328 95 9MB
Portuguese Pages 165 [166] Year 1972
biblioteca de ciências sociais
IDÉ.lffS SOBI~e UlYlff T~BORiff
cRIT,cn
Dff SOCIHDC\DH Z AH AR
~ EDITORES
A IDEOLOGIA DA SOCIEDADE INDUSTRIAL HERBERT MARCUSE
(3• edição)
Não obstante a moderna sociedade industrial parecer, em seu conjunto, a própria perscnificação da Razão, ela é irracional como um todo. Sua produtividade é destruidora do livre desenvolvimento das necessidades e faculdades humanas : sua paz mantida pela constante ameaça de guerra ; seu crescimento dependente da repressão das possibilidades reais, de amenizar a luta pela existência - individual, nacional e internacional. Essa repressão tão diferente da que caracterizou as etapas anteriores, menos desenvolvidas, de nc,ssa sociedade, atua, hoje, não de uma posição de imaturidade natural e técnica, mas de uma posição de força, servida por uma tecnolog'ia esmagante dos aspectos criadores da natureza humana. · A investigação desses fatos, e o exame de suas alternativas históricas, são parte do · objetivo de uma teoria crítica da sociedade con• temporânea empreendida por HERBERT MARCUSE, _uma teoria que analisa à luz de suas aptidões intelectuais e materiais. Sem pretender resolver todos os problemas que suscita, MARCUSE tenta demonstrar, em termos de lúcida crítica, a possibilidade de utilização plena das aptidões e recursos da sociedade moderna para o máximo desenvolvirnento e satisfação das necessidades e faculdades individuais, advertindo que sua teoria se opõe a toda metafísica, uma vez que teoria social é teoria histórica, e história é o domínio da pos.sibilidade no campo da necessidade.
A cultura a serviço do progress~ social
IDÉIAS SOBRE UMA TEORIA CR1TICA DA SOCIEDADE A teoria crítica da sociedade tem sido o núcl~o central do pensamento filosófico-político de MARCUSE: a evolução do seu pensamento passou a ser colocada em posição de eq uival ência com as suas vocações libertá rias e com as suas convicções marcadamente ideológicas. Sua crítica das realidades sociais, desde o início de sua ca rreira de pensador e de analista social, traz uma fundamentação filosófica primordial, mas liga-se invariavelmente à prâtica política. MARCUSE, por estas características de singularidade técnica e profissional, veicula um pensamento emi nentemente polêmico: não explica, apenas, a reali dade social que lhe toma a atenção, mas penetra-a e julga-a em função de categorias e de premi ssas sociais vi gentes. As catego rias fund amentais de teoria e de prática são incansavelmente mostradas, tanto nos escritos iniciais como nos escritos atuais de MARCU SE, como funções si mult;ineas na apreensão ob jetiva do real : a prática não se situa tão-somente no final da teoria, mas apresenta-se com imediata necessidade também no seu começo. Esta frase, com que MARCUSE definiu a fil oso fia social de MAR X, aju sta-se perfeitamente à sua própria posição fil osófica. · Um quadro de impressionante rigor metodológ ico e de penetração analítica, o presente livro é um dos mais representativos de MARCUSE, v erdadeira traj etó ria de sua inteligência, uma visão da vida ocidental neste meio século - painél ideológico de intuições agudas e de senso profético, marca de todo reformador convi cto. HERDERT MARCUSE é fil ósofo de reputação internacional , nas cido na Alemanha e radi cado nos Estados U nidos desde a Segunda Guerra Mundial. Formado pelas Univer sidades de Berlim e Friburgo, foi confe rencista em Harvard e Colúmbia e Professo r de Política na Universidade Brandeis. Atualmente é Professor de Filosofia na Universidade da Califórnia, em San Diego.
EROS E CIVILIZAÇÃO (S• edição) HERBERT
MARCUSE
Na teoria freudiana, a civilização surge-nos estabelecida em contradição com os instintos primários e o princípio do prazer, na permanente subjugação dos instintos humanos. A livre gratificação das necessidades instintivas do homem seria, pois, incompatível com a sociedade civilizada : dilação e renúncia na satisfação constituem pré-requisitos do progresso. Para o autor deste ensaio, porém, a própria concepção teórica de FREUD parece refutar a sua firme negação da possibilidade histórica de uma civilização não-repressiva. Opondo-se às escolas revisionistas neofreudianas, afirma que a teoria de FREUD é "sociológica" em sua substância, que o "biologismo" é teoria social numa dimensão profunda, e que, portanto, nenhuma nova orientação cultural ou sociológica é necessária para revelar essa substância. Admite, ainda, que as próprias realizações da civilização repressiva parecem criar as precondições para a abolição da repressão e transformação da sociedade. Num candente prefácio político escrito cm 1966 para a nova edição deste livro, HERBERT MARCUSE destaca o fato da moderna sociedade industrial depender cada vez mais da produção e consumo do supérfluo, do obsoletismo planejado e dos meios de destruição. Localiza o "inferno" nos guetos ~a sociedade afluente e nas áreas cruciais do mundo subdesenvolvido, e interpreta a propagação da guerrilha como um acontecimento simbólico : a energia do corpo humano revolta-se contra a repressão intolerável e lança-se contra as máquinas de repressão.
ZAHAR
EDITORES
a cultura a serviço do progresso social RIO DE J.\NEIRO
IDÉIAS SOBRE UMA TEORIA CRiTICA DA SOCIEDADE
ATUALIDADE
HEHBEHT MARCUSE
IDÉIAS SôBRE UMA TEORIA CRíTICA DA SOCIEDADE Tradução de
f AUSTO GUIMARÃES
ZAHAR EDITORES RIO DE JANEIRO
Título original: ldeen zu einer kritischen Theorie der Gesellschaft Traduzido da edição publicada em 1969, por Suhrkamp Verlag, Frankfurt, Alemanha.
Copyright
©
1969, by Sulzrkamp Vcrlag
capa de ÉRICO
1972
Direitos para a língua portuguêsa adquiridos por ZAHAR
EDITORES
Rua México, 31 -
Rio de Janeiro
que se reservam a propriedade desta tradução
Impresso no Brasil
fNDICE
NOVAS
FONTES
PARA
A
FUNDAMENTAÇÃO
DO
MATERIALISMO
......................••.••. · · · · · · · · · · · · · · · · · ·
g
ESTUDO SÕBRE A AUTORIDADE E A FAMÍLIA . . . . . . . . . . . . . . . . . .
56
HISTÓRICO
Introdução
56
I. Lutero e Calvino . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
60
II. Kant . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
83
III. Hegel . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
99
IV. Contra-Revolução e Restauração . . . . . . . . . . . . . . .
115
V. Marx . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
132
VI. A Transformação da Teoria Burguesa da Autoridade em Doutrina do Estado Totalitário (Sorel, Pareto) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
147
SôBRE O CONCEITO DE NEGAÇÃO NA DIALÉTICA . . . . . . . . . . . . . . .
160
7
Novas Fontes para a Fundamentação do Materialismo Histórico
A
DIVULGAÇÃO dos oka1wmisch-philosophischen Mmwskripte (Manuscritos Econômico-Filosóficos) de 1844 de 1
Marx deve representar um acontecimento decisivo na história da pesquisa sôbre Marx. Êsses Manuscritos poderiam colocar cm uma base inteiramente diversa a discussão sôbrc a origem e o sentido original do materialismo histórico e, a rigor, de tôda a teoria do "socialismo científico"; possibilitam, igualmente, uma colocação mais frutífera e de melhores perspectivas da questão da relação real entre Marx e Hegel. O caráter fragmentário dos ivlanuscritos ( trechos consideráveis parecem ter sido perdidos, a análise freqüentemente é interrompida cm pontos decisivos; não existem passagens definitivamente redigidas) exige uma interpretação detalhada e que passe por cima dos trechos isolados mantendo a ligação permanente com o contexto global, e, além disso, são extremamente elevadas as exigências que o texto apresenta para o leitor. Com efeito, trata-se aqui, é bom dizêlo desde já, de uma crítica e fundamentação filosóficas da Economia Política 110 sentido t.le uma teoria da revolução. ' Terceiro volume ela primeira parte da edição completa das obras de Marx e Engels (Marx-Engels Gesamtausgabe). Foram publicados quase que simultâneamente também sob o título Nationalokonomie und Philosophie (Economia Política e Filosofia) na edição de bôlso de Krõner, vol. 91 (K. Marx, Der Hislorische Materialismus. Die Frühschri/ten /) (0 Materialismo Histórico. Escritos Iniciais 1) págs. 283 e segs. Nesta edição falta a parte publicada da Ôesamtausgabe sob o título Primeiro Manuscrito, págs. 39-94, que é imprescindlvel para a compreensão do conjunto. A leitura do texto se afasta em muitos trechos em relação à Gesamtausgabe.
9
IDÉIAS SÚRI/E UMA TEORIA CRÍTICA DA SOCIED,\I>E
As dificuldades devem ser bem salientadas desde o 111Ic10 porque é preciso evitar o perigo de que também êsses Manuscritos sejam encarados com leviandade e imediatamente colocados nos compartimentos habituais e esquemáticos da pesquisa sôbre Marx, um perigo que é tanto maior quanto já aqui se encontram tôdas as conhecidas categorias da crítica da Economia Política posteriormente feita por Marx. Contudo, nos Manuscritos Econônzico-Filosóf icos torna-se claro - como nunca antes - o sentido original das categorias fundamentais e poderia tornar-se necessário rever a interpretação corrente do tratamento posterior da crítica à vista dessas origens. E talvez uma exposição preliminar dêsses Manuscritos já baste para mostrar que não procede tampouco a conhecida tese sôbre um desenvolvimento de Marx da base filosófica da teoria para a econômica. Trata-se aqui de uma crítica filosófica da Economia Política, pois as categorias fundamentais da teoria de Marx aparecem aqui no ajuste de contas• preciso com a filosofia hegeliana (por exemplo, trabalho, objetivação, alienação, superação, propriedade); e isso não no sentido de que o "método" de Hegel, modificado, seja retomado e, dentro de um nôvo contexto, vivificado: o que ocorre é que, com o retôrno à própria base da problemática da filosofia hegeliana ( que constitui o primeiro e mais importante fundamento do método), o conteúdo dessa filosofia é apropriado e pensado ulteriormente, desenvolvido. O grande significado dos novos Manuscritos reside também em que nêles temos o primeiro documento do ajuste de contas explícito de Marx com a Fenomenologia do Espírito (Phaenomenologie des Geistes) de Hegel, "o verdadeiro lugar de nascimento e o segrêdo da filosofia hegeliana" (pág. 153). Se, então, o ajuste de contas com a base da problemática filosófica de Hegel entra na própria fundamentação da teoria de Marx, não mais cabe a afirmação de que essa fundamentação seria apenas uma transposição do terreno filosófico para o econômico, no sentido de que em sua forma ulterior ( econômica) a filosofia estaria superada e "liquidada" de uma vez por tôdas. Ao contrário, a fundamentação, • Auseinandersetz1111g não tem tradução rigorosa em português; a expressão acima é a que melhor corresponde ao sentido. (N. do T.)
10
NOVAS
FONTES DO MATERIALISMO
HISTÓRICO
cm tôdas as suas fases, traz consigo a base filosófica, e isso em nada é alterado pelo fato ele que seu sentido e objetivo não mais sejam puramente filosóficos e sim prático-revolucionários: a derrubada da sociedade capitalista pelo proletariado em luta econômica e política. Exatamente isso é que deve ser visto e entendido: que a política e a economia, fundamentadas em uma interpretação filosófica bem determinada da essência humana e de St!a concretização histórica, se transformam na base político-econômica ela teoria da revolução. A relação bastante complexa entre teoria filosófica e econômica e entre essa teoria e a prática revolucionária, relação que sómente por meio da análise da situação original do materialismo histórico pode ser esclarecida, talvez se torne mais visível após uma interpretação detalhada dos Manuscritos Econômico-Filosóficos (interpretação que será apenas iniciada aqui). De forma grosseira e esquemática, talvez possa afirmar-se como antecipação que a crítica revolucionária da Economia Política é, por si mesma, filosóficamente fundamentada, do mesmo modo que a filosofia que a fundamenta já traz consigo a prática• revolucionária. A teoria, por si mesma, é uma teoria prática. A prática não se situa apenas no fim, mas já no início da teoria, sem que, com isso, se penetre cm um terreno estranho e exterior à teoria. Depois destas observações introdutórias, comecemos com uma caracterização do conteúdo global dos Manuscritos. O próprio Marx indica como objetivos dos Manuscritos a crítica da Economia Política, e, diga-se de passagem, sua crítica "positiva" ( pág. 34). Ou seja, uma crítica que, ao mesmo tempo que indica as limitações reais e os descaminhos da Economia Política, apresenta os fundamentos de sua construção objetiva. A crítica positiva da Economia Política é, como tal, uma fundamentação crítica da Economia Política. No interior mesmo dessa crítica, a idéia da Economia Política é inteiramente transformada. Ela se transforma em uma ciência das condições necessárias da revolução comunista. E essa revolução significa acima e além de tôda transformação econômica uma revolução de tôda • Não vejo motivo para conservar a forma original praxis, já que significa exatamente prática. (N. do T.)
11
IDÉIAS SÓBRE U,\IA TEOWA CRÍTICA DA SOCIEDADE
a história do homem e da determinação de sua c::-sência. "tstc comunismo é ( ... ) a verdadeira solução do conflito entre o homem e a natureza, entre o homem e o homem, a verdadeira solução do conflito entre existência c essência, entre objetivação e auto-afirmação, entre liberdade e necessidade, entre indivíduo e espécie. E' o enigma decifrado da história e se sabe como esta solução" (pág. 114). Ora, é claro que, se a crítica da Economia Política adquire um tal significado central, a Economia Política desde o início não pode ser considerada como uma ciência qualquer ou como um terreno científico qualquer e, dêssc modo, tomada como objeto de análise, mas como expressão científica de uma problemática que apreende tôda a essência humana. Assim, temos que, antes de mais nada, ver melhor como o quê a Economia Política é tomada aqui como objeto de análise. Objeto de análise, a Economia Polltica o é como justiflcação ou ocultamento de uma "alienação" e "desvalorização" totais da realidade humana, como ocorre na sociedade capitalista - como uma ciência que toma como seu objeto o homem como "não-ser"• (pág. 109), o homem cuja existência é totalmente determinada pela "separação entre capital, trabalho e terra", pela divisão inumana do trabalho, pela concorrência, pela propriedade privada etc. (pág. 81). Essa Economia Política é a sanção científica da distorção do universo histórico-social do homem cm um universo do dinheiro e da mercadoria estranho e hostil ao homem, no qual a maioria da humanidade existe apenas como trabalhador "abstrato" ( isolado da realidade da existência humana), apartado do objeto de seu trabalho, forçado a vender a si mesmo como mercadoria. A partir desta "alienação" do trabalhador e do trabalho, a realização de tôdas as "fôrças essenciais" do homem se transforma cm total "desrealização"; "' o mundo objetivo não mais é "verdadeira propriedade humana", apreendida '' Unwesc11, em alemão. significa dcsor r;h1t·ralt' ( edição francesa dt: P. Bovrn), Laus;1nne-P;iris, 1919, li, § 2.0'.H : Idem. § 2.027. " Idem, § 2.05..J. ' Idem, § 2.057.
154
ESTUDO SÓHRE /1 AUTORIDADE E /1 FAMILIA
decisivo dessa teoria a substituição da divisão material da sociedade cm classes por uma divisão formal segundo as "capacidades", sendo essa própria divisão flutuante e atravessando as classes existentes; a interpretação da dominação social como um sistema inteiramente "aberto", no qual podem penetrar elementos de todos os grupos sociais. Essa interpretação, que oculta a situação real, transformou-se em pedra angular da teoria total-autoritária. O conceito do sistema de dominação aberto correspondia, já na época cm que apareceu a sociologia de Pareto, apenas a uma tênue superfície da realidade social. O sistema de dominação há muito tempo já tinha sido fechado cm têrmos de classe a partir de seu fundamento econômico, e a circulação das elites representava apenas um fenômeno periférico do mecanismo social. Por isso mesmo, os grupos dominantes podiam aceitar plenamente a teoria das elites: à base firme da hierarquia de classes pode aceitar-se uma ligeira circulação das elites; o aparelho econômico e político era suficientemente forte para mantê-la dentro de determinados limites. O que Pareto oferece aos discípulos políticos de sua teoria é, acima de tudo, a indicação do significado decisivo de determinadas constantes e mecanismos psíquicos, do valor de ações irracionais "não-lógicas" para a estabilização da dominação social. "Como outras coletividades, as classes governantes empreendem ações lógicas e ações não-lógicas. A parte principal do fenômeno é a organização, e não a vontade consciente dos indivíduos que, em certos casos, podem ser levados pela organização aonde sua vontade consciente não os levaria."' Pareto é o primeiro que, na fase monopolista do capitalismo, apreende e trata o problema psicológico do domínio de classe; êle foi também o primeiro que colocou a autoridade nesse contexto social. Determinantes para a organização social são os "resíduos" e sua forma racionalizada: as "derivações" e os "apetites e intcrêsses" cuja expressão os resíduos representam.• Resíduos são certas constantes psíquicas socialmente atuantes que "correspondem" 1 a determinados ins" Idem, § 2.254. '' Idem 1, tj 861; II, ~ 2.205. ' Idem; 1, §§ 850/851. 11.
155
IDÉIAS SÔBRE UMA TEORIA CRÍTICA DA SOCIEDADE
tintos (apetites, gostos, disposições) e interêsses simples dos homens, e perfazem o verdadeiro núcleo das "ações não-lógicas" socialmente tão relevantes.• As derivações podem_ ser aproximadamente caracterizadas corno racionalizações · dos resíduos; elas retiram tôda sua fôrça social cios resíduos que as transformam em sólidos complexos de idéias. • Se os resíduos são uma "manifestação dos sentimentos", as derivações são "manifestação na necessidade ele raciocinar". 1 º Elas atuam fundamentalmente no sentido de manter o "equilibrio social", ou, mais concretamente ( como Pareto disse certa vez referindo-se às Ciências Sociais) : "a persuadir os homens a agir de certa forma que é considerada útil à sociedade". 11 O que é decisivo é que essas constantes psíquicas e suas racionalizações foram incluídas em uma teoria da dóminação social. A estabilidade e a continuidade da dominação dependem da existência e atuação dêsses resíduos e derivações, da determinada proporcionalidade entre êles. Tôda dominação, é certo, se baseia na fôrça e na racionalização da fôrça, "' mas sómente isso jamais pode garantir a estabilidade e a continuidade da dominação: é necessário o consentimento mais ou menos voluntário dos dominados "tem-se, por tôda parte, uma classe governante pouco numerosa que se mantém no poder em parte pela fôrça, em parte com o consentimento da classe governada, muito mais numerosa".,., E êsse consentimen• Idem, li, ~ 7U~. • Idem, li, § l.:W7. 1 º Idem, § 1.401. 11 Idem, § 1.403. Para tom.ir mais clara a questão, acrescentamos a divisão dos resíduos e derivaçües, segundo Pareto (1, § 888; II, ~ 1.419): Resíduos: 1) instinto de combinaçües; 2) persistência dos agregados (especialmente os sentimentos familiares e religiosos); 3) neccssid.ide de manifestar seus sentimentos por atos exteriores; 4) resíduos em relação à sociedade (especialmente a necessidade de uniformidade; piedade, crueldade e os sentimentos de hierarquia); 5) integridade do indivíduo e de suas dependências; 6) resíduo sexual. Derivações: 1) afirmaçües; 2) autoridade; 3) concordâncta com os sentimentos ou os princípios; 4) provas verbais. "Idem, § 2.183. 13 Idem, §§ 2.224, 2.251.
156
Esnmo
SÔRRE A AUTORIDADE E A FAMÍLIA
to se baseia essencialmente na existência correta dos resíduos e. derivações e na capacidade da classe governante de empregá-los como "meio de govêrno". Pare to elaborou o caráter ideológico dêsses meios de dominação: o fato de que seu valor social de modo algum se baseia em seu conteúdo de verdade, e sim em sua "utilidade social", no sentido de ocultar os verdadeiros fundamentos da organização social e produzir sentimentos que apóiam psi.., cologicamente e reproduzem permanentemente a estrutura de dominação existente. "Em resumo, essas derivações exprimem sobretudo o sentimento daqueles que, aferrados ao poder, querem conservá-lo, e também o sentimento muito mais geral da utilidade da estabilidade social.",. Elas servem "para acalmar" os governados: êles são convencidos de que todo poder emana ele Deus, que qualquer rebelião é um crime, que, para exigir aquilo que é justo, só se deve utilizar a "razão" e nunca a "fôrça". "Essa derivação tem por objetivo principal impedir os (governados) de travar a luta em um terreno que lhes é favorável."" Mas, as derivações são, por sua vez, referidas às constantes psíquicas que jazem mais profundamente na camada do inconsciente, irracional. " ( ... ) A obra dos governos é tanto mais eficaz quanto mais souberem tirar partido dos resíduos existentes."" Pareto reconhece que a transformação relativamente lenta dessas constantes psíquicas, sua resistência em relação aos fenômenos sociais que se transformam com maior velocidade, é um dos motivos decisivos para a continuidade do processo social: "E' também isso que assegura a continuidade da história das sociedades humanas, pois precisamente a categoria ( a) (resíduos) varia pouco ou lentamente." " Com isso se dá também a colocação do fenômeno da autoridade. :Êle se apresenta primeiro como derivação, em sua forma manifestamente racionalizada, e, em segundo lugar, como resíduo: como os sentimentos que se acham na base dessa manifestação. Sob o título de derivação, Pareto oferece fundamentalmente apenas uma descrição de " Idem, § ''' Idem, § 1 • Idem, § " Idem, §
2.184. 2.192. 2.247. 2.206.
157
IDÉIAS SÔBRE VMA TEORIA CRÍTICA DA SOCIEDADE
diversas relações de autoridade; '' ao mesmo tempo, observa a grande resistência do fenômeno da autoridade: "o resíduo da autoridade atravessa os séculos sem perder sua fôrça"." Mais importantes são os resíduos cuja derivação é representada pela relação de autoridade: como sua base psíquica se apresenta à classe de sentimentos reunida sob o título "persistência dos agregados"."' Entre êles se encontram novamente em primeiro plano aquêles sentimentos que têm sua origem na família: relações de família e de coletividade, relações entre os vivos e os mortos, relações entre um morto e as coisas que êle possuía durante sua vida etc. Pareto percebeu o significado da família para a preparação, manutenção e subseqüência psíquicas da autoridade; várias vêzes assinalou que qualquer enfraquecimento dessa persistência dos agregados ameaçaria diretamente a estabilidade da dominação social. "' A segunda base de apoio psicológico da autoridade é vista por êle nos sentimentos dos inferiores: sujeição, afeição, respeito, temor. "Experimentar êsses sentimentos é uma condição indispensável à constituição das sociedades animais, à domesticação dos animais, à constituição das sociedades humanas"." Também aqui Pareto dá uma descrição dos fenômenos "livre de valôres", mas é exatamente por meio dessa descrição aberta e desprovida de quaisquer concepções morais ou sentimentais que se refere exclusivamente à utilidade das constantes e mecanismos psíquicos como meio de govêrno, que a função social dos fenômenos descritos se expressa claramente. Muito mais claramente do que cm Sarei, que em vários pontos foi mais além do que Parcto na descoberta dos domínios psíquicos inconscientes como terreno para a estabilização social. Acima de tudo Sorel chama a atenção para o papel da familia na r.ealização dos "valôres de virtude" sociais. A família é a "região misteriosa ( ... ) cuja organização influencia tôdas as relações sociais"; "' nela se concretizam '" Idem, §§ 1.434-l .4!i3. "' Idem, § t.439. 'º Idem, § t .434. " Idem, §§ 2.1 !11, 2.25-t, 2.0-18. "' Idem, 1, § 1.156. "' Réflexions s11r tu l'ioll'nce, pág. 2 U.
158
ESTUDO SÓBRE ,\ AUTORIDADE E A FMIÍI.IA
aquêlcs valôres supremamente valorizados pela sociedade atual, tais como "o respeito da pessoa humana, a fidelidade sexual e o devotamento aos fracos".•• Mas, muito contráriamente a Parcto, Sorel dá à família uma sagração moral e sentimental: êle louva a família monogâmica como a "administradora da moral da humanidade","" sem reconhecer sua conexão com a sociedade burguesa. O método intuicionista de Sorel, com a primazia que dá ao todo "percebido" cm relação à análise classificadora, perde de vista inteiramente o caráter dialético dos objetos sociais. í:.le vê a família estàticamente, sob a forma de ou ... ou, da mesma maneira que vê a autoridade, colocando-a fora da alternativa entre autoridade num Estado de classes e carência de autoridade na anarquia, numa dimensão 111etafísico-moral. A análise positivista de Pareto tem uma bem maior afinidade com a dialética da realidade social. Para ela também o caráter ambíguo da relação de autoridade se torna claro, como se se tratasse dos negócios dos objetos da autoridade pelas costas cios portadores ela autoridade. "Não se pode dizer, tampouco, que, quando a classe governante busca um objetivo que lhe é vantajoso, sem se preocupar com o que êle representa para a classe submetida, esta última sofra nccessàriamente um dano. Com deito, existem casos bastante numerosos em que a classe governante, buscando exclusivamente seu próprio proveito, promove ao mesmo tempo o elas classes governadas."" A dinâmica cio caráter dúplice dessa relação não foi analisada por Pareto; êle colocou o elemento positivo e o negativo mecânicamente um ao lado do outro. Esta dinâmica. contudo. caracteriza a história. ],9,'Hi " Idem, pág. ]G t.
" Freund, pág, 106. "•' Pardo, § 2.24!1,
159
Sdbre o Conceito de Negaçào 1w Dialética
que estamos todos de acôrdo cm que existem certas dificuldades para determinar o conteúdo do período histórico atual e especialmente o desenvolvimento do capitalismo maduro com os conceitos originais ou mesmo os conceitos desenvolvidos da teoria marxista, ou, mais ainda, creio ser possível determiná-lo, mas isso nos traz de volta a uma nova dificuldade. Se uma mesma teoria pode apreender tanto o desenvolvimento A como o não-A, tanto a prosperidade como a crise, a revolução como a ausência de ri:volução, a radicalização da classe operária como a integração da classe operária no sistema existente, então isso pode falar a favor da validade da teoria, porém fala também a favor de sua indiferença. E exatamente essa crítica foi feita à teoria marxista, neste contexto, a saber, a crítica de que ela contém um mecanismo construído ck tal modo que a garante contra qualquer contestação por meio da realidade. Ora, eu creio que essas dificuldades se relacionam com a origem da dialética de Marx na dialética de Hegel, e por isso gostaria de discutir aqui essa relação exatamente neste contexto. O que vemos no período atual parece representar algo como uma imobilização da dialética da negatividade. Defrontamo-nos com formas novas do capitalismo maduro e, portanto, com a tarefa de desenvolver o conceito de dialética adaptado a essas novas formas. Formulando a questão de modo mais geral: parece-me que a principal dificuldade reside no conceito dialético segundo o qual as fôrças negativas se desenvolvem no seio de um sistema antagônico existente. Parece que êsse desenvolvimento da negatividade no interior do todo antagônico é, hoje, dificilmente demonstrável. Por isso gostaria ele começar êstc CREIO
160
SôBRE O CONCEITO DE NEGAÇÃO
NA DIALÉTICA
pequeno ensaio com a discussão do negativo, mais ainda, gostaria de partir da controvérsia que existe hoje na França sôbre a tentativa de Althusser de determinar de forma nova a relação entre a dialética de Hegel e a de Marx. Assinalou-se freqüentemente o caráter positivo-conformista da dialética hegeliana. Gostaria de ir até o ponto de dizer que a negação na dialética hegeliana adquire um caráter aparente, no qual, por meio de tôda a negação, por meio de tôda a destruição, cm t1ltima instância, o já existente se desdobra e, por meio da negação, é elevado a um es1ágio histórico superior. Parece que, por meio de tôdas as ascensões e regressões explosivas e radical-revolucionárias, na filosofia de Hegel é sempre a mesma essência que se desdobra com suas possibilidades imanentes, ainda que impedidas de manifestar-se, libertadas por meio da negação. Acredito que êsse caráter conformista não representa uma acomodação de Hegel a relações externas, e sim reside no próprio conceito de sua dialética, na qual, em última instância, impõe a positividade da razão, o progresso. Ora, Althusser afirma que se Marx tivesse apenas recolocado de cabeça para cima a dialética hegeliana, êle teria, sem dúvida, transformado a base do sistema, mas teria apenas oposto um outro sistema da razão ao hegeliano. Ou seja, êle teria permanecido no interior da filosofia, cm vez de superar a filosofia. Na realidade, segundo Althusser, Marx teria rompido com a dialética hegeliana ao desenvolvê-la com uma dialética nova, independente, sôbre o base do "desenvolvimento real" ( expressão devida ;i Engels). Gostaria de opor a essa tese de Althusser uma antítese, a saber, a de que também a dialética materialista permanece no terreno ela razão idealista, na positividade, na medida em que não destrua a concepção do progresso, segundo a qual o futuro já está sempre enraizado no seio do existente; na medida em que a dialética marxista não radicaliza o conceito de transição no sentido de uma nova etapa histórica, isto é: a conversão, a ruptura, na teoria, com o passado e o existente, a diferença qualitativa na direção do progresso. Não se trata aqui de uma exigência abstrata, mas de um problema bastante concreto em relação à questão de se e em que medida a etapa tardia 161
IDÉIAS SÓBRE UMA TEORIA CRÍTICA DA SOCIEDADE
ela sociedade industrial ocidental, pelo menos no que se refere à base técnica do desenvolvimento das fôrças produtivas, pode servir como modêlo para a construção de uma nova sociedade. Gostaria de explicitar a questão cm função dos dois conceitos dialéticos essenciais: a negação da negação como desenvolvimento imanente de um todo social antagônico, e o conceito de todo no qual cada elemento singular encontra seu valor e sua verdade. Em primeiro lugar, vejamos o primeiro conceito, o da negação corno superação. Essencialmente, tanto para Marx como para Hegel, as fôrças negadoras que rompem e levam a uma nova etapa as contradições que se desdobram cm um sistema se desenvolvem no interior dêsse sistema. Assim, por exemplo, a burguesia no interior da sociedade feudal, ou o proletariado como fôrça revolucionária no interior do capitalismo: negação determinada no sentido dessa posição contra o todo já no interior do todo. Mais ainda. Por meio dessa negação que se desenvolve no interior de um sistema o movimento no sentido da nova etapa se transforma necessàriamcnte cm etapa superior, na qual liberta as fôrças produtivas contidas no sistema estabelecido. Ou seja, temos também aqui o desdobramento, com tôda a transformação revolucionária do todo existente, de uma essência já existente que não pode tornar-se realidade nos quadros do existente. Assim, já existe na base técnica altamente desenvolvida da produção capitalista o fundamento material para o desdobramento da produtividade socialista. Não será isso, contudo, mais uma vez uma forma do progresso ela razão objetiva e uma nova forma da primazia do passado que se reproduz, do trabalho objetivado no aparelho técnico sôbre o trabalho vivo? Eu colocaria a contraquestão em relação a essa concepção da dialética acima indicada: será que as fôrças negadoras no interior de um sistema antagônico se apresentam necessàriamente, do ponto de vista histórico, dessa forma progressiva e libertadora de desdobramento, será que as classes e a luta de classes têm que ser incluídas em tal dinâmica positiva? :Êsse problema se refere ao materialismo histórico como um todo em relação com a diaiética idealista. A saber: não será que o materialismo 162
SôBRE O CONCEITO DE NEOAÇÃO NA DIALÉTICA
dialéiico reduz sua própria base material na medida em que não penetra cm grau suficientemente profundo na ação das instituições sociais sôbre o ser e a consciência dos homens; na medida em que reduz o papel da violência, ianto da violência brutal como da violência dos fatos (por exemplo, a produtividade crescente do trabalho e o nível de vida crescente); na medida em que subestima o papel da ciência e da técnica ligadas à violência na formação e determinação das necessidades e da satisfação dessas necessidades? Isto é: não será que o materialismo marxista subestima as fôrças de integração e coesão que atuam na fase madura do capitalismo? Trata-se, aqui, não de fôrças espirituais, ideológicas, e sim de fôrças sociais suficientemente poderosas e materiais para neutralizar as contradições durante todo um período, para suspender as fôrças negativas, destruidoras, ou mesmo transformá-Ias cm fôrças positivas, que reproduzem o existcn te ao invés de destruí-lo. Resultado dessa hipótese: questionabilidade do conceito da negação que se desdobra 110 interior de um todo existente como libertação. E, com isso, questionabilidade também dêsse conceito materialista da razão na história. E daí a necessidade de libertar