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Portuguese Pages 243 [121] Year 1999
/ \ Transmissão da Psicanálise
V
Michel Arrivé
diretor: Marco Antonio Coutinho Jorge
LINGUAGEM E PSICANÁLISE, LINGÜÍSTICA E INCONSCIENTE Freud, Saussure, Pichon, Lacan
Tradução: Lucy Magalhães Revisão técnica: Waldir Beividas Programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica, UFRJ
Ivã Carlos Lopes Deptº de Letras Modernas, Unesp
Jorge Zahar Editor Rio de Janeiro
SUMÁRIO Título original: Langage et psychanalyse, linguistique et inconscient (Freud, Saussure, Pichon, Lacan) Tradução autorizada da primeira edição francesa publicada em 1994 por Presses Universitaires de France, de Paris, França, na coleção Linguistique Nouvelle, dirigida por Guy Serbat
Prefácio, 7 Vôo panorâmico em altitude variável, 11
Copyright © 1994, Presses Universitaires de France PRIMEIRA VERTENTE
Copyright © 1999 da edição em língua portuguesa: Jorge Zahar Editor Ltda. rua México 31 sobreloja 20031-144 Rio de Janeiro, RJ te!: (021) 240-0226/fax: (021) 262-5123 e-mail: [email protected]
Saussur~Lacan,
I. TI.
Todos os direitos reservados. A reprodução não-autorizada desta publicação, no todo ou em parte, constitui violação do copyright. (Lei 5.988)
Introdução, 29 O Curso de lingiiística geral: uma releitura, 33 Lacan, leitor de Saussure, 72 Conclusão, 115 SEGUNDA VERTENTE
Este livro, publicado no âmbito do programa de auxílio à publicação, contou com o apoio do Ministério francês das Relações Exteriores, da Embaixada da França no Brasil e da Maison française do Rio de Janeiro.
Freud, Pichon, Lacan 1.
CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ A81 l L
Freud
Introdução, 119 As teorias lingüísticas de Damourette e Pichon, 121
II. Destino lacaniano do empersonamento, da discordância e
Arrivé, Michel, l 936Linguagem e psicanálise, lingüística e inconsciente: Freud, Saussure, Pichon, Lacan/Michel Arrivé; tradução, Lucy Magalhães; revisão técnica, Waldir Beividas, Ivã Carlos Lopes. - Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1999 (Transmissão da psicanálise)
da foraclusão, 140 III. Encontros improvisados em tomo da sissemia e da metalinguagem, 156 PROBLEMAS
r. O sentido oposto das palavras primitivas ... e das outras, 167 Tradução de: Langage et psychanalyse, linguistique et inconscient Inclui bibliografia ISBN 85-7110-478-6 1. Psicolingüística. 2. Significação (Psicologia). 3. Sinais e símbolos. I. Título. II. Série. 99-0842
CDD 401.9 CDU 81.23
TI.
O "Não há... " lacaniano, 184
III. Lacan sobre o estilo, sobre o estilo de Lacan, 200 IV. Lacan leitor de Jarry, Jarry leitor de Lacan, 216
Bibliografia, 227 Índice onomástico, 235 Índice analítico, 238
PREFÁCIO
Admito que o título desta obra é pretensioso. Mas é menos do que seria sem a menção da lingüística e da psicanálise: o título Linguagem e inconsciente, apenas, intimida tanto que até agora, que eu saiba, ninguém ousou utilizálo na França1 ou em francês. Entretanto, unia grande parte da literatura psicanalítica gira em tomo dos problemas que essas palavras temíveis designam. Na minha intenção, a presença no título das duas disciplinas ao lado dos dois objetos indica que só se tratará dos últimos através do discurso das primeiras. Embora eu diga eu nesta obra, não sou eu - se é que há um sentido estabelecido para essa palavra ... - que falarei do inconsciente, nem mesmo da linguagem:2 será o discurso da lingüística e e da psicanálise. Discursos diretos em certos casos (a lingüística sobre a linguagem, a psicanálise sobre o inconsciente). Discursos cruzados em várias ocasiões (a psicanálise sobre a linguagem, a lingüística sobre o inconsciente). Já ouço a objeção: por que você não se contentou com Lingüística e psicanálise, nessa ordem ou em outra? Na verdade, essa designação ascética não me teria desagradado. Se acabei por afastá-la, foi por uma espécie de otimismo epistemológico: a lingüística pretende ser ciência da linguagem; embora mais reservada sobre a sua própria científicidade, a psicanálise não recusa o estatuto de ciência do inconsciente. E se acontecesse que, de vez em quando, cada uma do seu lado, as duas ciências atingissem o seu objeto próprio? Ou até o objeto da outra? Para abordar os problemas das relações entre lingüística e psicanálise, e assim entre linguagem e inconsciente, segui sucessivamente dois métodos. O primeiro é de caráter histórico. É fácil localizar, na história cruzada da lingüística e da psicanálise, vertentes marcadas por nomes. Ligações precisas se estabelecem posteriormente, por intermédio de Lacan, entre os conceitos instaurados por Freud e os que Saussure extrai no campo da lingüística: esses três nomes, em uma ordem que será revelada e explicada 7
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Linguagem e psicanálise, lingüística e inconsciente
a seu tempo, dão o título à "Primeira vertente". A figura de Pichon - que não deve ser dissociada de Damourette - domina consideravelmente a paisagem da lingüística e da psicanálise francesas entre as duas guerras mundiais. Foi da sua obra de lingüista - e não dos seus trabalhos de psicanálise - que Lacan adotou mais de um conceito fundamental.3 Com esse empréstimo, Lacan operou com precisão a junção entre Pichon e Freud. Esses três nomes serviram para designar a "Segunda vertente". Outros problemas se prestavam menos facilmente a uma abordagem histórica. Abordei-os sob seus aspectos teóricos e os reuni na terceira parte, necessariamente intitulada "Problemas". Eles são três. O primeiro é ilustre: é o do "Sentido oposto das palavras", primitivas ou não; lugar privilegiado do confronto entre a abordagem dos lingüistas e a dos psicanalistas, marcado notadamente pela intervenção, solicitada por Lacan, de Benveniste. O segundo considera os diferentes objetos afetados pela negação, na reflexão de Lacan. É que são muitos os X a serem atingidos por um categórico "não há X"! Entre estes, em primeiro lugar, a metalinguagem e a relação sexual: será que se estabeleceria entre esses dois objetos uma relação? E que relação? O terceiro problema mal chega a ultrapassar os limites da lingüística: é o do estilo. É primeiramente tratado sob o aspecto do estilo de Lacan; o estilo tal como Lacan o pratica e tal como Lacan o teoriza. Por exceção, este último problema cria um novo capítulo: nele, toma-se como testemunho da atitude de Lacan para com o estilo a maneira com que ele recebe os fenômenos muito específicos que caracterizam a obra de Jarry. O inventário dos problemas tratados nessas três partes é vasto. Evidentemente, não é exaustivo. Por outro lado, a separação dos problemas, indispensável para o seu exame preciso, segmenta talvez excessivamente a paisagem teórica das relações entre lingüística e psicanálise. É por isso que julguei útil consagrar um capítulo de introdução a uma descrição dessa paisagem, sempre vista do alto, embora de uma altitude variável. Segundo a necessidade, ela é percebida em suas grandes linhas ou descrita nos menores detalhes. Uma última palavra para lembrar que o autor deste livro é lingüista. Apenas lingüista, ao contrário de vários colegas - sucessores de Pichon, que deu o exemplo - não achou que devia vestir a roupa de psicanalista. Assim, manteve o discurso do lingüista. Não procurou afastar-se dele intencionalmente. Aconteceu-lhe, aqui e ali, encontrar por acaso um outro discurso? O leitor poderá dizer.
Prefácio
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NOTAS l. Não acontece o mesmo na Alemanha, onde foi publicado em 1973 Die Sprache und das Unbewusste (A linguagem e o inconsciente), de Hermann Lang (Suhrkamp Verlag). 2. Naturalmente, o leitor terá o direito de julgar se eu me ative sempre a esse silêncio. 3. Oportunamente, veremos que esses empréstimos são muitas vezes ocultados pelos psicanalistas.
Vôo PANORÂMICO EM ALTITUDE VARIÁVEL
A paisagem formada pelas relações entre lingüística e psicanálise e, mais profundamente, entre linguagem e inconsciente, não é muito serena. Tentar descrever essa paisagem é surpreender-se a cada passo. É constatar alternadamente os contatos mais íntimos entre as duas disciplinas e os desconhecimentos recíprocos mais totais e até mais depreciativos. Os exemplos dessas oscilações se observam logo nos primeiros momentos da coexistência entre as duas disciplinas. Porém os mais evidentes são dados pelas tomadas de posição explícitas sobre os casos flagrantes de contatos. Assim, em 1989, André Green - no entanto anteriormente lacaniano e ouvinte assíduo do Seminário* (ver Seminário 11, p.161-2 e 203-4) evocando a necessidade de um diálogo entre a psicanálise e "as outras disciplinas", formulou sem maior constrangimento esta opinião taxativa: Durante muito tempo, essa tentativa de diálogo foi muito dificil, quando não terminou em fracasso: por exemplo, Lacan e a lingüística. 1
A severidade dessa apreciação foi depois ligeiramente atenuada por algumas palavras de esperança. Mas elas eram vagas; não há nenhuma referência específica à lingüística, no momento em que A. Green admite, sem muito entusiasmo, que "o diálogo [com as outras disciplinas, M.A.] parece bem encaminhado, embora reste um longo trajeto a percorrer" (ibid). E não é difícil encontrar, em outros psicanalistas, até mesmo a condenação das relações - culposas - com a lingüística. Assim, Claude Le Guen, considerando uma "teoria psicanalítica da linguagem", começa por declarar que "primeiro, seria necessário repensar a linguagem fora de qualquer categoria lingüística".2 Impossível dizer mais claramente que,
* As páginas citadas dos Seminários e dos Escritos, de Lacan, correspondem às das edições publicadas no Brasil por esta editora. (N.E.) li
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Linguagem e psicanálise, lingüística e inconsciente
para o analista - ao menos como o autor o concebe - os trabalhos dos lingüistas e o aparato nocional da lingüística são nulos e sem efeito. Mesmo quando se gabam, muitas vezes com razão, de conhecer bem o pensamento de Lacan, os psicanalistas lançam com freqüência um olhar condescendente sobre a lingüística e os lingüistas. Nisso, eles se opõem pelo menos a uma parte das posições do próprio Lacan. Deve-se dizer que estas são evolutivas. Lembrem-se as declarações feitas por ocasião da primeira sessão do Seminário sobre As formações do inconsciente: [a análise lingüística] tem a mais estreita relação com a psicanálise pura e simples. Elas chegam a se confundir. Se examinarmos de perto, veremos que não são essencialmente diferentes uma da outra (p.14 ). Aqui, a psicanálise acaba confundindo-se com a lingüística. Mais tarde, Lacan tomará as suas distâncias, em condições que evocaremos em várias ocasiões (p.77-81 e 179), e que o levarão às vezes a um certo desdém, pelo menos em relação a alguns lingüistas. E a instalação da "lingüisteria" - palavra que rima com "pedanteria" - certamente não denota apenas a reverência para com Jakobson (Mais ainda, p.25-6 e Télévision, p.16).3 É esta última atitude, e só ela, que é adotada por Juan-David Nasio, por exemplo. EmLes yeux de Laure, veremos na página 165, que se escamoteia, pelo silêncio feito sobre seus nomes, a contribuição de Damourette e Pichon para a instalação do conceito de foraclusão, a ponto de atribui-lo ... ao próprio Freud. Nas Cinq leçons sur la théorie de Jacques Lacan, é Saussure que é vítima de Nasio. Ele reconhece de má vontade "a orgem lingüística do significante" (p.24). Mas logo acrescenta que este só é determinado por "três critérios não-lingüísticos" (ibid.). Atribui a Lacan, post mortem, afirmações surpreendentes sobre Saussure (p.93), e diz com muita segurança que "Lacan respeita a diferença estabelecida por Saussure entre língua e linguagem: a língua é a linguagem falada" (p.73). Seria preciso lembrar que Saussure nunca disse nada semelhante sobre as relações entre linguagem e língua? Do lado dos lingüistas, o espetáculo não é diferente. Naturalmente, é o trabalho de Lacan que provoca, entre eles também, mais barulho. Assim, Georges Mounin, depois de constatar, com um esgar de satisfação, que por vezes "Lacan e seus discípulos utilizam a palavra significante no seu sentido lingüístico'', observa logo depois que "essa bela transparência não se mantém( ... ). Ora dizem que o signo, na psicanálise, não funciona como um signo, e até que o psiquiatra é um semiólogo sem signos. Ora dizem que um significante é o que representa o sujeito para outro significante, frase de Lacan cuja exegese nunca consegui fazer".4 Por que essa incompreensão? Porque Mounin quis persuadir-se de que era necessário utilizar
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aparato de Saussure tal qual, sem infligir-lhe a menor distorção. É verdade que, no quadro saussuriano, a fórmula lacaniana simplesmente não é interpretável. Mas não é menos verdade que ela toma todo o seu sentido na teoria de Lacan, e que o significante que ali se apresenta conserva traços determinantes do significante saussuriano. Veremos claramente isso na "Primeira vertente". Seria fácil continuar indefinidamente com essa lista de anátemas recíproco~. E evide~tement~ seria ainda mais f~cil cit~r os ex~~pl?,~ de silêncio, as vezes ainda mais espetaculares. Assim, o Que sais-Je? de Daniel Lagache sobre La psychanalyse - publicado pela primeira vez em 1955 - não menciona nenhum lingüista, nem nenhuma lingüística. Entretanto, essa obra, na sua inevitável brevidade, comporta um capítulo sobre "Psicanálise e ciências humanas". Lê-se o nome de Saussure. Não se trata de Ferdinand, mas do seu filho Raymond, cuja "aplicação da psicanálise à história e, especialmente, ao M~lagre grego" é alt~mente apreciada! O mesmo silêncio se ob~erva no mais rec~nt~ E~at ~'!s _Izeux de /a psychanalyse, em que não se le nenhuma mençao a lmgm~tt~a ou a algum lingüista. Silêncio surpreendente por pa~e do redator pnnc1pa~ ~ Serge Leclaire - desse guia de viagens, ahas excelente nas reg10es psicanalíticas. Quanto aos lingüistas, com raras exceções, trabalham em seu campo, sem se preocupar com o que acontece nos outros, vizinhos ou não. E será que conhecem os seus vizinhos? Sabem ~ue_ os têm? ~em re~~esentar um caso extremo, Catherine Kerbrat-Orecch10m, em um hvro abas excelente sobre L 'implicite (Paris, Armand-Colin, 1986), só muito rapidamente recorre a Freud e a Lacan. Não há rancor, nem mesmo ignorância; existe até uma certa reverência, como mostram algumas menções. Mas uma indiferença quase total. Em suma, para a autora, como para muitos outros, a lingüística pode (deve?) dispensar a psicanálise, mesmo quando aborda o domínio do não-dito, esse "não-dito que jaz nos furos do discurso" (Escritos, Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1998). Deve-se reconhecer que, de longe, tudo parece opor o lingüista ao psicanalista, a lingüística à psicanálise. Os dois pers~nagens, à primeira vista, não nasceram para se encontrarem, e menos amda para se entenderem. Quando não está em campo, junto aós seus informantes, ou no gabinete, entre as suas fichas, gravadores ~ livros, é raro ~ue o lin_güi_sta, de algum modo, não seja professor. Na maioria das vezes e a sua pnnc1pal fonte de renda. O psicanalista escreve e, principalmente, fala menos. Quando ensina - isso pode acontecer - é raramente ex cathedra.
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* Nome de uma coleção de livros de divulgação cultural. (N.T.)
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Linguagem e psicanálise, lingüística e inconsciente
Vôo panorâmico em altitude variável
Principalmente, visa uma ação terapêutica, por definição totalmente estranha ao lingüista: de quem teria este que tratar? e de quê? É justamente por essa ação terapêutica que o psicanalista cobra os seus honorários, segundo um processo que há muito foi teorizado. Só um ponto comum entre esses dois personagens: ambos escutam. Mas cada um a seu modo ... O lingüista de modo tão atentamente objetivo quanto possível, preocupado em detectar, entre as variantes livres, as oposições fonológicas pertinentes, ou a distribuição das ligações - obrigatórias ou facultativas, com ou sem · encadeamento - ou as especificidades das estruturas sintáticas, ou a : diversidade dos modos de formação neológica, e tanta coisa mais ... A curiosidade do lingüista não tem limites. Já o psicanalista pratica, segundo a bela fórmula de Freud, a "atenção flutuante". É, como diz Reik, o seu "terceiro ouvido" que escuta, sensível, à sua maneira, o que não se diz, ou . se diz mal, desajeitadamente, em suma: reconhecendo finalmente, nesses atos falhos, os verdadeiros atos bem-sucedidos. Daí o estatuto diferente que o lapso toma para eles: para o lingüista, escória involuntária que mal se nota; para o psicanalista, brusca irrupção do inconsciente no discurso. Quanto às duas disciplinas, seu estatuto epistemológico é ftmdamentalmente diferente. A lingüística se gaba de ser a ciência da linguagem: alguém conhece um lingüista - um só - que de algum modo, implícito ou explícito, não reivindique esse estatuto para a disciplina que pratica? Quanto à psicanálise, a questão é, logo de saída, mais complexa. De fato, desde a célebre definição dada por Freud, em 1923, a uma Enciclopédia da sexologia humana, vê-se que os aspectos heurísticos, terapêuticos e propriamente científicos da disciplina se separam e se articulam simultaneamente:
plarmente a assimetria fundamental do estatuto epistemológico das duas disciplinas: ciência da linguagem, de um lado, e do outro "ciência" -mas a título ao mesmo tempo interrogativo e parcial - do inconsciente. É assim que encontram um início de explicação os anátemas e os silêncios citados acima. Mas, a esse respeito, é indispensável remontar à época em que - de modo rigorosamente contemp_orâ~~º. - ftu~dava-se a psicanálise e, de certa maneira, se refundava a hngu1stica: pois Freud (1856-1939) e Saussure (1857-1913) pertencem tão precisamente quanto possível à mesma geração. Todavi~, deve-se le_var em co~ta, ..~e~se · confronto, uma inevitável discordância entre os dom casos. A lmgu1stlca já existia antes de Saussure, especificamente no uni~erso cu~tural ge~a nófono que era o de Freud. Em contrapartida, a relanva brev1~ade da _vida de Saussure lhe tomou impossível - ao menos no que diz respeito a vestígios escritos - qualquer contato direto com a psicanálise. Haveria razão para especular sobre as origens dessa ignorância: de fato, nos anos em que Saussure ministrava o seu Curso de lingüística geral (de 1907 a 1911 ), os trabalhos de Freud, já importantes e numerosos, não eram desconhecidos na Universidade de Genebra: desde o início do século, Théodore Flournoy, colega de Saussure na Universidade, lera os Estudos sobre a histeria. Também publicara um relatório da Traumdeutung, onde se lê notadamente esta apreciação:
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é o nome: 1) de um método de investigação de processos anímicos que são dificilmente acessíveis de outra maneira; 2) de um método de tratamento dos distúrbios neuróticos, que se funda sobre essa investigação; 3) de uma série de princípios psicológicos adquiridos por esse meio, que crescem progressivamente para reunir-se em uma disciplina científica nova ( Oeuvres completes, t.xv1, p.183 ). PSICANÁLISE
Sem dúvida, os aspectos terapêuticos e científicos estão estreitamente imbricados. Mas nem por isso se distinguem com menos rigor. De modo que a psicanálise aparece como que clivada: terapêutica de um lado, científica do outro. Mas ainda se vêem muitos psicanalistas que se interrogam sobre a científicidade do segundo aspecto da sua disciplina: o seu objeto, o inconsciente, é verdadeiramente o objeto possível de um discurso científico? Vasto debate. Amplamente discutido por Lacan (ver especialmente o Seminário 11, p.17-8 e 193-4, por exemplo), só cabe mencioná-lo aqui pela sua existência. 5 Com efeito, ele manifesta exem-
Mesmo aventurosas e discutíveis, nada é mais interessante do que as suas concepções sobre as relações entre o inconsciente, o pré-consciente e o consciente.6
Quando se conhecem as relações que existiam entre Saussure e Flournoy, por exemplo a propósito do caso de Hélene Smith,7 certame~te é tentador questionar a ignorância em que Saussure parece ter permanecido no que se refere a Freud. Mas não farei esse questionamento. O simples fato de me empenhar nessa especulação teria como efeito imediato lançarme em outra, ainda mais problemática, sobre as razões que puderam sempre no nível dos vestígios escritos - impedir Freud de tomar conhecimento do Curso, publicado em 1916 e traduzido para o alemão já em 1931 ! Ignorância ainda mais estranha porque Freud conhecia perfeitamente o nome de Saussure. Ou antes, o nome de um Saussure. Mas não era Ferdinand: era o seu filho Raymond. Freud escreveu um prefácio para a sua obra O método psicanalítico, publicada em 1922. Nesse texto, na verdade moderadamente entusiástico, Freud assinala que "o Dr. de Saussure [... ] também fez o sacrifício [admire-se essa palavra, M.A.] de submeter-se a uma análise comigo" (Oeuvres completes, t.XVI, p.159). Essa análise data do ano de 1920. Desde 1916, Raymond de Saussure -
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Vôo panorâmico em altitude variável
ao contrário do que conta a lenda - conhecia bem o Curso, recém-publicado. A carta que escreveu a 15 de junho8 a Charles Bally (responsável pela edição do Curso) mostrava um conhecimento profundo da obra e até sugeria - pela primeira vez na história - um encontro entre as pesquisas da lingüística saussuriana e as da psicanálise. Partindo dos fenômenos de etimologia popular estudados no Curso, ele observava:
artigo publicado em 1913 na revista italiana Scientia (citado aqui segundo Résultats, idées,problemes, PUF, 1984). Lendo-se esse artigo, constata-se que a ciência da linguagem ocupa o primeiro lugar entre as ciências "não-psicológicas" que poderiam relacionar-se com a psicanálise, e que é ela que motiva o capítulo mais denso. A definição com qm~ se abre esse capítulo evoca com precisão, pela extensão que lhe concede, a elaboração por Saussure da semiologia. Aliás, as duas são mais ou menos contemporâneas:
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O sr. Freud, em Psicopatologia da vida cotidiana, apresenta alguns casos de lapsos, que ele tenta explicar psicologicamente. Parece-me que esse seria um campo novo de investigação para a lingüística. (p.149)
Calma: não vou perguntar o que Raymond de Saussure dizia a Freud a respeito do pai ... quando Freud o autorizava a falar! Pois "ele [Freud] falava demais'', queixava-se muito tempo depois o pobre Raymond.9 E vou limitar-me à observação que se impõe: a cronologia, tanto bruta quanto corrigida pelas circunstâncias biográficas, leva a considerar esse desconhecimento recíproco como muito mais espantoso ainda da parte de Freud do que da parte de Saussure. Lacan se interrogará, brevemente, sobre as causas dessa ignorância, e liquidará sumariamente o problema, fazendo considerações de cronologia epistemológica muito pouco convincentes. Citando sucessivamente Saussure e Jakobson, ele "lembra" que a ciência-piloto do estruturalismo no Ocidente tem suas raízes na Rússia, onde floresceu o formalismo. Genebra, 1910, Petrogrado, 1920, dizem bem por que seu instrumento faltou a Freud (Escritos, p.813).
Estranhas declarações! Em 1910, assim como em 1920, Freud estava no auge da sua atividade intelectual, e nenhum obstáculo sério, nem mesmo o da língua, podia impedir seu contato com Saussure (quanto ao texto) nem com Jakobson (quanto ao texto e à pessoa). De modo que é certamente imprudente atribuir apenas a um "defeito da história" (ibid.) a ignorância em que Freud se manteve sobre a lingüística, que estava se fundando sob os seus olhos. Mas vamos parar com esse assunto irritante, litigioso e talvez insolúvel. Limito-me a apresentar a questão do lugar da lingüística - e ainda não da linguagem - na reflexão de Freud, e depois a questão do lugar do inconsciente - e não da psicanálise: isso é impossível - na reflexão de Saussure. Quanto a Freud, é preciso considerar um texto, em minha opinião capital, embora muitas vezes ocultado. É o capítulo dedicado à "ciência da linguagem" (Sprachwissenschaft, às vezes também Sprachforschung, "pesquisa sobre a linguagem") em "O interesse pela psicanálise", 10 longo
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Certamente, vou além da significação habitual, quando postulo o interesse do filólogo [tradução discutível de Sprachforscher, "pesquisador da linguagem"] pela psicanálise. Por linguagem, não se deve compreender simplesmente a expressão dos pensamentos em palavras, mas também a linguagem dos gestos e qualquer outra espécie de expressão da atividade psíquica, como a escrita (p.198).
Realmente, é a escrita que é privilegiada por Freud. Sabemos até que ponto ela constitui para ele uma referência constante, não só na análise dos sonhos, mas também na das neuroses, e até nas conceituações gerais do inconsciente - penso notadamente na carta 52 a Fliess. A seqüência do texto mostra duas das principais preocupações lingüísticas de Freud. Primeiro, o problema da eventual origem sexual da linguagem, para o qual ele menciona a bela especulação de Hans Sperber. Lacan fará alusão a isso, de modo bastante reservado, no Seminário 7: Que as palavras cuja significação era primitivamente sexual tenham progredido como bola de neve até recobrirem significações muito afastadas não quer dizer, no entanto, que todo o campo da significação esteja recoberto (p.206, ver também a totalidade dessa sessão).
Depois, a questão ainda mais célebre - irritante, sem dúvida, mas fundamental - do Sentido oposto das palavras primitivas: sabemos que aqui é o ilustre Carl Abel que intervém, iniciando sem saber uma longa querela entre psicanalistas e lingüistas, da qual tomaram parte Lacan e Benveniste. Esse problema será longamente tratado nas p.167-83. Sperber e Abel são visivelmente utilizados por Freud para suturar as falhas da sua teoria das relações entre linguagem e inconsciente. O que se lê nas declarações aparentemente informativas do Interesse não é nada mais do que o esboço de uma teoria da linguagem estruturada como o inconsciente (ou do inconsciente estruturado como uma linguagem?). De modo plenamente explícito, o capítulo termina com uma classificação dos diferentes "dialetos" do inconsciente:
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O inconsciente fala mais de um único dialeto. 11 [ ..• ]Enquanto a língua gestual na histeria coincide com a língua pictográfica do sonho, das visões etc., na língua de pensamento da neurose obses~i~a e?~ parafre~a (dementia f!;aecox e paranóia) apresentam-se formações 1d10matlcas particulares, que Jª podemos compreender e relacionar umas com as outras (p.200).
A Sprachwissenschaft - a lingüística na forma cie~tí~ca que tinha na época - não é, entretanto, a única nem mesmo a ~nnc1pal fonte de informação de Freud sobre a linguagem. Ele se aproveita de tudo, abastecendo-se no aparato mais tradicional: a gramática e a retórica. Assim, O chiste e suas relações com o inconsciente é, princip~lm~nte na sua "Pa~e analítica" um verdadeiro festival de descrições mmuc1osas do matenal lingüístic~ (lembre-se o ilustrefamilionário de Heine) ou discll;rsivo (entre mil exemplos, o argumento do caldeirão emprestado ~-devolv1~0 furado). É uma verdadeira lingüística freudiana que se constro1 nesse hvro, atenta a todos os aspectos da linguagem. Para ficar nos dois_ exemplos citad?s, vemos que é o significante que está em causa na formaçao da palavra-v~hse familionário, formada pelo surgimento simultâneo, no nív~l da mamfes~ tação discursiva, de familiar e milionário. Sabemos que destmo Lacan dara ao Jami/ionário no Seminário 5: dele será tirada nad~ _menos do ~ue_ a estruturadas relações entre o sujeito do enunciado e o sujeito da enunciaçao (ver p.170-1 ). De modo mais geral, Lacan insisti~á fortemente, ~ess.e Seminário 5 sobre o aspecto "formal"12 dessa "teona estrutural do s1gmficante com~ tal" (p.24), constituída pelo conjunto das análises do Witz. E a história do caldeirão? Ela merece ser contada: pediu emprestado um caldeirão de cobre a B. r;>epois que A o devolveu, B processou A na justiça, acusando-o de ser responsavel por~1? !?"andef':1ro que se encontrava agora no caldeirão, e que tomava o utens1ho imprestavel. A apresentou a sua defesa nestes termos: "Primeiro, nunca pedi emprestado ~m caldeirão a a; segundo, o caldeirão já tinha um furo quando B o deu a mim; terceiro, devolvi o caldeirão em peifeito estado." A
Vemos que o Witz dá um exemplo espetacular da an~lação d~ contradição. Cada uma das desculpas apresentadas por A e em_ s1. mesma excelente. Mas elas se contradizem mutuamente, com a total md1ferença de A. É o tipo de relação idêntica, literalmente, às que Freud, na mesma época, detecta no sonho e pesquisa, com a colaboração de Abel, nas palavras da língua. . Mas, em suma, a gramática e a retórica são apenas, ev1d~ntemente, as formas antigas da lingüística. Utilizando-as - de maneira con_stante, embora diversamente intensa- Freud assinala pela segunda vez a Impor-
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tância e a necessidade das relações entre ciência do inconsciente e ciência da linguagem. O espetáculo apresentado pela obra de Saussure parece, à primeira vista, fundamentalmente diferente. Como acabamos de ver por que, não há nenhuma menção à psicanálise. Mas isso quer dizer que qualquer tomada de consideração do inconsciente esteja ausente? O Curso de lingüística geral não faz, que eu saiba, nenhuma menção do substantivo inconsciente, e os numerosos empregos que são feitos do adjetivo inconsciente, assim como do advérbio inconscientemente, remetem com toda a evidência ao que Freud chama de inconsciente descritivo - que escapa provisoriamente à consciência - fundamentalmente distinto do inconsciente tópico. Lacan insistirá nessa distinção, enfatizando fortemente que "o inconsciente não é uma espécie que defina na realidade psíquica o círculo daquilo que não tem o atributo (ou a virtude) da consciência" (Escritos, p.844). Mais tarde, Lacan até questionará a denominação negativa do inconsciente: essa será uma das motivações da tradução ultraliteral de Unbewuste por Unebévue, * palavra que, assim, deixa de ser negativa. Mas evidentemente é um inconsciente definido pelo fato de não ter o atributo da consciência que Saussure tem em vista, quando observa que "os sujeitos são, em grande parte, inconscientes das leis da língua" (CLG, p. l 06). Para dar um estatuto nominal a esses elementos inconscientes, Saussure dispõe - como toda a sua época - do substantivo subconsciente: Existe no subconsciente uma ou várias séries associativas, que têm um elemento comum com o sintagma (CLG, p.178).
Entretanto, não seria possível detectar em alguns pontos do CLG algo como um pressentimento de um outro inconsciente, fundamentalmente separado da consciência e definido pela sua estrutura específica? Para apresentar o problema do "valor lingüístico considerado no seu aspecto material", Saussure diz: É precisamente porque os termos a e b são radicalmente incapazes de chegar, como tais, até as regiões da consciência - a qual só percebe, perpetuamente, a diferença a : b - que cada um desses termos fica livre para modificar-se, segundo leis estranhas à sua função significativa (CLG, p.163 ).
Assim pois, existe um aspecto radicalmente inconsciente dos objetos lingüísticos, que só são aptos para emergir no nível da consciência sob o aspecto das diferenças que os opõem. Voltarei depois às dificuldades dessa
* Palavra-valise fonnada por Lacan a partir de une (= uma) bévue (= falha), que evoca o "ato falho" e cuja sonoridade lembra o tenno alemão. (N.T.)
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Linguagem e psicanálise, lingüística e inconsciente
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concepção, principalmente quando se trata de tentar articulá-la com a análise de Lacan. Aliás, este parece não ter dado uma atenção especial a esse :fragmento do Curso. Por hora, limito-me a observar que esse curto trecho tem um estatuto específico no Curso. Visivelmente, ele não aparece no ensino oral de Saussure: nenhum caderno dos seus estudantes conserva o menor vestígio. Se a edição-padrão do Curso lhe concede um lugar, é exclusivamente com base nas notas manuscritas de Saussure. (Engler, 1989, p.266). Como se Saussure tivesse hesitado em confiar aos seus estudantes o ponto mais agudo das suas reflexões sobre as relações entre a linguagem e aquilo que se toma plenamente legítimo chamar de inconsciente.13 Mas Saussure não é apenas o autor - supondo-se que ele o seja verdadeiramente ... - do Curso de lingüística geral. Ao mesmo tempo em que prepara para os seus estudantes as aulas que lhes dá semanalmente, dedica-se com obstinação a uma pesquisa aparentemente sem sentido: ler, sob o texto dos poetas (principalmente latinos e gregos), um outro texto, escrito com as mesmas letras, mas com outro arranjo, "fora da ordem no tempo que têm os elementos", 14 para retomar a bela fórmula pela qual ele distingue o objeto "muito especial" sobre o qual ele se debruça daquele que ele analisa no Curso. Eis um exemplo simples do funcionamento textual nos textos anagramáticos. Seja o verso latino arcaico
todos os tratados antigos de métrica, à procura de uma indicação, por menos explícita que seja. Finalmente, acredita ter encontrado o meio de sair da dúvida: bastará interrogar os próprios poetas latinos. Pois ainda subsistem alguns na Itália no início do século, professores de poética latina, que fazem questão de exibir a sua competência compondo poemas, imitações :freqüentemente muito felizes dos melhores clássicos latinos. Entre eles se distingue Giovanni Pascoli, professor na Universidade de Bolonha. Saussure conhece bem as suas obras, e nelas vê fervilharem os anagramas, tão abundantemente quanto em Ovídio e Virgílio. Decide pois interrogar o colega. A pergunta que lhe faz é plenamente explícita:
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DONOM AMPLOM VICTOR/ AD MEA TEMPLA PORTATO.
Esse verso é proferido pelo deus Apolo, que - é o sentido da mensagem -incita "o vencedor a levar aos [seus] templos uma oferenda considerável". Mas Saussure não se contenta com esse sentido de superficie. Procura "sob as palavras" um outro texto. No verso examinado, esse texto se reduz à repetição do nome próprio de Apollon, que se pode ler (na sua grafia arcaica Apolo) nas letras em itálico, em cada um dos hemistíquios do verso de superficie. Em outros casos, disseminado ao longo de vários versos, o texto subterrâneo pode tomar o aspecto de uma frase, ou até de um breve relato. Este não é o momento de estudar detalhadamente os problemas técnicos levantados pela estrutura anagramática, principalmente o do questionamento do caráter linear do significante. Voltarei à questão na p. 51. Mas importa desde já prestar atenção na preocupação constante e obstinada de Saussure, nessa procura das palavras sob as palavras: assegurar-se de que o texto subterrâneo responde realmente a uma intenção consciente e deliberada do poeta. Segundo Saussure, este distribuiu voluntariamente no verso as letras que constituem o texto anagramatizado. Persegue desesperadamente a prova dessa intencionalidade, dissecando
Seria por acaso ou intencionalmente que, em um trecho como Catullo-calvos, p.16, o nome de Falerni se encontra cercado de palavras que reproduzem as sílabas desse nome? (in Starobinski, Les mots sous les mots, p.150).
Pascoli não respondeu à carta de Saussure. Pelo menos, foi o que disse um dos seus alunos, associado temporariamente à pesquisa. Saussure interpretou esse silêncio como um questionamento da própria pergunta que ele levantava: tomou-se definitivamente impossível provar a intencionalidade do anagrama. As palavras sob as palavras são talvez produto do "acaso", ou de alguma instância não-nomeada e por isso não-pensável. Do dia para a noite, interrompeu a pesquisa. Pode-se imaginar um reconhecimento mais espetacular, embora (ou porque?) negativo, do inconsciente? Como vemos, não poderia haver excesso de prudência quando se trata do problema do lugar do inconsciente na reflexão saussuriana. Lugar marginal? Nas menções explícitas que são feitas, sem dúvida. Mas a própria prática da pesquisa anagramática e principalmente a sua interrupção manifestam, por ausência, uma curiosidade devoradora por aquilo que, do texto, pode ser inscrito de outra forma que não seja a intencionalidade consciente. Lacan não se engana: por várias vezes, nos Escritos ou no Seminário, faz alusão aos trabalhos sobre os Anagramas, cujos pressupostos teóricos ele opõe aos dados do CLG (ver adiante p.76 e 106). Quanto ao próprio Cursà, ele deixa entender claramente, pelo menos em um ponto, que o sistema dos valores lingüísticos não se reduz ao que chega até as regiões da consciência. Em suma, cada um à sua maneira, Freud e Saussure assinalam a possibilidade e a necessidade de um contato e de uma colaboração entre lingüística e psicanálise. Vemos até que ponto se afastam dessa posição comum as declarações de alguns dos seus herdeiros! E não surpreende mais o aparecimento, muito cedo afinal, na história da psicanálise, deste estranho ser: o lingüista-psicanalista, nessa ordem, que é, entre outras
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coisas, cronológica; passa-se da lingüística para a psicanálise, e não o contrário. O primeiro que vestiu a roupa do analista sem deixar a do lingüista foi um francês, Edouard Pichon (1890-1940). Médico por formação, era apaixonado pelas línguas, principalmente pela sua. Com seu velho tio e colaborador, Jacques Damourette ( 1873-1943), consagrou-lhe a obra mais monumental que se tenha dedicado à gramática de um idioma: os sete volumes (sem contar os diversos anexos) do Essai de grammaire de la Zangue française. Além disso, tomou-se analista, depois de um tratamento com Eugénie Sokolnicka, "representante legítima" de Freud em Paris. Não escondia a sua qualidade de analista em seus trabalhos de lingüística. Como se, aos seus olhos, fosse óbvio que essas duas qualidades se reunissem em um único homem. E como se as duas disciplinas fossem aptas a colaborar. Daí, por exemplo, estes títulos de artigos, também eles publicados em colaboração com Damourette: "A gramática e a exploração do inconsciente" e "Sobre a significação psicológica da negação em francês". Mais tarde, ainda escreveria, desta vez sozinho, o belíssimo artigo sobre "Morte, angústia, negação", que teria de esperar até 1947 para ser publicado, evidentemente a título póstumo.IS Sabemos que, excepcional- e talvez única, salvo erro, no tempo de Pichon - a figura do lingüista-psicanalista deixou de ser. Não é difícil enumerar uma boa dezena desses seres bizarros, lingüistas de dia, psicanalistas de noite (ou o contrário, à vontade). Como se a fonologia ou a sintaxe constituíssem para o futuro analista uma propedêutica tão eficaz quanto a anatomia ou a psicologia. Não deveriam ser surpreendentes essas relações entre as duas disciplinas. Elas são, com toda a evidência, programadas pela própria natureza da psicanálise, que - como lembra oportunamente o título de uma obra 16 - tem as suas origens na linguagem. Limito-me a citar o ilustre episódio de Anna O., que batizou de talking cure - tratamento pela palavra aquilo a que era submetida por Freud e Breuer, e que iria tomar-se a psicanálise.17 Quanto a Lacan, basta folhear o Seminário 1 para ver até que ponto é fundadora a reflexão sobre a oposição entre fala vazia e fala plena:
do enunciado, mas que age continuamente: A psicanálise é, em suma, a performatividade generalizada. Volto a Freud. Quarenta anos depois dos Estudos sobre a histeria, no momento em que levanta A questão da análise leiga, 18 esforça-se em explicar a um "interlocutor imparcial" que, no tratamento psicanalítico, tudo ocorre na e pela linguagem. "Palavras, palavras e mais palavras, como dizia o príncipe Hamlet" (p.33), exclama, provisoriamente decepcionado e desdenhoso, o pobre "interlocutor imparcial". E sabemos como é redundante em Freud o tema da "magia da linguagem". Lacan também não desdenha circular em tomo desse tema, chegando, por exemplo no Seminário 11 (p.16-7), até a comparar a análise didática com a alquimia. A psicanálise não é nada mais do que um exercício de linguagem. Todos os psicanalistas, finalmente, concordam implícita ou explicitamente com isso, embora se sinta com estranheza que alguns deles resistem a reconhecê-lo. Resistências cuja própria força é proporcional à evidência dos fatos. Como evitar, então, uma conexão entre linguagem e inconsciente? E como dispensar o encontro entre lingüística e psicanálise? Para isso, seria preciso uma boa dose de pessimismo, e até de cinismo epistemológico. Principalmente, seria preciso postular que a linguagem, tal como ela intervém no tratamento, não tem nada a ver com a linguagem tal como a descreve o lingüista. Seria preciso admitir que existem duas linguagens, certamente homônimas, mas totalmente disjuntas. "O inconsciente estruturado como uma linguagem"? Sim. Mas o uma permite supor - a rigor- duas linguagens, e decretá-las incompatíveis. Naturalmente, isso é privilegiar abusivamente o uma da célebre fórmula lacaniana. E negligenciar a linguagem, sem dúvida muito vizinha da língua: retomarei detalhadamente todos esses problemas por ocasião do exame da "Primeira vertente". De qualquer forma, isso é entender Lacan ao contrário e ir contra a corrente do pensamento freudiano. "O inconsciente· estruturado como uma linguagem"? Piada, ou até heresia! É verdade que é raro l~r ,essas apreciações, principalmente na forma brutal que lhes damos aqm. E menos excepcional ouvi-las: deixam menos vestígios. O lingüista autor destas linhas se absterá de tomar posição sobre o valor de verdade desse aforismo; não tem competência para fazê-lo: (Mas na verdade, quem tem essa competência?) Saliento apenas dois aspectos que, pelo menos espero, terão começado a emergir, por si próprios, do texto que acabamos de ler e continuarão a fazê-lo na seqüência do livro. O primeiro desses aspectos é a continuidade que, sobre os pontos estudados, se observa entre Freud e Lacan. Certamente, não há nada em Freud de tão aforístico quanto as espetaculares fórmulas lacanianas: evidentes razões históricas as tomavam impossíveis. Mas existem os seus equivalentes, sob formas descritivas e, necessariamente, mais difusas.
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A palavra plena é a que visa, que fomia a verdade tal como ela se estabelece no reconhecimento de um pelo outro. A palavra plena é a palavra que faz ato. Um dos sujeitos se encontra, depois, outro que não o que era antes. É por isso que essa dimensão não pode ser eludida da experiência analítica (p.129).
( Lemos aqui uma concepção peiformativa, no sentido literalmente /austiniano do termo, da fala na psicanálise: dizer, também aqui, e talvez ; principalmente aqui, é fazer. Mas um fazer específico, que age reflexiva/ mente sobre o sujeito do discurso. Que não está localizado em certos pontos !
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Mostraremos isso (p.184-6), quando tratarmos do questionamento da metalinguagem. Freud não utiliza esse conceito; não podia, literalmente. Mas a sua descrição do sonho pressupõe constantemente que "não há metalinguagem": pois como explicar de outro modo que ele se obstine em nunca operar a distinção-tão tentadora- entre sonho e relato de sonho? Em suma, é o mesmo gesto, embora sobre um objeto diferente que o de Damourette e Pichon no Essai de grammaire de la langue française, no qual se recusa a legitimidade das definições heterogêneas ao seu objeto. Quanto ao segundo ponto, é a coerência, sempre sobre os problemas abordados neste capítulo inaugural e na seqüência do livro, do ensino de Lacan. Ele não se contenta, como se diz às vezes, com aforismos terroristas. Toma ao pé da letra a sua própria fórmula - até lhe acontece citá-la, como se ela não fosse sua - e faz emergir, nos processos do inconsciente, o que eles têm de comum com aqueles que os lingüistas lhe fornecem, quanto à linguagem.
6. Gerd Kimmerle, Freuds Traumdeutung:frühe Rezensionen 1899-1903, Tübingen, Diskord, 1986, p.124. 7. Ver Théodore Floumoy, Des lndes à la planeie Mars, reedição da edição genebrina de 1899, Seuil, 1983. Hélene Smith, jovem médium de Genebra, praticalembrança da sua antiga condição de princesa hindu - uma língua que, por seus aspectos fónicos, faz pensar no sânscrito. Fenómeno de glossolalia, sobre o qual Floumoy interroga seu colega Saussure. Este toma o maior interesse pelo caso de Hélene Smith, e analisa com grande precisão as produções lingüísticas da jovem. 8. Carta publicada em Le Bloc-notes de la Psychanalyse, 5, 1985, p.147-9. 9. É E. Roudinesco quem relata as suas queixas, formuladas bem mais tarde, em 1957, em La bataille de cent ans. Histoire de la psychanalyse en France, vol.J, p.366. 10. Tomo a responsabilidade de traduzir por pour (e não'pelo tradicional de) o an do título alemão. O objetivo geral do artigo é enumerar as razões que deveriam determinar o interesse pela psicanálise dos especialistas nas diversas ciências. 11. Tomo a iniciativa de corrigir a tradução de Paul-Laurent Assoun, que escreve que "o inconsciente fala mais do que um simples dialeto", interpretação que entra em contradição absoluta com a seqüência do texto. 12. Para poupar um mal-entendido aos seus ouvintes, nos quais ele não parece ter plena confiança, Lacan julgou útil comentar o adjetivo formal: "Refiro-me ao formal não no sentido das belas formas, das linhas arredondadas, de tudo aquilo com que tentam tomar a nos mergulhar no mais negro obscurantismo, mas no sentido como se fala da forma na teoria literária, por exemplo. (Seminário 5, p.24; Lacan alude aos trabalhos da Escola de Pragà). 13. Em suas notas, Saussure insiste na diferença que opõe a linguagem a todas as outras instituições humanas. Segundo ele, a "instituição da linguagem" é a única que não se submete "à correção contínua do espírito" (Engler, 1989, p.266). Substituindose, como é evidentemente possível, espírito por consciente oposto a inconsciente, veremos como, já em Saussure, o laço que une linguagem e inconsciente é indissolúvel. 14. Fragmento citado por Starobinski em Les mots sous les mots, Gallimard, 1970, p.47. 15. As referências bibliográficas serão dadas na "Segunda vertente". 16. John Forrester, Le langage aux origines de la psychanalyse, Gallimard, 1984. O título inglês original é nitidamente menos explícito: Language and the Origins of Psychoanalysis. 17. Freud e Breuer, Études sur l'hystérie, 1895, trad. francesa, PUF, 1956, p.21-2. Ver também Michel Arrivé, Linguistique et psychanalyse, Méridiens-Klincksieck, 1986, p.7. 18. La question de /'analyse profane, trad. francesa, GalJimard, 1985.
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Post-scriptum Graças ao sr. Choi Y ong Ho, pude consultar a obra de Raymond de Saussure La méthode psychanalytique. Sob o seu aspecto de tese universitária, ela ainda não está munida do prefácio de Freud. Todavia, o autor toma o cuidàdo de precisar que "o sr. professor Freud nos fez a honra de ler e corrigir este trabalho" (p.6). Ocorre que o CLG é explicitamente citado por Raymond de Saussure (p.83, nota 1, sobre o lapso). Logo, temos a prova irrefutável de que Freud conhecia a existência do Curso.
NOTAS 1. "Psychanalyse: retour à la rigueur", declarações de André Green recolhidas por Bruno de Cessole, Le Figaro, 9. 1. 1989, p.26. Naturalmente, deve-se levar em conta a origem específica dessa referência na apreciação dessas declarações. 2. "Le refoulement", RevueFrançaise de Psychanalyse, t.L, fasc. l ,jan.-fev. 1986, p.245. 3. "O inconsciente fala, o que o faz depender da linguagem, da qual se sabe muito pouco: apesar daquilo que eu designo como lingüisteria para agrupar aquilo que pretende - coisa nova - intervir nos homens em nome da lingüística." 4. "Sémiologie médicale et sémiologie linguistique, Confrontations Psychiatriques, 19*, 1981, p.55. 5. Recentemente, tomaram parte nesse debate Joel Dor, com um livro justamente intitulado L 'a-scientificité de la psychanalyse (E. Universitaires, 1988) e Gérard Pommier, em La névrose infantÜe de la psychana/yse (Point Hors Ligne, 1989).
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PRIMEIRA VERTENTE
Saussure, Lacan, Freud
INTRODUÇÃO
No "Vôo panorâmico" que abre este livro, apresentei o problema do desconhecimento recíproco, aparentemente absoluto, no qual se mantiveram, em vida, Freud e Sassure. É interessante constatar que, durante muito tempo depois do desaparecimento dos dois protagonistas, operou-se a junção mais estreita entre alguns dos conceitos fundamentais de suas aparelhagens teóricas. O iniciador dessa junção - intercessor tardio entre Saussure e Freud - não é outro senão Lacan. Essa operação comporta, à primeira. vista, um aspecto paradoxal, assinalado imediatamente pela foraclusão mútua à qual, no seu tempo, foram submetidas as duas obras. Lacan estava, sem dúvida, absolutamente consciente desse lado paradoxal. Às vezes, ele o sublinha explicitamente - pelo caráter provocador de algumas comparações - e na maioria das vezes de modo indireto, por certos traços - irônicos, polêmicos, falsamente ingênuos - do estilo que adota para apresentar as relações que lhe parecem impor-se. Detectaremos vários desses traços. Já sabemos que a questão exige a prudência mais meticulosa. É por isso que creio indispensável dar a esta primeira vertente a forma seguinte: 1) No primeiro capítulo, proporei uma (re)leitura do Curso de lingüística geral. Leitura que, admito, pode parecer ambígua, pois não é uma leitura exaustiva. Eliminarei as partes do aparato saussuriano que não foram tocadas por Lacan (por exemplo, os "Princípios de fonologia" ou a "Lingüística geográfica'', a despeito do interesse intrínseco que esses capítulos apresentam para os saussurianos e os lingüistas. Lacan parece não levá-los em conta). Leitura parcial, pois. Assumo-a como tal, com todos os riscos que comporta. Mas nem tão parcial quanto se poderia esperar. Por várias razões, das quais a principal é que a referência de Lacan a Saussure não se limita, como se diz ou se deixa entender freqüentemente, apenas ao conceito de significante. Veremos claramente que, de modo 29
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Saussure, Lacan, Freud
realmente inevitável, Lacan foi levado a introduzir muitos outros aspectos da reflexão saussuriana. Leitura parcial, mas não partidária: o Saussure que apresento não é - pelo menos na minha intenção - um Saussure previamente lacanizado, como acontece às vezes, quando os analistas lacanianos fazem o mesmo trabalho que eu. l A lacanização virá a seu tempo - mas pelos cuidados do próprio Lacan - no segundo capítulo. Esclareço também que não me interessarei pela história do texto de S~ussure por si mesma. Lacan - será que se pode acusá-lo por isso? nao a leva em conta, embora a conheça em suas grandes linhas. 2 Mas não deixarei de aludir, cada vez que for necessário, às discordâncias entre a edição-padrão e o texto das fontes manuscritas. A esse respeito, talvez não se tenha observado bastante uma analogia evidente entre o estatuto dos textos saussurianos e lacanianos. Posso ter dito que Saussure não publicou o qu~ escreveu (os An~grammes e a Légende) e não escreveu o que foi publicado de sua autona (o Curso).3 Lacan é um caso bastante vizinho: o imenso corpus do Seminário não foi publicado por ele, e na maior parte teve uma edição póstuma. 4 O essencial dos dois conjuntos textuais tem como traço comum uma origem oral. Sua edição levantou - e ainda levanta, para ambos, embora de modo mais atual e mais agudo para Lacan - problemas, debates e polêmicas. 2) seg~do capítulo será uma descrição daquilo que, no aparato saussunano, fot abordado por Lacan. Não vou falar aqui - como às vezes se fez -de "distorção" ou de "desvio": os textos mostrarão por si mesmos as evidentes divergências que se cavam entre as duas conceituações, mas tamb~m as não menos evidentes convergências que as unem. . E nesse segundo capítulo que aparecerá Freud,já presente na verdade p~rém ~ais disc~e~amente, no primeiro. Aqui, levantarei u~ problema; nao sena necessano dar-lhe o mesmo estatuto que a Saussure isto é consagrar-lhe também um capítulo prévio, para instalar os elem~ntos d~ seu apa~ato ~ue_ se~ão articulados com os conceitos saussurianos por Lacan? Nao foi a timidez que me deteve. Foi a impossibilidade da operação. De qualquer forma, uma impossibilidade segundo a opinião de Lacan, como ele manifesta de maneira repetitiva, e notadamente neste texto:
?
Desde a origem, desconheceu-se o papel constitutivo do significante no status que F~ud fixou de !mediato para o inconsciente, e segundo as mais precisas modahdades formais (Escritos, p.516).
Ou, mais explicitamente ainda, se é possível, neste outro: O inconsciente, a partir de Freud, é uma cadeia de significantes que em algum lugar5 (numa outra cena, escreve ele) se repete e insiste, para interferir nos
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cortes que lhe oferece o discurso efetivo e a cogitação a que ele dá forma (Escritos, p.812).
Tomando-os ao pé da letra - como se deve fazer- esses fragmentos de "A instância da letra (justamente!) no inconsciente" e de "Subversão do sujeito e dialética do desejo" convidam a ver a noção saussuriana de significante como coextensiva à noção freudiana de inconsciente. Em suma, não se sabe mais aqui se é Saussure que antecipa Freud, ou se - como Lacan dirá depois, e em vários pontos (ver p. 78-9)- é Freud que antecipa Saussure. Para Freud, pois, não há leitura parcial possível: seria a totalidade do aparato ("imediatamente e sob os modos formais mais precisos") que se deveria descrever, para exibir os aspectos - todos, segundo Lacan - que fazem aparecer "o papel constituinte do significante". Assumo pois plenamente o desequilíbrio aparente da apresentação desta primeira vertente: seria de se esperar que houvesse três capítulos e haverá apenas dois. Também assumo a importância particular que é conferida a Saussure. Sei que, verdadeiramente, ela não se deve a uma escolha subjetiva, ligada a uma predileção antiga. Não; ela é proporcional, tão precisamente quanto possível, à importância que Lacan lhe dá efetivamente, mesmo se lhe acontece, nos seus escritos ou declarações, tentar reduzi-la. Nisso, distingo-me da maioria dos analistas que, de algum modo, abordaram o mesmo assunto que eu: de fato, eles têm uma tendência bastante notável a marginalizar a referência a Saussure na reflexão de Lacan. 6 Não desejo imitá-los. Assumo enfim a incompletude do que será enunciado sobre Lacan. Creio que conservei tudo o que lhe vem de Saussure. Mas apenas o que lhe vem de Saussure, levando-se em conta, naturalmente, uma margem cuja amplidão não moderei. Resta ao leitor julgar, pela importância comparada do meu discurso e dos meus silêncios - eles também fazem parte deste livro - qual é exatamente a referência ' a Saussure na totalidade da reflexão lacaniana. Uma última palavra, talvez supérflua: a ordem dos três nomes na formulação do título desta primeira vertente não se deve nem a um grosseiro erro cronológico, nem a uma discutível apreciação de valor. Ela se explica, evidentemente, pelo papel de intercessor desempenhado por Lacan entre Saussure e Freud. ~ NOTAS 1. Na verdade, um erro muito freqüente e pernicioso, pois passa necessariamente desapercebido para os leitores que não conhecem previamente o texto de Saussure. 2. Veremos a precisão das infonnações que ele dá sobre a história da edição do Curso no texto citado na p.76-7.
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3. Escapam naturalmente a essa taxionomia os trabalhos reunidos no Recuei! des publications. Sabe-se que eles são, afinal, pouco numerosos. 4. Só os Seminários J, 2, 11 e 20 foram publicados durante a vida de Lacan. 5. Seria necessário observar que esse uso de "em algum lugar" - com o sentido, preciso aqui, que o seu comentário lhe dá, pela alusão à "outra cena" de Freud - é no entanto o étimo do em algum lugar repetitivo (e freqüentemente menos preciso) que prolifera não só no discurso psicanalítico, mas também, por contágio, no discurso dos leigos? 6. Poderia dar muitos exemplos, diversamente caracterizados. Já citei, no "Vôo panorâmico", o caso de J.-D. Nasio. Por sua vez, E. Roudinesco, na sua obra sobre Lacan, despacha em algumas linhas - não propriamente inexatas, mas inevitavelmente sumárias e incompletas - o quadro teórico saussuriano (p.354-5). Darei aqui outro testemunho. O autor tem o mérito, ao contrário de muitos outros, de ser plenamente explícito: Pierre Bayard interroga "se, a despeito das aparências, Saussure teve afinal um papel tão grande assim na elaboração da teoria lacaniana do signo" (resenha de Arrivé, Linguistique et psychanalyse, Cahiers pour la Recherche Freudienne, 2, 1987, p.113 ). Aliás, deve-se observar que, quanto ao signo, ele tem razão (ver a seqüência). Mas o que importa não é, evidentemente, a teoria lacaniana do signo: é a teoria lacaniana do significante. E nesse ponto, toma-se definitivamente dificil afastar Saussure. Seria interessante investigar as origens dessa ocultação, que será reencontrada a propósito de Damourette e Pichon.
I Ü CURSO DE LINGÜÍSTICA GERAL: UMA RELEITURA
Não hesito em confessar: até sonhei. Sim, sonhei reconstituir a leitura feita por Lacan do CLG no momento em que, no início dos anos 50, ele se prepara para operar a mutação que depois ele designa assim: (... )a psicanálise deve mostrar-se um advento no acesso ao significante, e de tal modo que possa repensar a sua própria fenomenologia.
A origem desse texto não é indiferente. Ele provém do artigo em homenagem a Merleau-Ponty - sobriamente intitulado "Maurice Merleau-Ponty" - publicado por Lacan em 1961, no fascículo especial de Temps Modernes consagrado ao autor de Signes, que acabava de falecer.! A insistência- quase exclusiva - no conceito de significante, feita nesse texto de homenagem, é um índice do papel de intercessor entre Saussure e Lacan que Merleau-Ponty desempenhou, sem dúvida alguma.2 Mas logo parei de sonhar. E rapidamente renunciei a reconstituir a leitura de Saussure por Lacan. O que proponho aqui é, mais modestamente, uma leitura de Saussure, capaz, talvez, de esclarecer certos aspectos da leitura que dele faz Lacan. Resta uma questão: por onde começar? É a pergunta que se faz, implícita, ou em geral mais explicitamente, todo leitor de Saussure que empreende um relatório da sua leitura.3 Hesitação exatamente idêntica à que dominava Saussure no momento em que pensava em apresentar, sob forma de obra, as suas reflexões lingüísticas: Seria necessário, para apresentar convenientemente o conjunto das nossas proposições, adotar um ponto de partida fixo e definido. Mas tudo o que tendemos a estabelecer é que é falso admitir, em lingüística, um único fato como definido em si (Engler, 1989, p.25). 33
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De todos os lados, é a mesma hesitação, pouco surpreendente. Ela é determinada, em Saussure, pela sistematicidade, no sentido forte da palavra, do objeto a ser descrito: algo só é válido por suas relações com o resto. Ela tem como origem, entre os seus leitores, a sistematicidade - de acordo com a do objeto descrito - do discurso saussuriano: cada um dos seus segmentos só tem sentido nas suas relações com os outros. Já me interroguei sobre a questão do ponto de partida em 1970, no momento em que apresentei, para fins didáticos, o Curso de lingüística geral (que designarei como CLG), em uma obra de iniciação à lingüística (La grammaire, lectures). Interrogo-me novamente hoje, todavia em termos modificados - na verdade, um tanto complicados - pela intenção que me dirige doravante: reter, do CLG, tudo o que é "importado" por Lacan, mas nada mais. Ir até onde, nesse trabalho de exclusão? Precisamente até o ponto em que os conceitos saussurianos, isolados do sistema que constituem, se tomariam incompreensíveis. É o que explica a presença aparentemente paradoxal, no inventário argumentado que se segue, de certos conceitos que Lacan não ~tiliza - ou, às vezes, não utiliza nomeadamente.
Sistema de signos e semiologia O melhor talvez seja começar pelos dois gestos saussurianos que se revelam propriamente inseparáveis: a definição da língua como sistema de signos e a instalação da semiologia. A semiologia é, para Saussure nos anos do Curso, uma preocupação já antiga. Desde 1901, Adrien Naville, seu colega na Universidade de Genebra, se refere a ele para situar a semiologia na sua Nouvelle classification des sciences: no seio da sociologia, ela engloba a lingüística: O sr. Ferdinand de Saussure insiste na importância de uma ciência muito geral, que ele chama de semiologia, e cujo objeto seriam as leis da criação e da transformação dos signos e de seus sentidos. A semiologia é uma parte essencial da sociologia. Como o mais importante dos sistemas de signos é a linguagem convencional dos homens, a ciência semiológica mais avançada é a lingüística, ou ciência das leis da vida da linguagem (Nouvelle classification des sciences, segunda edição,4 1901, p.104 ).
Tal como aparece no CLG, a semiologia tem uma figura bastante semelhante, pelo menos na sua estrutura interna: Pode-se conceber uma ciência que estuda a vida dos signos no seio da vida social; ela formaria uma parte da psicologia social, e por conseguinte da psicologia geral; nós a chamaremos de semiologia (do grego semeion, "signo"). Ela nos diria em que consistem os signos, que leis os regem. Já que
O Curso de lingüística geral: uma releítura
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ela ainda não existe, não se pode dizer o que ela será; mas ela tem direito à existência, seu lugar está previamente determinado. A lingüística é apenas uma parte dessa ciência geral; as leis que a semiologia descobrir serão aplicáveis à lingüística, e esta se encontrará assim ligada a um campo bem definido no conjunto dos fatos humanos (p.33).s
Como se vê, a semiologia de 1916 não se confunde inteiramente com a que Naville citava em 1901: Saussure a liga à psicologia e não à sociologia. Principalmente, não lhe dá o alcance histórico que lhe confere Naville.6 Aqui, é preciso ter cuidado com a metáfora da vida, capaz de prestar-se a uma interpretação histórica. Não é nada disso; a metáfora mais discreta, aliás, nas notas dos ouvintes - visa aqui o funcionamento dos signos. É o que é garantido pelas precisões previamente dadas sobre o objeto da lingüística: signos, certamente, mas nos sistemas que eles constituem e dos quais são inseparáveis: A língua é um sistema de signos que exprimem idéias, e por isso é comparável à escrita, ao alfabeto dos surdos-mudos, aos ritos simbólicos, às fórmulas de polidez, aos sinais militares etc. etc. Ela é apenas o mais importante desses sistemas (p.33).
Como acontece freqüentemente no CLG, um ponto fundamental é introduzido sem barulho: o laço indissolúvel entre a noção de signo e a de sistema. Para Saussure, não há signos fora dos sistemas que eles constituem. Veremos logo a força dessa exigência, que ditará imperativamente a forma dada à minha descrição. Na instalação da semiologia que ele acaba de fazer, é preciso, evidentemente, ler sempre a palavra signos como estenografia de sistema de signos. E a vida destes não é a sua evolução no tempo, mas o modo pelo qual eles funcionam "no seio da via social". Quanto à lista de exemplos que ele dá, notam-se dois tipos e sistemas de signos: os primeiros ("a escrita, o alfabeto dos surdos-mudos") são derivados de um sistema de signos primeiro, o da língua, que eles têm por função manifestar em outra substância, visível (as letras e os gestos), ao invés de ser audível (os sons da voz). Os três outros exemplos-mas sua lista permanece aberta, através de um insistente "etc." repetido7 - são os dos sistemas de signos não-lingüísticos, e a novidade determinante do CLG consiste em fazer deles também possíveis objetos da futura semiologia: sabemos que esta terá que esperar uns bons quarenta anos para encontrar efetivamente, pelos cuidados sucessivos de Greimas e de Barthes, 8 "o lugar ( ...) determinado previamente" (p.33) que Saussure lhe atribuía.
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Saussure, Lacan, Freud
O Curso de lingüística geral: uma releilura
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Linguagem, língua e fala
Previamente, o texto procedeu à oposição entre língua e fala:
Assim, a língua, sistema de signos específicos - "o mais importante desses sistemas" - é o objeto da lingüística, que, ela própria, está integrada à semiologia. Resta especificar esse objeto, notadamente distingui-lo da linguagem. O problema é fundamental, não só para o aparato teórico de Saussure, mas ainda para a leitura que dele faz Lacan: a tese do "inconsciente estruturado como uma linguagem" exige, evidentemente, a identificação precisa do que é essa "uma linguagem", com um artigo indefinido que cria problema. Não seria ela vizinha da língua saussuriana? Isso significa até que ponto importa estar atento, em Saussure, à distinção que se estabelece entre esses dois conceitos. E a que ponto convirá estar atento, em Lacan, aos contornos precisos do conceito de linguagem. Para Saussure, o primeiro ponto a sublinhar é que a língua está integrada à linguagem:
Separando a língua da fala, separam-se ao mesmo tempo: 1) o que é social do que é individual; 2) o que é essencial do que é acessório ou mais ou menos acidental (p.30).
Mas o que é.a língua? Para nós, ela não se confunde com a linguagem: ela é apenas uma parte determinada da linguagem, essencial, é verdade. É ao mesmo tempo um produto social da faculdade da linguagem e um conjunto de convenções necessárias, adotadas pelo corpo social, para permitir o exercício dessa faculdade entre os indivíduos. Tomada no seu todo, a linguagem é multiforme e heterogênea, situada em vários campos; ao mesmo tempo física, fisiológica e psíquica, pertence ao domínio individual e ao domínio social; não se deixa classificar em nenhuma categoria dos fatos humanos, porque não se sabe como depreender a sua unidade. A língua, ao contrário, é um todo em si e um princípio de classificação. Logo que lhe damos o primeiro lugar entre os fatos de linguagem, introduzimos uma ordem natural em um conjunto que não se presta a nenhuma outra classificação (p.25).
Assim, no âmbito dessa/acuidade que é a linguagem, capaz de tomar aspectos "multiformes e heterogêneos", que não a deixam ser definida com precisão, "a língua é um todo". Evidentemente, resta identificar o objeto que, acrescentado ao todo da língua, vai constituir o não-todo (perdoem essa antecipação lacaniana) da linguagem saussuriana. · Esse objeto, Saussure o chama de fala. As relações entre língua e fala no seio da linguagem são recapituladas de modo plenamente explícito: Evitando estéreis definições de palavras, distinguimos inicialmente, no seio do fenômeno total que a linguagem representa, dois fatores: a língua e a fala. A língua é para nós a linguagem menos a fala. Ela é o conjunto dos hábitos lingüísticos que permitem a um sujeito compreender e fazer-se compreender (p.112).
Não complicarei a questão mencionando as fontes manuscritas, bastante diferentes do texto da edição-padrão: elas introduzem, nessa oposição de dois conceitos, não a língua e a fala, mas a língua e "a faculdade da linguagem" (Engler, p.41 ). A fala intervém posteriormente, visivelmente como fator que permite o exercício dessa faculdade: A faculdade da linguagem é um fato distinto da língua, mas que não pode se exercer sem ela. Por fala designa-se o ato do indivíduo que realiza a sua faculdade por meio da convenção social que é a língua.
Mas Lacan não conheceu esses textos. E é pouco contestável que Saussure estabeleça uma hierarquia entre língua e fala: a primeira é "essencial", a segunda "acessória". Mas nesse ponto, deve-se evitar um erro. O erro que consiste em dizer que Saussure exclui do campo da lingüística tudo o que é utilização pelo "sujeito falante" do código da língua. É um erro freqüente. Citarei apenas um exemplo: A resposta de Saussure [... ]era que a lingüística devia se limitar ao estudo da língua em si e por si mesma (Cervoni, 1987, p.9).
Essa posição é contrariada de modo absoluto pelo CLG. Saussure não modifica a hierarquia que estabeleceu entre língua e fala. Até a reafirma com ênfase. Mas toma o cuidado de intitular um capítulo da Introdução como "Lingüística da língua e lingüística da fala'', sem se deixar deter pela estranha figura quase oximórica da expressão "lingüística da fala": é que aqui o termo lingüística deve ser tomado no sentido extensivo de "ciência da linguagem". Por isso, a lingüística é autorizada a encarregar-se dos dois componentes: da língua, sem dúvida, mas também da fala. Daí a precisão terminológica final, decisiva: A rigor, pode-se conservar o nome de lingüística para cada uma dessas duas disciplinas e falar de uma lingüística da fala. Mas não se deve confundi-la com a lingüística propriamente dita, da qual a língua é o único objeto (p.38-9).
Temos aqui, claramente, a instauração da lingüística da enunciação, sob o nome de lingüística da fala.
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E que não se venha argumentar com o retomo poderoso, no CLG, da hierarquia estabelecida entre as duas lingüísticas e com as restrições (a rigor, a lingüística propriamente dita) que ele faz ~m relação à segu~da, pois essas restrições vêm dos editores e o curso efetivamente pronunciado por Saussure lhes dá uma forma muito mais ate_nuad~, ou até as a~ula completamente. Assim, os cadernos de Constantm registram o segumte texto: Como dissemos, é o estudo da língua que perseguimos, quanto a nós. Dito isso não se deve concluir que na lingüística da língua nunca se deva lançar um ~lhar sobre a lingüística da fala. Isso pode ser útil, mas é um empréstimo ao campo vizinho (Engler, p.58-9).
Aqui, não há mais restrição, nem mesmo hierarquização entre as duas lingüísticas. Simplesmente a distinção de dois campos vizinhos, e a decisão de ficar com um deles. Nada se diz sobre as razões dessa limitação. Seria arriscado. ver nisso apenas a pressão da urgência epistemológica? O que se impõe da maneira mais imperiosa à lingüística, ~al como é ~oncebi~a por Saussure, é o estudo da língua. Mas ele tem o cuidado de nao excluir a fala da sua área. Em suma, ele prevê o lugar da lingüística da fala do mesmo modo - só um pouco menos explícito - que situa previamente a semiologia no inventário das ciências. Benvei;iiste, ao que me parece, não se enganará, embora seja muito discreto. E preciso detectar a sua posição em fatos de léxico, eles próprios confundidos pela polissemia do termo fala. Entretanto, é pouco contestável que em muitos pontos ele é utilizado como equivalente de enunciação, por exemplo nesta bela definição de blasfêmia: A blasfêmia é inteiramente um processo de fala; ela consiste, de certo modo, em substituir o nome de Deus pelo ultraje a ele (PLG, II, p.254-5; outros exemplos, p.82 e 200).
Ao contrário de muitos lingüistas, Lacan também não se enganará, e reconhecerá a importância da fala na reflexão de Saussure. Como surpreender-se com esse fato, tratando-se de um psicanalista, para quem o exercício da fala é uma coisa tão fundamental? Resta que, embora -declarada legítima, a lingüística da fala só é abordada por algumas fugitivas alusões no CLG. Convém pois voltar à língua, e portanto à noção de sistema de signos. Necessariamente, farei isso em dois tempos: é indispensável descrever primeiro os signos, para considerar em seguida a, forma dos sistemas que eles constituem.
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O signo saussuriano O que é o signo para Saussure? É preciso come?ar por u~ gesto de exclusão: o da "coisa", designação saussuriana daquilo que, mais tarde, os lingüistas chamarão de referente: O signo lingüístico une não uma coisa e um nome, mas um conceito e uma imagem acústica (p.98).
A concepção rejeitada é ilustrada por um esquema, que representa uma árvore e um cavalo diante das palavras latinas arbor e equos (forma arcaica de equus), que lhes correspondem. Veremos na p.102 o uso que Lacan faz desse esquema. Essa exclusão da "coisa" - Saussure, em suas notas, fala, mais explicitamente ainda, dos "objetos designados" (Engler, p.148) - é a conseqüência imediata da recusa de conceber a língua como uma "no1!1-en,~ clatura, isto é, uma lista de termos correspondentes a outras tantas coisas (p.97). Não, certamente, que o problema das relações entre li~~uagem e realidade seja desconhecido de Saussure. Ele o apresenta exphc1tamente, para observar a sua complexidade: Essa concepção [a língua como nomenclatura] deixa supor que o laço que une um nome a uma coisa é uma operação muito simples, o que está longe de ser verdade (p. 97).
O termo "operação" diz claramente: o que é mencionado aqui é o processo lingüístico pelo qual o referente é assumido pelo signo. Temos pois um esboço da teoria saussuriana da referenciação. Não se deve estranhar que esse esboço permaneça no seu estado deliberadamente lacunar: a "operação" pela qual os "objetos" são "designados" depende da fala. Ela pertence realmente à lingüística, mas à lingüística da "fala", a qual, como acabamos de ver, Saussure exclui do seu projeto, mesmo afirmando a sua legitimidade. Assim, o referente é rapidamente descartado. Demasiado rapidamente, talvez: veremos depois que ele ressurge de modo pouco esperado e, talvez, não completamente controlado (ver p.42-3). Mas, por enquanto, está foracluído. Assim, estão em presença apenas os dois componentes do signo: o "conceito" e a "imagem acústica": "O signo lingüístico é pois uma entidade psíquica de duas faces, que pode ser representada pela figura
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Conceito Imagem acústica (p.99).9
É nesse ponto que intervém, de maneira determinante, uma inovação simultaneamente terminológica e conceituai. Ela consiste em "substituir conceito e imagem acústica respectivamente por significado e significante" (p.99). Assim, as duas "faces" perdem tudo o que lhes restava de característica substancial própria: pois era realmente um caráter substancial que, por exemplo, o adjetivo acústico expressava, mesmo que Saussure insiste nesse ponto (p.98 e mais ainda nas fontes manuscritas)não se trate da substância fisica do som, mas da sua "marca psíquica". O signo é pois finalmente definido como a "totalidade" constituída pela associação do significado e do significante. E a prudência didática de Saussure o leva a observar enfim que é apenas por falta de coisa melhor que ele se "contenta" com a palavra signo para designar essa associação, a despeito do uso corrente do termo, que faz dele um substituto aproximado de significante: Quanto a signo, se nos contentamos com esse termo, é por não sabermos como substituí-lo, já que a língua usual não sugere nenhum outro (p. 99-100).
Aqui, devemos fazer um breve parêntese, para assinalar que o esquema do signo saussuriano assume, na versão corrente do CLG, constantemente a mesma forma, 1o a que foi reproduzida acima, com a única diferença da substitução de conceito por significado e de imagem acústica por significante. Invariavelmente, portanto, as particularidades desse esquema são repetidas ao longo do CLG. Assinalo as mais importantes. Por um lado, os dois componentes do signo são separados por uma reta. Para Saussure, era o único meio de marcar graficamente ao mesmo tempo a sua necessária distinção e a relação que se estabelece entre eles. Veremos depois o destino que Lacan reserva para essa linha. Digamos apenas que ela é oportunamente rebatizada como "barra" por ele ... Segundo aspecto do esquema: a célula reservada ao significado é constantemente colocada acima da célula do significante. Essa disposição específica teria para Saussure alguma pertinência? Tudo indica que não: leremos depois, a
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respeito da célebre metáfora da folha de papel, que Saussure aceita facilmente inverter a frente e o verso. É verdade que as fontes manuscritas nunca dão um esquema invertido. Mas, em vários pontos (ver por exemplo Engler, 1990, p.36), o esquema é apresentado verticalmente, e até sob a forma de um retângulo atravessado por uma barra oblíqua. Sabemos que Lacan, na sua apresentação do "algoritmo do signo saussuriano", inverterá o esquema, colocando invariavelmente o S (sic, maiúsculo e redondo) do significante acima dos (sic, minúsculo e itálico) do significado. Naturalmente, cabe indagar a função dessa mutação, que, como se pode supor, não é indiferente. Volto a Saussure. Assim definido, o signo é regido por dois "princípios": a "arbitrariedade do signo" e o "caráter linear do significante". Essas duas noções serão conservadas, em condições diferentes, por Lacan. Convém pois ter uma dupla cautela. Primeiro, é preciso notar a defasagem que se insinua entre esses dois princípios. O primeiro afeta o signo na sua totalidade, isto é, necessariamente, a relação entre as suas duas faces. O segundo, pelo menos como é formulado no seu primeiro estado (p.103), só se refere ao significante, com a exclusão do significado: como se fosse possível separar as duas faces. Pois atribuir a uma das faces uma propriedade que é recusada à outra não é separá-las? Como veremos melhor em outra ocasião (ver p.59), Saussure aceita muito bem uma operação que, entretanto, ele apresenta como impossível. A arbitrariedade do signo - Na formulação teórica que faz do "primeiro princípio", Saussure é plenamente explícito: é realmente entre. as duas faces do signo que se situa a relação "arbitrária": O vínculo que liga o significante ao significado é arbitrário, ou ainda, já que entendemos por signo o total resultante da associação de um significante com um significado, podemos dizer mais simplesmente: o signo lingüístico é arbitrário (p.100).
As notas dos ouvintes são tão explícitas quanto o texto definitivo e mostram que Saussure até tomou o cuidado, para assinalar o caráter "radical" do princípio, de retranscrevê-lo na terminologia que acaba de abandonar: O vínculo que liga uma imagem acústica dada a um conceito determinado e que lhe confere o seu valor de signo é um vínculo radicalmente arbitrário (Engler, p.152).
Resta provar essa afirmação. Saussure o faz imediatamente. O exemplo que ele dá mostra que permanece fiel à sua formulação inicial:
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Vemos que Saussure, durante a sua argumentação, passou da arbitrariedade entre o significante e o significado para a arbitrariedade entre o signo e o referente. Esse fato foi logo detectado por Edouard Pichon, que o assinalou com o seu vigor habitual:
Mas como provar essa ausência de "concordância interior", pois precisamente o significado "soeur" não tem em francês outro significante a não ser s-o-r? A única solução parece recorrer a outra língua, e Saussure continua sem hesitação:
[... )o signo é arbitrário, pois um significante tal como b-õ-fnão tem nenhuma relação com o seu significado. A possibilidade de expressar em alemão o mesmo significado pelo significante o-k-s é realmente a prova desse caráter arbitrário (cw, p.102). Não é necessário ir mais longe; o erro de Saussure é, na minha opinião, evidente. Ele consiste no fato de que Saussure não se dá conta de que introduz no curso da demonstração elementos que não estavam no enunciado. Define primeiro o significado como sendo a idéia geral de boi; depois, comporta-se como se esse significado fosse o objeto chamado boi, ou pelo menos a imagem sensorial de um boi ... Ora, essas são duas coisas completamente diferentes.
Vemos a derrapagem que o raciocínio sofreu: passar de uma língua para outra para provar, em uma delas, a arbitrariedade do signo, é supor que o significado de "boeuf' é exatamente idêntico ao de "Ochs". Isso está em plena contradição com as posições mais explícitas defendidas, pouco antes, pelo próprio Saussure: se ele afastou a concepção da língua como "nomenclatura", é precisamente porque "ela supõe idéias já constituídas, preexistentes às palavras" (p.97). Nas fontes manuscritas, ele até nega explicitamente a possibilidade de correspondências exatas entre signos de línguas diferentes: Se as idéias fossem predeterminadas no espírito humano antes de serem valores de língua, uma das coisas que aconteceria forçosamente é que os termos de uma língua corresponderiam exatamente aos de outra. francês alemão cher lieb, theuer (também moral) Não há correspondência exata (Engler, p.262).
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Assim, a idéia de soeur• [isto é, o significado, M.A.] não está ligada por nenhuma relação interior com a seqüência de sons s-o-r que lhe serve de significante; elel 1 poderia também ser representado por qualquer outra (p.100).
A pr~~a disso são as diferenças entre as línguas e a própria existência de línguas diferentes: o significado "boeuf'** tem como significante b-o-:fde um lado da :fronteira e o-k-s (Ochs) do outro (p. l 00).
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Se não há "correspondência exata" entre cher e lieb, por que haveria entre boeufe Ochs? O significante boeufem Ça fait un ejfet boeu/** não se traduz em alemão por Ochs, assim como o significante Ochs emEr steht wle der Ochs am Bergel2 não se traduz por boeuf É verdade que, em muitos casos, os dois significantes se traduzem reciprocamente; é que o acaso faz com que os signos que eles manifestam assumam o mesmo referente, ou, em termos saussurianos, "designem a mesma coisa".
Um pouco abaixo, Pichon precisa: Se é realmente verdade que há bois na Alemanha como na França, não é verdade que a idéia expressa por [o-k-s] seja idêntica à expressa por [b-õ-f].
Ao mesmo tempo lúcidas e virulentas, essas críticas são extraídas do artigo sobre "La linguistique en France: problemes et méthodes", publicado em 1937 no Journal de Psychologie Norma/e et Pathologique (p.26 o primeiro fragmento, p.27 o segundo) - leitura possível do jovem Lacan, que, desde essa época, conhecia o seu ilustre antecessor e talvez a sua obra. 13 Dois anos depois, no primeiro número da revista dinamarquesa Acta linguistica, Benvenite formula críticas muito semelhantes: [Saussure] declara, nos seus próprios termos (p.100) que o signo lingüístico une não uma coisa e um nome, mas um conceito e uma imagem acústica. Mas afirma, logo depois, que a natureza do signo é arbitrária porque ele não tem, com o significado, nenhuma ligação natural na realidade. ' 4 E claro que o raciocínio se toma falso pelo recurso inconsciente e sub-reptício a um terceiro termo, que não estava compreendido na definição inicial. Esse terceiro termo é a própria coisa, a realidade[.. .]. Quando ele fala da diferença entre b-o-f e o-k-s, refere-se sem querer ao fato de que esses dois termos se aplicam à mesma realidade. Aí está pois a coisa, expressamente excluída, de início, da definição do signo, e que se introduz nela porum desvio, instalando permanentemente a contradição (in PLG, 1, p.50).
* "lnnã", em francês. (N.T.)
** "Boi", respectivamente em francês e em alemão. (N.T.) ***
Literalmente, "isso faz um efeito boi", ou seja "isso dá um efeito estrondoso''. (N.T.)
Não discutirei o pequeno problema histórico da convergência- cuja precisão teremos apreciado - dessas duas críticas, que não são exata-
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mente contemporâneas. Limito-me ao problema teórico que ambas levantam. Em uma palavra: elas são incontestáveis. É evidente que Saussure escorregou do significado para o referente, e com isso caiu, sem perceber, na concepção previamente rejeitada da língua como nomenclatura. · É preciso dizer que ele tem desculpas. Pois embora o signo seja exclusivamente constituído do significante e do significado, é efetivamente necessário que, de alguma forma, o significado tenha alguma relação com o referente: a mais "imanente" das semânticas nunca consegue eliminar completamente o fato de que um referente d~ve apresentar traços compatíveis com os do significado que o assume. E o problema, muito claramente apresentado por Georges Kleiber, da relação entre a categorização (presente no significado) e a denominação, operação pela qual o sujeito designa os referentes: "Quais são os critérios que permitem utilizar, por exemplo, a denominação cão para um cão?" (La sémantique du prototype, p.17).15 Mas, ao invés de interrogar os lingüistas-que estão mergulhados nesse problema desde as origens da reflexão sobre a linguagem - talvez. seja melhor apelar, por antecipação, para um personagem relativamente ingênuo quanto à semântica. Lacan - pois é ele, uma vez na vida, que fará o papel de ingênuo - levanta o problema a respeito do elefante e da girafa. (Decididamente, ficamos na zoologia.) Ele diz, de maneira um tanto lúdica: 1
QJundªITI~llto mesmo da estrutura da linguagem é o significante, que é •,/sempre,rriaterlàl·e que reconhecemos em Santo Agostinho no verbum, e o significado. Tomados um a um, estão numa relação que parece estritamente arbitrária. Não há mais razão para chamar à girafa girafa e ao elefante elefante, do que para chamar à girafa elefante e ao elefante girafa. Não há nenhuma razão para não dizer que a girafa tem uma tromba e que o elefante tem um pescoço muito longo. Se é um erro no sistema geralmente recebido, não é possível ser detectado, como observa Santo Agostinho, enquanto as definições não estão colocados. E o que é mais dificil do que colocar as justas definições? (Seminário 1, p.300).
Como vemos, Lacan, como Saussure, situa primeiro a arbitrariedade entre o significante e o significado. Sem o menor equívoco;16; Mas a seqüência da sua análise o leva imediatamente a introduzir, tarhbém ele, o referente. Gesto quase inevitável: se elefante é o significante de "girafa", o elefante (o da savana ou do Jardim Zoológico de Vincennes, o "objeto designado", a "coisa", o referente enfim) tem necessariamente o pescoço muito comprido. O isomorfismo necessário do significado e do referente explica a derrapagem que faz Saussure escorregar- e Lacan depois dele, e Santo Agostinho antes dos dois - do primeiro para o segundo. Nos termos de Milner, eles passam, um atrás do outro, da referência virtual -
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"a significação léxica", isto é, o significado - para a referência atualque permite ao signo designar a "coisa" (1989, p.336). De qualquer forma, mesmo sendo completamente explicável, a derrapagem está presente, e incontestavelmente prejudica a demonstração, a ponto de lhe tirar toda pertinência. O que significa isso? Apenas que o princípio da arbitrariedade continua não-demonstrado. Seria ele demonstrável? Milner tenta demonstrá-lo, contra Benveniste, mas a meu ver sem conseguir, como também não conseguiu Saussure. Deve-se confessar que o seu raciocínio é elegante, pois visa reintroduzir entre o significante e o significado a relação previamente colocada entre o signo e a coisa:
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O som, também ele, pertence como tal à ordem das coisas, e do mesmo modo a idéia, ou significado. De maneira que, segundo o dualismo, o vínculo que os reúne como coisas não pode ter nada de comum com o vínculo que os reúne como faces de um signo: nenhuma causa referente ao primeiro pode operar sobre o segundo. Assim, a arbitrariedade não governa somente a relação da coisa significada com o signo, mas também a relação do significante com o significado - ao contrário do que defendia Benveniste em um artigo célebre ( 1978, p.58).
Já observamos: se o termo idéia está correto embora incompletamente comentado por significado, o termo som fica carecendo de toda glosa. É porque é efetivamente impossível-no aparato saussuriano 17 - assimilálo ao significante. Sem levar em conta aqui a evolução da reflexão de Saussure (ver p.58), é preciso citar este fragmento decisivo: É impossível que o som, elemento material, pertença por si mesmo à língua [... ] Na sua essência, [o significante] não é de modo nenhum tônico, é incorpóreo, constituído não pela sua substância material, mas unicamente pelas diferenças que separam a sua imagem acústica de todas as outras ( CLG, p.164).
Assim, o raciocínio de Milner fica prejudicado: para falar apenas dele, 18 o significante saussuriano, que não é um som, não é pois uma coisa, e não poderia ser atingido por um princípio que só vigora entre coisas e signos. Ele não é nem um nem outro. Na verdade, parece que, se o princípio da arbitrariedade é indemonstrável, ocorre o mesmo com o princípio inverso. Cada um do seu lado, Pichon e Benveniste fracassam, mais ou menos do mesmo modo. Para citar apenas o segundo, a formulação do princípio é firme: Entre o significante e o significado, o vínculo não é arbitrário; pelo contrário, é necessário (PLG, 1, p.51 ).
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Mas a demonstração é fraca: O conceito ("significado") "boeuf' é forçosamente idêntico, na minha consciência, ao conjunto fônico bOf Como poderia ser diferente? Juntos os dois foram impressos no meu espírito; juntos eles se evocam em qual quer circunstância. Há entre eles uma simbiose tão estreita que o conceito "boeuf' é como que a alma da imagem acústica bO/(ibid.).
Eu disse demonstração fraca? Não exatamente. Em si mesma, a análise é indiscutível. Mas ela não diz nada em favor da "necessidade" da relação entre as duas faces do signo. Ela apenas repete, de modo muito saussuriano, a relação de pressuposição recíproca - a que é figurada pela célebre metáfora da folha de papel - entre significante e significado. Ela é neutra em relação à questão da arbitrariedade ou da necessidade. Mais recentemente, Maurice Toussaint (1983), tão convincente quando se trata de combater os arbitraristas, mostra-se afinal muito sucinto quando se trata de demonstrar positivamente a necessidade da relação entre as duas faces do signo. Um princípio não demonstrado é um postulado. Saussure, é verdade, não o apresenta assim, aparentemente satisfeito com a "demonstração" que acredita ter feito. Mas na verdade ele poderia, sem prejuízo, contentar-se, para o seu primeiro princípio, com o estatuto de postulado: é o que aparecerá, na página 55 e depois na página 65, quando se perceber que a arbitrariedade do signo tem por função essencial permitir apresentar o conceito de valor. Assim se explica talvez o relativo descuido com qual Saussure trata o problema da arbitrariedade quando se trata de só estudá-lo no seio do signo. Descuido a meu ver detectável nos três traços seguintes: - a incontestável falta de lucidez que domina a "demonstração"; - a não menos incontestável leviandade com que Saussure considera ' as opiniões formuladas sobre o problema. Ele até diz que "o princípio da arbitrariedade do signo não é contestado porninguém" (p.100). No essencial, isso é correto quanto à sua época, e Saussure conhece muito bem a dívida que contraiu, sobre esse problema, com Whitney, um dos raros lingüistas citados no CLG.19 Mas isso é esconder o mar de opiniões contrárias que, em muitos momentos da história da reflexão sobre a linguagem, foram formuladas sobre o problema, começando por Platão, no Crátilo, acabando (?) sessenta anos depois do CLG, com Maurice Toussaint e seu livro, que tem um título inequívoco: Contra a arbitrariedade do signo;
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- a labilidade da terminologia utilizada por Saussure para opor signos arbitrários e objetos semiológicos motivados.20 De fato, no Curso, Saussure põe diante do signo, definido pela arbitrariedade, o símbolo, que "tem como caráter nunca ser totalmente arbitrário" (p.101) ... Como sabemos, Saussure exclui o símbolo do inventário dos objetos lingüísticos. É o objetivo da longa retificação a respeito das "onomatopéias" e das ."exclamações" (p.101-2): elas são apenas aparentemente simbólicas. E que a língua é um sistema de signos, sem contaminação pelo símbolo. A repartição conceituai e terminológica é, no CLG, de um rigor e de uma constância absolutos, sem nenhum dos lapsos que, aqui e ali, dizem signo ao invés de significante. Mas, na outra parte da sua reflexão semiológica, a que se refere às lendas germânicas, Saussure não se atém a essa oposição e utiliza sem hesitar o termo símbolo para designar um objeto construído a partir do modelo do signo (ver o texto citado na nota 7). Por que esse descuido? Saussure quase explica. Imediatamente depois de apresentar, de modo tão discutível, a unanimidade das opiniões formuladas sobre a arbitrariedade do signo, ele diz: [... ]mas muitas vezes é mais fácil descobrir uma verdade do que atribuir-lhe o lugar que lhe cabe. O princípio enunciado acima domina toda a lingüística da língua;21 suas conseqüências são inúmeras. É verdade que elas não aparecem todas da primeira vez com uma igual evidência; é depois de muitos desvios que as descobrimos, e com elas a importância primordial do princípio (p.100).
Não se poderia sugerir melhor que o princípio tem menos importância pela figura interna que ele confere ao signo do que pelo lugar que ele toma no conjunto da reflexão lingüística. Voltarei em breve a esse ponto.
O caráter linear do significante - Por mais litigioso que seja o primeiro princípio, ele é superado em dificuldade e em ambigüidade pelo segundo. Desta vez, é sobre dois problemas sucessivos que as contradições vão se manifestar. Primeiro, é preciso observar que as análises dadas no CLG parecem, inicialmente, manter a discordância previamente estabelecida entre as designações dos dois princípios: a "arbitrariedade do signo" e o "caráter linear do significante": O significante, sendo de natureza auditiva, se desenrola apenas no tempo e tem os caracteres que ele tira do tempo: a) representa uma extensão e b) essa extensão é mensurável em uma só dimensão: é uma linha (p.l 03 ).
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Segundo esse fragmento, é realmente o significante, e apenas ele, que é afetado pelo "caráter linear". São os "significantes acústicos", ou seja, os "elementos", que servem para constituir as "unidades" (isto é, os "signos", por exemplo as "palavras") da língua, que se encadeiam de modo linear. Como poderia ser de outra forma, visto que, como se dirá depois (p.170), é impossível "pronunciar dois elementos ao mesmo tempo"?22 Reflexo secundário, mas não menos significativo, dessa linearidade temporal: a linearidade espacial que afeta inevitavelmente os "signos gráficos", quando estes substituem os "significantes acústicos". Efetivamente, aqui Saussure não hesita em recorrer à escrita - em outras situações depreciada - para dar um apoio suplementar ao seu segundo princípio: [... ] os significantes acústicos só dispõem da linha do tempo; seus elementos se apresentam um depois do outro; formam uma cadeia. Esse caráter aparece imediatamente logo que são representados pela escrita e logo que se substitui a sucessão no tempo pela linha espacial dos signos gráficos (p.103 ).
Vemos qu~ a linearidade do significante não é nada mais do que a submissão ao tempo dos "significantes acústicos", também chamados "elementos". Aqui, convém insistir, a fim de anunciar um outro problema dificil: com o caráter linear do significante, estamos diante de um modo de intervenção do tempo na linguagem. Veremos depois que há outro: a diacronia. A distinção entre linearidade e diacronia parece, à primeira vista, fácil. Demasiado fácil: percebemos logo que a fronteira que as separa não é estanque. De modo que as confusões que podem se estabelecer não são todas completamente ilegítimas. Veremos que Lacan, confundindo-se um pouco no terreno vago onde se encontram essas duas noções, interroga com pertinência um ponto central do aparato saussuriano. Vamos esperar a entrada em cena da diacronia para tratar desse problema, e fiquemos por ora apenas com a linearidade. Em outro ponto do Cur~o (p.145), encontrà-se uma nova alusão, muito rápida, ao caráter linear. E que os editores, talvez preocupados em evitar uma repetição, ou sensíveis à extrema dificuldade do problema, reduziram a duas linhas (acompanhadas de uma referência ao trecho anteriormente citado) as longas declarações de Saussure. Riedlinger anotou assim a parte mais importante: Mas existe aqui um caráter capital da matéria fônica, não suficientemente evidenciado: é o fato de apresentar-se a nós como uma cadeia acústica, o que acarreta imediatamente o caráter temporal, que é de ter apenas uma dimensão. Poderíamos dizer que é um caráter linear: a cadeia da fala, forçosamente, se apresenta a nós como uma linha (grifos de M.A.), e isso tem um imenso alcance para todas as relações posteriores que se estabelecerão. As diferenças
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qualitativas (diferença de uma vogal a outra, de acento) só conseguem traduzir-se sucessivamente. Não se pode ter ao mesmo tempo uma vogal acentuada e átona; tudo forma uma linha, como aliás na música (Godel, 1957, p.205-6; Engler, 1989, p.234 ). 23
Vemos que Saussure não se preocupa mais com observações litigiosas sobre o significante "representando uma extensão".24 Ele assinala explicitamente que é a "cadeia da fala" que é afetada pela linearidade, e indica claramente que essa submissão ao tempo lhe vem do caráter material dos elementos fônicos que a constituem. Assim, tudo parece claro: o significante é linear porque é material. É a sua materialidade que impõe aos "elementos" (os "significantes acústicos") que se manifestem sucessivamente no tempo da fala, isto é, da atualização concreta da língua. É aqui que surge a primeira dificuldade: o princípio parece indiscutível se o significante, assimilado ao som ("os significantes acústicos"), for efetivamente material. Mas ele é realmente material? Vimos acima que Saussure dá como uma evidência o caráter não-material do significante: na p.164 (ver aqui p.45), ele apresenta como óbvia a não-pertinência do som à língua e, com isso, a não-materialidade (ele diz: o caráter "incorpóreo") do significante. Aqui surge uma distinção que será totalmente formulada por Hjelmslev: a distinção que, no seio do significante (como também do significado) distingue os dois planos da forma e da substância. O som (como também a letra), se refere à substância, e assim só tem com a forma - para Saussure a única instância que se refere à língua - uma função "secundária" de manifestação. Vê-se a contradição que esse novo ponto de vista revela. Num ponto, o significante é dado como linear apenas em razão da sua materialidade. Mas em outro ponto, ele é dado como não-material. Então, ele continuaria a ser "linear", isto é, submetido ao tempo? Se assim for, qual a causa dessa submissão? Saussure, se li corretamente, não levanta o problema, e com isso não diz nada sobre a eventual persistência da linearidade para um significante "incorpóreo". Há uma outra dificuldade, igualmente evidente. Acabamos de ver nos fragmentos até agora citados que, sem o menor equívoco, é o significante - e apenas ele - que é dado como linear. Da eventual linearidade do signo - que acarretaria necessariamente a problemática linearidade do significado - não se diz nada. O capítulo V, dedicado às "Relações sintagmáticas e relações associativas" vem pouco depois. E percebe-se com espanto que Saussure, para definir o sintagma, substitui sem cerimônia o "caráter linear do significante" pelo "caráter linear da língua" (p.170). É completamente
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diferente. Lembremo-nos da definição da língua como "sistema de signos". Se é a língua que é "linear", é necessariamente o encadeamento dos signos - significantes e significados - que é submetido à linearidade. Aqui, nenhuma ambigüidade é possível: não são mais os "significantes acústicos", mas as "palavras" - isto é, os signos - que são linearmente encadeados:
incontestáveis contradições que se observam na reflexão saussuriana tal como ela aparece no CLG. Quanto à arbitrariedade, talvez tenhamos visto acima uma solução. V amos explicitá-la: a contradição entre as duas leituras do princípio só aparece quando do esforço que é feito para demonstrá-lo. Talvez a demonstração não importe muito para Saussure. O que conta, para ele, no princípio da arbitrariedade, é a possibilidade que ele lhe dá de apresentar com todo o rigor as noções de sistema e de valor. Daí a leviandade incontestável - com a qual ele procede à demonstração. Aliás, muito rapidamente: ele dedica muito mais tempo a assinalar o lugar e a importância do princípio na lingüística e na semiologia. Talvez tivesse sido preferível apresentar o princípio como aquilo que ele é: um postulado não-demonstrado - e talvez não-demonstrável - mais do que um teorema. Saussure não o fez. Certamente, é inútil especular sobre as razões que ele teve, ou não, para isso. Quanto ao caráter linear do significante, os fatos são mais complexos. Será possível, excepcionalmente, recorrer a uma outra parte da reflexão saussuriana - a pesquisa sobre os anagramas? A decisão não é óbvia. Como se percebeu no "Vôo panorâmico" da nossa introdução, existe uma fronteira estanque entre as duas partes da reflexão saussuriana. Salvo em um ponto: precisamente o problema da "linearidade do significante", que, sob outra denominaç~o, é verdade, é levantado explicitamente na pesquisa, com uma alusão - a única, se li bem, nas pesquisas anagramáticas - à lingüística. Esse encontro excepcional entre as duas reflexões constitui o argumento, único mas forte, que me permite recorrer a uma para esclarecer a outra:
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As palavras contraem entre si, em virtude de seu encadeamento, relações fundadas sobre o caráter linear da língua, que exclui a possibilidade de pronunciar dois elementos ao mesmo tempo. Estes se dispõem uns depois dos outros, na cadeia da fala. Essas combinações, que têm como suporte a extensão, podem ser chamadas sintagmas (p.170 ).
Qual a razão da substituição do significante pela "língua'', na definição da linearidade? Ela reside talvez no fato de que Saussure não distingue, em sua concepção do conceito a definir - o sintagma - entre "a ordem das subunidades na palavra" e a ordem "das palavras na frase": "isso é sintaxe, mesmd quando se trata de sufixos" (Engler, p.278). Assim, em reler, formação prefixai dada no CLG como primeiro exemplo da noção de sintagma, a linearidade se observa do mesmo modo entre o r- e o -e- e entre este e o -1-, a despeito do fato de que os "elementos" do primeiro par fazem parte da mesma unidade re-, enquanto os do segundo são separados pela fronteira das unidades re- e -ler. Mesmo no nível da grafia - à qual acabamos de ver que Saussure está longe de ser tão indiferente quanto proclama às vezes - a relação entre os elementos dos dois pares é exatamente idêntica. É porque a linearidade atravessa os limites dos signos: o encadeamento dos signos é tão linear quanto o dos significantes. Sendo a língua um sistema de signos, toma-se possível falar da "linearidade da língua". Vemos o duplo deslizamento a que Saussure submeteu o seu segundo princípio: a identidade substancial da relação entre elementos no seio de uma unidade e da relação entre unidades sucessivas no sintagma lhe permite substituir os significantes pelos signos, como objetos sujeitos à linearidade. E a definição da língua como "sistema de signos" o autoriza a avançar a noção, originalmente não prevista e, deve-se confessar, bem problemática, de "linearidade da língua". Um "sistema" poderia pois ser "linear"? Indagam-se com inquietação as condições de tal eventualidade.
Conclusão sobre os dois princípios - Que caminho Lacan vai abrir no denso matagal da reflexão saussuriana sobre os dois princípios do signo? É o que veremos depois. Enquanto isso, talvez não seja inútil - embora certamente temerário - tentar explicar ou pelo menos esclarecer as
O fato de que os elementos que formam uma palavra se sigam é uma verdade que seria melhor não considerar, na lingüística,25 como algo sem interesse porque é evidente, mas que, pelo contrário, dá por antecipação o princípio central de toda reflexão útil sobre as palavras. Em um campo infinitamente especial, como aquele do qual tratamos,2 6 é sempre em virtude da lei fundamental da palavra humana em geral que pode levantar-se uma questão como a da consecutividade ou não-consecutividade, e desde a primeira27 Pode-se considerar TAE como ta + te, isto é, convidar o leitor a não mais fazer uma justaposição na consecutividade, mas uma média das impressões acústicas fora do tempo? Fora da ordem no tempo que têm os elementos? Fora da ordem linear que é observada se considero TAE como TA-AE ou TA-E, mas não o é se o considero como ta + te, a ser amalgamado fora do tempo, como eu poderia fazer com duas cores simultâneas? (Starobinski, 1971, p.46-7).
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Nota-se o evidente parentesco entre esse trecho e o parágrafo dedicado, no CLG, à linearidade do significante: todos os problemas se encontram, tratados de modo quase homônimo nos dois fragmentos, até a distinção operada entre os "elementos acústicos'', normalmente submetidos à "ordem linear'', e os "significantes visuais", que, por exemplo, nos "sinais marítimos" citados no CLG, podem apresentar "duas cores simultâneas". Com isso, começamos até a especular sobre a cronologia. Imagine-se que Saussure escrevia no mesmo dia, mas em dois cadernos diferentes, o texto que acabamos de ler e o que lhe faz eco no CLG. Com uma diferença, entretanto, mas apenas no nível da terminologia: o adjetivo linear - embora presente no texto da pesquisa - não é, como no CLG, o epónimo do princípio. Saussure preferiu introduzir a noção de consecutividade, que dá lugar ao prefixo negativo não-consecutividade. Iniciativa oportuna: ela evita a referência à linha, que só pode ser metafórica - pois como uma linha poderia ser, literalmente, temporal? Exceto por essa diferença léxica, a reflexão é idêntica: ela se refere à sujeição ao tempo dos significantes acústicos, dada como "a lei fundamental da palavra humana em geral". As exceções que se fazem a essa lei no "campo infinitamente especial" dos anagramas têm um caráter realmente escandaloso: daí o interesse apaixonado que lhes dedica Saussure, que até perde o fôlego no meio de uma frase e produz a forma poética desse "falso alexandrino mallarmeano"28 que é a bela cláusula "fora da ordem no tempo que têm os elementos".* Detectamos que no fragmento da pesquisa, a única consecutividade visada é a dos "elementos" na constituição da palavra. Da consecutividade dos signos no sintagma - ou das palavras no discurso: sabemos que para Saussure é o mesmo problema - nada se diz. Ocorre o mesmo no parágrafo do CLG consagrado à instauração do "princípio" do caráter linear do significante. Esse é pois o nó da reflexão saussuriana. Como explicar a incontestável leviandade de Saussure no CLG? Ele passa sem mais delongas da linearidade dos significantes para a linearidade \ do encadeamento dos signos, para constituir os sintagmas. Até apresenta a noção problemática de "linearidade da língua", que, em si mesma contraditória, contradiz além disso a análise que o fez considerar o "ato de fala" como lugar da linearidade. Assim, a língua acabaria se confundindo com a fala? Como se chegou a esse ponto? Aqui, não é uma especulação ver nessa extensão demasiadamente rápida - desastrosa por suas conseqüências devastadoras - os vestígios de um elemento não explicitamente
* Efetivamente, esse segmento de frase tem, em francês, as doze sílabas de um verso alexandrino ("hors de l'ordre dans le temps qu'ont les éléments"). (N.T.) i
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dito da teoria: a exigência de uma conformidade absoluta entre as regras que governam os significantes e as que governam os signos. Os significantes são ordenados linearmente? Então, é preciso que os signos também o sejam. Em suma, Saussure não considera que possa haver discordância entre a forma do significante e a dos outros componentes da língua. As palavras, é verdade, se seguem no discurso aparentemente da mesma maneira que os fonemas nas palavras. Vimos acima que é esse argumento que permite a Saussure a sua litigiosa passagem do significante para a língua. Mas essa linearidade não tem, entre as palavras, a função que tem entre os fonemas. Não estou preocupado em entrar aqui num problema de pura lingüística, que me afastaria do meu assunto, e observarei apenas que as relações semântico-sintáticas que se estabelecem entre as palavras no discurso são usualmente representadas de maneira não-linear: uma árvore, por exemplo, não tem nada de linear ...
Os sistemas de signos e a noção de valor Uma vez delimitado o conceito de signo - com todas as indiscutíveis dificuldades e ambigüidades que ele comporta- toma-se possível observar como Saussure considera o funcionamento dos sistemas de signos. Podemos começar pela ilustre metáfora29 da folha de papel. Ela ocupa um lugar modesto na versão publicada do CLG, mas a leitura das Notas mostra que ela foi um objeto persistente na reflexão de Saussure: A língua é comparável a uma folha de papel: o pensamento é a frente e o som é o verso;30 não se pode recortar a frente sem recortar, ao mesmo tempo, o verso. O mesmo acontece com a língua. Não se poderia isolar nem o som do pensamento nem o pensamento do som; só se conseguiria isso por uma abstração, cujo resultado seria fazer psicologia pura ou fonologia31 pura (p.157).
Aqui, deve-se tomar literalmente a metáfora, como faz Saussure. Em certos pontos das Notas, ele até usa a tesoura para fazer o recorte e marca com uma onomatopéia bárbara - "Pan, pan !" - o barulho que ela faz ao se fechar sobre a substância que se corta! Deixo ao psicanalista o cuidado de especular à vontade sobre essa tesoura. Quanto a mim, volto à folha: as suas duas faces representam os dois "planos indefinidos" das "idéias confusas" (é a frente) e "o plano, não menos indeterniinado, dos sons" (é o verso). A especificidade da língua é proceder a recortes que afetam simultaneamente as duas faces inseparáveis da folha. Qual é o resultado desses recortes? São as "articulações", que se devem interpretar no sentido, sempre literal, de segmentos resultantes do recorte. Segmentos de duas
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faces, necessariamente, como a folha da qual eles são doravante os inúmeros fragmentos: Cada temio lingüístico é um pequeno membro, um articulus, em que a idéia se fixa num som e em que um som se toma o signo 32 de uma idéia (p.156).
Um esquema tem por função ilustrar menos a metáfora do que a teoria que ela representa. Conhecido sob o nome de "Esquema das duas massas amorfas", ele impressionou fortemente Lacan, que o comentou detalhadamente, por diversas vezes. Até o reproduziu no Seminário 3:
A "nebulosa" A é a das "idéias confusas"; a nebulosa B, "não menos indeterminada", é a dos sons. A folha de papel da metáfora- se quisermos reencontrá-la - engordou um pouco: é o espaço compreendido entre as duas nebulosas, e as linhas sinuosas que as limitam constituem as suas duas faces. As retas verticais33 recortam simultaneamente as duas nebulosas. Os segmentos assim delimitados constituem os signos. Aqui, devese prestar atenção: trata-se dos signos definidos por sua oposição recíproca no sistema que eles constituem, isto é, na língua. Em outras palavras, os signos são representados na sua simultaneidade no seio do sistema: temer, recear e ter medo - para tomar os exemplos citados por Saussure, p.160 - estão presentes no sistema e se delimitam reciprocamente: a leitura do \ esquema parece pois ser paradigmática. Certas interpretações - por exemplo a de Lacan, ver p.87 -verão nos limites dos segmentos as marcas da sua sucessividade no discurso: tratar-se-á pois de uma leitura sintagmática. Oportunamente, haverá ocasião, não certamente para indignar-se com esse "erro" (afinal, é absolutamente certo que seja um erro? E depois, desde quando é proibido interpretar à sua maneira, fosse ela "inexata", a teoria de alguém?), mas para indagar as conseqüências que ele tem sobre a teoria lacaniana. Resta um problema: segundo que princípio os recortes marcados pelas retas segmentam as duas massas informes? Aqui, Saussure é categórico:
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Não só os dois campos ligados pelo fato lingüístico são confusos e amorfos, mas também a escolha que chama detenninada fatia 34 acústica para detenninada idéia é perfeitamente arbitrária. Se esse não fosse o caso, a noção de valor perderia algo do seu caráter, pois ela con_teria um elem~nto i~post? de fora. Mas, de fato, os valores pennanecem inteiramente relativos, e e por isso que o vínculo entre a idéia e o som é radicalmente arbitrário (p.157).
Vemos aqui, com plena clareza, a função exercida na teoria saussuriana pelo princípio da arbitrariedade do signo, aqui apresentado em toda a sua "radicalidade". Saussure reconhece explicitamente ("é por isso") que o princípio é apenas a conseqüência da intervenção da noção de valor. Ao mesmo tempo, ele esclarece-de modo indireto, é verdade - os vínculos que unem indissoluvelmente as duas leituras do princípio. Vimos, na p. 46, um aspecto desses laços. Outro aspecto que se revela agora não lh~ é contraditório. Ele consiste no seguinte: para que a língua possa ser defimda como um sistema de puros valores, é indispensável que as relações entre as unidades lingüísticas não sejam determinadas por nada de exterior à língua. 35 O peso do referente - que introduziria nas rela9ões e~tre signo~ "um elemento imposto de fora" - tem que ser nulo. E por isso que e preciso colocar a arbitrariedade entr~ o signo ,e ? refer~nte. ~as com? o referente não tem nada a fazer na lmgua, o umco me10 de mtroduzrr a arbitrariedade é deslocá-la e situá-la apenas entre os planos que têm uma pertinência lingüística: o significante e o significado. Vê-se que o problema, a despeito da sua importância na história da lingüística, é reduzido aqui a uma função afinal subalterna e de qualquer forma derivada: ele é apenas a conseqüência da concepção da língua como sistema de valores. Para Saussure - e como veremos, para Lacan, e em condições muito vizinhas - é essa concepção que importa. Ela consiste em só tomar em consideração, no estatuto das unidades lingüísticas, as relações que as unem no sistema de valores que elas constituem: A idéia de valor, assim detenninada, nos mostra que é uma grande ilusão considerar um termo simplesmente como a união de um certo som com um certo conceito. Defini-lo assim seria isolá-lo do sistema do qual ele faz parte; seria acreditar que se pode começar pelos termos e construiro sistema fazendo a soma destes, ao passo que, ao contrário, é do todo solidário que se deve partir, para obter, por análise, os elementos que ele encerra (p.157).
Por exceção, creio que posso antecipar uma palavra e anunciar as análises - repetitivas - de Lacan, por exemplo, sobre o estatuto ~a oposição entre o dia e a noite (ver p.102). Encontraremos, ~m estilo diferente, o eco muito fiel e preciso das concepções de Saussure, ilustradas por outros exemplos: recear, temer e ter medo, já citados acima, louer e
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seus dois correspondentes alemães mieten e vermieten.36* Naturalmente, deve-se ter sempre em mente, ao fazer esse confronto entre as duas abordagens, uma evidência: é que, apesar de seu estreito parentesco, elas continuam profundamente diferentes. Para Saussure, é da língua que se trata - seu eventual estatuto inconsciente só sendo alegado, precisamente nesse capítulo sobre o valor, no enigmático trecho que foi citado e comentado no "Vôo panorâmico". Para Lacan, é realmente um objeto lingüístico - ele diz "uma linguagem" - que é submetido a esse tipo de estrutura. Mas essa linguagem não se confunde com a língua: é a linguagem sobre cujo modelo está estruturado o inconsciente. Voltemos a Saussure. Levando-se em conta a estrutura do signo, o valor intervém necessariamente em três objetos distintos: de um lado, cada uma das faces do signo, significado e significante; e do outro, o signo em sua totalidade. Serei br~ve quanto ao "valor lingüístico considerado no seu aspecto conceituai". E nesse ponto que Saussure introduz, além dos exemplos que citei acima, a ilustre análise do valor das duas palavras inglesas sheep e mutton, comparado com o do seu co-referente (mas, por definição, não equivalente) francês mouton:**
O valor intervém necessariamente também no campo "material". Do mesmo modo que os significados, os significantes têm um estatuto diferencial. Tomando primeiro como exemplo o significante acústico, Saussure introduz, uma vez mais, o princípio da arbitrariedade do signo para apresentar esse estatuto - de modo ainda geral, é verdade - pois significado e significante (ambos "fragmentos de língua") são, igualmente, visados pela argumentação:
A diferença de valor entre sheep e mutton reside no fato de que o primeiro tem, ao seu lado, um segundo termo, o que não é o caso da palavra francesa (p.160).
Assim, duas palavras podem ser, entre duas línguas, grosseiramente sinônimos, ou de qualquer forma co-referenciais, sem ter o mesmo valor. Traduz-se sheep (e também mutton) por mouton, sem inexatidão. Entretanto, os dois primeiros, que se limitam reciprocamente, não têm o mesmo valor que o terceiro, que ocupa sozinho o campo que os dois compartilham. A "tesoura" da língua inglesa, se ouso dizer, cortou os seus carneiros de modo diferente da tesoura francesa. É o resultado dessa operação de . segmentação que constitui o verdadeiro estatuto das unidades lingüísticas, mais do que a associação de um significado com um significante: · Quando afirmo simplesmente que uma palavra significa alguma coisa, quando me limito à associação da imagem acústiéa com um conceito, faço uma operação que pode, até certo ponto, ser exata e dar uma idéia da realidade; mas em nenhum caso expresso o fato lingüístico na sua essência e na sua amplitude (p.162).
* Louer= alugar; mieten =alugar, como locatário; vermieten =alugar como locador. (N.T.) ** Sheep =carneiro; mutton =a e.ame do carneiro, como alimento; mouton =carneiro. (N.T.)
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Já que não há imagem vocal que corresponda mais do que outra ao que ela está encarregada de dizer, é evidente, mesmo a priori, que nunca um fragmento de língua poderá ser fundado, em última análise, sobre outra coisa que não seja a sua não-coincidência com o resto. Arbitrário e diferencial são duas qualidades correlativas (p.163 ).
Segue-se a construção do esboço da fonologia saussuriana - desta vez no sentido moderno da palavra, e não no sentido antigo (vem.31, p.69). É o exemplo tradicional do fonema /r/ que é utilizado: sabe-se que a sua realização efetiva em francês pode variar de modo considerável (do [r] "rolado" até o[~] ou o [R], ambos "guturais", embora de modo diferente, e até mesmo o [x] do alemão ach etc.). Quaisquer que sejam as suas realizações materiais, ele se distingue do mesmo modo de todos os outros fonemas e tem, por conseguinte, o mesmo "valor": é a propriedade paradoxal da língua de tomar funcionalmente idênticos objetos materialmente diferentes. Além disso, é a reflexão sobre o valor no seu aspecto material que induz dois aspectos espetaculares da reflexão saussuriana. Ambos já foram percebidos em outros pontos e devem ser citados aqui novamente: 1) Já assinalado no "Vôo panorâmico", o único fragmento do CLG que introduz de maneira verdadeiramente explícita o problema do estatuto consciente ou inconsciente da língua aparece quando da análise do significante (p.163). Nesse trecho enigmático, tanto por sua própria existência quanto por seu conteúdo, Saussure considera os elementos lingüísticos, quaisquer que eles sejam, como inconscientes enquanto tais. Só a diferença entre eles tem acesso à consciência. Lacan prestou uma atenção especial a esse trecho? Nada do que li permite dizer. É quase surpreendente, pois ele permitiria uma articulação com a sua própria teoria. Articulação, na verdade, dificil. De fato, em Lacan, de modo explícito, é a estrutura do significante, determinada pelo conjunto das divisões que o recortam, que é da ordem do inconsciente, pelo menos quanto a essa linguagem sobre cujo modelo o inconsciente é estruturado. 2) Vimos acima a problemática da materialidade ou da não-materialidade do significante. Além das conseqüências consideráveis que já lhe
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foram reconhecidas, ela acarreta wna outra, não menos importante; é a reabilitação da escrita. Na Introdução geral do CLG, Saussure não economiza as críticas à escrita. O :fundo do problema é que ele considera a escrita como secundária em relação ao significante oral, dado nesse ponto do texto como o único significante:
Assim, quer a abordagem seja feita pelo lado do significante ou pelo do significado, a conclusão é a mesma:
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O objeto lingüístico não é definido pela combinação da palavra escrita e da palavra falada; esta última constitui, sozinha, esse objeto (p.45).
Seguem-se então as declarações muito depreciativas feitas por Saussure sobre a escrita, e mais ainda sobre a ortografia, essa escrita que se disfarça de pseudo-sistema autônomo. Acaba considerando um fato "patológico" as pronúncias "viciosas", calcadas na grafia, e dando como "monstruosidades", a serem enviadas para o "compartimento especial dos casos teratológicos, a influência da ortografia sobre a pronúncia" (p.53-4). Até que ponto teria ido a sua indignação, se tivesse tido a oportunidade de ouvir as ligações diante de consoantes de Jacques Chirac? Ocorre a desmaterialização do significante. Ele não se con:funde mais com a substância sonora. Isso tem conseqüências imediatas. A escrita não é mais a serva (dócil ou indócil) do som. Chega até mesmo a perder todo contato imediato com ele, já que o significado que ela assume deixa de ser o som, para ser o significante incorpóreo. A esse respeito, wna pequena discordância entre o texto das fontes manuscritas e o da edição-padrão é significativa. Nesta, lemos que "não há nenhuma relação entre a letra te o som que ela designa" (p.165). Assim, pensamos estar de novo diante do modelo precedente das relações entre som e grafia. Na verdade, Saussure, segundo as notas totalmente homogêneas dos seus ouvintes, não falou do "som que ela designa", mas da "coisa a designar" (Engler, 1989, p.269). Vemos a diferença: não é o som que é asswnido, a título de significado, pela letra, mas uma "coisa". Coisa inominável, a não ser pela palavra "coisa". Reconhecemos facilmente nela o significante incorpóreo, efetivamente difícil de extrair da sua ganga fônica ou gráfica. A partir desse momento, a escrita tem pleno acesso à dignidade de sistema de signos. As declarações depreciativas que a insultavam se interrompem imediatamente. Principalmene, toma-se legítimo apresentála, assim como a língua, à qual ela é doravante igual, como campo de intervenção da noção de valor: Os valores da escrita só agem por sua oposição recíproca no seio de um sistema definido, composto de um número determinado de letras (p.165).
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Na língua só há diferenças. E não é só isso: uma diferença supõe, em geral, termos positivos entre os quais ela se estabelece; mas na língua, há apenas diferenças sem termos positivos. Quer se tome o significado, quer o significante, a língua não comporta nem idéias nem sons que preexistiriam ao sistema lingüístico, mas somente diferenças conceituais e diferenças fünicas provenientes desse sistema (p.166).
Isso significaria que não há nenhuma positividade lingüística? Saussure, no fim do capítulo sobre o valor, recupera - é verdade que de maneira hesitante e timida37 - a positividade perdida no nível do "signo considerado na sua totalidade". Meu objetivo de confrontação com Lacan me leva a ser breve aqui. Efetivamente, sabemos que na teoria saussuriana o signo como entidade lhe interessa apenas muito acessoriamente. O objeto das suas preocupações é, antes, o significante e o significado: disjuntos, concebidos como autônomos e hierarquizados entre si. Para Saussure, naturalmente, não há autonomia e ainda menos hierarquização. E a disjunção? Ele não hesita, como acabamos de notar, em separar o significante do significado. Mas apenas para descrevê-los: é que, para ele, o signo continua sendo a unidade lingüística :fundamental: Dizer que tudo é negativo na língua só é verdadeiro quanto ao significante e ao significado tomados separadamente: a partir do momento em que se considera o signo na sua totalidade, está-se na presença de uma coisa positiva na sua ordem (p.166).
Seria fácil articular essa "positividade" do signo com a "negatividade" dos elementos que o constituem? A timidez de Saussure assinala talvez a dificuldade da operação. Tagarela e hesitante nas fontes manuscritas, lacônico e categórico na edição-padrão, ele encara com lucidez o problema da contradição entre as duas asserções "na língua só há diferenças, sem termos positivos" e "a combinação do significado e do significante é um fato positivo'', mas não trata o problema a fundo. Contenta-se em citar, a título de ilustração, "os inúmeros casos em que a alteração do significante produz a alteração da idéia" e os fenômenos inversos de diferenciação dos significantes, sob a pressão dos significados (p.167). Cabe ao leitor recompor o implícito dessa ilustração: ele entrevê que a relação entre significante e significado no seio do signo tem "algo de positivo", na medida em que ela acarreta uma modificação de wn sob a influência do outro. E ele compreende também a distinção terminológica que Saussure institui entre as "diferenças" e as "oposições". O exemplo que ele escolhe
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- e que será retomado por Lacan - é o dos signos pai e mãe. Simplesmente "diferentes" quando encarados sob seu aspecto clivado de significantes ou de significados, entram em "oposição" quando são considerados como signos:38 é porque eles comportam uma positividade. Lendo esses fragmentos sobre a positividade do signo, ficamos dominados por uma suspeita: não têm eles como única função tomar possível o próprio processo da comunicação? Pois se tudo na língua- significante, significado e signo - fosse sujeito ao regime da negatividade, sem termos positivos, a comunicação seria, por definição, impossível. Ora, ela é explicitamente apresentada por Saussure, que lhe consagra, sob o nome de "circuito da fala", longos desenvolvimentos ilustrados por esquemas otimistas (p.27-8). Entendo com isso que eles não parecem ocasionar qualquer dificuldade ao estabelecimento do "circuito" que se estabelece entre "pelo menos, dois indivíduos" (p.27). É que não se faz nenhuma alusão à negatividade dos "fatos de consciência, que chamaremos conceitos" e das "imagens acústicas que servem à sua expressão" (p.28). Ocorre a instauração explícita da noção de valor e sua conseqüência inevitável: a negativização das duas faces do signo. E com isso é liquidada a própria possibilidade de estabelecer o "circuito da fala": como transmitir, de um sujeito a outro, esses objetos que nem se ousa mais nomear, fundados como são sobre diferenças, sem tenhos positivos? E nem falo da dificuldade suplementar, constituída pelo fato de que entre os "dois indivíduos", o sistema de diferenças tem poucas chances de ser rigorosamente idêntico. Teoricamente, basta a presença, para um dos sujeitos, de um signo, um único, ausente para o outro, para deslocar o conjunto do sistema das diferenças. Para tomar o funcionamento do circuito possível - isto é, para dar novamente um lugar à fala e assim à diacronia - o único gesto possível é reinjetar um mínimo de positividade, no ponto em que isso é possível: no encontro do significante e do significado, isto é, no próprio signo.
Relações sintagmáticas e relações associativas Inevitável para tuna descrição do sistema saussuriano em si mesmo, a análise dessa oposição não o é menos para a finalidade de um confronto com a reflexão de Lacan. Entretanto, poderei ser breve, pois essa proble· mática já passou para o uso comum. A definição da língua como sistema de signos implica que "em um estado de língua, tudo repousa sobre relações" (p.170). Essas relações são de duas ordens:
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J) As relações sintagmáticas Já as percebemos acima, por ocasião do problema da li~earidade . São as relações que se estabelecem entre as unidades consecutivas do discurso. Assim, constituem-se combinações de unidades, que tomam o nome de sintagmas: Essas combinações, que têm como suporte a extensão, podem ser chamadas sintagmas. Assim, o sintagma se compõe sempre de duas ou várias unidades consecutivas (por exemplo: re-ler, contra todos, a vida humana, Deus é bom, se fizer bom tempo sairemos etc.) Situado em um sintagma, um termo só adquire o seu valor porque ele se opõe ao que precede ou ao que segue, ou a ambos (p.170-1 ).
Note-se a extensão conferida por Saussure à noção de sintagma. Ao contrário dos seus sucessores na história da lingüística, o sintagma saussuriano começa com a combinação de dois termos, eventualmente no seio de uma mesma palavra, e se estende até a limites que não são precisados: 0 etc. que fecha a enumeração dos exemplos é ambíguo. Faria ele alusão a frases mais complexas do que a última citada? Ou daria a entender que unidades discursivas que ultrapassam os limites da frase também podem ser qualificadas de sintagma? Nada permite verificar nitidamente essa hipótese. Mas nada permite recusá-la claramente ... 2) As relações associativas São as que se estabelecem, "fora do discurso", entre "as palavras que oferecem algo em comum". Elas se associam na memória, e formam-se assim grupos no seio dos quais reinam relações muito diversas (p.171 ).
Essa "diversidade" das relações associativas ocasiona uma análise sistemática. A respeito principalmente da palavra ensino, Saussure enumera os diferentes aspectos do signo que podem produzir o estabelecimento das relações associativas: relações diversas entre significados ou entre significantes, ambos suscetíveis de serem analisados de vários modos. Um ramo particular na tipologia dessas relações asso~iativas é_ o das a~ sociações de puro significante. Saussure, no seu ensmo, considera explicitamente - e situa no mesmo plano que as outras - as relações fundadas "sobre a simples comunidade de imagens auditivas" (Engler, 1989, p.28?), isto é, sobre a identidade do significante, que funciona então de maneira autônoma. 39 Dá como exemplo a relação estabelecida em alemão entre o
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adjetivo blau ("a cor azul") e o verbo durchbliiuen ("bater com varas"). Embora totalmente distintas como signos (não há relação no nível do significado entre os dois blau), essas duas palavras não deixam de ser asso~iada~ pelos sujeitos falantes, apenas sob o efeito do significante. Aqm, efetivamente, revela-se um encontro discreto com Freud: a análise do Witz ou do lapso procede, como se sabe, segundo tais associações. . Certamente, observamos: o funcionamento dos dois tipos de relações é diferente. As primeir~s, sintagmáticas, se estabelecem entre unidades presentes no discurso. E por isso que Saussure as chama de "relações in praesentia. As segundas, associativas, unem termos ausentes da cadeia discursiva. Recebem o nome de "relações in absentia" (p.171 ). Mais tarde, Jakobson reformulará e desenvolverá essa análise. Ele se referirá explicitamente a Saus~ure, não todavia sem enviar-lhe uma leve farpa post mo~tem (ver aqm a nota 22). Para ele, as relações sintagmáticas e paradigmáncas dependerão respectivamente da "combinação" e da "seleção" (1963, p.48). Veremos depois o destino que Lacan dará a esse rebento jakobsoniano das teorias de Saussure.
Sincronia e diacronia De todas as dicotomias saussurianas, é sem dúvida a da sincronia e da
~iacro~ia que teve a extensão mais considerável fora do campo da lingüística strzcto sensu. Assim, julgamos útil voltar à letra do texto saussuriano. " A refl~~ão_ de,,Saussure se ~az. no nível da epistemologia geral. É para todas as c~encias 40 que havena mteresse em "marcar mais escrupulosa-
me~te os e1~0~ so?r~ os 9uais estão situadas as coisas de que elas tratam; sena necessano d1stmgmr segundo a seguinte figura:
e
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1) O eixo das simultaneidades (AB), referente às relações entre coisas coexistentes, do qual toda intervenção do tempo é excluída, e 2) O eixo das sucessividades (CD), no qual só se pode considerar uma coisa por vez, mas onde estão situadas todas as coisas do primeiro eixo com as suas mudanças" (p.115). Todavia, essa distinção se impõe às ciências com uma necessidade variável. Ela é especialmente útil nas ciências que trabalham com valores (por exemplo, na "economia política"), e absolutamente indispensável para as que tem como objeto "um sistema de puros valores" (p.116): a lingüística - na qual "os dados naturais não têm nenhum lugar" - é o exemplo clássico. Daí o interesse de propor, especificamente para a lingüística, uma terminologia específica: é o aparecimento do ilustre par sincronia e diacronia (p.117). Nesse ponto, vemos mais uma vez a interconexão rigorosa que se estabelece entre os conceitos da reflexão saussuriana: é impossível pensar a oposição dos dois eixos sem pensar ao mesmo tempo a definição da língua como sistema de valores - e reciprocamente. Faremos a mesma constatação - mas depois de um itinerário um pouco mais tortuoso- apresentando o problema, já anunciado acima (ver p.48), das relações entre diacronia e linearidade. Com efeito, acabamos de perceber que a lingüística diacrônica é aquela que considera a língua como submetida aos efeitos do tempo. Efeitos paradoxais: aparentemente devastadores, eles são submetidos a uma regulação que permite à língua sobreviver a todas as mutilações que ela sofre, e reutilizar os ultrajes que lhe são infligidos para reconstituir constantemente o seu sistema. Mas a diacronia é o único modo de intervenção do tempo na língua? De modo algum: vimos acima que o segundo princípio do signo, o do "caráter linear do significante", também in.troduz o problema do tempo em suas relações com os objetos lingüísticos. Daí uma constatação, evidente - à primeira vista - e problemática. Godel a formula assim: Saussure utiliza de duas maneiras muito diferentes a noção de tempo, segundo considera a perspectiva diacrônica ou a perspectiva sincrônica: no primeiro caso, o tempo é o agente, mais precisamente a condição necessária da mudança; no segundo, é simplesmente o espaço do discurso (Godel, 1969, p.207).
D
De fato, é o que parece emanar da separação entre as duas noções de diacronia e de linearidade. Mas essa separação seria absoluta? Não se deveria considerar o problema da eventual relação - qualquer que seja a forma dessa relação - entre a linearidade do significante (Godel retoma para si a metáfora espacializante de Saussure, ao falar do "espaço do
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discurso") e a diacronia ("a condição da mudança", nos termos de Godel)? Dissimulada sob o aspecto estritamente técnico da sua formulação, a importância do problema pode não aparecer imediatamente. Entretanto, não se trata de nada além do problema do tempo em Saussure. Podemos esquematizá-lo pela seguinte questão: há, no CLG,41 duas concepções diferentes do tempo, o da diacronia e o da linearidade? Ou então é possível apreender uma relação entre esses dois tempos, ou mesmo reduzir à unidade a concepção saussuriana do tempo? Podemos começar dizendo que a linearidade do significante é uma propriedade da fala, enquanto a diacronia afeta a língua. Quanto à linearidade, remetemos aos textos citados acima, notadamente ao das Fontes (p.48-9). Quanto à diacronia, os textos proliferam: é realmente a língua que é afetada por ela, pois é simultaneamente dotada de imutabilidade e de mutabilidade, sendo a primeira a condição da segunda: O signo [elemento da língua, M.A.] pode se alterar porque continua (cLG, p.108-9). ·.
Nesse ponto, as coisas parecem simples. A linearidade é o modo de intervenção do tempo na fala; a diacronia - ou, mais precisamente, a mudança diacrônica - é o seu modo de intervenção na língua. Mas esses dois modos de intervenção entram em relação? No início, tudo vai bem: a noção de fala permite lançar uma ponte entre linearidade e diacronia. Ela intervém, efetivamente, na própria definição da linearidade. Quanto à mudança diacrônica, esta encontra a sua origem na fala: Tudo o que é diacrônico na língua o é pela fala, só o é pela fala (Godel, 1957, p.15 6; Engler, 1989, p.223; ver também CLG, p.13 8 - a formulação concorda exatamente com a das fontes manuscritas - e 143 ).
A diacronia seria pois a forma tomada, no nível da língua, por aquilo que é a linearidade no nível da fala. Assim, ficaria assegurada a continuidade entre os dois modos de intervenção do tempo na linguagem: o tempo subjetivo do sujeito enunciante, o tempo objetivo da língua como sistema. A linearidade seria a condição da diacronia. É na palavra condição que devemos deter-nos. A condição da linearidade seria necessária? Sim, evidentemente: é preciso que uma língua seja falada - isto é, dê lugar a atos de fala, lineares, temporalizados - para que ela evolua. Mas isso seria suficiente? Não. Saussure encara o problema sob a forma de uma especulação, próxima do mito:
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Se tomássemos a língua no tempo, sem a massa falante - suponhamos um indivíduo isolado vivendo durante vários séculos - talvez não constatássemos nenhuma alteração; o tempo não agiria sobre ela (cLG, p.113).
A reflexão que imagina um indivíduo falando sozinho durante vários séculos parece, à primeira vista, tipicamente saussuriana. Engler, 1989, p.174, revela que ela vem dos editores. Mas na minha opinião, ela se inscreve perfeitamente na argumentação de Saussure. Quanto ao talvez, que atenua ligeiramente a asserção, essa palavra aparece realmente nas notas dos ouvintes. Mas ela é praticamente apagada pela seqüência da argumentação, que a despreza. A fórmula capital - "o tempo não agiria sobre ela" - é plenamente categórica. Mas de que tempo se trata? Do tempo "subjetivo" da linearidade, inseparável de todo ato de fala, haja ou não "massa falante"?42 Ou do tempo "objetivo" da diacronia, que acarreta as mutações lingüísticas logo que intervém, além disso, a "massa falante"? Em outra ocasião,43 pensei que podia considerar como "evidente" a interpretação desse tempo como o da linearidade. Não vou chegar ao ponto de contradizer-me, escolhendo o tempo da diacronia. Mas parece-me agora que a decisão é propriamente impossível. É que nesse ponto se encontram, em um nó definitivamente atado, os dois Tempos saussurianos: o da linearidade do ato de fala - indispensável à evolução da língua - e o da diacronia, que afinal é o mesmo tempo, a partir do momento em que intervém a massa falante. É isto: a duplicidade da concepção saussuriana do tempo talvez seja apenas aparente. O único fator de separação entre o tempo da linearidade e o tempo que intervém na evolução diacrônica é a "massa falante". Basta, para ter certeza, reler o trecho do CLG, p.250. A relação entre os dois proferimentos sucessivos de Senhores em um mesmo discurso e aquela que se estabelece entre pas (=passo, substantivo) e pas (=não, negação) ou entre calidum e chaud não são diferentes: "O segundo problema é apenas, efetivamente, um prolongamento e uma complicação do primeiro." Em suma, há uma única identidade dos objetos lingüísticos através do tempo, seja esse tempo o da linearidade, seja o da diacronia. É porque essas duas formas do tempo não devem ser distinguidas. Isso significa que o problema fica assim definitivamente resolvido? Infelizmente, não! E Wunderli - que não considera explicitamente o problema das relações entre linearidade e diacronia- propõe com firmeza o da identidade diacrônica. Ele observa justamente as hesitações de Saussure, e até sugere que a solução adotada por um momento - que consiste em assimilar a identidade e a proveniência - beira "a tautologia" (1990, p.54).
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Mas é preciso ir mais longe e lembrar que a bela segurança exibida no trecho da página 250 do CLG sobre a identidade do signo consigo mesmo na linearidade do discurso está longe de ser uma constante no pensamento de Saussure. Na página 150, a respeito das ocorrências sucessivas de Senhores em uma conferência, ele insiste nas diferenças que separam essas realizações, diferenças às vezes "tão apreciáveis quanto as q.ue servem, em outra situação, para distinguir palavras diferentes" (p.151 ). E mais explícito ainda na nota l O: "O objeto que serve de signo nunca é o mesmo duas vezes" (Engler, 1990, p.21). Aparentemente, a situação se inverteu completamente. Se alguns trechos afirmam a unicidade do conceito de identidade, outros acabam recusando toda possibilidade, para o signo, de chegar a uma identidade qualquer, siricrônica ou diacrônica. Contradição? Sem dúvida, sobre a conceituação da identidade do signo. E também sobre o efeito do tempo sobre o objeto lingüístico. Pois, na primeira concepção, ele deixa a identidade manter-se, enquando na segunda impede-a de instalar-se.44 Note-se entretanto que, paradoxalmente, essa contradição não afeta a possibilidade de manter a unicidade da concepção do tempo saussuriano. Pois entre as duas posições contraditórias, resta pelo menos algo em comum: o desaparecimento da diferença entre tempo da linearidade e tempo da diacronia. Qualquer que seja o seu efeito sobre a identidade do signo, o tempo intervém sem que seja necessário (ou possível?) cindir a sua concepção em tempo da linearidade do discurso e tempo da diacronia.
mação da sua prudente hipótese: "Não é impossível que a segunda leitura de Saussure, de longe a mais importante, se efetue a partir do ensino de Merleau-Ponty" (p.31 O). 3. Apenas um exemplo: o de Françoise Gadet, cujo livro Saussure. Une science de la langue se abre com a questão que volto a levantar aqui. 4. Essa escrupulosa precisão bibliográfica não é inútil: ela chama a atenção para 0 fato - assinalado por Caussat na sua introdução à reprodução do livro em 1991 de que toda menção da semiologia foi foracluída da terceira edição, no entanto posterior (1920) à publicação do CLG. 5. Essa primeira citação de Saussure neste capítulo me dá a ocasião de precisar que as referências serão as da edição "padrão" (inalterada desde 1922, e salvo alguns detalhes, desde a primeira manifestação do texto em 1916). Foi a única, provavelmente, que Lacan utilizou. Não me impedirei, entretanto, nos raros casos litigiosos, de recorrer à edição crítica de Rudolf Engler e aos textos sobre Les légendes germaniques, publicados em 1986, mas dos quais Lacan pode ter tido um eco fugitivo através das breves citações feitas por Starobinski em artigos que ele leu (ver a nota 14, p.506 dos Escritos, ou a alusão no Seminário 20, p.30, "o que há em suas gavetas [de Saussure], isto é, essas histórias de anagramas"). 6. Talvez essa dupla discordância explique o fato - indicado como "obscuro, perturbador", por Caussat na Introdução à reprodução de 1991 do livro de Navillede que a sua terceira edição apaga, em 1920, qualquer alusão à semiologia e a Saussure. 7. Devo sugerir que Saussure talvez pensasse nos elementos-os "símbolos" da lenda germânica? Ele diz explicitamente - mas fora do CLG - que "eles são submetidos às mesmas vicissitudes e às mesmas leis que todas as outrs séries de símbolos, por exemplo os símbolos que são as palavras da língua. Todos eles fazem parte da semiologia (grifos de M.A.)" (Le leggende germaniche, p.30). É evidentemente um vasto problema indagar por que a lenda, integrada de modo tão explícito à semiologia no texto que acabamos de citar, é totalmente silenciada na enumeração dos objetos possíveis da semiologia, que é fornecida no CLG. Outro aspecto do mesmo problema: a diferença terminológica instituída entre os signos da língua, no idioleto do cw, e os símbolos da lenda, no dialeto da pesquisa. Acabamos de perceber que a tradução do primeiro para o segundo faz aparecer o sintagma os símbolos que são as palavras da língua, que é por definição impossível no CLG. 8. Quanto a Greimas, penso no artigo infelizmente pouco conhecido sobre "L'actualité du saussurisme" (Le Français Moderne, 1956, 3, p.191-203). Greimas afirma que "nada se oporia, em princípio, à extensão de métodos estruturalistas à descrição de vastos campos de simbolismos culturais e sociais, recobertos pelo significante lingüístico e apreensíveis através dele" (p.196). Quanto a Barthes, viso a publicação, em 1964, dos "Élements de sémiologie", no ilustre fascículo 4 de Communications. 9. Todavia, deve-se observar que nos esquemas anotados pelos ouvintes as duas flechas de sentido oposto que enquadram a elipse do signo estão ausentes (Engler, p.149-50). Foram os editores que as acrescentaram. Lacan que, por sua vez, as suprimiria na instalação do seu "algoritmo", talvez não soubesse que, nesse detalhe, ele reencontrava o ensino original de Saussure.
Ao terminar este capítulo, indago com uma sombra de perplexidade: Será que traí o pensamento de Saussure? Isso é infinitamente provável, no mínimo porque silenciei sobre muitos - e consideráveis - dos seus aspectos. Mas lembro: não me preocupei, ao escrever estas páginas, em relatar, em si mesma e por si mesma, a reflexão saussuriana na sua integralidade. O que pretendi fazer foi reunir os elementos que seriam retomados, desta ou daquela forma, explícita ou alusiva, pela reflexão de Lacan. O leitor verá por si mesmo, lendo o segundo capítulo, se a análise feita no primeiro o esclareceu antecipadamente. NOTAS 1. O artigo de Lacan se situa nas páginas 245 a 254, o trecho citado na página 250. Lacan cita exclusivamente, mas com precisão, a Fenomenologia da percepção. 2. Se compreendi bem, E. Roudinesco (Histoire de la psychanalyse en France, 2) não cita esse artigo de Lacan no capítulo (p.288-377) em que tenta reconstituir a cronologia da leitura de Saussure por Lacan. Mesmo silêncio em Jacques Lacan, aonde, entretanto, o artigo é citado na bibliografia. A autora teria encontrado ali uma confir-
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1O. Ao contrário do que Lacan daria a entender ao falar dos "numerosos esquemas em que aparece na impressão de [... ] cw" (Escritos, p.500). 11. Observe-se o estranho erro de concordância, que retoma "a idéia de irmã" por ele. Os editores talvez pensassem nos masculinos significado ou conceito. É este último que aparece nas fontes manuscritas. 12. Literalmente: "ele se comporta como um boi na montanha", isto é, "ele não sabe o que fazer". 13. Pichon voltará ao problema na mª conferência da série "A l'aise dans la civilisation'', a 23 de fevereiro de 1937. A despeito de inovações terminológicas (por exemplo a palavra tipoma, comentada como "imagem senso-atorial"), a análise é muito próxima da do artigo. Ela termina com esta bela fórmula: "A palavra é o signo necessário da idéia, pois ela é o seu corpo e não podemos pensar a idéia sem seu corpo" (Revue Française de Psychanalyse, 1938). 14. Aqui, Benveniste é impreciso: usa signo com o sentido de significante e atribui a Saussure uma citação (aliás, não referenciada ... ) que se procurará em vão no CLG. 15. É preciso dizer que a semântica do protótipo, que, como o seu nome sugere, prevê a possibilidade de uma gradação na categorização (um pintinho seria "menos pássaro" do que um pardal, porém "mais pássaro" do que pingüim!), se opõe assim totalmente à concepção de Saussure e com isso à de Lacan: para eles, precisamente, não há, em matéria de linguagem, nem mais nem menos, mas fronteiras que recortam sem zona de recobrimento (ver p.63 e 115-8). 16. Nesse ponto, ele acaba aceitando facilmente a noção saussuriana de arbitrariedade. Veremos, na p.104,' que ele hesita e finalmente prefere contingência a arbitrariedade. 17. Seria necessário precisar que tudo é completamente diferente em uma teoria (a de Martinet, por exemplo) que assimila o significante à substância fônica? 18. Certamente, seria possível fazer um discurso paralelo sobre o significado. Afinal, não foi à toa (ver p.40) que Saussure tomou a decisão de suprimir a referência à idéia ou ao conceito, para falar apenas do significado. 19. "Para enfatizar que a língua é uma instituição pura, Whitney insistiu, com muita razão, no caráter arbitrário dos signos" (p.11 O). 20. Essa perífrase permite evitar o sintagma signos motivados, impossível no âmbito da teoria do CLG. 21. Essa precisão exclui, uma vez mais, a lingüística da fala, lugar do estudo das relações entre o signo e a coisa. 22. Saussure se indaga, na verdade rapidamente, sobre esse problema: "Se, por exemplo, acentuo uma sílaba, parece que acumulo no mesmo ponto elementos significativos diferentes" (p.103). Ele resolve o problema, talvez um tanto apressadamente, observando que "a sílaba e o seu acento constituem apenas um ato fonatório" (ibid.). Note-se que o recurso à noção de ato fonatório marca claramente que a análise de Saussure se situa aqui do lado da fala, e não da língua. Sabemos que Jakobson voltará a esse problema da linearidade do significante, para notar com frieza que "o mestre cedeu à crença tradicional no caráter linear do significante" (1963, p.48). Milner, mais tarde, fará eco às suas críticas: "Certas dimensões da forma fônica são precisamente governadas pela simultaneidade: os traços pertinentes e os fenômenos prosódicos,
notadamente. Quando se pronuncia /b/, pronuncia-se ao mesmo tempo a labialidade, a sonoridade e a oclusão, embora esses três traços sejam empiricamente independentes uns dos outros. Quando se pronuncia éternel, pronuncia-se ao mesmo tempo a sílaba /nel/ e 0 seu acento" ( 1989, p.386-7). Acabamos de ver que Saussure tratou do segundo problema. Quanto ao primeiro, é incontestável .que os traços pert~nentes ..~ão são submetidos à linearidade. Mas Saussure tem em vista apenas a sucessao dos _Jemen_ tos", que são, no seu léxico, os "significantes acústicos". 23. Assinalo todavia uma ínfima dificuldade textual que Godel nao pensou em mostrar explicitamente: esse trecho das notas de Riedlinger - lembro que ele não fez Curso III - é relativo a um fragmento do Curso li, que anuncia os desenvolvimentos 0 mais detalhados do Curso Ili sobre "o caráter linear do significante". Os outros ouvintes do Curso II anotaram igualmente que "a fala é realmente representada como uma linha" (Gautier) ou que "a cadeia da fala se oferece a nós como uma linha" (~onstantin) (Engler, 1989, p.234). Em contrapartida, o sintagma a ca~eia ~a fala n~o ~parece explicitamente nas notas dos ouvintes do Curso lll. Mas o carater lmear do s1gmficante . é sempre, de um Curso a outro, uma propriedade da fala. 24. J.-C. Milner (1989, p.386) muito acertadamente observou a extrema obscundade desse trecho. Como o significante pode "representar uma extensão"? Parece que essas dificuldades não se devem aos editores, mas estavam nas declarações efetivamente feitas por Saussure: ver Engler, p.157. 25. Essa é a menção explícita que acabo de anunciar. Observe-se também, na primeira linha do texto, o uso da palavra elemento com o sentido que ela t~m no C~G. 26. Evidentemente, é a pesquisa sobre os anagramas que Saussure designa assim, fazendo 0 duplo gesto de ligá-la explicitamente à lingüística e constituí-la como um "campo infinitamente especial". 27. Aqui, Saussure, como lhe acontecia muitas vezes nessa pesquisa feita ~uase clandestinamente, e sem intenção imediata de publicação, se interrompeu no me10 da
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frase. 28. Tomo por empréstimo essa pertinente observação ao saudoso Thomas Aron, 1970, p.57. 29. Saussure, no seu discurso científico, dá um lugar considerável à metáfora: cite-se, por exemplo, a do "vestido coberto de retalhos tirados do tecido do .vestido". Ele é extremamente consciente dessa especificidade do seu discurso e se dedica a uma "defesa e ilustração" apaixonadas da metáfora (e, de modo geral, da "figura") na lingüística, em um trecho das notas manuscritas (Engler, 1989, p.18). 30. Seria necessário precisar que Saussure não hierarquiza as noções de frente e verso? Ele se explica em um fragmento das Notas sobre a lingüística geral: "Se falo da frente e do verso de uma página, são contrários que permanecem perfeitamente co-respectivos um do outro, visto que não existe previamente nenhum caráter que distinga mais especialmente a frente do verso ou vice-versa" (Engler, 1990, p.49). 31. Sabemos que Saussure dá à palavra fonologia o sentido - abandonado no uso contemporâneo - de "fisiologia dos sons" (p.55). Ele quer dizer, pois, que a eventual separação dos dois planos resultaria, para o do significante, em reduzi-lo ao seu aspecto material e em fazer dele o objeto de uma estrita análise fisiológica.
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32. Evidentemente, esperaríamos a palavra significante. Os editores do CLG aqui plenamente responsáveis por essa formulação - nunca consideraram sistematicamente a terminologia saussuriana. 33. Veremos, no capítulo seguinte, que Lacan notará que essas linhas são pontilhadas. Interpretará esse detalhe à sua maneira. Voltarei a esse ponto em tempo útil. Preciso desde já, entretanto, que o pontilhado é uma inovação dos editores: os esquemas dos ouvintes de Saussure apresentam linhas cheias. 34. Essa palavra reitera mais uma vez a metáfora persistente do corte. 35. Saussure voltará a esse ponto, de modo um pouco mais denso, no momento de estabelecer a oposição sincronia/diacronia, ver abaixo. 36. Veremos no primeiro capítulo da terceira parte ("Problemas") que esse exemplo permite a Saussure tomar partido - implicitamente - na questão do sentido oposto das palavras. 37. A edição-padrão do Curso suprimiu esses vestígios de timidez. Eles se manifestam nas fontes sob fórmulas como: "Teremos algo que pode assemelhar-se (grifos de M.A.) a termos positivos" (Engler, p.272-3). 38. O texto da edição-padrão, notadamente pela expressão estranha "entre eles só há oposição" (p.167), parece-me modificar sensivelmente a relação estabelecida por Saussure entre as duas noções de diferença ede oposição. Nas fontes (Engler, p.273-4), é claro que a oposição é o regime dos signos, oposição que implica as diferenças dos significantes e dos significados. Assim, é discutível entender que Saussure disse que só há oposição! 39. Os editores adotaram, quanto a esse trecho, uma atitude ambígua. Por um lado, eles o relegaram à condição de nota, e decidiram qualificar de "anormal" esse tipo de relação, pois "o espírito afasta naturalmente as associações capazes de perturbar a inteligência do discurso": proposição que não tem nenhum suporte sério nas fontes manuscritas. Mas, por outro lado, não hesitaram em esclarecer o mecanismo mobilizado por um exemplo de "jogo de palavras baseado na confusão absurda que pode resultar da homonímia pura e simples: os músicos produzem sons, e os comerciantes de grãos os vendem" [Em francês, a palavra son também significa farelo (N.T.)]. Embora o exemplo não seja de Saussure, ele esclarece muito bem o mecanismo. Quanto à "qualidade" do jogo de palavras, ela é realmente fraca. Sabemos que, entre os que Freud analisa, existem alguns do mesmo tipo, por exemplo o que atua na homonímia entre Rousseau e roux sot [=ruivo tolo (N.T.)]. 40. O texto das fontes indica claramente que Saussure não pensa apenas nas ciências "humanas", mas também nas ciências "das coisas" (Engler, p.177). Entre estas, é certamente a geologia- explicitamente citada desde 1891 (ver Engler, 1990, p.5-6) - que é especificamente visada (ver CLG, p.114, Engler, 1989, p.175). Sabemos que ela despertará também o interesse de Lacan. 41. E, acrescento, no conjunto da reflexão propriamente semiológica de Saussure, isto é, em minha opinião, no conjunto relativamente homogêneo constituído pelo CLG e pela pesquisa sobre a lenda, com a exclusão da pesquisa sobre os anagramas, que, ainda na minha opinião, escapa à semiologia, no sentido que Saussure lhe dá. 42. Efetivamente, é preciso notar que Saussure não exclui, de modo algum, a idéia de um ato de fala individual, sem "massa falante". Ver em particular o trecho da nota
23.6 (Engler, 1989, p.172), no qual é isolada "a parte [da linguagem] residindo na alma da massa falante, o que não é o caso para a fala (grifos de M.A.). 43. Arrivé, 1990, p.42. 44. Seria necessário precisar que, sobre esse problema- que, segundo o próprio Saussure, excede os limites da lingüística para entrar no campo da "filosofia" - e sobre as contradições (aparentes?) que ele determina na reflexão de Saussure, é impossível dizer algo aqui?
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Lacan, leitor de Saussure
LACAN, LEITOR DE SAUSSURE
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serções dará ocasião depois, breve ou longamente segtmdo o seu estatuto, à justificação ou à discussão que ela solicita. Elas são: 1) O significante lacaniano tem como epônimo e como étimo epistemológico o significante saussuriano. 2) O significante lacaniano não se confunde com o significante saussuriano. 3) Apesar das diferenças que os separam, os dois significantes estão unidos por relações tais que a sua denominação pelo mesmo significante - o significante significante - é legítima.
Vamos brincar um pouco com as metalinguagens. Quando se tratava de falar de Saussure, nós nos debatíamos com o problema da descrição de uma teoria da linguagem. Com Lacan, as coisas se deslocam um nível, na hierarquia das metalinguagens. Trata-se agora de descrever o modo pelo qual a teor~.ª saussuriana da linguagem é integrada a uma outra teoria, que é também, se não da, pelo menos de uma linguagem, pois, de maneira plenamente explícita, ela visa um objeto, o inconsciente, "estruturado como· uma linguagem". Vemos onde estamos situados: no nível da metalinguagem de uma linguagem - a de Lacan - que, do ponto de vista que nos interessa, é ela própria a metalinguagem de uma outra linguagem a de Saussure-, esta também !1111ª metalinguagem, sem dúvida, mas desta vez a última (graças a Deus). E a metalinguagem de primeiro nível, a que ocasiona todas as outras - a de Lacan, a minha, outras mais, que, de um modo ou de outro, a tomam como objeto. Talvez aqui o lacaniano se surpreenda, até fique indignado ou se irrite, e de qualquer forma me suspeite de esquecer o aforismo lacaniano "Não há metalinguagem". Longe de mim. Mas, na verdade, isso não me preocupa muito: a negação da metalinguagem não impede a sua prática. Assim como a negação paralela da relação sexual - "não há relação sexual" não impede (graças a Deus) o ato sexual. Veremos em outro capítulo que há certamente uma relação entre os dois aforismos, mais profunda do que aquela que o seu paralelismo enunciativo assinala. Assim, sinto-me perfeitamente à vontade e pronto para me embrenhar na "proliferação" (para retomar o termo de Lacan, Seminário 3, p.258) das metalinguagens. 1 Há naturalmente as dificuldades práticas do empreendimento. Pretendo enfrentá-las apresentando a minha análise, precedida de um breve ajuste cronológico, sob a forma de três asserções sucessivas, formuladas a título de constatações ou hipóteses. Cada uma dessas as72
Neste ponto, talvez seja o saussuriano que se surpreenda, até fique indignado ou se irrite. Então, diz ele com uma ruga de preocupação na testa, você só vai falar do significante? Vai deixar de lado todo o resto do aparato saussuriano, que você teve tanto trabalho para debulhar? Aqui também a resposta é simples. É verdade que, nas pegadas de Lacan, partirei do significante. Mas calma, saussuriano ortodoxo, é do aparato teórico integral de Saussure (ou pelo menos de uma larga parte dele) que tratarei, passo a passo.
Ajuste cronológico No início do capítulo precedente, apenas percebemos as condições nas quais Lacan chegou à leitura de Saussure. O problema não é tão simples como se poderia supor. Lacan - ele não é o único, lembre-se Benveniste (ver p.43)- :freqüentemente é muito discreto a respeito das suas fontes. Às vezes, somos reduzidos à procura de vestígios léxicos ou conceituais, ainda mais dificeis de detectar porque, não raramente, eles sofreram uma mutação considerável. Asim, estou persuadido de que Lacan conhecia Hjelmslev muito melhor do que deixa supor a única menção do seu nome no índice dos Escritos: pois temos a impressão - apenas a impressão, nunca baseada em alguma prova incontestável - de que o Saussure que ele lê é fortemente hjelmslevizado. De qualquer forma, quanto a Saussure, os elementos de que dispomos são, afinal, bastante favoráveis. Um primeiro marco, na verdade muito episódico, nos permite - com E. Roudinesco (1993, p.51) - ter certeza de que foi em Henri Delacroix, precisamente em Le langage et la pensée, que Lacan encontrou pela primeira vez, já em 1931, uma alusão ao nome e à reflexão de Saussure. Mas depois, silêncio por mais de vinte anos. Só em 1954, exatamente no dia 24 de junho (Seminário 1, p.281 ), por ocasião de um seminário dedicado ao De locutionis significatione2 -
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Saussure, Lacan, Freud
Lacan, leitor de Saussure
parte do De magistro, ver abaixo - Lacan pronuncia en;i ~úblico o nome de Saussure e consagra à sua teoria do signo comentanos que ele ~az questão de apoiar na autoridade de Benveniste, que trata então com a maior reverência, o que nem sempre será o caso (verp.83-4 e 1?9-80). Antes de dar a palavra ao Padre Beimaert sobre Santo Agostl~o, _Lacan faz declarações extremamente pertinentes tanto sobre a distmç.ao .entre o significado e a coisa3 quanto sobre o problema da natureza do s1gn1ficante: constata-se claramente que ele leu com a maior atenção o trecho do.CLG, citado aqui na p.45, sobre o problema da materialidade ou da formahdade do significante. Aqui, Lacan faz o discurso do lingüi~ta, sem enc~rar, pelo menos explicitamente, o deslocamento dos conceitos saussunanos no campo do inconsciente. É o que explica a grande serenidade com a qual ele aborda o problema:
percebido, p.33, sobre o papel de intercessor provavelmente desempenhado por Merleau-Ponty: de fato, é em 1953, a 15 de janeiro, que Merleau-Ponty pronuncia a sua aula inaugural no College de France, na qual considera - com profundidade, apesar de certas imprecisões de leitura - a possibilidade de tirar uma filosofia do ensino de Saussure. Pouco influenciado por uma doxa lingüística, aliás na época menos difundida do que é hoje, insiste especialmente no fato de que "Saussure poderia ter esboçado uma nova filosofia da história" (Eloge de la philosophie, p.56). Última data nessa pré-história do saussurismo de Lacan: a primeira ocorrência do nome de Saussure nos Escritos. Ela ocorre em "A coisa freudiana'', texto que tem como origem uma conferência do dia 7 de novembro de 1955. Toma um aspecto vigorosamente imperativo e se acompanha de uma alusão muito depreciativa a um outro Saussure, Raymond:5
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Entretanto, nem por isso, .tudo que é da ordem da fonéti~a é incluído na Lingüística enquanto tal. E do fonema que ~e trata, quer .d1:er, do som em oposiçã~ a outro som, no interior de um conjunto de opos1çoes (p.281 ).
Entretanto é evidente que a influência de Saussure sobre a reflexão lacaniana se f~ sentir intensamente antes dessa data. Desde o "Relatório de Roma'', pronunciado em setembro de 1953, Lacan introduz com insistência os conceitos de significante e de significado. Nesse momento, ele oculta - estranhamente - o nome de Saussure, mas utiliza seus conceitos de modo literalmente exato: o significado ainda não "escorregou" para baixo do significante. Não; Lacan,_ a~ui,:Uuito m~de~tamente, parte, "no próprio instrumento da palavra a d1stmçao entr~ s1gn1ficante e significado" (Escritos, p.275). Todavia, ele começa a praticar uma extensão do campo de intervenção dos conceitos, e os utiliza, por exemplo, para descrever a estrutura do sintoma, aqui identificado com um dos símbolos freudianos (o "símbolo mnêmico"): 4 O sintoma, aqui, é o significante de um significado recalcado. da consci~n~ia do sujeito. Símbolo escrito na areia da carne e no véu de Mata, ele participa da linguagem pela ambigüidade semântica que já sublinhamos em sua constiruição (282).
Vemos que o problema do estatuto do significante - material ou incorpóreo? voltaremos a esse ponto na p.90 - recebe aqui uma solução explícita: a partir do modelo do "símbolo mnêrnico" freudiano, ele se inscreve "na areia da carne". Nada é menos incorpóreo! Assim, é por volta de 1953 que se faz sentir, de modo significativo.' o peso da reflexão de Saussure sobre a de Lacan, e já, o esforço de relac10~ namento com Freud. Datação inteiramente compatível com o que foi
Se quiserem saber mais a esse respeito, leiam Saussure, e já que um campanário pode esconder até mesmo o sol, esclareço que não se trata da assinarura encontrada na psicanálise, mas de Ferdinand, que pode ser chamado fundador da lingüística moderna (p.415).
Depois, faz-se em Lacan o florescimento saussuriano. Florescimento cujo caráter tardio ele parece lamentar. Pelo menos, é assim que interpreto a mensagem cifrada com a qual termina, nos Escritos, o texto de "A instância da letra no inconsciente": T.t.y.m.u.p.t. 14-26 de maio de 1957, que pode ser lido como "Tu t'y (es) rnis un peu tard" [= "você começou com isso um pouco tarde" (N.T.)], em que o isso só pode remeter àquilo que constitui a especificidade desse texto: a conexão estabelecida entre Freud - naturalmente, tal como é lido por Lacan - e a reflexão dos lingüistas - Saussure e Jakobson.6 E o resto do trabalho de Saussure? Os Anagrammes e a Légende? Lacan teve acesso a eles? Levou-os em conta, de alguma forma? Aqui, as coisas são simples. Quanto àLégende, pode-se estabelecer certamente um estado zero.7 Em todo caso, não encontrei nenhuma alusão a essa pesquisa no que li de Lacan. Não é verdadeiramente surpreendente, considerando-se a maneira tardia e confidencial pela qual a pesquisa sobre a Légende foi divulgada. Em contrapartida, Lacan tem intimidade com a pesquisa sobre os Anagramas. Tomou conhecimento dela desde a publicação do primeiro artigo de Starobinski no Mercure de France de fevereiro de 1964: faz alusão a esse artigo em uma nota acrescentada, quando da publicação dos Escritos (em 1966), ao texto de "A instância da letra" (p.506). Encontra
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em Starobinski "a certeza" de que Saussure sabia "escutar a poesia". Voltarei à questão na p.106. Novas citações dos Anagramas em 1970, em "Raqiophonie" (Scil!cet, 2~3'. p.58), depois em 1973 no ~eminário 20, Mais, ainda, p.129. E esse ultimo fragmento que deve ser citado: É neste ponto da linguagem que um Saussure se colo.cava a questão de sa~er se nos versos satuminos onde ele encontrava as mais estranhas pontuaçoes de escrita, isto era inten~ional ou não. É aí que Saussure espera por Freud. E é aí que se renova a questão do saber.
Mais uma vez, é evidente que Lacan leu com atenção a pesquisa sobre os anagramas: ele detectou - e expressou com uma extrema transparência - um dos aspectos essenciais, a hesitação constante (e dolorosamente) prolongada de Saussure sobre o caráter "intencional ou não" dos elementos anagramatizados. Lacan utiliza, para eles, a noção de "pontuação". Freqüente no seu texto - lembre-se a paradoxal "pontuação sem texto", Escritos, p.390-,já presente na alusão de "A instância da letra", ela não pode deixar de evocar o ''ponto de basta",* lugar onde se encontram significante e significado (ver p.150 e 208). Quanto à relação entre ~aus sure e Freud, esta é qualificada aqui de "espera": como se, sozinho, Saussure fosse imperfeito e só encontrasse a sua completude pelo seu encontro posterior (e post mortem) com Freud, sobre o problema do "saber", "saber que não sabe, saber que se suporta no significante como tal" (ibid.). Saber inconsciente, que não sabe, certamente, mas que nem sabe que sabe, e não pode sabê-lo.
A origem saussuriana do conceito lacaniano de significante No início, tudo parece simples. Ou melhor: tudo é, realmente, simp_les. Lacan reconhece sem hesitação e até reivindica explicitamente o enraizamento saussuriano da sua teoria do significante em suas relações com o significa~o. 8 Os testemunhos, dos quais alguns acabam de ser v~sto~ s~o muitos. E indispensável citar o mais importante deles: o de "A mstancrn da letra no inconscíente ou a razão desde Freud": 9 Para marcar o surgimento da disciplina lingüística, diremos que ela está, como acontece com toda ciência no sentido moderno, no momento cons-
* Ponto em que as faces inferior e superior de um estofamento se unem, geralmente marcado por um botão. (N.T.)
Lacan, leitor de Saussure
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titutivo de um algoritmo que a funda. Esse algoritmo é o seguinte:
s s que se lê: significante sobre significado, correspondendo o "sobre" à barra que separa as duas etapas. O signo assim redigido merece ser atribuído a Ferdinand de Saussure, embora não se reduza estritamente a essa forma em nenhum dos numerosos esquemas em que aparece na impressão das diversas aulas dos três cursos dos anos 1906-1907, 1908-1909, ! 910-19 ! 1, que a devoção de um grupo de seus discípulos reuniu sob o título de Curso de lingüística geral: publicação primordial para transmitir um ensino digno desse nome, isto é, que só pode ser detido em seu próprio movimento. É por isso que é legítimo lhe rendermos homenagem pela formalização ~ em que se caracteriza, na diversidade das escolas, a etapa moderna da s lingüística. A temática dessa ciência, por conseguinte, está efetivamente presa à posição primordial do significante e do significado, como ordens distintas e inicialmente separadas por uma barreira resistente à significação. Eis ali o que tomará possível um estudo exato das ligações próprias ao significante e da amplitude da função destas na gênese do significado (Escritos, p.500).
Voltaremos longamente a esse texto capital, quanto às modificações que ele produz, tanto no esquema saussuriano quanto, de modo indissolúvel, na conceituação que ele elabora. Limito-me, aqui, a observar que Lacan reivindica plenamente o modelo saussuriano como epônimo e étimo do seu próprio "algoritmo". E desde esse momento, começa a manifestarse discretamente, misturada ao entusiasmo dos elogios, uma ligeira ironia: ela se revela na tranqüilidade da evidência com a qual são atribuídos a Saussure elementos que não são seus. · Logo depois, a atitude de Lacan em relação a Saussure evolui, como se ele desejasse reduzir o papel que este desempenhou na sua reflexão. Mutação aliás anunciada, antes de 1957, no Seminário 1. Quando da sessão dedicada ao De locutionis significatione (ver acima), ele insiste fortemente no fato de que os lingüistas - e acaba de evocar Saussure! - "levaram 15 séculos para redescobrir[ ...] idéias que já estão expostas no texto de Santo Agostinho, que é um dos mais admiráveis que se possam ler" (p.282). Mais tarde, serão os estóicos que virão em socorro. Às vezes sozinhos, como em 1971 (em "Lituraterre",p.6), ou em 1973, em Télévision, em que Saussure se vê reduzido ao papel de tradutor:
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Basta distinguir, o que há muito tempo a sabedoria estóica conseguiu fazer, 0 significante do significado (para traduzir os nomes l~tin~s e.orno Saussure), e percebe-se a aparência, ali, de fenômenos de eqmvalencia, que, c.o~ preensivelmente, tenham podido figurar, para Freud, o aparato da energetica (p.20-1 ).
Às vezes, os estóico~ são acompanhados por Santo Ago~tinho .. ~ssim, ainda em 1973, em "L'Etourdit", Etourdit que esquece- etourd1 - de fazer soar o seu t, mas que não esquece o Seminário 1, já velho de quase vinte anos: Saussure pára no acesso estóico, o mesmo que o de Santo Ag~sti~ho. (cf.: entre outros, o De magistro, cujo limite, para datar o meu apmo, md1que1 claramente: a distinção signans-signatum) (p.46). 10
Assim Saussure tem como antecessores os estóicos e Santo Agostinho.11 Há ~litro: o próprio Freud. Pelo menos, é o que é dito, repetitivamente, por Lacan. Desde "A instância da letra", e~ 1957, ele obsen:a q~e "quando da publicação da Traumdeutun?, antec1~a:a-se em, mmto as formalizações da lingüística, para as quais sem duvida ~odenam?s de,~ monstrar que, por seu simples peso de verdade ela abnu o cammho: [? M.A.] (p.516). Treze anos depois, ele é ainda mais explí~ito, e aca~a apresentando Freud (sem dúvida com a sombra de um ~omso, mas tao discreto que pode passar desapercebido) como o ~~rda~eir? r,r~c~sor de Saussure, e até vê, do primeiro no segundo, uma mfluencrn . ~.isso que ele faz em "Radiophonie", respondendo a uma pergunta exphc1tamente formulada pelo jornalista que o interroga: A Universidade não disse a última palavra. Ela fará disso um tema de tese: influência sobre o gênio de Ferdinand de Saussure do gênio de Freud; demonstrar de onde veio para um a notícia do outro, antes que existisse o rádio ("Radiophonie", Scilicet, 4, 1970, p.58).
A menção da "Universidade" estava acompanhada, imagino, de um sorriso sarcástico: é que ela era responsável pela "luz duvidosa" lançada sobre a lingüística, ainda não atingida pela revolução freudiana. Pois, na verdade, não era apenas Saussure que era "antecipado" por Freud, mas também Jakobson, e finalmente toda a lingüística:
* Essa palavra significa "desatento, distraído". Há um jogo de palavras com étourdit, "aturdido, desorientado". (N.T.)
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[... ]enunciando que Freud antecipa a lingüística, digo menos do que deveria dizer, e que é a fórmula que libero agora: o inconsciente é a condição da lingüística ( ibid. ).
Para propomo mesmo impulso esse litigioso tema de tes0 (a influência de Freud sobre Saussure) e esse paradoxal postulado (a antecipação de Freud sobre a lingüística), Lacan dispõe de dois argumentos. Ou antes, de duas formulações - uma geral, outra particular - do mesmo argumento. De modo geral, é a própria concepção das relações entre linguagem e inconsciente que explica a "antecipação" de Freud sobre Saussure. Se a linguagem é, de fato, a condição do inconsciente, como poderia ocorrer que o teórico do inconsciente não abrisse o caminho para a lingüística? Falar do inconsciente é, indissoluvelmente, falar da linguagem, por exemplo sob o aspecto do lapso, "quand9 realmente se diz alguma coisa pela palavra que falta". Afirmando a cisão do sujeito - que nunca é aquele que sabe o que diz, supondo-se que se possa saber o que se diz - Freud apenas "antecipa" (e, cronologicamente, se aceitarmos o seu ponto de vista, Lacan não está inteiramente errado)l2 a divisão fundadora, sobre o "corte inaugural", marcado pela ''barra" que separa o significante do significado. Naturalmente, aqui é preciso diferir um pouco o exame dessa leitura da barra. Pois percebemos no primeiro capítulo que, em Saussure, ela não parece ter essa função de "corte". A coextensividade de campo entre lingüística e inconsciente tem necessariamente as conseqüências mais amplas. E principalmente esta: todo conceito lingüístico tem o seu correspondente no inconsciente e na sua teorização feita por Freud. Isso ocorre com o significante saussuriano. É este o segundo argumento, mais particular, que Lacan instala para afirmar a influência de Freud sobre Saussure. Pois o significante é apenas, segundo ele, o nome dado a um - ou mesmo, na verdade, a dois conceitos freudianos. De modo repetitivo, no discurso lacaniano, lê-se, efetivamente, a identificação do significante com dois objetos conceituais freudianos. Impossível - ou muito difícil: desisto - fazer aqui a cronologia detalhada dos dois gestos de Lacan. Pois parece que eles são praticamente contemporâneos. Um dos objetos visados é o Wahrnehmungszeichen, "signo de percepção", da carta 52 a Fliess.13 É citado por Lacan por várias vezes, desde 1956, no Seminário 3, p.206-7, com uma alusão explícita a "Saussure". No Seminário 7, vemos que, em 1959, ele utiliza sem protestar, a propósito do sistema constituído pelos Wahrnehmungszeichen, a noção saussuriana de sincronia - pois para ele, como veremos, a sincronia só afeta o significante. Por sincronia, Lacan traduz a Gleichzeitigkeit - "simultaneidade"?, "contemporaneidade"?- de Freud:
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Mas não esqueçam que lidamos com o sistema de Wahrnehmungszeichen, sinais da percepção, isto é, com o sistema primeiro dos significantes, com a sincronia primitiva do sistema significante (p.84-5; ver também, no mesmo Seminário, p.66-7).
E de fato, é realmente uma relação sincrônica de oposição que se estabelece entre o forte o da de "Mais-além do princípio de prazer": 14 Tudo começa na medida em que é ao mesmo tempo, na Gleichzeitigkeit, que vários significantes podem apresentar-se ao sujeito. É nesse nível que o Fort é correlativo do Da. O Fort só pode expressar-se na alternância a partir de uma sincronia fundamental (ibid.).
Em 1973, no Seminário 20, ele explode de alegria, e precisa a cronologia da antecipação de Freud sobre a lingüística: Ele [Freud] nos designa um tempo em que esses Wahrnehmungszeichen devem ser constituídos na simultaneidade. O que é isso? - a não ser a sincronia significante. E, evidentemente, Freud o diz, e o diz cinqüenta anos antes dos lingüistas. Mas nós podemos imediatamente dar-lhes, a esses Wahrnehmungszeichen, o seu verdadeiro nome de significantes (p.46; ver também, em 1971, "Lituraterre", p.6, desta vez com uma referência explícita à data em que "Saussure ainda não o [o significante] reproduziu (do signans estóico)).
Deixemos Lacan dando pulinhos de alegria e não especulemos demais sobre as datas. Cinqüenta anos? Mesmo supondo-se totalmente estabelecida a identidade, de parte a parte, dos conceitos, Freud estaria, na realidade, muito pouco à frente de Saussure. Pois a carta 52 a Fliess data de 6 de dezembro de 1896. Apenas doze anos depois, Saussure daria em Genebra o seu primeiro curso de lingüística geral. E sabemos até que ponto os conceitos que surgem nessa ocasião já estavam em gestação há muitos anos antes, nos textos que, na verdade, não são nem mais nem menos públicos do que a carta particular dirigida a Fliess em 1896: assim a oposição entre sincronia e diacronia estava em germe - sem esses nomes - desde a conferência sobre a lingüística geral pronunciada em Genebra ... em 1891. O segundo étimo freudiano do significante saussuriano seria, segundo Lacan, a Vorstellungsrepriisentanz. Esta - pois em alemão é um substantivo feminino, apesar das suas traduções francesas, geralmente no masculino- aparece de modo particularmente firme em 1959, no texto "Sobre a teoria do simbolismo de Emest Jones":
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É o significante que é recalcado, pois não há outro sentido a dar nesses textos [da Metapsicologia] à palavra Vorstellungsrepriisentanz (Escritos, p. 722).
Mesma coisa em 1960, no Seminário 7, em que são apresentadas como intercambiáveis as duas expressões "rede significante" e "rede das Vorstellungsrepriisentanzen (p.149). Lacan parece um pouco mais tímido, e de qualquer forma mais difuso, em 1964, no Seminário 11, p.206-7. Entretanto, decide-se outra vez, depois de longos adiamentos, a afirmar a identidade do significante e da Vorstellungsrepriisentanz: O (sic) Vorstellungsrepriisentanz é o significante binário. Este significante vem constituir o ponto central da Urverdriingung 15 - daquilo que, ao ser passado ao inconsciente será, como indica Freud em sua teoria, o ponto de Anziehung, o ponto de atração por onde serão possíveis todos os outros recalques, todas as outras passagens similares ao lugar do Unterdrückt, do que é passado por baixo como significante. Aí está o de que se trata no termo Vorstellungsrepriisentanz (p.207).
Naturalmente, nesse ponto levanta-se um grave problema: o da duplicidade do étimo (ou, pelo menos, do equivalente) freudiano do significante lacaniano. No seu zelo freudólatra e saussuroclasta, Lacan não vai longe demais, ao descobrir para o significante dois antecedentes? Isso quer dizer que os dois conceitos freudianos se recobrem totalmente? Ou que eles correspondem a dois momentos sucessivos da elaboração freudiana? 16 Ou ainda que o significante está apto para recobrir duas conceituações eventualmente diferentes? Se compreendi bem, Lacan não ataca o problema de frente, mas considera os seus entomos com circunspecção no Seminário 7, p.79-81. Tratar disso aqui? Isso nos levaria muito longe, no seio da reflexão freudiana e da sua evolução histórica. Direi apenas que os dados não são, efetivamente, de uma total transparência. É pouco contestável que os Wahrnehmungszeichen17 da carta a Fliess sejam dados como "reunidos segundo associação de simultaneidade". Mas essa simultaneidade é verdadeiramente a "sincronia", como afirmam sem hesitar Lacan, e depois os tradutores da carta (p.159)? Nesse ponto, Freud é excessivamente alusivo para que seja possível decidir. Não se trataria, antes, da simultaneidade da sua inscrição? Ponto comum incontestável ao WZ (abreviatura freudiana de Wahrnehmungszeichen) e à Vorstellungsrepriisentanz: ambos são objetos do recalcamento. Mas eles não têm o mesmo lugar nas duas conceituações freudianas. Vemos como o problema do étimo epistemológico do significante lacaniano é complicado, principalmente sob o efeito da evolução das posições de Lacan. Seria necessário dizê-lo? Não investigarei o tenebroso problema das razões dessa evolução. Constato simplesmente que ela é,
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embora com manifestações diferentes, o equivalente exato das que serão observadas mais tarde, em relação a Pichon, sem falar de Damourette, o velho tio, definitivamente escamoteado. Voltarei ao assunto. Como se Lacan fosse progressivamente atingido por uma incoercível repugnância, constantemente acentuada pelo tempo, a citar o nome dos lingüistas sobre os quais ele se apoiava.IS E especificamente os lingüistas; pois os psicanalistas - mesmo os que ele desprezava - não eram atingidos por essa pulsão de ocultação. Seria preciso abrir um breve parêntese para assinalar que a atitude dos lacanianos em relação a Saussure reproduz - e, infelizmente, muitas vezes caricatura - a do próprio Lacan? Todavia, seria instrutivo e pitoresco fazer a taxionomia das atitudes que eles adotam quanto a ele. Notaríamos, sobre um fundo geral de ignorância - nesse aspecto, sem dúvida alguma, eles se distinguem, com poucas exceções, do seu mestre - aqui, o desprezo (a "fraqueza de Saussure"), ali, a compaixão ("Freud faz falta a Saussure", "falta a Saussure a descoberta de Freud" etc.),19 às vezes o rancor (por quê?), quase sempre o descaso naquilo que se articula a propósito da sua reflexão. Acabamos temendo o que vamos ler, e acabamos tranqüilizados pelo silêncio. Até agora, só abordei o problema das relações entre os dois significantes sob o seu aspecto nominal: quais são, para Lacan, os objetos que merecem o nome saussuriano de significante? Não é impossível que o exame das divergências e depois das convergências entre os dois objetos que gozam da mesma denominação esclareça o problema das suas relações.
Significante saussuriano e significante lacaniano: divergências O que o algoritmo mostra - Aqui, é preciso reportar-se ao trecho citado na p.76-7, e primeiramente prestar atenção nas modificações que Lacan deu, na representação do seu "algoritmo" §., ao esquema do signo sauss
suriano. Anunciadas, nas p.40-1, pela insistência atribuída aos caracteres do esquema de Saussure, elas são em número de três. Duas são imediatamente aparentes; a terceira só se revela pelo que se pode supor sobre as relações entre os elementos do algoritmo tal como são sugeridas pela sua própria forma. Vamos observar e ler essas modificações, tal como elas se manifestam materialmente, sem, por enquanto, levar em conta os comentários explícitos de Lacan. Primeira modificação: a célula que, em Saussure, encerra o signo, desaparece em Lacan. Desaparecem também as duas flechas de sentido
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oposto que, na versão-padrão do ~LG_, marcam a relaçã~ de pressupos~çã? recíproca entre o significado e o s1gn1:ficante. Lacan sabia que, ao supnmrr essas flechas, aproximava-se da forma original dos desenhos de Saussure? Tal como são reproduzidos pelos ouvintes, eles nunca co~portam as flechas, que foram acrescentadas, para fins didáticos, pelos editores. Mas quanto à célula, ela está constantemente present~ :m Saussure, sempre ausente em Lacan. Tratar-se-ia, por essa destrmça~ d~ parede ~ue os encerra, de permitir ao significante (e por que não, ao s1gn1fi~ado?) clfcular sem obstáculo, cada um do seu lado da reta que os separa? E o ~ue sugere como provável a comparação dos dois desenhos. Veremos abaixo se essa hipótese se confirma. . . Segunda modificação: a disposição espac~~l d~s ?ois elem~ntos ~o signo foi invertida, ao mesmo te~po em qu~ fm mstltmda uma h1era:qma na sua representação. Sempre situado a~1n:ia ~a r~t.a de sepa:aç~o, o significante, em grandioso redondo, tem dlfelto a mamscula. O s1g?1~ca do, em modesto itálico, só tem direito à minúscula, e se encol~~ tim1d~ mente sob 0 traço. É óbvio que Lacan sabia o que esperar quanto.ª mver~,ªº que ele operou no esquema, embora às vezes afin;iasse, sem n~ qu~ se em Saussure mesmo [admire-se esse mesmo, que e uma confissao disfarçada!] s está acima de s, sobre a barra" (Seminário 20, p.48). . Assim, 0 significante e o significado, desembaraçados da compartimentação que os encerrava, parecem ter os meios de circular cada um do seu lado: logo, é porque estão rigorosamente separados. Como acabam~s de ver, a linha que, em Saussure, é o índice da relação ent:e os dois componentes do signo, parece tomar-se, no e~quem~ lacamano, 1:111ª "barra" de separação. Intransponível? Talvez nao. MaJestosame~te m~ talado acima dele, o significante domina o significado: nã~ amea?a .1~vadrr 0 seu domínio? Não ameaça "injetar-se no significado? (Semmano 20, p.48). E como faria isso sem atravessar a barra? . O que 0 algoritmo não mostra claramente - Els o que s~~ere exame das diferenças entre os dois esquemas. E quanto aos comentanos formulados por Lacan, em "A instância da letra", e em outros te~tos?_ A esse respeito, uma primeira divergência aparece Im_edmt~ent~, entre a concepção de Lacan e a de Saussure. Para este, a teona do_ s1~0 e, como vimos indissoluvelmente uma teoria do significante e do s1gmficado. É até a "~ião íntima", o "apelo recíproco" (CLG, p.99) do significante e do significado que explicam a terminologia adotad~ por S~ussure. Pa:a Lacan não há nada disso. Existe realmente uma teona do signo. Ela nao deve ~ada a Saussure, pois foi tomada por empréstimo a Peirc~: "O signo representa alguma coisa para algué_m", "o_s~~o supõe o a~guem ~quem ele dá sinal de alguma coisa" ("Rad10phome , p.56). A alusao a Pelfce era
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~xplícita n~
Seminário 7: "E o signo, segundo a expressão de Pierce (sic), e o que esta no lugar de algo para alguém"20 (p.116). Lacan não tem em gr~l_lde conta esse signo, mesmo que, como lembra J.-D. Nasio,21 ele 0 utlhz~ d~ vez ~m quando, a propósito do sintoma. Propósitos bastante Targ1~a!~· O d1scur~o sob~e. o signo é geralmente muito pejorativo. o al~em a quem o signo da smal de alguma coisa? Sua sombra, sim, nada 1:1ª1~. ,d~ q~e "a su~ som~ra é dada como o que "ocultava a entrada na lmgu1stica ( Rad1ophome", p.56). O próprio signo? É ainda pior: que eu _te~h~ de violentar algumas retomadas da palavra, direi sem1otica toda d1sc1phna que parte do signo tomado como objeto mas para n:ar~ar que ~s~á ali o que era obstáculo para a apreensão co:no tal do s1gmficante (1b1d.).
principal "função de corte no discurso a que serve de barra entre o significante e o significado" (Escritos, p.815). Em 1970, até acrescenta, com um riso disfarçado, o nome de Saussure: · [... ] a barra saussuriana [... ] não poderia representar nenhuma intuição de proporção, nem traduzir-se como barra de fração senão por um abuso delirante [esse é o arrependimento citado acima, M.A. ], mas, como o que ela é para Saussure [grifos de M.A.], constituir uma borda real, ou seja, para saltar, do significante que flutua para o significado que flui" ("Radiophonie", p.68; ver também p.55).
Mes:?~
Uma barra, uma barreira, é algo que separa, claro. Mas também é algo que pode ser atravessado: O significante é primeiro aquilo que tem efeito de significado, e importa não elidir que, entre os dois, há algo de barrado a atravessar (Seminário 20, p.29; ver também p.47-8).
~qu~: L~c~ é categórico. Acerta as contas com o signo, com a "ilusão
do s1gn? (1b1d., p.65). E, no impulso, também acerta as contas com Benvemste. As misteriosas "retomadas da palavra semiótica", às quais, nesse te~to de 1970, ele faz alusão, não são nada mais do que aquelas que Benvemste acabava de fazer, no ilustre artigo de Semiotica, no qual, no ano precedente, ele propunha distinguir "dois modos de significância 0 modo SEMIÓTICO, por um lado, o modo SEMÂNTICO, por outro" (in II, p.63)_. Veremos, em outro ponto, as razões da cólera de Lacan contra Benvemste (v~r p.179). V amos nos deter na cólera contra o signo. Ele 0 apres~nta ~qm, necessariamente, como totalmente disjunto do signific~nt~. se nao o fosse, como poderia ser um obstáculo para a apreensão do significante? Observ~m?s: nesse, combate do signo e do significante, um objeto está ausente: o s1gni~cª?º· E, pois, porque para Lacan é possível considerar as aventuras do _significante sem fazer alusão às do significado. Como ver~mos depois, não é que o significado seja foracluído do seu aparato noc10nal. Mas; como o al_goritmo acaba de nos mostrar, ele é simultaneamente subordmado. ao. significante e separado dele. E não é ele que é representado .~el~ sigmficante. Daí a possibilidade de escamoteá-lo. Na verdad~, ele Jª nao está escondido? Não está, até por definição sempre escondido sob a barra? ' De fato, é aqui q~e intervém, enfim, a "barra". Lacan a lê materialmente, com~ ~ barreira que ela não é em Saussure. Nesse ponto, ele é sempre exphclto, mesmo se lhe ocorre admitir - de má vontade e para a~el?ender-se l?g~ em se~uida - que ela também pode "na relação entre si~~ificante e sigmficado , funcionar "a título de fração no sentido matematico_ do termo" (Seminário 11, p.235). Isso é apenas 0 acessório. o essencial, para a barra, é a separação. Assim, em 1960, ele dá como a
PLG
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Segue-se22 a teoria da metonímia- em que a barra não é atravessada e da metáfora - em que ela é atravessada: voltaremos a essa questão. O signo disjunto do significante e até oposto a ele, o significado subordinado ao significante e separado dele por uma barra "resistente à significação": o pobre saussuriano acredita ter bebido o cálice até o fim. Infelizmente, seu calvário não acabou. Resta-lhe saber o que, na verdade, o algoritmo já o fazia temer. Sim, em Lacan, o significado, "que flui", "desliza sob o significante", "que flutua". Aqui, a distância parece máxima entre as duas concepções. Voltemos ao esquema das duas massas amorfas e à comparação da folha de papel: os dois planos do significado e do significante são recortados - pensemos na tesoura, "pan, pan!" -·"ao mesmo tempo" (CLG, p.156), "simultaneamente" (p.157), de modo que são obtidas "delimitações recíprocas de unidades" (p.156). Para Lacan, não há nada disso. Ele parece ter ficado fascinado pelo esquema das duas massas, e é um comentário, certamente sutil, mas sem dúvida ligeiramente falacioso desse esquema que lhe permite introduzir, em "A instância da letra", a capciosa e falaciosa noção de "deslizamento do significado sob o
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significante": Impõe-se, portanto, a noção de um deslizamento incessante do significado sob o significante - que F. de Saussure ilustra com uma imagem que se assemelha às duas sinuosidades das Águas superiores e inferiores nas miniaturas dos manuscritos do Gênesis. Duplo fluxo onde parece tênue o marco dos finos riscos de chuva que ali desenham os pontilhados verticais que se supõe limitarem segmentos de correspondência (Escritos, p.506).
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Saussure, Lacan, Freud Lacan, leitor de Saussure
A argum~ntação é ao mesmo tempo forte e fraca. Forte, pois se baseia em 1:,m J~ª~º mcontestável do esquema, tal como ele aparece na edição.padra?: e verd~de, as linhas são pontilhadas e podem efetivamente mduzir. u~! met?fora cara a Lacan, a da chuva e da erosão que ela determma. Aqm, a chuva é excessivamente fina para erodir suficientemente o real e traçar as fronteiras citadas por Saussure. o que dizer de tal a~gument~ção? Em si mesma, ela é indiscutível. Mas, de outro p~;:;~ de ~ista, ~la e fraca: e até de uma notável fraqueza, precisamente porque ela e ,metafora, e alem disso metáfora mal fundamentada. ~ ;~rdade que ~acan não se limita a essa demonstração lúdica. No Semmano 3 --:---: ant~nor, embora pouco: 1955-56 - ele submete 0 esque~a ? ~a ~n,~hse ngoro.sa. Qual é a conclusão que ele visa? Ela já é a de A mstan~ia e se expnme, como muitas vezes nos textos dessa época com a maior transparência: ' A r~lação do ~ignificante e do significado está longe de ser, como se diz na teona dos ~on3untos, biunívoca (p.139).
Segue-se um longo C_?mentário, ainda retomado (p.160-1, p.256-7) e
de~ta vez com a rep~o~u?ªº do traçado saussuriano, tomado da edição-padrao, no fim d.o Semmano, p.295-6. Os pontos essenciais da argumentação merecem ser isolados.
. .º
ponto de ~artida é exatamente saussuriano: é a distinção entre s1gmficado e a coisa:
0
O sign~fi~ad.o não_ são as coisas em estado bruto, aí já dadas numa ordem a~erta a s1gmfi~açao (p.139, ver também p.43, mais uma vez com uma alusão a Santo Agostmho, que é lingüista tanto quanto o Sr. Benveniste". Deveras!).
,, ~esse ponto, Lacan concorda constantemente com Saussure: a "coisa ~ª? ~e confunde com o significado. Mais tarde, bem mais tarde no Semman~ 20 (em 197~), .ele irá considerar do mesmo modo 0 probl~ma das re~açoes, entre o s1gn1ficado e a coisa, então chamada de referente Todavia, sera no nível do ato de fala que 0 problema será apresentado: ·