não repete / Que são mais.» (vv. 13-14) b) «Me confesso / O dono das minhas horas.» (vv. 15-16) c) «O das facadas cegas e raivosas, / E o das ternuras lúcidas e mansas.» (vv. 17-18) d) «Me confesso de ser charco / E luar de charco,» (vv. 22-23)

GRAMÁTICA

1. Procede ao levantamento de todos os deíticos presentes na primeira estrofe e classifica-os. 2. Atenta nos versos «E dos pecados mortais, / Que são sete,» (vv. 11-12).

Deixis SIGA p. 378 Coesão textual SIGA pp. 377-378

2.1 Identifica os mecanismos de coesão assegurados pelos elementos destacados. 2.2 Indica o referente do segundo elemento destacado. 3. Identifica as funções sintáticas das expressões destacadas. a) «Me confesso / O dono das minhas horas.» (vv. 15-16). b) «Que atira setas acima […]» (v. 25). c) «[…] sou eu / Aqui, diante de mim!» (vv.39-40)

Funções sintáticas SIGA pp. 372-373

Miguel Torga

Arte Poética

CD 2 Faixa n.0 3

PROFESSOR

MC

EDUCAÇÃO LITERÁRIA

Coimbra, 1 de março de 1984

Arte poética

5

10

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Mas sendo, como é, de cabra-cega O jogo, E é um destino jogá-lo, É sempre incerto que o principio. Tateio no vazio Da expressão, Vou seguindo Seguindo, E ganho quando sinto a salvação No próprio gosto de me ir iludindo.

Educação Literária 14.1; 14.2; 14.3; 14.4; 14.6; 14.7; 14.8.

Educação Literária 1. a) «Fecho os olhos e avanço.» (v. 1); b) «É sempre incerto que o principio.» (v. 14); c) «Tateio no vazio / Da expressão» (vv. 15-16); d) «E chegar sem saber.» (v. 7). 2. O sujeito poético refere-se ao momento da criação poética, ao aparecimento da poesia como se de um milagre se tratasse – algo que surge natural e espontaneamente, sem explicação objetiva.

1

Fecho os olhos e avanço. E começa o poema. Rodeiam-me os fantasmas Fugidios Dos versos que persigo. A regra é caminhar E chegar sem saber. De tal modo é cruzada A encruzilhada Onde o milagre pode acontecer.

211

Francisco de Goya, Cabra-cega (pormenor), 1788-1789.

1 Arte poética: Preceitos, conhecimentos e técnicas

exigidas na escrita da poesia.

Miguel Torga, Diário XIII, in Poesia Completa, Vol. II, Lisboa, Dom Quixote, 2007, p. 415.

1. Identifica no poema os versos correspondentes a cada um dos momentos da criação Arte poética poética. FI p. 215 a) Momento anterior à criação poética. b) Início da criação poética. c) Forma de atuar durante a criação poética. d) Resultado da criação poética. 2. Explicita o sentido do verso «Onde o milagre pode acontecer» (v. 10), fundamentando a tua resposta. 3. Refere a forma como se processa a criação poética, segundo o sujeito poético. 4. Caracteriza formalmente o poema, tendo em conta a estrutura estrófica, a rima e a métrica. 5. Indica de que modo as formas verbais destacadas contribuem para intensificar a mensagem do poema. «Vou seguindo / Seguindo, / E ganho quando sinto a salvação/ No próprio gosto de me ir iludindo.» (vv. 17-20).

3. Para o sujeito poético, o ato da criação poética assemelha-se ao percorrer de um caminho: o poeta, aventureiro, parte («avanço», v. 1), sem saber bem onde poderá «chegar» (v. 7), ou até onde o levará o caminho, e prossegue no seu «caminhar» (v. 6), cruzando cada «encruzilhada» à espera de acontecer o «milagre» (v. 10) da poesia. «Seguindo» (v. 17) sempre, o poeta espera que a inspiração o guie e lhe permita alcançar a mais bela poesia. Todo o «caminho» é percorrido ao acaso, sempre na esperança de chegar ao desejado «poema». 4. O poema é composto por duas décimas (estrofes de dez versos); quanto à rima, o poema é maioritariamente composto por verso solto ou branco. No entanto, na primeira estrofe há uma rima interpolada (7.o e 10.o versos); na segunda estrofe há rima interpolada (6.o e 9.o versos), rima emparelhada (7.o e 8.o versos) e rima cruzada (8.o e 10.o versos). A métrica é irregular, oscilando entre versos trissílabos «Fu/ gi/di/os» e versos decassilábicos «On/ de o / mi/la/gre / po/de a/con/te/cer». 5. As formas verbais destacadas são formas nominais – no gerúndio. Neste contexto, são usadas para reforçar a ideia de continuidade, de algo que se repete indefinidamente e vai acompanhando o sujeito poético no seu ato de criação poética.

212

Unidade 3 // POETAS CONTEMPORÂNEOS

PROFESSOR

MC

Educação Literária 14.1; 14.2; 14.3; 14.4; 14.7; 14.8; 15.1; 15.2; 16.2.

Educação Literária 1. a) «(És) homem» (v. 18); b) «Recomeça» (v. 1); c) «Dá-os em liberdade [os passos que deres]» (v. 7); «Não descanses [enquanto não alcances]» (v. 9); «De nenhum fruto queiras só metade» (v. 10); «Vai colhendo/ilusões» (vv. 12-13); «[Vai] vendo / Acordado, / O logro da aventura» (vv. 15-17). 2. As reticências indiciam que se trata de uma tarefa já executada anteriormente, ou seja, é necessário construir ou fazer um caminho que já se percorreu, tendo consciência de que tudo tem de se reconstruir e refazer. Trata-se, pois, segundo o poeta, de um «caminho duro». Após cada começo, há que recomeçar repetidamente. 3. Os vocábulos que remetem para a lucidez humana são «vendo», «acordado», «lucidez» e «reconheças» – a condição humana obriga o ser humano a cair e a levantar-se, a sofrer derrotas e a voltar a combater, ou seja, a erguer-se e a reerguer-se na árdua tarefa de viver, mas sempre consciente dos seus atos. 4. Sísifo foi condenado a rolar uma pedra montanha acima, sabendo que ao atingir o topo ela resvalaria; não conseguindo evitar a sua queda, é obrigado a fazê-la rolar novamente até ao cimo da montanha. Consciente do que o espera, recupera e, «sem angústia e sem pressa» (v. 3), recomeça o seu trabalho sem fim. Também o poeta, para quem o trabalho da criação poética nunca estará concluído, realiza um trabalho infindável com as suas palavras, obrigado a um esforço semelhante ao de Sísifo ao rolar a pedra montanha acima. 5. O poema pode ser considerado um hino à condição humana («És homem, não te esqueças» v. 18), uma vez que nos apresenta o homem na sua condição de condenado, obrigado a carregar a sua cruz até ao fim da vida, «sem angústia e sem pressa», «em liberdade», até alcançar o «fruto desejado». 6. Ao longo dos tempos, a mitologia tem ocupado lugar de destaque na literatura portuguesa, sendo uma das temáticas mais abordadas pelos escritores. Em Miguel Torga, a presença de divindades e a oposição entre o paganismo e o cristianismo assumem lugar de destaque no âmbito da tradição literária. Além deste aspeto, «Sísifo» aborda o tema da persistência, da luta permanente do homem para alcançar os seus objetivos, não querendo de nenhum «fruto» só «metade», tema de inesgotável alcance no âmbito da produção literária.

Tradição literária EDUCAÇÃO LITERÁRIA

Sísifo1

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CD 2 Faixa n.0 4

Recomeça… Se puderes, Sem angústia e sem pressa. E os passos que deres, Nesse caminho duro Do futuro, Dá-os em liberdade. Enquanto não alcances Não descanses. De nenhum fruto queiras só metade. E, nunca saciado, Vai colhendo Ilusões sucessivas no pomar. Sempre a sonhar E vendo, Acordado, O logro da aventura. És homem, não te esqueças! Só é tua a loucura Onde, com lucidez, te reconheças.

Ticiano, Sísifo (pormenor), 1548-1549. 1 Mito de Sísifo: como castigo pelas suas ações, foi con-

denado a empurrar, por toda a eternidade, uma grande pedra com as suas mãos até ao cimo de uma montanha; sempre que alcançava o topo, a pedra rolava novamente montanha abaixo até ao ponto de partida, anulando todo o duro esforço. A expressão «trabalho de Sísifo» refere-se à realização de qualquer tarefa que envolva esforços longos, repetitivos, mas inevitavelmente condenados ao fracasso.

Miguel Torga, Diário XIII, in Poesia Completa, Vol. II, Lisboa, Dom Quixote, 2007, pp. 381-382.

1. Todo o poema se baseia num apelo, em forma de incitamento, levado a cabo pelo sujeito poético. Preenche o quadro com referências textuais. a) Destinatário do apelo



b) Apelo ou incitamento



c) Condições para responder ao apelo



2. Justifica o uso de reticências em «Recomeça…» (v. 1). 3. Faz o levantamento dos vocábulos que, na segunda estrofe, remetem para a lucidez do homem e relaciona-os com a condição humana expressa no poema. 4. Demonstra que a tarefa de Sísifo se pode assemelhar à tarefa do poeta – a criação poética. 5. «Sísifo» pode ser considerado um hino à condição humana. 5.1 Fundamenta esta ideia, recorrendo a elementos textuais. 6. Comprova que este poema é uma referência ao universo da tradição literária, fundamentando a tua resposta.

FI

Tradição literária p. 215

Miguel Torga

Representações do contemporâneo

213

PROFESSOR

Ordonho, 2 de outubro de 1961

Educação Literária 14.1; 14.2; 14.3; 14.4; 14.6; 14.7; 14.8; 14.9; 15.1; 15.2; 15.3.

S. Leonardo de Galafura1

Gramática 17.1; 19.2; 19.3.

EDUCAÇÃO LITERÁRIA

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CD 2 Faixa n.0 5

MC

Escrita 10.1; 11.1; 12.1; 12.2; 12.3; 12.4; 13.1.

À proa dum navio de penedos, A navegar num doce mar de mosto2, Capitão no seu posto De comando, S. Leonardo vai sulcando As ondas Da eternidade, Sem pressa de chegar ao seu destino. Ancorado e feliz no cais humano, É num antecipado desengano Que ruma em direção ao cais divino. Lá não terá socalcos3 Nem vinhedos Na menina dos olhos deslumbrados; Doiros desaguados Serão charcos de luz Envelhecida; Rasos, todos os montes Deixarão prolongar os horizontes Até onde se extinga a cor da vida.

Sugestão ao professor

▪ Link Horizontes da Memória, «Em Torno de Galafura», RTP2 Educação Literária 1. «Cais humano» e «cais divino» são as metáforas usadas com a intenção de sobrevalorizar a terra, o que revela, claramente, o telurismo de Torga. Quando confrontados os cais, o humano fica a ganhar, pois os seus encantos são insuperáveis. 2. O texto pode ser dividido em três partes, correspondentes às três estrofes que o compõem. António Carneiro, Porto Manso; o Rio Douro em Arcede (pormenor), 1927.

Por isso, é devagar que se aproxima Da bem-aventurança. É lentamente que o rabelo4 avança Debaixo dos seus pés de marinheiro. E cada hora a mais que gasta no caminho É um sorvo a mais de cheiro A terra e a rosmaninho! Miguel Torga, Diário IX, in Poesia Completa, Vol. II, Lisboa, Dom Quixote, 2007, pp. 228-229.

1. O poema é alegórico e nele se estabelece um paralelo entre terra e céu, usando para o efeito duas metáforas. Identifica-as e explicita a sua intencionalidade. 2. Divide o poema em partes e sintetiza o assunto de cada uma delas. 3. Comprova que existe um percurso de circularidade na forma como se descreve a viagem de S. Leonardo.

Primeira parte – 1.a estrofe: o santo inicia a viagem, sem pressas, movido por um «antecipado desengano» (v. 10). Segunda parte – 2.a estrofe: descreve-se a realidade para a qual se caminha, o que irá encontrar no «cais divino» (v. 11). Terceira parte – 3.a estrofe: Volta-se à descrição da caminhada lenta, para que se prolongue a permanência na terra. 3. O poema começa com a descrição da viagem, antecipa o que estará «lá» no final do caminho (o futuro) e retorna ao presente e à descrição da lenta viagem.

1 S. Leonardo de Galafura: Mira-

douro em Galafura, na freguesia no concelho do Peso da Régua, no Douro. 2 Mosto: Sumo de uva, antes da fermentação completa. 3 Socalcos: porções de terreno nas encostas dos montes, suportadas por muros de pedra; são característicos da paisagem duriense. 4 Rabelo: Barco à vela, característico do rio Douro, usado para o transporte das pipas de vinho do Porto, do Alto Douro até Vila Nova de Gaia.

214

Unidade 3 // POETAS CONTEMPORÂNEOS

PROFESSOR

Educação Literária 4.1 S. Leonardo não tem pressa de chegar ao seu destino porque é feliz «no cais humano», onde estão a felicidade, a vida e a luz; a viagem é lenta para que o santo possa prolongar o prazer de sorver «[…] mais de cheiro / A terra e a rosmaninho!» vv. 26-27). 5. O poema começa com uma estrofe irregular de onze versos, continua com uma nona e termina com uma sétima, o que nos poderá revelar a aproximação ao destino, a viagem que se vai tornando cada vez mais próxima do fim. Quanto à métrica, trata-se de uma estrutura irregular em que versos curtos e longos vão alternando de modo a transmitir também a irregularidade do percurso feito. 6.1 Todo o poema nos vai apresentando S. Leonardo de Galafura como uma parte da Terra que poderá aproximar-se do paraíso, dada a sua riqueza natural; trata-se de um louvor à natureza e à terra, expresso no olhar do homem («Na menina dos olhos deslumbrados», v. 14) que não consegue separar-se das paisagens envolventes. S. Leonardo pode comparar-se, aqui, ao próprio poeta, para quem a proximidade com a terra é sinónimo de vida. 7. Em Torga, toda a representação do contemporâneo está associada à representação da Natureza, ao amor pela terra e ao apego do poeta a ambas, onde encontra motivo de paz e serenidade e se sente feliz. S. Leonardo de Galafura é um exemplo de verdadeira contemporaneidade em Torga, na medida em que representa o apego do poeta (aqui personificado em S. Leonardo) ao Douro, cenário privilegiado de contemplação e mundanidade. O espaço que o poeta não quer abandonar por considerar o mais aproximado do paraíso. Gramática 1. «penedos»; «mosto»; «socalcos»; «vinhedos»; «Doiros»; «montes»; «rabelo»; «terra»; «rosmaninho». 2.1 «vai sulcando» – valor durativo – demonstra que a viagem é algo que vai decorrendo / se encontra em curso; transmite valor de continuidade e duração. 3.1 O deítico «lá» tem valor espacial e prova que o destino da viagem é distante do ponto de partida, onde se encontra o sujeito. 3.2 Relação temporal de posterioridade – algo que irá acontecer num momento posterior. 4. «sem pressa», «devagar» e «lentamente».. O seu uso é pertinente na medida em que representam o modo como se fez a viagem de S. Leonardo e reforçam a lentidão da mesma.

▪ Vídeo «Viagem», Master Shot ▪ Apresentação em PowerPoint Correção da atividade de Escrita

4. A viagem do santo é feita «sem pressa de chegar ao seu destino». 4.1 Regista os motivos que conduzem a esta lentidão, fundamentando a tua resposta com elementos textuais. 5. Justifica como a construção estrófica e métrica do poema se pode associar à irregularidade do espaço a percorrer. 6. Miguel Torga é um poeta fortemente influenciado pela terra e fiel às suas raízes, facto que o leva a ser considerado um poeta telúrico. 6.1 Prova que este poema é um louvor à natureza e está imbuído do espírito telúrico de Torga. 7. Demonstra o modo como as representações do contemporâneo estão presentes neste poema.

FI

Representações do contemporâneo p. 216

GRAMÁTICA

1. Retira seis palavras do poema que remetam para o campo lexical de Douro. 2. «S. Leonardo vai sulcando / As ondas» (vv. 5-6). 2.1 Refere o valor aspetual do verbo presente neste verso e explicita a sua expressividade.

Campo semântico SIGA e campo lexical p. 367

FI

Valor aspetual pp. 59-60

3. «Lá não terá socalcos / Nem vinhedos / Na menina dos olhos deslumbrados» (vv. 12-14). 3.1 Indica o valor do deítico «Lá» e justifica o seu uso no poema. 3.2 Identifica a relação de ordem cronológica que se estabelece neste verso em relação aos acontecimentos apresentados.

Deixis SIGA p. 378

FI

Valor temporal pp. 57-58

4. Faz o levantamento dos advérbios e locuções adverbiais com valor de modo e fundaClasses e subclasses menta a sua pertinência na construção do poema. SIGA de palavras pp. 368-371

ESCRITA

Exposição sobre um tema SIGA pp. 360-361

Exposição sobre um tema Visiona o filme promocional da Master Shot, sobre o poema «Viagem» de Miguel Torga, e escreve um texto expositivo, tendo em conta os seguintes tópicos: • elemento impulsionador da viagem; • espaço percorrido pelo sujeito poético/percurso da viagem; • antítese que sintetiza a viagem; • o que ou quem procura o poeta durante a viagem.

«Viagem», Miguel Torga Master Shot

No final, faz a revisão do teu texto. Verifica a construção das frases, a clareza do discurso, a utilização de conectores e corrige situações de repetições desnecessárias.

Ficha informativa

FICHA INFORMATIVA 1 Figurações do poeta

5

No Diário, Torga insiste: «O poeta não é uma abstração. É um ser real, que existe no real.» Entre pudor e rebelião, reclama o mutismo quando se trata das profundezas do seu mal-estar […]. Em ser agónico ou em homem revoltado, é efetivamente o retrato do poeta que é desenhado no Diário, na prosa ou nos versos. Os autorretratos, os testamentos, as cenas-«narrativas» de uma vida de criação lá estão para trazer o homem, o Poeta, para a superfície do poema.

PROFESSOR

MC

Leitura 7.1; 7.4; 8.1.

Catherine Dumas, «O Atelier de Poesia no Diário de Miguel Torga», in Carlos Mendes de Sousa (org.), Dar Mundo ao Coração – Estudos sobre Miguel Torga, Lisboa, Texto, 2009, p. 237.

Arte poética

5

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O voluntarismo e a rebeldia perante a expressão não refreada são claros: o Poeta pede palavras à inspiração, metaforizada em destino, mas não permite que essa inspiração domine a construção do poema. De facto, depois da euforia criadora momentânea, Torga dedica-se a submeter o poema à razão e ao escopo, numa complementaridade total entre o trabalho intelectual intuído e o trabalho manual de aperfeiçoamento do poema. O momento fulgurante da inspiração e a dimensão material da efusão lírica não são algo a desprezar, mas não invalidam o árduo ofício de reescrita da lógica criativa. E este labor cria no Poeta uma obsessão pelo modo de expressão da poesia, que é considerado indissociável da matéria literária. Mafalda Maria Frade, «Torga, o rebelde insatisfeito: o drama da criação poética», in Isabel Ponce de Leão (coord.), A minha verdadeira imagem está nos livros que escrevi, Vol. I, Porto, Edições Universidade Fernando Pessoa, 2007, pp. 102-103.

Tradição literária 1. As vozes dos outros e a voz do poeta

5

Atravessando estéticas e tendências literárias, passando por esses dois movimentos de notável relevância na primeira metade do século XX, que são a Presença e o Neorrealismo, a grande originalidade de Torga deve-se certamente ao modo como, cantando com os outros, afirma uma voz e cunha uma personalidade literária de registo e modo de ser inconfundíveis nas próprias contradições que explora e nessa luta insana com o mundo, com as palavras e, em última instância, com esse inapelável «Senhor do Mundo» que tanto o incomoda e que dá pelo nome de Deus. […] Rosa Goulart, «Miguel Torga: o outro mundo dos versos», op. cit., 2007, p. 183.

Isolino Vaz, Retrato de Miguel Torga, 1961.

215

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Unidade 3 // POETAS CONTEMPORÂNEOS

FICHA INFORMATIVA 1 2. A influência dos clássicos e da mitologia

PROFESSOR

Consolida 1. a) F. O poeta é levado frequentemente para a superfície do poema. b) V. c) V. d) V. e) F. Deus é uma permanente preocupação para o poeta. f) F. Sísifo e o poeta aproximam-se na forma como persistem na luta contra os obstáculos que lhes são impostos – a pedra para Sísifo; a poesia para Torga. g) V. h) F. A linguagem poética é expressiva e transforma a paisagem num verdadeiro mosaico de cores e sensações.

5

Como Sísifo, mito clássico que exprime a desproporção existente entre o esforço ambicioso e a limitação humana, persiste no impossível, não acreditando na infelicidade de poder permanecer eternamente arrastando a sua «pedra de desassossego». […] Nesta eterna ilusão de atingir o inatingível, [Torga] tenta desesperadamente sossegar a sua alma, sedenta de vida, que a mudez poética começa a matar, e prende-se ao sonho messiânico, formulando teses imaginárias que sustêm a esperança, frágil base da sua vida. Mafalda Maria Frade, «Torga, o rebelde insatisfeito: o drama da criação poética», in op. cit., pp. 115-116.

Representações do contemporâneo

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Quer se trate de S. Martinho de Anta, verdadeiro centro do mundo, ou do Marão granítico, das praias do litoral ou do «descampado dum sonho infinito» identificado com o Alentejo, dos «seios de pedra» ou ainda das lezírias ribatejanas «que um deus ainda visita e fecunda», todos os recantos da paisagem portuguesa, inúmeras vezes revisitados de norte ao sul e mantendo sempre o gosto do inédito, são transmitidos por meio de uma linguagem poética que os transforma num verdadeiro mosaico de cores e sensações. Neste Portugal apresentado como «uma nesga de terra debruada de mar», Torga reencontra os seus lugares prediletos, focos de memória, familiares e íntimos, espaços emblemáticos que lhe inspiram um sentimento de plenitude, mas também lugares povoados de seres rústicos que se confundem com os animais numa espécie de natureza primitiva […]. Maria Graciete Besse, «Miguel Torga e a Paixão pelo Exterior: um Poética da Relação», in Carlos Mendes de Sousa (org.), Dar Mundo ao Coração – Estudos sobre Miguel Torga, Lisboa, Texto, 2009, p. 74.

CONSOLIDA

1. Com base nos textos que acabaste de ler, classifica as afirmações como verdadeiras (V) ou falsas (F). Corrige as falsas. a) Na poesia de Torga, o poeta é uma entidade abstrata que nunca se encontra no poema. b) Torga define a sua arte poética como um misto de inspiração espontânea e aperfeiçoamento intelectual do poema. c) A preocupação com a matéria literária e o seu modo de expressão poético são uma constante na vida do poeta. d) A poesia de Miguel Torga é repleta de contradições. e) Além da luta com as palavras e com o mundo, nada mais perturba o poeta. f) Sísifo, embora surja como elemento clássico inspirador na poesia torguiana, em nada se assemelha ao poeta. g) Na poesia de Torga, a paisagem portuguesa é temática recorrente. h) Quando retrata a natureza de norte a sul do país, o poeta usa uma linguagem pouco expressiva que anula as diferenças desses cenários. Armando Alves, Sem Título (pormenor), 1995.

Ficha informativa

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FICHA INFORMATIVA 2 Linguagem, estilo e estrutura

PROFESSOR

MC

1. O estilo poético de Torga

5

O trabalho técnico do verso, do poema, é salientado. Para o poeta, trata-se, como para Sísifo, de um combate. A palavra «verso» volta de maneira obsessiva. Ao lado de observações técnicas como «verso exato», o trabalho da metáfora relaciona o verso com os elementos naturais. O trabalho técnico sobre a sonoridade é aqui detalhado; mas o que importa é o caráter encantatório, órfico1, a desmedida do enfeitiçamento, o milagre e o deslumbramento. A rima e o verso pulsam com oralidade e temporalidade, tempo ao mesmo tempo suspenso e ritmado por essa imagem do desfolhar. Catherine Dumas, «O Atelier de Poesia no Diário de Miguel Torga» in Carlos Mendes de Sousa (org.), Dar Mundo ao Coração – Estudos sobre Miguel Torga, Lisboa, Texto, 2009, pp.225-227 (texto adaptado).

5

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Consolida Sugestão de tópicos: Texto 1 • O mito de Sísifo exprime a desproporção entre o esforço e a limitação humanos, acalentando-se a esperança de que o sofrimento de arrastar a pedra não seja eterno. • De forma semelhante, Torga, na ilusão de atingir o inatingível, tenta tranquilizar-se, através do sonho messiânico e da esperança. Texto 2 • Os recantos da paisagem portuguesa são transmitidos através de uma linguagem poética que os transforma em obras de arte plenas de cores e sensações. • Neste Portugal, memórias familiares convivem com uma natureza primitiva.

2. Ambientes e linguagem A obra de Miguel Torga procura banhar num ambiente de mitos agrários e pastoris que da sua origem aldeã transmontana remontam aos símbolos bíblicos. A semente, a seiva, a colheita, a água, a terra, o vento, o pão, o parto, o pastoreio, Adão e Eva, por exemplo, recorrem nos seus livros como se fossem, não ideias, mas imagens irradiantes. […] Reflete ainda as apreensões, esperanças e angústias do seu tempo, dentro do seu «titanismo»2 individualista e, no fundo, religioso de visão, e a sua pureza e originalidade rítmicas, a coerência orgânica das suas imagens impõem-se.

Leitura 7.1; 7.4; 8.1; 8.2.

1 Órfico: referente a Orfeu, figura

da mitologia conhecido pelas suas qualidades musicais; filho de Apolo e da musa Calíope, recebeu do pai uma lira como presente e aprendeu a tocar com tanta dedicação e beleza, que ninguém conseguia ficar indiferente ao encanto da sua música. 2 Titanismo: próprio de Titã; gigantesco. Miguel Torga na sua máquina de escrever.

António José Saraiva & Óscar Lopes, História da Literatura Portuguesa, 17.ª ed., Porto, Porto Editora, 1996, pp. 1014-1015.

CONSOLIDA

1. Elabora tópicos que sistematiza as ideias-chave dos textos 1 e 2, organizando-os sequencialmente.

218

Unidade 3 // POETAS CONTEMPORÂNEOS

Eugénio de Andrade PROFESSOR

MC

Oralidade 1.1; 1.3; 1.4; 2.1. Educação Literária 14.1; 14.2; 14.3; 14.4; 14.7; 14.8; 14.9; 15.1; 15.2; 15.3; 16.2.

Sugestão ao professor ▪ «Uma Biografia de Eugénio de Andrade», Ensina RTP ▪ Vídeo / Áudio «O Sorriso», Eugénio de Andrade ▪ Áudio «O Sorriso», Eugénio de Andrade Ponto de Partida a) O sorriso abriu a porta; b) Tinha muita luz lá dentro; c) Entrar nele; tirar a roupa; ficar nu dentro dele; correr; navegar; morrer; d) A vida: aquele sorriso fazia apetecer viver a vida junto dele, com ele. 20

25

Pseudónimo de José Fontinhas (n. Póvoa de Atalaia, Fundão, Beira Baixa, 10.1.1923). Com sete anos de idade acompanha a mãe para Castelo Branco 5 e fixa-se em Lisboa em 1932. Nesse mesmo ano termina os estudos primários que iniciara na aldeia natal. Por volta dos 12 anos, descobre a biblioteca de um vizinho e começa a ler intensamente, Júlio 10 Verne, Jack London e Alexandre Dumas, os clássicos românticos portugueses, os romances de Dostoievski, Tolstoi e Gorki e a poesia de António Botto. É a este poeta que, em 1939, enviará uma carta 15 com 3 ou 4 poemas, manifestando o desejo de o conhecer. Encontro particularmente importante, pois é a partir deste momento que um amigo de Botto lhe dá a conhecer a poesia de Fernando Pessoa, origem de um fascínio extraordinário. […] Em 1943 instala-se em Coimbra. No ano seguinte irá para Tavira para cumprir o serviço militar, que terminará em Coimbra. Nesta cidade trava amizade com Miguel Torga e aí publica, em 1946, uma Antologia Poética de García Lorca. […] Publica em 1948 aquele que viria a ser o seu livro de consagração e o mais reeditado dos seus textos: As mãos e os frutos. Por essa altura faz amizade e convive com outros poetas como Mário de Cesariny e Sophia de Mello Breyner Andresen. Fixa residência no Porto em 1950. Carlos Mendes de Sousa, «Eugénio de Andrade», in José Augusto Cardoso Bernardes et al. (dir.), Biblos, Enciclopédia das Literaturas de Língua Portuguesa, vol. 1, Lisboa, Editorial Verbo, 1999, pp. 264, 266.

5

[…] Vivendo fundamentalmente em função da poesia, especialmente depois da morte de sua mãe e antes do nascimento do afilhado Miguel, ele nunca fez grandes concessões ao público, às instituições literárias, aos meios de comunicação de massa. […] Muitos sabiam da sua vida austera e parca, do seu retiro, só a espaços interrompido, na sua cela, ou quase, da portuense Rua Duque de Palmela; a mudança em 1994, para a casa da Fundação que tinha o seu nome, no Passeio Alegre, operou alguma «abertura», mas os contactos públicos, salvo com os amigos, continuaram a ser vigiados. Arnaldo Saraiva, Introdução à Poesia de Eugénio de Andrade, Porto, Fundação Eugénio de Andrade, 1995, p. 8.

PONTO DE PARTIDA

CD 2 Faixa n.0 6

Ouve atentamente o poema de Eugénio de Andrade «O Sorriso», dito pelo próprio. Regista os seguintes tópicos: a) efeitos produzidos pelo sorriso; b) características do sorriso;

c) desejos despertados pelo sorriso; d) imagem suscitada pelo sorriso.

Eugénio de Andrade

Figurações do poeta EDUCAÇÃO LITERÁRIA

PROFESSOR

Educação Literária

CD 2 Faixa n.0 7

1. O sujeito poético é um poeta porque dedicou toda a sua vida às palavras («Eu gosto delas, nunca tive outra / paixão» – vv. 10-11), sempre as tentou dominar com «mão rigorosa» (v. 8) e com elas «sustentava os meus dias» (v. 15).

Agora as palavras

5

10

15

219

Obedecem-me agora muito menos, as palavras. A propósito de nada resmungam, não fazem caso do que lhes digo, não respeitam a minha idade. Provavelmente fartaram-se da rédea, não me perdoam a mão rigorosa, a indiferença pelo fogo-de-artifício. Eu gosto delas, nunca tive outra paixão, e elas durante muitos anos também gostaram de mim: dançavam à minha roda quando as encontrava. Com elas fazia o lume, sustentava os meus dias, mas agora estão ariscas, escapam-se por entre as mãos, arreganham os dentes se tento retê-las. Ou será que já só procuro as mais encabritadas?

2. 2.1 O poeta refere-se ao presente («Obedecem», «agora», v. 1) e ao passado («fartaram-se», v. 6; «durante muitos anos / também gostaram de mim» (vv. 11-12). 2.2 Com a passagem do tempo, o poeta passou a sentir mais dificuldade em dominar as palavras. Estas começaram a resmungar (v.3), a desobedecer-lhe (vv. 3-4, 6), a desrespeitar a sua idade (v. 5) e, «ariscas», escapam-se-lhe «por entre / as mãos» (vv. 16-17) e mostram-lhe os dentes, em sinal de protesto.

António Carneiro, Paisagem (pormenor), 1920.

Eugénio de Andrade, «O Sal da Língua», in Poesia, Porto, Fundação Eugénio de Andrade, 2000, pp. 527-528.

1. Comprova que o sujeito poético pode ser caracterizado como um poeta. 2. Com a passagem do tempo, a relação do poeta com as palavras alterou-se. 2.1 Comprova que o poeta se refere ao presente e ao passado na caracterização dessa relação, justificando a tua resposta com expressões que se referem a cada um desses tempos. 2.2 Explica a mudança ocorrida na relação do poeta com as palavras, referindo as manifestações dessa mudança. 2.3 Identifica o recurso expressivo usado na caracterização das palavras, tendo em conta a sua relação com o poeta, e justifica a sua expressividade. 3. Explica em que medida os versos 8 e 9 permitem caracterizar o poeta, quanto ao seu modo de fazer poesia.

FI

Figurações do poeta p. 224

4. Estabelece uma relação entre as referências à idade (v. 5), o uso do advérbio «provavelmente» (v. 6) e a frase interrogativa final (vv. 18-19), tendo em conta que o poema pode ser entendido como um retrato da sua evolução como poeta.

2.3 O recurso expressivo é a personificação, uma vez que as palavras parecem ter vida própria. Mas há também no poema a sugestão de as palavras se assemelharem a um animal (um cavalo, por exemplo), como é visível nas referências à desobediência, ao «arreganhar dos dentes», mas também às «rédeas» que o poeta usa para as controlar. Estes recursos contribuem para dar vida às palavras e tornar o ofício do poeta mais exigente. 3. Através destes versos, é possível perceber que o poeta trabalha as palavras com rigor («mão rigorosa» – v. 8) e privilegia um certo despojamento de artifícios. Note-se a referência à indiferença pelo fogo-de-artifício, vv. 8-9). 4. O poeta é maduro e experiente (note-se que Sal da Língua, livro no qual o poema foi publicado pela primeira vez, foi editado em 1995, quando o poeta tinha já 72 anos). Com o passar dos anos, reconhece que a sua relação com as palavras se tem alterado; apesar de parecer atribuir às palavras a responsabilidade dessa mudança, não tem certezas disso.

220

Unidade 3 // POETAS CONTEMPORÂNEOS

Arte poética

PROFESSOR

MC

Educação Literária 14.1; 14.2; 14.3; 14.4; 14.6; 14.8; 14.9; 15.1; 15.2; 15.3; 16.2.

EDUCAÇÃO LITERÁRIA

Escrita 11.1; 12.1; 12.2; 12.3; 12.4; 13.1. 1.1 No poema «A sílaba», o poeta passa toda uma manhã à procura de uma sílaba. Apesar de saber («é certo», v. 2) que uma sílaba é «pouca coisa» (v.2), esta faz-lhe falta (vv.4-5). Aliás, só ele sabe a falta que ela lhe faz. No poema «Sílaba a sílaba», o título e o primeiro verso confirmam o lento processo de elaboração da escrita. 1.2 O poema sugere que a escrita é um processo de paciência e pormenor, porque o poeta procura, lenta e cuidadosamente, «toda a manhã» (v. 1) uma sílaba, que apesar de parecer insignificante («quase nada», v. 3) lhe faz muita falta. Esta sugestão de que a escrita é um processo aturado de atenção, pormenor e rigor está também presente na expressão «com obstinação» (v. 6). 2. As expressões «frio de janeiro» (v. 8) e «estiagem / do verão» (vv. 8-9) configuram uma referência concreta à passagem do tempo. Para se defender desta passagem do tempo («Só ela me podia defender», v. 7), o poeta terá de encontrar a sílaba certa, isto é, o poema. Esta sílaba procurada (em última análise, o poema) abriga o segredo da salvação (v. 11), isto é, o segredo da sobrevivência à passagem do tempo. 3. No poema estão presentes alusões diretas ou indiretas aos quatro elementos: a terra evocada pelo «trevo», o ar que dói; a água da «linha de água», mas também da boca; e o fogo das «mãos acesas». 4. No último verso está presente uma metonímia, uma vez que as mãos se referem, como instrumento da escrita, ao próprio poeta. No mesmo verso, o adjetivo «acesas», a qualificar as mãos, configura uma metáfora. Ambos os recursos contribuem para fazer do ato da escrita um ato simbólico. Do mesmo modo que o fogo destrói e ilumina, também a escrita assenta nesta dicotomia: é um processo contínuo de renascimento e irradiação.

5

10

CD 2 Faixas n.0 8 e 9

A sílaba

Sílaba a sílaba

Toda a manhã procurei uma sílaba. É pouca coisa, é certo: uma vogal, Uma consoante, quase nada. Mas faz-me falta. Só eu sei a falta que me faz. Por isso a procurei com obstinação. Só ela me podia defender do frio de janeiro, da estiagem do verão. Uma sílaba. Uma única sílaba. A salvação.

Eis sílaba a sílaba de uma cor perversa O tempo quase nu para levar à boca

Eugénio de Andrade, «Ofício de Paciência», in Poesia, Fundação Eugénio de Andrade, 2000, p. 502.

Como se fora minha a respiração do trevo Alcanço a linha de água 5

Habito onde o ar dói as próprias mãos acesas

Eugénio de Andrade, «Véspera da Água», in Poesia, Porto, Fundação Eugénio de Andrade, 2000, p. 177.

FI

Arte poética p. 224

1. Eugénio de Andrade escreveu:

«Não sou um poeta inspirado, o poema é em mim conquistado sílaba a sílaba»[…]. «Sublinho este fazer, pois o poema tem sempre qualquer coisa de artesanal». Eugénio de Andrade, Rosto Precário, 6.ª edição, Porto, Fundação Eugénio de Andrade, 1995, pp. 37 e 96.

1.1 Encontra evidências nos dois poemas de que para Eugénio de Andrade um poema se constrói «sílaba a sílaba». 1.2 Comprova que a poesia, para Eugénio de Andrade, é o resultado de um ofício «artesanal» de paciência e pormenor, reportando-te ao poema «A sílaba». 2. Explicita a relação que se estabelece entre a escrita e o fluir inexorável do tempo no poema «A sílaba». 3. Transcreve do poema «Sílaba a sílaba» expressões que se refiram aos quatro elementos: terra, ar, água e fogo – uma constante da poesia de Eugénio. 4. Identifica os recursos expressivos que estão presentes no último do verso do poema «Sílaba a sílaba», salientando a forma como contribuem para a definição de uma arte poética. ESCRITA

Texto de opinião SIGA pp. 364-365

Texto de opinião Escrita

▪ Apresentação em PowerPoint Sugestão de tópicos

Em que medida podem as palavras salvar, incendiar, destruir ou iluminar o mundo? Escreve um texto de opinião, de duzentas a trezentas palavras, sobre o poder das palavras e a importância da sua escolha para o estabelecimento da comunicação. Não te esqueças de ilustrar os teus argumentos com exemplos.

Eugénio de Andrade

Tradição literária EDUCAÇÃO LITERÁRIA

PROFESSOR

MC

CD 2 Faixa n.0 10

Green God

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Sorria como quem dança. E desfolhava ao dançar o corpo, que lhe tremia num ritmo que ele sabia que os deuses devem usar.

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E seguia o seu caminho, porque era um deus que passava. Alheio a tudo o que via, enleado na melodia duma flauta que tocava.

Eugénio de Andrade, «As mãos e os frutos», in Poesia, Porto, Fundação Eugénio de Andrade, 2000, p. 23.

Educação Literária 14.1; 14.2; 14.3; 14.4; 14.8; 14.9; 15.1; 15.2; 15.3; 16.1.

Educação Literária

Trazia consigo a graça das fontes quando anoitece. Era o corpo como um rio em sereno desafio com as margens quando desce. Andava como quem passa sem ter tempo de parar. Ervas nasciam dos passos, cresciam troncos dos braços quando os erguia no ar.

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Paul Cézanne, O Pinheiro Grande, 1896.

1. O poema revela-nos uma figura que é, como o próprio título indica, um «deus». 1.1 Enumera elementos que compõem o retrato humano deste «deus».

FI

Tradição literária p. 225

1.2 Comprova que a água – dos quatro elementos, o mais frequente na poesia de Eugénio de Andrade – está simbolicamente presente na composição desse retrato. 1.3 Explicita as associações que se estabelecem entre este «deus» e a Natureza e de que modo se verifica uma fusão entre ambos. 1.4 Demonstra que o retrato do «Green God» é um retrato de uma personagem em movimento e que este movimento está intrinsecamente ligado à dança e à música. 2. Indica os sentimentos que o «Green God» terá despertado no sujeito poético e de que modo esses sentimentos contribuem para fazer daquele o ser amado pelo poeta. 3. Faz a análise formal do poema. 4. Explica de que forma este poema se pode inscrever na tradição literária portuguesa, sobretudo a amorosa, do ponto de vista temático e formal.

1.1 No poema são referidas as seguintes características humanas: o corpo (vv. 3 e 13), os passos (v. 8), os braços (v. 9) e o sorriso (v. 11). 1.2 As alusões à água estão presentes na referência às fontes (vv. 1-2) e ao rio (vv. 3-5). As fontes simbolizam a água viva e a pureza inicial; são, por isso, símbolo de vitalidade. O rio simboliza a fertilidade, o movimento, a renovação, a juventude. As associações que se estabelecem permitem traçar o retrato de um deus jovem, cheio de vitalidade e em comunhão com a Natureza. 1.3 As associações estabelecem-se desde logo no título do poema, através do adjetivo «green», a cor, por excelência, da Natureza. Na descrição do «deus», o corpo é associado às fontes (vv. 1-2), a um rio que segue o seu curso serenamente (vv. 3-5). À medida que o «deus» vai passando, verifica-se que este se vai metamorfoseando e fundindo com a Natureza e esta se vai transformando à sua passagem: ervas nascem dos seus passos, dos seus braços crescem troncos, como se de uma árvore se tratasse e parece ainda transformar-se numa flor ao vento que se vai desfolhando ao dançar. 1.4 As formas verbais «trazia», «desce», «andava», «passa», «nasciam», «cresciam», «erguia», «dan-ça», «tremia» «seguia», «passava», no pretérito imperfeito do indicativo, são evidência de que este é um retrato em movimento. Este movimento está associado à música evocada nos dois versos finais do poema e à dança e ao ritmo descritos na terceira estrofe, conferindo graciosidade a este «deus» que passa. 2. Ao elevar esta figura humana à condição de deus em comunhão com a Natureza, pleno de graciosidade e vitalidade, ao focar-se no corpo, dançando e tremendo ao ritmo da música, o sujeito poético manifesta a sua admiração e desejo. 3. O poema é constituído por quatro quintilhas. A rima é regular – emparelhada e interpolada (abccb) – e os versos são heptassilábicos (redondilha maior). Note-se que esta regularidade contribui para imprimir um ritmo musical ao poema. 4. São vários os autores que na nossa literatura abordaram o tema do amor. Na poesia trovadoresca, D. Dinis, Nuno Fernandes Torneol, entre outros, versaram o tema, associando a Natureza à representação dos afetos e das emoções. Também em Camões o amor é uma constante, bem como a temática da representação do ser amado, assente em traços divinais e fonte de desejo intenso do sujeito poético. Do ponto de vista formal, o verso em redondilha maior é também uma constante na poesia portuguesa.

222

Unidade 3 // POETAS CONTEMPORÂNEOS

PROFESSOR

MC

Educação Literária 14.1; 14.2; 14.3; 14.4; 14.5; 14.7; 14.8; 14.9; 15.1; 15.2; 15.3; 16.2.

Representações do contemporâneo EDUCAÇÃO LITERÁRIA

CD 2 Faixa n.0 11

Gramática 17.1; 19.3. Educação Literária 1. O tema do poema é o fim de uma relação amorosa. O sujeito poético faz uma retrospetiva dessa relação, realçando o desgaste da relação ao longo do tempo, que leva à destruição do amor, daí resultando um sentimento de vazio, para o qual já não há solução. 2. No passado remoto, representado pelo pretérito imperfeito, o sujeito poético vivia feliz e em plenitude amorosa; com a passagem do tempo, o desgaste do amor e, consecutivamente, da relação, vai-se tornando cada vez mais evidente, acabando por atingir o seu ponto de saturação no presente com um vazio amoroso que dá lugar à rutura. 3. «O que nos ficou não chega / para afastar o frio de quatro paredes» (vv. 2-3); «Meto as mãos na algibeira e não encontro nada» (v. 9). Estes versos denunciam o vazio deixado pelo fim do amor e revelam que desse amor já nada se pode esperar, pois o vazio anunciado apenas nos remete para a impossibilidade de continuação da relação amorosa. 4. A repetição da palavra «Gastámos» constitui uma anáfora que é usada para acentuar a ideia de que as palavras desgastaram a relação e, por isso, nada mais há para dizer, restando apenas o silêncio, que é o que devem manter, uma vez que gastaram tudo «menos o silêncio»; do mesmo modo, também a anáfora com a forma do pretérito imperfeito «era» acentua a ideia que os bons momentos pertencem ao passado.

Edvard Munch, Separação (pormenor), 1896.

Adeus Já gastámos as palavras pela rua, meu amor, e o que nos ficou não chega para afastar o frio de quatro paredes. Gastámos tudo menos o silêncio. 5 Gastámos os olhos com o sal das lágrimas, gastámos as mãos à força de as apertarmos, gastámos o relógio e as pedras das esquinas em esperas inúteis.

10

Meto as mãos nas algibeiras e não encontro nada. Antigamente tínhamos tanto para dar um ao outro; era como se todas as coisas fossem minhas: quanto mais te dava mais tinha para te dar.

Às vezes tu dizias: os teus olhos são peixes verdes. E eu acreditava. Acreditava, porque ao teu lado todas as coisas eram possíveis. Mas isso era no tempo dos segredos, 20 era no tempo em que o teu corpo era um aquário, era no tempo em que os meus olhos eram realmente peixes verdes. Hoje são apenas os meus olhos. É pouco, mas é verdade, 25 uns olhos como todos os outros. 15

Eugénio de Andrade

30

35

Já gastámos as palavras. Quando agora digo: meu amor, já se não passa absolutamente nada. E no entanto, antes das palavras gastas, tenho a certeza de que todas as coisas estremeciam só de murmurar o teu nome no silêncio do meu coração.

223

PROFESSOR

Educação Literária 5. Nos vv. 19 a 21 estão presentes duas metáforas: «o teu corpo era um aquário» e «os meus olhos / eram realmente peixes verdes». Ambas as metáforas pertencem ao campo semântico da água, um dos quatro elementos, muito presente na poesia de Eugénio de Andrade. Aqui, a água está associada ao desejo, à vitalidade do amor. Por isso se compreende que, findo o amor, o sujeito poético afirme nos vv. 35 e 36 da última estrofe «Dentro de ti / não há nada que me peça água».

Não temos já nada para dar. Dentro de ti não há nada que me peça água. O passado é inútil como um trapo. E já te disse: as palavras estão gastas. Adeus. Eugénio de Andrade, «Os Amantes sem dinheiro», in Poesia, Porto, Fundação Eugénio de Andrade, 2000, pp. 51-52.

1. Identifica o tema do poema, comprovando a tua resposta. 2. Relaciona as várias fases do amor vividas pelo sujeito poético com a passagem do tempo.

6. O passado é algo que ficou para trás, que já não se consegue recuperar, que já nada poderá acrescentar à vida dos amantes. Neste contexto, surge o verso «O passado é inútil como um trapo» (v. 37) que nos remete também para a inutilidade da recordação desse passado, pois o que se pretende é seguir em frente. Daí que o poema termine de forma perentória com o verso «Adeus».

3. Transcreve dois versos que transmitam a ideia do vazio deixado pela ausência de amor e explicita a sua intencionalidade.

Gramática

4. Refere-te à importância da anáfora para a construção de sentido do poema.

Recursos expressivos SIGA p. 383

2. a) Subordinada (adverbial) causal; b) Subordinada (adjetiva) relativa restritiva.

5. Explicita o efeito expressivo das metáforas presentes nos versos 19 a 21, tendo em conta o campo semântico a que pertencem, e relaciona-as com o conteúdo da última estrofe.

3. a) Valor perfetivo; b) Valor imperfetivo.

6. Comprova que, apesar da intensidade do amor vivido pelos amantes, o sujeito poético reconhece que o passado perdeu o sentido e privilegia o tempo presente.

FI

Representações do contemporâneo p. 225

GRAMÁTICA

1. Identifica a função sintática dos elementos destacados.

Funções sintáticas SIGA pp. 372-373

a) «Meto as mãos nas algibeiras» (v. 9) b) «o frio de quatro paredes» (v. 3) c) «[…] meu amor» (v. 1) 2. Classifica as orações destacadas nos enunciados seguintes.

Coordenação e subordinação SIGA pp. 373-374

a) «Acreditava, / porque ao teu lado / todas as coisas eram possíveis.» (vv. 15-17) b) «Dentro de ti / não há nada que me peça água.» (vv. 35-36) Valor aspetual 3. Indica o aspeto gramatical expresso nos versos seguintes. FI pp. 59-60 a) «Já gastámos as palavras pela rua» (v. 1) b) «E eu acreditava. / Acreditava, / porque ao teu lado / todas as coisas eram possíveis.»

(vv. 15-18)

1. a) Complemento oblíquo; b) Modificador restritivo do nome; c) Vocativo.

224

Unidade 3 // POETAS CONTEMPORÂNEOS

FICHA INFORMATIVA 1 Figurações do poeta PROFESSOR

MC

Leitura 7.1; 7.4; 7.5; 8.1; 8.2.

5

Poesia* apresenta-se, portanto, como espécie de cancioneiro (na sua mais tradicional aceção), no qual o poeta projeta, medindo cada traço, o seu retrato, a sua própria imagem, como quem deixa um legado. A nitidez desse retrato apaga as asperezas diacrónicas1 que uma obra resultante de mais de sessenta anos de atividade necessariamente tem; e mais, contribui para tornar fluidas as passagens entre uma recolha poética e a seguinte, construindo uma arquitetura cujas partes se harmonizam, estabelecendo novas contiguidades e dando maior evidência a isotopias2 de outra forma meramente esboçadas. Federico Bertolazzi, 1RLWHH'LDGD0HVPD/X]í$VSHWRVGD3RHVLD de Eugénio de Andrade, Lisboa, Edições Colibri, 2010, p. 25.

Arte poética 1 Diacrónicas: asperezas da pas-

1. A Poética

sagem do tempo. 2 Isotopias: termo para designar a redundância ou recorrência de elementos semânticos que torna possível a leitura ou interpretação fundamental e coerente de um texto literário. * Poesia: Eugénio de Andrade,

5

Poesia, Porto, Fundação Eugénio de Andrade, 2005.

Desprendidas de não sei que limbo, as primeiras sílabas surgem, trémulas, inseguras tateando no escuro, como procurando um ténue, difícil amanhecer. Uma palavra de súbito brilha, e outra, e outra ainda. Como se umas às outras se chamassem, começam a aproximar-se, dóceis; o ritmo é o seu leito; ali se fundem num encontro nupcial, ou mal se tocam na troca de uma breve confidência, quando não se repelem, crispadas de ódio ou aversão, para regressarem à noite mais opaca. Uma música, sem nome ainda, começa a subir, qualquer coisa principia a tomar corpo e figura, a respirar, a movimentar-se, a afirmar a sua existência e a do poeta com ela, a erguerem-se ambos a uma comum transparência, até serem canto claro e fundo – voz do homem. Eugénio de Andrade, «O Sacrifício de Efigénia», in Rosto Precário, 6.ª ed., Porto, Fundação Eugénio de Andrade, 1995, pp. 19-20..

2. O poeta e a palavra

5

O poeta é o sujeito criador, na medida em que procura transformar o mundo, dotando a palavra de várias significações possíveis. Por isso, graças ao dom da palavra, o poeta é criatura, e, de seguida, criador, através da obra que ele constrói, voltando a ser novamente criatura, submetendo-se ao poder da palavra que ele sublimou. Esta sublimação da palavra dá a possibilidade ao mundo de se metamorfosear e, ao mesmo tempo, de renovar a linguagem humana. Deste modo, a experiência pessoal, incutida nos poemas, reflete a experiência universal, tendo em conta a importância do homem como centro do mundo. O que o poema «descreve» não é real, até porque um poema tem poder de re-descrição: ele descobre o real, tal como não existia antes, ele inventa-o. António Oliveira, Metáforas Obsessivas em Eugénio de Andrade, Leça da Palmeira, Letras & Coisas, 2008, pp. 11-14.

Pierre Bonnard, Mar (pormenor), c. 1936.

Ficha informativa

Tradição literária

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Trata-se de uma poesia pouco ou nada datada, que não fez concessões a preceitos ou maneirismos de correntes estéticas contemporâneas […]. Homem convivial e leitor atento, Eugénio de Andrade conheceu bem essas correntes, mas no plano da forma ou do conteúdo não retirou delas nada de essencial que não tivesse já encontrado na poesia da tradição oral, nalguns trovadores, em Camões, Pessanha ou Pessoa ou em estrangeiros como Rilke, Lorca e Cecília Meireles. […] Inscrevendo-se claramente, desde a primeira hora, na tradição lírica portuguesa, sobretudo elegíaca e amorosa, […] a poesia de Eugénio de Andrade recusa também claramente algumas constantes dessa tradição: e não só o solene e o enfático, o eloquente e o decorativo, mas também o sentimentalismo à flor da pele, o fatalismo, o saudosismo, o religiosismo. [..] O enunciador de Eugénio de Andrade ignora o «tom alto e sublimado», repele o discurso autoritário ou arrogante, assume com frequência a sua precariedade […], posiciona-se sempre diante do leitor – ou dos personagens, ou das coisas – como uma testemunha, um cúmplice, um companheiro ou um irmão discretos, preferindo pois as modalidades e os registos da melhor comunicação coloquial dialogal. E optando sem hesitação pelo lado do sentir, não do pensar […], foge no entanto à expressão impensada ou ligeira de sentimentos ligeiros ou impensados, também porque convoca o exercício lento e atento dos sentidos, sobretudo da vista, do ouvido e do tato.[…] Eugénio de Andrade filia-se evidentemente na linhagem do Camões que tanto admira: é um poeta do amor – por sinal de um amor que, como regra, se afirma sem as contrariedades do camoniano, mas que, como este, não se quer mais idealizado do que realizado. Arnaldo Saraiva, «O génio de Andrade», JL (n.º especial), 25 de julho de 2011, pp. 12-13.

Representações do contemporâneo

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Eugénio de Andrade gosta de se situar num «aqui e agora» bem humano e concreto, mesmo que frágil e fugitivo. Sem apego ao passado, que é «inútil como um trapo», como diz o último poema de Os Amantes sem dinheiro (reformulando o provérbio «Velhos são os trapos»), e sem projetos metafísicos nem apelos transcendentais, o tempo que lhe interessa é sempre o tempo presente, ou então o futuro, muito próximo, do desejo urgente («é urgente o amor»). Compreender-se-á por isso a frequência da marcação do tempo e das suas mudanças […] como se compreenderá o privilégio do tempo mais luminoso e caloroso do verão. Notemos por fim que o «aqui» de Eugénio de Andrade é o de uma confluência «elementar», onde cada elemento pode ser diversamente potenciado, e veicular imagens flutuantes ou permutáveis de plenitude e de carência, mas onde a disforia nunca chega a anular a expectativa eufórica. Terra e ar, água e fogo conjugam-se para enquadrar e desafiar o homem, que veio da terra (húmus), que vive «rente ao chão», mas que pode pelo amor ou pela criação, elevar-se à condição divina. Arnaldo Saraiva, «O génio de Andrade», JL (n.º especial), 25 de julho de 2011, p. 13.

CONSOLIDA

1. Elabora tópicos com as principais características da poesia de Eugénio de Andrade.

225

PROFESSOR

Figurações do poeta – O poeta projeta o seu retrato, como se deixasse um legado. – A nitidez desse retrato afasta qualquer discrepância diacrónica, torna fluidas as passagens entre recolhas poéticas, constrói uma arquitetura cujas partes se harmonizam e estabelece novas contiguidades e linhas de leitura. Arte poética – As sílabas e as palavras harmonizam-se ou repelem-se; compõem uma música; incorporam algo que ganha vida e afirma também a existência do poeta. Constituem a voz do homem – canto claro e fundo. – O poeta procura transformar o mundo, dotando a palavra de significados diversos. A sublimação da palavra possibilita a metamorfose do mundo e a renovação da linguagem humana. A experiência pessoal imprimida na poesia espelha a experiência universal, tendo o homem como centro do mundo. Tradição literária – Assente na tradição lírica portuguesa, nomeadamente na elegíaca e amorosa, mas recusando aspetos dominantes da mesma: o solene, o enfático, o eloquente, o decorativo, o sentimentalismo superficial e imediato, o fatalismo, o saudosismo, o religiosismo; – O sujeito poético assume, frequentemente, a sua fragilidade; o posicionamento do eu poético perante o leitor, as personagens ou as coisas é de testemunha, cúmplice, de proximidade, visível na preferência pelos registos do coloquial dialogal; privilégio do sentir sobre o pensar, verificando-se, no entanto, a expressão ponderada de sentimentos profundos e complexos, comprovada pela convocação do exercício lento e atento dos sentidos, nomeadamente da visão, da audição e do tato; – Privilégio da temática do amor: um amor real, sem as contrariedades do amor camoniano. Representações do contemporâneo – Poesia do «aqui» e do «agora»: preferência pelo tempo presente e por um futuro muito próximo, pela urgência do desejo, humano e concreto, com marcação frequente do tempo e das suas mudanças, privilegiando-se a luminosidade e o calor do verão; – O «aqui» assume-se como a convergência dos quatro elementos (terra, ar, água e fogo), sendo cada um potenciado de diversas formas, de modo a enquadrarem e a desafiarem o homem, comum mortal, a elevar-se à condição divina, pelo amor ou pela criação.

226

Unidade 3 // POETAS CONTEMPORÂNEOS

FICHA INFORMATIVA 2 Linguagem, estilo e estrutura

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A essência de uma poesia/música, da musicalidade perseguida, provém de um obsessivo labor em relação ao qual o poeta, implícita ou explicitamente, convoca um modelo analógico de ordem musical. «Reescrevo os textos obsessivamente. Em mim o ataque do poema é de ordem musical. Uma palavra é como a nota que procura outras para o acorde perfeito.» No dizer a ordem do mundo, a música, nostálgica «de uma antiga unidade», reenvia à metáfora arquitetural que lhe subjaz. Metáfora igualmente fulcral para a compreensão desta poesia. Construção, simetria, equilíbrio são regras de composição, princípios arquitetónicos a que o poeta recorre no que toca a uma rigorosamente premeditada orquestração/ideação da obra (do livro, do poema, do verso) onde se reflete uma profunda busca de unidade. Carlos Mendes de Sousa, «Eugénio de Andrade», in José Augusto Cardoso Bernardes et al. (dir.), Biblos, Enciclopédia das Literaturas de Língua Portuguesa, vol.1, Lisboa, Editorial Verbo, 1999, p. 271.

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Avulta em Eugénio de Andrade a imagem como fundamental recurso de representação poética, conjugado com […]: um rigor poético feito de depuração verbal e de uma contenção emocional despida de retórica; a acentuação da metáfora, a par da imagem com ela combinada, como culminância expressiva do discurso poético; um intenso culto do ritmo, fazendo da poesia uma arte da música, remetendo, ao mesmo tempo, para uma conceção da criação poética como subversão: «Se assim não fora, que sentido teria esta música onde o homem morre sílaba a sílaba para que o homem nasça?», interroga-se o poeta numa entrevista a Miguel Serras Pereira; a quase obsidiante fixação em elementos de primigénia condição e de ancestral referência (a terra, a água, o fogo, o ar). Carlos Reis, História Crítica da Literatura Portuguesa, vol. IX – «Do Neorrealismo ao Pós-Modernismo», Lisboa, Editorial Verbo, 2005, pp. 79-80.

5

Brevemente podemos dizer que a água acompanha o processo de crescimento numa escalada que vai do orvalho à fonte, ao rio e ao mar, culminado no coletivo águas, que designa a memória onde se juntam todos os fragmentos esparsos, prontos para a recordação. Quanto ao fogo, ele vai da mais pura luz à evolução do sol fecundador, para progredir sucessivamente de ardor a fulgor e a relâmpago, e, enfim, a incêndio; assim se conjugam no fogo euforia e disforia, consumação e destruição, êxtase e cinzas, repouso e renascer. Paula Morão, «Introdução», in Poemas de Eugénio de Andrade – O Homem, a Terra, a Palavra, Lisboa, Editorial Comunicação, pp. 19-20.

5

Pablo Picasso, Maternidade junto ao Mar, 1902.

Não importa que livro de Eugénio de Andrade é atravessado por dicotomias relacionáveis com várias isotopias elementares. Quase nenhum poema escapará a algumas destas, frequentemente relacionáveis e articuladas: alto/baixo, luz/sombra, fogo/ água, calor/frio, verão/inverno ou verão/outono, excesso/carência, eterno/efémero, rumor/silêncio ou música/silêncio, euforia/disforia. Recusando-se a resolver estas dicotomias […] o que os poemas de Eugénio de Andrade propõem é a reflexão sobre as suas tensões e o movimento dialético que lhes corresponde. Arnaldo Saraiva, Introdução à Poesia de Eugénio de Andrade, Porto, Fundação Eugénio de Andrade, 1995, pp. 27-28.

Ana Luísa Amaral

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30

227

Nasceu onde nasceram 90% dos lisboetas (na Maternidade Alfredo da Costa), em 1956. Mudou-se aos nove anos, por vontade alheia, de Sintra para Terras do Norte 5 (Leça da Palmeira), tendo sofrido na pele a estupidez da divisão Norte/Sul. Como era muito magrinha, estava em minoria e tinha acentuada pronúncia da capital, foi várias vezes atirada ao ar por colegas mais velhas 10 da escola. Felizmente sempre apanhada a tempo, acabou por ficar amiga de algumas. Leituras que mais a marcaram: o Zorro (de que foi assinante desde os seis anos e de que possui ainda hoje todos os números); Oito Primos; a coleção completa de Os Cinco (nunca gostou de Os Sete); Ivanhoe; David Crockett; Os Contos do Alhambra. Como não havia as antologias de poesia que há hoje pensada para um público infantil, nem os seus pais tinham livros de poemas em casa (desses que os poetas costumam dizer terem lido omnivoramente na infância), as suas influências literárias principais vieram-lhe das várias Seletas Literárias do liceu. Poema decorado aos seis anos e recitado na escola de Sintra: «O Passeio de Santo António». Andou, dos dez aos dezasseis anos, num colégio de freiras espanholas muito pouco canónico (aí, aprendeu a gostar de churros e a fazer rissóis de atum com tomate). Frequentou a Faculdade de Letras do Porto, tendo-se licenciado em Germânicas. Deve ter gostado tanto da Faculdade que por lá se deixou ficar, como professora, até há três anos. Mas na altura, por necessidade de carreira, tinha que fazer doutoramento. E fez; sobre Emily Dickinson, cujos poemas a fascinam tanto como a fascinara o Zorro. Pelo caminho, tornou-se professora associada e foi publicando livros de poemas e contos infantis. Traduziu poetas. Recebeu prémios. Vive ainda em Leça da Palmeira. Tem uma filha maravilhosa chamada Rita. Ambas têm duas gatas, chamadas Kitty e Papoila, e uma poética cadela, chamada Milly (Dickinson), feliz sucessora da magnífica, atraente e saudosa Lily (Marlene). Ana Luísa Amaral.

PONTO DE PARTIDA

1. Visiona o vídeo sobre Ana Luísa Amaral, publicado pela revista Arcadia aquando da realização da Feira do Livro de Bogotá, da qual Portugal foi país convidado. Oralmente, apresenta a tua opinião sobre os seguintes tópicos: a) Há memórias que não se apagam com o tempo. b) Razão e emoção são inseparáveis – não podemos tomar decisões sem que as emoções interfiram. «Entre dois rios e outras noites» (2013), Realizado pela revista Arcadia.

PROFESSOR

MC

Oralidade 1.1; 1.3; 1.4; 1.5; 2.1; 5.1; 5.2; 5.3. Educação Literária 14.1; 14.2; 14.3; 14.4; 14.6; 14.7; 14.8; 14.9; 15.1; 15.2; 15.3; 16.2.

▪ Vídeo Teaser Ana Luísa Amaral, da Arcadia ▪ Link Ler Mais e Ler Melhor – «Vida e Obra de Ana Luísa Amaral» Ponto de Partida 1. Resposta livre. Nota: Embora o feminino de poeta seja poetisa, referir-nos-emos a Ana Luísa Amaral como poeta, tal como ela gosta de ser chamada.

228

Unidade 3 // POETAS CONTEMPORÂNEOS

PROFESSOR

MC

Educação Literária 14.1; 14.2; 14.3; 14.4; 14.8; 14.9; 15.1; 15.2; 15.3; 16.2; 15.3; 16.2.

Figurações do poeta EDUCAÇÃO LITERÁRIA

Visitações, ou poema que se diz manso

Gramática 17.1. Educação Literária 1. Nos vv. 1 a 3, a chegada da filha é comparada à chegada da madrugada. A comparação sugere que a entrada da filha no lugar onde o eu se encontra a escrever é um acontecimento natural e espontâneo. 2.1 No poema, há uma espécie de indeterminação do eu lírico, que aqui se constrói, entre visitações (ou figurações do eu) – poeta e mãe ou mãe e poeta. O sujeito poético, em momento criativo, desce à condição de mãe com o aparecimento da filha, ou a mãe, em ato maternal, ascende à condição de poeta, criando o poema. 3. A filha representa para a mãe aquilo que a inspiração representa para o sujeito poético; por outro lado, a filha pode ser para o sujeito poético a fonte de inspiração que lhe falta e a sua presença pode ser o impulso para que o poema surja. 4 Metáfora. A filha é comparada a um ladrão furtivo que se aproxima sem se denunciar e rouba secretamente a atenção da vítima.

CD 2 Faixa n.0 12

De mansinho ela entrou, a minha filha.

5

A madrugada entrava como ela, mas não tão de mansinho. Os pés descalços, de ruído menor que o do meu lápis e um riso bem maior que o dos meus versos. Sentou-se no meu colo, de mansinho.

10

O poema invadia como ela, mas não tão mansamente, não com esta exigência tão mansinha. Como um ladrão furtivo, a minha filha roubou-me a inspiração, versos quase chegados, quase meus. E mansamente aqui adormeceu, feliz pelo seu crime. Ana Luísa Amaral, Às vezes o paraíso, 2.ª ed., Lisboa, Quetzal Editores, 1998, p. 40.

Pablo Picasso, Mãe e Criança, 1902.

5. O título do poema pode suscitar diferentes interpretações: «visitações», por um lado, da filha, por outro, da inspiração; «ou o poema que se diz manso», personificação do poema, que, perante a mansidão da filha, surge contagiado por essa mansidão.

1. Explicita o valor expressivo da comparação existentes nos três primeiros versos do poema.

Gramática 1. Deíticos pessoais: minha (v. 10); -me (v. 10); meus (v. 11); deítico espacial: aqui (v. 12).

3. Clarifica o efeito de sentido produzido pela associação presente na quarta estrofe.

2. No «eu», a figura da poeta surge associada a uma outra figura.

FI

Figurações do poeta p. 233

2.1 Identifica-a e refere de que modo ambas se relacionam.

4. O poema termina com a alusão a um crime. 4.1 Identifica o recurso expressivo presente nessa alusão e comenta a sua expressividade. 5. Apresenta uma explicação para o título do poema.

GRAMÁTICA

1. Procede ao levantamento de todos os deíticos presentes nas duas últimas estrofes do poema e classifica-os. Deixis SIGA p. 378

Ana Luísa Amaral

Arte Poética EDUCAÇÃO LITERÁRIA

PROFESSOR CD 2 Faixa n.0 13

MC

Soneto científico a fingir Dar o mote ao amor. Glosar o tema tantas vezes que assuste o pensamento. Se for antigo, seja. Mas é belo e como a arte: nem útil nem moral. 5

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Gramática 17.1

Se me dobro demais, dizia eu, não consigo falar-me como devo, ou seja, na mentira que é o verso, ou seja, na mentira do que mostro. E se é soneto coxo, não faz mal. E se não tem tercetos, paciência: dar o mote ao amor, glosar o tema, e depois desviar. Isso é ciência!

Que me interessa que seja por soneto em vez de verso ou linha devastada? O soneto é antigo? Pois que seja: também o mundo é e ainda existe.

20

Só não vejo vantagens pela rima. Dir-me-ão que é limite: deixa ser. Se me dobro demais por ser mulher (esta rimou, mas foi só por acaso)

Ana Luísa Amaral, E muitos os caminhos, Porto, Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 1995, p. 35.

1. Demonstra que, no poema, está presente uma visão subversiva da criação poética. 2. Explicita o sentido do verso «e como a arte: nem útil nem moral» (v. 4). 3. Comprova que, na arte poética de Ana Luísa Amaral, a liberdade criativa se sobrepõe às regras formais, fundamentando a tua resposta com elementos textuais.

FI

Arte poética p. 233

4. Caracteriza o poema quanto à forma estrófica, métrica e rima, demonstrando que não se trata de um soneto. 5. Explica de que forma, no poema, o antigo é o ponto de partida para a inovação e para a originalidade.

GRAMÁTICA

1. Classifica as orações destacadas. a) «tantas vezes que assuste» (v. 2) b) «Dir-me-ão que é limite» (v. 10) c) «na mentira que é o verso» (v. 15)

Educação Literária 14.1; 14.2; 14.3; 14.4; 14.8; 14.9; 15.1; 15.2; 15.3; 16.2.

Coordenação e SIGA subordinação pp. 373-374

Educação Literária 1. No poema, o sujeito poético finge um soneto, que o não é, e refere-se à poesia como uma mentira em relação ao eu que surge no poema, rejeitando seguir as regras formais da criação poética. O fingimento como forma de criação e a transposição das regras são a base do poema («E se é soneto coxo, não faz mal. / E se não tem tercetos, paciência: / dar o mote ao amor, glosar o tema, / e depois desviar», vv.17-20). 2. A arte tem uma função estética, pretende dar prazer aos sentidos, deleitar os seus amantes; na arte não há moralidade, não há certo nem errado, há uma manifestação livre das emoções de quem a produz, sem preconceitos ou limitações de qualquer ordem. Do mesmo modo, a arte não tem um valor utilitário, surge de um momento de inspiração e transporta consigo valores estéticos, como a beleza, o equilíbrio e a harmonia que poderão ou não exercer influência sobre aqueles que acedem à sua mensagem. 3. O sujeito poético valoriza essencialmente o momento criativo e esse surge espontaneamente, inspirado em temas do quotidiano, como o amor, e não precisa de seguir regras formais, que poderão comprometer a criatividade; o que importa é criar sobre o tema, mesmo que isso implique desvios de vária ordem, algo que é valorizado no poema («e depois desviar. Isso é ciência!», v. 20). 4. O poema é composto por cinco quadras, sendo maioritariamente composto por verso solto ou branco, mas, pontualmente, apresenta rima emparelhada («ser» e «mulher») e cruzada («paciência» e «ciência»), terceira e última estrofes, respetivamente. Quanto à métrica, os versos são maioritariamente decassilábicos, no entanto, alguns versos apresentam métrica diferente. 5. Como não é composto por duas quadras e dois tercetos, nem tem métrica regular (verso decassilábico), não se trata de um soneto. Além disso, não apresenta rima em todos os versos, como acontece nesta composição poética. Gramática 1. a) Subordinada adverbial consecutiva; b) Subordinada substantiva completiva; c) Subordinada adjetiva relativa restritiva.

230

Unidade 3 // POETAS CONTEMPORÂNEOS

PROFESSOR

MC

Educação Literária 14.1; 14.2; 14.3; 14.4; 14.7; 14.8; 14.9; 15.1; 15.2; 15.3; 16.2.

Tradição literária CD 2 Faixa n.0 14

EDUCAÇÃO LITERÁRIA

As pequenas gavetas do amor

Gramática 17.1.

Se for preciso, irei buscar um sol para falar de nós: ao ponto mais longínquo do verso mais remoto que te fiz

Oralidade 3.1; 4.1; 4.2; 5.1; 5.2; 5.3; 6.2; 6.4. Sujestão ao professor 5

▪ Link «As pequenas Gavetas do Amor», de Viviane ▪ Documento Letra da canção «As Pequenas Gavetas do Amor», de Viviane Educação Literária 1. O destinatário do poema é o ser amado do sujeito poético, «meu amor», com quem mantém uma espécie de diálogo, embora não haja intervenção direta do interlocutor no mesmo, mantendo-se como um mero recetor da mensagem. O recurso expressivo é a apóstrofe, através da qual o sujeito poético interpela o seu amor («Devagar, meu amor, se for preciso», v. 5). 2. a) «irei buscar um sol […] / ao ponto mais longínquo / do verso mais remoto que te fiz» (vv. 1-4); b) «cobrirei este chão / de estrelas mais brilhantes / que a mais constelação» (vv. 6-8); c) «guardarei / em pequenas gavetas / palavras e olhares» (vv. 12-14). O objetivo das ações desenvolvidas pelo sujeito poético é demonstrar que fará tudo o que for preciso para lembrar o amor e para estabelecer uma ligação com o ser amado: «para falar de nós» (v. 2), «para que as mãos depois sejam tão/brandas» (vv. 9-10). 3 a) «de estrelas mais brilhantes / que a mais constelação» (vv. 7-8); b) «quando a quiseres −» (v. 21); c) «palavras e olhares, se for preciso:» (v. 14) .

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Devagar, meu amor, se for preciso, cobrirei este chão de estrelas mais brilhantes que a mais constelação, para que as mãos depois sejam tão brandas como as desta tarde Na memória mais funda guardarei em pequenas gavetas palavras e olhares, se for preciso: tão minúsculos centros de cheiros e sabores Só não trarei o resto da ternura em resto esta tarde, que nem nos foi preciso: no fundo do amor, tenho-a comigo: quando a quiseres −

Ana Luísa Amaral, Imagias, Lisboa, Gótica, 2002, p. 99.

Mário Eloy, Sem Título, s.d.

1. Identifica o destinatário do poema, com quem o sujeito poético mantém uma espécie de diálogo, indicando o recurso expressivo que nos permite identificá-lo.

Recursos expressivos SIGA p. 383

2. Preenche o esquema com as ações que o sujeito poético concretizará, recorrendo a elementos textuais, e indica o objetivo dessas ações. a)

«Se for preciso»

b)

c)

Ana Luísa Amaral

3. Transcreve do poema versos que exemplifiquem os seguintes recursos, que são característicos da linguagem inovadora de Ana Luísa Amaral. a) Supressão de palavras no interior dos versos que podem ser retomados facilmente pelo contexto. b) Uso de travessão em posição final de verso que permite preenchimento pela imaginação do leitor. c) Uso de pontuação, com fins explicativos, em substituição de «porque». 4. Identifica o recurso expressivo presente no título do poema e nos versos 12 a 16 e explicita a sua expressividade.

Recursos expressivos SIGA p. 383

5. Refere de que forma a tradição literária está presente neste poema e descreve o modo Tradição literária como o sujeito poético recria essa tradição. FI p. 234

GRAMÁTICA

Funções sintáticas SIGA pp. 372-373

1. Para responderes aos itens 1.1 a 1.2, seleciona a única opção correta. 1.1 As palavras destacadas em «Devagar, meu amor, se for preciso» (v. 5) desempenham a função sintática de (A) complemento direto. (B) sujeito. (C) vocativo. (D) modificador apositivo do nome. 1.2 Em «no fundo do amor, tenho-a comigo» (v. 20), o antecedente do pronome destacado é (A) «constelação» (v.8). (B) «tarde» (v.11). (C) «memória» (v. 12). (D) «ternura» (v.18).

ORALIDADE

EXPRESSÃO ORAL

Debate Visiona a curta-metragem The Gift, do realizador Julio Pot. Prepara um pequeno debate, de vinte a trinta minutos, sobre o tema do amor e a forma como é vivido pelos amantes. Debruça-te sobre os seguintes tópicos: a) o entusiasmo inicial e o progressivo esmoreThe Gift cimento do amor; REAL. Julio Pot (2014) b) a necessidade de partilha e do respeito mútuo entre os amantes; c) o momento da rutura e as consequências para quem termina a relação e para quem é abandonado.

231

PROFESSOR

4. A referência a «gavetas do amor», no título e nos vv. 12 a 16, configura o uso de uma metáfora. Através dela, o amor, ou melhor, as memórias que a vivência deste deixa nos amantes, são associadas a um objeto concreto – a gaveta. A metáfora sugere então que o amor poderá ser guardado como um objeto dentro de uma gaveta e esta ideia é reforçada pela associação que se estabelece entre «palavras e olhares» (v.14) e os «cheiros e sabores» (v.16) que destas gavetas exalam. 5. A tradição literária está presente na retoma dos temas do amor e da memória. O amor ganha uma nova abordagem, através do «diálogo» com um «tu», par amoroso, com quem o sujeito poético fala sobre a memória amorosa e as possibilidades do amor; para o efeito recorre a várias metáforas e despreza as regras formais; as construções elíticas e o uso expressivo de pontuação constituem fatores de inovação. Gramática 1.1 (C); 1.2 (C). Oralidade

▪ Vídeo The Gift, curta-metragem de Julio Pot Tópicos de Resposta a) No início da relação amorosa tudo é maravilhoso, tudo parece perfeito e as coisas mais simples fazem vibrar os amantes; à medida que as rotinas se vão instalando ou se vai conhecendo melhor o outro, aquilo que tinha graça deixa de ter, o que era perfeito torna-se irritante, a perfeição do outro transforma-se num conjunto de defeitos. Isto acontece quando os dois não amam da mesma forma, quando a relação é desigual. b) Para que a relação não mude e não esmoreça, é necessário que os amantes vivam numa permanente partilha em que ambos se respeitam e dedicam; uma relação para a qual ambos contribuem com igual dedicação e empenho; uma relação em que as cedências são mútuas e o equilíbrio é conseguido com o amor, a compreensão e o esforço de ambas as partes. c) Mesmo após a rutura da relação, há uma parte do outro que permanece connosco, na memória dos momentos vividos, e que não pode simplesmente apagar-se. Para quem termina a relação, essa memória não pode extinguir-se no momento da rutura e permanecerá; para quem é abandonado, além dessa memória do amor, fica um sentimento de vazio, de solidão e de baixa autoestima, que o tempo ajudará a sarar.

232

Unidade 3 // POETAS CONTEMPORÂNEOS

PROFESSOR

MC

Educação Literária 14.1; 14.2; 14.3; 14.4; 14.7; 14.8; 14.9; 15.1; 15.2; 15.3; 16.2.

Representações do contemporâneo EDUCAÇÃO LITERÁRIA

Metamorfoses

Educação Literária 1. No poema «Metamorfoses», o gabinete de trabalho da poeta é equiparado a uma despensa, onde as folhas de papel se assemelham aos produtos. Durante o processo da criação poética, é possível transformar esses produtos da despensa em palavras poéticas e, deste modo, promover a metamorfose anunciada no título do poema. Torna-se, pois, possível transformar o presunto em carruagem.

5

2. Este verso tem um significado simbólico. Representa um apelo à criatividade, a que a inspiração surja, algo que é complementado com a ideia contida no verso («Que a luz penetre / no meu sótão / mental», vv. 11-13).

10

3. No poema, é visível a presença da mulher que se divide entre as tarefas do quotidiano, como a organização de uma despensa, e a mulher escritora-poeta que se dedica à escrita e à produção literária. São os aspetos do quotidiano, aqueles que fazem parte da vida do dia a dia, que aqui emergem como inspiração para a criação poética, assumindo significados metafóricos. 4. No poema, o eu vive dividido entre os aspetos do quotidiano, objetivos e concretos, e a abstração da criação poética, o sonho, a imaginação, o sítio da criatividade. Todavia, estes mundos coexistem em harmonia, uma vez que há na sua dispensa um «sótão/ mental» (vv. 12-13) e as folhas mentais permitem transformar o «presunto/ em carruagem» (vv. 17-18).

CD 2 Faixa n.0 15

Faça-se luz neste mundo profano que é o meu gabinete de trabalho: uma despensa. As outras dividiam-se por sótãos, eu movo-me em despensa com presunto e arroz, livros e detergentes. Que a luz penetre no meu sótão mental do espaço curto

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Salvador Dalí, A Metamorfose de Narciso, 1937.

E as folhas de papel que embalo docemente transformem o presunto em carruagem! Ana Luísa Amaral, Minha Senhora de Quê, Lisboa, Quetzal Editores, 1999, p. 41.

1. Indica o principal assunto tratado ao longo do poema, relacionando-o com o título. 2. Apresenta um sentido possível para o verso «Faça-se luz», que introduz o poema, e transcreve o verso que o complementa.

5. Toda a poesia de Ana Luísa Amaral é reflexo do seu quotidiano feminino e nela surgem representados, como neste poema, os espaços da sua vivência quotidiana, sendo a cozinha, a despensa, a sua casa, as tarefas domésticas e quotidianas, os elementos mais recorrentes na sua poesia.

3. No poema, o eu divide-se entre duas representações distintas.

6. O poema é composto por quatro estrofes, duas quintilhas e duas quadras, verso solto ou branco e métrica irregular.

5. Identifica as marcas do quotidiano presentes neste poema.

3.1 Identifica-as, explicitando o modo como se articula a presença de ambas no poema. 4. Comprova que o eu está entre mundos intermédios, que se fundem, recorrendo a elementos textuais. FI

Representações do contemporâneo p. 234

6. Caracteriza formalmente o poema, tendo em conta a estrutura estrófica, a rima e a métrica.

Ficha informativa

233

FICHA INFORMATIVA 1 Figurações do poeta

5

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PROFESSOR

Desde o princípio, a poesia de Ana Luísa Amaral se confronta com a questão central da modernidade, do fazer poético como descentramento do sujeito, o que acarreta formas de enunciação ambíguas entre a ficção do eu e a sua figuração e situações de oscilação ontológica1, confirmando esta oscilação o tal síndroma de «estar entre». […] Há todo o dramatismo nessa vivência poética lírica moderna que tem consciência de que o poema se constrói de palavras apenas, frágeis, fugazes, limpas de emoção, embora poderosas «coisas de partir2», partir de quebrar e partir de navegar; palavras que enunciam a ficção da voz poética emocionada pelo amor, «lírica de emoção» de um tu, a qual ambiguamente dá origem a outra figuração de si mesma, tentando rasurar esse tu, «empurrar-te para cima do poema»3, como é dito. Isabel Pires de Lima, «Concertos/desconsertos: arte poética e busca do sujeito na poesia de Ana Luísa Amaral», in Maria de Fátima Outeirinho & Rosa Maria Martelo (orgs.), Cadernos de Literatura Comparada – Identidades no Feminino, n.º 2, Porto, Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa/Granito, 2001, pp. 52-55.

MC

Leitura 7.3; 7.4; 7.5; 8.1.

Consolida 1. Em Ana Luísa Amaral a figuração da poeta surge numa permanente tensão entre a ficção do eu e a realidade do eu, num constante «estar entre». 2. O principal aspeto de modernidade da poesia de Ana Luísa Amaral consiste na associação que faz entre aspetos do quotidiano, familiares e simples, e uma arte poética de superior exigência.

Arte poética

5

10

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À poesia se pede que dê à linguagem consciência de si própria, para que nós, que não somos poetas, reconheçamos nas palavras os traços do mundo suficientes para, resguardando-nos do vazio, o tornar habitável. O cerne do universo poético de Ana Luísa Amaral encontra-se, provavelmente, no ponto onde esse reconhecimento se fabrica, e por isso os seus versos parecem apenas necessários, sem desvios. Dir-se-ia que lhe é muito fácil identificar o ritmo que une os movimentos dispersos que nos transportam de dia para dia, tecidos por igual de labor doméstico e reflexão, de afetos e memórias, de leitura e de «trabalho sério», matéria imponderável que no verso ganha corpo e se torna imagem com sentido. Melhor que qualquer outra, assenta-lhe a poética que no livro inaugural, Minha Senhora de quê? (1990), os versos do poema «Discreta Arte» delineiam, assimilando a criação aos gestos familiares e simples de quem arranja o espaço para o convívio quotidiano: «Discretamente. Cultivar a palavra. / Arte de dispor flores por longa mesa, / prazer de dispor quadros por paredes / em critério de escolha pessoal.» E, no entanto, esta é uma poética de superior exigência, que ambiciona realizar «O excesso mais perfeito», como diz um dos títulos de Às vezes o paraíso (1998) − «um poema de respiração tensa» capaz de reunir em si «muito mais tudo que as gregas divindades / de equilíbrio», intensidade pura −, e que de uma tal desmesura, discretamente se constrói. Fátima Freitas Morna, «Ana Luísa Amaral», in Isabel Pires de Lima (coord.), Vozes e Olhares no Feminino, Porto, Edições Afrontamento & Porto, 2001, p. 94.

CONSOLIDA

1. Indica como surge a figuração do poeta na poesia de Ana Luísa Amaral. 2. Identifica o principal aspeto de modernidade na poesia de Ana Luísa Amaral. Édouard Vuilard, Mulher a Ler no Meio dos Arbustos (pormenor), 1909.

1 Ontológica: que se refere ao ser

em si mesmo. 2 «coisas de partir»: título de

poema e livro de Ana Luísa Amaral. 3 «empurrar-te para cima do poema»: verso do poema «coisas de partir».

234

Unidade 3 // POETAS CONTEMPORÂNEOS

Tradição literária

PROFESSOR

Consolida 1. A tradição literária de Ana Luísa Amaral privilegia o tema do amor, recriado num diálogo amoroso com «o outro» e na liberdade formal; rejeita a rigidez da forma e procura encontrar o necessário equilíbrio de linguagem.

5

2. O universo tradicionalmente feminino e tudo o que o caracteriza, espaços, objetos e tarefas, são elementos frequentes na sua poesia. 10

15

A tradição é um tempo-espaço aberto que pede ao poeta faro criativo para transformar o passado, nutrir-se dele, a fim de gerar o ato criador. […] O mapa de palavras, legado da tradição, é rota permanente que o eu lírico reconhece e com ele recomeça, também num duplo registo – sereia e cisne –, a delinear imagens de amor transmutadas da lírica ocidental. Sensível, portanto, à sua atualidade, a poeta mostra o seu roteiro poético pessoal, inscrevendo no corpo da poesia a rota do Amor. Sensualmente, o eu lírico, em diálogo com o Outro, par amoroso, caligrafa linhas, esboçando a sua topografia […]. A poeta, por sua vez, confere a rota, despreza a rigidez da forma impressa em rimas e métricas, e inscreve no poema a mobilidade do diálogo ou réplica, traduzindo, em versos próprios, voz e ritmo de poetas e musas, conforme a tradição e à luz do seu tempo. Misturam-se vozes de poeta e musa, dificultando identificar o eu e o outro da fala. […] Ana Luísa Amaral cede lugar ao desejo e […] exprime amorosamente a sua criação. […] A poeta sabe, como os poetas e musas da tradição, que para escrever o amor é preciso «engenho» e «brando pesar»; e mais, sabe que a linguagem é, como diz Barthes: «ao mesmo tempo demais e demasiadamente pouca, excessiva e pobre». Maria Aparecida Junqueira, «Imagens: tempos espacializados na Poesia de Ana Luísa Amaral», in Ângulo, n.º 125/126, Cadernos do Centro Cultural Teresa d’Ávila, Publicações FATEA, 2011.

Representações do contemporâneo

5

Por vezes, é certo, evoca-se nestes poemas essa esfera a que chamamos doméstica e que, não tendo evidentemente de ser exclusivamente feminina, tem sido de facto – e por que motivo senão pela desvalorização a que vota a maioria das culturas ditas civilizadas? – largamente reservada às criaturas do sexo feminino. Não me refiro ao doméstico enquanto fonte de inspiração […], mas ao doméstico e suas tarefas como experiência e prática de vida humana, tão rica de sentido e de valor, como insuficiente e sufocante. É este último mundo que nos surge em alguns poemas de Ana Luísa Amaral. Maria Irene Ramalho, «Duplo posfácio», in Ana Luísa Amaral, Minha Senhora de quê, Lisboa, Quetzal Editores, 1999, pp. 96-97.

Theodore Robinson, Rapariga a Coser, 1891-1892.

CONSOLIDA

1. Explicita como se manifesta a tradição literária na obra da poeta.

1 Canónica: que está de acordo

com as regras ou convenções da tradição. 2 Cómodos: cada uma das divisões de uma casa.

2. Enuncia alguns dos elementos do contemporâneo presentes na poesia de Ana Luísa Amaral.

Ficha informativa

235

FICHA INFORMATIVA 2 Linguagem, estilo e estrutura 1. Características da poesia de Ana Luísa Amaral

5

O amor, o tempo, a memória, a infância, a poesia, a dor. O modo vocativo, os versos de orações elíticas, as repetições com diferença, a sintaxe equívoca, as assonâncias, as aliterações. O uso do raciocínio lógico. O humor às vezes envergonhado. E as imagens e os conceitos inesperadamente associados, ao modo dos metafísicos ingleses: admite-se, num poema de homenagem elegíaca1, uma alusão aos fracos dotes de cozinheira desaparecida? Ou à sua «desarrumação», que, porém, paradoxalmente, é também a fonte da sua capacidade – como que poética – de nomear, e assim radicalmente de organizar? Maria Irene Ramalho, «Coisas Exatas: A Propósito de Imagias, de Ana Luísa Amaral», in Scripta, v. 6, n.º12, Belo Horizonte, Revista do Programa de Pós-graduação em Letras e do Centro de Estudos Luso-afro-brasileiros da PUC Minas, 2003, p. 260.

2. Sintaxe e pontuação

5

10

O «reino» de Ana Luísa é […] o da sintaxe, ou melhor, das «sintaxes trocadas» […]. O espacejamento do texto reproduz, com grande felicidade, essa justaposição imagética que nunca funciona sem um pequeno (ou grande) salto associativo, fazendo desta poesia um discurso que progride por síncope (o que se articula com um outro rumo da sua poesia, mais próximo de uma discursividade «lisa», de contornos mais sugestivamente infantis). É aqui – nesta arte da elipse – que provavelmente a lição de Dickinson2 mais se nota, fazendo-o sobretudo […], em torno de uma ressemantização3 da pontuação […]. Sucede isso nos casos em que o poema acaba sem querer concluir, denunciando o travessão final essa indeterminação semântica […]. Tal ressemantização opera ainda sobre os dois pontos, sincopando decididamente o discurso e criando um efeito de parataxe4 que […] responde fielmente ao imperativo de «transler», o mesmo é dizer, de suspender os nexos da gramática do mundo herdada. Osvaldo Silvestre, «Recordações da Casa Amarela, A poesia de Ana Luísa Amaral», in Relâmpago, n.º 3, 1998, p. 49.

CONSOLIDA

1. Elabora tópicos que sistematizam as ideias-chave dos textos 1 e 2, organizando-os sequencialmente.

Henri Lebasque, Mulher e Menina à Janela, s.d.

PROFESSOR

MC

Leitura 7.3; 7.4; 8.1; 8.2.

Consolida 1. Texto 1 • Temáticas: o amor, o tempo, a memória, a infância, a poesia, a dor. • Presença do modo vocativo, de orações elíticas, de repetições com diferença, de sintaxe equívoca, de assonâncias, de aliterações, do raciocínio lógico, do humor. • Imagens e conceitos inesperadamente associados. Texto 2 • A importância da «sintaxe trocada». • O discurso progride por síncope, o que se articula com um outro rumo da sua poética de contornos sugestivamente infantis. • Uso inovador da pontuação.

1 Elegíaca: melancólica, triste. 2 Dickinson: Emilly Dickinson foi

uma poetisa americana; sobre ela escreveu Ana Luísa Amaral a sua tese de doutoramento. 3 Ressemantização: novo sentido dado. 4 Parataxe: processo de articulação de frases através de coordenação sintática, frases parentéticas que introduzem comentários ou atos expressivos do locutor ou alguns tipos de interrogativas.

236

Unidade 3 // POETAS CONTEMPORÂNEOS

LEITURA

PROFESSOR

MC

Leitura 7.1; 7.2; 7.3; 7.4; 7.7.

Diário Texto A

Leitura 1. O sujeito, no registo do quotidiano, conjuga a interioridade e a exterioridade, pois, a partir da radiografia de uma época, do contexto histórico e político em que se encontra inserido (finais do séc. XX: «manifestações contra a ETA») e do testemunho de situações importantes, nomeadamente da manifestação em Arrecife, na qual participou, revelando ser um homem presente e empenhado, apresenta uma reflexão acerca de uma problemática que o afeta e que afeta o mundo. Manifesta a sua posição relativamente à atuação da ETA, visível na utilização da forma verbal «Penso» e das expressões «tanto ímpeto» e «tanta indignação» e na interrogação «Quanto tempo mais terão de durar este calvário, esta demência, este regueiro de sangue?», plena de vocábulos/ expressões disfóricos («calvário», «demência» e «regueiro de sangue»). 2. Características técnico-compositivas: nota datada («2 de julho») a indicar o registo diário (ou frequente), neste caso da finalização do seu romance «Todos os nomes», verificando-se a coincidência entre o sujeito da enunciação e o sujeito do enunciado (José Saramago). Assim, surgem no excerto marcas da implicação do eu no discurso, a saber: linguagem acessível, num registo informal («Ou talvez sim, talvez imagine: dirão que é outra história triste, pessimista»), a par de um discurso subjetivo com recurso à conotação («ainda tinha que comer muito pão e muito sal para me atrever com todos os nomes…»; «eu tivesse andado a descrever uma estátua, e a partir dele [do Evangelho] tivesse pas¬sado para o interior da pedra»); uso de formas verbais na 1.a pessoa («sou», «vejo», «tive»,…); ocorrência de deíticos pessoais – flexões verbais na 1.a pessoa, pronomes («mim», «eu»), determinantes possessivos («meu») – e de deíticos espaciais – determinantes demonstrativos («neste»); presença de formas verbais que exprimem crenças, estados, intenções e sentimentos, («sou», «creio», «imagine», «acho», «quero»).

5

14 de julho Gigantescas manifestações contra a ETA1 em toda a Espanha. Milhão e meio de pessoas em Madrid, quase um milhão em Barcelona. Em Arrecife éramos três mil. Penso que em nenhum outro país do mundo a população se teria levantado com tanto ímpeto e tanta indignação. Quanto tempo mais terão de durar este calvário, esta demência, este regueiro de sangue? José Saramago, Cadernos de Lanzarote, Diário – V, 3.ª ed., Lisboa, Caminho, 1998, p. 128.

Texto B

5

10

Catarina Pinto Leite, Solidão (pormenor), 2009.

2 de julho Ponto final em Todos os Nomes. Não sou capaz de imaginar o que se dirá deste livro, inesperado, creio, para os leitores, de certo modo ainda mais que o Ensaio sobre a Cegueira. Ou talvez sim, talvez imagine: dirão que é outra história triste, pessimista, que não há nenhuma esperança neste romance. No que a mim respeita, vejo as coisas com bastante clareza: acho, simplesmente, que quando escrevi O Evangelho segundo Jesus Cristo era novo de mais para poder escrever o Ensaio sobre a Cegueira, e, quando terminei o Ensaio, ainda tinha que comer muito pão e muito sal para me atrever com todos os nomes… À noite, enquanto passeava no jardim para acalmar os nervos, tive uma ideia que explicará melhor o que quero dizer: foi como se, até ao Evangelho, eu tivesse andado a descrever uma estátua, e a partir dele tivesse passado para o interior da pedra. Pilar acha que é o meu melhor romance, e ela sempre tem razão. José Saramago, op. cit., p. 122.

1. Atenta no Texto A e explicita o modo como a exterioridade e a interioridade se conjugam neste registo do quotidiano, indicando as temáticas da escrita diarística evidentes no mesmo. 2. Refere as características técnico-compositivas do diário presentes no Texto B, transcrevendo elementos textuais que comprovem a tua resposta.

FI

Diário p. 72

Miguel Torga

SÍNTESE

Poetas contemporâneos

MIGUEL TORGA

EUGÉNIO DE ANDRADE

ANA LUÍSA AMARAL

• O poeta surge ora com pudor ora numa espécie de revelação. • Ser em agonia ou homem revoltado, é efetivamente o retrato do poeta que é desenhado nos seus poemas.

• O poeta projeta, medindo cada traço, o seu retrato, a sua própria imagem, de um poeta que persegue obstinadamente as palavras difíceis.

• A poeta revela um descentramento do sujeito. • Formas de enunciação ambíguas entre a ficção do eu e a sua figuração. • Indeterminação da figuração do eu poético, que está «entre», numa tensão quase permanente.

Arte poética

• A espontaneidade da inspiração alia-se a um processo rigoroso de trabalho sobre o poema. • Matéria literária e modo de expressão da poesia são indissociáveis.

• O ato poético é o empenho total do ser para a sua revelação. • O poeta procura sílaba a sílaba para encontrar a forma certa do poema.

• A poeta assenta na associação de termos que se reportam a ações familiares e simples do dia a dia ao ato de criação artística.

Tradição literária

• Recolhe influências de outros poetas e correntes, mas constrói uma personalidade literária inconfundível. • Aborda as contradições, que decorrem da luta permanente com o mundo, com as palavras e com Deus.

• Poesia de temática lírica amorosa por excelência, na esteira da poesia de tradição oral e de Camões sobretudo.

• Poesia que privilegia a temática amorosa, inscrevendo-se na longa tradição da lírica amorosa, mas que dela se distancia pela inovação formal e pelas associações inusitadas.

Representações do contemporâneo

• Todos os recantos da paisagem sobretudo portuguesa. • Espaços emblemáticos que inspiram um sentimento de plenitude. • Lugares povoados de seres rústicos; espécie de natureza primitiva. • Forte presença do telúrico.

• Forte presença do «agora»: interessa-lhe o tempo presente ou o futuro. • Forte presença do «aqui» – marcado pelos quatro elementos: água, terra, fogo e ar.

• Espaços, objetos e tarefas do espaço doméstico. • Todas as divisões de uma casa, todas as tarefas domésticas. • Presença de coisas e situações do quotidiano elevadas a objeto de atenção poética.

• Importância do trabalho técnico do verso e poema. • Presença de rima. • Oralidade e temporalidade. • Uso de imagens irradiantes: a semente, a seiva, a colheita, a água, a terra, o vento, o pão, o parto, o pastoreio, Adão e Eva.

• A palavra surge como mediadora entre o mundo que o poeta propõe e a nova recriação por parte do leitor. • Presença de termos dicotómicos, que apresentam novos sentidos conjugados. • Uso abundante da palavra «palavra».

• Desprezo pela rigidez da forma impressa em estrofes, rimas e métricas. • Mobilidade do diálogo ou réplica no poema. • Presença de vocabulário ligado à casa e à cozinha: «silêncios», «armários», «cebolas perturbantes».

Figurações do poeta

Linguagem, estilo e estrutura

237

PROFESSOR

▪ Apresentação em PowerPoint Síntese da unidade

238

Unidade 3 // POETAS CONTEMPORÂNEOS

PROFESSOR

MC

Mensagens

em diÁLogo

Educação Literária 15.5; 16.2. Escrita 10.1; 11.1; 12.1; 12.2; 12.3; 12.4; 13.1. Oralidade 10.1; 11.1; 12.1; 12.2; 12.3; 12.4; 13.1.

Lê os excertos dos poemas seguintes.

Escrita

Fingimentos poéticos

Autopsicografia

Faz-me falta a tristeza para o verso: falta feroz de amante, ausência provocando dor maior. […] Um arrastão sonhando-se navio. Só se for o que diz o que deveras sente. A sério: o Zepellin. Mas coração: comboio cuja corda se partiu.

O poeta é um fingidor Finge tão completamente Que chega a fingir que é dor A dor que deveras sente.

Mensagens em diálogo Em «Fingimentos poéticos», de Ana Luísa Amaral, o desconforto e a instabilidade advêm da incapacidade de fingir, algo que a poeta justifica com a ausência de sofrimento. É fácil relacionar esta ideia com a de «Autopsicografia» de Fernando Pessoa, em que ele afirma que o poeta chega a «fingir que é dor / a dor que deveras sente», ou seja, a poesia não está na dor experimentada, ou sentida realmente, mas no fingimento dela. Isto é, a dor sentida, a dor real, para se elevar ao plano da arte, tem de ser fingida, imaginada, tem de ser expressa em linguagem poética, o poeta tem que partir da dor real, a dor que deveras sente. Regressando a «Fingimentos poéticos», dizer a dor «que deveras sente» não ocorre como solução, porque o vazio é dominante e até o coração aparece como «comboio cuja corda se partiu». O sujeito poético que se sonhara navio, surge como «pesado arrastão», estando mais uma vez «entre», imerso numa ambiguidade, «Um arrastão sonhando-se / navio». Neste poema, ao contrário de «Autopsicografia», a ausência da dor real condiciona o ato criativo e resulta na incapacidade de fingir. Mensagens em debate

▪ Apresentação em PowerPoint Debate: sugestões de abordagem ▪ Teste interativo Poetas contemporâneos

5

Fernando Pessoa, Poesia do Eu – Obra Essencial de Fernando Pessoa (ed. Richard Zenith), 3.ª ed., Lisboa, Assírio & Alvim, 2014, p. 241.

Ana Luísa Amaral, Epopeias, Coimbra, Fora do Texto, 1994, p. 34.

DESAFIO

Redige uma exposição, de cento e trinta a cento e setenta palavras, sobre o tratamento da dor e do fingimento poético, em Fernando Pessoa e em Ana Luísa Amaral, fundamentando o teu texto com referências textuais pertinentes.

Mensagens

em deBAte Afastamento da Terra e da Natureza a– desvalorização do ambiente ou da vida humana? DESAFIO

Prepara um debate, de trinta a quarenta minutos, respeitando o tema apresentado e relaciona-o com a visão dos autores estudados na unidade. Planifica a tua intervenção oral, tendo em conta as características discursivas do género solicitado e participa oportuna e construtivamente na interação oral.

Yaho, Um Mar de Garrafas de Plástico, in L’ Actualité, 01-06-2012.

239

GLOSSÁRIO A

P

Arte poética: a expressão «arte poética» costuma designar o «acervo de preceitos, conhecimentos e técnicas necessários à escrita da poesia». Pode também designar o conjunto dos princípios estéticos, conscientemente expostos ou implícitos, que guiam um escritor (não especialmente um «poeta») na sua obra.

Pseudónimo: nome adotado por autor ou responsável por uma determinada obra literária ou de qualquer outra natureza, que não usa o seu nome civil verdadeiro e opta por usar um nome suposto, para assinar as suas obras. Assim, Miguel Torga é o pseudónimo literário de Adolfo Correia da Rocha e Eugénio de Andrade é o pseudónimo de José Fontinhas, por exemplo.

Alegoria: No seu significado etimológico, alegoria significa dizer uma coisa por outra, representando figurativamente um conceito ou uma abstração (e, sob este ponto de vista, aproxima-se da personificação). Assim, a justiça é representada alegoricamente por uma mulher de olhos vendados que segura uma balança nas mãos, a paz é figurada por uma pomba, a crueldade por um tigre, etc. A alegoria apresenta um significado literal e um significado figurado, que são indissociáveis na interpretação, prolongando-se muitas vezes a alegoria como uma metáfora continuada que pode ocupar ou percorrer a totalidade de um texto mais ou menos extenso. O funcionamento da alegoria é fundamental na interpretação dos textos que representam e comunicam significados ocultos ou translatos de ordem religiosa, moral, política, etc.

S Soneto: poema de forma fixa composto por catorze versos, com número variável de sílabas, sendo o verso mais frequente o decassílabo, e cujo último verso, também designado como chave de ouro, concentra em si a ideia principal ou encerra a composição de maneira a encantar ou surpreender o leitor. O soneto italiano de matriz petrarquista é composto por duas quadras e dois tercetos.

Anteu: era um gigante filho de Gaia (Terra) e de Posídon. Habitava na Líbia, perto de Marrocos (segundo a maioria dos autores), e obrigava todos os viajantes a lutar contra ele. Vencidos e mortos, os seus cadáveres passavam a enfeitar o templo do seu pai, deus do mar, Posídon. Enquanto permanecesse em contacto com a sua mãe, ou seja, a terra, Anteu era invencível e invulnerável. No entanto, Héracles (Hércules, na mitologia romana), de passagem pela Líbia, em busca da maçã de ouro, lutou contra Anteu e, descobrindo o segredo da sua invencibilidade, conseguiu derrotá-lo, mantendo-o no ar, sem tocar no solo. O mito de Anteu permite caracterizar o novo vigor que se manifesta quando há um reencontro com a origem, com a mãe-terra.

G Glosar: compor estrofes que desenvolvem um mote/tema, «colocado no início do poema e do qual pode repetir um ou mais versos em posição certa, como um refrão».

Bibliografia/Webgrafia do Glossário Antônio Houaiss & Mauro de Salles Villar, Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, Lisboa, Temas e Debates, 2003. Carlos Ceia (org.), E-dicionário de termos literários (disponível em http:// www.edtl.fcsh.unl.pt). Dicionário Terminológico, DGIDC, 2008. Marc Augenot, Glossário da Crítica Contemporânea, Lisboa, Editorial Comunicação, 1984. Pierre Grimal, Dicionário da Mitologia Grega e Romana (trad. Victor Jabouille), Linda-a-Velha, Difel, 1992.

240

Unidade 3 // POETAS CONTEMPORÂNEOS

Grupo I

FICHA FORMATIVA

A

Biografia

COTAÇÕES Grupo I A 1. 2. 3. B 4. 5.

5

20 pontos 20 pontos 20 pontos 10

20 pontos 20 pontos 100 pontos

PROFESSOR

Grupo I A 1. O poema pode ser dividido em duas partes. A primeira composta pelas duas primeiras estrofes e a segunda composta pela última estrofe. Na primeira parte, o sujeito poético afirma que o sonho faz parte da sua vida, embora não o revele, pois prefere viver discreta e intimamente. Na segunda parte, em oposição à vida do poeta, discreta e apagada, estabelecendo com ela uma relação de contraste, através do uso da conjunção coordenativa «mas», surge a criação poética, impetuosamente exteriorizada e furiosamente libertada, numa espécie de reação à contenção da vida. 2. A poesia é referida metaforicamente através dos «versos» (v. 11). Estes são fruto do sonho e da vida, que, na primeira estrofe, são referidos como acontecendo dentro do poeta: o sonho é por dentro que acontece (v. 3) e a vida é íntima e funda (v. 5). 3. Nos últimos quatro versos, a poesia surge personificada na figura de um prisioneiro que foge da prisão e se liberta quando vê a porta aberta; esta «fuga» é também comparada à chispa de uma fogueira. Através dos dois recursos – personificação e comparação –, a criação poética é vista como um ato de libertação e a poesia assume uma feição combativa para o poeta.

15

20

Sonho, mas não parece. Nem quero que pareça. É por dentro que eu gosto que aconteça A minha vida. Íntima, funda, como um sentimento De que se tem pudor. Vulcão de exterior Tão apagado, Que um pastor Possa sobre ele apascentar o gado. Mas os versos, depois, Frutos do sonho e dessa mesma vida, É quase à queima-roupa que os atiro Contra a serenidade de quem passa. Então, já não sou eu que testemunho A graça Da poesia: É ela, prisioneira, Que, vendo a porta da prisão aberta, Como chispa1 que salta da fogueira, Numa agressiva fúria se liberta.

1 Chispa: faísca, faúlha.

Miguel Torga, «Orfeu Rebelde», in Poesia Completa, Lisboa, Publicações Dom Quixote, 2000, p. 561.

Apresenta de forma bem estruturada, as tuas respostas aos itens que se seguem. 1. Divide o poema em partes e sintetiza cada uma delas, especificando como se interligam. 2. Demonstra que, no poema, a poesia é a expressão das vivências interiores do poeta. 3. Identifica os recursos expressivos presentes nos últimos quatro versos do poema e refere o seu valor expressivo.

Ficha formativa

B

5

10

15

20

Andam lentamente, mais do que se pode, como quem luta sem forças contra o vento, ou como quem caminha, também é possível, na pesada e espessa e dura água do mar. Mas não há água nem vento, só calor, na longa rua onde George volta a passar depois de mais de vinte anos. Calor e também aquela aragem macia e como que redonda, de forno aberto, que talvez venha do sul ou de qualquer outro ponto cardeal ou colateral, perdeu a bússola não sabe onde nem quando, perdeu tanta coisa sem ser a bússola. Perdeu ou largou? Caminham pois lentamente, George e a outra cujo nome quase quis esquecer, quase esqueceu. Trazem ambas vestidos claros, amplos, e a aragem empurra-os ao de leve, um deles para o lado esquerdo de quem vai, o outro para o lado direito de quem vem, ambos na mesma direção, naturalmente. O rosto da jovem que se aproxima é vago e sem contornos, uma pincelada clara, e, quando os tiver, a esses contornos, ele será o rosto de uma fotografia que tem corrido mundo numa mala qualquer, que tem morado no fundo de muitas gavetas, o único fetiche de George. As suas feições ainda são incertas, salpicando a mancha pálida, como acontece com o rosto das pessoas mortas. […] Agora está à janela a ver o comboio fugir de dantes, perder para todo o sempre árvores e casas da sua juventude […]. O calor de há pouco foi desaparecendo e agora não há vestígios daquela aragem de forno aberto. O ar está muito levemente morno e quase agradável. George suspira, tranquilizada. Amanhã estará em Amsterdão na bela casa mobilada onde, durante quanto tempo?, vai morar com o último dos seus amores. Maria Judite de Carvalho, «George», in AA.VV., Conto Português [séculos XIX-XXI]: Antologia Crítica (coord. Maria Isabel Rocheta & Serafina Martins), vol. 3, Porto, Edições Caixotim, 2011, pp. 115-120.

4. Prova que, na narrativa, os tempos passados, presente e futuro se conjugam e se associam a um espaço que oscila entre o interior e o exterior. 5. Explica por que razão podemos considerar George uma personagem errante e fragmentada, em viagem dentro e fora de si. Fundamenta a tua resposta.

241

PROFESSOR

Grupo I B 4. Na narrativa, o tempo contemporâneo conjuga os tempos presente, passado e futuro. A sua singularidade está na presença de múltiplas facetas e tudo num trânsito constante, uma vez que partimos do presente («andam lentamente»), para um regresso ao passado, através da memória («rua onde George volta a passar depois de mais de vinte anos»), voltamos ao presente («Caminham») e, por fim, avançamos até ao futuro («Amanhã estará em Amesterdão»). O espaço mescla-se e gera-se uma alternância exterior (a rua) e interior (a carruagem do comboio). 5. A personagem revela-se um ser errante, na medida em que anda sempre a viajar – parte para um lugar, para depois partir de novo; a pergunta retórica no final do excerto mostra-nos isso mesmo: durante quanto tempo?. Por outro lado, a forma como George nos é apresentada revela-nos que a personagem se procura a si mesma e desvenda-nos que ela e a outra são a mesma pessoa, em momentos distintos da vida: «Caminham pois lentamente, George e a outra cujo nome quase quis esquecer, quase esqueceu. Trazem ambas vestidos claros, amplos, e a aragem empurra-os ao de leve, um deles para o lado esquerdo de quem vai, o outro para o lado direito de quem vem, ambos na mesma direção, naturalmente». Neste exemplo, o movimento dos vestidos cria um efeito de espelho onde surgem refletidas as imagens de ambas as mulheres.

242

Unidade 3 // POEMAS CONTEMPORÂNEOS

Grupo II

FICHA FORMATIVA COTAÇÕES

5

Grupo II A 1.1 1.2 1.3 1.4 1.5 1.6 1.7 2. 3.

5 pontos 5 pontos 5 pontos 5 pontos 5 pontos 5 pontos 5 pontos 5 pontos 10 pontos 50 pontos

10

15

Escrevo como mulher? A moldar a minha identidade está uma miríade1 de identidades: sou humana, sou europeia, sou portuguesa, sou professora, sou mulher. Como mulher, sou também mãe. E sou ainda uma mulher-poeta – talvez a identidade (ou subidentidade) mais difícil de definir. Embora eu seja feminista, não partilho da visão de que somos todas irmãs. E pergunto: o facto de eu ser do sexo feminino, de ter um nome feminino, de falar às vezes na minha poesia do espaço da cozinha ou da minha filha, permite que sejam feitas leituras da minha poesia como «uma poesia feminista» ou «uma poesia feminina»? Se, quando se trata do autor como entidade abstrata, se distingue entre autor empírico e autor textual, porque hão de a autora empírica e a autora textual ser lidas como coincidentes? E todavia, isto tem sido um traço relevado por alguns críticos: localizar alguns dos meus poemas num universo «feminino», esquecendo que o «feminino» é também uma construção, que a cozinha não tem necessariamente que ver com mulheres, que a expressão do abandono não é apanágio da mulher, que a filha para quem eu escrevo tantos poemas é, nos meus poemas, uma filha, mas que isso talvez aconteça por acaso, que o tricot como metáfora para a poesia podia bem ser usada por um homem. No poema «Posteridades», digo justamente isto: «Escrevo para o meu filho / que é de nada.» Estas são questões que me interessam e que cruzarei com outras como o habitar da tradição e o seu desvio, ou como a construção da identidade nos textos e na vida. Ana Luísa Amaral, «Os Teares da Memória», in Adriana Bebiano e Maria Irene Ramalho (org.) Revista Crítica de Ciências Sociais, Coimbra, Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, 2010, pp. 187-188.

PROFESSOR

Grupo II

1 Miríade: grande número.

1. 1.1 (D). 1.2 (A). 1.3 (B). 1.4 (C). 1.5 (B). 1.6 (C). 1.7 (B). 2. Oração subordinada substantiva completiva. 3. «questões».

1. Para responderes a cada um dos itens de 1.1 a 1.7, seleciona a única opção que te permite obter uma afirmação correta de acordo com o texto. 1.1 Ana Luísa Amaral considera que (A) (B) (C) (D)

todas as mulheres são iguais. cada mulher é um ser único e inimitável. em cada mulher há múltiplas facetas. na sua identidade há múltiplas facetas.

1.2 Ao perguntar se o facto de ser do sexo feminino torna a sua poesia feminina e feminista (ll. 5-9), a «poeta» pretende (A) (B) (C) (D)

insinuar que a sua poesia não deve ser vista como feminina e feminista. negar o lado feminino ou feminista da sua poesia. afirmar o lado feminino e feminista da sua poesia. afirmar que a sua identidade deve ser tida em conta na leitura da sua obra.

1.3 Para a «poeta», os elementos da sua poesia (A) (B) (C) (D)

são indicadores de género. ajustam-se a ambos os sexos. são reflexo da sua vida pessoal. divergem do mundo feminino.

Ficha formativa

COTAÇÕES

1.4 O texto inicia-se com (A) (B) (C) (D)

uma comparação e uma enumeração. uma hipérbole e uma enumeração. uma interrogação retórica e uma enumeração. uma enumeração e uma comparação.

1.5 O constituinte «uma miríade de identidades» (l. 1) desempenha a função sintática de (A) predicativo do sujeito. (B) sujeito.

(C) complemento direto. (D) complemento oblíquo.

1.6 A expressão «talvez a identidade (ou subidentidade) mais difícil de definir» (ll. 3-4) exprime um valor de probabilidade, logo representa a modalidade (A) (B) (C) (D)

epistémica, com valor de certeza. deôntica, com valor de permissão. epistémica, com valor de probabilidade. deôntica, com valor de obrigação.

1.7 Na expressão «Estas são questões […] que cruzarei com outras» (l. 16) está presente um ato ilocutório (A) assertivo. (B) compromissivo.

243

(C) declarativo. (D) expressivo.

2. Classifica a oração «que o “feminino” é também uma construção» (l. 11). 3. Identifica o referente da segunda ocorrência de «que» na linha 16.

Grupo III É por dentro que eu gosto que aconteça A minha vida Íntima, funda, como um sentimento de que se tem pudor. Miguel Torga, «Biografia» (excerto), «Orfeu Rebelde», in Poesia Completa, Lisboa, Dom Quixote, 2000, p. 561.

A intimidade e a privacidade, defendidas por Torga, são hoje pouco valorizadas. Assiste-se diariamente à exposição excessiva da vida pessoal, nas redes sociais, sobretudo, por parte dos mais jovens. Num texto de opinião, de duzentas a trezentas palavras, refere-te à importância de se preservar a intimidade e de se separar o público do privado. Apresenta argumentos e exemplos que fundamentem a tua opinião.

Grupo III 50 pontos

PROFESSOR

Grupo III Escrita Tópicos de resposta – A intimidade deve ser preservada, porque a exposição da vida íntima pode conduzir à perda de privacidade e permitir que todos tenham acesso a informações de caráter pessoal. – A preservação da intimidade é a garantia de preservação da vida privada. – A exposição da vida em demasia conduz à perda de controlo sobre os movimentos. – A Internet é um dos sítios onde se deve ter o cuidado de evitar a exposição excessiva, porque é uma porta aberta para que todos (mesmo os que não se deseja) possam aceder a informação privada. –…

▪ Ficha formativa Soluções para projeção

4

JOSÉ SARAMAGO

EDUCAÇÃO LITERÁRIA

EDUCAÇÃO LITERÁRIA

Contextualização literária

Contextualização literária

José Saramago, O Ano da Morte de Ricardo Reis

José Saramago, Memorial do Convento

• Representações do século XX: o espaço da cidade, o tempo histórico e os acontecimentos políticos

• O título e as linhas de ação • Caracterização das personagens. Relação entre elas

• Deambulação geográfica e viagem literária

• O tempo histórico e o tempo da narrativa

• Representações do amor

• Visão crítica

• Intertextualidade: José Saramago, leitor de Luís de Camões, Cesário Verde e Fernando Pessoa

• Dimensão simbólica

• Linguagem, estilo e estrutura: – a estrutura da obra – o tom oralizante e a pontuação – recursos expressivos: a antítese, a comparação, a enumeração, a ironia e a metáfora – reprodução do discurso no discurso LEITURA Textos informativos Artigos de opinião COMPREENSÃO DO ORAL Registos áudio e audiovisuais EXPRESSÃO ORAL Apresentação oral Texto de opinião Debate ESCRITA Apreciação crítica Exposição sobre um tema

• Linguagem, estilo e estrutura: – a estrutura da obra – intertextualidade – pontuação – recursos expressivos: a anáfora, a comparação, a enumeração, a ironia e a metáfora – reprodução do discurso no discurso GRAMÁTICA Sintaxe – funções sintáticas – classificação de orações Semântica – valor temporal – valor aspetual – valor modal Discurso pragmática e linguística textual – Coesão textual – Deixis – Sequências textuais – Intertextualidade

João Caetano, A Maior Flor do Mundo (ilustração), 2013.

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mensaGens CrUzadaS Miguel Real Possui uma vasta obra dividida entre o ensaio, a ficção e o drama, tendo recebido o Prémio de Revelação nas áreas da Ficção e do Ensaio Literário da Associação Portuguesa de Escritores, o Prémio Ler/Círculo de Leitores, o Prémio da Associação dos Críticos Literários, o Prémio Fernando Namora da Sociedade Estoril Sol e o Prémio SPA Autores pelo romance O Feitiço da Índia. É colaborador permanente do JL, onde faz crítica literária. Na editora Dom Quixote publicou os romances As Memórias Secretas da Rainha D. Amélia, A Guerra dos Mascates, O Feitiço da Índia, A Cidade do Fim e O Último Europeu, tendo ainda publicado os ensaios Nova Teoria do Mal, Nova Teoria da Felicidade, Nova Teoria do Sebastianismo e Nova Teoria do Pecado.

As Personagens

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O Ano da Morte de Ricardo Reis, de José Saramago, ensina que para além de um grande autor existe sempre um homem de carne e osso, repleto de angústias psíquicas e de hesitações e dúvidas sociais. Ricardo Reis, ser de papel (heterónimo), criado pela ficção de Fernando Pessoa, torna-se, no romance, um ser «real», uma personagem real. Ficção de ficção, Saramago faz-nos ver e sentir como se comportaria uma personagem chamada Ricardo Reis no ano de 1936, regressado do Brasil a Lisboa após a morte do «pai/ autor» Fernando Pessoa. Aqui, entre a Praça do Comércio e o Chiado, Saramago faz Ricardo Reis confrontar a realidade social do ano de 1936 (o Estado Novo, as prisões de elementos da oposição, a criação de uma polícia política, a censura aos jornas…) com os mitos clássicos que alimentam a sua poesia. As convicções poéticas permanecem no poeta (classicismo, estoicismo, neopaganismo, idealização da mulher, indiferença perante os aleijões do mundo), mas o homem/personagem Ricardo Reis não permanece o mesmo. Após a morte de Daniel (irmão marinheiro de Lídia, revoltado contra a política do Estado Novo) e o anúncio no romance de que iria ter um filho de Lídia, hesita entre participar no mundo e permanecer indiferente a este. Memorial do Convento é atravessado por uma onda de lirismo, de otimismo científico e estético, para a qual a entrega à Arte (Scarlatti), à Ciência (Bartolomeu de Gusmão) e ao Maravilhoso (Blimunda) se evidenciam como alternativas credíveis na opção pelo sentido de vida.

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Memorial do Convento ostenta uma galeria de personagens maravilhosas, singularmente diferentes da normalidade social, que encanta a mentalidade do leitor, criando-lhe um optimismo existencial, uma vontade de enfrentar a vida como raramente se encontra no romance português, legando uma mensagem implícita, que repercute inconscientemente na mente do leitor: a necessidade de cada um construir a sua «passarola», de possuir o seu «sonho» e de se ser diferente dos restantes para o cumprir. Memorial do Convento coloca com grande nitidez a questão da nova complexidade do estatuto do narrador, simultaneamente individual e coletivo, histórico e atual, espécie de voz singular da consciência e de voz da História. Memorial do Convento caracteriza na figura de D. João V e da sua corte alguns dos males éticos de que padece a permanente elite portuguesa: a ostentação, a vaidade, o excesso, a ambição tola por imitação de modas estrangeiras, a indiferença para com o sofrimento das populações, a antiga repressão sobre a sexualidade do corpo feminino. Memorial do Convento denuncia, em estilo irónico, sarcástico, até jocoso, o contexto sociopolítico megalómano dos costumes cortesãos do século XVIII e a mentalidade interesseira da corte, obviando a evidentes paralelismos com a atualidade. Miguel Real (texto inédito, 2017)

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Zeferino Antas de Sousa Coelho Nasceu em Paredes, em 1945. Completou os estudos liceais em Guimarães e depois matriculou-se na Universidade do Porto, em cuja Faculdade de Letras se licenciou em Filosofia, em 1969. Nesse ano, começou a trabalhar numa editora, a Editorial Inova, onde se manteve até ao final do ano de 1971. Entrou para a Editorial Caminho no início de 1977, onde é editor até hoje.

Sábio era Ricardo Reis… Ou o meu Avô Jerónimo?

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José Saramago publicou em 1982 um livro que o confirmou como um grande escritor: o Memorial do Convento. Resultou essa obra de uma visita ao convento de Mafra vários anos antes. Voltado para aquele enorme edifício, Saramago, o grande escritor que ainda não o era, esmagado e ao mesmo tempo instigado por aquela enorme massa de pedra, entreviu num relance os homens que estavam por detrás de tudo aquilo, os seus dramas e as suas alegrias, e disse para os amigos que o acompanhavam: «gostava de escrever um dia um romance com este convento lá dentro.» E foi assim que o Memorial do Convento começou a nascer na cabeça do escritor. Vários dos romances de José Saramago nasceram desta maneira: primeiro uma ideia fugaz, ainda muito informe, que lhe salta no fluxo do pensamento. Depois, em alguns casos, um título, que, sendo só um título, é em todo o caso alguma coisa que promete, que estimula a imaginação. E depois o livro. Foi assim que nasceu O Ano da Morte de Ricardo Reis. Vou explicar. A formação académica de José Saramago era escassa: concluiu, em 1940, o curso de serralharia mecânica, em Lisboa. Conta ele que um dia encontrou na biblioteca da escola um exemplar da revista Athena, dirigida por Fernando Pessoa. E nela encontrou vinte odes assinadas por um poeta chamado Ricardo Reis. Mas a relação de Saramago com Ricardo Reis encer-

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rava uma contradição insolúvel: a enorme admiração pela beleza clássica daquela poesia chocava no seu pensamento com a filosofia de vida do autor, que afirmava: «sábio é o que se contenta com o espetáculo do mundo.» «Como é possível, dizia Saramago, proferir tal afirmação perante o que se passa à nossa volta, aqui mesmo ao lado?»Durante anos José Saramago transportou consigo este problema. Até que um dia essa ideia difusa ganhou a forma de romance. Sobre Ricardo Reis, Fernando Pessoa disse-nos onde e quando nasceu. Mas não disse onde e quando morreu. O romancista está, pois, livre de completar a história da sua vida. E, pela mão mágica de Saramago, Ricardo Reis, abandonado por Pessoa no Brasil, regressa a Portugal em 1935. Fernando Pessoa acaba de morrer e está no cemitério dos Prazeres, e ele próprio, Ricardo Reis, morrerá em 1936. Precisamente no meio da tragédia que o mundo vivia, com o início da guerra civil em Espanha, a três anos do início da Segunda Guerra Mundial. Esta é a história do nascimento daquele que muitos consideram o melhor romance de José Saramago – O Ano da Morte de Ricardo Reis, publicado em 1984, tinha o autor 62 anos de idade e, à sua frente, uma grande obra literária a escrever. Fui seu editor desde 1979 até à sua morte. Nunca o vi vacilar. Zeferino Coelho (texto inédito, 2017)

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Unidade 4 // JOSÉ SARAMAGO

Contextualização histórico-literária Datas e acontecimentos 1922 Nascimento de José Saramago. 1926 Golpe militar, sob a liderança do General Gomes da Costa: fim do último Governo da I República. Entrada em funções do primeiro governo da Ditadura Militar. Demissão do presidente da República, Bernardino Machado. Função de Presidente da República desempenhada interinamente pelo General Óscar Carmona. 1928 António de Oliveira Salazar assume a pasta das Finanças. 1932 Tomada de posse do VIII Governo da Ditadura Militar, presidido por António de Oliveira Salazar. 1933 Promulgação e entrada em vigor da Constituição Política da República Portuguesa; institucionalização do Estado Novo. Criação da Polícia de Vigilância e Defesa do Estado (PVDE, mais tarde, em 1945, PIDE, Polícia Internacional e de Defesa do Estado). 1936-1939 Guerra Civil de Espanha. 1939 O Estado Novo reafirma publicamente a posição de «neutralidade equidistante» de Portugal perante o conflito militar (II Guerra Mundial: 1939-1945). 1961 Início da Guerra Colonial (1961-1974). 1968 Exoneração de Oliveira Salazar do cargo de presidente do Conselho de Ministros, por incapacidade física permanente. Nomeação de Marcelo Caetano. 1974 (25 de abril) Fim da ditadura: golpe militar pelo Movimento das Forças Armadas (MFA) – Revolução dos Cravos.

1976 Ramalho Eanes é eleito Presidente da República. Mário Soares é empossado como chefe do I Governo 1998 Atribuição do Prémio Nobel da Literatura a José Saramago. 2010 Morte de José Saramago, aos 88 anos. Textos e obras 1917 Húmus, Raúl Brandão. 1947- 2014 José Saramago – romances: • Terra do Pecado (1947) • Manual de Pintura e Caligrafia (1977) • Levantado do Chão (1980) • Memorial do Convento (1982) • O Ano da Morte de Ricardo Reis (1984) • A Jangada de Pedra (1986) • História do Cerco de Lisboa (1989) • O Evangelho Segundo Jesus Cristo (1991) • Ensaio Sobre a Cegueira (1995) • Todos os Nomes (1996) • A Caverna (2000) • O Homem Duplicado (2002) • Ensaio Sobre a Lucidez (2004) • As Intermitências da Morte (2005) • A Viagem do Elefante (2008) • Caim (2009) • Claraboia (2011) • Alabardas, Alabardas, Espingardas, Espingardas (2014)

Contextualização histótico-literária

1. José Saramago (1922-2010)

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Filho e neto de camponeses sem terra, JOSÉ SARAMAGO nasceu na aldeia de Azinhaga, província do Ribatejo, no dia 16 de novembro de 1922, se bem que o registo oficial mencione, como data do nascimento, o dia 18. Seus pais emigraram para Lisboa quando ele não perfizera ainda dois anos de idade. A maior parte da sua vida decorreu portanto na capital, embora até ao princípio da idade madura tivessem sido numerosas, e às vezes prolongadas, as suas estâncias na aldeia natal. Fez estudos secundários (liceal e técnico) que, por dificuldades económicas, não pôde prosseguir. No seu primeiro emprego foi serralheiro mecânico, tendo exercido depois diversas outras profissões: desenhador, funcionário da saúde e da previdência social, tradutor, editor, jornalista. Publicou o seu primeiro livro, um romance (Terra do Pecado), em 1947, tendo estado depois largo tempo sem publicar, até 1966. Trabalhou durante doze anos numa editora, onde exerceu funções de direção literária e de produção. Colaborou como crítico literário na revista Seara Nova. Em 1972 e 1973, fez parte da redação do jornal Diário de Lisboa, onde foi comentador político, tendo também coordenado, durante cerca de um ano, o suplemento cultural daquele vespertino. Pertenceu à primeira direção da Associação Portuguesa de Escritores e foi, desde 1985 a 1994, presidente da Assembleia Geral da Sociedade Portuguesa de Autores. Entre abril e novembro de 1975, foi diretor-adjunto do jornal Diário de Notícias. A partir de 1976, passou a viver apenas do seu trabalho literário, primeiro como tradutor, depois como autor. Casou com Pilar del Río em 1988 e em fevereiro de 1993 passou a dividir o seu tempo entre a sua residência habitual em Lisboa e a ilha de Lanzarote, no arquipélago de Canárias (Espanha). Em 1998, foi-lhe atribuído o Prémio Nobel de Literatura. José Saramago morreu a 18 de junho de 2010.

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PROFESSOR

▪ Apresentação em PowerPoint Contextualização histórico-literária ▪ Link José e Pilar, de Miguel Gonçalves Mendes (2010)

in O Ano da Morte de Ricardo Reis, 21.ª ed., Alfragide, Editorial Caminho, 2013 (biografia em badana).

Odeith, Tributo a José Saramago na rua Afonso de Albuquerque – Cacém, 2016.

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Unidade 4 // JOSÉ SARAMAGO

2. Prémio Nobel da Literatura – 1998

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No dia 8 de outubro de 1998, a Academia Sueca concedeu-lhe o Prémio Nobel da Literatura «pela sua capacidade de tornar compreensível uma realidade fugidia com parábolas sustentadas pela imaginação, pela compaixão e pela ironia», conforme justificou o seu secretário, Sture Allén. […] Saramago soube construir o perfil de um Prémio Nobel próximo, solidário, generoso e visível, em sintonia com a sua personalidade. Um escritor laureado, movido por uma vontade de serviço, de quem o crítico norte-americano Harold Bloom diria, generosamente, em 2001: «Entre os mais recentes, o único Nobel bem atribuído foi o de Saramago, que o honrou mais do que o Prémio o honrou a ele. Não há romancistas no Novo Mundo, Brasil, Argentina, Colômbia, Estados Unidos, Austrália, mesmo na Europa Ocidental, tão modernos como ele. O Nobel foi tantas vezes dado a pessoas absurdas!» Fernando Gómez Aguilera, «Prémio Nobel», in Fernando Gómez Aguilera (ed.), José Saramago nas Suas Palavras, 2.ª ed., Alfragide, Editorial Caminho, 2010, pp. 349-350.

José Saramago

3. O Nobel por Saramago PROFESSOR

▪ Link Discurso de Saramago em Estocolmo, na cerimónia de entrega do Prémio Nobel, 1998 Consolida 1. Sture Allén, secretário da Academia Sueca: «pela sua capacidade de tornar compreensível uma realidade fugidia com parábolas sustentadas pela imaginação, pela compaixão e pela ironia»; Fernando Gómez Aguilera: «Saramago soube construir o perfil de um Prémio Nobel próximo, solidário, generoso e visível, em sintonia com a sua personalidade. Um escritor laureado, movido por uma vontade de serviço»; Harold Bloom, crítico norte-americano: «Entre os mais recentes, o único Nobel bem atribuído foi o de Saramago, que o honrou mais do que o Prémio o honrou a ele. Não há romancistas no Novo Mundo, Brasil, Argentina, Colômbia, Estados Unidos, Austrália, mesmo na Europa Ocidental, tão modernos como ele»; José Saramago: «Senti que […] a língua portuguesa falada em toda a lusofonia, foi distinguida.», «[…] um prémio […] que tomo como qualquer coisa que nos pertence a todos.», «[…] se o que tenho vindo a fazer até agora tem tido alguma utilidade para alguém, como voz, como crítica, como análise das circunstâncias, dos factos, da vida política, da vida social, da situação em que o mundo está, então assim continuará a ser.»

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Também tive um sentimento patriótico [com a concessão do Prémio Nobel], no melhor sentido da palavra. Senti que através de mim, por aquilo que eu fiz, valha o que valer, de repente, aos olhos do mundo, a língua portuguesa falada em toda a lusofonia foi distinguida. E na medida também de que todas essas pessoas aceitem como igualmente seu um prémio que me tem de ser entregue, mas que tomo como qualquer coisa que nos pertence a todos. José Saramago, «Não nasci para isto» [reportagem de Alexandra Carita, A Capital, Lisboa, 9 de outubro de 1998], in op. cit., p. 351.

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Este Prémio Nobel vai continuar a ser quem é, participando como até aqui, com intervenções como até aqui, naquilo que considerar útil, indispensável e necessário. Não assumirei o Prémio Nobel como uma «miss» de beleza que tem de ser exibida em toda a parte… Não aspiro a esses tronos, nem poderia, claro… Mas se o que tenho vindo a fazer até agora tem tido alguma utilidade para alguém, como voz, como crítica, como análise das circunstâncias, dos factos, da vida política, da vida social, da situação em que o mundo está, então assim continuará a ser. José Saramago, «A minha casa é Lanzarote» [entrevista de Alexandra Lucas Coelho, Público, Lisboa, 14 de outubro de 1998], in op. cit., p. 353.

CONSOLIDA

1. Distingue, através de transcrições textuais, as várias opiniões acerca da atribuição do Prémio Nobel da Literatura a José Saramago, incluindo a do próprio autor.

O ANO DA MORTE DE RICARDO REIS TITULO

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Contextualização literária 1. A ficção saramaguiana

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[A] ficção de José Saramago dedica-se […] a rever e a reinventar mitos domiminantes da nossa cultura, da cultura portuguesa em particular e da cultura ocidental ntal em geral. O legado pessoano no imaginário cultural português é objeto, então, dessa revisão em O Ano da Morte de Ricardo Reis (1984), romance que a crítica mais recente tem destacado como uma das obras mais importantes e elaboradas as da ficção saramaguiana. Regressando a uma Lisboa cinzenta e oprimida, depois ois da morte de Fernando Pessoa, o heterónimo revisita, em 1936, um cenário que ue o ortónimo bem conhecia; nesse cenário repercutem os ecos de acontecimentos os como as aparições de Fátima ou os começos da Guerra Civil de Espanha, projetados ados na sensibilidade de um Ricardo Reis que, mantendo traços da criação pessoana, na, é desconstruído pela ficção saramaguiana […]. Carlos Reis, «Saramago», in José Augusto Cardoso Bernardes et al. (dir.), Biblos, Enciclopédia lopédiaa -1149.. das Literaturas de Língua Portuguesa, vol. 2, Lisboa, Editorial Verbo, 1999, pp. 1148-1149.

2. O espetáculo do mundo

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Foi na biblioteca da escola industrial que O Ano da Morte de Ricardo Reis começou meçou u a ser escrito… Ali encontrou um dia o jovem aprendiz de serralheiro (teria então ão 17 7 anos) uma revista – Athena era o título – em que havia poemas assinados com aquele quelee nome e, naturalmente, sendo tão mau conhecedor da cartografia literária do seu u país pensou que existia em Portugal um poeta que se chamava assim: Ricardo Reis. Não tardou muito tempo, porém, a saber que o poeta propriamente dito tinha sido o um tal Fernando Nogueira Pessoa que assinava poemas com nomes de poetas inexistenstentes nascidos na sua cabeça e a que chamava heterónimos, palavra que não constava stava dos dicionários da época, por isso custou tanto trabalho ao aprendiz de letras saber aber o que ela significava. Aprendeu de cor muitos poemas de Ricardo Reis («Paraa ser grande sê inteiro / Põe quanto és no mínimo que fazes»), mas não podia resignarnar-se, apesar de tão novo e ignorante, a que um espírito superior tivesse podido cononceber, sem remorso, este verso cruel: «Sábio é o que se contenta com o espetáculo culo do mundo». Muito, muito tempo depois o aprendiz, já de cabelos brancos e um pouco mais sábio das suas próprias sabedorias, atreveu-se a escrever um romance nce para mostrar ao poeta das Odes alguma coisa do que era o espetáculo do mundo ndo nesse ano de 1936 em que o tinha posto a viver os últimos dias: a ocupação da Renânia pelo exército nazista, a guerra de França contra a República espanhola, a criação por Salazar das milícias fascistas portuguesas. Foi como se estivesse a dizer-lhe: «Eis o espetáculo do mundo, meu poeta das amarguras serenas e do ceticismo elegante. Desfruta, goza, contempla, já que estar sentado é a tua sabedoria…» in O Ano da Morte de Ricardo Reis, 21.ª ed., Alfragide, Editorial Caminho, 2013 (apresentação em badana).

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▪ Vídeo O Ano da Morte de Ricardo Reis, José Saramago, em 15’

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Unidade 4 // JOSÉ SARAMAGO

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Sugestão ao professor: distribuição dos capítulos pelos alunos (um capítulo por aluno). Cada aluno apresentará oralmente (entre 2 a 3 minutos) o desenvolvimento dos tópicos respeitantes a cada capítulo.

Amadeu Ferrari, Saldanha, Lisboa, AML (pormenor), c. 1949.

Visão global da obra O Ano da Morte de Ricardo Reis Estrutura externa CAPÍTULO I

Regresso de Ricardo Reis a Lisboa, após 16 anos no Brasil, instalando-se no Hotel Bragança. Primeiro contacto visual com Marcenda, uma hóspede do hotel.

CAPÍTULO II

Visita de Ricardo Reis ao cemitério dos Prazeres para visitar o túmulo de Fernando Pessoa. Primeiro contacto com Lídia, uma criada do hotel.

CAPÍTULO III

Passeio de Ricardo Reis por Lisboa, acabando por assistir ao bodo do Século. Festejos da passagem de ano no Rossio. Primeira visita de Fernando Pessoa a Ricardo Reis no quarto do Hotel Bragança: conversa sobre a morte do primeiro e as razões do regresso do segundo.

CAPÍTULO IV

Atração física de Ricardo Reis por Lídia. Encontro de Fernando Pessoa e Ricardo Reis, na esquina da rua de Santa Justa: conversa sobre a vida e a morte. Envolvimento de Ricardo Reis com Lídia, passando a noite juntos.

CAPÍTULO V

Ida de Ricardo Reis ao Teatro D. Maria para conhecer o Dr. Sampaio e a sua filha Marcenda. Nova visita de Fernando Pessoa a Ricardo Reis no Hotel Bragança: conversa sobre Lídia. Novo envolvimento de Ricardo Reis com Lídia, passando a noite juntos.

CAPÍTULO VI

Conversa entre Ricardo Reis e Marcenda sobre o seu problema físico. Jantar no Hotel Bragança com o Dr. Sampaio e Marcenda: conversa sobre política.

CAPÍTULO VII

Novo envolvimento físico de Ricardo Reis e Lídia. Encontro de Fernando Pessoa e Ricardo Reis no café do bairro: conversa sobre os acontecimentos políticos em Espanha e sobre Portugal. Festejos do Carnaval em Lisboa.

CAPÍTULO VIII

Ricardo Reis é notificado pela PVDE. Novo encontro de Ricardo Reis com Fernando Pessoa no Alto de Santa Catarina, Bairro Alto: conversa sobre os amores de Ricardo Reis.

CAPÍTULO IX

Ricardo Reis é interrogado pela PVDE. Ricardo Reis informa Lídia de que vai sair do hotel e aluga uma casa no Alto de Santa Catarina.

CAPÍTULO X

Ricardo Reis informa Marcenda da sua nova morada. Visita de Fernando Pessoa a Ricardo Reis na casa alugada: conversa sobre a solidão.

CAPÍTULO XI

Visita de Lídia a Ricardo Reis na casa alugada. Visita de Marcenda a Ricardo Reis na casa alugada: troca do primeiro beijo.

CAPÍTULO XII

Novo envolvimento físico de Lídia com Ricardo Reis. Ricardo Reis vai exercer temporariamente a sua profissão de médico.

CAPÍTULO XIII

Encontro de Ricardo Reis e Fernando Pessoa junto à estátua do Adamastor: conversa sobre os amores de Ricardo Reis e sobre a morte. Encontro de Ricardo Reis e Daniel (irmão de Lídia): conversa sobre política. Pedido de casamento de Ricardo Reis a Marcenda, que esta recusa.

CAPÍTULO XIV

Marcenda escreve uma carta a Ricardo Reis, pedindo-lhe que nunca mais a volte a contactar. Ida de Ricardo Reis a Fátima para ver Marcenda.

CAPÍTULO XV

Ricardo Reis pondera voltar para o Brasil. Encontro de Fernando Pessoa e Ricardo Reis: conversa sobre os seus amores e sobre o destino.

CAPÍTULO XVI

Lídia informa Ricardo Reis de que está grávida, o que o deixa perturbado. Visita de Fernando Pessoa a Ricardo Reis: conversa sobre a gravidez de Lídia e a questão da paternidade.

CAPÍTULO XVII

Visita de Ricardo Reis a Fernando Pessoa, no cemitério dos Prazeres: conversa sobre o golpe militar em Espanha.

CAPÍTULO XVIII

Comício no Campo Pequeno, com a representação dos vários Estados totalitários europeus (Espanha, Itália, Alemanha).

CAPÍTULO XIX

Episódio dos Marinheiros, onde morre Daniel, o irmão de Lídia. Visita de Fernando Pessoa a Ricardo Reis, que decide acompanhá-lo na morte.

Notas: • Seguiu-se a 21.ª edição de O Ano da Morte de Ricardo Reis, Alfragide, Editorial Caminho, 2013. • Considerando as várias edições existentes da obra e a delimitação gráfica dos capítulos, optou-se pela numeração dos mesmos, de modo a facilitar a sua abordagem didática.

Estrutura interna

O Ano da Morte de Ricardo Reis – Representações do século XX

Representações do século XX O espaço da cidade

PROFESSOR

MC

1. Visiona a homenagem a Carlos do Carmo, feita pela Rádio Comercial (2014), com a colaboração de 35 artistas portugueses que interpretam a canção original de Carlos do Carmo «Lisboa, menina e moça».

Ponto de Partida

Lisboa, menina e moça (2014) Carlos do Carmo

1.1 Indica, oralmente, os espaços da cidade de Lisboa referidos pelo sujeito, o modo como ela é apresentada e os sentimentos que desperta.

EDUCAÇÃO LITERÁRIA

Regresso à pátria [Capítulo I]

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Oralidade 1.1; 1.3. Educação Literária 14.1; 14.2; 14.3; 14.4; 14.7; 14.9; 16.2.

PONTO DE PARTIDA

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Aqui o mar acaba e a terra principia. Chove sobre a cidade pálida, as águas do rio correm turvas de barro, há cheia nas lezírias. Um barco escuro sobe o fluxo soturno, o Highland Brigade que vem atracar ao cais de Alcântara. […] Por trás dos vidros embaciados de sal, os meninos espreitam a cidade cinzenta, urbe rasa sobre colinas, como se só de casas térreas construída, por acaso além um zimbório1 alto, uma empena2 mais esforçada, um vulto que parece ruína de castelo, salvo se tudo isto é ilusão, quimera, miragem criada pela movediça cortina das águas que descem do céu fechado. […] Por gosto e vontade, ninguém haverá de querer ficar neste porto. […] A chuva abrandou, só quase nada. Juntam-se no alto da escada os viajantes, hesitando, como se duvidassem de ter sido autorizado o desembarque, se haverá quarentena, ou temessem os degraus escorregadios, mas é a cidade silenciosa que os assusta, porventura morreu a gente nela e a chuva só está caindo para diluir em lama o que ainda ficou de pé. […] São poucos os que vão descer. […] É domingo. Para além dos barracões do cais começa a cidade sombria, recolhida em frontarias e muros, por enquanto ainda defendida da chuva, acaso movendo uma cortina triste e bordada, olhando para fora com olhos vagos, ouvindo gorgolhar a água dos telhados, algeroz3 abaixo até ao basalto das valetas, ao calcário nítido dos passeios, às sarjetas pletóricas4, levantadas algumas, se houve inundação. Já começou a descarga das bagagens, […] e em baixo os bagageiros portugueses mexem-se mais à ligeira, é o bonezinho de pala, a veste curta, de oleado, assamarrada, mas tão indiferentes à grande molha que o universo espantam, talvez este desdém de confortos leve a compadecerem-se as bolsas dos viajantes, porta-moedas como se diz agora, e suba com a compaixão a gorjeta, povo atrasado, de mão estendida, vende cada um o que tiver de sobejo, resignação, humildade, paciência, assim continuemos nós a

▪ Vídeo «Lisboa, menina e moça», vários artistas 1.1 Ao longo da música são referidos vários espaços da cidade de Lisboa: o castelo, Alfama, o rio Tejo, as colinas, o Terreiro do Paço, a Graça e o Bairro Alto. A cidade surge aos olhos do sujeito cheia de luz («Cidade a ponto luz bordada»), como uma mulher, «menina e moça» («mulher da rua», «varina»), que desperta no sujeito ternura e amor, levando-o a afirmar ser a cidade a mulher da sua vida. Sugestão ao professor

▪ Áudio (CD2 – Faixa n.o 16) Ode de Ricardo Reis, «Só o ter flores pela vista fora» ▪ Documento Ode de Ricardo Reis, «Só o ter flores pela vista fora» Exploração da intertextualidade existente entre a terceira frase do excerto e as duas estrofes finais da ode de Ricardo Reis «Só o ter flores pela vista fora», nomeadamente, com o verso «Do barco escuro no soturno rio»: «o Highland Brigade» é apresentado como o «barco escuro» (referência ao mito de Caronte) que atravessa o rio dos mortos («fluxo soturno»), conduzindo as almas até à morte («pátria de Plutão»), isto é, conduzindo Ricardo Reis rumo à sua última viagem, que culminará com a morte.

▪ Apresentação em PowerPoint Texto narrativo (características) 1 Zimbório: parte externa e supe-

rior da cúpula de um edifício. 2 Empena: parede lateral de um

edifício. 3 Algeroz: cano que recebe as

goteiras de todo o telhado; caleira. 4 Pletóricas: superabundantes; excessivas.

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Unidade 4 // JOSÉ SARAMAGO

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PROFESSOR

Educação Literária 1.1 O verso d’Os Lusíadas indica que Portugal é o país impulsionador dos Descobrimentos, onde estes tiveram o seu início, abrindo-se caminho para a descoberta de novos rumos e de novas terras. Já na adaptação que surge no início do romance, Lisboa-Portugal surge como o marco do fim do império marítimo, sugerindo-se o início de uma nova viagem, agora feita em terra. 2. A cidade de Lisboa, envolta pela chuva, surge triste, cinzenta, sem qualquer atrativo para os viajantes, uma cidade «fantasma», completamente deserta e imóvel, um cenário assustador para aqueles que a veem pela primeira vez. O povo português, neste caso, os bagageiros, pelo afinco com que se dedicam ao trabalho, indiferentes à chuva que cai, suscita a compaixão dos viajantes, indiciadora de algum menosprezo, a dar gorjeta a esse «povo atrasado, de mão estendida», passagem que ilustra a realidade do país.

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5 Frondes: folhagem; ramagem. 6 Renques: fileiras; filas. 7 Lôbregas: escuras; sombrias.

encontrar quem de tais mercadorias faça no mundo comércio. Os viajantes passaram à alfândega […]. Um homem grisalho, seco de carnes, assina os últimos papéis, recebe as cópias deles, pode-se ir embora, sair, continuar em terra firme a vida. Acompanha-o um bagageiro cujo aspeto físico não deve ser explicado em pormenor, ou teríamos de prosseguir infinitamente o exame, para que não se instalasse a confusão na cabeça de quem viesse a precisar de distinguir um do outro, se tal se requer, porque deste teríamos de dizer que é seco de carnes, grisalho, e moreno, e de cara rapada, como daquele foi dito já, contudo tão diferentes, passageiro um, bagageiro outro. […] Cá fora, sob a proteção do beiral largo, pousa a carga no chão e vai procurar um táxi […]. [O] táxi arranca, o motorista quer que lhe digam, Para onde, e esta pergunta, tão simples, tão natural, tão adequada à circunstância e ao lugar, apanha desprevenido o viajante, como se ter comprado a passagem no Rio de Janeiro tivesse sido e pudesse continuar a ser resposta para todas as questões, mesmo aquelas, passadas, que em seu tempo não encontraram mais que o silêncio, agora mal desembarcou e logo vê que não, talvez porque lhe fizeram uma das duas perguntas fatais, Para onde, a outra, e pior, seria, Para quê. O motorista olhou pelo retrovisor, julgou que o passageiro não ouvira, já abria a boca para repetir, Para onde, mas a resposta chegou primeiro, ainda irresoluta, suspensiva, Para um hotel, Qual, Não sei, e tendo dito, Não sei, soube o viajante o que queria, com tão firme convicção como se tivesse levado toda a viagem a ponderar a escolha, Um que fique perto do rio, cá para baixo, Perto do rio só se for o Bragança, ao princípio da Rua do Alecrim, não sei se conhece, Do hotel não me lembro, mas a rua sei onde é, vivi em Lisboa, sou português, Ah, é português, pelo sotaque pensei que fosse brasileiro, Percebe-se assim tanto, Bom, percebe-se alguma coisa, Há dezasseis anos que não vinha a Portugal, Dezasseis anos são muitos, vai encontrar grandes mudanças por cá, e com estas palavras calou-se bruscamente o motorista. Ao viajante não parecia que as mudanças fossem tantas. A avenida por onde seguiam coincidia, no geral, com a memória dela, só as árvores estavam mais altas, nem admira, sempre tinham sido dezasseis anos a crescer, e mesmo assim, se na opaca lembrança guardava frondes5 verdes, agora a nudez invernal dos ramos apoucava a dimensão dos renques6, uma coisa dava para a outra. […] Poucos automóveis passavam, raros carros elétricos, um ou outro pedestre que desconfiadamente fechava o guarda-chuva, ao longo dos passeios grandes charcos formados pelo entupimento das sarjetas, porta com

O Ano da Morte de Ricardo Reis – Representações do século XX

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porta algumas tabernas abertas, lôbregas7, as luzes viscosas cercadas de sombra, a imagem taciturna de um copo sujo de vinho sobre um balcão de zinco. […] Passa devagar o comboio de Cascais, travando preguiçoso, ainda vinha com velocidade bastante para ultrapassar o táxi, mas fica para trás, entra na estação quando o automóvel já está a dar a volta ao largo, e o motorista avisa, O hotel é aquele, à entrada da rua. […] A porta do hotel, ao ser empurrada, fez ressoar um besouro elétrico, em tempos teria havido uma sineta, derlim derlim, mas há sempre que contar com o progresso e as suas melhorias. […]. Havia um lanço de escada empinado […]. O viajante trepou os intérminos degraus, parecia incrível ter de subir tanto para alcançar um primeiro andar, […] o que lhe valeu foi ter aparecido no alto um homem de bigodes com uma palavra animadora, upa, não a diz, mas assim pode ser traduzido o seu modo de olhar e debruçar-se do alcandorado8 patamar, a indagar que bons ventos e maus tempos trouxeram este hóspede, Boas tardes, senhor, Boas tardes, não chega o fôlego para mais, o homem de bigodes sorri compreensivamente, Um quarto, […]. O viajante gostou do quarto, […] E vai ser por quantos dias, Ainda não sei, depende de alguns assuntos que tenho de resolver, do tempo que demorem. […] [T]ornou o hóspede a entrar na receção, […] pega na caneta, e escreve no livro das entradas, a respeito de si mesmo, o que é necessário para que fique a saber-se quem diz ser, na quadrícula do riscado e pautado da página, nome Ricardo Reis, idade quarenta e oito anos, natural do Porto, estado civil solteiro, profissão médico, última residência Rio de Janeiro, Brasil, donde procede, viajou pelo Highland Brigade, parece o princípio duma confissão, duma autobiografia íntima, tudo o que é oculto se contém nesta linha manuscrita, agora o problema é descobrir o resto, apenas. José Saramago, O Ano da Morte de Ricardo Reis, 21.ª ed., Alfragide, Editorial Caminho, 2013, [cap. I], pp. 9-22.

1. O romance começa com uma adaptação do verso «Onde a terra se acaba e o mar começa», do Canto III d’Os Lusíadas, de Luís de Camões, momento em que o Poeta procede à localização de Portugal. 1.1 Explicita as diferenças de sentido entre o verso original e a respetiva adaptação. 2. Esclarece a forma como Lisboa e o povo português surgem aos olhos dos viajantes do Highland Brigade e as impressões que suscitam. 3. Apresenta as informações acerca do viajante destacado pelo narrador. 4. Evidencia a conclusão da personagem acerca dos efeitos da passagem do tempo na cidade de Lisboa. 5. Descodifica o sentido da expressão «agora o problema é descobrir o resto, apenas» (l. 81), tendo em conta o destaque dado à personagem. 6. Atenta no diálogo presente nas linhas 36 a 51.

FI

PROFESSOR

3. O viajante era um homem com uma aparência comum (comparação feita com o bagageiro, ll. 28-34), com cabelo grisalho, sem barba, «moreno» e magro (l. 33). Pelo diálogo com o motorista do táxi, sabe-se que era português, mas que estivera no Brasil ao longo de dezasseis anos. Aqui, é também visível alguma inconstância da personagem, por não ter objetivos delineados nem apresentar um sentido para a sua vida. No final do excerto, para além da informação sobre a sua instalação no Hotel Bragança, é revelada a identidade do viajante: «Ricardo Reis, idade quarenta e oito anos, natural do Porto, estado civil solteiro, profissão médico, última residência Rio de Janeiro, Brasil». 4. A personagem conclui terem sido poucas as mudanças ocorridas na cidade de Lisboa ao longo de dezasseis anos: as mesmas árvores, apenas um pouco maiores, a mesma degradação (sarjetas sujas, tabernas sombrias e pouco asseadas). 5. A expressão surge na sequência da apresentação dos dados identificativos de Ricardo Reis que mais parecia «o princípio duma confissão, duma autobiografia íntima», indiciando que, a partir deste ponto do romance, serão revelados os restantes dados acerca da personagem, como se pode constatar pela utilização do advérbio de exclusão «apenas», ou seja, só falta «descobrir o resto». 6.1 Infrações: ausência de verbos introdutores do relato do discurso; dos dois pontos e do travessão a introduzir o discurso direto, sendo a separação dos enunciadores marcada apenas pela maiúscula inicial da palavra que surge depois de uma vírgula; as vírgulas a substituir os pontos finais ou as reticências, por exemplo, em «Bom, percebe-se alguma coisa,» (l. 49) e «Não sei,» (l. 44), e os pontos de interrogação em «Qual,» (l. 44) e «Percebe-se assim tanto,» (l. 49). 7. a) Metáfora; b) Onomatopeia.

Linguagem e estilo pp. 256-257

6.1 Indica as infrações presentes no mesmo, considerando as regras da gramática, respeitantes às marcas do discurso direto. 7. Identifica os recursos expressivos presentes nas seguintes expressões: a) «[…] miragem criada pela movediça cortina das águas que descem do céu fechado […]» (l. 7). b) «[…] teria havido uma sineta, derlim derlim […]» (l. 65).

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Recursos expressivos SIGA p. 383

8 Alcandorado: colocado a

grande altura.

256

Unidade 4 // JOSÉ SARAMAGO

FICHA INFORMATIVA 1 Linguagem e estilo

PROFESSOR

MC

Educação Literária 14.9.

1. O tom oralizante e a pontuação

Gramática 17.1. Consolida 1. Infrações: ausência de verbos introdutores do relato do discurso; dos dois pontos e do travessão a introduzir o discurso direto, sendo a separação dos enunciadores marcada apenas pela maiúscula inicial da palavra que surge depois de uma vírgula (o excerto corresponde a seis turnos de fala: Reis, Pessoa, Reis, Pessoa, Reis, Pessoa); as vírgulas a substituir os pontos finais ou as reticências («o mês passado,», «Não sei,», «É diferente,») e os pontos de interrogação («Você gosta dela,» «E da Lídia, gosta,», «Mas gosta, ou não gosta,»). 2. Polifonia: ministro do interior («Declararei em Lisboa que os homens-bons de Montemor sabem ser leais a Salazar»: discurso de propaganda, apologista do Regime); narrador («podemos facilmente imaginar a cena»: irónico relativamente à situação); e um enunciador não identificado («O senhor doutor já teve ocasião de ver que espécie de gente é o povo deste país»: ironia implícita na censura à falta de gratidão do povo). 3. Adaptação do provérbio «Cão que ladra não morde» ou «Cão que muito ladra, pouco morde».

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A obra romanesca de José Saramago é marcada por dois gestos verbais […]. Por um lado, trata-se de uma forma de frase e designadamente de uma pontuação que aparece como característica, e, por outro lado, […] a imitação de formas da coloquialidade mais comum. A sua frase parece por vezes conter entre dois pontos finais várias frases, ditas no mínimo por duas personagens e frequentemente por três (sendo que uma dessas personagens pode ser a do narrador). Essas frases, contidas numa, são separadas por vírgulas que podem estar a substituir pontos de interrogação ou de exclamação, ou mesmo pontos finais; e os seus limites, a separação dos seus «enunciadores», são dados apenas pela maiúscula inicial de uma palavra que vem depois de uma vírgula. Estamos perante uma frase plurivocal: é como se fossem vários a dizer uma frase, e essa frase, que é um acontecimento de diálogo, pode então comportar o confronto de pontos de vista [polifonia]. […] Por outro lado, falamos sempre com «as palavras dos outros», deformando-as um pouco, é certo; e por aí passa a possibilidade da individuação e da singularidade. É nesse sentido, também, que o diálogo é a forma básica da fala, e que numa só frase se podem ouvir várias vozes. […] Esta assunção da socialidade da linguagem, inscrita como um dispositivo de narração, pode ainda ligar-se ao modo como insistentemente em alguns dos seus romances se joga com esse tipo particular de frases do idioma que são os provérbios, frases supostamente indeformáveis que conteriam, congelado, um sentido único, uma sabedoria monológica. Saramago joga aqui de duas maneiras: por um lado, pode usar o «mesmo» provérbio em contextos diferentes, de modo a mostrar que ele pode significar coisas diversas e, no limite, inversas; por outro lado, deforma e inventa provérbios. Este modo de usar e construir provérbios constitui uma marca de jogo verbal […] e um processo de ironização (de «carnavalização») do saber, ou de «dialogismo». Manuel Gusmão, «Linguagem e história segundo José Saramago», in Vida Mundial, 10 de novembro de 1998, pp. 12-13. CONSOLIDA

1. Identifica as regras da gramática normativa que foram infringidas na utilização da pontuação, no seguinte diálogo: «[…] Encontrei-a da última vez que esteve em Lisboa, o mês passado, Você gosta dela, Não sei, E da Lídia, gosta, É diferente, Mas gosta, ou não gosta, […]» (p. 381). 2. Comprova a existência de várias vozes (polifonia) no seguinte excerto: «[…] o ministro do Interior foi dizer a Montemor-o-Velho quando inaugurou a luz elétrica […], Declararei em Lisboa que os homens-bons de Montemor sabem ser leais a Salazar, podemos facilmente imaginar a cena, […], O senhor doutor já teve ocasião de ver que espécie de gente é o povo deste país […]» (pp. 126-127). 3. Indica a característica da linguagem de José Saramago presente em «[…] a vida das nações faz-se, afinal, de muito ladrar e pouco morder […]» (p. 196).

Ficha informativa

257

FICHA INFORMATIVA 6 2. Marcas essenciais do discurso saramaguiano PROFESSOR

Consolida

Outras marcas essenciais

Exemplos

• Hibridismo de tipologias discursivas – discurso direto, discurso indireto e discurso indireto livre.

«[…] Salvador respondeu que não, que sempre ouvia as badaladas da meia-noite em casa, era uma tradição da família, comiam doze passas de uva, uma a cada badalada, ouvira dizer que dava sorte para o ano seguinte, no estrangeiro usa-se muito, São países ricos, e a si, acha que lhe dá realmente sorte, Não sei, não posso comparar […]» (p. 95).

• Tom oralizante (marcas para além da pontuação, da polifonia, do hibridismo de tipologias discursivas e do uso de advérbios).

RECURSOS EXPRESSIVOS

Antítese

2. a) Metáfora; b) Antítese.

- Onomatopeias: «[…] o comboio de Coimbra, pouca-terra pouca-terra […]» (p. 133); «[…] vai o elétrico quase vazio, dlim-dlim […]» (p. 376). - Clichés: «[…] Feliz ano novo, Pimenta, Um novo ano muito próspero, senhor doutor, frases de cartões de boas-festas […]» (p. 99). - Palavras/expressões populares: «A mala pesa mais do que o meu dinheiro […]» (p. 22); «[…] Ó patego, olha o balão […]» (p. 398). «Bebia de mais, levantava-se da mesa a cair, repare-se na curiosa expressão, levantar-se da mesa a cair […]» (p. 379).

Comparação

«[…] um hotel é como uma casa de vidro […]» (p. 155).

Enumeração

«Andam aí pelas mãos das mães, das tias, das avós, mostram as máscaras, mostram-se […]» (p. 219).

Hipérbole

«Respira-se uma atmosfera composta de mil cheiros intensos […]» (p. 54).

Ironia

«[...] lá está D. Sebastião no seu nicho de pontaria, rapazito mascarado para um carnaval que há de vir [...], então teremos de reexaminar a importância do sebastianismo, com nevoeiro ou sem ele, é patente que o desejado virá de comboio, sujeito a atrasos.» (p. 102).

Metáfora

1. Discurso direto: «Não é por mim, que eu estou bem»; discurso indireto: «pediu a Ricardo Reis que lhe explicasse», «quando tivesse tempo»; discurso indireto livre: «agora ou mais logo».

«A multidão cresceu […]. É um enxame negro gigantesco que veio ao divino mel, zumbe, murmura, crepita, move-se vagarosamente, entorpecido pela sua própria massa.» (p. 437).

Personificação

«[…] a chama, dividida em mil pequenas línguas azuis, murmurava sem parar.» (p. 168).

Uso expressivo do adjetivo

«[…] violento odor de cebola, era o agente Victor, reconheceu-o logo, há cheiros que são assim, eloquentes, valem cada um por cem discursos […]» (p. 384).

CONSOLIDA

1. Distingue os diferentes tipos de discurso do seguinte enunciado: «[…] pediu a Ricardo Reis que lhe explicasse, agora ou mais logo, quando tivesse tempo […], Não é por mim, que eu estou bem […]» (p. 206). 2. Identifica os recursos expressivos presentes nas seguintes expressões: a) «[…] sobre a toalha brilhante do rio as fragatas de água-acima […]» (p. 426). b) «Ricardo Reis não encontra outras para conciliar o tom imperioso e o lamento vingativo [...]» (p. 212).

Gustave Loiseau, Estação de Elétrico Ponte Corneille – Roven (pormenor), 1930.

258

Unidade 4 // JOSÉ SARAMAGO

EDUCAÇÃO LITERÁRIA

PROFESSOR

MC

Educação Literária 14.1; 14.2; 14.3; 14.4; 14.5; 14.7; 15.1; 15.2.

Texto A

Lisboa real [Capítulo II]

5

[…] Agora, sai, urbanamente deu as boas-tardes, e agradecendo saiu pela porta da Rua dos Correeiros, esta que dá para a que é a Praça da Figueira, ainda agitada, porém nada que se possa comparar com as horas da manhã, ruidosas de gritos e pregões até ao paroxismo1. Respira-se uma atmosfera composta de mil cheiros intensos, a couve esmagada e murcha, a excrementos de coelho, a penas de galinha escaldadas, a sangue, a pele esfolada. Andam a lavar as bancadas, as ruas interiores, com baldes e agulheta, e ásperos piaçabas2, ouve-se de vez em quando um arrastar metálico, depois um estrondo, foi uma porta ondulada que se fechou. Ricardo Reis rodeou a praça pelo sul, entrou na Rua dos Douradores, quase não chovia 10 já, por isso pôde fechar o guarda-chuva, olhar para cima, e ver as altas frontarias de cinza parda, as fileiras de janelas à mesma altura, as de peitoril, as de sacada, com as monótonas cantarias prolongando-se pelo enfiamento da rua, até se confundirem em delgadas faixas verticais, cada vez mais estreitas, mas não tanto 15 que se escondessem num ponto de fuga, porque lá ao fundo, aparentemente cortando o caminho, levanta-se um prédio da Rua da Conceição, igual de cor, de janelas e de grades, feito segundo o mesmo risco, ou de mínima diferença, todos porejando3 sombra e humidade, libertando nos saguões4 o cheiro dos esgotos 20 rachados, com esparsas baforadas de gás, como não haveriam de ter as faces pálidas os caixeiros que vêm até à porta das lojas, com as suas batas ou guarda-pós5 de paninho cinzento, o lápis de tinta entalado na orelha, o ar enfadado de ser hoje segunda-feira e não ter o domingo valido a pena. A rua está calçada de pedra grossa, 25 irregular, é um basalto quase preto onde saltam os rodados metálicos das carroças e onde, em tempo seco, não este, ferem lume as ferraduras das muares6 quando o arrasto da carga passa as marcas e as forças. Hoje não há desses bojadores, só outros de menos aparato, como estarem descarregando dois homens sacas de fei30 jão […]. José Saramago, op. cit., [cap. II], pp. 54-55.

1 Paroxismo: momento de maior intensidade de uma 2 3 4 5

sensação, um estado, de um sentimento, etc.; auge. Piaçabas: vassouras pequenas, de cabo comprido, utilizadas para limpezas. Porejando: vertendo pelos poros; destilando. Saguões: pátios estreitos e descobertos entre dois edifícios ou no interior de um edifício. Guarda-pós: casacos compridos, de tecido leve, que se vestem por cima do fatos para evitar que se sujem; batas.

6 Muares: animais, híbridos de burro e égua, ou de

cavalo e burra. 7 O Século: jornal diário matutino de Lisboa, publi-

cado entre 8 de junho de 1880 e 12 de fevereiro de 1977, data em que foi suspenso. 8 Bodo: distribuição de alimentos, dinheiro e vestuário aos pobres, em dias festivos.

O Ano da Morte de Ricardo Reis – Representações do século XX

Texto B

PROFESSOR

Lisboa: o vergonhoso espetáculo do mundo [Capítulo IV]

5

[…] O senhor doutor já teve ocasião de ver que espécie de gente é o povo deste país, e mais estamos na capital do império, quando no outro dia passou à porta do Século7, aquela multidão à espera do bodo8, e se quiser ver mais e melhor vá por esses bairros, por essas paróquias e freguesias, veja com os seus olhos a distribuição da sopa, a campanha de auxílio aos pobres no inverno, iniciativa de tão singular beleza, como escreveu no telegrama o presidente da câmara do Porto, de boa lembrança, e diga-me se não valia mais deixá-los morrer, poupava-se o vergonhoso espetáculo do nosso mundo, sentam-se na berma dos passeios a comer a bucha de pão e a rapar o tacho, nem a luz elétrica merecem, a eles basta-lhes conhecer o caminho que vai do prato à boca, e esse até às escuras se encontra. José Saramago, op. cit., [cap. IV], pp. 127-128.

Texto C

Lisboa anunciada [Capítulo V]

5

Ricardo Reis gastou a tarde por esses cafés, foi apreciar as obras do Eden Teatro, não tarda que lhe tirem os tapumes, o Chave de Ouro que está para inaugurar, é patente a nacionais e estrangeiros que Lisboa vive atualmente um surto de progresso que em pouco tempo a colocará a par das grandes capitais europeias, nem é de mais que assim seja, sendo cabeça de império. José Saramago, op. cit., [cap. V], p. 143.

1. Demonstra que a descrição dos espaços por onde Ricardo Reis passa, no Texto A, é um verdadeiro apelo aos vários sentidos, identificando-os nas seguintes expressões. a) b) c) d) e) f) g)

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«as horas da manhã, ruidosas de gritos e pregões» (l. 3) «uma atmosfera composta de mil cheiros intensos» (l. 4) «ásperos piaçabas» (l. 7) «um arrastar metálico» (l. 7) «todos porejando sombra e humidade» (ll. 18-19) «o cheiro dos esgotos rachados» (ll. 19-20) «as faces pálidas» (l. 21)

1.1 Indica a relação existente entre a descrição do espaço físico e o espaço social. 2. Atenta no Texto B. 2.1 Relaciona as expressões «iniciativa de tão singular beleza» (l. 5) e «o vergonhoso espetáculo do nosso mundo» (l. 7), considerando a totalidade do excerto. 2.2 Explica de que modo a não identificação do enunciador se encontra ao serviço da crítica veiculada no excerto. 3. Comprova a dicotomia existente entre a apresentação da cidade de Lisboa nos Textos A e B e no Texto C, fundamentando a tua resposta com elementos textuais pertinentes.

Educação Literária 1. a) Auditivas; b) Olfativas; c) Táteis; d) Auditivas; e) Visuais e táteis; f) Olfativas; g) Visuais. 1.1 A relação existente entre o espaço físico e o espaço social é de proximidade, de similitude, dado estar-se, em primeiro lugar, na Praça da Figueira, num mercado, frequentado pelo povo, repleto de conotações desagradáveis (mistura de cheiros, de ruídos), e, em segundo lugar, no edifício na Rua da Conceição, um espaço degradado e cinzento, portanto, associado a uma faixa social mais baixa. 2.1 O enunciador considera louváveis as iniciativas do Regime de apoio aos pobres, nomeadamente, o bodo do Século, «a distribuição de sopa» e o «auxílio aos pobres no inverno». No entanto, a sua real opinião acerca do povo que usufrui dessas dádivas é a de que não as merece, por, no seu conjunto, constituir um cenário degradante da cidade de Lisboa, considerando que este «vergonhoso espetáculo do nosso mundo» seria evitável se os deixassem morrer. 2.2 A não identificação do enunciador indica que o seu ponto de vista acerca do povo não é individual, mas sim o de um grupo, criticando-se, assim, a indiferença e o desprezo («nem a luz elétrica merecem», l. 8), visível na época, pela vida humana («diga-me se não valia mais deixá-los morrer», ll. 6-7), pelos mais fracos, cuja sobrevivência dependia da caridade dos outros. Isto somente porque eram incómodos e contaminavam a visão que se pretendia passar de Lisboa e do país. 3. É evidente o contraste entre os dois primeiros textos e o último: nos dois primeiros surge uma Lisboa popular («as horas da manhã, ruidosas de gritos e pregões até ao paroxismo», Texto A – ll. 3-4; « Andam a lavar as bancadas, as ruas interiores, com baldes e agulheta, e ásperos piaçabas», Texto A – ll. 6-7), degradada («todos porejando sombra e humidade, libertando nos saguões o cheiro dos esgotos rachados», Texto A – ll. 18-20), onde reina a pobreza extrema («aquela multidão à espera do bodo», Texto B – ll. 2-3; « sentam-se na berma dos passeios a comer a bucha de pão e a rapar o tacho», Texto B – ll. 7-8), contrária à Lisboa opulente, evoluída, aquela que é dada a conhecer aos de fora, a Lisboa dos cafés imponentes e dos teatros restaurados («foi apreciar as obras do Eden Teatro, não tarda que lhe tirem os tapumes, o Chave de Ouro que está para inaugurar», Texto C – ll. 1-2), ironicamente chamada a «cabeça de império» (Texto C – l. 5).

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Unidade 4 // JOSÉ SARAMAGO

EDUCAÇÃO LITERÁRIA

PROFESSOR

MC

Educação Literária 14.1; 14.2; 14.3; 14.4; 14.7; 15.1; 15.2; 15.3.

Lisboa profunda: rixas e funerais [Capítulo VII]

Educação Literária: 1. «a cena mais parece um cortejo de entrudo» (ll. 14-15). 2. A descrição do cortejo é feita através de contrastes, pois seguem, a par, bandidos e polícia; pessoas vestidas de encarnado e outras de preto; os que choravam pelo morto e os que clamavam pelo que fora preso; «gente descalça e coberta de trapos» e «mulheres arreando luxo e pulseiras de ouro», ou seja, «amigos e inimigos». 3. A expressão exprime, ironicamente, a junção, num espaço só, de toda a escumalha da cidade, um «batalhão maldito» que assustava os que assistiam à sua passagem. 4. Sugestão de resposta: O texto expõe uma realidade cuja existência se procura ocultar e negar: a pobreza, o crime e a prostituição. Ao reunir-se todo o tipo de meliantes e respetivas famílias, revela-se um outro lado da cidade, o da vivência de alguns bairros lisboetas, para além de se veicular uma crítica àqueles que se dizem cumpridores da moral e dos bons costumes, pois os proscritos da sociedade demonstram saber colocar de parte as divergências num momento que exige respeito pelos que foram e pelos que ficam.

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1 Conto do vigário: qualquer

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manobra de má-fé para ludibriar uma pessoa crédula. Préstito: cortejo; procissão. Refrega: briga, discussão. Trapejando: dando estalos; produzindo sons breves e secos. Muares: mulas. Penacho: enfeite de penas para a cabeça. Gualdrapa: manta que se estende na garupa do cavalo, por baixo da sela. Arrebentas: termo caído em desuso para designar alguns homossexuais masculinos.

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Uma cena de sangue, senhor doutor, aquilo é uma gente de mil diabos, não querem saber da vida, por dá cá aquela palha esfaqueiam-se sem dó nem piedade, até a polícia se teme deles, aparece só no fim para apanhar as canas, quer ouvir, diz aqui que um tal José Reis, por alcunha o José Rola, deu cinco tiros na cabeça de um António Mesquita, conhecido por Mouraria, matou-o, pois claro, não, não foi negócio de saias, diz o jornal que tinha havido uma história de conto do vigário1 mal repartido, um deles enganou o outro, acontece […]. Ricardo Reis apareceu discretamente muito antes da hora marcada para a saída do préstito2, de largo como lhe fora recomendado, não queria cair no meio duma refrega3 tumultuária, e ficou estupefacto ao dar com o ajuntamento, centenas de pessoas que enchiam a rua em frente do portão da morgue, seria como o bodo do Século se não fosse dar-se o caso de haver tantas mulheres vestidas de berrante encarnado, saia, blusa e xale, e rapazes com fatos da mesma cor, singular luto é este se são amigos do morto, ou arrogante provocação se eram inimigos dele, a cena mais parece um cortejo de entrudo, agora que vai saindo a carreta trapejando4 a caminho do cemitério, puxada por duas muares5 de penacho6 e gualdrapa7, os dois polícias marchando um de cada lado do caixão, em guarda de honra ao Mouraria, são as ironias do destino, quem pudera imaginar, […] e o acompanhamento em transe de lágrimas e suspiros, tanto agora clamando quem de encarnado vestia com quem de preto trajava, uns pelo que levavam morto, outros pelo que preso estava, muita gente descalça e coberta de trapos, algumas mulheres arreando luxo e pulseiras de ouro, pelo braço dos seus homens, eles de patilhas negras e cara rapada, azul da navalha, olhando em redor desconfiados, alguns arvorando insolências, gingando o corpo pelo quadril, mas em todos, também, transluzindo sob os falsos ou verdadeiros sentimentos, uma espécie de alegria feroz que reunia amigos e inimigos, a tribo dos cadastrados, das prostitutas, dos chulos, das mulheres por conta, dos vigaristas, dos arrebentas8, dos gatunos, dos recetadores, era o batalhão maldito que atravessava a cidade, abriam-se as janelas para os ver desfilar, despejara-se o pátio dos milagres, e os moradores arrepiavam-se de susto, quem sabe se não vai ali quem amanhã lhes assaltará a casa, Olha mãezinha, isto dizem as crianças, mas para elas tudo é festa. José Saramago, op. cit., [cap. VII], pp. 201-204.

1. Procede à transcrição da expressão que melhor caracteriza a singularidade do préstito. 2. Demonstra que a descrição do cortejo é feita através de contrastes. 3. Explicita o sentido da expressão «despejara-se o pátio dos milagres» (l. 28), indicando o recurso expressivo presente na mesma. 4. Exprime, de forma sucinta, o teu ponto de vista acerca da presença desta «Lisboa profunda» na obra.

O Ano da Morte de Ricardo Reis – Representações do século XX

EDUCAÇÃO LITERÁRIA

PROFESSOR

Festividades na cidade Texto A

Ano Novo: proclamação de vida nova

MC

Educação Literária 14.1; 14.2; 14.3; 14.4; 14.5; 14.7; 14.9; 15.1; 15.2; 15.3; 15.4; 16.2. Oralidade 3.1; 5.1; 5.2; 5.3.

[Capítulo III]

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Feliz ano novo, Pimenta, Um novo ano muito próspero, senhor doutor, frases de cartões de boas-festas, não disseram mais […]. Ricardo Reis desceu o Chiado e a Rua do Carmo, como ele muita outra gente descia, […] e havia também mulheres que por uma hora interromperam a mísera caçada, fazem este intervalo na vida, querem estar presentes se houver proclamação de vida nova, saber que porção dela lhes cabe, se nova mesmo, se a mesma. Para os lados do Teatro Nacional, o Rossio está cheio. Está toda a gente de nariz no ar, com os olhos fitos no mostrador amarelo do relógio. […] Já há quem grite de puro nervosismo, e o alvoroço recresce quando da banda do rio começa a ouvir-se a voz profunda dos barcos ancorados, os dinossauros mugindo com aquele ronco pré-histórico que faz vibrar o estômago, sereias que soltam gritos lancinantes como animais a quem estivessem degolando, e as buzinas dos automóveis ali perto atroam doidas, e as campainhas dos elétricos tilintam quanto podem, pouco, finalmente o ponteiro dos minutos cobre o ponteiro das horas, é meia-noite, a alegria duma libertação, por um instante breve o tempo largou os homens, deixou-os viver soltos, apenas assiste, irónico, benévolo, aí estão, abraçam-se uns aos outros, conhecidos e desconhecidos, beijam-se homens e mulheres ao acaso, são esses os beijos melhores, os que não têm futuro. […] Ainda não passou um minuto e já o som vai decrescendo, alguns derradeiros arrancos, os barcos no rio é como se se estivessem afastando pelo meio do nevoeiro, mar fora, e, por disto falarmos, lá está D. Sebastião no seu nicho da frontaria, rapazito mascarado para um carnaval que há de vir, se não noutro sítio o puseram, mas aqui, então teremos de reexaminar a importância e os caminhos do sebastianismo, com nevoeiro ou sem ele, é patente que o Desejado virá de comboio, sujeito a atrasos. José Saramago, op. cit., [cap. III], pp. 99-102.

Texto B

Carnaval português [Capítulo VII]

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Ai como é diferente o carnaval em Portugal. […] O céu está como tem estado, chuvoso, mas, vá lá, não tanto que o corso não possa desfilar, vai descer a Avenida da Liberdade, entre as conhecidas alas de gente pobre, dos bairros, é certo que também há cadeiras para quem as puder alugar, mas essas irão ter pouca freguesia, estão numa sopa, parece partida carnavalesca, senta-te aqui ao pé de mim, ai que fiquei toda molhada. Estes carros armados rangem, bamboleiam, pintalgados de figuras, em cima deles há gente que ri e faz caretas, máscaras de feio e de bonito, atiram com parcimónia1 serpentinas ao público, saquinhos de milho e feijão que acertando aleijam, e o público retribui com um entusiasmo triste. […] Ricardo Reis aborreceu-se depressa com a farrapagem do corso, mas assistiu a pé firme, […] por duas vezes chuviscou, outra vez caiu forte a chuva, e ainda há quem cante louvores ao clima português, não digo que não, mas para carnavais não serve. No fim do dia, já terminado o desfile, o céu limpou, tarde foi, os carros e carruagens seguiram para o seu destino, lá ficarão a enxugar até terça-feira,

1 Parcimónia:

sobriedade.

moderação;

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Unidade 4 // JOSÉ SARAMAGO

PROFESSOR

Educação Literária 1. Em ambos os textos o ambiente é de festa pela celebração de duas datas festivas, o Ano Novo e o Carnaval. Na celebração da primeira data, a alegria surge associada à esperança e à expectativa relativamente àquilo que o novo ano reserva a cada um. É visível nas pessoas uma sensação de liberdade, como se tudo lhes fosse permitido naquele momento, como o abraçar e beijar um desconhecido. O Carnaval é tempo de excessos, de brincadeiras, de alegria, mas contrariamente à primeira celebração, a maioria das pessoas que assiste ao cortejo não se encontra feliz, talvez porque o tempo não se apresentava propício a celebrações. 2. a) Personificação. b) Comparação. 3. A referência a D. Sebastião é profundamente irónica uma vez que não se vislumbrava um futuro risonho para os portugueses, nomeadamente para os mais pobres. A vinda ambicionada do Desejado, de alguém que os tirasse da situação em que se encontravam, tardava, ou talvez nunca chegasse («é patente que o Desejado virá de comboio, sujeito a atrasos»). 4. O texto apresenta evidentes contrastes sociais: de um lado, os pobres, cheios de fome, que aguardam o bodo, e as vítimas das cheias do Ribatejo; do outro, a alta sociedade, que, tardiamente, pois já passou algum tempo desde as inundações, promoverá uma festa no Jockey Club «a favor dos sinistrados». Oralidade ▪ Link Videoclipe da canção «Inquietação», do grupo A Naifa ▪ Apresentação em PowerPoint Correção da atividade de Oralidade

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[…] mas os mascarados, mesmo pingando das melenas2 e cadilhos3, vão continuar a festa por essas ruas e praças, becos e travessas, em vãos de escada para o que não se possa confessar ou cometer às claras, assim se praticando por maior rapidez e barateza, a carne é fraca, o vinho ajuda, o dia das cinzas e do esquecimento será só na quarta-feira. José Saramago, op. cit., [cap. VII], pp. 215-217.

Texto C

Páscoa [Capítulo XII]

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Agora que veio o tempo da Páscoa, o governo mandou distribuir por todo o país bodo geral, assim reunindo a lembrança católica dos padecimentos e triunfos de Nosso Senhor às satisfações temporárias do estômago protestativo. Os pobrezinhos fazem bicha nem sempre paciente às portas das juntas de freguesia e das misericórdias, e já se fala que para os finais de maio se dará uma brilhante festa no campo do Jockey Club a favor dos sinistrados das inundações do Ribatejo, esses infelizes que andam de fundilhos molhados há tantos meses, formou-se a comissão patrocinadora com o que temos de melhor no high-life, senhoras e senhores que são ornamento da nossa melhor sociedade […]. No entanto, os governos, por supremos que sejam, como este, perfeitíssimo, sofrem de males da vista cansada, talvez da muita aplicação ao estudo, da pertinaz4 vigília e vigilância. José Saramago, op. cit., [cap. XII], pp. 363-364.

1. Compara os Textos A e B, tendo em conta os seguintes aspetos: ambiente geral e sentimentos manifestados pela população. expressivos 2. Indica os recursos expressivos presentes nas seguintes expressões: SIGA Recursos p. 383 a) «a voz profunda dos barcos ancorados» (Texto A, ll. 9-10). b) «sereias que soltam gritos lancinantes como animais a quem estivessem degolando» (Texto A, ll. 11-12).

3. Explicita a crítica presente na referência a D. Sebastião no final do Texto A. 4. Evidencia os contrastes sociais no Texto C.

ORALIDADE

EXPRESSÃO ORAL

Apresentação oral 1. Visiona o videoclipe da canção «Inquietação» do grupo A Naifa, do álbum As Canções da Naifa, originalmente composta e cantada por José Mário Branco. 2 Melenas: cabelos compridos

ou desgrenhados; guedelha. 3 Cadilhos: franjas. 4 Pertinaz: persistente.

«Inquietação» (2013) A Naifa

1.1 Prepara uma apresentação oral, de cinco a sete minutos, na qual estabeleças um paralelo entre o videoclipe e os excertos analisados de O Ano da Morte de Ricardo Reis, considerando o retrato da cidade de Lisboa e os sentimentos que desencadeia no sujeito da canção e nos leitores da obra.

Ficha informativa

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FICHA INFORMATIVA 2 Representações do século XX O espaço da cidade

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[A] história de Lisboa, inserida na de Portugal e dos portugueses, foi ficando por contar, inebriados os relatores pela mística e pela magia da cidade e do rio. E é justamente da Lisboa «animal» histórico, símbolo da história coletiva de um povo e de uma nação construída a partir de pedaços de histórias pessoais, capital dos Descobrimentos, do Império colonial e por fim do país – é desta Lisboa que José Saramago nos fala. […] É uma Lisboa humana, respira, alimenta-se, move-se ao ritmo da História que a cerca e que não é mais do que o resultado da vontade dos homens – de alguns homens e das suas instituições – encoberta pelo culto e pela vontade de Deus, do Império ou da Pátria e que outros, a maioria, súbditos, escravos, submissos, reprimidos, oprimidos, não têm vontade suficiente para derrubar: Lisboa é só uma, e é sempre a mesma. […] Essa terra pobre e cercada que espera, apesar do mar já ter acabado – mas que sonhos messiânicos imperiais e coloniais continuam a tentar manter –, aparece em O Ano da Morte de Ricardo Reis, «um livro sobre Lisboa, vista por um dos heterónimos do grande poeta Fernando Pessoa». A cidade imperial, colonial e fascista chega ao século XX […]. Neste romance, repleto da ironia e do sarcasmo que marcam a escrita de Saramago, é glosado em forma de paródia o que os jornais publicam – jornais que Ricardo Reis devora do princípio ao fim da narrativa, na ânsia de informação que não é mais do que desinformação –, e apresenta-se-nos uma Lisboa do final de 1935 e de 1936, cercada por uma ditadura interna e por várias externas. […] Expressão desse cerco generalizado são as marcas do adormecimento, do silêncio, da cor cinzenta e sobretudo a metáfora política da chuva, recursos estilísticos que o escritor insistentemente utiliza: «chove na rua e no mundo» (p. 191); «Chove lá fora, no vasto mundo» (p. 270). […] Logo após a chegada, Ricardo Reis vê-se confrontado com o cerco social que também caracteriza a nova realidade portuguesa, mais uma vez feita de contrastes entre pobres e ricos, propaganda e realidade. Depara com um amálgama de centenas de pobres e indigentes no bodo de O Século, que não é único, pois de outros, bem como de várias «sopas dos pobres» oferecidas pela classe privilegiada e abençoadas pela classe política, vai tendo notícia pelos jornais […]. O mar acabou porque o tempo das Descobertas há muito terminou, porque não há mais mar para descobrir e com ele findou também o tempo dos impérios que Lisboa cercada insiste em perseguir, flutuando «no meio do Atlântico, nem lá, nem cá» (p. 505); a terra é Lisboa-Portugal à espera que todos os seus Ricardos Reis, contempladores do espetáculo do mundo, passem finalmente à ação.

PROFESSOR

MC

Leitura 7.1; 7.3.

Consolida 1. A Lisboa retratada em O Ano da Morte de Ricardo Reis é «uma Lisboa do final de 1935 e de 1936, cercada por uma ditadura interna e por várias externas». Uma cidade cinzenta, envolta pela chuva, metáfora do regime do Estado Novo que cerca os seus cidadãos, maioritariamente «súbditos, escravos, submissos, reprimidos, oprimidos», sem vontade para lutarem para saírem da situação em que se encontram.

Isaura de Oliveira, «Lisboa, segundo Saramago – A História, os Mitos e a Ficção», in Colóquio-Letras, n.º 151/152, jan. 1999, pp. 357-367.

CONSOLIDA

1. Refere, sucintamente, os aspetos que caracterizam Lisboa de 1936.

Francis Smith, Evocação de Lisboa (pormenor), 1949.

264

Unidade 4 // JOSÉ SARAMAGO

Representações do século XX

PROFESSOR

MC

Oralidade 1.1; 1.4.

O tempo histórico e os acontecimentos políticos

Educação Literária 14.1; 14.2; 14.3; 14.7; 15.2; 15.3.

PONTO DE PARTIDA

1. Visiona o excerto de um documentário sobre o Bairro Alto.

Gramática 18.2; 19.2.

1.1 Pronuncia-te acerca do papel dos jornais na vida deste bairro lisboeta.

Ponto de Partida

Bairro Alto 500 Anos (2013) REAL. Vidioteca - AML/RTP

▪ Documentário Bairro Alto 500 Anos, Videoteca – AML/RTP, 2013 1.1 A concentração dos jornais no Bairro Alto na segunda metade do século XIX trouxe uma nova dinâmica ao espaço: • o aparecimento da pequenos negócios no bairro; • diversidade cultural: jornais e alguns elementos culturais presentes naquele espaço; • o coração político da cidade de Lisboa; é do bairro Alto que emanam a luta e o debate político; • diversidade política, intelectual e artística: jornais de todos os quadrantes (imprensa política e jornais populares); • no período do Estado Novo, com a institucionalização da censura, muitos jornais ressentem-se do corte da liberdade de imprensa e acabam por desaparecer, mas o bairro mantém-se como polo importante da imprensa escrita, mantendo-se o convívio entre jornalistas, residentes e intelectuais.

EDUCAÇÃO LITERÁRIA

A morte de Fernando Pessoa [Capítulo II]

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Vai Ricardo Reis aos jornais, vai aonde sempre terá de ir quem das coisas do mundo passado quiser saber, aqui no Bairro Alto onde o mundo passou, aqui onde deixou rasto do seu pé, pegadas, ramos partidos, folhas pisadas, letras, notícias, é o que do mundo resta, o outro resto é a parte de invenção necessária para que do dito mundo possa também ficar um rosto, um olhar, um sorriso, uma agonia, Causou dolorosa impressão nos círculos intelectuais a morte inesperada de Fernando Pessoa, o poeta do Orfeu, espírito admirável que cultivava não só a poesia em moldes originais mas também a crítica inteligente, morreu anteontem em silêncio, como sempre viveu, mas como as letras em Portugal não sustentam ninguém Fernando Pessoa empregou-se num escritório comercial, e, linhas adiante, junto do jazigo deixaram os seus amigos flores de saudade. Não diz mais este jornal, outro diz doutra maneira o mesmo, Fernando Pessoa, o poeta extraordinário da Mensagem, poema de exaltação nacionalista, dos mais belos que se têm escrito, foi ontem a enterrar, surpreendeu-o a morte num leito cristão do Hospital de S. Luís, no sábado à noite, na poesia não era só ele, Fernando Pessoa, ele era também 15 Álvaro de Campos, e Alberto Caeiro, e Ricardo Reis, pronto, já cá faltava o erro, a desatenção, o escrever por ouvir dizer, quando muito bem sabemos, nós, que Ricardo Reis é sim este homem que está lendo o jornal com os seus próprios olhos abertos e vivos, médico, de quarenta e oito anos de idade, mais um que a idade de Fernando Pessoa quando lhe fecharam os olhos, esses 20 sim, mortos, não deviam ser necessárias outras provas ou certificados de que não se trata da mesma pessoa, e se ainda aí houver quem duvide, esse vá ao Hotel Bragança e fale com o senhor Salvador, que é o gerente, pergunte se não está lá hospedado um senhor chamado Ricardo Reis, médico, que veio do Brasil, e ele dirá que sim, O 25 senhor doutor não vem almoçar, mas disse que jantaria, se quiser deixar algum recado, eu pessoalmente me encarregarei de lho transmitir, quem ousará duvidar agora da palavra de um gerente

O Ano da Morte de Ricardo Reis – Representações do século XX

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de hotel, excelente fisionomista e definidor de identidades. Mas, para que não fiquemos somente com a palavra de alguém que conhecemos tão pouco, aqui está estoutro jornal que pôs a notícia na página certa, a da necrologia, e extensamente identifica o falecido, Realizou-se ontem o funeral do senhor doutor Fernando António Nogueira Pessoa, solteiro, de quarenta e sete anos de idade, quarenta e sete, notem bem, natural de Lisboa, formado em Letras pela Universidade de Inglaterra, escritor e poeta muito conhecido no meio literário, sobre o ataúde1 foram depostos ramos de flores naturais, o pior é delas, coitadas, mais depressa murcham. Enquanto espera o elétrico que o há de levar aos Prazeres, o doutor Ricardo Reis lê a oração fúnebre proferida à beira da campa […], esta manhã de mil novecentos e trinta e cinco, mês de dezembro, dia trinta, estando carregado o céu […]. José Saramago, op. cit., [cap. II], pp. 42-45. 1 Ataúde: caixão funerário.

1. Esclarece o sentido da expressão «aqui no Bairro Alto onde o mundo passou» (l. 2). 2. Interpreta a ideia subjacente ao segmento «é o que do mundo resta, o outro resto é a parte de invenção necessária para que do dito mundo possa também ficar um rosto, um olhar, um sorriso, uma agonia» (ll. 3-5). 3. Comprova a presença da influência do regime político na imprensa, fundamentando a tua resposta com elementos textuais. 4. Explicita o modo como o narrador materializa a existência de Ricardo Reis e justifica esta demarcação da personagem do seu criador.

GRAMÁTICA

1. Estabelece as correspondências corretas entre os exemplos textuais da coluna A e os Coesão textual respetivos mecanismos de construção da coesão textual da coluna B. SIGA p. 377 A a) «[…] surpreendeu-o a morte […], na poesia não era só ele […]» (ll. 13-14). b) «Mas, para que não fiquemos somente com a palavra de alguém que conhecemos tão pouco […]» (ll. 28-29). c) «[…] solteiro, de quarenta e sete anos de idade, quarenta e sete, notem bem […]» (l. 32).

B 1. Coesão gramatical: interfrásica. 2. Coesão lexical: reiteração. 3. Coesão gramatical: referencial. 4. Coesão lexical: substituição (sinonímia)

Valor temporal 2. Indica as relações de ordem cronológica estabelecidas entre as FI pp. 57-58 formas verbais e os respetivos pontos de referência nas seguintes expressões: a) «O senhor doutor não vem almoçar, mas disse que jantaria […]» (ll. 24-25). b) «[…] eu pessoalmente me encarregarei de lho transmitir» (ll. 26-27). c) «Enquanto espera o elétrico […], o doutor Ricardo Reis lê a oração fúnebre […]» (ll. 35-36).

265

PROFESSOR

Educação Literária 1. O Bairro Alto, por ser o local onde se localizam os jornais, é destino obrigatório para quem se queira inteirar dos acontecimentos passados, é onde se encontra o registo jornalístico dos acontecimentos do mundo. 2. O narrador, com este segmento, pretende elucidar os leitores quanto à fusão entre realidade e ficção naquilo que narra, mesmo quando procura reproduzir as notícias da imprensa, pois os jornais apenas registam os factos ocorridos no mundo («rasto do seu pé, pegadas, ramos partidos, folhas pisadas, letras, notícias») e não os sentimentos de quem vive esses acontecimentos, as reações individuais, pormenores que marcam a presença da humanidade de cada um («um rosto, um olhar, um sorriso, uma agonia»). 3. A referência feita no jornal à Mensagem de Fernando Pessoa como um «poema de exaltação nacionalista» comprova, estando-se em finais de 1935, época do Estado Novo, a influência do regime nas notícias publicadas. A reiterar esta interferência política surge um elogio à obra («dos mais belos que se têm escrito»), que poderá, implicitamente, encerrar um elogio ao próprio regime nacionalista. 4. O narrador, ao citar a notícia do jornal, na qual se refere que Fernando Pessoa «era também Álvaro de Campos, e Alberto Caeiro, e Ricardo Reis», faz uma ressalva: Ricardo Reis, a personagem que lê esta notícia, e Ricardo Reis, heterónimo, não são a mesma pessoa. Justifica-o e comprova-o, referindo que a personagem tem mais um ano do que Fernando Pessoa, que faleceu aos quarenta e sete anos (facto reiterado, para que não haja dúvidas) e que se encontra hospedado no Hotel Bragança, como o pode confirmar o seu gerente, o senhor Salvador, «excelente fisionomista e definidor de identidades». Esta demarcação da personagem do seu criador justifica-se pela necessidade de se afirmar a individualidade de Ricardo Reis enquanto personagem da ficção. Gramática 1. a)-3.; b)-1.; c)-2. 2. a) Relação de anterioridade; b) Relação de posterioridade; c) Relação de simultaneidade.

266

Unidade 4 // JOSÉ SARAMAGO

EDUCAÇÃO LITERÁRIA

PROFESSOR

MC

Educação Literária 14.2; 14.3; 14.4; 14.5; 15.1; 15.2.

O discurso do poder: a alienação e a indiferença Texto A

Gramática 18.4; 19.3.

A (im)parcialidade da imprensa

Escrita 10.1; 11.1; 12.1; 12.2; 12.3; 12.4.

[Capítulo IV]

1 Tetralogia: conjunto de qua-

tro peças (três tragédias e uma comédia ou drama satírico) que os antigos poetas da Grécia apresentavam nos concursos dramáticos. 2 Pacheco: António Faria Carneiro Pacheco, Ministro da Instrução Nacional, de 18 de janeiro de 1836 a 20 de agosto de 1940. 3 Gesta: história; façanha; feitos históricos.

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Diz-se, dizem-no os jornais, quer por sua própria convicção, sem recado mandado, quer porque alguém lhes guiou a mão, se não foi suficiente sugerir e insinuar, escrevem os jornais, em estilo de tetralogia1, que, sobre a derrocada dos grandes Estados, o português, o nosso, afirmará a sua extraordinária força e a inteligência refletida dos homens que o dirigem. […]. Dizem também os jornais, de cá, que uma grande parte do país tem colhido os melhores e mais abundantes frutos de uma administração e ordem pública modelares, e se tal declaração for tomada como vitupério, uma vez que se trata de elogio em boca própria, leia-se aquele jornal de Genebra, Suíça, que longamente discorre, e em francês, o que maior autoridade lhe confere, sobre o ditador de Portugal, já sobredito, chamando-nos de afortunadíssimos por termos no poder um sábio. José Saramago, op. cit., [cap. IV], pp. 111-112.

Texto B

A burguesia comprometida e a literatura panfletária [Capítulo VI]

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A nós o que nos vale, meu caro doutor Reis, neste cantinho da Europa, é termos um homem de alto pensamento e firme autoridade à frente do governo e do país, estas palavras disse-as o doutor Sampaio, e continuou logo, Não há comparação possível entre o Portugal que deixou ao partir para o Rio de Janeiro, e o Portugal que veio encontrar agora, bem sei que voltou há pouco tempo, mas, se tem andado por aí, a olhar com olhos de ver, é impossível que não se tenha apercebido das grandes transformações, o aumento da riqueza nacional, a disciplina, a doutrina coerente e patriótica, o respeito das outras nações pela pátria lusitana, sua gesta3, sua secular história e seu império, Não tenho visto muito, respondeu Ricardo Reis, mas estou a par do que os jornais dizem, Ah, claro, os jornais, devem ser lidos, mas não chega, é preciso ver com os próprios olhos, as estradas, os portos, as escolas, as obras públicas em geral, e a disciplina, meu caro doutor, o sossego das ruas e dos espíritos, uma nação inteira entregue ao trabalho sob a chefia de um grande estadista […]. Mas o pai [de Marcenda] prosseguia, dava um conselho, Não é que se trate de um bom livro, desses que 15 têm lugar na literatura, mas é de certeza um livro útil, de leitura fácil, e que pode abrir os olhos a muita gente, Que livro é esse, O título é Conspiração, escreveu-o um jornalista patriota, nacionalista, um Tomé Vieira, não sei se já ouviu falar, Não, nunca ouvi, vivendo lá tão longe, O livro saiu há poucos dias, leia-o leia-o, e depois me dirá, Não 20 deixarei de o ler, se mo aconselha […]. José Saramago, op. cit., [cap. VI], pp. 184-186.

O Ano da Morte de Ricardo Reis – Representações do século XX

Texto C

PROFESSOR

Ricardo Reis: espectador do mundo [Capítulo XVII]

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Ricardo Reis lê os jornais. Não chega a inquietar-se com as notícias que lhe chegam do mundo, talvez por temperamento, talvez por acreditar no senso comum que teima em afirmar que quanto mais as desgraças se temem menos acontecem, Se isto assim é, então o homem está condenado, por seu próprio interesse, ao pessimismo eterno, como caminho para a felicidade, e talvez, perseverando, atinja a imortalidade pela via do simples medo de morrer. […] [A]s ameaças, quando nascem, são, como o sol, universais, mas ele recolhe-se a uma sombra que lhe é particular, definida desta maneira, o que eu não quero saber, não existe […]. José Saramago, op. cit., [cap. XVII], pp. 518-519.

1. O Texto A apresenta um discurso oficial patente nos jornais que não coincide com a voz do narrador, denunciando este o comprometimento dos mesmos. 1.1 Comprova a veracidade da afirmação, fundamentando a tua resposta com transcrições pertinentes. 1.2 Evidencia a imagem de Portugal exposta nos jornais. 2. Atenta no Texto B. 2.1 Demonstra que o Dr. Sampaio é um fiel emissário do regime. 2.2 Indica os aspetos associados ao livro Conspiração que permitem a sua integração na literatura panfletária. 3. Confirma, a partir da leitura do Texto C, que Ricardo Reis se assume como «espectador do mundo», orientando-se pelo epicurismo e pelo estoicismo, provenientes da sua formação clássica. GRAMÁTICA

1. Indica o aspeto gramatical expresso nos seguintes enunciados: a) b) c) d) e)

FI

Valor aspetual pp. 59-60

«Não tenho visto muito […]» (Texto B, l. 9). «Mas o pai prosseguia, dava um conselho […]» (Texto B, ll. 14-15). «[…] escreveu-o um jornalista patriota, nacionalista […]» (Texto B, l. 18). «Ricardo Reis lê os jornais» (Texto C, l. 1). «[…] as ameaças, quando nascem, são, como o sol, universais […]» (Texto C, ll. 6-7).

ESCRITA

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Texto de opinião SIGA pp. 364-365

Texto de opinião José Saramago afirmou, no jornal La Verdad (1994), que «Já não há indignação espontânea, que é a boa, a verdadeira indignação. Existe uma doença do espírito: o mal da indiferença cívica. Todos estamos moralmente doentes». Num texto de opinião, comenta a afirmação do escritor, apresentando o teu ponto de vista sobre as consequências da indiferença na atualidade.

Educação Literária 1.1 O discurso oficial prenuncia o delírio da vitória salazarista, sendo visível a isenção do narrador relativamente ao mesmo através de expressões como «Diz-se, dizem-no os jornais» e «Dizem também os jornais», que expõem, claramente, a autoria de um discurso que não confere com o seu. O narrador denuncia, ainda, o comprometimento dos jornais por serem quer meios de propaganda voluntária do regime, quer submissos ao poder («quer porque alguém lhes guiou a mão, se não foi suficiente sugerir e insinuar»). 1.2 Portugal é apresentado como um país cujo Estado, contrariamente ao que se passa nos grandes Estados que mostram sinais de desmoronamento, confirmará «a sua extraordinária força» e a superioridade dos homens que o dirigem, mantendo-se firme. É um país que tem beneficiado largamente de «uma administração e ordem pública modelares», sendo extremamente afortunado por ter «no poder um sábio». 2.1 O discurso do Dr. Sampaio é um panegírico ao regime de Salazar e ao estadista, no qual se salienta o progresso do país a vários níveis e a admiração das outras nações perante este desenvolvimento e a disciplina que se faz sentir em Portugal. 2.2 Conspiração é um livro escrito por Tomé Vieira, um jornalista patriota e nacionalista; é um livro acessível a todos («de leitura fácil»), pois pretende-se que a sua mensagem atinja uma grande parte da população e seja facilmente entendida, sendo, assim, «um livro útil» enquanto veículo de ação do regime. 3. O epicurismo e o estoicismo conjugam-se na ação de Ricardo Reis, uma vez que a personagem procura não dar importância e relevância às contrariedades inevitavelmente presentes na vida, pois configuram-se uma ameaça à sua serenidade e à sua tranquilidade espiritual, optando por permanecer indiferente e alheio ao que se desenrola em seu redor. A não-aceitação dos aspetos sombrios do mundo condu-lo a tentar manter-se distanciado dessa realidade trazida pelos jornais. Gramática 1. a) Situação iterativa; b) Valor imperfetivo; c) Valor perfetivo; d) Situação habitual; e) Situação genérica. Escrita ▪ Apresentação em PowerPoint Correção da atividade de Escrita

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Unidade 4 // JOSÉ SARAMAGO

FICHA INFORMATIVA 3 PROFESSOR

MC

Educação Literária 16.2. Gramática 18.4.

Linguística textual: intertextualidade A intertextualidade é o conjunto das relações que um texto concreto (hipertexto) estabelece, desde a esfera da sua produção até à esfera da sua leitura e da sua interpretação, com outro(s) texto(s) (hipertextos). O hipotexto de um texto literário pode ser um texto não-literário ou um texto não-verbal (por ex., um texto pictórico, um texto musical).

▪ Apresentação em PowerPoint Linguística textual: intertextualidade 1. a) Imitação criativa: jogando com o provérbio «todos os caminhos vão dar a Roma», salienta-se que em questões de literatura portuguesa, Camões é uma figura incontornável e inspiradora. b) Paródia: a partir da evocação do hino nacional, A Portuguesa, a personagem, de forma humorística, aponta como causa do seu regresso o apelo feito pelos ilustres antepassados. c) Neste excerto, o narrador parodia o episódio do Adamastor de Os Lusíadas, salientando o sofrimento amoroso em detrimento da simbologia do gigante enquanto obstáculo que os portugueses tiveram de enfrentar para ultrapassar o Cabo das Tormentas.

Modalidades de intertextualidade Citação

• Passagem de um texto que se reproduz, com indicação do autor original e graficamente marcada com aspas, utilizada para ilustrar, reforçar ou completar uma ideia.

Epígrafe

• Fragmento de texto ou frase curta, com indicação da autoria, que surge no início de uma obra, de um capítulo ou de um poema e que estabelece relações com o conteúdo do texto que se lhe segue.

Alusão

• Referência direta ou indireta a uma situação, uma obra, uma personagem, para se sugerir ou fazer compreender algo de forma indireta, irónica ou criativa. A alusão só é eficaz se essa referência for do conhecimento do leitor (ou do ouvinte).

Paráfrase

• Explicação do conteúdo de um texto original, de modo a torná-lo mais compreensível, ou reprodução de um texto ou parte dele explicitamente, por outras palavras, sem que a ideia original seja alterada.

Paródia

• Imitação de um texto (normalmente literário) com alteração do seu sentido original e com a intenção de divertir, de ridicularizar ou de criticar.

Imitação criativa

• Recriação de um texto literário, conferindo-lhe atualidade ou algum tipo de originalidade sem o ridicularizar ou criticar.

CONSOLIDA

1. Identifica e interpreta as seguintes manifestações de intertextualidade. a) «todos os caminhos portugueses vão dar a Camões» (p. 248). b) «[…] regresso eu à pátria, ó pátria, chamou-me a voz dos teus egrégios avós […]» (p. 319). c) «[…] sentado ao sol, sob o vulto protetor de Adamastor, já se viu que Luís de Camões exagerou muito, este rosto carregado, a barba esquálida, os olhos encovados, a postura nem medonha nem má, é puro sofrimento amoroso o que atormenta o estupendo gigante, quer ele lá saber se passam ou não passam o cabo as portuguesas naus» (p. 365). Fontes: • Dicionário Terminológico, DGIDC, 2008. • Maria Regina Rocha, Gramática de Português – Ensino Secundário 10.º, 11.º e 12.º anos, Porto, Porto Editora, 2016.

O Ano da Morte de Ricardo Reis – Representações do século XX

PONTO DE PARTIDA

PROFESSOR

MC

1. Analisa, atentamente, o cartoon de João Abel Manta.

João Abel Manta, Caricaturas Portuguesas dos Anos de Salazar, Campo das Letras, 1998.

EDUCAÇÃO LITERÁRIA

A repressão e a ordem: a PVDE [Capítulo VIII]

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Educação Literária 14.2; 14.3; 14.4; 14.5; 14.7.

Ponto de Partida

1.1 Pronuncia-te oralmente acerca da crítica veiculada, considerando a época do Estado Novo.

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É na manhã de quarta-feira que vêm trazer uma contrafé1 a Ricardo Reis. Levou-lha o próprio Salvador, em mão de gerente, dada a importância do documento e a sua proveniência, a Polícia de Vigilância e Defesa do Estado, entidade até agora não mencionada por extenso, calhou assim, hoje está calhando o contrário, não é por não se falar das coisas que elas não existem […]. Em diferente sentido está reservado Salvador, a cara, não diríamos fechada, como uma nuvem de inverno, mas perplexa, […] Tem aqui uma contrafé, diz, e os olhos fixam-se no objeto […], Uma contrafé, para mim, com razão se espanta Ricardo Reis, pois o seu único delito, ainda assim não costumavelmente punido por estas polícias, é receber a horas mortas uma mulher na sua cama, se tal é crime. Mais do que o papel, em que ainda não pegou, inquieta-o a expressão de Salvador, a mão dele que parece tremer um pouco, Donde é que isso vem, mas ele não respondeu, certas palavras não devem ser pronunciadas em voz alta, apenas segredadas, ou transmitidas por sinais, ou silenciosamente lidas como agora as lê Ricardo Reis, disfarçando as maiúsculas por serem tão ameaçadoras, polícia de vigilância e defesa do estado, Que é que eu tenho que ver com isto, faz a pergunta com displicente alarde, acrescenta-lhe uma adenda tranquilizadora, Há de ser algum engano, di-lo para benefício do desconfiado Salvador […]. Já todo o pessoal do hotel sabe que o hóspede do duzentos e um, o doutor Reis, aquele que veio do Brasil há dois meses, foi chamado à polícia, alguma ele teria feito por lá, ou por cá, quem não queria estar na pele dele bem eu sei, ir à pvde, vamos a ver se o deixam sair, contudo, se fosse caso de prisão não lhe tinham mandado a contrafé, apareciam aí e levavam-no. José Saramago, op. cit., [cap. VIII], pp. 234-235.

1 Contrafé: cópia autêntica de intimação judi-

cial para ser entregue à pessoa intimada.

1. Interpreta as reações de Salvador e de Ricardo Reis, após a entrega da contrafé da PVDE. 2. Explicita as críticas implícitas na reação de «todo o pessoal do hotel», ilustrando a tua resposta com elementos textuais. 3. Interpreta o uso de minúsculas na sigla «pvde» no final do texto.

O cartoon ilustra um grupo de forcados em cima de um poste, tendo, do seu lado direito, um touro de grandes proporções e com um ar enraivecido e, do seu lado esquerdo, um polícia. Os forcados revelam estar cheios de medo, não do touro, mas do polícia. Esta imagem representa o medo instalado pela repressão e pela coação impostas pelo Estado Novo. Educação Literária 1. Salvador revela perplexidade, talvez por não esperar que o seu hóspede tivesse feito algo para ser chamado à PVDE, medo («a mão dele parece tremer um pouco») e desconfiança, pois o próprio facto de se ser interrogado pela polícia do Estado é suficiente para imprimir a dúvida na personagem. Ricardo Reis, por sua vez, manifesta espanto por não ter feito algo que ameaçasse o poder, mas é também invadido pelo medo, quer pela reação de Salvador, quer pelo facto de se ver absurdamente acusado, sentindo a opressão do regime. Assume, no final, embora contaminado pelo receio, uma postura intencionalmente tranquilizadora, desvalorizando a situação, de forma a dissipar as visíveis dúvidas de Salvador. 2. No final do excerto, são criticados aqueles que, marcados pela alienação, se revelam incapazes de questionar o poder («alguma ele teria feito por lá, ou por cá»), sem equacionar a possibilidade do erro, do julgamento injusto, da arbitrariedade. É igualmente criticada a violência instituída, a repressão do sistema, visível na constatação «se fosse caso de prisão não lhe tinham mandado a contrafé, apareciam aí e levavam-no». 3. O uso de minúsculas indica que a sigla é pronunciada em voz baixa, informação que surge anteriormente quando o narrador refere que «certas palavras não devem ser pronunciadas em voz alta, apenas segredadas, ou transmitidas por sinais, ou silenciosamente lidas […], disfarçando as maiúsculas por serem tão ameaçadoras, polícia de vigilância e defesa do estado». Assim, esta característica oral transforma-se numa metáfora escrita que se assume como a transcrição do medo e da opressão.

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Unidade 4 // JOSÉ SARAMAGO

EDUCAÇÃO LITERÁRIA

PROFESSOR

MC

Educação Literária 14.2; 14.3; 14.4;14.7; 14.9; 15.2; 16.2.

Movimentos contra o regime: a Revolta dos Marinheiros1 [Capítulo XIX]

Sugestão ao professor Visionamento do excerto do documentário sobre «A Revolta dos Marinheiros», visando a tomada de consciência da base factual do excerto. 5

▪ Link A Revolta dos Marinheiros – Portugal 1936, RTP2 Educação Literária 1. Localizando-se a ação em 1936, época em que o Estado Novo afirmava, cimentava e impunha o seu poder através de vários meios, nomeadamente, da alienação do povo por uma imprensa e uma literatura comprometidas, de uma burguesia emissária do regime e de um ambiente de medo pela ação da PVDE, a Revolta dos Marinheiros assume-se como um ato de extrema coragem, sendo o único levantamento militar contra a administração de Salazar. São expostos, inicialmente, por Lídia os objetivos da revolta – a libertação dos presos políticos dos Açores, a fomentação de levantamentos no continente a partir dessa ação e, caso tal não acontecesse, a junção ao governo espanhol – e, ao longo do excerto, a sublevação e a imediata e eficaz resposta do regime, conduzindo-a ao fracasso. No final, são apresentadas as consequências da revolta: a morte de doze marinheiros, incluindo a do irmão de Lídia, e a prisão de muitos outros. 2. «[…] há quem bata palmas no Alto de Santa Catarina […]» (ll. 13-14). 3. A personificação da cidade representa um sinal de respeito pelos mortos e expressa o choque de Ricardo Reis ao ver o nome do irmão de Lídia entre os marinheiros que morreram. A antítese, presente no contraste entre «um silêncio absoluto» e «o barulho […] ensurdecedor», associada à locução adverbial de tempo («de repente»), transmite a facilidade e a rapidez com que as pessoas se esquecem destes acontecimentos e mortes, reassumindo a sua condição de meros «espectadores do mundo».

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[…] É que, interrompeu-se para enxugar os olhos e assoar-se, é que os barcos vão revoltar-se, sair para o mar, Quem to disse, Foi o Daniel em grande segredo […]. Qual é a intenção deles, […] A ideia é irem para Angra do Heroísmo, libertar os presos políticos, tomar posse da ilha, e esperar que haja levantamentos aqui, E se não os houver, Se não houver, seguem para Espanha, vão juntar-se ao governo de lá, […] Para quando será isso, Não sei, ele não mo disse, é um destes dias, E os barcos, quais são os barcos, É o Afonso de Albuquerque, mais o Dão e o Bartolomeu Dias […]. Quando Ricardo Reis chegou ao jardim havia já muitas pessoas […]. Não eram os navios de guerra que estavam a bombardear a cidade, era o forte de Almada que disparava contra eles. Contra um deles. Ricardo Reis perguntou, Que barco é aquele, teve sorte, calhou dar com um entendido, É o Afonso de Albuquerque. Era então ali que ia o irmão de Lídia, o marinheiro Daniel, a quem nunca vira, […] o Afonso de Albuquerque foi atingido por um tiro, logo outro, há quem bata palmas no Alto de Santa Catarina, […]. Parece, tudo isto, um sonho. […]. O forte de Almada continua a disparar, parece o Afonso de Albuquerque que respondeu, mas não há a certeza. Deste lado da cidade começaram a soar tiros, mais violentos, mais espaçados, É o forte do Alto do Duque, diz alguém, estão perdidos, já não vão poder sair. […] Na hora da distribuição dos vespertinos Ricardo Reis saiu para comprar o jornal. Percorreu rapidamente os títulos da primeira página, procurou a continuação da notícia na página central dupla, outros títulos, ao fundo, em normando, Morreram doze marinheiros, e vinham os nomes, as idades, Daniel Martins de vinte e três anos, Ricardo Reis ficou parado no meio da rua, com o jornal aberto, no meio de um silêncio absoluto, a cidade parara, ou passava em bicos de pés, com o dedo indicador sobre os lábios fechados, de repente o barulho voltou ensurdecedor […]. É quase noite. Diz o jornal que os presos foram levados primeiro para o Governo Civil, depois para a Mitra, que os mortos, alguns por identificar, se encontram no necrotério2. José Saramago, op. cit., [cap. XIX], pp. 566-581. 1 Revolta dos Marinheiros: levantamento militar ocorrido a 8 de

setembro de 1936 a bordo de navios da Armada Portuguesa; tendo sido a única ação militar contra o regime até ao 25 de abril que foi preparada, decidida e efetuada. 2 Necrotério: morgue.

1. Explicita a importância documental do excerto, relacionando-o com os vários aspetos do tempo histórico já abordados. 2. Procede à transcrição de uma expressão comprovativa do alinhamento ostensivo de algumas pessoas ao lado do regime. 3. Identifica os recursos expressivos presentes em «[…] no meio de Recursos expressivos SIGA p. 383 um silêncio absoluto, a cidade parara, ou passava em bicos de pés, com o dedo indicador sobre os lábios fechados, de repente o barulho voltou ensurdecedor […].» (ll. 22-24) e indica a sua expressividade.

O Ano da Morte de Ricardo Reis – Representações do século XX

EDUCAÇÃO LITERÁRIA

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PROFESSOR

Ventos de Espanha: o massacre de Badajoz1

MC

Educação Literária 14.2; 14.3; 14.4; 14.7; 14.9; 15.2; 16.2.

[Capítulo XVIII]

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Badajoz rendeu-se. Estimulado pelo entusiástico telegrama dos antigos legionários portugueses, o Tércio2 obrou maravilhas, tanto no combate à distância como na luta corpo a corpo, tendo sido particularmente assinalada, e levada à ordem, a valentia dos legionários portugueses da nova geração, quiseram mostrar-se dignos dos seus maiores, a isto se devendo acrescentar o efeito benéfico que sempre tem nos ânimos a proximidade dos ares pátrios. Badajoz rendeu-se. Posta em ruínas pelos continuados bombardeamentos, partidas as espadas, embotadas3 as foices, destroçados os cacetes e mocas, rendeu-se. O general Mola proclamou, Chegou a hora do ajuste de contas, e a praça de touros abriu as portas para receber os milicianos prisioneiros, depois fechou-se, é a fiesta, as metralhadoras entoam olé, olé, olé, nunca tão alto se gritou na praça de Badajoz, os minotauros4 vestidos de ganga caem uns sobre os outros, misturando os sangues, transfundindo as veias, quando já não restar um só de pé irão os matadores liquidar, a tiro de pistola, os que apenas ficaram feridos, e se algum veio a escapar desta misericórdia foi para ser enterrado vivo. De tais acontecimentos não soube Ricardo Reis senão o que lhe disseram os seus jornais portugueses, um deles, ainda assim, ilustrou a notícia com uma fotografia da praça, onde se viam, espalhados, alguns corpos, e uma carroça que ali parecia incongruente, não se chegava a saber se era carroça de levar ou de trazer, se nela tinham sido transportados os touros ou os minotauros. O resto soube-o Ricardo Reis por Lídia, que o soubera pelo irmão, que o soubera não se sabe por quem, talvez um recado que veio do futuro, quando enfim todas as coisas puderem saber-se. Lídia já não chora, diz, Foram mortos dois mil, e tem os olhos secos, mas os lábios tremem-lhe, as maçãs do rosto são labaredas. […] [N]ova proclamação, Guerra sem quartel, guerra sem tréguas, guerra de extermínio contra o micróbio marxista, ressalvando-se, porém, os deveres humanitários, como se depreende de palavras que o general Franco proferiu, Ainda não tomei Madrid porque não quero sacrificar a parte inocente da população, bondoso homem, aqui está alguém que nunca ordenaria, como fez Herodes, a matança das criancinhas, esperaria que elas crescessem para não ficar com esse peso na consciência e para não sobrecarregar de anjos o céu. Seria impossível que estes bons ventos de Espanha não produzissem movimentos afins em Portugal. José Saramago, op. cit., [cap. XVIII], pp. 549-552. 1 Massacre de Badajoz: no dia 14 de agosto de 1936,

2 Tércio: Terço de Estrangeiros ou Regimento de

após a rendição da cidade de Badajoz ao assalto das tropas nacionalistas, todos os que tinham resistido foram levados para a praça de touros, ou para as imediações do cemitério, para serem executados. Não se conhece exatamente o número de mortos, que varia, segundo as fontes, entre 2000 e 4000.

Estrangeiros («A Legião»), participa na Guerra Civil Espanhola, entre 1936 e 1939. 3 Embotadas: menos afiadas ou cortantes. 4 Minotauros: segundo a mitologia, o Minotauro era um monstro fabuloso com corpo de homem e cabeça de touro.

1. Clarifica o contraste entre as tropas nacionalistas e os combatentes de Badajoz, indicando o recurso expressivo que o releva. 2. Justifica o paralelo estabelecido pelo narrador entre o massacre ocorrido em Badajoz e o espetáculo tauromáquico, salientando a referência aos «minotauros». 3. Identifica o recurso expressivo utilizado pelo narrador no comentário tecido a propósito do discurso do general Franco (ll. 24-28) e esclarece a sua ocorrência.

▪ Apresentação em PowerPoint O Minotauro e o Labirinto de Creta Educação Literária 1. As tropas nacionalistas, para além dos combates corpo a corpo, recorreram a bombardeamentos aéreos para destruir e conduzir Badajoz à rendição, o que contrasta claramente com as armas improvisadas e rudimentares daqueles que defendiam a cidade, dado relevado pela enumeração das mesmas e pela facilidade com que foram neutralizadas: «partidas as espadas, embotadas as foices, destroçados os cacetes e as mocas» (l. 7). 2. O narrador, ao estabelecer o paralelo, destaca a barbaridade e a desumanidade do fuzilamento de milhares de milicianos na praça de touros, homens transformados em bestas, em «minotauros» presos num labirinto do qual não havia saída possível, aguardando-os somente a morte. A denúncia desta redução do homem à condição de animal, deste desprezo pela vida humana, é incisiva no questionamento da função da carroça que surge na fotografia que ilustra a notícia que Reis lê no jornal. 3. O narrador comenta, ironicamente, a bondade e a humanidade dissimuladas do general, quando, no seu discurso, refere ainda não ter tomado Madrid por não querer «sacrificar a parte inocente da população», como se os homens que estava disposto a aniquilar não tivessem sido também, em tempos, crianças inocentes.

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Unidade 4 // JOSÉ SARAMAGO

PONTO DE PARTIDA

PROFESSOR

MC

Educação Literária 14.1; 14.2; 14.3; 14.4; 14.7; 15.2; 16.2.

1. Expressa o teu ponto de vista sobre a citação abaixo transcrita.

«As ditaduras fomentam a opressão, as ditaduras fomentam o servilismo, as ditaduras fomentam a crueldade; mas o mais abominável é que elas fomentam a idiotia.»

Escrita 10.1; 11.1; 12.1; 12.2; 12.3; 14.4.

Jorge Luís Borges

Ponto de Partida 1. As ditaduras, para além de oprimirem e subjugarem os cidadãos, manipulam as pessoas a ponto de estas também exercerem pressões sobre os seus pares; fomentam o servilismo, seja sob a forma de subserviência e de submissão, advenientes da opressão, seja através do incentivo de uma bajulação interesseira de quem vê nelas um meio de favorecimento individual; fomentam a crueldade, cometendo, ou levando a cometer, atos de pura barbárie com vista à proteção e manutenção dos regimes; fomentam a idiotia, conduzindo a uma total ausência de bom senso por parte dos cidadãos, devido à alienação a que estão sujeitos, não sendo capazes de discernir o bem do mal, compactuando com as mesmas.

EDUCAÇÃO LITERÁRIA

A Europa unida: comício contra o comunismo [Capítulo XVIII]

Educação Literária 1. A mobilização da sociedade civil em torno da organização do comício, desde associações patrióticas e sindicatos a caixeiros e pedreiros, através da criação de meios de publicitação, comprova a alienação da população, a sua idiotia, como se pode verificar, igualmente, na procura de bilhetes pelas senhoras, ironicamente, das mais visadas pelo regime pela coartação de liberdades, e nos ensaios da saudação nazi pelos assistentes da indústria hoteleira.

1 Mimetismo: imitação incons-

ciente pela qual alguém adota o comportamento, a linguagem, as ideias dos seus pares. 2 Frémito: estremecimento; abalo; comoção. 3 Fáscio: fascismo (regime político totalitário que vigorou em Itália entre 1922 e 1943, liderado por Mussolini, que se destacou pela perseguição violenta de opositores e pelo seu caráter nacionalista, imperialista e corporativista). 4 Falangistas: par tidários da Falange (organização política e paramilitar espanhola inspirada no fascismo italiano).

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Os lances estão feitos, as cartas postas na mesa, o jogo é claro, chegou a hora de saber quem está por nós e quem está contra nós, obrigar o inimigo a mostrar-se ou, pela sua própria ausência e dissimulação, levá-lo a denunciar-se, do mesmo passo que contaremos por nossos quantos, por mimetismo1 ou cobardia, por ambição de mais ou medo de perderem o pouco, se acolherem à sombra das nossas bandeiras. Anunciaram pois os sindicatos nacionais a promoção de um comício contra o comunismo, e mal foi conhecida a notícia perpassou em todo o corpo social o frémito2 dos grandes momentos históricos, publicaram-se prospetos assinados por associações patrióticas, as senhoras, individualmente ou reunidas em comissão, reclamaram bilhetes, e, com vista ao fortalecimento dos ânimos, à preparação dos espíritos, alguns sindicatos organizaram sessões dedicadas aos seus associados, fizeram-no os caixeiros e os padeiros, fê-lo a indústria hoteleira, nas fotografias veem-se os assistentes saudando de braço estendido, cada um ensaia a sua parte enquanto não chega a grande noite da estreia. […] Em toda a sua vida Ricardo Reis nunca assistiu a um comício político. […] Mas este alarido nacional, a guerra civil aqui ao lado, quem sabe se o desconcerto do lugar onde vão reunir-se os manifestantes, a Praça de Touros do Campo Pequeno, acordam-lhe no espírito uma pequenina chama de curiosidade, […] para homem de natural tão pouco indagador, há interessantes mudanças em Ricardo Reis. […] As bancadas estão cheias, lugar, agora, só na arena, onde os estandartes podem fazer melhor figura, por isso estão lá tantos. […] Uma banda de música dá primores de repertório para entreter a espera. Enfim, entram as entidades oficiais, recheia-se a tribuna, e é o delírio. Esfuziam os gritos patrióticos, Portugal Portugal Portugal, Sala-

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zar Salazar Salazar, este não veio, só aparece quando lhe convém, nos locais e às horas que escolhe, aquele não admira que aqui esteja, porque está em toda a parte. No lado direito da tribuna, em lugares que até agora tinham permanecido vazios, com muita inveja do gentio doméstico, instalaram-se representantes do fáscio3 italiano, com as suas camisas negras e condecorações dependuradas, e no lado esquerdo representantes nazis, de camisa castanha e braçadeira com a cruz suástica, e todos estes estenderam o braço para a multidão, a qual correspondeu com menos habilidade mas muita vontade de aprender, é nesta altura que entram os falangistas4 espanhóis, com a já conhecida camisa azul, três cores diferentes e um só verdadeiro ideal. A multidão, como um único homem, está de pé, o clamor sobe ao céu, é a linguagem universal do berro, a babel finalmente unificada pelo gesto, […] Morte ao bolchevismo em todas as línguas. A custo fez-se silêncio, a banda rematara a marcha militar com três pancadas de bombo, e agora anuncia-se o primeiro orador da noite, […] depois veio o segundo, Luís Pinto Coelho, que representa a Mocidade Portuguesa, e com ele se começa a desvendar a intenção última deste comício, pois por palavras muito explicadas pediu a criação de milícias nacionalistas, […] e enfim […] o capitão Jorge Botelho Moniz, que é o do Rádio Clube Português, e este lê uma moção em que se pede ao governo a criação duma legião cívica que se dedique inteiramente ao serviço da nação, tal como Salazar se dedicou […]. Ouvindo falar de legião cívica, a multidão levanta-se outra vez, sempre como um só homem, quem diz legião diz farda, quem diz farda diz camisa, agora só faltará decidir qual vai ser a cor dela, […] é muito bom o verde, digam-no os garbosos moços da Mocidade, que, à espera de que lhes chegue a vez de receberem uniforme, não sonham com outra coisa. O comício está no fim, a obrigação foi cumprida. José Saramago, op. cit., [cap. XVIII], pp. 552-559.

1. Conclui acerca da mobilização da sociedade civil, a partir do momento em que o comício foi noticiado. 2. Esclarece a curiosidade de Ricardo Reis em torno deste evento, justificando a referência ao local onde teria lugar. 3. Indica o ambiente do comício, salientando os valores exaltados. 4. Interpreta a presença de representantes das várias ditaduras europeias. 5. Transcreve expressões que comprovem a perda de identidade do povo associada à alienação e interpreta-as. 6. Refere as intenções do regime subjacentes à organização deste comício, relacionando-as com a frase final do excerto sobre o massacre de Badajoz: «Seria impossível que estes bons ventos de Espanha não produzissem movimentos afins em Portugal.»

ESCRITA

Apreciação crítica SIGA pp. 362-363

Apreciação crítica

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2. Ricardo Reis pretende comprovar e compreender por si a euforia popular em torno de um comício, bem como as razões conducentes à sua organização num momento de instabilidade provocado pela Guerra Civil espanhola. Acresce a curiosidade aguçada pelo local onde ele terá lugar, uma tentativa de perceber a simbologia de uma Praça de Touros, espaço que, há pouco tempo, em Badajoz, fora palco de um massacre sanguinário. 3. O ambiente é, inicialmente, de festa e, depois, ao longo do mesmo, de puro êxtase, os gritos são patrióticos, de cada vez que são exaltados valores patrióticos e nacionalistas. 4. A presença das ditaduras italiana, alemã e espanhola pretende ser uma exibição da força e da união europeias e uma forma de reprimir quaisquer tentativas de sublevação contra o regime político vigente. 5. As expressões «A multidão, como um único homem, está de pé, o clamor sobe ao céu, é a linguagem universal do berro, a babel finalmente unificada pelo gesto» (ll. 31-33) e «Ouvindo falar de legião cívica, a multidão levanta-se outra vez, sempre como um só homem» (ll. 41-42) são comprovativas da total alienação e submissão do povo que, naquele momento, perde a identidade a favor do líder, Salazar. O povo assume-se como um coletivo regido pela mesma vontade, pela mesma orientação, pelo que os oradores que se sucedem no palanque reforçam sempre a lealdade coletiva para com o homem forte que a todos protege e de todos cuida. 6. Os acontecimentos de Espanha, a revolta da população, eram uma ameaça aos pilares do regime, tendo precipitado a organização do comício (deste e de outros pelo país fora), no sentido de se verificar quem se encontrava com o poder e contra o poder («chegou a hora de saber quem está por nós e quem está contra nós, obrigar o inimigo a mostrar-se ou, pela sua própria ausência e dissimulação, levá-lo a denunciar-se», ll.1-3). Assim, a congregação dos cidadãos em «milícias nacionalistas» e numa «legião cívica» seria um meio eficaz de controlo da população e de reafirmação da solidez do regime. Escrita

1. Visiona o excerto do episódio «O homem que está e fica» do documentário Salazar. 1.1. Redige uma apreciação crítica sobre o documento visionado, relacionando-o com a abordagem destas temáticas em O Ano da Morte de Ricardo Reis.

▪ Vídeo Documentário Salazar (SIC) ▪ Apresentação em PowerPoint Correção da atividade de Escrita

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FICHA INFORMATIVA 4 Representações do século XX O tempo histórico e os acontecimentos políticos 1. O espetáculo do mundo

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Talvez nos ocorra perguntar porquê Ricardo Reis e porquê 1936. Quanto ao nome, uma pista para uma possível resposta talvez estivesse na epígrafe do poeta Ricardo Reis que José Saramago elege para o seu romance: «Sábio é o que se contenta com o espetáculo do mundo.» Quanto à data, além de uma lógica interna, que condiciona o retorno do personagem Ricardo Reis à morte de Fernando Pessoa, há, sem dúvida, alguma atração pela narrativa dos acontecimentos históricos que marcaram definitivamente a Europa de então. É Reis o espectador da vida que o romance quer confrontar com o espetáculo de 1936, para testar até que ponto se consegue ser «sábio» diante de uma Europa conturbada e agonizante, de valores degradados, onde a liberdade começava a ser um sonho cada vez mais inatingível. […] O Ano da Morte de Ricardo Reis guarda evidentes relações com o discurso histórico […]. Utilizando recursos tipicamente ficcionais, misturando o verosímil ao inverosímil, o romance investiga um tempo passado e usa a ficção como elemento perturbador do convencional, de modo a surgirem aspetos inusitados do real. O tempo percorrido por esse novo olhar é o ano de 1936 […]. Teresa Cristina Cerdeira da Silva, José Saramago – entre a história e a ficção: uma saga de portugueses, Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1989, pp. 104-105 (texto adaptado).

2. 1936: dez anos de ditadura em Portugal

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Eduardo Portugal, Rua da Bica de Duarte Belo, AML, 1936.

Na complexidade do quadro europeu de 1936, a situação portuguesa traz a estabilidade de dez anos de ditadura. […] [O] país passa a um governo autoritário, fundamentalmente centralizado, cuja estrutura piramidal tem como objetivo precípuo1 o controlo e a vigilância do Estado sobre todas as áreas do desenvolvimento humano – económicas, políticas ou culturais – de modo a obter falaciosamente uma sociedade una, onde os conflitos inexistiriam, capaz, portanto, de propiciar o bom desempenho de uma economia cujo modelo era o do monopólio capitalista. […] Em 1936 […] Portugal conhece já os primeiros frutos da ditadura e é essa situação que se reflete no corpo do romance O Ano da Morte de Ricardo Reis. […] Extrapolando a dimensão meramente psíquica da aventura do eu, a experiência de vida da personagem só se realiza em diálogo com uma opção ideológica consciente pela participação ou pela alienação, ilustrando, desta forma, mais que um drama individual, um tempo e uma história. Teresa Cristina Cerdeira da Silva, op. cit., pp. 123-124 (texto adaptado).

1 Precípuo: principal.

Ficha informativa

O ANO DA MORTE DE RICARDO REIS: RETRATO DE PORTUGAL – 1936

Salazar

• A imagem do poder autoritário. • A imagem do pai: proteção, acolhimento, força, guia incontestado – fundamenta a estrutura familiar patriarcal e ratifica o modelo Deus-Pátria-Família (a base ideológica de todo o sistema). • Mitificação pela Igreja: caráter modelar fundado numa mística cristã. • Discurso parcial e tendencioso, capaz de louvar as qualidades da ditadura salazarista e de encobrir as suas falhas. • Exercício da influência do poder sobre aqueles que submete, convencendo-os da validade dos seus propósitos.

discurso

O discurso do poder:

livros

alienação e

panfletários;

contestação

telefonia

cinema

prémios literários; intelectuais

• Veículos de intervenção que atingem grande parte da população: instrumentos de ação e de propaganda do regime. • Os jornais portugueses estão fundamentalmente comprometidos com o discurso do poder. • As suas mensagens são fundamentalmente as mesmas das dos jornais, variando apenas a forma de veiculação das ideias, já que estão sujeitas às mesmas pressões ideológicas. • Literatura panfletária metonimicamente representada pelo livro Conspiração. • Forma de expressão das mais modernas, logo, de efeitos incontestáveis sobre o público: filmagem da Revolução de Maio: reduplicação do livro Conspiração (mesmos objetivos, enredo semelhante, personagens com funções idênticas). • Ratificam o discurso da ideologia: aqui alinham-se António Ferro e aqueles que, dentro do regime, merecem a condecoração dos prémios nacionais.

• A ordem, um dos valores da burguesia, é um dos pontos privilegiados da ideologia capitalista, por conduzir à progressão do mundo do trabalho. A repressão e a ordem

O engajamento dos jovens: a Mocidade Portuguesa

A consciência lúcida e os movimentos contra o regime

• Formas de (re)pressão: – o discurso ideológico: forma de persuasão e de alienação; – criação de órgãos de controlo: a atuação da PVDE (Polícia de Vigilância e Defesa do Estado), a mostrar a componente repressiva do sistema. • Organização cuja origem nazi é denunciada no romance pela visita das Juventudes Hitlerianas de Hamburgo a Portugal, do seu grito nacionalista – «Nós não somos nada!» (p. 363) – e do necessário eco que tal modelo deveria criar entre os jovens portugueses. • A presença do «S» no cinto do uniforme, que significava «Servir» e «Salazar»; • Poderoso esteio ideológico do regime, cuja voz era repetida por todos os jovens convencidos do orgulho que representava a farda, com toda a sua tradição militar e a sua imagem de força, ordem, integridade, segurança e defesa da pátria. • As políticas de Salazar geraram um Estado mais rico, uma elite mais rica e um país pobre, cuja manifestação de descontentamento se encontrava coartada, tendo surgido vozes discordantes que questionaram os valores do sistema: – atos concretos de oposição organizada, ou mesmo individuais, que abalaram – por vezes, timidamente – a máscara de conformidade, de aceitação e de aplauso que o poder impunha ao povo português.

Paulo Guedes, Jornal O Século, AML, 1906.

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Unidade 4 // JOSÉ SARAMAGO

PROFESSOR

MC

O ANO DA MORTE DE RICARDO REIS: A PAISAGEM DA EUROPA – 1936

Leitura 7.1; 7.2; 7.3; 7.4.

Consolida 1. O romance O Ano da Morte de Ricardo Reis retrata o ambiente histórico do ano de 1936: a ditadura e a centralidade da figura de Salazar; o controlo e a vigilância do Estado sobre todas as áreas do desenvolvimento humano, visando, falaciosamente, uma sociedade una, sem conflitos, de forma a haver um bom desempenho de uma economia cujo modelo era o capitalista. Para tal, o regime recorre a vários meios (jornais, literatura panfletária, telefonia, cinema, prémios literários) para veicular um discurso parcial e tendencioso, exercendo a sua influência e poder sobre aqueles que submete, convencendo-os, deste modo, da validade dos seus propósitos. Procura-se manter a ordem através de um discurso ideológico, capaz de alienar as massas, do engajamento dos jovens (a Mocidade Portuguesa) e, essencialmente, através da ação da PVDE. Neste quadro totalitário e repressivo, surgem vozes discordantes que procuram agir contra o regime, por meio de atos concretos de oposição organizada ou individual. Relativamente à Europa, os regimes de esquerda são descreditados pelos jornais, valorizando-se os valores dos estados nacionalistas, a Alemanha e a Itália, imitados por Portugal. O caso espanhol assume lugar de destaque na obra: a vitória da esquerda, os conflitos que se sucederam, o Golpe de Estado de Franco e as suas consequências. O ambiente revela uma Europa «agonizante, de valores degradados, onde a liberdade começava a ser um sonho cada vez mais inatingível».

• Movimento do Front Populaire e o governo de Léon Blum: A França de Léon Blum

– notícias da vitória da esquerda são veiculadas em Portugal pelos discursos reacionários dos periódicos sujeitos à censura prévia; – nos jornais lamenta-se a França da Frente Popular: a esquerda francesa fica ameaçada e desacreditada, através da figura do marechal Pétain. • A Itália fascista é um dos espaços mais significativos da Europa de 1936:

A Itália de Mussolini

– importância do fascismo no quadro europeu a partir de 1935: oposição fascismo e antifascismo; – o nacionalismo: componente essencial da psicologia e da ideologia fascista: sonho da hegemonia europeia. • Privilégio do modelo nazi – «quem me dera ser alemão» (p. 361) – desejo de reprodução de uma imagem quase perfeita, que os portugueses admiram e se apressam em seguir: – semelhanças ideológicas que uniam a Alemanha e Portugal, justificando propagandas favoráveis ao regime, intercâmbios culturais, visitas, semelhanças entre os chefes políticos (ridicularização, através de um certo humor trágico, da aspiração portuguesa na cena de montagem de um roteiro cinematográfico, onde a presença alemã não é aleatória na filmagem de uma cena de repressão policial, de violência contra os direitos humanos – invasão de domicílio, arrombamento de portas, violência verbal, sadismo – que culmina com um ridículo abuso de poder);

A Alemanha de Hitler

– modelo verbal veiculado pelas Juventudes Hitlerianas de Hamburgo, cuja frase de efeito – «Nós não somos nada» (frase que ilustra dois dos princípios básicos do fascismo: o anti-individualismo e a crença na necessidade de uma elite dirigente da massa que tem por dever seguir os seus preceitos) – fundamentaria ideologicamente a futura organização da Mocidade Portuguesa nela inspirada; – modelo verbal acompanhado por um símbolo visual que atravessa Lisboa duas vezes: «o gigantesco, adamastrófico dirigível Graf Zeppelin» (p. 398), marca de prestígio técnico-científico da nação alemã, que traz no leme a cruz suástica para a necessária propaganda do regime; – modelo humano – Hitler: deificação do guia eleito pelo povo alemão (aproximação com Salazar: a suprema coincidência de ter a mesma idade de Hitler – 47 anos –, «vejam lá o que são coincidências, dois importantes homens públicos», p. 414). • Ano da Guerra de Espanha – cenário de contínuas agitações:

A Espanha de Franco

– início do ano: a esquerda sai vitoriosa das eleições populares (opções mais genuinamente democráticas, acompanhadas de uma agitação social que alarmava proprietários, patrões, militares e Igreja); – 18 de julho: Golpe de Estado ao qual se seguiram três anos de lutas contínuas, com a participação internacional: divisões de voluntários fascistas italianos e material bélico e técnicos alemães ajudaram a insurreição comandada por Franco.

CONSOLIDA

1. Comenta, após a leitura dos vários documentos, o panorama sociopolítico português e europeu retratado em O Ano da Morte de Ricardo Reis.

Ficha informativa

Representações do amor

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PROFESSOR

MC

PONTO DE PARTIDA

1. Visiona, atentamente, o vídeo da canção «O amor é assim», de HMB e Carminho, do álbum homónimo de 2016 e refere os efeitos do amor aí mencionados.

Oralidade 1.1; 1.3; 2.1. Educação Literária 14.1; 14.2; 14.3; 14.4; 14.5; 14.9; 15.1; 15.2.

O amor é assim (2016) HMB e Carminho

Ponto de Partida

▪ Link «O amor é assim», HMB e Carminho

EDUCAÇÃO LITERÁRIA

▪ Documento Letra da canção «O amor é assim»

Texto A

Marcenda [Capítulo I]

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A porta abriu-se outra vez, agora entrou um homem de meia-idade, alto, formal, de rosto comprido e vincado, e uma rapariga de uns vinte anos, se os tem, magra, ainda que mais exato seria dizer delgada, dirigem-se para a mesa fronteira à de Ricardo Reis […] A rapariga fica de perfil, o homem está de costas, conversam em voz baixa, mas o tom dela subiu quando disse, Não, meu pai, sinto-me bem, são portanto pai e filha, conjunção pouco costumada em hotéis, nestas idades. […] A rapariga magra acabou a sopa, pousa a colher, a sua mão direita vai afagar, como um animalzinho doméstico, a mão esquerda que descansa no colo. Então Ricardo Reis, surpreendido pela sua própria descoberta, repara que desde o princípio aquela mão estivera imóvel, recorda-se de que só a mão direita desdobrara o guardanapo, e agora agarra a esquerda e vai pousá-la sobre a mesa, com muito cuidado, cristal fragilíssimo, e ali a deixa ficar, ao lado do prato, assistindo à refeição, os longos dedos estendidos, pálidos, ausentes. Ricardo Reis sente um arrepio, é ele quem o sente, ninguém por si o está sentindo, por fora e por dentro da pele se arrepia, e olha fascinado a mão paralisada e cega que não sabe aonde há de ir se a não levarem, aqui a apanhar sol, aqui a ouvir a conversa, aqui para que te veja aquele senhor doutor que veio do Brasil, mãozinha duas vezes esquerda, por estar desse lado e ser canhota, inábil, inerte, mão morta mão morta que não irás bater àquela porta. Ricardo Reis observa que os pratos da rapariga vêm já arranjados da copa, limpo de espinhas o peixe, cortada a carne, descascada e aberta a fruta, é patente que filha e pai são hóspedes conhecidos, costumados na casa, talvez vivam mesmo no hotel. Chegou ao fim da refeição, ainda se demora um pouco, a dar tempo, que tempo e para quê, enfim levantou-se, afasta a cadeira, e o rumor do arrastamento, acaso excessivo, fez voltar-se o rosto da rapariga, de frente tem mais que os vinte anos que antes parecera, mas logo o perfil a restitui à adolescência, o pescoço alto e frágil, o queixo fino, toda a linha instável do corpo, insegura, inacabada. José Saramago, op. cit., [cap. I], pp. 31-32.

1. Os efeitos de amor são vários: operam mudanças de comportamento, «Eu não sei se algum dia eu vou mudar /Mas eu sei que por ti posso tentar»; são, à vez, positivos e negativos «Tropeço, levanto e volto p’ra ti»; encorajam e fortalecem «Leva-nos para onde for /Insiste, persiste»;…

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Unidade 4 // JOSÉ SARAMAGO

Texto B

PROFESSOR

MC

[Capítulo II]

Oralidade 1.1; 1.3; 2.1.

Meia hora depois já o afável Salvador pode informar […]. Ela tem um nome esquisito, chama-se Marcenda, imagine, mas são de muito boas famílias, a mãe é que já morreu, Que tem ela na mão, Acho que o braço todo está paralisado, por causa disso é que vêm estar todos os meses três dias aqui no hotel, para ela ser observada pelo médico […].

Educação Literária 14.1; 14.2; 14.3; 14.4; 14.5; 14.9; 15.1; 15.2. Educação Literária

José Saramago, op. cit., [cap. II], p. 70.

Texto C

▪ Apresentação em PowerPoint Correção de atividade 1

Lídia

1. Texto A e B: Espaço físico: Sala de jantar do Hotel Bragança. Descrição da personagem feminina: Marcenda tem «vinte anos», é «magra, ainda que mais exato seria dizer delgada» (ll. 2-3). A sua mão esquerda está paralisada («mãozinha duas vezes esquerda, por estar desse lado e ser canhota, inábil, inerte» (ll. 18-19). É de boas famílias e órfã de mãe, como informa Salvador. A sua fragilidade parece incomodá-la, «conversam em voz baixa, mas o tom dela subiu quando disse, Não, meu pai, sinto-me bem» (ll. 4-5). Relação entre Ricardo Reis e a personagem feminina: Ricardo Reis observa-a atentamente, tece hipóteses sobre a personagem e a mão esquerda de Marcenda fascina-o («olha fascinado a mão paralisada e cega», l. 14). Papel do narrador: O narrador tem acesso a todos os pensamentos / sentimentos de Ricardo Reis e, por vezes, comenta-os, «Ricardo Reis sente um arrepio, é ele quem o sente, ninguém por si o está sentindo» (ll. 12-13).

[Capítulo IV]

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Já conhecemos a criada que traz o pequeno-almoço, é a Lídia, ela é também quem faz a cama e limpa e arruma o quarto, dirige-se a Ricardo Reis chamando-lhe sempre senhor doutor, ele diz Lídia, sem senhoria, mas, sendo homem de educação, não a trata por tu, e pede, Faça-me isto, Traga-me aquilo, e ela gosta, não está habituada, em geral logo ao primeiro dia e hora a tuteiam, quem paga julga que o dinheiro confere e confirma todos os direitos, embora, faça-se essa justiça, outro hóspede haja que se lhe dirige com igual consideração, é a menina Marcenda, filha do doutor Sampaio. Lídia tem quê, os seus trinta anos, é uma mulher feita e bem feita, morena portuguesa, mais para o baixo que para o alto, se há importância em mencionar os sinais particulares ou as características físicas duma simples criada que até agora não fez mais que limpar o chão, servir o pequeno-almoço e, uma vez, rir-se de ver um homem às costas doutro, enquanto este hóspede sorria, tão simpático, mas tem o ar triste, não deve de ser pessoa feliz, ainda que haja momentos em que o seu rosto se torna claro, é como este quarto sombrio, quando lá fora as nuvens deixam passar o sol entra aqui dentro uma espécie de luar diurno, luz que não é a do dia, luz sombra de luz, e como a cabeça de Lídia estava em posição favorável Ricardo Reis notou o sinal que ela tinha perto da asa do nariz, Fica-lhe bem, pensou, depois não soube se ainda estava a referir-se ao sinal, ou ao avental branco, ou ao adorno engomado da cabeça, ou ao debrum bordado que lhe cingia o pescoço, Sim, já pode levar a bandeja. […] Lídia, disse Ricardo Reis, ela pousou a bandeja, levantou os olhos cheios de susto, quis dizer, Senhor doutor, mas a voz ficou-lhe presa na garganta, e ele não teve coragem, repetiu, Lídia, depois, quase num murmúrio, atrozmente banal, sedutor ridículo,

O Ano da Morte de Ricardo Reis – Representações do amor

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Acho-a muito bonita, e ficou a olhar para ela por um segundo só, não aguentou mais do que um segundo, virou costas, há momentos em que seria bem melhor morrer, Eu, que tenho sido cómico às criadas de hotel, também tu Álvaro de Campos, todos nós. A porta fechou-se devagar, houve uma pausa, e só depois se ouviram os passos de Lídia afastando-se. Ricardo Reis passou todo o dia fora a remoer a vergonha, sobre todas indigna porque o não vencera um adversário, senão o seu próprio medo. E decidiu que no dia seguinte mudaria de hotel […]. Entrou no quarto, e, não advertindo que fazia este movimento antes de qualquer outro, olhou a cama. Não estava aberta como de costume, em ângulo, mas por igual dobrados lençol e colcha, de lado a lado. E tinha, não uma almofada, como sempre tivera, mas duas. Não podia ser mais claro o recado, faltava saber até que ponto se tornaria explícito. […] Deitou-se, apagou a luz, deixara ficar a segunda almofada, fechou os olhos com força, vem, sono, vem, mas o sono não vinha […]. Levantou-se bruscamente, e, mesmo às escuras, guiando-se pela luminosidade difusa que se filtrava pelas janelas, foi soltar o trinco da porta, depois encostou-a devagar, parece fechada e não está, basta que apoiemos nela subtilmente a mão. Tornou a deitar-se, isto é uma criancice, um homem, se quer uma coisa, não a deixa ao acaso, faz por alcançá-la, haja vista o que trabalharam no seu tempo os cruzados, espadas contra alfanges, morrer se for preciso, e os castelos, e as armaduras, depois, sem saber se ainda está acordado ou dorme já, pensa nos cintos de castidade de que os senhores cavaleiros levaram as chaves, pobres enganados, aberta foi a porta deste quarto, em silêncio, fechada está, um vulto atravessa tenteando, para à beira da cama, a mão de Ricardo Reis avança e encontra uma mão gelada, puxou-a, Lídia treme, só sabe dizer, Tenho frio, e ele cala-se, está a pensar se deve ou não beijá-la na boca, que triste pensamento. José Saramago, op. cit., [cap. IV], pp. 113-114, 129-132.

1. Completa a tabela com os elementos adequados.

Espaço físico

Descrição da personagem feminina

Relação entre Ricardo Reis e a personagem feminina

Papel do narrador

Textos A e B

Texto C

2. Identifica os recursos expressivos em «como um animalzinho doméstico» (Texto A, ll. 7-8) e «cristal fragilíssimo» (Texto A, l. 12), explicitando o seu valor. 3. Esclarece o sentido do comentário do narrador: «Ricardo Reis passou todo o dia fora a remoer a vergonha, sobre todas indigna porque o não vencera um adversário, senão o seu próprio medo.» (Texto C, ll. 28-29).

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PROFESSOR

Texto C: Espaço físico: Quarto de Ricardo Reis no Hotel Bragança. Descrição da personagem feminina: Lídia é uma bela criada de hotel que atrai a atenção de Ricardo Reis. Apesar de se mostrar tímida numa primeira abordagem («a voz ficou-lhe presa na garganta», l. 21) corresponde ao apelo de Reis, acabando por se deitar com ele («a mão de Ricardo Reis avança e encontra uma mão gelada, puxou-a, Lídia treme, só sabe dizer, Tenho frio», ll. 44-46). Relação entre Ricardo Reis e a personagem feminina: A relação com Lídia é dúbia. Se, por um lado, se sente atraído por ela e lhe confessa essa sua atração («Acho-a muito bonita», l. 23; por outro, sente-se envergonhado por se tratar de uma criada e por ter sido atrevido com ela («Eu, que tenho sido cómico às criadas de hotel, também tu Álvaro de Campos, todos nós.», ll. 24-25). Papel do narrador: O narrador conhece os sentimentos das duas personagens, por exemplo, o embaraço de Lídia («mas a voz ficou-lhe presa na garganta», l. 21) e a vergonha de Reis («Ricardo Reis passou todo o dia fora a remoer a vergonha», l. 28). 2. Trata-se de uma comparação e de uma metáfora, respetivamente. Ambas salientam a fragilidade, mas também a solidariedade do narrador perante o braço paralítico de Marcenda (note-se os graus do nome (diminutivo) e do adjetivo (superlativo absoluto sintético)). 3. A vergonha de Reis suscita o comentário do narrador, que adianta uma explicação para esse sentimento: o medo de se entregar, de se envolver com alguém, de deixar de ser espetador para ser ator.

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Unidade 4 // JOSÉ SARAMAGO

FICHA INFORMATIVA 6 Representações do amor

PROFESSOR

MC

Leitura 7.1; 7.2; 7.3; 8.1.

Consolida 1. O amor tem o poder de resgatar a personagem Ricardo Reis da solidão, do abismo. A sua incapacidade de decisão e de retribuição sincera do sentimento amoroso poderá levar à conclusão de que não quer (ou não pode?) ser salvo desse mesmo isolamento e precipício, eventualmente da sua própria aniquilação.

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É nas histórias de amor que a capacidade narrativa de José Saramago mais ganha asas. Quem assim fala do amor elogia a vida. […] Em O Ano da Morte de Ricardo Reis encontramos o protagonista mergulhado entre duas águas e sem poder chegar a nenhuma das margens, apesar das recomendações de retranca do seu mentor Fernando Pessoa, que o visita de vez em quando e o interroga por essa indefinição manifesta, relativamente a Lídia ou a Marcenda; a primeira, criada de quarto de hotel em que mora, e a segunda, cliente do mesmo estabelecimento: […] E aquela rapariga simpática, fina, a do braço paralítico, você chegou a dizer-me que ela se chamava, Marcenda, É um gerúndio bonito, tem-na visto, Encontrei-a da última vez que esteve em Lisboa, o mês passado, Você gosta dela, Não sei, E Lídia, gosta, É diferente, Mas gosta, ou não gosta, Até agora o corpo não se me negou, E isso que é que prova, Nada, pelo menos de amores. Este tipo de conversas entre Ricardo Reis e Fernando Pessoa é recorrente, antes de mais pela insistente capacidade do segundo para tentar condicionar e fazer o primeiro duvidar, por alguma razão é o seu heterónimo. […] Lídia é a criada do hotel para onde Ricardo Reis vai morar depois do seu regresso do Brasil. Representa a mulher fiel, comedida, tímida, simples, inocente e complacente. Mesmo face a uma gripe de Ricardo Reis, todas estas características, que não são mais do que provas de amor sincero, se multiplicam. […] Ricardo Reis, por seu lado, tem sentimentos contraditórios face a Lídia. […] E não encontra outra solução com que pagar o amor desmedido e sem contrapartidas de Lídia que a material. […] Pensa que o amor se paga com lisonjas, […] quando na realidade o amor se paga com amor. Esta postura de Reis, como não podia deixar de ser, causa a Lídia grandes sofrimentos, sobretudo quando aparece na vida do protagonista o seu outro objeto de desejo, Marcenda, e provoca a correspondente zanga por ciúmes. […] Posso ir ter consigo nos meus dias de folga, não tenho mais nada na vida – é uma declaração de princípios e, claro, de amor. O amor que evita a solidão, o amor que afasta o abismo, esse abismo que horroriza e, simultaneamente, anula toda a possibilidade de raciocínio. A solidão também faz estremecer Ricardo Reis, neste caso face à ilusão amorosa que mantém com Marcenda. […] A busca dessa felicidade e amor não chegará a materializar-se, nem sequer em Fátima, símbolo, desta vez, dos seus anseios e necessidades.

Óscar Aranda, Aprende, aprende o meu corpo. Sobre o amor na obra de José Saramago, Lisboa, Fundação José Saramago, 2016, pp. 103-106 (texto adaptado).

CONSOLIDA

Pablo Picasso, O Casal (Os Miseráveis) (pormenor), 1904.

1. Refere-te ao poder do amor na obra O Ano da Morte de Ricardo Reis, relacionando-o com a incapacidade de decisão do protagonista.

O Ano da Morte de Ricardo Reis – Representações do amor

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EDUCAÇÃO LITERÁRIA

Ricardo Reis e Lídia [Capítulo IX]

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Deixa lá, saindo eu do hotel acabam-se logo os mexericos, Vai-se embora, não me tinha dito, Mais tarde ou mais cedo teria de ser, não ia ficar aqui o resto da vida, Nunca mais o tornarei a ver, e Lídia, que descansava a cabeça no ombro de Ricardo Reis, deixou cair uma lágrima, sentiu-a ele, Então, não chores, a vida é assim, as pessoas encontram-se, separam-se, quem sabe se amanhã não casarás, Ora, casar, já estou a passar a idade, e para onde é que vai, Arranjo casa, hei de encontrar alguma que me sirva, Se quiser, Se quiser, o quê, Posso ir ter consigo nos meus dias de folga, não tenho mais nada na vida, Lídia, por que é que gostas de mim, Não sei, talvez seja pelo que eu disse, por não ter mais nada na vida, Tens a tua mãe, o teu irmão, com certeza tiveste namorados, hás de tornar a tê-los, mais do que um, és bonita, e um dia casarás, depois virão os filhos, Pode ser que sim, mas hoje tudo o que eu tenho é isto, És uma boa rapariga, Não respondeu ao que lhe perguntei, Que foi, Se quer que eu vá ter consigo quando tiver a sua casa, nos meus dias de saída, Tu queres, Quero, Então irás, até que, Até que arranje alguém da sua educação, Não era isso que eu queria dizer, Quando tal tiver de ser, diga-me assim Lídia não voltes mais a minha casa, e eu não volto, Às vezes não sei bem quem tu és, Sou uma criada de hotel, Mas chamas-te Lídia e dizes as coisas duma certa maneira, Em a gente se pondo a falar, assim como eu estou agora, com a cabeça pousada no seu ombro, as palavras saem diferentes, até eu sinto, Gostava que encontrasses um dia um bom marido, Também gostava, mas ouço as outras mulheres, as que dizem que têm bons maridos, e fico a pensar, Achas que eles não são bons maridos, Para mim, não, Que é um bom marido, para ti, Não sei, És difícil de contentar, Nem por isso, basta-me o que tenho agora, estar aqui deitada, sem nenhum futuro, Hei de ser sempre teu amigo, Nunca sabemos o dia de amanhã, Então duvidas de que serás sempre minha amiga, Oh, eu, é outra coisa, Explica-te melhor, Não sei explicar, se eu isto soubesse explicar, saberia explicar tudo, Explicas muito mais do que julgas, Ora, eu sou uma analfabeta, Sabes ler e escrever, Mal, ler ainda vá, mas a escrever faço muitos erros. Ricardo Reis apertou-a contra si, ela abraçou-se a ele, a conversa aproximara-os devagarinho duma indefinível comoção, quase uma dor, por isso foi tão delicadamente feito o que fizeram depois, todos sabemos o quê. José Saramago, op. cit., [cap. IX], pp. 276-278.

1. Caracteriza a relação entre Ricardo Reis e Lídia e relaciona-a com a forma como ambos encaram o futuro. 2. Transcreve do texto um excerto que comprove a excecionalidade de Lídia, justificando a tua opção.

PROFESSOR

Educação Literária 1. As personagens têm uma relação amorosa que se caracteriza pelo carinho e pelo envolvimento íntimo («Ricardo Reis apertou-a contra si, ela abraçou-se a ele, a conversa aproximara-os devagarinho duma indefinível comoção, quase uma dor, por isso foi tão delicadamente feito o que fizeram depois.», ll. 30-33). Contudo, dada a diferença de estatuto sociocultural, e até pelo caráter reservado de Reis, nunca há um compromisso efetivo entre os dois. Tudo isto é visível na forma como encaram o futuro: Reis promete ser sempre seu «amigo» e coloca a hipótese de ela encontrar um bom marido. Lídia parece saber que o relacionamento irá apenas durar «Até que [Reis] arranje alguém da sua educação»; pede-lhe, no entanto, para a avisar («Quando tal tiver de ser, diga-me assim Lídia não voltes mais a minha casa, e eu não volto», ll. 17-19 ). 2. Por exemplo: «Às vezes não sei bem quem tu és, Sou uma criada de hotel, Mas chamas-te Lídia e dizes as coisas duma certa maneira» (ll. 15-20). A excecionalidade de Lídia é referida pelo próprio Reis, destacando o seu nome clássico, eventualmente, pouco usual para uma empregada doméstica. Surpreende-se ainda com a forma de falar de Lídia, que, tendo pouca escolaridade, produz discursos simples na forma, mas muito profundos e complexos ao nível do significado.

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Unidade 4 // JOSÉ SARAMAGO

EDUCAÇÃO LITERÁRIA

Ricardo Reis e Marcenda [Capítulo XI]

PROFESSOR

MC

Educação Literária 14.1; 14.2; 14.3; 14.4; 14.5; 14.9; 15.1; 15.2.

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Educação Literária 1. O relacionamento entre Reis e Marcenda é bastante singular. Mostram amor e carinho um pelo outro («como foi possível aparecer tão luminoso o sorriso dela», ll. 8-9, «não deve nada a Ricardo Reis, responde ao beijo com o beijo», ll. 27-28 ); porém, mantêm uma relação à distância, pautada pela contenção («um movimento ondulatório de retração»). Neste excerto, há um raro apontamento de intimidade, um beijo, o primeiro beijo de Marcenda, («os braços de Ricardo Reis apertam-na pela cintura e pelos ombros, puxam-na, e o seio comprime-se pela primeira vez contra o peito de um homem», ll. 22-23). 2. A expressão «sente-a morta», referindo-se à mão direita de Marcenda, destaca, simultaneamente, o seu consentimento e a sua expectativa perante o beijo iminente. A comparação estabelece a analogia com a mão esquerda, efetivamente paralisada, reforçando a emoção avassaladora que Marcenda está a viver.

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É Marcenda. Debruçado do corrimão, Ricardo Reis vê-a subir, a meio do primeiro lanço ela olha para cima, a certificar-se de que mora realmente ali a pessoa a quem procura, sorri, ele sorri também, são sorrisos que têm um destino, não são feitos ao espelho, essa é a diferença. Recuou Ricardo 5 Reis para a porta, Marcenda sobe o último lanço, só então ele repara que não acendera a luz da escada, vai recebê-la quase às escuras, e enquanto hesita sobre o que deve fazer, acender, não acender, há um outro nível do pensamento em que se exprime uma surpresa, como foi possível aparecer tão luminoso o sorriso dela, visto cá de cima, diante de mim agora, que 10 palavras irão ser ditas […]. [E]ntraram já, estão enfim todas as luzes acesas, a do teto, a da secretária, Marcenda olha em redor os móveis pesados, as duas estantes com os poucos livros, o mata-borrão verde, então Ricardo Reis diz, Vou beijá-la, ela não respondeu, num gesto lento segurou o cotovelo esquerdo com a mão direita, […] Ricardo Reis avançou um passo, ela não 15 se mexeu, outro passo, quase lhe toca, então Marcenda solta o cotovelo, deixa cair a mão direita, sente-a morta como a outra está, a vida que há em si divide-se entre o coração violento e os joelhos trémulos, vê o rosto do homem aproximar-se devagar, sente um soluço a formar-se-lhe na garganta, na sua, na dele, os lábios tocam-se, é isto um beijo, pensa, mas isto é só o princípio do beijo, a boca dele aperta-se contra a boca dela, são os lábios dele que descerram os lábios dela, é esse o destino do corpo, abrir-se, agora os braços de Ricardo Reis apertam-na pela cintura e pelos ombros, puxam-na, e o seio comprime-se pela primeira vez contra o peito de um homem, ela compreende que o beijo ainda não acabou, que neste momento não é sequer concebível que possa terminar, e voltar o mundo ao princípio, à sua primeira ignorância, compreende também que deve fazer mais alguma coisa que estar de braços caídos, a mão direita sobe até ao ombro de Ricardo Reis, […] não deve nada a Ricardo Reis, responde ao beijo com o beijo, às mãos com as mãos, pensei-o quando decidi vir, pensei-o quando saí do hotel, pensei-o quando subia aquela escada e o vi debruçado do corrimão, Vai beijar-me. A mão direita retira-se do ombro, escorrega, exausta, a esquerda nunca lá esteve, é a altura de o corpo ter um movimento ondulatório de retração, o beijo atingiu aquele limite em que já não se pode bastar a si mesmo, separemo-nos antes que a tensão acumulada nos faça passar ao estádio seguinte, o da explosão doutros beijos, precipitados, breves, ofegantes, em que a boca se não satisfaz com a boca, mas a ela volta constantemente, quem de beijos tiver alguma experiência sabe que é assim. José Saramago, op. cit., [cap. XI], pp. 341-342.

1. Comenta o tipo de relacionamento entre Ricardo Reis e Marcenda, fundamentando a tua resposta com elementos textuais. 2. Identifica os dois recursos expressivos presentes em «deixa cair a mão direita, sente-a morta como a outra está» (ll. 6-7), explicitando o seu valor.

Recursos expressivos SIGA p. 383

O Ano da Morte de Ricardo Reis – Representações do amor

EDUCAÇÃO LITERÁRIA

PROFESSOR

MC

Ricardo Reis e as duas Evas [Capítulo XIV]

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Um minuto depois percebeu que não estava a ler, tinha os olhos fitos numa página, num único verso cujo sentido de repente se fechara, singular rapariga esta Lídia, diz as coisas mais simples e parece que as diz como se apenas mostrasse a pele doutras palavras profundas que não pode ou não quer pronunciar, se eu não lhe tivesse participado que resolvi ir a Fátima, quem sabe se me falaria de Marcenda, ou se se deixaria ficar calada, guardando o segredo por despeito e ciúme, talvez, como chegou a mostrar lá no hotel, e estas duas mulheres, a hóspede e a criada, a rica e a pobre, que conversas haveria entre elas, se falariam de mim, cada uma sem suspeitar da outra, ou, pelo contrário, suspeitando e jogando entre Eva e Eva, com tenteios e meneios, fintas, insinuações brandas, silêncios tácitos, se, ao invés, não é do homem este jogo-de-damas sob a capa do músculo violento, bem pode ter acontecido que um dia Marcenda dissesse simplesmente, O doutor Ricardo Reis deu-me um beijo, mas daí não passámos, e Lídia simplesmente respondesse, Eu deito-me na cama com ele, e deitei-me antes que me beijasse, depois ficariam a conversar sobre a importância e significado destas diferenças, Só me beija quando estamos deitados, antes e durante aquilo que sabe, nunca depois, A mim disse-me Vou beijá-la, mas disso que dizes que eu sei, só sei que se faz, não sei o que seja, porque nunca mo fizeram, Ora, a menina Marcenda qualquer dia casará, terá o seu marido, logo verá como é, Tu que sabes, diz-me se é bom, Quando se gosta da pessoa, E tu, gostas, Gosto, Eu também, mas nunca mais o tornarei a ver, Podiam casar, Se casássemos, talvez eu deixasse de gostar, Eu, por mim, acho que gostaria sempre, a conversa não acabou aqui, mas as vozes tornaram-se murmúrio, segredo, porventura estarão falando de íntimas sensações, fraqueza de mulheres, agora, sim, é conversa de Eva com Eva, retire-se Adão, que está a mais. José Saramago, op. cit., [cap. XIV], pp. 423-424.

1. Estabelece as correspondências adequadas entre os nomes presentes em «é conversa de Eva com Eva, retire-se Adão, que está a mais» (ll. 23-24) e as personagens do universo literário. 2. Seleciona um excerto do texto em que seja visível o facto de este diálogo ser apenas fruto da imaginação, explicitando a estratégia linguística subjacente.

FI

GRAMÁTICA

Valor modal pp. 195-196

1. Preenche a tabela, indicando o tipo de modalidade presente em cada enunciado e o(s) recurso(s) utilizado(s) para exprimir o respetivo valor modal. Enunciado a) «Vou beijá-la» (l. 16). b) «Gosto!» (l. 19). c) «Podiam casar» (l. 19).

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Modalidade

Recurso(s)

Educação Literária 14.1; 14.2; 14.3; 14.4; 14.7; 14.8; 15.1; 15.2. Gramática 19.4.

Educação Literária 1. Numa alusão bíblica, as «Eva[s]» têm paralelo nas duas mulheres da vida de Reis – Lídia e Marcenda. Quanto ao «Adão», já a correspondência é ambígua – tanto pode ser Reis, como o próprio narrador, que tantas vezes se intromete na narrativa, chegando a desempenhar o papel de personagem, no seu universo literário. 2. Por exemplo, no seguinte excerto, «que conversas haveria entre elas, se falariam de mim, cada uma sem suspeitar da outra, ou, pelo contrário, suspeitando e jogando entre Eva e Eva», (ll. 7-9), é óbvio que se está a imaginar um diálogo possível entre as duas personagens. A estratégia linguística subjacente é o uso de formas verbais no condicional (vide sublinhados), levantando hipóteses sobre como seria essa conversa se acontecesse na realidade. Gramática 1. a) Modalidade epistémica: valor de certeza / Recurso: verbo auxiliar ir («vou»), exprimindo intenção futura; b) Modalidade apreciativa / Recurso: verbo gostar («Gosto»). c) Modalidade epistémica: valor de probabilidade / Recursos: verbo auxiliar poder no imperfeito do indicativo («podiam»).

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Unidade 4 // JOSÉ SARAMAGO

PONTO DE PARTIDA

PROFESSOR

MC

Educação Literária 14.1; 14.2; 14.3; 14.4; 14.5; 15.2; 16.2. Gramática 17.1; 18.1. Escrita 10.1; 11.1; 12.1; 12.2; 12.3; 12.4; 12.6.

1. Observa, atentamente, a pintura de Magritte. 1.1 Descreve-a objetiva e simbolicamente.

Ponto de Partida 1. Podemos observar duas figuras (uma feminina e outra masculina) que se beijam, na divisão de uma casa, como o fundo do quadro sugere. Ambos têm a cabeça e o pescoço envoltos em véus brancos. Simbolicamente, podemos fazer várias leituras: a descoberta do amor e dos dois amantes; o amor como um sentimento desconhecido; a mentira no sentimento amoroso; a pureza ou falta dela no relacionamento, a dificuldade de união entre os amantes;… Educação Literária 1. Quando Lídia o informa da probabilidade de estar grávida, Ricardo Reis reage, numa primeira fase, com indiferença («o que encontra dentro de si é um alheamento, uma indiferença», ll. 6-7), como se não estivesse «implicado na origem» da gestação. Perante a certeza de Lídia em ficar com o bebé, Reis sente pela primeira vez «um dedo tocar-lhe o coração» e comove-se. Porém, logo a seguir, finge não estar zangado com Lídia, mas sabemos pelo narrador que «se está formando uma grande cólera dentro de Ricardo Reis». É com vergonha e piedade que recebe as palavras de Lídia, libertando-o de qualquer obrigação em perfilhar «o menino» («Os olhos de Ricardo Reis encheram-se de lágrimas, umas de vergonha, outras de piedade», ll. 25-26). Finalmente, deixa-se levar pelos instintos e envolve-se fisicamente com Lídia («daí a nada uniam-se Lídia e Ricardo Reis», l. 30). 2. Lídia parece achar normal o facto de Ricardo Reis não perfilhar «o menino», já que a sua situação também é de «filha de pai incógnito». A crítica social pode ser perspetivada de duas formas: a falta de respeito para com as mulheres, sendo comum os homens não assumirem a paternidade dos filhos; e o arrastamento temporal da questão, já que a situação se repete geracionalmente. Assim, obtemos um retrato das famílias portuguesas nos anos 1930, em Portugal, sobretudo em contextos socioeconómicos desfavorecidos.

René Magritte, Os Amantes II, 1928.

EDUCAÇÃO LITERÁRIA

Da indiferença à comoção [Capítulo XVI]

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Acho que estou grávida, tenho um atraso de dez dias. Um médico aprende na faculdade os segredos do corpo humano, os mistérios do organismo, sabe portanto como operam os espermatozoides no interior da mulher, nadando rio acima, até chegarem, no sentido próprio e figurado, às fontes da vida. […] Que foi que disseste, Tenho um atraso, acho que estou grávida, dos dois o mais calmo é outra vez ela […]. Ricardo Reis procura as palavras convenientes, mas o que encontra dentro de si é um alheamento, uma indiferença, assim como se, embora ciente de que é sua obrigação contribuir para a solução do problema, não se sentisse implicado na origem dele, tanto a próxima como a remota. […] Por fim, tenteando com mil cautelas, pesando cada palavra, distribui as responsabilidades, Não tivemos cuidado, mais tarde ou mais cedo tinha de acontecer […]. Então Ricardo Reis decide-se, quer perceber quais são as intenções dela, não há mais tempo para subtilezas de dialética, salvo se ainda o for a hipótese negativa que a pergunta esconde mal, Pensas em deixar vir a criança, […] Lídia mete-se adiante e responde, Vou deixar vir o menino. Então, pela primeira vez, Ricardo Reis sente um dedo tocar-lhe o coração. Não é dor, nem crispação, nem despegamento, é uma impressão estranha e incomparável, como seria o primeiro contacto físico entre dois seres de universos diferentes, humanos ambos, mas ignotos na sua semelhança, ou, ainda mais perturbadoramente, conhecendo-se na sua diferença. […] Puxou-a para si, e ela veio como quem enfim se protege do mundo, de repente corada, de repente feliz, perguntando como uma noiva tímida, ainda é o tempo delas, Não ficou zangado comigo, Que ideia a tua, por que motivo iria eu zangar-me, e estas palavras não são sinceras, justamente nesta altura se está formando uma grande cólera dentro de Ricardo Reis […]. Lídia

O Ano da Morte de Ricardo Reis – Representações do amor

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aconchegou-se melhor, quer que ele a abrace com força, por nada, só pelo bem que sabe, e diz as incríveis palavras, simplesmente, sem nenhuma ênfase particular, Senão quiser perfilhar o menino, não faz mal, fica sendo filho de pai incógnito, como eu. Os olhos de Ricardo Reis encheram-se de lágrimas, umas de vergonha, outras de piedade, distinga-as quem puder, num impulso, enfim, sincero, abraçou-a, e beijou-a, imagine-se, beijou-a muito, na boca, aliviado daquele grande peso, na vida há momentos assim, julgamos que está uma paixão a expandir-se e é só o desafogo da gratidão. Mas o corpo animal cura pouco destas subtilezas, daí a nada uniam-se Lídia e Ricardo Reis, gemendo e suspirando, não tem importância, agora é que é aproveitar, o menino já está feito. Estes dias são bons. Lídia está em férias do hotel, passa quase todo o tempo com Ricardo Reis, só vai dormir as noites a casa da mãe por uma questão de respeito, assim evitam-se os reparos da vizinhança […]. José Saramago, op. cit., [cap. XVI], pp. 495-498.

1. Analisa o desenvolvimento do estado de espírito de Ricardo Reis ao longo do excerto. 2. Identifica a crítica social subjacente em «fica sendo filho de pai incógnito, como eu» (l. 25). 3. Classifica o narrador do texto quanto à presença, ciência e posição. 4. Seleciona um excerto do texto em que o tom oralizante seja evidenciado pela pontuação, justificando a tua escolha.

PROFESSOR

3. Quanto à presença, o narrador é heterodiegético, não participa na história que narra na terceira pessoa («Então Ricardo Reis decide-se, quer perceber quais são as intenções dela», l. 11). Relativamente à ciência, é omnisciente, dominando todos os passos da ação e tendo acesso aos pensamentos/sentimentos das personagens («mas o que encontra dentro de si é um alheamento, uma indiferença», ll. 6-7). No que diz respeito à posição, é nitidamente subjetivo quando, por exemplo, comenta as ações das personagens («beijou-a, imagine-se, beijou-a muito, na boca», ll. 27-28). 4. Por exemplo: «Não ficou zangado comigo, Que ideia a tua, por que motivo iria eu zangar-me,» (ll. 20-21) – a pontuação adequa-se ao ritmo prosódico da oralidade, através de pausas de respiração, aqui representadas pela vírgula (pausa breve). As maiúsculas ajudam a identificar as vozes presentes no texto. Gramática 1. a) F. – … desempenham as funções de predicativo do sujeito e complemento do nome, respetivamente; b) V; c) F. – … contribuem para assegurar a coesão interfrásica; d) V. Escrita ▪ Vídeo Trailer do filme Viver depois de ti

GRAMÁTICA

1. Classifica as afirmações como verdadeiras (V) ou falsas (F), corrigindo as falsas. a) Em «Acho que estou grávida, tenho um atraso de dez dias.» (l. 1), os elementos destacados desempenham as funções sintáticas de complemento direto e complemento oblíquo, respetivamente. b) Em «o que encontra dentro de si é um alheamento» (l. 6), está presente uma oração subordinada substantiva relativa sem antecedente. c) No contexto em que ocorrem «Por fim» (l. 9) e «Então» (l. 11), contribuem para assegurar a coesão frásica. d) Em «quer que ele a abrace com força» (l. 23), o pronome pessoal átono está anteposto ao verbo devido à estrutura sintática de subordinação.

ESCRITA

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Apreciação crítica SIGA pp. 362-363

Apreciação crítica 1. Visiona o trailer do filme Viver depois de ti (2016), realizado por Thea Sharrock. 1.1 Elabora uma apreciação crítica sobre os excertos fílmicos visionados, relacionando-os com o caso amoroso de Ricardo Reis e Lídia. Utiliza adequadamente as tecnologias de informação na produção, na revisão e na edição do texto.

▪ Apresentação em PowerPoint Correção de atividade de Escrita 1. Conta-se a história de Louisa Clark que consegue um emprego como assistente doméstica de um tetraplégico, Will Traynor, preso a uma cadeira de rodas e à amargura constante em que vive, depois de ficar paralisado. A convivência entre ambos vai mudá-los irreversivelmente e dar uma nova cor às suas vidas (note-se o guarda-roupa de Lou, bastante colorido e excêntrico). Trata-se de uma história de família, mas acima de tudo é uma história sobre a coragem e o esforço necessários para retomar a vida quando tudo parece acabado. Existe uma relação de semelhança entre as histórias de amor do filme e da obra de Saramago. Em ambas, a personagem feminina é subalterna da personagem masculina, de quem cuida extremosamente. As personagens masculinas também têm traços em comum: Will está fisicamente paralisado, Reis também o está de certa forma, pela passividade com que assiste ao «espetáculo do mundo». Nos dois casos, a vivência do amor é espartilhada pelo estatuto sociocultural e pelas personalidades bem diferentes e vincadas dos elementos dos pares amorosos. A força do amor transforma as personagens, fá-las viver realmente, aparece como estímulo revitalizador nas suas vidas.

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Unidade 4 // JOSÉ SARAMAGO

Deambulação geográfica e viagem literária

PROFESSOR

MC

Oralidade 1.1; 1.4; 1.3. Educação Literária 14.1; 14.2; 14.3; 14.4; 14.6; 15.1; 15.2.

PONTO DE PARTIDA

1. Relaciona os elementos presentes na pintura de Paul Klee com o título do excerto.

Ponto de Partida 1. Há uma relação de semelhança entre os elementos da pintura e o título, remetendo ambos para a pluralidade na unidade do «nós» (título) e moldura/espelho (pintura). Educação Literária 1. O texto insere-se no início da ação, após a chegada de Ricardo Reis ao Hotel Bragança, no momento em que arruma os seus «papéis». 2. Os excertos que correspondem à poética de Ricardo Reis são os seguintes: «Mestre, são plácidas todas as horas que nós perdemos, se no perdê-las, qual numa jarra, nós pomos flores, e seguindo concluía, Da vida iremos tranquilos, tendo nem o remorso de ter vivido.» (ll. 3-5) e «Vivem em nós inúmeros, se penso ou sinto, ignoro quem é que pensa ou sente, sou somente o lugar onde se pensa e sente, e, não acabando aqui, é como se acabasse, uma vez que para além de pensar e sentir não há mais nada.» (ll. 9-12).

Paul Klee, Algumas divindades, 1924.

EDUCAÇÃO LITERÁRIA

Eu sou múltiplo [Capítulo I]

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cf. a totalidade dos poemas em: 10

▪ Documento Poemas «Mestre, são plácidas» e «Vivem em nós inúmeros», de Ricardo Reis ▪ Áudio (CD2 – Faixas n.o 17 e 18) Poemas «Mestre, são plácidas» e «Vivem em nós inúmeros», de Ricardo Reis 3. O primeiro poema é o mais antigo, data de doze de junho de mil novecentos e catorze (o ano «triunfal» da criação dos heterónimos pessoanos); o segundo poema, o mais recente, está datado de treze de novembro de mil novecentos e trinta e cinco (lembre-se que Fernando Pessoa faleceu no dia trinta de novembro do mesmo ano). Esta preocupação em datar cumpre dois propósitos: torna mais verosímil a matéria literária e demarca nitidamente a personagem Ricardo Reis de Fernando Pessoa. 4. A temática é a multiplicidade do eu que provoca o desconhecimento de si próprio. Estes versos conduzem a uma reflexão interior de Ricardo Reis-personagem, levantando questões de índole existencial, como, por exemplo: «quantos inúmeros que em mim vivem, eu sou qual» (l. 16); «que pensamentos e sensações serão os que não partilho por só me pertencerem» (ll. 16-17).

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E há papéis para guardar, estas folhas escritas com versos, datada a mais antiga de doze de junho de mil novecentos e catorze, vinha aí a guerra, a Grande, como depois passaram a chamar-lhe enquanto não faziam outra maior, Mestre, são plácidas todas as horas que nós perdemos, se no perdê-las, qual numa jarra, nós pomos flores, e seguindo concluía, Da vida iremos tranquilos, tendo nem o remorso de ter vivido. Não é assim, de enfiada, que estão escritos, cada linha leva seu verso obediente, mas desta maneira, contínuos, eles e nós, sem outra pausa que a da respiração e do canto, é que os lemos, e a folha mais recente de todas tem a data de treze de novembro de mil novecentos e trinta e cinco, passou mês e meio sobre tê-la escrito, ainda folha de pouco tempo, e diz, Vivem em nós inúmeros, se penso ou sinto, ignoro quem é que pensa ou sente, sou somente o lugar onde se pensa e sente, e, não acabando aqui, é como se acabasse, uma vez que para além de pensar e sentir não há mais nada. Se somente isto sou, pensa Ricardo Reis depois de ler, quem estará pensando agora o que eu penso, ou penso que estou pensando no lugar que sou de pensar, quem estará sentindo o que sinto, ou sinto que estou sentindo no lugar que sou de sentir, quem se serve de mim para sentir e pensar, e, de quantos inúmeros que em mim vivem, eu sou qual, quem, Quain, que pensamentos e sensações serão os que não partilho por só me pertencerem, quem sou eu que outros não sejam ou tenham sido ou venham a ser. Juntou os papéis, vinte anos dia sobre dia, folha após folha, guardou-os numa gaveta da pequena secretária, fechou as janelas, e pôs a correr a água quente para se lavar. Passava um pouco das sete horas. José Saramago, op. cit., [cap. I], 1984, pp. 27-28.

1. Insere o texto na estrutura da obra. 2. Delimita os excertos que correspondem à poética de Ricardo Reis. 3. Refere a data da publicação dos poemas a que os excertos pertencem e explicita a importância dessa datação. 4. Identifica a temática dos últimos versos e o efeito que produzem sobre Ricardo Reis.

O Ano da Morte de Ricardo Reis – Deambulação geográfica e viagem literária

EDUCAÇÃO LITERÁRIA

PROFESSOR

A cidade dezasseis anos depois

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[Capítulo III]

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Deixou de chover, o céu aclarou, pode Ricardo Reis, sem risco de molha incómoda, dar um passeio antes do almoço. Para baixo não vai, que a cheia ainda não se retirou completamente do Cais do Sodré, as pedras estão cobertas de lodo fétido1, o que a corrente do rio levantou da vasa2 funda e viscosa, se o tempo se conservar assim virão os homens da limpeza com as agulhetas, a água sujou, a água lavará, bendita seja a água. […] Enquanto se vai subindo a Rua do Alecrim, pelas calhas dos elétricos ainda correm regueirinhos3 de água, o mundo não consegue estar quieto, é o vento que sopra, são as nuvens que voam, da chuva nem se fala, tanta tem sido. Ricardo Reis para diante da estátua de Eça de Queirós, ou Queiroz, por cabal respeito da ortografia que o dono do nome usou, ai como podem ser diferentes as maneiras de escrever, e o nome ainda é o menos, assombroso é falarem estes a mesma língua e serem, um Reis, o outro, Eça, provavelmente a língua é que vai escolhendo os escritores de que precisa, serve-se deles para que exprimam uma parte pequena do que é, quando a língua tiver dito tudo, e calado, sempre quero ver como iremos nós viver. Já as primeiras dificuldades começam a surgir, ou não serão ainda dificuldades, antes diferentes e questionadoras camadas do sentido, sedimentos removidos, novas cristalizações, por exemplo, Sobre a nudez forte da verdade o manto diáfano4 da fantasia, parece clara a sentença, clara, fechada e conclusa, uma criança será capaz de perceber e ir ao exame repetir sem se enganar, mas essa mesma criança perceberia e repetiria com igual convicção um novo dito, Sobre a nudez forte da fantasia o manto diáfano da verdade, e este dito, sim, dá muito mais que pensar, e saborosamente imaginar, sólida e nua a fantasia, diáfana apenas a verdade, se as sentenças viradas do avesso passarem a ser leis, que mundo faremos com elas, milagre é não endoidecerem os homens de cada vez que abrem a boca para falar. É instrutivo o passeio, ainda agora contemplámos o Eça e já podemos observar o Camões, a este não se lembraram de pôr-lhe versos no pedestal5, e se um pusessem qual poriam, Aqui, com grave dor, com triste acento, o melhor é deixar o pobre amargurado, subir o que falta da rua, da Misericórdia que já foi do Mundo, infelizmente não se pode ter tudo nem ao mesmo tempo, ou mundo ou misericórdia. Eis o antigo Largo de S. Roque, e a igreja do mesmo santo, […] dentro desta famosa igreja é que está a capela de S. João Baptista, a tal que foi encomendada a Itália pelo senhor D. João V, tão renomado monarca, rei pedreiro e arquiteto por excelência, haja vista o convento de Mafra, e outrossim o aqueduto das Águas Livres, cuja verdadeira história ainda está por contar. […] Este bairro é castiço, alto de nome e situação, baixo de costumes, alternam os ramos de louro às portas das tabernas com mulheres de meia-porta6, ainda que, por ser a hora matinal e estarem lavadas as ruas pelas grandes chuvas destes dias, se reconheça na atmosfera uma espécie de frescura inocente, um assopro7 virginal, quem tal diria em lugar de tanta perdição […]. Ricardo Reis atravessa o jardim8, vai olhar a cidade, o castelo com as suas muralhas derrubadas, o casario a cair pelas encostas. O sol branqueado bate nas telhas molhadas, desce sobre

Educação Literária 14.1; 14.2; 14.3; 14.4; 14.5; 15.1; 15.2. Oralidade 3.1; 5.1; 5.2; 5.3; 6.1; 6.2; 6.3.

▪ Apresentação em PowerPoint Da Rua do Alecrim ao jornal O Século

1 Vasa: lodaçal. 2 Fétido: malcheiroso. 3 Regueirinhos: pequenos cursos

de água. 4 Diáfano: delicado, fino, ténue. 5 Pedestal: suporte de pedra,

metal ou madeira, relativamente elevado, onde assenta uma estátua ou um objeto decorativo. 6 Mulheres de meia-porta: expressão usada para designar mulheres que vivem da prostituição. 7 Assopro: sopro. 8 Jardim: Jardim de São Pedro de Alcântara, onde se encontra uma estátua do Adamastor. Do seu miradouro consegue-se avistar grande parte da cidade de Lisboa.

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Unidade 4 // JOSÉ SARAMAGO

PROFESSOR

Educação Literária 1. O itinerário pela cidade de Lisboa começa na Rua do Alecrim, passa pelas estátuas de Eça de Queirós e de Luís de Camões (na Praça Luís de Camões); Ricardo Reis sobe a Rua da Misericórdia, atravessa o Largo de S. Roque e chega ao Bairro Alto. Do Jardim de São Pedro de Alcântara contempla o castelo e a sua encosta. Segue pela Rua de D. Pedro V até à Praça do Rio de Janeiro / Príncipe Real. Finalmente, desce a Rua do Século até à porta do jornal O Século. 2. A inscrição original, da autoria de Eça, é: «Sobre a nudez forte da verdade o manto diáfano da fantasia.» O «novo dito» é construído invertendo o seu sentido: «Sobre a nudez forte da fantasia o manto diáfano da verdade». Cria-se o mundo às avessas, em que a mentira, «fantasia», é que é sólida e a «verdade» ténue, frágil, visando uma possível crítica ao Estado Novo e às suas campanhas de propaganda. 3. Apesar da sua posição geográfica altaneira, o Bairro Alto caracteriza-se pela baixa condição social dos seus habitantes, associados até a um estilo de vida devasso e boémio («baixo de costumes»; «tabernas com mulheres de meia-porta»; «lugar de tanta perdição»).

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9 Lácios: relativos à região da

Itália central. 10 Zé-povinho do Bordalo: é uma

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personagem satírica, criada por Rafael Bordalo Pinheiro, que foi adotada como personificação do povo português e como símbolo de descontentamento face ao poder. Apolo do Belvedere: estátua de mármore do escultor grego Leocares, do ano 325 a.C, representando o deus Apolo. Vulgo: povo. Deferência: atenção respeitosa. Bodo: distribuição de alimentos, dinheiro e outros bens aos pobres, em dias festivos.

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a cidade um silêncio, todos os sons são abafados, em surdina, parece Lisboa que é feita de algodão, agora pingando. Em baixo, numa plataforma, estão uns bustos de pátrios varões, uns buxos, umas cabeças romanas, descondizentes, tão longe dos céus lácios9, é como ter posto o zé-povinho do Bordalo10 a fazer um toma ao Apolo do Belvedere11. Todo o miradouro é belvedere enquanto Apolo contemplamos, depois junta-se a voz à guitarra e canta-se o fado. Parece que a chuva se afastou de todo. […] Ricardo Reis rebusca na memória fragmentos de versos que já levam vinte anos de feitos, como o tempo passa, Deus triste, preciso talvez porque nenhum havia como tu, Nem mais nem menos és, mas outro deus, Não a ti, Cristo, odeio ou menosprezo, Mas cuida não procures usurpar o que aos outros é devido, Nós homens nos façamos unidos pelos deuses, são estas as palavras que vai murmurando enquanto segue pela Rua de D. Pedro V, como se identificasse fósseis ou restos de antigas civilizações, e há um momento em que duvida se terão mais sentido as odes completas aonde os foi buscar do que este juntar avulso de pedaços ainda coerentes, porém já corroídos pela ausência do que estava antes ou vem depois, e contraditoriamente afirmando, na sua própria mutilação, um outro sentido fechado, definitivo, como é o que parecem ter as epígrafes postas à entrada dos livros. […] A Ricardo Reis distraiu-o também da pergunta que a si próprio fizera ter chegado à Praça do Rio de Janeiro, que foi do Príncipe Real e quiçá o torne a ser um dia, quem viver verá. […] Ricardo Reis aconchega a gabardina ao corpo, friorento, atravessa de cá para lá, por outras alamedas regressa, agora vai descer a Rua do Século, nem sabe o que o terá decidido, sendo tão ermo e melancólico o lugar, alguns antigos palácios, casas baixinhas, estreitas, de gente popular, ao menos o pessoal nobre de outros tempos não era de melindres, aceitava viver paredes meias com o vulgo12, ai de nós, pelo caminho que as coisas levam, ainda veremos bairros exclusivos, só residências, para a burguesia de finança e fábrica, que então terá engolido da aristocracia o que resta, com garagem própria, jardim à proporção, cães que ladrem violentamente ao viajante, até nos cães se há de notar a diferença, em eras distantes tanto mordiam a uns como a outros. Vai Ricardo Reis descendo a rua, sem nenhuma pressa, fazendo do guarda-chuva bengala, com a ponteira dele bate as pedras do passeio, em conjunção com o pé do mesmo lado, é um som preciso, muito nítido e claro, sem eco, mas de certa maneira líquido, se não é absurda a palavra, dizermos que é líquido, ou assim parece, o choque do ferro e do calcário, com estes pensamentos pueris se distrai, quando de repente se apercebe, ele, dos seus próprios passos, como se desde que saiu do hotel não tivesse encontrado vivalma, e isto mesmo juraria, em consciência, se fosse chamado a jurar, que não viu ninguém até chegar aqui, como é possível, meu caro senhor, uma cidade que nem é das mais pequenas, onde foi que se meteram as pessoas. […]

O Ano da Morte de Ricardo Reis – Deambulação geográfica e viagem literária

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Ricardo Reis alcançou o meio da rua, está defronte da entrada do grande prédio do jornal O Século, o de maior expansão e circulação, a multidão alarga-se, mais folgada, pela meia-laranja que com ele entesta […]. À entrada estão dois polícias, aqui perto outros dois que disciplinam o acesso, a um deles vai Ricardo Reis perguntar, Que ajuntamento é este, senhor guarda, e o agente de autoridade responde com deferência13, vê-se logo que o perguntador está aqui por um acaso, É o bodo14 do Século, Mas é uma multidão, Saiba vossa senhoria que se calculam em mais de mil os contemplados, Tudo gente pobre, Sim senhor, tudo gente pobre, dos pátios e barracas, Tantos, E não estão aqui todos, Claro, mas assim todos juntos, ao bodo, faz impressão, A mim não, já estou habituado, E o que é que recebem, A cada pobre calha dez escudos, Dez escudos, É verdade, dez escudos, e os garotos levam agasalhos, e brinquedos, e livros de leitura, Por causa da instrução, Sim senhor, por causa da instrução, Dez escudos não dá para muito, Sempre é melhor que nada, Lá isso é verdade, Há quem esteja o ano inteiro à espera do bodo, deste e dos outros, olhe que não falta quem passe o tempo a correr de bodo para bodo, à colheita, o pior é quando aparecem em sítios onde não são conhecidos, outros bairros, outras paróquias, outras beneficências, os pobres de lá nem os deixam chegar-se, cada pobre é fiscal doutro pobre, Caso triste, Triste será, mas é bem feito, para aprenderem a não ser aproveitadores, Muito obrigado pelas suas informações, senhor guarda, Às ordens de vossa senhoria, passe vossa senhoria por aqui […]. José Saramago, op. cit., [cap. III], pp. 78-91.

1. Reconstitui o itinerário geográfico de Ricardo Reis até ao jornal O Século. 2. Explica como é construído o «novo dito» inscrito na estátua de Eça e o efeito que produz. 3. Descreve o espaço social do Bairro Alto. 4. Esclarece o modo como o narrador viaja pelo tempo. 5. Comprova, através de dois exemplos, que a deambulação geográfica catalisa a viagem literária. 6. Apresenta duas interpretações plausíveis para «Triste será, mas é bem feito, para aprenderem a não ser aproveitadores» (ll. 98-99), tendo em conta o contexto narrativo em que ocorre. ORALIDADE

EXPRESSÃO ORAL Texto de opinião SIGA pp. 364-365

Texto de opinião 1. A partir das palavras de Saramago «junta-se a voz à guitarra e canta-se o fado», elabora um texto de opinião de quatro a seis minutos, no qual apresentes o teu ponto de vista acerca da importância do fado, enquanto expressão da alma nacional. Planifica o teu texto oral, elaborando um plano-suporte, com tópicos, argumentos e respetivos exemplos.

Amadeo de Souza-Cardoso, Pintura, 1917.

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PROFESSOR

Educação Literária 4. O narrador desloca-se agilmente no tempo – no passado, refere-se às construções de D. João V («rei pedreiro e arquiteto por excelência, haja vista o convento de Mafra, e outrossim o aqueduto das Águas Livres, cuja verdadeira história ainda está por contar», ll. 34-36) e faz alusões a um futuro que parece, profeticamente, conhecer («praça do Rio de Janeiro, que foi do Príncipe Real e quiçá o torne a ser um dia, quem viver verá», ll. 63-64 ; «ainda veremos bairros exclusivos, só residências, para a burguesia de finança e fábrica», ll. 69-70). 5. Há dois momentos em que tal é evidente: quando o narrador reflete sobre os escritores e a língua («provavelmente a língua é que vai escolhendo os escritores de que precisa», l. 12) e no momento em que recorda os próprios versos («Deus triste, preciso talvez porque nenhum havia como tu», l. 52). 6. O que para o polícia é a mais pura das verdades (os elementos do povo não passam de uns «aproveitadores» da beneficência alheia), resulta, no contexto da narrativa, em ironia, dado que evidencia, de uma forma sarcástica, a miséria em que a população vivia. Oralidade Sugestão de tópicos: O Fado tem uma importância ímpar na cultura portuguesa: • Estilo de música enraizado na cultura portuguesa, presente na tradição e vivo na modernidade, com nomes como: Amália, Carlos do Carmo, Camané, Ana Moura e Carminho,… • Expressão plena da cultura e da língua portuguesas, constitui um meio privilegiado entre os poetas e o público. • Apesar de ser genuinamente português, evoca sentimentos universais, como a dor, o ciúme, a solidão, o amor. • Por tudo isto, o Fado não só é a expressão da alma nacional, como é também (desde 2011) Património Imaterial da Humanidade.

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Unidade 4 // JOSÉ SARAMAGO

EDUCAÇÃO LITERÁRIA PROFESSOR

Texto A MC

Educação Literária 14.1; 14.2; 14.3; 14.4; 14.7; 14.9; 14.9; 16.2.

Primeira visita de Fernando Pessoa [Capítulo III]

Sugestão para leitura dos excertos: Leitura silenciosa. Distribuição dos papéis de narrador, Fernando Pessoa e Ricardo Reis. Leitura «dramatizada» do excerto.

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1 Olvido: esquecimento.

Ouvia os passos de Ricardo Reis no corredor, em tão completo sossego dá-se pelo mais leve ruído, não há luz em nenhum quarto, ou neles se dorme já ou estão desocupados, ao fundo brilha tenuemente a chapazinha do número duzentos e um, é então que Ricardo Reis repara que por baixo da sua porta passa uma réstia luminosa, ter-se-ia esquecido, enfim, são coisas que podem acontecer a qualquer, meteu a chave na fechadura, abriu, sentado no sofá estava um homem, reconheceu-o imediatamente apesar de não o ver há tantos anos, e não pensou que fosse acontecimento irregular estar ali à sua espera Fernando Pessoa, disse Olá, embora duvidasse de que ele lhe responderia, nem sempre o absurdo respeita a lógica, mas o caso é que respondeu, disse Viva, e estendeu-lhe a mão, depois abraçaram-se, Então como tem passado, um deles fez a pergunta, ou ambos, não importa averiguar, considerando a insignificância da frase. […] Olham-se ambos com simpatia, vê-se que estão contentes por se terem reencontrado depois da longa ausência, e é Fernando Pessoa quem primeiro fala, Soube que me foi visitar, eu não estava, mas disseram-me quando cheguei, e Ricardo Reis respondeu assim, Pensei que estivesse, pensei que nunca de lá saísse, Por enquanto saio, ainda tenho uns oito meses para circular à vontade, explicou Fernando Pessoa, Oito meses porquê, perguntou Ricardo Reis, e Fernando Pessoa esclareceu a informação, Contas certas, no geral e em média, são nove meses, tantos quantos os que andámos na barriga das nossas mães, acho que é por uma questão de equilíbrio, antes de nascermos ainda não nos podem ver mas todos os dias pensam em nós, depois de morrermos deixam de poder ver-nos e todos os dias nos vão esquecendo um pouco, salvo casos excecionais nove meses é quanto basta para o total olvido1, e agora diga-me você que é que o trouxe a Portugal. Ricardo Reis tirou a carteira do bolso interior do casaco, extraiu dela um papel dobrado, fez menção de o entregar a Fernando Pessoa, mas este recusou com um gesto, disse, Já não sei ler, leia você, e Ricardo Reis leu, Fernando Pessoa faleceu Stop Parto para Glasgow Stop Álvaro de Campos, quando recebi este telegrama decidi regressar, senti que era uma espécie de dever, É muito interessante o tom da comunica-

O Ano da Morte de Ricardo Reis – Deambulação geográfica e viagem literária

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ção, é o Álvaro de Campos por uma pena, mesmo em tão poucas palavras nota-se uma espécie de satisfação maligna, quase diria um sorriso, no fundo da sua pessoa o Álvaro é assim, […] E agora, vai ficar para sempre em Portugal, ou regressa a casa, Ainda não sei, apenas trouxe o indispensável, pode ser que me resolva a ficar, abrir consultório, fazer clientela, também pode acontecer que regresse ao Rio, não sei, por enquanto estou aqui, e, feitas todas as contas, creio que vim por você ter morrido, é como se, morto você, só eu pudesse preencher o espaço que ocupava, Nenhum vivo pode substituir um morto, Nenhum de nós é verdadeiramente vivo nem verdadeiramente morto, Bem dito, com essa faria você uma daquelas odes. José Saramago, op. cit., [cap. III], pp. 106-109.

Texto B

Nova visita de Fernando Pessoa [Capítulo V]

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Fechou por alguns segundos os olhos e quando os abriu estava Fernando Pessoa sentado aos pés da cama, como se viesse de visita a um doente, com aquela mesma expressão alheada que deixou em alguns retratos, as mãos cruzadas sobre a coxa direita, a cabeça ligeiramente descaída para diante, pálido. Pôs o livro de parte, entre as duas almofadas, Não o esperava a estas horas, disse, e sorriu, amável, para que ele não notasse a impaciência do tom, a ambiguidade das palavras, que tudo isto junto significaria, Escusava bem de ter vindo hoje. […] Nada mais natural que entrar-lhe Lídia pelo quarto dentro, não que houvesse o perigo de se pôr ali aos gritos, Acudam, um fantasma, mas porque Fernando Pessoa, embora lhe não estivesse no feitio, podia querer deixar-se ficar, coberto pela sua invisibilidade, ainda assim intermitente segundo os humores da ocasião, a assistir às intimidades carnais e sentimentais, não seria nada impossível, Deus, que é Deus, costuma fazê-lo, nem o pode evitar, se está em toda a parte, mas a este já nos habituámos. Apelou para a cumplicidade masculina, Não vamos poder conversar muito tempo, talvez me apareça aí uma visita, há de concordar que seria embaraçoso, Você não perde tempo, ainda não há três semanas que chegou, e já recebe visitas galantes, presumo que serão galantes, Depende do que se queira entender por galante, é uma criada do hotel, Meu caro Reis, você, um esteta1, íntimo de todas as deusas do Olimpo, a abrir os lençóis da sua cama a uma criada de hotel, a uma serviçal, eu que me habituei a ouvi-lo falar a toda a hora, com admirável constância, das suas Lídias, Neeras e Cloes, e agora sai-me cativo duma criada, que grande deceção, Esta criada chama-se Lídia, e eu não estou cativo, nem sou homem de cativeiro, Ah, ah, afinal a tão falada justiça poética sempre existe, tem graça a situação, tanto você chamou por Lídia, que Lídia veio, teve mais sorte que o Camões, esse, para ter uma Natércia precisou de inventar o nome e daí não passou, Veio o nome de Lídia, não veio a mulher, Não seja ingrato, você sabe lá que mulher seria a Lídia das suas odes, admitindo que exista tal fenómeno, essa impossível soma de passividade, silêncio sábio e puro espírito, É duvidoso, de facto, Tão duvidoso como existir,

1 Esteta: aquele que estuda e

cultiva a estética artística.

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Unidade 4 // JOSÉ SARAMAGO

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Educação Literária

▪ Apresentação em PowerPoint Correção da atividade 1

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de facto, o poeta que escreveu as suas odes, Esse sou eu, Permita-me que exprima as minhas dúvidas, caríssimo Reis, vejo-o aí a ler um romance policial, com uma botija aos pés, à espera duma criada que lhe venha aquecer o resto, rogo-lhe que não se melindre com a crueza da linguagem, e quer que eu acredite que esse homem é aquele mesmo que escreveu Sereno e vendo a vida à distância a que está, é caso para perguntar-lhe onde é que estava quando viu a vida a essa distância, Você disse que o poeta é um fingidor, Eu o confesso, são adivinhações que nos saem pela boca sem que saibamos que caminho andámos para lá chegar, o pior é que morri antes de ter percebido se é o poeta que se finge de homem ou o homem que se finge de poeta, Fingir e fingir-se não é o mesmo, Isso é uma afirmação, ou uma pergunta, É uma pergunta, Claro que não é o mesmo, eu apenas fingi, você finge-se, se quiser ver onde estão as diferenças, leia-me e volte a ler-se, Com esta conversa, o que você está a preparar-me é uma boa noite de insónia, Talvez a sua Lídia ainda venha por aí embalá-lo, pelo que tenho ouvido dizer as criadas que se dedicam aos patrões são muito carinhosas, Parece-me o comentário de um despeitado, Provavelmente, Diga-me só uma coisa, é como poeta que eu finjo, ou como homem, O seu caso, Reis amigo, não tem remédio, você, simplesmente, finge-se, é fingimento de si mesmo, e isso já nada tem que ver com o homem e com o poeta, Não tenho remédio, É outra pergunta, É, Não tem porque, primeiro que tudo, você nem sabe quem seja, E você, alguma vez o soube, Eu já não conto, morri, mas descanse que não vai faltar quem dê de mim todas as explicações, Talvez que eu tenha voltado a Portugal para saber quem sou, Tolice, meu caro, criancice, alumbramentos assim só em romances místicos e estradas que vão a Damasco, nunca se esqueça de que estamos em Lisboa, daqui não partem estradas, Tenho sono, Vou deixá-lo dormir, realmente é essa a única coisa que lhe invejo, dormir, só os imbecis é que dizem que o sono é primo da morte, primo ou irmão, não me lembro bem, Primo, creio eu […]. José Saramago, op. cit., [cap. V], pp. 157-159.

1. A pares, reflete sobre os seguintes tópicos. • Interlocutores e contexto do encontro. • Viagens literárias (referências poéticas). • Explicitação do sentido de excertos textuais: Texto A – «Nenhum de nós é verdadeiramente vivo nem verdadeiramente morto» (l. 35).

Texto B – «você, simplesmente, finge-se, é fingimento de si mesmo» (ll. 46-47). • Tom oralizante e pontuação. • Recursos expressivos (um de cada texto) e respetivos valores. • Reprodução do discurso no discurso.

O Ano da Morte de Ricardo Reis – Deambulação geográfica e viagem literária

Intertextualidade: José Saramago, leitor de Luís de Camões, Cesário Verde e Fernando Pessoa PONTO DE PARTIDA

1. Identifica a técnica cinematográfica referida em Mixórdia de Temáticas, de Ricardo Araújo Pereira.

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PROFESSOR

MC

Oralidade 1.1; 1.3; 2.1. Educação Literária 14.1; 14.2; 14.3; 14.4; 14.7; 15.1; 15.2; 16.2. Gramática 18.2.

Ponto de Partida

EDUCAÇÃO LITERÁRIA

Lê o seguinte texto.

Ricardo Reis e Cesário [Capítulo XII]

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[D]esce Ricardo Reis do elétrico, com isto já passa das dez, poucas são as pessoas que andam fora de casa, nas altas fachadas dos prédios quase não se veem luzes […]. Ricardo Reis segue pela Rua de Saraiva de Carvalho, na direção do cemitério, à medida que se aproxima tornam-se os passantes mais raros, ainda está longe do seu destino e já vai sozinho, desaparece nas zonas de sombra que há entre dois candeeiros, ressurge à luz amarelada, adiante, no escuro, ouviu-se um rumor de chaves, é o guarda-noturno da área que começa a ronda. Ricardo Reis atravessa o largo direito ao portão fechado. O sereno olha-o de longe, depois segue caminho, alguém que vai chorar a sua dor a estas noturnas horas, ter-lhe-á morrido a mulher, ou um filho, coitado. […] Ricardo Reis aproxima-se das grades, toca-lhes com as mãos, de dentro, quase inaudível, vem um sussurro, é a aragem circulando entre os ramículos dos ciprestes, pobres árvores que nem folhas têm, mas isto é a ilusão dos sentidos, o rumor que estamos ouvindo é apenas o da respiração de quem dorme naqueles prédios altos, e nestas casas baixas fora dos muros, um arzinho de música, o bafo das palavras […]. José Saramago, op. cit., [cap. XII], pp. 377-378.

1. Estabelece a correspondência entre excertos do texto e alguns versos da parte IV – «Horas mortas» – do poema «O sentimento dum Ocidental», de Cesário Verde. O Ano da Morte de Ricardo Reis

«Horas mortas»

a) «entre dois candeeiros, ressurge à luz amarelada, adiante, no escuro» (l. 5)

1. «Pois sobem, no silêncio, infaustas e trinadas, / As notas pastoris de uma longínqua flauta.» (vv. 11-12)

b) «ouviu-se um rumor de chaves, é o guarda-noturno» (l. 6)

2. «Amareladamente, os cães parecem lobos» (v. 36)

c) «Ricardo Reis atravessa o largo direito ao portão fechado» (l. 7) «Ricardo Reis aproxima-se das grades, toca-lhes com as mãos» (ll. 9-10)

3. «E os guardas, que revistam as escadas,/ Caminham de lanterna e servem de chaveiros» (vv. 37-38)

d) «a ilusão dos sentidos, o rumor que estamos ouvindo é apenas o da respiração de quem dorme naqueles prédios altos, e nestas casas baixas fora dos muros, um arzinho de música, o bafo das palavras» (ll. 12-14)

4. «Por baixo, que portões! Que arruamentos!» (v. 5) «Colocam-se taipais, rangem as fechaduras» (v. 7)

▪ Link Mixórdia de Temáticas, «Baltazar, o cineasta de Alcobaça» ▪ Documento «Horas mortas», Cesário Verde ▪ Áudio (CD2 – Faixa n.o 19) «Horas mortas», Cesário Verde 1. A técnica do «cineasta» Baltazar é basear-se em filmes famosos, como por exemplo, Christine, o Carro Assassino (de John Carpenter) ou ET, o Extraterrestre (de Steven Spielberg) e torná-los ainda mais interessantes. Assim, surgem, baseados nesses filmes (e em intertextualidade), Paula, a mota branqueadora de capitais e BT, o GNR. Educação Literária 1. a) – 2; b) – 3; c) – 4; d) – 1.

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Unidade 4 // JOSÉ SARAMAGO

EDUCAÇÃO LITERÁRIA

PROFESSOR

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Educação Literária 14.1; 14.2; 14.3; 14.4; 14.7; 15.1; 15.2; 16.2.

Ricardo Reis, Pessoa e Camões [Capítulo XVI]

Gramática 18.2. Educação Literária 1. Neste excerto, compara-se o contexto social do século XVI (em «apagada e vil tristeza») com a do ano de 1936, salientando-se que o contexto atual em que se vive é muito melhor. Deste contraste sobressai a ironia, dada a conjuntura socioeconómica a que o leitor tem acesso, durante a leitura da obra, e perante as palavras que se seguem, contradizendo essa melhoria de condições de vida: «não nos custa nada baixá-la até à penumbra, à escuridão total, às trevas originais, já estamos habituados.», ll. 8-10. Gramática 1. No primeiro momento, em «apagada e vil tristeza» (l. 4), há uma alusão aos versos que, no final de Os Lusíadas, retratam o estado da nação no século XVI aos olhos de Camões. No segundo momento, imitam-se, criativamente, as palavras de Cristo para Pedro, dizendo que este O negaria três vezes antes de o galo cantar. Hiperbolizando para cem vezes, sugere-se a ideia de que também Fernando Pessoa irá ser «negado», isto é, negligenciado, maltratado. No terceiro momento, alude-se a uma ode de Ricardo Reis «Saudoso já deste verão que vejo, lágrimas para as flores dele emprego na lembrança invertida de quando hei de perdê-las» (ll. 26-27) (primeira parte) e «Transpostos os portais irreparáveis de cada ano, me antecipo a sombra em que hei de errar, sem flores, no abismo rumoroso.» (ll. 31-32) (segunda parte), inserida no universo da obra saramaguiana, como se tivesse sido escrita para Marcenda. Note-se ainda a referência a títulos de poemas de Mensagem, reforçando o facto de não ter havido nenhum momento dessa obra dedicado a Camões.

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À tarde, ao regressar do almoço, reparou que havia ramos de flores nos degraus da estátua de Camões, homenagem das associações de patriotas ao épico, ao cantor sublime das virtudes da raça, para que se entenda bem que não temos mais que ver com a apagada e vil tristeza de que padecíamos no século dezasseis, hoje somos um povo muito contente, acredite, logo à noite acenderemos aqui na praça uns projetores, o senhor Camões terá toda a sua figura iluminada, que digo eu, transfigurada pelo deslumbrante esplendor, bem sabemos que é cego do olho direito, deixe lá, ainda lhe ficou o esquerdo para nos ver, se achar que a luz é forte de mais para si, diga, não nos custa nada baixá-la até à penumbra, à escuridão total, às trevas originais, já estamos habituados. Tivesse Ricardo Reis saído nessa noite e encontraria Fernando Pessoa na Praça de Luís de Camões, sentado num daqueles bancos como quem vem apanhar a brisa, o mesmo desafogo procuraram famílias e outros solitários, e a luz é tanta como se fosse dia, as caras parecem elas tocadas pelo êxtase, percebe-se que seja esta a Festa da Raça. Quis Fernando Pessoa, na ocasião, recitar mentalmente aquele poema da Mensagem que está dedicado a Camões, e levou tempo a perceber que não há na Mensagem nenhum poema dedicado a Camões, parece impossível, só indo ver se acredita, de Ulisses a Sebastião não lhe escapou um, nem dos profetas se esqueceu, Bandarra e Vieira, e não teve uma palavrinha, uma só, para o Zarolho, e esta falta, omissão, ausência, fazem tremer as mãos de Fernando Pessoa, a consciência perguntou-lhe, Porquê, o inconsciente não sabe que resposta dar, então Luís de Camões sorri, a sua boca de bronze tem o sorriso inteligente de quem morreu há mais tempo, e diz, Foi inveja, meu querido Pessoa, mas deixe, não se atormente tanto, cá onde ambos estamos nada tem importância, um dia virá em que o negarão cem vezes, outro lhe há de chegar em que desejará que o neguem. A esta mesma hora, naquele segundo andar da Rua de Santa Catarina, Ricardo Reis tenta escrever um poema a Marcenda, para que amanhã não se diga que Marcenda passou em vão, Saudoso já deste verão que vejo, lágrimas para as flores dele emprego na lembrança invertida de quando hei de perdê-las, esta ficará sendo a primeira parte da ode […]. Meia hora depois, ou uma hora, ou quantas, que o tempo, neste fazer de versos, se detém ou precipita, ganhou forma e sentido o corpo intermédio, não é sequer o lamento que parecera, apenas o sábio saber do que não tem remédio, Transpostos os portais irreparáveis de cada ano, me antecipo a sombra em que hei de errar, sem flores, no abismo rumoroso. José Saramago, op. cit., [cap. XVI], pp. 490-492.

1. Explicita o contraste estabelecido em «para que se entenda bem Recursos expressivos SIGA p. 383 que não temos mais que ver com a apagada e vil tristeza de que padecíamos no século dezasseis, hoje somos um povo muito contente, acredite», identificando o recurso expressivo presente. GRAMÁTICA

1. Seleciona três manifestações de intertextualidade no texto, esclarecendo o efeito que produzem.

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Linguística textual: intertextualidade p. 268

O Ano da Morte de Ricardo Reis – Intertextualidade

PONTO DE PARTIDA

PROFESSOR

MC

1. Ouve e vê com atenção o vídeo da canção «O jogo», de Tiago Bettencourt, do álbum Jardim (2007). Explicita os dilemas do eu lírico e como se expressam, visualmente.

A derradeira viagem

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Gramática 17.1; 18.2; 19.3. Escrita 10.1; 11.1; 12.1; 12.2; 12.3; 12.4; 13.1. Ponto de Partida

[Capítulo XIX]

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Oralidade 1.1; 1.3; 2.1. Educação Literária 14.1; 14.2; 14.3; 14.4; 14.5; 14.7; 14.8; 14.9; 15.1; 15.2; 15.5; 16.2.

Marco Almeida, Tiago Bettencourt, no Sol da Caparica, 2015.

EDUCAÇÃO LITERÁRIA

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Então bateram à porta. Ricardo Reis correu, foi abrir, já prontos os braços para recolher a lacrimosa mulher, afinal era Fernando Pessoa, Ah, é você, Esperava outra pessoa, Se sabe o que aconteceu, deve calcular que sim, creio ter-lhe dito um dia que a Lídia tinha um irmão na Marinha, Morreu, Morreu. Estavam no quarto, Fernando Pessoa sentado aos pés da cama, Ricardo Reis numa cadeira. Anoitecera por completo. Meia hora passou assim, ouviram-se as pancadas de um relógio no andar de cima, É estranho, pensou Ricardo Reis, não me lembrava deste relógio, ou esqueci-me dele depois de o ter ouvido pela primeira vez. Fernando Pessoa tinha as mãos sobre o joelho, os dedos entrelaçados, estava de cabeça baixa. Sem se mexer, disse, Vim cá para lhe dizer que não tornaremos a ver-nos, Porquê, O meu tempo chegou ao fim, lembra-se de eu lhe ter dito que só tinha para uns meses, Lembro-me, Pois é isso, acabaram-se. Ricardo Reis subiu o nó da gravata, levantou-se, vestiu o casaco. Foi à mesa de cabeceira buscar The god of the labyrinth, meteu-o debaixo do braço, Então vamos, disse, Para onde é que você vai, Vou consigo, Devia ficar aqui, à espera da Lídia, Eu sei que devia, Para a consolar do desgosto de ter ficado sem o irmão, Não lhe posso valer, E esse livro, para que é, Apesar do tempo que tive, não cheguei a acabar de lê-lo, Não irá ter tempo, Terei o tempo todo, Engana-se, a leitura é a primeira virtude que se perde, lembra-se. Ricardo Reis abriu o livro, viu uns sinais incompreensíveis, uns riscos pretos, uma página suja, Já me custa ler, disse, mas mesmo assim vou levá-lo, Para quê, Deixo o mundo aliviado de um enigma. Saíram de casa, Fernando Pessoa ainda observou, Você não trouxe chapéu, Melhor do que eu sabe que não se usa lá. Estavam no passeio do jardim, olhavam as luzes pálidas do rio, a sombra ameaçadora dos montes. Então vamos, disse Fernando Pessoa, Vamos, disse Ricardo Reis. O Adamastor não se voltou para ver, parecia-lhe que desta vez ia ser capaz de dar o grande grito. Aqui, onde o mar se acabou e a terra espera. José Saramago, op. cit., [cap. XIX], p. 582.

1. Insere o excerto na estrutura interna da obra. 2. Quantifica a expressão temporal «uns meses» e refere-te ao seu simbolismo. 3. Relaciona o título do livro The god of the labyrinth com a «viagem» feita por Ricardo Reis. 4. Comenta a decisão de Ricardo Reis ao acompanhar Fernando Pessoa. 5. Compara a frase inicial «Aqui o mar acaba e a terra principia.» (p. 9) com a frase final da obra «Aqui, onde o mar se acabou e a terra espera.» (p. 582).

▪ Link «O jogo», Tiago Bettencourt Documento ▪ Letra da canção «O jogo» 1. Os dilemas são vários: o tempo passa e não é vivenciado na sua plenitude «Mais um dia em vão no jogo em que ninguém ganhou», «o tempo já passou e eu fugi»; o eu lírico não admite o sentimento de perda, separação, «Queres levar / Tudo o que é meu / E tudo o que eu / Não sei largar»… Visualmente, esse estado de conflito interior expressa-se, por exemplo, através da duplicação do eu, enquanto personagem do vídeo. Educação Literária 1. O texto insere-se no desfecho da ação da narrativa, após o estado de espírito letárgico e frágil que assolou Ricardo Reis. Neste excerto final, Reis decide acompanhar Pessoa na sua derradeira viagem. 2. Cerca de nove meses, o período em que é permitido aos mortos circularem pelo mundo dos vivos. O número nove reforça o triplo poder do número três e da tríade sagrada (Pai, Filho e Espírito Santo); simboliza a conclusão de um ciclo (associado ao período de gestação) e o início de um novo, simbolizando, assim, a eternidade. 3. The god of the labyrinth é trazido por esquecimento da biblioteca do Highland Brigade e acompanha Ricardo Reis nesta sua viagem geográfica e literária. Se tivéssemos de escolher uma metáfora para tal itinerário, elegeríamos a do labirinto: percurso solitário pelos meandros da cidade e da literatura portuguesa, com o objetivo de encontrar uma «saída», que poderá bem ser a eterna questão pessoana «Quem sou eu?», expressa logo no início da obra de Saramago: «eu sou qual, quem, Quain» (p. 28).

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Unidade 4 // JOSÉ SARAMAGO

PROFESSOR

4. Podendo optar por viver com Lídia e com o futuro filho, Reis escolhe o percurso mais fácil no «labirinto», anulando-se perante a figura do seu criador. Morre Pessoa e com ele Reis, porque não tem a coragem de viver a sua própria vida, de criar um projeto de vida pessoal. 5. A própria localização desses «versos» (primeira e última frases do livro) já é elucidativa acerca da sua relevância. Primeiramente, refira-se que são casos de intertextualidade com o célebre verso de Os Lusíadas («Onde a terra se acaba e o mar começa», III, 20, vv. 1-4), sendo, assim, uma viagem no tempo até Camões. No primeiro caso, fragmentariamente invertido, refere-se ao fim da viagem pelo mar e à chegada de Reis a Lisboa, onde nova viagem se enceta por terra. No último caso, remete-se para o fim de um ciclo marítimo e imperial que terminou para Portugal e para a atitude expectante do povo português – quer por uma nova «epopeia», quer por uma mudança político-social. Gramática 1.1 (C); 1.2 (C); 1.3 (B); 1.4 (C). Escrita ▪ Vídeo Trailer do filme Maze Runner: Correr ou Morrer, de Wes Ball 1. Labirinto: conjunto de percursos que dificulta e desorienta aqueles que o tentam atravessar. Tanto no trailer como na obra de Saramago, labirinto é metáfora de vida. • Na vida, também somos confrontados com vários itinerários, delineados pelas escolhas que fazemos, com o intuito de atingir os nossos objetivos – a «saída» do labirinto. • Consoante as nossas opções e o nosso livre-arbítrio, todos os dias construímos um percurso no grande labirinto da vida. Exemplos: as escolhas profissionais, académicas, de comportamento pessoal e social, que nos conduzirão ao fim do labirinto: à nossa realização pessoal e profissional. • Por outro lado, a metáfora do labirinto também pode aludir aos momentos «labirínticos», isto é, complicados e cheios de obstáculos, que enfrentamos no dia a dia. Exemplos: as contrariedades, os acidentes, as perdas… • Devemos encarar o labirinto da nossa vida com a calma possível, equilíbrio, lógica e resiliência. A dificuldade não reside na vida em si, coloca-se ao nível da transposição dos obstáculos que o labirinto da vida nos apresenta.

GRAMÁTICA

1. Para responderes aos itens de 1.1 a 1.4, seleciona a única opção que permite obter uma afirmação correta. 1.1 A oração destacada em «Se sabe o que aconteceu, deve calcular que sim» é uma subordinada (l. 3) (A) (B) (C) (D)

adjetiva relativa restritiva. adjetiva relativa apositiva. substantiva relativa sem antecedente. substantiva completiva.

Coordenação e subordinação SIGA pp. 373-374

1.2. Em «ouviram-se as pancadas de um relógio no andar de cima» (l. 6), os elementos destacados desempenham, a função sintática de (A) (B) (C) (D)

modificador apositivo do nome. complemento oblíquo. complemento do nome. modificador restritivo do nome.

Funções sintáticas SIGA pp. 372-373

1.3 No contexto em que ocorrem, os elementos destacados em «Apesar do tempo que tive, não cheguei a acabar de lê-lo» (l. 6) contribuem, respetivamente, para a coesão (A) (B) (C) (D)

frásica e referencial. interfrásica e referencial. interfrásica e lexical. referencial e frásica.

Coesão textual SIGA p. 377

1.4 O aspeto gramatical expresso em «Morreu, Morreu.» (l. 4) é (A) (B) (C) (D)

uma situação genérica. uma situação iterativa. perfetivo. imperfeitivo.

ESCRITA

Exposição sobre um tema 1. Tendo em conta o visionamento do trailer do filme Maze Runner: Correr ou Morrer (2014), de Wes Ball, e a presença do policial The god of the labyrinth, na obra de Saramago, redige um texto expositivo, de cento e trinta a cento e setenta palavras, sobre o tema: a vida é um labirinto. Fundamenta o teu ponto de vista recorrendo, no mínimo, a dois argumentos e ilustra cada um deles com, pelo menos, um exemplo significativo.

FI

Valor aspetual pp. 59-60

Exposição sobre um tema SIGA pp. 360-361

Ficha informativa

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FICHA INFORMATIVA 6 Intertextualidade: José Saramago, leitor de Luís de Camões, Cesário Verde e Fernando Pessoa

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O autor convida vários […] construtores de imagens para habitar a sua escrita. Torna presente as suas vozes, coloca-as ao lado de outras numa construção que convoca, como representação, a imagem do labirinto. […] São muitos os autores convidados para participarem desta cena de linguagem que recupera Lisboa no ano de 1936. E se Fernando Pessoa (e com ele Ricardo Reis e os outros «eus») é o principal convidado, muitos outros o acompanham. Esta forma de tornar presente o discurso do outro poderia aqui também ser lida (se nos lembrarmos de Caeiro) como um modo de amar. […] Entretanto, Fernando Pessoa também aparece como personagem e, portanto, possui vida própria neste livro. Uma vida diferente da que teve, ou das que teve, anteriormente. Outra vida, ou espécie de vida, isto é, a vida própria das personagens. Mas o que melhor particulariza a vida desta personagem é o facto de ela significar uma espécie de rumor da sua própria obra. Os versos de Fernando Pessoa passeiam pelo livro, abrem e fecham portas. São invisíveis a uns, mas nítidos a outros. Como a própria personagem, os versos não são fantasmas, não vêm de um outro mundo. Estão aí, fazem parte do mundo dos vivos. Como fazem parte, é uma outra questão. Camões, por outro lado, não é um convidado menor neste livro. Pode não possuir, como Fernando Pessoa, o movimento de ir e vir (é uma estátua), mas os seus versos movimentam ininterruptamente o percurso da narrativa. Poder-se-ia dizer até que os seus versos são caminhos em movimento. São rumores que apontam direções definidas, que orientam e produzem direções. Agora podemos enumerar outras grandes vozes que vêm juntar-se às de Camões e Pessoa. Esses companheiros chamam-se D. Dinis, Fernão Lopes, Garrett, Eça de Queirós e ainda muitos outros. […] Estamos diante de vários exemplos que poderiam ser multiplicados. No entanto, o que procuramos fazer é a demonstração das diferentes maneiras com que o narrador inclui a presença de fragmentos de textos de outros autores no seu próprio discurso. Há casos em que essa presença ocorre como uma referência explícita, uma citação localizada; mas […] há também a referência indireta [como acontece com a poética de Cesário Verde], a citação sem a nomeação da fonte, isto é, há a incorporação do fragmento que só passa a valer como tal se o leitor o localizar e reconhecer no entrecruzamento das vozes. Izabel Margato, «1936, o ano da morte de Ricardo Reis», in Revista de Estudos Saramaguianos, n.º 3, julho de 2016, pp. 38-41 (texto adaptado).

CONSOLIDA

1. A partir do excerto de Izabel Margato, explica como pode ser construída a intertextualidade na obra de Saramago.

Carlos Botelho, Calçada da Glória – Lisboa, 1950.

PROFESSOR

MC

Educação Literária 16.2. Gramática 18.4.

Consolida 1. A intertextualidade pode aparecer explícita no texto, através de versos que podemos facilmente identificar como sendo de um outro autor «convidado» a participar no universo literário saramaguiano (caso de Fernando Pessoa e de Camões). Porém, pode também surgir de forma mais «camuflada», sendo o elo com o autor do hipotexto mais difícil de estabelecer pelo leitor comum (caso de Cesário Verde).

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Unidade 4 // JOSÉ SARAMAGO

FICHA INFORMATIVA 7 Deambulação geográfica e viagem literária

PROFESSOR

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Leitura 7.1; 7.2; 7.3; 8.1.

1. O espetáculo do mundo

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1 «Lisbon revisited»: título de um

poema de Álvaro de Campos. 2 Laudatórios: elogiosos, panegí-

ricos.

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A viagem de Ricardo Reis é perfeitamente antiépica, a começar pela viagem de barco, voluntariamente escamoteada pelo discurso, que pretende inaugurar o tempo da terra: «Aqui o mar acaba e a terra começa.» […] No presente, o mar sabido não fornecerá material à nova epopeia e Portugal, que antes se definia pelo modelo Camoniano – «onde a terra se acaba e o mar começa» – perdeu o mar e só lhe restou a terra, onde, de volta, Ricardo Reis pisa para se aventurar em grandes caminhadas de reconhecimento por uma Lisboa que deixara há anos e por onde a nova experiência vai começar. […] O discurso falará dessa terra e de homens nessa terra, desse país de marinheiros naufragados em ondas de silêncio, violência e corrupção. […] Em terra, passeia por Lisboa, e no mapear a cidade – Rua do Alecrim, estátua do Eça, o Camões, o Largo de S. Roque ou o Adamastor, descendo outras vezes o Chiado – cada ponto desencadeia no sujeito Ricardo Reis um processo de divagação, onde o elemento exterior funciona mais como catalisador da subjetividade do que como valor em si. […] O deambular de Reis é um percurso interno, uma nova «Lisbon 1 15 revisited ». Poeta nascido do texto, o seu espaço é fundamentalmente o da literatura, daí não haver apenas um deambular físico – o da Lisboa revisitada – mas, paralelamente, um deambular textual – o da literatura revisitada. No corpo do romance tecem-se, então, outros discursos da produção pessoana ou camo20 niana, além de alusões à galeria de personagens do mundo ficcional, de textos poéticos variados e de frases históricas reconhecidamente famosas, sem esquecer as referências bíblicas não menos comuns. […] A primeira forma de fazer presente o texto poético é a alusão consciente da personagem à sua produção anterior e que constitui o acervo do heterónimo 25 Ricardo Reis. […] Nesse revisitar, os textos que, por coerência interna, só a poetas caberia, o grande eco anterior à produção pessoana é, evidentemente, Camões, que inaugura e encerra o livro, relido, transformado, mas presente. […] No labirinto que o faz sempre revisitado, o poder também se serve dele – que, estando 30 morto, já não pode lutar pelos seus direitos – servindo-se tendenciosamente dos seus textos, da sua produção, da sua obra. […] Lido em momentos laudatórios2, calado nos momentos críticos, o poeta foi usado e corrompido pela máquina política que castra a liberdade e desconhece os limites. […] Fernando Pessoa é uma das imagens avassaladoras do texto. A nível da estó35 ria é o motor dos acontecimentos, pois nada aconteceria, o romance mesmo não teria sentido sem o dado concreto da sua morte, libertadora do discurso novo, do novo Ricardo Reis e do novo Pessoa a quem a fantasia permitirá revisitar o seu tempo. […] Joshua Benoliel, Calçada do Sacramento, 1912.

Ficha informativa

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FICHA INFORMATIVA 8 40

A opção é a de, desde logo, não aproximar as duas identidades – a máscara e o homem – de modo a libertar Ricardo Reis-personagem do aprisionamento da morte, sem, entretanto, o afastar da identidade com o percurso passado. O romance oferece-lhe, na verdade, a chance de se criar para sempre ou de mergulhar para sempre no ficcional. Para tal opção terá ele nove meses – tempo para nascer ou morrer definitivamente. Teresa Cristina Cerdeira da Silva, «O Ano da Morte de Ricardo Reis», in José Saramago – entre a História e a ficção: uma saga de portugueses, Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1989, pp. 148-170.

2. A verdadeira viagem

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O projeto do romance é uma espécie de desafio de identidade que investe numa proposta clara: colocar face a face a alienação1, a situação de crise e o projeto revolucionário. Esse projeto é fundamentalmente o de permitir à consciência lúcida – liberta das amarras que a mantinham prisioneira a valores alheios – adquirir valores próprios, recuperar o seu centro, o saber real constantemente ocultado pela ideologia. Trata-se, pois, de uma situação de crise social da qual já não se pode resguardar. Desprotegido, sem escudo, sem viseira, ele adquire a possibilidade de ver e optar, de fazer a sua escolha diante o espetáculo do mundo. O eleito para tal experiência foi Ricardo Reis que, embora se tivesse contentado até então em ser sábio, vendo correr a vida e lá intervindo o mínimo possível, de modo a não se comprometer, era lúcido para reconhecer que o que lhe permitia viver hedonisticamente2, ignorando o sofrimento para acreditar no prazer, era um jogo, um fingimento, que lhe encobriam voluntariamente a verdade. Há, portanto, da parte do projeto narrativo, um duplo salto que a personagem deve empreender. Salto que o liberte do compromisso com a heteronímia pessoana e salto que lhe permita escapar aos grilhões do discurso ideológico fascista que domina Portugal. […] A despersonalização acompanha a sua última escolha – a de deixar de existir para ser, definitivamente, imagem composta por outrem, relido à sua revelia, com a tranquilidade final de não se obrigar a compor o seu destino, a traçar o seu rumo, a descobrir sozinho a saída do labirinto. Teresa Cristina Cerdeira da Silva, op. cit., pp. 167-182 (texto adaptado).

CONSOLIDA

1. Transcreve excertos do texto que confirmem ou neguem a veracidade das afirmações. a) b) c) d)

A viagem de Ricardo Reis institui-se como uma tentativa épica modernista. O deambular pela cidade de Lisboa desencadeia viagens literárias subjetivas. Ricardo Reis tem um ano para tomar decisões, relativamente ao seu projeto de vida. À personagem Ricardo Reis cabe fazer uma dupla libertação: do criador e da propaganda ideológica fascista.

PROFESSOR

Consolida 1. a) O seguinte excerto nega a afirmação: «A viagem de Ricardo Reis é perfeitamente antiépica a começar pela viagem de barco, voluntariamente escamoteada pelo discurso, que pretende inaugurar o tempo da terra: “Aqui o mar acaba e a terra começa”.», Texto 1 – l. 1-3. b) O seguinte excerto confirma a afirmação: «Em terra, passeia por Lisboa, e no mapear a cidade […] cada ponto desencadeia no sujeito Ricardo Reis um processo de divagação, onde o elemento exterior funciona mais como catalisador da subjetividade do que como valor em si.», Texto 1 – ll. 10-14. c) O seguinte excerto nega a afirmação: «Para tal opção terá ele nove meses – tempo para nascer ou morrer definitivamente.», Texto 1 – ll. 43-44. d) O seguinte excerto confirma a afirmação: «Salto que o liberte do compromisso com a heteronímia pessoana e salto que lhe permita escapar aos grilhões do discurso ideológico fascista que domina Portugal.», Texto 2 – ll. 14-16.

1 Alienação: afastamento, indi-

ferença. 2 Hedonisticamente: em con-

formidade com a filosofia segundo a qual o prazer é um bem supremo e atingi-lo deve ser um objetivo de vida.

300

Unidade 4 // JOSÉ SARAMAGO

SÍNTESE

O Ano da Morte de Ricardo Reis, José Saramago Representações do século XX • cidade envolta pela chuva, triste, cinzenta, sem qualquer atrativo, deserta e imóvel;

O espaço da cidade: Lisboa

• cidade de contrastes: – a opulência dos cafés históricos e dos teatros restaurados, o progresso (a capa dourada) ≠ a sujidade e o barulho dos mercados, os bairros pobres e degradados (o real); os bairros dos proscritos: a Mouraria (o real recusado); – uma burguesia rica e uma classe média remediada ≠ a pobreza extrema – os bodos: os incómodos da sociedade (o real a ocultar); – as festividades (Ano Novo, Carnaval e Páscoa): a festa, a alegria, a efusão, a esperança ≠ a tristeza, o desalento / a riqueza, as festas da alta sociedade ≠ a fome, as vítimas das inundações.

1936 (29 de dezembro de 1935 – 8 de setembro de 1936)

PORTUGAL Ditadura e centralidade da figura de Salazar: – a imagem do poder autoritário; – base ideológica do sistema: modelo Deus-Pátria-Família.

• O discurso do poder – a alienação e a contestação: – a imprensa, a literatura panfletária, a telefonia, o cinema enquanto veículos de intervenção e instrumentos de ação e de propaganda do regime (comprometimento com o discurso da ideologia e a sua ratificação). • A repressão e a ordem: – o discurso ideológico; – a atuação da PVDE. • O engajamento da juventude: – a Mocidade Portuguesa. • Os movimentos contra o regime (a consciência lúcida): – atos concretos de oposição organizada (a «Revolta dos Marinheiros»), ou mesmo individuais.

PROFESSOR

▪ Apresentação em PowerPoint Síntese da subunidade

EUROPA

• França: – regime de esquerda (Frente Popular). • Itália: – a influência fascista e nacionalista (o sonho da hegemonia europeia). • Alemanha: privilégio do modelo nazista (a imagem quase perfeita a reproduzir por Portugal): – semelhanças ideológicas entre os dois regimes, que mantêm relações próximas; – modelo verbal veiculado pelas Juventudes Hitlerianas («Nós não somos nada») surge como fundamento ideológico da Mocidade Portuguesa; • Espanha – ano da Guerra (cenário de instabilidade): – início do ano: vitória da esquerda nas eleições (agitação social); proximidade geográfica ameaçadora para o regime português; – golpe de estado conducente ao início da Guerra Civil: batalhas e massacres.

301

Representações do amor

Lídia

Marcenda

• Homónima da musa mais referida nas odes de Ricardo Reis, cuja beleza o atrai.

• Nome «gerundivo», original e fatídico («aquela que deve murchar»).

• Criada de hotel, trabalhadora, independente e responsável (aceita as consequências dos seus atos).

• Proveniente de Coimbra, de boas famílias; bela e débil.

• Representa a vida e a ligação com o mundo quotidiano e real.

• A sua mão esquerda está paralisada desde a morte da mãe.

• É uma mulher excecional: apesar da sua condição sociocultural, produz juízos/comentários de valor singular.

• Submissa ao pai e incapaz de tomar as suas próprias decisões, afigura-se como espelho de Ricardo Reis.

• Simboliza o amor incondicional, desinteressado e libertador.

• Simboliza o amor imaterial e impossível de se concretizar.

Ricardo Reis Incapacidade de decisão e de se adaptar ao mundo real: • não vive plenamente nenhum destes casos amorosos; • acobarda-se perante a gravidez de Lídia e de perfilhar o filho; • escreve um poema a Marcenda, sem revelar a sua identidade de poeta.

Deambulação geográfica e viagem literária

Lisboa (1935-36) • Recuperação de uma Lisboa paisagística, em que mortos e vivos circulam. • Mapeamento geográfico e social do centro urbano da metrópole. • A deambulação sugere um jogo de realidade/irrealidade: itinerários reais definidos versus recriações labirínticas e simbólicas da cidade.

Contaminação real/ ficcional • A deambulação geográfica catalisa a viagem literária. • Monumentos, ruas, o rio Tejo, a população lisboeta sugerem escritores e ficções literárias. • Encontros com o fantasma de Pessoa proporcionam discussões de índole filosófica, literária, existencialista,… • Revisitação da própria obra de Ricardo Reis.

Intertextualidade: José Saramago, leitor de Luís de Camões, Cesário Verde e Fernando Pessoa • Evocação, mais ou menos explícita, da lírica e épica camonianas, da poética de Cesário Verde (sobretudo de O Sentimento dum Ocidental) e do universo literário pessoano (ortónimo, heterónimo e semi-heterónimo). • Intertextualidade recorrente através de: imitação criativa, alusão, paráfrase, paródia, ...

302

MEMORIAL DO CONVENTO

Unidade 4 // JOSÉ SARAMAGO

Contextualização literária

PROFESSOR

MC

Leitura 7.1; 7.2; 7.3.

1. Um romance subversivo

Educação Literária 14.6.

▪ Link

Ler Mais e Melhor – «Memorial do Convento»

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[O] romance Memorial do Convento constitui, no conjunto da produção saramaguiana, uma verdadeira pedra angular: tanto do ponto de vista temático, como no que toca às estratégias narrativas nele instauradas, como pela peculiaridade do estilo; Memorial do Convento revelou-se um verdadeiro momento de viragem técnica e de refinamento ideológico, confirmando a adesão da ficção portuguesa contemporânea às preocupações e às orientações próprias de uma literatura pós-moderna. […] O seu traço [de José Saramago] mais evidente é o impulso para operar uma revisão da História, de um ponto de vista ideológico, que vem subverter imagens e heróis aparentemente estabilizados pela historiografia oficial. […] José Saramago valoriza a condição dos obscuros e anónimos, multidão esquecida cujo esforço coletivo foi, afinal, o motor da História; configura-se, assim, uma ficção em que se enuncia uma dinâmica histórica anti-individualista. Na História refigurada pela ficção vêm ao de cima as contingências e mesmo as fragilidades de mitos e de heróis que o discurso ficcional repensa e relativiza. Assim, a construção do Convento de Mafra é descrita e reenquadrada à luz dessa visão relativa e subversiva, que privilegia a figura de Baltasar Sete-Sóis, de Blimunda ou do padre Bartolomeu Lourenço e da sua passarola voadora […]. Carlos Reis, «Saramago», in José Augusto Cardoso Bernardes et al. (dir.), Biblos, Enciclopédia das Literaturas de Língua Portuguesa, vol. 2, Lisboa, Editorial Verbo, 1999, pp. 1147-1148.

2. O tempo de ontem, os olhos de hoje

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Eduardo Portugal, Convento de Mafra, Fachada Principal, s.d.

O título que definiu (pelos vistos de uma vez para sempre) que se me aplique o rótulo de romancista histórico é, sem dúvida, Memorial do Convento, romance que nasceu duma circunstância fortuita que passo a contar em meia dúzia de palavras. Um dia, estando em Mafra com algumas pessoas contemplando o Convento, pronunciei em voz alta: «Gostaria um dia de pôr isto num romance.» Provavelmente, se não as tivesse dito em voz alta, se simplesmente o tivesse pensado e permanecido em silêncio, a própria dimensão da tarefa me haveria intimidado tanto que talvez não tivesse sido capaz de escrever o livro. Aconteceu que, por pronunciar em voz alta aquilo que tinha pensado, me senti obrigado perante as pessoas que me tinham ouvido […]. Memorial do Convento [é] uma ficção sobre um dado tempo passado, mas visto da perspetiva do momento em que o autor se encontra, e com tudo aquilo que o autor é e tem: a sua formação, a sua interpretação do mundo, o modo como ele entende o processo de transformação das sociedades. Tudo isto à luz do tempo em que ele vive, e não com a preocupação de iluminar o que os focos do passado já tinham clarificado. Ver o tempo de ontem com os olhos de hoje. José Saramago, A Estátua e a Pedra, Lisboa, Fundação José Saramago, 2013, pp. 23-25.

Contextualização literária

Visão global da obra

303

PROFESSOR

Notas:

Memorial do Convento: estrutura externa e estrutura interna ESTRUTURA EXTERNA

ESTRUTURA INTERNA

CAPÍTULO I

• Relacionamento do rei D. João V com a rainha D. Maria Ana Josefa. • A promessa do monarca de construir um convento em Mafra caso a rainha lhe dê um herdeiro no prazo de um ano.

CAPÍTULO II

• Milagres atribuídos aos frades franciscanos. • Concretização do «milagre» da gravidez da rainha e, consequentemente, da promessa de edificação do convento há tanto desejado pela ordem de S. Francisco.

CAPÍTULO III

• Contrastes sociais: excesso de riqueza versus miséria extrema. • Procissão da penitência na Quaresma após os excessos do entrudo.

CAPÍTULO IV

• Apresentação de Baltasar Sete-Sóis, que regressa maneta da guerra e se dirige para Lisboa.

CAPÍTULO V

• A procissão de um auto de fé, no Rossio, onde Baltasar trava conhecimento com Blimunda e com o padre Bartolomeu Lourenço. • O ritual do «casamento» e a consumação do amor entre Baltasar e Blimunda.

CAPÍTULO VI

• Convite do padre Bartolomeu («O Voador») a Baltasar para o ajudar na construção da «passarola» – uma máquina voadora.

CAPÍTULO VII

• Nascimento e batizado da filha de D. João V e D. Maria Ana, a infanta D. Maria Bárbara. • Reafirmação da promessa do rei.

CAPÍTULO VIII

• Revelação de Blimunda a Baltasar sobre os seus poderes visionários. • Nascimento do segundo filho do casal real, o infante D. Pedro. • Escolha do Alto da Vela, em Mafra, para a edificação do convento.

CAPÍTULO IX

• Mudança de Baltasar e Blimunda para S. Sebastião da Pedreira, local onde decorrem os trabalhos de construção da «passarola». • Atribuição a Blimunda do nome Sete-Luas. • Viagem do padre Bartolomeu Lourenço à Holanda. • Descrição da tourada no Terreiro do Paço. • Partida de Blimunda e Baltasar para a casa paterna de Sete-Sóis, em Mafra.

CAPÍTULO X

• • • • •

Apresentação de Blimunda à família de Baltasar. Morte e funeral do príncipe D. Pedro e do sobrinho de Baltasar. Nascimento do terceiro filho do casal real, o infante D. José. Doença de D. João V. Intenções do infante D. Francisco de seduzir D. Maria Ana Josefa e de subir ao trono.

CAPÍTULO XI

• Regresso do padre Bartolomeu Lourenço da Holanda: revelação do segredo que possibilitará o voo da «passarola». • Início dos trabalhos de construção do convento.

CAPÍTULO XII

• Bênção da primeira pedra do convento presidida por D. João V. • Regresso de Blimunda e Baltasar a S. Sebastião da Pedreira a fim de recomeçarem os trabalhos na «passarola». • Construção paralela do convento e da «passarola».

CAPÍTULO XIII

• Decurso dos trabalhos de construção da «passarola»: início da recolha das «vontades» por Blimunda. • Realização da procissão do Corpo de Deus.

• Seguiu-se a 53.a edição de Memorial do Convento, Alfragide, Caminho, 2013. • Considerando as várias edições existentes da obra e a delimitação gráfica dos capítulos, optou-se pela numeração dos mesmos, de modo a facilitar a sua abordagem didática. • As ilustrações que acompanham os textos literários são da autoria de José Santa-Bárbara, in Vontades – Uma Leitura de «Memorial do Convento», 2.ª ed., Alfragide, Editorial Caminho, 2013. Consolida 1. A obra reatrata a época histórica do reinado de D. João V: a promessa do rei, a construção do Convento de Mafra e as referências, acontecimentos e figuras a estes ligadas. A par e em perfeita articulação, surge o caráter ficcional: a vida do par amoroso Baltasar e Blimunda e o seu contributo ímpar e fulcral para a construção e para o voo da passarola, sonho do padre Bartolomeu Lourenço.

304

Unidade 4 // JOSÉ SARAMAGO

Visão global da obra Memorial do Convento: estrutura externa e estrutura interna Estrutura externa

Estrutura interna

CAPÍTULO XIV

• Revelação a Domenico Scarlatti, professor de música da infanta D. Maria Bárbara, do projeto da «máquina voadora». • Bartolomeu Lourenço compõe o sermão do Corpo de Deus.

CAPÍTULO XV

• Epidemia de cólera e de febre-amarela em Lisboa: recolha das «vontades» por Blimunda. • Doença de Blimunda: cura através da música de Scarlatti.

CAPÍTULO XVI

• Concretização do sonho de voar na «passarola»: Bartolomeu, Baltasar e Blimunda sobrevoam as obras de construção do convento em Mafra. • Queda da «passarola» em Monte Junto. • Receios do padre Bartolomeu Lourenço relativamente ao Santo Ofício: fuga após tentativa de incendiar a «passarola». • Regresso de Baltasar e Blimunda a Mafra, depois de ocultarem a máquina voadora.

CAPÍTULO XVII

• Trabalho de Baltasar no convento. • Relato das obras de construção do convento e das acomodações dos trabalhadores – ilha da Madeira. • Anúncio a Baltasar e Blimunda, por Domenico Scarlatti, da morte do padre Bartolomeu Lourenço em Toledo, Espanha.

CAPÍTULO XVIII

• Apresentação dos avultados gastos da coroa com o convento. • Caracterização e apresentação de alguns dos trabalhadores do convento, que narram as suas histórias de vida.

CAPÍTULO XIX

• Transporte de uma pedra gigante de Pêro Pinheiro até Mafra. • Morte de um dos trabalhadores, Francisco Marques, esmagado por um carro de bois – a Epopeia da Pedra.

CAPÍTULO XX

• Deslocação de Baltasar e Blimunda ao Monte Junto para reparar eventuais estragos na «passarola». • Descrição da miséria e do esforço desumano dos trabalhadores do convento. • Morte do pai de Baltasar.

CAPÍTULO XXI

• Decisão de D. João V de ampliar o convento e da sagração do mesmo a 22 de junho de 1730, data do seu aniversário. • Recrutamento involuntário de homens para trabalhar no convento: o cortejo dos degredados.

CAPÍTULO XXII

• Celebração do casamento da infanta D. Maria Bárbara com o infante espanhol D. Fernando e de D. José com a infanta D. Mariana Vitória de Espanha.

CAPÍTULO XXIII

• Preparativos para o dia da sagração do convento. • Última noite de amor de Baltasar e Blimunda. • Ida de Baltasar ao Monte Junto e seu desaparecimento acidental na «máquina voadora».

CAPÍTULO XXIV

• Ida de Blimunda ao Monte Junto à procura de Baltasar. • Homicídio do frade dominicano que tenta violar Blimunda. • Celebração da sagração do convento ainda inacabado.

CAPÍTULO XXV

• Peregrinação de Blimunda durante nove anos em busca de Baltasar. • Reencontro do casal quando Baltasar está a ser queimado numa fogueira da Inquisição.

CONSOLIDA

1. Comprova, a partir da análise das sequências narrativas apresentadas, a coexistência e a articulação do caráter histórico e do caráter ficcional em Memorial do Convento.

Memorial do Convento – O título e as linhas de ação

O título e as linhas de ação

PROFESSOR

MC PONTO DE PARTIDA

1. Visiona a introdução do documentário Grandes Livros − Memorial do Convento e toma apontamentos sobre os seguintes tópicos: a) época da História de Portugal a que se faz referência e génese da obra arquitetónica aludida; b) a obra referida enquanto ponto de partida para o que Saramago quis contar.

305

Oralidade 2.1. Educação Literária 14.2; 14.3; 14.4; 15.3.

▪ Apresentação em PowerPoint Texto narrativo (características) Ponto de Partida Grandes Livros – Memorial do Convento

EDUCAÇÃO LITERÁRIA

1. Atenta no seguinte verbete de dicionário: memorial n. m. 1. relato de factos ou pessoas memoráveis; […]; 2. monumento erguido em homenagem ou memória de algum acontecimento ou pessoa(s) […] / adj. 2 gén. […]; 3. digno de ficar na memória; memorável. Dicionário Infopédia da Língua Portuguesa [em linha].

1.1 Comprova a presença das dimensões temporal e espacial no título Memorial do Convento. 2. Lê o texto da contracapa, que a seguir se transcreve:

Era uma vez um rei que fez a promessa de levantar um convento em Mafra. Era uma vez a gente que construiu esse convento. Era uma vez um soldado maneta e uma mulher que tinha poderes. Era uma vez um padre que queria voar e morreu doido. Era uma vez. in Memorial do Convento, Alfragide, Editorial Caminho, 2013 (contracapa).

2.1 A leitura deste texto permite a identificação do fio condutor da ação e das três linhas que a compõem. Indica-os, fundamentando a tua resposta com elementos textuais. 2.2 Identifica a expressão que se repete anaforicamente no texto e explicita o seu sentido. 3. Apresenta sugestões relativamente ao assunto de Memorial do Convento, considerando a relação entre as várias definições do verbete de dicionário e a análise efetuada do título e do texto da contracapa.

▪ Link Grandes Livros – «Memorial do Convento» a) A época é a do reinado de D. João V, sendo a génese do Convento de Mafra a promessa do rei de mandar construir um convento em Mafra se a rainha lhe desse um herdeiro; b) A construção do Convento é o ponto de partida para fazer entrar em cena os protagonistas que Saramago quis resgatar e salvar do esquecimento da História. Educação Literária 1.1 «Memorial» aponta para um recuo no tempo, para um registo memorável do passado (dimensão temporal), e «Convento» para um espaço em concreto (ainda não identificado), indiciando o título que o livro abordará algo digno de ficar na memória relacionado com este espaço. 2.1 O fio condutor da ação é a construção do convento em Mafra, como se pode verificar nas duas referências à mesma: a promessa do rei «de levantar um convento em Mafra» e «a gente que [o] construiu», sendo esta a primeira linha que compõe a ação. A segunda linha será a história de um «soldado maneta» e de «uma mulher que tinha poderes» e a terceira a de «um padre que queria voar e morreu doido». 2.2 A expressão «Era uma vez», a fórmula inicial (ou incipit) dos contos tradicionais, surge em destaque pela reiteração, salientando a importância que o caráter ficcional assume em cada uma das “histórias”, onde também o caráter histórico se integra. 3. Memorial do Convento poderá ser, por um lado, o «relato de factos ou pessoas memoráveis», ou seja, o relato da promessa do rei D. João V, da construção do convento de Mafra, da gente que o construiu, do soldado maneta e da mulher que tinha poderes e do padre que queria voar. Por outro lado, o próprio livro poderá ser um «monumento em homenagem ou memória de algum acontecimento» (a promessa do rei e a construção do convento) ou de «pessoas» (a gente que o construiu, o casal e o padre referidos).

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Unidade 4 // JOSÉ SARAMAGO

Linha de ação: construção do convento, a epopeia do trabalho

PROFESSOR

MC

Educação Literária 14.1; 14.2; 14.3; 14.4; 14.5; 14.7; 14.8; 14.9; 15.1; 15.2; 15.3; 16.1.

Era uma vez um rei que fez promessa de levantar um convento em Mafra. Era uma vez a gente que construiu esse convento.

Oralidade 3.1; 4.2; 5.1; 5.2; 5.3.

in Memorial do Convento, Alfragide, Caminho, 2013 (excerto da contracapa).

Gramática 19.4.

PONTO DE PARTIDA

Ponto de Partida 1.1 O teor lúdico do passatempo do rei de construir monumentos em miniatura, neste caso o Convento de Mafra, e a futilidade a este associada, contrastam nitidamente com o esforço e o trabalho árduo de construção de um convento real, levada a cabo por homens do povo («Era uma vez a gente que construiu esse convento»), somente por causa de um capricho do monarca: a «promessa de levantar um convento em Mafra».

1. Observa a ilustração que retrata ironicamente os passatempos de D. João V, destacando-se a construção de monumentos em miniatura. 1.1 Partilha com os teus colegas o teu ponto de vista acerca de uma possível relação entre o destaque deste passatempo e o excerto inicial do texto da contracapa de Memorial do Convento, acima apresentado.

EDUCAÇÃO LITERÁRIA

A promessa do rei

Sugestão transversal para a leitura dos excertos: • Leitura silenciosa. • Leitura dramatizada dos excertos: distribuição dos papéis do narrador e das personagens intervenientes.

[Capítulo I]

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Nota: As ilustrações que acompanham os textos literários são da autoria de José Santa-Bárbara, in Vontades – Uma Leitura de «Memorial do Convento», 2.ª 20 ed., Alfragide, Editorial Caminho, 2013.

D. João, quinto do nome na tabela real, irá esta noite ao quarto de sua mulher, D. Maria Ana Josefa, que chegou há mais de dois anos da Áustria para dar infantes à coroa portuguesa e até hoje ainda não emprenhou1. Já se murmura na corte, dentro e fora do palácio, que a rainha, provavelmente, tem a madre seca, insinuação muito resguardada de orelhas e bocas delatoras e que só entre íntimos se confia. Que caiba a culpa ao rei, nem pensar, primeiro porque a esterilidade não é mal dos homens, das mulheres sim, por isso são repudiadas tantas vezes, e segundo, material prova, se necessária ela fosse, porque abundam no reino bastardos da real semente e ainda agora a procissão vai na praça. Além disso, quem se extenua a implorar ao céu um filho não é o rei, mas a rainha, e também por duas razões. A primeira razão é que um rei, e ainda mais se de Portugal for, não pede o que unicamente está em seu poder dar, a segunda razão porque sendo a mulher, naturalmente, vaso de receber, há de ser naturalmente suplicante, tanto em novenas2 organizadas como em orações ocasionais. Mas nem a persistência do rei, que, salvo dificultação canónica3 ou impedimento fisiológico, duas vezes por semana cumpre vigorosamente o seu dever real e conjugal, nem a paciência e humildade da rainha que, a mais das preces, se sacrifica a uma imobilidade total depois de retirar-se de si e da cama o esposo, para que se não perturbem em seu gerativo acomodamento os líquidos comuns, escassos os seus por falta de estímulo e tempo, e cristianíssima retenção moral, pródigos os do soberano, como se espera de um homem que ainda não fez vinte e dois anos, nem isto nem aquilo fizeram inchar até hoje a barriga de D. Maria Ana. Mas Deus é grande.

1 Emprenhou: engravidou. 2 Novenas: conjunto de práticas religiosas

e de orações, de preces, que se repetem durante nove dias consecutivos.

3 Canónica: conforme aos cânones ou

aos dogmas da Igreja.

Memorial do Convento – Linhas de ação

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Quase tão grande como Deus é a basílica de S. Pedro de Roma que el-rei está a levantar. É uma construção sem caboucos nem alicerces, assenta em tampo de mesa que não precisaria ser tão sólido para a carga que suporta, miniatura de basílica dispersa em pedaços de encaixar, segundo o antigo sistema de macho e fêmea, que, à mão reverente, vão sendo colhidos pelos quatro camaristas4 de serviço. […] Agora só falta colocar a cúpula de Miguel Ângelo5, […] e a obra fica pronta. Se o poderoso som, que ecoara por toda a capela, pôde chegar, por salas e extensos corredores, ao quarto ou câmara onde a rainha espera, fique ela sabendo que seu marido vem aí. Que espere. Por enquanto, ainda el-rei está a preparar-se para a noite. Despiram-no os camaristas, vestiram-no com o trajo da função e do estilo, passadas as roupas de mão em mão tão reverentemente como relíquias de santas que tivessem trespassado donzelas, e isto se passa na presença de outros criados e pajens, este que abre o gavetão, aquele que afasta a cortina, um que levanta a luz, outro que lhe modera o brilho, dois que não se movem, dois que imitam estes, mais uns tantos que não se sabe o que fazem nem por que estão. Enfim, de tanto se esforçarem todos ficou preparado el-rei, um dos fidalgos retifica a prega final, outro ajusta o cabeção6 bordado, já não tarda um minuto que D. João V se encaminhe ao quarto da rainha. O cântaro está à espera da fonte. Mas vem agora entrando D. Nuno da Cunha, que é o bispo inquisidor, e traz consigo um franciscano velho. Entre passar adiante e dizer o recado há vénias complicadas, floreios de aproximação, pausas e recuos, que são as fórmulas de acesso à vizinhança do rei, e a tudo isto teremos de dar por feito e explicado, vista a pressa que traz o bispo e considerando o tremor inspirado do frade. Retiram-se a uma parte D. João V e o inquisidor, e este diz, Aquele que além está é frei António de S. José, a quem falando-lhe eu sobre a tristeza de vossa majestade por lhe não dar filhos a rainha nossa senhora, pedi que encomendasse vossa majestade a Deus para que lhe desse sucessão, e ele me respondeu que vossa majestade terá filhos se quiser, e então perguntei-lhe que queria ele significar com tão obscuras palavras, porquanto é sabido que filhos quer vossa majestade ter, e ele respondeu-me, palavras enfim muito claras, que se vossa majestade prometesse levantar um convento na vila de Mafra Deus lhe daria sucessão, e tendo declarado isto, calou-se D. Nuno e fez um aceno ao arrábido7. Perguntou el-rei, É verdade o que acaba de dizer-me sua eminência, que se eu prometer levantar um convento em Mafra terei filhos, e o frade respondeu, Verdade é, senhor, porém só se o convento for franciscano, e tornou el-rei, Como sabeis, e frei António

«Os passatempos d’El-Rei».

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PROFESSOR

Educação Literária 1. D. João V e a rainha D. Maria Ana Josefa estavam casados há dois anos e ainda não tinham filhos, circulando rumores na corte de que a culpa seria da rainha, pois o rei já tinha dado provas pela abundância de bastardos no reino.

4 Camaristas: fidalgos ou fidal-

gas ao serviço de pessoas reais. 5 Miguel Ângelo: (1475-1564)

pintor, escultor, poeta e arquiteto italiano. 6 Cabeção: parte superior de blusas ou camisas. 7 Arrábido: frade do convento da Arrábida.

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Unidade 4 // JOSÉ SARAMAGO

PROFESSOR

2. A mentalidade da época é reveladora de uma sociedade profundamente machista, atribuindo-se a esterilidade à mulher, pois a virilidade masculina não poderia, de forma alguma, ser ferida. O narrador, ciente de que a esterilidade não escolhe género, é extremamente irónico na denúncia desta situação («Que caiba a culpa ao rei, nem pensar, primeiro porque a esterilidade não é mal dos homens, das mulheres sim, por isso são repudiadas tantas vezes, […] sendo a mulher, naturalmente, vaso de receber, há de ser naturalmente suplicante», ll. 5-13). 3. A comparação da basílica de S. Pedro de Roma com a grandiosidade de Deus remete, ironicamente, para o caráter divino do poder real, conforme preconizado pelo absolutismo representado por D. João V, e a hipérbole, igualmente plena de ironia, destaca a grandiosidade e a importância que, na perspetiva do rei, assumia a sua construção. 4. Os dois anos de tentativas infrutíferas de ter um herdeiro conduzem à prontidão da promessa de D. João V a D. Nuno da Cunha e a «quem estava» de construir um convento franciscano, em Mafra, se dentro de um ano a rainha lhe desse um filho. Mediante esta promessa, o narrador equaciona os hipotéticos candidatos submetidos «à prova» – se a própria virilidade do rei, se a fecundidade da rainha ou o poder divino. 5. A ação localiza-se nos inícios do reinado de D. João V («um homem que ainda não fez vinte e dois anos», ll. 19-20), mais concretamente em 1711 (o rei nasceu em 1689). 6. Infrações: ausência dos dois pontos e do travessão a introduzir o discurso direto, sendo a separação dos enunciadores marcada apenas pela maiúscula inicial da palavra, que surge depois de uma vírgula; as vírgulas a substituir os pontos finais, por exemplo, em «Verdade é, senhor, porém só se o convento for franciscano,» (ll. 62-63) e «Sei,» (l. 64), e os pontos de interrogação em «Como sabeis» (l. 63). Gramática 1. a) Modalidade epistémica: valor de probabilidade / Recurso: advérbio «provavelmente». b) Modalidade apreciativa / Recurso: adjetivo «grande». c) Modalidade epistémica: valor de certeza / Recursos: verbo prometer no presente do modo indicativo («prometo»); adjetivo «real».

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disse, Sei, não sei como vim a saber, eu sou apenas a boca de que a verdade se serve para falar, a fé não tem mais que responder, construa vossa majestade o convento e terá brevemente sucessão, não o construa e Deus decidirá. Com um gesto mandou el-rei ao arrábido que se retirasse, e depois perguntou a D. Nuno da Cunha, É virtuoso este frade, e o bispo respondeu, Não há outro que mais o seja na sua ordem. Então D. João, o quinto do seu nome, assim assegurado sobre o mérito do empenho, levantou a voz para que claramente o ouvisse quem estava e o soubessem amanhã cidade e reino, Prometo, pela minha palavra real, que farei construir um convento de franciscanos na vila de Mafra se a rainha me der um filho no prazo de um ano a contar deste dia em que estamos, e todos disseram, Deus ouça vossa majestade, e ninguém ali sabia quem iria ser posto à prova, se o mesmo Deus, se a virtude de frei António, se a potência do rei, ou, finalmente, a fertilidade dificultosa da rainha. José Saramago, Memorial do Convento, Alfragide, Caminho, 2013, [cap. I], pp. 11-15.

1. Sintetiza a situação descrita no primeiro parágrafo do excerto. 2. Evidencia a mentalidade da época relativamente à infertilidade, justificando a ironia do narrador. 3. Refere os efeitos de sentido produzidos pelos recursos expressivos presentes na frase «Quase tão grande como Deus é a Basílica de S. Pedro de Roma que el-rei está a levantar» (ll. 22-23).

Recursos expressivos SIGA p. 383

4. Relaciona a situação descrita inicialmente e a prontidão da promessa realizada no final do excerto, interpretando as palavras do narrador sobre «quem iria ser posto à prova». 5. Comprova que a ação do excerto é passível de ser localizada num tempo histórico preciso. 6. Atenta no diálogo presente nas linhas 59 a 66 e indica as infrações presentes no mesmo, considerando as regras da gramática tradicional, respeitantes às marcas do discurso direto.

GRAMÁTICA

FI

Linguagem e estilo pp. 309-310

FI

Valor modal pp. 195-196

1. Preenche a tabela, indicando o tipo de modalidade presente em cada enunciado e o(s) recurso utilizado para exprimir o respetivo valor modal. Enunciado a) «a rainha, provavelmente, tem a madre seca» (l. 4). b) «Mas Deus é grande.» (l. 21). c) «Prometo, pela minha palavra real» (l. 71).

Modalidade

Recurso(s)

Ficha informativa

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FICHA INFORMATIVA 1 Linguagem e estilo

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PROFESSOR

Educação Literária 14.9.

1. O tom oralizante e a pontuação

MC

A obra romanesca de José Saramago é marcada por dois gestos verbais […]. Por um lado, trata-se de uma forma de frase e designadamente de uma pontuação que aparece como característica, e, por outro lado, […] a imitação de formas da coloquialidade mais comum. A sua frase parece por vezes conter entre dois pontos finais várias frases, ditas no mínimo por duas personagens e frequentemente por três (sendo que uma dessas personagens pode ser a do narrador). Essas frases, contidas numa, são separadas por vírgulas que podem estar a substituir pontos de interrogação ou de exclamação, ou mesmo pontos finais; e os seus limites, a separação dos seus «enunciadores», são dados apenas pela maiúscula inicial de uma palavra que vem depois de uma vírgula. Estamos perante uma frase plurivocal: é como se fossem vários a dizer uma frase, e essa frase, que é um acontecimento de diálogo, pode então comportar o confronto de pontos de vista [polifonia]. […] Por outro lado, falamos sempre com «as palavras dos outros», deformando-as um pouco, é certo; e por aí passa a possibilidade da individuação e da singularidade. É nesse sentido, também, que o diálogo é a forma básica da fala, e que numa só frase se podem ouvir várias vozes. […] Esta assunção da socialidade da linguagem, inscrita como um dispositivo de narração, pode ainda ligar-se ao modo como insistentemente em alguns dos seus romances se joga com esse tipo particular de frases do idioma que são os provérbios, frases supostamente indeformáveis que conteriam, congelado, um sentido único, uma sabedoria monológica. Saramago joga aqui de duas maneiras: por um lado, pode usar o «mesmo» provérbio em contextos diferentes, de modo a mostrar que ele pode significar coisas diversas e, no limite, inversas; por outro lado, deforma e inventa provérbios. Este modo de usar e construir provérbios constitui uma marca de jogo verbal […] e um processo de ironização (de «carnavalização») do saber, ou de «dialogismo».

Consolida

Manuel Gusmão, «Linguagem e História Segundo José Saramago», in Vida Mundial, 10 de novembro de 1998, pp. 12-13. CONSOLIDA

1. Identifica as regras da gramática normativa tradicional que foram infringidas na utilização da pontuação, no seguinte diálogo: «[…] E agora, Se não tens onde viver melhor, fica aqui, Hei de ir para Mafra, tenho lá família, Mulher, Pais e uma irmã, Fica, enquanto não fores, será sempre tempo de partires, […]» (p. 73). 2. Indica a característica da linguagem de José Saramago presente em «[…] a pobre emprestes, a rico não devas, a frade não prometas […]» (p. 98). 3. Comprova a existência de várias vozes (polifonia) no seguinte excerto: «[…] talvez sejamos todos deuses sentados, donde é que estas coisas me vêm à cabeça, é que eu não sei, disse Manuel Milho, e Baltasar rematou, Então sou eu o último da fila, à minha esquerda é que não se pode sentar ninguém, comigo acaba-se o mundo, Donde vêm tais coisas à cabeça destes rústicos, analfabetos todos, […] é que nós não sabemos» (p. 323).

1. Infrações: ausência de verbos introdutores do relato do discurso; dos dois pontos e do travessão a introduzir o discurso direto, sendo a separação dos enunciadores marcada apenas pela maiúscula inicial da palavra que surge depois de uma vírgula (o excerto corresponde a seis turnos de fala: Baltasar, Blimunda, Baltasar, Blimunda, Baltasar, Blimunda); as vírgulas a substituir os pontos finais ou as reticências («Se não tens onde viver melhor, fica aqui,», «Hei de ir para Mafra, tenho lá família,» «Pais e uma irmã,», «Fica, enquanto não fores, será sempre tempo de partires,») e os pontos de interrogação («E agora,» «Mulher,»). 2. Adaptação e subversão do provérbio «A rico não devas, a pobre não prometas». 3. Polifonia: Manuel Milho («talvez sejamos todos deuses sentados, donde é que estas coisas me vêm à cabeça, é que eu não sei») e Baltasar («Então sou eu o último da fila, à minha esquerda é que não se pode sentar ninguém, comigo acaba-se o mundo»), que refletem acerca do lado esquerdo de Deus, ao qual nunca se faz menção, e o narrador («Donde vêm tais coisas à cabeça destes rústicos, analfabetos todos, […] é que nós não sabemos.»), cuja voz se confunde com a do autor, como se pode verificar no uso da primeira pessoa do plural, que poderá incluir, também, o narratário ou o leitor.

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Unidade 4 // JOSÉ SARAMAGO

PROFESSOR

2. Marcas essenciais do discurso saramaguinano

Consolida 1. Discurso direto: «Quem é esse Manuel Milho, Andava comigo na obra, mas resolveu voltar para a terra»; Discurso indireto: «disse que antes queria morrer afogado numa cheia do Tejo que ficar esborrachado debaixo duma pedra de Mafra», «e assim ia para a sua terra»; Discurso indireto livre: «que ao contrário do que se costuma dizer a morte não é toda igual, o que é igual é estar morto», «onde as pedras são pequenas e poucas, e é doce a água».

Exemplos

• Hibridismo de tipologias discursivas – discurso direto, discurso indireto e discurso indireto livre.

«Afirmou-se melhor a princesa, […] em véspera das suas bodas, […] já não chegava o péssimo tempo que faz, esta chuva, este frio, teriam feito bem melhor se me casassem na primavera. Cavalgava à estribeira um oficial a quem D. Maria Bárbara ordenou que mandasse saber que homens eram aqueles e o que tinham feito, que crimes, e se iam para o Limoeiro ou para a África. Foi o oficial em pessoa, […] e disse, Saiba vossa alteza que aqueles homens vão trabalhar para Mafra, nas obras do convento real, são do termo de Évora, gente de ofício, E vão atados porquê, Porque não vão de vontade, se os soltam fogem, […].» (pp. 430-431).

• Tom oralizante (marcas para além da pontuação, da polifonia, do hibridismo de tipologias discursivas e do uso de provérbios):

RECURSOS EXPRESSIVOS

2. a) Ironia; b) Uso expressivo do adjetivo.

Outras marcas essenciais

– onomatopeias: «[…] Êeeeeeiii-ô, berra a voz, taratatá-tá, sopra a corneta […]» (p. 356). – tom coloquial: «Quando calha, vem o padre Bartolomeu Lourenço […]» (p. 122); «[…] que há mil anos, se calhar, ainda não se fabricavam ganchetas a fazer de mãozinha […]» (pp.285-286). – palavras/expressões populares: «[…] até hoje ainda não emprenhou» (p. 11); «[…] E vossemecê, que idade tem […]» (p. 53).

• Antítese

– «A obra é longa, a vida é curta […]» (p. 384).

• Comparação

– «[…] passadas as roupas de mão em mão tão reverentemente como relíquias de santas que tivessem trespassado donzelas […]» (p. 14).

• Enumeração

– «[…] mãe ou prima, ou aia, ou tolerante avó, ou tia azedíssima […]» (pp. 38-39).

• Hipérbole

– «Aldegalega é um mar de gente, […]» (p. 414).

• Ironia

– «Os homens e os bois já estão no seu jantar, depois será a hora da sesta, se a vida não tivesse tão boas coisas como comer e descansar, não valia a pena construir conventos» (p. 339).

• Metáfora

– «Mas esta cidade, mais que todas, é uma boca que mastiga de sobejo para um lado e de escasso para o outro […]» (p. 36).

• Personificação

– «Fechou-se a noite por completo, a cidade dorme, e se não dorme calou-se.» (p. 222).

• Uso expressivo do adjetivo

– «Entrou no açougue que dava para a praça, a regalar a vista sôfrega nas grandes peças de carne, […]» (p. 55).

CONSOLIDA

1. Distingue os diferentes tipos de discurso constantes no seguinte enunciado: «[…] Quem é esse Manuel Milho, Andava comigo na obra, mas resolveu voltar para a terra, disse que antes queria morrer afogado numa cheia do Tejo que ficar esborrachado debaixo duma pedra de Mafra, que ao contrário do que se costuma dizer a morte não é toda igual, o que é igual é estar morto, e assim ia para a sua terra, onde as pedras são pequenas e poucas, e é doce a água […]» (p. 365).

Caspar David Friedrich, Monge à Beira-Mar (pormenor), 1810.

2. Identifica os recursos expressivos presentes nas seguintes expressões: a) «[…] se este rei não se acautela, acaba santo […]» (p. 387). b) «[…] de coração manso e alegre vontade [...]» (p. 442).

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EDUCAÇÃO LITERÁRIA

D. João V: o «Magnânimo» Texto A [Capítulo XVIII]

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Medita D. João V no que fará a tão grandes somas de dinheiro, a tão extrema riqueza, medita hoje e ontem meditou, e sempre conclui que a alma há de ser a primeira consideração, por todos os meios devemos preservá-la sobretudo quando a podem consolar também os confortos da terra do corpo. Vá pois ao frade e à freira o necessário, vá também o supérfluo, porque o frade me põe em primeiro lugar nas suas orações, porque a freira me aconchega a dobra do lençol e outras partes, e a Roma, se com bom dinheiro lhe pagámos para ter o Santo Ofício, vá mais quanto ela pedir por menos cruentas benfeitorias1, a troco de embaixadas e presentes, e se desta pobre terra de analfabetos, de rústicos, de toscos artífices não se podem esperar supremas artes e ofícios, encomendem-se à Europa, para o meu convento de Mafra, pagando-se, com o ouro das minhas minas e mais fazendas, os recheios e ornamentos, que deixarão, como dirá o frade historiador, ricos os artífices de lá, e a nós, vendo-os, aos ornamentos e recheios, admirados. De Portugal não se requeira mais que pedra, tijolo e lenha para queimar, e homens para a força bruta, ciência pouca. […] Desde que na vila de Mafra, já lá vão oito anos, foi lançada a primeira pedra da basílica, essa de Pero Pinheiro graças a Deus, tudo quanto é Europa vira consoladamente a lembrança para nós, para o dinheiro que receberam adiantado, muito mais para o que hão de cobrar no termo de cada prazo e na obra acabada. José Saramago, op. cit., [cap. XVIII], pp. 308-310.

Texto B [Capítulo XXI]

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No dia seguinte, D. João V mandou chamar o arquiteto de Mafra, um tal João Frederico Ludovice2, que é alemão escrito à portuguesa, e disse-lhe sem outros rodeios, É minha vontade que seja construída na corte uma igreja como a de S. Pedro de Roma, e, tendo assim dito, olhou severamente o artista. […] A vontade de vossa majestade é digna do grande rei que mandou edificar Mafra, porém, as vidas são breves, majestade, […] julga pelo modelo de armar que aí tem, talvez nem daqui a duzentos e quarenta anos o conseguíssemos, estaria vossa majestade morta, […] o que eu pergunto, com todo o respeito, é se vale a pena estar a construir uma basílica que só ficará terminada no ano dois mil, supondo que nessa altura ainda há mundo, no entanto vossa majestade decidirá […]. Enfim o rei bate na testa, resplandece-lhe a fronte, rodeia-a o nimbo3 da inspiração, E se aumentássemos para duzentos frades o convento de Mafra, quem diz duzentos, diz quinhentos, diz mil, estou que seria uma ação de não menor grandeza que a basílica que não pode haver. O arquiteto ponderou, Mil frades, quinhentos frades, é muito frade, majestade, acabávamos por ter de fazer uma igreja tão grande como a de Roma, para lá poderem caber todos, Então, quantos, Digamos trezentos, e mesmo assim já vai ser pequena para eles a basílica que desenhei e está a ser construída, com muitos vagares,

«Tudo é vaidade».

PROFESSOR

MC

Educação Literária 14.2; 14.3; 14.4; 14.5; 14.7; 14.8; 14.9; 16.2. Escrita 10.1; 11.1; 12.1; 12.2; 12.3; 12.4.

Educação Literária 1. Texto A: a luxúria e o profundo egoísmo do rei ao considerar que os frades e as freiras existem para o servirem; a ostentação ao ordenar que seja comprado para o Convento de Mafra o que de melhor existe na Europa; Texto B: a megalomania do rei, associada a uma faceta caprichosa, visível na ambição de construir uma basílica como a de S. Pedro de Roma e de, após verificar a impossibilidade do seu desejo, ordenar a ampliação do Convento de Mafra para albergar trezentos frades. Sobressaem, ainda, a prepotência do monarca na imposição da sua vontade e o seu cinismo, visível no reparo relativamente à morosidade da construção da basílica de Mafra. Neste excerto, são ainda destacados o receio de morrer sem ser reconhecido como «o rei que mandou fazer e não o que vê feito»; a vaidade excessiva que o conduz a mais um ato de prepotência, eivado de capricho, ao determinar que a sagração da basílica de Mafra tivesse lugar, impreterivelmente, no dia do seu aniversário, dali a dois anos, em mil setecentos e trinta. A ironia surge como o recurso expressivo predominante na caracterização de D. João V, que é constantemente ridicularizado pelo narrador.

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Unidade 4 // JOSÉ SARAMAGO

PROFESSOR

2. A desmistificação do rei dá-se quando o narrador declara a igualdade fundamental do ser humano, aproximando o rei do comum dos mortais pelo medo da morte e consequente insegurança relativamente ao futuro: «Tem desenhado na cara o medo de morrer, vergonha suprema em monarca tão poderoso.» (Texto B, ll. 20-21). 3. A sátira do universo clerical transparece na transcrição da consciência de D. João V: o clientelismo e o interesse dos frades ao colocar o rei no centro das suas orações, a devassidão das freiras e o materialismo de Roma pelo bom dinheiro recebido para que o Santo Ofício se estabelecesse em Portugal. Surge, igualmente, a crítica ao ser português, pela valorização do que é estrangeiro e pelo menosprezo do que é nacional. 4. As referências ao tempo histórico («Desde que na vila de Mafra […] foi lançada a primeira pedra da basílica», Texto A, ll. 16-17; «A sagração da basílica de Mafra será feita no dia vinte e dois de outubro de mil setecentos e trinta», Texto B, ll. 35-36) permitem a localização da ação no tempo da narrativa, isto é, a ação localiza-se, no Texto A, em 1725, pois «já lá vão oito anos», desde que «foi lançada a primeira pedra da basílica» (1717) e, no texto B, em 1728, uma vez que a sagração da basílica teria lugar «daí a dois anos, em mil setecentos e trinta». 1 Benfeitorias: despesas feitas

para conservar uma coisa.

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se me é permitido o reparo, Sejam trezentos, não se discute mais, é esta a minha vontade, Assim se fará, dando vossa majestade as necessárias ordens. […] D. João V está numa sala do torreão, virada ao rio. […] Tem desenhado na cara o medo de morrer, vergonha suprema em monarca tão poderoso. Mas esse medo de morrer não é o de se lhe abater de vez o corpo e ir-se embora a alma, é sim o de que não estejam abertos e luzentes os seus próprios olhos quando, sagradas, se alçarem as torres e a cúpula de Mafra, […] é o de ser apenas o rei que mandou fazer e não o que vê feito. […] Vaidade das vaidades, disse Salomão, e D. João V repete, Tudo é vaidade, vaidade é desejar, ter é vaidade. Mas o vencimento da vaidade não é a modéstia, menos ainda a humildade, é antes o seu excesso. Desta meditação e agonia não saiu el-rei para vestir o burel da penitência e da renúncia, mas para fazer voltar os camaristas, os secretários e os frades, […] a estes perguntando se era realmente verdade, consoante julgava saber, que a sagração das basílicas se deve fazer aos domingos, e eles responderam que sim, segundo o Ritual, e então el-rei mandou apurar quando cairia o dia do seu aniversário, vinte e dois de outubro, a um domingo, tendo os secretários respondido, após cuidadosa verificação do calendário, que tal coincidência se daria daí a dois anos, em mil setecentos e trinta […]. […] Todos esperavam. E então D. João V disse, A sagração da basílica de Mafra será feita no dia vinte e dois de outubro de mil setecentos e trinta, tanto faz que o tempo sobre como falte, venha sol ou venha chuva, caia a neve ou sopre o vento, nem que se alague o mundo ou lhe dê o tranglomango4. José Saramago, op. cit., [cap. XXI], pp. 382-386, 396-399.

1. Procede à caracterização do rei D. João V, a partir da análise dos excertos, indicando o recurso expressivo predominante. 2. Indica de que modo o narrador procede à desmistificação da figura do rei, fundamentando a tua resposta com elementos textuais pertinentes.

Recursos expressivos SIGA p. 383

2 João Frederico Ludovice:

arquiteto alemão que projetou o Palácio Nacional de Mafra. 3 Nimbo: auréola. 4 Tranglomango: qualquer doença ou mal.

Escrita ▪ Imagem Cartoon de Luc Vernimmen, Toda a Luz Tem a sua Sombra ▪ Apresentação em PowerPoint Correção da atividade de Escrita

3. Explicita as críticas feitas pelo narrador no Texto A. 4. Estabelece uma relação entre o tempo histórico e o tempo da narrativa, a partir das referências presentes nos Textos A e B.

ESCRITA

Apreciação crítica

Apreciação crítica SIGA pp. 362-363

1. Observa o cartoon e prepara uma apreciação crítica, na qual incluas a abordagem dos seguintes tópicos: • dimensão simbólica do título; • relação com o ambiente que rodeia o rei D. João V.

Luc Vernimmen, Toda a Luz Tem a sua Sombra, 2015.

Memorial do Convento – Linhas de ação

EDUCAÇÃO LITERÁRIA

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D. Maria Ana Josefa Texto A

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Educação Literária 14.2; 14.3; 14.4; 14.5; 14.7; 14.8. Gramática 17.1.

[Capítulo I]

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D. Maria Ana conversa com a sua camareira-mor portuguesa, a marquesa de Unhão. Já falaram das devoções do dia, da visita feita ao convento das carmelitas1 descalças da Conceição dos Cardais, e da novena de S. Francisco Xavier2 […]. Mas el-rei já se anunciou, e vem de espírito aceso, estimulado pela conjunção mística do dever carnal e da promessa que fez a Deus por intermédio e bons ofícios de frei António de S. José. Entraram com el-rei dois camaristas […], as majestades fazem mútuas vénias, nunca mais acaba o cerimonial, enfim lá se retiram os camaristas por uma porta, as damas por outra, e nas antecâmaras ficarão esperando que termine a função, para que regresse el-rei acompanhado ao seu quarto, que foi da rainha sua mãe no tempo de seu pai, e venham «A leva da Infanta». as damas a este aconchegar D. Maria Ana debaixo do cobertor de penas que trouxe da Áustria também e sem o qual não pode dormir, seja inverno ou verão. […] Ainda que insistentemente tranquilizada pelo confessor, tem D. Maria Ana, nestas ocasiões, grandes escrúpulos de alma. Retirados el-rei e os camaristas, deitadas já as damas que a servem e lhe protegem o sono, sempre cuida a rainha que seria sua obrigação levantar-se para as últimas orações, mas, tendo de guardar o choco3 por conselho dos médicos, contenta-se com murmurá-las infinitamente, passando cada vez mais devagar as contas do rosário, até que adormece no meio duma ave-maria cheia de graça, ao menos com essa foi tudo tão fácil, bendito seja o fruto do vosso ventre, e é no do seu ansiado próprio que está pensando, ao menos um filho, Senhor, ao menos um filho. […] São meandros do inconsciente real, como aqueles outros sonhos que sempre D. Maria Ana tem, vá lá explicá-los, quando el-rei vem ao seu quarto, que é ver-se atravessando o Terreiro do Paço para o lado dos açougues, levantando a saia à frente e patinhando numa lama aguada e pegajosa que cheira ao que cheiram os homens quando descarregam, enquanto o infante D. Francisco, seu cunhado, cujo antigo quarto agora ocupa, alguma assombração lhe ficando, dança em redor dela, empoleirado em andas, como uma cegonha negra. Também deste sonho nunca deu contas ao confessor, e que contas saberia ele dar-lhe por sua vez, sendo, como é, caso omisso no manual da perfeita confissão. Fique D. Maria Ana em paz, adormecida, invisível sob a montanha de penas […]. José Saramago, op. cit., [cap. I], pp. 16-21.

Educação Literária 1. Texto A: D. Maria Ana, de origem austríaca, revela-se uma mulher extremamente devota, dedicada à oração, anseia por dar um filho ao rei, algo que roga a Deus nas suas constantes orações; encara o ato sexual como um dever matrimonial («dever carnal») e a conceção como obrigatória, apresentando problemas de consciência devido ao peso da religião; por detrás de uma postura passiva, apresenta uma sexualidade reprimida, sendo a transgressão onírica a sua única expressão acompanhada por um sentimento de culpa. É no sonho que pode explorar a sua sensualidade e a atração sentida pelo seu cunhado, o infante D. Francisco. Texto B: a rainha é apresentada novamente como excessivamente devota («de preces contam-se por milhões«), contudo, para além de já ter dado filhos ao rei, verifica-se uma profunda alteração na forma como encara a vida: a consciência da leviandade do marido, o peso da solidão, a abominação da sua condição de rainha e de mulher, a aversão aos homens pela maldade que encerram.

1 Carmelitas: religiosas da or-

dem do Carmo ou do Monte Carmel. 2 S. Francisco Xavier: (15061552) navarro, jesuíta e apóstolo do Oriente, é chamado o «apóstolo das Índias». Teve papel de grande relevo na missionação na Ásia. 3 Choco: ato de chocar ovos; incubação.

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Unidade 4 // JOSÉ SARAMAGO

Texto B

PROFESSOR

2. O estranho sonho com o infante D. Francisco surge sempre que cumpre o seu dever matrimonial com o rei, sugerindo a sua sexualidade reprimida adveniente da postura passiva que a sua condição de rainha e de mulher impõem. A ânsia de ter um filho conduz a que, nesse sonho, o seu cunhado se apresente como uma «cegonha», animal que simboliza a fertilidade e o nascimento. No entanto, o adjetivo «negra» indicia algo de nefasto associado às intenções reais de D. Francisco. Este relato do sonho, que a rainha nunca revelou e sempre omitiu em confissão, revela a total omnisciência do narrador. 3. A relação entre o rei e a rainha é artificial, rodeada por um falso código ético, moral e religioso, apresentando-se como um mero contrato para assegurar a sucessão, como se pode verificar pela leviandade de D. João V, pelos sonhos da rainha com o seu cunhado e pelo modo odioso como D. Maria Ana, após anos de casamento, encara os homens, considerando, perante a doença do rei, ser melhor o seu restabelecimento do que ter de enfrentar um marido pior. 4. A revelação das reais intenções do infante D. Francisco, ou seja, o desejar a morte do seu irmão e o querer casar-se com D. Maria Ana somente para ser rei de Portugal, e as posteriores visitas nas quais reitera essa intenção, conduzem ao desmoronar dos sonhos da rainha, que «não ressuscitarão» perante a desilusão sentida. Gramática 1. (1) «tudo»: sujeito simples; (2) «tão fácil»: predicativo do sujeito. 2. Deíticos pessoais e temporais – formas flexionadas na 1.a pessoa do presente: «digo» e «sou». Deítico pessoal – pronome pessoal: «eu». 3. Oração subordinada substantiva relativa (sem antecedente).

[Capítulo X]

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[H]á quem prefira a oração, é o caso da rainha, devota parideira que veio ao mundo só para isso, ao todo dará seis filhos, mas de preces contam-se por milhões, […] ora com motivo, ora sem certeza de o ter, pelo marido leviano, pelos parentes tão longe, pela terra que não é sua, e filhos só por metade, ou ainda menos, como jura o infante D. Pedro no céu, pelo império português, pela peste que ameaça, pela guerra que acabou, por outra se começar, […] por D. Francisco também, e a Jesus Maria José, pelas angústias da carne, […] pela custosa salvação, pelo inferno que a cobiça, pelo horror de ser rainha, pelo dó de ser mulher, pelas duas mágoas juntas, por esta vida que vai, por essa morte que vem. […] É verdade que sonho, são fraquezas de mulher guardadas no meu coração e que nem ao confessor confesso, mas, pelos vistos, vêm ao rosto os sonhos, se assim mos adivinham, Então, morrendo meu irmão, casamos, Se esse for o interesse do reino, e se daí não vier ofensa a Deus nem dano à minha honra, casaremos, Prouvera que ele morra, que eu quero ser rei e dormir com vossa majestade, já estou farto de ser infante, Farta estou eu de ser rainha e não posso ser outra coisa, assim como assim, vou rezando para que se salve o meu marido, não vá ser pior outro que venha, Acha então vossa majestade que eu seria pior marido que meu irmão, Maus, são todos os homens, a diferença só está na maneira de o serem, e com esta sábia e cética sentença se concluiu a conversação em palácio, primeira das muitas com que D. Francisco fatigará a rainha, […] a ponto de já não serem os sonhos de D. Maria Ana o que antes eram, tão deliciosos em geral, tão arrebatadores do espírito, tão pungidores4 do corpo, agora o infante só lhe aparece para dizer que quer ser rei, bom proveito lhe fizesse, para isto nem vale a pena sonhar, digo-o eu que sou rainha. Adoeceu tão gravemente el-rei, morreu o sonho de D. Maria Ana, depois el-rei sarará, mas os sonhos da rainha não ressuscitarão. José Saramago, op. cit., [cap. X], pp. 151-156.

1. Indica os traços caracterizadores de D. Maria Ana evidenciados nos dois excertos, explicitando a transformação sofrida pela personagem. 2. Apresenta uma justificação para a recorrência do sonho da rainha, relacionando-a com o estatuto do narrador quanto ao conhecimento que tem sobre as personagens. 3. Explica a relação existente entre D. João V e D. Maria Ana Josefa. 4. Interpreta a mudança ocorrida na forma como D. Maria Ana encara D. Francisco e indica as respetivas consequências. GRAMÁTICA

1. Indica a função sintática dos elementos destacados em «foi tudo (1) tão fácil (2)» (Texto A, l. 29).

Funções sintáticas SIGA pp. 372-373

2. Identifica e classifica os deíticos presentes em «digo-o eu que sou rainha» (Texto B, ll. 22-23).

Deixis SIGA p. 378

3. Classifica a oração «o que antes eram» (Texto B, l. 20).

Coordenação e subordinação SIGA pp. 373-374

Memorial do Convento – Visão crítica

Visão crítica I

PROFESSOR

MC PONTO DE PARTIDA

1. Após o visionamento do excerto do documentário Versalhes, o Sonho de um Rei, refere-te à ambição do rei e ao papel do povo na consecução desse desejo.

Versalhes, o Sonho de um Rei (2008) REAL. Thierry Binisti

EDUCAÇÃO LITERÁRIA

Recrutamento à força [Capítulo XXI]

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Foram as ordens, vieram os homens. De sua própria vontade alguns, aliciados pela promessa de bom salário, por gosto de aventura outros, por desprendimento de afetos também, à força quase todos. Deitava-se o pregão nas praças, e, sendo escasso o número de voluntários, ia o corregedor pelas ruas, acompanhado dos quadrilheiros1, entrava nas casas, empurrava os cancelos dos quintais, saía ao campo a ver onde se escondiam os relapsos2, ao fim do dia juntava dez, vinte, trinta homens, e quando eram mais que os carcereiros atavam-nos com cordas, variando o modo, ora presos pela cintura uns nos outros, ora com improvisada pescoceira, ora ligados pelos tornozelos, como galés ou escravos. Em todos os lugares se repetia a cena, Por ordem de sua majestade, vais trabalhar na obra do convento de Mafra […]. Corriam as mulheres, choravam, e as crianças acresciam o alarido, era como se andassem os corregedores a prender para a tropa ou para a Índia. […] E se para isso tiveram tempo, quadrilheiros houve que se gozaram das mulheres dos presos, que a tanto se sujeitaram as pobres para não perder os seus maridos, porém desesperadas os viam depois partir, enquanto os aproveitadores se riam delas […] Já vai andando a récua dos homens de Arganil, acompanham-nos até fora da vila as infelizes, que vão clamando, qual em cabelo, Ó doce e amado esposo, e outra protestando, Ó filho, a quem eu tinha só para refrigério e doce amparo desta cansada já velhice minha, não se acabavam as lamentações, tanto que os montes de mais perto respondiam, quase movidos de alta piedade, enfim já os levados se afastam, vão sumir-se na volta do caminho, rasos de lágrimas os olhos, em bagadas caindo aos mais sensíveis, e então uma grande voz se levanta, é um labrego de tanta idade já que o não quiseram, e grita subindo a um valado que é púlpito de rústicos, Ó glória de mandar, ó vã cobiça, ó rei infame, ó pátria sem justiça, e tendo assim clamado, veio dar-lhe o quadrilheiro uma cacetada na cabeça, que ali mesmo o deixou por morto. José Saramago, op. cit., [cap. XXI], pp. 400-403.

1. Comenta as condições de recrutamento dos trabalhadores. SIGA

Recursos expressivos

p. 383 2. Identifica os recursos expressivos presentes em «Corriam as mulheres, choravam, e as crianças acresciam o alarido, era como se andassem os corregedores a prender para a tropa ou para a Índia.» (ll. 11-12), explicitando o seu valor.

▪ Vídeo Documentário Versalhes, o Sonho de um Rei Ponto de Partida 1. O sonho do rei é construir o palácio de Versalhes, uma obra monumental. Para satisfazer essa sua ambição necessita do trabalho de muitos operários. Como o ritmo de trabalho é inferior ao esperado, ordena-se que os trabalhadores se organizem por turnos, operando de dia e de noite. Também assistimos às precárias condições de segurança, o que conduz a muitos acidentes de trabalho e mortes. Educação Literária 1. Os trabalhadores eram recrutados de várias formas: alguns de livre vontade, por dinheiro, por espírito de aventura, por não terem família; mas a grande maioria ia trabalhar para o convento forçada, contra a sua vontade e dos seus familiares. 2. A enumeração enfatiza a dor da separação dos familiares masculinos que eram compelidos a ir trabalhar para Mafra. A comparação reforça também esse sofrimento, estabelecendo uma analogia com o recrutamento para o exército e com as viagens do tempo dos Descobrimentos, período histórico em que imensas famílias foram desmembradas. Gramática 1. No texto, evocam-se momentos da obra épica de Camões, Os Lusíadas, para descrever a verdadeira dimensão da dor dos familiares que ficavam sem os seus entes queridos. Alude-se a episódios da epopeia nos quais o sofrimento da separação/ perda é evidente: a partida das naus para a Índia, em Belém («qual em cabelo, Ó doce e amado esposo, e outra protestando, Ó filho, a quem eu tinha só para refrigério e doce amparo desta cansada já velhice minha», ll. 17-18); a reação da natureza ao assassinato de D. Inês de Castro, em Coimbra («tanto que os montes de mais perto respondiam, quase movidos de alta piedade», ll. 19-20). Finalmente, lembra-se o episódio do Velho do Restelo, questionando a pertinência das decisões reais («um labrego […], Ó glória de mandar, ó vã cobiça, ó rei infame, ó pátria sem justiça», ll. 22-24). 1 Quadrilheiros: agentes de polí-

GRAMÁTICA

1. Identifica e interpreta as manifestações de intertextualidade.

Educação Literária 14.1; 14.2; 14.3; 14.4; 14.8; 14.9; 15.1; 15.2; 15.3.

FI

Linguística textual: intertextualidade p. 316

cia responsáveis pela segurança pública urbana em cada concelho. 2 Relapsos: faltosos, teimosos.

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Unidade 4 // JOSÉ SARAMAGO

FICHA INFORMATIVA 2 PROFESSOR

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Educação Literária 16.2. Gramática 18.4.

Linguística textual: intertextualidade A intertextualidade é o conjunto das relações que um texto concreto (hipertexto) estabelece, desde a esfera da sua produção até à esfera da sua leitura e da sua interpretação, com outro(s) texto(s) (hipotextos). O hipotexto de um texto literário pode ser um texto não-literário ou um texto não-verbal (por ex., um texto pictórico, um texto musical).

▪ Apresentação em PowerPoint Linguística textual: intertextualidade 1. a) A epígrafe do Padre Manuel Velho, que apresenta a inevitabilidade de uma condenação, aponta, logo no início da obra, para um determinismo ligado a condicionantes externos que impelem o ser humano para um destino a que não pode escapar, isto é, para a existência de forças e leis sociais que ultrapassam a vontade individual de cada homem. b) Paródia: o narrador parodia o episódio do Adamastor de Os Lusíadas, comparando a força da tempestade ao poder do Gigante, que simboliza as dificuldades e os obstáculos enfrentados pelos portugueses na empresa dos Descobrimentos, referindo-se, neste passo, aos trabalhos dos homens que construíram a igreja de madeira somente por um capricho do rei. c) Jogando com o provérbio «De génio e de louco, todos temos um pouco», o narrador salienta a coragem, a genialidade e a loucura dos três «voadores» no voo inaugural da passarola. d) Referência ao Sermão de Santo António, do Padre António Vieira, sendo as palavras aplicadas ao padre que da capela profere o seu sermão, ao qual poucos prestam atenção, pois são homens e não peixes. e) Referência bíblica, do livro do Eclesiastes, sobre a denúncia da vaidade, aplicada ironicamente a D. João V, que a subverte, considerando-a edificante e símbolo do poder.

Modalidades de intertextualidade Citação

• Passagem de um texto que se reproduz, com indicação do autor original e graficamente marcada com aspas, utilizada para ilustrar, reforçar ou completar uma ideia.

Epígrafe

• Fragmento de texto ou frase curta, com indicação da autoria, que surge no início de uma obra, de um capítulo ou de um poema e que estabelece relações com o conteúdo do texto que se lhe segue.

Alusão

• Referência direta ou indireta a uma situação, uma obra, uma personagem, para se sugerir ou fazer compreender algo de forma indireta, irónica ou criativa. A alusão só é eficaz se essa referência for do conhecimento do leitor (ou do ouvinte).

Paráfrase

• Explicação do conteúdo de um texto original, de modo a torná-lo mais compreensível, ou reprodução de um texto ou parte dele explicitamente, por outras palavras, sem que a ideia original seja alterada.

Paródia

• Imitação de um texto (normalmente literário) com alteração do seu sentido original e com a intenção de divertir, de ridicularizar ou de criticar.

Imitação criativa

• Recriação de um texto literário, conferindo-lhe atualidade ou algum tipo de originalidade sem o ridicularizar ou criticar. Fontes: • Dicionário Terminológico, DGIDC, 2008. • Maria Regina Rocha, Gramática de Português – Ensino Secundário 10.º, 11.º e 12.º anos, Porto, Porto Editora, 2016.

CONSOLIDA

1. Identifica e interpreta as seguintes manifestações de intertextualidade. a) «Para a forca hia um homem: e outro que o encontrou lhe dice: Que he isto senhor fulano, assim vay v. m.? E o enforcado respondeu: Yo no voy, estes me lleban.» (Padre Manuel Velho, p. 7). b) Uns dias antes dera-se em Mafra um milagre, […] foi como o sopro gigantesco de Adamastor, se Adamastor soprou, quando lhe dobravam o cabo dos seus e nossos trabalhos» (p.179). c) «Nunca perguntamos se haverá juízo na loucura, mas vamos dizendo que de louco todos temos um pouco» (p. 266). d) «[…] Da sua gaiola de madeira pregou o celebrante ao mar de gente, se fosse o mar de peixes, que formoso sermão se teria podido repetir aqui».» (p.313). e) «Vaidade das vaidades, disse Salomão, e D. João V repete, Tudo é vaidade, vaidade é desejar, ter é vaidade.» […]» (p. 396).

Memorial do Convento – Visão crítica

EDUCAÇÃO LITERÁRIA

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Epopeia da pedra – os verdadeiros heróis de A a Z [Capítulo XIX]

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Em Pero Pinheiro se construíra o carro que haveria de carregar o calhau, espécie de nau da Índia com rodas, isto dizia quem já o tinha visto em acabamentos e igualmente pusera os olhos, alguma vez, na nau da comparação. Exagero será, decerto, melhor é julgarmos pelos nossos próprios olhos, com todos estes homens que se estão levantando noite ainda e vão partir para Pero Pinheiro, eles e os quatrocentos bois, e mais de vinte carros que levam os petrechos para a condução, […], e vão também os mantimentos que os homens hão de comer, […] Daqueles homens que conhecemos no outro dia, vão na viagem José Pequeno e Baltasar, conduzindo cada qual sua junta, e, entre o pessoal peão, só para as forças chamado, vai o de Cheleiros, aquele que lá tem a mulher e os filhos, Francisco Marques é o nome dele, e também vai o Manuel Milho, o das ideias que lhe vêm e não sabe donde. Vão outros Josés, e Franciscos, e Manuéis, serão menos os Baltasares, e haverá Joões, Álvaros, Antónios e Joaquins, talvez Bartolomeus, mas nenhum o tal, e Pedros, e Vicentes, e Bentos, Bernardos e Caetanos, tudo quanto é nome de homem vai aqui, tudo quanto é vida também, sobretudo se atribulada, principalmente se miserável, já que não podemos falar-lhes das vidas, por tantas serem, ao menos deixemos os nomes escritos, é essa a nossa obrigação, só para isso escrevemos, torná-los imortais, pois aí ficam, se de nós depende, Alcino, Brás, Cristóvão, Daniel, Egas, Firmino, Geraldo, Horácio, Isidro, Juvino, Luís, Marcolino, Nicanor, Onofre, Paulo, Quitério, Rufino, Sebastião, Tadeu, Ubaldo, Valério, Xavier, Zacarias, uma letra de cada um para ficarem todos representados, porventura nem todos estes nomes serão os próprios do tempo e do lugar, menos ainda da gente, mas, enquanto não se acabar quem trabalhe, não se acabarão os trabalhos, e alguns destes estarão no futuro de alguns daqueles, à espera de quem vier a ter o nome e a profissão. De quantos pertencem ao alfabeto da amostra e vão a Pero Pinheiro, pese-nos deixar ir sem vida contada aquele Brás que é ruivo e camões do olho direito, não tardaria que se começasse a dizer que isto é uma terra de defeituosos, um marreco, um maneta, um zarolho, e que estamos a exagerar a cor da tinta, que para heróis se deverão escolher os belos e formosos, os esbeltos e escorreitos, os inteiros e completos, assim o tínhamos querido, porém, verdades são verdades, antes se nos agradeça não termos consentido que viesse à história quanto há de belfos1 e tartamudos2, de coxos e prognatas3, de zambros4 e epiléticos5, de orelhudos e parvos, de albinos6 e de alvares7, os da sarna8 e os da chaga9, os da tinha10 e do tinhó11, então sim, se veria o cortejo de lázaros12 e quasímodos13 que está saindo da vila de Mafra, ainda madrugada, o que vale é que de noite todos os gatos são pardos e vultos todos os homens, se Blimunda tivesse vindo à despedida sem ter comido o seu pão, que vontade veria em cada um, a de ser outra coisa. José Saramago, op. cit., [cap. XIX], pp. 329-330.

1. Explica de que modo o elenco de A a Z dos nomes dos trabalhadores do convento contribui para a valorização da obra enquanto objeto simbólico, no plano do imaginário individual e coletivo.

Educação Literária 14.1; 14.2; 14.3; 14.4; 15.1; 15.2; 15.3.

Educação Literária 1. Ao nomear, simbolicamente, «uma letra de cada um para ficarem todos representados», o narrador pretende imortalizar os verdadeiros construtores do convento: os elementos do povo, que ficaram no silêncio da História, escondendo identidades e vidas singulares. A obra Memorial do Convento resgata do anonimato todos aqueles que sofreram para que a vontade do rei fosse cumprida e o convento erigido, conferindo-lhes o estatuto de heróis. Esta visão crítica da História permite tirar como ilação que não são os poderosos que constroem o percurso de uma nação, pelo contrário, é o cortejo de «lázaros e quasímodos» que tem na sua mão (literalmente) o poder de edificar e, em última análise, de mudar o trajeto da História.

1 Belfos: que têm o lábio inferior

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mais saliente do que o superior, parecendo falar com a boca cheia. Tartamudos: que têm dificuldade em falar, repetindo sílabas e/ou pronunciando com rapidez muitas palavras; gago. Prognatas: que têm as maxilas inferiores alongadas e proeminentes. Zambros: coxos, mancos. Epiléticos: que padecem de uma doença cerebral caracterizada por convulsões. Albinos: que têm uma anomalia orgânica caracterizada por ausência ou grande falta de pigmento na pele. Alvares: aparvalhados. Sarna: afeção cutânea e contagiosa produzida por um ácaro. Chaga: ferida. Tinha: doença cutânea que ataca o couro cabeludo e o pelo. Tinhó: moléstia cutânea. Lázaros: leprosos. Quasímodos: corcundas.

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Unidade 4 // JOSÉ SARAMAGO

EDUCAÇÃO LITERÁRIA

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Educação Literária 14.1; 14.2; 14.3; 14.4; 14.5; 14.7; 15.1; 15.2.

Educação Literária 1. a) Traços épicos: • «a nau da Índia» (l. 3); • «Subiram homens à plataforma com longas e fortíssimas alavancas, esforçadamente soergueram a pedra ainda instável, e outros homens introduziram-lhe debaixo calços com o rasto de ferro, que puderam deslizar sobre o barro, agora vai ser fácil, Êeeeeeiii-ô, Êeeeeeiii-ô, Êeeeeeiii-ôô» (ll. 11-15). Estes excertos remetem para a epopeia dos Descobrimentos portugueses, nomeadamente, os obstáculos enfrentados e o esforço necessário para os ultrapassar (note-se a onomatopeia a sublinhar essa força anímica). b) Indício trágico: • «um homem distraiu-se, deixou ficar um pé debaixo da roda, ouviu-se um berro, um grito de dor insuportada, a viagem começa mal.» (ll. 6-8). Logo de início, houve um acidente, agouro de que algo mais grave poderia vir a acontecer. c) Tragédia: • «o corpo está debaixo do carro, esmagado, passou-lhe a primeira roda por cima.» (ll. 26-27). A viagem de regresso é marcada pela catastrófica morte de Francisco Marques. d) Narrador (posição): • «vão aqui seiscentos homens que não fizeram filho nenhum à rainha e eles é que pagam o voto, que se lixam, com perdão da anacrónica voz.» (ll. 18-19). O narrador não esconde a sua simpatia e solidariedade para com os trabalhadores. e) Críticas: • «todo o mundo puxa com entusiasmo, homens e bois, pena é que não esteja D. João V no alto da subida, não há povo que puxe melhor que este.» (ll. 15-16). • «vão aqui seiscentos homens que não fizeram filho nenhum à rainha e eles é que pagam o voto, que se lixam, com perdão da anacrónica voz.» (ll. 18-19). No primeiro excerto, critica-se a obediência cega do povo português, que se sacrifica muitas vezes sem saber porquê. No segundo excerto, critica-se o facto de que é o povo que «paga» as excentricidades dos mais poderosos. 1.1 As críticas apresentadas ainda fazem sentido, sendo bastante atuais. Frequentemente, o povo sacrifica-se por valores ditos maiores, que, no entanto, apenas servem uma minoria. Muitas vezes, são os socialmente mais fracos que saem lesados de situações adversas, para as quais nada contribuíram.

Epopeia trágica [Capítulo XIX]

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Escuro ainda, tocou a corneta. Os homens levantaram-se, enrolaram as mantas, […]. Descarregaram-se dos carros as cordas e os calabres, dispuseram-se as juntas de bois pelo caminho acima, em dois cordões. Mas ainda faltava vir a nau da Índia. Era uma plataforma de grossos madeiros assente sobre seis rodas maciças, de eixos rígidos, no tamanho um pouco maior que a laje que teria de transportar. Vinha puxada a braço, em grande alarido de quem fazia a força e de quem a mandava fazer, um homem distraiu-se, deixou ficar um pé debaixo da roda, ouviu-se um berro, um grito de dor insuportada, a viagem começa mal. A plataforma desceu muito devagar, amparada no declive pelos homens que prudentemente iam folgando as cordas, até finalmente entestar com a parede de terra que os pedreiros tinham alisado. Agora sim, se veriam ciência e arte. […] Subiram homens à plataforma com longas e fortíssimas alavancas, esforçadamente soergueram a pedra ainda instável, e outros homens introduziram-lhe debaixo calços com o rasto de ferro, que puderam deslizar sobre o barro, agora vai ser fácil, Êeeeeeiii-ô, Êeeeeeiii-ô, Êeeeeeiii-ôô, todo o mundo puxa com entusiasmo, homens e bois, pena é que não esteja D. João V no alto da subida, não há povo que puxe melhor que este. […] Deve-se a construção do convento de Mafra ao rei D. João V, por um voto que fez se lhe nascesse um filho, vão aqui seiscentos homens que não fizeram filho nenhum à rainha e eles é que pagam o voto, que se lixam, com perdão da anacrónica voz. […] Um dos homens que trabalham aos calços é Francisco Marques. Provou já a sua destreza, uma curva má, duas péssimas, três piores que todas, quatro só se fôssemos doidos, e por cada uma delas vinte movimentos, tem consciência de que está a fazer bem o trabalho […]. Distraiu-se talvez Francisco Marques, ou enxugou com o antebraço o suor da testa, ou olhou cá do alto a sua vila de Cheleiros, enfim se lembrando da mulher, fugiu-lhe o calço da mão no preciso momento em que a plataforma deslizava, não se sabe como isto foi, apenas que o corpo está debaixo do carro, esmagado, passou-lhe a primeira roda por cima, mais de duas mil arrobas só a pedra, se ainda estamos lembrados. José Saramago, op. cit., [cap. XIX], pp. 335-354.

1. Transcreve do texto excertos pertinentes para cada um dos tópicos, justificando a tua seleção. a) b) c) d) e)

Traços épicos Indício trágico Tragédia Narrador (posição) Críticas

1.1 Exprime o teu ponto de vista acerca da atualidade das críticas efetuadas.

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EDUCAÇÃO LITERÁRIA

Vida miserável [Capítulo XX]

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Fatigosos dias, mal dormidas noites. Por estes barracões repousam os operários, passam de vinte mil, acomodados em beliches toscos, para muitos, em todo caso, melhor cama que a nenhuma das suas casas, só a esteira no chão, o dormir vestido, a capa por inteiro agasalho, ao menos, em tempo de frio, se aquecem aqui os corpos uns aos outros, pior é quando vem o calor, com o bichedo de pulga e percevejo a chupar o sangue, e também o piolho da cabeça, o outro do corpo, os torturantes pruridos1. E o comichar do sexo, o engorgitamento2 dos humores, as descargas seminais do sonho, o vizinho de beliche resfolgando, se não há mulheres que faremos. É certo que há mulheres, porém não chegam a todos. Os mais afortunados são os da primitiva, os que se juntaram com viúvas e abandonadas, mas Mafra é terra pequena, em pouco tempo não ficou mulher devoluta3, agora a preocupação dos homens é defenderem de tentações e assaltos o seu jardim, ainda que de poucos ou nenhuns encantos. Algumas facadas têm sido trocadas por razões desta qualidade. Em caso de morte, vem o corregedor do crime, vêm os quadrilheiros, se preciso a tropa ajuda, vai o matador para a prisão, posto o que, de duas uma, se o criminoso foi o homem da mulher, em pouco tempo tem sucessor, se da mulher era o homem morto, em menos tempo ainda sucessor tem. E os outros, que fazem os outros. Esses rondam por estas ruas sempre lamacentas das águas despejadas, vão a certos becos onde as casas são também de tábuas, talvez construídas pela previdência da vedoria4, que não ignora o que são precisões de homem, talvez pela usura5 de um empreiteiro de bordéis, quem fez a casa vendeu, quem a comprou alugou, quem alugou alugou-se […]. Vieram para aqui rapagões que hoje, passados três ou quatro anos, estão podres dos pés à cabeça. Vieram limpas mulheres que mal acabaram de morrer tiveram de ser enterradas fundo porque se desfaziam em trampa e envenenavam o ar. No dia seguinte a casa tem nova inquilina. A enxerga é a mesma, os trapos nem foram lavados, um homem bate à porta e entra, não há perguntas a fazer nem respostas a dar, o preço é conhecido, desaperta-se ele, ela levanta as saias, gemeu ele o seu gozo, ela não precisa fingir, estamos entre gente séria. José Saramago, op. cit., [cap. XX], pp. 374-376.

1. Descreve criticamente as condições de vida dos trabalhadores. 2. Identifica o recurso expressivo em «talvez construídas pela previdência da vedoria, que não ignora o que são precisões de homem» (ll. 19-20), explicitando o seu valor. ORALIDADE

EXPRESSÃO ORAL

«Os fazedores do capricho».

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MC

Educação Literária 14.1; 14.2; 14.3; 14.4; 14.8; 14.9; 15.1; 15.2; 15.3.

Educação Literária 1. Os trabalhadores vivem em condições deploráveis, instalados em barracões. Apesar de terem condições precárias de alojamento, estas são, muitas vezes, melhores do que as dos seus lares de origem. No Verão, «o bichedo» vem atormentar os operários; os parasitas proliferam. Os homens também sofrem por falta de companheiras, já que em Mafra não há mulheres para todos. Em suma, as condições de vida degradam rapidamente homens e mulheres. 2. O recurso expressivo é a ironia. A instalação de «bordéis» não se deve à «previdência» (preocupação) da vedoria com o bem-estar dos homens; trata-se de mais uma forma de se aproveitarem da situação degradante dos trabalhadores. Oralidade

Recursos expressivos SIGA p. 383

Texto de opinião SIGA pp. 364-365

Texto de opinião Quem construiu Tebas, a das sete portas? Nos livros vem o nome dos reis. Mas foram os reis que transportaram as pedras? Bertolt Brecht, Poemas, Lisboa, Presença, 1976, p. 66.

1. Elabora um texto de opinião, de quatro a seis minutos, em que analises as questões levantadas no poema, relacionando-as com a construção do Convento de Mafra.

▪ Link Poema de Bertolt Brecht, «Perguntas de um Operário Letrado», por Mário Viegas ▪ Apresentação em PowerPoint Correção da atividade de Oralidade 1 Pruridos: comichões. 2 Engorgitamento: acumulação

de líquido (sangue ou outro) num órgão ou num vaso, que aumenta de volume por inchaço. 3 Devoluta: desocupada. 4 Vedoria: órgão administrativo que fiscaliza. 5 Usura: ganância, juro exagerado.

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Unidade 4 // JOSÉ SARAMAGO

FICHA INFORMATIVA 3 Linha de ação: construção do convento, a epopeia do trabalho

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Litografia do Palácio Nacional de Mafra (pormenor), 1853.

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Leitura 7.1; 7.2; 7.3; 8.1.

Consolida 1. a) Promessa do rei: construir um convento franciscano na vila de Mafra, caso lhe seja concedido um herdeiro; b) 1717; c) 13 frades; d) 300 religiosos, a família real e toda a corte; e) 22 de outubro de 1730, dia do 41.º aniversário do rei.

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O século XVIII não foi exatamente em Portugal um tempo de catedrais. Mas foi o tempo do Convento de Mafra, cuja construção permitiu a José Saramago lançar os olhos sobre a paisagem desse tempo passado. […] Desde os princípios do século XVII os franciscanos tentavam arrecadar fundos para a construção de um convento na terra de Mafra. A oportunidade parece surgir no ano de 1711 quando, depois de esperar cerca de três anos o nascimento do herdeiro que lhe daria D. Maria Ana de Áustria, D. João V decide aceitar a sugestão de um dos membros da ordem franciscana de Santa Maria da Arrábida – Frei António: mandar construir um convento caso Deus lhe conceda um herdeiro. […] Estava concedido o pedido, necessário se fazia o cumprimento do voto. Escolheu-se o local do convento – o Alto da Vela – e desde então dispôs-se a coroa a adquirir todos os terrenos necessários à sua construção. Em 1717 foi oficialmente lançada a primeira pedra e a cerimónia teria custado em torno de 200 000 cruzados (80 contos de ouro). Foi imensa, ao que se sabe, a indecisão do rei quanto às dimensões da obra. Se o projeto inicial se destinava a abrigar 13 frades, decidiu-se, finalmente, que o edifício – então gigantesco – deveria comportar 300 religiosos e ainda estar apto para receber a família real e toda a corte. […] A construção ficou a cargo do arquiteto alemão João Frederico Ludwig que, por ter vindo a Portugal na corte alemã da rainha D. Maria de Áustria, conseguiu ter a preferência real. Mas para a sua edificação e ornamentação concorreram ainda outros arquitetos, italianos na sua maioria. Aliás, toda a obra é marcada por nítidas influências estrangeiras, bem ao costume do século em Portugal. As obras prosseguiram a um ritmo normal até que, por decisão do rei, se fixou uma data para a cerimónia de sagração – 22 de outubro de 1730, dia do seu 41.º aniversário. Aceleraram-se os trabalhos e, para tanto, foi recrutada em todo o reino uma multidão de trabalhadores «que chegaram a 52 000, dos quais 45 000 eram operários e 7000 soldados». Teresa Cristina Cerdeira da Silva, «A História do Convento e o Memorial do Convento», in José Saramago – entre a História e a ficção: uma saga de portugueses, Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1989, pp. 31, 43-44.

CONSOLIDA

1. Completa a tabela com as principais etapas da construção do convento. 1711 a)________

b)________ Lançamento da primeira pedra

Lotação inicial

Lotação final

e)________

c)________

d)________

Cerimónia de sagração

Ficha informativa

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FICHA INFORMATIVA 4 Visão crítica I

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O caminho do de José Saramago é exatamente o de duvidar dos monumentos tradicionalmente aceites e de ir buscar outras marcas deixadas pelo homem na sua caminhada. Se a história dos dominantes impôs silêncio à voz dos dominados, é preciso «escrutar as fábulas, os mitos, os sonhos da imaginação», ou ainda, […], ter a habilidade de utilizar tudo o que lhe permita «fabricar o seu mel, na falta das flores habituais». O texto começa, como vimos, com D. João V e os dramas da família real. Nada mais justo que do herdeiro se passe a Mafra, ao convento cuja construção vai ser resgatada pelo novo discurso, enquanto ficção, revela a História. […] O romance questiona, justamente, o facto de D. João V entrar para a História como o construtor de Mafra, que na verdade não é. […] O narrador desloca o eixo tradicional de leitura do passado, comprometido com a nobreza e o clero e deixa emergir o povo e aí elege os seus novos heróis, nomeia-os quando o silêncio da história vitoriosa tentara encobrir os seus nomes. […] O narrador tem consciência que esses novos heróis criam uma nova visão da História, pois opõem-se aos heróis tradicionais. Eles subvertem a ordem, dominam a estória e impõem-se à história. […] Estamos de certa forma tão perto e, paradoxalmente, tão longe daqueles versos que ecoam na nossa memória literária: «Cantando espalharei por toda a parte!» Se para Camões cantar é eternizar, como aqui escrever é «torná-los imortais». […] Cortejo grotesco, mas «verdades são verdades», e o compromisso dos historiadores e dos poetas que anseiam alçar-se a esse pacto do poético e do histórico é o de «contar acontecimentos verdadeiros que tenham o homem por ator», pois «a história é um romance verdadeiro». […] O povo do , como nos demais romances de Saramago, readquire forma e identidade, nem que, para isso, a ficção se incumba de nomeá-los para lhes dar vida, preenchendo as «zonas silenciosas», as zonas esquecidas dos sem-história. Aqueles cadáveres expostos ao estudo da medicina, que eram descritos por um discurso que falava por eles, ganham voz, e a ótica da narração inverte-se. Porque é agora outra a ótica através da qual se narra a nova história do século XVIII português, fazendo do um discurso contra-ideológico, um discurso desalienante1, que pretende destruir a ideia de que só o dominador é capaz de operar com símbolos, logo, de que só ele é capaz de pensar.

PROFESSOR

MC

Leitura 7.1; 7.2; 7.3; 8.1.

Consolida 1. a) «O narrador desloca o eixo tradicional de leitura do passado, comprometido com a nobreza e o clero e deixa emergir o povo e aí elege os seus novos heróis, nomeia-os quando o silêncio da história vitoriosa tentara encobrir os seus nomes.» (ll. 12-14). b) «Cortejo grotesco» (l. 21). c) «um discurso contra-ideológico, um discurso desalienante, que pretende destruir a ideia de que só o dominador é capaz de operar com símbolos, logo, de que só ele é capaz de pensar.» (ll. 31-33).

1 Desalienante: interven-

tivo, denunciador.

Teresa Cristina Cerdeira da Silva, «Memorial do Convento», in , Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1989, pp. 32-35. CONSOLIDA

1. Justifica, com transcrições do texto, as seguintes afirmações. a) Memorial do Convento dá voz aos esquecidos e silenciados pela História. b) Os verdadeiros heróis assumem contornos opostos aos dos heróis tradicionais. c) Memorial do Convento aniquila a ideia de que apenas os poderosos raciocinam. Edvard Munch, Operários Regressando a Casa (pormenor), 1913-1915.

322

Unidade 4 // JOSÉ SARAMAGO

Linha de ação: Baltasar e Blimunda, a sublimação do amor

PROFESSOR

MC

Oralidade 1.1; 1.3; 1.4; 2.1.

Era uma vez um soldado maneta e uma mulher que tinha poderes.

Educação Literária 14.1; 14.2; 14.3; 14.4; 14.8; 15.1; 15.2.

in Memorial do Convento, Alfragide, Editorial Caminho, 2013 (excerto da contracapa).

PONTO DE PARTIDA ▪ Link «Tens os olhos de Deus», Ana Moura

1. Visiona com atenção o vídeo da canção de Ana Moura, «Tens os olhos de Deus», do álbum Moura (2015). Refere-te à importância do encontro com o «outro» e com o seu «olhar» no relacionamento amoroso.

▪ Documento Letra da canção «Tens os olhos de Deus» Ponto de Partida Os encontros com o «outro» e com o seu «olhar» equivalem a momentos festivos e de intensa alegria («Habitam astros e céus, / Foguetes rosa e carmim, / Rodas na festa da aldeia/ Palpitam sinos na veia»); saciam todos os desejos («Já não preciso de mais»). Enfim, estes momentos «tocam por dentro» quem ama.

Khalid Albusaidi, Ana Moura no Royal Opera House, Mascate, Omã, 2016.

EDUCAÇÃO LITERÁRIA

Baltasar Sete-Sóis [Capítulo IV]

Educação Literária 1. a) Nome: Baltasar Mateus, alcunha: Sete-Sóis; simbolismo de Sol: princípio ativo e masculino; vida, imortalidade; b) Ocupação anterior: soldado e pedinte; atual: não tem; c) Características físicas: aparência livre e desempenada; não tem a mão esquerda, usando em sua vez um gancho; vem descalço e traz uma espada consigo; d) Naturalidade: Mafra (onde tem pai e mãe); e) Destino: Lisboa.

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1 Desafrontada: aberta, livre. 2 Desparelhadas: de diversos

estilos. 3 Jerez de los Caballeros: locali-

dade em Badajoz, Espanha. 4 Coto: resto de membro que

foi amputado. 5 Seleiro: fabricante ou vendedor de selas, selins e arreios.

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Este que por desafrontada1 aparência, sacudir da espada e desparelhadas2 vestes, ainda que descalço, parece soldado, é Baltasar Mateus, o Sete-Sóis. Foi mandado embora do exército por já não ter serventia nele, depois de lhe cortarem a mão esquerda pelo nó do pulso, estraçalhada por uma bala em frente de Jerez de los Caballeros3 […]. […] Com ervas cicatrizantes lhe almofadaram o coto4, e tão excelente era a carnadura de Sete-Sóis que ao cabo de dois meses estava sarado. Por ser pouco o que pudera guardar do soldo, pedia esmola em Évora para juntar as moedas que teria de pagar ao ferreiro e ao seleiro5 se queria ter o gancho de ferro que lhe havia de fazer as vezes da mão. […] Começou Sete-Sóis a sua viagem ao tempo de se saber que já o exército da Beira se deixava ficar pelos quartéis e não vinha ajudar ao Alentejo por ser a fome muita nesta província, sobre ser geral nas outras. […] Sete-Sóis, mutilado, caminhava para Lisboa pela estrada real, credor de uma mão esquerda que ficara parte em Espanha e parte em Portugal, por artes de uma guerra em que se haveria de decidir quem viria a sentar-se no trono de Espanha, se um Carlos austríaco ou um Filipe francês, português nenhum, se completos ou manetas, se inteiros ou mancos, salvo se deixar membros cortados no campo ou vidas perdidas não é apenas sina de quem tiver de nome soldado e para se sentar o chão ou pouco mais. Saiu Sete-Sóis de Évora, passou Montemor, não leva por companhia e ajuda frade ou diabinho, e para mão furada já lhe basta a sua. Veio andando devagar. Não tem ninguém à sua espera em Lisboa, e em Mafra, donde partiu anos atrás para assentar praça na infantaria de sua majestade, se pai e mãe se lembram dele, julgam-no vivo porque não têm notícias de que esteja morto, ou morto porque as não têm de que seja vivo. Enfim, tudo acabará por saber-se com o tempo. José Saramago, op. cit., [cap. IV], pp. 45-47.

1. Faz a caracterização da personagem, tendo em conta os seguintes elementos a) Nome e simbolismo da alcunha b) Ocupação anterior e atual c) Características físicas

d) Naturalidade e) Destino

DS

Breve dicionário de símbolos

Memorial do Convento – Linhas de ação

Do auto de fé ao amor

PROFESSOR

[Capítulo V]

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D. Maria Ana não irá hoje ao auto de fé. […] Apesar de já ir no quinto mês, ainda sofre dos enjoos naturais, que, no entanto, também não bastariam a desviar-lhe a devoção e os sentidos de vista, ouvido e cheiro da solene cerimónia, tão levantadeira das almas, ato tão de fé, a procissão compassada, a descansada leitura das sentenças, as descaídas figuras dos condenados, as lastimosas vozes, o cheiro da carne estalando quando lhe chegam as labaredas e vai pingando para as brasas a pouca gordura que sobejou dos cárceres. […] Porém, hoje é dia de alegria geral, por ventura a palavra será imprópria, porque o gosto vem demais fundo, talvez da alma, olhar esta cidade saindo de «São cento e quatro». suas casas, despejando-se pelas ruas e praças, descendo dos altos, juntando-se no Rossio para ver justiçar a judeus e cristãos-novos1, a hereges e feiticeiros, fora aqueles casos menos correntemente qualificáveis, como os de sodomia2, molinismo3, reptizar4 mulheres e solicitá-las, e outras miuçalhas passíveis de degredo5 ou fogueira. […] Grita o povinho furiosos impropérios6 aos condenados, guincham as mulheres debruçadas dos peitoris, alanzoam7 os frades, a procissão é uma serpente enorme que não cabe direita no Rossio e por isso se vai curvando e recurvando como se determinasse chegar a toda a parte ou oferecer o espetáculo edificante a toda a cidade, aquele que ali vai é Simeão de Oliveira e Sousa, sem mester8 nem benefício, mas que do Santo Ofício declarava ser qualificador9, e sendo secular10 dizia missa, confessava e pregava, […] aquele é o padre António Teixeira de Sousa, da ilha de S. Jorge, por culpas de solicitar mulheres, maneira canónica de dizer que as apalpava e fornicava, decerto começando na palavra do confessionário e terminando no ato recato da sacristia, enquanto não vai corporalmente acabar em Angola, para onde irá degredado por toda a vida, e esta sou eu, Sebastiana Maria de Jesus, um quarto de cristã-nova, que tenho visões e revelações, mas disseram-me no tribunal que era fingimento, que ouço vozes do céu, mas explicaram-me que era efeito demoníaco, que sei que posso ser santa como os santos o são, ou ainda melhor, pois não alcanço diferença entre mim e eles, mas repreenderam-me de que isso é presunção insuportável e orgulho monstruoso, desafio a Deus, aqui vou blasfema, herética, temerária, amordaçada para que não me ouçam as temeridades, as heresias e as blasfémias, condenada a ser açoitada em público e a oito anos de degredo no reino de Angola, e tendo ouvido as sentenças, as minhas e mais de quem comigo vai nesta procissão, não ouvi que se falasse da minha filha, é seu nome Blimunda, onde estará, onde estás Blimunda, se não foste presa depois de mim, aqui

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MC

Educação Literária 14.1; 14.2; 14.3; 14.4; 14.5; 14.7;14.8; 14.9; 15.1; 15.2;15.3. Gramática 18.2.

Educação Literária 1. D. Maria Ana Josefa não se deslocará ao Rossio porque está grávida de cinco meses e «ainda sofre dos enjoos naturais». Ficamos assim a saber que el-rei D. João V irá ter de honrar a sua palavra e erigir o convento em Mafra. 2. A descrição dos autos de fé está repleta de apelos às sensações, «os sentidos de vista, ouvido e cheiro da solene cerimónia, tão levantadeira das almas, ato tão de fé, a procissão compassada, a descansada leitura das sentenças [audição], as descaídas figuras dos condenados [visão], as lastimosas vozes [audição], o cheiro da carne [olfato] estalando [audição] quando lhe chegam as labaredas [visão] e vai pingando para as brasas a pouca gordura [visão] que sobejou dos cárceres». As sensações conferem maior dinamismo descritivo e vivacidade à narrativa, tornam a descrição mais sugestiva, recriando a ambiência dos autos de fé, para a qual o leitor é mais facilmente transportado através dos seus sentidos. 3. O elemento destacado é Sebastiana Maria de Jesus, que foi condenada pelas suas «visões e revelações», consideradas como um «efeito demoníaco». Por isso, foi «condenada a ser açoitada em público e a oito anos de degredo no reino de Angola» (ll. 30-31).

1 Cristãos-novos: judeus que se con-

verteram ao cristianismo. 2 Sodomia: prática homossexual. 3 Molinismo: doutrina de Luís de

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Molina, que tentava conciliar a eficácia da graça divina com o livre-arbítrio. Reptizar: lançar desafio, provocar. Degredo: pena de desterro, exílio. Impropérios: insultos. Alanzoam: dizem coisas à toa. Mester: ofício, cargo. Qualificador: inquisidor que tinha a seu cargo julgar os livros ou proposições, do ponto de vista da fé. Secular: quem não está sujeito a nenhuma ordem religiosa.

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Unidade 4 // JOSÉ SARAMAGO

PROFESSOR

4. Sebastiana encontra-se confusa sobre aquilo que «vê» e «sente» e aquilo que o Tribunal Inquisitorial lhe disse: «disseram-me no tribunal que era fingimento» (l. 25). No seu íntimo, sabe que está a ser injustiçada pela sua excecionalidade. Porém, a sua maior preocupação é a sua filha e o que se teria passado com ela após a sua prisão, temendo que algo lhe tivesse acontecido. 5. É através da perspetiva de Sebastiana que apreciamos as personagens: primeiro, Blimunda, que se destaca pelos seus olhos («olha com esses teus olhos que tudo são capazes de ver», ll. 53-54); seguidamente, reconhece um dos homens que com ela está («ao lado dela está o padre Bartolomeu Lourenço», ll. 52-53) e, finalmente, questiona-se sobre o outro homem que rodeia Blimunda e o seu futuro juntos («e aquele homem quem será, tão alto, que está perto de Blimunda e não sabe», ll. 54-55; «que vai ser deles, poder meu», ll. 55-56). 6. São reconstituídos, neste excerto, os momentos dos autos de fé, comuns no tempo histórico da ação. O leitor tem um lugar privilegiado para assistir a este «espetáculo edificante»: não só tem acesso ao espaço geográfico (do Rossio), onde se realizavam os autos, como ao espaço social (do «povinho», em «dia de alegria geral», gritando «impropérios» e atirando «imundícies»); e ainda acede, através da omnisciência do narrador, ao espaço psicológico dos sentenciados («que ouço vozes do céu, mas explicaram-me que era efeito demoníaco», ll. 35-36). 7. Este episódio é fulcral para o desenvolvimento da ação: por um lado, porque se dá o primeiro encontro do par amoroso (Baltasar e Blimunda); por outro lado, com a presença do padre Bartolomeu Lourenço de Gusmão, reúne-se, pela primeira vez, o trio que irá construir a passarola. 8. a) A metáfora com a serpente associa a procissão (cerimónia que deveria ser sagrada) a um animal simbolicamente pérfido e traidor, denunciando os verdadeiros propósitos da Inquisição. b) A ironia enfatiza a degradação de valores e a mais básica violação de direitos humanos que os autos de fé representavam, sendo tudo menos «edificantes». Gramática 1. a) Coesão gramatical referencial. b) «mim» e «eu»: «Sebastiana Maria de Jesus»; «tua»; «te»: «Blimunda».

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hás de vir saber da tua mãe, e eu te verei se no meio dessa multidão estiveres, que só para te ver quero agora os olhos, a boca me amordaçaram, não os olhos, olhos que não te viram, coração que sente e sentiu, ó coração meu, salta-me no peito se Blimunda aí estiver, entre aquela gente que está cuspindo para mim e atirando cascas de melancia e imundícies, ai como estão enganados, só eu sei que todos poderiam ser santos, assim o quisessem, e não posso gritá-lo, enfim o peito me deu sinal, gemeu profundamente o coração, vou ver Blimunda, vou vê-la, ai, ali está, Blimunda, Blimunda, Blimunda, filha minha, e já me viu, e não pode falar, tem de fingir que me não conhece ou me despreza, mãe feiticeira e marrana11 ainda que apenas um quarto, já me viu, e ao lado dela está o padre Bartolomeu Lourenço, não fales, Blimunda, olha só, olha com esses teus olhos que tudo são capazes de ver, e aquele homem quem será, tão alto, que está perto de Blimunda e não sabe, ai não sabe não, quem é ele, donde vem, que vai ser deles, poder meu, pelas roupas soldado, pelo rosto castigado, pelo pulso cortado, adeus Blimunda que não te verei mais. José Saramago, op. cit., [cap. V], pp. 63-69. 11 Marrana: designação injuriosa que se dava

aos muçulmanos e judeus que viviam em Portugal.

1. Indica o motivo pelo qual a rainha não se deslocará ao Rossio, relacionando-o com a promessa do rei. 2. Refere-te ao papel das sensações na descrição dos autos de fé, no final do primeiro parágrafo. 3. Nomeia o elemento dos condenados que é destacado, referindo-te à acusação de que é alvo e respetiva pena. 4. Apresenta o estado de espírito desse elemento. 5. Analisa o seu ponto de vista perante as personagens que descreve, no final do excerto. 6. Comenta o interesse do texto enquanto documento do tempo histórico. 7. Avalia a importância deste episódio no desenvolvimento da ação. 8. Identifica os recursos expressivos presentes nos seguintes excertos explicitando o seu valor. a) «a procissão é uma serpente enorme que não cabe direita no SIGA Recursos expressivos p. 383 Rossio» (ll. 25-26) b) «o espetáculo edificante a toda a cidade» (l. 27)

GRAMÁTICA

Coesão textual SIGA p. 377

1. Atenta no seguinte excerto. «[…] onde estás Blimunda, se não foste presa depois de mim, aqui hás de vir saber da tua mãe, e eu te verei se no meio dessa multidão estiveres […]» (ll. 43-44). a) Identifica o tipo de coesão que os elementos destacados asseguram. b) Indica os respetivos referentes.

Memorial do Convento – Linhas de ação

EDUCAÇÃO LITERÁRIA

PROFESSOR

A união de Blimunda e Baltasar [Capítulo V]

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[…] Blimunda disse ao padre, Ali vai minha mãe, e depois, voltando-se para o homem alto que lhe estava perto, perguntou, Que nome é o seu, e o homem disse, naturalmente, assim reconhecendo o direito de esta mulher lhe fazer perguntas, Baltasar Mateus, também me chamam Sete-Sóis. […] Porém, agora, em sua casa, choram os olhos de Blimunda como duas fontes de água […]. Baltasar Mateus, o Sete-Sóis, está calado, apenas olha fixamente Blimunda, e de cada vez que ela o olha a ele sente um aperto na boca do estômago, porque olhos como estes nunca se viram, claros de cinzento, ou verde, ou azul, que com a luz de fora variam ou o pensamento de dentro, e às vezes tornam-se negros noturnos ou brancos brilhantes como lascado carvão de pedra. Veio a esta casa não porque lhe dissessem que viesse, mas Blimunda perguntara-lhe que nome tinha e ele respondera, não era necessária melhor razão. Terminado o auto de fé, varridos os restos, Blimunda retirou-se, o padre foi com ela, e quando Blimunda chegou a casa deixou a porta aberta para que Baltasar entrasse. Ele entrou e sentou-se, o padre fechou a porta e acendeu uma candeia […]. […] Sete-Sóis […] agora só tem olhos para os olhos de Blimunda, ou para o corpo dela, que é alto e delgado […]. Blimunda levantou-se do mocho1, acendeu o lume na lareira, pôs sobre a trempe2 uma panela de sopas, e quando ela ferveu deitou uma parte para duas tigelas largas que serviu aos dois homens, fez tudo isto sem falar, não tornara a abrir a boca depois que perguntou, há quantas horas, Que nome é o seu, e apesar de o padre ter acabado primeiro de comer, esperou que Baltasar terminasse para se servir da colher dele, era como se calada estivesse respondendo a outra pergunta, Aceitas para a tua boca a colher de que se serviu a boca deste homem, fazendo seu o que era teu, agora tornando a ser teu o que foi dele, e tantas vezes que se perca o sentido do teu e do meu, e como Blimunda já tinha dito que sim antes de perguntada, Então declaro-vos casados. O padre Bartolomeu Lourenço esperou que Blimunda acabasse de comer da panela as sopas que sobejavam, deitou-lhe a bênção, com ela cobrindo a pessoa, a comida e a colher, o regaço, o lume na lareira, a candeia, a esteira3 no chão, o punho cortado de Baltasar. Depois saiu.

MC

Educação Literária 14.1; 14.2; 14.3; 14.4; 14.5; 14.8; 15.1; 15.2. Gramática 19.3.

«Sete-Sóis, Sete-Luas».

1 Mocho: banquinho baixo. 2 Trempe: aro ou triângulo de

ferro que assenta sobre três pés e sobre o qual se coloca a panela ao lume. 3 Esteira: tapete feito de tecido grosseiro de esparto, junco, palha, tabuinhas.

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Unidade 4 // JOSÉ SARAMAGO

PROFESSOR

Educação Literária 1. Blimunda tem dezanove anos, ainda é virgem quando se deita com Baltasar pela primeira vez. Blimunda tem um corpo «alto e delgado», mas são os seus olhos que mais impressionam Baltasar, que pressente que Blimunda tem poderes especiais, acusando-a de os usar para o prender «deitaste-me um encanto»; «Olhaste-me por dentro» (l. 53), o que Blimunda nega, retorquindo «Não sabes de que estás a falar, não te olhei por dentro» (ll. 54-55). 2. Esta cerimónia é realizada de uma forma simples e espontânea com a colher de comer as «sopas». Apesar de o padre terminar mais depressa a refeição, Blimunda espera pela colher de Baltasar para comer também ela. Este gesto simboliza a união entre os dois, deixando a sua individualidade e passando apenas a serem um, «Aceitas para a tua boca a colher de que se serviu a boca deste homem, fazendo seu o que era teu, agora tornando a ser teu o que foi dele, e tantas vezes que se perca o sentido do teu e do meu» (ll. 35-37). 3. A bênção do padre não se limita apenas a Blimunda, estende-se ao casal e aos seus pertences («com ela cobrindo a pessoa, a comida e a colher, o regaço, o lume na lareira, a candeia, a esteira no chão, o punho cortado de Baltasar», ll. 40-41). Assim, embora não sejam oficialmente casados, a cerimónia «matrimonial», que acabara de se realizar, foi abençoada, sacralizada, por um elemento do clero. 4. O relacionamento dos protagonistas é instintivo e genuíno, Baltasar revela o seu nome a Blimunda, reconhecendo-lhe autoridade para lho perguntar; segue-a e entra na sua casa, com a maior naturalidade; Blimunda come com a colher de Baltasar como se fizesse o voto matrimonial; relacionam-se intimamente, e o sangue virginal de Blimunda serve para ela própria se benzer e fazer uma cruz no peito de Baltasar, estabelecendo um laço de sangue eterno entre os dois.

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Por uma hora ficaram os dois sentados, sem falar. Apenas uma vez Baltasar se levantou para pôr alguma lenha na fogueira que esmorecia, e uma vez Blimunda espevitou o morrão4 da candeia que estava comendo a luz e então, sendo tanta a claridade, pôde Sete-Sóis dizer, Por que foi que perguntaste o meu nome, e Blimunda respondeu, Porque minha mãe o quis saber e queria que eu o soubesse, Como sabes, se com ela não pudeste falar, Sei que sei, não sei como sei, não faças perguntas a que não posso responder, faze como fizeste, vieste e não perguntaste porquê, E agora, Se não tens onde viver melhor, fica aqui, Hei de ir para Mafra, tenho lá família, Mulher, Pais e uma irmã, Fica, enquanto não fores, será sempre tempo de partires, Por que queres tu que eu fique, Porque é preciso, Não é razão que me convença, Se não quiseres ficar, vai-te embora, não te posso obrigar, Não tenho forças que me levem daqui, deitaste-me um encanto, Não deitei tal, não disse uma palavra, não te toquei, Olhaste-me por dentro, Juro que nunca te olharei por dentro, Juras que não o farás e já o fizeste, Não sabes de que estás a falar, não te olhei por dentro, Se eu ficar, onde durmo, Comigo. Deitaram-se. Blimunda era virgem. Que idade tens, perguntou Baltasar, e Blimunda respondeu, Dezanove anos, mas já então se tornara muito mais velha. Correu algum sangue sobre a esteira. Com as pontas dos dedos médio e indicador humedecidos nele, Blimunda persignou-se5 e fez uma cruz no peito de Baltasar, sobre o coração. Estavam ambos nus. Numa rua perto ouviram vozes de desafio, bater de espadas, correrias. Depois o silêncio. Não correu mais sangue. Quando, de manhã, Baltasar acordou, viu Blimunda deitada ao seu lado, a comer pão, de olhos fechados. Só os abriu, cinzentos àquela hora, depois de ter acabado de comer, e disse, Nunca te olharei por dentro. José Saramago, op. cit., [cap. V], pp. 71-74.

4 Morrão: extremidade carbonizada de torcida ou mecha. 5 Persignou-se: benzeu-se, fazendo com o dedo polegar da mão

direita uma cruz na testa, outra na boca e outra no peito.

1. Caracteriza Blimunda, identificando os atributos que mais atraem Baltasar. 2. Refere-te à cerimónia matrimonial entre Baltasar e Blimunda, explicitando o seu simbolismo. 3. Clarifica a importância do gesto do padre Bartolomeu ao «deitar a bênção». 4. Comenta o relacionamento entre os dois protagonistas.

GRAMÁTICA Gramática 1. a) Relação de anterioridade; b) Relação de posterioridade; c) Relação de anterioridade; d) Relação de posterioridade.

FI

Valor temporal pp. 57-58

1. Indica nos seguintes excertos as relações de ordem cronológica entre o tempo do enunciado e o respetivo ponto de referência. a) «Juras que não o farás, e já o fizeste» (l. 41). b) «Nunca te olharei por dentro.» (l. 41). c) «Blimunda respondeu, Dezanove anos, mas já então se tornara muito mais velha.» (ll. 43-44). d) «Só os abriu, cinzentos àquela hora, depois de ter acabado de comer» (ll. 50-51).

Memorial do Convento – Linhas de ação

EDUCAÇÃO LITERÁRIA

PROFESSOR

Blimunda Sete-Luas

DS

Breve dicionário de símbolos

Texto A [Capítulo VIII]

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Lembras-te da primeira vez que dormiste comigo, teres dito que te olhei por dentro, Lembro-me, […] Eu posso olhar por dentro das pessoas. Sete-Sóis soergueu-se na enxerga, incrédulo, e também inquieto, Estás a mangar1 comigo, ninguém pode olhar por dentro das pessoas, Eu posso, Não acredito, Primeiro, quiseste saber, não descansavas enquanto não soubesses, agora já sabes e dizes que não acreditas, antes assim, mas daqui para o futuro não me tires o pão, [...] Amanhã não comerei quando acordar, sairemos depois de casa e eu vou-te dizer o que vir, mas para ti nunca olharei, nem te porás na minha frente, queres assim, Quero, respondeu Baltasar […]. Não dormiu ele, ela não dormiu. […] Blimunda vai à frente, Baltasar atrás, para que o não veja ela, para que saiba ele o que ela vê, quando lho disser. E isto lhe diz, A mulher que está sentada no degrau daquela porta tem na barriga um filho varão, mas o menino leva duas voltas de cordão enroladas ao pescoço, tanto pode viver como morrer, a sabê-lo não chego, […] e este velho que passa está como eu estou, de estômago vazio, mas vai-se-lhe a vista, é o contrário de mim, […] E como hei de eu acreditar que tudo isso é verdade, se tu vais explicando coisas que eu não posso ver com os meus olhos, perguntou Baltasar, e Blimunda respondeu, Faze com o teu espigão um buraco naquele lugar e encontrarás uma moeda de prata, e Baltasar fez o buraco e encontrou, Enganaste-te, Blimunda, a moeda é de ouro, Melhor para ti, e eu não deveria ter arriscado, porque sempre confundo a prata com o ouro, mas em ser moeda e valiosa acertei, que mais queres, tens a verdade e o lucro […].

MC

Educação Literária 14.1; 14.2; 14.3; 14.4; 14.8; 15.1; 15.2.

1. Blimunda apresenta facetas diferentes nos dois textos. No primeiro, aparece como personagem da esfera do fantástico, capaz de «olhar por dentro» pessoas. Apresenta alguns traços sibilinos, já que consegue, de antemão, ver o que se passa no interior dos seres/ elementos. No Texto B, Blimunda aparece como uma simples mulher do povo, que trabalha na horta e cuida do seu homem («Blimunda, com o enxadão, cortou e pôs ao sol as raízes.», ll. 5-6; «ela cata-lhe os bichos», l. 8). Sete-Luas, princípio feminino e passivo; símbolo da fertilidade e do ciclo dos elementos da Natureza; relaciona-se ainda com o sonho, o inconsciente e o noturno. Todas estas características se aplicam a Blimunda − ser misterioso, que complementa Baltasar Sete-Sóis. 1 Mangar: brincar, gozar. 2 Abegoaria: lugar para guardar

animais e material agrícola. 3 Milhãs: plantas que nascem

espontaneamente. 4 Filar: ferrar, agarrar.

José Saramago, op. cit., [cap. VIII], pp. 102-107.

Texto B [Capítulo IX]

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Vivem dentro da abegoaria2, ou saem a tomar o sol, cerca-os a grande quinta abandonada onde as árvores de fruto vão regressando à braveza natural, as silvas cobrindo os caminhos, e no lugar da horta encrespam-se florestas de milhãs3 e figueiras-do-inferno, mas já Baltasar, com a foice, rapou a maior, e Blimunda, com o enxadão, cortou e pôs ao sol as raízes, havendo tempo ainda esta terra dará alguma coisa do que deve ao trabalho. Mas também não faltam lazeres, por isso, quando a comichão aperta, Baltasar pousa a cabeça no regaço de Blimunda e ela cata-lhe os bichos […]. Blimunda é que não tem quem a cate. Faz Baltasar o que pode, mas se lhe chegam mãos e dedos para filar4 o inseto, faltam-lhe dedos e mão que segurem os pesados, espessos cabelos de Blimunda, cor de mel sombrio, que mal ele os afasta logo regressam, e assim escondem a caça. A vida dá para todos. José Saramago, op. cit., [cap. IX], pp. 119-120.

1. Tendo em conta as duas facetas reveladas nos textos, procede à caracterização de Blimunda Sete-Luas, referindo-te ao simbolismo da sua alcunha. «Nunca te olharei por dentro».

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Unidade 4 // JOSÉ SARAMAGO

EDUCAÇÃO LITERÁRIA

Um homem e uma mulher Texto A [Capítulo XXIII]

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«Baltasar Mateus». PROFESSOR

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Educação Literária 14.1; 14.2; 14.3; 14.4; 14.5; 14.7; 14.8; 15.1; 15.2; 15.3. Oralidade 1.1; 1.4; 1.7; 2.1; 3.1; 4.1; 5.1; 5.2; 5.3.

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Educação Literária 1. Há no excerto várias evidências de que, embora já não possuíssem o fulgor da juventude, Baltasar e Blimunda eram apaixonados («abre-os ele a ela, abre-os ela a ele»); “davam-se um ao outro” amiúde («são o escândalo da vila de Mafra»), num amor eterno e insaciável («pela sofreguidão do beijo, pobres bocas, perdida está a frescura, perdidos alguns dentes, partidos outros, afinal o amor existe sobre todas as coisas», ll. 21-23).

José Saramago, op. cit., [cap. XXIII], pp. 451-460.

Texto B [Capítulo I]

1 Canoso: grisalho. 2 Estertor: ruído da respiração. 3 Prumos: pilares, infraestrutu-

ras. 4 Fímbria: extremidade inferior

Baltasar não tem espelhos, a não ser estes nossos olhos que o estão vendo a descer o caminho lamacento para a vila, e eles são que lhe dizem, Tens a barba cheia de brancas, Baltasar, tens a testa carregada de rugas, Baltasar, tens encorreado o pescoço, Baltasar, já te descaem os ombros, Baltasar, nem pareces o mesmo homem, Baltasar, mas isto é certamente defeito dos olhos que usamos, porque aí vem justamente uma mulher, e onde nós víamos um homem velho, vê ela um homem novo, o soldado a quem perguntou um dia, Que nome é o seu, ou nem sequer a esse vê, apenas a este homem que desce, sujo, canoso1 e maneta, Sete-Sóis de alcunha, se a merece tanta canseira, mas é um constante sol para esta mulher, não por sempre brilhar, mas por existir tanto, escondido de nuvens, tapado de eclipses, mas vivo, Santo Deus, e abre-lhe os braços, quem, abre-os ele a ela, abre-os ela a ele, ambos, são o escândalo da vila de Mafra […]. Para dentro da barraca o levou Blimunda, não era a primeira vez que ali entravam a horas noturnas, ora por vontade de um, ora por vontade do outro, faziam-no quando a necessidade da carne se anunciava mais expansiva, quando adivinhavam que não poderiam sufocar o gemido, o estertor2, talvez o grito […]. A antiga e larga manjedoura, que nos tempos da sua utilidade estivera fixada aos prumos3 da barraca, a altura conveniente, estava agora no chão, meio desconjuntada, mas confortável como um leito real, afofada de palha, com duas mantas velhas. […] [T]alvez Blimunda, não por ter puxado Baltasar para a barraca, sempre foi mulher para dar o primeiro passo, para dizer a primeira palavra, para fazer o primeiro gesto, mas por uma ânsia que lhe aperta a garganta, pela violência com que abraça Baltasar, pela sofreguidão do beijo, pobres bocas, perdida está a frescura, perdidos alguns dentes, partidos outros, afinal o amor existe sobre todas as coisas.

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de peça de vestuário; orla. 5 Impudicícias: faltas de pudor,

de vergonha ou honra. 6 Impetra: pede; suplica. 7 Percevejos: insetos que se ali-

mentam, maioritariamente, de sucos de vegetais, podendo, 10 no entanto, alimentar-se de sangue. 8 Vademeco: livro de referência.

Vestem a rainha e o rei camisas compridas, que pelo chão arrastam, a do rei somente a fímbria4 bordada, a da rainha bom meio palmo mais, para que nem a ponta dos pés se veja, o dedo grande ou os outros, das impudicícias5 conhecidas talvez seja esta a mais ousada. D. João V conduz D. Maria Ana ao leito, leva-a pela mão como no baile o cavaleiro à dama, e antes de subirem os degrauzinhos, cada um de seu lado, ajoelham-se e dizem as orações acautelantes necessárias, para que não morram no momento do ato carnal, sem confissão, para que desta nova tentativa venha a resultar fruto, e sobre este ponto tem D. João V razões dobradas para esperar, confiança em Deus e no seu próprio vigor, por isso está dobrando a fé com que ao mesmo Deus impetra6 sucessão. […] Já se deitaram. Esta é a cama que veio da Holanda quando a rainha veio da Áustria mandada fazer de propósito pelo rei […]. Quando a cama aqui foi posta e armada ainda não havia percevejos7 nela, tão nova era, mas depois, com o uso, o calor dos corpos, as

Memorial do Convento – Linhas de ação

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migrações no interior do palácio, ou da cidade para dentro, donde este bichedo vem é que não se sabe […]. D. Maria Ana estende ao rei a mãozinha suada e fria, que mesmo tendo aquecido debaixo do cobertor logo arrefece ao ar gélido do quarto, e el-rei, que já cumpriu o seu dever, e tudo espera do convencimento e criativo esforço com que o cumpriu, beija-lha como a rainha e futura mãe, se não presumiu demasiado frei António de S. José. […] José Saramago, op. cit., [cap. I], pp. 17-18.

Texto C [Capítulo X]

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Há muitos modos de juntar um homem e uma mulher, mas, não sendo isto inventário nem vademeco8 de casamentar, fiquem registados apenas dois deles, e o primeiro é estarem ele e ela perto um do outro, nem te sei nem te conheço, num auto de fé, da banda de fora, claro está, a ver passar os penitentes, e de repente volta-se a mulher para o homem e pergunta, Que nome é o seu, não foi inspiração divina, não perguntou por sua vontade própria, foi ordem mental que lhe veio da própria mãe, a que ia na procissão, a que tinha visões e revelações, e se, como diz o Santo Ofício, as fingia, não fingiu estas, não, que bem viu e se lhe revelou ser este soldado maneta o homem que haveria de ser de sua filha, e desta maneira os juntou. Outro modo é estarem ele e ela longe um do outro, nem te sei nem te conheço, cada qual em sua corte, ele Lisboa, ela Viena, ele dezanove anos, ela vinte e cinco, e casaram-nos por procuração uns tantos embaixadores, viram-se primeiro os noivos em retratos favorecidos, ele boa figura e pelescurita, ela roliça e brancaustríaca, e tanto lhes fazia gostarem-se como não, nasceram para casar assim e não doutra maneira, mas ele vai desforrar-se bem, não ela, coitada, que é honesta mulher, incapaz de levantar os olhos para outro homem o que acontece nos sonhos não conta. José Saramago, op. cit., [cap. X], pp. 149-150.

1. Apesar de terem perdido a frescura da juventude, Baltasar e Blimunda amavam-se como no primeiro dia. Confirma a veracidade desta afirmação. (Texto A) 2. Comenta o relacionamento entre D. João V e D. Maria Ana Josefa, fundamentando a tua resposta com elementos textuais. (Texto B) 3. Explica os «dois modos de juntar um homem e uma mulher». (Texto C)

ORALIDADE

EXPRESSÃO ORAL

Apresentação oral Visiona a curta-metragem Perfeito e prepara uma apresentação oral, de cinco a sete minutos, na qual estabeleças um paralelo entre a curta-metragem e os excertos analisados de Memorial do Convento, nomeadamente, os que abordam o relacionamento entre Baltasar e Blimunda e entre o rei e a rainha.

Perfeito (2009) REAL. Mauricio Bartok

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PROFESSOR

2. Entre o rei e a rainha existe um contrato matrimonial, cujo principal objetivo é assegurar a sucessão. Não há no seu relacionamento afetividade ou amor, apenas cumprem o seu dever conjugal, com civilidade, regendo-se pelas regras da boa educação e cortesia («D. Maria Ana estende ao rei a mãozinha suada e fria, […] e el-rei, que já cumpriu o seu dever, e tudo espera do convencimento e criativo esforço com que o cumpriu, beija-lha como a rainha e futura mãe», ll. 15-18). 3. O narrador destaca: o de Baltasar-Blimunda e o do rei-rainha. O primeiro é fruto de um casual encontro, com a bênção de uma mulher visionária, mãe de Blimunda, que de imediato percebe o destino comum do casal. O segundo é feito à distância, premeditadamente e por conveniência política, sem envolvimento afetivo de qualquer uma das partes. Oralidade

▪ Link Curta-metragem Perfeito, de Maurício Bartok Sugestão de tópicos: • Numa luta contra a solidão e o isolamento, um homem esculpe uma figura feminina, que aperfeiçoa com o seu trabalho manual, e pela qual acaba por se apaixonar. Mesmo correndo o risco de se perder, caindo no abismo, não deixa de esculpir, tornando-a mais real. A curta-metragem termina com os dois abraçados, sozinhos, amparo um do outro. A relação entre o rei e a rainha difere em tudo da sugerida na curta-metragem. Nunca mantêm um relacionamento próximo fisicamente, mesmo quando cumprem o dever conjugal; estão sempre rodeados dos seus séquitos, constrangidos pelas leis sociais e religiosas. Entre eles não há paixão, apenas os interesses políticos, traçados por outros, os unem contratualmente. • Baltasar e Blimunda têm um relacionamento similar ao apresentado na curta-metragem: ambos se «esculpem» um ao outro, no sentido de, todos os dias, se moldarem, se conhecerem mutuamente. Apaixonados, dão-se um ao outro em múltiplos locais e amiúde, tal como os dois seres de madeira se abraçam, indefinidamente. Ambos os casais acabam sós, isolados do resto do mundo que desaba à sua volta, tendo-se apenas um ao outro.

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Unidade 4 // JOSÉ SARAMAGO

FICHA INFORMATIVA 5 Linha de ação: Baltasar e Blimunda, a sublimação do amor

PROFESSOR

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Leitura 7.1; 7.2; 7.3; 8.1.

1. Baltasar e Blimunda: vivem um amor «sincero e mútuo», em que o envolvimento carnal se assume como um êxtase ascético e espiritual («uma cena de êxtase amoroso […] um voo metafórico da passarola que […] mimetiza com perfeição a ascensão do desejo dos amantes»). Rei e Rainha: estão unidos por laços de «interesses e razões de Estado» e não por sua livre vontade. 2. A cerimónia de união entre Baltasar e Blimunda é «simbólica» e «significativa»: comer da mesma colher representa a partilha absoluta e a perda da individualidade. A cerimónia é abençoada pelo padre Bartolomeu Lourenço. Os casamentos entre os reis e princesas assumem outros contornos, são trocas comerciais e diplomáticas («Casam-se filhos daquela [Espanha] com filhos desta [Portugal], da banda deles vem Maria Vitória, da banda nossa vai Maria Bárbara, os noivos são o José de cá e o Fernando de lá»).

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É nas histórias de amor que a capacidade narrativa de José Saramago mais ganha asas. Quem assim fala do amor elogia a vida. Não mantém um esquema de amores que não se materializam. Nele, todos os amores são carnais. […] Os romances de Saramago são sobretudo histórias de amor. Pequenas e grandes manifestações de sentimentos e afetos que fluem de uma forma real e enaltecendo as virtudes do contato íntimo entre homens e mulheres. É um amor materializado porque, como diz no livro-entrevista de Juan Arias, Saramago: o amor possível, o amor que o autor expõe é sempre assim: possível. […] No Memorial do Convento, estamos diante de dois tipos de amor totalmente opostos e irreconciliáveis. Por um lado, o amor sincero e mútuo de Blimunda e Baltasar e, por outro, os interesses e razões de Estado que unem reis e princesas. Entre os primeiros, a cerimónia de união não pode ser mais simbólica e mais significativa do que a presidida pelo padre Bartolomeu Lourenço frente a uma caçarola de sopa: «aceitas para a tua boca a colher de que se serviu a boca deste homem, fazendo seu o que era teu, agora tornando a ser teu o que foi dele e tantas vezes que se perca o sentido do teu e do meu, e como Blimunda já tinha dito que sim antes de perguntada, Então declaro-vos casados.» […] Esta cerimónia tem a sua continuação no pedido a Baltasar para que fique com ela: «Fica, enquanto não fores, será sempre tempo de partires» […]. Estes dois momentos marcarão o destino do casal até ao fim das suas vidas: partilhar o fado e os olhares interiores aos escuros confins da alma. […] O romance não finda sem que uma cena de êxtase amoroso deste par de amantes, em perfeita sintonia, seja alegorizada justamente por um voo metafórico da passarola que, continuando pousada, mimetiza com perfeição a ascensão do desejo dos amantes. 25 Entre figuras monárquicas as cerimónias são outras. Como as que põem em prática os reinos de Espanha e Portugal: «Casam-se filhos daquela com filhos desta, da banda deles vem Maria Vitória, da banda nossa vai Maria Bárbara, os noivos são o José de cá e o Fernando de lá, respetivamente, como se costuma dizer.» 30 O mundo patriarcal dá às mulheres esse ofício de produzir vida. Em Memorial do Convento retrata-nos essa função na figura da rainha: «Devota parideira que veio ao mundo só para isso, ao todo dará seis filhos». Óscar Aranda, Aprende, aprende o meu corpo. Sobre o amor na obra de José Saramago, Lisboa, Fundação José Saramago, 2016, pp. 91, 98, 163, 190 (texto adaptado). CONSOLIDA

1. Comenta a vivência do sentimento amoroso pelo par Baltasar e Blimunda e pelo casal D. João V e D. Maria Ana Josefa. 2. Refere-te à abordagem da instituição matrimonial pelas diferentes personagens. Pablo Picasso, Os Namorados, 1923.

Memorial do Convento – Linhas de ação

Linha de ação: a construção da passarola – o elogio do Sonho Era uma vez um padre que queria voar e morreu doido. in Memorial do Convento, Alfragide, Editorial Caminho, 2013 (excerto da contracapa).

PONTO DE PARTIDA

PROFESSOR

MC

Educação Literária 14.1; 14.2; 14.3; 14.4; 14.5; 14.7; 14.8; 14.9. Gramática 18.3; 18.4; 19.3.

▪ Link «Voar», de Tim

1. Ouve a canção de Tim, «Voar», do CD Álbum Companheiros de Aventura (2010).

▪ Documento Letra da canção «Voar»

1.1 Indica o apelo do sujeito ao seu «anjo da guarda» e regista o vocábulo que exprime a sua convicção na concretização dos sonhos. Rita Carmo, Tim no Cine Incrível, Almada, 2016.

1.1 O apelo do sujeito é o de voltar a sonhar para «ser astronauta e voar». A forma verbal no futuro, «Voltarei», exprime a sua certeza de que a concretização dos sonhos é possível.

EDUCAÇÃO LITERÁRIA

O sonho de voar [Capítulo VI]

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Atravessava o Terreiro do Paço o padre Bartolomeu Lourenço1, que vinha do palácio aonde fora por instância de Sete-Sóis, desejoso de que se apurasse se sim ou não haveria uma pensão de guerra […]. Disse o padre Bartolomeu Lourenço a Sete-Sóis, Falei com os desembargadores destas matérias, disseram-me que iam ponderar o teu caso, se vale a pena fazeres petição, depois me darão uma resposta, E quando será isso, padre, quis Baltasar saber, ingénua curiosidade de quem acaba de chegar à corte e lhe ignora os usos, Não te sei dizer, mas, tardando, talvez eu possa dizer uma palavra a sua majestade, que me distingue com a sua estima e proteção, Pode falar com el-rei, espantou-se Baltasar, e acrescentou, Pode falar a el-rei e conhecia a mãe de Blimunda, que foi condenada pela Inquisição, que padre é este padre, palavras estas últimas que Sete-Sóis não terá dito em voz alta, só inquieto as pensou. Bartolomeu Lourenço não respondeu, apenas o olhou a direito, e assim ficaram parados, o padre um pouco mais baixo e parecendo mais novo, mas não, têm ambos a mesma idade, vinte e seis anos, como de Baltasar já sabíamos, porém são duas diferentes vidas, a de Sete-Sóis trabalho e guerra, uma acabada, outro que terá de recomeçar, a de Bartolomeu Lourenço, que no Brasil nasceu e novo veio pela primeira vez a Portugal, de tanto estudo e memória que, sendo moço de quinze anos, prometia, e muito fez do que prometeu […].

«Todo o céu será música».

1 Bartolomeu Lourenço [de

Gusmão] (1685-1724): clérigo e inventor do aeróstato ou balão voador. Cognominado o «padre voador», é considerado um percursor da aeronáutica sendo dos primeiros a provar a possibilidade de criar engenhos com capacidade para voar.

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Agora me disse aquele meu amigo João Elvas que tendes apelido de Voador, padre, por que foi que vos deram tal nome, perguntou Baltasar. […] Porque eu voei, e disse Baltasar, duvidoso, Com perdão da confiança, só os pássaros voam, e os anjos, e os homens quando sonham, mas em sonhos não há firmeza, Não tens vivido em Lisboa, nunca te vi, Estive na guerra quatro anos e a minha terra é Mafra, Pois eu faz dois anos que voei, primeiro fiz um balão que ardeu, depois construí outro que subiu até ao teto duma sala do paço, enfim outro que saiu por uma janela da Casa da Índia e ninguém tornou a ver, Mas voou em pessoa, ou só voaram os balões, Voaram os balões, foi o mesmo que ter voado eu, Voar balão não é voar homem, O homem primeiro tropeça, depois anda, depois corre, um dia voará, respondeu Bartolomeu Lourenço […]. Tenho sido a risada da corte […], se não fosse a proteção de el-rei não sei o que seria de mim, mas el-rei acreditou na minha máquina e tem consentido que, na quinta do duque de Aveiro, a S. Sebastião da Pedreira, eu faça os meus experimentos, enfim já me deixam respirar um pouco os maldizentes que chegaram ao ponto de desejar que eu partisse as pernas […], e que a minha arte tinha mais que ver com a jurisdição do Santo Ofício que com a geometria, […] Esse gancho que tens no braço não o inventaste tu, foi preciso que alguém tivesse a necessidade e a ideia, que sem aquela esta não ocorre, juntasse o couro e o ferro, e também estes navios que vês no rio, houve um tempo em que não tiveram velas, e outro tempo foi o da invenção dos remos, outro o «O fabricante de asas». do leme, e, assim como o homem, bicho da terra, se faz marinheiro por necessidade, por necessidade se fará voador, […] Então foi por querer voar que conheceu a mãe de Blimunda, por ser de artes subtis, Ouvi dizer que ela tinha visões de ver pessoas voando com asas de pano […]. Vou a S. Sebastião da Pedreira ver a minha máquina, queres tu vir comigo, a mula pode com os dois, Irei, mas a pé, que é o caminho da infantaria, És um homem natural, nem cascos de mula nem asas de passarola, É assim que se chama a sua máquina, perguntou Baltasar, e o padre respondeu, Assim lhe têm chamado por desprezo.[…] Todas as portas e janelas do palácio estavam fechadas, a quinta abandonada, sem cultivo. […] O padre retirou a tranca, empurrou a porta, afinal não estava vazia a grande casa, viam-se panos de vela, barrotes, rolos de arame, lamelas de ferro, feixes de vimes, tudo arrumado por espécies, em boa ordem e, ao meio, no espaço desafogado, havia o que parecia uma enorme concha, toda eriçada de arames, como um cesto que, em meio fabrico, mostra as guias do entrançado. Baltasar entrou logo atrás do padre, curioso,

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olhou em redor sem compreender o que via, talvez esperasse um balão, umas asas de pardal em maior, um saco de penas, e não teve mão que não duvidasse, Então é isto, e o padre Bartolomeu Lourenço respondeu, Há de ser isto […]. Queres tu vir ajudar-me, perguntou. Baltasar deu um passo atrás, estupefacto, Eu não sei nada, sou um homem do campo, mais do que isso só me ensinaram a matar, e assim como me acho, sem esta mão, Com essa mão e esse gancho podes fazer tudo quanto quiseres, e há coisas que um gancho faz melhor que a mão completa, um gancho não sente dores se tiver de segurar um arame ou um ferro, nem se corta, nem se queima, e eu te digo que maneta é Deus, e fez o universo. Baltasar recuou assustado, persignou-se rapidamente, como para não dar tempo ao diabo de concluir as suas obras, Que está a dizer, padre Bartolomeu Lourenço, onde é que se escreveu que Deus é maneta, Ninguém escreveu, não está escrito, só eu digo que Deus não tem a mão esquerda, porque é à sua direita, à sua mão direita, que se sentam os eleitos, não se fala nunca da mão esquerda de Deus, nem as Sagradas Escrituras, nem os Doutores da Igreja, à esquerda de Deus não se senta ninguém, é o vazio, o nada, a ausência, portanto Deus é maneta. Respirou fundo o padre, e concluiu, Da mão esquerda. Sete-Sóis ouvira com atenção. Olhou o desenho e os materiais espalhados pelo chão, a concha ainda informe, sorriu, e, levantando um pouco os braços, disse, Se Deus é maneta e fez o universo, este homem sem mão pode atar a vela e o arame que hão de voar. José Saramago, op. cit., [cap. VI], pp. 78-89.

1. Analisa, a pares, o texto, considerando os seguintes tópicos: • • • • • •

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Linha de ação: a construção da passarola – o elogio do Sonho p. 341

localização e caracterização dos interlocutores; o sonho de voar – ponto de vista das personagens; relação sonho-progresso: a confiança nas capacidades do Homem; recursos expressivos e respetivos valores; marcas de intertextualidade e respetiva interpretação; reprodução do discurso no discurso.

GRAMÁTICA

1. Identifica as sequências textuais presentes no excerto, justificando a tua resposta com as respetivas marcas linguísticas.

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Sequências textuais p. 179

«O padre retirou a tranca, empurrou a porta, afinal não estava vazia a grande casa, viam-se panos de vela, barrotes, rolos de arame, lamelas de ferro, feixes de vimes, tudo arrumado por espécies, em boa ordem e, ao meio, no espaço desafogado, havia o que parecia uma enorme concha, toda eriçada de arames, como um cesto que, em meio fabrico, mostra as guias do entrançado». FI

Valor aspetual

pp. 59-60 2. Indica o aspeto gramatical expresso nos seguintes enunciados: a) «Atravessava o Terreiro do Paço o padre Bartolomeu Lourenço […]» (ll. 1-2). b) «O homem primeiro tropeça, depois anda, depois corre […]» (ll. 34-35). c) «Tenho sido a risada da corte […]» (l. 36). d) «Baltasar entrou logo atrás do padre […]» (l. 72). e) «[…] não se fala nunca da mão esquerda de Deus» (l. 85).

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PROFESSOR

Educação Literária ▪ Apresentação em PowerPoint Proposta de resolução da atividade de pares Gramática 1. Sequência narrativa; verbos de ação e no pretérito perfeito do indicativo («retirou a tranca, empurrou a porta»; Sequência descritiva; verbos no pretérito imperfeito do indicativo («estava vazia a grande casa, viam-se (…)»; abundância de adjetivos («estava vazia a grande casa»); enumeração («panos de vela, barrotes, rolos de arame, lamelas de ferro, feixes de vimes»). 2. a) Aspeto imperfetivo; b) Situação genérica; c) Situação iterativa; d) Aspeto perfetivo; d) Situação habitual.

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Unidade 4 // JOSÉ SARAMAGO

Dimensão simbólica

PROFESSOR

MC

Educação Literária 14.1; 14.2; 14.3; 14.4; 14.5; 14.7; 14.8; 15.2; 15.3.

EDUCAÇÃO LITERÁRIA

Gramática 18.4.

Texto A

Sete-Sóis e Sete-Luas [Capítulo IX]

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Quando isto fez pela primeira vez e Baltasar depois disse ao padre Bartolomeu Lourenço, Este ferro não serve, tem uma racha por dentro, Como é que sabes, Foi Blimunda que viu, o padre virou-se para ela, sorriu, olhou um e olhou outro, e declarou, Tu és Sete-Sóis porque vês às claras, tu serás Sete-Luas porque vês às escuras, e, assim, Blimunda, que até aí só se chamava, como sua mãe, de Jesus, ficou sendo Sete-Luas, e bem batizada estava, que o batismo foi de padre, não alcunha de qualquer um. Dormiram nessa noite os sóis e as luas abraçados, enquanto as estrelas giravam devagar no céu, Lua onde estás, Sol aonde vais. José Saramago, op. cit., [cap. IX], pp. 120-121.

Texto B

Os três Bês − a «trindade terrestre» [Capítulo XIV]

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Disse o padre Bartolomeu Lourenço, Não irei revelar o segredo do último do voo, mas, tal como escrevi na petição e memória, toda a máquina se moverá por obra de uma virtude atrativa contrária à queda dos graves, se eu largar este caroço de cereja, ele cai para o chão, ora, a dificuldade está em encontrar o que o faça subir, E encontrou, O segredo descobri-o eu, quanto a encontrar, colher e reunir é trabalho de nós três, É uma trindade terrestre, o pai, o filho e o espírito santo, Eu e Baltasar temos a mesma idade, trinta e cinco anos, não poderíamos ser pai e filho naturais, isto é, segundo a natureza, mais facilmente irmãos, mas, sendo-o, gémeos teríamos de ser, ora ele nasceu em Mafra, eu no Brasil, e as parecenças são nenhumas, Quanto ao espírito, Esse seria Blimunda, talvez seja ela a que mais perto estaria de ser parte numa trindade não terrenal […]. José Saramago, op. cit., [cap. XIV], pp. 230-231.

Texto C

As vontades [Capítulo XV]

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Entre S. Sebastião da Pedreira e a Ribeira entrou Blimunda em trinta e duas casas, colheu vinte e quatro nuvens fechadas, em seis doentes já as não havia, talvez as tivessem perdido há muito tempo, e as restantes duas estavam tão agarradas ao corpo que, provavelmente, só a morte as seria capaz de arrancar de lá. Em cinco outras casas que visitou, já não havia vontade nem alma, apenas o corpo morto, algumas lágrimas ou muito alarido. Por toda a parte se queimava alecrim para afastar a epidemia […].

«A ladra das vontades».

Memorial do Convento – Dimensão simbólica

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Com tudo isto, parece impossível que ainda morra gente, havendo tanto remédio e tanta salvaguarda, alguma irreparável falta, aos olhos de Deus, terá Lisboa cometido para virem a morrer nesta epidemia1 quatro mil pessoas em três meses, o que representa mais de quarenta cadáveres para enterrar todos os dias. […] A lua, nessa noite, nasceu tarde, dormiam e não a viram, mas o luar entrou pelas frestas, percorreu lentamente toda a abegoaria, a máquina de voar, e, ao passar, iluminou o frasco de vidro, distintamente se viam dentro dele as nuvens fechadas, talvez porque ninguém estivesse a olhar, talvez por ser esta luz da lua capaz de mostrar o invisível. […] Passado um mês, calcularam ter guardado no frasco um milheiro de vontades, força de elevação que o padre supunha ser bastante para uma esfera, com o que segundo frasco foi entregue a Blimunda. […] Quando a epidemia terminou, já iam rareando os casos mortais e de repente passara-se a morrer doutra coisa, havia, bem contadas, duas mil vontades nos frascos. José Saramago, op. cit., [cap. XV], pp. 243-248.

Texto D

O poder da música [Capítulo XIV]

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Nem tudo, há coisas que o não são, a música, por exemplo, Padre Bartolomeu de Gusmão, decerto não quer dizer-me que estas esferas vão conter música, Não, mas quem sabe se com ela não subiria também a máquina, tenho de pensar nisso, afinal pouco falta para que me erga eu ao ar quando o ouço tocar no cravo, É um gracejo, Menos do que parece, senhor Scarlatti. José Saramago, op. cit., [cap. XIV], p. 231.

Texto E [Capítulo XV]

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Então, Blimunda caiu doente. Não tinha dores, febre não se lhe sentia, apenas uma extrema magreza, uma palidez profunda que lhe tornava transparente a pele. Jazia na enxerga, de olhos sempre fechados, noite e dia, porém não como se dormisse ou repousasse, mas com as pálpebras crispadas e uma expressão de agonia no rosto. […] Muitas vezes durante a doença, se doença foi, se não foi apenas um longo regresso da própria vontade, refugiada em confins inacessíveis do corpo, muitas vezes veio Domenico Scarlatti, primeiro apenas para visitar Blimunda, informar-se das melhoras que tardavam, depois demorando-se a conversar com Sete-Sóis, e um dia retirou o pano de vela que cobria o cravo, sentou-se e começou a tocar, branda, suave música que mal ousava desprender-se das cordas feridas de leve, vibrações subtis de inseto alado que, imóvel, paira, e de súbito passa de uma altura a outra, acima […]. Porventura seria esta a medicina que Blimunda esperava, ou, dentro dela, o que ainda estaria esperando alguma coisa, que cada um de nós, conscientemente, só espera o que conhece, ou tem parecenças, o que para cada caso nos disseram ter utilidade […]. Não esperaria Blimunda que, ouvindo a música, o peito se lhe dilatasse tanto, um suspiro assim, como

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PROFESSOR

Educação Literária 1. O Sol encontra-se associado a Baltasar, representando o princípio masculino, a força, o poder e a vida; e a Lua, a Blimunda, simbolizando o princípio feminino, a renovação, o oculto e o sonho. Assim, o Sol e a Lua completam-se, sendo indissociáveis. Estes elementos aliados ao número sete, símbolo da totalidade do universo, o ciclo completo, reforçam a ideia de união, de comunhão, de sublimação do amor. A atuação deste casal afigura-se de extrema importância para a construção da passarola e posterior voo, pois Blimunda, por ver «às escuras», o oculto, apercebe-se dos materiais que se encontram danificados, e Baltasar, com a sua força, se encarregará de os substituir. 2.1 As palavras do padre Bartolomeu «O segredo descobri-o eu, quanto a encontrar, colher e reunir é trabalho de nós três» conduzem Scarlatti a associar as três personagens à Santíssima Trindade («o pai, o filho e o espírito santo»), afirmação que o clérigo procura refutar dizendo que Baltasar nunca poderia ser seu filho, por terem a mesma idade, deixando entrever, no entanto, as capacidades sobrenaturais de Blimunda ao referir ser a única que poderia integrar uma «trindade não terrenal», o Espírito. 2.2 A tríade Bartolomeu, Baltasar e Blimunda (atente-se nos três Bês) surge como uma «trindade terrestre», como a conjugação de três saberes, essencial à construção e ao voo da passarola: Bartolomeu, «o pai», o saber científico e técnico; Baltasar, «o filho», o saber artesanal; e Blimunda, «o espírito», o poder sobrenatural. 3.1 A epidemia que grassou em Lisboa em outubro de 1723, facto histórico, permite a localização da ação, a recolha das duas mil vontades, no tempo da narrativa, isto é, ao longo dos três últimos meses desse mesmo ano, como o comprovam as seguintes expressões: «[…] terá Lisboa cometido para virem a morrer nesta epidemia quatro mil pessoas em três meses […]» (ll. 9-10); «Passado um mês […]» (l. 16) e «Quando a epidemia terminou […]» (l. 19).

1 epidemia de febre-amarela

que teve início em outubro de 1723.

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Unidade 4 // JOSÉ SARAMAGO

PROFESSOR

3.2 Os doentes que já não apresentam vontade são aqueles que desistiram de viver, nos quais o querer há muito que desapareceu, enquanto os que a têm agarrada ao corpo mantêm a força de viver, mantêm vivo o querer fazer que somente a morte poderá apagar. 3.3 A expressão remete para a capacidade de Blimunda, a Sete-Luas que vê «às escuras», de ver o oculto, «o invisível», o interior do ser humano, explicando-se, assim, a missão de que foi incumbida pelo padre Bartolomeu. 3.4 As vontades humanas representam a vontade dos homens, o seu querer, sendo valorizado quem opera, quem faz. A passarola voará porque o homem sonhou e assim o quis, pela força das duas mil vontades, pela vontade de Bartolomeu, de Baltasar e de Blimunda. 4.1 O padre Bartolomeu considera que a música tem tal poder, perante os efeitos que nele provoca, por se sentir quase a flutuar quando ouve o cravo de Scarlatti, que poderia, eventualmente, fazer ascender a passarola. 4.2 A dúvida sobre a existência real da doença de Blimunda («se doença foi», l. 5; «a saúde voltou depressa, se realmente faltara», l. 26) salienta o seu valor simbólico, indiciando que Blimunda, ao ter sido confrontada com a morte ao longo de três meses de recolha de vontades, teria perdido a sua própria vontade («se não foi apenas um longo regresso da própria vontade, refugiada em confins inacessíveis do corpo», ll. 5-6). 4.3 A música tocada por Scarlatti surpreende Blimunda, que não esperava que, «ouvindo a música, o peito lhe dilatasse tanto, um suspiro assim, como de quem nasce ou morre» (ll. 15-16), fazendo-a regressar à vida. As lágrimas que lhe correm pela face são «o alívio de uma ofensa», ou seja, os sons melodiosos que a rodeiam libertam-na do peso de tantas mortes testemunhadas, retemperando-lhe as forças e restabelecendo-lhe a vontade. Gramática 1. a) «Eu e Baltasar temos a mesma idade, trinta e cinco anos, não poderíamos ser pai e filho naturais, isto é, segundo a natureza, mais facilmente irmãos, mas, sendo-o, gémeos teríamos de ser, ora ele nasceu em Mafra, eu no Brasil, e as parecenças são nenhumas» ll. 6-9; b) «toda a máquina se moverá por obra de uma virtude atrativa contrária à queda dos graves, se eu largar este caroço de cereja, ele cai para o chão» ll. 2-4; c) «E encontrou, O segredo descobri-o eu, quanto a encontrar, colher e reunir é trabalho de nós três », ll. 4-5.

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25

de quem morre ou de quem nasce, debruçou-se Baltasar para ela, temendo que ali se acabasse quem afinal estava regressando. Nessa noite, Domenico Scarlatti ficou na quinta, tocando horas e horas, até de madrugada, já Blimunda estava de olhos abertos, corriam-lhe devagar as lágrimas, se aqui estivesse um médico diria que ela purgava os humores do nervo ótico ofendido, talvez tivesse razão, talvez as lágrimas não sejam mais que isso, o alívio duma ofensa. Durante uma semana, todos os dias, sofrendo o vento e a chuva pelos caminhos alagados de S. Sebastião da Pedreira, o músico foi tocar duas, três horas, até que Blimunda teve forças para levantar-se, sentava-se ao pé do cravo, pálida ainda, rodeada de música como se mergulhasse num profundo mar, diremos nós, que ela nunca por aí navegou, o seu naufrágio foi outro. Depois, a saúde voltou depressa, se realmente faltara. José Saramago, op. cit., [cap. XV], pp. 248-252.

1. Explicita a simbologia dos nomes Sete-Sóis e Sete-Luas, considerando a importância das personagens na construção da passarola.

DS

Breve dicionário de símbolos

2. Atenta no Texto B.

FI

Dimensão simbólica p. 346

2.1 Indica o que conduz Scarlatti a afirmar tratar-se de uma «trindade terrestre» e de que modo o padre Bartolomeu Lourenço tenta refutar a afirmação. 2.2 Apresenta o teu ponto de vista relativamente à veracidade da afirmação do músico. FI

3. Considera, agora, o Texto C.

Tempo histórico e tempo da narrativa p. 337

3.1 Evidencia a relação que se estabelece entre o tempo histórico e o tempo da narrativa, fundamentando a tua resposta com elementos textuais pertinentes. 3.2 Interpreta o facto de alguns doentes já não apresentarem vontade e outros terem-na tão agarrada ao corpo. 3.3 Esclarece o sentido da expressão «[…] talvez por ser esta luz da lua capaz de mostrar o invisível.» (l. 15). 3.4 Conclui acerca da simbologia das vontades humanas na ascensão da passarola. 4. Relê os Textos D e E. 4.1 Analisa a opinião do padre Bartolomeu Lourenço acerca do poder da música. 4.2 Explicita o sentido da expressão «[…] o seu naufrágio foi outro» (ll. 25-26), relacionando-o com as várias alusões à doença de Blimunda. 4.3 Demonstra a importância da música para o restabelecimento da personagem feminina.

GRAMÁTICA

FI

Sequências textuais p. 179

1. Tendo por base o Texto B, apresenta um exemplo de cada uma das seguintes sequências textuais: a) argumentativa;

b) explicativa;

c) dialogal.

Ficha informativa

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FICHA INFORMATIVA 6 Tempo histórico e tempo da narrativa

MC

1. O tempo histórico

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PROFESSOR

Educação Literária 14.4; 14.8.

A história começa por volta de 1711, sensivelmente três anos após o casamento do rei D. João V com D. Maria Ana Josefa de Áustria, e termina vinte e dois anos depois, em 1739, aquando da realização do auto de fé em que morreram António José da Silva e também Baltasar Mateus. Na globalidade, podemos dizer que o autor respeita os elementos históricos quando os insere na diegese, sejam eles datas, factos ou nomes. As referências ligadas ao convento de Mafra respeitam não só os anos e os dias, como as próprias horas, como é visível na descrição da colocação e bênção da primeira pedra do convento, cujas cerimónias tiveram início às 7 horas da manhã do dia 17 de novembro de 1717, o que corresponde, efetivamente, à verdade histórica. A própria indecisão do Rei acerca do número de frades que o convento albergaria; o voto do rei D. João V, feito por alturas de 1711, que originou a construção do convento; […] o desejo do Rei que a cerimónia da Sagração ocorresse no 41.º aniversário do seu nascimento – 22 de outubro de 1730; […] o casamento dos Infantes portugueses e espanhóis; tudo isto são factos que se encontram historicamente comprovados e que aparecem em muitas «Memórias» de cronistas da época. Ana Margarida Ramos, Memorial do Convento, da Leitura à Análise, Porto, Edições Asa, 1999, p. 15.

2. O tempo da narrativa – 28 anos Tempo da narrativa: algumas referências temporais Início da ação

1711

• «D. Maria Ana Josefa, que chegou há mais de dois anos da Áustria» (p. 11): casamento em 1708; «um homem que ainda não fez vinte e dois anos» (p. 12): nascimento em 1689; «S. Francisco andava pelo mundo, precisamente há quinhentos anos, em mil duzentos e onze» (p. 26); Baltasar e Blimunda conhecem-se no auto de fé (p. 53).

Desenvolvimento da ação 1713

• Regresso de Baltasar a Mafra e apresentação de Blimunda à família: «minha mãe foi degredada para Angola por oito anos, só passaram dois» (p. 140); partida do padre Bartolomeu para a Holanda (p. 130).

1717

• Regresso do Padre Bartolomeu da Holanda: «três anos inteiros haviam passado desde que partira» (p. 158).

1719

• Procissão do Corpo de Deus: «sente-se o calor da manhã adiantada, oito de junho de mil setecentos e dezanove» (p. 208).

1724

• Baltasar começa a trabalhar nas obras do convento: «Baltasar […] por estar ainda na força da vida, trinta e nove anos» (p. 288) – idade de Baltasar, que no início da história tinha vinte e seis anos: «Baltasar respondeu, Vinte e seis anos» (p. 53)

Representação de Lisboa antes do terramoto de 1755 (pormenor).

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Unidade 4 // JOSÉ SARAMAGO

PROFESSOR

Consolida 1. A datação dos factos históricos é essencial para a determinação do tempo da narrativa, na medida em que serve de ponto de referência para o leitor poder localizar cronologicamente a ação, afigurando-se datas essenciais 1711 (início da ação), 1717 (bênção da primeira pedra) e 1730 (sagração do Convento), dado funcionarem como referentes temporais. Por exemplo, sabe-se que Baltasar tem vinte e seis anos em 1711, logo, quando se indica ter trinta e nove anos, está-se em 1724, ou quando se refere terem passado onze anos desde o lançamento da primeira pedra do convento significa que a ação se localiza, naquele momento, em 1728, e assim sucessivamente.

1727

• Blimunda acompanha Baltasar, pela primeira vez, para ver o estado da passarola, após a sua queda: «em três anos é a primeira vez» (p. 364); «Blimunda, dezasseis anos passaram desde que a vimos pela primeira vez» (p. 366).

1728

• Decisão de D. João V de aumentar o convento – «Durante todos estes anos, onze já vão vencidos» (p. 392).

1729

• A «troca das princesas»: «janeiro de mil setecentos e vinte e nove» (p. 412).

1730

• Sagração do Convento: «chegou o mais glorioso dos dias, a data imorredoira de vinte e dois de outubro do ano da graça de mil setecentos e trinta» (p. 484).

1711 a 1724

• Construção da passarola: ao longo de 13 anos: quando Baltasar foi a Pêro Pinheiro, em 1711, a construção estava no seu início e o seu voo deu-se em 1724: diálogo entre o padre Bartolomeu e Baltasar, no Terreiro do Paço – «Pois eu faz dois anos que voei» (p. 81); diálogo do clérigo com o casal, pouco antes do voo da passarola – «ainda há quinze anos voou um balão no paço» (p. 259).

Final da ação

1739

• «Durante nove anos, Blimunda procurou Baltasar» (p. 487): Baltasar desaparece na passarola no dia anterior à sagração (1730) − «E Baltasar disse, Amanhã vou ao Monte Junto […] estarei cá antes da noite, melhor é ir agora, depois são as festas da sagração» (p. 454); data da morte: 18 de outubro de 1739 – «o da ponta, é um que fazia comédias de bonifrates e se chamava António José da Silva» (p. 439).

3. Tempo do discurso desencontros entre a ordem cronológica dos acontecimentos e a ordem por que são narrados.

1 Anacronias:

Verifica-se linearidade e respeito pela cronologia e pela datação dos eventos históricos tratados, contudo, o narrador principal, heterodiegético e afastado temporalmente da intriga que organiza e controla, utiliza com alguma insistência anacronias1, para fazer avançar a ação: Tempo do discurso: algumas referências

Prolepse

Analepse

• O narrador anuncia o futuro de algumas personagens: - morte do sobrinho de Baltasar, bem como a do infante D. Pedro (p.143); morte da mãe de Baltasar (p. 187). • Comentários do narrador e comparações entre épocas históricas distintas: - alusão à extinção dos autos-de-fé (V, p. 65), à revolução do 25 de abril (p. 210); referência à ida à lua (p. 294). • A batalha de Jerez de los Caballeros, onde Baltasar perdeu a mão esquerda (pp. 45-46). • Juventude do padre Bartolomeu em Portugal (pp. 79-80).

Elipse

• Salto no tempo de nove anos: «Durante nove anos, Blimunda procurou Baltasar» (p. 487).

Sumário

• A busca de Blimunda, que se sabe ininterrupta e que todos os lugares do país foram percorridos (pp. 487-493).

CONSOLIDA

1. Indica a importância do tempo histórico para a determinação do tempo da narrativa.

Memorial do Convento – Dimensão simbólica

EDUCAÇÃO LITERÁRIA

PROFESSOR

Voo e queda da passarola

MC

[Capítulo XVI]

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Agora, sim, podem partir. O padre Bartolomeu Lourenço olha o espaço celeste descoberto, sem nuvens, o sol que parece uma custódia1 de ouro, depois Baltasar que segura a corda com que se fecharão as velas, depois Blimunda, prouvera que adivinhassem os seus olhos o futuro, Encomendemo-nos ao Deus que houver, disse-o num murmúrio, e outra vez num sussurro estrangulado, Puxa, Baltasar, não o fez logo Baltasar, tremeu-lhe a mão, que isto será como dizer Fiat2, diz-se e aparece feito, o quê, puxa-se e mudamos de lugar, para onde. Blimunda aproximou-se, pôs as duas mãos sobre a mão de Baltasar, e, num só movimento, como se só desta maneira devesse ser, ambos puxaram a corda. A vela correu toda para um lado, o sol bateu em cheio nas bolas de âmbar, e agora, que vai ser de nós. A máquina estremeceu, oscilou como se procurasse um equilíbrio subitamente perdido, ouviu-se um rangido geral […], girou duas vezes sobre si própria enquanto subia, mal ultrapassara ainda a altura das paredes, até que, firme, novamente equilibrada, erguendo a sua cabeça de gaivota, lançou-se em flecha, céu acima. Sacudidos pelos bruscos volteios, Baltasar e Blimunda tinham caído no chão de tábuas da máquina, mas o padre Bartolomeu Lourenço agarrara-se a um dos prumos3 que sustentavam as velas, e assim pôde ver afastar-se a terra a uma velocidade incrível. […] Estão os três voadores à proa da máquina, vão na direção do poente, e o padre Bartolomeu Lourenço sente que a inquietação regressou e cresce, é pânico já, enfim vai ter voz, e essa voz é um gemido, quando o sol se puser, descerá irremediavelmente a máquina, talvez caia, talvez se despedace e todos morrerão, É Mafra, além, grita Baltasar […]. Passam velozmente sobre as obras do convento, mas desta vez há quem os veja, gente que foge espavorida, gente que se ajoelha ao acaso e levanta as mãos implorativas de misericórdia, gente que atira pedras, o alvoroço toma conta de milhares de homens, quem não chegou a ver, duvida, quem viu, jura e pede o testemunho do vizinho, mas provas já ninguém as pode apresentar porque a máquina afastou-se na direção do sol, tornou-se invisível contra o disco refulgente, talvez não tivesse sido mais que uma alucinação, já os céticos triunfam sobre a perplexidade dos que acreditaram. Em poucos minutos, a máquina atinge a costa do mar, parece que a está puxando o sol para a levar ao outro lado do mundo. O padre Bartolomeu Lourenço

Educação Literária 14.1; 14.2; 14.3; 14.4; 14.5; 14.6; 14.7; 14.9; 15.2; 15.3; 16.2. Escrita 10.1; 11.1; 12.1; 12.2; 12.3; 12.4; 12.5; 13.1.

Educação Literária 1. A passarola sobrevoa a grande velocidade as obras do convento, atemorizando milhares de pessoas: uns fogem, outros pedem misericórdia a Deus, outros atiram pedras. Como a máquina se afastou rapidamente em direção ao sol, os que não viram duvidam daqueles que asseveram ter visto. No final, sobressai a crítica do narrador ao afirmar que o ceticismo predomina sempre sobre a perplexidade dos que acreditam, ou seja, a maioria dos homens remete-se à pequenez do seu mundo, submetendo-se aos dogmas vigentes, não aceitando, nem crendo na diferença e na mudança, o que sempre condicionou e retardou o progresso da Humanidade. 2. O «adamastor», o gigante da epopeia camoniana, simboliza os obstáculos, neste caso, os montes dos quais a passarola se aproxima perigosamente, mas os obstáculos superados pelo homem que acredita no seu poder, na concretização dos seus sonhos. A apatia do padre Bartolomeu, reveladora da aceitação da inevitabilidade da morte, simboliza a perda da capacidade de sonhar, a descrença no sucesso dos seus sonhos.

1 Custódia: objeto de culto

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católico no qual se expõe à adoração dos fiéis a hóstia consagrada. Fiat: locução latina que significa «faça-se». Prumos: peças usadas para amparar ou suster algo. Diadema: coroa. Bridão: freio.

«O Espírito Santo».

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Unidade 4 // JOSÉ SARAMAGO

PROFESSOR

3. A concretização do sonho de voar só foi possível graças à conjugação dos esforços e das vontades de Baltasar e de Blimunda. Na descolagem, Blimunda, perante a hesitação de Baltasar quanto à ordem dada pelo padre Bartolomeu, ajuda-o e, «num só movimento, como se só desta maneira devesse ser, ambos puxaram a corda» (ll. 8-9). Na descida, ao constatar a iminência de um despenhamento violento, Blimunda reage e abraça-se a uma das esferas que continha as vontades humanas, alertando Baltasar, que abraça a segunda esfera. Assim, «Sete-Luas e Sete-Sóis [sustentam] com as suas nuvens fechadas a máquina que baixava, agora devagar, tão devagar que mal rangeram os vimes quando tocou o chão» (ll. 60-61), comprovando, uma vez mais, que o que moveu o engenho foram as vontades dos homens, a união dessas vontades. 4. A passarola simboliza, por um lado, a libertação de uma sociedade cética e opressora. Por outro lado, e mais importante, a concretização dos sonhos, os avanços da Humanidade, só possíveis através da vontade do ser humano, do seu querer. A união dos homens, a conjugação dos esforços e dessa mesma vontade, está presente na recordação da analogia feita pelo músico: «a trindade terrestre», Bartolomeu, Baltasar e Blimunda, é una («Só há um Deus», ll. 36-37), pois foi através da combinação dos seus saberes, da junção das suas vontades, que a passarola voou, que o Sonho se concretizou. Escrita ▪ Vídeo Curta-metragem O Primeiro Voo, da DreamWorks

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compreende que vão cair na água, puxa violentamente a corda, a vela corre toda para um lado, fecha-se de golpe, e a subida é tão rápida que a terra se alarga de novo e o sol surge muito acima do horizonte. […] O sol está pousado no horizonte do mar, como uma laranja na palma da mão, é um disco metálico retirado da forja para arrefecer, já o seu brilho não fere os olhos, foi branco, cereja, rubro, vermelho, ainda fulge, mas sombriamente, está a despedir-se, adeus, até amanhã, se houver amanhã para os três nautas aéreos que tombam como uma ave ferida de morte, mal equilibrada nas asas curtas, com o seu diadema4 de âmbar, em círculos concêntricos, queda que parece infinita e vai acabar. Na frente deles ergue-se um vulto escuro, será o adamastor desta viagem, montes que se erguem redondos da terra, ainda riscados de luz vermelha na cumeada. O padre Bartolomeu Lourenço olha indiferente, está fora do mundo, para além da própria resignação, espera o fim que não vai tardar. Mas de súbito Blimunda solta-se de Baltasar, a quem convulsa se agarrara quando a máquina precipitou a descida, e rodeia com os braços uma das esferas que contêm as nuvens fechadas, as vontades, duas mil são mas não chegam, cobre-as com o corpo, como se as quisesse meter dentro de si ou juntar-se a elas. A máquina dá um salto brusco, levanta a cabeça, cavalo a que puxaram o bridão5, suspende-se por um segundo, hesita, depois recomeça a cair, mas menos depressa, e Blimunda grita, Baltasar, Baltasar, não precisou chamar três vezes, já ele se abraçara com a outra esfera, fazia corpo com ela, Sete-Luas e Sete-Sóis sustentando com as suas nuvens fechadas a máquina que baixava, agora devagar, tão devagar que mal rangeram os vimes quando tocou o chão, só bandeou para um lado, não havia ali espeques para a receber, é que não se pode ter tudo. Frouxos de membros, extenuados, os três viajantes […] nem sequer feridos de raspão, é bem verdade que não se acabaram os milagres, e este foi dos bons […].

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José Saramago, op. cit., [cap. XVI], pp. 264-275.

1. Descreve, por palavras tuas, o modo como as pessoas reagiram à passagem da passarola sobre Mafra, salientado a crítica feita pelo narrador. 2. Justifica a referência a «adamastor» e relaciona-a com a atitude do clérigo. 3. Comprova a importância de Baltasar e de Blimunda nos momentos da descolagem e da aterragem da passarola, fundamentando a tua resposta com citações textuais pertinentes. 4. Indica a simbologia da passarola e do seu voo e relaciona-a com o momento em que o padre Bartolomeu recorda a analogia feita por Scarlatti.

ESCRITA

FI

Linha de ação: a construção da passarola, o elogio do Sonho p. 341

Apreciação crítica SIGA pp. 362-363

Apreciação crítica 1. A partir do visionamento da curta-metragem O Primeiro Voo, dirigido por Cameron Hood e Kyle Jefferson, elabora uma apreciação crítica, na qual incluas a relação entre o filme e os valores associados à construção e ao voo da passarola.

O Primeiro Voo (2006) DreamWorks

Ficha informativa

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FICHA INFORMATIVA 7 Linha de ação: a construção da passarola, o elogio do Sonho

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Em Memorial do Convento, há um belo exemplo de realização plena do trabalhador em relação ao objeto do trabalho, de harmonia entre o desejo e a realização do desejo, de acordo entre a coisa sonhada e o sonho realizado. Isso dá-se na construção da passarola, concebida pelo padre Bartolomeu, que a ela emprestou a sua ciência, e executada por Baltasar e Blimunda, que a ela ofereceram seus dons do artesanato e da magia. Pronta, bastaria que se elevasse aos ares e, para isso contribuiu ainda a leveza dos sons musicais de Domenico Scarlatti, que a ela oferece a sua arte. A ciência, o artesanato, a magia e a arte contribuem juntos para a obra, cada um na sua medida e no seu tom, mas todos em consonância, unidos pelo mesmo objetivo, pelo mesmo sonho. […] Há pois, também, um tempo de maturação, até que possa acontecer o voo da passarola […]. Preparam-se para isso Bartolomeu, Blimunda e Baltasar. O primeiro tempo da espera é exigido para o aperfeiçoamento do cientista […]. O segundo é o tempo do operário, do artesão, tempo exigido para a confeção do objeto desejado. O terceiro tempo é, enfim, o da magia, em que Blimunda se encarregará de recolher as duas mil vontades que farão voar a passarola. Nessa conjunção tão humana de sonhos, o querer é a força primordial. Na verdade, a passarola voará porque o homem assim o quis, pela força das duas mil vontades acumuladas, pela vontade de Baltasar, de Blimunda e de Bartolomeu. […] Nessa conjunção tão humana de sonhos, o querer é a força primordial. […] Enquanto coube à técnica manter a máquina nos ares, orientá-la com as velas, fazê-la prosseguir com o fole quando não havia vento, o engenho respondeu bem. Entretanto, com o sol a pôr-se, falta o elemento da atração e a descida é inevitável. […] Mas, assim como o que fizera a passarola ser alçada ao céu tinham sido as duas mil vontades dos homens, recolhidas por Blimunda e guardadas nas esferas, atraídas pelos ímanes, pelo âmbar e pelo sol, também quando o calor do sol arrefece não é mais capaz de atrair a passarola, são Sete-Luas e Sete-Sóis que sustentam, com as suas nuvens fechadas, o corpo do pássaro, que pousa docemente no solo. Mais uma vez o que move o engenho são as vontades dos homens, a magia está no real, no humano […]. Teresa Cristina Cerdeira da Silva, «As relações de poder no trabalho realizado», in José Saramago – entre a História e a Ficção: uma Saga de Portugueses, Lisboa, D. Quixote, 1989, pp. 55-56, 61, 66 (texto adaptado)

CONSOLIDA

1. Transcreve excertos do texto que confirmem ou neguem a veracidade das afirmações. a) Em Memorial do Convento, o sonho surge dissociado do desejo. b) Apenas a conjugação de três saberes permite o voo da passarola. c) O contributo de Blimunda e de Baltasar é essencial para o sucesso da totalidade do voo da passarola.

«Deus é maneta da mão esquerda».

PROFESSOR

MC

Leitura 7.1; 7.2; 7.3; 8.1.

Consolida a) O seguinte excerto nega a afirmação: «um belo exemplo de realização plena do trabalhador em relação ao objeto do trabalho, de harmonia entre o desejo e a realização do desejo, de acordo entre a coisa sonhada e o sonho realizado» (ll. 1-3). b) O seguinte excerto nega a afirmação: «A ciência, o artesanato, a magia e a arte contribuem juntos para a obra» (ll. 7-8). c) O seguinte excerto confirma a afirmação: «são Sete-Luas e Sete-Sóis que sustentam, com as suas nuvens fechadas, o corpo do pássaro, que pousa docemente no solo. Mais uma vez o que move o engenho são as vontades dos homens, a magia está no real, no humano» (ll. 26-28).

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Unidade 4 // JOSÉ SARAMAGO

FICHA INFORMATIVA 8 Visão crítica II

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Leitura 7.1; 7.2; 7.3; 8.1.

Consolida O narrador de Memorial do Convento, a partir da «provocadora contraposição simbólica da construção do palácio-convento de Mafra por oposição à construção da passarola voadora», coloca em confronto, criticamente, duas realidades: os opressores, consagrados pelo discurso oficial, e os oprimidos, votados ao esquecimento pela História. Tece violentas e incisivas críticas ao poder instituído, nomeadamente ao religioso, o qual é constantemente ridicularizado ao longo da obra juntamente com o regime monárquico, através da subversão carnavalesca da figura do rei D. João V. Assim, o narrador saramaguiano inverte e subverte, intencionalmente, o discurso historiográfico, rebaixando os mais nobres e destacando todos aqueles («os mais fracos e humilhados da História») que se viram sempre privados, ao longo dos tempos, dos valores da liberdade, da igualdade e da justiça. Eleva-os à condição de heróis e honra-os através «de um monumento glorificador sob a forma de memorial».

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1 Entronização: ato de colocar

no trono; enaltecimento, engrandecimento.

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O leitor de Memorial do Convento depressa se apercebe que, [na] dialética esplendor/trevas caracterizadora do reinado de D. João V, o narrador saramaguiano toma claramente partido, optando por uma visão crítica e judicativa deste período, particularmente contundente na sua violenta sátira às instituições que simbolizam o poder (político, económico, social ou religioso), por atentatórias dos valores da liberdade, da igualdade e da justiça entre todos os homens. Numa palavra, o narrador pronuncia-se desde as primeiras linhas do seu relato, sempre a favor dos mais fracos e humilhados da História – que lhe merecem a honra de um monumento glorificador sob a forma de memorial –, e em claro detrimento dos poderosos que esse mesmo discurso oficial injustamente consagrou. […] A voz narrativa dá cor e movimento à descrição de diversas procissões, ao mesmo tempo que as parodia como espetáculos de orgia e de sadismo, de excessos e de revelações íntimas; ridiculariza os milagres atribuídos aos santos; dramatiza e denuncia a tirania dos autos de fé como hediondos «churrascos» humanos, colocando-os quase simetricamente num segmento inicial (com a condenação da mãe de Blimunda) e depois a encerrar a narrativa (condenação de Baltasar e de António José da Silva); escarnece das intermináveis devoções da rainha; enfatiza o medo que a todos persegue pela presença aterrorizante do Santo Ofício […]. No mesmo intuito, o narrador de Saramago […] recria, na memorável cena da procissão do Corpo de Deus, os monólogos interiores do cardeal e do rei, fazendo sobressair a sobranceria de um alto dignatário da Igreja e a cínica hipocrisia de um monarca […]. […] Com efeito, a leitura atenta de Memorial do Convento não pode ignorar, desde as primeiras linhas, quer a subversão carnavalesca do rei e do regime monárquico, quer a provocadora contraposição simbólica da construção do palácio-convento de Mafra por oposição à construção da passarola voadora – edificações unidas por uma história de amor, centrada na relação entre Baltasar e Blimunda. Ao mesmo tempo, a releitura do passado histórico opera uma inversão carnavalesca, de motivação ideológica: rebaixa através do sarcasmo os mais nobres, celebrizados pelo discurso historiográfico; e, opostamente, eleva (levanta do chão do esquecimento) os da classe inferior, alçando-os à categoria de verdadeiros heróis, sob a forma de entronização1. José Cândido Martins, «Memorial do Convento, de José Saramago: intertexto discursivo e paródia carnavalizadora», in Flavia Maria Corradin & Lilian Jacoto (org.), Literatura Portuguesa: ontem, hoje, São Paulo, Editora Paulistana, 2008, pp. 94, 102-103, 111.

CONSOLIDA

1. Explicita o estabelecimento de contrastes, em Memorial do Convento, a partir da visão crítica do narrador, evidenciando a sua intenção.

Memorial do Convento – Dimensão simbólica

Dimensão simbólica – A perpetuação do amor

PROFESSOR

MC

PONTO DE PARTIDA

1. Visiona o videoclipe da canção «Cinco Vidas», do álbum Rua da Lua (2016), do grupo com o mesmo nome. 1.1 Pronuncia-te acerca da relação entre a letra da canção e o videoclipe.

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Educação Literária 14.1; 14.2; 14.3; 14.4; 14.5; 14.7; 14.8; 14.9; 15.1; 15.2; 15.5; 16.2. Gramática 19.3. Escrita 10.1; 11.1; 12.1; 12.2; 12.3; 12.4; 12.5; 13.1.

«Cinco Vidas» (2016) Rua da Lua

Ponto de Partida

▪ Link Videoclipe da canção «Cinco Vidas», dos Rua da Lua

EDUCAÇÃO LITERÁRIA

A procura de Blimunda

1. O videoclipe retrata a mensagem da letra da canção, na medida em que apresenta a longa jornada de uma jovem sem motivo para regressar, enquanto não encontrar a paz.

«Nem vontade nem alma».

[Capítulo XXV]

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Durante nove anos, Blimunda procurou Baltasar. Conheceu todos os caminhos do pó e da lama, a branda areia, a pedra aguda, tantas vezes a geada rangente e assassina, dois nevões de que só saiu viva porque ainda não queria morrer. Tisnou-se1 de sol como um ramo de árvore retirado do lume antes de lhe chegar a hora das cinzas, arregoou-se2 como um fruto estalado, foi espantalho no meio de searas, aparição entre os moradores das vilas, susto nos pequenos lugares e nos casais perdidos. Onde chegava, perguntava se tinham visto por ali um homem com estes e estes sinais, a mão esquerda de menos, e alto como um soldado da guarda real, barba toda e grisalha, mas se entretanto a rapou, é uma cara que não se esquece, pelo menos não a esqueci eu, e tanto pode ter vindo pelas estradas de toda a gente, ou pelos carreiros que atravessam os campos, como pode ter caído dos ares, num pássaro de ferro e vimes entrançados, com uma vela preta, bolas de âmbar amarelo, e duas esferas de metal baço que contêm o maior segredo do universo, ainda que de tudo isto não restem mais que destroços, do homem e da ave, levem-me a eles, que só de lhes pôr as mãos em cima os reconhecerei, nem preciso olhar. Julgavam-na doida, mas, se ela se deixava ficar por ali uns tempos, viam-na tão sensata em todas as mais palavras e ações que duvidavam da primeira suspeita de pouco siso. Por fim já era conhecida de terra em terra, a pontos de não raro a preceder o nome de Voadora, por causa da estranha história que contava. Sentava-se às portas, a conversar com as mulheres do lugar, ouvia-lhes as lamentações, os ais, menos vezes as alegrias, por serem poucas, por as guardar quem as sentia, talvez porque nem sempre há a certeza de se sentir o que se guarda, é só para não ficar desprovido de tudo. Por onde passava, ficava um fermento de desassossego, os homens não reconheciam as suas mulheres, que subitamente se punham a olhar para

1 Tisnou-se: enegreceu-se; tos-

tou-se. 2 Arregoou-se: fendeu-se.

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Unidade 4 // JOSÉ SARAMAGO

PROFESSOR

Educação Literária 1. O amor incondicional e eterno sentido por Baltasar, seu companheiro e amigo desde sempre, que desaparecera na passarola, move Blimunda nessa busca incessante e persistente. 2. A perturbação que invade quem se cruza com Blimunda («ficava um fermento de desassossego», l. 21), manifesta-se de diversas formas. Por um lado, as mulheres sentiam-se compelidas a partilhar com aquela estranha mulher as suas angústias, desejando que os seus homens desaparecessem para poderem também procurá-los. Estes, por sua vez, ficavam enfeitiçados, sentindo «uma inexplicável tristeza no coração», quando partia, ou, se soubessem que ainda estava perto, procuravam-na na esperança de a encontrar. Por outro lado, nem sempre a personagem era bem recebida, pois o desassossego sentido manifestava-se de forma violenta, fruto da dificuldade em lidar com o que não se compreende. 3. Blimunda, após ter sido maltratada numa aldeia onde havia escassez de água, voltou durante a noite e, depois de ter verificado, através dos seus poderes, em que local se encontrava um veio de água pura, gritou no meio da praça a sua localização. A população, perante este «milagre», deu-lhe o nome Olhos-de-Água. 4. A enumeração evidencia os efeitos de tão longa jornada em Blimunda, que perde a noção do tempo e do espaço. 5. O narrador recorre à elipse temporal («Durante nove anos, Blimunda procurou Baltasar», l. 1; «Nove anos procurou Blimunda», l. 35) para fazer avançar rapidamente a ação e, simultaneamente, ao sumário, relatando, assim, sucintamente, que a personagem percorrera todos os lugares do país e o que acontecera ao longo dessa busca ininterrupta. Sabe-se que a jornada termina em 1739, por causa de um referente histórico: a morte de António José da Silva.

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3 Bonifrates: marionetas; fanto-

ches. 4 António José da Silva: poeta,

comediógrafo e advogado, dito «O Judeu», foi garrotado e queimado em auto de fé, em 1739. É considerado o dramaturgo português mais importante entre Gil Vicente e Almeida Garrett.

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eles, com pena de que não tivessem desaparecido, para enfim poderem procurá-los. Mas esses mesmos homens perguntavam, Já se foi, com uma inexplicável tristeza no coração, e se lhes respondiam, Ainda anda por aí, tornavam a sair com a esperança de a encontrar naquele bosque, na seara alta, banhando os pés no rio ou despindo-se atrás dum canavial, tanto fazia. […]. […] Mas nem sempre os acidentes da sua passagem foram deste teor, aconteceu-lhe ser apedrejada, escarnecida, e numa aldeia onde assim a maltrataram fez depois um prodígio tal, que pouco faltou para a tomarem por santa, foi o caso que havia no lugar grande secura de água, por estarem exaustas as fontes e consumidos os poços, e Blimunda, após ter sido expulsa, percorreu os arredores usando o seu jejum e a sua vidência, e na noite seguinte, quando todos dormiam, entrou na aldeia, e posta no meio da praça gritou que em tal sítio e a tal profundidade corria um veio de água pura, que a vi eu, por isso lhe foi dado o nome de Olhos-de-Água, dos olhos que primeiro se banharam nela. […] Nove anos procurou Blimunda. Começou por contar as estações, depois perdeu-lhes o sentido. Nos primeiros tempos calculava as léguas que andava por dia, quatro, cinco, às vezes seis, mas depois confundiram-se-lhe os números, não tardou que o espaço e o tempo deixassem de ter significado, tudo se media em manhã, tarde, noite, chuva, soalheira, granizo, névoa e nevoeiro, caminho bom, caminho mau, encosta de subir, encosta de descer, planície, montanha, praia do mar, ribeira de rios, e rostos, milhares e milhares de rostos, rostos sem número que os dissesse, quantas vezes mais os que em Mafra se tinham juntado, e de entre os rostos, os das mulheres para as perguntas, os dos homens para ver se neles estava a resposta, e destes nem os muito novos nem os muito velhos, alguém de quarenta e cinco anos quando o deixámos além no Monte Junto, quando subiu aos ares, para sabermos a idade que vai tendo basta acrescentar-lhe um ano de cada vez, por cada mês tantas rugas, por cada dia tantos cabelos brancos. […] Milhares de léguas andou Blimunda, quase sempre descalça. A sola dos seus pés tornou-se espessa, fendida como uma cortiça. Portugal inteiro esteve debaixo destes passos, algumas vezes atravessou a raia de Espanha porque não via no chão qualquer risco a separar a terra de lá da terra de cá, só ouvia falar outra língua, e voltava para trás. Em dois anos, foi das praias e das arribas do oceano à fronteira, depois recomeçou a procurar por outros lugares, por outros caminhos, e andando e buscando veio a descobrir como é pequeno este país onde nasceu, Já aqui estive, já aqui passei, e dava com rostos que reconhecia, Não se lembra de mim, chamavam-me Voadora, Ah, bem me lembro, então achou o homem que procurava, O meu homem, Sim, esse, Não achei, Ai pobrezinha, Ele não terá aparecido por aqui depois de eu ter passado, Não, não apareceu, nem nunca ouvi falar dele por estes arredores, Então cá vou, até um dia, Boa viagem, Se o encontrar. Encontrou-o. Seis vezes passara por Lisboa, esta era a sétima. Vinha do sul, dos lados de Pegões. Atravessou o rio, quase noite, na última barca que aproveitava a maré. Não comia há quase vinte e quatro horas. Trazia algum alimento no alforge, mas, de cada vez que ia levá-lo à boca, parecia que sobre a sua mão outra mão se pousava, e uma voz lhe dizia, Não comas, que o tempo é chegado. Sob as águas escuras do rio, via passar os peixes a grande profundidade, cardumes de cristal e prata, longos dorsos escamosos ou lisos. A luz interior das casas coava-se através das paredes, difusa como um farol no nevoeiro. Meteu-se pela Rua Nova dos Ferros, virou para a direita na igreja de Nossa Senhora da Oliveira, em direção ao Rossio, repetia um itinerário de há vinte e oito anos. Caminhava no meio de fantasmas, de neblinas que eram gente. Entre os mil cheiros fétidos da cidade, a aragem noturna trouxe-lhe o da carne queimada. Havia multidão em S. Domingos, archotes, fumo negro, fogueiras. Abriu caminho, chegou-se às filas da frente, Quem são, perguntou a uma mulher que

Memorial do Convento – Dimensão simbólica

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levava uma criança ao colo, De três sei eu, aquele além e aquela são pai e filha que vieram por culpas de judaísmo, e o outro, o da ponta, é um que fazia comédias de bonifrates3 e se chamava António José da Silva4, dos mais não ouvi falar. São onze os supliciados. A queima já vai adiantada, os rostos mal se distinguem. Naquele extremo arde um homem a quem falta a mão esquerda. Talvez por ter a barba enegrecida, prodígio cosmético da fuligem, parece mais novo. E uma nuvem fechada está no centro do seu corpo. Então Blimunda disse, Vem. Desprendeu-se a vontade de Baltasar Sete-Sóis, mas não subiu para as estrelas, se à terra pertencia e a Blimunda. José Saramago, op. cit., [cap. XXV], pp. 487-493.

1. Explicita as razões que moveram Blimunda numa busca incessante de nove anos. 2. Justifica as reações das pessoas com quem Blimunda se cruzou ao longo da sua jornada. 3. Destaca o episódio no qual se realça o caráter mágico da personagem. Recursos expressivos 4. Identifica o recurso presente no seguinte excerto e comenta a sua SIGA p. 383 expressividade: «[…] tudo se media em manhã, tarde, noite, chuva, soalheira, granizo, névoa e nevoeiro, caminho bom, caminho mau, encosta de subir, encosta de descer, planície, montanha, praia do mar, ribeira de rios, e rostos, milhares e milhares de rostos […]» (ll. 38-41).

5. Comenta a forma como o narrador procede à apresentação do tempo da narrativa, estabelecendo uma relação entre este e o tempo histórico. 6. Analisa o valor simbólico dos números nove e sete.

FI

Dimensão simbólica p. 346

7. Esclarece a circularidade da ação, relacionando-a com a simbologia da sequência final.

GRAMÁTICA

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Valor aspetual pp. 59-60

1. Indica o aspeto gramatical expresso nos seguintes excertos: a) «Sentava-se às portas, a conversar com as mulheres […]» (l. 18) b) «[…] nem sempre há a certeza de se sentir o que se guarda […]» (l. 20) c) «[…] tudo se media em manhã, tarde, noite, chuva […]» (l. 38) d) «Encontrou-o.» (l. 57)

ESCRITA

Exposição sobre um tema

Exposição sobre um tema SIGA pp. 360-361

1. Redige uma exposição, de cento e trinta a cento e setenta palavras, sobre a intencionalidade subjacente à fusão entre a História e a ficção em Memorial do Convento. No final, faz a revisão do teu texto. Verifica a construção das frases, a clareza do discurso, as repetições desnecessárias e a utilização de conectores.

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Educação Literária 6. O número nove, presente nos «nove anos» que durou a busca de Blimunda, simboliza o coroamento dos esforços empreendidos, ao encontrar Baltasar, anunciando um fim, mas também um recomeço, pois as duas personagens ligam-se num novo plano, de total e perfeita união. O número sete, associado às passagens por Lisboa, representa o final de um ciclo, o final da procura de Blimunda, e a renovação através da união das vontades. 7. Blimunda reencontra Baltasar no mesmo local onde o conhecera, em S. Domingos, também num auto de fé, após ter repetido «um itinerário de há vinte e oito anos», número que representa a totalidade, o fechar de um círculo. Baltasar arde na fogueira do Santo Ofício, sendo o seu corpo destruído pelo fogo, mas não a sua vontade, que «à terra pertencia e a Blimunda», ou seja, dá-se a perpetuação do herói através da comunhão dos dois, do amor que os une. A vida é efémera, mas a vontade humana, os ideais, perduram. Gramática 1. a) Valor imperfetivo; b) Situação genérica; c) Situação habitual; d) Valor perfetivo. Escrita Sugestão de tópicos: • a obra tem como pano de fundo um acontecimento histórico, a promessa do rei D. João V e a consequente construção do Convento de Mafra, surgindo, a par, a ficção, com a construção da passarola e a história de amor entre Baltasar e Blimunda; • Baltasar e Blimunda, os protagonistas da obra, são personagens ficcionais que interagem com personagens históricas; o padre Bartolomeu Lourenço e Domenico Scarlatti; • as instituições representativas do poder e a sua atuação, consagradas pelo discurso historiográfico, são satirizadas e ridicularizadas ao longo da ação; • as ações das personagens da ficção são enaltecidas pelos valores de amizade, de solidariedade, pela vontade e tenacidade demonstradas na concretização do sonho de voar e, no caso de Blimunda, na persistente busca da plenitude do amor; • o povo é retirado do esquecimento a que foi votado pela História, sendo exaltados e engrandecidos o seu esforço e o seu protagonismo na construção de uma obra megalómana, através da sua imortalização num memorial de A a Z; •…

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Com a morte de Sete-Sóis fecham-se as páginas desta outra face da História povoada por gente oprimida em nome de ideais de grandeza política e religiosa, fecha-se, também, um ciclo de sonhos quiméricos perspetivados no futuro mas, logo um outro é deixado em aberto com a recolha da vontade de Baltasar por Blimunda Sete-Luas. Atentemos […] nas possíveis ilações que podemos extrair do significado cabalístico deste número [sete], principalmente se combinado com o Sol e com a Lua: cada semana se renova após a passagem dos seus sete dias; cada período lunar dura o mesmo número de dias, fechando os quatro períodos o ciclo de vinte e oito dias que constantemente será renovado. Ora […] sete evidencia uma ideia de mudança, de renovação constante após o final de um ciclo. Por outro lado, a ideia de totalidade do universo em movimento é obtida pela soma do número quatro, símbolo da terra […], e do três, símbolo da Santíssima Trindade. Assim, se o sete associado ao sol, considerado como manifestação divina, apenas parcialmente explica a importância da alcunha que ao herói é atribuída, não podemos deixar de considerar que Baltasar surge em íntima conexão com Blimunda Sete-Luas, sendo, pois, por intermédio da relação com a simbologia deste outro astro que o herói e a sua morte adquirem um significado pleno. É que, se o facto de a lua desaparecer durante algum tempo, reaparecendo sempre depois, nos permite fazer desse astro a metáfora da passagem da morte à vida, a verdade é que podemos estender esta simbologia à etapa final do trajeto do herói, na medida em que, depois de desaparecer nos céus levado pela passarola, é a Blimunda Sete-Luas quem cabe reencontrá-lo na sua sétima passagem por Lisboa. Repetindo um itinerário de há vinte e oito anos (sete x quatro), fecha o ciclo da narrativa e da vida do herói cuja vontade recolhe, assim lhe perpetuando a «vida». Ana Paula Arnaut, Memorial do Convento, História, Ficção e Ideologia, Coimbra, Fora do Texto, 1996, pp. 80-82.

«A cruz de Santo André».

Nota: as «vontades humanas» e a passarola, analisadas anteriormente, são, também, elementos simbólicos (vide Ficha Informativa n.º 7).

Elementos simbólicos

Memorial do Convento

Nove: simboliza o coroamento dos esforços, o concluir de uma criação, e anuncia, sendo o último da série dos algarismos, um fim e um recomeço, isto é, a transposição para um novo plano.

A peregrinação perseverante e determinada de Blimunda que, após nove anos de busca, finalmente reencontra Baltasar e a ele se liga num novo plano, de total e perfeita união.

Fogo: símbolo de destruição, mas também de purificação e de regeneração.

A morte de Baltasar no fogo inquisitorial reenvia para a ideia de libertação do condicionamento humano.

«trindade terrestre»: simboliza a união do homem e o seu poder infinito de construir, a conjugação dos saberes (científico, artesanal e sobrenatural): o sonho tornado realidade.

A união de Baltasar, Blimunda e do Padre Bartolomeu Lourenço de Gusmão.

Música: simboliza a associação à plenitude da vida cósmica, a harmonia das faculdades da alma e dos elementos do corpo.

A capacidade de curar Blimunda que até então não tinha a noção de que, «ouvindo a música, o seu peito se lhe dilatasse tanto, um suspiro assim, como de quem morre ou de quem nasce».

Ficha informativa

FICHA INFORMATIVA 10 Caracterização das personagens. Relação entre elas Personagens históricas

Personagens ficcionais

D. João V

Blimunda Sete-Luas

A sua caracterização assenta na sátira e na ridicularização da sua forma de ser. Representa o poder real absolutista, o megalómano e devoto fanático que submete milhares de homens ao cumprimento de uma promessa pessoal, desviando as riquezas nacionais para a satisfação de um capricho. A vaidade condu-lo a equiparar-se a Deus nas suas relações com as religiosas. No entanto, perante a sua condição humana, procura antecipar a sua imortalidade, através da sagração do convento no dia do seu quadragésimo primeiro aniversário.

Batizada de Sete-Luas por «ver às escuras», é uma mulher do povo que vive um amor apaixonado, franco e leal com Baltasar. Tem o dom de, em jejum, ver o interior das pessoas e das coisas, o que lhe permite recolher as duas mil «vontades» indispensáveis para o voo da «passarola». Detentora de grande densidade psicológica e de uma perseverança sem limites, procura Baltasar durante nove anos, unindo-se ao mesmo numa comunhão espiritual ao resgatar a sua «vontade», quando finalmente o reencontra.

D. Maria Ana Josefa

Homem do povo, analfabeto e humilde, aceita a vida tal como esta se lhe apresenta. De alcunha Sete-Sóis, perdeu a mão esquerda na guerra de Sucessão de Espanha. Conhece Blimunda num auto de fé, e a ela se liga amorosa e espiritualmente. Ajuda na construção da «passarola», sonho que passa também a ser seu, trabalhando, após o seu voo, nas obras do Convento de Mafra. Morre num auto de fé da Inquisição.

Baltasar Sete-Sóis

A esposa do rei, de origem austríaca, é uma mulher devota e submissa, cujo papel se resume basicamente a dar herdeiros ao rei, vivendo, de forma passiva e insatisfeita, um casamento baseado na aparência, na sexualidade reprimida pela imposição de um código ético, moral e religioso. Consegue libertar-se da sua condição através dos sonhos, nos quais assume a sua feminilidade.

Edvard Munch, Trabalhadores do Campo, 1896-1897.

Padre Bartolomeu Lourenço de Gusmão O «Voador», apodo que ironicamente lhe foi dado, acalenta o sonho de um dia voar, daí o seu projeto da «passarola», apoiado por D. João V. Mantém laços de profunda amizade com Baltasar e Blimunda, que o ajudam na construção e no voo da «máquina voadora». Representa as novas ideias que causavam estranheza numa sociedade inculta e que o tornaram alvo da Inquisição. Evidencia, ao longo da obra, uma profunda crise de fé, acabando por morrer louco em Toledo, Espanha, para onde fugira com medo do Santo Ofício. Domenico Scarlatti Músico italiano que foi contratado para dar lições de música à infanta D. Maria Bárbara. Também ele partilha o segredo da construção da «passarola», assumindo papel de destaque na cura de Blimunda através do poder da sua música.

O povo O povo trabalhador é o verdadeiro protagonista de Memorial do Convento. Espoliado, rude, violento, o povo atravessa toda a narrativa, numa construção de figuras que, embora corporizadas por Baltasar e Blimunda, tipificam a massa coletiva e anónima, tantas vezes subestimada e esquecida pela História, que tornou possível, à custa do seu sacrifício e, muitas vezes, da própria morte, a edificação do convento.

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Unidade 4 // JOSÉ SARAMAGO

LEITURA

Artigo de opinião

PROFESSOR

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Leitura 7.1; 7.2; 7.3; 7.4; 7.5; 7.7.

Na morte de José Saramago

Leitura 1.1 (A). 1.2 (C). 1.3 (B). 1.4 (D). 2. Por exemplo: discurso valorativo – «é quase sempre admirável a maneira como Saramago desenvolve uma linguagem literária», ll. 12-14; «Um grande escritor», l. 91; uso de articuladores – «Mas será Saramago um escritor realista, como todos os seus pressupostos de escola levariam a supor, ou estaremos antes perante um caso em que ao realismo se acrescenta algo», ll. 23-27»; uso da primeira pessoa do singular – «Devo dizer que fui amigo dele e prezo grande parte da sua obra», ll. 5-6, articulada com a terceira pessoa do singular «O pessimismo de Saramago foi-se adensando cada vez mais.» (ll. 49-50).

José Saramago. Fotografia de João Francisco Vilhena.

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1 Maneirismos: características

estilísticas. 2 Premente: opressora. 3 Destra: hábil. 4 Prestidigitação: técnica ilusio-

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nista, passe de mágica. 5 Sói: se costuma. 6 Parábola: comparação desen-

volvida numa história, cujos elementos são eventos e factos da vida quotidiana e na qual se ilustra uma verdade moral ou espiritual. 7 Exegese: análise, explicação, comentário ou interpretação, cujo propósito é esclarecer ou interpretar uma obra. 8 Picaresca: subgénero narrativo, em prosa ficcionada, que relata a vida e aventuras de uma personagem (o pícaro), de condição humilde; as suas peripécias têm traços cómicos. 9 Anódino: insignificante.

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Para além de inúmeras reações circunstanciais, a morte de José Saramago trouxe à baila várias questões muito interessantes. Devo dizer que fui amigo dele e prezo grande parte da sua obra, sem subscrever, como é evidente, as suas posições ideológicas e políticas. Isso nunca me impediu de tentar compreendê-lo, nem de admirá-lo naquilo que penso ser a parte mais válida do que escreveu. E começando por aí: é quase sempre admirável a maneira como Saramago desenvolve uma linguagem literária que, logo à partida, pretenderia aproximar-se de uma oralidade ideal e primordial, a partir da qual todos os planos da narrativa se diferenciam e na qual todos voltam depois a convergir. Esta técnica singular ter-se-á por vezes tornado num dos seus maneirismos1, mas é extremamente eficaz em muitos casos. Mas será Saramago um escritor realista, como todos os seus pressupostos de escola levariam a supor, ou estaremos antes perante um caso em que ao realismo se acrescenta algo que acaba por transfigurá-lo noutra coisa, noutro tipo de investida quase mágica sobre o real, a

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colocar este numa diferente dimensão de evidência angustiada e premente2? Um certo tipo de destra3 prestidigitação4 exercida sobre o real, que envolve um grau mais acima na escala daquilo a que sói5 chamar-se ficção, cria os pressupostos de uma parábola6, a implicar portanto a possibilidade de uma moralidade e de uma exegese7. As armas críticas de Saramago, coincidindo aqui com as estratégias ficcionais, não dispensam essa ferramenta de transfiguração cujo coeficiente de irrealidade é criador de ambiguidades várias. À medida que foi avançando nos anos e na obra, dir-se-ia que uma imensa amargura veio repassar alguns textos. Mais do que amargura, descrença de um sentido para o mundo ou de uma utopia redentora para os homens. O pessimismo de Saramago foi-se adensando cada vez mais. […] Um outro aspeto que julgo importante é o de o romance saramaguiano ter regra geral tão pouco a ver com a narrativa proletária (salvo, evidentemente, o caso de Levantado do Chão) quanto com o chamado romance burguês e as suas várias derivas ao longo do século XX. Saramago conhecia muito bem todo

O Ano da Morte de Ricardo Reis

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o universo romanesco dos séculos XIX e XX. Soube, ele que tanto se inspirou no barroco, ir à picaresca8 espanhola buscar algumas notas importantes, entre elas a de um humor que levou com frequência a um ponto corrosivo, para caracterizar algumas das suas personagens, figuras e situações. Mas os cenários em que tudo isso se move parecem ter mais a ver com o reencontrar de um fio narrativo muito anterior a qualquer modelo de ficção preexistente, que faz as personagens existirem e agirem como que emergindo e consolidando-se nas próprias pregas do texto que está a ser escrito, entre o absurdo da situação e os possíveis dos seus comportamentos e das suas escolhas quanto a grandes questões da exis-

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tência, que começam por aparecer de um modo quase anódino9 até se proporem ao leitor como avassaladoras e intimidantes. Um escritor assim, para mais racionalista, ateu e empenhado socialmente […], tinha de questionar o Deus da Bíblia e de fazer uma leitura crítica dos seus atributos. Mas as investidas de Saramago contra Deus supõem, quase de certeza, uma contrapartida de aumento do coeficiente de humanidade e de justiça que ele quereria ver instaurado e praticado entre os homens. […] Um grande escritor pode ter destas contradições e defeitos que o aproximam mais de nós e não retiram nada ao estatuto da sua grandeza.

Vasco Graça Moura, «Na morte de José Saramago», in Diário de Notícias, 23 de junho de 2010 (disponível em http://www.dn.pt, consultado em dezembro de 2016).

1. Para responderes aos itens de 1.1 a 1.4, seleciona a única opção que permite obter uma afirmação correta. 1.1 A linguagem literária de Saramago aproxima-se do tom (A) (B) (C) (D)

da oralidade, essência da comunicação humana. parabólico, recorrente no seu discurso. ideal da escrita e dos seus maneirismos. essencial e primordial da diegese.

1.2 A sua escrita (A) (B) (C) (D)

reproduz fielmente os contornos da realidade. concebe universos ficcionais. age sobre o real, transfigurando-o. inspira a análise sobre o real.

1.3 As personagens criadas por Saramago (A) (B) (C) (D)

impõem-se desde a sua apresentação, sendo avassaladoras. parecem insignificantes mas vão-se impondo gradualmente. são avassaladoras e agem, por vezes, absurdamente. agem de forma intimidante, sendo, por vezes, insignificantes.

1.4 Em «Um grande escritor pode ter destas contradições» (ll. 89-90), está presente a modalidade (A) (B) (C) (D)

deôntica (valor de obrigação). epistémica (valor de possibilidade). apreciativa. deôntica (valor de permissão).

2. Refere três marcas discursivas típicas do artigo de opinião presentes no texto, ilustrando a tua resposta.

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Unidade 4 // JOSÉ SARAMAGO

SÍNTESE

Memorial do Convento Memorial do Convento

Título = relato sobre pessoas memoráveis, o povo que realmente edificou o Convento de Mafra; homenagem a essa gente que o construiu, cuja memória é digna de ser perpetuada num memorial de A a Z.

Linhas de ação

Era uma vez um rei que fez a promessa de levantar um convento em Mafra. Era uma vez a gente que construiu esse convento.

Era uma vez um soldado maneta e uma

Era uma vez um padre que queria

mulher que tinha poderes.

voar e morreu doido.

A construção do convento: a epopeia do trabalho

Blimunda e Baltasar: a sublimação do amor

A construção da passarola: o elogio do Sonho

Núcleo narrativo agregador das outras ações • A promessa do rei D. João V de mandar construir um convento em Mafra, se a rainha lhe desse um herdeiro. • Cumprimento da promessa: o início da construção. • O alargamento do convento para albergar 300 frades, contrariamente aos 13 iniciais, fruto da megalomania do rei. • Antecipação, por D. João V, da data da Sagração do Convento, data do seu 41.º aniversário, por temer morrer antes de inaugurar pessoalmente a «sua obra grandiosa». • • Repercussões económicas: – a compra/venda de terras em Mafra; – o esbanjamento e a falta de controlo financeiro.

Blimunda/Baltasar • Casal transgressor dos códigos estabelecidos: não são casados (apesar da sua união ter sido abençoada pelo padre Bartolomeu Lourenço, numa cerimónia matrimonial simbólica), não procriam e entregam-se às carícias e aos jogos eróticos, sem olharem a limites, lugares ou datas – vivem um amor sem regras e sem limites, instintivo e natural. • O seu amor é físico e espiritual: «dão-se um ao outro» com frequência e o «olhar é a sua casa»; complementam-se, sendo (re)batizados por Bartolomeu Lourenço, como «Sete-Sóis» e «Sete-Luas». • Pertencem um ao outro, daí a «vontade» de Baltasar de entrar em Blimunda, resgatando-o simbolicamente da morte, numa espécie de fecundação e perpetuação do amor que os une.

O sonho de voar do padre Bartolomeu Lourenço de Gusmão – a construção da passarola • A realização plena do trabalhador em relação ao objeto do trabalho, a harmonia entre o desejo e a realização do desejo, e a sintonia entre a coisa sonhada e o sonho realizado. • A conjugação dos saberes: o científico (padre Bartolomeu Lourenço de Gusmão), o artesanal (Baltasar), o sobrenatural (Blimunda) e o artístico (Domenico Scarlatti) – unidos pelo mesmo objetivo, pelo mesmo sonho.

• Repercussões sociais: – o aproveitamento da desgraça humana para o lucro de alguns; – a «epopeia da pedra» como representação do esforço sobre-humano dos trabalhadores; – as péssimas condições de trabalho: as pragas, os acidentes de trabalho, a doença e a morte; – o recrutamento brutal e desumano, conduzindo ao desmembramento familiar e à perda e perdição de muitos homens.

Versus Rei/Rainha • Relação contratual, politicamente conveniente: o único objetivo é procriar, no sentido de assegurar um sucessor ao trono. • Casamento pautado pela distância física (cordialidade e cortesia na intimidade: artificialismo), a ausência de afetividade e a frieza. Consequências: as infidelidades do rei; os sonhos da rainha com o seu cunhado, o infante D. Francisco.

A concretização do sonho – o voo da passarola • A conjunção dos sonhos, a força do querer, a união das vontades: as duas mil vontades humanas, a vontade de Bartolomeu, de Baltasar e de Blimunda, a «trindade terrestre».

A capacidade libertadora alicerçada na vontade dos homens.



Tempo histórico – referentes temporais: 1711 – promessa do rei de construir um convento franciscano, em Mafra;



Tempo da narrativa – 28 anos – início: 1711

1717 – bênção e lançamento da primeira pedra; 1730 – sagração do convento, pelo 41.º aniversário do rei;… final: 1739.

Síntese da unidade

Visão crítica • Narrador crítico e subjetivo (postura de contrapoder): ridicularização e dessacralização do poder régio e do poder religioso; solidariedade para com os oprimidos: – a crítica e o olhar mordaz do narrador enfatizam a escravidão a que foram sujeitos quarenta mil portugueses, para alimentar o sonho de um rei megalómano ao qual se atribui a edificação do Convento de Mafra; – resgate do esquecimento histórico dos verdadeiros heróis da construção do convento: o “memorial de A a Z” em homenagem àqueles que sentiram o peso do acróstico – Mortos, Assados, Fundidos, Roubados, Arrastados (recrutamento forçado de homens para trabalhar nas obras do convento). • Crítica de costumes do século XVIII: – os casamentos por conveniência; – o poder absolutista e opressor; – a megalomania régia e a «escravatura» do povo na edificação do convento; – o esbanjamento dos poderosos e a pobreza do povo; – o fanatismo religioso: ignorância popular; perseguição e crueldade inquisitoriais – os autos de fé; – a vida conventual e a hipocrisia clerical; – a Quaresma, as procissões, o Carnaval, a tourada como momentos de evasão; – …

Dimensão simbólica • Sol/Lua − masculino/feminino, luz/escuridão.

A perfeição mágica do amor entre o casal

PLENITUDE • Sete − número sagrado, mágico, símbolo da mudança e da renovação constante (Sete-Sóis/Sete-Luas).

• Nove – gestação, renovação, renascimento: «Durante nove anos, Blimunda procurou Baltasar»; «Nove anos procu«o coroamento dos esforços, o concluir da criação». rou Blimunda»; «Encontrou-o» • Fogo − «símbolo de destruição, mas também de purificação e de regeneração»

a libertação do condicionamento humano.

• «trindade terrestre» − Padre Bartolomeu/Baltasar/Blimunda: «o pai, o filho e o espírito santo»; a conjugação dos a união do homem e o seu poder infinito de construir. saberes • Vontades humanas − simbolizam todos aqueles que contribuem para o progresso do mundo. • Amputação da mão esquerda − «maneta é Deus, e fez o universo»

«o homem chamado a viver num nível diferente de existência».

• Passarola – a concretização dos sonhos; a capacidade libertadora alicerçada na vontade dos homens. • Música – simboliza a associação à plenitude da vida cósmica, a harmonia das faculdades da alma e dos elementos o poder que propicia o regresso da vontade: a cura da «doença» de Blimunda. do corpo • O final do romance – Blimunda… «Seis vezes passara por Lisboa, esta era a sétima.» «Naquele extremo arde um homem a quem falta a mão esquerda.» supliciados.» «Vem» no centro do seu corpo.»

Auto de fé: «São onze os «uma nuvem fechada está

A perpetuação do herói e do amor através da comunhão dos dois. A vida é efémera, mas a vontade humana, os ideais, perduram.

PROFESSOR

▪ Apresentação em PowerPoint Síntese da subunidade

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Unidade 4 // JOSÉ SARAMAGO

PROFESSOR

MC

Educação Literária 15.5; 16.2. Escrita 10.1; 11.1; 12.1; 12.2; 12.3; 12.4; 13.1. Oralidade 3.1; 4.1; 4.2; 5.1; 5.2; 5.3; 6.4.

Mensagens em diálogo Sugestão de tópicos: • A literatura coloca, frequentemente, em destaque e denuncia determinadas situações ocorridas, ou passíveis de ocorrer, conduzindo o leitor a assumir uma postura crítica relativamente àquilo que de negativo é narrado e àquela que deve ser a postura a adotar, impelindo-o para a ação. • Almeida Garrett, em Frei Luís de Sousa, apresenta o patriotismo, encarnado nos valores da coragem e da honra exibidos por Manuel de Sousa Coutinho, como condição essencial à mudança, e expõe o Sebastianismo, o passadismo português, como símbolo da estagnação e da apatia da sociedade. Preconiza, assim, a capacidade interventiva do homem e a missão social da literatura na criação de um novo Portugal. • José Saramago, em O Ano da Morte de Ricardo Reis, apresenta um Portugal reprimido e oprimido pelo Estado Novo, através da alienação imposta pela imprensa e da atuação da PVDE, e um povo remetido à pobreza extrema, cuja sobrevivência depende da «caridade» do Estado e de uma elite comprometida. Denuncia, igualmente, a postura acrítica da sociedade, representada por Ricardo Reis, que assume como verdadeiras as notícias veiculadas pelos meios do regime. • José Saramago, em Memorial do Convento, expõe uma realidade diferente daquela que é apresentada pelo discurso historiográfico sobre a construção do Convento de Mafra, obra megalómana, denunciando e criticando as condições deploráveis e desumanas a que se tiveram de sujeitar milhares de homens, os quais retira do esquecimento e transforma em heróis. Procede, também, à apologia do Sonho e da vontade humana, através da construção e do voo da «passarola», enquanto motores do progresso e da mudança. •…

Mensagens

em diÁLogo DESAFIO

Redige um texto expositivo, de cento e trinta a cento e setenta palavras, sobre os contributos da literatura para o devir das sociedades e para a consciencialização global dos valores que devem nortear o Homem, estabelecendo um paralelo entre Frei Luís de Sousa, de Almeida Garrett, e a obra estudada de José Saramago (O Ano da Morte de Ricardo Reis ou Memorial do Convento).

Mensagens

em deBAte A crítica política e social na obra de Saramago continua atual? DESAFIO

Prepara um debate, de trinta a quarenta minutos, respeitando o tema apresentado e relacionando-o com a obra que estudaste de Saramago Planifica a tua intervenção oral, tendo em conta as características discursivas do género solicitado e participa oportuna e construtivamente na interação oral. Não esqueças a concisão do teu discurso e o respeito pelos princípios de cortesia.

Mensagens em debate ▪ Apresentação em PowerPoint Debate: sugestões de abordagem ▪ Apresentação em PowerPoint Teste interativo José Saramago, O Ano da Morte de Ricardo Reis e Memorial do Convento

Vhils, Olhar, Comemoração dos 25 anos do jornal Público, 2015.

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GLOSSÁRIO A

J

Auto de fé: cerimónia pública durante a qual se aplicavam as penas aos condenados pela Inquisição. Cada auto de fé iniciava com um sermão, durante o qual se apontavam e condenavam as heresias, ao mesmo tempo que se exaltava a fé católica. Seguia-se a leitura das sentenças, por ordem decrescente de gravidade, sem que o acusado tivesse qualquer hipótese de defesa nem conhecimento das testemunhas de acusação. Sofriam a pena máxima − serem queimados vivos na fogueira, à vista do povo − os hereges que não confessassem o erro de que eram acusados. A confissão podia livrá-los da pena máxima, mas não de outras penas de índole diversa. O primeiro auto de fé em Portugal teve lugar no ano de 1540.

João V (D.): conhecido como «O Magnânimo» (1689-1750), pretendeu, à semelhança dos outros monarcas europeus, imitar Luís XIV. Defensor do Absolutismo, não reuniu as cortes uma única vez durante o seu reinado.

B Bartolomeu Lourenço de Gusmão: no Memorial do Convento, José Saramago ficciona personagens históricas, como o padre brasileiro, nascido por volta de 1685, que perseguia o sonho de voar. Foi ele quem inventou o aeróstato. Porém, este balão que levantou voo não lhe aplacou a vontade de criar uma máquina «para se andar pelo ar». Bartolomeu Lourenço de Gusmão leva o plano da passarola ao rei D. João V, que o apadrinha. Este homem ficou conhecido na história como o «padre voador».

E Estado Novo: Regime político instituído sob a direção de António de Oliveira Salazar, e que vigorou em Portugal sem interrupção desde 1933 até 1974. Afirma-se, na segunda metade dos anos 30, tanto económica como política e institucionalmente, assumindo o essencial das características que o definirão praticamente até ao seu termo: no plano económico e social, união entre o nacionalismo protecionista, autarcia e intervencionismo estatal; no campo político-institucional, o regime emerge como uma «ditadura de chefe de Governo»; a nível militar, realiza-se a «mão forte» do regime sobre as Forças Armadas; no campo religioso, é consagrada uma política de efetiva subordinação da Igreja Católica ao regime; controlo das instituições tradicionais com a criação de milícias próprias – a Mocidade Portuguesa e a Legião Portuguesa.

G Guerra civil espanhola: em 1936, os militares espanhóis revoltam-se contra o governo republicano, dando início a uma guerra civil que se vai estender até 1939. Apoiantes da esquerda e da direita digladiam-se e registam-se sublevações e assassinatos em vários pontos do país. As democracias afastam-se do conflito defendendo a não-beligerância, enquanto do lado nacionalista crescem os apoios, nomeadamente, da Alemanha, de Itália e de Portugal. Este conflito provocou mais de meio milhão de mortos.

P PVDE: Polícia de Vigilância e Defesa do Estado, criada em 1933, rebatizada PIDE (Polícia Internacional e de Defesa do Estado), em 1945. A função desta polícia, de caráter secreto, era perseguir, prender e interrogar qualquer indivíduo que fosse visto como inimigo à ditadura salazarista. A PVDE/PIDE exerceu também censura sobre a imprensa, recorrendo à estratégia do «lápis azul», símbolo de censura, uma vez que os artigos de imprensa e também as obras literárias eram, muitas vezes, cortados com um lápis de cor azul, inviabilizando a sua publicação integral e, por vezes, a sua publicação.

S Scarlatti, Domenico: (1685-1757) embora tenha concentrado a sua atividade inicial de compositor no género operático, é hoje mais conhecido como compositor de música para tecla, sendo o autor de mais de 500 pequenas peças, normalmente, designadas por sonatas. É conhecida a sua ligação a Portugal e à corte portuguesa. Scarlatti terá chegado a Lisboa em finais de 1719, ao serviço da corte de D. João V, tendo como pupila a filha do monarca, Maria Bárbara. Salazar: (1889-1970) estadista nacionalista português, chefiou diversos ministérios, foi presidente do Conselho de Ministros e professor universitário. Promotor do Estado Novo (1933-1974) e figura de destaque da sua organização política, a União Nacional, Salazar dirigiu os destinos de Portugal como presidente do Ministério de forma ditatorial, entre 1932 e 1933, e como Presidente do Conselho de Ministros, entre 1933 e 1968. Após ser empossado como chefe de Governo a 5 de julho de 1932, passa a controlar as principais instituições do Estado Novo, cria a Polícia de Vigilância e Defesa do Estado (PVDE), que regulamenta o exercício da liberdade de associação e manifestação.

Bibliografia/Webgrafia do Glossário http://www.casadamusica.com/pt (consultado a 19 de dezembro de 2016). http://www.infopedia.pt (consultado a 19 de dezembro de 2016). http://ensina.rtp.pt (consultado a 19 de dezembro de 2016). Fernando Rosas, História de Portugal (dir. José Mattoso), vol. 7, Círculo de Leitores, 1994. http://www.parlamento.pt (consultado a 19 de dezembro de 2016).

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Unidade 4 // JOSÉ SARAMAGO

Grupo I

FICHA FORMATIVA

Texto A1 Lê com atenção um excerto de O Ano da Morte de Ricardo Reis.

COTAÇÕES Grupo I 5

A 1. 2. 3. B 4. 5.

20 pontos 20 pontos 20 pontos 10

20 pontos 20 pontos 100 pontos 15

PROFESSOR

Texto A1 1. Estão presentes no excerto tópicos essenciais: as representações do amor («Querem ver que a sua Lídia estava virgem e foi, triste e desonrada, queixar-se», ll. 20-21 ); viagem literária («você sabe que eu, um dia, fiz aí uns versos contra o Salazar, E ele, deu pela sátira, suponho que seria sátira, Que eu saiba, não», ll. 24-25 ); e representações do século XX («não seria à Polícia de Vigilância e Defesa do Estado que iria levar queixa, Foi essa que o chamou a si, Foi», ll. 22-23 ).

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2. O recurso expressivo que percorre a descrição de Salazar é a ironia. Os atributos positivos que o definem têm como propósito denunciar exatamente o oposto, já que se está a retratar um ditador («o protetor, o pai, o professor, o poder manso, um quarto de sacristão, um quarto de sibila, um quarto de Sebastião, um quarto de Sidónio», ll. 26-28). A conclusão sobre se Salazar é o líder ideal para Portugal também resulta em ironia, «o mais apropriado possível aos nossos hábitos e índole» (l. 28).

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Levantou-se, perguntou, Então, vem, Fernando Pessoa foi atrás dele, alcançou-o no primeiro candeeiro, o prédio ficava em baixo, do outro lado da rua. Defronte da porta estava um homem de nariz no ar, […] qualquer de nós diria, vendo-o, que é um simples passeante noturno, que os há nesta cidade de Lisboa, nem toda a gente vai para a cama com as galinhas, mas quando Ricardo Reis se aproximou mais deu-lhe na cara um violento odor de cebola, era o agente Victor, reconheceu-o logo, há cheiros que são assim, eloquentes, vale cada um por cem discursos, […] Por estes sítios, a umas horas destas, senhor Victor, o outro respondeu com o que pôde improvisar, não trazia explicação preparada, esta vigilância está na infância da arte, Calhou, senhor doutor, calhou, fui visitar uma parenta que mora no Conde Barão, coitada, está com uma pneumonia, não se saiu mal de todo o Victor, E então o senhor doutor já não vive no hotel, […] Não, agora moro aqui, naquele segundo andar, Ah, esta exclamação melancólica, apesar de breve, espalhou nos ares o sufocante fedor, valeu a Ricardo Reis ter a brisa pelas costas, são as misericórdias do céu. Victor despediu-se, lançou nova baforada […]. […] Acomodado, recostado no sofá do escritório, Fernando Pessoa perguntou, traçando a perna, Quem era aquele seu amigo, Não é meu amigo, Ainda bem, só o cheiro que ele deitava, […] mas, se não é amigo, quem é ele então, e o tal doutor-adjunto que tanto parece estimá-lo, São ambos da polícia, no outro dia fui chamado a perguntas, Supunha-o homem pacífico, incapaz de perturbar as autoridades, Sou, de facto, um homem pacífico, Alguma você terá feito para que o chamassem, Vim do Brasil, não fiz mais nada, Querem ver que a sua Lídia estava virgem e foi, triste e desonrada, queixar-se, Ainda que a Lídia fosse virgem e eu a desflorasse, não seria à Polícia de Vigilância e Defesa do Estado que iria levar queixa, Foi essa que o chamou a si, Foi, […] Em todo o caso, estes nossos encontros seriam difíceis de explicar à polícia, você sabe que eu, um dia, fiz aí uns versos contra o Salazar, E ele, deu pela sátira, suponho que seria sátira, Que eu saiba, não, Diga-me, Fernando, quem é, que é este Salazar que nos calhou em sorte, É o ditador português, o protetor, o pai, o professor, o poder manso, um quarto de sacristão, um quarto de sibila, um quarto de Sebastião, um quarto de Sidónio, o mais apropriado possível aos nossos hábitos e índole, Alguns pês e quatro esses, Foi coincidência, não pense que andei a procurar palavras que principiassem pela mesma letra, Há pessoas que têm essa mania, exultam com as aliterações, com as repetições aritméticas, cuidam que graças a elas ordenam o caos do mundo […]. José Saramago, O Ano da Morte de Ricardo Reis, Alfragide, Caminho, 2013, pp. 384-388.

1. Refere três tópicos de conteúdo estudados em O Ano da Morte de Ricardo Reis presentes no excerto, justificando a tua resposta com elementos textuais. 2. Identifica o recurso expressivo que percorre a descrição de Salazar, explicitando o seu valor. 3. Reconhece três marcas do discurso saramaguiano, ilustrando a tua resposta.

Ficha Formativa

Texto A2 Lê com atenção um excerto de Memorial do Convento.

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Sete-Sóis ainda não respondeu ao rei, vai adiando sempre, acanha-se de pedir a alguém que lhe escreva a missiva, mas, se um dia vence a vergonha, assim é que notará, Meu querido rei, cá recebi a sua carta e nela vi tudo quanto tinha para me dizer, o trabalho aqui não tem faltado, só paramos quando chove tanto que até os patos diriam basta, ou quando se atrasou a pedra no caminho, ou quando os tijolos saíram de má qualidade e ficamos à espera que venham outros, agora anda tudo aqui em grande confusão com a tal ideia de alargar o convento, é que o meu querido rei nem imagina o tamanho daquele monte e a soma de homens que requer, tiveram de largar a obra da igreja e do palácio, vai ser um atraso, até canteiros e carpinteiros andam a acarretar pedra, eu umas vezes com os bois, outras vezes com o carro de mão, tive foi pena dos limoeiros e dos pessegueiros que foram arrancados, os amores-perfeitos foi um ar que lhes deu, não valia a pena ter semeado flores para depois as tratar com tanta crueldade, mas enfim, como o meu querido rei diz que não devemos nada a ninguém, sempre é uma satisfação, é como a minha mãe que dizia, paga a dívida bem, não olhes a quem, coitada, já morreu, e não verá o maior e mais formoso monumento sacro da história, como me disse na sua carta, ainda que, para ser-lhe franco, nas histórias que conheço nunca se fala de monumentos sacros, só de mouras encantadas e tesouros escondidos, e por falar em tesouros e mouras, a Blimunda está bem, muito obrigado, já não é tão bonita como foi, mas quem dera a muitas novas estarem como ela, o José Pequeno manda perguntar quando é o casamento do infante D. José, que lhe quer mandar um presente, se calhar é por terem ambos o mesmo nome, e os trinta mil portugueses recomendam-se muito e agradecem, a saúde deles vai assim-assim, […] ah, é verdade, ia-me esquecendo, também nunca mais ouvi falar da máquina voadora, talvez a tenha levado o padre Bartolomeu Lourenço para Espanha, quem sabe se a tem agora o rei de lá, que, segundo ouço dizer, vai ser seu compadre, acautele-se, com isto não enfado mais, lembranças à rainha, adeus, meu querido rei, adeus. Esta carta nunca foi escrita, mas os caminhos da comunicação das almas são muitos, quantos ainda misteriosos […]. José Saramago, Memorial do Convento, Alfragide, Caminho, 2013, pp. 393-394.

1. Refere três linhas de ação de Memorial do Convento presentes no excerto, justificando a tua resposta com elementos textuais. 2. Explicita os motivos pelos quais as obras do convento estão atrasadas. 3. Reconhece três marcas do discurso saramaguiano, ilustrando a tua resposta.

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PROFESSOR

3. Por exemplo: expressões populares («nem toda a gente vai para a cama com as galinhas», ll. 4-5); tom coloquial («Querem ver que a sua Lídia estava virgem», ll. 20-21) e clichés («Por estes sítios, a umas horas destas, senhor Victor, […] Calhou, senhor doutor, calhou» (ll. 7-9.) Texto A2 1. Estão presentes as linhas de ação essenciais: a construção do convento («o trabalho aqui não tem faltado […], agora anda tudo aqui em grande confusão com a tal ideia de alargar o convento», ll. 4-7 ); os amores de Baltasar e Blimunda («a Blimunda está bem, muito obrigado, já não é tão bonita como foi, mas quem dera a muitas novas estarem como ela», ll. 18-19 ); e a construção da passarola («nunca mais ouvi falar da máquina voadora, talvez a tenha levado o padre Bartolomeu Lourenço para Espanha», ll. 23-24 ). 2. As obras do convento estão atrasadas por vários motivos: técnicos – demora na chegada da pedra, tijolos defeituosos («ou quando se atrasou a pedra no caminho», l. 5; «ou quando os tijolos saíram de má qualidade e ficamos à espera que venham outros», ll. 5-6); meteorológicos («só paramos quando chove tanto que até os patos diriam basta», ll. 4-5); e, sobretudo, devido à decisão de alargamento do convento («anda tudo aqui em grande confusão com a tal ideia de alargar o convento, é que o meu querido rei nem imagina o tamanho daquele monte e a soma de homens que requer, tiveram de largar a obra da igreja e do palácio, vai ser um atraso», ll. 6-9). 3. Por exemplo: expressões populares («foi um ar que lhes deu», ll. 11-12); tom coloquial («ah, é verdade», l. 22) e adaptação de provérbios («paga a dívida bem, não olhes a quem», l. 14, do original «faz o bem, não olhes a quem»).

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Unidade 4 // JOSÉ SARAMAGO

Texto B

FICHA FORMATIVA

Conselho Sê paciente; espera que a palavra amadureça e se desprenda como um fruto ao passar o vento que a mereça

COTAÇÕES

Eugénio de Andrade, «Os amantes sem dinheiro», Poesia, Porto, Fundação Eugénio de Andrade, 2000.

Grupo II A 1.1 1.2 1.3 1.4 1.5 1.6 1.7 2.1 2.2 2.3

5 pontos 5 pontos 5 pontos 5 pontos 5 pontos 5 pontos 5 pontos 5 pontos 5 pontos 5 pontos 50 pontos

PROFESSOR

1. Explica, por palavras tuas, o sentido do conselho expresso no poema. 2. Identifica a presença de marcas da arte poética de Eugénio de Andrade neste poema.

Grupo II

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Texto B 1. O poeta deve ser paciente e aguardar que a palavra amadureça, antes de se desprender como um fruto. Este é o conselho do poema. O que se compreende, portanto, nesta quadra, é que um poema, antes de adquirir a sua forma final, aquela que o poeta mostra ao mundo que o lê (simbolizado no «vento que a mereça», v. 4) precisa de paciência, tempo e reflexão, sugeridos pelas formas verbais «espera» e «amadureça». 2. Em Eugénio de Andrade, a poesia não resulta da inspiração, mas antes de um trabalho aturado de atenção ao pormenor, de busca constante da palavra certa, que se combinará com outras para conquistar a verdade do poema. Este processo requer do poeta tempo e reflexão constantes. Neste poema, o adjetivo «paciente» (v. 1) e as formas verbais «espera» (v. 1) e «amadureça» (v. 2) sugerem que o ofício poético requer esse tempo e reflexão. De notar também aqui que ao desprender-se a palavra é comparada a um fruto. E também aqui se lê uma das constantes da poesia de Eugénio de Andrade: a ligação à natureza primordial.

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7 de fevereiro O artigo chama-se «Um rapaz chamado Saramago» e é dos mais divertidos textos em que alguma vez pus os olhos. Não resisto à tentação, com a devida vénia, de trazê-lo aqui: «Costumo receber uns livros de capa amarela, habitados por personagens de nomes esdrúxulos, que têm em comum o facto de serem assinados por um rapaz chamado Saramago. Na dúvida se haveria de sacrificar-lhes o meu tempo, face a um antigo volume que levantei do chão, perguntei a um editor meu amigo se tal livro seria merecedor de atenção. Que não, garantiu. Aduzindo argumento demolidor: a sua editora recusara-se a publicá-lo. Com sobejas razões: o escrevente, que usa e abusa de vírgulas, raramente sabe onde colocá-las. Pontos parágrafos, então, nem vê-los. Daria um trabalho dos diabos transformar aquela massa informe de texto em prosa escorreita. […] «Para não falar do flop total de outra tentativa, Memorial do Convento, de que seguramente ninguém guarda memória. Os editores, certos de que esta aventura lhes apontaria a falência, nem investiram muito no produto: não gastaram uns tostões a ilustrar as capas, produzindo-as em cartão liso de cor desmaiada. «O candidato a escritor poderia ter ficado por aqui. Mas a prova de que o autor não tem o menor sentido de humildade é que reincidiu. Raro é o ano em que não põe cá fora mais volumes de capa amarela, sempre com títulos desenxabidos e enganadores. «Nunca mais me vi livre dele. Por um aniversário, veio-me parar às mãos, camuflada em fitas e celofane, uma Jangada de Pedra, que mais não era do que uma narrativa alucinada da experiência vivida por um cão com pavores de tremores de terra. Num Natal couberam-me sete exemplares da História do Cerco de Lisboa, que não é história de um cerco nem de Lisboa, mas, sim, de um revisor às voltas com uma esquisita sinalefa tida por deleatur. Para não falar do dia em que ofereci a um sobrinho com pendor para as belas-artes um Manual de Pintura e Caligrafia que nada tinha a ver com pincéis nem caneta. A última afronta, qualquer coisa como O Evangelho segundo Jesus Cristo, é a prova concreta da sua total falha de recursos criativos. Nem plagiar a Bíblia o sujeito sabe. […]

Ficha Formativa

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«Além do mais, como escritor, o homem é um perigo. Imagine-se que os seus textos vão parar às escolas. Lá se vai o denodado esforço […] para as criancinhas aprenderem o bom português […]. Aterrador, não é? O pior é que a criatura, ainda por cima, se ri de nós. Não sei porquê. Nunca lhe deram o Prémio Nobel. Vive exilado numa ilha do fim do mundo. Casado com uma espanhola. Como se isto não bastasse, há um montão de anos que está desempregado. Por causa daquele seu mau feitio, a teimosia própria de quem não enxerga de que lado sopra o poder […].» […] Regalámo-nos de riso aqui. As gargalhadas de Carmélia e de Pilar deviam ter-se ouvido em Fuerteventura. Espero que não tenham faltado em Portugal, de mistura com alguns sorrisos tão amarelos como as capas dos meus livros...

PROFESSOR

Grupo II 1.1 (B). 1.2 (A). 1.3 (C). 1.4 (D). 1.5 (B). 1.6 (C). 1.7 (D). 2.1 «a criatura». 2.2 Subordinada adjetiva relativa restritiva. 2.3 Complemento do adjetivo.

José Saramago, Cadernos de Lanzarote – Diário II, Alfragide, Caminho, 3.ª ed., 2011, pp. 40-42. ▪ Ficha formativa Soluções para projeção

1. Para responderes aos itens de 1.1 a 1.7, seleciona a única opção que permite obter uma afirmação correta. 1.1 A expressão «com a devida vénia» (l. 3) acentua o tom (A) (B) (C) (D)

deferente que percorre todo o texto. irónico que percorre todo o texto. hiperbólico que percorre todo o texto. anuente que percorre todo o texto.

1.2 O emprego das aspas no início dos parágrafos e no fim do penúltimo serve para delimitar (A) (B) (C) (D)

citação de texto. discurso indireto. discurso direto. citação dentro de transcrição.

1.3 Segundo palavras do artigo, José Saramago (A) (B) (C) (D)

tem um estilo próprio para pontuar. usa corretamente os sinais de pontuação. não tem a mínima noção das regras de pontuação. emprega apenas algumas regras de pontuação.

1.4 Os editores investem pouco em José Saramago, o que é visível (A) (B) (C) (D)

através dos títulos sensaborões e ardilosos. no escasso tempo que lhe dedicam. através da arrogância com que o tratam. pelas capas sem ilustração e em cartão.

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Unidade 4 // JOSÉ SARAMAGO

1.5 A hipótese de as obras de Saramago serem objeto de estudo nas escolas

FICHA FORMATIVA COTAÇÕES Grupo III 50 pontos PROFESSOR

Grupo III Sugestão de tópicos • Relação da atuação das instituições de solidariedade e grupos de ação social com o romance estudado: – O Ano da Morte de Ricardo Reis – destaque para o «Bodo do Século» e para ações a nível local; – Memorial do Convento – as ações de caridade em Lisboa; também em Mafra, durante a cerimónia da sagração houve distribuição de esmolas e de comida. • Argumentação: – a atuação traz benefícios ao combate da pobreza: estas organizações preenchem lacunas sociais que não são resolvidas pelo Estado ou cujo auxílio não é suficiente; estabelecidas ao nível local, estão mais próximas da realidade e das pessoas que verdadeiramente precisam de auxílio; são essenciais para muitas famílias cujos rendimentos não chegam para cobrir todas as necessidades do agregado; prestam serviços a vários níveis, protegendo os mais fragilizados socialmente: as crianças, os deficientes, os sem-abrigo, os toxicodependentes, os idosos; … Exemplos: Banco alimentar contra a fome; Ajuda de Berço; Cáritas Portuguesa; Cruz Vermelha; Fundação do Gil; «Sopa dos pobres»;… – a atuação nem sempre é benéfica: há organizações que têm uma fachada de atuação social, mas escondem outros propósitos menos nobres; existem casos de organizações, ditas de apoio social, que desviam os bens/fundos angariados para seu próprio proveito ou para usufruto de quem não é realmente necessitado; estas instituições remedeiam a fragilidade social, no entanto, não resolvem o problema estrutural da pobreza na sociedade; os beneficiários destas ações «habituam-se» a receber «esmolas» e pouco fazem para ultrapassar a sua situação de debilidade social; …

(A) é bem-vinda. (B) é considerada um perigo.

(C) não se coloca. (D) é tentadora.

1.6 O aspeto gramatical expresso em «Nunca mais me vi livre dele.» (l. 19) é (A) uma situação genérica. (B) uma situação iterativa.

(C) perfetivo. (D) imperfetivo.

1.7 Em «Que não, garantiu» (l. 8) a modalidade de reprodução do discurso corresponde ao (A) discurso direto. (B) discurso indireto.

(C) diálogo. (D) discurso indireto livre.

2. Responde de forma correta aos itens apresentados. 2.1 Indica o referente do pronome destacado em «Nunca lhe deram o Prémio Nobel.» (l. 32). 2.2 Classifica a oração destacada em «Para não falar do dia em que ofereci a um sobrinho com pendor para as belas-artes um Manual de Pintura e Caligrafia» (ll. 23-25). 2.3 Refere a função sintática do segmento «de que esta aventura lhes apontaria a falência» (ll. 13-14).

Grupo III Relê atentamente um excerto da obra estudada – O Ano da Morte de Ricardo Reis ou Memorial do Convento, de José Saramago. «O senhor doutor já teve ocasião de ver que espécie de gente é o povo deste país, e mais estamos na capital do império, quando no outro dia passou à porta do Século, aquela multidão à espera do bodo, e se quiser ver mais e melhor vá por esses bairros, por essas paróquias e freguesias, veja com os seus olhos a distribuição da sopa, a campanha de auxílio aos pobres no inverno, iniciativa de tão singular beleza, […] e diga-me se não valia mais deixá-los morrer, poupava-se o vergonhoso espetáculo do nosso mundo[…].» José Saramago, O Ano da Morte de Ricardo Reis, Alfragide, Caminho, 2013, pp. 127-128.

«Da tença que pediu, ainda não há sinal, de pouco têm servido as instâncias do padre Bartolomeu Lourenço, seu padrinho, do açougue o mandarão embora não tarda, por qualquer pretexto, mas lá estão os caldos da portaria, as esmolas das irmandades, é difícil morrer de fome em Lisboa, e este povo habituou-se a viver com pouco.» José Saramago, Memorial do Convento, Alfragide, Caminho, 2013, p. 115.

A partir do excerto apresentado, redige um texto de opinião, de duzentas a trezentas palavras, subordinado ao tema «a atuação das instituições de solidariedade e de grupos de ação social no combate da pobreza».

SIGA

SÍNTESE INFORMATIVA E GRAMATICAL DE APOIO

I. ESCRITA E ORALIDADE Exposição sobre um tema Apreciação crítica Texto de opinião II. GRAMÁTICA Fonética e fonologia Morfologia Lexicologia Classes e subclasses de palavras Sintaxe Semântica Discurso, pragmática e linguística textual III. RECURSOS EXPRESSIVOS

Pierre Bonnard, A Mesa de Trabalho, 1926-37.

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SÍNTESE INFORMATIVA E GRAMATICAL DE APOIO

I. Escrita e oralidade A Exposição sobre um tema Uma exposição é um texto conciso, de caráter informativo, sobre um tema que não é alvo de polémica. Tem como finalidade apresentar informações pormenorizadas sobre um assunto, situação, acontecimento ou pessoa. Dependendo do tema e da perspetiva assumida, o texto expositivo pode ter diferentes estruturas: descritiva, temporal, causal, explicativa e contrastiva. Assim, existem vários tipos de textos expositivos: o curriculum vitae, a biografia, o artigo de divulgação científica, a ata, a reportagem, o relatório, o artigo de enciclopédia. Pode revestir uma forma oral ou escrita. TEXTO EXPOSITIVO QUAL A ESTRUTURA? Título: descritivo e claro, que deixa antever o tema exposto e a perspetiva adotada. Introdução: apresentação, de forma sucinta, da temática a abordar. Desenvolvimento: apresentação de informações e explicações objetivas e concisas sobre a temática, devidamente fundamentadas com exemplos pertinentes. A estrutura varia de acordo com a perspetiva adotada para a exposição (descritiva, temporal, causal, explicativa). Conclusão: síntese das informações expostas, demonstrando a sua relevância para a temática abordada. Pode estar ausente, conforme o tipo de texto. O QUE DEVO FAZER? 1. Conhecimentos • Escolher o tema a desenvolver e definir o objetivo – descrever, narrar, relacionar, explicar, contrastar – e o tipo de texto; avaliar/determinar a situação comunicativa – público a que se destina e formalidade associada. • Pesquisar informação relativa ao tema e selecionar os dados realmente importantes. 2. Expressão/discurso • Usar uma linguagem objetiva, sem tecer juízos de valor. • Utilizar um registo de língua adequado ao público-alvo e à situação, de forma a que se compreenda a mensagem que se pretende veicular, embora, por vezes, devido à natureza do texto, se recorra a termos técnicos e/ou científicos. • Expor as ideias de forma clara e inequívoca, recorrendo a exemplos e/ou citações universais e/ou literários. • Utilizar a terceira pessoa gramatical e o presente do indicativo. • Utilizar predominantemente frases declarativas. • Usar articuladores do discurso (enumeração, ordenação, causa, consequência, confirmação, exemplificação, contraste, etc.), para explicitar as informações veiculadas e encadear de forma lógica os tópicos abordados. • Produzir um texto com clareza e rigor. • Apresentar dados paratextuais (por exemplo, título, bibliografia consultada, índice e ilustração, notas de rodapé ou finais) – depende do tipo de texto e da situação comunicativa. Para a exposição oral: • Utilizar adequadamente os recursos verbais e não-verbais: postura, tom de voz, articulação das palavras, dicção, entoação, ritmo, expressividade. • Utilizar adequadamente, sempre que oportuno, ferramentas tecnológicas de suporte à intervenção oral.

SIGA

Vento maldito ou bendito? Afinal o que é o vento? E será este bom ou mau para nós humanos e outros seres vivos? O vento é a circulação geral, dinâmica e constante da atmosfera, ou o fluxo de gases em larga escala de sítios de maior para sítios de menor pressão. Dito em linguagem popular: «o vento é o ar em movimento!» Quando embate na nossa pele cria-nos instantaneamente sensação de frio, pois a temperatura média desta diminui, sendo este fenómeno explicado pela Termodinâmica. Este ramo da Física trata, teoricamente e experimentalmente, de sistemas macroscópicos (grandes, grande escala), grandezas como temperatura, pressão, volume, calor, trabalho, energia e entropia, e suas variações e relações.

Título e subtítulo

Introdução definição de vento e descrição sumária do processo físico do seu contacto com a pele

Interessante embora aborrecido, este fenómeno dá-se essencialmente devido a dois efeitos: (i) o arrastamento da «película» de ar quente (aquecida pelo corpo) que está junto ao corpo, perto da pele, assim como entre as fibras dos tecidos da roupa, ar esse que é substituído pelo ar ambiente que geralmente é mais frio (ainda não foi aquecido), o que faz com que haja calor a sair do corpo para esse ar frio (estamos a aquecer o ar). (ii) o facto de a nossa pele se encontrar humedecida (num processo que, entre outros, serve para controlar a sua temperatura), favorecendo o vento a evaporação de água do corpo (o suor, a água no corpo ao sair do banho), evaporação essa que o arrefece pois as moléculas de água que passam para a fase de vapor são as que têm mais energia, pelo que o líquido que fica passa a ter menos energia cinética microscópica média, ou seja, passa a ficar com temperatura mais baixa. Este efeito é bem visível na roupa a secar, pois esta seca muito melhor em dias ventosos, ou quando saímos do banho e ficamos cheios de frio e com a chamada «pele de galinha». Em suma: o arrastamento do ar aquecido junto ao corpo e a evaporação da água que o humedece, ambos favorecidos pelo vento, são os «culpados» pela descida da temperatura corporal. Contudo, vento não é só sinónimo de aborrecimento (pela sensação desconfortante que nos provoca): o nosso corpo, e o dos outros animais e plantas, precisa de libertar calor para podermos viver, e neste aspeto o vento pode ser uma preciosa ajuda. Além disso, o ar em movimento «dá boleia» a uma grande quantidade de grãos de pólen (polinização anemófila), que mais cedo ou mais tarde irão fecundar uma flor mais ou menos longe, e também a sementes. Transporta nuvens para outras paragens, que necessitam de chuva. Auxilia o voo de certas aves que assim realizam voo planado, como por exemplo a ave marinha gaivota (do género Larus), que despendem deste modo menos energia. Renova o ar que respiramos e torna possível a prática de certos desportos recreativos e radicais. Esculpe, a seu gosto, a natureza!

Desenvolvimento informações objetivas e detalhadas sobre o processo físico descrito na introdução; aspetos negativos e positivos desse processo, acrescidos de outros benefícios para os seres vivos; articuladores discursivos de diferentes valores; termos científicos acompanhados de explicitação; registo informal – explicitação simples, termos valorativos, trata-se de um texto de divulgação científica

O vento serve, também, para gerar eletricidade, através de sua energia cinética ou energia eólica, que é amiga do ambiente, entre muitas outras benfeitorias. Pensando bem, e apesar de por vezes ser tão desagradável, o vento tem mais a dar, tanto a nós como a outros seres vivos, do que poderíamos à primeira vista pensar. Afinal, o vento é mais bendito do que maldito! João Pedro Cesariny Calafate, Ciência com Todos, 18 de setembro de 2013 (disponível em http://cienciapatodos.webnode.pt/news/vento-maldito-ou-bendito-/; consultado em fevereiro de 2017).

Conclusão síntese avaliativa dos aspetos considerados

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SÍNTESE INFORMATIVA E GRAMATICAL DE APOIO

B Apreciação crítica Uma apreciação crítica é um comentário crítico que visa apresentar e analisar manifestações culturais, como um livro, uma música, uma exposição, uma peça de teatro, um filme, um documentário ou outro. É um texto subjetivo e valorativo que parte da análise do objeto para a formulação de um juízo de valor. Pode revestir uma forma oral ou escrita. APRECIAÇÃO CRÍTICA ESCRITA OU ORAL QUAL A ESTRUTURA? Título: cativante e sugestivo. Introdução: apresentação/descrição sucinta do objeto a apreciar. Desenvolvimento: posicionamento crítico relativamente ao objeto em apreciação, com apresentação de juízos de valor (argumentos objetivos e consistentes a favor e/ou contra), devidamente fundamentados. Conclusão: síntese do que foi apresentado e reforço do posicionamento crítico. O QUE DEVO FAZER? 1. Conhecimentos • Descrever sucintamente o objeto, acompanhando-o de um comentário crítico. • Registar as sensações e as impressões suscitadas pelo objeto. 2. Expressão/discurso • Usar uma linguagem valorativa (depreciativa ou apreciativa) através do uso de adjetivos, advérbios, repetições, etc. • Utilizar um registo de língua adequado ao público-alvo. • Utilizar a 1.ª ou a 3.ª pessoas gramaticais e o presente do indicativo. • Utilizar predominantemente frases declarativas e exclamativas. • Utilizar recursos expressivos (metáfora, hipérbole, comparação, eufemismo, ironia, etc.). • Usar articuladores do discurso de enumeração, causa, consequência, exemplificação, esclarecimento, conclusão. • Mobilizar adequadamente os recursos da língua, nomeadamente, vocabulário adequado ao tema. Para a apreciação crítica oral: • Utilizar adequadamente os recursos verbais e não-verbais: postura, tom de voz, articulação das palavras, dicção, entoação, ritmo e expressividade. • Utilizar adequadamente, sempre que oportuno, ferramentas tecnológicas de suporte à intervenção oral.

SIGA

Tudo (ou quase) sobre António Barreto António Barreto é uma das personalidades políticas mais interessantes que surgiu nos últimos 40 anos em Portugal. Foi Ministro e secretário de Estado. Esteve envolvido politicamente durante muitos anos. A sua intervenção política, de certa forma, nunca terminou. Deixou de fazer parte do poder, mas nunca deixou de se interessar e de pensar com acuidade o seu país. Como sociólogo, coordenou alguns dos mais preponderantes e profundos estudos sobre a sociedade portuguesa do século XX (e perspetivando já o século XXI). Sendo, também, um dos fundadores da Pordata. Em jornais e revistas, escreveu algumas das mais lúcidas reflexões sobre a política, o Estado e o poder do Portugal democrático. Levou ainda para a televisão comentários acutilantes e maduros numa altura em que a superficialidade começava já a imperar no espaço mediático. Por tudo isto, o livro de Maria de Fátima Bonifácio é importante, pois está bem escrito e documentado. E tem uma grande vantagem: a amizade da autora por António Barreto não a impediu de construir uma obra isenta e sem elogios desnecessários.  A autora não está ali para falar do amigo, mas sim para permitir que um público mais vasto de leitores conheça, avalie, julgue e (muitas vezes) admire a personalidade multifacetada de António Barreto e as diversas linhas estruturantes do seu pensamento. Em síntese, um livro [António Barreto – Política e Pensamento] a ler com toda a atenção e a merecer, quem sabe, mais 2 ou 3 volumes com uma antologia dos principais textos de António Barreto. Assim, ficaríamos a conhecer não só a personagem como poderíamos ter acesso ao essencial da sua obra, em direto. Maria de Fátima Bonifácio, «Tudo (ou quase) sobre António Barreto», in Novos Livros (disponível em http://www.novoslivros.pt/2017/01/tudo-ou-quase-sobre-antonio-barreto.html, consultado em fevereiro de 2017).

Título

Introdução o livro em apreciação é uma biografia, por isso, é pertinente descrever o objeto dessa biografia

Desenvolvimento posicionamento crítico fundamentado pela importância do objeto biografado, pela isenção e pela qualidade da escrita; articuladores discursivos conclusivos: a autora da crítica fundamenta a sua apreciação; linguagem valorativa apreciativa

Conclusão síntese e reforço do posicionamento crítico

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SÍNTESE INFORMATIVA E GRAMATICAL DE APOIO

C Texto de opinião Um texto de opinião é um texto argumentativo no qual o autor explicita o seu ponto de vista sobre um tema ou sobre uma problemática, normalmente de interesse geral, recorrendo a argumentos e exemplos para fundamentar a sua posição. Pode revestir uma forma oral ou escrita. TEXTO DE OPINIÃO ESCRITO OU ORAL QUAL A ESTRUTURA? Título: apelativo e provocador, a antecipar o ponto de vista assumido ou o/a tema/problemática abordado/a. Introdução: explicitação do/a tema/problemática. Desenvolvimento: interpretação dos vários aspetos relacionados e apresentação do(s) ponto(s) de vista; posicionamento com apresentação de argumentos a favor e/ou contra, devidamente fundamentados com exemplos claros e pertinentes. Conclusão: síntese da argumentação e reforço do ponto de vista defendido. O QUE DEVO FAZER? 1. Conhecimentos • Explicitar um ponto de vista acerca do tema/problemática. • Pesquisar e selecionar informação comprovativa do ponto de vista a adotar. • Escolher argumentos pertinentes, coerentes e claros que sustentem o ponto de vista e/ou contra-argumentos que destruam o ponto de vista contrário. • Fundamentar a argumentação com exemplos universais relevantes e inequívocos. 2. Expressão/discurso • Usar uma linguagem valorativa (depreciativa ou apreciativa), apresentando explícita ou implicitamente os juízos de valor através do uso de adjetivos, advérbios, repetições, recursos expressivos (comparação, eufemismo, hipérbole, ironia, metáfora, metonímia…), etc., e recorrendo a expressões que marcam a subjetividade (do meu ponto de vista, na minha opinião). • Utilizar um registo de língua acessível ao leitor que se pretende convencer. • Utilizar a 1.ª ou a 3.ª pessoas gramaticais e o presente do indicativo. • Utilizar predominantemente frases declarativas, exclamativas e interrogativas retóricas. • Mobilizar adequadamente recursos da língua, nomeadamente, vocabulário adequado ao tema. • Usar articuladores do discurso (enumeração, ordenação, causa, consequência, confirmação, exemplificação, contraste, conclusão, etc.), para explicitar as informações veiculadas e encadear de forma lógica e persuasiva os argumentos utilizados. Para o texto de opinião oral: • Utilizar adequadamente os recursos verbais e não-verbais: postura, tom de voz, articulação das palavras, dicção, entoação, ritmo, expressividade. • Utilizar adequadamente, sempre que oportuno, ferramentas tecnológicas de suporte à intervenção oral.

SIGA

Memória Os livros, quando realmente lidos, acompanham um período das nossas vidas. Mais tarde , a memória desses livros irá conter vestígios da idade que os recebeu. Por um lado , a leitura é uma atividade que exige tempo, ideias que nos acompanham durante dias, semanas ou meses; por outro lado , a leitura é sempre um confronto entre o texto e quem somos num momento específico.

365

Título

Introdução explicitação do tema e da opinião do autor – a memória de um livro é influenciada pela fase da nossa vida quando o lemos e, por isso, a nossa apreciação do livro pode variar no tempo – e justificação sucinta da opinião.

Como adolescentes que se envergonham da decoração infantil do seu quarto de infância, podemos duvidar do passado. Como emigrantes que sentem falta da aldeia em que cresceram, podemos Articuladores discursivos diversificados:

idealizar o passado. Quando um livro lido deixa de ser o que era é

temporais, de enumeração, comparação, condição, explicitação, causa, disjunção, conclusão, etc.

Em concreto , o que fica dos livros lidos? Às vezes , uma persona-

Recursos expressivos: comparações e metáforas

porque

nós deixámos de ser o que fomos . Desenvolvimento

gem é tudo o que fica. Guardámos uma coleção de detalhes acerca de uma determinada personagem. É assim, ou somos capazes de jurar que é assim. Se

formos confirmar, é possível que, afinal ,

a personagem não seja apenas o que recordamos . Também pode ficar uma frase que citámos em mil ocasiões, sempre que se falou de certo assunto, e que, por isso , ganhou uma existência à margem do significado que tem no livro. Ou pode ficar um episódio, ou um fio do enredo, esqueleto desgastado pela intempérie. Ou pode ficar

1.ª pessoa do plural – para as generalizações argumentativas; do singular – para a vivência pessoal Interrogativas retóricas

uma impressão. No convívio, debatendo com outros, essa impressão, somada a alguns dados enciclopédicos, é suficiente para fazer um brilharete. No íntimo, debatendo connosco próprios, sabemos que essa impressão é pouco mais do que uma sombra, um espírito, um véu sobre o silêncio. Quando

peço ao meu filho de 11 anos para me falar de um fil-

• comparação com situações em que o passado pode ser questionado e reinventado por termos deixado de ser quem éramos na altura – repetição da tese de que quem somos no momento em que lemos um livro influencia a interpretação que fazemos dele; se nós mudamos, o livro também muda; • enumeração de situações que confirmam a ideia do autor – memórias falsas, memórias parciais, memórias enriquecidas pelas vivências; • a perceção, pelo próprio, de que essa memória não é exata é também um argumento; • exemplificação de outras situações em que o mesmo acontece – memória e perceção de filmes

me que acabou de ver, ele conta- me todos os detalhes. Se omitir alguma cena, parece-lhe que não está a contar o filme que viu. Eu também era assim. Lembro-me de contar ao meu pai os filmes do Bruce Lee que via em matinés da Sociedade Filarmónica. Onde estão agora esses filmes? Onde está aquilo que vi neles? Se os voltar a ver, serão filmes diferentes. Transportamos destroços. Vivemos assim. José Luís Peixoto, «Memória», in Notícias Magazine, 10 de abril de 2016 (disponível em http://www.noticiasmagazine.pt/2016/memoria/; consultado em fevereiro de 2017).

Conclusão de forma metafórica, resume-se a ideia de que as memórias são fragmentos imprecisos

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SÍNTESE INFORMATIVA E GRAMATICAL DE APOIO

II. Gramática A Fonética e fonologia ▪ Apresentação em PowerPoint

Processos fonológicos FENÓMENO Inserção de unidades fónicas

DESIGNAÇÃO E CONCEITO TIRARE

Paragoge (no final da palavra)

CREO

> ombro > creio

ANTE

> antes

UMERO

> lo > o > cume

ILLUM

Aférese (no início da palavra)

ACUMEN

Síncope (no interior da palavra)

FILU-

> fio > caldo

CALIDU-

> rosa > ama

ROSAM

Apócope (no final da palavra)

AMAT

Metátese (deslocação de segmento(s) ou sílabas

PASSIONE

dentro da palavra)

SEMPER

Assimilação

Progressiva

(mudança de uma unidade por influência de outra que lhe está próxima e da qual aquela se aproxima articulatoriamente)

(a unidade que se altera segue aquela que causa a mudança)

> paixão > sempre

(NOSTRU-) > nosto > nosso

Regressiva (a unidade que se altera antecede aquela que causa a mudança)

Alteração (por transformação ou deslocação de unidades fónicas)

> escola > atirar

SCHOLAM

Prótese (no início da palavra) Epêntese (no interior da palavra)

Supressão de unidades fónicas

EXEMPLOS

> pessoa > isso

PERSONAM IPSUM

Dissimilação (uma unidade altera-se para se diferenciar melhor de uma outra que lhe está próxima)

LILIU-

Sonorização (uma consoante surda em posição

AMICU-

> lírio > redondo

ROTUNDU-

> amigo > amado

intervocálica torna-se sonora)

AMATU-

Vocalização (alteração de consoante para vogal – antecedida de outra vogal na mesma sílaba, essa unidade é realizada como semivogal)

NOCTEM

Palatalização (evolução, para som palatal, de uma unidade ou sequência)

Crase (fusão de duas vogais numa só)

Contração

Sinérese (uma sequência de duas vogais em hiato dá lugar a um ditongo por semivocalização de uma delas)

Redução vocálica (enfraquecimento de uma vogal em posição átona)

APHOTECA- > bodega

> noite > muito ABSENTIA > ausência MULTUM

> chave > chama PLENU > cheio

> filha > vinha > hoje

CLAVE

FILIAM

FLAMMA

VINEAM HODIE

(LANA) > lãa > lã (SOLU) > soo > só (MANU) > mau > mão (LEGEM) > lee > lei

bolo / bolinho pedra / pedreira casa / casinha (pronunciados em português europeu [u], [i], [‫)]ܣ‬

SIGA

B Morfologia

▪ Apresentação em PowerPoint

Processos regulares de formação de palavras 1. Derivação AFIXAL Prefixação

adição de um prefixo à esquerda de uma forma de base, simples ou complexa. Ex.: des + fazer = desfazer; re + conto = reconto; in + capaz = incapaz

Sufixação

adição de um sufixo à direita de uma forma de base, simples ou complexa. Ex.: provar + vel = provável; verbo + al = verbal

Prefixação e sufixação

adição simultânea, não obrigatória, de um prefixo e de um sufixo a uma forma de base. Ex.: i + legal + mente = ilegalmente; pre + sentir + mento = pressentimento

Parassíntese

adição simultânea de um prefixo e um sufixo a uma forma de base; a palavra não existe sem um deles. Ex.: en + grande + ec + er = engrandecer; a + manhã + ec + er = amanhecer

Derivação não afixal

formação de nomes a partir de verbos, substituindo-se as terminações do infinitivo (vogal temática + -r) -ar, -er, -ir pelas terminações típicas dos nomes -a, -e ou -o. Ex.: abandon(ar) – abandono; retom(ar) – retoma; combat(er) – combate; possuir(ir) – posse

Conversão ou derivação imprópria

uma palavra pode mudar de classe ou de subclasse sem alterar a forma. Ex.: via (nome comum) / via (preposição); jantar (verbo) / o jantar (nome); só (adjetivo) / só (advérbio); coelho (nome comum) / Coelho (nome próprio)

2. Composição por associação de palavras

Ex.: tira-caricas, desportos radicais, verde-água

por associação de vários radicais

Ex.: hom[o]fobia; pest[i]cida; zo[ó]filo

(ligados pelas vogais i ou o) por associação de radicais e palavra

Ex.: vide[o]jogo; afr[o]descendente

(ligadas pelas vogais i ou o)

B C Lexicologia

▪ Apresentação em PowerPoint

1. Arcaísmos e neologismos Arcaísmo: palavra, significado de palavra ou construção cujo uso é considerado antiquado pelos falantes da língua.

Ex.: mester (ofício), teúdo (tido), leixar (deixar)

Neologismo: palavra ou significado de palavra inexistente num estádio anterior da língua.

Ex.: anhar, austeritário, grandolar, postar

2. Campo semântico e campo lexical Campo semântico: conjunto dos significados que uma palavra pode ter nos diferentes contextos em que se encontra.

Ex.: «rico» – um homem muito rico, uma região rica em vinhos, um vocabulário rico, um rico jantar, meu rico S. João, …

Campo lexical: conjunto de palavras associadas, pelo seu significado, a um determinado domínio conceptual.

Ex.: «aluno» – escola, professor, aprender, estudar, colega, turma, estudante, …

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SÍNTESE INFORMATIVA E GRAMATICAL DE APOIO

D Classes e subclasses de palavras

▪ Apresentação em PowerPoint

1. Nome

Próprio: designa uma entidade individualizada (nome de pessoa, localidade…). Ex.: Mariana, Castelo Branco

Comum: designa entidades enquanto membros de um conjunto com as mesmas propriedades (integra as entidades numa classe). Ex.: bola, avó, alegria Coletivo: designa um conjunto de entidades do mesmo tipo. Ex.: alcateia, constelação, multidão, flora, ramalhete

2. Adjetivo Qualificativo: refere uma qualidade do nome; admite grau; normalmente aparece depois do nome. Ex.: bonito, amarelo, cansado

Numeral: refere a ordem ou sucessão de algo; normalmente aparece antes do nome, precedido por um determinante. Ex.: O primeiro lugar; A sexta casa

3. Verbo Principal: constitui o núcleo gramatical e semântico do grupo verbal, determinando a presença ou a ausência de sujeito e de complementos, bem como o tipo de complementos presentes na frase.

• intransitivo: não exige complementos. Ex.: Eu adormeci. • transitivo direto: exige um complemento direto. Ex.: Ele comeu a laranja. • transitivo indireto: exige um complemento indireto ou oblíquo. Ex.: Obedecemos ao polícia; Tu foste à Hungria? • transitivo direto e indireto: exige um complemento direto e um indireto ou oblíquo. Ex.: Emprestei a caneta à minha colega; A avó pousou a jarra na mesa. • transitivo-predicativo: exige um complemento direto e um predicativo do complemento direto. Ex.: O juiz considera a borboleta bonita.

Auxiliar: junta-se a um verbo principal ou copulativo (formando um complexo verbal); contribui para a construção de diferentes valores semânticos do grupo verbal; pode ser seguido de preposição.

• temporal: ação acabada (foi premiado); ação durativa (tenho feito exercício), … • modal: desejo, possibilidade, dever, necessidade, certeza, permissão. Ex.: Tenho de terminar o trabalho; Não podem sair! • aspetual: ação habitual, pontual, durativa, … Ex.: Acabaram de entrar; Estamos a chegar. • dos tempos compostos: verbos ter e haver, antes do particípio do verbo principal ou copulativo. Ex.: Eu havia falado com ele; Eles têm andado doentes. • da passiva: verbo ser, antes do particípio do verbo principal. Ex.: O acidente foi provocado por um pombo.

Copulativo: relaciona um sujeito com um predicativo do sujeito, que lhe atribui um estado, uma qualidade, uma localização.

Ex.: Eles permanecem sentados; Tu és bonito; Ele está feliz; O concerto foi em agosto.

SIGA

4. Advérbio e locução adverbial QUANTO AO VALOR SEMÂNTICO

QUANTO ÀS FUNÇÕES

de negação: nega uma ideia. Ex.: não

interrogativo: interroga acerca de um lugar, tempo, modo ou causa, em interrogativas diretas ou indiretas. Ex.: onde, quando, como, porquê, porque

de afirmação: afirma ou reforça uma ideia. Ex.: sim, certamente, realmente, efetivamente, …

conectivo: articulador do discurso de tipo adverbial; estabelece diferentes nexos semânticos entre frases ou partes de frases. Ex.: assim, logo, portanto, porém, contudo, todavia, pois (posposto), depois, primeiramente, …

de quantidade e grau: transmite ideia de porção ou de intensidade. Ex.: bastante, pouco, mais, tanto, tão, quase, ...

relativo: estabelece a relação entre o elemento subordinante e a oração relativa substantiva ou entre o antecedente e a oração relativa adjetiva. Ex.: onde, como, quando

de modo: indica a forma ou maneira de realizar uma ação. Ex.: assim, depressa, melhor, mal, calmamente, … de tempo: indica o tempo da ação. Ex.: hoje, agora, depois, nunca, brevemente, já, … de lugar: indica o local da ação. Ex.: abaixo, ali, longe, algures, aquém, … de inclusão: inclui algo de um grupo. Ex.: até, mesmo, também, ... de exclusão: exclui algo de um grupo. Ex.: apenas, senão, simplesmente, só, somente, exclusivament, … de designação: Ex.: eis de dúvida: transmite ideia de dúvida. Ex.: acaso, porventura, talvez, provavelmente, … locução adverbial: constituída por duas ou mais palavras, sendo a primeira uma preposição. Pode ter qualquer um dos valores acima. Ex.: no entanto, por consequência, em breve, para onde, à vontade, de mais, no mínimo, de facto, de manhã, ao contrário, na verdade, de propósito, por vezes, sem dúvida, de repente, de vez em quando, ...

5. Quantificador Numeral: indica a quantidade numérica precisa de algo. Ex.: dois, metade, o triplo, …

6. Interjeição e locução interjetiva ALGUNS VALORES SEMÂNTICOS de chamamento: socorro!, psiu!, alô, …

de saudação: olá, adeus, …

de surpresa: ah!, credo!, hi!, caramba!, ...

de ordem: rua!, caluda!, alto!, ...

de resignação: pronto!, paciência!, ...

de desejo: oh!, oxalá!, ...

locução interjetiva: essa agora!, deixa lá!, toca a andar!, vamos lá!, Deus queira!, muito bem!

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SÍNTESE INFORMATIVA E GRAMATICAL DE APOIO

7. Determinante definido

o(s), a(s)

indefinido

um, uma, uns, umas

Artigo

Demonstrativo

este(s), esta(s), esse(s), essa(s), aquele(s), aquela(s), o(s) mesmo(s), a(s) mesma(s), o(s) próprio(s), a(s) própria(s), o(s) outro(s), a(s) outra(s), tal, tais

Possessivo

meu(s), minha(s), teu(s), tua(s), seu(s), sua(s), nosso(s), nossa(s), vosso(s), vossa(s)

Interrogativo

qual, quais, que

Relativo

cujo(s), cuja(s)

Indefinido

certo(s), certa(s), outro(s), outra(s)

8. Pronome • Pessoal, com função sintática de… Sujeito

Complemento direto

Complemento indireto

Complemento oblíquo

Complemento agente da passiva

com preposição

sem preposição

(antecedido por até, contra, de, entre, para, sem, perante…)

(antecedido por por)

eu

me

(a) mim

me

mim, comigo

mim

tu

te

(a) ti

te

ti, contigo

ti

ele/ela/você

o, a, se

(a) ele/ela/si

lhe

si, consigo, (com) ele/ela

ele/ela/si

nós

nos

(a) nós

nos

nós, connosco

nós

vós

vos

(a) vós

vos

vós, convosco

vós

eles/elas/ vocês

os, as, se

(a) eles/elas

lhes

si, consigo, (com) eles, elas

eles/elas/si

• Demonstrativo

este(s), esta(s), isto, esse(s), essa(s), isso, aquele(s), aquela(s), aquilo, o(s) mesmo(s), a(s) mesma(s), o(s) outro(s), a(s) outra(s), tal, tais

• Possessivo

meu(s), minha(s), teu(s), tua(s), seu(s), sua(s), nosso(s), nossa(s), vosso(s), vossa(s)

• Interrogativo

que?, quê?, quem?, o que? o quê?

• Relativo

o/a qual, os/as quais, que, quem, o que

• Indefinido

algum, alguma(s), alguns, nenhum, nenhuma(s), nenhuns, tanto(s), tanta(s), todo(s), toda(s), muito(s), muita(s), pouco(s), pouca(s), outro(s), outra(s), qualquer, quaisquer, alguém, ninguém, tudo, nada, outrem

SIGA

9. Preposição e locução prepositiva Preposições

a, ante, após, até, com, conforme, contra, consoante, de, desde, durante, em, exceto, entre, mediante, para, perante, por, salvo, sem, segundo, sob, sobre, trás, …

Locução prepositiva

constituída por duas ou mais palavras, sendo a última uma preposição: abaixo de, acerca de, acima de, a fim de, além de, antes de, aquém de, apesar de, a respeito de, através de, de acordo com, em frente de, em vez de, perto de, longe de, quanto a, ...

10. Conjunção e locução conjuncional Coordenativa Subclasse e valor

Conjunções

Locuções conjuncionais

Copulativa (adição)

e, nem

nem… nem, não só… mas também, não só… como também, tanto… como

Adversativa (oposição)

mas

Conclusiva (conclusão)

logo

Disjuntiva (alternativa)

ou

Explicativa (explicação, justificação)

pois, que

ou… ou, já… já, ora… ora, quer… quer, seja… seja

Subordinativa Subclasse e valor

Conjunções

Locuções conjuncionais

Causal (causa)

porque, como (= porque), pois, porquanto, que (= porque), …

já que, pois que, por isso mesmo que, por isso que, visto que, uma vez que, …

Consecutiva (consequência)

que

de modo que, de forma que, de maneira que

Condicional (condição)

se, caso

desde que, a menos que, a não ser que, contanto que, desde que, exceto se, salvo se, sem que, uma vez que, …

Concessiva (concessão)

embora, conquanto, …

apesar de (que), ainda que, por mais que, por menos que, não obstante, se bem que, mesmo que/se, nem que, …

Comparativa (comparação)

como, qual (depois de tal), (do) que, quanto (depois de tanto), …

ao passo que, assim como… assim, assim como… assim também, mais… do que, menos… do que, tão/tanto… como, conforme… assim, …

Temporal (tempo)

quando, mal, apenas, enquanto, …

à medida que, antes que, ao passo que, assim que, até que, depois que, desde que, logo que, sempre que, todas as vezes que, …

Final (fim, finalidade, objetivo)

que (= para que), para

para que, a fim de que, de modo que, a fim de, …

Completiva (completa o sentido do verbo)

que, se, para, …

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SÍNTESE INFORMATIVA E GRAMATICAL DE APOIO

B E Sintaxe

1. Funções sintáticas

▪ Apresentação em PowerPoint

FUNÇÕES SINTÁTICAS AO NÍVEL DA FRASE

Sujeito: grupo nominal responsável pela concordância verbal ou oração subordinada substantiva, que se pode substituir pelo pronome demonstrativo isso, antes do verbo.

EXEMPLOS

simples: um grupo nominal ou uma oração.

O gato da vizinha roubou-me os carapaus. Quem chega atrasado tem falta.

composto: dois ou mais grupos nominais ou orações coordenadas.

Eu e os meus primos fazemos trabalho voluntário. Assustou-me que tivesses saído de casa e só voltasses passados três dias.

indeterminado: não se refere a uma entidade específica; o verbo está na 3.ª pessoa do singular ou do plural; quando está no singular, com a maior parte dos verbos, é acompanhado do pronome impessoal se.

Já se sabe que esse filme vai ganhar os óscares todos. Atropelaram o cão do meu pai.

subentendido: subentende-se o referente pelo contexto e flexão verbal.

[Eu] Estou com fome. A cantina está fechada e [ela] só abre daqui a uma hora.

Predicado: comentário que Grupo verbal, ou seja, o verbo ou um se faz acerca do sujeito, complexo verbal, com os seus complementos através de um grupo verbal. e/ou modificadores.

O filme estreou na quinta-feira. O Manuel comprou três livros.

Vocativo: interpelação ao interlocutor, através de um grupo nominal.

Grupo nominal separado por vírgulas dos outros constituintes frásicos.

Pedro, traz-me um sumo do frigorífico, por favor. Ana, podes explicar isso outra vez?

Os modificadores de frase expressam juízos de valor, crenças ou opiniões do falante, sobre o que foi ou vai ser dito; as orações subordinadas causais, as concessivas e as condicionais são, geralmente, modificadoras de frase – separados por vírgulas dos outros constituintes frásicos.

As férias, felizmente, estão quase a chegar. Provavelmente, chego atrasada ao jantar. Apesar de estar a chover, apetece-me ir passear. É melhor irmos estudar mais um bocado, uma vez que o teste é amanhã.

Modificador: grupo adverbial, preposicional ou oração que não é selecionado.

FUNÇÕES SINTÁTICAS INTERNAS AO GRUPO NOMINAL

EXEMPLOS

Complemento do nome: grupo preposicional (1) ou grupo adjetival (2) – menos frequente – selecionado pelo nome.

(1) Os irmãos da Ana vivem em Faro. (2) A última reforma ortográfica já está em vigor.

Modificador restritivo do nome: grupo adjetival (1), grupo preposicional (2) ou oração (3) e (4) que faz parte do grupo nominal, mas não é selecionado pelo nome; um grupo nominal com um modificador restritivo (1) e (2) refere um subconjunto das entidades expressas pelo nome; as orações adjetivas relativas restritivas (3) e algumas orações adverbiais finais (4) são modificadores restritivos do nome.

(1) (2) (3) (4)

Modificador apositivo do nome: grupo nominal (1), grupo adjetival (2), grupo preposicional (3), ou oração que faz parte do grupo nominal mas não é selecionado pelo nome (4); as orações adjetivas relativas explicativas (4) são modificadores não restritivos do nome; é sempre separado por vírgulas dos outros constituintes frásicos.

(1) O meu irmão, um gozão do pior, escondeu-me o telemóvel. (2) O cão, guloso, roubou-lhe a costeleta. (3) O carro, com um motor bem potente, arrancou logo. (4) O meu namorado, que viveu no Porto, gosta muito de francesinhas.

Perdi a minha camisola cinzenta. O rapaz de calções chama-se Pedro. Empresta-me o livro que compraste ontem. A encomenda para dares à tua mãe já chegou.

SIGA

FUNÇÕES SINTÁTICAS INTERNAS AO GRUPO VERBAL

EXEMPLOS

Complemento direto: grupo nominal (1) ou oração substantiva finita (2) ou substantiva não-finita selecionado pelo verbo (3).

(1) Detestei aquele bife. (2) Ele pensa que sabe tudo. (3) Tu sabes desenhar muito bem!

Complemento indireto: grupo preposicional introduzido pela preposição a, selecionado pelo verbo, que se pode substituir pelo pronome lhe.

O Jorge disse aos pais que ia viajar.

Complemento oblíquo: grupo adverbial (1) ou grupo preposicional selecionado pelo verbo (2) e (3).

(1) O teste correu-me muito bem. (2) O cão já foi à rua. (3) Gosto de chocolate amargo.

Complemento agente da passiva: grupo preposicional, introduzido pela preposição por.

Vale Abraão foi realizado por Manoel de Oliveira.

Modificador do grupo verbal: grupo adverbial (1), grupo preposicional (2) ou oração (com valor de tempo, de espaço ou de modo) (3) que faz parte do grupo verbal, mas não é selecionado pelo verbo.

(1) Hoje corri 10 km. (2) Fizemos o trabalho de grupo na biblioteca da escola. (3) Mal a série acabou, fui deitar-me.

Predicativo do sujeito: grupo nominal (1), grupo adjetival (2), grupo adverbial (3) ou grupo preposicional (4).

(1) (2) (3) (4)

Predicativo do complemento direto: grupo nominal (1), grupo adjetival (2) ou grupo preposicional (3).

(1) O João considera o Pedro um bom amigo. (2) Os alunos acharam o teste muito fácil. (3) O Rui trata o Afonso por pai.

Saramago foi prémio Nobel da Literatura. Esse exercício continua errado. O gato está debaixo da cama. Os meus amigos ficaram na praia.

FUNÇÕES SINTÁTICAS INTERNAS AO GRUPO ADJETIVAL

EXEMPLOS

Complemento do adjetivo: grupo preposicional.

O professor é justo com os alunos.

2. Coordenação e subordinação COORDENAÇÃO

Frases complexas – com dois (ou mais) grupos verbais SUBORDINAÇÃO

2.1 Orações coordenadas CONJUNÇÕES/ LOCUÇÕES CONJUNCIONAIS / ADVÉRBIOS CONECTIVOS

▪ Apresentação em PowerPoint

EXEMPLOS

Copulativas (adição)

e, nem… nem, também, …

Os estudantes sentaram-se e tiraram o som aos telemóveis.

Adversativas (oposição)

mas, porém, todavia, …

A professora é muito exigente, mas explica bem.

Conclusivas (conclusão)

portanto, logo, pois, …

Gosto da matéria, por isso, vou ter boa nota no teste.

Disjuntivas (alternativa)

ou, ou… ou, ora… ora, quer… quer, seja… seja

Vou ter positiva a Português, ou eu não me chame André!

Explicativas (explicação, justificação)

porquanto, pois, que

Vou para as aulas, que hoje tenho teste.

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SÍNTESE INFORMATIVA E GRAMATICAL DE APOIO

2.2 Orações subordinadas

▪ Apresentação em PowerPoint

Adverbiais (podem ser substituídas por um advérbio, à exceção das comparativas e das consecutivas) CONJUNÇÕES/LOCUÇÕES CONJUNCIONAIS

EXEMPLOS

Causais (causa)

porque, como (= porque), pois, porquanto, que (= porque), já que, pois que, por isso mesmo que, por isso que, visto que, …

Já que amanhã é sábado, vou sair à noite.

Consecutivas (consequência)

que, de forma que, de maneira que, de modo que, de sorte que, …

Estudei tanto que até me dói a cabeça…

Condicionais (condição)

se, caso, desde que, a menos que, a não ser que, contanto que, desde que, exceto se, no caso que, salvo se, sem que, …

Caso não chegues a tempo, deixo o bilhete na receção.

Concessivas (concessão)

embora, conquanto, apesar de que, ainda que, ainda quando, por mais que, por menos que, posto que, se bem que, sem que, …

Apesar de gostar muito de Sophia, prefiro Fernando Pessoa.

Comparativa (comparação)

como, conforme, qual, que, segundo, ao passo que, assim como… assim, assim como… assim também, mais… do que, menos… do que, tão (tanto)… como…

O trabalho era mais fácil do que eu pensava.

Temporal (tempo)

à medida que, antes que, assim que, até que, depois que, desde que, logo que, mal, primeiro que, quando, sempre que, tanto que, todas as vezes que, …

Depois de entrar de férias, o Jorge só vai ler policiais.

Final (fim, finalidade, objetivo)

para que, a fim de que, …

O Afonso calou-se, para não irritar os pais.

Adjetivas (podem ser substituídas por um adjetivo) PRONOMES / DETERMINANTE / ADVÉRBIOS RELATIVOS Restritivas (limitam/restringem o nome/grupo nominal)

que, quem, o qual, cujo, onde, …

Explicativas (explicam/ adicionam informação sobre o nome/grupo nominal)

EXEMPLOS O colega com quem fiz o trabalho teve melhor nota do que eu. Fecharam o bar onde eu ia ao sábado. D. Sebastião, a quem Camões dedica Os Lusíadas, morreu novo.

Substantivas (podem ser substituídas por um nome ou por um pronome. No caso das completivas, o pronome é isto/isso/aquilo; no caso das relativas, será um pronome pessoal adequado à função sintática desempenhada na frase) PRONOMES / ADVÉRBIOS RELATIVOS / CONJUNÇÕES / PREPOSIÇÃO Relativas (sem antecedente) (o pronome relativo não tem um antecedente)

Completivas (são selecionadas por nomes, verbos e adjetivos)

EXEMPLOS

(o) que, onde, quem

O professor oferece um livro a quem tiver mais de 17 no teste.

que

Ele não se lembrava de que tinha dito isso.

se, quem, quão, quanto(a)/ quantos(as), onde

A Teresa não sabia se o filme era bom. Nós ignorávamos quem tinha escrito nas paredes.

para

Pediram-me para escrever um poema.

SIGA

B F Semântica

▪ Apresentação em PowerPoint

1. Valor temporal • Localização temporal da situação expressa por um enunciado; • Uma situação é, primeiramente, localizada no Passado, no Presente ou no Futuro em relação ao momento em que se produz o enunciado (deixis temporal); adicionalmente, é possível localizar as situações como anteriores, simultâneas ou posteriores a momentos expressos no próprio enunciado; • O valor temporal é construído pela interação da flexão verbal com advérbios ou locuções adverbiais temporais, orações subordinadas adverbiais temporais, verbos auxiliares. VALOR Anterioridade

Simultaneidade

Posterioridade

EXEMPLOS

em relação ao momento da enunciação

Ontem, parti um copo. Já saí de casa.

em relação a um momento expresso no enunciado

Quando tu chegares, já eu terei saído de casa. Antes de se levantar, a Joana partiu um copo.

em relação ao momento da enunciação

Estou a ver um filme. O Jorge sabe que lhe estás a mentir.

Em relação a um momento expresso no enunciado

Enquanto a minha irmã ouvia música, eu estava a ver um filme. Fui à praia na quinta-feira; nesse dia choveu torrencialmente.

Em relação ao momento da enunciação

Daqui a um ano, estou a viajar pela Ásia. Eles vão jantar a casa dos avós.

Em relação a um momento expresso no enunciado

Um ano depois de acabar o curso, foi viajar pela Ásia. Mal acabaram as aulas, os alunos saíram da escola. Após a leitura da obra, deverão fazer um resumo de cada capítulo.

2. Valor aspetual Expressão linguística da estrutura temporal interna de uma situação, independente da sua localização temporal; é dado por informação lexical e pelo contexto gramatical. Aspeto gramatical

O contexto gramatical permite construir novos valores aspetuais a partir do valor aspetual básico – a interação de diferentes tempos verbais, verbos auxiliares aspetuais, estruturas de quantificação, advérbios e locuções adverbiais permite representar situações acabadas e não acabadas, genéricas iterativas e habituais. VALOR / SITUAÇÃO

EXEMPLOS

Valor perfetivo Representa situações concluídas. O pretérito perfeito simples está, normalmente, associado a este valor, assim como os verbos auxiliares acabar de, deixar de, parar de.

A Ana comeu um gelado. Gostei muito de ti. Finalmente, acabei de o ler.

Valor imperfetivo A situação é apresentada como não concluída. O pretérito imperfeito e os verbos auxiliares aspetuais estar a ou andar a contribuem para a construção deste valor.

Os alunos estudavam, quando se ouviu um estrondo. Ando a ler um livro.

Situação genérica A situação descrita no enunciado é atemporal e atribui propriedade permanente a uma entidade ou a uma classe, ou mesmo a outras situações. Este valor pode ser dado pelo presente ou pelo pretérito imperfeito do indicativo, por predicados estativos, pelos determinantes…

Os cães gostam de ir à rua. Os dinossáurios eram répteis. A baleia é um mamífero. Quem vai ao ar perde o lugar. Dormir a sesta é muito saudável.

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SÍNTESE INFORMATIVA E GRAMATICAL DE APOIO

Situação habitual A mesma situação é repetida no tempo com a frequência suficiente para que se possa considerar um hábito para a construção deste valor. Mais importantes do que os tempos verbais, são as expressões adverbiais como sempre, frequentemente, normalmente, estruturas quantificadas como todas as semanas, duas vezes por dia, durante 10 anos, ou verbos aspetuais como costumar.

Geralmente, o meu pai compra o jornal no quiosque da esquina. Levanto-me cedo todos os dias. Costumo ler antes de dormir.

Situação iterativa A repetição da situação descrita pelo enunciado não é sistemática nem ocorre com frequência suficiente para que se possa considerar um hábito. Este valor é construído principalmente pela interação de eventos com expressões adverbiais como de vez em quando, naquele dia, …, com estruturas quantificadas como duas vezes, muitas vezes, …, com o pretérito perfeito composto ou com verbos auxiliares aspetuais como andar a.

Como marisco ocasionalmente. Naquele dia, o João foi três vezes para a rua. O professor tem faltado às aulas. O meu gato anda a dormir muito.

3. Valor modal • Expressão linguística de atitudes ou posições do falante (ou do sujeito da frase) acerca da proposição ou perante participantes na situação contida num enunciado; essas atitudes podem exprimir valores de crença (modalidade epistémica), de avaliação (modalidade apreciativa) ou de obrigação ou permissão (modalidade deôntica). • O valor modal é transmitido pelo modo verbal, adjetivos, advérbios e locuções adverbiais modais, verbos auxiliares modais ou mesmo nomes e verbos principais. TIPO / VALOR Modalidade epistémica Exprime um juízo de valor acerca da verdade de uma proposição.

EXEMPLOS

Valor de certeza O falante (ou o sujeito da frase) considera a proposição verdadeira ou falsa.

Estamos sem Internet. Acho que estamos sem Internet. É falso que o sol gire à volta da Terra. Os alunos consideraram que o teste até era fácil.

Valor de probabilidade Sem ter certezas, o falante avalia a probabilidade de a proposição ser verdadeira ou falsa.

Talvez me saia o euromilhões. É possível que te deem um carro nos anos. – Leva um impermeável, pode chover. O telemóvel da Rita deve estar avariado.

Modalidade apreciativa Exprime avaliações positivas ou negativas sobre situações.

Infelizmente, perdi o meu livro preferido… Jantar naquele restaurante foi um pesadelo!

Modalidade deôntica O enunciado descreve situações que envolvem imposições ou autorizações.

Valor de obrigação Uma situação é imposta a uma ou mais entidades.

É obrigatório o uso do cinto de segurança. Temos de entregar o trabalho até sexta-feira. É proibido fumar em recintos fechados.

Valor de permissão Concede-se autorização a uma ou mais entidades.

Quem acabou o teste já pode sair. O professor deixou-nos ouvir música na aula.

G Discurso, pragmática e linguística textual B

1. Coerência textual COERÊNCIA TEXTUAL

▪ Apresentação em PowerPoint

Plano do texto que conduz à sua interpretação (sentido do texto), através do estabelecimento de relações lógicas entre as várias entidades que ocorrem no texto e as situações em que elas participam. Estas relações têm de ser compatíveis com o nosso conhecimento do mundo (real ou ficcional); por isso, a coerência textual depende também da capacidade interpretativa do leitor/ouvinte.

SIGA

COERÊNCIA LÓGICO-CONCEPTUAL

RELAÇÃO ou RELEVÂNCIA: As ocorrências textuais devem ser pertinentes (por exemplo, não se deve fugir à temática do texto ou dar exemplos que não vêm a propósito, nem deixar ideias a meio); têm, também, de ser encadeadas de forma a que se perceba a relação entre as várias situações que se descrevem, por um lado, e as entidades que nelas intervêm, por outro; o uso de articuladores é essencial para assegurar a relação entre situações, enquanto os mecanismos de coesão lexical e referencial (por processos de anáfora ou de deixis) garantem a relação entre entidades. NÃO CONTRADIÇÃO: As ocorrências textuais não podem ter sentidos incompatíveis (ou seja, um texto é incoerente se apresentar informação contraditória, ao nível das situações, dos participantes, do tempo ou do espaço). NÃO REDUNDÂNCIA: As ocorrências textuais não devem repetir as mesmas ideias; deve-se retomar informações já conhecidas e introduzir dados novos.

COERÊNCIA PRAGMÁTICO-FUNCIONAL ou SITUACIONALIDDE

O texto deve ser adequado à situação comunicativa – ao contexto, à forma de transmissão (oral ou escrita), ao meio (livro, jornal, mensagem, cartaz, etc.) e à relação locutor/ interlocutor. Deve ainda corresponder à intencionalidade do locutor e ao fim a que se destina. Tal consegue-se, por exemplo, através das formas de tratamento, do vocabulário utilizado e do registo de língua que se usa.

N.B.: Também a pontuação contribui para a coerência do texto.

2. Coesão textual (lexical e gramatical) COESÃO TEXTUAL

Contribui para a coerência do discurso. Realiza-se através de mecanismos linguísticos, lexicais e gramaticais. Assegura a progressão, a continuidade e o sentido do texto. A coesão textual processa-se a vários níveis – da palavra, da oração, das frases e dos parágrafos. REITERAÇÃO Retoma por repetição do vocábulo ou expressão.

COESÃO LEXICAL Mecanismo que assegura a relação entre entidades diferentes, tornando-as relevantes no discurso, ou a retoma da mesma entidade

▪ Apresentação em PowerPoint

SUBSTITUIÇÃO Retoma por palavra ou expressão diferente.

Eu dou-vos as aulas, eu corrijo os TPC, eu repito a matéria.

SINONÍMIA Utilização de vocábulo ou expressão com significado equivalente.

A língua portuguesa tem mais de 250 milhões de falantes. É o quinto idioma mais falado no mundo.

ANTONÍMIA Utilização de vocábulo ou expressão com significado oposto.

Vou comer um salgado, os doces fazem-me mal.

HIPERONÍMIA/HIPONÍMIA Utilização de vocábulo ou expressão com significado mais geral (hiperónimo) ou mais particular (hipónimo).

Não sei onde tenho o dicionário; desde que mudei de casa não encontro nenhum livro.

HOLONÍMIA/MERONÍMIA Utilização de vocábulo ou expressão que designa o todo (holónimo) ou parte constituinte (merónimo).

O prédio em frente está em obras; o telhado estava completamente destruído.

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SÍNTESE INFORMATIVA E GRAMATICAL DE APOIO

COESÃO GRAMATICAL

INTERFRÁSICA Ao nível das frases e parágrafos, através do uso de conectores.

Queria ir ao cinema, mas tenho teste amanhã.

FRÁSICA Ao nível da oração/frase simples, através da concordância, da presença do número de complementos pedido pelo verbo, na categoria certa (grupo nominal, grupo preposicional − com a preposição adequada −, etc.).

Amanhã, a gente vai ao cinema. Tu queres vir connosco? O Pedro gosta de cães, mas eu adoro gatos!

REFERENCIAL Ao nível da palavra, através do uso anafórico de pronomes, sobretudo; a interpretação dos pronomes depende de outras expressões presentes no texto; os elementos que se referem à mesma entidade formam uma cadeia referencial (são os vários elos dessa cadeia).

Ontem, a Ana faltou à aula. O professor disse-lhe que ela tinha de pedir apontamentos aos colegas.

TEMPORAL Ao nível da ordenação cronológica, conforme ao nosso conhecimento do mundo, através da ordenação correlativa dos tempos verbais e de expressões adverbiais ou preposicionais com valor temporal.

Se fosses meu amigo, não dizias isso. No domingo, o Pedro telefonoute, mas tu já tinhas saído.

3. Deixis pessoal, temporal e espacial

▪ Apresentação em PowerPoint

A deixis designa o conjunto de elementos linguísticos (palavras ou expressões) que «apontam» para o contexto situacional de um ato enunciativo e, por isso, a sua interpretação depende da situação em que são proferidos. Organizam-se em torno do sujeito da enunciação (EU), da pessoa a quem se dirige (TU), do momento (AGORA) e do espaço (AQUI) em que ocorre o ato enunciativo. É uma estratégia linguística de coesão referencial e temporal. DEÍTICOS

EXEMPLOS Pronomes pessoais de 1.ª e 2.ª pessoas: eu, me, mim, comigo; nós, nos, connosco; tu, te, ti, contigo; vós, vos, si, convosco. Determinantes/pronomes possessivos de 1.ª e 2.ª pessoas: meu/nosso, teu/vosso. Flexão verbal – morfemas verbais de 1.ª e 2.ª pessoas. Vocativo.

Tu não me arranjas os apontamentos da aula de ontem?

TEMPORAIS

Advérbios/locuções adverbiais e expressões com valor temporal. Flexão verbal – morfemas de tempos verbais.

Na semana passada, estive nos Açores e amanhã vou à Madeira. Estavas a dormir?

ESPACIAIS

Advérbios/locuções adverbiais e expressões com valor locativo/espacial. Determinantes/pronomes demonstrativos. Algumas preposições e locuções prepositivas. Alguns verbos que indicam movimento/localização: ir, vir, trazer, levar, partir, chegar, aproximar-se, afastar-se, subir, entrar, sair, descer, ...

O ginásio é ali ao fundo.

PESSOAIS

Vocês viram o meu estojo? Ó Pedro, não me trazes um bolo do café?

Este sumo é melhor que aquele. Chega-te para trás! Vim ao cinema, mas o João foi para casa.

SIGA

4. Reprodução do discurso no discurso

▪ Apresentação em PowerPoint

Transformação de discurso direto para indireto O discurso direto e o indireto (normal ou livre) são formas de reprodução de diálogos ou conversas (e, por vezes, monólogos). Uma vez que a interação entre locutores é fortemente dependente do contexto, a representação do discurso num texto apresenta muitas marcas dos três eixos que caracterizam uma situação comunicativa: os interlocutores, o espaço e o tempo, codificados nas expressões dêiticas.

DISCURSO DIRETO: Reprodução do discurso de um locutor, tentando respeitar (ou simular) o que foi dito e como foi dito, isto é, reproduzir ou imitar a situação comunicativa da interação verbal. Utiliza a sequência textual dialogal (enunciados alternados entre os falantes). CARACTERÍSTICAS (NA ESCRITA)

EXEMPLOS

É representado por dois pontos, parágrafo e travessão.

No entanto, dizia a prelada a Teresa: – Esta escrivã não é má rapariga.

É introduzido por verbos declarativos, que podem surgir no início, no meio ou no fim do discurso: dizer, responder, indagar, explicar…

– E que estúpida! – acudiu a outra.

O verbo declarativo pode, por vezes, ser eliminado.

– Faz lá uma pequena ideia! (Camilo Castelo Branco)

DISCURSO INDIRETO: Reprodução do discurso de um locutor, através de um narrador, que relata a interação verbal, sem ser, necessariamente, exato nas palavras (o conteúdo é mais importante). Utiliza a sequência textual narrativa (sucessão de acontecimentos no tempo). CARACTERÍSTICAS

EXEMPLOS

Os enunciados do diálogo ocorrem em orações subordinadas, como complementos dos verbos introdutores de discurso.

A certa altura ele perguntou-me se eu escrevia. Respondi que sim. Bernardo Soares, Livro do Desassossego: composto por Bernardo Soares, ajudante de guarda-livros na cidade de Lisboa (ed. Richard Zenith), 7.ª ed., Lisboa, Assírio & Alvim, 2014, p. 32.

DISCURSO INDIRETO LIVRE: Forma de relato que pode considerar-se intermédia entre o discurso direto e o indireto: CARACTERÍSTICAS

EXEMPLO

A 3.ª pessoa e os tempos da narração (próprios do discurso indireto) coexistem com os deíticos, as interrogações e as exclamações ou expressões coloquiais (próprios do discurso direto); tal como no discurso direto, os enunciados não são subordinados a verbos introdutores do discurso, que estão ausentes.

Aproximaram-se da sege como quem ia pedir uma esmola, Scarlatti mandou parar e estendeu-lhes as mãos, Adeus, Adeus. (José Saramago, Memorial do Convento)

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SÍNTESE INFORMATIVA E GRAMATICAL DE APOIO

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5. Sequências textuais

Unidades textuais com uma estrutura interna específica, superiores ao enunciado e inferiores ao texto; são dotadas de alguma autonomia, mas relacionam-se entre si para formar um todo coeso e coerente; apesar de poderem ser interrompidas por outras sequências (ou mesmo não estarem completas), é possível identificá-las pelas suas propriedades específicas; um texto é incluído num determinado género em função do tipo de sequência textual predominante – narrativa, descritiva, dialogal, explicativa ou argumentativa. Ocorrem em textos literários e não literários SEQUÊNCIA

ESTRUTURA

MARCAS LINGUÍSTICAS

Narrativa Sequência estruturada no eixo do tempo, numa progressão causal; na literatura, corresponde à estrutura de construção da intriga (início, nó, desenlace); também presente em textos não literários (textos expositivos em que a informação é apresentada cronologicamente, como uma biografia, uma notícia, uma reportagem, etc.).

• situação inicial – localização no tempo e no espaço e introdução de personagens • sucessão causal de eventos no tempo – evento desencadeante-reação-resolução • situação final – estado do mundo após os eventos narrados (resolução final da intriga), ausente nas narrativas abertas • Avaliação / moral (opcional)

• predomínio de tempos do Passado • expressões de localização temporal e espacial • estruturas de introdução e retoma dos referentes (associados às diversas personagens) • articuladores discursivos de conexão temporal e causal

Descritiva Sequência estruturada no eixo do espaço.

• caracterização de um referente por enumeração das suas propriedades físicas ou psicológicas, relacionando-o, eventualmente, com outros referentes (metáfora e metonímia); caracterização de partes desse referente

• verbos copulativos e estativos, em formas verbais do presente ou do imperfeito • estruturas de modificação nominal (adjetivos, orações relativas) • advérbios de grau e de modo • relações meronímicas (parte-todo) • vocabulário expressivo (e apelo aos sentidos) • articuladores discursivos aditivos e enumerativos

Dialogal Dois ou mais interlocutores interagem, trocando ideias, sentimentos; é a sequência usada no discurso direto e no discurso indireto livre; os enunciados em si podem ter estrutura descritiva, narrativa, explicativa ou argumentativa.

• abertura • enunciados alternados entre os falantes numa estrutura pergunta/ pedido-resposta-avaliação • fecho

• • • • •

formas de tratamento saudações e despedidas elementos dêiticos elementos típicos da oralidade expressões de cedência e retoma da palavra

SIGA

Explicativa Um locutor especialista num assunto explica um determinado fenómeno ou situação; o tema não é alvo de polémica; tem, sobretudo, função informativa ou didática (típicas de textos técnico-científicos, didáticos, ou mesmo publicitários), mas ocorre também em textos literários.

• constatação inicial – apresentação do fenómeno incontestável • problematização/questionamento – (Como? Porquê?) • resolução/resposta – razões que explicam o fenómeno, em relações de causa/efeito • conclusão/avaliação: reformulação da constatação inicial, clarificando o fenómeno problematizado

• linguagem objetiva e assertiva • vocabulário técnico e científico • predomínio de verbos no presente com valor genérico • ausência de expressões avaliativas e de marcas de subjetividade (inexistência de expressões de modalidade apreciativa) • verbos na 3.ª pessoa e construções impessoais • encadeamento lógico reforçado por articuladores discursivos diversos (sequência, causa, consequência, explicitação, confirmação, conclusão, etc.)

Argumentativa O locutor parte de um fenómeno polémico e apresenta o seu ponto de vista, organizando de forma lógica o seu raciocínio; tem como objetivo persuadir o interlocutor (presente sobretudo em textos de opinião, apreciações críticas, trabalhos académicos, discursos e debates políticos e textos publicitários, mas também em textos literários).

• os enunciados são organizados sob a forma de um argumento, podendo partir dos dados para a conclusão ou da conclusão para os dados que a fundamentam (muitas vezes, algumas premissas ou a conclusão podem estar implícitas): • tese anterior (opcional) • premissas (dados) • inferências • conclusão

• verbos que transmitem relações de causa-efeito (causar, provocar, motivar, originar, levar a, etc.) • verbos que exprimem opinião e crença (considerar, alegar, afirmar, etc.) • expressões de modalidade deôntica e epistémica • presente e futuro do indicativo, com valor intemporal e hipotético, respetivamente • expressões que envolvem os interlocutores no raciocínio – uso de pronomes e vocativos, perguntas retóricas • forte presença de articuladores discursivos diversificados, que organizam as premissas e explicitam a relação lógica de inferência (por dedução ou abdução) entre as premissas e a conclusão (enumeração, sequência, causa, consequência, concessão, explicitação, confirmação, condição, conclusão, etc.)

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SÍNTESE INFORMATIVA E GRAMATICAL DE APOIO

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6. Intertextualidade

Um texto contém sempre referências de diferentes tipos (e com diferentes propósitos retóricos ou estilísticos) a outros textos; ao primeiro, chama-se hipertexto, aos nele referidos, hipotextos; intertextualidade é o conjunto das relações mais ou menos explícitas que um hipertexto mantém com um ou mais hipotextos. TIPOS DE INTERTEXTUALIDADE

EXEMPLOS

Citação Reprodução, devidamente identificada, de um excerto textual, no interior de um texto, com o objetivo de ilustrar ou sustentar uma ideia.

José Saramago cita Fernando Pessoa, Mensagem: «Em seu trono entre o brilho das estrelas, com seu manto de noite e solidão, tem aos seus pés o mar novo e as mortas eras, o único imperador que tem, deveras, o globo mundo em sua mão, este tal foi o infante D. Henrique […].»

Epígrafe Fragmento de texto célebre, devidamente identificado, no início de um texto, de um capítulo ou de uma secção, que relaciona o conteúdo do texto que se segue com o conteúdo da obra referida, integrando o hipertexto num domínio de pensamento específico. Alusão Referência mais ou menos indireta a outro texto (ou situação) que deixa ao leitor ou ouvinte a tarefa de o identificar.

José Saramago, Memorial do Convento, Alfragide, Editorial Caminho, 2013, p. 307.

Em O Ano da Morte de Ricardo Reis: «Sábio é o que se contenta com o espetáculo do mundo» Ricardo Reis

«Da sua gaiola de madeira pregou o celebrante ao mar de gente, se fosse o mar de peixes, que formoso sermão se teria podido repetir aqui, com a sua doutrina muito clara, muito sã, mas, peixes não sendo, foi a pregação como a mereciam homens e só a ouviram os fiéis que mais ao perto estavam […].» José Saramago, Memorial do Convento, pp. 225 e 313.

Referência de «[…] Bradam os demónios no inferno, e dessa maneira julgas escapar à condenação, mas aquele que tudo vê, não este cego Tobias, o outro a quem […]». (Padre António Vieira, Sermão de Santo António aos Peixes)

Paráfrase Sequência que reformula um fragmento de texto, explicitando e desenvolvendo o seu sentido.

Destas [mulheres], duas serão relaxadas ao braço secular, em carne, por relapsas, e isto quer dizer reincidentes na heresia, por convictas e negativas, e isto quer dizer teimosas apesar de todos os testemunhos, por contumazes, e isto quer dizer persistentes nos erros que são suas verdades, só desacertadas no tempo e no lugar. José Saramago, Memorial do Convento, p. 65.

Paródia Imitação de um texto, deformando-o, com o propósito de ridicularizar ou criticar.

«[…] e então uma grande voz se levanta, é um labrego de tanta idade já que o não quiseram, e grita subindo a um valado que é púlpito de rústicos, Ó glória de mandar, ó vã cobiça, ó rei infame, ó pátria sem justiça […].»

Imitação criativa Recriação a partir de um texto, sem o ridicularizar ou criticar.

«Já vai andando a récua dos homens de Arganil, acompanham-nos até fora da vila as infelizes, que vão clamando, qual em cabelo, Ó doce e amado esposo, e outra protestando, Ó filho, a quem eu tinha só para refrigério e doce amparo desta cansada já velhice minha […].»

José Saramago, Memorial do Convento, p. 402.

José Saramago, Memorial do Convento, p. 402.

SIGA

III. Recursos expressivos

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Adjetivação (simples, dupla, tripla) – apresentação sucessiva de vários adjetivos. Ex.: «Quem as recolhe, assim, cruéis, desfeitas nas suas conchas puras?» (Eugénio de Andrade)

Hipérbole – exagero (por excesso), quer da realidade quer do imaginário. Ex.: «Carregado de tristeza, o entardecer demora anos.»

Alegoria – «No seu significado etimológico, alegoria significa dizer uma coisa por outra, representando figurativamente um conceito ou uma abstração.»1 Ex.: «A máquina estremeceu […], erguendo a sua cabeça de gaivota, lançou-se em flecha, céu acima.» (José Saramago)

Interrogação retórica – questão retórica, isto é, que não visa uma resposta, antes procura dar ênfase e criar expectativa através de uma formulação próxima da exclamação ou da afirmação. Ex.: «…perdeu tanta coisa sem ser a bússola. Perdeu ou largou?» (Maria Judite de Carvalho)

Aliteração – «repetição da mesma consoante, muitas vezes na sílaba inicial de palavras contíguas, tanto no verso como na prosa.»1 Ex.: «Mais possuirei a existência total do universo, / Mais completo serei pelo espaço inteiro fora, / Mais análogo serei a Deus, seja ele quem for…»

Ironia – utilização de palavras, expressões ou frases com sentido oposto ao seu significado literal. Ex.: «Os homens e os bois já estão no seu jantar, depois será a hora da sesta, se a vida não tivesse tão boas coisas como comer e descansar, não valia a pena construir conventos.» (José Saramago)

(Álvaro de Campos)

Anáfora – repetição da mesma palavra ou conjunto de palavras no início de versos ou frases sucessivos. Ex.: «Ó fazendas nas montras! Ó manequins! Ó últimos figurinos! / Ó artigos inúteis que toda a gente quer comprar!» (Álvaro de Campos) Anástrofe – inversão direta dos elementos da frase. Ex.: «…o meu indício / Na areia o mar com ondas três o apaga.» (Ricardo Reis) Antítese – combinação de ideias contrárias ou opostas. Ex.: «Ouvi-la alegra e entristece.» (Fernando Pessoa) Apóstrofe – chamamento ou interpelação a alguém ou a alguma coisa personificada. Ex.: «Vem sentar-te comigo, Lídia, à beira do rio.» (Ricardo Reis)

Comparação – relação explícita de semelhança entre dois elementos, através da palavra «como» ou de expressões equivalentes como «parecer-se com» e «assemelhar-se a». Ex.: «…e deixou o sorriso como quem deixa um guardachuva esquecido numa sala de espera.» (Maria Judite de Carvalho)

Enumeração – «[…] nomeação acumulativa das partes de um todo e de elementos que mantêm entre si uma correlação lógica ou semântica.»1 Ex.: «Espreguiça-se, boceja e arrasta-se até à caixa de lata enferrujada.» (Manuel da Fonseca) Eufemismo – forma de suavizar o caráter desagradável, horrível, penoso, de uma notícia, de um pensamento, de uma situação. Ex.: «Gastámos os olhos com o sal das lágrimas […]» (Eugénio de Andrade)

Gradação – sucessão de vocábulos por ordem progressiva, crescente ou decrescente, no seio de uma enumeração. Ex.: «A raiva do Batola demora muito, cresce com o tempo, dura anos.» (Manuel da Fonseca)

(Manuel da Fonseca)

Metáfora – associação de semelhança implícita entre dois elementos. Ex.: «A multidão cresceu […]. É um enxame negro gigantesco que veio ao divino mel, zumbe, murmura […]» (José Saramago) Metonímia – utilização de um vocábulo por outro, com o qual estabelece uma relação de contiguidade (o continente pelo conteúdo; o lugar pelo produto, o autor pela sua obra, etc.). Ex.: «Em todo o caso Vossa Excelência conhece perfeitamente o seu Proudhon?» (Eça de Queirós) Onomatopeia – reprodução de um som (de um fenómeno natural, animal, objeto, …) através de uma palavra. Ex.: «[…] teria havido uma sineta, derlim, derlim […]» (José Saramago)

Perífrase – utilização de um número de palavras maior do que o necessário para exprimir determinada ideia. Ex.: «Do Santo Sepulcro de Jesus Cristo» (Jerusalém) (Almeida Garrett)

Personificação – atribuição de qualidades/propriedades humanas a animais, objetos ou entidades abstratas. Ex.: «Quando a terra não repete / Que são mais» (Miguel Torga)

Pleonasmo – palavra(s) que reforça(m) uma ideia que já está expressa. Ex.: «Não é possível, mas eu hei de salvar o meu anjo do céu!» (Almeida Garrett) Sinédoque – transferência de significado de uma palavra para outra, numa relação que toma a parte pelo todo ou vice-versa. Ex.: «Lisboa acordava lentamente: as saloias ainda andavam pelas portas […] varria-se devagar a testada das lojas; no ar macio morria à distância um toque fino de missa.» (Lisboa/todo = os seus habitantes/parte) (Eça de Queirós)

Sinestesia – fusão de perceções relativas a dados sensoriais de sentidos diferentes. Ex.: «é um sorvo a mais de cheiro / A terra e a rosmaninho!» (Miguel torga)

1 Dicionário Terminológico (disponível em http://dt.dge.mec.pt – consultado em dezembro de 2016).

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Dicionário de autores A Ana Luísa Amaral (1956– ) Poetisa portuguesa, tradutora, tendo sido professora na Faculdade de Letras da Universidade do Porto. É membro da Direção da Associação Portuguesa de Literatura Comparada e colaboradora da revista literária Colóquio-Letras. Publica ensaios sobre poesia moderna e contemporânea americana, inglesa e portuguesa. Em 1990, publicou o seu primeiro livro de poesia. A sua obra está traduzida para castelhano, inglês, francês, alemão e búlgaro.

E Eugénio de Andrade (1923–2005) Foi um poeta português galardoado com vários prémios literários. Trabalhou como funcionário dos Serviços Médico-Sociais e, enquanto poeta, manteve-se sempre independente relativamente aos vários movimentos literários da sua época. Foi um dos poetas portugueses mais lidos e traduzidos, sendo considerado um importante escritor português do século XX.

F Fernando Namora (1919–1989) Formado em Medicina, na Universidade de Coimbra, deixou obra como poeta, pintor, ensaísta, mas é conhecido sobretudo pela sua ficção. A sua obra reflete a sua missão analítica e reflexiva da vida e nela projetou as suas experiências. Em 1965, abandona a Medicina para se dedicar inteiramente à literatura e à promoção da literatura e da cultura.

Fernando Pessoa (1888–1935) Foi um poeta, escritor, publicitário, crítico literário, filósofo e comentador político português. Destacou-se como poeta, tendo criado os heterónimos Alberto Caeiro, Álvaro de Campos e Ricardo Reis e o semi-heterónimo Bernardo Soares. Foi um dos mentores do projeto Orpheu, em 1915, marcando o início do movimento modernista português, tendo influenciado a evolução de toda a produção poética portuguesa do século XX. Publicou apenas uma obra durante a sua vida, Mensagem (1934), na qual exprime poeticamente a sua visão mítica e nacionalista de Portugal.

M Manuel da Fonseca (1911–1993) Contador de histórias, tornou-se uma figura relevante da literatura t portuguesa no século XX, destacando-se a sua obra pelos contos, romances e crónicas. Iniciou o seu percurso literário com a publicação em diversos periódicos ligados à oposição ao Estado Novo. O seu primeiro livro, Rosa dos Ventos (1940), foi considerado um exemplo da renovação poética portuguesa. Os seus livros de contos, Aldeia Nova (1942) e O Fogo e as Cinzas (1951), são considerados obras representativas do neorrealismo português.

Maria Judite de Carvalho

J José Saramago (1922–2010) Filho de camponeses, mudou-se para Lisboa ainda antes de completar dois anos. Por questões económicas não lhe foi possível prosseguir os estudos. O seu primeiro emprego foi como serralheiro mecânico, tendo depois exercido diversas profissões, nomeadamente a de jornalista e tradutor. Publicou o seu primeiro livro, Terra do Pecado (1947), aos 25 anos, tendo ficado sem publicar por um longo período. Fez parte da primeira Direção da Associação Portuguesa de Escritores e foi presidente da Assembleia Geral da Sociedade Portuguesa de Autores. A partir de 1976, passou a viver exclusivamente do seu trabalho literário, primeiro como tradutor e depois como autor. Em 1998, foi-lhe atribuído o Prémio Nobel de Literatura.

(1921–1998) Escritora portuguesa que se estreou com o livro Tanta Gente, Mariana (1959). Dois anos mais tarde, publicou As Palavras Poupadas (1961), com o qual ganhou o Prémio Camilo Castelo Branco. Pertenceu à direção da Sociedade Portuguesa de Escritores e trabalhou em alguns periódicos lisboetas. A sua obra integra contos, novelas, crónicas, poesia e teatro.

Miguel Esteves Cardoso (1955– ) É crítico, cronista, escritor e jornalista. Licenciou-se em Estudos Políticos e doutorou-se em Filosofia Política. Em 1988, foi cofundador do semanário O Independente. Da sua obra destacam-se: Escrítica Pop (1982); A Causa das Coisas (1986); As Minhas Aventuras na República Portuguesa (1990); A Vida Inteira (1995); Em Portugal não se Come Mal (2008); Amores e Saudades de um Português Arreliado (2014).

Miguel Torga (1907–1955) Foi um poeta e escritor português. Filho de um lavrador, Adolfo Correia da Rocha (nome civil) foi, aos treze anos, para o Brasil, onde trabalhou com um tio em Minas Gerais. Em 1925, regressa a Portugal e, em 1933, termina o curso de Medicina, em Coimbra. Durante a sua vida universitária conheceu o grupo de escritores que viria a fundar a Presença. Toda a sua obra assume uma postura independente relativamente a qualquer movimento literário. Proposto para Nobel da Literatura por duas vezes (1960 e 1978), a sua obra constitui uma referência cultural a nível nacional e internacional, tendo recebido vários prémios literários.

R

Ricardo Araújo Pereira (1974– )

Estudou Comunicação Social e Cultural na Universidade Católica Portuguesa e trabalhou como jornalista na redação do Jornal de Letras, Artes e Ideias. Mais tarde, foi repórter de informação da TVI. A sua aptidão para a escrita levou-o a ser convidado para colaborar com uma agência de guionistas para programas de humor e foi responsável por alguns textos de programas de humor entre 1999 e 2005. Em 2003, começam as suas primeiras aparições televisivas e mais recentemente começa a colaborar com o jornal A Bola, com a revista Visão e com a Rádio Comercial. Compilou as suas melhores crónicas da revista Visão nos livros Boca do Inferno (2007) e Novas Crónicas da Boca do Inferno (2009) e é autor do livro A Doença, o Sofrimento e a Morte Entram num Bar (2016).

Breve dicionário de símbolos Dois Símbolo de oposição, de conflito, de reflexão, este número indica o equilíbrio realizado ou de ameaças latentes. É o número de todas as ambivalências e desdobramentos. É a primeira e a mais radical das divisões (o criador e a criatura, o preto e o branco, o masculino e o feminino, a matéria e o espírito, etc.), aquela de que derivam todas as outras.

Maneta A mão separa o dia da noite e tem uma função criadora. Privado de um braço ou de uma das mãos, o maneta é posto fora do tempo. No entanto, este isolamento é apenas relativo ou provisório. Faz com que o ser participe de uma outra ordem, que é a do ímpar ou do sagrado. O maneta simboliza o homem chamado a viver num nível diferente de existência.

Manhã

Número associado à união, número da harmonia e do equilíbrio.

Símbolo do tempo em que a luz ainda é pura, os inícios onde nada está ainda corrompido, pervertido ou comprometido. A manhã é, ao mesmo tempo, símbolo de pureza e de promessa: é a hora da vida paradisíaca. É também a da confiança em si, nos outros, na existência.

Fogo

Mar

Um dos quatro elementos que regem o planeta (Fogo, Terra, Ar e Água). É considerado por muitos povos como algo sagrado, purificador e regenerador, simbolizando a regeneração periódica. O seu poder de destruição é interpretado, por um lado, como meio para o renascimento numa esfera mais elevada, simbolizando a vida, o conhecimento intuitivo, a iluminação, a paixão, o espírito, e, por outro, como tendo a função de queimar eternamente (inferno), não permitindo a regeneração após a destruição por estar associado ao Mal.

Símbolo da dinâmica da vida. Tudo sai do mar e a ele regressa: lugar de nascimentos, transformações e renascimentos. Águas em movimento, o mar simboliza um estado transitório entre as possibilidades ainda informais e as realidades formais, uma situação de ambivalência, que é a da incerteza, da dúvida, da indecisão, e que pode terminar bem ou mal. Daí que o mar seja ao mesmo tempo a imagem da vida e da morte.

Cinco

Lua É em correlação com o simbolismo do Sol que se manifesta o simbolismo da Lua. Os seus carateres mais fundamentais derivam, por um lado, de a Lua ser privada de luz própria e ser apenas um reflexo do Sol; por outro lado, de a Lua atravessar fases diferentes e mudar de forma. É por isso que ela simboliza a dependência e o princípio feminino, bem como a periodicidade e a renovação. Sob este duplo aspeto, ela é o símbolo de transformação e de crescimento.

Nevoeiro Símbolo do indeterminado, de uma fase da evolução: quando as formas ainda não se distinguem, ou quando as formas antigas que desaparecem ainda não foram substituídas por formas novas precisas.

Nove Este número tem um valor ritual. Nove parece ser a medida das gestações, das buscas frutíferas e simboliza o coroamento dos esforços, o concluir de uma criação. Simboliza a perfeição da perfeição, a ordem na ordem, a unidade na unidade.

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Recomenda-se a utilização conjunta do Manual e do Caderno de Atividades para facilitar a aprendizagem e contribuir para o sucesso escolar. Estes materiais podem, no entanto, ser vendidos separadamente. Para registo na base de dados do Ministério da Educação deve ser inserido o ISBN da edição do aluno: 978-972-47-5446-8

AMOSTRA NÃO COMERCIALIZÁVEL De acordo com o artigo 21.o da Lei n.o 47/2006, de 28 de agosto, este exemplar destina-se ao órgão da escola competente para a adoção de manuais escolares. 978-111-11-4392-3

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