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Portuguese Brazilian Pages [217] Year 2018
Capa_Santaella_gamificacao em debate_10mm.pdf 1 27/07/2018 08:09:16
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Gamificação em debate
Organizadores
Lucia Santaella Sérgio Nesteriuk Fabricio Fava
Gamificação em debate
Gamificação em debate © 2018 Lucia Santaella, Sérgio Nesteriuk, Fabricio Fava (organizadores) Editora Edgard Blücher Ltda.
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Angélica Ilacqua CRB-8/7057 Rua Pedroso Alvarenga, 1245, 4o andar 04531-934 – São Paulo – SP – Brasil Tel.: 55 11 3078 5366
Gamificação em debate / organização de Lucia Santaella, Sérgio Nesteriuk, Fabricio Fava. – São Paulo : Blucher, 2018. 212 p. : il.
[email protected] www.blucher.com.br
Bibliografia ISBN 978-85-212-1315-4 (impresso) ISBN 978-85-212-1316-1 (e-book)
Segundo o Novo Acordo Ortográfico, conforme 5. ed. do Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa, Academia Brasileira de Letras, março de 2009.
1. Jogo – Aspectos culturais 2. Jogo – Aspectos psicológicos 3. Jogos educativos 4. Jogos de empresas 5. Jogos eletrônicos I. Santaella, Lucia. II. Nesteriuk, Sérgio. III. Fava, Fabricio.
É proibida a reprodução total ou parcial por quaisquer meios sem autorização escrita da editora. Todos os direitos reservados pela Editora Edgard Blücher Ltda.
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CDD 793.01 Índice para catálogo sistemático: 1. Jogo : Pesquisas
Conteúdo Apresentação 9 1. O sentido da gamificação 11 Referências 19
2. Precursores pré-digitais da gamificação 21 Gamificando práticas religiosas 23 Gamificando a música e a dança 25 Gamificando as artes mágicas 28 Gamificando o estilo de vida no “Século do Jogar” 29 Gamificando a aprendizagem 30 Gamificando o ato de matar 31 Considerações finais 32 Referências 33
3. Gamificação, motivação e a essência do jogo 39 Por que gostamos de jogos? Por que jogamos? 39 O “motorzinho” de todo jogo 41 Perigos da motivação extrínseca 43 O fenômeno da superjustificação 44 Recompensas extrínsecas e behaviorismo 46 Possibilidades para o uso das recompensas extrínsecas 48 Considerações finais 49 Referências 50
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4. A emergência da gamificação na cultura do jogo 51 Onipresença da lógica dos games 52 A emergência da gamificação 55 Definições e expectativas acerca da gamificação 56 Críticas à gamificação 61 Ambiente de oportunidades 63 Referências 63
5. N arrativa e gamificação, ou com quantos pontos se faz uma boa história? 67 Narrativas, games e gamificação 69 Metodologia 73 Análise e discussão dos dados 75 Narrativa na literatura da gamificação 76 Considerações finais 79 Referências 80
6. A pontamentos sobre novos rumos estéticos para as sociedades gamificadas 83 Caráter geral do jogo 86 Breves conclusões 90 Referências 92
7. B rain digital games e funções executivas: delineando interfaces entre os games e a estimulação neuropsicológica 95 Brain digital games: um panorama da revisão de literatura internacional e nacional 96 Estimulando as funções executivas por meio dos brain digital games 101 Gamebook Guardiões da Floresta 103 Método de investigação e resultados 104 Minigames e funções executivas 105 É o GGF um brain digital game? 109 Referências 111
Conteúdo
8. F undamentos da gamificação na geração e na mediação do conhecimento 115 Conceitos sobre gamificação 116 Aprendizagem e gamificação 118 Gamificação para a motivação e o engajamento 119 Narrativa explorada na gamificação 121 Elementos dos jogos na gamificação 122 Exploração das mecânicas dos jogos na gamificação 123 Considerações finais 124 Referências 124
9. Gamificação e o processo de concepção de bens de consumo 127 O design 127 Design enquanto processo 127 Design enquanto pensamento 128 Design Thinking Canvas 129 Resultados 132 Conclusões e desdobramentos 134 Referências 135
10. Iconomia: violência e valor nos jogos de produção dos ícones 137 Crise e teoria crítica do capital em jogo 137 Gamificação de espaços públicos e reinvenção da política 140 Jogo como operação da linguagem: ambiguidade, negação e abertura 142 Referências 144
11. Gamificação em educação: revisão de literatura 147 Introdução 147 Gamificação 148 Gamificação em educação 149 Revisões de literatura 152 Modelos teóricos 154
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Conclusão 157 Referências 158
12. Design educacional em jogo 163 Regras do jogo 164 Contando os pontos e mapeando os caminhos escolhidos 174 Referências 176
13. D esign e educação a distância: ensaio crítico sobre o processo de gamificação 177 Gamificação: conceituação em construção e debate 178 Gamificação, motivação e educação 180 Gamificação na educação a distância 181 Considerações finais 183 Referências 184
14. Gamificação e educação: estudo de caso 187 Referências 197
15. O hiato entre o game e a gamificação 199 Natureza da gamificação 199 Fatores inimitáveis dos games 200 Dupla imersão 201 Finalidade sem fim 202 Narrativa em ato 204 Referências 205
Apresentação Com a expansão e a consolidação dos games como a maior indústria do entretenimento e um dos mais significativos produtos culturais do século XXI, pudemos observar também uma crescente diversidade de seus gêneros e desígnios que extrapolam o campo do divertimento. É o caso dos chamados serious games, jogos pensados para propósitos como educação. Gamificação (gamification) é o termo utilizado atualmente para designar o uso de elementos de jogos (analógicos e digitais) em sistemas e artefatos que tradicionalmente não possuem aspectos ou fins lúdicos. Embora não tenha o intuito de ser um jogo em si, o ato de gamificar pode alterar as relações da experiência do sujeito-jogador com as molduras perceptivas de sua própria realidade imediata. Se, como afirma Huizinga (2014),1 o jogo (play) é uma força atávica e definidora da própria cultura, podemos entendê-lo também como um fenômeno complexo, metamórfico e interdisciplinar. A premissa deste livro nasce do entendimento de que muitas das discussões e das práticas atuais da gamificação limitam a noção de jogo a uma abordagem behaviorista: uma mera estratégia para engajar pessoas e aumentar sua produtividade em determinados ambientes. Gamificação em debate busca expandir essa noção por meio de investigações sobre conceitos, críticas, práticas, ferramentas e métodos atinentes ao jogo a fim de promover novas discussões que explorem, em extensão e profundidade, as singularidades e as potencialidades da gamificação no mundo contemporâneo. Lucia Santaella Sérgio Nesteriuk Fabricio Fava
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HUIZINGA, J. Homo Ludens: o jogo como elemento da cultura. São Paulo: Perspectiva, 2014.
O sentido da gamificação Delmar Domingues
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Os primeiros jogos eletrônicos surgiram como resultado de esforços acadêmico-militares, sem a preocupação de fazer deles um meio de entretenimento. Isso só veio a ocorrer em meados dos anos 1970, quando Nolan Bushnell ajudou a formatar a indústria de games como a conhecemos hoje. A partir de então, os games se tornaram uma das maiores forças de entretenimento, rivalizando com outras formas de lazer, como a televisão, o cinema, os shows, as viagens etc. Desse modo, a sociedade passou a compreender os games como um fenômeno cultural e social, cujas consequências nocivas atraíram a atenção da mídia. Por algum tempo, proliferaram notícias sobre a violência dos jogos, bem como os efeitos colaterais de jogatinas intensas. Alguns games, por solicitarem um tipo de habilidade motora praticada por meio de movimentos do tipo “estímulo-resposta”, levaram os seus jogadores a adquirir lesões por esforços repetitivos (LER). Numa situação ainda mais dramática, Chuang, um jovem de Taiwan, morreu após jogar ininterruptamente Diablo 3 durante dois dias, sem parar para comer (FIGUEIREDO, 2012). Mas a má fama dos jogos não se resumia às consequências para a saúde dos jogadores. Videogames também eram taxados de violentos. Em um caso notório, em 20 de abril de 1999, os estadunidenses Eric Harris e Dylan Klebold invadiram o colégio Columbine High School em Littleton, Colorado, e mataram a tiros treze estudantes. Na ocasião, foi divulgado com algum alarde o fato de ambos jogarem Doom, um game que retrata soldados treinados para matar. Por outro lado, embora não seja fenômeno recente, a valorização cultural dos jogos digitais, assim como a conscientização sobre seus benefícios, vem se intensificando nos últimos anos. Steve Johnson (2005) “surpreendeu” a todos ao afirmar que os videogames são capazes de desenvolver diversas habilidades cognitivas nos seus jogadores. Segundo o autor, alguns games possuem estruturas narrativas complexas, exigindo dos seus usuários sofisticação intelectual para resolver problemas de curto a longo prazo, já que necessitam que seus jogadores tomem decisões de nível tático e estratégico. Nessa onda de valorização dos jogos digitais, dois fenômenos passaram a chamar a atenção: a consolidação de uma indústria de jogos voltados para outras finalidades mais “sérias” que o entretenimento – não à toa estes passaram a ser denominados serious games ‒ e, em épocas um pouco mais recentes, o advento da gamificação. É importante ressaltar que
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Gamificação em debate
tais aplicações já eram realizadas esporadicamente, em iniciativas isoladas, mas não em volume suficiente a ponto de serem consideradas uma tendência. Em comum, os serious games e a gamificação pretendem que, por meio de sua aplicação, os seus usuários “sintam” um impulso de fazer uma tarefa que de outro modo não estariam tão atraídos em realizar. Ou seja, o que se pretende é que os seus usuários se sintam motivados a executar uma atividade sem grandes dificuldades, algo que os jogos normalmente fazem muito bem. Como diz Huizinga (2014, p. 33), o jogo é “uma atividade voluntária”, e normalmente o jogador a exerce plenamente, sem esforços. Ele joga porque quer, porque há uma satisfação inerente ao ato, à qual a psicologia se refere como motivação intrínseca. A psicologia procura entender, por meio do conceito de motivação, o que leva as pessoas a conquistarem algo. Pretende-se compreender o que motiva as pessoas a fazer uma tarefa, a optar por um caminho na sua vida, a buscar algo. Há uma distinção comum entre motivação intrínseca e extrínseca. Deci e Ryan (2000) afirmam que a motivação intrínseca é exercida por meio de uma força interior, normalmente pertencente à própria tarefa – ou seja, quando o que leva uma pessoa a cozinhar é o próprio prazer de cozinhar, não a necessidade de comer algo. Por outro lado, se a pessoa cozinha porque precisa comer, a motivação é extrínseca. O ato de jogar é comumente reconhecido como uma atividade de motivação intrínseca; por definição, um ato exercido voluntariamente. Talvez jogos de azar não devessem ser considerados jogos, porque não são exercidos com base em uma motivação intrínseca. Percebe-se que há uma conexão entre o conceito de motivação intrínseca e o de diversão. As pessoas se divertem quando exercem uma atividade de caráter espontâneo, paradoxalmente reconhecida como uma “distração”, ou seja, é um “desvio” do mundo das coisas sérias da vida. A pessoa se diverte se deslocando das tarefas árduas do dia a dia para exercer algo que é da sua própria vontade. Por isso, os jogos de azar entram no panteão da vilania dos jogos, pois fazem um deslocamento no sentido contrário: o jogador não joga para se divertir, mas para adquirir algum tipo de remuneração (moedas, dinheiro, fichas), que o habilita a comprar posteriormente outros bens. Em algumas línguas, como inglês ou coreano, a palavra para “diversão” descreve o estado próprio de divertir-se, mas também o de estar entretido ou interessado. Muito se tem associado também o conceito de diversão com o estado de imersão, particularmente no universo dos videogames. Segundo Murray (2000), a sensação de estarmos cercados completamente por outra realidade nos coloca em um estado de imersão que toma toda a nossa atenção, todo o nosso interesse, nos entretêm plenamente. Samuel Taylor Coleridge (1772-1834) cunhou a expressão “suspensão voluntária da descrença” para descrever o estado em que o público, o espectador ou, décadas depois, o interator deixa de desconfiar de algo que esteja sendo contado, explanado para ele, como se estivesse dentro da história. Ao “acreditar” no que está sendo narrado ou exposto, o público se coloca em um estado de imersão, absorto que está naquele universo ficcional. De modo semelhante, Huizinga (2001) expressou o conceito de “círculo mágico”, que descreve a área em que o jogador se entrega voluntariamente para jogar, sem notar o que está ao seu redor. Por fim, o psicólogo Mihaly
O sentido da gamificação
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Csikszentmihalyi (2008) desenvolveu a “teoria do estado do fluxo”, com o intuito de descrever o momento em que um indivíduo chega em um estado pleno de satisfação e motivação intrínseca, como se o jogador entrasse em um túnel composto por desafios possíveis de serem atingidos; um fluxo cuja progressão não é interrompida. Evidentemente, os jogos não possuem exclusividade na manifestação de tais estados. Qualquer pessoa pode se sentir imersa, se divertir ou se sentir motivada “intrinsecamente” com qualquer tipo de atividade. Por outro lado, os jogos – até mesmo por serem voluntários por definição – tornaram-se uma ferramenta para transmitir tais estados a outras atividades consideradas mais “sérias”. Tanto os serious games quanto a gamificação são exemplos disso. Mas há diferenças em ambos. Entende-se a gamificação como o processo em que se aplicam elementos lúdicos em contextos não relacionados a jogos. Nesse sentido, conceitos e processos de um design de jogo, como progressão, organização em níveis, componentes da mecânica de um jogo, dentre outros, são aplicados em produtos ‒ materiais ou imateriais ‒ que não foram estruturados como tal. No sentido oposto ao processo de gamificação, os serious games (incluindo os chamados games for change) são objetos lúdicos por natureza, originalmente estruturados como jogos, mas que seguem o vetor contrário: direcionam elementos pertencentes ao “universo não lúdico”, do mundo “sério”, para uma estrutura nativa de jogo. Percebe-se que o movimento projetual da gamificação segue o sentido contrário ao dos serious games. Em comum, como exposto, tanto o processo de gamificação quanto o de desenvolvimento de serious games intencionam influenciar o comportamento do seu usuário no sentido de engajá-lo como um “jogador”, direcionando a sua motivação de uma qualidade extrínseca para uma motivação de caráter intrínseco. É importante ressaltar, no entanto, que, a despeito de serem projetados dentro de uma estrutura de jogo, tal fato não garante que os serious games sejam atrativos; ao contrário, eles têm sido taxados de “chatos” e vêm falhando na tentativa de prover motivação. De certa maneira, historicamente, a inserção do conteúdo de educação nos jogos vem aniquilando o que eles possuem de mais precioso: a ludicidade espontânea. Resnick (2004) afirma que os jogos educativos – um dos formatos dos serious games – fornecem normalmente o entretenimento como uma recompensa, desde que o jogador esteja disposto a sofrer pela educação fornecida. Ou seja, é preciso absorver o conteúdo para poder se divertir depois, processo que remete ao popular lema “primeiro a obrigação, depois a diversão”. Frank (2007 apud HOSSE, 2014, p. 50) propôs um modelo de design para serious games de treinamento militar no qual se sugerem três focos de atenção: “criar um jogo motivador; cuidar para que o conteúdo do jogo seja relevante para os objetivos de treinamento e desenvolver o jogo levando em conta o contexto de uso”. Com base nesse modelo, Hosse (2014) propôs um segundo modelo para o design de games for change – que podem ser considerados uma ramificação dos serious games – que sirva de auxílio aos designers dessa categoria de jogos: “a definição de um objetivo social, a escolha e a abstração de um sistema físico e o desenvolvimento de um jogo motivador” (HOSSE, 2014, p. 51). O modelo de Hosse (2014) é mais adequado a um processo de design, pois estabelece pontos de
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partida para o projeto. O modelo de Frank, por outro lado, prefere sugerir focos de atenção: o que se pretende com o desenvolvimento do projeto. Não é difícil perceber que os componentes de Hosse (2014) podem ser válidos para outros formatos de serious games. Argumenta-se aqui que, se fosse um jogo educativo – outra categoria de serious games –, em vez de se estabelecer um objetivo social, seria definido um objetivo de aprendizagem. Se a categoria de serious games fosse um advergame, o objetivo seria promocional, e assim por diante. Segundo Hosse (2014), a ordem dos focos não é rigorosa, já que o desenvolvimento projetual de games é, muitas vezes, caótico. Ainda assim, independentemente da ordem do fatores, o primeiro foco – definição de um objetivo social ou político – estabelece o que se pretende com o projeto do game for change: sobre o que o jogador vai refletir, quais são as atitudes que estão em jogo para que ele mude de comportamento, qual é o objetivo de persuasão do projeto. O segundo foco – a escolha e a abstração de um sistema físico – identifica um conjunto, um arranjo concreto, que esteja alinhado com o objeto de persuasão, e que sirva como um modelo físico no processo de criação do sistema de jogo. Por fim, o terceiro foco diz respeito ao desenvolvimento com base nos pressupostos projetuais de um jogo, a saber: objetivos claros; escolhas, o que se refere ao nível de liberdade que o jogo oferece ao usuário; desafio adequado; feedback imediato (sua atual posição em relação à meta do jogo); conexão social – um componente opcional, já que nem todo jogo tem um caráter social –, que trata da possibilidade de o jogo oferecer conexões com outras pessoas; e polimento, que solicita a utilização de reforços audiovisuais para que o jogador compreenda o contexto do jogo. Do exposto pelo modelo de Hosse, percebe-se que a estrutura do projeto de games for change – e, por extensão, de outros serious games – assemelha-se à dos projetos de jogos para entretenimento; a diferença seria o conteúdo, o aspecto retórico do jogo. Mildner e Mueller (2016), de modo semelhante, enfatizam que o design de serious games é semelhante ao de jogos de entretenimento. Eles diferem somente pelo fato de haver a integração dos tais conteúdos “sérios” na estrutura clássica de um jogo. Na visão desses autores, como para jogos para entretenimento, o projeto parte de uma ideia (conceito), mas que é restrita em alguns aspectos para atender à mecânica específica desse tipo de jogo. Desse modo, se o processo de design de jogos não difere muito dos métodos projetuais de outros produtos de nossa sociedade, o design de serious games também segue percurso similar ao processo metodológico dos jogos para entretenimento. Boa parte dos autores de design (BOMFIM, 1995; BONSIEPE, 1978; JONES, 1992; LÖBACH, 2001) divide o processo de design em três ou quatro fases significativas que, a despeito do total de etapas, se assemelham bastante. Normalmente, define-se uma fase de pesquisa e conceituação ou pré-produção; uma fase de seleção de alternativas e produção de protótipos; uma fase de implementação das soluções; e uma fase de avaliação (não necessariamente nessa ordem). Nos últimos anos, muitos autores entendem que a etapa de avaliação não corresponde a uma quarta fase, pois é contínua, já que permeia todo o design dentro de um processo iterativo. Tais processos são utilizados indiscriminadamente para o design de jogos para entretenimento e para o de serious games.
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Outra semelhança entre jogos para entretenimento e serious games diz respeito ao que se entende como elementos de jogos. Autores como Schell (2008), Bates (2001), Fullerton, Swain e Hoffman (2004), O’Luanaigh (2006), Rouse III (2001) e Schuytema (2008), dentre outros, possuem visões particulares sobre o tema. Há semelhanças e diferenças na forma como entendem quais são os chamados elementos de jogos, mas muitas das diferenças dizem respeito à compreensão do que seja um jogo. Por exemplo, Schell (2008) define os elementos com base na compreensão de que jogo é um produto, um artefato. Para esse autor, os elementos de um jogo compõem uma tétrade composta por mecânica, história, estética e tecnologia. Por outro lado, para Fullerton, Swain e Hoffman (2004), os elementos do jogo são definidos dentro de uma abordagem formal, ou seja, o jogo é um conceito, não um produto. Para esses autores, os elementos de jogo são: objetivo, procedimentos, regras, recursos, conflito, limites e saídas. Importante afirmar, no entanto, que, independentemente da abordagem, os elementos são condizentes tanto para o projeto de jogos para entretenimento quanto para os serious games. Assim, entende-se que jogos para entretenimento e serious games apresentam sentidos/ percursos projetuais muito semelhantes: são regidos por métodos equivalentes, distintos somente no que diz respeito à sua retórica ou conteúdo. A diferença está no que Hosse (2014) denomina “definição do objetivo” (o primeiro foco de seu modelo). No caso dos serious games, os objetivos são todos retóricos, mas distintos dependendo do tipo de jogo “sério”: no caso dos games for change, os objetivos são sociais ou políticos; nos jogos educativos, são objetivos de aprendizagem; os advergames possuem objetivos promocionais. Já no caso dos jogos voltados para o entretenimento, os objetivos são menos retóricos e mais intrínsecos: o jogar pelo jogar. Ou seja, há um componente “invasor” ao universo dos jogos que não são para o puro entretenimento: o objetivo retórico. Compreende-se, assim, a dificuldade de fazer o jogador entrar no “círculo mágico” quando o jogo tenha outras finalidades que não o entretenimento. Independentemente disso, serious games são jogos, estão dentro de uma estrutura de jogo; o que possuem são objetivos distintos. No caso da gamificação, não podemos dizer o mesmo. A gamificação, como mencionado, recebe os elementos lúdicos em contextos não relacionados a jogos. O sentido é inverso. É preciso fazer essa distinção, principalmente porque muitos educadores entendem que os jogos educativos são uma ferramenta de gamificação na educação, para ficar só no exemplo dessa modalidade de serious games. No entanto, do ponto de vista projetual, o produto da gamificação recebe os elementos de jogo para dentro de sua estrutura. Por exemplo, em um treinamento corporativo, quando funcionários de uma empresa passam pelo processo de aprendizagem de um procedimento, operação, comportamento etc., e nesse processo são inseridos elementos de design de jogos, tal aprendizado pode se tornar mais lúdico, visando uma motivação menos extrínseca ao objetivo do aprendizado. O processo de gamificação tem semelhanças com o design de serious games. Alves (2014) traça um roteiro para o “design da solução de aprendizagem gamificada” dividido nos seguintes passos: conhecimento dos objetivos do negócio e da aprendizagem; definição dos comportamentos e das tarefas que serão alvo dessa solução; conhecimento
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dos jogadores; reconhecimento do tipo de conhecimento que precisará ser ensinado; garantia da presença de diversão; utilização das ferramentas apropriadas; e desenvolvimento de protótipos. É interessante notar que Alves insere a gamificação como um processo de design, algo que não é de se estranhar em tempos de design thinking, que aplica os conceitos de design em outros processos que não os do design. Burke (2015, p. 99) afirma que “em uma solução gamificada, a experiência do jogador é projetada como uma jornada, e acontece em um espaço de jogo que pode abrigar tanto o mundo físico como o virtual”. O autor ressalta que o foco é o projeto não nos moldes do design de experiência do usuário para interfaces homem-computador, mas algo que depende de disciplinas como filosofia de projeto (design thinking), ciências comportamentais e sistemas emergentes. O processo pregado por Burke (2015) envolve os seguintes passos: resultados comerciais e métricas de sucesso; público-alvo; objetivos do jogador; modelo de engajamento; espaço de jogo e jornada; economia do jogo; jogar, testar e repetir. Os três primeiros passos visam entender as motivações dos participantes para posteriormente projetar uma experiência que possa engajá-los nos objetivos, ou seja, a intenção desses passos é levantar dados para projetar uma experiência que esteja centrada no jogador. Os passos seguintes correspondem ao projeto propriamente dito. O primeiro passo do processo – resultados comerciais e métricas de sucesso – solicita que o projeto defina com objetividade a necessidade comercial do empreendimento. Percebe-se que o foco de Burke (2015) é a aplicação da gamificação para fins corporativos e comercias, mas o modelo dele poderia ser transposto para outras necessidades que não sejam mercadológicas. Nesse caso, em vez de se definir a necessidade comercial, os proponentes definiriam necessidades específicas para a área em que a gamificação está sendo aplicada. Por exemplo, se estivesse sendo aplicada em ambientes educacionais, poderíamos estabelecer “necessidades pedagógicas”. De qualquer forma, não importando para qual fim a gamificação fosse aplicada, tais necessidades – comerciais, pedagógicas etc. – viriam acompanhadas de métricas objetivas e específicas. Por exemplo, num processo de melhoria do desempenho de alunos em uma dada disciplina, pode-se estabelecer a necessidade de “aumentar o índice de aprovação em X% em Y meses”. No passo seguinte – público-alvo –, define-se a quem se destina a ação: nesse caso, seriam os alunos. Por fim, o terceiro passo prega que se estabeleçam os objetivos do jogador (membros envolvidos na ação de gamificação), como “desenvolver métodos que engajem os alunos na disciplina”. Percebe-se que os três primeiros passos descritos são premissas para a ação. Até o momento, não há motivos para achar que a gamificação seja o melhor processo para obter os resultados pretendidos; é apenas mais uma ferramenta, mas o objetivo poderia ser atingido por outras técnicas ou outros métodos. Cabe avaliar, então, se a gamificação é o processo mais adequado. Burke (2015) afirma que a gamificação é só uma das ferramentas, das mais contemporâneas inclusive, mas, segundo o autor, não se deveria investir em uma tendência ou tecnologia sem antes identificar os resultados que se deseja alcançar. A gamificação não deve ser o objetivo, mas um meio adequado para o objetivo expresso. Alguns projetos de
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gamificação não alcançam os resultados esperados pois simplesmente aplicam alguns elementos de design de jogos no fenômeno, sem projetar de modo preliminar a experiência de jogo. Segundo Burke (2015, p. 134), “o desafio da gamificação é projetar/desenhar a experiência do jogador, não a tecnologia”. Desse modo, se o sentido da gamificação segue o percurso inverso ao do projeto de serious games, tal fato não implica em realizar essa ação sem que haja planejamento. No modelo de Burke (2015), esse movimento/sentido se localiza fundamentalmente na quarta fase: o desenvolvimento de um modelo de engajamento. Nessa fase do modelo de Burke, cinco elementos do design de jogos são deslocados para a estrutura a ser gamificada: colaboração/competição, resultados intrínsecos/extrínsecos, partida multijogador/por jogador individual, partida por campanha/sem fim, gameplay emergente/roteirizado. O primeiro fator descreve se a seção de gamificação será competitiva ou colaborativa. O segundo descreve os programas de recompensa que a seção proporcionará: qual o retorno que o jogador terá na seção gamificada (embora soluções gamificadas almejem sempre as recompensas intrínsecas, entende-se que recompensas extrínsecas possam contribuir com a atividade). O terceiro fator verifica se a partida é multiplayer ou singleplayer. O quarto fator especifica se o jogo terá um final, e, com base nesse aspecto, se o jogo terá fases (levels) ou não. Por fim, o quinto fator prevê se a seção terá um caráter emergente ou narrativo. Jogos emergentes costumam ter ênfase em regras; são mais mecânicos, voltados à solução de desafios em si. Nos jogos narrativos, os desafios são encaixados dentro de uma história. Evidentemente, a tais fatores podem se acrescentar outros elementos de design de jogos não citados por Burke, mas que também são considerados quando se projeta um jogo. Por exemplo, o fator sorte; as habilidades envolvidas (cognitivas, físicas, sociais etc.); e o sistema de feedback (positivo ou negativo), dentre outros fatores que definem uma partida. Não é de estranhar que Burke não tenha considerado outros fatores além dos cinco mencionados por ele. O processo de design de jogos é naturalmente complexo, e os elementos que o constituem são muito difusos, dificultando a sua estruturação. Cada autor acrescenta ou suprime um elemento diferente na estruturação de um jogo. Assim, há também uma dificuldade em se estabelecer quais e quantos elementos legitimam e validam o que constitui o fenômeno da gamificação. Há uma série de iniciativas que são taxadas de gamificadas, mas que, na realidade, só aplicam um ou poucos aspectos ludológicos no processo, não proporcionando a força necessária para caracterizá-las como soluções gamificadas. Por exemplo, o aplicativo de ensino de línguas Duolingo é costumeiramente definido como uma solução de gamificação, pois utiliza alguns elementos de design de jogos: divisão do processo de aprendizado em fases e utilização de um processo de recompensas. Acredita-se que a aplicação de tais elementos seria suficiente para tornar o processo de aprendizagem um fator de motivação intrínseca. O problema é que o aplicativo faz o jogador/aluno regredir de fase quando abandona as aulas por muitos dias. Ao retornar ao aplicativo, o aluno surpreende-se, por exemplo, ao notar que não está mais na fase 2, mas voltou para a fase 1, simplesmente porque ficou alguns dias sem “jogar”. Nesse caso, todo o esforço para obter motivação intrínseca é diluído, já que o jogador se frustra, e o impulso para voltar às aulas é definido por um fator
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extrínseco ao jogo: a “obrigação” de ter de aprender a língua, e não a euforia do usuário-jogador típica de quem vai completar o jogo. Após a definição do modelo de engajamento, Burke (2015) especifica mais três fases no processo de gamificação: definição do espaço de jogo e jornada; definição da economia do jogo; e o processo de jogar, testar e repetir. Os dois primeiros fatores são desdobramentos do processo natural de projeto de um jogo, ou seja, uma vez estabelecidos os elementos de design de jogos transportados para a estrutura gamificada, definem-se outros fatores que já são típicos de jogos, como o ambiente e a economia. Por fim, finaliza-se o processo com a etapa de controle de qualidade, desencadeada por rodadas de testes. É importante ressaltar, no entanto, que todo o processo de construção de um projeto de gamificação só é justificável se for realmente “sentido” como algo intrínseco pelo jogador. Caso contrário, pode gerar frustração no usuário ou caracterizar apenas um objeto de marketing, já que a aplicação de gamificação e sua venda como tal são tendências no mercado. Se olharmos com atenção, perceberemos que o modelo de projeto de games for change de Hosse se assemelha em muitos aspectos ao modelo de gamificação de Burke. Os primeiros passos dizem respeito à definição do objetivo do projeto: definição de um objetivo social (Hosse) vs. objetivos do jogador (Burke). O segundo passo de Hosse ‒ escolhas e abstração de um sistema físico – corresponde à construção do modelo de engajamento de Burke. Os passos seguintes de ambos implicam no desenvolvimento do jogo, aplicativo ou solução. O primeiro procura entender as motivações dos participantes para que, em seguida, seja projetada a experiência (games for change ou projeto de gamificação) que vai engajá-los nos objetivos determinados. O que difere no segundo passo são os elementos que penetram em cada estrutura. No caso dos serious games, elementos estranhos aos jogos são aplicados na estrutura de um jogo. No caso do projeto de gamificação, elementos de jogos são inseridos numa estrutura estranha a jogos, como uma seção de treinamento ou de educação. É interessante notar, no entanto, que um projeto de gamificação pode ser composto não só por elementos de design de jogos, mas também por um jogo já completo, desde que ele atenda ao objetivo que se pretende no processo de gamificação. Se o objetivo for melhorar a aprendizagem da matemática, pode-se, por exemplo, inserir os tais elementos de jogo numa aula – um processo habitual da gamificação – ou, dentro de uma dinâmica, propor a utilização de um jogo educativo de matemática já desenvolvido anteriormente, ou seja, os serious games podem ser utilizados como instrumentos de um processo de gamificação. Por outro lado, não é tão simples imaginar o sentido contrário, ou seja, aplicar total ou parcialmente o processo de gamificação em um contexto de utilização de um serious game, afinal, estes já são “gamificados” por natureza. Há, contudo, processos ludológicos que estão no limiar entre ambas as manifestações, e não é possível dizer se o método seguiu o processo de desenvolvimento de um serious game ou de gamificação. Por exemplo, a empresa alemã Bigben Interactive lançou uma bicicleta ergométrica para fazer exercícios e jogar videogame, a Cyberbike (GLOBO.COM, 2009). O hardware é na verdade um acessório do console Nintendo Wii; é como se a bicicleta fosse um joystick para um jogo. Quanto mais o jogador pedalar, mais um helicóptero do jogo
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adquire velocidade. A missão do game é “despoluir o planeta”, usando a habilidade de pedalar para resolver enigmas e encontrar itens escondidos. A proposta é que seja possível praticar exercícios enquanto se joga videogame. Há uma distinção importante em relação às duas atividades: a jogatina de videogames e a prática de exercícios físicos. Normalmente, quem joga uma partida de videogame não percebe o tempo passar. Há motivação intrínseca na atividade, e a percepção é que o tempo “voa”. Por outro lado, o tempo parece não passar para quem pratica uma atividade física. O praticante acha que passou horas a fio na atividade, mas, ao consultar o visor da bicicleta ergométrica, nota que o tempo está muito aquém de sua percepção. Talvez o que explique esse fenômeno seja o fato de boa parte dos praticantes realizar atividades físicas por motivações externas: adquirir um corpo em forma ou obter benefícios para a sua saúde. O projeto da Cyberbike pode estar inserido em um processo de gamificação ou de serious games, dependendo do ponto de partida. Pode-se entender que elementos de jogo foram inseridos numa atividade que é naturalmente física, ou pode-se imaginar o contrário, que o jogo objetiva propiciar saúde. No primeiro caso, estaríamos dentro de um processo de gamificação. No segundo, há o processo de desenvolvimento de um serious game. Nesse “sentido”, serious games e gamificação possuem o mesmo objetivo: propiciar motivação intrínseca para atividades cuja motivação é extrínseca a um determinado objetivo. Se os sentidos projetuais são inversos, os sentidos motivacionais são os mesmos. Há iniciativas que partem naturalmente de um processo de gamificação: empresas que desejam estimular seus funcionários a aprender um procedimento ou operação, escolas que almejam alunos mais engajados com a aprendizagem etc. Nesses casos, os aspectos ludológicos invadem uma estrutura que não é de jogo, e o processo de gamificação é aplicado. Há situações, no entanto, nas quais faz mais sentido utilizar uma estrutura nativa de jogo. Por exemplo, quando se pretende obter ampla cobertura na conscientização sobre um objetivo social ou político. Um game for change publicado na web pode cumprir esse papel. Nesse caso, utiliza-se o processo de design de serious games (ou mais especificamente do design de games for change). No final das contas, este é o fator que deve ser considerado: qual é o objetivo que se pretende. Se o meio de se alcançar esse objetivo tem base em um processo de gamificação ou na construção de um serious game, o próprio processo se encarregará de apontar. Referências ALVES, F. Gamification: como criar experiências de aprendizagem engajadoras. Um guia completo: do conceito à prática. São Paulo: DVS, 2014. BATES, B. Game Design: the art and business of creating games. Roseville: Prima, 2001. BOMFIM, G. A. Metodologia para desenvolvimento de projetos. João Pessoa: Editora Universitária/UFPB, 1995. BONSIEPE, G. Teoría y práctica del diseño industrial. Barcelona: Gustavo Gili, 1978. BURKE, B. Gamificar: como a gamificação motiva as pessoas a fazerem coisas extraordinárias. São Paulo: DVS, 2015.
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Gamificação em debate
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Precursores pré-digitais da gamificação1 Mathias Fuchs Tradução: Sérgio Nesteriuk
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“O século em que vivemos pode ser referido nos livros de história como [...] O Século do Jogar.” Daniel Bernoulli, 1751 Se acreditarmos no que os analistas de mercado norte-americanos de renome nos dizem, então devemos aceitar que nada influenciará tanto nossas vidas como a mobilidade, as mídias sociais e a gamificação ‒ e diz-se que a última tem o maior impacto. A gamificação deverá movimentar um mercado de US$ 5,5 bilhões em 2018 (MARKETSANDMARKETS, 2013) e US$ 11,1 bilhões em 2020 (MARKETSANDMARKETS, 2016). Em 2011, a Gartner previu que “até 2015, mais de 50% das organizações que gerenciam os processos de inovação gamificarão esses processos” (GARTNER, 2011, tradução nossa). No entanto, um ano depois, a mesma empresa afirmou: “A gamificação hoje é hype2 e está pautada pela novidade. Até 2014, 80% dos aplicativos de gamificação fracassarão” (FLEMING, 2012). Mas, independentemente de a gamificação mudar pouca coisa, algo ou tudo, ninguém pode negar que se tornou uma buzzword3 que descreve o que muitos temem ou esperam que aconteça agora. O processo de permeação total de nossa sociedade com métodos, metáforas, valores e atributos de jogos (FUCHS, 2011; NORDMEDIA 2013) foi nomeado gamificação em 2002 (MARCZEWSKI, 2012) e, desde então, tem sido popularizado pelas empresas de marketing dos EUA e seus respectivos departamentos de relações públicas. Uma versão deste capítulo foi publicada anteriormente em FUCHS, M. et al. Rethinking gamification. Lüneburg: Meson Press, 2014. Disponível em: . Acesso em: 11 jan. 2018. 2 Aqui foi mantido o termo original em inglês por não haver uma tradução exata e também por ser conhecido de alguns falantes da língua portuguesa. Hype é uma gíria inglesa que significa, entre outros: propaganda exagerada, “jogada de marketing”, “golpe publicitário” e furor causado pela mídia [N.T.]. 3 Aqui foi mantido o termo original em inglês por não haver uma tradução exata e também por ser conhecido de alguns falantes da língua portuguesa. Buzzword é uma gíria que significa, entre outros: “palavra da moda”, chavão, “expressão mágica” ou “palavra de ordem” [N.T.]. 1
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Embora tenha havido tentativas de se diferenciar entre fenômenos relacionados a jogos (game-related) e ao jogar (play-related), ou entre processos que possam ser vistos como conduzidos por ludus ou paidia (CAILLOIS, 2011), o termo gamificação manteve-se como a palavra-chave. As criações terminológicas gregas, italianas, portuguesas, espanholas, suecas e alemãs foram introduzidas e discutidas no mundo acadêmico, mas παιγνιδοποίηση, ludicizzazione, gamificação/ludificação, gamificación e o alemão-latino Ludifizierung não puderam competir com o termo anglo-americano gamification. A razão para isso pode ser que a “liga californiana de evangelistas da gamificação”, como Zichermann (2011), McGonigal (2011) e companhia, já havia semeado o termo no campo semântico em um momento em que os estudiosos europeus de jogos não estavam certos se a ludificação que eles observavam era mais uma maldição que um presente. A criação terminológica de Flavio Escribano, ludictatorship, aponta nessa direção. Al Gore, político dos EUA, não parecia estar preocupado com o que a gamificação poderia trazer à nossa sociedade quando, na oitava edição anual do Games for Change Festival, em junho de 2013, declarou: “Os jogos são o novo normal”. Por um lado, esse parece ser o pressuposto democrata ou mesmo democrático de que todos deveriam ter o direito de jogar. Por outro lado, declara o “jogo total” por meio da implicação oculta de que aqueles que não podem ou não querem jogar não devem ser considerados normais. Embora 2002 tenha sido o ano em que o termo gamification foi inventado, foi apenas no início da década de 2010 que a gamificação se tornou uma buzzword. Deterding et al. (2011), Schell (2010),4 Reilhac (2010)5 e outros apresentaram diferentes “sabores” da gamificação, alguns deles orientados pelo design, outros por um caráter mais psicológico ou valorativo. Para Sebastian Deterding e seus colegas: É sugerido que as aplicações “gamificadas” fornecem informações sobre novos fenômenos de jogo complementares aos fenômenos lúdicos. Com base em nossa pesquisa, propomos uma definição de “gamificação” como o uso de elementos de design de jogos em contextos de não jogo (DETERDING et al., 2011, p. 9, tradução nossa).
Todas as definições de gamificação propostas desde 2002 baseiam-se na ideia de que os jogos digitais são uma referência sem a qual a gamificação não poderia ser concebida. Existem, no entanto, predecessores da gamificação muito antes de os computadores se tornarem populares. Uma década antes de os computadores programáveis, como Z3, Colossus e ENIAC, serem introduzidos, em 1934, uma atitude lúdica trabalhista foi mencionada e enaltecida por Pamela Lyndon Travers, autora de Mary Poppins ‒ romance adaptado para filme pela Disney no ano de 1964. Na obra, a personagem principal de Travers diz: Em todo o trabalho que deve ser feito Existe um elemento de diversão Você encontra a diversão e o ímpeto! O trabalho é um jogo! (TRAVERS, 1934, p. 25, tradução nossa). “Gamificação é pegar coisas que não são jogos e tentar fazê-las parecer mais com jogos” (SCHELL, 2010, tradução nossa). “Não há dúvida de que os games são a forma emergente dos nossos tempos e que o processo de gamificação está transformando nosso mundo, contaminando-o como nunca antes” (REILHAC, 2010, tradução nossa).
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Isso é, obviamente, o que hoje chamaríamos de gamificação do trabalho. É precisamente o uso de elementos de jogo em contextos de não jogo, como as definições de Zichermann, Reilhac, Schell e Deterding et al. sugerem.6 Este capítulo pretende apresentar exemplos de gamificação avant la lettre7 e comparar essas formas pré-digitais de ludificação com abordagens recentes que se baseiam fortemente em ideias, conceitos e dispositivos históricos. Em particular, serão analisados os seguintes campos de gamificação pré-digital: prática religiosa, música, magia, educação, estilo de vida e ato de matar. Gamificando práticas religiosas
Os deuses da mitologia grega sabiam como fazer truques uns com os outros. Os avatares indianos experimentaram luxúria e alegria, e até mesmo os deuses guerreiros da mitologia nórdica se divertiram de vez em quando. A personagem Loki presente na Edda é um brincalhão e um bufão.8 No entanto, pouca diversão pode ser observada pelo deus cristão ou na santíssima trindade. Os protagonistas da mitologia judaico-cristã nunca riem, nunca fazem amor e raramente jogam. Einstein comentou a resistência de Deus para jogar com sua famosa frase: “Deus não joga dados”. Se jogos ou apostas são relatados na Bíblia, geralmente são atos atribuídos a bandidos e vilões. A máxima ofensa contra a piedade e o exemplo por excelência de como não se comportar na presença de Cristo pode ser observada nos soldados próximos à cruz que se atrevem a jogar enquanto Cristo está morrendo. Em consonância com a sanção negativa da brincadeira está a proibição de qualquer prática de jogo de azar na cultura cristã. O jogar, que se apresenta como o passatempo dos deuses em outras religiões, estava bastante associado à figura do diabo no cristianismo. Quem poderia ter inventado tamanho estorvo como o jogo? Reinmar von Zweter (apud WOLFERZ, 1916, p. 13, tradução nossa), um poeta do século XIII, não teve dúvidas sobre isso quando escreveu em um espírito verdadeiramente cristão: “O diabo criou o jogo de dados”. Sua ira sobre o jogo de dados ilustra bem a rejeição do jogo em geral. Quase todos os séculos na história da Europa Ocidental apresentaram sanções legais sobre jogos de azar, proibição e mesmo destruição de certos jogos (Ritschl, 1884). Em 10 de agosto de 1452, Capistrano, um sermonista da cidade de Erfurt, na Alemanha, disse ter coletado jogos que classificou como “itens pecaminosos de luxo” e empilhou-os em um impressionante monte de 3.640 jogos de tabuleiro, cerca de 40 mil jogos de dados, inúmeros jogos de carta e 72 trenós. Os jogos foram queimados publicamente (DIRX, 1981). É assustador ver que a Devo ao meu colega Paolo Ruffino agradecer o pedido de esclarecimento sobre os “elementos de jogo” mencionados. Em um e-mail de 21 de janeiro de 2014, Ruffino comenta: “Deterding et al. falam sobre o uso de elementos de design de jogos. Eles se referem a um conhecimento e [a uma] prática específicos: design de jogos – um campo nascido principalmente com a consolidação dos games como indústria”. Ruffino destaca um ponto relevante aqui. Reconheço que estou tentando recontextualizar a gamificação aqui, não só no uso de exemplos pré-digitais, mas também ao olhar para jogos antes que o design de jogos digitais existisse. Dito isso, minha compreensão de gamificação é próxima do que outros autores rotulam como playification (MOSCA, 2012) ou ludification (RAESSENS, 2006). 7 Expressão francesa utilizada com o sentido de “antes de o termo existir” ou “antes de sua consolidação” [N.T.]. 8 O mesmo também pode ser observado nas mitologias africanas e afro-brasileira [N.T.]. 6
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queima de jogos precedeu a queima de livros e que, em ambos os casos, não era o meio físico em si que se destinava a ser destruído, mas uma prática cultural e um grupo praticante. Na Europa Ocidental, os jogos de azar que envolviam benefícios monetários eram muitas vezes proibidos. Relatórios sobre bares que foram acusados de serem casas de jogo foram usados em muitos casos para fechá-los ou para penalizar os proprietários desses estabelecimentos. Uma ação coletiva de 1612 em Ernsdorf uniu o prefeito e os membros do coral da paróquia para processar o proprietário que servisse bebidas alcoólicas para “atrair jogadores e malandros para visitar sua pousada” (SCHMIDT, 2005, p. 255, tradução nossa). Em 1670, uma lista de todos os habitantes suspeitos de jogar foi postada na mesma aldeia de Ernsdorf. Nove anos depois, o presidente da corte foi convidado a retirar pinos de boliche das crianças no dia de suas aulas de catecismo (SCHMIDT, 2005). No entanto, a política real dentro da ética cristã desenvolveu meios de jogar e ser piedosa ao mesmo tempo. Gerhard Tersteegen pode ser chamado de especialista em gamificação para a prática religiosa no século XVIII. Sua Loteria Piedosa9 era um jogo composto por 365 cartas que continham palavras de sabedoria e conselhos para os crentes. Ao selecionar aleatoriamente uma carta do baralho, o jogador piedoso realizaria duas atividades ao mesmo tempo: jogar um jogo de cartas aleatório e praticar um ato de devoção do espírito cristão. O livro de orações gamificadas de Tersteegen foi bem-sucedido em virtude da popularidade da prática de loteria profana do século XVIII, que foi apropriada e adaptada aos propósitos de Tersteegen. O sermonista anuncia seu jogo como uma loteria sem o perigo de perder. Se, no entanto, você conseguir o prêmio (for sorteado), seu preço será insuperável: Esta é uma loteria para os crentes, e nada pode ser perdido. No entanto, nada seria melhor, do que ser sorteado (TERSTEEGEN, 1769, p. 11, tradução nossa).
Contudo, nem todos estavam felizes com a ludificação de conteúdo sério proposta por Tersteegen. Um de seus críticos contemporâneos, Heinrich Konrad Scheffler, zombou da Loteria piedosa em sua composição de 1734 sobre a estranha prática religiosa como uma forma de não agradar a Deus: “Praxis pietatis curiosa”10 (apud BRÜCKNER, 2010, p. 261). O pregador itinerante Tersteegen enfrentou um problema que não é diferente dos problemas de hoje para vender produtos com baixo valor de uso como algo desejável ‒ ou trabalho chato como diversão. A prática comum do século XVIII de prescrever uma oração por dia deve ter sido extremamente cansativa para os crentes praticantes. Quando o beato radical Tersteegen inseriu o elemento de chance, conseguiu o que os evangelizadores de hoje mais buscam: aumentar a fidelidade do cliente por meio de elementos divertidos. “Gamification is A Loteria piedosa foi parte do livro Geistliches Blumengärtlein de Gerhard Tersteegen, em sua quarta edição publicada no ano de 1769. 10 Aqui o autor se refere a um hinário (coleção de canções) publicado por Scheffler. Além da ironia à Tersteegen, o título também faz uma provável referência a um dos hinários protestantes mais conhecidos da época: Praxis pietatis mélica, do compositor alemão Johann Crüger. 9
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driving loyalty” (GOLDSTEIN, 2013), “Motivation + big data + gamification = loyalty 3.0” (PAHARIA, 2013), “Gamification = recognition, growth + fun” (DEMONTE, 2013). Mais de 200 anos antes da introdução da noção de gamificação, práticas semelhantes já estavam em uso, estabelecendo fidelidade ao ocultar o objetivo primário da empresa e oferecendo “mecânicas periféricas ou secundárias” (CIOTTI, 2013, tradução nossa) que estipulam pseudo-objetivos e redirecionam a atenção dos clientes, também conhecidos como jogadores. Gamificando a música e a dança
Contemporâneos de Gerhard Tersteegen, Johann Philipp Kirnberger, Carl Philipp Emanuel Bach e Maximilian Stadler trabalharam em algo que poderia ser chamado de gamificação da música11 ao introduzir um gerador lúdico para composição musical.12 Ever-Ready Minuet e Polonaise Composer, de Kirnberger, foram publicados pela primeira vez em 1757 e, novamente, em uma versão revisada em 1783. A peça precedeu o Game of Musical Dice de 1792, que foi duvidosamente atribuído a Wolfgang Amadeus Mozart. Se Mozart fosse o autor do Game of Musical Dice, sua intenção seria mais provavelmente apresentar e vender outro truque de virtuosismo, e não questionar a natureza da composição. Provavelmente também é justo dizer que Mozart não hesitou em se apropriar de materiais e conceitos de colegas compositores e poli-los de maneira pessoal para torná-los mercadorias de sucesso. A ideia do sistema gamificado de Kirnberger e de Mozart era propor que a música pudesse ser concebida como um jogo que segue certas regras e é afetado por um elemento de chance, ou alea – como Caillois (2011) o nomearia. Essa ideia é completamente anticlássica e antirromântica, mas foi epistemicamente coerente com o pensamento do século XVIII. Por conseguinte, não é surpreendente que sistemas como o minueto ever-ready, o compositor de polonesas e o dado musical tenham sido artifícios de vários compositores do século XVIII. Em 1758, Carl Philipp Emanuel Bach apresenta A method for making six bars of double counterpoint at the octave without knowing the rules, no qual introduziu um jogo para composições curtas como demonstração de seu método e uma ferramenta para composição baseada em regras. Não seria apropriado criticar o filho de Johann Sebastian Bach pela qualidade medíocre das composições em contraponto produzidas. O espírito de composição Quando os músicos do século XVIII usaram jogos de cartas e dados para facilitar os processos de composição, visaram algo semelhante às tentativas de gamificação contemporâneas do marketing: queriam implementar uma camada de diversão e entretenimento que levasse o público a acreditar que estava compondo. Na verdade, o público não compunha, eles eram apenas instrumentais no início de processos algorítmicos. O marketing atual, por sua vez, tenta implementar uma camada de diversão e entretenimento acima do nível funcional do marketing e quer que os clientes acreditem que desejam o que lhes é dito para desejarem. Em ambos os casos, o serviço de sistemas lúdicos é baseado em regras como dispositivos persuasivos para um assunto que não é jogado. É por isso que falo de gamificação no contexto da música e no contexto do marketing recente, mesmo que o objeto da gamificação seja diferente em ambos os casos. 12 Os exemplos para os métodos de composição aleatória fornecidos aqui não reivindicam as primeiras tentativas de fazê-lo. Há uma história de composição aleatória no século XVIII, na era digital (NIERHAUS, 2009) e muito antes disso. Já no século XVII, os compositores começaram a pensar em uma peça de música como um sistema de unidades que poderia ser manipulado de acordo com os processos do acaso. Por volta de 1650, o jesuíta Athanasius Kircher inventou a arca musurgica, uma caixa cheia de cartas com poucas frases musicais. Ao tirar as cartas em combinação, pode-se reunir composições polifônicas em quatro partes. 11
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do século XVIII era diferente do pensamento musical clássico e, para um compositor barroco tardio, a principal conquista era produzir o mais efetivamente possível algo que se ajustasse às regras do artesanato musical. A sutileza estética não era o ponto em questão. Maximilian Stadler foi outro compositor que trabalhou com um conjunto de dados. Table for composing minuets and trios to infinity, by playing with two dice foi publicada em 1780 e poderia muito bem ter sido a inspiração para os dados de Mozart. Stadler foi amigo de Mozart, Haydn e Beethoven e não seria surpreendente se Mozart tivesse pegado algumas das ideias de Stadler ao se encontrarem em Viena. Na época, as ideias inovadoras não eram protegidas por direitos autorais, e Mozart teria se apropriado de materiais, ideias e conceitos de alguns colegas compositores. Mas também é possível que Joseph Haydn, outro amigo comum, tenha influenciado Stadler, Mozart ou ambos ao apresentar seu Game of harmony, or an easy method for composing an infinite number of minuet-trios, without any knowledge of counterpoint, que foi publicado em 1790 (ou 1793) em Nápoles por Luigi Marescalchi. A peça, que se acredita ter sido escrita na década de 1780, é muito próxima ao conceito e à terminologia da tabela de Stadler. À la infinite é o que Stadler tinha em mente e Haydn, se realmente escreveu a obra, se refere a ela como infinito numero. Mais uma vez, foi o método fácil ‒ maniera facile ‒ que serviu de motivação fundamental para os compositores do século XVIII usarem a gamificação em seus processos de composição. Leonard Meyer observa que a prática de métodos aleatórios e lúdicos na composição e na performance musical está, por boas razões, bem presente no século XVIII, mas é difícil de ser encontrada na prática musical do século XIX: Compositores do século XVIII construíram jogos de dados musicais, enquanto os compositores do século XIX não o fizeram [...] o que restringia a escolha das figuras eram as reivindicações de gosto, a expressão coerente e a propriedade, tendo em vista o gênero do trabalho, e não a necessidade interna de um processo subjacente e gradual que se desenvolvia [como na música do século XIX] (MEYER, 1989, p. 193, tradução nossa).
Argumentaria aqui que a gamificação fornece métodos de coerência e propriedade no contexto da música ‒ como demonstrado por Meyer ‒, mas também em outros contextos, como a aprendizagem (confira a seção a seguir), a prática religiosa (confira a seção anterior) e a dança. É por isso que o século XVIII é uma época em que exemplos de gamificação pré-digitais podem ser encontrados em muitos casos. Os processos conduzidos pelo desenvolvimento progressivo das estruturas subjacentes são muito mais difíceis de serem definidos. O retorno lúdico do século XVIII não só se tornou evidente na paixão pelos jogos, nos modos sociais ludificados, na prática religiosa ou na música, mas também definiu a forma como as pessoas estavam acostumavam a dançar até então. Em Sociology of dance on stage and in ballroms, Reingard Witzmann percebe que a dança foi concebida como um jogo na Viena de Mozart. No final do último ato de Le Nozze di Figaro, Mozart chama os atores da ópera-bufa de volta ao palco para proclamar o que poderia ser chamado de o lema do século: “Sposi, Amici, al Ballo, al Gioco!” (WITZMANN, 2006, p. 403).13 13
“Cônjuges, amigos, vamos dançar, vamos jogar!” (tradução nossa).
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Há dois pontos aqui que quero frisar ao comparar a gamificação da música e da dança com a gamificação da prática religiosa dessas mesmas décadas: 1. Gostaria de reforçar o conceito de gamificação como “permeação da sociedade com métodos, metáforas, valores e atributos de jogos” (FUCHS, 2011; NORDMEDIA 2013) em oposição à ideia de que a gamificação pode ser totalmente compreendida como a transferência de elementos do design de jogos para contextos não relacionados ao jogo, sem considerar o contexto histórico e social. Essa última ideia é sintomática para a maioria das tentativas acadêmicas de definir a gamificação (DETERDING et al., 2011;14 SCHELL, 2010;15 WERBACH; HUNTER, 2012). Se entendo Deterding et al., Shell, Werbach e Hunter corretamente, então uma única instância de adaptação de elementos de design de jogos para contextos não relacionados ao jogo já poderia ser qualificada como gamificação. Difiro dessa compreensão da gamificação e seria extremamente irresoluto em teorizar ações socialmente isoladas, como marketing de loja de conveniência ou otimização de vendas de voos, como relevantes para o fenômeno da gamificação se forem deslocadas de uma visão histórica e de uma perspectiva social que inclua uma análise cultural em escala global. A maneira como quero usar a noção de gamificação está de acordo com várias “ficações” e “izações” que foram introduzidas nas ciências sociais nos últimos vinte anos: globalização (ROBERTSON, 1992; RITZER, 2011), McDonaldização (RITZER, 1993), Californicação,16 ludificação (RAESSENS, 2006), americanização (KOOIJMAN, 2013) e Disneyficação (BRYMAN 1999; HARTLEY; PEARSON, 2000) são todas baseadas no pressuposto de que observamos grandes mudanças sociais conduzidas por aparelhos que influenciam vários setores da sociedade ao mesmo tempo. Claro, a McDonaldização não pode ser atribuída a uma sociedade apenas pela existência de alguns restaurantes de fast food em países diferentes dos EUA. É uma maneira de viver baseada em uma estrutura econômica, uma estrutura de poder, uma série de neologismos e mudanças na linguagem falada, a introdução de um conjunto de maneiras e hábitos e uma mudança perceptual que fazem da McDonaldização o que ela é (KOOIJMAN, 2013). Em analogia, gostaria de afirmar que “elementos de design de jogos aplicados a contextos de não jogo” não fazem per se uma sociedade gamificada. É a permeação de muitos setores sociais com métodos, metáforas e valores que provêm da esfera de jogo que produz a gamificação. 2. Quero mostrar aqui que certas constelações históricas têm sido um terreno fértil para o processo de gamificação pré-digital, e a segunda metade do século XVIII certamente foi uma delas. A intenção é também explicar por que certos momentos da história se “Com base em nossa pesquisa, propomos uma definição de ‘gamificação’ como o uso de elementos de design de jogos em contextos de não jogo” (DETERDING et al., 2011, p. 10, tradução nossa). 15 “Gamificar é tirar coisas que não são jogos e tentar fazê-las parecer mais com jogos” (SCHELL, 2010, tradução nossa). 16 O videoclipe da música Californication, da banda Red Hot Chilli Peppers (1999), é um exemplo perfeito de gamificação da música pop. 14
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prestam para promover a gamificação e propor algumas boas razões pelas quais nossa década parece ser um desses momentos. Gamificando as artes mágicas
Em 1762, Wolfgang Schwarzkopf publicou um livro na cidade alemã de Nuremberg que apresentou uma nova e esclarecedora abordagem sobre o que antes se dizia ser magia negra ou feitiço pré-moderno. Schwarzkopf deu ao livro o título de Playground of rare sciences e reuniu uma descrição de habilidades matemáticas e mecânicas com ensaios sobre jogos de cartas, jogos de dados e uma seção enciclopédica de truques de prestidigitadores. Esse livro foi uma das muitas tentativas científicas do século XVIII de recuperar a magia e o encantamento como atividades lúdicas ‒ e separá-las de qualquer conotação de atividades diabólicas e irracionais. No livro Rare Künste: Zur Kultur und Mediengeschichte der Zauberkunst, Brigitte Felderer e Ernst Strouhal descrevem como a história cultural da magia sofreu uma mudança dramática no século XVIII ao abandonar a magia negra medieval em favor de uma atividade lúdica (FELDERER; STROUHAL, 2006). Essa nova forma de entretenimento educativo baseava-se em um conceito erudito de ciência popular, em uma pesquisa empírica socialmente incorporada e em uma crença pós-religiosa no fato de que o novo tipo de magia tinha muito mais em comum com a ciência que com práticas ritualísticas ou obscuras do passado. Como James George Frazer aponta em seu Golden Bough: “A magia é muito mais próxima da ciência que da religião. Diferentemente do que a religião nos diz, magia e ciência são ambas baseadas no pressuposto de que causas idênticas resultam em efeitos idênticos” (FRAZER, 1989, p. 70, tradução nossa). Como consequência, fez muito sentido para as editoras do século XVIII falar sobre “magia natural” ‒ como Schellenberg fez em 1802 ‒ ou “magia da natureza” ‒ como fez Halle em 1783.17 O padrão recorrente de legitimação para o ato de falar sobre magia como um jogo e como ciência é a figura retórica de que a magia é útil na vida cotidiana da sociedade; e isso é entretenimento: “Revised to take account of entertainment and serious applications” (HALLE, 1783, apud HUBER, 2006, p. 335) ou “Useful for social life” (SCHELLENBERG, 1802, apud HUBER, 2006, p. 335). Essa linha de argumentação pode ser acompanhada via o bonmot de Goethe de “jogos científicos como a mineralogia e os gostos” (KAISER, 1967, p. 37, tradução nossa)18 até os dias de hoje. Este provavelmente não é o melhor lugar para desenvolver esta ideia, mas especularei que a noção de serious games pode ser seguida desde os esforços programáticos do século XVIII para declarar a magia como um jogo e, assim, introduzir a ideia de que a ciência pode ser divertida e de que o entretenimento pode ser cientificamente relevante. Hoje chamamos esse projeto de entretenimento educativo (edutainment). 17 18
O livro de Johann Sebastian Halle foi publicado por Joachim Pauli em 1783, em Berlim (HUBER, 2006). A autobiografia de Johan Wolfgang von Goethe chamada “Da minha vida: poesia e verdade” (original em alemão: “Aus meinem Leben. Dichtung und Wahrheit”) foi escrita entre 1808 e 1831. É considerada um reflexo sobre a vida de Goethe entre os anos de 1750 e 1770. A frase sobre “jogos científicos” é citada por Kaiser (1967).
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Gamificando o estilo de vida no “Século do Jogar”
Em 1751, Daniel Bernoulli tentou captar o Zeitgeist de seu século dizendo: “O século em que vivemos pode ser referido nos livros de história como: ‘Pensamento Livre e o Século do Jogo’” (apud BAUER, 2006, p. 377). Bernoulli expressou uma percepção sobre a gamificação do estilo de vida baseada em observações realizadas em Viena, mas que foi válida para as principais capitais europeias, como Paris, Roma, Londres, Haia, Roma e Nápoles. A cultura do jogo foi um fenômeno pan-europeu baseado em tipos amplamente distribuídos de jogos e regras de jogo. L’Hombre, por exemplo, é um jogo de cartas originário da Espanha que, poucos anos depois de ter sido levado por Maria Teresa,19 esposa do rei Luís XIV, foi jogado em todos os países europeus com pequenas variações locais.20 Isso foi possível graças a uma nova classe social itinerante que se estendeu além da aristocracia e que tinha nos jogos uma espécie de língua franca europeia. Viajantes frequentes como Mozart ou Johann Wolfgang von Goethe poderiam esperar encontrar uma comunidade de jogos em quase todas as cidades da Europa com a qual seria possível compartilhar experiências e habilidades sociais. Instruções para jogos do século XVIII como uma forma de “Passatempo agradável com jogos encantadores e alegres para serem jogados socialmente” (BAUER, 2006, p. 383), foram traduzidas para a maioria das línguas europeias e tornaram-se populares entre pessoas de diferentes classes sociais (BAUER, 2006). Loterias poderiam ser encontradas em todos os lugares e se tornaram uma fonte de renda para alguns e um sério problema econômico para outros. Jogos de cassino (jeux de contrepartie) ou jogos de azar, como Pharo ou Hasard, foram temporariamente banidos e proibidos de serem jogados. O século XVIII também foi o momento em que os apartements pour le Jeu, salas de jogos, foram introduzidos nas casas da aristocracia, bem como nas casas da burguesia. Móveis especiais para guardar ou exibir os jogos foram projetados.21 A forma como a gamificação do estilo de vida social mudou do século XVII para o século XVIII se deu por maior disponibilidade, canais de distribuição transeuropeus e uma aceitação que transcendeu classe e grupo social. É por essa razão que a proposição de Bernoulli de chamar o século XVIII de o “Século do Jogar” faz muito sentido. Dito isso, Bernoulli não conseguiu ver como outra onda da gamificação mudaria outro século: o século XXI está prestes a repetir a mania dos jogos do século XVIII. Hoje, vemos uma disponibilidade onipresente, canais de distribuição globais e a aceitação de jogos digitais que transcendem classe e grupo social, faixa etária, etnia, gênero e subcultura. NT: Maria Teresa de Áustria, infanta da Espanha, nasceu em Madrid e se casou com Luís XIV, rei da França, em 1660, com 21 anos. Assim, é bem provável, que tenha aprendido e praticado o jogo por alguns anos antes de sua mudança para a França e que este tenha se tornado não só um passatempo recorrente na corte como também uma forma de aproximação com sua origem. Não confundir com sua filha, Maria Teresa de França, nascida sete anos após o casamento e falecida aos cinco anos de idade. 20 Na Espanha, o jogo foi chamado de “Juego del tresillo” e “Rocambor”. O baralho (conjunto de cartas) espanhol era usado sem as cartas oito e nove. NT: Uma destas variações do jogo de cartas é conhecida em língua portuguesa pelo nome de “zanga”. 21 Salomon Kleiners, Apartement pour les Jeu, da primeira metade do século XVIII, conforme encontrado por Lachmayer (2006). 19
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Gamificação em debate
Gamificando a aprendizagem
Em 1883, Samuel Langhorne Clemens, também conhecido como Mark Twain, estava tentando criar uma maneira fácil para suas filhas se lembrarem dos monarcas ingleses e as datas em que começaram e terminaram seus cargos. Twain (2009) descreveu o problema que enfrentou em seus cadernos: “Eram todas as datas, todas pareciam iguais e elas não as memorizariam” (tradução nossa). Então Twain desenvolveu um método lúdico de lembrar datas, nomes e números, mapeando-os em posições de um pedaço de terra. Ele mediu 817 pés22 ‒ cada pé representando um ano ‒ e depois colocou estacas no chão no local correspondente onde reis e rainhas começaram a reinar. Suas filhas lembraram as datas por lembrarem das posições espaciais. “Quando você pensa em Henrique III, você vê um grande e longo caminho direto? Eu vejo, e no final, onde ele se junta a Eduardo I, eu sempre vejo uma pequena pereira com sua fruta verde pendurada” (TWAIN, 2009, tradução nossa), ele escreveu. Quando as filhas de Twain aprenderam sobre os monarcas em dois dias (elas haviam tentado por todo o verão), ele sabia que havia descoberto um método eficiente para a aprendizagem gamificada. Depois de alguns anos de brincadeiras, Twain patenteou o Memory-Builder: a game for acquiring and retaining all sorts of facts and date, um jogo de tabuleiro igualmente dividido por anos. O jogo incluía pinos e os jogadores colocavam um alfinete no compartimento apropriado para mostrar que conheciam a data do evento em questão. A pontuação era obtida com base no tamanho do evento e em quão especificamente os jogadores acertavam a data. A invenção de Mark Twain introduziu dois elementos de jogo em uma relação ensino-aprendizagem. Por um lado, afirmou o aprendizado como uma atividade divertida projetando-o dentro de um jogo de tabuleiro. Por outro, usou dados históricos como informações espaciais. Informação e conhecimento sobre o tempo e a ordem cronológica foram reestruturados como uma relação espacial. Em termos derridianos, há algum tipo de jogo que ocorre em nível semiótico e em nível do tabuleiro do jogo. De acordo com Derrida, há uma différance, um movimento ativo envolvendo “espaçamento” e “temporalização”. A presença de um elemento não pode compensar a ausência do outro. Existe uma lacuna ou intervalo que escapa à identidade completa. “Constituindo-se, dividindo-se dinamicamente, esse intervalo é o que poderia ser chamado de espaçamento; o tempo se torna espacial ou o espaço se torna temporal (temporalização)” (DERRIDA, 1972, p. 143, tradução nossa). O jogo de tabuleiro de Mark Twain, portanto, joga em dois níveis: o jogo é obviamente uma abordagem lúdica para ensinar história, pois difere das formas tradicionais e bastante solenes da sala de aula. O segundo nível do jogo é um metanível de espaçamento e temporalização, conforme descrito por Derrida. As instruções para o jogo Memory-Builder indicam que: 1. O tabuleiro representa qualquer século. 2. Além disso, representa todos os séculos.
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Cerca de 250 m [N.T.].
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Isso é o que deveria se chamar, nas palavras de Derrida, de espaçamento dinâmico ou potencial ambíguo e lúdico de espacialização de dados históricos. Nesse artefato de aprendizagem, o jogador encontra a história gamificada, e não como um corpo sólido de conhecimento baseado apenas em números. Gamificando o ato de matar
Nesta seção do texto, quero apresentar um pequeno número de exemplos de como os atos de matar e de selecionar vítimas podem ser gamificados. Não vou diferenciar entre a ação militar que mata por meio do chamado processo legal durante a guerra e as atividades ilegais promovidas por gangues ou criminosos individuais. Parece-me que é impossível diferenciar esses dois sem uma dose de cinismo. Minha intenção é mostrar como a seleção das vítimas pode ser influenciada por um sistema de jogos com regras próprias e um resultado para o jogo. Os exemplos que gostaria de escolher são o processo de dizimação no exército romano e em outras forças militares e um exemplo extraído da literatura que se baseia em jogos aleatórios. O prefeito romano Marco Licínio Crasso, quando enviado ao sul da Itália em 71 a.C. durante a Guerra de Espártaco, notou que Lúcio Múmio Acaico, um de seus oficiais, contratou os rebeldes e perdeu uma batalha. Muitas das suas tropas desertaram em vez de lutar. Crasso, em resposta a esse constrangimento, ordenou que suas legiões fossem dizimadas. A dizimação é um processo aleatório resultante do que a lei romana considerava justo, com a seleção de um acusado em cada dez para ser morto. A lógica na elaboração de um procedimento tão desumano, que nos parece completamente injusto, é lúdica. A base da matança aleatória refere-se a um conceito de Fortuna,23 cega e ao mesmo tempo justa. A mecânica gamificada de matar não pode, portanto, ser chamada de injusta, fraude, corrupção ou sem sentido ‒ se alguém acredita no aparato do jogo, essa mecânica deve ser vista como o último estágio da lógica inerente ao jogo. Tentei sugerir em outra publicação que esse círculo lógico torna a gamificação um caso perfeito de ideologia no sentido da compreensão do termo por Sohn-Rethel, isto é, a falsa consciência necessária (FUCHS, 2014). A ideia de usar alea não é uma conquista exclusivamente militar. O crime pequeno às vezes pode chegar a métodos semelhantes para resolver problemas. Assim fez Anton Chigurh em No country for old men (MCCARTHY, 2005)24 ao obrigar suas vítimas a vê-lo atirar uma moeda ao ar e serem mortos ou não dependendo do resultado do “cara ou coroa”. A perfídia de delegar uma decisão vital ao acaso está em consonância com a lógica da lei marcial romana para dizimar as legiões. A motivação da personagem de Chigurh para permitir uma fuga das consequências fatais de suas caçadas humanas tem sido muito especulada. Isabel Exner descreve o assassino como um homo aleator que introduz uma forma de violência “desindividualizada” (EXNER, 2010, p. 61, tradução nossa) Este “novo homem” é, 23 24
Deusa romana do acaso, da sorte (boa ou má) e do destino. Sua correspondente na mitologia grega é Tique [N.T.]. No Brasil, uma primeira edição do livro escrito por Cormac McCarthy foi lançada em 2006 com o título Onde os velhos não têm vez. Em 2007, foi lançada uma versão cinematográfica, dirigida pelos irmãos Cohen, que recebeu outro título no país: Onde os fracos não têm vez [N.T.].
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obviamente, contrário ao conceito dos heróis tradicionais dos filmes ocidentais: o xerife, o solitário sincero que procura vingança ou o gângster inteligente são todas personagens do tipo homo faber. Eles poderiam resolver seus respectivos problemas por meio de tomadas de decisão e ações individualizadas. A proposição de Isabel Exner para o surgimento do homo aleator em “No country for old men” não é exclusivamente cinematográfica nem está relacionada com a história dos filmes americanos e suas histórias criminosas. Exner sugere que o acaso se tornou “o princípio fundamental de funcionamento da ordem prevalecente [...] que já integrou a descoberta de Michel Serre de que ‘a probabilidade, o risco, o terror e até o caos têm potencial para consolidar o sistema’” (EXNER, 2010, p. 61, tradução nossa). Considerações finais
Este capítulo não pode fornecer ao leitor uma história completa da gamificação ou dos documentos históricos relacionados à sua prática para provar que o que chamamos hoje de gamificação já aconteceu nos séculos anteriores. Também não pretende resumir todas as possíveis diferenças que possam existir entre os jogos de séculos passados e os jogos digitais de nossos dias. No entanto, minha principal hipótese é que podemos detectar semelhanças em aspectos do hype, no modismo e na seriedade dos jogos e de um processo que transforma contextos de não jogo em playgrounds para atividades e experiências lúdicas ao longo de séculos. Tais playgrounds puderam ser identificados no aprendizado, na prática religiosa, na música, na magia, na dança, no teatro e no estilo de vida e podem igualmente ser vistos hoje em dia quando olhamos para a teoria do teatro e encontramos Game Theatre (RAKOW, 2013), para blogs religiosos e encontramos Gamifying Religion (TOLER, 2013), para as informações dos serviços de saúde e encontramos Fun ways to cure cancer (SCOTT, 2013) ou Dice games against swine flu (MARSH; BOFFEY, 2009) ou, ainda, quando investigamos o gerenciamento coletivo de água e encontramos Games to save water (MEINZEN-DICK, 2013). É a amplitude das aplicações, e não o exemplo individual, que suporta a hipótese de que a gamificação ocorre como uma tendência global, uma nova forma de ideologia ou um dispositif ‒ se assim você quiser.25 Isso não depende exclusivamente da digitalização da sociedade ou do sucesso econômico dos jogos digitais. O que tentei demonstrar aqui é uma perspectiva histórica sobre a compreensão da gamificação como forma de viver (e morrer), fazer música, vender e comprar, engajar em processos econômicos e em estruturas de poder, se comunicar e introduzir novos modos e hábitos para uma década ou século inteiro. Esta pode ser a década de 2010, mas também pode ser o século XVIII, o “Século do Jogar” ‒ como Bernoulli chamou, em 1751, o século em que viveu. A segunda metade do século XVIII compartilhou “redes pragmáticas relevantes” (LACHMAYER, 2006, p. 35, tradução nossa) com nossos dias. Os contemporâneos de Wolfgang Amadeus Mozart, Schikaneder, Tersteegen, Casanova, Bernoulli, Schwarzkopf e Stadler 25
O termo é utilizado por Michel Foucault como referência aos diversos meios, mecanismos e estruturas que objetivam manter o exercício do poder dentro do corpo social, manifestos por meio de dois fatores principais: a vigilância e a punição [N.T.].
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foram profundamente envolvidos em uma “supranacionalidade” europeia (LACHMAYER, 2006, p. 35, tradução nossa) que reuniu uma multiplicidade de línguas, estilos, jogos e fontes de conhecimento que, de alguma forma, se assemelham à nossa world wide web ‒ sem ser mundial. Ainda alimentados pela ingenuidade de um desejo de acesso não filtrado a uma variedade de formas de conhecimento científicas, semicientíficas, populares ou supersticiosas, os eruditos ‒ e não tão iluminados ‒ do século XVIII estavam buscando visões de progresso. A brincadeira em nível pessoal, que incluía agôn, alea, mimicry e ilinx (CAILLOIS, 2011),26 foi um motor condutor de excentricidade e virtualidade em vez de um realismo plano. A ludicidade era condutora de identidades multifacetadas e estritamente contraditória a um desenvolvimento monossequencial de caráter e carreira, que nos últimos séculos se tornou requisito para a inclusão social. Pode ser que voltemos ao estado lúdico mozartiano e que a gamificação da nossa sociedade crie um cenário para uma pluralidade inteligente de expressão, experiência e conhecimento em nível global. Nada muito sério além da criação e da ruptura de mitos ao mesmo tempo. Poderia, no entanto, também ser verdade que nossa década se assemelha à segunda metade do século XVIII de uma maneira que Doris Lessing descreveu certa vez com estas palavras: “Este país torna-se cada dia mais como o século XVIII, cheio de ladrões e aventureiros, trapaceiros e uma selvageria robusta e não hipotética, lado a lado, com pessoas que ensinam aos outros a moralidade” (FIELDING, 1992, p. 762, tradução nossa). A cultura rococó desenvolveu um estilo jocoso, florido, gracioso e, ao mesmo tempo, cheio de uma grosseria sofisticada. E isso não é idêntico ao estado em que nosso discurso sobre gamificação está. Queremos ser o SuperBetter27 e queremos desfrutar do “escapismo de autoexpansão” (KOLLAR, 2013, tradução nossa). Estamos um pouco preocupados com isso e especulamos sobre uma próxima “revolução” (ZICHERMANN; LINDER, 2013), mas gritamos em voz alta: “Gamificação é besteira!” (BOGOST, 2011, tradução nossa). Nós finalmente descobrimos que “a gamificação está transformando nosso mundo, contaminando-o como nunca antes” (REILHAC, 2010, tradução nossa). Isso é tão rococó! Referências BAUER, G. Mozart, Kavalier und Spieler. In: LACHMAYER, H. (ed.). Mozart. Experiment Aufklärung. Ostfildern: Hatje Cantz, 2006. p. 377-388. O termo agôn corresponde aos jogos agonísticos, em que jogadores, partindo de uma mesma condição, disputam para ver quem é o melhor; alea, aos jogos que dependem exclusivamente da sorte, isto é, nos quais a participação do jogador não é determinante; mimicry é associado ao mimetismo e corresponde às atividades nas quais o jogador assume o papel de alguma personagem; e, por fim, ilinx se baseia na vertigem, ou seja, em atividades nas quais o jogador passa por algum tipo momentâneo de desorientação física ou mental. Caillois (2011) afirma ainda que essas categorias não se manifestam necessariamente de forma “pura”, podendo haver combinação entre categorias em um mesmo jogo ou atividade lúdica [N.T.]. 27 Aqui o autor faz referência à designer de jogos Jane McGonical, que produziu o serious game SuperBetter (2012), cujo conceito de criação é baseado em seu livro Reality is broken: why games make us better and how they can change the world (2011) [N.T.]. 26
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Gamificação, motivação e a essência do jogo
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Alan Richard da Luz Se o processo de gamificação envolve utilizar elementos dos jogos para estimular o engajamento em atividades do cotidiano, entender melhor como funcionam as dinâmicas de motivação que envolvem os jogos é fundamental e pode nos mostrar como escapar de certas armadilhas encontradas em muitas estratégias de gamificação. Por não ser um especialista em gamificação, mas nas mecânicas que envolvem o jogo, minha abordagem aqui está mais voltada e influenciada por esta ótica: a da fundamentação do que é o jogo em si e quais são seus mecanismos de motivação e recompensa. Muitos processos de gamificação não levam em conta essas premissas e, com isso, fracassam em diferentes níveis. Compreender o que é o jogar pode nos ajudar a diagnosticar e penetrar na caixa-preta desses mesmos mecanismos. Por que gostamos de jogos? Por que jogamos?
Desde que Huizinga escreveu o tratado Homo Ludens, nós nos perguntamos de maneira séria e científica o porquê de nossa paixão e de nossa conexão com todas as formas de jogo, formais ou não. Por muitos motivos, os jogos são importantes para o nosso desenvolvimento e a necessidade do jogo em nossas vidas é patente. A psicologia e a fisiologia procuram observar, descrever e explicar o jogo dos animais, crianças e adultos. Procuram determinar a natureza e o significado do jogo, atribuindo-lhe um lugar no sistema da vida. A extrema importância deste lugar e a necessidade, ou pelo menos a utilidade da função do jogo, são geralmente considerados coisa assente, constituindo o ponto de partida de todas as investigações científicas desse gênero. [...] A intensidade do jogo e seu poder de fascinação não podem ser explicados por análises biológicas. E, contudo, é nessa intensidade, nessa fascinação, nessa capacidade de excitar que reside a própria essência e a característica primordial do jogo (HUIZINGA, 2014, p. 4-5).
A partir dessas palavras escritas em 1938, autores de todo o mundo e das mais variadas áreas do conhecimento vêm mapeando as motivações por trás do fenômeno do jogo e sua
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Gamificação em debate
influência em nossas vidas. Temos exemplos de muitas definições diferentes e ótimas compilações de definições do que é um jogo (SALEN; ZIMMERMAN, 2012), e esses mesmos autores tentam mapear o que nos atrai no jogo. Trago para este capítulo uma lista meio particular e baseada em minhas leituras e relações entre esses autores, todos de grande importância para responder à pergunta-título desta seção: por que gostamos de jogos? Apresento cinco grandes motivos, de uma lista que não se esgota aqui, estruturados de maneira a nos servir no que diz respeito aos processos de gamificação. São eles: 1. Aprendizado: jogamos porque gostamos de aprender. 2. Desafio: desafios criam espaços de significação em determinadas atividades antes sem sentido, e isso nos atrai. 3. Feedback: os jogos, ao contrário da vida, nos dão feedbacks rápidos e claros. 4. Significado épico: empresto aqui o termo de Jane McGonigal (2001), pois realmente gostamos de nos sentir importantes em nossas buscas. 5. Prazer autotélico: jogamos porque jogar é gostoso por si só.
O primeiro e o segundo estão intimamente conectados, pois o aprendizado tem a ver com os desafios propostos. Gostamos de nos sentir desafiados e precisamos aprender novas habilidades para superar esses desafios. Isso traz uma sensação de realização na qual os jogos são imbatíveis. Games são experiências de aprendizado, onde o jogador melhora suas habilidades conforme joga. A qualquer momento, o jogador terá um repertório específico de habilidades e métodos para superar os desafios do jogo. Parte da atração de um bom jogo é que ele continuamente desafia e faz novas demandas ao repertório do jogador ( JUUL, 2011, p. 56, tradução nossa).
O desafio em si está ligado ao fato de os jogos serem interações lúdicas significativas. Somos eficientes máquinas de semiose e, ao dar sentido (e significado) a uma ação qualquer, essa ação passa a ter importância para nós. Imagine você chutando uma bola em uma parede para passar o tempo. A atividade sem sentido logo se torna entediante, mas se alguém se aproxima e diz algo como “duvido que você consiga chutar a bola na parede dez vezes sem deixá-la cair no chão”, a atividade passa a ter sentido e sua ação passa a significar algo. O desafio cria uma cadeia de significação à ação de chutar a bola na parede e isso se torna um motivador. O feedback é um dos elementos dos jogos mais explorado na gamificação, pois é aquilo em que os jogos mais diferem da nossa vida cotidiana. Os feedbacks que recebemos por estudar, trabalhar, aprender a cozinhar, correr etc. são indiretos e muitas vezes muito tardios (você precisa correr durante um mês para ver diferença na balança, por exemplo). Os jogos nos fornecem feedback instantâneo e mensurável, nos dando a clara noção de estarmos ou não melhorando (ou piorando). As informações em tempo real e as referências quantitativas são a razão pela qual os jogadores se tornam cada vez melhores em praticamente qualquer jogo do qual participam: seu desempenho
Gamificação, motivação e a essência do jogo
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é constantemente avaliado e lhes é devolvido na forma de barras de progresso, pontos, níveis e conquistas. Os jogadores conseguem visualizar com facilidade e exatidão onde e quando estão fazendo progressos. Esse tipo de feedback instantâneo e positivo leva os jogadores a trabalhar com mais afinco e a se tornarem bem-sucedidos em desafios mais difíceis (MCGONIGAL, 2012, p. 163).
O significado épico (epic meaning) é algo que nos torna especiais, que transforma nossas buscas em coisas cheias de significados grandiosos e heroicos. Os jogos estão cheios deles, pois podem incluir objetivos como salvar uma nação da destruição, vencer o melhor lutador do mundo, derrotar o melhor time de futebol do planeta. Gostamos de nos sentir especiais e os jogos nos proporcionam isso. Os significados épicos potencializam o sentido dos desafios e nos dão a sensação de que podemos fazer muito mais. A função do jogo, nas formas mais elevadas que aqui nos interessam, pode de maneira geral ser definida pelos dois aspectos fundamentais que nele encontramos: uma luta por alguma coisa ou a representação de alguma coisa. [...] A criança representa alguma coisa diferente, ou mais bela, ou mais nobre, ou mais perigosa do que habitualmente é. Finge ser um príncipe, um papai, uma bruxa malvada ou um tigre (HUIZINGA, 2014, p. 16-17).
O significado épico surge mesmo nos jogos informais (brincadeiras), pois nos transporta para fora da realidade, libera nossa imaginação e faz todos os significados serem mais “positivos”. Outra função indireta dos significados épicos é que eles amenizam os efeitos da frustração pelos pequenos fracassos no decorrer do processo. Perder uma vida em um desafio dentro de um videogame é muito mais aceitável, pois estamos nos submetendo a um esforço sobre-humano se esse desafio tiver significado épico. Isso reforça o feedback positivo e diminui o feedback negativo. O último elemento da minha lista, o prazer autotélico ou prazer intrínseco, diz respeito ao fato de jogarmos porque isso é divertido e está diretamente ligado ao fato de o jogo ser uma atividade essencialmente voluntária, não podendo estar sujeito a ordens e, como o próprio Huizinga (2014, p. 11) diz, sendo “ele próprio a liberdade”, pois nos arrebata do mundo real. Entramos em um jogo pelas características listadas até aqui e isso cria um prazer intrínseco ao próprio jogo, autoalimentado. O jogo é um fim em si mesmo. Essa é uma pequena lista de motivos pelos quais jogamos, e, como já dito, ela não se esgota. Entretanto, neste momento, podemos enxergá-la de outro modo, como faremos a seguir. O “motorzinho” de todo jogo
Todo jogo possui algo como um pequeno motor que é baseado nos elementos motivacionais listados no item anterior. Mas, para entendermos esse motor, devemos visualizar esses elementos de maneira diferente (Figura 3.1):
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Gamificação em debate
prazer autotélico desafio
significado épico
aprendizado
feedback
Figura 3.1 – Ciclo do prazer autotélico.
Devemos ler esse gráfico da seguinte maneira: o significado épico alimenta o desafio, que nos motiva a aprender novas habilidades para que o superemos, das quais tomamos conhecimento pelos feedbacks do sistema e, no caso de serem positivos, buscamos o próximo significado épico, completando o ciclo. Esse ciclo garante o prazer autotélico, do qual ele depende. Agora, imagine esse gráfico não como um círculo, mas como uma espiral que vai na sua direção, pois a cada ciclo o desafio deve ser maior, garantindo o aprendizado de novas habilidades. Qualquer quebra em um dos elementos tira o prazer intrínseco do jogo. Se o desafio não aumenta, não precisamos aprender novas atividades e deixamos de ter esse prazer. Se não temos feedback adequado, não visualizamos o quanto aprendemos. Se não enxergamos o significado épico, nossa busca se torna sem sentido etc. Qualquer elemento que falte ou não seja suficiente tira o momentum para a dinâmica. Essa escalada do desafio para que o jogo continue interessante e a autotelia se encaixam em outra estrutura muito conhecida e aplicada no mundo dos jogos: a teoria do fluxo (Flow Theory) de Mihaly Csikszentmihalyi (1990). Podemos sobrepor o motorzinho do prazer autotélico ao gráfico do canal de fluxo (Figura 3.2) e perceber como o jogo se autoalimenta e mantém o jogador motivado e imerso.
Gamificação, motivação e a essência do jogo
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o x u fl
desafio
fru
ção
a str
io
téd
habilidades Figura 3.2 – Gráfico do canal de fluxo.
Imagine a espiral do motor do jogo na direção da seta de progressão desafio/habilidades do gráfico de fluxo. Qualquer quebra em um dos elementos motivacionais dos jogos nos coloca na área da frustração ou na do tédio, tirando o prazer intrínseco do jogo. O motor que descrevi no tópico anterior, associado à curva de progressão do fluxo, garante esse prazer autotélico em um jogo. Perigos da motivação extrínseca
Um jogo bem equilibrado gera prazer intrínseco. Estimular o jogador com prazer extrínseco é perigoso, pois pode comprometer esse motor do jogo. Desde Huizinga (2014), publicado originalmente em 1938, discute-se a aplicação das motivações extrínsecas em um jogo, e tanto ele quanto Roger Caillois concordavam que, ao se oferecer recompensas extrínsecas, um jogo simplesmente deixa de ser jogo, pois é imprescindível que ele seja autotélico e a recompensa externa tira o aspecto voluntário da atividade, tornando-a uma busca pela, recompensa, e não mais um fim em si mesma: “[o jogo] é uma atividade desligada de todo e qualquer lucro, praticada dentro de limites espaciais e temporais próprios, segundo uma certa ordem e certas regras” (HUIZINGA, 2014, p. 16). Caillois (1990, p. 25) deixa claro que, apesar de jogos de azar serem ricos culturalmente, não podem ser encarados como jogos em virtude de sua natureza de recompensa extrínseca; para ele, a natureza livre e voluntária do jogo é “indiscutível” (1990, p. 26). Ele afirma que os jogadores profissionais, que deixam de ser “jogadores” por serem “profissionais”, pois o jogo não deve produzir nenhuma riqueza. No fim do lance, tudo pode e deve voltar ao ponto de partida, sem que nada de novo tenha surgido: nem colheitas, nem objetos manufaturados, nem obra-prima, nem capital acrescido.
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O jogo é ocasião de gasto total: de tempo, de energia, de engenho, de destreza e muitas vezes de dinheiro [...] Quanto aos profissionais, pugilistas, ciclistas, jockeys ou atores que ganham a vida no ringue, na pista, no hipódromo ou nos palcos e que devem preocupar-se com o salário, as percentagens ou os bônus, claro que neste aspecto não se devem encarar como jogadores mas como trabalhadores (CAILLOIS, 1990, p. 25).
A motivação extrínseca não é um problema apenas nos jogos, mas em qualquer atividade que gere prazer intrínseco e autotelia. Teorias da psicologia que envolvem a autodeterminação e a autopercepção já dão conta de fenômenos que surgem desses cenários. O fenômeno da superjustificação
As teorias a respeito da superjustificação partem do princípio de que um sujeito envolvido em uma atividade (qualquer uma), ao inferir que não existem motivações externas para sua agência, deduz que realiza a tarefa automotivado e que esta tem um fim em si mesma. Se esse mesmo sujeito identifica algum tipo de motivação externa à atividade em si, ele não consegue estabelecer a relação de fim em si para essa atividade e deduz que a faz apenas pela motivação extrínseca. Quando um indivíduo observa outra pessoa se engajar em alguma atividade, ele infere que o outro está intrinsecamente motivado para se envolver naquela atividade na medida em que não percebe contingências extrínsecas salientes, inequívocas e suficientes às quais possa atribuir o comportamento do outro. A teoria da autopercepção propõe que uma pessoa se envolve em um processo similar de inferência sobre seu próprio comportamento e seu significado (LEPPER; GREENE; NISBETT, 1973, p. 129, tradução nossa).
Ou seja, nosso nível de envolvimento em atividades é alimentado pela percepção de que a motivação é intrínseca a ela, criando um moto-contínuo que pode levar ao prazer autotélico. A hipótese da superjustificação – a proposição de que o interesse intrínseco de uma pessoa em uma atividade pode ser minado induzindo-a a se envolver com um fim explícito de atingir algum objetivo extrínseco. Se a justificação externa oferecida para induzir uma pessoa a se envolver em uma atividade é desnecessariamente alta e psicologicamente “supersuficiente”, a pessoa pode vir a inferir que suas ações foram basicamente motivadas pelas contingências externas da situação, em vez de qualquer interesse intrínseco na atividade em si. Resumindo, uma pessoa induzida a fazer uma atividade inerentemente desejável como um meio para algum fim posterior deixará de enxergar a atividade como um fim em si mesma (LEPPER; GREENE; NISBETT, 1973, p. 133, tradução nossa).
A motivação extrínseca, então, pode se tornar vilã no processo de reforço cognitivo em atividades naturalmente intrínsecas, como os autores demonstram ao submeter três grupos de crianças que gostavam da atividade de desenhar a uma atividade de desenho sob a
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condição de que um dos grupos faria os desenhos para ganhar um prêmio (um certificado dourado com um laço), outro grupo não teria nenhum prêmio esperado, mas receberia o mesmo prêmio que o primeiro de maneira inesperada, e o terceiro grupo, como controle, não receberia nenhum prêmio. O resultado comprovou a hipótese da superjustificação ao demonstrar que as crianças que tinham a antecipação do prêmio mostraram menos interesse intrínseco na atividade que as crianças que não receberiam o prêmio (controle) ou mesmo que aquelas que receberam o prêmio de maneira inesperada (segundo grupo). Como esperado, as crianças do primeiro grupo perderam rapidamente o interesse na tarefa e gastaram menos tempo desenhando. Os autores argumentam que os resultados do experimento comprovam ser possível o fenômeno da superjustificação. Os autores ainda chamam a atenção para o fato de que a recompensa, mesmo simbólica, produziu o efeito da superjustificação nas crianças: A manipulação bastante limitada empregada neste estudo, envolvendo uma recompensa simbólica diferente daquelas rotineiramente empregadas nas salas de aula, foi suficiente para produzir diferenças significativas no comportamento subsequente das crianças (LEPPER; GREENE; NISBETT, 1973, p. 134, tradução nossa).
Os autores ainda pedem cuidado com a generalização do argumento da superjustificação, alertando para o fato de que a recompensa extrínseca do experimento era essencialmente supérflua e que há outros experimentos que comprovam a eficácia das recompensas extrínsecas como mecanismos de motivação em certos contextos. O argumento se estende limitando o resultado do experimento a atividades que atendam a duas condições: a) que o nível de interesse intrínseco seja mínimo ao ponto de se exigir a adoção de uma recompensa extrínseca; b) que a atividade seja tal que seu envolvimento só seja percebido após um longo tempo ou após a conquista de um certo domínio.
O experimento comprova a possibilidade da superjustificação, e as condições em que ela ocorre têm consequências para os processos descritos neste capítulo. Mas devemos olhar a recompensa extrínseca também sob o olhar da teoria da autodeterminação, como explico mais à frente. Os dois casos em que a teoria da superjustificação entende a eficácia da recompensa extrínseca, atividade demasiadamente enfadonha e atividade de pouco interesse intrínseco inicial, são aplicações clássicas de gamificação, como certas tarefas do trabalho diário. Porém, a gamificação em um curso de línguas, por exemplo, pode ter resultados variados, já que, enquanto algumas pessoas não têm interesse na atividade e uma recompensa extrínseca ajuda na motivação do avanço do curso, certas pessoas têm interesse genuíno e podem sentir prazer intrínseco aprendendo essa nova língua.
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Gamificação em debate
Recompensas extrínsecas e behaviorismo
A gamificação é um campo novo, no qual ainda estamos experimentando definições e cercando fronteiras. Em resumo extremo, a gamificação seria a aplicação de elementos dos jogos em atividades do dia a dia para gerar motivação e interesse. Na falta de clareza desses conceitos, muitas vezes se assumem os aspectos mais superficiais do que seria o jogo e o jogar. Esquecem-se por vezes itens fundamentais, como a diversão. Uma definição interessante é trazida por Yu-Kai Chou (2014, p. 8, tradução nossa): “Em minha própria visão, gamificação é a habilidade de gerar elementos de diversão e engajamento encontrados tipicamente em jogos e aplicá-los sabiamente a atividades produtivas do mundo real”. Esse aspecto de “novidade” em relação à gamificação produz como efeito processos em que se exploram os aspectos mais visíveis e transportáveis do jogo: muitos profissionais de gamificação focam somente no desenvolvimento da camada mais superficial dos jogos. Eu considero isso a casca da experiência de jogo. Isso é muitas vezes manifestado na forma do que chamamos de PBLs: Points, Badges and Leaderboards [Pontos, Insígnias e Classificação].1 Muitos profissionais de gamificação parecem acreditar que, se você adiciona pontos a algo chato, coloca algumas insígnias e oferece uma classificação competitiva, aquele produto chato irá automaticamente se tornar excitante (CHOU, 2014, p. 17, tradução nossa).
Esse tipo de prática gera muitas críticas, tanto de consumidores, que se frustram, quanto da comunidade de desenvolvimento de games, que a considera uma banalização do processo. Não que a aplicação da tríade PBL seja ruim ou um mal em si, mas aplicar somente esse dispositivo, sem cuidados com toda a filosofia da gamificação, cria mais problemas que soluções: Pessoas curiosas sobre gamificação começam a acreditar que a soma total da metodologia de gamificação é meramente o processo de adicionar pontos, insígnias e classificação aos produtos. Com justiça, isso os leva a acreditar que gamificação é uma moda superficial sem muito impacto (CHOU, 2014, p. 17, tradução nossa).
Além do problema da banalização desse processo, o acréscimo da estrutura PBL sem a profundidade e a reflexão necessárias leva também a questões como a externalização das recompensas (como a superjustificação já citada neste capítulo) e aos processos comportamentais (como o behaviorismo). Como o próprio Chou argumenta, se você perguntar a qualquer jogador qual aspecto do jogo o motiva e traz diversão, dificilmente ele mencionará os relacionados ao PBL. Nesse caso, o PBL é um conjunto que se soma ao todo do jogo; quando aplicado de maneira isolada a qualquer atividade de não jogo, ele se torna apenas uma recompensa extrínseca. 1
A tríade pontos, insígnias e classificação é a mais corrente e usada na gamificação, a ponto de gerar a criação do acrônimo que praticamente se tornou sinônimo de gamificação.
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Somente incorporar essas mecânicas e elementos de jogo aos processos não os torna motivadores e divertidos; por isso, inclusive, definições de gamificação que levam apenas esse aspecto em consideração (como a mencionada por mim no início deste tópico) são limitadas e injustas. As técnicas associadas a esquemas como o PBL, e que utilizam como motor central apenas recompensas extrínsecas, apoiam-se em laços muito frágeis baseados no comportamento humano. Por vezes, a aplicação desses esquemas se torna inclusive behaviorista. As recompensas estreitam nosso foco (“vou fazer isso para ganhar aquilo”), o que é interessante quando as metas são claras e objetivas, mas pouco útil quando existe a necessidade de uso da criatividade para solução dos problemas. Um dos motivos para isso pode ser o modo como usamos o cérebro. Enquanto as motivações extrínsecas são mais pragmáticas e focam nos resultados (faça isso para ganhar aquilo), as motivações intrínsecas são mais sensoriais e focam no processo (você faz porque é divertido fazer). Outro problema associado às motivações extrínsecas é o aspecto behaviorista delas. Behaviorismo é o campo da psicologia que estuda, em parte, o condicionamento pelo comportamento, como o reflexo condicional de Petrovich Pavlov no behaviorismo clássico, que acredita que todo comportamento surge de um estímulo e, portanto, podemos condicionar qualquer comportamento com o estímulo correto. Se pensarmos bem, a recompensa extrínseca pode exercer um papel behaviorista ao estabelecer que se você faz a tarefa, ganha prêmio; se não faz, não ganha prêmio; tentando assim condicionar seu comportamento pelo estabelecimento de recompensas externas à atividade em si. Porém, o laço aqui é frágil, pois existe a chance de se perder a motivação se a recompensa for tirada do processo (o processo não se torna autotélico). Isso porque quando fazemos algo por motivadores extrínsecos, nossos olhos estão no objetivo, e tentamos usar o caminho mais rápido e de menor esforço para alcançá-lo. Como consequência, muitas vezes abandonamos nossas habilidades para ser criativos, pensar de maneira expansiva e refinar nosso trabalho (CHOU, 2014, p. 354, tradução nossa).
Ao propor uma recompensa extrínseca, tiramos o foco do processo, colocando-o no objetivo, e as atividades que geram prazer intrínseco são aquelas em que nosso foco está justamente no processo (gostamos de jogar porque gostamos do processo de jogo em si); portanto, a recompensa externa pode impedir o motor do prazer autotélico de se perpetuar no processo. Os processos behavioristas ignoram o que acontece dentro do cérebro, trabalhando apenas com os sinais externos de nossas respostas. Percebe-se isso nas técnicas de motivação criadas na década de 1950 nos ambientes de trabalho, como presentes e bônus. Pare para pensar no quanto isso realmente lhe motiva. As teorias cognitivistas mais recentes tentam entender o que acontece dentro do cérebro e, com isso, visam tornar a atividade intrinsecamente prazerosa, o que torna todo o processo mais sólido e estável. Teorias como a da autodeterminação, de Ryan e Deci (na qual se apoia a teoria da superjustificação), nos dizem que o ser humano é naturalmente proativo e com intenso desejo
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de se desenvolver, mas que o ambiente deve dar suporte a isso; por isso, o foco não deveria estar na motivação em si, mas na criação de um ambiente fértil para o prazer autotélico (RYAN; DECI, 2000). Talvez nenhum fenômeno individual reflita melhor o potencial positivo da natureza humana que a motivação intrínseca, a tendência inerente para procurar novidades e desafios, aumentar e estender a própria capacidade, explorar e aprender. Desenvolvimentistas reconhecem que, desde o nascimento, as crianças, em seus estados mais saudáveis, são ativas, inquisitivas, curiosas e brincalhonas [playful], mesmo na ausência de recompensas específicas (RYAN; DECI, 2000, p. 70, tradução nossa).
Para os autores, necessitamos de três elementos para que esse ambiente seja propício: 1. Competência: o domínio em saber lidar com o ambiente externo. 2. Afinidade: conexão social e desejo universal de estar em contato. 3. Autonomia: necessidade de estar no controle de uma situação e de estar fazendo algo que é significativo para sua vida, de acordo com seus valores.
Segundo Ryan e Deci (apud WERBACH; HUNTER, 2012), qualquer atividade que traga duas dessas necessidades humanas tende a ser naturalmente de motivação intrínseca. Jogos são perfeitas ilustrações das lições das teorias de autodeterminação. Por que as pessoas jogam? Como já dissemos, ninguém as força. Mesmo um simples jogo de Sudoku ativa as necessidades intrínsecas por autonomia (que puzzle eu resolvo e como o resolvo depende apenas de mim), competência (eu descobri como!), e afinidade (posso compartilhar o feito com meus amigos) (WERBACH; HUNTER, 2012, loc. 804, tradução nossa). Possibilidades para o uso das recompensas extrínsecas
O uso de recompensas extrínsecas em processos de gamificação deve ser profundamente integrado aos outros elementos de jogo presentes. Elas vão funcionar muito bem, por exemplo, para atrair seu público para a atividade em si, mas, uma vez dentro e engajado na atividade, deve-se pensar em uma transição para processos mais focados na experiência e que possam ser mais duradouros, prazerosos e divertidos. Muitos processos de gamificação focam apenas nos esquemas baseados em PBL pois eles funcionam muito bem no curto prazo (atraindo o público) e geram bons números a se apresentar, porém se perdem no tempo e desestimulam o público via processos de superjustificação ou falta de estímulo para a experiência em si. Novamente segundo as teorias da autodeterminação, a recompensa extrínseca pode variar o grau de autonomia dado à pessoa ao ser introjetada ou integrada à atividade. Um adolescente que faz o dever de casa para se submeter ao controle dos pais está sob uma motivação extrínseca para se adaptar às regulações de sua família (regulação introjetada,
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externa). Por outro lado, um adolescente que faz o dever de casa porque sabe que isso contribui para seu desenvolvimento pessoal e refletirá na sua carreira futura também o faz sob motivação extrínseca (regulação integrada, interna), porém com um grau de escolha e autonomia diferentes do caso anterior. Enquanto, no primeiro caso, o locus da causalidade é externo, no segundo é mais próximo do interno. O comportamento motivado extrinsecamente por regulação introjetada acontece para se evitar a culpa ou a ansiedade ou por orgulho. Quando a regulação é integrada, o comportamento acontece por conta de uma congruência com valores e necessidades internos da pessoa (RYAN; DECI, 2000). Ao projetar uma plataforma de gamificação baseada em motivações extrínsecas como PBL, deve-se tomar cuidado para que essas recompensas levem em conta o ambiente da atividade, para que se relacionem aos três elementos básicos da motivação intrínseca. Considerações finais
Cada processo de gamificação é único, e estabelecer os seus parâmetros e requisitos é trabalho árduo que exige profundo conhecimento do processo em si e das possíveis estratégias de gamificação (e do que é a gamificação de verdade). O que tento introduzir aqui é que a gamificação não pode ser enxergada como algo distinto e distante do que é o jogar, e que não pensar na filosofia do jogo em si e na psicologia da motivação nos faz perder oportunidades de sucesso. Não supersimplifique as maneiras como os elementos de jogo ou sistemas gamificados podem produzir respostas motivacionais. E não supergeneralize como as pessoas respondem a certos estímulos. Gamificação não é design de recompensas. [...] Muitos sites e plataformas gamificados assumem que uma recompensa virtual é inerentemente atraente. Não é. Ela pode ser um pálido substituto para o que as pessoas realmente querem (WERBACH; HUNTER, 2012, loc. 823, tradução nossa).
A teoria da autodeterminação também oferece pistas interessantes sobre o que eles chamam de “internalização” do sistema de regulação das recompensas extrínsecas. Isso ocorre quando essa motivação é introjetada ou integrada ao self (como já exemplificado no item anterior), o que traz a autonomia e o senso de escolha de volta à atividade, facilitando a motivação intrínseca. Isso pode ser feito tanto pelo viés da afinidade (vou fazer porque é importante para alguém com quem me importo ou por querer pertencer a um grupo), da competência (para adquirir respeito por fazer bem a atividade) ou da autonomia (a escolha disso é minha). Podemos, então, tornar a motivação extrínseca mais orgânica e natural atingindo esses pontos, melhorando o ambiente (RYAN; DECI, 2000, 2017). Abordar apenas as recompensas de um sistema é como tratar uma doença apenas pelos seus sintomas: o paciente melhora, mas a doença continua lá. Pensar na teoria da autodeterminação pode ser um bom ponto de partida, e verificar se você traz em seu processo as três necessidades básicas humanas gera plataformas gamificadas mais duradouras.
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Gamificação usa os três motivadores intrínsecos para gerar resultados poderosos. Níveis e acumulação de pontos podem ser marcadores de competência e domínio. Dar aos jogadores escolhas e uma gama de experiências conforme progridem alimenta o desejo por autonomia e agência. As interações sociais como compartilhamento no Facebook ou as insígnias que você pode mostrar para os amigos respondem à necessidade humana por afinidade (WERBACH; HUNTER, 2012, loc. 804, tradução nossa).
Portanto, pensar na plataforma de gamificação com o olhar do design de jogos, da filosofia ou da psicologia cognitiva pode trazer benefícios para seus processos de gamificação, pois mostra de maneira clara como metodologias, modelos e estruturas da gamificação se complementam nas definições do que é o jogo, na filosofia do jogar e na cognição do processo. Entender essas definições é compreender as bases dos processos de gamificação e a real natureza do que torna o jogo algo tão poderoso. A intenção aqui não é responder o que é melhor ou pior nesses processos, mas proporcionar uma reflexão mais profunda visando à construção de plataformas mais duradouras e inteligentes. Referências CAILLOIS, R. Os jogos e os homens: a máscara e a vertigem. Lisboa: Perspectiva, 1990. CSIKSZENTMIHALYI, M. Flow: the psychology of optimal experience. New York: Harper and Row, 1990. CHOU, Y.-K. Actionable gamification: beyond points, badges, and leaderboards. San Francisco: Octalysis Media, 2014. FLANAGAN, M.; NISSENBAUM, H. Values at play: valores nos jogos digitais. São Paulo: Blucher, 2016. HUIZINGA, J. Homo ludens: o jogo como elemento da cultura. São Paulo: Perspectiva, 2014. JUUL, J. Half-real: videogames between real rules and fictional worlds. Cambridge: MIT Press, 2011. LEPPER, M. R.; GREENE, D.; NISBETT, R. E. Undermining children’s intrinsic interest with extrinsic reward: a test of the “overjustification” hypothesis. Journal of Personality and Social Psychology, v. 28, n. 1, p. 129-137, 1973. MCGONIGAL, J. A realidade em jogo: porque os games nos tornam melhores e como eles podem mudar o mundo. Rio de Janeiro: Bestseller, 2012. RYAN, R. M.; DECI, E. L. Self-determination theory: basic psychological needs in motivation, development, and wellness. New York: Guilford Press, 2017. ______. Self-determination theory and the facilitation of intrinsic motivation, social development, and well-being. American Psychologist, Rochester, v. 55, n. 1, p. 68-78, 2000. SALEN, K.; ZIMMERMAN, E. Regras do jogo: fundamentos do design de jogos. São Paulo: Blucher, 2012. 4 v. WERBACH, K.; HUNTER, D. For the win: how game thinking can revolutionize your business [digital]. Philadelphia: Wharton Digital Press, 2012.
A emergência da gamificação na cultura do jogo
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Fabricio Fava Posto em relevância principalmente pelo interesse na integração do aspecto lúdico (ludens)1 à nossa cultura, o jogo é uma atividade voluntária que “se realiza tendo em vista uma satisfação que consiste nessa própria realização” (HUIZINGA, 2007, p. 12). O jogador associa ao jogo a sensação de prazer que experimenta enquanto joga, e a busca por uma experiência de envolvimento faz dos jogos parte integrante de nossa vida cotidiana. Mais que isso, eles a ampliam, tornando-se “uma necessidade tanto para o indivíduo, como função vital, quanto para a sociedade, [...] como função cultural” (HUIZINGA, 2007, p. 12). Sob essa ótica, é possível traçarmos relações análogas entre jogo e cultura: Marshall McLuhan (1969), por exemplo, aponta que, para se ajustar à sociedade, os homens precisam se render aos imperativos coletivos, assim como os jogadores devem consentir transformar-se em bonecos temporariamente para que o jogo funcione; o psicólogo Mihaly Csikszentmihalyi (1990), por sua vez, pensa que tanto os jogos quanto a cultura apresentam diretrizes para que as pessoas se envolvam em um processo e ajam com o mínimo de dúvida ou confusão. Ambos os autores, no entanto, pontuam que os jogos agem fora de nosso ambiente de trabalho: “os jogos [...] são contra-irritantes ou meios de ajustamento às pressões e tensões das ações especializadas de qualquer grupo social. Como extensões da resposta popular às tensões do trabalho, os jogos são modelos fiéis de uma cultura” (MCLUHAN, 1969, p. 264); “os jogos preenchem os intervalos do enredo cultural. Eles incentivam a ação e a concentração durante o ‘tempo livre’, quando as instruções culturais oferecem pouca orientação” (CSIKSZENTMIHALYI, 1990, p. 122, tradução nossa). Atualmente, contudo, apesar da existência dessa lógica dual de oposição entre as noções de brincadeira e seriedade, tempo livre e trabalho, lazer e responsabilidade, jogo e cultura, surgem cenários que demonstram uma tendência de estreitamento de relações entre elas. Fato que pode ser observado, por exemplo, a partir da emergência da geração Y (BUNCHBALL, 2012), formada por indivíduos considerados nativos digitais, constantemente conectados em redes online e imersos, desde a infância, na linguagem e na metáfora dos jogos. 1
Atualmente, o estudo do aspecto lúdico parece ganhar evidência em relação a outras funções, como raciocínio (sapiens) e fabricação (faber), observadas ao longo dos anos para designar a espécie humana.
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Gamificação em debate
As características, os comportamentos e as motivações dessa geração têm apresentado reflexos importantes nos ambientes de trabalho e ensino, e a demanda pelo divertimento parece ganhar cada vez mais importância. O número de norte-americanos que não se sentem engajados em seu ambiente de trabalho, por exemplo, é de 71% (GALLUP, 2011), enquanto 90% gostariam de ter colegas de trabalho que tornassem o ambiente mais divertido (SOCIALCAST, 2011). Esses locais estão sendo ocupados por pessoas que não conhecem o mundo sem celulares, videogames ou internet (TRYBUS, 2009). Ao final da década de 2010, espera-se que um em cada cinco cidadãos americanos se aposentasse e fosse substituído por outro com idade entre 18 e 40 anos e que tivesse crescido com os games (TRYBUS, 2009). São pessoas que já representam 25% da força de trabalho (BUNCHBALL, 2012) e que despendem várias horas diárias interagindo com jogos digitais em um nível de envolvimento que raramente é observado em ambientes de trabalho ou estudo (REEVES; READ, 2009). Pondo em contexto o cenário brasileiro, há de se considerar a expressividade dos números, uma vez que assistimos em média a 4h30 de TV por dia (SECOM, 2014), enquanto jogamos videogames por 2h10 (NPD GROUP, 2015). Diante dessas considerações, chegamos à implicação de que as experiências vividas por intermédio do jogo estão redefinindo nossas expectativas sobre o mundo físico (que denominamos “real”): os games adentram cada vez mais os espaços de nossas atividades cotidianas; inspiram-nos de tal maneira que os ambientes acadêmicos e as metodologias de trabalho nos parecem cada vez menos interessantes; e transformam as relações sociais de modo que a “realidade” se mostra cada vez mais entediante. Onipresença da lógica dos games
A onipresença dos games pode ser verificada na aplicação de sua lógica e suas mecânicas nos mais diversos contextos. Isto é, os jogos são vistos como um complexo fenômeno cultural, não apenas como validação do entretenimento, mas especialmente no que diz respeito à promoção de mudanças e engajamento para o bem social. Sua ubiquidade pode ser percebida em pelo menos três aspectos distintos: 1. Nos jogos propriamente ditos (sejam eles com objetivo de entretenimento ou nos chamados serious games):2 nesse contexto, temos, por exemplo, o jogo FoldIt (2008), no qual os jogadores podem contribuir para a pesquisa científica lidando com paradigmas de resolução de problemas ainda sem solução. Outro exemplo é The Big Easy Budget (2016),3 que utiliza dados abertos da cidade de Nova Orleans e permite que os jogadores experimentem o papel de prefeito e busquem formas de criar um orçamento melhor para a cidade. Pode-se citar, ainda, America’s Army: desenvolvido pelo exército norte-americano, Apesar de a diversão ser um fator importante, os serious games têm uma preocupação maior com aspectos como aprendizado e avaliação, podendo ser aplicados para treinamento (militar, de pilotos, médico etc.), educação, medicina (reabilitação física ou cognitiva) etc. 3 Jogo disponível em: . Acesso em: 4 abr. 2016. 2
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o game simula situações vivenciadas por soldados durante missões de combate e tem sido responsável por dois fatos interessantes (SINGER, 2010): o primeiro é que, por causa dele, 30% dos jovens americanos passaram a ter uma melhor impressão sobre o exército; o segundo é que tem funcionado como uma ferramenta de recrutamento com melhor retorno de investimento que todas as outras formas de publicidade juntas, mesmo tendo um gasto médio anual de US$ 3,28 milhões ante os US$ 8 bilhões gastos com propaganda para tal fim. Muitas ações também têm utilizado os videogames no contexto de ensino e aprendizagem buscando ampliar o envolvimento e a motivação dos alunos a partir de uma experiência lúdica. Essas soluções têm adotado os jogos como ferramentas de ensino e os resultados parecem bastante promissores, como é o caso de Minecraft, que possui uma comunidade online4 na qual os professores podem trocar experiências, ideias e inspirações sobre o uso do jogo em suas escolas. As estratégias de uso dos games na educação têm crescido, principalmente com o aumento da penetração dos dispositivos móveis. São inúmeros os aplicativos e as plataformas projetados com fins de aprendizagem, como é o caso de Duolingo, para aprendizagem de idiomas; Udemy, com cursos diversos, como programação, culinária ou comunicação oral; e Instinct, para o ensino de música. A publicidade é outro segmento que sempre buscou soluções capazes de gerar experiências emocionais e interativas que criassem uma conexão entre produtos e pessoas. Essa estratégia é utilizada desde antes das tecnologias digitais, como no caso da cervejaria Carslberg, que publicou um anúncio de contracapa de revista com instruções para torná-lo um abridor de garrafas.5 O uso dos advergames, ou jogos publicitários, tem se mostrado uma ferramenta interessante e recursiva para esse propósito, como é o caso da ação NewsBraker Live para o site de notícias msnbc.com. Baseada no jogo Breakout,6 a promoção transformou os espectadores das salas de alguns cinemas norte-americanos em controles humanos. Os jogos digitais também estão ocupando cada vez mais os espaços artísticos por meio do que vem sendo chamado de game arte. No Brasil, uma seleção de jogos como forma de expressão artística pode ser observada anualmente no Festival Internacional de Linguagem Eletrônica (FILE). O artista e professor norte-americano Andrew Hieronymi, por exemplo, apresentou em 2006 a instalação Move,7 que permitia que os participantes experimentassem algumas ações realizadas pelos avatares8 nos videogames.
O portal Minecraft in Education pode ser acessado em: . Acesso em: 19 ago. 2015. Disponível em: Acesso em: 10 mar. 2014. 6 Em Breakout o jogador controla uma paleta na parte inferior da tela e, por meio dela, deve rebater uma bola com o objetivo de quebrar uma sequência de blocos dispostos na parte superior da tela. 7 Instalação artística de Andrew Hieronymi permite a experimentação de seis diferentes ações próprias dos videogames: pular, evitar, perseguir, jogar, esconder e coletar. Disponível em: Acesso em: 10 jul. 2014. 8 Avatares são a representação do jogador dentro do jogo. Eles são projetados para gerar uma experiência de identificação como o personagem. 4 5
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2. Nos simuladores: embora alguns simuladores sejam comercializados como jogos, eles essencialmente não são considerados como tal. O uso dos simuladores é normalmente adotado para fins de aprendizagem, principalmente em atividades que envolvem um alto valor financeiro ou oferecem risco de vida às pessoas. As principais delas são o treinamento de pilotos, médicos ou militares, como é o caso de VirtSim.9 3. No design inspirado nos jogos: isso refere-se à busca por recursos e soluções de design inspirados na lógica dos games, no sentido de provocar, de alguma maneira, experiências de envolvimento e diversão, mas que não são caracterizados efetivamente como jogos. O caso mais conhecido certamente é o projeto The Fun Theory,10 de iniciativa da Volkswagen, dedicado a trabalhar o pensamento de que a diversão é uma maneira importante de influenciar a mudança de comportamento das pessoas para melhor. Outro exemplo interessante ocorreu em uma estação de metrô em Moscou, onde, com o intuito de promover os Jogos de Inverno de Sochi e levar o esporte à vida cotidiana, encorajando as pessoas a terem uma vida mais saudável, o Comitê Olímpico Russo instalou um terminal de autoatendimento que liberava um passe do transporte caso o usuário realizasse 30 movimentos de agachamento em menos de dois minutos. Mais recentemente, uma plataforma interativa denominada PRAMA11 chamou a atenção ao favorecer a prática de exercícios físicos baseada em jogos na academia Asphalt Green, sediada em Nova York. Auxiliada por sensores que respondem à pressão e ao toque e marcações espaciais, numéricas e luminosas dispostas nas paredes e no solo, a solução permite a realização de diversas atividades e contribui para a perda de peso e o desenvolvimento de habilidades de velocidade, força e equilíbrio, entre outras. O design lúdico também pode ser encontrado, por exemplo, no Google, que, desde 1998, passou a criar e exibir em sua página inicial diferentes e divertidas intervenções de design em seu logotipo chamadas de Doodles.12 Inicialmente, os Doodles eram imagens estáticas, mas, a partir de 2010, eles passaram a ganhar frequência e complexidade com o uso de animações e interação, como o produzido em celebração ao jogo Pac-Man.13 Aplicativos para dispositivos móveis também estão entre as soluções de design que se apropriam da lógica e das características dos games como mecanismo de geração de envolvimento. Um exemplo bastante conhecido é o Foursquare (2009), um aplicativo de rede social baseado em geolocalização que ganhou bastante repercussão já no ano de seu lançamento (AGUIARI, 2011) com um modelo de interação baseado em mecânicas de jogos. Os usuários tinham por objetivo informar o local (restaurante, universidade, praça, concerto musical) em que se encontravam e/ou localizar pessoas próximas a eles. A cada VirtSim é um conceito de treinamento virtual imersivo desenvolvido pela Motion Capture. Por meio de um criador de cenários, os usuários do VirtSim podem criar e modificar ambientes de treinamento para uso personalizado. Disponível em: Acesso em: 10 ago. 2015. 10 Disponível em: . Acesso em: 28 jan. 2018. 11 Disponível em: . Acesso em: 7 abr. 2016. 12 Disponível em: . Acesso em: 3 ago. 2015. 13 Disponível em: . Acesso em: 28 jan. 2018. 9
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vez que a presença em determinado local era informada – por meio de check-ins –, o usuário acumulava pontos que geravam um ranking de classificação entre a sua rede de contatos. A pontuação adquirida era atualizada semanalmente, estimulando a continuidade no uso do aplicativo. A constância com que o usuário frequentava determinado local tornava-o o prefeito do lugar, conferindo-lhe status entre a comunidade. Além disso, usuários mais ativos acumulavam uma espécie de troféu (badge) como recompensa pela sua interação.
O aplicativo Foursquare é um exemplo notório da manifestação mais evidente da ubiquidade dos games: a gamificação. Estratégias gamificadas se apropriam da lógica (game thinking) e dos elementos do design de jogos na tentativa de provocar o tipo de envolvimento proporcionado pela interação com os games a atividades desempenhadas em contextos não relacionados a eles. A seguir, discutiremos a emergência desse conceito. A emergência da gamificação
O psicólogo Mihaly Csikszentmihalyi possui um dos trabalhos mais relevantes na tentativa de compreender a questão da felicidade como um processo de provimento de experiências. No livro Beyond boredom and anxiety (1975), o autor desenvolve uma extensa pesquisa sobre atividades que são agradáveis em si mesmas. Sua hipótese era que a compreensão dessas atividades poderia oferecer pistas para uma forma de motivação capaz de tornar-se um importante recurso humano. O resultado é um modelo teórico do divertimento: a teoria da experiência de fluxo (flow experience), composta por oito elementos de satisfação. O fluxo refere-se, basicamente, ao sentimento de foco total em uma atividade, em que o indivíduo experimentaria um alto grau de prazer e satisfação. Resultantes desse tipo de experiência estão o envolvimento, a motivação intrínseca, uma abertura à informação, a fusão de ação e consciência e a alteração da noção do tempo. Em seus estudos, Csikszentmihalyi percebeu uma carência de experiências de fluxo em atividades cotidianas. Elas normalmente eram favorecidas por atividades criativas, como arte e ciência. Os games, todavia, seriam um meio eficaz de vivenciá-las: “jogos são atividades de fluxo, e jogar é fluxo por excelência” (CSIKSZENTMIHALYI, 1975, p. 36-37, tradução nossa). Percebendo os jogos como um meio importante de promoção de experiências de envolvimento, Csikszentmihalyi já indicava uma necessidade de se pensar a vida para funcionar como os jogos. O contexto, no entanto, não se mostrava propício para promover tal ideia. Só mais recentemente pôde-se notar alguns fatores que favoreceram essa nova realidade: (a) estudos sobre a psicologia positiva ganharam força (CSIKSZENTMIHALYI, 1990; ISEN, 1993; NORMAN, 2008); (b) o crescimento da indústria dos videogames promoveu uma consolidação dos modelos de interação e práticas de design de jogos (SALEN; ZIMMERMAN, 2004; SCHUYTEMA, 2008; SCHELL, 2011); (c) princípios e técnicas de projeto para a promoção de experiências do usuário estão mais bem definidos (NIELSEN, 1993;
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ISBISTER; SCHAFFER, 2009); e (d) a penetração da internet e a ascensão dos aparelhos eletrônicos pessoais influenciaram o crescimento do grupo de jogadores casuais.14 Diante desse cenário, notou-se um aumento na produção crítica científica que pensava a inserção da lógica dos games no contexto de nossa vida cotidiana. Pesquisas como Total Engagement (REEVES; READ, 2009), Fun Inc. (CHATFIELD, 2010); Reality is broken (MCGONIGAL, 2011); e The gameful world (WALZ; DETERDING, 2015) são apenas uma amostra desse movimento. Todas partem da ideia de que as pessoas parecem cada vez mais interessadas em atividades que geram o tipo de experiência de envolvimento semelhante às proporcionadas pela interação com os games e a realidade parece não as motivar efetivamente. A percepção do envolvimento para a resolução de problemas e como possibilidade de mudança de comportamento que os jogos proporcionam às pessoas tem refletido em transformações individuais e sociais e motivado um movimento que está ganhando cada vez mais evidência: a gamificação. Definições e expectativas acerca da gamificação
Em suas primeiras formas de uso, gamificar referia-se a transformar em jogo algo não visto como jogo (MARCZEWSKI, 2012). Atualmente, o termo se refere a algo além disso: a aplicação do pensamento (game thinking) e de mecânicas de jogos – como inclusão de elementos de competição, colaboração e pontuação – em atividades não relacionadas ao contexto dos games (BUNCHBALL, 2010). A gamificação se utiliza desses elementos para engajar os usuários e ajudá-los a resolver problemas (ZICHERMANN; CUNNINGHAM, 2011) ou para direcionar a um comportamento desejado (SHAW, 2011). Apesar da abrangência dessa conceituação, alguns autores propõem definições para o termo direcionadas aos seus interesses de estudo, como Karl Kapp, autor de The gamification of learning and instruction, que situa o conceito no contexto de aprendizagem: “gamificação é a utilização de mecânica, estética e pensamento baseados em jogos para engajar pessoas, motivar a ação, promover aprendizagem e resolver problemas” (KAPP, 2012, p. 10, tradução nossa); ou Brian Burke, consultor de tendências tecnológicas e autor de Gamify, que considera as tecnologias digitais ao defini-la: “uso de design de experiências digitais e mecânicas de jogos para motivar e engajar as pessoas para que elas atinjam seus objetivos” (BURKE, 2014, p. XVI, tradução nossa). O primeiro uso do termo gamification da forma como o conhecemos hoje aparentemente ocorreu em 2003 (WERBACH; HUNTER, 2012), quando o desenvolvedor de jogos britânico Nick Pelling ofereceu em seu site o serviço de consultoria para a criação de interfaces baseadas em jogos para dispositivos eletrônicos. É interessante mencionar que existe uma série de outros termos usados para se referir ao uso das técnicas de design de jogos em experiências de não jogo: productivity games, surveillance entertainment, funware, playful design, behavioral games, game layer, applied gaming 14
Jogadores casuais jogam pelo puro prazer de jogar, por isso possuem baixas habilidade, motivação pessoal para exploração de ambientes e tolerância para erros (FAVA, 2010).
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(DETERTING et al., 2011). Embora não seja um consenso, o termo gamification acabou se firmando e ganhando notoriedade quando empresas como Bunchball e Badgeville passaram a utilizá-lo para descrever suas plataformas de comportamento. A primeira delas foi a Nitro, desenvolvida pela Bunchball em 2007, que, embora ainda não mencionasse o termo gamificação, permitia a integração de mecânicas de jogos em redes sociais, aplicativos móveis e sites. O exemplo que marcou a aplicação desse conceito, no entanto, foi o Foursquare (2009), que mencionamos anteriormente. A utilização da mecânica de jogos ajudou esse aplicativo, lançado em 2009, a atingir cerca de 5 milhões de usuários apenas no primeiro ano. No ano seguinte, esse número já havia triplicado (AGUIARI, 2011). Os resultados positivos alcançados por meio da adoção de soluções de design gamificadas – sobretudo a partir do sucesso do Foursquare – levaram a um grande entusiasmo acerca desse conceito. As possibilidades de aplicação da lógica do envolvimento com os jogos digitais parecem não se limitar a contextos específicos e passaram a ser adotadas para os mais diversos objetivos. Uma enorme variedade de aplicações da gamificação começou a ser usada visando atingir os mais diversos objetivos, como é o caso da Nike+, rede para incentivar as pessoas a praticarem atividades físicas e que atualmente possui quase 30 milhões de usuários;15 do My Starbucks Rewards, programa de fidelidade de rede de cafés Starbucks, que possui mais de 10 milhões de usuários e ajudou no crescimento de 18% da receita líquida da empresa em um trimestre;16 do Opower, que trabalha com empresas fornecedoras de energia e, por meio da gamificação, ajudou a motivar os consumidores de seus parceiros a reduzir mais de 9,5 terawatts/hora de energia;17 da SAP Community Network, rede de desenvolvimento da SAP que teve um aumento superior a 1.000% no registro de atividades como criação de conteúdo, comentários e feedbacks com o uso de componentes dos jogos;18 e da Khan Academy, uma plataforma de ensino online que tem motivado o aprendizado de estudantes ao redor do planeta.19 Proliferaram-se também uma série de ações para discussão e promoção do conceito: publicações, como Games-Based Marketing (ZICHERMANN; LINDER, 2010), For the Win (WERBACH; HUNTER, 2012) e Gamify (BURKE, 2014); eventos e conferências, como GSummit, Gamification World e Gamification Research Network; e cursos online, como Gamification (2012),20 disponibilizado na plataforma de ensino Coursera,21 e Gamification Design (2014, 2015), mantido pelo portal iversity.22 Disponível em: . Acesso em: 9 mar. 2016. 16 Disponível em: . Acesso em: 10 mar. 2016. 17 Dado disponível e constantemente atualizado em: . Acesso em: 7 mar. 2016. 18 Disponível em: . Acesso em: 10 mar. 2016. 19 Disponível em: . Acesso em: 4 mar. 2016. 20 Ministrado pelo professor Kevin Werbach, da Universidade da Pensilvânia. Na primeira edição, teve a participação de mais de 140 mil alunos, tornando-se o curso mais popular oferecido pela universidade na plataforma de ensino Coursera. 21 Disponível em: . Acesso em: 4 ago. 2015. 22 Disponível em: . Acesso em: 5 ago. 2015. 15
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Por consequência desse cenário, acabou-se criando uma publicidade excessiva em torno da gamificação e de suas aplicações. Para termos uma perspectiva quantificada do crescimento desse interesse, até outubro de 2010 o termo gamification não era representado no Trends do Google – ferramenta que gera gráficos de popularidade de termos pesquisados ao longo do tempo no próprio Google. A partir desse período, o quadro mostra uma tendência de crescimento nos resultados de busca para o termo até meados do ano de 2014, quando houve certa estabilização, mas com um grau de interesse ainda elevado (Figura 4.1).
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Figura 4.1 – Gráfico do Google Trends mostrando o interesse pelo termo gamification. Fonte: . Acesso em: 9 abr. 2016.
Observação: a projeção do gráfico não indica o volume de pesquisas absoluto, mas uma representação relativa calculada de acordo com a popularidade dos termos procurados por região e dentro de certo intervalo de tempo. As pesquisas no Google feitas com a palavra traduzida para o português, gamificação, começam a ser quantificadas em março de 2013 e ganham relevância a partir de outubro. É possível observar uma tendência de crescimento ao logo do tempo, embora marcada por uma variação recorrente na curva de interesse (Figura 4.2).
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Figura 4.2 – Gráfico do Google Trends mostrando o interesse pelo termo gamificação. Fonte: . Acesso em: 9 abr. 2016.
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Além disso, o relatório Hype cycle for emerging technologies, proposto anualmente pela companhia de pesquisa e consultoria em tecnologia da informação Gartner Inc., apresenta uma análise de maturidade de quase 2 mil tecnologias emergentes. Seus resultados acerca de estimativas de uso da tecnologia são sintetizados em um esquema que ilustra a expectativa, o período de maturidade e sua previsão de adoção. A menção ao termo gamification aparece pela primeira vez no gráfico de 2011 (Figura 4.3). Expectativas Internet TV Pagamentos sem contato (NFC) Computação em nuvem privada Realidade aumentada Computação em nuvem Tablet Assistentes virtuais Bancos de dados em memória principal (IMDB)
Streams de atividade Transmissão sem fio Social analytics Compra coletiva Gamificação Impressão 3D Reconhecimento de imagem Context-enriched services Tradução automática da fala Internet das coisas (IoT) Respostas de perguntas em linguagem natural (NLQA) Robôs móveis Big data e extreme information Processamento e informação de gestão (SIG) Social TV Análise de vídeo (VCA) para atendimento ao cliente Interface cérebro-computador (BCI) Computação quântica Aperfeiçoamento humano Manufatura aditiva
Reconhecimento de gesto Serviços de comunicação máquina a máquina (M2M) Aplicativos de geolocalização
Redes Mesh: sensores
Plataformas web/na nuvem Desktop virtual online Mundos virtuais
Reconhecimento de voz Análise preditiva Lojas de aplicativos Métodos de autenticação biométrica Idea management QR code/color code Consumerização
Leitores de livros dgitais (e-readers)
Gatilho tecnológico
Pico de expectativas superestimadas
Vale da desilusão
Rampa da consolidação
a partir de julho de 2011 Platô de produtividade
tempo Anos para adoção mainstream menos de 2 anos
2 a 5 anos
5 a 10 anos
mais de 10 anos
obsoleto antes do platô
Figura 4.3 – Gráfico de tecnologias emergentes da Gartner (2011, tradução nossa). Fonte: . Acesso em: 13 abr. 2015.
Observando esses gráficos, não é de se estranhar o otimismo nas projeções feitas por diversos institutos de pesquisa em meados de 2011 em relação ao crescimento da gamificação ao longo dos anos: “até 2015, mais de 50% das organizações irão gamificar seus processos de inovação” (GARTNER, 2011a); “até 2014, mais de 70% das maiores organizações do mundo terão pelo menos uma aplicação gamificada” (GARTNER, 2011b); “o mercado da gamificação, estimado em U$100 milhões em 2011, atingirá U$2.8 bilhões até 2016” (M2 RESEARCH, 2011); “o mercado de gamificação irá crescer de U$ 421,3 milhões em 2013 para U$ 5,502 bilhões até 2018” (MARKETSANDMARKETS, 2013).
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Certamente, com essa propagação, as estratégias gamificadas passaram a ser adotadas de forma indiscriminada, e a percepção de que a gamificação não era sinônimo de diversão e motivação tornou-se cada vez mais aparente. Muitas aplicações não tiveram os resultados esperados, inclusive aquelas adotadas por grandes companhias. A empresa de aviação americana JetBlue, por exemplo, criou um programa de fidelidade chamado JetBlue Badges, que oferecia medalhas (badges) para certas atividades realizadas por seus clientes, mas falhou na dinâmica de interação.23 As medalhas exibiam muito conteúdo de parceiros de marketing, além de exigirem vários dados e acesso às plataformas online de redes sociais dos usuários. Disneyland e Paradise Pier, hotéis da rede Disney, adotaram a gamificação para mensurar a produtividade de seus funcionários. Um monitor exibia um ranking com nomes e dados de eficiência dos trabalhadores utilizando um sistema de cores para categorizar o percentual do ritmo de cada membro da equipe. Bastante semelhante à estratégia de gestão à vista,24 o equipamento logo foi apelidado de chicote elétrico (electronic whip). O problema era que o sistema estimulava a competição de forma não saudável,25 deixando as pessoas sentindo-se expostas, controladas. A desenvolvedora de softwares Adobe lançou uma campanha gamificada para ensinar a utilizar um de seus principais produtos: o editor de imagens Photoshop. De acordo com o gerente sênior Petar Karafezov, a estratégia apresentou resultados positivos, mas não atingiu o objetivo esperado: “fomos capazes de ensinar as pessoas a usar o Photoshop de uma maneira diferente e com mais sucesso, mas isso não resultou em um aumento imediato na receita”.26 O movimento de crescimento na aplicação da gamificação aliado ao aparecimento dos resultados negativos se reflete nos gráficos divulgados pela Gartner nos anos que se sucederam. Isolamos a posição da gamificação na curva de maturidade entre 2011 e 2014 (Figura 4.4), e é possível observar que o ápice de expectativas (Peak of Inflated Expectations) é atingido em 2013. Um ano depois, passa a ocupar uma posição bastante próxima ao vale da desilusão (Trough of Disillusionment).
Disponível em: . Acesso em: 15 mar. 2016. 24 No método de gestão à vista, informações relevantes como indicadores, status e tendências são divulgadas a colaboradores e gestores, permitindo o acompanhamento de dados e facilitando os processos de comunicação e engajamento dos colaboradores. 25 Disponível em: . Acesso em: 17 mar. 2016. 26 Disponível em: . Acesso em: 17 mar. 2016. 23
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Pico de expectativas superestimadas 2013 2012 2011
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Rampa da consolidação
Vale da desilusão
Gatilho tecnológico
Figura 4.4 – Gráfico isolando a posição que a gamificação ocupa na curva de tecnologias emergentes proposta pela Gartner ao longo dos anos (tradução nossa). Fonte: . Acesso em: 18 mar. 2016.
Uma análise breve acerca desse movimento descendente na curva de expectativas possibilita inferir alguns pontos, como: o momento da gamificação está passando; a publicidade em torno de sua aplicação se mostrava muito otimista; e a aplicação do conceito seria apenas uma estratégia de marketing. Seguimos agora no sentido de tecer algumas reflexões sobre esses pontos, relativizando-as com manifestações de alguns críticos desse conceito. Críticas à gamificação
Jesse Schell (2010), na apresentação intitulada Design outside the box,27 por exemplo, discute a aplicação indiscriminada da gamificação ilustrando diversos cenários possíveis a partir de uma disseminação massificada desse modelo. O professor alertou para o fato de que a integração de tecnologias dos jogos com a vida das pessoas pode levar a um fenômeno que ele chamou de Gamepocalypse, em que as empresas passariam a oferecer elementos motivadores para qualquer tipo de problema. Schell exemplifica essa noção imaginando um cenário no qual um fabricante de escovas de dente, por exemplo, inclui em seus produtos um dispositivo que recompensa uma pessoa que atinge um tempo determinado de escovação 27
O vídeo da palestra pode ser acessado na galeria de vídeos do site do evento: . Acesso em: 30 mar. 2016.
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ou pela quantidade de vezes que ela escova os dentes diariamente. Essa preocupação se estende ao uso desse tipo de incentivo para produtos maléficos, como o cigarro. Críticos de jogos argumentam que a gamificação ignora a realidade cotidiana aproveitando-se de fantasias. Heather Chaplin (2011) aponta que a aplicação da gamificação não modifica ou melhora um problema, mas a percepção do usuário quanto à situação em que se encontra. John Teti (2012), por sua vez, afirma que, em vez de tornar o trabalho gratificante, ela faz o trabalho parecer gratificante. No texto Gamification is bullshit!, Ian Bogost (2011a) critica um evento da área e utiliza o conceito de bullshit (besteira, bobagem) para se referir ao modo como o termo gamificação é empregado: Gamification é bobagem de marketing, inventada por consultores como um meio para capturar os animais selvagens e cobiçados que são os videogames e domesticá-los para uso no deserto acinzentado e sem esperança do mercado corporativo, em que a bobagem já reina de qualquer maneira (BOGOST, 2011a, tradução nossa).
Vale ressaltar que Bogost não desconsidera o potencial dos games para a mudança de atitudes e crenças, na medida em que defende o seu poder de persuasão por meio da representação baseada em regras e interações (BOGOST, 2007) – em vez de formas de comunicação por voz, escrita, imagem ou vídeo. Para ele, no entanto, a gamificação não tem a ver com o design de jogos (BOGOST, 2011b), pois, enquanto este trata de dificultar a tarefa dos jogadores, exigir deles uma variedade de habilidades e questionar a experiência a partir do uso de narrativas complexas, aquela não se propõe a atingir esses objetivos, mas estaria interessada unicamente em maximizar a atividade dos usuários. Nesse sentido, a gamificação reduziria o ato de jogar a uma experiência de estímulo-resposta. Bogost propõe a substituição do termo gamification por exploitationware, pois acreditar que este captura as reais intenções de uma estratégia de gamificação: um jogo de fazer dinheiro, escolhido para capitalizar um momento cultural, por meio de serviços sobre os quais eles [os consultores de marketing] têm experiência questionável e para trazer resultados que durem apenas o tempo suficiente para preencher suas contas bancárias antes que a próxima tendência boba apareça (BOGOST, 2011a, tradução nossa).
Será a gamificação, portanto, um conceito realmente superestimado? Ou seria uma solução de design usada de maneira indiscriminada e cujos projeto e aplicação necessitam de amadurecimento? Sob o ponto de vista do marketing, o pensamento de Bogost faz bastante sentido, principalmente se considerarmos o fato de que, em 2015, a Gartner deixou de considerar a gamificação como uma tendência tecnológica e passou a vê-la como uma tendência de marketing.
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Ambiente de oportunidades
Kam Star, fundador da Playgen, um estúdio de desenvolvimento de serious games e soluções gamificadas baseado em Londres, apresentou um estudo que pode nos auxiliar a formular uma opinião mais concreta sobre a gamificação. Na palestra Why 76% of gamification efforts fail and how to be in the successful 24% (STAR, 2014), proferida no Adobe Summit 2014, Kam apresenta os resultados de um levantamento realizado em mais de 3.500 publicações. Destas, 300 descreviam casos em que foram aplicadas estratégias de gamificação. O primeiro ponto descoberto foi que, dentre esses trabalhos, 94% reportaram aumento de motivação em relação à prática de atividade ou uso de serviços. A expressividade desse número poderia nos levar a uma inferência de que a gamificação é uma estratégia certeira. Ao analisar os dados das pesquisas, no entanto, 51% delas não apresentaram diferenças significativas; 25% reportaram diminuição nos resultados; e apenas 24% demonstraram melhorias de produtividade ou uso de serviços (alguns bastante significativos, com até 300% de aumento). Um resultado positivo de apenas 24% pode não parecer alto, mas é considerável se o compararmos aos números da própria indústria de videogames: somente 20% dos jogos que vão para o mercado dão lucro para os estúdios de criação.28 Se considerarmos o retorno de investimento dos jogos que entram em produção, esse número é ainda menor: 4%, resultado semelhante aos 7% que representam o retorno de investimento da indústria de cinema inglesa.29 O que nos chama a atenção, na verdade, é que esses 24% indiciam um caminho ligado à gamificação que acreditamos merecer um olhar mais atento: a promoção da experiência lúdica como via de transformação de comportamentos e hábitos humanos. Conforme observamos, as críticas à gamificação tendem a recair em sua aplicação a partir de uma abordagem behaviorista, baseada em estímulo e resposta. Acreditamos, no entanto, que a gamificação não se limita a um processo que premia comportamentos pela aplicação de elementos dos jogos. Para que o seu projeto funcione, o design de jogos deve ser apreendido de maneira mais ampla, como uma prática sistêmica. Referências AGUIARI, V. Foursquare atinge 15 milhões de usuários. Info Exame, 2011. Disponível em: . Acesso em: 4 mar. 2014. BARTLE, R. Hearts, clubs, diamonds, spades: players who suit MUDs. Journal of MUD Research, v. 1, n. 1, June 1996. BOGOST, I. Persuasive games: the expressive power of videogames. London: MIT Press, 2007.
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Gamificação em debate
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Fábio Medeiros Dulce Márcia Cruz Os games são uma forma de expressão cultural que fascina e envolve milhões de jogadores há várias décadas. Se os jogadores eram (ou talvez ainda sejam, no senso comum) identificados como meninos sedentários e solitários, sentados em sofás com joysticks nas mãos, no século XXI essa imagem já não corresponde à realidade. Jogadores têm qualquer idade ou gênero, se reúnem em grupos massivos para vencer desafios, tocam e cantam músicas juntos, praticam atividades físicas que vão de yoga e dança a movimentos de lutas e corridas, ou mesmo caminham pela cidade jogando games, tudo isso por meio de seus consoles, computadores ou smartphones. Os games, aproveitando-se da sua característica transmidiática, estão se misturando às rotinas diárias convencionais, tornando nubladas as fronteiras entre o mundo físico e o digital. A popularização dos games, por sua vez, criou condições para que o modo de pensar dos seus criadores, os designers de jogos, se tornasse atraente como uma proposta de mudança da realidade, que ficou conhecida como gamification ou gamificação. Gamificação é o uso ou a aplicação de elementos, sistemáticas e mecânicas de jogo em situações de não jogo ou contextos fora de jogo, com o objetivo de elevar o nível de engajamento dos indivíduos numa dada circunstância planejada para isso (ZICHERMANN; CUNNINGHAM, 2011). Ativa defensora do uso de jogos na realidade, Jane McGonigal (2012) relaciona quatro recompensas intrínsecas dos games que ajudariam a construir a nossa felicidade se fossem adotadas em vários setores da sociedade: o trabalho gratificante, a experiência ou esperança de ser bem-sucedido, a busca pela conexão social e a chance de ser parte de algo maior que nós mesmos. McGonigal destaca que cada uma dessas recompensas varia muito de pessoa para pessoa, mas, se utilizadas, poderiam ser a base para melhorar a experiência humana representando “motivações mais poderosas além de nossas necessidades básicas” e “formas de se envolver profundamente com o mundo a nossa volta – com o ambiente, com outras pessoas e com causas e projetos maiores do que nós mesmos” (MCGONIGAL, 2012 p. 58). Tal força para conseguir engajamento e motivação dos jogadores pode estar presente nas
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Gamificação em debate
quatro características comuns aos jogos que são apontadas por McGonigal (2012): a voluntariedade para participação, o sistema de feedback, a definição de regras e a proposição de metas ou objetivos. Essas características atuam como um ciclo, direcionando as ações dos jogadores e mantendo-os informados sobre o objetivo, enquanto dão retorno sobre seu desempenho e as decisões tomadas. Esse ciclo do jogo também tem sido considerado por alguns autores (GEE, 2014; JOHNSON, 2005) semelhante ao processo de ensino e aprendizagem formal, em que os alunos são informados sobre o que devem aprender e, baseados nisso, realizam avaliações para identificar seu desempenho. Porém, a diferença é que enquanto os jogadores mantêm uma relação positiva com seus erros, utilizando-os para crescimento e aprendizagem no desenvolver do jogo, os estudantes identificam as falhas como um fracasso a ser evitado. A discrepância entre os dois grupos na percepção sobre os resultados de suas ações se dá principalmente pelos ciclos de feedback e pelos riscos vinculados às suas escolhas. Enquanto nos games os jogadores obtêm respostas frequentes sobre como estão se saindo em relação aos seus objetivos, na escola os estudantes demoram mais e têm menos oportunidades de avaliação e retorno sobre seu desempenho. Ali, o peso e o risco de fracasso sem possibilidade de reabilitação envolvidos em cada avaliação são altos, e os momentos em que elas acontecem são sempre acompanhados de ansiedade. Enquanto isso, nos games, o jogador perde muito pouco ao errar, pelo contrário, tomar uma decisão errada é visto justamente como parte do processo de aprendizagem para dominar o jogo (LEE; HAMMER, 2011). Essa aproximação da gamificação com a educação foi apontada por Fadel et al. (2014, p. 6) ao lembrar que, mesmo antes de ser nomeada dessa forma, essa estratégia motivacional já vinha sendo aplicada na educação há muito tempo: “a criança podia ter seu trabalho reconhecido com estrelinhas (recompensa) ou as palavras iam se tornando cada vez mais difíceis de serem soletradas no ditado da professora (níveis adaptados às habilidades dos usuários)”. Uma crítica feita à gamificação é que ela seria uma perversão dos games, uma ação de marketing com intuito de levantar empresas e instituições pelo uso de pontos, distintivos e rankings para animar e direcionar seus colaboradores e/ou clientes. Em um texto que gerou polêmica, com o provocativo título “Gamification is bullshit”, Bogost (2011) acusa a gamificação de estar se resumindo ao uso de regras, mecânicas e dinâmicas, perdendo sua essência de jogo. E qual seria essa “essência” do jogo que estaria sendo perdida na gamificação? Segundo Jesse Schell, no clássico The art of game design: a book of lenses (2012), os quatro elementos essenciais dos games seriam: a estética, que está relacionada com a experiência sensorial do usuário, aquilo que ele ouve, vê e sente; a mecânica, com suas regras e seus procedimentos, o sistema que faz o jogo funcionar; a história, que tem sua base na narrativa, a sequência de eventos que ocorre no game; e a tecnologia, que engloba tanto os materiais como a mídia utilizados. Tais elementos que constituem os games são vistos por Schell numa relação flexível, sem uma hierarquia, todos importantes e integrantes da experiência de jogar,
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mesmo que alguns sejam mais visíveis para o jogador que outros. O menos visível seria a tecnologia, em contraponto ao mais visível, a estética, enquanto a mecânica e a história estariam num patamar intermediário. Nesse sentido, considerando o potencial que as histórias têm de fortalecer o engajamento e a motivação para efetivar o comprometimento dos jogadores, se poderia supor que elas estariam auxiliando a gamificação em seus objetivos? Em outras palavras, se a narrativa é um elemento fundamental dos games, da mesma maneira poderia ser entendida para a efetividade da gamificação, possibilitando relacionar de maneira fluida a realidade vivida com a experiência de jogo e tornando o processo gamificado tão interessante quanto um game? Se sim, como os pesquisadores da educação estão utilizando esse conceito, considerando as possibilidades de alcançar tais engajamento e motivação nas práticas educativas? A partir dessas questões, o objetivo deste capítulo é fazer uma revisão bibliográfica para verificar de que forma a narrativa vem sendo tratada na literatura sobre gamificação, e de que forma os elementos narrativos vêm sendo incluídos pelos pesquisadores da área como integrantes da proposta de ludificação da realidade. Para alcançar esse objetivo, foi feita uma pesquisa exploratória da produção acadêmica constante nas bases de dados Scopus e Science Direct, buscando os elementos da narrativa presentes nas propostas de gamificação. O capítulo está estruturado em: primeiramente, uma discussão sobre a relação entre games, narrativas e gamificação, discutindo algumas definições dos dois primeiros conceitos e, superficialmente, como o terceiro tem alcançado popularidade em vários campos de conhecimento; na sequência, são descritos a metodologia e os critérios para o levantamento de literatura nas duas bases de dados; e, por fim, uma análise sintética dos resultados encontrados e algumas considerações finais. Narrativas, games e gamificação
Narrativas são manifestações que estão presentes por toda a história da humanidade em diversos meios. Desenhos em pedras nas cavernas; histórias transmitidas oralmente sobre os mitos e as origens da criação; os livros sagrados com várias narrativas literais ou metafóricas; quadrinhos, novelas, filmes e séries que demonstram situações bem próximas do real ou fantasiosas são todas formas de representar narrativas. Os estudos sobre a narrativa se constituem num campo de conhecimento já consolidado e que não é escopo deste capítulo detalhar. Porém, para situar o conceito, utilizaremos como base as ideias de Gancho (2002), que divide em seis os elementos que compõem a narrativa: enredo, personagens, tempo, espaço, ambiente e narrador. • Enredo é o fio condutor da narrativa, que utiliza fatos verossímeis organizados numa ordem lógica (começo, meio e fim) e tem como componente essencial o conflito. É o conflito que cria a tensão que vai organizar os fatos e prender a atenção do leitor nos momentos de exposição, complicação e clímax. • Os personagens são os que fazem as ações acontecerem na narrativa, pertencem à história e participam efetivamente do enredo.
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Gamificação em debate
• O tempo na narrativa é quando acontece a história, sendo sua duração variada, com o tempo cronológico seguindo a ordem natural dos fatos, e o tempo psicológico, a imaginação do narrador ou dos personagens. • O espaço é o lugar onde acontece a ação, podendo variar bastante dependendo de como é feita a narrativa. Estabelece uma interação entre os personagens e situa as suas ações em determinado lugar. • O ambiente é o espaço onde vivem os personagens e permite situar personagens no seu contexto. • O narrador conduz a história, podendo contar os fatos de fora da narrativa ou ativamente, em primeira pessoa, como testemunha ou personagem.
Quando a narrativa começou a ser produzida nos ambientes digitais, suas características se transformaram em enredos multiformes, nos quais interatores passam a desenvolver as ações e construir as histórias dentro de um espaço navegável, nos mais variados ambientes e tempos, como bem demonstrou Murray (2003). Para a autora, o ambiente digital, por meio de suas características participativas, imersivas, espaciais e enciclopédicas, passou a oferecer um cenário para viver fantasias originadas em universos ficcionais de modo intensificado e ativo. Como Murray, que vem da literatura para estudar a nova forma de cultura representada pelos jogos digitais, muitos pesquisadores se debruçaram sobre a questão de serem eles um produto literário ou se situarem no terreno dos jogos. Para Gonzalo Frasca (2003), num artigo que gerou bastante polêmica, ludologistas são os pesquisadores que focam seus estudos na mecânica dos jogos, e narratologistas, os que argumentam que os jogos são intimamente ligados às histórias. Por certo tempo, discussões foram travadas nos game studies para tentar chegar a um acordo. Kinder (2002, p. 122) propôs que os games são um tipo especial de narrativa porque envolvem geralmente uma disputa entre participantes competindo por diversão, dinheiro, fama ou alguns outros desafios, ou seja, seriam em sua maioria construídos como um conflito dramático, como outras formas narrativas. Para Juul (2003), em vez de contar uma boa história, a qualidade dos games estaria na liberdade que o jogador tem para explorar e compreender a estrutura de um mundo irreal e para aprender a manipulá-lo. Ryan (2006) defendia que uma grande diferenciação entre jogos de qualquer espécie e games é que esses últimos integraram os jogos numa estrutura narrativa, então não basta ganhar pontos, é preciso salvar o mundo, cumprir a missão, derrotar o inimigo final. Num outro texto, Ryan (2001) afirma que, dos três componentes tradicionais da narrativa (cenário, personagens, ação), apenas os dois primeiros fornecem elementos de design ou de construção úteis. O terceiro, a ação, é deixado para o usuário. Da mesma maneira, para Kinder (2002), as três principais distinções entre games e narrativas seriam as seguintes: enquanto os games requisitam participação ativa dos jogadores, a maioria das narrativas encoraja leituras passivas; enquanto o mundo dos games é propositadamente removido da realidade, a maioria das narrativas é produzida para representar e influenciar a vida real; e enquanto regras, objetivos e resultados são claros nos games, eles são geralmente ambíguos nas narrativas.
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A qualidade diferente da narrativa interativa nos games já tinha sido apontada por Murray em seus estudos pioneiros sobre ambientes digitais imersivos. Mas trazer essas características para a realidade é um dos componentes da gamificação e um diferencial para se entender que se trata de uma transposição, e não uma imersão, como entendia Murray (2003). A autora propunha que, ao pensar o jogo, o designer de jogos criaria a coreografia para que o interator dançasse, sentindo os prazeres da imersão, da agência e da transformação possíveis no ambiente digital. A gamificação pretende estender essa dança e esses prazeres para o mundo real. Deterding et al. (2011) afirmam que o uso de elementos do design de jogos em contextos externos aos jogos pode tornar a gamificação valiosa para a mudança de rotinas, ao tornar as atividades mais divertidas, motivadoras e engajadoras. Mas os objetivos da gamificação também parecem mais prosaicos e voltados para um engajamento pensado em termos pragmáticos, como os de Hamari, Koivisto e Sarsa (2014, p. 3026, tradução nossa) ao destacar o aspecto do “processo de aprimorar serviços com possibilidades de ações (motivacionais) com o intuito de evocar experiências comuns a jogos e que promovam resultados comportamentais esperados”. Nessa linha, se percebe que a proposta principal da gamificação é reproduzir em contextos reais as experiências vividas nos games de modo a promover emoções poderosas, podendo-se pressupor que, por meio da prática extensiva dessas atividades, até mesmo emoções negativas transformam-se em positivas, como afirmam Lee e Hammer (2011), ou que os jogadores desenvolverão qualidades pessoais, como persistência, criatividade e resiliência, que transcenderão para fora do jogo, como defende McGonigal (2012). Justamente esse aspecto engajador e motivador da gamificação é o que parece ter conquistado corações e mentes de profissionais interessados em criar e manter tais emoções para atingir seus objetivos, seja para aumentar a produção de seus funcionários ou a fidelização de seus clientes, seja para implementar estratégias que animem e facilitem a aprendizagem. Tanto nas áreas de administração e marketing como na educação, muitas têm sido as investidas para verificar se o fato de utilizar os games como referência pode expandir seus poderes para melhorar a aprendizagem, a realidade, o trabalho e a vida das pessoas, como propõe McGonigal (2012). Um indicativo da popularidade do conceito é a quantidade de artigos acadêmicos e livros publicados em língua inglesa desde que o termo foi utilizado pela primeira vez em 2003 por Nick Pelling, um designer de jogos inglês que fundou uma consultoria para criar interfaces similares a games em aparatos eletrônicos (WERBACH; HUNTER, 2012). Outro indício desse interesse pôde ser percebido quando, ao se colocar a palavra gamification na ferramenta de busca do site Amazon.com, foram encontrados 540 resultados em novembro de 2016. No Brasil, as coletâneas têm sido o modo mais comum de tratar do tema, com livros organizados em capítulos reunindo tanto pesquisadores acadêmicos como autores de vários campos de conhecimento, alguns experientes no trato com os games e outros nem tanto, mas todos eles atraídos pelo objeto de estudo e seu caráter emergente. Uma leitura panorâmica dessa produção evidencia que boa parte da discussão se baseia ainda na revisão
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Gamificação em debate
conceitual. Uma pequena porcentagem traz resultados, mas, em sua maioria, os textos tratam de pesquisas ainda em fases iniciais ou em etapa de revisão de literatura (FADEL et al., 2014). Da mesma maneira, em eventos como o SBGames, um dos mais importantes na área e que reúne pesquisas acerca da indústria, do design e da cultura dos jogos digitais, uma busca pelo termo “gamificação” nos dados compilados pela equipe da professora Suely Fragoso da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) sobre os anais do evento até 2014 gerou 13 artigos. No entanto, a adição das palavras narrativa e educação resultou em apenas um artigo, dedicado à proposta de uma plataforma de construção de narrativas colaborativas. A ideia da gamificação como uma panaceia, uma solução fácil e rápida para resolver os problemas relacionados à motivação, tem demonstrado um grande apelo não só em áreas como o marketing e a administração, mas especialmente na educação. Na internet, sites dedicados a discutir problemas educacionais difundem e explicam o conceito e sua aplicação. Como exemplo, vale citar o site Gamificação na educação, dividido em subitens (“Como usar a gamificação na educação”, “Por que aplicar a gamificação na educação”, “O futuro da educação está na tecnologia”, “As vantagens da tecnologia na escola”) e ilustrado com um detalhado infográfico colorido que sintetiza as principais características, acompanhado de fotos de crianças sorridentes.1 Num outro site conhecido por seu engajamento na inovação da educação, o Porvir, pode ser lido outro título otimista: “O uso dos jogos na educação tem feito dos games uma das tendências de ensino mais importantes da década”.2 Mas nem tudo são elogios. Também na internet, é possível encontrar críticas a vários aspectos da gamificação. Um texto de 2011 encontrado no site da Wharton School, da Universidade da Pensilvânia, com o título “A gamificação tem futuro?”, discute alguns resultados do congresso “Demais! A gamificação levada a sério”.3 No site, famosos designers de jogos defendem a proposta, mas também discutem a polêmica já citada que foi iniciada por Ian Bogost (2011). Bogost também afirmou que, para utilizar os games de maneira mais séria, haveria a necessidade de mudar drasticamente as práticas corporativas da maioria das companhias. As críticas apontam a necessidade de se investigar um pouco mais como o termo vem sendo pensado e quais as implicações da utilização da gamificação na educação em seus diversos aspectos. Como uma área carente e muito suscetível ao encantamento das soluções mágicas, principalmente pela extrema dificuldade para que uma inovação seja ali aceita, a educação tem se mostrado um campo fértil de discussão e possivelmente de experiências das possibilidades da gamificação. Um dos pioneiros dessa discussão é o livro de João Mattar (2010), que inclui a gamificação na revisão de literatura sobre games e educação. Já o e-book editado por Fadel et al. (2014) traz a gamificação como tema principal a partir de uma diversidade de autores e Disponível em: . Acesso em: 30 nov. 2016. Disponível em: . Acesso em: 30 nov. 2016. 3 Disponível em: . Acesso em: 30 nov. 2016. 1 2
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abordagens discutindo seu papel na educação. Nesta obra, Fadel et al. (2014) apontam uma preocupação com os fatores motivacionais intrínsecos e sua manutenção mesmo com a incidência de recompensas extrínsecas por meio do conhecimento dos processos de design de jogos e sua relação com as ações educacionais. Num capítulo do mesmo livro, Lynn Alves et al. (2014) colocam em discussão a visão da gamificação como uma “pílula mágica” para resolver as mazelas da educação e ressaltam a importância de levar em consideração a infraestrutura, o reconhecimento dos docentes, os melhores salários e os processos de formação permanentes para que seja possível resgatar o desejo de aprender na escola. Na linha dos estudos voltados para o mapeamento sistemático, bons exemplos são os trabalhos de Borges et al. (2013) e Figueiredo, Paz e Junqueira (2015). O primeiro excluiu da discussão alguns assuntos relacionados, como design gamificado, serious games e jogos digitais em contextos educacionais. Utilizando apenas o termo gamification para realizar a busca em cinco bases de dados (Scopus, Elsevier, Springer, ACM Digital Library e IEEE Xplore), encontrou 357 artigos, sendo considerados relevantes para a educação 26 deles. Com a pesquisa, foi possível constatar que a maioria dos estudos é publicada em conferências, derivada de pesquisas realizadas no ensino superior cuja intenção principal é o envolvimento dos alunos por meio de atividades de aprendizagem gamificadas. Foi destacado também na pesquisa que nenhum dos trabalhos relatava experiências empíricas ou validações de implementações, sendo a maioria dos documentos avaliações e propostas de soluções. Já a revisão sistemática realizada por Figueiredo, Paz e Junqueira (2015) teve como fonte os anais do Simpósio Brasileiro de Games e Entretenimento Digital (SBGames) entre os anos de 2009 e 2014, o Portal de Teses e Dissertações da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) de 2000 a 2013, além de produções bibliográficas publicadas no período. A conclusão do estudo é que “não existem, no Brasil, fundamentos sólidos do que é uma prática pedagógica gamificada, tampouco se encontra uma perspectiva teórica interdisciplinar que consiga abarcar os diversos elementos implicados nesse novo fenômeno sociocultural” (FIGUEIREDO; PAZ; JUNQUEIRA, 2015, p. 1161). Esses dois trabalhos mostram que não é necessário repetir uma revisão sistemática geral, mas que já estamos no estágio de começar a investigar questões específicas. Pela sua importância na definição dos games, gostaríamos de saber se as narrativas são um tema abordado nas pesquisas da área da gamificação em educação. Para isso, a próxima etapa é delimitar o escopo e descrever a metodologia para a pesquisa. Metodologia
Na revisão de literatura foram adotadas as seis etapas indicadas por Botelho et al. (2014), na seguinte sequência: (a) identificação do tema e definição da pergunta de pesquisa; (b) estabelecimento/definição dos critérios de inclusão e de exclusão; (c) identificação dos estudos pré-selecionados e selecionados; (d) categorização dos estudos selecionados; (e) análise e interpretação dos resultados; e (f ) apresentação da revisão/síntese do conhecimento.
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As seguintes questões nortearam a revisão bibliográfica para verificar a incidência da narrativa nas pesquisas relacionadas à gamificação na educação: Quadro 5.1 – Questões de pesquisa QP1 – De que forma a narrativa vem sendo tratada na literatura sobre gamificação? QP2 – Como os elementos da narrativa (personagens, espaço, tempo, narrador e história) são abordados e em que etapas da pesquisa? QP3 – Quais são os exemplos concretos de aplicação da narrativa nessa metodologia no campo educacional?
A busca foi feita inicialmente nas bases de dados Scopus e Science Direct, já utilizadas em revisões anteriores sobre gamificação, utilizando primeiramente os termos em português (gamificação, educação e narrativa). Na base Science Direct, não encontramos nenhum artigo com os termos gamificação e educação no título, no resumo ou nas palavras-chave. A busca na Base Scopus gerou um artigo sobre gamificação na área de educação em saúde, porém, como não foi encontrada a palavra narrativa em nenhuma parte do texto, ele foi descartado. Em virtude dessa parca produção acadêmica em português nas bases procuradas, optamos pelos termos em inglês (gamification, education e narrative/storytelling). Visando encontrar artigos que tivessem como tema a gamificação na educação, os dois primeiros termos foram considerados quando apareciam no título, no resumo ou nas palavras-chave. Os dois últimos foram utilizados quando se encontravam em qualquer ponto do artigo, já que a intenção era identificar como a narrativa é abordada nesta área e as buscas com os termos relacionados à narrativa diretamente no resumo, no título ou nas palavras-chave não traziam resultados expressivos. Como há revisões (HAMARI; KOIVISTO; SARSA 2014; GRUND, 2015; STOTT; NEUSTAEDTER, 2013) que registraram, estudando períodos anteriores, o aumento da produção acadêmica sobre gamificação a partir de 2012, foram consideradas nesta pesquisa apenas as publicações entre esse ano e outubro de 2016. Os termos education e gamification foram ambos encontrados no título, no resumo ou nas palavras-chave de 44 artigos da base Science Direct e de 652 artigos da base Scopus. Pelo gráfico a seguir, é possível perceber a evolução significativa das pesquisas em gamificação e educação nas duas bases de dados durante o período estudado. Ao estreitar os resultados para artigos que incluíam as palavras narrative ou storytelling, o número de artigos relevantes na base Scopus foi de 64, e na base Science Direct, de 12 artigos. Esses números representam 11% de todos os arquivos sobre gamificação e educação encontrados nas duas bases. Com isso, verificou-se um aumento gradativo na produção acadêmica sobre gamificação e educação, mas pouca inserção do termo narrativa nessas produções, como demonstra o gráfico.
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Artigos sobre gamificação e educação nas bases de dados Scopus e Science Direct 250 200
Scopus
150
Science Direct
100
Scopus (narrativa)
50
Science Direct (narrativa)
0
2012
2013
2014
2015
2016
Figura 5.1 – Quantidade de artigos publicados por ano.
Análise e discussão dos dados
Entre os 12 artigos da base de dados Science Direct, havia um documento com vários resumos de um evento de medicina geriátrica em que os termos estavam em pôsteres diferentes, não permitindo criar relações entre os tópicos, sendo então descartado. Os outros 11 artigos foram selecionados e analisados qualitativamente, sendo feita a verificação da localização dos termos utilizados na busca e posterior análise do conteúdo, identificando a forma como a narrativa foi abordada em cada documento. Quadro 5.2 – Definições de gamificação utilizadas Definição de gamificação
Número de artigos
Deterding
4
Sem conceituação
2
Definição própria
2
Vários autores
2
Werbach e Hunter
1
Inicialmente, a partir da leitura foi possível identificar que quatro artigos utilizaram a definição de Deterding et al. (2011) sobre gamificação, dois não conceituaram o termo e outros dois utilizaram uma definição própria. Um artigo, de Cybulski et al. (2015), utilizou a definição vinculada à gamificação de projetos em administração de empresas
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Gamificação em debate
de Werbach e Hunter (2012), ressaltando a utilização do comportamento competitivo e da satisfação pessoal para aumentar o valor do negócio como parte relevante da conceituação de gamificação. Seaborn e Fels (2015) fizeram uma pesquisa sobre o uso da gamificação em diversas áreas, e uma parte de seu artigo foi devotada ao trajeto da conceituação de gamificação, inserindo-se a visão de diferentes autores (DETERDING et al., 2011; MCGONIGAL, 2012; ZICHERMANN; LINDER, 2010; HUOTARI; HAMARI 2012; WERBACH; HUNTER, 2012). A partir dessa revisão, Seaborn e Fels (2015, p. 17, tradução nossa, grifo nosso) afirmam que “na interseção dos conceitos providos por esses autores, [...] uma definição-padrão de gamificação está emergindo: o uso intencional de elementos de jogos para uma experiência similar a jogo em tarefas e contextos fora do jogo”. As autoras também incluem outros conceitos sobre gamificação que divergem de alguma forma dessa definição construída anteriormente: [A gamificação é o] uso ou criação de um jogo para fins que não são apenas entretenimento e a transformação de um sistema já existente num jogo. Em casos como esses, os jogos são inseridos num sistema, substituindo ou aprimorando estruturas já existentes, ou o sistema é convertido num jogo. Nessas situações é comum usar variações do termo, como gamificar, gamificado ou “a gamificação de” como palavras de ação ou frases para se referir à aplicação desses conceitos (SEABORN; FELS, 2015, p. 18, tradução nossa).
Seaborn e Fels (2015) identificaram o uso do termo gamificação em textos na área de educação se referindo à aprendizagem baseada em jogos digitais e serious games em geral, tornando o termo mais abrangente e colocando esses conceitos como subdivisões da gamificação. Hamari, Koivisto e Sarsa (2014) buscam, por meio de uma revisão de literatura, encontrar os benefícios que motivam pessoas a utilizarem serviços gamificados e definem gamificação a partir de um conjunto de autores, de maneira bem similar a Seaborn e Fels (2015). A pesquisa de Hamari, Koivisto e Sarsa encontra relatos do uso da gamificação em áreas como saúde, educação, comércio, endomarketing, serviços governamentais, engajamento público etc. e aponta diversos motivos para o fracasso de um serviço gamificado, como jogadores com interesses divergentes e tipos de serviços com características mais racionais ou de uso esporádico e, por isso, menos propensos à inserção de práticas divertidas, como jogos, narrativas ou entretenimento. Narrativa na literatura da gamificação
O mesmo artigo que traz a definição de gamificação vinculada ao contexto empresarial (WERBACH; HUNTER, 2012) aborda a narrativa de maneira diferente dos outros. Cybulski et al. (2015) identifica a narrativa como uma prática linguística capaz de tornar os discursos mais claros, contextualizando as informações de modo a ficarem mais próximas da realidade dos participantes e tornando mais fácil reinterpretar os dados e criar analogias
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mais compreensíveis. A ideia de manter um diálogo claro, contextualizando os saberes para que os alunos compreendam e transponham os conhecimentos para a sua realidade, é considerada um princípio primordial no campo da educação e mandatória para que a aprendizagem ocorra de maneira mais efetiva (ZABALA, 1998). Os termos mais frequentes associados à narrativa são relacionados ao potencial motivador do jogo, como “despertar o interesse”, “aumentar o engajamento” e “melhorar a satisfação dos participantes”. Todos os artigos destacam esse potencial motivador da gamificação utilizando aspectos da narrativa. Seaborn e Fels (2015) citaram a maior satisfação dos participantes em ambientes gamificados, mas o engajamento não apresentou diferenças significativas. A narrativa foi considerada por Sattoe et al. (2015) e Hamari, Koivisto e Sarsa (2014), em seus respectivos artigos, parte da gamificação, ou seja, um de seus elementos constitutivos. Porém, cada artigo cita a narrativa apenas uma vez, o primeiro como exemplo de atividade de aprendizagem, o outro na hora de conceituar gamificação, e não se aprofundam no tema. Incidência de termos que caracterizam a narrativa 14 12 10 8 6 4 2 0
Fator Motivador
Mecânica
Interação Linguagem Qualidade
Parte da Gamificação
Figura 5.2 – Incidência de termos que caracterizam a narrativa nos artigos selecionados.
A mecânica de jogo é vista como o elemento definidor da gamificação, e é evidenciada em todos os artigos. Em alguns casos, os termos relacionados diretamente à mecânica, como níveis, pontos e progressão, também foram associados à narrativa, mostrando uma correlação. Essa abordagem sugere a identificação da narrativa como integrante da gamificação, um critério a ser levado em consideração em todas as etapas da produção e da experiência (SCHELL, 2012). Cruz Junior e Cruz (2016) demarcam a utilização de mecânicas com pontos, níveis e rankings nas gamificações de sites sobre jogos, que são chamadas de sistemas de recompensas, criados com a intenção de criar ciclos equilibrados de tarefa e recompensa, cada vez mais intensos. A narrativa foi associada à mecânica de maneira evidente na pesquisa de González et al. (2016), que acompanhou a gamificação de ações voltadas para educação física e hábitos
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saudáveis num ambiente escolar. Foram criados um cenário ambientado numa ilha pirata e missões semanais com níveis de dificuldade progressivos. As atividades aconteciam em vários espaços do colégio e também pela utilização de videogames. Na medida em que a história ia progredindo, os participantes avançavam em graduações com nomes relacionados ao tema náutico, como marujo, bucaneiro, oficial e capitão. Hamari, Koivisto e Sarsa (2014) e Sattoe et al. (2015) citam a narrativa como um elemento da gamificação. Sattoe et al. também aludem à personificação como a característica da narrativa normalmente utilizada na gamificação. Ribeiro et al. (2014) destacam a narrativa como um produto da gamificação que favorece a participação e permite atingir os objetivos desejados para a atividade proposta. A interação é associada à narrativa em 64% dos artigos selecionados, destacando-se essa característica como fator relevante para aumentar engajamento, interesse ou satisfação pela participação nas atividades e em aprender conteúdos escolares (DOMINGUEZ, 2013; GONZÁLEZ et al., 2016; FERNANDES et al., 2012). A pesquisa de Damiano et al. (2015) deixa clara a utilização de um termo para cada elemento narrativo, como “localizações” para espaço e “épocas” para tempo. O objeto da pesquisa de Damiano et al. é um sistema 3D imersivo, em que o participante caminha por um cenário virtual como num videogame, estabelecendo as relações semânticas entre os conceitos trabalhados por meio dos próprios corredores do labirinto. Como foi necessário desenvolver toda a ambientação, a construção do sistema ficou muito próxima de um game completo, o que exigiu uma reflexão e uma definição dos elementos narrativos que seriam utilizados. Incidência de termos que se referem aos elementos componentes da narrativa 18 16 14 12 10 8 6 4 2 0 História
Narrador
Personagens
Espaço
Tempo
Figura 5.3 – Elementos da narrativa presentes nos artigos selecionados.
Domínguez et al. (2013) também criaram uma relação entre espaço e tempo, mas utilizando o termo “contexto ficcional” para descrever como jogadores podem ficar interessados por tópicos fora do jogo, citando como exemplo a disciplina história, por meio da
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prática dos games. Nesse caso, o termo foi considerado relacionado a esses dois elementos (tempo e espaço) em virtude da situação em que foi aplicado. A personificação é citada em referência à interpretação de personagens e é a mais utilizada ao descrever esse elemento narrativo, sendo comumente associada à representação de papéis, porém sem mais discussões. Sattoe et al. (2015) citam a gamificação como um exemplo de atividade que pode ser executada em contextos terapêuticos para mudança de comportamento de indivíduos e/ou famílias e para melhorar as condições de autorregulação de crianças com condições crônicas. O narrador não é citado, mas foi considerado ao se inserir um termo como storytelling ou “contação de histórias” em alguns dos artigos (RIBEIRO et al., 2014; ALI-HASSAN et al., 2015; DOMÍNGUEZ et al., 2013; KOLAY, 2016), pois deixa implícita a existência de alguém narrando a história. Porém, a discussão não é estendida para a compreensão do papel do narrador, sobre ele como um elemento da gamificação ou da narrativa a ser utilizado pelos games. Considerações finais
A presente pesquisa revelou que os últimos três anos foram prolíficos na produção de pesquisas com experiências empíricas sobre o uso da gamificação no ambiente educacional. Contudo, ainda são incipientes, precisam de discussão e continuidade para que o uso da gamificação na educação avance para mais que pontos, níveis e rankings. Um dos caminhos possíveis e promissores para esse salto qualitativo das práticas e das discussões sobre gamificação passa pelo incremento com leituras e pesquisas das narrativas, que já são muito abordadas nos game studies, mas dialogam pouco com a gamificação. Em todos os casos analisados, a narrativa esteve associada a motivação e engajamento, não havendo discussão sobre a aplicação mais técnica dos elementos narrativos na gamificação, que por vezes ficaram com um papel ornamental. Fortalecendo a percepção sobre a utilização da narrativa sem preocupação técnica ou teórica, esta pesquisa revelou a história ou enredo como o elemento narrativo mais frequente em discussões sobre gamificação na educação, tendo-se citado algum termo relacionado à história em todos os artigos analisados. Os outros elementos foram pouco citados, e ainda assim sem aprofundamento. Levando em consideração a abordagem nas pesquisas analisadas e a escassez de artigos que mencionassem os elementos narrativos, percebe-se que há pouco estudo sobre a narrativa e sua influência na gamificação. Vale ressaltar que a proposta foi desestabilizar o conceito de gamificação, trazendo contribuições do design de jogos e do uso de jogos de realidade alternativa, como defende McGonigal (2012), para repensar como seria a gamificação com um olhar voltado para a narrativa, com uma aplicação mais densa que a visão behaviorista, de estímulos e respostas. Como os próprios autores defendem que a gamificação é um termo em construção, entendemos que são necessários ainda muitos estudos que consigam realizar um diálogo entre áreas que são tão próximas como distintas.
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Fabrizio Augusto Poltronieri Nos dias atuais, entende-se o termo gamificação como sinônimo de um conjunto de estratégias utilizadas especialmente por gurus do marketing, consultores e designers a partir, principalmente, de 2010, com o intuito de promover vendas e fidelizar consumidores utilizando mecanismos advindos do universo dos jogos. A expressão também é amplamente usada no âmbito empresarial, buscando o desenvolvimento ou o aprimoramento de habilidades como a solução de enigmas e quebra-cabeças no competitivo ambiente dos negócios (FUCHS et al., 2014). Assim, “gamificação” encontra-se como uma das palavras-chave no processo de repensar estruturas sociais – e até mesmo sociedades inteiras – em que o uso de aparelhos digitais – plataformas por excelência para a disseminação dos produtos da indústria contemporânea da mídia e do entretenimento – é ubíquo e novos negócios são criados diariamente, tirando vantagem, principalmente, da onipresença desses aparelhos. Entretanto, um olhar mais crítico torna possível perceber que o conceito de gamificação deveria ser considerado como um processo mais amplo, em que jogos e atividades lúdicas são compreendidos como componentes essenciais da cultura.1 Nesse quadro, o conceito de gamificação pode ser recontextualizado, passando a incluir mais que um conjunto de fazeres práticos voltados para a fidelização de consumidores ou a satisfação dos departamentos de marketing e abrindo um caminho para que os campos das ciências humanas e da arte tenham voz nas discussões que cercam o assunto. Este texto explora essa segunda faceta, buscando revestir o conceito de gamificação de historicidade e provocar o início de um processo que leve a pensar possíveis caminhos para “sociedades gamificadas” a partir da 1
Cultura é um termo difícil de ser definido, não pela falta de explicações ou definições sobre ele, mas, ao contrário, justamente pela abundância de definições existentes, já que praticamente todas as disciplinas que trabalham no campo das ciências humanas possuem suas próprias definições e interpretações sobre o que é cultura. Portanto, para tornar este rio caudaloso de definições mais navegável, o termo “cultura” será aqui entendido como “um produto da agricultura. Cultura é um colher (colere) das coisas extraídas da natureza” (FLUSSER, 2007, p. 23). Sendo um ser cultural, o homem realiza o processo civilizatório pelo ato de extrair – colher – coisas da natureza, trazendo-as para perto do mundo humano marcado pelas trocas simbólicas. A “cultura” é o processo que o homem criou – e continua aperfeiçoando – para tornar o mundo um fenômeno compreensível, seja por rituais de magia – arte – ou por rituais em que deve imperar a razão – ciência.
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compreensão do conceito de jogo. Também é meu objetivo relacionar gamificação e cultura de uma maneira mais abrangente, entendendo o ato de jogar como essencial para a formação e a compreensão da cultura. Porém, em primeiro lugar, é necessário nos determos um pouco mais no que está sendo dito a respeito do termo nos dias atuais. Kapp (2012, p. 10, tradução nossa) diz que “a gamificação utiliza elementos da mecânica, da estética e das estratégias dos jogos para atrair pessoas, motivar a ação, promover o ensino e solucionar problemas”. Essa definição, como outras,2 é reducionista, entre outras razões, por desconsiderar as técnicas empregadas no campo da gamificação, especialmente quando esta se refere a programas de marketing. Os jogos são e sempre foram elementos indissociáveis da cultura e, portanto, do homem. Insisto na importância da cultura porque esta é um elemento indissociável da história da humanidade e de seu desenvolvimento efetivo. A história da cultura não é uma série de progressos, mas uma dança ao redor do mundo concreto, objetivo, que adiciona a este camadas de complexidade (FLUSSER, 2009), de forma que só podemos compreender o mundo a partir da perspectiva dessa dança, cuja dinâmica está intimamente relacionada aos jogos. Os debates mais comuns a respeito do conceito de gamificação apontam para sociedades capitalistas que parecem ter descoberto a importância cultural do jogar somente depois da massificação dos diversos aparelhos de videogame.3 Vejamos outras duas definições sobre o termo encontradas na literatura disponível: Como resultado de uma série de mudanças demográficas, tecnológicas e na paisagem competitiva empresarial, empresas inteligentes, assim como ONGs e governos, estão cada vez mais apostando em jogos como uma forma de reinventar radicalmente suas organizações, fidelizando clientes como nunca antes na história, alinhando seus funcionários e apresentando inovações de maneiras virtualmente impossíveis há apenas uma década. Essas organizações perceberam que sua força reside em combinar inteligência, motivação e – mais importante – fidelização de consumidores. Esse conceito é chamado de gamificação – isto é, a implementação de estratégias de jogos e programas de fidelidade para cativar usuários (ZICHERMANN; LINDER, 2013, p. xi, tradução nossa).
Ainda: Nós acreditamos que o termo gamificação realmente demarca um distinto grupo de fenômenos novos, composto por conceitos diferentes dos já anteriormente estabelecidos […]. A partir dessa observação, nós propomos a seguinte definição: “Gamificação” é o uso de elementos de game design em contextos que não fazem parte de jogos” (DETERDING et al., 2011, p. 2, tradução nossa).
É possível perceber que há um grande esforço, incluindo empenho acadêmico, em fazer com que o campo de estudos sobre gamificação seja tratado de forma separada de áreas que 2 3
Ver, por exemplo, Kumar e Herger (2013). Para uma discussão mais profunda a respeito das relações entre aparelhos e gamificação, ver Poltronieri (2014).
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já se ocupam das questões relacionadas a jogos há muito tempo. A cultura e as linguagens estão imersas nos jogos, e tratá-las de maneira isolada, como se os fenômenos descritos nas citações anteriores não representassem uma continuidade do longo papel dos jogos nos diversos processos civilizatórios que se deram e continuam em curso, é um dos pontos que, a meu ver, tornam as definições e as discussões sobre gamificação tão pobres. Outro ponto que me causa desconforto é a falta de critérios teóricos para tratar do conceito de jogo no campo dos estudos, mesmo acadêmicos, específicos sobre gamificação e também, de modo mais geral, nos game studies. Embora todos os textos sobre o tema, em algum momento, citem o conceito de jogo como o elemento desencadeador de uma “realidade gamificada”, é bastante reduzido o número de textos que trazem, ou indicam, uma abordagem sistemática a respeito do que é jogo e porque jogar é algo necessário ao ser humano. Este texto visa suprir parte dessa carência teórica, apontando para uma teoria dos jogos que se baseia na estética com a intenção de assegurar ao ato de jogar uma importância fundamental para o homem. Aproveito o gancho para também abordar o quase sempre recorrente tema “estética”. Assim como o termo “jogo”, “estética” aparece como uma palavra-chave em muitos escritos e debates sobre gamificação, mas poucos se detêm na abordagem das implicações do uso desse termo, embora esteja claro, na maior parte dos casos, que a estética é compreendida como pura e simplesmente sinônimo de beleza. A situação se torna grave não apenas por isso, mas também porque a palavra “beleza” acaba traduzindo-se por um juízo individual de gosto por parte de quem a utiliza. Procuro aqui também assegurar alguma legitimidade a essa questão por meio de uma discussão que parte de elementos filosóficos, principalmente das concepções sobre jogo e estética trazidas por Johann Christoph Friedrich Schiller4 (1759-1805) e Hans-Georg Gadamer5 (1900-2002). Recorro ao auxílio de filósofos para realizar tais tarefas por considerar que a filosofia pode ajudar no cumprimento de uma tarefa crítica, tendo seus conceitos a função de legisladores. A principal tarefa da filosofia, neste cenário, é estabelecer critérios de avaliação sobre determinadas pretensões ao conhecimento. Não quero com isso dizer que este texto pretende ocupar o espaço de uma “filosofia da gamificação”, mas que ele busca legitimar, principalmente, o conceito de jogo por meio de recursos filosóficos. Schiller desenvolveu a ética e a estética kantianas em direção a um idealismo pós-kantiano, tendo como principal preocupação o papel da arte e da beleza na história do homem e em sua vida racional. Para Schiller, a estética, e não a religião (como supunha Kant), é a constituinte central no processo de educação moral do homem. A arte e a beleza refinam os sentimentos humanos, tornando-nos mais inclinados a agir eticamente. 5 Gadamer, filósofo alemão que foi um pupilo de Heidegger e o maior expoente moderno do campo da hermenêutica, segue a trilha iniciada por Schiller no que diz respeito ao fato de a arte colocar algo em jogo, sendo ela mesma o jogo por excelência. A discussão que Gadamer conduz em relação a arte e jogo não se confunde com qualquer tipo de argumento que diga que a arte é algo trivial ou apenas um passatempo. Pelo contrário, a consciência estética que surge do jogo estético é algo muito maior que suas evidências mais imediatas. Para Gadamer, além da arte, a estrutura do jogo em si tem afinidades óbvias com outros importantes conceitos, como “diálogo” e “verdade”. Em Verdade e método (2008), Gadamer trata da experiência com a arte, que constitui um jogo em si. Ele não se preocupa com julgamentos sobre a arte ou as intenções dos artistas. A obra de arte passa a ser o ponto central da experiência, não o público. Dessa maneira, “jogo” se torna um termo bastante adequado para a compreensão estética, já que tende a dominar os jogadores. 4
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Isso posto, apresento a seguir algumas concepções e ideias sobre o universo dos jogos que podem servir como alicerces conceituais para discussões mais encorpadas a respeito do conceito de gamificação, especialmente com relação a suas aplicações estéticas, desviando o foco e a importância usuais que são dados à aplicabilidade do termo no campo do marketing e do treinamento empresarial. Neste ponto, é importante situar o que entendo como estética, visto que este é um conceito-chave no presente texto. Para tal tarefa, recorro a outro filósofo, desta vez o norte-americano Charles Sanders Peirce (1839-1914), influência constante em meu trabalho e minhas pesquisas. Peirce atribuiu ao termo um significado completamente novo e original, concebendo a estética como uma ciência normativa que tem por papel “descobrir o que deve ser o ideal supremo da vida humana” (SANTAELLA, 2005, p. 38). A estética para Peirce diz respeito a “estados de coisas que, mais cedo ou mais tarde, todos tenderão a concordar que são dignos de admiração. O que é admirável não pode ser determinado de antemão. São metas ou ideais que descobrimos porque nos sentimos atraídos por ele, empenhando-nos na sua realização concreta” (SANTAELLA, 2005, p. 38). Ora, o que seria um uso estético da gamificação ou, ainda, uma estética da gamificação? A resposta certamente aponta para um cenário distinto do criado e propagandeado pelos autores dos best sellers sobre o assunto. Com essas questões, busco abrir um horizonte novo de debates, em que o caráter geral da gamificação possa ser compreendido como uma ferramenta capaz de estruturar novas possibilidades existenciais.6 Caráter geral do jogo
Devo alertar que tratarei essencialmente do conceito de jogo como concebido filosoficamente por Schiller em A educação estética do homem numa série de cartas (2002). De acordo com Duflo (1999), ainda vivemos, de certa forma, sob a herança intelectual de Schiller no campo dos estudos sobre jogos, já que suas cartas ocupam um lugar verdadeiramente fundador na história da noção de jogo na filosofia, visto que o caráter inaugural do pensamento de Schiller permanece inegável e duas de suas consequências mais imediatas são centrais para a contemporaneidade. A primeira é o fato de que Schiller estabeleceu uma nova fase de reflexões sobre o tema, após a qual um pensamento sobre o conceito de jogo se tornou possível e legítimo, demonstrando a importância filosófica das questões que o cercam. A segunda consequência é que todo o discurso sobre o conceito de jogo de alguma maneira ainda se baseia nessa virada inaugural de Schiller, remetendo, muitas vezes, diretamente aos quadros teóricos estabelecidos pelo poeta e filósofo alemão. Para Schiller, o conceito de jogo
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De fato, essa é uma preocupação que acompanha minhas pesquisas há algum tempo, tendo sido um dos temas centrais das investigações que conduzi em um estágio de pós-doutorado realizado em 2014 no Gamification Lab da Leuphana Universität, na cidade de Luneburgo, Alemanha, em parceria com o Programa de Pós-Graduação em Tecnologias da Inteligência e Design Digital (TIDD) da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e com o apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP). Para um aprofundamento dessa discussão, ver Poltronieri (2014).
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é indissociável de uma existência estética, e essa é a razão central para o uso de sua filosofia no presente contexto. Isso posto, começo por dizer que, de maneira geral, o caráter do jogo, quando tratado conceitualmente, se revela por meio de atividades lúdicas que a princípio se desenvolvem de maneira desinteressada, sendo independentes do comportamento, do estado de ânimo ou da própria subjetividade de quem participa como jogador. O jogo possui um caráter independente, não estando condicionado a quem o joga e muito menos sendo determinado pelo jogador. Seu caráter autônomo dispensa a presença de outro sujeito para existir. Os jogadores apenas asseguram a representação da instância maior que é o jogo em si (GADAMER, 2008). Para tornar mais clara essa questão relacionada ao caráter do jogo, ressalto que este, essencialmente, é puro movimento desprovido de alvo, de meta, que se estabelece em forma de eterno retorno, de um ritual no qual não existe nenhuma lei de causalidade. É movimento por si mesmo, independente inclusive de quem o executa ou observa. Não há necessidade sequer de um sujeito fixo para sua existência e sua manutenção, visto que o jogo é a realização do movimento como tal (GADAMER, 2008). Schiller (2002, p. 79) chama de jogo “tudo aquilo que, não sendo subjetiva nem objetivamente contingente, ainda assim não constrange nem interior nem exteriormente”, definindo ainda o belo como um mero jogo entre um impulso sensível, identificado como “vida” – todo ser material e toda presença imediata nos sentidos –, e um impulso formal, que se sintetiza como “forma”, compreendendo todas as possibilidades formais e suas relações com o pensamento. O lúdico pode ser chamado, portanto, de “forma viva”, designando todas as qualidades relacionadas com o que observamos e criamos. Jogo, assim, deve ser entendido como um estado do homem, em que este se encontra livre e se relaciona com a liberdade de forma desimpedida. De forma lúdica, portanto. Esse estado de pura liberdade torna o homem completo, senhor de suas qualidades sensíveis e formais. O campo de visão humano é ampliado no processo lúdico de jogar, principalmente quando este leva em conta aspectos estéticos, pois “com o agradável, com o bem, com a perfeição, o homem é apenas sério; com a beleza, no entanto, ele joga” (SCHILLER, 2002, p. 169, grifo nosso). Destaca-se a palavra “perfeição” que, em Schiller, aparece subordinada a seriedade. O jogo lúdico estético não está a serviço do que é utilitário ou necessário, mas simpatiza com o que existe por si só, e que a si só basta, não sendo ao mesmo tempo necessário a nada mais nem dependente de nada mais. No campo do jogo, a beleza deve ser a linha guia do homem, pois o homem deve somente jogar com a beleza, e somente com a beleza deve jogar. Pois, para dizer tudo de vez, o homem joga somente quando é homem no sentido pleno da palavra, e somente é homem pleno quando joga (SCHILLER, 2002, p. 80, grifos nossos).
A beleza é a linha guia do jogador. O jogo é o alicerce que sustenta as culturas humanas, encontrando na experiência estética sua maior, mais livre e indefinida forma de expressão, práxis e contemplação, servindo de modelo para todo o arquitetar que a linguagem e o pensamento formalizam e materializam. Os gregos antigos já adotavam em sua sociedade
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esses altos ideais, porém o faziam por procedimentos de reflexão: projetavam em seus deuses tais ideais para que eles fossem refletidos, idealmente, nos homens comuns. Schiller (2002) chama a atenção para esse fato ao notar que os gregos transpunham para o Olimpo o que deveria ser realizado na terra. Dessa maneira, fizeram desaparecer da fronte dos deuses ditosos a seriedade e o trabalho, que marcam indelevelmente o semblante dos mortais. Os gregos, libertando os seus deuses das correntes de toda finalidade, dever ou preocupação, fizeram do ócio e da indiferença o invejável destino do estamento divino, projetando nos imortais a existência mais livre, sublime e lúdica. Por conta dessas características, Aristóteles aproximou o jogo à felicidade e à virtude, pois essas atividades são escolhidas por si mesmas, não sendo necessárias como as que constituem o trabalho (2000, X, 6, 1176 b 6). Schiller também observa que o impulso lúdico que o jogo apresenta une mente e matéria, inteligível e sensível, espírito e corpo, já que esse impulso é exercido acima das necessidades naturais da vida e independentemente dos interesses práticos. É uma manifestação de ordem espiritual, que se apresenta, sobretudo, como jogo estético. O jogo também é identificado como condição essencial para a vida em seu sentido biológico, na forma de movimentos absolutamente supérfluos produzidos por crianças e animais que brincam quando seus instintos primários já foram saciados. A atividade lúdica do brincar é realizada pelo simples prazer que proporciona, sendo um exercício incontrolável. O jogo com a beleza é, para o poeta alemão, uma afirmação espiritual, trazendo, antes de qualquer coisa, a liberdade em seu grau mais elevado. De acordo com Schiller, a realização do jogo com a beleza se dá pela via da contemplação, pois o ato de contemplar traz em si o pressuposto de um distanciamento da matéria, para que se perceba que esta também é uma forma de mente, de espírito, o que torna possível o desimpedido comércio sígnico entre a forma e a matéria sensível, entre o sentimento e a inteligência, que se reencontram finalmente em sua origem comum. Percebemos, pela contemplação, a presença do outro. Assim, a personalidade do jogador se descola e ele não mais exerce sua vontade sobre as coisas, mas dialoga com elas. Há no jogo o princípio da comunicação, uma troca de códigos compartilhados. Contemplar é o primeiro nível para adentrar o jogo libertador com a beleza. Ao mesmo tempo que o homem se separa do mundo por esse processo, ele também se vê no mundo, pelo fato de a contemplação ser um procedimento de reflexão. O processo de contemplar/refletir constitui a primeira relação de libertação do homem com o mundo a sua volta. Em vez de agarrar seu objeto de conhecimento de forma voraz, a contemplação o afasta e faz dele sua propriedade verdadeira e inalienável. Sobre esse processo, diz Schiller (2002, p. 126): “há trégua momentânea nos sentidos, o próprio tempo eternamente mutável repousa enquanto os raios dispersos da consciência convergem e uma imagem do infinito, a forma, se reflete no fundo perecível”. O jogo estético liberta porque faz o homem refletir, unindo o sensível ao intelectual. Schiller nos diz que o homem, enquanto apenas sente, é dominado pela imensidão objetual da natureza. Porém, torna-se seu legislador quando passa a se ver refletido nela, livre das imposições que o mundo brutal impõe. O homem que joga torna a natureza objeto
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de seus procedimentos de informação, dando forma ao informe. A beleza transparece como resultado desse jogo, por ser fruto de uma ética que não permite a degeneração do natural. Ao contrário: o jogador nada de mal pode à natureza impor, pois ele está nela refletido. Destruí-la é destruir-se. É aniquilar o jogo. O jogo estético não parte do princípio ganhar/ perder. É mais sofisticado, tendo a premissa, livre, de que é necessário criar o belo, obra da livre contemplação com a qual penetramos o mundo platônico7 das ideias, sem deixar o mundo sensível.8 Com relação ao jogador, é necessário, obviamente, que exista um jogo atuando como elemento mediador. Para o ato de jogar, porém, não há a necessidade de que outra subjetividade participe efetivamente. Mas é indispensável que exista algum tipo de elemento que contrabalanceie os atos e os lances do jogador (GADAMER, 2008). É o que ocorre na práxis e na fruição estética. O jogo, como algo que se resolve em si mesmo, é livre de tensionamento, de qualquer tipo de atrito com um outro interno ou externo, é algo que “vai como que por si mesmo” (GADAMER, 2008, p. 158). Do ponto de vista do jogador, a ausência de tensão no jogo estético traduz-se como alívio pleno, relaxamento da necessidade constante de mediar conflitos entre objetos que se chocam constantemente. A separação entre o sujeito – jogador – e o objeto do jogo pela contemplação faz com que o primeiro seja abandonado a si próprio, não tendo nada que diga ou imponha a ele o que deve ser feito. Gadamer (2008, p. 158) diz que o jogador é dispensado até mesmo da “tarefa da iniciativa que perfaz o verdadeiro esforço da existência”. O jogo estético para Schiller (2002) é simultaneamente um estado de ânimo e de ação. Por ser os dois ao mesmo tempo, serve-nos como prova decisiva de que a passividade não exclui a atividade, nem a matéria exclui a forma, nem a limitação, a infinitude. A experiência com o jogo estético é libertadora, pois é a experiência da vida e permite a quem contempla também ser autor do que é contemplado, em uma eterna retroalimentação. Não há divisão entre produtor e fruidor. Existem apenas jogadores, levando Gadamer (2008) a afirmar que o jogo estético não é um objeto que se posta frente ao sujeito que é por si, tendo seu real valor por constituir uma experiência que transforma aquele que a experimenta. Nota-se a mudança que ocorre no jogador ao deparar com a experiência propiciada pelo jogo. O verdadeiro sujeito da relação é o jogo, e não o jogador. É o jogo que aciona o verbo, o elemento de ação, de transformação. O jogo estético é o que permanece na relação, embora também seja alterado, constituindo um enorme repositório que reflete a sua própria história, da qual é a peça central. Embora exista a ligação entre jogo e jogador, é indispensável frisar que “o jogo tem uma natureza própria, independente da consciência daqueles que jogam” (GADAMER, 2008, p. 155). Segundo a doutrina das ideias de Platão (428 a.C.-348 a.C.) as almas dos homens outrora podiam contemplar as ideias – essência de tudo – de maneira irrestrita. Depois, como punição, as almas foram aprisionadas no corpo. Porém, elas possuem uma capacidade de reminiscência, ou seja, têm uma lembrança obscura, que pode ser rememorada, do seu antigo contato livre com as ideias. 8 O mundo sensível também faz referência a Platão. É no mundo sensível, uma cópia do mundo das ideias, que o homem passa a viver após a proibição do acesso livre ao mundo das formas ideais. 7
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O jogo estético é livre por nenhuma necessidade pender sobre a beleza, que supera a realidade pela simples aparência. A aparência aqui referida não depende de nada que não seja si mesma. Não é simulacro ou derivada de alguma outra coisa, não precisando prestar satisfações a algo externo a si, pois não é ilusória nem almeja substituir o que já existe. Devemos aceitar a aparência em sua qualidade de aparência, porque ela encarna o humano em sua plenitude, revelando a operação criadora da liberdade, que dá à existência o sentido e a finalidade que a natureza exterior não possui. Para o olhar desavisado, o jogo estético pode parecer frívolo e desnecessário, visto que a vida, em seu sentido estritamente biológico, não parece sentir necessidade da beleza para sua manutenção. Contudo, uma visão mais abrangente revela que o homem é um ser imerso em cultura, em processo de cultivo insaciável. Está na essência humana não aceitar a realidade natural, pois esta não é familiar às culturas humanas. É o jogo estético, em sua aparente superficialidade, que aproxima a natureza do homem, permitindo, pela cultura, colocar em jogo a realidade, desprendendo-a da natureza. Nasce do jogo uma nova espécie de ser, jogador essencialmente livre que pode manipular desimpedidamente as coisas, dando a elas significados anteriormente não estabelecidos. Esse jogador compreende que o impulso inerente ao jogo é, antes de tudo, uma atividade que forma o sujeito e, assim, o mundo, pois este se submete aos ânimos do homem e se transmuta em aparência, resultado do jogo libertador. Ser um jogador é ser um cultivador, ou ainda uma espécie de alquimista que, pelo jogo lúdico, transforma as propriedades da matéria por meio da forma. Embora o jogo tenha esse aspecto desinteressado, essencial para a liberdade que é assegurada, o jogador deve levar a atividade a sério para que o jogo seja consumado. Gadamer (2008, p. 154) nos assegura que “o que é mero jogo não é sério”, mas completa dizendo que “é mais importante o fato de que no jogar se dá uma seriedade própria, até mesmo sagrada”, apontando que é necessário ao jogador entrar no jogo. Quem não dedica ao jogar a seriedade que o ato merece não se constitui plenamente como jogador e permanece condicionado, visto que o jogar só cumpre a finalidade que lhe é própria quando aquele que joga entra efetivamente no jogo. Este, com sua natureza independente, permanece presente mesmo onde é ignorado, ou melhor, onde não é levado a sério: onde não atuam jogadores. Mesmo nesses lugares, onde tentativas arbitrárias de divisão entre a racionalidade e a sensibilidade procuram esconder o aspecto lúdico da existência humana, o jogo está presente: “O jogo encontra-se também lá, sim, propriamente lá, onde nenhum ser-para-si da subjetividade limita o horizonte temático e onde não existem sujeitos que se comportem ludicamente” (GADAMER, 2008, p. 155). Breves conclusões
As estratégias de gamificação constituem uma camada comunicacional que se coloca sobre a dinâmica independente que o conceito de jogo traz, tendo como propósito alterar ideologicamente a existência humana e tornando objeto de seus interesses o movimento independente do jogo, de forma a conduzi-lo para se tornar meio e fim de determinados
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propósitos. Embora Kapp (2012) afirme que a gamificação utiliza elementos provenientes de uma “estética dos jogos”, considero que o uso da palavra estética aparece aqui completamente deslocado, tendo um sentido predefinido, fechado. Uma estética baseada em jogos pressupõe um caminho que tem como meta final a liberdade, por meio do percurso de uma trilha aberta, lúdica, em que descobrir possibilidades é a tônica principal. O conceito de gamificação parece distanciar-se da identificação de si como representante de um conjunto de atividades realmente lúdicas. O estudo da literatura disponível mostra que a palavra gamificação é compreendida como índice de um conjunto de estratégias que visam a fins práticos bastante específicos, excluindo as considerações estéticas que aponto ao longo deste texto. Desconsiderando esses aspectos estéticos – que incluem também quesitos éticos – o jogo esvazia-se, pois é destituído da seriedade necessária apontada por Gadamer. O que sobra é um mero artefato instrumental, composto por conjuntos de regras que têm por objetivo o cerceamento da liberdade. Em vez de jogo, o que se estabelece é o antijogo. O espaço para a contemplação que os “jogadores” das atuais estruturas gamificadas têm é limitado, pois a real ênfase dos procedimentos de gamificação está concentrada na mecânica das atividades propostas – sejam elas educacionais, empresariais, ações de marketing etc. –, o que transforma a atividade lúdica do jogar em uma constante demanda por completar ações. Sempre ocupado em cumprir objetivos e metas, em colecionar distintivos e prêmios que são, na verdade, afagos distribuídos por conta de atividades predeterminadas cumpridas, o jogador não tem tempo para se afastar, olhar a situação em que está inserido como um todo e, finalmente, contemplar. Sem poder contemplar, não é possível ao jogador se abrir para o mundo e deste participar efetivamente. A gamificação como antijogo ocupa o tempo do homem com tarefas que têm por objetivo afastá-lo do mundo, aproximando-o de realidades projetadas pelos algoritmos9 que estabelecem as regras da mecânica por trás das atividades a serem cumpridas nos jogos propostos. Em vez de promover saltos em direção à liberdade, a maioria das atividades gamificadas prende os jogadores em labirintos algorítmicos, sendo a gamificação uma estratégia de controle adequada – do ponto de vista das corporações – para tempos em que as interações humanas são cada vez mais mediadas por algoritmos que, inacessíveis à compreensão dos jogadores, ditam regras de conduta, pontos a serem acumulados e posts em redes sociais que devem ser vistos, dentre outras possibilidades pré-codificadas. Conclui-se que quem estipula os algoritmos detém o poder atualmente. Destarte, faz sentido pensar em gamificação como um conjunto de estratégias com a intenção de programar algoritmicamente a liberdade dos jogadores e, consequentemente, modificar a maneira como eles estão no mundo. O processo de gamificação não visa unicamente instruir ou educar as pessoas, muito menos fazer com que coletem pontos em atividades 9
Um algoritmo é uma sequência finita de instruções básicas, executável dentro de um tempo também finito, que tem por objetivo resolver um problema lógico, qualquer que seja sua instância (SALVETTI; BARBOSA, 1998). A palavra origina-se do nome do matemático islâmico Al-Khowarizmi e denota um conjunto de regras ou instruções que resultarão na solução de um problema. Um algoritmo oferece um processo de decisão, ou um método computável para resolver um problema (BLACKBURN, 2016).
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divertidas. Seu papel mais profundo, enquanto modelo comunicacional, é alterar ideologicamente os jogadores. Repensar as sedutoras estratégias empregadas pela gamificação com vistas ao que foi aqui exposto como teoria sobre os jogos me parece uma tarefa necessária, embora este seja um entre inúmeros caminhos possíveis para recontextualizar o conceito de gamificação e empregá-lo de maneiras mais interessantes. Acredito que as definições que apresentei possam ser exploradas por um conjunto maior de pesquisadores, embora sejam polêmicas, principalmente se contrastadas com algumas das teorias sobre gamificação em voga atualmente. Um caminho interessante a ser explorado é a aproximação da gamificação com a arte ou com o conceito de jogo do ponto de vista estético, o que pode inserir elementos verdadeiramente lúdicos no cotidiano cada vez mais gamificado que atualmente vivenciamos. A arte enquanto jogo verdadeiramente estético é um dos principais pontos debatidos por Gadamer (2008), e uma introdução ao tema, embora seja um texto pré-gamificação, pode ser encontrada em Poltronieri (2009). Mesmo que a real vocação das atividades gamificadas seja exercer controle sobre os jogadores por meio de suas estratégias ideológicas, creio que ainda assim o conceito de jogo como um movimento dialógico estético que estabelece bases éticas para um processo de compreensão e diálogo pode ser benéfico para que o debate sobre o tema seja pautado por questões que ultrapassem o caráter gamificado meramente instrumental que se observa atualmente. Referências ARISTÓTELES. The nicomachean ethics. Indianapolis: Hackett Publishing, 2000. BLACKBURN, S. The oxford dictionary of philosophy. Oxford: Oxford University Press, 2016. DETERDING, S. et al. From game design elements to gamefulness: defining “gamification”. In: INTERNATIONAL ACADEMIC MINDTREK CONFERENCE: ENVISIONING FUTURE MEDIA ENVIRONMENTS, 15., 2011, New York. Proceedings… New York: The Association for Computing Machinery, 2011. p. 9-15. DUFLO, C. O jogo: de Pascal a Schiller. Porto Alegre: Artmed, 1999. FLUSSER, V. Bodenlos: uma autobiografia filosófica. São Paulo: Annablume, 2007. ______. O universo das imagens técnicas: elogio da superficialidade. São Paulo: Annablume, 2009. FUCHS, M.; FIZEK, S.; RUFFINO, P.; SCHRAPE, N. (org.). Rethinking gamification. Luneburgo: Meson Press, 2014. GADAMER, H.-G. Verdade e método I: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. Petrópolis: Vozes, 2008. KAPP, K. The gamification of learning and instruction: game-based methods and strategies for training and education. San Francisco: Pfeiffer, 2012.
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KUMAR, J.; HERGER, M. Gamification at work: designing engaging business software. Copenhagen: The Interaction Design Foundation, 2013. POLTRONIERI, F. Communicology, apparatus, and post-history: Vilém Flusser’s concepts applied to videogames and gamification. In: FUCHS, M.; FIZEK, S.; RUFFINO, P.; SCHRAPE, N. (org.). Rethinking gamification. Luneburgo: Meson Press, 2014. p. 165-200. ______. O jogo do parangolé. In: SANTAELLA, L.; FEITOSA, M. (org.). Mapa do jogo: a diversidade cultural dos games. São Paulo: Cengage Learning, 2009. p. 163-178. SALVETTI, D. D.; BARBOSA, L. M. Algoritmos. São Paulo: Makron Books, 1998. SANTAELLA, L. Matrizes da linguagem e pensamento: sonora, visual e verbal. São Paulo: Iluminuras, 2005. SCHILLER, F. A educação estética do homem numa série de cartas. São Paulo: Iluminuras, 2002. ZICHERMANN, G.; LINDER, J. The gamification revolution: how leaders leverage game mechanics to crush the competition. New York: McGraw-Hill, 2013.
Brain digital games e funções executivas: delineando interfaces entre os games e a estimulação neuropsicológica1
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Lynn Alves A discussão sobre as contribuições dos ambientes interativos ‒ aqui incluídos games e aplicativos com ou sem a mediação dos suportes de realidade virtual, realidade aumentada e realidade misturada para avaliação neuropsicológica ‒ vem crescendo de forma significativa em distintos cenários. Observamos notícias na mídia televisiva e na internet, bem como nas redes sociais, de pesquisas e aplicações dessas tecnologias, mediando processos de estimulação, reabilitação e avaliação tanto motora quanto cognitiva. Contudo, no que se refere à sistematização e à socialização desses resultados por meio dos suportes considerados acadêmicos, ainda encontramos números limitados de publicações. Dentro dessa perspectiva, este capítulo objetiva socializar os resultados parciais da pesquisa que vem sendo realizada na Universidade do Estado da Bahia (UNEB), por meio do centro de pesquisa Comunidades Virtuais, com crianças na faixa etária de 8 a 12 anos, que, em interlocução e acompanhamento com neuropsicólogas e estudantes de psicologia, sob a minha coordenação, criam um espaço de estimulação para as funções executivas mediadas pelo Gamebook Guardiões da Floresta (GGF).2 Para tanto, o capítulo foi dividido em quatro seções. Na primeira, apresentamos uma revisão sistemática que identificou o número de publicações existentes que discutem a relação brain digital games, persistência e as funções
A realização deste trabalho foi possível por conta do financiamento das agências de fomento Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado da Bahia (Fapesb) e Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e pela parceria constante da UNEB. Mas o sonho se concretizou graças a todos os desenvolvedores e pesquisadores do Comunidades Virtuais envolvidos no projeto que, com sua paixão pelo universo dos games, construíram um sentido para o Gamebook. Agradeço às interlocutoras deste trabalho, Jessica Vieira, Larissa Cerqueira e Maria de Fátima Dórea; e a crianças, adolescentes, pais, professores e pesquisadores partícipes dessa jornada. 2 Mais informações no site . 1
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executivas (FE)3 memória de trabalho e flexibilidade cognitiva, detalhando os principais achados de cada publicação encontrada. O levantamento dessas referências foi realizado na plataforma Thompson Reuters no dia 13 de maio de 2016, identificando as produções nos bancos de dados Web of Science, Conference Proceedings e Current Contents Connect, utilizando os descritores indicados anteriormente. É importante destacar que esses termos foram definidos por terem relação direta com o objeto de estudo desta pesquisa, que tem o objetivo de avaliar as contribuições do GGF a partir do ponto de vista das pesquisadoras que interagem com esta mídia no espaço clínico e escolar. A interação ocorre desde a estimulação das FE já mencionadas até outros aspectos identificados pelas investigadoras. Ressaltamos ainda que as FE memória de trabalho e flexibilidade cognitiva foram selecionadas por serem consideradas pelos pesquisadores da área o core das FE, incluindo ainda o controle inibitório. Essa expressão é utilizada por Diamond et al. (2007) para se referir às funções basilares para as FE. Já a persistência foi incluída por se caracterizar como um aspecto fundamental na interação com os jogos, além de envolver conteúdos relacionados com motivação e engajamento do sujeito. A segunda seção apresenta e discute o ambiente do GGF, evidenciando outras investigações no cenário internacional e nacional que vêm criando espaços interativos e digitais que podem ser considerados brain digital games. Método de investigação e resultados se constituem na terceira seção, na qual é delimitado o processo metodológico realizado com o objetivo de avaliar as contribuições do GGF mediante a escuta sensível das pesquisadoras, partícipes que vêm atuando no espaço escolar, estimulando as FE, com a mediação do ambiente referenciado. E, finalmente, na conclusão intitulada “É o GGF um brain digital game?”, evidenciamos os resultados da investigação, apontando também as possibilidades futuras. Brain digital games: um panorama da revisão de literatura internacional e nacional
Ao iniciar uma investigação, é fundamental levantar o que já foi produzido sobre o tema, objetivando estabelecer o contexto e situar a pesquisa no cenário já existente. Assim, tendo como plataforma a Thompson Reuters, iniciamos a busca para o descritor brain digital games, acompanhado de asterisco,4 no período de 2011 a 2016. Foram encontrados 22 artigos, sendo que apenas quatro foram incluídos neste estudo por apresentarem resultados de pesquisas nas quais os jogos digitais mediaram estimulação, reabilitação e/ou aprendizagem envolvendo FE com crianças e adolescentes. Para a combinação persistência e brain games, incluindo asterisco, foram encontrados apenas três artigos por conta do número limitado de investigações publicadas. Nessa busca, não definimos um limite de tempo para as pesquisas. Ressaltamos que os artigos 3 4
O conceito de funções executivas será aprofundado posteriormente. O uso do asterisco na busca de descritores possibilita que sejam encontradas quaisquer ocorrências que tenham o termo vinculado, por exemplo, funções executivas*: será levantado tudo no banco de dados procurado que vincule esses verbetes.
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encontrados se referem ao período de 2013 a 2015, evidenciando a preocupação recente de pesquisadores com o tema. Nesse grupo, apenas o artigo de Shute, Ventura e Ke (2015), denominado The power of play: the effects of Portal 2 and Lumosity on cognitive and noncognitve skills, tratava da relação persistência e brain games. Contudo, ele não será analisado nesta pesquisa, pois envolveu estudantes universitários, e o foco da nossa investigação são crianças e adolescentes. É importante destacar que, quando utilizamos os descritores em posição diferente, isto é, brain game, com asterisco, e persistência, sem asterisco, sem definição de tempo, encontramos dez publicações no período de 2010 a 2015, sendo que a única que tratava de jogos digitais era o artigo The power of play: the effects of Portal 2 and Lumosity on cognitive and noncognitve skills, já referenciado. Outro ponto que destacamos é a polissemia do termo brain game, que pode ser usado para se referir tanto a futebol quanto aos jogos digitais que se propõem a constituir-se em espaço de treinamento e estimulação para FE. Por exemplo, na busca mencionada, encontramos dois artigos que tratavam de danos cerebrais causados pela prática do futebol (ROBERSON, 2014; MARCHI et al., 2013); um falava sobre games (SHUTE; VENTURA; KE, 2015); e sete se referiam a aspectos relacionados a biologia e comportamentos psicológicos vinculados a funções e estruturas cerebrais (BAYARRI et al., 2010; BAULT et al., 2015; BONIOLO; TESTA, 2012; DEVAINE et al., 2014; DICKHAUT et al., 2010; KURZBAN et al., 2013; RUDY, 2015). Diante do exposto, é fundamental explicitar que, neste capítulo, a expressão brain games será utilizada para se referir aos ambientes interativos, especialmente jogos digitais e/ou eletrônicos que utilizam distintas plataformas, com fins comerciais ou produzidos para cenários de aprendizagem escolar ou terapêuticos que medeiam processos de estimulação, reabilitação, treinamento e/ou avaliação de funções executivas. Assim, a análise limitou-se apenas a quatro artigos, publicações que estão localizadas em três continentes: duas na América do Norte (Estados Unidos e Canadá), uma na Austrália e uma em Singapura, territorializando três áreas: saúde (psiquiatria); interação cognitiva humano-computador, utilizando a mediação de tecnologias da medicina como eletroencefalograma (EEG); e educação. Essa configuração indica as possibilidades de interface da área de jogos digitais com distintos campos do conhecimento, constituindo-se em espaços de aprendizagem para aspectos cognitivos, motores, afetivos, sociais, culturais, entre outros. Entretanto, o levantamento que realizamos indicou que as investigações em torno da relação jogos digitais e FE com crianças e adolescentes no cenário nacional e internacional ainda são bastante incipientes. Na pesquisa realizada por Sourina et al. (2011), os autores descrevem o método factral-based, que consiste na interação com o EEG para estados de recognição do cérebro (emocional e níveis de concentração). Para tanto, os pesquisadores criaram um algoritmo para reconhecer e mapear, em tempo real, sete tipos de emoções (satisfação, prazer, felicidade, frustração, tristeza, medo e o que denominam de emoções neutras) dos usuários por meio da mediação de um avatar, de música, de storytelling e de serious games, dentre outras tecnologias. Assim, na interação com essas aplicações, o usuário ouve músicas, vê a reação facial do avatar
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associada a músicas, e o EEG mapeia e registra suas reações. O artigo de Sourina et al. (2011) não apresenta os resultados das investigações com os sujeitos, mas descreve o que vem sendo desenvolvido no Cognitive Human Computer Interaction Lab (CHCI Lab). O segundo artigo, de autoria de Giedd (2012), traz uma breve análise do crescimento da interação dos adolescentes com distintas mídias e de como essa dinâmica vem afetando o comportamento e a plasticidade cerebral desses sujeitos. Para Cosenza e Guerra (2011), o sistema nervoso é extremamente plástico nos primeiros anos de vida até a adolescência. Essa plasticidade nervosa vai diminuindo e permanece por toda a vida. Uma característica marcante do sistema nervoso é então a sua permanente plasticidade. E o que entendemos por plasticidade é sua capacidade de fazer e desfazer ligações entre os neurônios como consequência das interações constantes com o ambiente externo e interno do corpo. O treino e a aprendizagem podem levar à criação de novas sinapses e à facilitação [sic] do fluxo da informação dentro de um circuito nervoso (COSENZA; GUERRA, 2011, p. 36).
Para além da discussão da plasticidade, Giedd (2012) divide o artigo em seções e apresenta os seguintes aspectos: educação na idade digital, entretenimento, sexo, violência, economia da atenção, revolução social digital e interações sociais na era do Facebook. O autor destaca a ênfase que vem sendo atribuída aos excessos no uso das tecnologias digitais para o cérebro, mas, em todo o artigo, ressalta a relevância de construirmos um ponto de equilíbrio. Assim, Giedd (2012, p. 7, tradução nossa) conclui sua reflexão pontuando que “devemos ser a força para otimizar o lado bom e minimizar o lado ruim dos impactos da era digital”. Esse destaque sintoniza-se com a ideia discutida por Eco (2015) de não adotarmos posturas nem apocalípticas nem integradas, mas construirmos um olhar crítico da interação das distintas gerações com o universo das tecnologias digitais. Logo, não cabem perspectivas maniqueístas que dividem em bem e mal a relação dos sujeitos com a tecnologia. Para Giedd (2012, p. 3, tradução nossa), uma das habilidades mais úteis para crianças e adolescentes adquirirem será a habilidade de efetivamente utilizar este universo de informação – para criticamente avaliar os dados, discernir sinais de barulhos, sintetizar conteúdos e aplicar tudo isso à resolução de problemas no mundo real.
Como o artigo se insere na interface tecnologias digitais e neurologia, o autor traz críticas que são feitas à habilidade de multitarefa, que é evidenciada como um aspecto positivo na interação dos jovens com as tecnologias, mas que, em contraponto, divide a atenção, tornando-se ineficaz. Os estudos utilizando a mediação do Functional Magnetic Ressonance Imaging (fMRI)5 também foram referenciados para confirmar a ineficácia dessa habilidade. 5
Originário do inglês Magnetic Resonance Imaging (MRI), caracteriza-se como uma técnica específica do uso da imagem por ressonância magnética que é capaz de detectar variações no fluxo sanguíneo em resposta à atividade neural.
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Segundo Cosenza e Guerra (2011, p. 47): Mesmo quando estamos dividindo a atenção pela utilização de canais sensoriais diferentes, o desempenho não é o mesmo, e aspectos importantes da informação podem ser perdidos. Isso ocorre, principalmente, se a demanda de um dos canais é aumentada. Podemos, por exemplo, dirigir um carro e ouvir rádio ao mesmo tempo. Mas, se prestamos mais atenção ao rádio, podemos provocar um acidente e, se o tráfego está pesado, provavelmente não conseguiremos nos lembrar do que o rádio transmitiu naquele momento. Ao tentar dividir a atenção, o cérebro sempre processará melhor uma informação de cada vez.
Dessa forma, tanto Giedd quanto Cosenza e Guerra apontam revezes para a atenção dividida/difusa, isto é, a interação com mais de uma informação simultaneamente pode comprometer essa função. Autores como Green e Bavelier (2015) e Rivero et al. (2012) indicam que a interação com os jogos digitais contribui para melhora da atenção, mesmo quando o sujeito lida com mais de uma informação simultaneamente. Já no terceiro artigo analisado, os autores Choudhury e McKinney (2013) debatem dois pontos que têm gerado muita discussão em torno dos usos e desusos da interação dos adolescentes com as tecnologias digitais. O primeiro refere-se ao pânico generalizado sobre o comportamento dos adolescentes; o segundo relaciona-se com o crescente alarme sobre os intensos consumo, vício e compartilhamento das mídias na sociedade moderna. Em agosto de 2016, no Brasil, tivemos dois lançamentos que trouxeram à tona o debate sobre os aspectos negativos das tecnologias, especialmente os jogos. O primeiro foi o jogo digital para dispositivos móveis Pokémon GO, que trouxe os diferenciais da realidade aumentada e do controle da geolocalização e dos dados dos seus jogadores. Tais inovações promoveram grandes inquietações e debates nas diferentes mídias digitais (redes sociais, jornais online, TV, entre outros), e verdadeiras teorias da conspiração foram espalhadas. O segundo foi o filme Nerve, que trata de um jogo em tempo real que se assemelha a um reality show e tem como pano de fundo a discussão sobre o vício. A polarização sobre os jogos digitais e as tecnologias, de maneira geral, é constantemente atualizada, sendo necessário interagir para conhecer e construir pontos de vista críticos e não apocalípticos. Para além dessa questão, Choudhury e McKinney (2013) também discutem o conceito de neuroplasticidade, que consiste na capacidade do cérebro e do sistema nervoso de mudança constante para responder aos estímulos do ambiente, bem como as próprias atividades do cérebro. A neurociência vem sendo demandada para responder as questões que envolvem a interação com as tecnologias digitais e as propaladas mudanças cognitivas que vêm ocorrendo partindo dessas mediações. Contudo, segundo os autores, são necessários mais estudos para assegurar essas conclusões. Essas posições são reforçadas também na carta assinada por 75 pesquisadores vinculados a centros de investigações nos Estados Unidos (48), no Canadá (3), na Suíça (8), na Suécia (3), na Inglaterra (2), na Escócia (1), na Alemanha (7), na Holanda (2) e na Noruega (1), em outubro de 2014 (STANFORD CENTER ON LONGEVITY, 2014). Os referidos investigadores assinaram a carta do Centro de Stanford sobre Longevidade se posicionando contra os créditos de que os brain games
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podem reduzir ou reverter o declínio cognitivo, especialmente de pessoas idosas, considerando que não existiam evidências científicas convincentes até a data da assinatura da carta. No julgamento dos signatários, reivindicações exageradas e enganosas exploram a ansiedade dos idosos sobre o declínio cognitivo iminente. Os investigadores encorajam a continuidade da investigação e da validação cuidadosa neste campo (ALVES; SANTOS, 2016). Choudhury e McKinney (2013), como Giedd (2012), também apresentam críticas relacionadas à habilidade de realizar mais de uma tarefa ao mesmo tempo, evidenciadas em estudos que relataram o crescimento de erros de desempenho, já que há mudanças contínuas no foco e no tempo para realizá-las. A mediação das técnicas de neuroimagem para diminuir as ambiguidades dos resultados das pesquisas realizadas foi também pontuada por esses autores. Em síntese, para os autores, as pesquisas não apontam resultados conclusivos no que se refere tanto aos aspectos positivos quanto negativos. Existem muitos debates, mas poucas evidências e pesquisas específicas no universo digital. Green e Bavelier (2015) são os pesquisadores mais citados nos estudos que investigam a relação entre a neurociência e os jogos digitais, inclusive no artigo produzido por Choudhury e McKinney (2013). Segundo aqueles, os dados apresentados são impressionantes, mas são necessárias mais evidências, aqui compreendidas como “dados e informações que comprovam achados e suportam opiniões [...] evidência pode ser vista como um conhecimento objetivo, direcionado para a verdade e isento de vieses. De fato, ela representa uma maneira de justificar ou validar proposições” (DRUMMOND, 2014, p. 6). A neurociência utiliza as evidências para analisar os medos relacionados ao universo digital, mas também para apontar uma reformulação positiva. Os autores Choudhury e McKinney (2013, p. 208, tradução nossa) analisam esses discursos e apontam que “a análise da lacuna entre evidência empírica e representação desses estudos demonstra como os fatos neurocientíficos e medos surgem a partir de um processo de bricolagem”. O quarto artigo analisado foi produzido por Beavis et al. (2015), pesquisadores da área de educação que realizaram um levantamento com 270 sujeitos, com o objetivo de investigar o nível de interação dos estudantes com os jogos digitais dentro e fora da sala de aula. Para os autores, é necessário investigar as percepções dos estudantes, dando voz a esses sujeitos, já que ainda é dada pouca atenção a esse aspecto, apesar do crescimento das pesquisas que investigam o game based learning (GBL), ou aprendizagem baseada em games. É interessante destacar que, no Brasil, as pesquisas realizadas na área de games, no período de 1994 a 2010, tiveram um grande número de investigações na área de educação (24 dissertações e 5 teses) e, considerando nossa tradição na pesquisa qualitativa, os sujeitos são sempre escutados e valorizados (ALVES, 2013a). A pesquisa foi realizada com estudantes da Educação Básica na faixa etária de 9 a 14 anos, em seis escolas de Queensland envolvidas no projeto Australian Research Council,6 durante três anos, para pesquisar o uso de jogos digitais para promover o
6
Ver .
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letramento7 e a aprendizagem. É importante ressaltar que o letramento aqui não é compreendido apenas como a habilidade de ler e compreender o material impresso; seu entendimento está mais focado na interação e na construção de sentidos com as distintas mídias digitais. Os resultados dessa pesquisa apresentam dados sobre o perfil dos alunos e suas interações com os jogos digitais, indicando os que mais interagem, assim como as habilidades que são desenvolvidas. Embora essa pesquisa não traga contribuições diretas para o objeto de estudo deste capítulo, seu resultado foi incluído por possibilitar visualizar quem são as crianças e os adolescentes jogadores da Austrália e como essa prática tensiona as ações da escola. Os resultados não divergem do que encontramos no Brasil, isto é, a diferença de letramento entre professores e alunos no que se refere ao universo digital, especialmente aos jogos digitais, bem como a dificuldade em equilibrar os aspectos lúdicos e os conteúdos desses jogos voltados para fins educacionais. Os sujeitos relataram que os games são bons para ensinar a resolver problemas ou a fazer coisas interessantes. Assim, a análise desses artigos possibilitou perceber a necessidade de realizar, de forma mais criteriosa, investigações que evidenciem as contribuições dos brain digital games para o desenvolvimento das FE, conectando o caráter lúdico, que é elemento essencial e fundante dos jogos analógicos ou digitais, exercitando uma escuta sensível e diferenciada dos sujeitos (BARBIER, 2002) e interagindo com outras tecnologias, a exemplo das de imagem, como o fMRI, para que possamos ter resultados mais conclusivos e realizar inferências mais efetivas seja na pesquisa, seja no desenvolvimento e, consequentemente, nas práticas de estimulação, intervenção e reabilitação. As pesquisas de base experimental também podem dialogar com seus sujeitos, experimentando uma escuta sensível que possibilite “sentir o universo afetivo, imaginário e cognitivo do outro para ‘compreender do interior’ as atitudes e os comportamentos, o sistema de ideias, de valores, de símbolos e de mitos” (BARBIER, 2002, p. 94). Tal perspectiva pode enriquecer a leitura e a análise dos dados produzidos durante as investigações, contribuindo para evidenciar a mediação dos brain digital games para estimular as FE, delimitando um pequeno grupo a ser escutado. Estimulando as funções executivas por meio dos brain digital games
As FE podem ser compreendidas pela possibilidade de nossa interação com o mundo frente às mais diversas situações que encontramos. Por meio delas, organizamos nosso pensamento, levando em conta as experiências e conhecimentos armazenados em nossa memória, assim como nossas expectativas em relação ao futuro, sempre respeitando os valores e propósitos individuais. Dessa forma, podemos estabelecer estratégias comportamentais e di7
Para Soares (2000, p. 72), letramento “é o que as pessoas fazem com as habilidades de leitura e escrita, em um contexto específico, e como essas habilidades se relacionam com as necessidades, valores e práticas sociais. Em outras palavras, letramento não é pura e simplesmente um conjunto de habilidades individuais; é o conjunto de práticas sociais ligadas à leitura e à escrita em que os indivíduos se envolvem em seu contexto social”.
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rigir nossas ações de forma objetiva, mas flexível, que permita, ao final, chegar ao objetivo desejado. Além disso, são as funções executivas que suportam uma supervisão de todo o processo, evitando erros e limitando nossas ações dentro dos padrões éticos do grupo cultural a que pertencemos. Por tudo isso, elas são essenciais para garantir o sucesso na escola, no trabalho e na vida cotidiana (COSENZA; GUERRA, 2011, p. 87-88).
No Brasil, existem poucas investigações que aprofundam a discussão sobre a estimulação das FE mediadas por tecnologias digitais, principalmente jogos, entre eles os denominados brain digital games. Destacam-se os trabalhos de Rivero, Quirino e Starling-Alves (2012), que fazem uma revisão sistemática sobre o tema; de Rodrigues, Rivero e Bertalia (2011), que discutem o impacto do videogame no desenvolvimento cognitivo dos adolescentes; de Oliveira, Ishitani e Cardoso (2013), que realizaram uma revisão sistemática sobre jogos de computador e transtorno de déficit de atenção e hiperatividade (TDAH), que compromete as FE; de Ramos (2013), que realizou uma pesquisa com cem alunos e quatro professores do Ensino Fundamental em Florianópolis que participaram de um programa de neuroeducação baseado no uso de jogos cognitivos eletrônicos; e de Neiva e Abreu (no prelo), que analisa a mediação do Cogmed, um treinamento de memória operacional,8 em um programa de reabilitação em redes no ambiente escolar. O pesquisador João Mossmann desenvolve um projeto de doutorado orientado pelo professor Eliseo Reategui e vinculado ao Programa de Informática Educativa da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), que envolve questões técnicas e artísticas do jogo educativo As incríveis aventuras de Apollo & Rosetta no espaço, produzido em parceria com os orientandos de iniciação científica da Feevale, em Nova Hamburgo (RS), sob a coordenação da professora Débora Nice F. Barbosa.9 O referido jogo educativo tem o objetivo de estimular especialmente o controle inibitório em crianças do Ensino Fundamental, tomando como referência a perspectiva dos exergames (jogos ativos) (MOSSMANN et al., 2016). E, finalmente, os trabalhos do Comunidades Virtuais, que já apontam os resultados do GGF (ALVES, 2016; TOURINHO; BONFIM; ALVES, 2016; GUIMARÃES et al., 2016; VIEIRA; CERQUEIRA; DOREA, 2016; ROCHA; NERY; ALVES, 2014), inclusive a dissertação de Nery (2015), que descreve o processo de investigação para produzir a modelagem computacional dessa mídia. Outro trabalho do grupo, realizado por Alves e Santos (2016), analisa as métricas utilizadas nos aplicativos Lumosity10 e Elevate11, que estimulam as FE. Ver . Projeto Questões artísticas de um jogo educativo para a estimulação das funções executivas desenvolvido pelos alunos Bruna Telles, João Mossmann, Débora Barbosa, Paulo Barros, Vitor Valadares, Richard Silva, Ramon Fischer e Vinícius Brochetto; e projeto Questões técnicas de um jogo educativo para a estimulação das funções executivas, desenvolvido pelos alunos Vinicius Brochetto, Vitor Valadares, Richard Silva, João Mossmann, Débora Barbosa e Caroline de Oliveira Cardoso. BROCHETTO, V. et al. Questões técnicas de um jogo educativo para a estimulação das funções executivas. 10 Ver . 11 Ver . 8 9
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Dentro dessa perspectiva, é importante referenciar as pesquisas que vêm sendo desenvolvidas pelo grupo coordenado pelo Dr. Gazzaley12 na Universidade da Califórnia, em San Francisco, e o grupo Akili, formado por pesquisadores da área de neurociência e designers de jogos, com financiamento e parceria das indústrias farmacêuticas Pfizer e Shire, do National Institute of Mental Health e da fundação Autism Speaks, que vem desenvolvendo o Project Evo. Scott Kollins, professor de Psiquiatria e diretor do Programa de Transtorno do Déficit de Atenção e Hiperatividade da Escola de Medicina da Universidade de Duke, nos Estados Unidos, liderou um projeto-piloto com a plataforma Evo que envolveu pesquisadores do Centro de Pesquisa Clínica da Flórida e da SUNY Upstate Medical University de Nova York. Ele testou oitenta crianças com idades entre 8 e 12 anos. Destas, quarenta haviam sido diagnosticadas com TDAH, mas não tomavam medicação; as outras 40 não tinham diagnóstico psiquiátrico.13 Assim, apesar do crescimento das produções e das pesquisas na área, é importante consolidar esse campo de investigação com evidências que subsidiem práticas de desenvolvimento, de pesquisa, clínicas e pedagógicas. Logo, este capítulo intenciona ampliar essas contribuições a partir da avaliação do GGF para estimular as FE de crianças na faixa etária de 8 a 12 anos, no espaço escolar, do ponto de vista das pesquisadoras vinculadas ao projeto.14 Ressaltamos que o processo de desenvolvimento do gamebook já foi descrito e discutido em Nery e Alves (2014), Nery (2015), Alves (2016), Alves e Bonfim (2016) e Cayres e Alves (2016), não sendo, portanto, objeto deste capítulo. Gamebook Guardiões da Floresta
O GGF se constitui em uma mídia híbrida com elementos de games e de appbook (livro com narrativa interativa), que objetiva estimular as FE como memória de trabalho, planejamento, flexibilidade cognitiva, atenção sustentada, monitoramento e controle inibitório em crianças com e sem indicação de TDAH, na faixa etária de 8 a 12 anos. Esse ambiente interativo, que apresenta desafios, missões, objetivos, sistema de regras e feedback de forma lúdica, interativa e imersiva, contribui para uma perspectiva diferenciada para a estimulação das FE, indo além de uma medida biologizante, com ênfase na medicalização, para uma possibilidade lúdica. Outro ponto de destaque do GGF é o desafio feito aos leitores-jogadores para pensar e solucionar um problema sério e importante para a sociedade: a questão do desmatamento florestal. O Dr. Gazzaley é diretor-fundador do Imaging Center da Universidade da Califórnia (San Francisco), professor associado de Neurologia, Fisiologia e Psiquiatria e investigador principal do Neuroscape, um laboratório de neurociência cognitiva. 13 Em correspondência por e-mail, o Dr. Kollins informou que os dados descritos foram parte de uma apresentação no American Academy of Child and Adolescent Psychiatry’s 62nd Annual Meeting, realizado de 26 a 31 de outubro de 2015 na cidade de Santo Antônio – México. 14 É importante ressaltar que o projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética da UNEB com o parecer de número 484.384 09/12/2013. 12
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Dentro dessa perspectiva, o GGF convida os leitores-jogadores a irem além do papel de consumidores para explorarem o universo mítico, construindo novos sentidos para os personagens do folclore brasileiro e despertando para as sérias questões ambientais que afetam nosso planeta. Nessa aventura e o leitor-jogador vai ser desafiado a solucionar problemas relacionados com a preservação da floresta. Esse desafio estimulará as funções executivas como flexibilidade cognitiva e memória de trabalho, entre outras. A expressão leitor-jogador é utilizada para diferenciar a audiência do GGF, já que não é só um jogo, mas uma mídia híbrida que envolve o ato de jogar e o de ler uma narrativa interativa. Método de investigação e resultados
A abordagem da investigação foi de base qualitativa, caracterizando-se por uma pesquisa-ação que, na perspectiva de Barbier (2002), orienta-se para uma participação crescente das populações envolvidas, obrigando o pesquisador a implicar-se. Para o autor, essa implicação é percebida pela estrutura social na qual o investigador está inserido e pelo jogo de desejos e de interesses de outros. Ele [o pesquisador] também implica os outros por meio do seu olhar e de sua ação singular no mundo. Ele compreende, então, que as ciências humanas são, essencialmente, ciências de interações entre sujeito e objeto de pesquisa. O pesquisador realiza que (sic) sua própria vida social e afetiva está presente na sua pesquisa sociológica e que o imprevisto está no coração da sua prática (BARBIER, 2002, p. 14).
A investigação foi construída no diálogo com as pesquisadoras Jessica Vieira, Maria de Fátima Dórea e Larissa Cerqueira, estudantes de psicologia do terceiro semestre da UNEB que estão mediando a interação do grupo de crianças e pré-adolescentes matriculados no 4º ano e 5º ano da Escola Municipal Roberto Santos que sejam letrados, isto é, que já tenham o domínio básico da leitura e da escrita, sendo capazes de ler e entender o que está sendo lido. Assim, tendo as investigadoras como interlocutoras, avaliamos as contribuições da mediação do GGF para a estimulação das FE (memória de trabalho e flexibilidade cognitiva) e da persistência em crianças na faixa etária de 8 a 12 anos. A referida escola atende a crianças do 1º ano ao 5º ano do Ensino Fundamental, de baixa classe média,15 isto é, apresentando renda per capita entre R$ 291 e R$ 441 por mês, e está localizada no entorno da UNEB, no bairro do Cabula. Para tanto, foram utilizados os seguintes procedimentos metodológicos: interação e análise do GGF, análise dos relatórios das pesquisadoras relacionadas e entrevista semiestruturada. Assim, foram criados dispositivos de análise, como roteiros elegendo aspectos relevantes para as análises do GGF, relatório e entrevista. Todos esses dados se constituíram 15
A classificação utilizada aqui considerou a indicada pela Secretaria de Assuntos Estratégicos (SAE), extinta em outubro de 2015. Ver Acesso em: 12 ago. 2016.
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no mosaico, já que cada dispositivo16 subsidiou leitura, análise e discussão dos dados, dando um significado para o fenômeno investigado. Minigames e funções executivas
Os oito minigames apresentados no GGF possuem uma mecânica clássica, isto é, presente em vários jogos, especialmente naqueles que objetivam estimular as FE e que se denominam brain digital games, a exemplo de Lumosity, Peak,17 Elevate, CogniFit18 e Cogmed, entre outros. A diferença básica entre esses jogos e o GGF é a narrativa. Enquanto neste todos os minigames apresentados vinculam-se diretamente à história, promovendo o engajamento e a experiência do jogador, os indicados anteriormente apresentam de forma isolada uma série de minigames para estimular as funções executivas do tipo casuais, isto é, jogos com regras mais simples, fáceis de aprender e que não exigem um grande investimento para interação e solução dos desafios. Os jogos desse tipo são produzidos para jogadores sem muita experiência e que podem jogar em qualquer lugar, a qualquer hora e em qualquer plataforma (no caso dos jogos indicados, os interessados podem jogar em smartphones e tablets, por exemplo). Essa diferença foi o ponto destacado como mais positivo pelas crianças e pré-adolescentes que interagiram com o GGF: Ao realizarmos a primeira atividade na escola com a turma do 4º ano, da professora Jane, por questões técnicas, decidimos que a interação seria apenas com os minigames, isto é, com o ambiente de Tenda do Queixão, no qual estão os oito minigames. Essa interação era desarticulada da narrativa do Gamebook e as crianças não demostraram muito interesse em jogar. Na semana seguinte, quando foi possível interagir com o ambiente desde o início da narrativa, as crianças ficaram imersas e comentaram a diferença (depoimento de Larissa Cerqueira em VIEIRA, J.; CERQUEIRA, L.; DOREA, M. F., 2016).
Sentir-se parte do enredo, identificar-se com Lyu, personagem jogável representada por uma menina de 8 anos que tem o desafio de salvar os pais e ajudar os guardiões a proteger a Floresta Amazônica, possibilitou aos leitores-jogadores vivenciarem o papel de interator, de protagonista da história, e fazerem escolhas, mesmo que controladas pelo sistema do ambiente. Para Murray (2003, p. 149): O interator, seja ele navegador, protagonista, explorador ou construtor, faz uso desse repertório de passos e de ritmos possíveis para improvisar uma dança particular dentre as muitas danças possíveis previstas pelo autor. Talvez se possa dizer que o interator é o autor de uma performance em particular Para Ardoino (2003, p. 80), os dispositivos se constituem em “uma organização de meios materiais e/ou intelectuais, fazendo parte de uma estratégia de conhecimento de um objeto”. 17 Ver . 18 Ver . 16
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dentro de um sistema de história eletrônico, ou o arquiteto de uma parte específica do mundo virtual, mas precisamos distinguir essa autoria derivativa da autoria original do próprio sistema.
Participação, imersão e interatividade são palavras-chave quando pensamos no universo dos games e, no caso específico do GGF, os jogadores são fisgados pelo universo mítico, interagindo e construindo sentidos para o ambiente, mesmo que sua autoria seja vigiada. O conteúdo presente na narrativa (personagens do folclore brasileiro: Saci Pererê, Lobisomem, Iara e Curupira, entre outros, assim como a proteção da Floresta Amazônica) é próximo do universo escolar, permitindo que os leitores-jogadores estabeleçam relação entre o que já sabem sobre o tema e o que visualizam e vivenciam no ambiente do GGF. Por exemplo, na perspectiva de Larissa Cerqueira, o GGF “tem uma função lúdica, criando um momento e um espaço abertos para que os jogos tragam conteúdos direcionados a uma temática que é discutida pela escola, como fauna, flora e lendas da floresta, em específico a Floresta Amazônica”. Na análise das pesquisadoras que foram interlocutoras das reflexões aqui realizadas, a competição foi outro aspecto despertado entre os leitores-jogadores e os mobilizava a continuar jogando para conquistar mais estrelas. Assim, estavam sempre a questionar os seus pares sobre o nível em que se encontravam, sinalizando a importância do sistema de recompensa como motivador para manter o engajamento e a persistência, além de indicar um ponto positivo do GGF, que é trazer de volta os leitores-jogadores para a interação, mesmo depois de terem concluído todos os desafios propostos. Segundo DiCerbo (2014, p. 18, tradução nossa): A persistência é definida como a tarefa de continuar apesar dos obstáculos ou dificuldades. Na literatura cognitiva, a persistência é geralmente classificada como um elemento de função executiva e pensada para ser relacionada e autorregulada à atenção, à cognição e ao comportamento (Anderson, 2002). Persistência pode não parecer uma habilidade distintamente do século 21, uma vez que houve uma revisão histórica da literatura sobre a medição da persistência escrita em 1939 (Ryans, 1939). No entanto, muitas vezes é enumerada em listas e discussões de habilidades e atributos do século 21 (Fadel, 2011; Pellegrino & Hilton, 2012), porque os empregos no século 21 são cada vez mais complexos, exigindo a aplicação sustentada de esforços para concluir as tarefas multifacetadas (Andersson & Bergman, 2011).
Dentro dessa perspectiva, o GGF pode atuar como um espaço lúdico e prazeroso para desenvolver a habilidade de persistir mesmo diante das dificuldades. As dificuldades propostas por esse ambiente podem atuar como motor propulsor para fortalecer a capacidade de persistir mesmo diante do novo e do desafio. Afinal, o ato de aprender não envolve só ganhos e momentos prazerosos. Perdemos e ressignificamos velhos aprendizados e conceitos para dar origem aos novos. Jessica Vieira (VIEIRA; CERQUEIRA; DOREA, 2016) sinaliza que de maneira geral, os sujeitos mostram-se bastante tolerantes e persistentes no jogo. Quando possuem dificuldade, eles nos procuram para tirar as dúvidas e não desistem facilmente. Percebe-se
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que, em boa parte dos casos, quando conseguem menos de três estrelas como recompensa continuam tentando até conquistar a pontuação máxima.
Autores como Lewis, Swartz e Lyons (2016) apontam que existem limitadas evidências da eficácia da recompensa por um longo tempo. A manutenção da ação da recompensa pode estar relacionada com a motivação interna do sujeito. Os autores dialogam com a teoria da autodeterminação (Self Determination Theory – SDT) para explicar a motivação interna. A perspectiva SDT sugere que as recompensas externas podem diminuir a motivação interna, mas é um fenômeno complexo que não pode ser explicado de forma tão simplista, pois, a depender da recompensa, o comportamento pode ser internalizado e continuado. Para os teóricos dessa perspectiva, a autonomia, a competência e a conexão entre as pessoas são condições que podem promover níveis significativos de motivação, engajamento, desempenho, persistência e criatividade.19 Essa perspectiva pode ser evidenciada nas distintas situações apontadas pelas pesquisadoras, inclusive no que se refere à questão do desempenho no GGF. Para Larissa Cerqueira (VIEIRA; CERQUEIRA; DOREA, 2016), “O que mais os motivava era a vontade de finalizar o jogo e poder dizer aos seus colegas do seu feito”. O GGF também foi apontado pelas pesquisadoras como um espaço profícuo para a estimulação das FE, apesar das dificuldades de nível técnico, isto é, do ambiente, e dos próprios sujeitos em compreender as consignas. Em muitos momentos, os leitores-jogadores adotavam a prática de tentativa e erro, que se constitui em uma estratégia mais simples de aprendizagem. Na perspectiva de Jessica Vieira, o GGF tem um grande potencial para a estimulação das funções executivas, uma vez que os minigames encaixados com a narrativa requerem dos sujeitos estratégias para a resolução de atividades onde há a exigência de tais habilidades. De acordo com a literatura da área de neuropsicologia, a reabilitação neuropsicológica ou estimulação pode ser feita por meio de “treinos” cognitivos, e acredito que o jogo consiga alcançar esse objetivo.
Fátima Dórea também aponta aspectos relacionados com a plasticidade cerebral: O Gamebook apresenta ferramentas, como os minigames, que criam como um todo um ambiente que mantém as crianças engajadas e ao mesmo tempo estimula as habilidades executivas. Desta forma, considerando os aspectos neuronais de plasticidade, acredito que esses processos da jogabilidade contribuam para uma promoção das funções executivas nas crianças.
Podemos constatar no discurso das pesquisadoras que o fato de haver uma narrativa que integre os minigames, contextualizando-os, possibilita a imersão e o engajamento dos leitores-jogadores. Assim, os desafios presentes nos minigames estimulam as funções executivas na medida em que provocam cognitivamente os sujeitos a solucionarem problemas. 19
Ver .
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A concretização das missões e, consequentemente, o alcance dos objetivos, exigem outra habilidade dos sujeitos imersos no universo do GGF: serem letrados. Para Jenkins (2008, p. 229): Assim como tradicionalmente não consideramos letrado alguém que sabe ler, mas não sabe escrever, não deveríamos supor que alguém seja letrado para as mídias porque sabe consumir, mas não se expressar. Historicamente, restrições ao letramento advêm das tentativas de controlar diversos segmentos da população – algumas sociedades adotaram o letramento universal, outras restringiram o letramento a classes sociais específicas, além das restrições por questões de raça ou sexo. Podemos também encarar as atuais lutas sobre letramento como tendo o efeito de determinar quem tem o direito de participar de nossa cultura e sob quais condições.
Como foi dito, a dificuldade e o desprazer em ler os textos no universo dos jogos não se limitam aos ambientes voltados para fins educacionais, mas a qualquer jogo que exija a prática da leitura em uma perspectiva que envolva a interpretação e a compreensão. Assim, no universo dos jogos digitais, nos gamebooks e nos appbooks, os seus jogadores, leitores e leitores-jogadores precisam ter construído um sentido e um significado para o universo no qual estão imersos, sendo capazes de compreender as consignas, mas também de explorar telas e inventários, compreender suas funcionalidades, vencer desafios e missões, alcançar os objetivos e ser recompensados no final. O que se observa é que o fato de as crianças terem dificuldades em atribuir sentido ao texto escrito, que orienta sobre o que fazer na missão, pode levar à não compreensão do que se espera do leitor-jogador e, consequentemente, ao game over. Ou ainda, o fato de não ser letrado na mecânica do swipe (na qual o jogador precisa passar o dedo na tela) também pode imobilizá-lo, levando à frustração, já que não consegue avançar. Tal fato não pode ser considerado um déficit em uma FE, mas uma questão relacionada com a apropriação do universo letrado do ambiente: Crianças que se mostram intolerantes geralmente possuem dificuldades na interpretação do que está sendo pedido. Também há aquelas que são desmotivadas quando há muitos problemas em relação ao seu usuário e o dispositivo que está utilizando, quando percebem que outras crianças estão mais avançadas e ela não consegue (depoimento de Larissa Cerqueira em VIEIRA, J.; CERQUEIRA, L.; DOREA, M. F., 2016).
Como Jessica (VIEIRA; CERQUEIRA; DOREA, 2016) pontua, o fato de não conseguir decifrar o código linguístico leva a frustração, desmotivação e intolerância, especialmente se os sujeitos se defrontam com o sucesso do outro. Os aspectos registrados interferiram de forma negativa na interação das crianças e dos pré-adolescentes com o GGF, impactando no alcance dos objetivos propostos e gerando frustração, intolerância e, muitas vezes, desistência. Assim, a experiência do leitor-jogador que se defrontou com os problemas ficou comprometida, desestimulando-o a retornar ao ambiente. As pesquisadoras registram ainda três pontos bastante interessantes: o primeiro refere-se à concepção que as crianças têm dos encontros realizados no espaço escolar para interagir
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com o GGF. Para eles, é a “aula de tablet”! Percebe-se que, mesmo que sejam momentos lúdicos, de entretenimento, de lazer e prazer, sem a rigidez e a obrigação das tarefas escolares, o fato de ter um enquadre com local, horário, carga horária, dia da semana e atividade previamente definida dentro da escola evidencia, para os leitores-jogadores, que a prática é escolar e uma aula. A mediação da professora de uma turma, que se destacou por ameaçar que, se os alunos não se comportassem, não iriam para a “aula de tablet”, foi o segundo ponto. E a escola continua aprisionando não apenas a inteligência, a ludicidade e o prazer de aprender, mas os corpos. Por mais que já tenha sido discutida e criticada a partir de Foucault (2004), a rigidez disciplinar que se instaura no ambiente escolar, inibindo os sujeitos do processo de ensinar e aprender, de romperem as amarras que os aprisionam na construção de sentidos para os distintos objetos do conhecimento, ainda é imposta aos alunos a desconexão com o corpo, esquecendo que toda a aprendizagem passa por ele. Logo, como são tão restritivas as possibilidades de brincar ao ar livre e deixar o corpo percorrer livremente os espaços sem as amarras, ao serem confrontados entre a “aula de tablet” e a aula de Educação Física, os leitores-jogadores não hesitaram: este foi o terceiro ponto. Apesar da proposta trazida pelo gamebook, os sujeitos da pesquisa ainda vêm o momento de interação como uma obrigação, o qual é chamado de “Aula de tablet”; mesmo que eles demonstrem gostar desse momento, ainda é algo obrigatório para eles. Nas últimas interações, houve o choque de horários da aula de educação física e a realização do jogo; os sujeitos tiveram certa resistência em sair da aula para realizar a interação. Tendo em vista esse ponto, penso que esse posicionamento ocorreu pois a aula de educação física é o único momento, ofertado a eles no qual podem sair daquele espaço fechado (sala de aula) e agir livremente como uma real brincadeira que eles realizariam em casa ou na rua com os amigos. Naquele momento, eles poderiam se ver mais “livres” (depoimento de Larissa Cerqueira em VIEIRA, J.; CERQUEIRA, L.; DOREA, M. F., 2016).
A escolha das crianças e dos pré-adolescentes evidencia que a interação com a tecnologia digital, os dispositivos móveis, os aplicativos e a conexão em tempo real com o mundo podem ser atrativos, mas esses sujeitos sinalizam que esses prazeres podem e devem conviver com outras práticas nas quais é necessário estar com o outro, explorar o espaço físico, sentir o corpo, praticar esportes. Enfim, viver para além do digital, deixar o corpo livre, sem docilizá-lo, libertando a inteligência aprisionada que, na perspectiva de Fernadez (1991, p. 27), se caracteriza pela “criatividade encapsulada, a curiosidade anulada, a renúncia a pensar, conhecer e crescer”. É o GGF um brain digital game?
A discussão em torno do que é um brain digital game iniciou este capítulo, apontando para a existência de diferentes ambientes, sejam games, aplicativos ou outros artefatos que vêm se colocando nessa categoria, na medida em que criam situações que provocam os
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usuários a solucionarem problemas que exigem a atuação das FE. Dentro dessa perspectiva, o GGF é um brain digital game. Todavia, é muito mais que isso, na medida em que enlaça o leitor-jogador na sua narrativa, engajando-o e colocando-o no lugar do protagonista da história, uma história que se inter-relaciona com os minigames que estimulam e desafiam as FE e que provocam o imaginário desse sujeito a fim de que produza novas narrativas, interagindo com distintas linguagens. Além disso, o GGF valoriza a cultura nacional, colocando os personagens míticos do folclore brasileiro como heróis e rompendo com ideias maniqueístas, por exemplo, de que o lobisomem é sempre mau. Ainda ressalta a importância da proteção e da preservação da fauna e da flora das nossas matas, não apenas representadas pela Floresta Amazônica, colocando o leitor-jogador como corresponsável nesse processo. Essa gama de possibilidades pode ser explorada no espaço clínico, no espaço escolar, nas brinquedotecas ou simplesmente na interação com o GGF em casa, promovendo o desenvolvimento de distintas funções executivas. A flexibilidade cognitiva e a memória de trabalho compõem o conjunto de funções que lastreiam o desenvolvimento cognitivo do ser humano, que, ao longo da sua existência, vivencia situações que podem potencializá-las. Uma destas é a interação com os artefatos digitais, especialmente aqueles produzidos com esses objetivos. Mas é importante ressaltar que as situações e as provocações cognitivas que ocorrem no universo in game atuam como gatilhos para promover a atuação do sujeito out game. É dentro desse contexto que se insere o GGF. Vale ressaltar também que, no espaço escolar, é possível extrapolar o universo criado no GGF, incentivando os usuários à construção de novas narrativas em uma perspectiva transmidiática, favorecendo a estimulação das FE como planejamento, memória operacional e flexibilidade cognitiva, entre outras, na medida em que se propõe aos sujeitos a criação de outras leituras em torno da narrativa do GGF, como histórias em quadrinhos, fanfiction,20 contos, novos jogos etc. Assim, considerando a escuta sensível, estabelecida a partir da minha imersão como coordenadora do projeto e a interlocução com as pesquisadoras, foi possível apresentar uma avaliação preliminar das contribuições do GGF no espaço escolar, apontando evidências iniciais dessa mídia para a estimulação das FE, bem como para produzir novas versões que se aproximem mais do desejo e do interesse dos leitores-jogadores. Por fim, os resultados apontam e ratificam a premissa de Diamond et al. (2007) de que é possível criar espaços de estimulação, inclusive na escola, que poderão contribuir para a diminuição do déficit das FE dos sujeitos em processo de escolarização. Contudo, é fundamental continuar a realização da investigação, consolidando esses dados e contribuindo de forma significativa para a aprendizagem dos alunos da rede pública de Salvador, especialmente para os alunos da Escola Municipal Roberto Santos.21 O termo fanfiction ou fanfic refere-se “originalmente, a qualquer narração em prosa com histórias e personagens extraídos dos conteúdos dos meios de comunicação de massa” (JENKINS, 2008, p. 355). 21 A pesquisa ainda se encontra em andamento, e cinquenta crianças e quatro professores já interagiram com o GGF. O nosso objetivo é envolver todas as crianças da escola na investigação. 20
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Raul Inácio Busarello A tendência da sociedade contemporânea de se interessar por jogos influencia o desenvolvimento de novos produtos e sistemas. Nesse campo, o envolvimento de qualquer agente tem base em estruturas de recompensa, reforço e feedback suportadas por mecânicas e sistemáticas que potencializam o envolvimento do indivíduo (ZICHERMANN; CUNNINGHAM, 2011). Furió et al. (2013) consideram que o ato de jogar, além de proporcionar prazer, é um meio de o indivíduo desenvolver habilidades cognitivas, estimulando a atenção e a memória. Jogos são capazes de promover contextos lúdicos e ficcionais na forma de narrativas, imagens e sons, favorecendo o processo de aprendizagem (DOMÍNGUEZ et al., 2013). No aspecto narrativo, os jogos permitem que o indivíduo vivencie um fragmento de espaço e tempo característicos da vida real em um contexto ficcional e controlado (COLLANTES, 2013). Em todos esses contextos, há regras e objetivos definidos pelos quais os jogadores basearão suas ações. Dessa forma, no processo do jogo, o desenvolvimento dos acontecimentos pode ser mensurado, e os resultados, definidos – perder, ganhar, empatar, superar etc. As experiências oferecidas pelos jogos, como resolver enigmas e receber respostas, ativam no cérebro o sistema de dopamina que está associado à sensação de prazer (CLEMENTI, 2014). Além disso, em um jogo, o indivíduo tem a oportunidade de superar desafios e perder, mas não de forma permanente. Ou seja, o jogador tem a oportunidade de refazer a tarefa, buscando seu êxito. Isso serve como motivador para uma busca constante de melhorias e maneiras novas de encontrar soluções. Para Kapp (2012), os elementos utilizados nos jogos ou em atividades divertidas têm o intuito de promover o engajamento e o aprendizado, culminando em comportamentos positivos em relação a essas práticas, que resultam no conceito de gamificação. Johnson et al. (2014) complementam, colocando que essa tendência tem feito com que aspectos relacionados ao ato de jogar sejam utilizados como estratégias motivacionais em outros setores, como forças armadas, comércio, indústria, educação e meio corporativo. A gamificação surge, nesse sentido, como o princípio da apropriação de elementos dos jogos em contextos, produtos e serviços não focados em jogos, mas com a intenção de
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promover a motivação e estimular o comportamento do indivíduo (DETERDING, 2012). Para Vianna et al. (2013), a gamificação desperta emoções positivas e explora aptidões, atreladas a recompensas virtuais ou físicas ao se executar determinada tarefa. Por isso, é aplicada em situações e circunstâncias que exijam a criação ou a adaptação da experiência do usuário a um produto, serviço ou processo. No caso da aprendizagem, ambientes gamificados contribuem para a criação de desafios emocionantes e recompensas a estudantes por sua dedicação e sua eficiência e oferecem um espaço para que líderes apareçam espontaneamente ( JOHNSON et al., 2014). Nesse contexto, este capítulo parte de uma revisão e de uma reflexão teóricas, tendo como objetivo discutir o conceito de gamificação a partir de elementos que fundamentam sua utilização no processo de geração e mediação do conhecimento, explicitados um esquema em forma de pentágono que apresenta os cinco tópicos que constituem a base do fenômeno da gamificação. Dessa forma, neste capítulo evidenciam-se questões conceituais sobre o fenômeno da gamificação, abordando tanto as particularidades das suas estruturas de base quanto a sua relação com o conhecimento. Conceitos sobre gamificação
A gamificação parte do princípio de se pensar e agir como em jogo, mas em contexto fora de jogo. Para isso, utiliza sistemáticas, mecânicas e dinâmicas do ato de jogar em outras ações e contextos. A gamificação é formada por quatro princípios – a base nos jogos, as mecânicas, as estéticas e o pensamento de jogo – com foco no engajamento de pessoas, na motivação de ações, na promoção do aprendizado e na solução de problemas (KAPP, 2012). A gamificação abrange a utilização de mecanismos e sistemáticas de jogos para a resolução de problemas e para a motivação e o engajamento de determinado público (VIANNA et al., 2013). De forma análoga, Zichermann e Cunningham (2011) entendem que a gamificação explora os níveis de engajamento do indivíduo para a resolução de problemas. Do ponto de vista emocional, a gamificação é um processo de melhoria de serviços, objetos ou ambientes com base em experiências de elementos de jogos e comportamento dos indivíduos (HAMARI; KOIVISTO; SARSA, 2014). Para Busarello (2016, p. 18), gamificação é um sistema utilizado para a resolução de problemas através da elevação e manutenção dos níveis de engajamento por meio de estímulos à motivação intrínseca do indivíduo. Utiliza cenários lúdicos para simulação e exploração de fenômenos com objetivos extrínsecos, apoiados em elementos utilizados e criados em jogos.
Assim, a gamificação tem como princípio despertar emoções positivas e explorar aptidões atreladas a recompensas virtuais ou físicas durante a execução de determinada tarefa; por isso, é aplicada em situações e circunstâncias que exijam a criação ou a
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adaptação da experiência do usuário a um produto, serviço ou processo (VIANNA et al., 2013). Sua utilização, segundo Campigotto, McEwen e Demmans (2013), contribui para a criação de um ambiente ímpar de aprendizagem, com eficácia na retenção da atenção do aluno. De acordo com Seaborn e Fels (2015), os conceitos de jogos e de gamificação são distintos, e o segundo não se limita apenas à utilização das mecânicas do primeiro. Kapp (2012) apresenta a diferença entre os serious games e a gamificação: o primeiro consiste em uma experiência desenvolvida por meio de mecânicas e da forma de se pensar como em jogos, com finalidade de educar indivíduos sobre um conteúdo específico. As atividades concentram-se na utilização de pontos, recompensas e distintivos; contudo, o pensar como em jogo é aplicado de forma cuidadosa, com a intenção de se resolver problemas e encorajar a aprendizagem, usando, para isso, todos os elementos de jogos que forem apropriados a práticas determinadas. A gamificação, por outro lado, busca estimular os objetivos intrínsecos do indivíduo, utilizando as bases aplicadas nos jogos em contextos fora do jogo. A natureza de cooperação das atividades com base em jogos colabora para o maior foco dos indivíduos para resolverem problemas. De-Marcos et al. (2014) complementam que a gamificação utiliza, além dos elementos de jogo, técnicas de design de jogos, com o intuito de envolver indivíduos e resolver problemas em contextos de não jogo. Segundo Seaborn e Fels (2015), gamificação corresponde ao ato de se vivenciar uma experiência quando a interação gamificada acontece a partir do objeto, das ferramentas deste e do contexto. Para as autoras, “gamificação é uma abordagem de desenvolvimento para elevar a motivação, o engajamento e a satisfação em um contexto de não jogo, mediado por computador” (SEABORN; FELS, 2015, p. 29, tradução nossa). Diferentemente do jogo, o propósito da gamificação não é apenas entretenimento. O engajamento e a motivação são objetivos explícitos da gamificação, entendendo-se o primeiro como o responsável por reter a atenção do indivíduo e envolvê-lo no processo criado (KAPP, 2012). Na visão de Simões, Redondo e Vilas (2013), a gamificação possui um grande potencial para tornar o processo de aprendizagem mais atraente e motivador, em virtude de deixá-lo divertido e agradável para o aluno, aumentando, dessa forma, o nível de compromisso do indivíduo. Sua utilização contribui para a criação de um ambiente diferenciado de aprendizagem, levando à retenção da atenção do aluno (CAMPIGOTTO; MCEWEN; DEMMANS, 2013). Nesse contexto, identifica-se que a gamificação parte de cinco tópicos estruturais: aprendizagem, narrativa, motivação e engajamento, pensar como jogos e mecânicas de jogos:
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Gamificação em debate
• Sair da rotina • Incentivar o comportamento • Adaptação do conteúdo • Aguçar a curiosidade
aprendizagem mecânicas de jogos
narrativa • Viver a história • Domínio da história e dos elementos interativos • Histórias são engajadoras e mídias para movimentação
Mecânica: orienta as ações Dinâmica: interação com mecânicas Estética: emoções na interação
gamificação
motivação e engajamento
pensar como em jogos
intrínseca • extrínseca Desafio Fantasia Curiosidade
Interesse Satisfação Envolvimento Confiança
Meta Regras Feedback Participação
Fantasia Regras e metas Estimulos sensoriais Desafios Mistérios Controle
Figura 8.1 – Variáveis que contemplam a gamificação. Fonte: Busarello (2016).
Os tópicos do gráfico são explorados nas próximas seções. Aprendizagem e gamificação
A aprendizagem é motivadora quando a atividade se torna divertida (AMORY et al., 1999). Muitos dos elementos da gamificação são baseados em psicologias educacionais, gerando outro nível de interesse e uma nova maneira de agrupar os elementos de aprendizagem em um ambiente promotor de engajamento e de motivação para os alunos (KAPP, 2012). De-Marcos et al. (2014) salientam que o uso da gamificação tem potencial em processos educacionais nos quais se encontram, com frequência, alunos desmotivados nas atividades de aprendizagem. Simões, Redondo e Vilas (2013) entendem que, no dia a dia, os indivíduos não são confrontados com atividades motivacionais, e a gamificação tem potencial para induzir a motivação nessas rotinas.
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Como teoria de aprendizagem (BIRÓ, 2014), a gamificação primeiramente utiliza um sistema de avaliação baseado no envolvimento em comunidade (CLEMENTI, 2014). Como segundo ponto, pode suportar uma série de diferentes caminhos de aprendizagem, sem perder o foco no objetivo principal. O seu terceiro aspecto é a visualidade em processos da aprendizagem, ou seja, a clareza dos avanços dentro do processo de aprendizagem relacionados aos caminhos escolhidos pelo aluno. De forma geral, compreende-se que a gamificação, ao estabelecer diferentes caminhos para a aprendizagem, é capaz de adaptar o conteúdo de um domínio específico para diferentes perfis de alunos, apresentando distintos métodos para que o indivíduo possa adquirir conhecimento (BIRÓ, 2014). Para a gamificação, o conhecimento deve ser externo e, de forma parcial, comum aos alunos. O aluno, por sua vez, é o agente mais importante no processo de aprendizagem, uma vez que a escolha do percurso para o conhecimento parte dele próprio. Para isso, o ambiente de aprendizagem deve ter como base traços dos alunos e prever suas atitudes. O professor é o agente promotor dos níveis de engajamento no processo, influenciando a motivação do aluno no ambiente. Nesse sentido, Kapp (2012) explicita que a essência da gamificação está na geração de um ambiente que promova a diversidade de caminhos de aprendizagem e os sistemas de decisão e recompensa por parte dos alunos, sempre buscando elevar os níveis motivacionais e de engajamento dentro do processo. Gamificação para a motivação e o engajamento
A gamificação distingue-se por uma abordagem para acelerar a curva de experiência do aluno, favorecendo o aprendizado de conteúdos e sistemas complexos (KAPP, 2012). De-Marcos et al. (2014) identificam que a gamificação está baseada em teorias psicológicas que utilizam modelos motivacionais. Nesse aspecto, Domínguez et al. (2013) reconhecem que a motivação no ato de jogar abrange as áreas cognitiva, emocional e social do indivíduo. Como os limites entre essas áreas não são definidos, geralmente as mecânicas e as dinâmicas utilizadas no processo de gamificação abrangem todas elas ao mesmo tempo. O ato de jogar envolve a área cognitiva do indivíduo ao passo que sua sistemática estabelece um conjunto complexo de regras orientadas a partir de tarefas e etapas menores. Essas etapas são desenvolvidas como ciclos de especialização compostos por tarefas curtas e rápidas, em que o indivíduo repetidamente busca tentativas de sua conclusão. Esse processo, com base em tentativa e erro, eleva o nível de habilidade necessário para que o indivíduo resolva aquele determinado ciclo. Para que permaneça envolvido nesse processo, o sistema deve fornecer as informações necessárias para que o sujeito desenvolva o conhecimento adequado e a habilidade para interagir ao longo dele. A área emocional, por sua vez, denota a competência do indivíduo e se concentra principalmente nos conceitos de sucesso e fracasso (DOMÍNGUEZ et al., 2013). A sistemática de jogos parte do princípio de que, para aumentar os sentimentos positivos do indivíduo, o sucesso na realização das tarefas deve ser reconhecido de forma imediata pelos jogadores. Do contrário, a realização de tarefas pode contribuir para o aumento da ansiedade do indivíduo.
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A área social denota o relacionamento, ou seja, a interação dos indivíduos durante a utilização do sistema (CLEMENTI, 2014). Essa dimensão aborda tanto a socialização como a colaboração e a concorrência. Do ponto de vista social, estimular a concorrência pode gerar tanto resultados construtivos como destrutivos (HANUS; FOX, 2015). Uma concorrência é construtiva quando as competições são experiências divertidas e estruturadas de forma a elevar as relações interpessoais positivas dos participantes. Do contrário, a concorrência torna-se destrutiva quando o resultado da competição é prejudicial para ao menos um dos integrantes. No caso da gamificação aplicada ao processo de aprendizagem, salienta-se que esses conceitos devem ser utilizados na concepção de ideias educacionais e em objetos de aprendizagem, buscando torná-los mais motivadores. Ambientes que interagem com as emoções e os desejos dos usuários são eficazes para elevar os níveis de engajamento (ZICHERMANN; CUNNINGHAM, 2011). Esses autores salientam que, por meio dos mecanismos da gamificação, é possível alinhar os interesses dos criadores dos artefatos e dos objetos com as motivações dos usuários. Determinadas recompensas extrínsecas podem destruir as motivações intrínsecas, afetando o aspecto motivacional do indivíduo (ZICHERMANN; CUNNINGHAM, 2011). Dessa forma, deve-se ter cautela ao utilizar motivações extrínsecas para aumentar os níveis da motivação intrínseca (HANUS; FOX, 2015). O esforço ao realizar competições e buscar recompensas tende a diminuir a motivação intrínseca, principalmente quando o indivíduo encontra-se motivado para realizar uma determinada tarefa. De modo geral, ao se oferecer recompensas esperadas para pessoas interessadas em um dado assunto ou contexto, isso pode fazer o sujeito mudar da motivação “querer realizar” para a motivação “fazer para conquistar a recompensa”. Entretanto, os autores reconhecem que receber uma recompensa pela realização de uma atividade desinteressante pode distrair o indivíduo da tarefa, tornando a prática interessante. Recompensas extrínsecas são menos efetivas que as intrínsecas, contudo as duas formas de motivação determinam o comportamento do indivíduo (GARRIS; AHLERS; DRISKELL, 2002). Busarello et al. (2014) consideram que o complicador na criação de ambientes e artefatos que utilizam a gamificação é saber como estimular efetivamente os dois tipos de motivação, tanto de forma conjunta como separadamente. Para a gamificação, a combinação efetiva das motivações intrínseca e extrínseca aumenta o nível de motivação e engajamento do sujeito. Isso sugere que a utilização da gamificação deve ser vista com cautela, pois, se por um lado pode auxiliar na motivação do aluno que por alguma razão se encontra entediado na tarefa educacional, por outro pode prejudicar os níveis motivacionais do aluno que já está motivado para tal atividade. Além disso, há três elementos-chave que tornam motivacionais os sistemas baseados em jogos (BUSARELLO, 2016): o desafio, que está associado à percepção do indivíduo, influenciando na forma como este percebe as partes do sistema; a fantasia, que se traduz em um ambiente que evoca imagens mentais de coisas não presentes na experiência real daquele indivíduo envolvido; e a curiosidade, que é estimulada quando se apresentam bons níveis de informações complexas em um ambiente excitante.
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De acordo com Garris, Ahlers e Driskell (2002), os jogos desencadeiam repetidos ciclos de julgamento do jogador, comportamento do jogo e feedback. Esses ciclos dizem respeito a um círculo de dependências com a intenção de: (1) buscar o comportamento desejável do aluno; (2) possibilitar que os alunos primeiramente experimentem reações emocionais e cognitivas desejáveis; e (3) que cada resultado da interação com o sistema e com os feedbacks seja gerado pelo jogo. Narrativa explorada na gamificação
Ao acompanhar uma narrativa, o indivíduo tem a experiência de uma história em que não está incluído como ator (COLLANTES, 2013). Ou seja, o indivíduo participa “ao vivo” da história de outro agente, mas sem a possibilidade de interferência no seu curso. Já no caso do jogo, o indivíduo “vive” a história quando o desenvolvimento da narrativa depende da agência deste para sua resolução. Ao jogar, o sujeito experimenta diretamente a imersão, agindo como protagonista. As possibilidades da narrativa no meio digital contribuem para a construção de histórias participativas, uma vez que o espectador deve agir ativamente no curso da trama (MURRAY, 2003). Percebe-se que as características advindas dos jogos favorecem essa atividade do indivíduo. No caso da narrativa hipermídia, identifica-se que o espectador pode viver a história como nos jogos. Kapp (2012) identifica que jogos educativos fundem as tarefas relacionadas aos domínios, com a narrativa da história e elementos interativos. Isso permite que o aluno tenha experiências viciantes com a história, por meio da relação entre o conteúdo de aprendizagem e os personagens, o enredo, a tensão e a resolução. Os elementos das histórias não são apenas engajadores, mas servem como guia para que o aluno se movimente no ambiente, contribuindo para sua satisfação e para o alcance de seus objetivos. É possível resumir os elementos dos jogos em: personagem, competição e regras de jogo (SCHMITZ; KLEMKE; SPECHT, 2012). De forma análoga, identifica-se que, na construção de uma história, esses elementos são explorados de modos diversos. Toda história abrange um personagem realizando ações em algum lugar, que devem respeitar as regras do ambiente narrativo e da história criada (FIELD, 2009). Murray (2003) identifica, igualmente, que, no processo de imersão, o usuário está disposto a obedecer às regras daquele novo universo, e isso envolve tanto os aspectos das regras de navegação como da própria história. No caso do jogo, a narrativa se desenvolve por meio de uma sequencialidade articulada de ações que determinam o tempo e levam a transposições sucessivas de situações e estados (COLLANTES, 2013). Essa mesma característica de divisão sequencial é percebida na forma clássica de narrativa linear, com a divisão em três atos de uma história: apresentação, confrontação e resolução (FIELD, 2009). Vianna et al. (2013) compreendem que a utilização de elementos da gamificação contribui para o despertar de emoções do sujeito por meio da vivência de uma experiência de forma intensificada. Por ser o jogo uma forma narrativa, Gordon (2006) destaca que ambientes narrativos exploram histórias de experiências, e essas experiências são fundamentais para constituir a memória, a comunicação e o próprio conhecimento dos indivíduos.
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Gamificação em debate
Elementos dos jogos na gamificação
Os elementos dos jogos são muitas vezes abstratos e difíceis de serem especificados (SEABORN; FELS, 2015). Entende-se que, em qualquer contexto de jogo, o indivíduo assume um personagem e todas as suas ações são coerentes com esse papel assumido. O jogador aceita as regras estabelecidas pelo jogo para atingir algum objetivo por meio da superação de uma série de obstáculos. Essa relação em que o sujeito se transforma em outro, adaptado às condições impostas no jogo, também pode ser explorada na gamificação. Nesse aspecto, identifica-se que os jogos são constituídos por metas claras, divididas em objetivos de curto prazo (DE-MARCOS et al., 2014). Isso sugere uma sensação de progressão contínua e certa frequência de recompensas. Collantes (2013), ao comparar a estrutura dos jogos com a das narrativas, estabelece que, ao se desenvolverem os acontecimentos em uma história, cria-se um mundo independente da realidade do indivíduo, apesar de muitas vezes esse novo universo se referir à vida real. Da mesma forma, nos jogos são vividas realidades independentes que seguem uma lógica própria e uma natureza diferente da realidade cotidiana. A existência da narrativa tanto no jogo como na história é fundamentada em regras próprias com caráter generativo, ou seja, com capacidade de gerar outras novas regras. Utilizar a história como um elemento no contexto gamificado fornece relevância e significado para as experiências vividas pelo indivíduo, fornecendo contextos para a aplicação das tarefas (KAPP, 2012). A união dos jogos com conceitos das narrativas fornece material para a criação de histórias interativas que possibilitam o engajamento do indivíduo, levando-o a prosseguir na tarefa. Zichermann e Cunningham (2011) indicam que os mecanismos encontrados em jogos funcionam como um motor motivacional no indivíduo, contribuindo para o processo de engajamento nos mais variados aspectos e ambientes. Para Vianna et al. (2013), há quatro características de mecânicas dos jogos que são essenciais ao se desenvolver um artefato com base em gamificação: (1) a meta é o motivo pelo qual o indivíduo realiza a atividade ‒ resume-se no propósito designado para tal atividade, o qual o indivíduo persegue constantemente; (2) as regras têm a função de determinar a forma como o indivíduo deve se comportar e agir para cumprir os desafios do ambiente ‒ favorecem a liberação da criatividade e do pensamento estratégico, uma vez que buscam ajustar o nível de complexidade do sujeito às atividades que devem ser realizadas; (3) o sistema de feedback define as respostas do sistema ao indivíduo ‒ são as ferramentas por meio das quais o indivíduo se orienta sobre sua posição com relação aos elementos que regulam a interação dentro do universo; e (4) a participação voluntária estabelece que só há a real interação entre o indivíduo e o sistema quando o primeiro está disposto a se relacionar com os elementos do segundo ‒ para isso, o indivíduo deve aceitar a meta, as regras e o sistema de feedback propostos pelo ambiente. Elementos como narrativa, interatividade, suporte gráfico, recompensas, competitividade e ambiente virtual, entre outros, são construídos para criar uma relação de proximidade com metas, regras, feedback e participação voluntária (VIANNA et al., 2013). Garris, Ahlers e Driskell (2002) indicam a interatividade, as dinâmicas visuais, as regras, os objetivos, os
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papéis interpretados, as formas de controle, os múltiplos caminhos para o objetivo, os desafios e os riscos, a estratégia, a competição e as mudanças como tópicos com potencial de serem explorados em contextos gamificados. Entretanto, dentro de suas pesquisas, abordam seis grandes categorias que são aplicadas em qualquer contexto que envolva a sistemática de jogos com propósitos instrucionais: (1) fantasia: define um ambiente que promove situações – cognitivas, físicas ou sociais – que não existem; (2) regras e metas: as regras são a base para a estruturação das metas de um jogo, em que as restrições e regras do mundo normal são substituídas por aquelas no tempo e no espaço fixos do novo universo; (3) estímulos sensoriais: ao interagir em um mundo imaginativo, formado por outra realidade – com diferentes regras –, as sensações e as percepções dos indivíduos são distorcidas para se associarem a esse novo universo; (4) desafios: os indivíduos têm interesse em resolver desafios que não sejam nem tão fáceis nem tão difíceis de serem superados; (5) mistério: a curiosidade é um dos elementos motivadores para a aprendizagem, uma vez que parece ser uma tendência humana para se entender o mundo; e (6) sensação de controle: tem como referência a capacidade de fazer regulações ou comandar algo, além do exercício de autoridade sobre alguma coisa. Dentre outros elementos de destaque nos jogos, e incorporados nas estratégias de gamificação, destaca-se a possibilidade de o indivíduo se recuperar ao cometer erros, podendo repetir várias vezes uma dada tarefa (HANUS; FOX, 2015). No processo de aprendizagem, essa liberdade de fracassar nas atividades permite aos alunos aumentar seu envolvimento por meio de experimentações sem medo. Nessa perspectiva, Simões, Redondo e Vilas (2013) entendem que, em um contexto educacional, aspectos dos jogos, como repetição de experimentos, ciclos rápidos de resposta, níveis crescentes de dificuldade, diferentes possibilidades de caminhos, reconhecimento e recompensa, são significativos para a aprendizagem. Exploração das mecânicas dos jogos na gamificação
Entende-se que, para manter a motivação do indivíduo em qualquer ambiente, deve-se fornecer a ele estímulos de alta qualidade e com diferentes formatos (LI; GROSSMAN; FITZMAURICE, 2012). Vianna et al. (2013) salientam que, para se chegar a isso, na construção de qualquer artefato, é preciso apropriar-se dos elementos mais eficientes de um jogo – mecânicas, dinâmicas e estética – para a criação e a adaptação das experiências do indivíduo. Zichermann e Cunningham (2011) colocam que, no caso dos elementos dos jogos, os comportamentos intrínsecos estão baseados em três relações: as mecânicas, que compõem os elementos para o funcionamento do jogo e permitem as orientações nas ações do jogador; as dinâmicas, que são as interações entre o jogador e as mecânicas do jogo; e as estéticas, que dizem respeito às emoções do jogador durante a interação com o jogo. Essa relação resulta das relações anteriores entre as mecânicas e as dinâmicas, que levam à criação das emoções do jogador. Para Clementi (2014), as dinâmicas são o esboço do sistema, enquanto as mecânicas são os processos que levam às ações dos indivíduos, além de cada dinâmica levar ao
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desenvolvimento de uma mecânica. Por outro lado, a mecânica de um jogo é expressa na sua funcionalidade, representando o aspecto fundamental para qualquer contexto gamificado (MUNTEAN, 2011). Todavia, Kapp (2012) alerta que nem todas as mecânicas dos jogos devem ser utilizadas em um contexto gamificado, como emblemas, pontos e recompensas. Muitas dessas estão atreladas a motivações externas, o que pode prejudicar o engajamento e a motivação do indivíduo. Por outro lado, os elementos com poder em um ambiente gamificado são: narrativa, visualização de personagens e resolução de problemas. Esses são os fundamentos pelos quais um sistema gamificado é construído, favorecendo que o engajamento e a aprendizagem sejam passados para outro nível. Considerações finais
Este capítulo partiu de uma revisão e uma reflexão teóricas que objetivaram a discussão do conceito de gamificação, partindo de cinco tópicos que a fundamentam. Entende-se, dessa maneira, que a gamificação compreende uma estratégia de resolução de problemas, investindo na elevação e na manutenção dos níveis de motivação e engajamento. Utiliza, para isso, bases e sistemáticas comuns aos jogos e teorias sobre narrativa. Por outro lado, busca envolver a experiência completa do indivíduo, transportando-o para um universo controlado. Nesse ambiente, envolve o indivíduo em novas regras, acelerando a geração e a aplicação do conhecimento. A gamificação surte efeitos positivos no processo de aprendizagem, enfatizando o engajamento do sujeito e contribuindo para o melhor aproveitamento da mediação e da construção do conhecimento. Concentra esforços na autonomia do aluno em um ambiente controlado, em que os conteúdos de domínios específicos são subdivididos e tratados como etapas em um contexto envolvente, correlacionando aspectos cognitivos, sociais e emocionais. Por outro lado, o foco da gamificação está em explorar as motivações internas dos alunos e, nesse caso, a aplicação pura e simples de mecânicas básicas dos jogos no processo pode acarretar resultados negativos. Basicamente, para que seja efetiva, deve-se investir em situações fora do cotidiano, favorecendo a aplicação da curiosidade, da satisfação e da confiança do aluno. Os elementos comuns aos jogos, como narrativas, metas, regras, feedbacks, desafios, estímulos e a possibilidade de realização de um caminho próprio, contribuem para a construção da experiência dentro do ambiente gamificado, favorecendo a participação voluntária do indivíduo. Dessa maneira, a aplicação de mecânicas e dinâmicas específicas, compartilhadas com os jogos, contribuem para a participação no sistema gamificado. Referências AMORY, A. et al. The use of computer games as an educational tool: identification of appropriate game types and game elements. British Journal of Educational Technology. v. 30, n. 4, p. 311-321, 1999. BIRÓ, G. I. Didactics 2.0: a pedagogical analysis of gamification theory from a comparative perspective with a special view to the components of learning. Procedia ‒ Social and Behavioral Sciences, v. 141, p. 148-151, 2014.
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Gamificação e o processo de concepção de bens de consumo
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André Neves Clarissa Sóter Simone Barros
O design
No contexto deste capítulo, tratamos o design como atividade pela qual se projetam todos os tipos de artefatos, incluindo utensílios, vestimentas, peças gráficas, livros, máquinas, ambientes, softwares, games etc. Especificando o conceito, adotamos a abordagem moderna da filosofia, com o design referindo-se a objetividade, propósito, se interpondo entre ideias clássicas de sujeito e objeto. Entendemos o design, portanto, como o oposto à criação arbitrária, sem objetivo. Design enquanto processo
Não pretendemos, aqui, apresentar uma visão ampla e detalhada da evolução dos processos e dos métodos de design, no entanto, descreveremos de forma sucinta essa evolução para podermos contextualizar nossa investigação. Iniciamos nossa descrição a partir da década de 1960, quando as pesquisas envolvendo os processos e os métodos de design ganharam volume. Motivados pelo aumento da complexidade dos problemas e da quantidade de informação envolvida na busca de soluções e, principalmente, pela grande e variada demanda de projetos, buscava-se abrir a caixa-preta do processo de concepção para tornar clara e transparente a atividade de design. A intenção aí era essencialmente permitir a reprodutibilidade da ação. Surge, então, uma primeira geração de processos de design, estruturada de forma linear, em que cada fase do processo ocorre após o fechamento da anterior. De uma maneira geral, inicia-se o processo por uma ampliação de informações a respeito do problema, seguida por fases de geração de alternativas e, depois, seleção da melhor solução. Nesse período, os produtos eram desenvolvidos e lançados no mercado para, então, se verificar sua aceitação; o caminho de concepção ia da “fábrica” para o usuário. Dentre os
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métodos utilizados no processo de design da época, destacamos o brainstorming clássico, a caixa morfológica e o diferencial semântico. Esses processos foram influenciados, principalmente, pela indústria aeroespacial e têm como autores marcantes Asimov (1962), Alexander (1964), Rittel (1984), Jones (1992), Munari (1998) e Löbach (2001). Com o avanço das pesquisas em metodologia e o amadurecimento da atividade do design, surge uma segunda geração de processos de design, marcada, principalmente, pelo fato de as fases não ocorrerem mais de forma linear, mas cíclica, em que uma fase realimenta a outra e o designer pode voltar à fase anterior em qualquer ponto do processo. Nessa segunda geração, surgem os métodos centrados no usuário, argumentativos, com soluções reguladas pela satisfação, tendo usuários como parceiros na definição da solução. Dentre os novos métodos desenvolvidos, destacamos a definição de personas, a construção de cenários e as técnicas de imersão. Assim, um olhar amplo da evolução dos métodos de design aponta para um caminho que sai do ambiente hermético das fábricas e se abre para o mundo exterior. Nesse sentido, acreditamos que uma próxima geração de métodos de design vem se instalando no contexto global, adotando estruturas ainda mais dialógicas com o mundo real. Em nosso trabalho de pesquisa, buscamos uma abordagem orientada aos métodos dessa nova geração emergente, tomando o sujeito como ponto de partida e guia de nossas premissas e decisões enquanto designers. Design enquanto pensamento
Os últimos anos foram extremamente relevantes para a atividade de design no cenário mundial, e a banalização do termo design thinking nos mais diferentes contextos trouxe à tona uma série de questões para a área. Por um lado, um grande número de designers e pesquisadores da área têm sido críticos ao uso popular da expressão, considerando que desvaloriza a profissão, fazendo parecer que qualquer pessoa, mesmo sem a formação acadêmica, poderia atuar como tal. Tal fenômeno serviu como incentivo ao nosso grupo de pesquisa para um debate mais amplo sobre o entendimento que temos do que venha a ser, de fato, esse “pensamento do design”. De imediato, parece-nos óbvio que é preciso separar a profissão do designer da atividade empírica de design. Acreditamos que sim, todos projetam artefatos, uns mais formalmente, outros menos. Faz parte da natureza humana modificar o seu entorno para adaptar objetos de acordo com as necessidades. É nesse sentido que entendemos o design thinking como um modus operandi que, independentemente do nível de formalismo adotado, ocorre sempre que projetamos um novo artefato. Esse pensamento se dá em dois passos principais: o de divergência, quando se criam possibilidades de solução para determinado problema, e o de convergência, quando se escolhe a melhor opção para solucioná-lo. Essa convergência se dá essencialmente com base em três variáveis: a desejabilidade, a factabilidade e a viabilidade da solução proposta.
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Nosso trabalho de investigação nos últimos dez anos se dá em torno de um projeto comum: a construção de uma metodologia de design que utilize elementos de jogos como forma de dar suporte a equipes multidisciplinares para entenderem e aplicarem mecanismos mais formais do design. Além disso, há o envolvimento dos participantes, que, ao serem convidados a projetar, o fazem de forma lúdica. Com essa abordagem, pretendemos que atores diversos participem do processo trazendo uma linguagem contemporânea e associada à ludicidade como elementos facilitadores de uma aproximação das técnicas e dos métodos do design ao senso comum. Design Thinking Canvas
O Design Thinking Canvas (DTC) é uma metodologia contemporânea criada para orientar equipes em atividades de projeto de artefatos com características inovadoras. Foi construída nos últimos 10 anos a partir de pesquisas desenvolvidas no Laboratório de Pesquisa em Jogos Digitais (GDRlab) do Departamento de Design da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), sob a orientação do professor doutor André Neves e validada por dezenas de trabalhos de mestrado e doutorado. O DTC faz parte de uma vanguarda de metodologias baseadas na observação do problema e no entendimento da necessidade natural, em constante evolução, diante da modificação das realidades tecnológicas, produtivas, simbólicas e estéticas do mercado consumidor. A inovação mais relevante do DTC é o uso de elementos de jogos como base para auxiliar equipes de design na execução de métodos e técnicas de design. Originalmente, a metodologia se propôs a orientar o mercado de artefatos digitais do estado de Pernambuco, em busca de inovação. O diálogo entre equipes multidisciplinares, o bom uso das tecnologias digitais disponíveis e o enfrentamento das dificuldades relacionadas a tempo e orçamento eram os elementos motivadores para o desenvolvimento de uma nova forma de projetar. Hoje, o DTC é utilizado nos mais diversos campos do design, em mais de 90 países, expressivamente na América Latina, nos Estados Unidos e na Europa. O princípio básico do DTC é similar aos utilizados para a construção de modelo de negócios para empresas de Osterwalder (2012) e para construção de modelos de negócios para produtos de Maurya (2012). Esses autores propõem um conjunto de informações que devem ser levadas em consideração e uma estrutura para organizá-las e visualizá-las, numa espécie de mapa descritivo formado por blocos (decks ou tabuleiros) de informações. No DTC, esses decks são baseados em métodos e técnicas específicos do design que se interconectam continuamente, apoiados por pontos de iteração que garantem clareza ao longo do processo, facilitando a comunicação sobre as decisões de projeto em equipes multidisciplinares ao criar uma plataforma de informações que podem ser visualizadas e discutidas em qualquer momento do projeto.
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O DTC utiliza métodos e técnicas clássicos do design adaptados para preencher as informações em cada bloco da plataforma – por exemplo, a técnica de persona proposta por Cooper (2008). Além disso, todo o sistema é beneficiado pelo uso de cartas como registro de atividades essenciais do processo de design, o que facilita o reuso de informações entre os projetos e as equipes. A questão da gamificação é criar expectativa, ação e recompensa típicas do ato de jogar. Essa lógica em tríade, aliada a aspectos lúdicos e elementos como pontuação, ranking, metas e desafios, serve como alternativa para engajar os participantes dos projetos e universalizar a linguagem. Essas estratégias podem ser vistas em autores como Salen e Zimmerman (2004), Muntean (2011) e Zichermann e Cunningham (2011). Acreditamos que essa gamificação do processo, que oferecemos pelo uso das cartas, é o que gera o engajamento das equipes e a facilidade de entendimento de cada etapa. A validação dessa afirmação vem com as pesquisas sobre o tema e os autores-base, mas também se dá ao observar os alunos nos projetos com e sem as cartas. Quanto ao processo de design propriamente, o DTC se organiza em quatro fases que acompanham o ciclo de vida do projeto: (1) observação ‒ quando se define o cenário de uso do produto e as características do público-alvo (persona) e se analisam possíveis oportunidades e concorrentes; (2) concepção ‒ quando as ideias são geradas, avaliadas e selecionadas; (3) configuração ‒ quando são tomadas decisões quanto à função do produto, bem como à sua forma (estética); (4) publicação ‒ quando ocorre o lançamento e a validação do projeto junto ao mercado consumidor. No DTC, o registro dos dados coletados durante a fase de observação é exposto em cartas com informações sobre o contexto para o qual o projeto se destina e os possíveis usuários dos produtos, além de dados sobre artefatos existentes no mercado que podem servir como referência. Sugerimos a construção de um bloco de cenário formado por quatro cartas que exponham onde o artefato será utilizado, quando será utilizado, quem fará uso desse produto e por quê. É fundamental, também, buscar o máximo de informações a respeito dos sujeitos que potencialmente utilizarão o artefato, para se ter uma base de conhecimento em torno do tema do projeto. Nessa perspectiva, sugerimos um deck de persona, com cartas que representem o usuário típico do artefato a ser projetado e suas principais atividades associadas ao contexto do projeto. O mais importante nessa fase de construção do contexto é inferir oportunidades a partir da observação de problemas enfrentados pelos usuários pertencentes ao cenário para o qual se projeta. Para isso, criamos um bloco de oportunidade, construído a partir dessa imersão nos problemas enfrentados pela persona. Iniciamos o método listando os principais problemas observados e anotando-os em cartas auxiliares montadas em torno de uma carta principal, na qual descrevemos qual oportunidade será o foco do projeto. Por fim, ainda na fase de observação, deve-se construir um bloco de concorrentes, com cartas contendo informações a respeito de artefatos já existentes no mercado que poderiam concorrer com o produto a ser projetado. A ideia aqui é formar uma espécie de catálogo, composto de imagens dos similares do produto e uma breve descrição de seu funcionamento.
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Como segunda etapa do canvas do DTC, tem-se a fase de concepção, ponto realmente criativo do processo. Essa fase é dividida em cinco: diferencial; proposta de valor; ideias; solução; e experiência de uso. Todos os blocos são compostos por cartas construídas com base em métodos que facilitam o processo criativo, inspirados nos dados obtidos durante a fase de observação. No deck de ideias, destacamos duas técnicas que foram adaptadas para possibilitar a ideação: caixa morfológica e brainwriting, ambas populares para a geração de ideias no campo do design. No caso da adaptação da caixa morfológica, as cartas vindas das outras fases do processo (persona, atividade e proposta de valor) são adicionadas a mais duas cartas de referências, uma de um elemento da natureza (biônica) e outra de um elemento produzido pelo homem (cinética). A intenção é fazer a equipe pensar “fora da caixa” do que foi visto até então e influenciar as ideias para as questões tecnológicas e biológicas. A outra ferramenta de ideação é a técnica brainwriting, com um formulário de papel contendo uma adaptação do método 6-3-5 (seis pessoas, três ideias cada, cinco rodadas) de Bernd Rohrbach. Nesse processo de geração de ideias, o número de participantes é livre e as cartas desenvolvidas durante a fase de observação também são usadas para fornecer informações fundamentais. Deve ser selecionada a ideia com maior potencial para atender às expectativas tecnológicas, econômicas, sociais e culturais do usuário. Para isso, são usadas heurísticas básicas do design thinking, que mencionamos anteriormente: a desejabilidade, a factabilidade e a viabilidade. Posteriormente, tem-se a fase de configuração, na qual ciclos iterativos evoluem a ideia até que ela obtenha forma, podendo ser repetidos até que um resultado satisfatório seja alcançado. São dois blocos: função e forma. O primeiro serve para representar como o sistema funciona e deve se basear nas atividades determinadas para a persona. No segundo são usadas cartas de referência que representem o repertório estético da persona e sirvam para orientar a configuração morfológica do artefato projetado. Uma parcela do mercado ainda defende que o trabalho de design termina com a configuração do artefato, ou seja, na fase de configuração descrita. Porém, no DTC, consideramos ser atribuição da equipe de criação a definição de estratégias para direcionar o lançamento dos artefatos, principalmente pelo fato de a metodologia ser baseada em modelos de negócio. Então, tem-se a última etapa da metodologia, a fase de publicação do artefato, que consideramos bilateral pois envolve um planejamento que interfere no produto, mas ao mesmo tempo é induzido por ele. Nesse sentido, três grupos de estratégias ligadas ao lançamento do produto são definidos ainda durante o projeto: aquisição – estratégias que envolvem diretamente atração de usuários; retenção – estratégias com a finalidade de manter o usuário fiel ao artefato; e monetização – estratégias relacionadas aos diferentes modelos de negócio a serem explorados em torno do artefato. Acreditamos, com essa última fase, dar ênfase a um dos principais fatores de sucesso de um artefato: suas estratégias previstas e adotadas para atrair a atenção de potenciais usuários. Destacamos a importância da participação da equipe de design nessa fase, pois há uma
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influência do produto nas estratégias de aquisição. O inverso também pode ocorrer, pois, a partir de algumas estratégias de aquisição, pode ser necessário incluir características no artefato para viabilizar seu lançamento. Outro conceito extraído do design thinking é a necessidade de tornar o produto economicamente viável. Algumas dessas estratégias podem demandar ajustes no produto, por isso sugerimos que essas definições sejam realizadas durante o processo de design, e não depois de seu lançamento. Resultados
Em novembro de 2013, o DTC foi disponibilizado em formato de aplicativo digital na Apple Store. Foram realizados 1.015 downloads nos primeiros dois meses do lançamento e, ao longo de 2014, 4.353 usuários baixaram o aplicativo. Em 2015, o volume de procura teve uma média de 10 downloads diários, que se mantém até os dias de hoje, repetindo um total de 3.500 downloads por ano. O DTC tem sido utilizado, principalmente, nos seguintes países: Brasil, EUA, México, Espanha, Alemanha, Chile, Colômbia, Portugal e França. No Reino Unido, na Austrália e na China há também um bom número de usuários. Além desses, foram realizados downloads em outros noventa países. Na categoria Business da Apple Store, o aplicativo do DTC esteve entre os cinco melhores do ranking em dois países, foi o décimo melhor em dez países e ficou entre os cem melhores aplicativos em cinquenta países, números bastante significativos por se tratar de um aplicativo com um fim muito específico. Ao longo desses dez anos de construção do DTC, muitos projetos foram desenvolvidos junto a alunos de graduação, mestrado e doutorado, bem como muitos desses projetos participaram diretamente como validação e melhoria da metodologia, principalmente aqueles que testaram o DTC em diferentes contextos e/ou testaram ferramentas sugeridas pelo DTC para determinadas fases do projeto. De uma maneira resumida, expomos aqui alguns resultados práticos da aplicação do DTC em projetos cujos resultados deveriam ser, e foram, inovadores, assim como estudos provenientes das pesquisas científicas executadas, a maioria tendo como orientador o professor doutor André Neves. É importante frisar que muitos outros projetos poderiam ser citados, bem como muitos outros resultados. Destacamos alguns aqui para deixar explícita a relevância da nossa metodologia para o mercado de inovação, seu percurso no âmbito dos projetos acadêmicos e sua flexível aplicabilidade em diferentes contextos do design. Assim, temos no âmbito da graduação em Design os resultados da disciplina Design Contemporâneo, entre 2012 e 2014, como primeiro exemplo. Nessa disciplina, grupos de alunos foram orientamos a explorar os principais métodos e técnicas contemporâneos do design para, posteriormente, desenvolverem produtos inovadores a partir do uso do DTC. O foco foi a observação de oportunidades locais e a utilização de tecnologias disponíveis. Os resultados dos projetos foram bastante relevantes em termos de bens de consumo materiais e imateriais, a saber: um aplicativo para fidelização de clientes em restaurantes;
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uma rede social para cinéfilos; um app que detecta bactérias presentes no ambiente; uma geladeira com mudança cromática que alerta para a falta de alguns itens; um sapato desmontável e customizável para diferentes ocasiões; uma jukebox digital; um colar para refrescar o visitante dos mercados públicos do Recife por meio de mecanismos robóticos; um site/ app para divulgar e vender o trabalho de artistas de rua baseado na interação em redes sociais; e um artefato de LED que auxilia profissionais de educação física, entre outros. Já com estudantes da graduação em Portugal, usamos a metodologia em dois projetos, um de baixa complexidade ‒ puxadores de móveis infantis ‒ e um de alta complexidade ‒ mobiliários urbanos para abrigar antenas de comunicação. Ambos os projetos foram executados em parceria com empresas locais, para responder a demandas reais e com foco em inovação. A intenção foi aplicar a metodologia para projeto de produtos tangíveis e com apelo sustentável. Essa experiência serviu como experimento de validação do DTC em outra realidade, fora do contexto da UFPE (onde a metodologia já era empregada), e teve resultados satisfatórios quanto à tentativa de inovar pelo viés da sustentabilidade. No projeto de puxadores para móveis infantis, obtivemos: puxadores desenvolvidos com PET reciclado e com sistema de LED para economizar energia; puxadores feitos de madeira reciclada e que acompanhavam o crescimento das crianças; e puxadores maleáveis de borracha reaproveitada com função sensorial, entre outros. No projeto dos mobiliários urbanos, apresentaram-se: estruturas para aproveitamento de água da chuva; estruturas com painéis de energia solar; e móveis para hortas comunitárias, entre outros. Na disciplina Tópicos em Design de Artefatos Digitais, do mestrado em Design, também houve a divisão de grupos com o objetivo de desenvolvimento de um artefato digital. Os resultados foram mais maduros, pois houve a discussão das fases do DTC e das técnicas de design envolvidas. Os resultados tiveram um viés mais social: app para monitorar idosos em situação de isolamento; sistema para incentivar doação de sangue; e plataforma para organizar pacotes turísticos para idosos, entre outros. Recentemente, aplicamos o DTC em uma disciplina de Metodologia de Design para alunos do mestrado profissional da Faculdade Cesar, em Recife. Dessa vez, utilizamos um canvas de formato reduzido (sem prototipagem) em busca de ideação para inovação, sob as temáticas desenvolvimento social e igualdade de gênero. Os resultados foram uma rede de empoderamento e ajuda para mulheres em situação de risco e uma rede de educação por meio da construção de instrumentos musicais com crianças trabalhadoras de canaviais. No âmbito acadêmico, mencionamos estudos que, ao longo desses dez anos, contribuíram para a construção da metodologia e validaram sua aplicabilidade em diferentes contextos. Por exemplo, a aplicação de uma versão prévia ao DTC, por Alves (2011), chamada Persona Card Games no desenvolvimento de jogos de tabuleiro e estampas de camiseta, com o objetivo de comprovar que a metodologia poderia ser utilizada em diferentes áreas do design sem perder suas características e suas propriedades. Esse estudo ajudou a nortear as especificações do DTC.
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Outro projeto, cujos modelo proposto e discussões também serviram como validação prévia do DTC, teve por objetivo auxiliar a indústria de jogos e entretenimento digital do estado de Pernambuco, destacando a importância da pesquisa com usuários. A partir de entrevistas com designers e gerentes de criação, Oliveira (2010) sugeriu a aplicação do método de personas acrescido de maior conteúdo imagético e reuso de dados, que chamou de Card Persona. Um terceiro exemplo acadêmico foi realizado por Araújo (2015), em que discutiu planos de negócios tradicionais e modelos de negócios que utilizam um canvas. Dentro dessa perspectiva, o trabalho faz uso de métodos de design, mais especificamente da técnica de personas, para construir as informações e preencher o tabuleiro de clientes, verificando, ao final, uma significativa evolução na profundidade analítica da fase. Assim, o trabalho se tornou importante ao estudar e demonstrar como as técnicas de design podem auxiliar a construção da informação dentro desses modelos de negócio baseados em canvas, o que ajudou a evolução do DTC nesse sentido. Em 2014, foi desenvolvido um modelo de gerenciamento de projetos a partir do uso de conceitos de gamificação em atividades cotidianas no ambiente de trabalho. Os resultados obtidos comprovaram a hipótese inicial de que o uso de elementos provenientes dos jogos ajudaria na motivação e na retenção de pesquisadores. Essa pesquisa, de Beem (2014), serviu para validar o conceito sobre a gamificação dos processos de design, uma forte característica do DTC. Em 2015, foi detectada uma dificuldade referente à captação de recursos para financiar os projetos em jogos digitais, uma possível deficiência na aplicação de modelos de negócios. A pesquisadora responsável, então, fez uma crítica aos estudos da área de jogos por focarem na criação dos jogos em si e não na forma como estes serão inseridos no mercado e se tornarão rentáveis. Como resultado desse esforço, Vargas (2015) desenvolveu uma ferramenta de aplicação prática para construção de modelos de negócios para o mercado de jogos. Essa pesquisa serviu para validar o canvas e definir o escopo da metodologia DTC lançada em formato app. Mais recentemente, uma das estudantes do mestrado propôs a elaboração de um ambiente de trocas e conexões para dar suporte às ações dos pesquisadores e facilitar as ações de formação e produção de dispositivos educacionais. Para isso, Simona (2016) utilizou o DTC em uma aplicação web (multiplataforma) para professores e pesquisadores e demonstrou o vasto escopo de alcance do DTC nos mais diferentes tipos de projeto. Ao final desses exemplos, lembramos que muitos outros projetos poderiam ser citados aqui, e muitos outros resultados poderiam ser discutidos. Destacamos alguns para mostrar a relevância da metodologia para o mercado de inovação, seu sucesso no âmbito dos projetos acadêmicos e sua flexível aplicabilidade em diferentes contextos de pesquisa e prática do design. Conclusões e desdobramentos
O volume expressivo de downloads do aplicativo e o grande fluxo de pessoas na fanpage e no site do DTC indicam que este vem despertando o interesse de diferentes áreas. Além disso, os relatos deixados por parte desses usuários apontam para projetos que envolvem não apenas produtos digitais, mas serviços ou produtos físicos, nas mais diferentes esferas do design.
Gamificação e o processo de concepção de bens de consumo
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Os resultados das disciplinas nas quais aplicamos o DTC demostram que metodologias lúdicas como a que propomos podem ser aplicadas no ensino do design, nos mais diferentes contextos. Assim, também os trabalhos dos alunos de áreas externas ao design demonstram que a metodologia resulta em ideias de produtos inovadores e cumpre com sua função de “gamificar” o processo, tornando o ambiente de concepção do produto mais interessante, divertido e multidisciplinar. Referências ALEXANDER, C. Notes on the synthesis of form. Cambridge: Harvard University Press, 1964. ALVES, V. T. Aplicação do Persona Card Game em design de jogos não eletrônicos e estamparia de camisetas. 2011. 139 f. Dissertação (Mestrado em Design) – Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2011. ARAÚJO, A. Métodos de design como instrumento para construção de modelos de negócio. 2013. Dissertação (Mestrado em Design) – Centro de Artes e Comunicação, Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2015. ASIMOV, M. Introduction to Design. New Jersey: Prentice-Hall, 1962. BEM, R. F. S. Projeto Ludus: uma metodologia gamificada de gerenciamento de projetos. 2014. Dissertação (Mestrado em Design) – Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2014. BOMFIM, G. A. Metodologia para desenvolvimento de projetos. João Pessoa: Editora Universitária/UFPB, 1995. COOPER, A. The origin of personas. May 15 2008. Disponível em: . Acesso em: 4 fev. 2018. JONES, J. C. Design methods. 2. ed. Indianapolis: Willey, 1992. LÖBACH, B. Design industrial: bases para configuração dos produtos industriais. São Paulo: Blucher, 2001. MAURYA, A. Running lean: iterate from plan A to a plan that works. Sebastopol: O’Reilly Media, 2012. MUNARI, B. Das coisas nascem coisas. São Paulo: Martins Fontes, 1998. MUNTEAN, C. I. Raising engagement in e-learning through gamification. In: 6TH INTERNATIONAL CONFERENCE ON VIRTUAL LEARNING, 6., 2011, Cluj-Napoca. Proceedings… Cluj-Napoca: University of Cluj-Napoca, 2011. p. 323-329. NEVES, A. Design Thinking Canvas 2.0. 2014. Disponível em: . Acesso em: 4 fev. 2018. OLIVEIRA, B. Cards Persona: aplicação da técnica de personas na criação de jogos digitais. 2010. 116 f. Dissertação (Mestrado em Design) – Centro de Artes e Comunicação, Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2010.
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Gilson Schwartz
Crise e teoria crítica do capital em jogo
A crise capitalista que resultou da hipertrofia do jargão tecnológico levou a uma ampliação midiática da subjetividade e sua reconfiguração digital como nova alienação. A crítica adorniana é, portanto, plena e legitimamente válida. O elogio da disrupção é o sintoma simbólico do esvaziamento do capital. Do jazz à internet e, nesta, aos games, há uma evidente simetria de funções e mobilizações midiáticas e industriais – é mais que possível a analogia com a sociedade do consumo impossível. Pesquisar a economia política da diversidade digital na sociedade do espetáculo: eis uma forma geral a partir da qual o game digital faz sentido e pode, eventualmente, apontar caminhos de emancipação. Eis o objetivo adorniano central desse projeto de estudos interdisciplinares cujo horizonte conceitual é a emergência de uma economia política dos ícones (ou “iconomia”). Este capítulo propõe um rastreamento dessa percepção crítica de uma nova economia política nos trabalhos (sobretudo na crítica à epokhé da disrupção) de Bernard Stiegler e, num fundo mais distante, porém ainda pertinente, uma economia política da imagem inspirada em Simondon, projetada sobre os desafios de monetização abertos pelos modelos de destruição criativa típicos das economias de plataforma audiovisuais. Esse é o contexto no qual precisamos aninhar uma visão emancipatória e crítica dos games e da própria “gamificação”: que potencial transformador ou agonístico realizam as redes em que se reconfiguram as indústrias, as finanças e o meio ambiente? Além da inteligência coletiva dessa economia criativa, plasmada numa cultura audiovisual ou do espetáculo, a produção real e simbólica dessa iconomia tornou-se indissociável da emergência de cidades globais que pressupõem novas formas de destruição do Estado e das corporações empresariais e sindicais. As redes digitais não produzem essa reconfiguração de modo ingênuo, caótico ou puramente espontâneo, como indicam os dados sobre concentração e centralização de capitais transnacionais e multissetoriais, com forte dominância financeira e do complexo industrial-militar no design do playground da contemporaneidade.
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As formas assumidas por essa “época sem futuro” (STIEGLER, 2016, tradução nossa) e, portanto, sem autênticas vontades individuais ou coletivas marcam o comportamento cotidiano das pessoas inseridas nisso que nos acostumamos a chamar de “redes sociais” (como se alguma rede ou tecnologia pudesse existir sem ser social, sem negatividade), mas reorganizam o mundo e obrigam a espécie humana a se alienar de uma nova forma e a buscar novos modos de emancipação, inteligência e autêntica diversificação cultural e instrumental. A economia política que aproxima a negatividade da produção intelectual, cultural ou simbólica é a mesma que justifica uma nova oportunidade revolucionária. Do jazz à internet, algum canibalismo sistêmico é sempre possível, antropofagicamente. Os games, como o cinema e outras artes industriais, criam oportunidades de horror ainda mais profundo ao atualizar a crítica adorniana ao jargão fascista, mas também oferecem e recuperam um legado já significativo como estruturante da modernidade e da pós-modernidade, que é a evolução da competência coletiva de operar com a metanarratividade pela negatividade da racionalidade técnica e instrumental. Este, aliás, parece o projeto inspirador da ars industrialis que articula o legado da obra de Bernard Stiegler a uma necessária atualização da economia política que seja capaz de extrapolar a negatividade do capital digital, intelectual e iconômico. Essa nova economia política adorniana é também esfera de valorização da imaginação simondoniana, sócio-técnica e aberta a novos modelos de resistência (e reexistência) criativa frente à marcha acelerada rumo à automação informacional, à precarização do trabalho vivo e à alienação de massa pelo consumo insustentável realimentado de males infinitos e consciências programadas para seres perpetuamente pacíficos e infelizes. Discutir essa guinada adorniana/simondoniana da economia política – que eu denomino “iconômica” – é condição para fazer a crítica à economia política da convergência dos letramentos midiáticos, informacionais e criativos que reverberam nas redes digitais e nos convidam a pensar a diferença e o risco de supressão da diversidade, bem como o potencial de emancipação em novas dimensões da organização digital da economia, da ciência e da cultura. Os games, mais que um “caso” ou “segmento” de mercado, carregam, além da dimensão mercantil e técnica, a condição icônica; têm uma evidente dimensão tecnológica, mas também uma dimensão audiovisual, icônica e utópica. Assim, mais que preço ou precificação, estamos entrando numa dimensão de apreço, de apreciação em cadeias de valor biopolítico em que, de fato, a vida no planeta está em jogo e a consciência da metanarrativa é crucial para evitar o game over. No universo dos games e da gamificação, ganha foro de expansão infinita um horizonte de valor que é o da “iconomia”. Mais que o valor de mercado, é o próprio nomos (lei) que passa a ser definido por associação a ícones, na dimensão do intangível, programados por um código visual, imaterial, real e simbólico ao mesmo tempo. Nesse contexto pós-humano, a opção shakespeariana fica entre “programar” e “ser programado” (RUSHKOFF, 2010). A trilha aberta pela gamificação pressupõe uma economia política dos ícones que terá como resultado um panorama interdisciplinar voltado a essa emergência contemporânea em territórios urbanos globalizados e marcados pela errância periférica de indivíduos, comunidades e nações, numa rede digital que aparece como se não tivesse um centro.
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A convergência entre “inclusão digital” e uma nova esperança na força criativa dos indivíduos tornou-se comum tanto a pensadores liberais que fazem apologia ao sistema capitalista, como Richard Florida (que já celebrava a emergência da “classe criativa” em sua obra de 2002), quanto a teóricos de um novo marxismo autonomista (destacam-se os italianos que definem os horizontes do capitalismo a partir do “trabalho imaterial” ou “pós-fabril”, como Maurizio Lazzarato e Antonio Negri em 2001 e, mais recentemente, em 2016, uma síntese crítica em Christian Fuchs). Há um solo comum às abordagens que se apresentam como antípodas: trata-se de uma convergência entre trabalho e lazer, o consumo fora da fábrica e do controle industrial torna-se parte produtiva do sistema econômico. É o fim da classe operária, substituída por uma massa intelectualizada que consagra a convergência entre capital e conhecimento. A criatividade humana individual torna-se a força motriz na vanguarda do desenvolvimento econômico e o principal motor produtivo. O trabalho contemporâneo torna-se, desse modo, um processo de autoexploração (BROUILLETE, 2010). Uma combinação da perspectiva radical com a ultraliberal compõe o discurso de movimentos na periferia do sistema. Tropicalizado, o discurso da convergência digital no mundo do trabalho, que se confunde com a autorrealização de uma vontade livre, serve muito bem ao projeto de tornar o Brasil um importante espaço de consumo global no rescaldo da privatização do setor de telecomunicações. Contudo, visto a partir da periferia do sistema capitalista global, há uma tendência real para a emergência de uma cultura participativa liderada pela convergência digital? Quais são os protagonistas sociais do novo quadro da participação política? Qual é o papel das culturas populares e dos ativistas na promoção dessa convergência entre uma ideologia participativa e a pregação em torno de um novo modelo pós-fabril que, aparentemente, nos leva para além do dualismo estrutural entre centro e periferia, capital e trabalho, Estado e mercado? Será que o paradigma do MIT confirmado pela geopolítica da dominação econômica da internet e pelo controle corporativo das infraestruturas de telecomunicações permite de fato a emergência de uma nova confiança na apropriação da renda e na criação de riqueza em um mundo sem barreiras ao empreendedorismo e à capacitação contínua e descentralizada? Será que a juventude, beneficiando-se dessas tecnologias convergentes via “startupismo”, “artivismo” e a ocupação libertária de novos espaços públicos, pode assumir um protagonismo que desembocará numa “primavera política global”, mudando efetivamente as “regras do jogo”? A gamificação veio para reconfigurar o espaço de jogo e o tempo da partida, trazendo para primeiro plano esse elogio da disrupção associado por Stiegler a formas inovadoras, emergentes e simbólicas de fascismo. Como nos anos que se seguiram à crise de 1929, há um florescimento de posições radicais e o extremismo ideológico ganha contornos instrumentais que a democracia apenas faz aprofundar ainda mais, acentuando a dimensão do agon (referente a diferentes tipos de disputa) que é essencial ao lúdico (já identificado em Homo Ludens (2008), de Joan Huizinga). Para examinar oportunidades, espaços e tempos dos games na sociedade contemporânea e pós-humana, ou seja, como os games afetam as relações entre pensar, fazer e brincar
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na sociedade do conhecimento digital, é essencial levar em conta um necessário recuo inicial para o berço da civilização ocidental, a “Paideia” grega, indissociável de uma “paidía” (brincadeira infantil) e da própria “infância” do pensamento ocidental, de uma perplexidade ao mesmo tempo maravilhada e agonística que surge dos nossos encontros com as coisas, as pessoas e as representações simbólicas com as quais nos identificamos apenas e na medida em que também participamos com essas “coisas” de conflitos reais. Muito antes de Descartes e dos computadores em rede, a Antiguidade enquadrou a educação como parte de uma cultura onde há evidente associação entre criação de valores ou ícones e jogos, que foram desde sempre pensados como intrínsecos ao projeto da “pólis”. Esse parece ainda o melhor antídoto para as visões ingenuamente cartesianas e calculistas que em última análise serviram (e ainda servem) para a manutenção dos mecanismos instrucionais e correcionais contemporâneos. Frente ao fascismo panóptico digital emergente, sempre será possível buscar uma pedascopia lúdica. A arquitetura da informação dos jogos inspira novas linguagens e gêneros e pode ser também a matriz criativa para redesenhar ensino e aprendizagem, direitos humanos e cidadania e territórios de condomínio e de favelização, superando os modelos fabris e prisionais. Desde Brinco, logo aprendo (SCHWARTZ, 2014), defendo essa atenção histórica para o sentido sistêmico e político da “gamificação”, com ênfase no potencial criativo e libertário do brincar digital, sem negar que essa disposição emancipatória requer uma percepção, ainda que panorâmica, das práticas coletivas autônomas, bem como das indústrias comunicacionais que se consolidaram globalmente a partir do século XX. Gamificação de espaços públicos e reinvenção da política
A “pólis” representa uma forma de convivência e governo em que a verdade requer o contraponto de opiniões, e a assembleia é um espaço onde a razão descobre um tempo que já não se volta apenas aos mitos do passado, pois é um tempo agonístico que se torna visível por uma medida que espelha o ajuste entre as partes, definindo uma geometria de proporções em que o humano define a si mesmo como a medida de todas as coisas. A criação de leis, nesse contexto, é sempre tabuleiro de conflitos (não apenas a luta de classes, mas de categorias profissionais, setores culturais, religiosos, empresariais etc.), o jogo de (re)criar regras é a dimensão crítica transversal a todos os jogos. Essa “gamificação” essencial é também fonte da inspiração de seres humanos tocados pela divindade, ou seja, com suposto acesso a uma medida do que é certo, verdadeiro, belo, justo e... divertido. Poucos hoje lembram que nomos é também a palavra que designava a poesia, ou seja, a descoberta da proporção entre coisas, palavras e sentimentos que nos colocam no mundo lutando pelo belo, justo, eterno ou divinamente ideal. Pelo prazer, em suma. A sabedoria alcançada pela superação do conflito (a negação que afinal nega a si própria) espelha-se em processos decisórios que não são apenas aleatórios ou ditados pelo poder do mais forte ou do mais violento, mas podem refletir insights sobre o comportamento humano e a correlação de forças numa sociedade que, em última análise, é também a
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expressão de uma consciência das fraquezas humanas. Permanece no horizonte da civilização ocidental não apenas o jogo da democracia, mas a conexão entre antagonismos e a reinvenção recorrente de governos, razões, direitos e deveres A principal regra do jogo é a reinvenção de suas próprias regras, em revolução permanente ‒ ou disrupção alienante e acelerada, como indica Stiegler (2016). Torna-se assim possível uma visão que define um tempo-espaço de resolução de conflitos que é também cooperativo, essa distribuição lógica da razão ou “logos” é o horizonte em que “polemos” (luta) e “filia” (amor) são repostos recíproca e continuamente, em que cada indivíduo da democracia tem autonomia e ao mesmo tempo acredita numa unidade, numa soberania que projeta a comunidade no tempo da história, num futuro comum. A convergência entre as histórias do pensamento (pensar) e da indústria da comunicação (fazer) conduziram finalmente a uma perspectiva atualizada sobre o surgimento e a evolução dos games, seu uso nas escolas, nas empresas e em outros ambientes e organizações (como as forças armadas, as redes sociais, a publicidade e as artes). A fronteira emergente da gamificação é a formulação de políticas públicas, embora a dimensão de jogo da atividade econômica tenha permanecido implícita aos modelos de decisão e intervenção nos mais distintos mercados, a começar pelo financeiro (SCHWARTZ, 1990). A financeirização, tão debatida desde os escritos do marxista austríaco Rudolph Hilferding (1910), é indissociável das possibilidades técnicas e contábeis abertas pelas sociedades anônimas em acumulação de capitais, acelerada por informação e especulação nas bolsas de valores. Uma expansão dessa percepção entre formuladores de políticas econômicas e de outras políticas públicas, no entanto, é fenômeno recente, ainda em curso. Que novas promessas surgem de uma aproximação entre o brincar digital e as transformações em curso no capitalismo em crise? A inovação disruptiva implica em revisão estrutural dos marcos regulatórios ou sua urgente atualização (frente à corrupção comandada por um sistema operacional pré-digital, por exemplo). Quais os contornos de um keynesianismo digital? É notório que a superação da crise econômica tem sido continuamente associada ao culto da inovação tecnológica, do capital intelectual e da criatividade como fontes de valor. A disseminação de games e, de modo geral, da alfabetização midiática e informacional (media and information literacy) tornou-se, nos últimos cinco anos, uma tendência hegemônica em todo o mundo. Governos apostam em ecossistemas educacionais como ferramentas de superação da crise financeira e a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) articulou globalmente um novo movimento pela alfabetização por meio da Global Alliance for Partnerships in Media and Information Literacy (GAPMIL), cuja assembleia inaugural aconteceu na Universidade de São Paulo (USP) em novembro de 2016. A proposta da Unesco (criada em parceria com o grupo de pesquisa “Cidade do Conhecimento” e a agência global de publicidade Dentsu Aegis Network) prevê a gamificação de uma plataforma global de alfabetização midiática – projeto que só terá viabilidade e efetividade se a esfera pública configurada pela Unesco for colaborativamente promovida pelo setor privado, pelo terceiro setor e por uma nova cidadania global.
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A democracia é um jogo que institui um tabuleiro em que as regras podem ser mudadas, a ágora é um jogo político em que a cidadania sujeita seus destinos a um conflito que pressupõe cooperação construída pela mediação, ou seja, pela destreza retórica e filosófica dos cidadãos. O amor ao saber (filo-sofia) nasce, portanto, da luta pela razão num espaço que é ao mesmo tempo de criação e aplicação de regras (nomoi). Nesse mundo, o mito, a violência e a guerra pela primeira vez estão sujeitos a códigos, à clara identificação de responsabilidades e limites, como num jogo no qual há vencedores e perdedores apenas se todos reconhecerem a legitimidade do código e seu espaço de aplicação. Seja na criação e na aplicação de leis, seja na organização de jogos, o funcionamento da “pólis” implica necessariamente a preparação de cada cidadão para entender e participar desses espaços e tempos. Entendimento e participação que, se ainda dependem de um ato de fé na inspiração divina dos atos humanos, produzem, ao mesmo tempo, a exigência fundamental de educar cada indivíduo para essa lógica de conflito e superação. As regras de um jogo exigem habilidades na prática de interpretação das próprias regras. No lugar do instinto, da força e da violência fascistas, o cidadão educado é aquele que joga com as normas, os conceitos e os direitos. O cidadão é quem aprendeu a respeitar a tradição, imitar os bons exemplos e, ao mesmo tempo, reinventar a tradição, jogando seu destino e sua inserção social num espaço de jogo entendido como um direito humano. Jogar (ou “gamificar” o espaço público) é quase um sinônimo de julgar. Quem julga, ou seja, faz ou emite juízos, domina a lógica e a retórica, joga com os conceitos e os direitos para que se saiba em cada situação como fazer a conexão entre pensamento, linguagem e sobrevivência, tanto do indivíduo quanto do ser social. Pensar é jogar com (o) juízo, o que pressupõe confiar numa racionalidade necessariamente limitada (e não plenamente calculista ou calculável) que se constrói coletivamente e para a qual se educa com um olho na tradição e outro na salvação. O berço da cultura democrática ocidental revela-se como o campo de jogos que nos aproximam do “logos”. A “Paideia” (ideal grego da educação) revela-se como trabalho do Estado para conformar a “paidía”, a brincadeira infantil, em jogo civilizado pelo reconhecimento mútuo e agonístico no espaço político e comunicacional da “ágora”. Uma visão mais detalhada sobre a dimensão lúdica e a força do jogo em outras culturas iria muito além do possível neste capítulo, mas é possível avançar retomando as indicações que, em 1938, o historiador holandês Johan Huizinga (1872-1945) publicou em sua obra Homo Ludens: Proeve Eener Bepaling van het Spel-Element der Cultuur [Homo Ludens: o jogo como elemento da cultura, 2008], cuja pretensão foi estabelecer a dimensão lúdica como constitutiva de toda cultura. O regime nazista manteve-o preso de 1942 até sua morte. Jogo como operação da linguagem: ambiguidade, negação e abertura
No seu (agora) clássico Homo Ludens: o jogo como elemento da cultura, Huizinga (2008) detalha como a noção de jogo tem sua expressão na linguagem. Os gregos não distinguiam na própria linguagem a competição como função cultural do complexo “jogo-festa-ritual”, pois as competições (sagradas e profanas) haviam tomado um lugar tão importante na vida
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dos gregos, um valor tão excepcional, que as pessoas “deixaram de ter consciência de seu caráter lúdico”. Com os jogos na fronteira da convergência digital, é o mesmo ethos. Trata-se de identificar nos jogos essa mesma ambiguidade, seu caráter transdutivo – termo consagrado pela obra de Gilbert Simondon (1924-1989) que tem reverberação pragmática na obra madura de Wittgenstein. O fato é que, em muitas línguas, é impossível encontrar uma palavra que seja a “síntese única” de todas as atividades que se poderiam considerar como “jogo”. Divertir-se, engajar-se num movimento rápido, ser da ordem do ligeiro ou temporário, fugaz, despreocupado, e ainda assim estar fazendo algo, brincar é jogar com a atenção, é pensar em movimento ou ainda no próprio mover-se, brincar é um pensar em ação sem que tenha ocorrido uma “pré-ocupação”, é o tempo da surpresa, do inusitado, do susto e da perplexidade. O indivíduo cultivado, como o cidadão da “pólis” que sabe e pode pedir a palavra na “ágora”, está numa posição social elevada, integra uma elite dos que “brincam” ou “jogam” com o destino (individual e coletivo) em tudo que fazem, como se vivessem num mundo mais elevado. O jogo é oposto à seriedade, mas se algo sério simplesmente não é jogo, o significado de “jogo” não se esgota na negação da seriedade. A gamificação não se refere a tudo o que “não é sério” e, portanto, a gamificação de coisas sérias é possível. Há uma assimetria nessa negação que lembra a ambivalência psicanalítica da negação – para Freud (2014), negar um objeto ou relação está muito longe de aniquilar sua existência real, simbólica ou imaginária. A criança quando brinca o faz com a maior seriedade. Em todas as religiões e nas sociedades tidas como “primitivas”, bem como no teatro e na brincadeira infantil, há uma suspensão do juízo ou criação de um espaço-tempo mágico em que são vivenciadas características que se poderiam associar a um esquema lúdico: ordem, tensão, movimento, mudança, solenidade, ritmo, entusiasmo. Nem por isso são atividades desprovidas de consequências seríssimas sobre o desenvolvimento psicoafetivo de qualquer indivíduo. O jogo surge para Huizinga (2008) como entidade autônoma, ora indicando um rudimento de racionalidade instrumental, ora remetendo os participantes a uma dimensão poética, desprovida de sentido e racionalidade, mas reforçando em cada um a consciência de estar “integrado a uma ordem cósmica”, como se o jogo fosse via de acesso a um ato sagrado, um culto (jogo como elemento da cultura). Todo jogo é feito de seus lances, de cada jogador lançar-se, colocar-se num movimento, aceitar a imersão num processo regrado e ao mesmo tempo aberto ao inusitado, surpreendente e ardiloso, compreensível ou supostamente milagroso. É ao mesmo tempo ceder ao simbolismo, à representação e à projeção da angústia imediata (frente à morte, à reprodução ou à sorte) numa ordem que se permite ser interrogada, questionada, provocada. É justamente esse conceito de jogo como operação ao mesmo tempo delimitadora e de abertura para o novo (inclusive para novas regras ou violações de regras no limite da destruição do próprio jogo) que se torna relevante para pensar e operar a gamificação. Callois (1990) consagrou certo esquematismo ao classificar os jogos em quatro categorias: 1. Jogo de competição (agon): o jogador é ativo. 2. Jogo de azar (alea): o jogador é passivo, conta com tudo menos consigo mesmo, é abandonado ao destino, com suspensão da vontade; a única forma de jogo alheia aos animais.
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3. Jogo mimético (simulação ou mímica): como no teatro ou nos jogos de papéis (role-playing game – RPG), o ator faz crer que é alguma coisa, é evasão do mundo e criação de mundos. 4. Jogo de vertigem (ilinx): provoca uma modificação no estado de consciência, como no balanço, numa ciranda ou numa cama elástica.
Mas, como Huizinga (2008), Callois (1990) reconhece as ambiguidades da questão e nos convoca a ir além do contraponto entre o sério e o lúdico. É preciso estar alerta para um comércio, uma “contaminação” entre essas esferas: cada categoria pode ser “corrompida” pela vida ordinária. Pode faltar mediação ou arbitragem num espaço de agon, enquanto alea pode sofrer o contágio da superstição, a mímica pode em muitos casos perverter-se em plena identificação com o papel representado por uma imitação, e os jogos de vertigem (ilinx) muito frequentemente são substituídos pelo álcool e pelas drogas. Ambiguidade, negatividade e abertura tornam-se os vetores determinantes a reverberar das reflexões feitas por alguns dos clássicos da filosofia do lúdico, características operacionais que se associam à própria existência viva da linguagem. Referências ADORNO, T.; HORKHEIMER, M. Towards a new manifesto? London: Verso, 2011. BROUILLETE, S. Creative labor. Meditations ‒ Journal of the Marxist Literary Group, v. 24, n. 2, p. 140-149, 2010. CAILLOIS, R. Os jogos e os homens: a máscara e a vertigem. Lisboa: Perspectiva, 1990. FLORIDA, R. The rise of the creative class: and how it’s transforming work. Nova York: Basic Books, 2002. FREUD, S. A negação. São Paulo: Cosac Naify, 2014. FUCHS, C. Critical theory of communication: new readings of Lukács, Adorno, Marcuse, Honneth and Habermas in the age of the internet. London: University of Westminster, 2016. GUR-ZE´EV, I. Adorno and Horkheimer: diasporic philosophy, negative theology, and counter-education. Diasporic Philosophy and Counter-Education, v. 48, p. 59-81, 2003. HILFERDING, R. O capital financeiro. São Paulo: Abril, 1910. HUIZINGA, J. Homo Ludens: Proeve Eener Bepaling van het Spel-Element der Cultuur. Groningen: Wolters-Noordhoff, 1938. ______. Homo ludens: o jogo como elemento da cultura. São Paulo: Perspectiva, 2008. LAZZARATO, M.; NEGRI, A. Trabajo inmaterial: formas de vida y producción de subjetividad. Rio de Janeiro: DP&A, 2001. Disponível em: . Acesso em: 3 abr. 2016.
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Gamificação em educação: revisão de literatura
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João Mattar
Introdução
O campo de estudos sobre gamificação em educação cresceu vertiginosamente nos últimos quinze anos, o que pode ser atestado pela quantidade de publicações mencionadas neste capítulo. Isso torna, naturalmente, qualquer tentativa de realizar uma revisão de literatura um desafio bastante complexo. As buscas para esta revisão foram feitas no Portal de Periódicos da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) e do Ministério da Educação (MEC), incluindo o Google Acadêmico, no final do ano de 2016, e atualizadas em 28 de fevereiro de 2017. Foram a princípio utilizados no título os termos gamificação e educação (e suas traduções em inglês), posteriormente combinados com palavras que definem as diversas áreas e subáreas do conhecimento classificadas pela Capes. Além disso, as buscas foram refinadas com a combinação de palavras como revisão, mapeamento, literatura ou sistemática. Como critérios de exclusão, foram separados os trabalhos que se referiam à aplicação da gamificação a alguma área específica (alguns deles são mencionados na seção seguinte) ou algum nível de escolaridade específico (Educação Básica, Superior ou corporativa). Além disso, foram também excluídos os trabalhos que exploravam especificamente o uso de games em educação. Textos meramente teóricos também não foram considerados, apesar de terem sido avaliados alguns que desenvolvem modelos teóricos testados empiricamente para a aplicação da gamificação à educação. Para ampliar as buscas, foram consultadas algumas das referências mencionadas nos textos selecionados. Além disso, foram pesquisadas mais publicações sobre o tema dos autores dos textos selecionados e avaliados alguns textos que citavam os artigos escolhidos. Apesar de alguns textos teóricos ou voltados para áreas ou níveis de escolaridade específicos serem mencionados neste capítulo (quando possuíam características que mereciam destaque), além de algumas pesquisas individuais, a revisão focou basicamente nos resultados da busca que apresentavam mapeamentos ou revisões de literatura na área. Assim, este
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capítulo cobre as revisões de literatura sobre o uso de gamificação em educação de uma maneira geral, completadas por outros resultados da busca que mereceram algum tipo de destaque, por divergirem ou completarem esses resultados gerais. Este capítulo está dividido em quatro seções. A seção seguinte define o conceito de gamificação. A terceira seção, a mais longa e importante, aborda brevemente alguns livros e artigos específicos, apresenta em seguida os resultados da revisão de literatura sobre gamificação em educação e termina com a análise de alguns modelos teóricos. A última, por sua vez, procura resumir e consolidar esses resultados. Gamificação
O termo gamificação passa a ser utilizado com mais intensidade a partir da década de 2010, apesar de a prática ser bem mais antiga. Deterding et al. (2011, p. 10, tradução nossa) a definem como “o uso de elementos de design de games em contextos que não são de games”, enquanto Sheldon (2012, p. 75, tradução nossa) propõe uma definição similar: “gamificação é a aplicação de mecânicas de games a atividades que não são de games”. Há várias outras definições disponíveis na literatura, em alguns casos considerando a utilização de games no processo de ensino e aprendizagem como parte do conceito mais amplo de gamificação (KAPP, 2012). Neste capítulo, seguiremos as definições de Deterding et al. (2011) e Sheldon (2012), ou seja, a revisão de literatura realizada não levará em consideração o uso de games em educação. As publicações gerais sobre gamificação cresceram exponencialmente nos últimos anos, inclusive em língua portuguesa (VIANNA et al, 2013; BUSARELLO, 2016). Uma busca por livros na Amazon contendo no título a palavra gamification retorna 247 resultados (em 27 de fevereiro de 2017), com destaque para Zichermann e Cunningham (2011), Paharia (2013), Zichermann e Linder (2013), Chou (2015) e Burke (2016). Existem pesquisas sobre o uso de gamificação nas mais diversas áreas do conhecimento: ciências exatas e da Terra, como matemática (ATTALI; ARIELI-ATTALI, 2015), física (STUDART, 2015) e química (FERNANDES; CASTRO, 2015); ciências da saúde, como educação física (VAN DER HOST, 2016), nutrição (BERGER; SCHRADER, 2016), enfermagem (DAY-BLACK, 2015) e medicina (CARVALHO et al., 2013); quase todas as subáreas das ciências sociais aplicadas, como turismo (LOURISELA, 2015), arquitetura (AYDIN, 2014), tecnologia da informação (CASTRO; MONTICELLI, 2015), direito (KIMBRO, 2015), economia (HAMARI; HUOTARI; TOLVANEN, 2015), administração (BAINES; PETRIDIS; RIDGWAY, 2015) e mercadologia (HUOTARI; HAMARI, 2011, 2012, 2017); e ciências humanas, como história ( JANIEC, 2015), ciência política (MAHNIC, 2014) e letras (FLORES, 2015). Apesar de a maioria dos estudos indicados nesta seção terem relação com o ensino em áreas específicas, a seção seguinte explora as publicações e as pesquisas sobre gamificação em educação de uma perspectiva geral, que propositalmente não foram mencionadas nesta seção.
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Gamificação em educação
Em educação, o uso da gamificação tem crescido intensamente, popularizado por vários livros (SHELDON, 2012; KAPP, 2012; KAPP; BLAIR; MESCH, 2014; ALVES, 2014; FADEL et al., 2014; MATERA, 2015; FARBER, 2017). Sheldon (2012, p. 27, tradução nossa) faz sugestões para elaborar disciplinas como se fossem jogos, mostrando em vários momentos como transformou um plano de ensino tradicional em um game, com a observação: “Esta disciplina foi projetada como um jogo multiusuário”. Uma das propostas é converter as notas em um sistema de pontos, em que os alunos começam com zero. A avaliação por pares é também sugerida. O livro apresenta ainda vários cases de gamificação enviados por professores de diversas escolas e instituições de ensino. Para Kapp (2012), a gamificação não é um fenômeno novo, não funciona para todas as situações, não significa trivialização da aprendizagem nem é sinônimo de simplesmente oferecer pontos e prêmios. Ele considera que os serious games seriam parte do processo de gamificação na educação. Seu livro descreve diversos elementos de games: abstrações de conceitos e da realidade; objetivos; regras; conflito, competição e colaboração (conflitos envolveriam acabar com o adversário: competição, vencê-lo); tempo; estruturas de recompensa (recompensas esperadas geram mais dopamina que recompensas não esperadas, e a incerteza do jogo pode transformar a experiência emocional da aprendizagem, aumentando o engajamento, a codificação e a lembrança); feedback; níveis (fases, escolha de dificuldade na entrada e experiências/habilidades conquistadas ao jogar); narrativa (envolvendo personagens, enredo, tensão e resolução e a jornada do herói); curva de interesse; estética; replay ou jogar novamente; motivação (e a complexa relação entre motivação extrínseca e intrínseca); avatares (e seus aspectos psicológicos); e perspectiva do jogador (primeira ou terceira pessoa). Apresenta também alguns modelos e teorias que podem servir de fundamento para o design de jogos para a educação, conforme o Quadro 11.1. Quadro 11.1 – Teorias de aprendizagem e seu impacto na gamificação Teoria
Aprendizagem social (Robert Bandura)
Impacto no design da gamificação
Modela o comportamento desejado de maneira que o aprendiz o observe e processe internamente
O cenário e o ambiente devem ser autênticos e Aprendizagem (apprenticeship) cognitiva – cognição oferecer feedback e orientação para a atividade do situada aprendiz
Fluxo (Mihaly Csikszentmihalyi)
O sistema adapta-se continuamente para manter o aprendiz em um estado constante de interesse e o nível de desafio adequado ao aprendiz (não tão fácil e não tão difícil)
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Gamificação em debate
Teoria
Impacto no design da gamificação
Condicionador operante (Skinner)
Fornece recompensas, pontos e badges apropriados, de maneira variável, para manter o interesse do aprendiz
Modelo ARCS (atenção, relevância, confiança e satisfação) (John Keller)1
Prende a atenção do aprendiz e contém informação relevante e nível apropriado de desafios, de maneira que o aprendiz se sinta confiante de que obterá sucesso, oferecendo elementos motivacionais intrínsecos e extrínsecos
Ensino intrinsecamente motivador (Thomas Malone)2 Inclui elementos de desafio, fantasia e curiosidade Princípios de design instrucional para motivação intrínseca (Marc Lepper)
Inclui elementos de controle sobre a aprendizagem, desafio, curiosidade e contextualização
Taxonomia das motivações intrínsecas para a Inclui elementos motivacionais internos e externos aprendizagem (combinação dos modelos de Malone como desafio, curiosidade, controle, fantasia, e Lepper) cooperação, competição e reconhecimento Autodeterminação
Oferece ao aprendiz oportunidades para autonomia, sentimento de competência e ligação com os outros
Prática distribuída
Jogar de tempo em tempo para oferecer repetição espaçada do conteúdo do jogo
Suporte (scaffolding)
Começa oferecendo bastante orientação e passa a oferecer cada vez menos, até que o aprendiz esteja resolvendo problemas com independência
Memória episódica
Evoca emoções do aprendiz para codificar com mais riqueza os ensinamentos do jogo na memória
Fonte: adaptado de Kapp (2012). Importante ressaltar novamente que o autor considera a utilização de games em educação um tipo de gamificação.
Kapp faz também uma revisão de meta-análises de estudos sobre os resultados do uso de games na aprendizagem (não exatamente gamificação no sentido mais restrito que estamos adotando neste capítulo): Randel et al. (1992), Wolfe (1997), Vogel et al. (2006), Ke (2008) e Sitzmann (2011). Alguns pontos são comuns à maioria dessas meta-análises: atitudes mais positivas em relação à aprendizagem e maior conhecimento foram detectados em grupos que utilizavam games, comparando-se com grupos que utilizavam métodos de ensino mais tradicionais; e games geram resultados positivos se têm objetivos de aprendizagem 1 2
Ver . Ver .
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definidos e estão incluídos em programas de ensino que oferecem suporte, perguntas, reflexões e retorno para os alunos. O estudo de Sitzmann (2011) tira uma conclusão interessante de sua meta-análise. Uma de suas hipóteses previa que os alunos aprenderiam mais com games e simulações com maior valor de entretenimento. Entretanto, os resultados não suportaram a hipótese, já que os alunos aprenderam o mesmo com jogos e simulações com valores de entretenimento alto e baixo. Ao contrário de boa parte da literatura, o valor do entretenimento do ensino não se mostrou uma característica que afeta a eficácia da aprendizagem, pois não afetou o quanto os alunos aprenderam, enquanto evitar metodologias passivas de ensino foi a característica que mais contribuiu para a aprendizagem. Pela conclusão da meta-análise de Sitzmann, games e simulações não precisam ser divertidos para serem educacionais. Não parece haver uma correlação entre o valor de diversão de um game ou simulação e o seu mérito educacional. A conclusão pode, naturalmente, ser expandida para a gamificação, no sentido da utilização de elementos de games em educação: a característica da diversão ou ludicidade, uma das mais comumente mencionadas na literatura, não gera necessariamente mais aprendizagem. Isso merece estudos específicos. Denmeade (2015) escolhe um caminho interessante: usar diversos recursos simples do Moodle (excluindo as atividades Questionário e Lição, que são mais complexas de elaborar) para incorporar elementos de design de jogos em cursos. Ela dá dicas de como usar a configuração da conclusão de atividades para abrir novos espaços para o aluno no curso, incluindo tarefas e rótulos. Insiste também na importância de trabalhar em detalhes o Livro de Notas, por exemplo o uso de escalas com estrelas e outros símbolos, e também de apresentar sempre para os alunos seu progresso, individual ou em grupo. Sua orientação é criar layouts minimalistas no Moodle. Há ainda um capítulo que explora o uso de badges, da maneira como são usados em games. Por fim, há orientações para a organização de grupos e conexões do fórum em formato de blog do Moodle com blogs externos. Walz e Deterding (2014) apresentam os usos de games e gamificação em várias áreas, bem como diversas críticas ao seu poder motivador. Os autores defendem que o desenvolvimento da gamificação estaria relacionado à interpenetração entre os games e a vida real, em um movimento de ludificação da cultura. O livro, em vez de utilizar as palavras gamificação ou ludificação, usa a expressão gameful world. Ramirez e Squire (2014), no mesmo livro, focam em quatro características de design utilizadas em gamificação: sistemas de pontos, conquistas, desafios e estruturas narrativas. A gamificação nas escolas possibilitaria que os alunos assumissem mais identidades que a do bom aluno que retorna tudo o que o professor solicita. Sistemas de pontos por conquistas e feedback em relação ao progresso poderiam ser mais adequados que notas em provas. Cabe notar que alguns periódicos já dedicaram números completos à gamificação em educação, como Digital Education Review (n. 27, jun. 2015) e RIED — Revista Iberoamericana de Educación a Distancia (v. 19, n. 2, 2016). Krause et al. (2015) exploram a gamificação especificamente em cursos online. Um experimento controlado foi realizado com 213 alunos de Psicologia e Ciência da Computação, em
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Gamificação em debate
uma disciplina online de introdução à programação com Python. Foram comparadas três condições: (a) sem gamificação, (b) com elementos de games (mas sem elementos sociais) e (c) com gamificação e elementos sociais (que significava desafiar um oponente). Os alunos do segundo grupo tiveram notas 23% maiores e aumento de 25% em retenção quando comparados com o primeiro grupo, e o grupo com gamificação e elementos sociais teve notas quase 40% superiores e 50% de retenção em relação ao primeiro grupo. Como conclusão, é possível afirmar que a gamificação gera efeitos positivos na aprendizagem e que os elementos sociais amplificam significativamente seu efeito. Estudos sobre gamificação em educação a distância são naturalmente essenciais, pelo crescimento dos dois campos, merecendo uma revisão separada. Revisões de literatura
A revisão de literatura que buscou estudos de mapeamento, revisão ou meta-análises sobre gamificação em educação, com os critérios de exclusão já indicados, retornou onze textos: Borges et al. (2013), Nah et al. (2014), Hamari, Koivisto e Sarsa (2014), Caponetto, Earp e Ott (2014), Surendeleg et al. (2014), Garland (2015), Dicheva et al. (2015), Dicheva e Dichev (2015), Figueiredo, Paz e Junqueira (2015), Barreto et al. (2016) e Jackson (2016). Borges et al. (2013, 2014) realizaram um mapeamento sistemático da área, analisando inicialmente 357 estudos, escolhendo 48 relacionados à área e 26 que satisfizeram os critérios de inclusão e exclusão. O mapa das pesquisas indicou que a maior parte dos estudos se concentra em investigar como a gamificação pode ser utilizada em educação para motivar os alunos e aprimorar suas habilidades e a aprendizagem. Nah et al. (2014), em uma revisão de quinze textos datados de 2012 a 2013, identificaram oito elementos de design de jogos que são amplamente utilizados nos contextos educacional e de aprendizagem: pontos, níveis/fases, badges, placares, prêmios e recompensas, barras de progresso, narrativa e feedback. Hamari, Koivisto e Sarsa (2014) realizaram uma revisão da literatura em diversas bases de dados de estudos empíricos sobre gamificação. Vinte e quatro artigos, revisados por pares, foram selecionados. A variedade de contextos em que foram realizados os estudos era ampla, sendo a gamificação em educação ou aprendizagem o contexto mais comum para as implementações. Todos os estudos em contextos de educação/aprendizagem consideraram os resultados da gamificação predominantemente positivos, por exemplo, em termos de aumento da motivação e do envolvimento nas tarefas, bem como da diversão com elas. No entanto, apontaram também para resultados negativos aos quais é necessário prestar atenção, como os efeitos do aumento da competição e as dificuldades para avaliar as tarefas. Caponetto, Earp e Ott (2014) realizaram uma revisão de literatura de 119 textos, publicados entre 2011 e início de 2014. Os resultados da análise apontam para a crescente popularidade das técnicas de gamificação, tendo o conceito se tornado mais claramente definido para pesquisadores e praticantes, diferenciando-se claramente do conceito de aprendizagem baseada em games, o que sugere que certo nível de convergência taxonômica e epistemológica está sendo construída. É interessante também notar que a maior parte dos
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textos avaliados apresentou a gamificação em ambientes virtuais de aprendizagem, ou seja, em educação a distância. Surendeleg et al. (2014) identificaram diversas lacunas na literatura sobre gamificação em educação – por exemplo, quais elementos de games geram mais motivação e qual seu impacto no longo prazo. Entre os principais elementos de games identificados, podem ser mencionados: feedback, classificação (ou rankings), pontos e níveis. A conclusão sugere que o impacto da gamificação deve ser explorado em habilidades para a vida toda. É preciso explorar a possibilidade do uso da gamificação no espaço de trabalho para o treinamento de habilidades motoras. Garland (2015) realizou uma meta-análise de trabalhos sobre gamificação em educação, identificando que muitos estudos mostram benefícios para o seu uso em ambientes educacionais, sendo então necessário determinar quais aspectos da gamificação são benéficos. Diversas variáveis moderadoras foram identificadas como importantes, como a duração do ensino, a inclusão de aspectos competitivos e o uso do tempo em tarefas. Dicheva et al. (2015) fizeram um mapeamento sistemático de 34 pesquisas empíricas publicadas entre 2010 e junho de 2014 sobre os efeitos da aplicação da gamificação em educação. As categorias utilizadas foram: princípios de design da gamificação, mecânica de games, contexto da aplicação da gamificação, implementação e avaliação. O mapeamento indica alguns obstáculos, como a necessidade de um suporte tecnológico específico e de estudos controlados demonstrando resultados confiáveis, positivos ou negativos, do uso de elementos específicos de games em contextos educacionais particulares. Embora boa parte das pesquisas apresente resultados promissores, mais pesquisas empíricas sólidas são necessárias para determinar se e quanto as motivações extrínseca e intrínseca dos aprendizes podem ser influenciadas pela gamificação. Dicheva e Dichev (2015) continuaram o trabalho anterior analisando 41 trabalhos publicados entre julho de 2014 e junho de 2015, confirmando que a penetração da gamificação na educação ainda está crescendo e que a prática superou a compreensão dos pesquisadores sobre sua mecânica e seus métodos, mas alertando que a gamificação já passou o pico de expectativas infladas e está em uma fase mais crítica e analítica, o que se percebe pelo crescimento de estudos com resultados inconclusivos ou negativos. Figueiredo, Paz e Junqueira (2015) fizeram um mapeamento de elementos teóricos e práticos relacionados à autoria do professor em gamificação, em pesquisas realizadas no Brasil (SBGames de 2009 a 2014; Portal de teses e dissertações da Capes de 2000 a 2013; e produções bibliográficas publicadas no Brasil de 2013 a 2014). Os resultados demonstraram que são necessárias mais pesquisas, por se tratar de um campo novo, apontando também para a necessidade de que pesquisa e prática educativa se retroalimentem e do estabelecimento de um arcabouço teórico interdisciplinar que contemple o estudo dos diversos aspectos do emergente fenômeno. Barreto et al. (2016) realizaram um mapeamento sistemático com vinte artigos sobre a gamificação em educação buscando boas práticas e lições aprendidas. Os resultados mostraram que a gamificação é, de maneira geral, eficiente, sendo necessários: planejamento adequado do seu design, dinâmica entre os grupos e participação do professor na motivação
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e no envolvimento dos alunos. Os elementos identificados como mais usados foram: pontos, badges, competição, nível, placar, realizações, recompensas, desafios e rankings. O Quadro 11.2 apresenta aspectos positivos e negativos identificados. Quadro 11.2 – Seleção de aspectos positivos e negativos identificados no mapeamento Aspectos positivos
Aspectos negativos
A competição tem o risco de diminuir a motivação A competição melhora a aprendizagem, a motivação e a diversão, causando sentimentos negativos pela e o envolvimento perda da competição, interferindo também na dinâmica dos grupos
Os alunos enxergam o sistema gamificado como muito prazeroso, encorajador e desafiador
Os alunos sem reputação ou com pouca reputação por não participarem tão ativamente quanto os outros podem se sentir desmotivados para responder ou elaborar questões, por medo de não estarem no mesmo nível daqueles com maior reputação
A competição também tem o potencial de compensar a falta de habilidades em algumas atividades
Nem todo aluno é motivado da mesma maneira pela gamificação, pois as motivações podem variar de um para outro
A gamificação facilita o debate entre os alunos e promove compensações por responder a questões dos colegas
Alunos com exatamente o número de pontos necessários para passar na disciplina eram menos motivados
O anonimato ou semianonimato permitiu que os alunos se expressassem mais livre e confortavelmente
Risco de perder o foco na atividade se os participantes exagerarem na gamificação, levandoos a se preocupar mais com a vitória que com o aprendizado
Fonte: Barreto el al. (2016, tradução nossa).
Por fim, Jackson (2016), em sua dissertação de mestrado, realiza uma revisão de literatura demonstrando que a gamificação pode ser incorporada com eficiência à educação para motivar os alunos e melhorar a aprendizagem. Entretanto, a integração apropriada requer uma análise detalhada dos alunos envolvidos, do material do curso, dos objetivos de aprendizagem e da estrutura holística da experiência, e a consideração de quais elementos e mecanismos específicos guiarão com mais eficiência o aluno por uma experiência de aprendizagem significativa. Modelos teóricos
Para o desenvolvimento de pesquisas na área, são necessários modelos teóricos testados empiricamente. Bedwell et al. (2012) desenvolveram uma taxonomia dos elementos de games
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educacionais, propondo nove categorias com atributos distintos, relacionados a resultados de aprendizagem, que estariam presentes em todos os games, variando em intensidade: • linguagem de ação: interface e comunicação entre o jogador e o sistema, para traduzir os comandos do jogador; • avaliação: feedback e informações sobre o progresso do jogador, incluindo placares; • conflito/desafio: incluindo nível de dificuldade e surpresa; • controle: interação com o equipamento; • ambiente: “local” em que o game é jogado; • ficção do game: envolvendo história, fantasia e mistério; • interação humana: interpessoal (no espaço e tempo reais) e social (mediada por tecnologia); • imersão: percepção do jogador no jogo, incluindo estímulos sensoriais, como os visuais e sonoros, objetos e pessoas; • regras/objetivos.
Landers (2014), no desenvolvimento de uma teoria psicológica da aprendizagem gamificada, adaptou as nove categorias de Bedwell et al. (2012), defendendo que os mesmos atributos podem ser aplicados fora do contexto de um game para afetar atitudes ou comportamentos relacionados à aprendizagem. Entretanto, enquanto os games educacionais em geral utilizariam todas essas categorias, a gamificação poderia utilizar apenas uma ou algumas delas. Ao contrário dos games, a gamificação não visa em geral influenciar a aprendizagem diretamente; em vez disso, seu objetivo é alterar o comportamento ou a atitude contextual de um aprendiz (como o envolvimento), o que, por sua vez, pode melhorar o ensino já existente como consequência daquela mudança comportamental ou atitudinal. Assim, os praticantes de gamificação na aprendizagem esperam que os atributos de game afetem um comportamento relacionado à aprendizagem que, por sua vez, afetará a aprendizagem de alguma forma. Ou seja, embora se possa afirmar que eles aprenderam com um jogo, geralmente não será válido dizer que eles aprenderam com a gamificação. O objetivo da gamificação, portanto, não pode ser substituir o material de ensino, mas melhorá-lo, pois as características de games provocam mudanças no comportamento e em atitudes, e não diretamente no material de ensino. Em suma, o uso de uma característica de game aumenta o engajamento, que modera a relação entre o conteúdo instrucional e os resultados de aprendizagem. Uma implicação importante de um processo de moderação é que o moderador não influencia a construção do resultado, independentemente da construção causal. Nesse caso, a inclusão de um elemento de jogo não teria qualquer efeito sobre o aprendizado se o design de instrução já não fosse sólido. Se um curso for de baixa qualidade (por exemplo, se esse curso não incorporar técnicas pedagógicas válidas), a adição de gamificação não teria efeito sobre a aprendizagem. Este é, portanto, um vetor potencial para os esforços de gamificação fracassados: se um instrutor não vê ganhos esperados de aprendizagem entre os alunos em virtude da má concepção instrucional e, em seguida, incorpora a gamificação, é improvável que a aprendizagem melhore. Nesse
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Gamificação em debate
caso, a verdadeira causa do problema (má eficácia do design instrucional) permanece, e elementos de jogo no curso não farão nada para melhorar a aprendizagem. Em outras palavras, a relação entre elementos de games e resultados de aprendizagem é mediada por comportamentos/atitudes. As características de games afetam os resultados de aprendizagem, mas apenas porque afetam um comportamento/atitude, e o comportamento/atitude, por sua vez, afeta os resultados de aprendizagem. Portanto, a gamificação pode não ter êxito em melhorar o aprendizado se qualquer uma das duas relações causais da mediação não se sustentar: o professor deve assegurar que os elementos do jogo levem ao comportamento e que este leve à aprendizagem. Se qualquer uma dessas relações for falsa, a gamificação não produzirá os resultados pretendidos. De maneira geral, esse modelo indica que a gamificação pode afetar a aprendizagem por meio de dois processos. Em ambos, a gamificação pretende influenciar um comportamento ou uma atitude relacionada à aprendizagem. No entanto, a relação entre esse comportamento e os resultados difere dependendo da natureza dessa construção. De um lado, a gamificação afeta o aprendizado pela moderação quando um designer instrucional pretende incentivar um comportamento ou atitude que aumentará os resultados da aprendizagem, tornando a instrução preexistente melhor de alguma forma. Por exemplo, uma narrativa pode ser incorporada a um plano de aula existente para aumentar a motivação dos alunos. O efeito final desse aumento motivacional é então contingente à presença de instrução efetiva. De outro lado, a gamificação afeta o aprendizado pela mediação quando um designer instrucional pretende incentivar um comportamento ou atitude que, por sua vez, melhore os resultados da aprendizagem. Por exemplo, essa mesma narrativa pode ser usada para aumentar a quantidade de tempo que os alunos gastam em casa com o material do curso; e esse aumento do tempo deve causar maior aprendizado diretamente. Um ou ambos os processos podem estar presentes em qualquer exemplo particular de aprendizagem gamificada eficaz e, criticamente, cada um exige diferentes designs de investigação e estratégias analíticas para os suportar. Esse modelo foi testado empiricamente em Landers e Landers (2014), que relacionam elementos de jogo específicos comuns a placares (conflito/desafio, regras/objetivos e avaliação) com comportamento focal do aprendiz e tempo na tarefa, explorando pesquisas educacionais sobre competição e pesquisas psicológicas sobre a teoria de estabelecimento de objetivos. O processo de mediação da teoria da aprendizagem gamificada foi testado experimentalmente solicitando-se aos alunos a conclusão de um projeto baseado em uma wiki online, sendo que um grupo utilizou uma versão gamificada com um placar e outro utilizou uma versão de controle sem placar. A atribuição aleatória a placares suportou um efeito causal. Os alunos com placares interagiram com seu projeto, em média, 29,61 vezes mais que aqueles em uma condição de controle. O método estatístico de bootstrapping foi usado para apoiar a mediação do efeito da gamificação sobre os resultados acadêmicos por essa quantidade de tempo. O processo mediador da teoria da instrução gamificada mostrou-se suportado. A conclusão da pesquisa
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foi que os placares podem ser usados para melhorar o desempenho no curso em determinadas circunstâncias. Conclusão
É possível tirar várias conclusões da revisão de literatura realizada. Em primeiro lugar, cabe ressaltar que, apesar de ser uma área nova, houve um rápido crescimento dos estudos sobre gamificação em educação, sendo possível afirmar que a fase inicial de euforia e otimismo já foi superada, e caminhamos agora para a elaboração de teorias mais sólidas e testadas empiricamente. Em geral, as pesquisas apontam para resultados positivos da aplicação de estratégias de gamificação à educação. Entretanto, é essencial diferenciar os estudos que procuram mensurar o aumento da motivação, mais comuns, daqueles que procuram mensurar resultados de aprendizagem, mais difíceis de se realizar. Mesmo da perspectiva da motivação, há ainda muita discussão na literatura a respeito dos efeitos da gamificação sobre as motivações extrínseca e intrínseca dos alunos, além do fato de que diferentes alunos são motivados de maneiras distintas. Praticamente todos os estudos apontam para a importância do design da gamificação, incluindo a análise do contexto e dos alunos, a definição dos objetivos de aprendizagem (e das regras do jogo), a elaboração do conteúdo e outros procedimentos, que podem ser adaptados do design educacional. Apesar de algumas críticas à simples identificação da gamificação com recompensas e prêmios, o estabelecimento de um sistema de pontos para substituir as notas na educação tradicional parece ser uma das contribuições importantes da gamificação. Nesse sentido, faz-se necessário um trabalho detalhado com a construção dos placares (aproveitando seu desenvolvimento no design de jogos) para apresentar aos alunos seu progresso nas atividades, com indicações de sua classificação. Justifica-se também um trabalho específico na elaboração de estruturas de feedback e recompensa para os alunos, incluindo, por exemplo, badges. Cabe, entretanto, notar o desafio para a avaliação de tarefas nessas novas configurações educacionais, sendo necessário combinar diferentes tipos de avaliação: autoavaliação, avaliação por pares, avaliação automática do computador, avaliação do professor, avaliação por projetos (encomendados por terceiros), avaliação de especialistas externos e avaliação da multidão (como em redes sociais abertas). A gamificação em educação tem também muito a aproveitar do know-how do level design, ou design de níveis ou fases, uma das marcas do design de jogos. Assim, as experiências gamificadas podem oferecer níveis distintos na entrada e conforme o aluno vai progredindo nas atividades. As conquistas são outro recurso que pode ser aproveitado do design de jogos. A narrativa é também um elemento essencial no design de jogos que pode contribuir intensamente para a gamificação da educação, envolvendo personagens, enredo, desafios e tensão. Nesse sentido, a combinação entre conflitos (em que o adversário precisa ser destruído), competição (em que o adversário precisa ser simplesmente derrotado) e colaboração é
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Gamificação em debate
uma das áreas em que o design de jogos tem mais a contribuir com a educação, com a ressalva de que a competição pode gerar efeitos negativos na aprendizagem, como indicado em muitos estudos. Há naturalmente limitações nesta revisão de literatura. Alguns trabalhos importantes podem não ter sido identificados por não possuírem as palavras ou expressões utilizadas para a busca no seu título. Outros podem parecer estudos específicos por seus títulos e resumos (e foram, por isso, excluídos da revisão), mas no final serem genéricos. Além disso, estudos em áreas ou níveis escolares específicos, descartados nesta revisão, certamente têm contribuições para as reflexões aqui realizadas, bem como os estudos sobre a utilização de games em educação. Cabe ainda notar que o conceito de gamificação é fluido, podendo algumas estratégias de gamificação estar indicadas em artigos que, a princípio, focariam na aprendizagem baseada em games. Diversos trabalhos futuros foram delineados pela revisão de literatura. São necessários mais estudos empíricos na área, fundamentados em modelos teóricos e multidisciplinares, que também precisam ser desenvolvidos. Especificamente, a área se desenvolverá com estudos que procurem determinar quais elementos de design de jogos geram resultados (e que tipos de resultados) em que tipos de cursos (e duração), alunos e contextos. Cabe também diferenciar, nas futuras pesquisas, entre a gamificação do conteúdo educacional e a gamificação da experiência de aprendizagem (que não altera o conteúdo). Referências ALVES, F. Gamification: como criar experiências de aprendizagem engajadoras: um guia completo do conceito à pratica. São Paulo: DVS, 2014. ATTALI, Y.; ARIELI-ATTALI, M. Gamification in assessment: do points affect test performance? Computers & Education, v. 83, p. 57-63, 2015. AYDIN, S. Gamification of digital heritage through decoding brick architecture in Kashgar. Tese (Doutorado em Arquitetura) ‒ The Chinese University of Hong Kong, 2014. BAINES, T.; PETRIDIS, P.; RIDGWAY, K. Strategic industrial applications of games and gamification. In: INTERNATIONAL GAMIFICATION FOR BUSINESS CONFERENCE, 15., 2015, Birmingham. Proceedings… Birmingham: Innovation Birmingham Campus, 2015. p. 1-102. BARRETO, L. S. et al. Gamification aspects in detail: collectanea of studies to renew traditional education. Revista Eletrônica Argentina-Brasil de Tecnologias da Informação e da Comunicação, v. 1, n. 4, fev. 2016. BEDWELL, W. L. et al. Toward a taxonomy linking game attributes to learning: an empirical study. Simulation & Gaming, v. 43, n. 6, p. 729-760, 2012. BERGER, V.; SCHRADER, U. Fostering sustainable nutrition behavior through gamification. Sustainability, v. 8, n. 1, p. 67-82, 2016.
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Design educacional em jogo Paula Carolei Romero Tori
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O design educacional, também conhecido pela denominação design instrucional, tem sua origem associada a treinamentos militares na Segunda Guerra Mundial, em sistemas e programas controlados, sequenciados e com reforço apropriado baseados na teoria comportamental da época (FILATRO, 2007). O paradigma comportamental foi muito presente na história da educação, e em algumas situações ainda é, especialmente na lógica de atuação inicial desse profissional: planejar e criar ações e materiais educacionais mais eficientes e com resultados padronizados e mensuráveis. Mas há outros tipos de design educacional em outros espaços e tempos que são mais vivos e processuais e que podem ampliar nossa visão sobre o ato de aprender e, especialmente, criar condições e trajetórias para aprender melhor. Uma das tentativas de superar essa associação entre o comportamental e o design de processos de ensino e de aprendizagem foi utilizar design “educacional” em vez de “instrucional”, porque, no Brasil, a palavra instrucional tem uma ligação imediata com “instrução programada”, que foi uma série de movimentos e programas de aplicação massiva das teorias comportamentais na educação, comum nas décadas de 1970 e 1980. Mas a palavra instructional, em inglês, está associada ao que é planejado, ou seja, às ações em que se tem um plano pedagógico. Assim, nem sempre o que é planejado é comportamental, sendo que um design, apesar de ser planejado, pode ser algo dialogado, mais vivencial, mais lúdico e colaborativo, que traz outras dimensões e potencialidades para o ato de aprender, muito além de reforçar comportamentos esperados. Assim, a ideia de design, que vai muito além de regras, templates, desenhos e planejamento, promove uma complexidade de ações que pode dar muito mais vida, dinâmica e uma postura mais ativa e propositiva para a educação, incorporando movimentos e tendências, inclusive a gamificação. Então, que mecânicas e dinâmicas do design de jogos podem contribuir para o design educacional? A proposta deste texto é brincar com as controvérsias dos movimentos educacionais, colocando o design educacional em jogo e convidando você, leitor, a se colocar diante de situações educacionais possíveis, como um jogador que explora determinado contexto, encontra desafios e tem de resolver problemas, se posicionar ou tomar decisões,
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considerando as armas que o design de jogos pode nos oferecer para lidar com esses desafios educacionais. Nosso capítulo/jogo tem cinco fases que correspondem a grandes desafios do design educacional: a intencionalidade pedagógica, a superação do modelo comportamental, a transformação do demonstrativo em vivencial, a iteratividade e as novas formas de imersão/ presença. Convidamos você a tomar algumas decisões diante desses desafios. Regras do jogo
O objetivo deste capítulo/jogo é encontrar caminhos para um design educacional mais avançado, menos reativo e mais conscientizador. O design de jogos pode nos dar muitas pistas de como criar processos mais interativos e exploratórios, mas não é possível apenas trocar um processo de design educacional pelos processos de criar um jogo: é possível comparar e contextualizar, aproveitando o que cada processo tem a ensinar e transformar. Então, é preciso coletar e conhecer o potencial das armas que o design de jogos nos pode dar e usá-las com parcimônia e coerência para potencializar o design educacional Antes de começar nosso jogo, é preciso tecer algumas considerações sobre mecânicas e dinâmicas e como podemos ampliar novas ações do design educacional com as tecnologias e as lógicas dos games. Um dos frameworks mais conhecidos de design de jogos é conhecido como mecânica-dinâmica-estética (mechanics-dynamics-aesthetics ‒ MDA) e foi desenvolvido por Hunicke, LeBlanc e Zubek em 2004. O MDA considera como mecânicas os elementos ligados às regras, às leis e à física: restrições e padrões programáveis. As dinâmicas se relacionam aos movimentos, às ações e aos comportamentos que emergem a partir de regras e padrões, ou seja, ao sistema e aos fluxos. Já a estética, nessa perspectiva de Hunicke, LeBlanc and Zubek (2004), se refere às respostas emocionais evocadas no jogador, que os autores classificam em oito tipos principais: sensação/excitação ‒ o jogo como sensação de prazer, que vem de uma experiência complemente nova; fantasia ‒ quando o jogo faz acreditar num mundo imaginário; narrativa ‒ quando o jogo funciona como um drama; desafio ‒ o jogo como um obstáculo a ser superado; confraria ‒ o jogo funciona como um local de encontro, troca, como uma comunidade; descoberta ‒ o jogo como um território desconhecido a ser explorado; expressão ‒ o jogo como espaço de expressão de ideias e da representação de si; e submissão ‒ quando o jogo é um passatempo e apenas o jogador se submete às regras. Outra questão muito comum que aparece em relação a game e gamificação é a questão da motivação e o engajamento. Chou (2015) estudou por dez anos as diversas mecânicas e estruturas de games e propôs um framework para ajudar a pensar nessas motivações que permeiam os processos de gamificação. Esse autor critica os modelos que reduzem a motivação a pontuações e ranqueamentos e apresenta um framework chamado Octalysis, que tem uma forma de octógono por meio do qual são apresentadas as oito faces da motivação: significado, realização, posse, escassez, empoderamento, influência social, imprevisibilidade e repúdio. O significado e o repúdio são o topo e a base desse octógono. Podemos dizer que somos motivados por um propósito que nos dê significado e por aquilo que negamos e
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evitamos, como se fosse nossa sombra, com a qual precisamos trabalhar e conviver, numa relação de conflito que nos motiva. O lado esquerdo do octógono de Chou destaca-se pelas motivações intrínsecas (realização pessoal, posse e escassez), com o foco no indivíduo e na sua evolução com a racionalização dos processos, como a ideia de cumprir etapas, vencer desafios, superar obstáculos, progredir e avançar, e com a coleção de objetos, mesmo que sejam simbólicos, que é a lógica da posse e do ganho e, principalmente, de obter aquilo que é mais raro para ser diferente e, geralmente, melhor que os outros por ter conseguido algo que é escasso. O lado direito do octógono de Chou aponta as questões de motivações extrínsecas (empoderamento, influência ou pressão social e a imprevisibilidade), ou seja, focadas no nosso impacto e na relação social como o empoderamento e a capacidade de criação, o quanto a sua ação afeta a ação dos outros ou é afetada por ela e o grau de surpresa, risco e curiosidade que a ação provoca. Neste texto, vamos combinar algumas regras e motivações e esperamos “tocar” você, leitor, e convidá-lo a pensar em novos designs educacionais. Regra principal: o objetivo do capítulo/jogo é tornar o design educacional mais vivencial e potencializar a aprendizagem Temos alguns desafios principais a serem superados: lidar com intencionalidade, superar o paradigma comportamental, pensar em formatos mais experienciais, aproveitar a iteratividade e lidar com novos espaços imersivos. Durante o processo haverá algumas quests para incorporar os desafios, bem como armas e poderes do design de jogos/gamificação para usar nessas quests, com o objetivo de promover um design educacional gamificado. Convidamos o leitor a identificar os elementos das dinâmicas e se posicionar, escolhendo ou não “armas” e “poderes” que julgar mais adequados. As armas são estruturas mais concretas e os poderes são movimentos e fluxos. Também vamos discutir, ao longo do processo, as controvérsias de cada escolha para tensionar ainda mais. Topa o desafio? Desafio 1: ter consciência da intencionalidade pedagógica
Um dos maiores desafios do design educacional é a intencionalidade, porque toda ação educativa tem uma intencionalidade, não importa se é num contexto formal ou não formal. Sempre se espera transmitir uma mensagem, demonstrar conceitos e procedimentos, ou se deseja que alguém desenvolva determinada habilidade ou competência, que pode ser algo mais pontual ou muito complexo e que envolva mais que um “saber fazer”, englobando a compreensão ética e até estética das ações realizadas. Para que o processo seja justo e transparente, é fundamental que essa intencionalidade esteja muito clara e explícita. Se o processo de ensino-aprendizagem acontecer num contexto formal, ligado a um currículo, deve seguir algumas diretrizes, ter o processo registrado e apresentar resultados para os órgãos oficiais. Mas se a intencionalidade é algo muito marcado, completamente indutivo com a desculpa de ser explícito, pode se sobrepor e até artificializar o movimento do aprender. É a regra que se sobrepõe à vivência do jogar.
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Quest 1: é possível dar ao jogador/aprendiz consciência do processo sem tirá-lo da imersão da vivência?
Contexto: você espera desenvolver habilidade de resolver problemas numa criança. Armas e poderes de design de jogos/gamificação dos processos • Arma 1 ‒ sistema de pontuação: valorar numericamente cada resultado correto. Os erros podem ser penalizados, havendo um ranking entre jogadores. • Arma 2 ‒ sistema evolutivo: descrever cada passo, dividir entre problemas mais simples e ir evoluindo para questões mais complexas, explicitando cada fase com uma barra de progresso. • Poder 1 ‒ contar boas histórias: narrativa contextual em que, para obter um resultado desejado na história, devem se combinar, comparar ou contar elementos. • Poder 2 ‒ construção: sistema de construção de objetos/espaços no qual o jogador deve selecionar quantidades e formas corretas para que consiga realizar as obras desejadas.
Qual dessas armas e poderes você escolheria? E se pudesse escolher mais de um? Usando qual deles a intencionalidade ficaria bem marcada, mas isso não seria artificial? Em qual ela ficaria implícita e incorporada no contexto, mas isso não seria uma distração ou até algo alienante? Muitos jogos criados com intencionalidade educativa são profundamente indutivos e explícitos quanto ao que se deve aprender e geralmente, por isso, são chatos, porque querem mostrar, direcionar e induzir o tempo todo, para garantir que a pessoa está entendendo, aprendendo, seguindo a trilha. É muito comum no design educacional dividir os processos e criar uma lógica narrativa, sequencial e/ou evolutiva, do mais simples para o mais complexo. Isso, em geral, ajuda a entender o processo e o deixa mais claro, mas, muitas vezes, o artificializa, pois nos contextos reais os problemas não são separados e organizados, não há redução ou didatismo. É preciso trabalhar com muitas variáveis ao mesmo tempo. Podemos, então, ocultar a intencionalidade? O aprendiz precisa conhecer a intencionalidade pedagógica? Não podemos trazer problemas reais ou interessantes e deixar o aluno/ jogador resolver sem perceber que está aprendendo? Distraí-lo ou torná-lo inconsciente de seus processos metacognitivos é algo indesejável e até perigoso, pois é uma forma de alienar e de tornar uma pessoa facilmente manipulável. Aprender de forma consciente do seu processo é algo transformador e que gera maior autonomia em quem aprende, tornando-o mais responsável por suas escolhas. Assim, é interessante promover situações contextuais e vivenciais, nas quais eles devem escolher, se posicionar e trabalhar com complexidade semelhante à do mundo real, mas conscientes disso. Escolher armas de evolução e divisão é algo que artificializa, mas pode ter alguns ganhos antes de viver a complexidade maior, por isso, pode ser um primeiro passo. Usar competição e pontuação é uma forma de motivação externa que pode ser engajadora em alguns momentos e para determinado público, mas que não se mantém ou pode se afastar da conscientização sobre o que e para que aprender.
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Um processo gamificado focado numa narrativa mais complexa, na vivência de papéis que possibilite projeção imersiva, pode trazer outras dimensões para o processo, sejam elas arquetípicas, de comparação contextual e até de natureza empática, na medida em que se podem assumir vários pontos de vista de uma história. Mas a imersão integral não é desejável no processo educacional como é num jogo. É importante ter o momento da vivência e depois do resgate, da discussão, ou de algum mapeamento que ajude o aluno a entender o que aconteceu e a refletir sobre os motivos das suas escolhas e o que foi aprendido a partir delas. O grande desafio é proporcionar a quem aprende essa clareza da intencionalidade, mas sem estragar o prazer da imersão. Como resgatar a pessoa da vivência no momento certo? Como propor oportunidades para criar respostas diferentes ou para se transportar para os outros mundos com a narrativa; como promover e vivenciar a imersão, mas sem esquecer do momento de compreender o processo para que não se fique em um mero entretenimento com fim em si mesmo? Essa é uma tensão importante. Desafio 2: como superar as reduções do modelo comportamental ainda tão presentes na educação e no design de jogos
Quest 2: como dar feedbacks sem cair nas armadilhas dos modelos mais comportamentais?
Contexto: imagine que você tem de criar a gamificação de um curso sobre gestão e precisa criar feedbacks para o desempenho de quem está realizando o curso. Armas de design de jogos/gamificação dos processos • Arma 3 – puzzles: criar pequenos puzzles sobre as diversas tarefas envolvidas nos processos de gestão. Na medida em que se resolvessem esses minidesafios, haveria um feedback específico para o cumprimento de cada tarefa. • Arma 4 – jogo de representação de papéis (role playing game – RPG): criar um RPG como vivência dos processos de gestão no qual se teria de escolher as características como gestor, seus pontos fortes e fracos e seus poderes; submeteria-se a desafios nos quais responderia a cada situação conforme o perfil definido. • Arma 5 – sistema de badges (distintivos ou medalhas): criar um mapa de competências do processo de gestão e um sistema de badges que significariam cada competência mapeada para esse gestor, e ele ganharia essas medalhas conforme agisse da forma esperada ou tivesse uma solução mais criativa ou inovadora. • Arma 6 ‒ banco de casos: trazer situações reais de gestão para a vivência gamificada por meio de bancos de “casos” colaborativos alimentados por empresas e gestores que desejam compartilhar seus desafios com o curso para explicitar e melhorar seus processos. • Arma 7 ‒ visualização de dados abertos: elaborar ferramentas de visualização de processos com dados vindos de sistemas reais abertos (como empresas públicas) em que o gestor deve interpretar os gráficos gerados e propor soluções.
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Uma das características que difere o jogo de outros produtos educacionais é a agência do jogador, ou seja, ele sempre é convidado a participar e a interagir de alguma forma. Uma metodologia educacional que usa gamificação como estratégia pedagógica tem de ser uma metodologia ativa. Mas qual tipo de agência ele tem? O jogador é mais ativo, e até criativo, quanto maior a complexidade dessa agência, que deve estar relacionada diretamente com a jogabilidade. O desafio é alinhar competência com agência e jogabilidade. Por exemplo, um gestor deve desenvolver muitas competências complexas, que envolvem análise contextual, múltiplas variáveis e decisões complexas, mas num modelo mais comportamental em que se criam atividades reativas, ou seja, com uma pergunta e algumas repostas esperadas, na qual o jogador só reage, criando-se um feedback para cada uma delas. O que acontece nesse caso é que o agente, na verdade, tenta responder antecipando o que se espera que ele responda, muitas vezes até seguindo um padrão do “politicamente correto” e do “comportamento esperado”, e nem sempre se posiciona como faria numa situação de conflito real. Um dos grandes desafios da aprendizagem é preparar o aprendiz para o mundo real, e não para realidades artificiais e simuladas. E como trazer o “mundo real” para a gamificação? Como trabalhar com dados reais? Há muitas gamificações que podem ser feitas a partir de dados abertos e que até podem alimentar o sistema com a colaboração de quem joga/aprende. O desafio é criar um modelo de feedback que respeite novas entradas e possibilite a criação de novos padrões de soluções. Os feedbacks geralmente são programados e criados a partir de antecipações, mas, em sistemas colaborativos e mais criativos, a proposta é dar uma nova situação. Como trazer o novo, a especulação, a promoção de novos caminhos, muitas vezes trazendo soluções mais criativas além daquelas previstas e esperadas por quem criou a ação gamificada? Criar badges/medalhas a partir de tipos de ação pode ser interessante. Por exemplo: na badge, pode ser valorizada uma postura questionadora, e isso pode ser valorizado na análise das competências do gestor sem se limitar a um tipo específico de questão formulada ou a um tipo específico de tarefa ou problema com resposta esperada. Os badges/medalhas são indicadores de que a pessoa conseguiu estabelecer a relação. Assim, é possível criar indicadores para posturas como argumentação, contextualização, questionamentos, proatividade etc. e dar feedback a partir de símbolos que significam essas posturas. Dessa maneira, o foco é em como a pessoa contribuiu, e não um simples treinamento de habilidades por repetição, memorização ou compreensão redutora. Também é possível que o mesmo símbolo tenha níveis de aprofundamento diferentes, tornando o marcador/indicador ainda mais complexo. Por exemplo, podemos ter um badge que a pessoa recebe quando colabora. Mas pode haver diversos níveis de colaboração: algo mais pontual, mais contextual, ou mesmo uma colaboração intensa que cause transformação na ideia. Assim, o mapa de competências simbolizadas por badges/medalhas pode funcionar de forma muito semelhante às rubricas, mas com uma representação mais simbólica.
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Desafio 3: indutivo demonstrativo ou mais dedutivo e experiencial?
Quest 3: é melhor trabalhar com situações controladas e indutivas para garantir a compreensão (cria-se um universo de jogo controlado) ou trazer desafios mais complexos, muitas vezes vindos de situações reais de alta complexidade para se explorarem e descobrirem novas soluções, mas com elementos gamificados?
Armas de design de jogos/gamificação dos processos • Arma 8 ‒ mundo controlado: criar um universo controlado possibilita feedbacks mais específicos e foco em treinamento de habilidades que podem ser importantes. • Arma 9 ‒ padrões estereotipados: criar universos controlados, mesmo que com padrões estigmatizados, até usando como recurso o exagero dos estereótipos, pode nos tornar mais conscientes de processos que existem numa situação real. • Arma 10 ‒ universos fantásticos: criar situações em universos fantásticos que correspondam arquetipicamente a situações do cotidiano cria uma controvérsia entre trabalhar com problemas fictícios e trazer problemas reais, dosando os tipos de provocação que se esperam e todas as vantagens e os riscos que isso traz para os processos educacionais. • Poder 3 ‒ o meio é a “massagem”: decidir como escolher ou criar tecnologias que gerem maior impacto e uma vivência mais intensa.
A ficção realista de universos controlados pode trazer os conflitos e os desafios esperados e as habilidades específicas que se espera desenvolver, mas pode ser direcionada demais se for algo controlado, com foco indutivo e demonstrativo, em que só se repetem padrões e nada de novo se cria. Criar estereótipos exagerados pode ser uma forma de conscientização, mesmo parecendo o contrário, pois é uma forma de provocação e até uma crítica ao comportamental, desde que se promova um momento de reflexão posterior, no qual se revelem e discutam os incômodos e esses estigmas. Uma ficção fantástica, que traz um foco maior no universo arquetípico, pode favorecer um tipo de expressividade mais simbólica, no qual a pessoa age até de forma mais intuitiva. Mas é preciso, depois, trazer essas vivências nas suas relações com o contexto. Trabalhar com casos ou dados diretos da realidade pode trazer diversidade, mas é preciso buscar boas fontes e boas formas de visualização e acompanhamento, para que existam situações interessantes, problematizadoras e realmente representativas e diversificadas. Os problemas reais têm múltiplas variáveis e são difíceis de resolver como um todo, então a estratégia “dividir para conquistar” pode ser uma boa ideia. Por isso, opta-se muitas vezes por criar situações fracionado os problemas de forma demonstrativa e mais indutiva para garantir maior compreensão dos processos. Os formatos mais indutivos e demonstrativos ajudam a desenvolver o raciocínio lógico, mas podem gerar maior dificuldade de identificar os problemas do mundo real e criar bons solucionadores de problemas apenas em mundos controlados. Isso acontece muito com crianças que desenvolvem habilidades incríveis em jogos, mas não conseguem transportar o que aprenderam para outros contextos que exigem a mesma habilidade.
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Gamificação em debate
Partir da complexidade maior significa assumir o risco da dificuldade do problema complexo: trabalhar com muitas variáveis pode ser difícil demais, portanto as pessoas talvez desistam no meio do caminho. Então, nesses casos, é importante ter um sistema de apoio, de pistas, para que se desenvolvam ações mais investigativas e dedutivas. Uma situação fictícia pode ser mais dedutiva? É possível criar um sistema por desafios e por descoberta, mais exploratório, com pistas e dicas que promovam a apresentação do caso complexo e no qual, aos poucos, seja possível buscar os indícios e as ampliações, propondo relações mais profundas com os contextos. Ainda assim, sempre existe o risco de o desafio ser difícil demais. É preciso estar preparado para oferecer mais ajuda ou possibilitar várias formas de colaboração quando o grupo lida com a complexidade. Além da complexidade, é importante perceber como esses fluxos nos tocam. Quando a experiência é um verdadeiro bombardeio de informações simbólicas e sensoriais com foco no consumo, pode gerar uma alienação com pouca projeção e imaginação. É o que McLuhan (1967, p. 18) diz no livro O meio é a massagem, num trocadilho com massage e message, considerando o impacto desse meio no indivíduo, que pode ser mais ou menos intenso. Segundo McLuhan (1969, p. 38) há meios quentes e meios frios: os quentes têm uma saturação de informação e o prolongamento de um sentido e permitem menor participação por conta desse excesso de informações, o que pode provocar confusão (mess) e massificação (mass) de conceitos e comportamentos; já os frios, e ele usa como exemplo a escola da época (que mudou pouco), têm menos informação, mas são organizados e enquadrados, o que pode gerar menor impacto pela saturação, porém também podem ser limitantes pelo formato industrializado, com dados organizados e direcionados demais, e, assim, igualmente massificante. Então, temos uma tensão constante entre a saturação e os espaços de projeção e criação. Desafio 4: iteratividade
A iteratividade é outro grande desafio do design educacional ligado à gamificação. Muito do que se ensina e se aprende sobre o design educacional está apoiado em matrizes, tabelas e roteiros nos quais se constrói o planejamento didático e depois se tenta traduzir o que foi planejado em materiais que, juntos, vão compor um curso. No design de jogos, também temos frameworks que nos ajudam a descrever a lógica por trás dos jogos e desenhar suas mecânicas. Mas, como já descrevemos, também temos as dinâmicas e as estéticas, que dão vida às regras. Assim, podemos ter os parâmetros iniciais que descrevem nossos escopos e nossos limites, mas, para dar vida ao design, temos de trabalhar com os conflitos, com o “não planejado”, com o que “dá errado” durante o processo. Esse é o grande desafio do processo de design, especialmente no caso do design gamificado: planejar, descrever, jogar, errar, refazer, jogar, refazer, jogar, refazer. Quest 4: como o refazer pode fazer parte do jogo?
Armas e poder de design de jogos/gamificação dos processos • Arma 11 ‒ sandbox: criar espaços de experimentação sobre ou dentro das ações gamificadas. Um ambiente em que se possa criar sem medo, experimentar algumas mecânicas para aprender a lógica, testar ou mesmo questionar. Um local “seguro” e que não faz parte da aventura controlada ou avaliada.
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• Arma 12 ‒ visibilidade para erros/conflitos: quando se encontra um erro, ele pode ser consertado ou provocar uma desestabilização no sistema e na mecânica para que, como um todo, seja repensado. Sistemas nos quais se marcam ou se apontam erros e inconsistências são armas importantes. • Arma 13 ‒ teste beta e grupos para colaborar: testar versões iniciais com comunidade de jogadores é algo bem interessante. Na educação, podemos fazer cursos-piloto ou testar materiais dentro de comunidades de práticas • Poder 4 ‒ lidar com a imprevisibilidade: o grande poder é conseguir lidar com o novo, o desconhecido, tendo-se alguns palpites pelo planejamento, porém esperando que sempre haverá surpresas e fazendo dessas surpresas não o erro desagradável, mas uma nova via criativa de algo que não havia sido previsto e pode ser incorporado como uma ampliação do processo.
Erros de programação e codificação (sintaxe) tendem a ser corrigidos, mas quando há um erro na lógica computacional (semântica), este pode passar despercebido num primeiro momento e afetar todo o sistema, que deverá ser repensado. Como dar visibilidade aos erros/conflitos para que eles se tornem nossos trunfos e nosso grande desafio no design educacional, seja nos seus processos, seja nas estratégias criadas por eles? Como fazer com que também incorporem aprendizagem por projetos e com que, nesses projetos, sejam colocados espaços iterativos de prototipação e aprendizagem a partir dos erros? Desafio 5: como as novas tecnologias estão ampliando a imersão e podem contribuir com um design educacional mais imersivo?
Quest 5: quais novas tecnologias imersivas você considera relevantes para causar uma experiência sensorial tão profunda como uma vivência intensa e até mais impactante que a experiência física não mediada?
Armas de design de jogos/gamificação dos processos • Arma 14 ‒ realidade virtual: transportar o usuário de uma realidade para outra, sintética, tridimensional e interativa. • Arma 15 ‒ realidade aumentada: ampliar sua vivência do espaço físico com conteúdos virtuais. • Arma 16 ‒ teleimersão: pensar tecnologias imersivas, que podem ser tanto de realidade virtual quanto aumentada, para viabilizar interações em que uma pessoa se sinta teletransportada para outro ambiente real ou tenha a sensação de que pessoas ou objetos reais distantes estejam localmente presentes. • Arma 17 ‒ internet das coisas (internet of things – IoT): conectar objetos e dispositivos cotidianos à internet, tornando possível receber informações e atuar sobre eles. • Arma 18 ‒ mod games: são ferramentas disponibilizadas pelos produtores de games que facilitam a modificação de seus títulos pelos próprios jogadores ou por profissionais de artes e design, incentivando a criação, a custo zero para as empresas, de novas fases ou até mesmo de novos jogos que estendam a vida útil e o mercado de seus títulos.
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Gamificação em debate
A indústria dos games tem trazido importantes contribuições para a apropriação de novas tecnologias interativas e de imersão, entre as quais destacamos: • Equipamentos como sensores de movimento, câmeras de profundidade, visores de realidade virtual e óculos de realidade aumentada, a custos acessíveis e de uso simples. • Ferramentas de software que facilitam a modificação de jogos, mesmo por pessoas sem conhecimento de programação, para a criação de novas fases, novos jogos ou até aplicações “sérias”, como simuladores e objetos de aprendizagem. • Disponibilidade de game engines (motores de jogos) e ambientes de desenvolvimento, sejam estes de baixo custo, abertos, livres ou comerciais de uso gratuito para fins não lucrativos. • Possibilidade de criação de machinimas (animações geradas a partir de cenas criadas em jogos) que reduzem em várias ordens de grandeza a produção de vídeos educacionais, ao dispensar estúdio, atores, maquiagem, cenografia, figurino, equipamentos de gravação, entre outros, e oferecem conteúdos numa linguagem bastante próxima ao público-alvo formado por estudantes. • Novas tecnologias são rapidamente assimiladas, não apenas pelos jogadores, mas por toda a sociedade, facilitando seus usos em outros contextos. • Novas linguagens e novas mídias incorporam-se à cultura dos games, aumentando o leque de opções para designers instrucionais e facilitando a comunicação com os jovens. • Novas formas de imersão e interação podem ser utilizadas em objetos educacionais, educação a distância e atividades educacionais em geral, propiciando melhores percepções de presença e engajamento dos alunos.
Dentre as principais tendências, destacamos: realidade virtual, realidade aumentada, teleimersão, IoT e mod games. O conceito de realidade virtual é o transporte do usuário de uma realidade para outra, sintética, tridimensional e interativa. São diversas as tecnologias que podem ser empregadas para criar a ilusão de imersão em outra realidade. A mais comum é o chamado visor de realidade virtual (head-mounted display ‒ HMD). Esse dispositivo, acoplado à cabeça, projeta nos olhos do usuário imagens tridimensionais e estereoscópicas (técnica que produz imagens diferentes para cada olho, criando a ilusão de profundidade, como no cinema 3D), em tempo real e de acordo com o posicionamento da cabeça. Poucos anos atrás, a tecnologia de realidade virtual era quase que exclusividade de laboratórios de pesquisa, parques de diversão e grandes empresas, como as de aviação e de exploração de petróleo. Com o surgimento do primeiro HMD de baixo custo (Oculus Rift, posteriormente adquirido pelo Facebook), começaram a surgir diversos jogos e também aplicações em outras áreas, em especial para a educação, nas quais o usuário pode imergir em outras realidades. O grande diferencial nesse tipo de aplicação é a “agência do movimento de cabeça”, ou seja, o usuário pode mover a cabeça livremente e perceber as imagens visuais e auditivas exatamente como se estivesse de fato naquele ambiente. O sucesso desse dispositivo motivou o surgimento de HMD concorrentes e até de adaptadores para celular
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criados pelo Google (Google Cardboard e Daydream) e inúmeros similares, de todas as formas, materiais e qualidades imagináveis. Na área de educação há um grande potencial para treinamentos e gamificações em atividades que envolvem riscos, dificuldade de acesso ou altos custos, como cirurgias, operação de equipamentos, laboratórios virtuais, entre outros. A possibilidade de redução de distâncias entre alunos e conteúdos é o ponto forte dessa tecnologia. Há, no entanto, vários desafios nessa área. O principal deles é o uso adequado dessa mídia, com conteúdos e narrativas que de fato justifiquem a imersão, e não apenas se apoiem na curiosidade e na novidade. Outro problema é a incompatibilidade entre as diversas tecnologias hoje existentes. Ao contrário da realidade virtual, a realidade aumentada não visa retirar o usuário de sua realidade, mas enriquecê-la com conteúdos virtuais. Nem toda mistura de virtual com real inclui-se nesse conceito. Projetar imagens sobre um prédio ou apontar o celular para um código de barras ao lado de um objeto exposto num museu e ver no celular informações sobre a obra são contraexemplos, pois, apesar de mesclarem virtual e real, não possuem todos os requisitos de uma aplicação de realidade aumentada. Esses requisitos são: interatividade, tridimensionalidade e, principalmente, registro espacial entre os elementos virtuais e os objetos do ambiente físico. É importante ressaltar que o conceito de realidade aumentada não se limita a imagens visuais: sons e outras sensações sinteticamente criadas em tempo real, desde que devidamente localizados e registrados no espaço físico, também se enquadram nessa nova mídia. A realidade aumentada já vem há algum tempo sendo usada em dispositivos móveis, na chamada visualização indireta, em que observamos o mundo aumentado pela tela do dispositivo. Mas somente com a chegada dos jogos de realidade aumentada essa técnica começou a se popularizar. O lançamento do Hololens da Microsoft, que deve ser seguido pelo Magic Leap da Google, traz outro patamar tecnológico, baseado na tecnologia optical see-through, que possibilita a visão direta do ambiente real misturada com os elementos virtuais, por meio de lentes semitransparentes. É de se prever que, com o barateamento desses dispositivos vestíveis, usar óculos de realidade aumentada, que poderão até mesmo incluir recursos de correção para míopes e hipermétropes, poderá passar a ser tão comum quanto usar óculos de sol ou de grau. Nesse cenário, o potencial de aplicações é enorme, e certamente a indústria dos games saberá aproveitá-lo. Os educadores devem se preparar para desenvolver atividades lúdicas de aprendizagem nessa nova realidade. Tanto a realidade virtual quanto a realidade aumentada propiciam um tipo de experiência que denominaremos “teleimersão”. Além da eliminação de distâncias propiciada pelas técnicas tradicionais de teleconferência, as tecnologias imersivas viabilizam interações em que uma pessoa possa se sentir teletransportada para outro ambiente real ou ter a sensação de que pessoas ou objetos reais distantes estejam localmente presentes, por meio de projeções que simulam holografias. Podemos pensar em muitos exemplos no contexto educacional, como visitas virtuais a museus e locais históricos reais, atividades em que estudantes de diferentes culturas e etnias interajam como se estivessem em um mesmo espaço físico, redes sociais imersivas, o acompanhamento de uma cirurgia em tempo real, ou até mesmo a realização de atividades teatrais ou esportivas misturando participantes remotos e locais. Não é difícil também imaginar o potencial lúdico desse conceito.
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Um recurso mais prático de produzir que a realidade virtual, mas que também pode criar o efeito da teleimersão, é o chamado vídeo 360. Com câmeras e/ou lentes especiais (que em algum momento também deverão se tornar disponíveis em dispositivos móveis), é possível filmar um local ou um evento de todos os ângulos. Posteriormente, esse vídeo 360 pode ser assistido por meio de visores de realidade virtual ou usando simples adaptadores de baixo custo para celulares, como o Google Cardboard e similares, o que provoca um alto efeito imersivo. Mesmo sem ter a interatividade, essencial para ser caracterizado como realidade virtual, o vídeo 360 tem alta imersividade e pode propiciar a sensação de teleimersão. Outra tendência tecnológica que em breve deve impactar as áreas de game e educação é a IoT. A ideia é que objetos e dispositivos comuns em nosso dia a dia passem e ser acessíveis via internet. Será possível não apenas receber informações desses dispositivos a distância, como também atuar sobre eles. Os alunos poderão interagir com equipamentos de laboratório e até executar experimentos a distância, dados sobre a atuação dos alunos poderão ser coletados durante o desenvolvimento de atividades, a lousa poderá ser compartilhada e receber contribuições de alunos locais e a distância, e até mesmo as carteiras poderão ter inteligência e interatividade. Com essa tecnologia, a mistura entre real e virtual atingirá seu grau máximo, fazendo com que o chamado ensino híbrido (blended learning) passe a ser a norma, e não mais a exceção. Contando os pontos e mapeando os caminhos escolhidos
Chegando ao fim da nossa experiência, olhe para seu inventário e pense: quais armas você coletou? Que poderes adquiriu? Qual foi o desafio que considerou mais difícil? Quais já conseguiu superar ou está “lutando contra” no seu contexto pessoal ou profissional? Tabela 12.1 – Dinâmicas do design educacional gamificado Desafios
Armas
Poderes
Intencionalidade pedagógica
Sistema de pontuação
Contar boas histórias
Ir além do comportamental
Sistema evolutivo
Construção
Experimentação
Puzzles
Meio é a “massagem” (criar impacto)
Iteratividade
Jogo de representação de papéis (RPG)
Lidar com a imprevisibilidade
Novas tecnologias
Sistemas de badges Bancos de casos Visualização de dados Mundos controlados Padrões estereotipados (continua)
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Tabela 12.1 – Dinâmicas do design educacional gamificado (continuação) Desafios
Armas
Poderes
Universos fantásticos Sandbox Visbilidade dos erros Teste beta Realidade virtual Realidade aumentada Teleimersão IoT Mod games
O design educacional precisa superar a reatividade, os problemas prontos e os comportamentos estigmatizados e previsíveis, que geralmente são escolhidos por serem mais fáceis de programar e controlar a partir de comportamentos esperados e feedbacks redutores como criar pontuações, recompensas e até punições. Ao propor um design educacional gamificado, que vai além de uma lógica comportamental, é preciso pensar em desenhos mais complexos de game e ações gamificadas com trajetórias diferentes e promover ações coletivas, inclusive a partir de dados reais do contexto. Caso exista algum tipo de recompensa, que seja uma simbolização mais complexa, ou seja, um feedback que dê visibilidade ao processo, e não simplesmente reações pontuais sem nenhum sentido no processo. Que se aproveitem todas essas possibilidades da complexidade das dinâmicas e estéticas e se supere a submissão às mecânicas, transformando o próprio sistema a cada experiência. Como podemos agora transportar essas tensões que discutimos aqui para aquelas que enfrentaremos na construção dos processos educacionais? Como a consciência desses desafios, armas e poderes podem nos ajudar? É preciso entender que há muitas possibilidades de histórias e trajetórias, e podemos escolher vários caminhos, mas é importante mapeá-los para entender o quanto e como estamos avançando no sentido de um design mais consciente das mobilizações que está projetando. Oferecemos algumas peças, regras e truques para gamificar a educação, mas isso é só o começo. A mecânica só se concretiza na interação. A melhoria dos processos se faz nas iterações, que é quando revemos e melhoramos nossos planejamentos, processos e indicadores, mas o mais importante é a estética daquilo que nos toca e como nos toca, de tecnologias que ampliam nossa sensorialidade a formas de atuação no mundo, como histórias, drama e fantasias, que nos convidam a projetar, imaginar e transformar. Neste texto, usando como princípio o octógono de Chou (2014) e tentando trazer principalmente os propósitos e os incômodos do design educacional, propusemos uma
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Gamificação em debate
coleção de elementos, trajetórias e poderes para ajudar na conscientização sobre os processos. Esperamos avançar ainda na direção do impacto social dos novos designs educacionais e de como a gamificação pode ajudar a torná-los mais conscientes e conscientizadores. Referências BERNARDES JR., J. L. et al. Augmented reality games. In: LEINO, O.; WIRMAN, H.; FERNANDEZ, A. (ed.). Extending experiences: structure, analysis and design of computer game player experience. Lapland: Lapland University Press, 2008. p. 228-246. CAROLEI, P.; TORI, R. Gamificação aumentada: explorando a realidade aumentada em atividades lúdicas de aprendizagem. TECCOGS: Revista Digital de Tecnologias Cognitivas, v. 9, p. 14-45, 2014. CHOU, Y.-K. Actionable gamification: beyond points, badges, and leaderboards. San Francisco: Octalysis Media, 2015. COLLAÇO, E. et al. Virtual body swap: a new feasible tool to be explored in health and education. In: SYMPOSIUM ON VIRTUAL AND AUGMENTED REALITY (SVR), 18., 2016, Gramado. Anais... Gramado: UFRGS, 2016. p. 81. FILATRO, A. Design instrucional contextualizado: educação e tecnologia. São Paulo: Senac, 2004. ______. Design instrucional na prática. São Paulo: Pearson, 2007. HUNICKE R.; LEBANC M.; ZUBEC R. MDA: a formal approach to game design and research. In: NATIONAL CONFERENCE ON ARTIFICIAL INTELLIGENCE, 19., 2004, San Jose. Proceedings... San Jose: 2004. p. 1-5. MACEDO, L. Jogo e projeto: pontos e contrapontos. São Paulo: Summus, 2006. MCLUHAN, M. The medium is the massage: an inventory of effects. New York: Bantam Books, 1967. ______. Os meios de comunicação como extensões do homem. São Paulo: Cultrix, 1969. MOREIRA, P.; OLIVEIRA, C. E.; TORI, R. Impact of immersive technology applied in computer graphics learning. In: SIMPÓSIO BRASILEIRO DE INFORMÁTICA NA EDUCAÇÃO, 27., 2016, Uberlândia. Anais... Uberlândia: SBC, 2016. p. 410. MURRAY, J. H. Hamlet no holodeck: o futuro da narrativa no ciberespaço. São Paulo: Unesp, 2003. SALEN, K.; ZIMMERMAN, E. (org). The game design models. In: The game design reader: a rules of play anthology. Cambridge: MIT Press, 2006. TORI, R. Tecnologia e metodologia para uma educação sem distância. Revista Em Rede, v. 2, p. 44-55, 2015. TORI, R.; KIRNER, C.; SISCOUTTO, R. Fundamentos e tecnologia de realidade virtual e aumentada. Porto Alegre: SBC, 2006.
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Priscilla Garone Sérgio Nesteriuk Fundamentada pelo Decreto n. 5.662, de 19 de dezembro de 2005, a educação a distância é uma modalidade educacional em que a mediação didático-pedagógica nos processos de ensino e aprendizagem ocorre com estudantes e professores em lugares ou tempos diversos, por meio da utilização das tecnologias de informação e comunicação. Com a intenção de expandir e interiorizar a oferta de cursos e programas de educação superior no país na modalidade a distância, o sistema Universidade Aberta do Brasil (UAB) foi instituído pelo Decreto n. 5.800, de 8 de junho de 2006. Dados disponibilizados em 2016 pelo Ministério da Educação (MEC), por meio do Sistema e-MEC, demonstraram a existência de 1.948 cursos superiores a distância em atividade, sendo 1.771 cursos de graduação e 177 de especialização. Os dados do relatório analítico de aprendizagem a distância no Brasil, realizado pela Associação Brasileira de Educação a Distância (ABED) e divulgado junto aos censos EAD Brasil a partir de 2008, expressam que a utilização de jogos nessa modalidade educacional vem crescendo, e o censo de 2014-2015 salienta que 47% dos respondentes confirmaram o uso desse recurso. Vários estudos divulgam os resultados positivos da utilização de jogos na educação a distância (HAGUENAUER et al., 2007; MATTAR, 2010; MASSENSINI; JUNIOR; SILVA, 2011; CAMPOS; OLIVEIRA; SILVA, 2014). Os jogos contribuem para o processo de aprendizagem do estudante, possibilitando uma experiência diferenciada com o conteúdo e tornando-se, sobretudo, atividade de motivação. A gamificação é aqui entendida como uma abordagem que visa atingir determinada meta (por exemplo, instigar e motivar a execução de alguma tarefa) por meio do uso de elementos dos jogos. A expansão da gamificação para a educação a distância atravessa os campos do design de jogos e do design instrucional e promove reflexões acerca das respectivas áreas de aplicação, para o desenvolvimento de projetos que transformem a experiência e o modo de interação dos estudantes.
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Gamificação em debate
Gamificação: conceituação em construção e debate
Zichermann e Linder (2010) explicam que, historicamente, as pessoas tiveram suas vidas delineadas entre trabalho e lazer, isto é, entre o “ter que” e o “querer”. O ser humano gosta de reconhecer padrões, coletar, organizar e ordenar, presentear, realizar, cuidar, ser um herói e ganhar status, e ainda aprecia surpresas, atenção e fama. Por essas razões, as pessoas inerentemente gostariam de jogar. Os autores explicam que o termo funware resume a presença ubíqua de jogos ou mecânicas de jogos em nossas vidas. Sua premissa central é a capacidade de conduzir o comportamento do usuário de forma previsível, ostensiva e focada. Zichermann e Cunningham (2011) explicam que a gamificação pode significar diferentes coisas para as pessoas. Algumas veem o termo como fazer jogos explicitamente para a promoção de produtos ou serviços. Outros pensam a criação de mundos virtuais que impulsionam a mudança de comportamento ou fornecem métodos para o treinamento de usuários em sistemas complexos. Ambas as formas estariam corretas, pois a gamificação reúne abordagens diferentes dos jogos para contextos que não são jogos. Os autores afirmam ser possível unir conceitos como serious games, advergames e games for change sob essa perspectiva, e definem gamificação como o processo de pensamento e mecânicas de jogo para envolver os usuários e resolver problemas. Kapp (2012) define gamificação como o uso de elementos de jogo ou diversão para promover aprendizagem e engajamento em outros contextos. Gamificar é usar mecânicas e estéticas baseadas em jogos e pensamento de jogo para engajar pessoas, motivar ações, promover aprendizagem e resolver problemas. Segundo o autor, a gamificação exige uma aplicação cuidadosa, que considere o pensamento e os elementos de jogos que são apropriados a cada situação. Nesse contexto, os resultados positivos e a mudança de comportamento são decorrentes do processo de gamificação. O autor ainda discute a diferença entre serious game e gamificação e explica que o primeiro tende a uma abordagem de uso de jogo dentro de um espaço bem definido, como um tabuleiro ou uma tela de computador, enquanto a gamificação tende a um uso fora de um espaço definido aplicado a outras atividades e contextos além de um jogo. A criação de um serious game está no âmbito do processo de gamificação, e desenvolver um jogo com base em um conteúdo a ser aprendido é uma forma de gamificação do conteúdo. Ambos os serious games e a gamificação estão tentando resolver problemas, motivar pessoas e promover aprendizagem, por meio do uso de elementos baseados em jogos. O objetivo da gamificação é transmitir conteúdos e adicionar elementos baseados em jogos (história, desafios, feedback, recompensas etc.) para criar uma oportunidade de aprendizagem gamificada sob a forma de um jogo educativo ou de uma experiência em sala de aula. Domínguez et al. (2013) apontam que a gamificação é comumente aplicada à tecnologia para computadores pessoais, para versões na internet ou em aplicativos para dispositivos móveis. Dessa forma, o conceito de gamificação é adotado pelos autores como a incorporação de elementos de jogos em softwares que não são jogos, para aumentar o engajamento e a experiência do usuário.
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Busarello (2016) explica a gamificação como um sistema para a resolução de problemas por intermédio da elevação e da manutenção das motivações intrínsecas e extrínsecas do indivíduo, que utiliza cenários lúdicos para simulação e exploração de fenômenos, apoiados em elementos de jogos. Deterding et al. (2011) definem a gamificação como o uso de elementos de design característicos de jogos em contextos que não são jogos, e em alguns momentos a denominam como um sistema de design gamificado, diferenciando-a de design jogável, de serious games e, ainda, de brinquedos. Outra definição que tende a diferenciar a gamificação das demais abordagens é a de Landers (2014), que a considera o uso de atributos de jogo fora do contexto de um jogo, com a finalidade de afetar comportamentos e atitudes relacionados com a aprendizagem. Para o autor, o objetivo da gamificação é melhorar o processo educacional, e não substituí-lo. Se o conteúdo não for planejado e trabalhado de forma a ajudar o estudante a aprendê-lo, a gamificação desse conteúdo não poderá fazê-lo. O autor explica ainda que os serious games, também denominados learning games, games for learning, educational games ou training games, são jogos que, como a gamificação, se propõem a melhorar os resultados da aprendizagem, mas geralmente assumem o papel de instrutor, fornecendo o conteúdo diretamente aos estudantes. O autor defende que a gamificação não tem por intenção ensinar diretamente, mas alterar o contexto comportamental do estudante para uma mudança de atitude, com aumento de motivação. Kapp, Blair e Mesch (2014), em contrapartida, explicam dois tipos de gamificação – a estrutural e a de conteúdo –, podendo ambas existirem em uma mesma aplicação. A gamificação estrutural é a aplicação de elementos de jogo para impulsionar um aprendiz a um conteúdo, sem alteração neste. Não é o conteúdo que se torna um jogo, mas a estrutura em torno do conteúdo, e o foco principal é motivar os aprendizes por meio do uso de recompensas e de feedback em relação ao seu progresso. Os itens mais comuns nesse tipo de gamificação são pontos, emblemas, realizações e níveis. É comum que a gamificação estrutural apresente algum tipo de classificação entre os participantes e de acompanhamento do progresso das tarefas, bem como um componente social, com a possibilidade de compartilhar as realizações. A gamificação de conteúdo, por sua vez, é a aplicação de elementos de jogo a fim de alterar o conteúdo para torná-lo parecido com um jogo. Por exemplo, a adição de elementos da história a um curso ou o início de um curso com um desafio em vez de uma lista de objetivos são métodos de gamificação de conteúdo. A adição desses elementos faz com que o conteúdo se pareça com um jogo. Ainda segundo Kapp et al. (2014), a gamificação como mera adição de mecânicas de jogo em situações que não são jogos é uma abordagem superficial que pode não ser eficaz para promover aprendizado, engajamento ou obter melhorias produtivas. Os autores apontam as razões equivocadas mais comuns para recorrer a abordagens que envolvam jogo, gamificação, ou simulação: (a) a percepção de que todo mundo está fazendo isso; (b) excesso de entusiasmo e a opinião de que jogos são legais, impressionantes e divertidos; (c) achar que a aprendizagem será mais fácil ou acontecerá de forma despercebida (stealth learning); (d) pensar que todos amam jogos, gamificação e simulações; e (e) julgar que é fácil projetar.
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Entretanto, os autores pontuam muitas razões para implementar uma experiência de aprendizagem interativa, dentre as quais destacam-se: (a) criar interatividade no processo de aprendizagem; (b) superar a desmotivação; (c) oferecer oportunidades para reflexão; e (d) mudar positivamente o comportamento. Os autores explicam ainda que, antes de decidir por uma solução gamificada, é preciso refletir sobre questões fundamentais, como: qual é o problema real; qual a razão para a desmotivação ou o baixo desempenho dos estudantes; qual é o resultado esperado; e o que é necessário para um resultado satisfatório. Outras questões essenciais envolvem entender o que precisa ser aprendido, as características dos aprendizes e as questões técnicas e logísticas envolvidas na produção, na distribuição e no uso da solução gamificada. A partir da apresentação das conceituações vigentes e das divergências teóricas, este estudo adota as proposições de Zichermann e Cunningham (2011), Kapp (2012) e Kapp et al. (2014), que oferecem maior abrangência na definição do conceito de gamificação e a interpretam como um processo maior, visto que a aplicação em uma área complexa como a educação requer versatilidade para o planejamento de abordagens apropriadas com diligência. A seguir, são apresentados estudos recentes de aplicação da gamificação na educação e na educação a distância, para promover a reflexão de suas reverberações. Gamificação, motivação e educação
Zichermann e Cunningham (2011) afirmam que é fundamental compreender a motivação do jogador para a construção bem-sucedida de um sistema de gamificação. Em termos gerais, a psicologia tem dividido as motivações em dois grupos: intrínsecas e extrínsecas. Motivações intrínsecas são as que derivam de nós mesmos, como objetivos e metas próprias; já as motivações extrínsecas estão relacionadas principalmente ao mundo à nossa volta, como promoções e recompensas. Os autores declaram que, quando bem feita, a gamificação ajuda a alinhar os interesses e os objetivos com as motivações intrínsecas dos jogadores, amplificadas com as mecânicas e as recompensas. Busarello (2016) alerta que o foco exclusivo nas motivações extrínsecas pode arruinar o sistema motivacional, e que estas devem ser utilizadas fundamentalmente para construir motivações intrínsecas. Karlsen (2016) reforça esse pensamento e aponta que a recorrente crítica à gamificação é o fato de frequentemente se concentrar em recompensas, em vez de tornar a experiência intrinsecamente divertida. Marache-Francisco e Brangier (2015) explicam as três dimensões da gamificação: sensório-motora, motivacional e cognitiva. Na dimensão sensório-motora, a gamificação usa extensivamente jogos de codificação multimodal, como visual, sonora e tátil, com finalidade estética e para comunicar uma atmosfera, tema ou informação necessária. O aspecto motivacional é impulsionado pela gamificação por meio das emoções. Isso implica o uso de elementos de jogo que respondam às necessidades dos jogadores, além da usabilidade, como valor, realização e socialização, e os usa para criar engajamento. A dimensão cognitiva é abordada na gamificação por meio do uso de elementos do jogo, como apoio à resolução de tarefas. Para tanto, é preciso comunicar informações relevantes, como meta, feedback e
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resultados. Por fim, todas as três dimensões implicam a seleção de elementos e processos que melhorarão aspectos de uma tarefa por meio da gamificação. Alves e Teixeira (2014) explicam que, para gamificar um objeto de aprendizagem, é necessário associar questões de instrução, cognição, aprendizagem e motivação, e, consequentemente, o processo de design se torna mais complexo. A gamificação deve fazer parte da concepção projetual, pois seu planejamento determina a experiência do estudante com o conteúdo, que deve auxiliá-lo no aprendizado por meio da exploração de qualidades cognitivas, sociais, culturais e motivacionais, incentivando-o ao estudo e à reflexão crítica. Os autores indicam ainda a necessidade de aplicações do processo de gamificação no âmbito educacional, com estudo de caso, para conhecer as repercussões práticas. Ramirez e Squire (2014) afirmam que os educadores são responsáveis por sistemas que geram recompensas por participação e há décadas tentam uma abordagem mais social, participativa e sensível às necessidades dos estudantes. O interesse de muitos educadores na gamificação decorre da insatisfação com os sistemas de notas e avaliação. Segundo os autores, a gamificação é um processo contínuo, e projetar um ambiente de aprendizagem gamificado deve ser encarado do mesmo modo. O processo de motivação é uma propriedade emergente, definida por pessoa, tarefa e contexto, portanto deve ser constantemente estudado. É preciso uma abordagem participativa, na qual todos possam ajudar na definição de emblemas, realizações ou estruturas. Groff et al. (2015) citam a aversão dos designers de jogos ao termo avaliação, por o considerarem sinônimo de não diversão. Em termos gerais, avaliação é a criação de maneiras de identificar o que o aluno aprendeu e, por isso, o design de jogos baseados em avaliação merece um segundo olhar. A estrutura deveria ser vista, então, como um processo na ordem “aprender para jogar”, e não “jogar para aprender”, de forma que os objetivos estejam alinhados com as tarefas e os resultados, para entender de que formas efetivas o jogo contribui para a aprendizagem do aluno, sobretudo como forma de estímulo. Gamificação na educação a distância
Pesquisas correlatas encontradas no Portal de Periódicos da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) e do Ministério da Educação (MEC) demonstram o crescimento do interesse pelo tema da gamificação com o aumento do número de estudos em âmbito internacional. No âmbito nacional, um importante aspecto a ser destacado é a existência de apenas seis artigos no portal citado, datados dos anos de 2014 e 2015, e nenhum deles abrange o tema no contexto da educação a distância. Diante disso, os estudos mencionados a seguir se tratam de experiências realizadas em outros países. Gibson, Aldrich e Prensky (2007) afirmam que, no plano educativo, o estudo de como aplicar jogos está rapidamente se tornando uma disciplina legítima, com o aumento do número de estudos. O autor cita os projetos Daedalus,1 Education Arcade e Games-to-Teach.2 1 2
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Gåsland (2011) apresenta uma experiência de desenvolvimento e avaliação de uma plataforma web de aprendizagem gamificada, denominada StudyAid, com o objetivo de tornar a tarefa de estudar para testes mais motivadora e divertida, por meio do sistema de contagem de pontos de experiência. Os resultados sugerem que a plataforma é motivadora, entretanto, o pesquisador concluiu que diversão é um estado difícil de mensurar ‒ embora 34% dos respondentes tenham considerado o sistema divertido e 43%, neutro. Quando questionados sobre o sistema ser motivador, 36% dos respondentes o julgaram assim, e 30% dos estudantes se mostraram neutros. Domínguez et al. (2013) relatam uma experiência educativa gamificada em uma plataforma de aprendizagem online usada como ferramenta de um curso universitário, que fornece os exercícios de forma gamificada. Para aumentar a motivação do aluno a completar exercícios opcionais, foi empregado o uso de recompensas e mecanismos de concorrência. A análise qualitativa realizada pelos autores sugere que a gamificação pode ter um grande impacto emocional e social sobre os alunos por meio de sistemas de recompensa e mecanismos sociais competitivos. Os sistemas de recompensa foram avaliados como uma maneira inovadora, divertida e encorajadora de representar o progresso dentro de uma experiência educativa online. O mesmo estudo demonstrou que quadros de liderança serviram como uma fonte de motivação para alguns alunos, por terem o esforço publicamente e instantaneamente reconhecido e pelo fato de poderem comparar o seu progresso com o de outros colegas. Para outros, todavia, o sistema não foi suficientemente motivador e, em alguns casos, o sistema foi ainda desencorajador, já que os estudantes não acharam divertido competir com os seus colegas por uma posição no quadro de classificação. Os autores admitem, entretanto, que o estudo foi fortemente baseado em um perfil de estudante que aprecia competição. Kocadere e Çağlar (2015) alegam que a incapacidade de encontrar um equilíbrio entre a “avaliação da aprendizagem” e a “avaliação para a aprendizagem” reduz a eficácia da fase de avaliação do processo de aprendizagem. A partir dessa provocação, as autoras relatam a gamificação de um exame de avaliação de um curso, com a integração de elementos em uma interface com um tabuleiro de jogo que apresenta questões a serem respondidas e níveis a serem desbloqueados com determinada quantidade de pontos, além de cartões de perfil dos estudantes que demonstram qual questão estão respondendo e suas pontuações, compartilhadas em redes sociais. Por meio de entrevistas, todos os estudantes afirmaram ter se divertido, e 81% alegaram se sentir motivados com a gamificação. O estudo comprovou que a avaliação gamificada é capaz de promover avaliação para a aprendizagem. O projeto-piloto de Bernik, Bubas e Radosevic (2015) compara um módulo gamificado e outro não gamificado de um curso online. Os resultados indicaram que a gamificação pode aumentar a motivação do aluno e seu desempenho. A abordagem dos autores sugere ainda que, antes de investir em uma extensa solução gamificada, um módulo de um curso pode ser gamificado para ter seus impactos avaliados. Solomon (2016) explica o crescimento da metodologia de ensino doméstico baseado em jogos, denominada gameschooling, na qual os estudantes jogam como parte integrante de seu aprendizado. Muito do conteúdo dos primeiros anos é ensinado por meio de jogos, e os conteúdos dos Ensinos Médio e Superior podem ser aprendidos por meio de jogos ou por
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aplicações de aprendizagem gamificadas. A autora cita Khan Academy e Duolingo, dentre outras iniciativas que fazem uso da gamificação. Outras plataformas frequentemente citadas na literatura consultada são: Alleyoop, Pearson, Lectora,3 OpenStudy, Gamestar Mechanic, Quest to Learn,4 Education Arcade,5 e Kahoot.6 A existência de tantos projetos voltados para a educação online impulsiona investigações acerca de seu funcionamento e possíveis desdobramentos e aplicações em diversas áreas do conhecimento, em modalidades educacionais. Myhre (2015), em seus estudos sobre mobile learning com aplicações gamificadas para o aprendizado da língua norueguesa por parte de imigrantes, descreve a análise de design, interface e mecânicas de gamificação de outras plataformas para o aprendizado de línguas online, como Duolingo, Babbel, FunEasy Learn, Memrise e Migranorsk, além da realização de coleta de dados qualitativos com usuários antes do desenvolvimento do projeto. Gaydos (2015) pondera que, apesar da existência de muitos estudos defendendo o uso de jogos e da gamificação para promover aprendizagem, ainda permanece pouco compreendido como esses sistemas são projetados. O autor argumenta que, embora o design de um jogo seja considerado essencial para a sua eficácia, o uso de jogos na educação tem predominantemente sua estrutura projetual compartilhada sob um conjunto de “princípios” ou “heurísticas”. Segundo o autor, os estudos que adotam a ideia de que jogos podem ser desconstruídos em componentes elementares são úteis, especialmente para análise. Entretanto, a aplicação desses componentes no processo de desenvolvimento de um projeto com finalidade educacional é problemática. É necessário compreender maneiras de transmitir claramente os objetivos de aprendizagem, os materiais, o contexto e as interações entre esses componentes à medida que evoluem ao longo do desenvolvimento. Faiella e Ricciardi (2015) afirmam, a partir de revisão de literatura e conclusões de estudos de campo, que o potencial da gamificação para melhorar experiências de aprendizagem ainda não se estabilizou experimentalmente. Por essa razão, não é possível uma indicação inequívoca de como usar elementos de jogos no processo educacional. Nesse contexto, a customização da gamificação deve considerar como diferentes estudantes aprendem e quais são seus impactos em turmas com perfis diversos. Segundo as autoras, a eficácia da gamificação é maior quando o estudante participa voluntariamente, enquanto a obrigação afeta a essência da atividade, pois reduz a motivação dos alunos. Portanto, é preciso identificar as condições que afetam o desempenho individual dos estudantes e considerar como as possibilidades tecnológicas podem facilitar a incorporação de elementos de jogos no âmbito educacional. Considerações finais
Inserir o design de jogos na educação a distância de modo sistêmico ainda é um grande desafio. Trata-se de um campo profissional recente no Brasil, e essa pode ser uma 5 6 3 4
Ver . Ver . Ver . Ver .
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das razões pelas quais a atuação do designer é, muitas vezes, incompreendida. Entretanto, mesmo em ocasiões em que o escopo do projeto é preconcebido unicamente por professores e pelo designer instrucional, é preciso que os designers de games sejam inseridos no processo e dialoguem com as partes envolvidas para realizar alterações que melhor adequem a proposta ao contexto e aos estudantes, para motivá-los a desempenhar as tarefas por meio da solução gamificada. Não obstante, constatou-se que a literatura consultada aponta uma variedade de métodos para o desenvolvimento de projetos de gamificação, e diversos autores listam ações que podem ser aplicadas à solução. Destacam-se as ideias de Faiella e Ricciardi (2015) em função da especificidade de seu conteúdo, que visa à reflexão de que a aplicação da gamificação na educação exige parcimônia e deve ocorrer de maneira a considerar as particularidades do contexto de aplicação e dos estudantes. Tais asserções fortalecem o ponto de vista de que não existe solução única aplicável a todo e qualquer contexto, e que a atividade do designer de games é complexa e não pode ser abreviada ou limitada apenas às etapas finais do projeto. A gamificação é uma estratégia que deve ser empregada e desenvolvida perante estudos e de forma consciente por parte de toda a equipe envolvida, desde a definição dos objetivos educacionais de determinado recurso. Espera-se que as ideias e reflexões aqui apresentadas ampliem os horizontes do design de jogos, com vistas a aplicações futuras no contexto educacional, especialmente na modalidade a distância. Referências ALVES, M. M.; TEIXEIRA, O. Gamificação e objetos de aprendizagem: contribuições da gamificação para o design de objetos de aprendizagem. In: FADEL, L. M.; ULBRICHT, V. R.; BATISTA, C. R.; VANZIN, T. (org.). Gamificação na educação. São Paulo: Pimenta Cultural, 2014. p. 122-142. ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA – ABED. Censo EaD.br: relatório analítico da aprendizagem a distância no Brasil. Disponível em: . Acesso em: 13 mar. 2016. BERNIK, A.; BUBAS, G.; RADOSEVIC, D. A pilot study of the influence of gamification on the effectiveness of an e-learning course. In: CENTRAL EUROPEAN CONFERENCE ON INFORMATION AND INTELLIGENT SYSTEMS, 26., 2015, Varazdin. Proceedings… Varazdin: Faculty of Organization and Informatics, 2015. p. 73-79. BRASIL. Decreto n. 5.662, de 19 de dezembro de 2005. Disponível em: . Acesso em: 9 abr. 2016. ______. Decreto n. 5.800, de 8 de junho de 2006. Disponível em: . Acesso em: 11 abr. 2016. BUSARELLO, R. I. Gamification: princípios e estratégias. São Paulo: Pimenta Cultural, 2016.
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David de Oliveira Lemes Murilo Henrique Barbosa Sanches Um bom jogo pode engajar as pessoas de uma maneira tão profunda que temporariamente as noções de tempo e espaço ou dos próprios afazeres fica em segundo plano. Em educação, para o aprendizado acontecer efetivamente, altos níveis de engajamento são essenciais. Então, parece natural tentar abstrair as características positivas dos jogos e inseri-las em experiências de ensino. Antes vistos como inimigos do aprendizado, como elementos de distração, os jogos estão sendo reconsiderados por trazerem um elemento primordial para o aprendizado: o engajamento. Pelo poder de incentivar comportamentos e mostrar-se como uma alternativa a métodos tradicionais, a gamificação chamou a atenção de diversos setores. Recentemente, designers de games de diversas partes do mundo têm se dedicado a aplicar princípios de jogos em campos variados, como saúde, educação, políticas públicas, esportes, aumento de produtividade etc. (VIANNA et al., 2013). Existem diversas experiências que vêm conseguindo resultados positivos. O projeto Code.org, por exemplo, é uma instituição sem fins lucrativos dedicada a expandir o acesso das pessoas à ciência da computação, que acredita que qualquer estudante em qualquer escola deveria ter a oportunidade de aprender a programar. O Code.org utiliza uma linguagem de programação visual pensada na acessibilidade do ensino e nos últimos três anos treinou mais de 10 mil professores e tem mais de 6 milhões de usuários. Já o Duolingo, conhecida plataforma de aprendizado de idiomas, lançado em 2011, vem percorrendo um caminho de sucesso, tendo em 2016 mais de 120 milhões de usuários. O método do Duolingo tem diversos elementos gamificados e acabou atraindo muito mais atenção e tendo mais efetividade que a maior parte das plataformas e dos aplicativos de idiomas do mercado. O Duolingo conta com uma “Incubadora” colaborativa de novos idiomas, um ambiente para professores avaliarem seus alunos e que, em uma atualização ocorrida em 2016, trouxe a função de grupos, na qual usuários competem por desempenho. Essas experiências mostram que o ensino tradicional tem diversos benefícios ao aderir a essa tendência. A possibilidade de transformar as salas de aula em um ambiente interativo e prazeroso nunca esteve tão presente. Deve-se considerar ainda que a geração atual não é
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tão responsiva à educação tradicional; ela se motiva e interage com jogos, tecnologia e narrativa. Os alunos consomem diversos conteúdos de suas casas a partir de vídeos, aplicativos em smartphones, podcasts e tablets, entre outros recursos. O limite que a antiga e limitada enciclopédia física impunha não existe mais. Contudo, dentre todas essas experiências, uma se destaca: a Quest to Learn (Q2L). A Q2L é uma escola pública nova-iorquina que trabalha com alunos do Ensino Fundamental II e do Ensino Médio, sendo conhecida e frequentemente citada por ser a primeira escola do mundo a ter todo o ensino baseado em jogos. A escola foi fundada em 2009, após anos de planejamento curricular em uma parceria entre o Institute of Play, organização não governamental (ONG) que tem como objetivo utilizar o design de jogos e os jogos como ferramenta de mudanças pessoais e sociais, e a New Visions for Public Schools, uma organização focada na reforma e na melhoria da educação recebida nas escolas públicas, de maneira experimental e contendo apenas 76 alunos do sexto ano. Todo ano era adicionada uma turma nova, até serem concluídas todas as séries oferecidas do Ensino Fundamental II e do Ensino Médio. No ano letivo de 2014, segundo o Quality Review Report do Departamento de Educação do Estado de Nova York, havia sido atingido o número de 478 alunos na instituição, dos quais 15% são negros, 35% hispânicos, 40% brancos e 10% asiáticos. E, em relação ao gênero, 70% do público é masculino e 30% é feminino. A solução de problemas é incentivada durante as aulas, e foi pensada para a aprendizagem de habilidades do século XXI, as quais especialistas dizem que são necessárias para a formação e uma carreira de sucesso, como pensamento sistêmico, colaboração e alfabetização digital. A Q2L foi criada como uma tentativa de ir na contramão da tendência educacional norte-americana, pois, atualmente, 3 milhões de jovens desistem do Ensino Médio todos os anos, 75% dos estudantes do 8º ano do Ensino Fundamental ao 3º ano do Ensino Médio não conseguem escrever corretamente, 46% dos universitários não se graduam e quase 70% dos alunos do 8º ano do Ensino Fundamental têm dificuldades de leitura e em cálculo matemático. A crise educacional tem diversas origens, mas as que se destacam são a falta de engajamento e motivação que os alunos têm em relação à escola, e o modelo tradicional de educação não mostrava uma solução clara ao problema. O engajamento começa alto no Ensino Infantil (80%), então cai para 60% no Ensino Fundamental, 40% no Ensino Médio e, por fim, para 30% na vida adulta, quando os alunos são inseridos no mercado de trabalho. A partir dessa constatação, o Institute of Play e outras organizações menores, em parceria com a prefeitura de Nova York, desenvolveram o projeto de criação da Q2L. Brian Waniewski, diretor do Institute of Play, afirma: “Somos uma reação ao declínio dos EUA na preparação dos jovens” (CABRAL, 2013). Nas palavras do Institute of Play: Nosso mundo está mudando tão rapidamente que nós podemos apenas começar a imaginar o que o futuro nos trará. Contudo, estamos falhando em ensinar nossas crianças as habilidades e o conhecimento que eles precisam para obter sucesso no mundo de hoje.
O nome principal da fundação da Q2L é Katie Salen, uma animadora, professora e designer de games que, entre outras realizações, ficou bastante conhecida por ser coautora
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da série de livros Regras do Jogo. É a diretora executiva do Institute of Play e participou do design e da fundação da Q2L. Jogos são uma importante ferramenta na escola, certamente, mas eles representam muito mais que um recurso. Eles são a base de uma teoria de aprendizagem que é situada “como um jogo”. Como resultado, nós projetamos a escola em torno de uma abordagem ao ensino que obtém dos jogos o que eles fazem de melhor: deixar o jogador em um espaço baseado em inquérito, problemas complexos que são construídos para entregar o aprendizado na hora certa e usar dados obtidos para ajudar os jogadores a entender como está seu desempenho, o que eles precisam trabalhar mais e aonde ir depois. É uma abordagem que cria, acima de tudo, uma necessidade de saber, de perguntar por que, como e com quem? (SALEN, 2011, p. 11-12, tradução nossa).
Segundo Salen, é isso que torna a escola uma experiência única: por “situada” ela quer dizer que os estudantes são convidados a “assumir” as identidades e os comportamentos de designers, inventores, historiadores, matemáticos e cientistas em contextos que são reais ou significativos para eles, ou ambos. Por “como um jogo”, quer dizer uma abordagem de ensino que extrai as qualidades intrínsecas dos jogos e seu design para engajar alunos em uma exploração profunda do assunto. Na metodologia da escola existem sete princípios que devem ser levados em conta na hora de desenvolver experiências de ensino gamificadas: a. Todos são participantes: todos devem participar e contribuir; alunos diferentes podem contribuir com inteligências e pontos de vista diferentes. b. Desafio: o desafio deve ser constante e adaptado para motivar sempre. O aluno necessita de incentivo para resolver desafios complexos. c. Aprendizado na prática: o aprendizado é ativo, os alunos aprendem na prática, testando e jogando. d. Feedback imediato e contínuo: os alunos conseguem ter feedback do seu desenvolvimento a partir de parâmetros de jogos, como pontuação, rankings, níveis etc. e. Entender a falha como uma oportunidade: a falha é entendida como uma nova chance de aprender; como em um jogo, existe a opção de tentar novamente. f. Tudo está conectado: os alunos podem dividir seus conhecimentos e habilidades com outros por meio de comunidades, grupos etc. g. Sensação de estar jogando: a experiência de ensino deve engajar o aluno e dar suporte a suas ideias e sua criatividade.
É importante perceber que esses princípios devem ser entendidos como um sistema em que um depende do outro, cada um separadamente não consegue atingir resultados tão satisfatórios. Um erro comum de análise é achar que escolas como a Q2L utilizam apenas jogos de videogame comerciais em sala de aula, quando na verdade elas se utilizam de princípios de jogos para elaborar experiências de ensino que funcionam como um jogo.
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O desenvolvimento emocional, físico, social e cognitivo dos alunos é incentivado constantemente, por isso a escola possui um programa de aconselhamento. Todos os dias, tanto no horário de entrada como no de saída, os alunos participam de um pequeno grupo de aconselhamento conhecido como Home Base, comandado por um professor. Esse aconselhamento dura entre 10 e 15 minutos e é a oportunidade de os alunos, junto aos professores, lidarem com os problemas e as inseguranças dos adolescentes, com o objetivo de evitar que esses problemas se tornem algo mais grave, ou mesmo solucioná-los. Os grupos têm apenas 10 alunos, o que permite que o professor desenvolva uma relação mais forte com cada aluno. Caso os problemas dos alunos aumentem e o professor não consiga mais lidar com eles, um conselho é acionado e eles decidem o melhor método de intervenção. Os alunos são agrupados para maximizar as possibilidades de aprendizado. Com essa finalidade, têm múltiplas oportunidades de trabalhar em grupos cooperativos que são flexíveis e planejados para dar suporte à realização de tarefas. Quando necessário, eles podem ser colocados em grupos de curta duração focados em uma área em particular na qual estão tendo dificuldade, para terem uma atenção extra. O objetivo é maximizar as experiências que os alunos possam ter e acomodar algumas demandas, como oferecer mais tempo. As salas têm no máximo 25 alunos, pois a qualidade do ensino é colocada à frente da quantidade. Alunos portadores de necessidades especiais e não fluentes em inglês possuem o ensino adaptado para suprir suas necessidades. Uma prova da eficiência de um design de aprendizado focado no aluno é percebidao nos depoimentos de alguns deles: “Eu gosto de ir à Quest porque nós temos mais liberdade na maneira como trabalhamos. Nós não apenas preenchemos planilhas matemáticas. Nós aprendemos diferentes estratégias para resolver problemas e fazer isso da nossa maneira”, diz Sydney Railla, aluna do 6º ano. Os professores demonstram muita vontade e experiência no trabalho em equipe e são capacitados para produzir experiências de ensino gamificadas. Acreditam que alunos mais experientes podem criar conteúdo para alunos menos experientes, por exemplo, alunos do 9º ano criam materiais para serem usados nas aulas do 6º ano, reforçando o pilar colaborativo da escola, que preza por manter um cronograma flexível dos professores para que eles possam trabalhar em conjunto na criação de um currículo integrado. O horário de trabalho começa às 8h e termina às 16h10. O tempo estendido de acesso ao professor permite que os alunos tenham atenção individual caso necessário, além de dar oportunidade ao professor de preparar suas aulas e participar de reuniões dentro de seu horário de trabalho. O professor tem à sua disposição diversos conjuntos de ferramentas, contendo guias, exemplos, modelos e muitos outros recursos utilizados para assegurar o nível de qualidade da escola. Há uma política de incentivar os professores a participar de conferências e eventos, com objetivo de compartilhar os conhecimentos adquiridos para incentivar a gamificação na educação. Foi criado um plano intensivo para professores novos que nunca tiveram contato com educação gamificada. A Q2L entende que existem seis dimensões do desenvolvimento do professor, que são:
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a. Designers: os professores ajudam no design, implementam e revisam os materiais gamificados em conjunto com os designers de games e especialistas curriculares, que asseguram que todas as estruturas necessárias para uma aula gamificada estejam presentes. b. Orientadores: avaliam o aprendizado de seus alunos e depois utilizam essas informações para fazer ajustes ao currículo, além de ajudarem os alunos a definir metas de aprendizado. c. Pensadores sistêmicos: devem entender como funciona o pensamento sistêmico. d. Integradores do bem-estar: devem ser capazes de entender os relacionamentos entre os alunos e entre estes e a comunidade escolar, conseguindo assim atuar nas necessidades deles. e. Integradores de tecnologia: devem estar preparados para utilizar tecnologia como uma ferramenta de ensino. f. Profissionais: exibir prática em áreas como integração de conteúdo, gestão de sala de aula, comunicação com os pais, planejamento de aulas e engajamento dos alunos, além de resultados pedagógicos.
Um dos principais objetivos pedagógicos da escola é incentivar os alunos a raciocinar sobre o mundo e tudo que os cerca. O raciocínio sistêmico, a habilidade de ver o mundo como um conjunto de sistemas interligados, ajuda os alunos a entender que a não divisão da escola em disciplinas clássicas faz todo o sentido. Katie Salen (2011) afirma que o pensamento sistemático define o pensamento “crítico”. Pesquisas recentes sobre videogames focam na habilidade de desenvolver um senso crítico, em outras palavras, a habilidade de pensamento crítico. Usando a estrutura dos jogos como um primeiro framework, os alunos terão a capacidade de criar, entender, criticar e manipular a arquitetura interna de sistemas. James Gee (apud SALEN, 2011, p. 38) usa o conceito de “domínios semióticos” para enquadrar seu significado crítico fazendo com que os alunos tenham capacidade de lidar com sistemas. Do ponto de vista da linguística na semiótica, Gee afirma que tal esforço é caracterizado pela interação dinâmica entre palavras, símbolos, imagens, artefatos e comportamentos humanos, afinidades e redes de relacionamento. Essas interações acontecem dentro de domínios de conhecimento para criar significados específicos. Um domínio serve como uma localidade que traça um tipo de confinamento para um espaço ou campo em particular. No ensino tradicional, a escrita normalmente é incentivada em poucas disciplinas, como Redação e Gramática. Na Q2L, os alunos leem e escrevem diariamente em diferentes formas e contextos, alguns focados em análise, outros descritivos ou criativos. É necessário criar a vontade de aprender no aluno. Essa vontade levaria os alunos a se esforçarem mais ao resolver um problema e ao criar e testar teorias e a sempre tentar novamente. Para isso, a escola cria ambientes de aprendizado que incentivam a pesquisa e a descoberta e as integram com conceitos e conteúdos passados dentro das salas de aula. Os alunos têm a oportunidade de experimentar diversos espaços de aprendizado e isso é possível graças à parceria com o Institute of Play. A utilização desses ambientes faz parte do currículo e acontece durante o ano letivo.
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• Studio Q: é um programa de especialização para professores que trabalham na escola cujo objetivo é torná-los mais capacitados para integrar a tecnologia em sala de aula e atuar como designers de conteúdo. Com a troca de experiências entre professores, designers de games e especialistas curriculares, os professores acabam desenvolvendo uma série de materiais que são utilizados posteriormente em sala de aula. O estúdio possui um programa intensivo de treinamento para professores novos ao sistema pedagógico. • SMALLab: é um ambiente de pesquisa e criação de jogos baseados em uma tecnologia que funciona utilizando câmeras com captura de movimento, projetores de curta distância e controles sem fio para imergir os jogadores em um ambiente de realidade virtual, em que eles podem interagir entre si com elementos de jogos digitais em tempo real, no mesmo espaço físico. O conteúdo desenvolvido vai ao encontro das especificações do currículo e gera trabalho em grupo, resolução de problemas e uma atividade física divertida. A equipe de desenvolvimento conta com designers de games, especialistas curriculares e professores. No site do Institute of Play é possível encontrar 19 jogos que vêm sendo desenvolvidos desde 2008. O jogo Civsift, por exemplo, explora elementos e estruturas de antigas civilizações. Os jogadores se posicionam ao lado de um rio digital e retiram artefatos da água, depois discutem a que sociedade aquilo pertenceu (esses elementos podem se referir a cultura, forma de governo etc.). O interessante é que o jogo permite até 16 jogadores e os professores podem controlar remotamente quais elementos e estruturas aparecerão. • MissionLab: é um estúdio de desenvolvimento localizado dentro da escola, que tem a missão de ser um espaço de desenvolvimento de currículo, de possibilidades de trazer tecnologia para dentro da sala de aula e de criação de jogos que utilizem competências do século XXI. Os professores, designers de games e especialistas curriculares trabalham lado a lado para criar, produzir, testar e desenvolver conteúdo nos moldes exigidos. O estúdio aproveita conceitos e materiais discutidos no Studio Q e permite que os alunos participem da produção dos jogos e, principalmente, do teste destes. Suas principais responsabilidades são: dar suporte ao desenvolvimento do currículo por meio da interação entre professores e especialistas, oferecer desenvolvimento profissional para os atuais e futuros professores, criar ferramentas de ensino e kits de ferramentas para o uso em sala de aula e realizar pesquisas acerca da avaliação e do desenvolvimento do aluno. A tecnologia é inserida com cuidado e propósito: “A estratégia-chave é não usar a tecnologia somente por ser tecnologia, mas usá-la como uma ferramenta, no momento apropriado, e investir um bom tempo pensando sobre o que adiciona valor ao aprendizado” (INSTITUTE OF PLAY, tradução nossa). • GlassLab: é um centro de pesquisa que explora o potencial de jogos comerciais já existentes e os usa como ambientes de aprendizado e para gerar avaliações em tempo real. O projeto mais conhecido é o SimCity Edu. A franquia Sim City é composta por jogos de simulação criados por Will Wright, famoso criador de The Sims. No jogo, você assume o papel de prefeito de uma cidade e é responsável pelo desenvolvimento dela. O primeiro jogo foi lançado em 1989 e houve mais quatro títulos principais desde então, sendo Sim City (2013) o último lançado, além de diversos jogos para consoles, portáteis
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e mobile. Na medida do possível, o jogo replica os desafios de gestão de uma cidade, da criação de empregos, manutenção de serviços básicos, tratamento do trânsito e administração da exploração de matérias-primas até cuidados com a poluição. Por todas essas características, desde sua primeira versão, teve uso educacional. Entretanto, a versão comercial do jogo é muito expansiva, e com ela dificilmente o professor consegue focar em objetivos educacionais de maneira eficiente. Para preencher essa lacuna, o Institute of Play, por meio do GlassLab, desenvolveu o SimCity Edu, uma versão do jogo de 2013 adaptada para o uso em sala de aula com todas as ferramentas e os conteúdos educacionais necessários. Foi produzido em parceria com experts da ETS e da Pearson para oferecer uma experiência personalizada, de maneira que o processo de aprendizagem se desenvolva de forma natural e se avalie em tempo real a habilidade de resolução de problemas, de interação entre sistemas complexos e de leitura e interpretação de textos e diagramas. Especificamente, o laboratório busca evidências para comprovar hipóteses, como a de que jogos digitais com um componente forte de simulação podem ser efetivos para ambientes de ensino. O currículo é desenvolvido como uma série de missões, em que cada uma tem uma narrativa, um propósito. Os alunos resolvem uma missão quando utilizam o conteúdo e as habilidades que aprenderam para resolver um problema em particular. As missões são geradas a partir de desafios que existem no mundo real, como no 7º ano, quando os alunos aprendem sobre fontes de energia sustentável para fazer um projeto de escola com baixa emissão de carbono. No processo, devem ser considerados sistemas e como o mundo está interconectado.
A Q2L possui cinco disciplinas integradas: The Way Things Work (“como as coisas funcionam”); Being, Space, and Place (“ser, espaço e lugar”); Codeworlds (“mundos codificados”); Wellness (“bem-estar”); e Sports for the Mind (“esportes para a mente”), com o complemento de uma rede social interna. Elas são interdisciplinares e integram as disciplinas tradicionais. Cada uma dessas disciplinas ajuda os alunos a desenvolverem habilidades em design de jogos e uma visão de que o mundo é formado por diversos sistemas. Por criar espaços interdisciplinares, os alunos terão maior facilidade em transferir seu conhecimento a novos contextos e situações, pois eles entendem como um conteúdo aparece em mais de um lugar. E quando os alunos conseguem entender conceitos e transferi-los para outras áreas, é uma prova de que realmente aprenderam aquilo. • The Way Things Work: integração entre matemática e ciências. Nessa disciplina, os alunos experimentam, projetam e resolvem diversos problemas específicos que incorporam conteúdos e habilidades de ciências, matemática e alfabetização (dependendo da série). São utilizados argumentação científica, design experimental, comunicação e colaboração. A professora Leah Hirsch, em depoimento, conta sua experiência com a matéria em uma turma do 6º ano com a qual ela utilizou o jogo Dr.Smallz durante doze semanas. No jogo, os alunos conhecem a história de Dr. Smallz, que, para salvar a vida de um paciente, diminui de tamanho e entra em seu corpo, porém ele sofre de amnésia.
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A missão dos alunos é ajudar o doutor a descobrir onde ele está dentro do corpo, utilizando conhecimentos de estrutura e funcionamento de órgãos e sistemas. À medida que o aluno progride, aparecem desafios que vão o levar a descobrir qual doença o paciente possui. Por fim, o jogador deve descobrir a melhor maneira de tirar o doutor de dentro do corpo humano. Dr.Smallz cobre tópicos como células e organelas, processos celulares, microbiologia e sistemas do corpo humano. Being, Space and Place: leva os alunos a perceberem tempo, espaço e geografia humana como elementos que baseiam o desenvolvimento de ideias, expressões e valores. No 7º ano, por exemplo, são abordados geografia, história, cultura, política e desenvolvimento econômico dos Estados Unidos. No começo do ano, os alunos interpretam espiões ingleses e examinam e vivenciam os acontecimentos da Revolução Americana e, no fim do ano, são curadores que analisam os acontecimentos relativos à Guerra Civil Americana. Codeworlds: integra matemática com ELA (sigla para English, Language and Arts), podendo incluir ainda noções de programação em suas aulas. Codeworlds ajuda o aluno a entender a importância da matemática e da programação no seu dia a dia. No 8º ano, por exemplo, o foco está nas funções. Os alunos aprendem como modelar situações reais a partir da escrita e da resolução de equações. O primeiro trimestre coloca os alunos no papel de um produtor de filmes, em que eles devem aprender sobre taxas de transporte para aprender as estruturas de relações lineares. No fim, os alunos apresentam o orçamento e o calendário de uma produção de filme de dez dias, restringidos por uma série de obstáculos. Já o segundo semestre se passa no universo fictício de Troika. Aqui, eles acordam em um hospital abandonado em uma cidade pós-apocalíptica tomada pela guerra. Eles devem resolver equações algébricas para escapar do hospital e continuar a missão. A partir desse ponto, a introdução ao estudo de geometria ajuda o herói a resolver problemas, incluindo o estudo de números irracionais e do teorema de Pitágoras. O currículo contém bastante conteúdo que envolve matemática. Isso se dá pela importância do desenvolvimento do raciocínio matemático. Os alunos são incentivados a trabalhar diversas vezes em uma ideia ou solução, criando modelos e testando-os ou mesmo utilizando ideias ou soluções previamente criadas como forma de aprendizado e de entender outros pontos de vista. A partir desse ponto, a pesquisa e o trabalho em grupo são incentivados. Wellness: é uma disciplina e uma prática incentivadas por toda a escola, em que os alunos aprendem realmente o que é ser saudável. Por “saudável”, entendem-se a saúde física, mental e emocional e sua relação com os grupos de convivência escolares, familiares e com a sociedade em geral. A base da disciplina é distribuída em ciências, sexualidade, saúde, nutrição, mediação de conflitos etc. A disciplina incentiva o bem-estar pessoal, que consequentemente afeta as relações entre a comunidade, com objetivo de tornar a convivência na comunidade a melhor possível. Sports for the mind: prepara os alunos para o século XXI com conhecimentos considerados pela Q2L necessários para o desenvolvimento do aluno. No 6º ano, recebem aulas de design de jogos, no 7º, aulas de programação, no 8º, ferramentas para trabalhar com mundos virtuais, e no 9º, visualização de informações e gerenciamento de conhecimento.
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• Being Me: é uma rede social fechada desenvolvida especialmente para os alunos. Diferentemente das redes sociais comuns, ela só permite alunos e professores, não contém propagandas e anúncios nem outros elementos que possam causar distração. Ela permite que os alunos postem seus trabalhos e criem blogs ou grupos de discussão, entre outras várias funções. A rede conta com diversas atividades e possui rankings e pontuações dentro de uma interface totalmente gamificada. O currículo é passado ao aluno por meio de dois tipos de atividades, as Discovery Missions (“missões de descoberta”) e os Boss Levels (“fases do chefe”). Essas atividades completam um ciclo em doze semanas, sendo que nas primeiras dez há Discovery Missions e nas últimas duas o Boss Level. A união dos dois forma um Mission Pack (“pacote de missão”). No desenvolvimento das atividades, foi pensado que os alunos acabariam refletindo sobre o conhecimento que já possuíssem e sobre como e onde procurar mais conhecimento, teorização e criação de soluções para, por fim, checar seus próprios resultados. Uma Discovery Mission é composta de diversas quests, que são desafios nos quais os alunos, a partir de alguma informação, conhecimento, recurso ou prática, devem solucionar um problema ou chegar a um objetivo específico. As Discovery Missions contêm entre quatro e dez quests, que variam em complexidade e tamanho. Quando uma quest é desenvolvida, deve-se levar em conta que ela deve ser jogável tanto individualmente quando em grupos. Para a resolução de uma quest, o aluno começa coletando todo tipo de informação ou recurso relevante, como textos, estatísticas, amostras físicas etc. Então, a partir de análise, manipulação e observação, o aluno molda esse conhecimento em algo significativo para ele. Dentro de uma quest, os alunos podem ter de fazer experimentos científicos, leitura de textos acompanhada de listagem de palavras-chave, ir a um museu e explorar detalhes das obras, usar um telescópio online para buscar dados sobre estrelas etc. Existem mais de 10 tipos de quests diferentes, algumas bem interessantes, como as Seek and Destroy Quests, cujo objetivo é eliminar algum elemento, por exemplo, palavras erradas dentro de um texto. O “chefão” é o último nível nos videogames, quando os jogadores devem demonstrar seus conhecimentos e habilidades vencendo o “chefe”. Esse nível traz à tona todas as habilidades do jogador de uma maneira que nunca antes aconteceu. A Q2L tenta emular essa mesma quantidade de foco, interação e alto rendimento das habilidades. Na escola, o Boss Level é uma semana imersiva e intensiva de uma experiência de aprendizado que encoraja os alunos a usar todas as suas habilidades e seu conhecimento para resolver um problema complexo. O calendário regular é suspenso e pequenos times de alunos são formados com o objetivo de resolver um problema complexo. Durante toda a semana, os alunos são levados a realizar brainstormings, protótipos e testes, interagindo e finalmente mostrando ao resto da turma sua solução. O Boss Level coloca os alunos no papel de designers, engenheiros, poetas, escritores, atores etc. enquanto resolvem um problema de um contexto dentro ou fora da escola. Por fim, leva alunos e professores a desenvolver e aperfeiçoar o conhecimento de uma maneira inovadora. É gerado um grande número de atividades e processos diferentes, por isso é muito importante a organização desse material. Qualquer Discovery Mission
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ou Boss Level criado é arquivado e documentado para que, mesmo anos depois, um professor possa buscar, utilizar e talvez até modificar a atividade. Os Mission Packs são trimestres e semestres estruturados como um jogo e organizados em missões com séries de objetivos. Normalmente, utilizam-se de narrativa como elemento motivador, levam os alunos a interpretar diversos papéis, assim participando ativamente do aprendizado, e são organizados em guias de utilização que ajudam o professor a inserir as missões na sala de aula. O Institute of Play disponibiliza quatro guias de séries e temáticas diferentes para download: Dr.Smallz (Ciências, 6º e 7º anos), Shark Tank (Matemática, 9º ano), I Spy Greece (Estudos Sociais, 6º ano) e Self on the Stand (Inglês e Artes, 9º ano). Shark Tank, por exemplo, insere os alunos no papel de empreendedores, e eles devem desenvolver modelos de negócio e apresentá-los a investidores fictícios, lidando com brainstorming, gráficos, cálculos de estima de lucro, coleta de dados etc. Isso ajuda os alunos a entender como se comunicar profissionalmente, selecionar dados confiáveis e úteis e cobre os tópicos de estatística, modelos lineares e equações. Em adição às tradicionais feiras culturais e de ciências, foi criado o Design, Art and Code, que é uma experiência de uma semana que ocorre anualmente, na qual os alunos do 7º ao 9º ano desenvolvem suas habilidades em arte, design visual e programação. O objetivo é despertar o interesse dos alunos nas áreas e gerar conhecimento útil para a vida adulta. Os participantes trabalham com experts para aprender conceitos e princípios fundamentais das áreas, tanto com aulas focadas em teoria quanto em prática. Ao longo da semana, o aluno escolhe se vai focar em design e arte ou em programação. São introduzidos a conceitos de design de ambientes 2D e 3D, criação de jogos e de arte ou ao básico de linguagens de programação como HTML 5 e Java. Nenhuma experiência ou conhecimento prévio é exigido, é tudo preparado de maneira que um leigo compreenda. O ano letivo é composto de 180 dias, divididos em três trimestres de aproximadamente 12 semanas. Caso o aluno seja novo na escola, ele participa de uma adaptação de duas semanas para compreender a metodologia utilizada. As aulas começam às 8h e terminam as 16h10, menos às quartas-feiras, quando terminam às 14h. Dependendo do tipo de aula, elas podem durar entre sessenta e oitenta minutos. Por ser um ambiente focado em tecnologia e jogos, as pessoas são levadas a pensar que a Q2L serve de apoio ao sedentarismo, porém a escola tem um programa de atividades físicas que engloba esportes como vôlei, basquete, tênis de mesa e beisebol, entre muitos outros. Por ser uma escola pública nova-iorquina, também é realizado um exame pelo qual todas as escolas devem passar, e além dessa prova existem as avaliações ao fim de cada trimestre, em que o aluno precisa produzir algo que prove que assimilou os conhecimentos necessários. Além disso, os professores são capazes de avaliar os alunos enquanto eles jogam ou praticam uma atividade, pois existe um feedback contínuo. Os gastos essenciais, como salários dos professores, luz e equipamentos, são pagos pelo estado. A estrutura extra que a escola possui é paga por instituições beneficentes e filantrópicas. O custo por aluno pode chegar à casa dos US$ 24 mil por ano, um terço maior que o custo médio nacional.
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Como o sistema de aprendizagem da Q2L é um ponto fora da curva, surge a dúvida de como a transição entre Ensino Médio e faculdades é feita. O assunto é abordado desde cedo, durante os encontros do Home Base, em conjunto com uma conselheira da escola. No 9º ano do Ensino Fundamental e no 1º ano do Ensino Médio, os alunos recebem uma visão geral dos tipos de faculdades e graduações, dando espaço à discussão sobre quais carreiras os alunos pretendem seguir e o que é necessário para se chegar lá. No 2º e no 3º anos do Ensino Médio, os alunos aprendem sobre os vestibulares e criam perfis em um site chamado Naviance. Eles também viajam com a escola para diversas universidades da área e, às vezes, algumas universidades vêm até a escola falar sobre o processo de admissão. Após cinco anos de funcionamento, a Q2L conseguiu as seguintes conquistas: 94% de frequência escolar, 90% de retenção dos professores, vitória na Olimpíada de Matemática de Nova York por três anos seguidos, 88% dos pais acreditam no sucesso do filho pós-escola, 94% dos pais dizem que os filhos têm altas expectativas sobre a escola, em exames educacionais a Q2L se saiu 56% melhor que média da cidade e, nos exames de ciência de 2013, se saiu 43% melhor que a média da cidade. O sucesso serviu como vitrine de ensino gamificado e chamou a atenção de outras instituições, que mostraram interesse em replicar o modelo. A CICS Chicago Quest foi criada em parceria com a Chicago International Charter School e é a segunda instituição do gênero nos Estados Unidos. Foi fundada no ano de 2011, com turmas de 6º e 7º anos e planos de estender uma turma a cada ano até completar a grade. Segundo depoimento do diretor da Q2L, Nicholas Jurman (QUEST TO LEARN, tradução nossa): Um dos objetivos principais para nossos alunos é que quando eles se graduarem na Quest to Learn sejam verdadeiros pensadores sistêmicos e designers, entendendo que os desafios importantes no mundo não podem ser solucionados de maneiras simples, e devem ser abordados de diferentes perspectivas e ângulos.
Referências CABRAL, M. Uma escola feita só de recreio. Época Negócios, 2013. Disponível em: . Acesso em: 14 jan. 2017. CODE.ORG. About Code.org. Disponível em: . Acesso em: 9 dez. 2016. ______. Evaluation. Disponível em: . Acesso em: 9 dez. 2016. COSTA, M. Professor precisa falar menos e provocar mais, diz educador. Porvir, 2014. Disponível em: . Acesso em: 15 dez. 2016. INSTITUTE OF PLAY. About Institute of Play. Disponível em: . Acesso em: 13 dez. 2016.
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______. Q School Design Packs. Disponível em: . Acesso em: 11 dez. 2016. QUEST TO LEARN. Students Athletics. Disponível em: . Acesso em: 9 dez. 2016. ______. About. Disponível em: . Acesso em: 1 dez. 2016. ______. College Preparation. Disponível em: . Acesso em: 7 dez. 2016. ______. Middle School. Disponível em: . Acesso em: 1 dez. 2016. SALEN, K. Quest to learn: developing the school for digital kids. Cambridge: MIT Press, 2011. VIANNA, Y. et al. Gamification, Inc.: como reinventar empresas a partir de jogos. São Paulo: MJV Press, 2013.
O hiato entre o game e a gamificação Lucia Santaella
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A penetração sociocultural dos games é hoje fato indiscutível. Demonizados nos seus inícios, foram crescentemente se afirmando como mídia de entretenimento dominante. Sob esse aspecto, sua história muito se assemelha à do cinema. Este também sofreu duras críticas até se solidificar não apenas comercialmente, mas como sétima arte. Do mesmo modo, a discussão atual sobre games também já se dedica às indagações quanto à sua natureza, inclusive artística (SANTAELLA, no prelo). Entretanto, o que importa colocar em destaque aqui é o fato de que o sucesso que adveio de sua grande penetração acabou por gerar um desdobramento dos games naquilo que passou a ser chamado de gamificação. Embora alguns ainda pensem que se trata da mesma coisa, há de se estabelecerem as diferenças. Natureza da gamificação
É certo que a gamificação está relacionada aos games. Mas de que maneira? A gamificação busca extrair dos games especialmente seus atributos lúdicos que levam a participação, engajamento e entusiasmo do indivíduo em relação àquilo que faz. Diante disso, o primeiro campo a absorver e aplicar os princípios da gamificação foi o mundo empresarial, pois as corporações visam, antes de tudo, ao comprometimento produtivo de seus membros, por meio do incentivo à cooperação e à competitividade. Para isso, utilizam estratégias de interação baseadas na lógica dos games. De acordo com Kenski (2011), essas estratégias envolvem a definição de tarefas “que estejam de acordo com o objetivo da empresa, a criação de regras e a aplicação de sistemas de monitoramento. As recompensas pelas interações dos usuários podem variar desde incentivos virtuais [...] até prêmios físicos”. Um grande incremento para a gamificação nas empresas veio com as redes sociais, que criaram “um solo fértil para o uso de mecanismos de games na divulgação de marcas, já que existe uma tendência natural de recomendação e interação do público com empresas com as quais tem afinidade” (KENSKI, 2011). Outro campo que tem buscado aplicar estratégias de gamificação às suas atividades é a educação. Com isso, visa-se tornar aulas e demais atividades mais produtivas e eficientes, porque mais atraentes. Também com base nos princípios da sociabilidade e da competitividade humanas, grande parte das estratégias procura incorporar com eficácia o potencial dos
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dispositivos móveis para inovar nas formas de interação entre estudantes e professores, tendo por meta o aprendizado produtivo. Em suma, conforme já exposto em Santaella (2013), a ideia por trás da gamificação é que tudo pode virar um jogo, e seu ambiente pode ser uma sala de aula, uma sala de treinamento de uma multinacional, a mesa do presidente de um banco ou mesmo um restaurante cadastrado no serviço online Foursquare. Este, de fato, já contém alguns traços que são próprios dos games: fornecer aos clientes algumas vantagens de fidelidade, como descontos ou o status de mais assíduo frequentador e o título de prefeito do lugar. Assim, a gamificação busca trazer para as atividades desempenhadas pelas pessoas elementos ou “valores” que fazem parte do jogo: “alcance de novos níveis, acúmulo de pontos ou de símbolos de status (badges), simbologia clara de êxitos quando objetivos importantes são alcançados (feedback), barras de progresso para atividades reais” (DORNELLES, 2011). Ou seja, busca aplicar o design thinking dos games para contextos extragames, de modo a tornar esses contextos mais divertidos e atrativos. A antecipação de vivências, a rapidez na aplicação de treinamento e o envolvimento propiciado pelos ambientes lúdicos têm levado o mundo corporativo a inserir os games no seu dia a dia. Em quaisquer campos em que se aplicam, os jogos digitais levam seus usuários a aprender sem perceber, de forma natural, além de desenvolver a habilidade para se trabalhar em equipe. A partir dessa introdução, o rumo que este artigo pretende tomar é um pouco diferenciado daquilo que tem sido abordado na literatura sobre gamificação. Aqui, a mira estará voltada para aquilo que os games têm de insubstituível, intransferível e intraduzível e que, portanto, não pode ser absorvido por quaisquer estratégias de gamificação. Fatores inimitáveis dos games
Existe uma farta bibliografia que se dedica ao levantamento das características que são próprias dos games. Tomando como base uma literatura selecionada sobre o assunto, Souza (2017) elencou tais características: (a) liberdade ‒ jogar como um ato voluntário; (b) improdutividade ‒ jogar como finalidade em si mesma; (c) artificialidade ‒ jogar como ação autocontida, relacionada à ideia de círculo mágico cujos espaço e tempo se distinguem do cotidiano; (d) imprevisibilidade ‒ o resultado pode variar; (e) regras que sustentam a atividade; e f ) feedback contínuo ‒ respostas imediatas entre as ações e seus resultados. Para os propósitos deste artigo, condensei todos os fatores constitutivos dos games apenas naqueles que lhe pertencem incondicionalmente e que não podem ser imitados ou traduzidos na gamificação: a dupla imersão, a finalidade sem fim e a narrativa em ato. Este artigo tem por objetivo discutir esses três fatores para defender a postulação de que, por mais que a gamificação busque se aproximar das condições do game, irremediavelmente haverá sempre um hiato que os separa. Com isso, não se quer dizer que a gamificação deseja ser game. A literatura sobre o tema não escorrega nessa ingenuidade. O que se pretende, portanto, é colocar ênfase em fatores cruciais dos games que fazem deles o que eles são, sui generis, inimitáveis. Por oposição, isso pode ajudar indiretamente a compreender melhor a gamificação.
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Dupla imersão
No uso corrente dicionarizado, imergir é sinônimo de mergulhar. Quando transposto para o mundo das linguagens, o significado adquire outras conotações, como prender a atenção, entregar-se ao momento, pactuar com o conteúdo recebido etc. Tais conotações já existiam antes da chegada da internet e da interação que ela exige para que se possa participar daquilo que ela oferece. Com a internet, entretanto, aos significados já existentes de imersão acrescentou-se algo novo, a saber, a aliança da imersão com a interatividade. Esta também é uma palavra que já existia antes da internet para significar “ação entre”, “ação recíproca”. Contudo, a chegada da internet também potencializou o sentido de interatividade. Dediquei a essa questão um estudo detalhado em Santaella (2004), o que permite me limitar agora aos seus pontos mais fundamentais. A interatividade apresenta graus que foram estudados por vários autores. Entre eles, Kretz (1985) estabeleceu seis gradações para a interatividade: (a) interatividade zero em romances, discos e DVDs que são acompanhados linearmente, do começo ao fim; (b) interatividade linear, quando romances, discos e DVDs são folheados e saltados em avanços e recuos; (c) interatividade arborescente, quando a seleção se faz pela escolha em um menu ‒ hipermídia arborescente, jornais ou revistas; (d) interatividade linguística, que utiliza acesso por palavras-chave, formulários etc.; (e) interatividade de criação, que permite ao usuário compor uma mensagem por correspondência; e (f ) interatividade de comando contínuo, que permite a modificação e o deslocamento de objetos sonoros ou visuais por meio da manipulação do usuário, como nos videogames. Um dos pontos-chave da interatividade digital encontra-se no fato de que a informação que chega aos usuários implica em um feedback imediato. Os sistemas usados na internet são muitos, exibindo diferentes capacidades tecnológicas e de interação, tanto síncronas quanto assíncronas. Além disso, a proliferação exuberante de sites, blogs e redes de relacionamento naturalizou a interatividade. Entretanto, é nos games que a vocação interativa do universo digital atinge o seu ápice. Vejamos por que. Antes de tudo, pelo fato de que, no universo digital, a interatividade está entrelaçada com a imersão. Ademais, nesse território, há vários níveis de imersão que, em outro trabalho, sistematizei em quatro (SANTAELLA, 2004). O nível mais profundo é o da imersão perceptiva, que é experienciada nos ambientes de realidade virtual. O próximo nível é atingido por meio de telepresença, quando um sistema robótico permite que alguém se sinta como se estivesse presente em um local distante. Ao terceiro grau chamo de imersão representativa, obtida em ambientes construídos com linguagem VRML (virtual reality modeling language)1. Enquanto na realidade virtual o participante experimenta a sensação de estar dentro, atuando na cena virtual, na imersão representativa a pessoa está de algum modo, na maioria das vezes por meio de um avatar, representada no ambiente virtual da tela. O último grau de imersão, mais frequente e menos profundo, ocorre quando o usuário está conectado na rede. Entrar na rede significa necessariamente imergir em um mundo paralelo e imaterial, feito de bits de dados e de partículas de luz. Padrão de formato de arquivo usado para aplicações de realidade virtual (RV), também conhecida como virtual reality (VR).
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Ora, muito antes da cultura digital ter trazido à baila os conceitos de imersão e interatividade, esses conceitos já eram centrais em qualquer tipo de jogo. Presente em qualquer jogo, a interatividade está conectada à exigência de que o jogador realize uma ação, como mover uma peça em um tabuleiro ou pressionar uma tecla em um teclado, pois essa ação é projetada para ter um significado específico no mundo do jogo. Essa performance implica a interação do jogador com o estado do jogo. Nos games, contudo, a interatividade já é, por princípio, aquilo que conduz as ações recíprocas do jogador com os processos que o design interativo determina. Quanto à imersão – em um sentido psicológico e perceptivo, não necessariamente no sentido cibernético –, ela também é uma condição a ser preenchida por qualquer tipo de jogo, por mais rudimentar que ele seja. O ato de jogar pressupõe um agenciamento, um jogador que tem de estar concentrado, envolvido e absorvido na sua ação, imerso nos passos da máquina de estados que caracteriza qualquer jogo. Isso significa que, no caso de jogos computacionais, dois tipos de imersão estão operando ao mesmo tempo, a imersão psicológica e perceptiva mais profunda, que é exigida por qualquer jogo, e a imersão que é específica de um ambiente cibernético. Esse engajamento duplo certamente intensifica o processo de imersão na experiência subjetiva do jogador, e pode muito bem ser uma das razões pelas quais jogos computacionais são tão inelutavelmente atraentes e hipnóticos. De fato, no caso dos videogames, a concentração intensa que está neles implicada resulta do fato de que, tão logo alguém se torna um agente em um game, essa pessoa imediatamente entra em um mundo paralelo, autossuficiente, cuja autossuficiência é suportada pela autorreferencialidade de suas regras. Quando digo mundo paralelo, isso não deve ser entendido apenas no sentido de um mundo que é artificialmente construído, como é comum acontecer nos jogos computacionais, nos quais todo o ambiente virtual tem de ser desenhado e arquitetado. Quero me referir, isso sim, à condição criada pelo jogo de colocar o jogador em outro plano da realidade. Isso ocorre em qualquer tipo de jogo e, no caso dos games, foi sobejamente explorado por muitos de seus teóricos e comentadores, ou seja, a entrada do gamer em um contexto fictício. Entretanto, chamo atenção para algo ainda mais primário que isso. O que importa em um game não é o realismo ou a fantasia de seu cenário e seu conteúdo. Não importa se ele está bem perto de um gênero de ficção científica ou se é tão insensato quanto um desenho animado. O que importa é o grau de intimidade que a penetração no universo digital propicia. Segundo Murray (2003, p. 102), “a experiência de ser transportado para um lugar primorosamente simulado, é prazerosa em si mesma, independentemente do conteúdo da fantasia. Referimo-nos a essa experiência como imersão”. Assim, quanto mais a conexão entre games e jogadores é íntima, mais cresce o processo imersivo, pois os games mapeiam o jogador dentro do jogo. Eis aí, portanto, um atributo que os games têm de inimitável: a imersão em potência dupla. Finalidade sem fim
A expressão “finalidade sem fim” é aqui emprestada de Kant (1993), que a desenvolveu no contexto de sua terceira crítica, a Crítica da faculdade do juízo. O aparente paradoxo
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resolve-se porque Kant separou o fim, ou seja, a utilidade a que algo se presta, de sua finalidade, quer dizer, o prazer que é capaz de provocar. O fim diz respeito à utilidade, às necessidades práticas da vida, enquanto a finalidade se esgota em si mesma, daí ser capaz de provocar prazer desinteressado, quando a única finalidade reside no próprio prazer. É certo que, para Kant, a finalidade sem fim refere-se ao julgamento do belo ou do gosto. É a beleza que provoca prazer desinteressado e que, portanto, não funciona como meio para satisfazer um fim externo. Por isso, pode parecer inadequado transpor para o universo dos games o complexo contexto em que o julgamento kantiano do belo é pensado. Contudo, é viável considerar que, embora o que esteja em pauta nos games não seja o belo, guardadas as devidas diferenças, a cifra da finalidade sem fim parece também lhe caber com justeza. Não dever ser por acaso que alguns autores estabelecem a comparação da liberdade do ato de jogar com a autonomia da arte. Para Kwastek (2013), o jogo é voluntário e desinteressado, ou seja, não visa a outros fins a não ser ele mesmo e o prazer que provoca. Embora o jogo implique desafios e superações, metas e compensações, não existe uma finalidade externa que atraia o jogador a não ser a busca de um fim que se esgota no próprio jogo (MCGONIGAL, 2012). Upton (2015) é outro autor que estabelece a comparação entre a experiência estética e a experiência de jogar. Para isso, o autor levanta seis elementos que são próprios do ato de jogar: escolha, variedade, consequência, previsibilidade, incerteza e satisfação. Com isso, Upton (2015 apud SOUZA, 2017, p. 51) pretende compreender “quais características são essenciais e quais são negociáveis em um jogo, para expandir as possibilidades de efeitos estéticos que ele pode produzir”. Quando discute o elemento da satisfação, o autor esclarece que o efeito do prazer não reside apenas em ganhar o jogo, mas, sobretudo, no jogar em si. Bastante conhecida e sobejamente citada no contexto dos games é a teoria do fluxo, de Csikszentmihalyi (2008). Voltamos a ela pela relação que apresenta com o efeito estético e, consequentemente, com a finalidade sem fim. Para que o estado mental e mesmo corporal do fluxo seja atingido, é necessário um total desprendimento da percepção e da atenção de qualquer incidente externo, quer dizer, exige-se uma concentração na atividade que se desenrola como um fim em si mesma, um ato que se realiza pelo puro prazer de sua realização. Tanto na contemplação ou participação estética quanto no ato de jogar, a experiência em si se expande a tal ponto que aquele espaço-tempo parece ser o único universo existente. Essa experiência só é possível porque o ato em si é alimentado pela imaginação criadora. No caso dos games, segundo Upton (2015 apud SOUZA, 2017, p. 67), a dilatação imaginativa da experiência é conquistada por meio da antecipação: antecipar com precisão os resultados das ações é o objetivo maior, ou metaobjetivo, de todos os jogos. As considerações anteriores parecem dar crédito à proposta deste artigo quando tornam evidente que, enquanto o game é um território em que impera a finalidade sem fim, na gamificação, mesmo que haja o prazer promulgado por estratégias similares aos games, não existe a possibilidade do prazer desinteressado, pois há sempre finalidades externas ao prazer.
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Narrativa em ato
A terceira parte do livro Matrizes da linguagem e pensamento: sonora, visual, verbal (Santaella, 2001) foi dedicada ao discurso verbal cuja classificação se distribui em: (a) descrição; (b) narração; e (c) dissertação. Comparado com os outros dois tipos de discurso, o narrativo é aquele com que o falante tem mais intimidade, advinda da facilidade para seu desempenho graças à estrutura sintática narrativa das línguas indo-europeias: sujeito-predicado-complemento. Portanto, a maior parte das frases verbais já contém um núcleo narrativo. Além da facilidade, narrativas atraem a imaginação e a sensibilidade, sendo capazes de produzir projeções identificatórias nos seus leitores ou espectadores, como é o caso da literatura, dos quadrinhos, do cinema e de alguns vídeos que primam pela narratividade de seus discursos. A narrativa, o ato de contar histórias, acompanha a humanidade desde tempos imemoriais. Pode-se até afirmar que a ficção faz parte integrante da vida humana. Algumas das inscrições nas cavernas já eram flagrantes narrativos, fragmentos congelados de uma narrativa subjacente. Então, os mitos e os ritos, responsáveis pela representação e reencenação mágica do mundo, são formas narrativas que, no Ocidente, se tornaram mais complexas na epopeia, canto falado dos feitos heroicos do homem, em contraponto às tragédias, tramas de submissão do ser humano aos incontornáveis enigmas do destino. As narrativas orais, os contos maravilhosos e as novelas medievais culminaram na história crepuscular do fidalgo Don Quixote, desencontrado em um mundo transmutado que não podia mais dar acolhida aos seus ideais. Quebrada a casca do ovo da novela, dela emergiu a história secular do romance e da dramaturgia do herói e do anti-herói numa explosão de gêneros: fantasia, aventura, ficção científica, detetive, mistério, horror, guerra etc. Então, a narrativa encontrou morada no cinema, nos quadrinhos, no rádio e nas telenovelas. Por fim, hoje, ela também habita confortavelmente as mais variadas formas, sempre interativas, dos games. Para os games convergem adaptações, traduções e misturas dos mais distintos tipos de narrativas, especialmente das fantasias medievais e dos filmes. De fato, a conversação dos games com outras mídias, especialmente filmes, é bastante frequente. Muitos designers de games configuram elementos da história a partir de filmes existentes ou gêneros literários porque os games são muito aptos para se apropriar deles. Os games não apenas recontam as histórias, mas expandem nossa experiência prévia delas e o modo de interpretá-las, por meio da imersão e da interação (SANTAELLA, 2012). E aqui tocamos o ponto em que os games são inconfundíveis, inclusive no quesito narrativo. Costuma-se ter uma visão bastante reducionista da narrativa como ato de contar ou desenvolver uma história. De resto, é desse reducionismo que derivaram as polêmicas e as discórdias entre os especialistas em games, tomados de um lado como narratologistas ( JUUL, 2005; AARSETH, 2004) e, de outro, como ludologistas (MURRAY, 2003). Para os primeiros, games são narrativas, ou seja, contêm histórias. Para os ludologistas, games são jogos, sem obrigatoriamente necessitarem de uma história. Para eles, o que importa nos games é o gameplay, o ato de jogar. Entretanto, uma visão um pouco mais alargada de narrativa é suficiente para dissolver essa oposição.
O hiato entre o game e a gamificação
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Onde houver ação e reação entre agentes, ou seja, onde houver agenciamento no tempo, ações que se desenrolam temporalmente, lá estará a narrativa. Portanto, sem deixar, evidentemente, de incluir o gameplay, todo game é por natureza narrativo, mesmo que o ato de jogar não se desenvolva no formato de uma história. Ryan (2009) também parece defender argumentos similares. Para ela, não há separação entre gameplay e narratividade, uma vez que os elementos narrativos vão se construindo na medida em que as ações vão sendo desempenhadas no jogo pela mediação de um avatar. Se levarmos em conta o conceito mais amplo de narrativa, ou seja, ações sob o domínio da sequencialidade temporal, pode-se considerar que, ao incorporar as estratégias que são próprias dos games – desafio, superação, conquista, recompensa ‒, a gamificação também apresenta uma estrutura narrativa, na qual o desempenho de ações se desenrola no tempo. Qual a crucial diferença, todavia, entre a narrativa do game e a narrativa da gamificação? No primeiro, desenvolve-se um tipo único de narrativa que estou aqui chamando de narrativa em ato. O que isso significa? Nas narrativas tradicionais, feitas para leitores e espectadores, o objetivo é atingir um fim em que a narrativa se consuma, a saber, a finalidade é chegar ao fim da história. Assim, também na gamificação tudo se processa para atingir a eficácia de uma meta. Nos games, contudo, o objetivo não é necessariamente terminar o jogo, mas jogar, executando ações que se repetem em inúmeras variações. Então, o que importa é estar no jogo. E a interatividade nesse caso não se reduz a uma possível troca ou competição entre parceiros, pois, nos games, interatividade se define como ações capazes de mudar o estado interno do jogo por meio de feedback instantâneo. A narrativa em ato implica um tipo de agenciamento que se realiza em um mundo que se altera dinamicamente de acordo com a participação do jogador, um mundo dominado por regras, mas, ao mesmo tempo, imprevisível no sentido de que só pode ser construído na espacialidade e na temporalidade da jornada lúdica. Aí estão os três atributos – dupla imersão, finalidade sem fim e narrativa em ato – que fazem do game aquilo que ele é, sua marca registrada. Há outros atributos que os games podem compartilhar com uma série de atividades que lhe são próximas e distintas. A principal delas é a gamificação, que busca extrair dos games justamente aquilo que eles são capazes de desenvolver no agente em termos de estímulo, eficácia da ação, prazer no que se faz e satisfação com os resultados. O mistério do game e a força de atração irresistível que ele provoca no jogador são justamente aquilo que ele tem de inimitável. Referências AARSETH, E. J. Quest games as post-narrative discourse. In: RYAN, M.-L. Narrative across media. Lincoln: University of Nebraska Press, 2003. ______. Quest games as post-narrative discourse. In: RYAN, M.-L. Narrative across media: the languages of storytelling. Lincoln: University of Nebraska Press, 2004. p. 361-376.
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Gamificação em debate
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Sobre os autores Alan Richard da Luz
Doutor em Design pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAUUSP) e pesquisador em videogames, game theory e filosofia dos jogos há mais de quinze anos. Autor do livro Videogames: história, linguagem e expressão gráfica e de artigos premiados na área. Consultor independente em estratégias de design, games e gamificação corporativa. Docente do curso de Design de Games da Universidade Anhembi Morumbi e da pós-graduação Arte e Educação: Teoria e Prática da Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP). André Neves
Professor associado da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Possui graduação em Desenho Industrial pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB), mestrado e doutorado em Ciências da Computação pela UFPE e pós-doutorado pela Universidade da Beira Interior (UBI), em Portugal. Tem experiência na área de ciências da computação com ênfase em design de sistemas de computação, atuando principalmente na investigação, desenvolvimento e aplicação de métodos e técnicas de design como instrumento de inovação em tecnologia da informação e comunicação. Clarissa Sóter
Doutora em Design pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Mestre em Design e Sustentabilidade, especialista em design da informação e bacharel em Design. É professora substituta em Design na UFPE, docente do mestrado profissional em Design da CESAR School, empreendedora criativa e consultora freelancer de design, inovação e empreendedorismo. David de Oliveira Lemes (Dolemes)
Doutor pelo Programa de Pós-Graduação em Tecnologias da Inteligência e Design Digital (TIDD) da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), onde leciona
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nos cursos de Jogos Digitais e Design e no Mestrado em Desenvolvimento de Jogos Digitais. Também leciona nos cursos de jogos digitais da Faculdade de Informática e Administração Paulista (FIAP), da Faculdade Impacta Tecnologia e da Fundação Álvares Penteado (FECAP). Consultor de Educação e Tecnologia da Escola Vera Cruz. Editor do site GameReporter, especializado em games. Site: www.dolemes.com. Delmar Galisi
Doutor em Design pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), possui graduação e mestrado em Comunicação Social pela Universidade de São Paulo (USP). Desde 2003, é coordenador do curso de Design de Games da Universidade Anhembi Morumbi. Há mais de 20 anos, atua como professor, pesquisador e consultor em design de games. Desenvolveu jogos para educação, saúde e treinamento corporativo. Dulce Márcia Cruz
Professora associada da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) no Departamento de Metodologia de Ensino, na Universidade Aberta do Brasil e no Programa de Pós-Graduação em Educação. Líder do Grupo de Pesquisa EDUMÍDIA. Graduada em Comunicação, mestre em Sociologia Política e doutora em Engenharia de Produção. Pesquisa letramentos, games, formação docente, narrativas da cultura digital. Tem projetos financiados pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e pela Rede Nacional de Ensino e Pesquisa (RNP) para produzir o Game Comenius. Bolsista de produtividade em pesquisa pelo CNPq. Fábio Medeiros
Mestrando em Educação e Comunicação do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Graduado em Psicologia pela UFSC. Trabalha no Senac-SC como analista de capacitação docente e formador da proposta pedagógica do uso de metodologias ativas e tecnologias digitais em ambientes de aprendizagem. Atua com psicologia organizacional e do trabalho e em todos os macroprocessos de RH, em educação. É game designer de jogos educacionais digitais e analógicos. Fabricio Fava
Doutor em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), com pesquisa em gamificação. Possui experiência acadêmica e profissional nas áreas multidisciplinares de comunicação e design. Desenvolve projetos de games e arte interativa com publicações em eventos internacionais. Interessa-se pelos processos de criação em design thinking, design lúdico e design de interação.
Sobre os autores
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Fabrizio Poltronieri
Professor e pesquisador do Instituto de Tecnologias Criativas da Universidade de Montfort, na Inglaterra, onde leciona no Mestrado de Artes Digitais e supervisiona doutorados nas áreas de arte e tecnologia. Doutor em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), é artista premiado do campo das estéticas tecnológicas, com obras em coleções como a do Museu Victoria & Albert, em Londres. Autor do livro Explorations in art and technology e vencedor do Prêmio Itaú Rumos nas edições de 2011 e 2018. Gilson Schwartz
Livre-docente em Economia do Audiovisual. Professor na Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP) e no Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar Diversitas na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP). Foi associado do Instituto de Economias em Desenvolvimeto do Japão, da Escola de Comunicações Annenberg, da Universidade do Sul da Califórnia e da Universidade de Warwick. Colaborou como articulista, editorialista e analista econômico do jornal Folha de S.Paulo e da revista Época Negócios. Criador do grupo de pesquisa Cidade do Conhecimento do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo (IEA-USP). Coordenador do Games for Change América Latina. João Mattar
Tem mestrado em Tecnologia Educacional pela Universidade do Estado de Boise, doutorado em Literatura pela Universidade de São Paulo (USP) e pós-doutorado pela Universidade Stanford. Atualmente é professor, pesquisador e orientador no Programa de Pós-Graduação em Educação e Novas Tecnologias (PPGENT) no Centro Universitário Internacional (UNINTER) e no Programa de Pós-Graduação em Tecnologias da Inteligência e Design Digital (TIDD) na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Lucia Santaella
Pesquisadora 1A do CNPq com livre-docência em Ciências da Comunicação pela Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP). Professora emérita da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), onde leciona no Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Semiótica e coordena o Programa de Pós-Graduação em Tecnologias da Inteligência e Design Digital. Recebeu o Prêmio Jabuti em 2002, 2009, 2011 e 2014, o Prêmio Sergio Motta (Líber) em Arte e Tecnologia em 2005 e o Prêmio Luiz Beltrão na categoria Maturidade Acadêmica em 2010. Professora convidada nas universidades Livre de Berlin, de Valência, de Kassel, de Évora, Nacional das Artes de Buenos Aires e Michoacana de San Hidalgo, no México. Orientou cerca de 250 mestres e doutores e supervisionou 6 pós-doutorados. Publicou e organizou 60 livros. Possui cerca de 400 artigos publicados em periódicos científicos no Brasil e no exterior.
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Gamificação em debate
Lynn Alves
Doutora em Educação pela Universidade Federal da Bahia (UFBA) com pós-doutorado na área de jogos eletrônicos e aprendizagem pela Universidade de Turim, na Itália. Atualmente é professora e pesquisadora do Instituto de Humanidades, Artes e Ciência (IHAC) da UFBA. Tem experiência na área de educação e jogos digitais, realizando investigações sobre cultura digital e suas interfaces, especialmente sobre os temas jogos eletrônicos, interatividade, mobilidade e educação. Mathias Fuchs
Possui formação em ciências da computação e em composição musical. Game artista e líder do projeto de investigação sobre gamificação financiado pelo German Research Council (2018-2021). Membro do Instituto para a Cultura e a Estética da Mídia (ICAM, na sigla em inglês). Atua como professor na Universidade Leuphana de Lüneburg e é associada à Universidade de Salford, na Inglaterra, à Academia Sibelius, em Helsinki, à Universidade de Artes Aplicadas e à Academia de Música, ambas em Viena. Murilo Henrique Barbosa Sanches
Mestrando pelo Programa de Pós-Graduação em Tecnologias da Inteligência e Design Digital (TIDD) da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e professor no Curso Técnico de Jogos da Fundação Álvares Penteado (FECAP). Paula Carolei
Professora assistente do núcleo da universidade aberta da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), coordenadora do curso de graduação Tecnologia em Design Educacional e professora da disciplina intercampi Jogos, Games e Gamificação na Unifesp. Tem graduação em Ciências Biológicas pela Universidade de São Paulo (USP), mestrado em Educação pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e doutorado em Educação pela USP. Trabalha com tecnologia educacional desde 1993 e pesquisa gamificação em espaços educativos formais e não formais e novos modelos de design educacional desde 2006. Priscilla Maria Cardoso Garone
Docente do Departamento de Desenho Industrial e coordenadora do Laboratório de Design Instrucional da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes). Pesquisa recursos educacionais, design de jogos, histórias em quadrinhos e ilustração. Doutoranda em Design pela Universidade Anhembi Morumbi com pesquisa sobre jogos digitais e gamificação para a educação a distância. Mestre em Design pela Universidade Estadual Paulista (Unesp) e graduada em Desenho Industrial pela Ufes.
Sobre os autores
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Raul Bussarelo
Doutor e mestre em Engenharia e Gestão do Conhecimento pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Graduado em Comunicação Social, pós-graduado em Design Gráfico e Estratégia Corporativa e especialista em cinema. Atua nas áreas de novas mídias, storytelling, acessibilidade, experiência e gamificação. Em 2009 foi premiado pelo Museu de Arte de Santa Catarina (MASC) e em 2013, pela Conferência Latino-Americana de Tecnologia de Aprendizagem (LACLO). É diretor de criação da Pimenta Cultural, mentor de startups e professor de universitário. Autor do livro Gamification: princípios e estratégias (Pimenta Cultural, 2016). Romero Tori
Professor associado da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (EPUSP), onde também coordena o Laboratório de Tecnologias Interativas (Interlab). Engenheiro de computação com mestrado, doutorado e título de livre docente pela USP em Tecnologias Interativas. Bolsista de produtividade pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) em desenvolvimento tecnológico e extensão inovadora na área de tecnologias educacionais. Coordenou e tem desenvolvido diversas pesquisas de tecnologias na educação. Autor do livro Educação sem distância. Sérgio Nesteriuk
Doutor em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), com pós-doutorado pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). É um dos pioneiros dos estudos em games no Brasil, tendo iniciado suas pesquisas em 1996. Foi produtor artístico e cultural do Museu da Imagem e do Som de São Paulo (MIS) e diretor de educação da Associação Brasileira de Cinema de Animação (ABCA). Como realizador, já foi agraciado com prêmios do Rumos Itaú Cultural, do Programa de Ação Cultural (ProAC) e do Programa de Apoio ao Desenvolvimento do Audiovisual Brasileiro do Fundo Setorial do Audiovisual (Prodav-FSA). Consultor de projetos e júri de prêmios e editais nas áreas de games, animação e transmídia. Consultor ad hoc da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP). Curador do festival de jogos do BIG Festival, um dos maiores festivais de jogos independentes do mundo. Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Design da Universidade Anhembi Morumbi. Simone Barros
Tem pós-doutorado em Design de Moda pela Universidade da Beira Interior (UBI), em Portugal. É doutora em Design, mestre em Educação e tem graduação em Comunicação Social pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Professora adjunta nível 1 do Departamento de Design e do Programa de Pós-Graduação em Design e Ergonomia da UFPE. Atua principalmente nos seguintes temas: design, moda, figurino e comunicação.