A ontologia em debate no pensamento contemporâneo [1 ed.] 9788534940818

Este livro tem por objetivo retomar a metafísica, o que certamente constitui uma tarefa das mais urgentes do pensamento

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Portuguese Pages 286 [271] Year 2014

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Table of contents :
Prefácio
1. Status e desafio da ontologia no pensamento contemporâneo
2. Teoria da substância enquanto categoria ontológica fundamental
3. A ontologia monocategorial: a teoria dos tropos de K. Campbell
4. A ontologia de acontecimentos (eventos) e processos
5. A ontologia como uma dimensão da filosofia sistemático-estrutural
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A ontologia em debate no pensamento contemporâneo [1 ed.]
 9788534940818

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A ontologia em debate no pensamento contemporâneo

da diferença que subj az a ele e aponta para além dele não acaba, antes, prossegue. Não chega ao fim a estrutura de organização da metafísica, a diferença, mas unicamente o princípio da metafísica: a presença. A proposta de destruição da metafísica é articulada por Rorty, no seio de uma nova versão do pragmatismo norte-americano. Segundo J.-P. Cometti, o pragmatismo americano, que é a filosofia mais solidamente enraizada na cultura americana, desenvolveu-se em torno de uma filo­ sofia do conhecimento, mas desde o princípio se afastou de concepções que tendem a privilegiar a busca de um fundamento no absoluto, ou de um modelo da razão que determina apriori as possibilidades de busca e de descoberta. A ideia de que a crença, se situa, ao mesmo tempo, no começo e no fim da pesquisa é o cerne da oposição de Peirce a Descar­ tes.71No entanto, o retorno recente ao pragmatismo foi possibilitado por uma crítica forte ao empirismo, sobretudo o do Círculo de Viena, que se havia difundido muito nos Estados Unidos. Essa crítica começou com o texto famoso de Quine (Two Dogmas of Empiricism) e foi continuada por N. Goodman, W. Sellars e D. Davidson.72 Para Rorty, a intuição originária da metafísica, que se explicitou no Mênon (82 b - 85 b) - o escrito programático da Academia platônica -, foi que o conhecimento humano não se reduz ao conhecimento da experiência, mas que é possível chegar a um conhecimento objetivo através do pensamento conceituai. Rorty considera isso precisamente a doença que subjaz a todo o pensamento ocidental a partir da intuição exatamente contrária: não existe uma realidade maior, para além da realidade que se manifesta no dia-a-dia, que possa oferecer para a ação do ser humano no mundo um horizonte de reconciliação e salvação. Daí por que sua proposta consiste basicamente em curar a huma­ nidade da doença platônica, metafísica, o que, segundo ele, deve ocorrer através de uma radicalização da postura da filosofia analítica, que tem seu cerne na reviravolta lingüística/3Na medida em que essa reviravolta é levada até o fim enquanto reviravolta pragmática, manifesta-se a neces­ sidade de renúncia a uma premissa que a vinculou tacitamente à grande tradição do pensamento ocidental, ou seja, a de que ainda há verdades filosóficas a descobrir, que podem ser fundamentadas com argumentos. Daí a conclusão: a primeira tarefa é a desconstrução da metafísica, o desmascaramento do platonismo, que inicia com a demonstração de que mesmo a filosofia analítica permaneceu presa à metafísica que combateu, 71 Cf. COMETTI, J.-P. “ Le Pragmatisme: de Peirce à Rorty” . In: MEYER, M. (org.). La Philosophie anglo-saxonne. Paris: PUF, 1994, p. 396. 72 Cf. ibidem, p. 446 e ss. 73 Cf. RORTY, R. The linguistic Tum. Recent Essays in Philosophical Method. University of Chicago Press, Phoenix Edition, 1970.

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o que faz vir à tona o fato de que toda nossa cultura está radicada nos mal-entendidos que remontam a Platão. Outro exemplo da postura pós-moderna que tem grandes críticas à tradição filosófica ocidental e que se contrapõe radicalmente à ontologia é Lévinas, para quem a ontologia consiste fundamentalmente na redução do outro ao mesmo: A teoria como intelecção dos entes recebe o título geral de ontologia. A ontologia reduz o outro ao mesmo; ela promove a liberdade; a liberdade é a identificação do mesmo, não se deixando alhear pelo outro. Nela a teoria toma um caminho em que renuncia ao apetite metafísico, ao milagre da exterioridade, do qual vive esse apetite.74

Isso significa que o outro é despojado do seu ser-em-si ou de sua alteridade, e que a posse e a submissão da natureza pela subjetividade se prolongam nas relações intersubjetivas, o que significa indiferença em relação ao outro enquanto alteridade que configura toda a civilização ocidental. Essa postura Lévinas vê presente em Hegel, Marx e Heidegger, em que, apesar de tentativas de uma inversão, a centralidade do sujeito permanece, já que não se atribui absolutidade ao outro. Por essa razão, a ontologia deve dar lugar à ética, pois ela é a dimen­ são em que o outro é plenamente reconhecido como outro, uma vez que aqui ocorre uma despotencialização do sujeito como centro do mundo. A ética torna-se o eixo fundamental precisamente porque contém e revela a possibilidade e a realidade do além do ser e da identidade do mesmo como transcender para o outro numa relação responsável que Lévinas chama de alteridade.75

Submeter a ética à ontologia significa que a ontologia se faz a ide­ ologia do eu monológico; por isso, a crítica da ética à ontologia é uma questão fundamental. Dessa forma, faz-se necessária uma superação da ontologia, uma inversão radical, portanto, do pensamento que tem seu centro na ética que é a metafísica genuína, a verdadeira "filosofia primeira”. Ela abre o espaço para a metafísica enquanto aspiração de algo que está para além. Uma proposta do pensamento alternativo se explicitou no pensa­ mento de G. Vattimo76enquanto "pensamento débil”, que é igualmente 74 Cf. LÉVINAS, E. Totalitdt und Unendlichkeit. Versuch iiberdie Exterioritãt. Friburgo/ Munique: Alber Verlag, 1987, p. 50. 75 Cf. PIVATTO, P. S. “ Ética da Alteridade” . In: OLIVEIRA, M. A. de (org.). Correntes Fundamentais da Ética Contemporânea. Petropólis: Vozes, 2009,4a ed., p. 88. 76 Cf. VATTIMO, G.Jenseits vom Subjekt. Nietzsche, Heidegger und die Hermeneutik. Graz/Viena: Bõhlau, 1986, p. 30 e ss.

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um pensamento da diferença, em primeiro lugar, pela própria tentativa de experimentar algo diferente da tradição. Em segundo lugar, por sua tentativa de radicalizar a ideia da “diferença ontológica” de Heidegger, ou seja, a ideia de que o ser se subtrai essencialmente de tal modo que qualquer tentativa de busca de um fundamento último contradiz a dinâmica do ser. O ser só é captável enquanto recordação, memória, vestígio, nunca enquanto absoluto. Um ser pensado assim nos liberta, nos deixa livres frente ao mandamento das evidencias e dos valores, de todas as totalidades criadas pela metafísica e que serviram a todos os sistemas autoritários como máscara de legitimação.77 O pensamento débil é uma forma de niilismo: isso significa que os princípios últimos da metafísica, em suas diferentes formas (ser, funda­ mento, Deus etc.), são nada. Assim, o primeiro passo do pensamento é negativo: trata-se de mostrar a falta de fundamento primordial de todas as opções e de todos os projetos. Essa negatividade nos conduz ao momento positivo: as emergências históricas e os fenômenos constituem o único ser real.78 É levando esta realidade a sério que conseguimos viver sem neuroses num mundo em que Deus está morto, isto é, num mundo em que não há estruturas firmes, seguras, essenciais. Quem consegue isso é capaz de prezar a multiplicidade dos fenômenos. Trata-se de esquecer a alma imortal e viver como almas mortais. É esse o sentido de nossa nova experiência, não platônica, de valores e significações. Deleuze e Guattari consideram o pensamento contemporâneo sob o signo do rhizom, que é um tipo de raiz especial. Nele as partes mais velhas morrem no mesmo tempo em que as novas se formam, de tal modo que em alguns anos ele se transforma inteiramente. Transfe­ rindo para a esfera do pensamento, rhizom deve ser o modelo de uma concepção de pensamento, adequada a nosso tempo,79 da “ontologia” que se nos apresenta como tarefa hoje. Sua especificidade é vincular diferenças e passagens. O rhizom é sempre uma rede em que cada ponto está vinculado com todos os outros: ele é um sistema não centralizado, uma multiplicidade descentralizada, não hierárquica e não significante, sem uma memória organizadora, e é definida única e exclusivamente através da circulação das situações.80 Em contraposição à concepção tradicional de sistema, nessa con­ cepção as diferenças conservam sua autonomia: nem são superadas por 77 Cf. VATTIMO, G. Op. a í., p. 33-34. 78 Cf. idem. “ Post-Modemità e Fine delia Storia”. Etica deli' interpretazione, Torino, 1989, p. 23. 79 Cf. DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Qu'est-ce que laphilosophie. Paris: Minuit, 1991, p. 10. 80 Cf. idem. Rhizom. Berlin: Merve, 1977, p. 35.

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um fundamento comum, nem eliminadas por uma configuração homo­ gênea, mas aqui ocorrem desenvolvimentos paralelos, que permanecem altamente diferentes entre si. Toda a evolução se caracteriza por não progredir de acordo com o modelo da árvore genealógica, mas como um rhizom que opera imediatamente na heterogeneidade e salta de uma linha já diferenciada para outra. Para Frank, esse pensamento se carac­ teriza pela falta de uma “unidade individualizante” ou de individuação, o que implica que a unidade se põe sempre de novo em distanciamento da multiplicidade, e nunca se chega a um termo final, como foi o caso na metafísica.81 Em contraposição ao pensamento das diferenças absolutas, as con­ figurações "rizomáticas” apontam sempre para vinculações, que contri­ buem não simplesmente para unificações, mas para complexificaçÕes.82O que está vinculado se separa depois, de modo que linhas diferenciadas de desenvolvimento coexistem com vinculações transversais entre as dife­ rentes linhas. O pensamento rizomático defende ao mesmo tempo tanto o “princípio de conexão” quanto o “princípio de heterogeneidade”.83 Nesse sentido, a ontologia rizomática se contrapõe tanto à metafísica da tradição, que submete a pluralidade ao uno, quanto à filosofia da pluralidade, que se prende à contradição entre a plurificação objetiva e a unificação subjetiva. Essa nova ontologia consegue pensar a plurali­ dade pensando juntamente pluralidade e passagem, isto é, a vinculação entre pluralidade e unidade, entre heterogeneidade e conexão: trata-se de um pensamento que pretende pensar a vinculação entre pluralismo e monismo, a fórmula que “todos procuramos”.84 Diferença e unidade só podem ser corretamente pensadas quando o pensamento de uma inclui o pensamento da outra, de tal forma que uma ontologia rizomática nos liberta das aporias do pensamento da diferença absoluta,85 uma vez que aqui se pensam as diferenças e ao mesmo tempo as vinculações e as passagens, pois as diferenças surgem através de cruzamentos de operações laterais e transversais. O mérito da categoria rhizom consiste precisamente em ligar heterogeneidade e conexão, diferença e passagem, o que implica superar uma concep­ ção monádíca do diferente. É por essa razão que a categoria rhizom

81 Cf. FRA NK, M. Was ist Neostrukturalismus? Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1984, p. 443. 82 Cf. D ELEUZE, G.; GUATTARI, F. Rhizom. Op. cit, p. 14. 8i Cf. ibidem, p. 11. 84 Cf. ibidem, p. 34. 85 Segundo Welsch, a referência aqui é ao pensamento de Lyotard. Cf. W ELSCH, W. Vemunft. Die zeitgenõssische Vemunftkritik und das Konzept der transversalen Vemunft. Frankfurt am Main, 2*ed., p. 361 -362.

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articula a filosofia como "nomadologia”,86 como pensamento das pas­ sagens que, segundo Welsch, desemboca numa concepção transversal da razão.87 Uma razão assim entendida vai movimentar-se no seio de entrelaçamentos. Uma mudança de clima ocorreu no seio da filosofia analítica contemporânea.88 Para Loux e Zimmerman, foi precisamente no início dos anos 1960 que os preconceitos contra a metafísica começaram a ser suavizados. Para eles, nesse contexto de reabilitação da metafísica na filosofia analítica, sobretudo dois filósofos foram particularmente in­ fluentes: Quine, com sua tese dos compromissos ontológicos assumidos com a aceitação de um determinado discurso (sua afirmação famosa - ser é ser o valor de uma variável ligada - supostamente fornecia o critério para determinar com que tipos de entidades nos comprometemos;89 e Strawson,90 com sua metafísica descritiva, cujo objetivo básico era a tematização sistemática das categorias estruturais mais gerais do esquema conceituai com que falamos e pensamos acerca do mundo.91 Nos dias atuais, a filosofia analítica não se apresenta mais como uma corrente filosófica rigidamente demarcada, uma vez que se distanciou dos limites em que se situou em seu início. Pode-se certamente asseverar que a filosofia analítica constitui hoje a única orientação filosófica em que são trabalhados todos os temas filosóficos - também introduzindo, portanto, os temas da grande tradição, com exceção do grande tema da “questão do ser”. Isso se faz, porém, com o novo instrumental, as con­ quistas das pesquisas lógico-semânticas do último século, o que a levou a insistir na importância da correção lógica,92na clareza conceituai e na força argumentativa. Embora trabalhe sistematicamente os diferentes temas, ela permanece, contudo, um pensamento fragmentário, uma vez que normalmente a questão de sua conexão não é levantada. Ela tem-se concentrado, como afirma Puntel, em dois grandes campos:

86 Cf. DELEU ZE, G.; GUATTARI, F. Rhizom. Op. cit., p. 37. 87 Cf. W ELSCH, W. Op. cit., p. 366. 88 Cf. FARIA, P. “História da filosofia analítica”. In: BR A N Q U IN H O , J.; M URCHO, D.; GOM ES, N. G. (orgs.). Enciclopédia de termos lógico-filosóficos. São Paulo: Martins Fon­ tes, 2006, p. 339-346. G L O C K , J.-H. What is Analytic Philosophy? Cambridge: Cambridge University Press, 2008. 89 Cf. VIDAL, V. “A ontologia analítica de Quine”. In: IM AGUIRE, G.; ALMEIDA, C. L. S. de; OLIVEIRA, M. A. de (orgs.). Metafísica Contemporânea. Petrópolis: Vozes, 2007, p .98-120. 90 Cf. STRAWSON, P. F. Individuais: An Essay in Descriptive Metaphysics. London: Methuen, 1959. 91 Cf. LO U X, M.; ZIMMERMAN, D. W. Introduction. Op. cit. 92 A respeito do deslocamento das questões da metafísica da tradição a partir da assunção de uma postura lógico-semântica, cf. DUMMETT, M. The Logical Basis of Metaphysics. Cambridge (MA): Harvard University Press, 1991.

Stotuse dosoflo da ontologia no pensamento contemporâneo

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As duas transformações mais notáveis sâo, primeiro, a deslocação do centro de preocupações da dimensão da linguagem para a dimensão da filosofia do espírito {philosophy o f minàf), e, segundo, a abertura decisiva para questões metafísicas, ainda que se trate de uma metafísica bastante exígua (trata-se mais da temática tradicional, metaphysica specialis, que da metaphysica generalis, isto é, da ontologia geral).93

Numa palavra, na linguagem da tradição, são articuladas aqui te­ orias sobre os entes, as metafísicas especiais (até porque ainda persiste muita desconfiança diante de esquemas ontológicos abrangentes), e não uma teoria do ente enquanto tal, uma ontologia geral. No máximo são tratadas aqui algumas questões de forma fragmentária, isto é, sem que sejam trabalhadas suas interconexões, que dizem respeito a uma ontolo­ gia geral, e muito menos se levanta aqui a questão de uma teoria do ser.94 Assim, os temas principais aqui tratados são para Loux e Zimmerman:95entidades abstratas, propriedades, proposições, universais e particulares, particulares concretos, feixes de propriedades, identidade, individuação, eventos, ações, causas, modalidades, mundos possíveis, tempo, espaço, liberdade da vontade etc. Um exemplo muito claro dessas propostas é o livro A Survey of Metaphysics de E. J. Lowe.96Ele chega a definir metafísica como o conhecimento que tem a ver com a estrutura fundamental da realidade como um todo, mas entende "todo” num sentido estritamente extensional: trata-se de uma coleção extensional de tópicos e domínios, sem que minimamente seja levantada a questão a respeito do que é comum a todos esses tópicos e domínios.97 Loux mesmo, por sua vez, propõe-se a fazer metafísica no sentido em que ela foi tradicionalmente entendida, cujo objetivo fundamental era caracterizar a natureza da realidade, dizer como as coisas são.98Ten­ do como ponto de fundo as tarefas que Aristóteles determinou para a metafísica,99pode-se dizer que a ideia de uma ciência geral que estuda os entes a partir da perspectiva de seu ser corresponde justamente, segundo

93 Cf. PU NTEL, L. B. A unidade da filosofia e a pluralidade de correntes filosóficas: ex­ pressão da potencialidade criadora do pensamento, prova de autodesqualificação da filosofia ou problema solúvel/insolúvel? Porto Alegre (mimeo), 2013, p. 3. 94Cf. idem. In: STEGLICH-PETERSON, A. (org.). Metaphysics. 5 Questions, Automatic Press, 2010, p. 91: “ In my opinion the development of a metaphysical conception that not reduce metaphysics to quite few questions, as do many contemporary books, handbooks, lexica etc., is one o f the most important and urgent tasks of contemporary philosophy” . 95 Cf. LO U X , M.; ZIMMERMAN, D. W. Introduction. Op. cit. 96 Cf. LOW E, E. J. A Survey of Metaphysics. Oxford: Oxford University Press, 2002. 97Cf. PU NTEL, L. B. Metaphysics: a traditional mainstay of philosophy in need of radical rethinking. Op. cit., p. 312-313. 98 Cf. LO U X , M. J. Metaphysics. Op. cit., p. 11. 99 ibidem, p. 3-5.

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ele, àquilo que os racionalistas chamaram de metafísica geral, enquanto que a ideia de uma ciência que busca as causas corresponde ao que eles denominaram as metafísicas especiais. No que diz respeito aos diferentes temas tratados por essas formas de metafísica, o pensamento contemporâneo, para Loux, efetuou mu­ danças importantes no pensamento dos racionalistas. Ele é consciente de que sua introdução à metafísica difere profundamente da forma como ela é tratada hoje, acima de tudo porque ele se concentra em questões que emergem quando se tem como meta fundamental apresentar uma expli­ cação geral da estrutura de tudo o que é. Daí por que a primeira tarefa de uma metafísica assim concebida consistiria em tematizar e elaborar um inventário das categorias que dizem respeito a todas as coisas e que constituem os tipos supremos e mais gerais, a partir de onde as coisas podem ser classi6cadas - entre as quais emerge, em primeiro lugar, a categoria de “substância”. No entanto, articular uma teoria metafísica completa significaria elaborar um catálogo completo das categorias sob as quais todas as coi­ sas e suas relações mútuas podem se subsumir. Isso levaria à distinção entre categorias básicas e categorias derivadas, e a uma especificação a respeito de como entidades das categorias derivadas podem ser reduzidas a ou analisadas em termos de entidades das categorias básicas. Nisso, precisamente, consistiria a tarefa de fornecer uma explicação de tudo o que há. Certamente não muitos metafísicos hoje estariam em condições de oferecer uma teoria completa de categorias. Contudo, a história da metafísica mostrou, segundo Loux, que há muitas dificuldades quando se reduz a metafísica à busca dessas cate­ gorias generalíssimas, e a razão mais profunda é que há uma questão anterior. Nesse caso, os metafísicos começam seu trabalho confrontados com uma totalidade de objetos que é considerada dada, sem problemas. Ocorre que metafísicos discordam não só em relação às categorias, mas também a respeito de que objetos há no mundo. Então, a pergunta “que objetos há?” antecede à pergunta pelas categorias. Dessa forma, mostra-se que o próprio desacordo a respeito das categorias é, em última análise, um desacordo a respeito de que coi­ sas há, ou seja, a respeito da existência de entidades de alguns tipos muito gerais ou categorias. Essa disputa se concretiza em uma série de perguntas como: há propriedades? Há relações? Há eventos? Há substâncias? Há proposições? Há mundos possíveis? Há estados de coisas? Não estando, segundo ele, em condições de apresentar uma metafísica completa, Loux opta por tratar algumas categorias que emergem sempre quando se discutem certas questões que na própria tradição se mostraram importantes.

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Uma proposta que de certa forma também vai além da tendência hegemônica é a de Peter van Inwagen, que define a metafísica como a verdade última a respeito do mundo, a respeito de tudo. Ele se concentra em três temas fundamentais: 1) quais são as características mais gerais do mundo e que tipo de coisas ele contém? 2) Por que um mundo existe e, mais especificamente, por que existe um mundo com estas características? 3) Qual é nosso lugar no mundo?100Para Loux e Zimmerman, foram R. Chisholm, D. Armstrong e D. Lewis que, a partir da década de 1980, reabilitaram decisivamente a metafísica sistemática. Foi principalmente nesse contexto, mas também nos pensadores ligados à tradição do idealismo alemão, que nas últimas décadas do século passado os grandes temas metafísicos foram retomados. V. Hõsle, por exemplo, considera exigências de uma metafísica hoje: 1) ela tem de ser fundamentada em argumentos transcendentais; 2) tem de fazer jus ao fato moral; 3) tem de fazer jus à realidade como ela se manifesta, o que não necessariamente implica uma opção por uma metafísica indutiva; 4) nela deve haver um lugar próprio para a análise da interioridade; 5) uma boa metafísica tem de conter uma ontologia da intersubjetividade e do social.101 Recentemente, embora suas raízes já se articulassem na década de 1980,102 surgiu uma posição alternativa às filosofias saídas da revi­ ravolta lingüística, que foi denominada “realismo especulativo (virada especulativa)”.103Diferentes pensadores têm posições bastante diferentes, mas se unem num ponto comum: precisamente por se contraporem à redução da filosofia à análise de textos ou à estrutura da consciência, em favor da consideração de questões ontológicas. Daí por que se fala de “virada ontológica” na filosofia. Bogost104 articula as ideias centrais dessa posição através de uma tese básica: os seres humanos não são mais os monarcas do ser, mas estão entre os seres. É nesse contexto que se fala de uma “ontologia achatada”, no sentido de afirmar que não há hierarquia de seres, e o ser mesmo é um objeto que não difere de qualquer outro. Para ele, a ontologia achatada articula um ideal que pode ser adotado por diferentes posições metafísicas. 100 Cf. INWAGEN, P. van. Metaphysics. Oxford: Oxford University Press, 1993, p. 4. 101 Cf. H ÔSLE, V. “Zum Verhàltnis von Metaphysik des Lebendigen und allgemeiner Metaphysik. Betrachtungen in kritischen Anschluss an Schopenhauer” . In: Õ SLE, V. (org.). Metaphysik. Herausforderungen und Mõglichkeiten. Stuttgart/Bad-Cannstatt: froramann-holzboog, 2002, p. 89*91. 102 Cf. BADIOU, A. O Ser e o Evento. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed./£d. UFRJ, 1996. 103Cf. BRYANT, L. R.; SRN ICEK, N.; HARMAN, G. The speculative tum: continental materialism and realism. Melboume: re.press, 2011. 104 Cf. BOGOST, I. Alien Pbenomenology or what it's like to he a thing. Minneapolis: University of Minnesota Press, 2012.

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Sua própria posição se efetiva através do que ele denomina pequenina ontologia: o ser é simples, por isso o aparato necessário para sua descrição deve ser compacto e sem ornamentos. A categoria fundamental aqui é a de objeto. Os objetos englobam tudo. Trata-se, em última instância, de uma filosofia que retoma, como sua tarefa fundamental, a atenção à realidade mesma; daí ser ontologia sem qualquer mediação lingüística expressamente considerada.

Capítulo 2

T EO R IA DA SUBSTÂNCIA EN Q UA N TO CATEGORIA O N TO LÓ G IC A FUNDAM ENTA L

A filosofia pretendeu, desde seu início, compreender o mundo e o considerou uma realidade estruturada e profundamente diferen­ ciada. Na tradição, muitos filósofos tentaram articular sua concepção de mundo, pensando-o como um conjunto de entidades que se cons­ tituem como casos de qualidades e relações que ocorrem em lugares e tempos particulares enquanto qualidades e relações de entidades subjacentes.1 As propostas ontológicas que trabalham com essa estrutura categorial na filosofia contemporânea põem as categorias de substância e propriedades no centro de suas considerações a partir de três concepções principais de substância:2substrato, particular concreto e independência ontológica. Algumas categorias novas que têm sido propostas como categorias alternativas, mas, na realidade, antes de eliminar a categoria de substância a repõem, pois [...] as outras categorias ontológicas (acontecimento, processo etc.) são enunciadas como entidades que possuem propriedades e estão em relação umas com as outras. Em conseqüência, o vocabulário substancialista é mantido.3

! Cf. IMAGUIRE, G. “A Substância e suas alternativas: feixes e tropos”. In: IMAGUIRE, G.; ALMEIDA, C. L. S. de; OLIVEIRA, M. A. de (orgs.). Metafísica Contemporânea. Petrópolis: Vozes, 2007, p. 271-272: "Considerando uma relação uma propriedade não de uma coisa, mas sim de uma estrutura complexa (uma n-upla ordenada) de coisas, a tradição costuma reunir propriedades e relações numa categoria única - a categoria de universais. O nome “ universal” advém da capacidade que essas entidades têm de ocorrer em diferentes lugares (não apenas no sentido físico), tempos e entidades” . 2 Cf. PU NTEL, L. B. Estrutura e ser: um quadro referencial teórico para uma filosofia sistemática. São Leopoldo: Ed. Unisinos, 2008, p. 252-254. 3 Cf. ibidem, p. 256.

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2.1 SUBSTÂNCIA EN Q U A N T O SUBSTRATO (“ SU JEITO ”) 2.1.1 Substância enquanto substrato como categoria ontológica fundamental J. B. Lotz,4 um dos representantes dessa concepção na filosofia contemporânea, põe-se, segundo sua interpretação, na grande tradição metafísica que vem de Aristóteles,5depois acolhida e desenvolvida pela escolástica medieval.6Segundo sua leitura do pensamento aristotélico, a substância (oúoía, ÚTtOKeíjxevüv) constitui o objeto central da metafísica (Met. VII 1; 1028b, 2 ss e 6s). O primado da substância se justifica no fato de ela ser o ente no sentido mais próprio (o que existe é, em primeiro lugar, substância), e, portanto, a entidade fundamental e a primeira das categorias, ou seja, das formas fundamentais de ser e de dizer o ser, à qual todas as outras categorias estão relacionadas: “A substância é o ponto focal da existência”...7E nesse sentido que Anzenbacher chama a substância de “átomo ontológico”, mesmo que isso possa provocar mal-entendidos.8 Por essa razão, como diz Imaguire,9 [...] vale lembrar que em Aristóteles as categorias em geral, e em particular a substância, constituem-se tanto como modos de ser quanto como modos de pensar/dizer, ou seja, existe uma estreita correlação entre ontologia e epistemologia/semântica; a substância é, assim, tanto estrutura ontológica como conceito.

Ou seja, a maneira de pensar e falar sobre o mundo e tipos de entidades como estruturas fundamentais do mundo são dois lados da mesma medalha.10

4Cf. LOTZ, J. B. “Substanz”. Sacramentum Mundi. Tbeologiscbes Lexikonfürdie Praxis. Vol. 4. Friburgo/ Basel/ Viena: Herder, 1969, p. 758 e ss. 5Sobre Aristóteles, cf. BOEHM , R. Das Grudlegende und das Wesentliche, Zu Aristóteles Abhandlnng “Über das Sein und das Seiende” (Metaphysik Z). Den Haag: Martinus Ntjhoff, 1965. TUGENDHAT, E. T I KATA TIN O E. Eine Untersuchung zu Struktur und Ursprung Aristotelischer Grundbegriffe. Friburgo/Munique: Verlag Karl Alber, 1958. A N G ELELLI, I. Studies on Gottlob Frege and traditional philosophy. Dordrecht: Reidel, 1967; “Accidents - The Ontological Square” . In: BURKHARDT, H.; SMITH, B. Handbook of metaphysics and ontology. Munique: Phílosophia Verlag, 1991. 6 Cf. PU NTEL, L. B. “ O pensamento de Tomás de Aquino como pensamento sumário-irrefletido sobre o ser e a analogia”. Em busca do objeto e do estatuto teórico da filosofia. Estudos críticos na perspectiva histórico-filosófica. São Leopoldo: Ed. Unisinos, 2010, p. 39-131. 7 Cf. BARNES, J. Aristóteles. São Paulo: Loyola, 2001, p. 74. 8 Cf. A N ZEN BACH ER, A. Introdução ã Filosofia Ocidental. Petrópolis: Vozes, 2009, p. 53: “ Substância é, de acordo com isso, aquilo que, enquanto verdadeiramente existente, ê em si mesmo verdadeira unidade. N ós podemos também dizer: a substância é o átomo ontológico” . 9 Cf. IMAGUIRE, G. A Substância e suas alternativas: feixes e tropos. Op. cit., p. 273. 10Cf. PUNTEL, L. B. “ O conceito de categoria ontológica: um novo enfoque”. Kritenon, n. 104,2001, p. 8.

Teoria da substância enquanto categoria ontológica fundamental

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Parafraseando Puntel,11podemos dizer que esse é o dogma ontoló­ gico fundamental do pensamento da tradição metafísica ocidental, que se radica numa determinada pressuposição ontológica - a “realidade”, o "mundo”, é a totalidade das substâncias entendidas como substrato, ao qual são inerentes propriedades (e relações) (ontologia das substâncias e suas propriedades) - e implica uma determinada semântica (a semântica composicional) e uma lógica correspondente (a lógica de predicados de primeira ordem), mesmo no caso em que filósofos trabalham com categorias alternativas e suas relações.12 A substância é, então, o "portador último” de tudo que se atribui ao ente (Categ. I, 5; 2a llss; 2b 15 ss),13 ou seja, seus atributos que são ou propriedades ou relações. E esse o procedimento da predicação que Aristóteles exprimiu com a famosa fórmula “xi Kaxá tívoç”, dizer algo de algo.14Trata-se, então, de uma entidade que subjaz a todas as predicações de atributos, de tal modo que [...] as realidades pertencentes às outras categorias são denominadas entes na medida em que todas contêm, na própria definição, uma relação com a substância (no sentido, por exemplo, de que a quantificam, qualificam ou a localizam no espaço e no tempo etc.).15

Dessa forma, o conhecimento da substância é pressuposto pelo conhecimento das outras categorias,16 embora a entidade-substrato, o algo que subjaz, propriamente se subtraia ao pensamento conceituai, uma vez que só é captado quando se atribui algo a ele, já que “o substrato como tal é uma entidade destituída de toda e qualquer determinidade17 Na Metafísica VII, Aristóteles distingue quatro sentidos da palavra

11 Cf. PU NTEL, L. B. Gmndlagen einer Theorie der Wahrbeit. Berlim/Nova York: W. de Gruyter, 1990, p. 3 e ss. 12 Cf. idem. Estrutura e ser. Op. cit., p. 256-257: “E quando os filósofos explicitam tais inter-relações com maior precisão, eles se valem, por via de regra, da linguagem da lógica de predicados de primeira ordem como quadro teórico. Em conformidade com a interpretação-padrão, essa linguagem ou lógica possui exatamente a estrutura semântica que corresponde ao quadro diádico ‘sujeito-universais’”. 13 A respeito da diferença na consideração da substância entre o texto da Metafísica e o texto das Categorias, cf. A U BEN Q U E, P. Le Problème de Vêtre chez Aristote. Paris: Presses Universitaires de France, 1966, 2a ed-, p. 45 e ss. GILBERT, P. A simplicidade do princípio. Prolegômenos à metafísica. São Paulo: Loyola, 2004, p. 51-52. 14Cf. GIANNOTTI, J. A. "Categorias e atividade substancial segundo Aristóteles”. Lições de Filosofia Primeira. São Paulo: Companhia das Letras, 2011, p. 81: “ A palavra substância [...]; no vocabulário aristotélico ela passa a significar, em primeiro lugar, o último suporte do dizer de e do estar em”. 15 Cf. BERTI, E. As Razões de Aristóteles. São Paulo: Loyola, 1998, p. 87. 16 Cf. ibidem, p. 91. 17 Cf. PU NTEL, L. B. Estrutura e ser. Op. cit., p. 252. PUNTEL, L. B. Grundlagen einer Theorie der Wahrbeit. Op. cit., p. 183.

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"substância”: essência, universal, gênero e substrato; e na Metafísica V (4, 1014b), chama de "natureza” a substância enquanto considerada como princípio de uma mudança de qualquer tipo. Essa multiplicidade de designações terá depois conseqüências. Assim, para Chauí:18 N o momento em que Boécio traduz as Categorias, entre as duas traduções possíveis para ousía (essência ou substância), ou em face da tensão semântica nas obras aristotélicas, o tradutor se decide por aquela que consagrará substantia, que, doravante, significará o que não pode estar num sujeito nem ser predicado a um sujeito, porque é o próprio subjectum como fundo firme, constante, permanente e sólido de inerência dos acidentes.

Para M. Loux,19 Aristóteles restringiu o uso da palavra substân­ cia aos seres vivos individuais - plantas, animais e pessoas - e talvez a itens físicos elementares considerados por nós como constituintes da composição das coisas materiais - sobretudo os quatro elementos: fogo, terra, ar e água. Um aristotélico contemporâneo incluiria aqui as entidades básicas consideradas pelas teorias físicas contemporâneas. Os artefatos e meros agregados poderiam ser analisados em termos de espécies biológicas/físicas subjacentes e de propriedades acidentais que seus membros exibem. A palavra substância, para Lotz, provavelmente é a versão latina da palavra grega "'Ò7üóaraaiç” e significa abstratamente o próprio subjazer (substare, damnterstehen, Darunterstand),20 e concretamente aquilo que subjaz {Das Darunterstehende) aos fenômenos ou acidentes. Isso se diz em grego com uma palavra semelhante, tmoKeíjievov, que significa precisamente “o que subjaz”, ou o “ substrato”.21 A substância pode subjazer aos acidentes e sustentá-los porque ela mesma é em si mesma ("inseidade”) e por si mesma ("perseidade”, xa0' aúxó), depende de si mesma. Para M. Chauí, foi esse sentido de substância que a escolástica desenvolveu.22 Como diz E. Coreth,23 a essência da substância é o ser18 Cf. CHAUÍ, M. O Ser Absolutamente Infinito. Op. cit., p. 100. 19 Cf. LO U X, M. Metaphysics. A contemporary introduction. Londres/Nova York: Routledge, 3a ed., 2001, p. 124. 20 Cf. GILBERT, P. A simplicidade do princípio. Op. cit., p. 50: “A palavra substância, composta de duas palavras latinas, sub (embaixo) e stans (mantendo-se), significa literalmente ‘o que se mantém embaixo’”. 21 Cf. ibidem, p. 50-51: “Pode-se dizer, de modo semelhante, que a substância é um ‘subs­ trato’ (de sub-stemere, estender sob) ou ainda um ‘sujeito’ (de sub-jectum, lançado sob), que sustém o que chega e passa. A substância é, assim, do ente, o que sustém os fenômenos que se movem segundo as circunstâncias”. 22 Cf. CHAUÍ, M. O Ser absolutamente infinito. Op. cit., p. 101: “ Substância é o ente que existe em si ou é subsistente, isto é, não pode ser predicado de nada; e é o ente existente por si, diferentemente do acidente que além de existir num sujeito, só existe pelo e no sujeito”. 23Cf. CORETH, E. Metaphysik. Eine methodisch-systematische Grundlegung. Innsbruck/ Viena/Munique: Tyrolia Verlag, 1964, p. 228.

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-em-si (.In-sich-Sein, ens in se), ela é um ente “em si mesmo” e não num outro. A síntese desses diferentes elementos já foi buscada no pensa­ mento medieval, como diz M. Chauí:24 O longo percurso de substantia culminará nas duas formulações escolásticas, nas quais a inseidade (aquilo que é em si, in se) e a perseidade (aquilo que é por si, per se) distinguem a substância de todas as outras categorias e, portanto, de todas as outras maneiras de dizer o ser: a de Santo Tomás ("subsistir em si epor si, não ser em outro”) e a de Suarez ("ser em si e por si, sustentando acidentes”).

Para Lotz,25a consideração da substância deve partir do “sujeito em geral” entendido como aquilo que subjaz a outro e que é determinado por outro. Para ele, pode-se falar do sujeito num duplo sentido: a) O sujeito lógico é um conceito do qual no juízo se predica algo e ao qual o predicado se opõe. Pressupõe-se aqui claramente, como na maior parte dos filósofos que falam de substância, o critério lógico-semântico da predicação: um a propriedade ou relação F é predicada de um a (= constante) ou x (variável), que serve de base. Nesse sentido, diz P. Gilbert: A substância pode ser concebida à imagem do sujeito proposicional que, em­ bora sendo um, pode receber um número indefinido de predicados, segundo os afinamentos progressivos do conhecimento que temos dele.26

b) O sujeito real é um ente real enquanto é afetado por certa deter­ minação ou forma; essa determinação se opõe a ele. Ele nem é afirmado como sujeito, nem é dito de nenhuma outra coisa, nem é num sujeito.27 Ele mesmo é o sujeito último de atribuição, ele não é predicável, é em si (Selbststand). No entanto, por essa razão mesma, ele não é propriamente conhecido em si mesmo.28W. Brugger fala aqui de um substrato ôntico (seinsbaftes) no qual ocorre uma alternância de estados e determinações e que é o portador desta alternância.29 E nesse sentido que ele atribui à substância certa absolutidade na medida em que o ser lhe compete em

24 Cf. CHAUÍ, M. O Ser Absolutamente Infinito. O Absoluto na filosofia de Espinosa Op. cit., p. 101. 25 Cf. LOTZ, J. B. Ontologia. Barcelona/Friburgo/Roma: Herder, 1963, p. 297 e ss. 26 Cf. GILBERT, P. A simplicidade do princípio. Op. cit., p. 51. 27 Cf. TOMÁS de AQU1NO, ScG 125: “ Oportet [...] quod ratio substantiae intelligatur hoc modo, quod substantia sit res cui conveniat esse non in subiecto[...]’\ 28 Cf. CHAUÍ, M. Op. cit., p. 101: “ Sujeito de inerência de predicados, a substância é o fundo inapreensível que não se dá a conhecer a si mesmo e só pode ser indiretamente apre­ endido pelas outras categorias que nela encontram o fundamentum. É o ser (esse) de que os predicados são a essência e a natureza”. 29 Cf. BRUGGER, W. “ Substanz” . In: KRINGS, H.; BAUM GARTNER, H. M.; WILD, C. (orgs.). Handbuch philosophischer Grundbegriffe. Munique: Kõsel-Verlag, 1974, p. 1451.

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si e para si, o que não se pode dizer das determinações dependentes que nela se encontram.30 Assim, a substância enquanto substrato é uma entidade distinta de outras entidades que nela subsistem ou inerem (os atributos), ou seja, propriedades ou relações que são predicáveis ou exemplificáveis por algo.31 Nessa ótica, a predicação consiste na atribuição de um atributo a um substrato assim que o indivíduo (o particular concreto na linguagem contemporânea) é uma realidade composta por essas duas entidades.32O substrato é, então, um "particular puro”,33isto é, desprovido de atributos, “uma espécie de ‘recipiente’, onde as propriedades estão agrupadas”,34 um sujeito potencial de predicações. Isso não nega a possibilidade de muitas propriedades poderem ser, por sua vez, sujeitos de predicações e exemplificar outras propriedades. Nesse caso se trata de propriedades de segunda ordem. Trata-se de propriedades que têm como exemplos propriedades de primeira ordem predicáveis de indivíduos.35Nesse sentido, uma substância, diz P. Simons, é algo em que inerem características, mas ela mesma não inere em nada.36 Daí a afirmação de Chauí:37 N ão sem razão, julga Tomás, Deus não pode, de jure, ser dito substância porque não é suporte de predicados nem de acidentes, embora seja o único que verdadeiramente deva ser dito in se e per se.

Na realidade, um duplo sentido de substância já se encontra em Tomás de Aquino: substância enquanto “sujeito” (subiectum, subsistere ou substare) e substância enquanto “essência” (quidditasyforma).m Posteriormente, os escolásticos distinguem entre a “ substância pri­ 30 Cf. BRUGGER, W. “ Substanz”. Op. cit., p. 1452. 31 N a filosofia contemporânea, um dos grandes defensores da centralidade do conceito de substrato é C. Martin. Cf. MARTIN, C. “ Substance Substantiated” . Attstralasian Journal of Philosophy, n. 58,1980, p. 7-8: “ Ifproperties are not to be tbought o f as parts o f an object, and the object is not then to be thought of a sa collection o f properties, as its parts may be, then there must be something about the object that is the bearer o f properties that underany description need to be bome. And that about is the substratum”. 32Bergmann insiste em que os particulares concretos exercem, antes de tudo, a função de individuação. Cf. BERG M A NN, G. Realism: A Critique of Brentano and Meinong. Madison (WI): University of Wisconsin Press, 1967, p. 22-23. 33 Cf. ibidem.. 34 Cf. IMAGUIRE, G. A Substância e suas alternativas: feixes e tropos. Op. cit., p. 276. 35 Cf. BR A N Q U IN H O , J. “ Propriedade” . In: BR A N Q U IN H O , J.; M URCHO, D.; GOMES, N. G. (orgs.). Op. cit., p. 636. 36 É isso que Aristóteles em Met. V, 8 ,1017b chama de “tò de t f . 37 Cf. CHAUÍ, M. O Ser Absolutamente Infinito. Op. cit., p. 101. 38 Cf. STh I q.29 a 2: “ Uno modo dicitur substantia quidditas rei, quam significai definitio; secundum quod dicimus quod definitio significat substantiam rei: quam quidem substantiam Graeci usiam vocant, quod nos essentiam dicere possumus. Alio modo dicitur substantia su­ biectum vel suppositum quod susbsitit in genere substantiae”.

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meira”, que é o ente individual, concreto, que em sua subsistência possui efetividade e persistência e assim subjaz às suas determina­ ções mutáveis (acidentes) enquanto portador permanente (sujeito), e a “substância segunda”, que é a essência universal de uma substância singular.39 A inerência constitui, então, a forma de dependência de que a substância é isenta.40 Assim, o que constitui a substância, em última instância, é ser em si mesma. Negativamente isso se exprime ao se dizer que ela não é em outro enquanto num sujeito em que é inerente. Justamente enquanto é “em si” (In-sick-stehende) e "por si”, é ente no sentido mais próprio da palavra, aquilo que é no sentido máximo (oúoía, Seiendheit). Nesse sentido, Gilson define a substância em sentido próprio como aquilo que, tendo de si mesmo com que existir (é portador de si mesmo e por isso não precisa de outro portador),41 confere, além disso, a existência a essas determinações complementares que denominamos "acidente”.42 Em contraposição a essa noção de substância, "acidente” (de accidere, zufallen, Das Zu-fãUige ou Dazufallende,'43em grego oufiPepTiKóç) significa aquilo que advém ou aquilo que cai junto (was dazu fãllt oder kommt), aquilo que depende essencialmente de um portador. Assim, é aquilo que advém à substância já constituída enquanto tal como sua determinação ulterior, e é dependente dela. Ele é a determinação ulterior de outro de si mesmo, ou seja, da substância que é justamente a deter­ minação primeira e enquanto um ser independente. Como diz Gilson, trata-se dos entes que são incapazes de existir à parte de outro ente, uma vez que são desprovidos de um ser próprio e que não possuem outro que o do sujeito em que residem.44 Nesse sentido, os múltiplos predicados se referem todos a ela, que os precede. Daí por que o acidente só é enquanto essencialmente inerente à substância enquanto num sujeito. Dessa forma, ele é “ ens-in-alio” (ente no outro),45e nesse sentido não corresponde plenamente à noção “do que é”, pois real, em sentido próprio, é aquilo em que 39 Cf. LOTZ, J. B. Ontologia. Op. cit., p. 306. 40 Cf. SIMONS, P. "Substance”. In: KIM, J.; SOSA, E. (orgs.). A Companion to Meta­ physics. Malden: Blackwell, 1995, p. 482. 41 Cf. LOTZ, J. Person und Freiheit. Eine philosophische Untersuchung mit theologischen Ausblicken. Friburgo/Basel/Viena: Herder, 1979, p. 16. 42 Cf. G ILSO N , E. UÈtre et VEssence. Paris: Librairie Philosophique J. Vrin, 1962, 2a ed., p. 51. 43 Cf. LOTZ, J. Person und Freiheit. Op. cit., p. 16. 44 Cf. G ILSO N , E. VÊtre et VEssence. Op. cit., p. 50-51. 45 Cf. AUBEN Q U E, P. Le Problème de Vêtre chez Aristote. Op. cit., p. 142-143: “ V être paraccident est donc l"être-autre [...] Vêtre par accident nest doncpar un être que se suffise a lui même; ilpréssuppose Tautre gênre de lêtre™.

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os acidentes residem, é “ o que não inere a outro e não se predica de outro, mas é substrato de inerência e de predícação de todos os outros modos de ser”.46 Para Dezza, a característica que distingue essencialmente a substân­ cia dos acidentes não é propriamente subjazer (substare), mas subsistir (.subsistere); os acidentes (cor, medida etc.) só existem em algum sujei­ to, a substância existe em si, subsiste. Daí a definição que propõe para substância: “substância é aquilo a que compete ser em si e não em outro (como num sujeito)”.47 Subjazer é primeiro na ordem lógica, enquanto subsistir é primeiro na ordem ontológica. Lotz48 fala de um “princípio da substância”: se existe algo, existe substância, pois, se todas as realidades fossem acidente, não poderiam ao mesmo tempo ser sem substância e, no entanto, seriam sem substância uma vez que só existiriam acidentes, o que é uma contradição. Assim, os entes do mundo são substâncias e diferem no modo como o são, de tal modo que se deve falar aqui de analogia entre os diferentes tipos de substância que culminam no ser humano como ser pessoal dotado de inteligência e liberdade. Hoje se costuma empregar a palavra “objeto” (ou indivíduo, ou particular) no sentido de um “sujeito de predicações”. Nesse contexto, é fundamental a categoria de “propriedade”,49 que é considerada um tipo ou um universal, no sentido de uma entidade caracterizada pela possibilidade de ser predicada a ou exemplificada por objetos.50 Nesse contexto, afirma-se que a substância tem duas funções básicas: ser o suporte das propriedades e explicar a unidade da classe de propriedades pertencentes a um único e mesmo substrato.51

46 Cf. RE ALE, G. História da filosofia antiga. Vol. II: Platão e Aristóteles. São Paulo: Loyola, 1994, p. 356. 47 Cf. DEZZA, P. Metaphysica Generalis. Praelectionttm Summa ad usum audkorum. Roma: Ed. da Universidade Gregoriana, 1952, p. 270-271. Cf, Aug., De Trinitate 1. 8, c. 4; Tomás de Aquino, De Pot. q. IX, ad 4. 48 Cf. LOTZ, J. B. Ontologia. Op. cit., p. 301. 49 Cf. BR A N Q U IN O , J. “Propriedade". In: BR A N Q U IN H O , J.; M U RCH O , D.; GOMES, N. G. (orgs.). Enciclopédia de termos lógico-fãosóficos. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 635: “Propriedades formam aquela categoria de entidades que se caracterizam por serem predicáveis de ou exemplificáveis por algo”. 50 Cf. ARRUDA, J. M. "Universais e particulares: platonismo e nominalismo” . In: IMAGUIRE, G.; ALMEIDA, C. L. S. de; OLIVEIRA, M. A. de (orgs.). “Metafísica Con­ temporânea. Petrópolis: Vozes, 2007, p. 224: “Nessa versão forte - comumente atribuída a Platão (Fédon 74a-c; Parmênides 130b) -, os universais representam entidades extramentais e ontologicamente independentes de suas instanciações no mundo atual” . 51 Cf. SIMONS, P. “Particulars in Particular Clothing: Three Trope Theory Theories of Substance” . Philosophy and Phenomenological Research, vol. LIV, n. 3,1994, p. 565.

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2.1.2 As aporias da noção de substrato segundo A. Denkel Em sua apresentação das questões que manifestam o caráter pro­ blemático do conceito de substrato, A. Denkel52 parte das razões que levaram à sua introdução na filosofia. Essa provém, para Locke,53 da percepção de uma vinculação constante de ideias simples. Encontramos no mundo determinadas propriedades, as chamadas qualidades primárias e secundárias, que estão em vinculação persistente e constituem entidades complexas. Por essa razão atribuímos a essas qualidades um "substrato” comum que lhes serve de “ suporte”, embora nunca possamos saber o que seja. Apesar de, a partir daí, terem sido levantadas muitas objeções a essa noção, há muitos filósofos, para Denkel, que ainda hoje consideram o conceito de substância como substrato à categoria ontológica funda­ mental, precisamente na medida em que ela se apresenta como capaz de oferecer soluções plausíveis a muitas questões concernentes à natureza ôntica dos objetos. Para Denkel, se a tarefa consiste em explicar a parti­ cularidade concreta de objetos, parece que ela oferece uma compensação à universalidade presumida das propriedades. A intenção de Denkel é mostrar que esse conceito, apesar de sua atratividade, conduz-nos a um absurdo lógico. O substrato é concebido como uma entidade metafísica que nos faz compreender os objetos enquanto constituídos por qualidades. O substrato emerge como o suporte dessas qualidades.54Em si mesmo, ele é uma coisa sem qualidades (“um particular puro”), que possui duas fun­ ções principais: 1) garantir o estar junto das qualidades para formar um objeto concreto; 2) individuar o objeto assim constituído. Dessa forma, o substrato exerce a função de princípio de individuaçao na medida em que seu ser participado por a e b implica que a e b são idênticos, e a não participação implica que são distintos. Contudo, pode-se defender a tese de que o substrato não é o prin­ cípio de individuação dos objetos sem implicar com isso que se eliminem 52 Cf. D EN K EL, A. “The Refutation of Substrata”. Philosophy and Phenomenological Research, vol. LXI, n. 2, 2000, p. 431-439. 53 Cf. LO C KE, J. An Essay Concemmg Human Undersianding. Livro II, capítulo XXIII, & 4: “ When we talk or think o f any particular sort of corporeal Substances, as Horse, Stone, etc. though the idea, we have of either o f them, be but the Complication, or Collection of those several simple Ideas o f sensible Qualities, which wefind united in the thing called Horse or Stone, yet because we cannot conceive, how they should subsist alone, nor one in another, we suppose them existmg in, and supported by some common subject; which Support we denote by the name Substance, though it be certain, we have no clear, or distinct Idea of that thing we suppose a Support 54 Cf. MARTIN, C. B. “Substance substantiated”. Australasian Journal o f Philosophy, vol. 58,1980, p. 3-10.

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necessariamente suas outras funções. Nesse contexto, para Denkel, um passo inicial consiste em mostrar que a concepção do substrato como suporte de qualidades implica também a ideia de princípio de individu­ ação. Por outro lado, a afirmação de que ele garante o estar-junto das qualidades implica em dizer que ele é um elemento da constituição dos objetos. Se dois objetos têm suas propriedades em comum, mas não parti­ lham o mesmo substrato, não podem ser ditos idênticos, pois do contrá­ rio o substrato não teria significação para a constituição desses objetos. Com isso se afirma que participar do substrato é condição necessária para a identidade de um objeto, assim que, se a e b são objetos distintos, eles têm de ter substratos distintos. Se o substrato é um elemento na constituição dos objetos, então a e b, que são objetos distintos, têm de ter substratos distintos. Assim, ser substrato enquanto portador de qualidades é ser aquilo que individua as qualidades. Mas o substrato é um princípio logicamente adequado de individuação? Que dizer de seu principal concorrente - a indiscernibilidade? Certamente, diferentes princípios de individuação não podem cooperar, e os defensores do substrato têm de considerá-lo a única condição suficiente para a identidade dos objetos. Diante dessa posição, Denkel trata de algumas questões que revelam a inaceitabilidade da noção de substrato. 2.2.2.1 O substrato enquanto princípio de individuação é uma noção logicamente inadequada Consideremos que a tem o mesmo substrato que b. Admitindo que o substrato seja uma entidade não qualitativa, se o substrato em si mesmo é aquilo que sozinho é suficiente para que o ser de a seja idêntico ao de b, então o substrato deverá ser assim mesmo onde a e b não são indiscerníveis. Numa palavra, o substrato identificará a e b sem levar em consideração o cumprimento da condição rival de que a e b têm de partilhar as mesmas propriedades. Nesse caso, a hipótese do substrato admite objetos com propriedades contraditórias, o que constitui uma conseqüência absurda intolerável. Isso significa afirmar que a noção do substrato como princípio de individuação é uma noção logicamente inadequada. 2.2.2J2 Como pode a hipótese do substrato evitar essa redução f Uma saída seria requerer e incorporar a indiscernibilidade de a e b, ou seja, modificar a tese da condição suficiente para exigir ambos os princípios de individuação: o substrato e a idiscernibilidade. Feito isso,

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o substrato perderia a autossuficiência enquanto princípio de individu­ ação. Que pensar a respeito de fazer da indiscernibilidade uma condição necessária do próprio substrato? Se a e b partilhassem seu substrato somente se tivessem todas as suas propriedades em comum, não seria possível serem idênticos e possuírem propriedades incompatíveis. Mas o substrato é uma entidade sem propriedades a não ser a de ser portador de qualidades. Assim, a indiscernibilidade não pode ser constitutiva do partilhar o substrato. A questão crucial aqui para Denkel é: como partilhar o substrato por necessidade a indiscernibilidade se ela não o constitui? A imposi­ ção da indiscernibilidade como condição necessária implicaria que a incompatibilidade das qualidades dos objetos tornaria seus substratos igualmente incompatíveis. Em última instância, aqui terminaríamos numa concepção de substrato que não é mais um particular puro, o que leva Denkel a propor que a hipótese do substrato desista de impor a indiscernibilidade como condição necessária para ele, uma vez que o projeto conduz a uma noção do substrato com propriedades próprias, o que destrói a própria hipótese. Para ele, as objeções levantadas sobre sua tese não encontram seu núcleo duro: a tese de que o substrato sozinho não garante a identidade dos objetos, o que implica que o substrato é um ingrediente insignificante na constituição dos objetos. Mesmo que algo exista como substrato, o que ele implica não é a identidade dos objetos. Se a e b partilham o mesmo substrato, não somos logicamente compelidos a pensar que eles são idênticos. Afinal, substrato e objeto não são a mesma coisa: o substrato é o objeto menos todas as suas propriedades. É plenamente possível que um aspecto possa ser partilhado por a e b sem que a e b sejam idênticos ou partilhem os outros aspectos. Não há contradição na ideia de que a e b participem de seu substrato sem ter todas as suas propriedades em comum. A proposta de Denkel é que a hipótese do substrato abandone o projeto de enfrentar a redução anteriormente apontada, impondo a indiscernibilidade como uma condição diretamente necessária. Esse projeto requer um substrato com propriedades próprias, mas isso não só é inconsistente com a noção de substrato da tradição, mas faz também surgir uma questão inesperada: que é o substrato que mantém juntas suas próprias propriedades? Desembocamos aqui num regresso ao infinito. Outro caminho para evitar o caráter contraditório do conceito de substrato seria sugerir que as próprias propriedades possuem o po­ der de excluir uma à outra, o que significa afirmar que, dessa forma, a impotência do substrato não constitui problema. Um princípio básico

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de existência é que nenhum objeto possui propriedades determinadas diferentes aliadas sob o mesmo determinável. Portanto, se a e b são portadores de algumas dessas propriedades, o princípio funciona como uma “lei da não incompatibilidade” e bloqueia a identidade de a e b. Além disso, desde que o substrato seja pretensamente suficiente para a identidade de a e de b, a lei tem também o efeito de impedir a e b de partilhar o mesmo substrato. Dessa forma, não se admite que objetos discerníveis partilhem o mesmo substrato, não porque o substrato fosse por ele mesmo capaz de deter a posse de propriedades incompatíveis, mas porque a lei não permite que o substrato seja realizado, quando a e b não são indiscerníveis. Isso significa dizer que, mais uma vez, a indiscernibilidade de a e b foi feita uma condição necessária para ter um substrato comum. Para Denkel, toda a argumentação dessa posição pode ser con­ siderada uma explanação de como a existência pode ser preservada de ir logicamente à loucura, a despeito de um princípio deficiente de individuação. No entanto, isso não consegue mostrar que o substrato, como princípio de individuação, seja imune ao absurdo. Mesmo nessa posição, o substrato nos leva a objetos impossíveis. Então, levadas em consideração as desvantagens dessa noção, o melhor é submetê-la à navalha de Ockham. 2.2 A ESTRUTURA O N T O LÓ G IC A DO S PARTICULARES CO NCRETO S: M. LO U X Introdução Para caracterizar a metafísica e estabelecer sua tarefa básica, M. Loux55 declara que se situa de antemão na tradição aristotélica que entendeu a metafísica como uma disciplina que diz respeito ao ente en­ quanto ente, o que corresponde ao que na modernidade os racionalistas chamaram de “metafísica geral”. Essa forma de entender a estrutura teórica da metafísica o leva a determinar seu objetivo: a tentativa de identificar os tipos mais gerais ou categorias com que podemos pensar todas as coisas e delinear suas relações entre si. A pretensão da metafísica é, então, caracterizar a natureza da realidade, dizer como as coisas são, fornecer uma explicação geral da estrutura de tudo o que é. Loux não levanta a pretensão de apresentar um sistema completo de categorias, mas de focar a discussão no que 55 Cf. LO U X, M. Metaphysics. A contemporary introduction. Londres/Nova York: Routledge, 3a ed., 2001, p. 2 e ss.

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considera as questões centrais da metafísica, entre as quais está certa­ mente a questão da estrutura dos concretos particulares que compõem o mundo.56 Para ele há “duas teorias alternativas” que se pretendem exaustivas para essa explicação, e ambas partem da suposição básica de que os con­ cretos particulares são entidades complexas, cujos componentes básicos são entidades mais fundamentais: a teoria do substrato e a teoria dos feixes. Seu propósito é apresentar uma teoria alternativa a essas duas, cuja compreensão pressupõe a apresentação e a crítica das propostas rivais que a antecedem. 2.2.1 A teoria da substância enquanto “substrato” 2.2.1.1 A articulação teórica da noção de substrato Há uma longa tradição na metafísica que distingue entre os con­ cretos particulares e seus atributos. Tratam-se aqui de ontologias duocategoriais, uma vez que pensam tudo o que existe a partir dessas duas categorias básicas.57Particulares concretos são aquelas entidades que os não filósofos pensam como “coisas”: pessoas, animais, plantas e objetos materiais inanimados. Essas entidades são todas marcadas por algumas características básicas: não podem ser exemplificadas; possuem traços temporalmente marcados; são contingentes; cada uma num determinado tempo ocupa justamente uma região singular do espaço. Seus traços temporais envolvem alteração ou mudanças: em tempos diferentes elas podem ter atributos diferentes e incompatíveis entre si. A tarefa inicial da metafísica é prover-nos de uma explicação da natureza ou da estrutura ontológica dessas entidades. Uma primeira tese básica é que essas entidades exemplificam uma entidade distinta, uma "propriedade”, que, em princípio, é um universal que pode ser multiplamente instanciado em diferentes ob­ jetos espacialmente descontínuos.58 Isso significa dizer que concretos 56 Entre os trabalhos mais recentes que defendem essa posição, Loux aponta: RUSSELL, B. “ On the relations of the universais and particulars” . In: MARSH, R. (org.). Logic and Knowledge. Londres: Allen and Unwin, 1956. BERGM ANN, G .Realism. Madison: University of Wisconsins Press, 1967. A LLA IRE, E. “Bareparticulars”. In: LO U X , M. (org.). Metaphysics. Contemporary readings. Londres/Nova York: Routledge, 2001, p. 114-120. ARM STRONG, D. “ Universais as Attributes”. In: LO U X , M. (org.). Metaphysics. Contemporary readings. Op. cit., p. 65-91. 57Cf. ARRUDA, J. M. Universais eparticulares:platonismo e nominalismo. Op. cit., p. 223: “ Particular e universal constituem [...] categorias ontológicas básicas, mutuamente exclusivas e conjuntamente exaustivas: tudo o que existe ou é um particular ou é um universal, e nada do que existe pode ser ambas as coisas”. 58 Cf. LO U X , M. “The Problem of Universais” . Metaphysics. Contemporary readings. Op. cit., p. 3.

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particulares são coisas que possuem um tipo de complexidade de estrutura, ou seja, seu ser implica um complexo de diferentes itens estruturados de certa forma. Essa estruturação ontológica é pressu­ posta e legitima um discurso composto por sentenças que possuem a forma de “sujeito-predicado”, em que ambos os termos da sentença (sujeito e predicado) têm referentes, mas os níveis ontológicos desses referentes são diferentes. A pergunta que brota daqui é: qual é a forma geral dessa estrutura­ ção? A ideia básica, nesse contexto, é que entidades mais refinadas cons­ tituem a estrutura mais grosseira, que são nossos particulares concretos. Para acentuar a especificidade da relação entre esses dois níveis de ser, os metafísicos falam aqui de “todo” e “constituintes”. Nessa ótica, um concreto particular são todos os complexos que possuem como seus constituintes itens mais simples ou menos complexos. Dessa forma, a teoria do substrato é uma teoria que entende o concreto particular como uma entidade complexa cujos constituintes são os vários atributos associados a ela e um substrato subjacente, que é o portador ou o sujeito desses atributos. A tarefa de apresentar a estrutura ontológica dessas entidades se efetiva em dois momentos: 1) especificar cada uma das entidades que funcionam como consti­ tuintes; 2) identificar os tipos de relações entre elas. Numa palavra, oferecer uma caracterização ontológica do conceito de concreto particular consiste basicamente em identificar os tipos de coisas que funcionam como seus constituintes e indicar a forma geral das relações entre eles. Quais são esses constituintes? Uma posição muito influente defende a tese de que esses constituintes são entidades de dois tipos categorialmente diferentes: os atributos e o portador dos vários atributos, seu sujeito. Para Allaire, essa posição levanta a pretensão de apresentar uma solução para a questão da "semelhança” e da “ diferença” entre particu­ lares, e com isso uma solução para a disputa entre o nominalismo e o realismo.59 O importante aqui, para Loux, é que, para essa posição, não é o próprio concreto particular que é portador de seus atributos, mas antes uma entidade que é um de seus componentes. Assim, as propriedades (ou tropos) que compõem um particular concreto são propriedades exemplificadas em algo, e o que possui os atributos, que é único para todos eles, é uma entidade diferente; a iden­ tidade de uma é independente da identidade da outra, e como tais são compreendidas de forma diferente e relacionadas entre si através da

59 Cf. ALLAIRE, E. Bare particulars. Op. cit., p. 115.

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relação de excmplificação. Armstrong interpreta essa tese como uma conseqüência necessária do abandono da ideia de que particulares nada mais são do que feixes de universais.60 Nessa perspectiva, cada objeto concreto que nos é familiar cons­ titui, para Loux, um todo cujos constituintes incluem, em primeiro lugar, atributos que o senso comum vincula com o objeto e, em segundo lugar, um sujeito para esses atributos, cujo ser não envolve atributos, ou seja, um "sujeito puro”, um "substrato puro” que exemplifica um conjunto de propriedades. Nesse sentido, os atributos são extrínsecos ao cerne do ser, e é por essa razão que Loux considera essa posição como antiessencialista.61 E esse sujeito que garante que os atributos estejam juntos, associados a um objeto singular, e que dá unidade a esse objeto. Assim, o objeto emerge como uma construção a partir de entidades mais fundamentais. Essa distinção entre as duas entidades, atributos e sujeitos puros, que constituem os objetos particulares, é ontologicamente irredutível. Enquanto o realista fala de propriedades exemplificadas num sujeito subjacente, o nominalista vai falar de tropos que o sujeito tem. Nesse contexto, os teóricos do substrato vão insistir que é a relação entre o sujeito subjacente e seus atributos que garante a “cola” ontológica que vincula as várias entidades juntas para constituir um objeto singular. Numa palavra, temos uma coisa e não uma pluralidade difusa de coisas, justamente porque o substrato puro exemplifica cada uma das proprie­ dades em questão. O nominalista afirma que é assim porque o sujeito possui cada uma das propriedades. 2.2.1.2 O caráter problemático da noção de substrato Para Loux, formularam-se basicamente duas objeções sérias à teoria dos substratos: a) A primeira objeção vem do princípio metodológico fundamental do empirismo: na ontologia não se devem postular entidades que não possam ser objeto de experiência imediata ou direta, o que é o caso dos substratos puros. Muitos teóricos do substrato assumem alguma versão do programa empirista e afirmam que familiarizar-se com objetos numericamente diversos, qualita­ tivamente indiscerníveis, é precisamente familiarizar-se com substratos puros, pois eles são justamente os constituintes dos objetos concretos que tornam possível a diferença numérica

60 Cf. ARM STRONG, D. “ Universais as Attributes”. Op. cit., p. 65. 61 Cf. LO U X , M. Metaphysics. Op. cit., p. 121.

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entre eles. Um argumento análogo se pode construir a partir da relação entre atributos e sujeito de atributos, uma vez que as noções de sujeito e atributos são noções de tal modo correlativas que é impossível familiarizar-se com atributos sem fazê-lo igual­ mente com o seu sujeito. Então, se atributos podem ser objetos de conhecimento empírico, assim o pode também o sujeito que os possui. b) Uma objeção muito mais grave é afirmar que a teoria dos subs­ tratos é contraditória, como o faz Sellars;62 pois o que a teoria dos substratos nos diz é que as coisas que possuem atributos são puras, ou seja, sem atributos. O teórico dos substratos se defende afirmando que a objeção se baseia num mal-entendido a respeito do que significa puro. Substratos não são puros no sentido de que não tenham atributos, mas no sentido de que não têm, em si mesmos, atributos, seu ser é independente desses atributos que ele tem, ou seja, nenhum desses atributos pertence à sua essência - o que levou Bergmann a afirmar que os particulares puros são coisas sem naturezas ou essências.63 O essencial nessa reposta dos teóricos dos substratos, para Loux, é a afirmação de que há coisas que não possuem atributos essenciais. No entanto, os substratos são portadores de atributos e são os princí­ pios de diversidade entre particulares. Isso é algo apenas contingente ou pertence à própria configuração dos substratos? Ora, os traços categoriais de uma coisa lhe são essenciais: toda e qualquer coisa tem atributos que lhe são essenciais ou necessários, e os substratos não podem constituir exceção. A problemática que levou à afirmação dos substratos foi a ideia de que o possuidor de atributos tem de ter uma identidade ou essên­ cia independente desses atributos. Isso, contudo, força-nos, segundo Loux, à conclusão de que o substrato não pode ter atributo essencial, o que, por sua vez, leva-nos à argumentação anterior que, então, vai conduzir-nos à exigência de outro substrato e outros atributos, e assim indefinidamente, o que significa dizer que a tarefa de identificar um portador de atributos não pode ser realizada. A mesma problemática se repõe quando se afirma que o substrato responde às questões sobre a diversidade numérica.

62 Cf. SELLARS, W. “ Particular”. Science, Perception and Reality. Londres: Routledge and Kegan Paul, 1963, p. 282-283. 63Cf. BERGM ANN, G. Realism. Madison (WI): University of Wisconsin Press, 1967, p. 26.

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2.2.2 Teoria dos feixes 2.2.2.1 A teoria dos feixes enquanto proposta alternativa à teoria do substrato A teoria dos feixes é uma teoria alternativa à teoria do substrato, dentro do mesmo quadro teórico que considera não serem os concretos particulares da experiência quotidiana os elementos ontológicos básicos, porque compostos por entidades mais fundamentais. Para Loux, essa teoria tem uma longa história, cujos traços remontam a Aristóteles e a alguns medievais, mas ela se constituiu na modernidade em primeiro lugar a partir das críticas às teorias do substrato do programa empirista em ontologia, sobretudo as de Berkeley64 e Hume, que depois foram assumidas por Russell, Ayer, Williams, Hochberg e Castaneda. Aqui a tese fundamental é que as entidades básicas de uma teoria metafísica têm de se limitar a coisas que podem ser objeto de uma experiência di­ reta ou imediata. Ora, substratos puros não são compatíveis com essa exigência; portanto, a tese dos teóricos do substrato não tem o menor sentido. O programa empirista elaborou uma proposta alternativa de ex­ plicação da estrutura dos particulares concretos. O procedimento fun­ damental consiste em limitar-se a atributos manifestos empiricamente associados a esses objetos. Nessa ótica, objetos particulares são objetos complexos, ou seja, todos constituídos por atributos perceptíveis. Elimina-se aqui a necessidade de apelar para um sujeito subjacente, e se empregam frequentemente metáforas para designar a estrutura dos particulares concretos. Assim, um particular concreto nada mais seria do que um feixe (bundle, cluster), uma coleção de atributos empiricamente manifestos que o senso comum associa a ele. A pergunta que retorna aqui é: qual é a "cola” ontológica que garante que os diferentes itens em cada um desses feixes estejam juntos? Apela-se aqui para uma relação especial que liga todos os atributos num feixe. A essa relação foram dados diferentes nomes por diferentes autores: copresença, colocação, combinação, consubstanciação, coinstanciação e coatualidade. Trata-se de uma relação ontologicamente primitiva enão analisável, mas é pensada informalmente como a relação de “ ocorrência junto”, de “ ser presente junto”, e é sempre construída como uma relação, cujos atributos são contingentes. 64 Cf. IMAGUIRE, G. “ A substância e suas alternativas: feixes e tropos” . In: IM AGUI­ RE, G.; ALMEIDA, C. L. S. de; OLIVEIRA, M. A. de (orgs.). Metafísica Contemporânea. Petrópolis: Vozes, 2007, p. 281-282: "Essa crítica é denominada frequentemente de argumento do ‘streap tease ontológico’: se extrairmos todas as propriedades que inerem numa substância, restará um substrato nu, ou suporte (chamado de ‘bare particular) que nada suporta?”.

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Em última instância, para Loux os teóricos do feixe defendem a tese de que no nível ontológico mais básico só há atributos, e o conceito de uma coisa que tem atributos ou os exemplifica é uma noção derivada ou construída. Dessa forma, teóricos dos feixes que são realistas - como Russell,65 Ayer, Hochberg e Castaneda - 66 negam que a distinção entre universais e particulares seja uma distinção última, pois só há universais sem qualquer referência a um sujeito. Numa palavra, a teoria dos feixes entende o concreto particular como um feixe de atributos que estão na relação de copresença, colocação ou co-ocorrência. Trata-se aqui clara­ mente, portanto, de uma ontologia monocategorial. 2.2.2.2 Objeções à teoria dos feixes 2.2.2.2.1 O discurso sujeito-predicado O pressuposto aqui é a semântica composicional que é impli­ citamente considerada a única possível. Nessa semântica o princípio fundamental é o princípio de composicionalidade que reza o seguinte: "O significado de um enunciado é função do significado das suas partes e das suas regras de composição”.67Trata-se, então, de enunciados que têm a estrutura de "sujeito-predicado” que são exatamente suas partes. A tese básica da objeção é: a teoria dos feixes é incapaz de ofere­ cer uma explicação satisfatória do discurso sujeito-predicado, porque a ideia de um atributo sem um suporte é simplesmente ininteligível todo atributo requer um sujeito de inerência. Para a teoria dos feixes, atributos não são possuídos por nada, simplesmente acontecem. Isso se mostra sintaticamente em enunciados como “chove”, “neva”, em que não dizemos que algo chove ou neva. O teórico do substrato pode revidar propondo um desafio aos teó­ ricos dos feixes: em nossa linguagem podemos tomar algo e atribuir-lhe cada vez um atributo diferente. Por exemplo: Pedro é aluno de filosofia; Pedro é inteligente; Pedro é branco etc. Cada vez estamos dizendo que uma relação ocorre entre um atributo relevante e alguma coisa prévia. Diante disso, o teórico dos feixes teria que responder a duas questões: que é a coisa prévia a que em cada caso relacionamos um atributo? Que tipo de relação ocorre entre os dois? Sua resposta só poderia ser: 65Imaguire é de opinião que, apesar de sua radical recusa a qualquer ontologia da substância, Russell jamais apresenta um argumento direto contra o conceito de substância, mas apenas desenvolve indiretamente uma crítica contra sua pretensa base lógica. Cf. IM AGUIRE, G. Russells Früphüosophie. Propositionen, Realismus und die sprachontologishe Wende. Hildesheim/Zurique/Nova York: Georg Olms Verlag, 2001, p. 90 e ss. 66 Cf. CASTANEDA, H .-N. “Thinking and the structure of the world”. Philosophia, 4, 1974, p. 3-40. 67 Cf. PENCO , C. Introdução à filosofia da linguagem. Petrópolis: Vozes, 2006, p. 61.

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primeiro, o que se está chamando de coisa prévia é o feixe de atributos; segundo, fazendo isso estamos dizendo a cada vez que o atributo em tela é um constituinte desse feixe. O revide do teórico do substrato é que, nesse caso, os diferentes enunciados geram tautologias. O teórico dos feixes levanta a pretensão de que aqui se toma um feixe completo de atributos e se diz cada vez que um atributo é um constituinte desse feixe, enquanto copresente a todos os outros. A isso responderá o teórico do substrato que é impossível captar um feixe completo sem saber previamente que atributos o constituem. Portanto, quando o teórico dos feixes levanta a pretensão de falar da mesma coisa, cai em tautologias: suas sentenças não são informativas. O teórico dos feixes pode baixar sua pretensão e dizer que em cada caso não está em questão o feixe completo, mas uma entidade menos com­ preensiva que está em relação com o atributo relevante, que, por sua vez, está em copresença com outros atributos. Portanto, o que se afirma em cada um dos enunciados é apenas que o atributo em questão é copresente e coconcorrente com outros atributos, sem pretensão de completude. No entanto, o teórico do substrato considera muito alto o preço a pagar pelo teórico dos feixes por esse resultado, embora possa conceder que a afirmação em cada caso possa ser verdadeira e informativa: ele tem de sustentar que nem dois desses atributos são ditos da mesma coisa, quando é fato óbvio que em todos os casos falamos da mesma coisa. Portanto, quando o teórico dos feixes articula sentenças informativas, ele não fala mais da mesma coisa, o que, para o teórico do substrato, revela com clareza a necessidade do apelo a um substrato. Uma resposta possível do teórico dos feixes a esse questionamento é que o discurso na base de enunciados compostos por sujeito e predi­ cado levanta também problemas análogos para o teórico do substrato. Se os substratos são os sujeitos últimos de predicação, então deveriam eles ser coisas que pudéssemos escolher como objetos identificáveis de referência. Ocorre que os substratos são puros, isto é, coisas sem atri­ butos; portanto, não podemos distingui-los de outros, o que conduz a problemas semelhantes aos apresentados a respeito da teoria dos feixes. Certamente, a acusação mais forte dos teóricos do substrato consiste em afirmar que a teoria dos feixes, em última instância, nega a contin­ gência dos objetos do mundo, pois se a teoria dos feixes é correta, então cada pretensão verdadeira do discurso sujeito-predicado sobre um objeto concreto indica um atributo essencial ou necessário, no sentido de que, se o atributo não entra na constituição do objeto, aquele objeto não existe. Dessa forma, qualquer pretensão verdadeira do discurso sujeito-predicado, nessa teoria, é uma mera elaboração da essência do objeto concreto. É em virtude disso que Loux denomina a teoria dos feixes de

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ultraessencialista. Aqui se situa a diferença fundamental entre as duas teorias: na teoria do substrato, toda pretensão verdadeira do discurso sujeito-predicado indica algo contingente ao substrato, um atributo que é externo ao substrato, enquanto que na teoria dos feixes se tratam sempre de propriedades necessárias. 2.2.2.2.2 A identidade dos indiscemíveis Outra objeção fundamental à teoria dos feixes é que ela é comprometida com o princípio que se denomina a “identidade dos indiscemíveis”,68 e que, por esse princípio ser falso, a teoria conse­ quentemente é falsa. O que está em jogo aqui é a questão da identidade. Tradicionalmente distingue-se entre identidade qualitativa e identidade estrita ou numérica:69 no caso da identidade estrita ou numérica se trata da mesma entidade; na identidade qualitativa se trata de duas ou mais entidades que partilham algumas propriedades. Para Loux, o que o princípio nos ensina é que a indiscernibilidade completa qualitativa implica identidade numérica. A primeira questão aqui é, então: por que se afirma que o teó­ rico dos feixes é comprometido com esse princípio? Na realidade, a tese básica da teoria dos feixes é que os objetos concretos que nos são familiares são, em última instância e exclusivamente, constituídos por seus atributos. Aqui é impossível apelar para substratos puros, e essa concepção sobre a estrutura dos objetos particulares é considerada como necessariamente verdadeira. Castaneda propõe aqui uma teoria de certa forma conciliatória ao afirmar que um objeto material ordinário é um agregado de propriedades ou funções proposicionais, um feixe de propriedades. Entre as proprie­ dades há uma relação diádica que ele denomina de consubstanciação (governada pelas leis de consistência e contiguidade) ou coatualidade (governada pelas leis da contiguidade, completude e fechamento lógico). Isso significa, para ele, que sua teoria ontológica concorda em parte com os teóricos dos feixes-de-universais e em parte com aqueles que identificam os feixes com conjuntos.70 68 É o “Principiam identitatis indiscemibiliurri" formulado por Leibniz: se A e B têm absolutamente todas as propriedades em comum, então A e B são idênticos. Cf. IMAGUIRE, G. A substância e suas alternativas. Op. cit.yp. 279 e ss. Cf. M ARQUES, A. “ Identidade dos indiscemíveis”. In: BRAN Q U INH O , J.; M URCHO, D.; GOMES, N. G. (orgs.). Enciclopédia de termos lógico-filosóficos. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 391-392. 69 Cf. HIRSCH, E. The Concept o f Identity. Nova York: Oxford University Press, 1982; “ Identity” . In: KIM, J.; SOSA, E. (orgs.). A Companion to Metaphysics. Malden: Blackwell, 1995, p .229-234. 70 Cf. CASTANEDA, H.-N. Thinking and the structure of the world. Op. cit.

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Além disso, para os teóricos dos feixes, certas coisas sâo meras construções a partir de outras mais básicas, ou seja, os itens construídos nada mais são do que os itens que juntos constituem os objetos. Dessa forma compreendemos completamente as coisas complexas quando identificamos os itens que as compõem. Isso implica que objetos com­ plexos não numericamente diferentes possuem exatamente os mesmos constituintes. Numa palavra, a identidade completa nos constituintes implica identidade numérica. A conseqüência que daqui segue é que é impossível que os concre­ tos particulares numericamente diferentes possuam todos e somente os mesmos atributos. Ora, os teóricos do substrato defendem que é possível que objetos numericamente diferentes sejam qualitativamente indiscerníveis (possuam a mesma cor, o mesmo peso, a mesma aparência etc.), o que implicaria a falsidade do princípio da identidade dos indiscemíveis e, consequentemente, da teoria dos feixes que o adota. Mas é realmente possível que objetos numericamente distintos sejam qualitativamente indiscemíveis?71Uma objeção afirma que é pos­ sível pensar em dois objetos - por exemplo, duas bolas, que podemos denominar Sam e Pedro, e que têm propriedades idênticas. Mas cada uma delas tem uma propriedade que a outra não tem: Sam tem a propriedade de ser idêntica a Pedro, e Pedro tem a propriedade de ser idêntica a Sam, o que Sam não tem e vice-versa, o que significa dizer que elas não são qualitativamente indiscemíveis em sentido pleno. No entanto, o argumento não procede porque o teórico dos feixes defende que o conceito de particular concreto é um conceito derivado a partir de entidades mais básicas. Nenhuma das entidades que ele constrói como constituinte do concreto particular pode já pressupor a noção de concreto particular. Ora, os exemplos dados (ser idêntico a Sam e ser idêntico a Pedro) já pressupõem o concreto particular, e por essa razão o teórico dos feixes está impossibilitado de apelar a eles para elaborar uma concepção da estrutura ontológica dos concretos particulares. Por pressupor o concreto particular, eles são propriedades impuras e, para os teóricos dos substratos, esses podem ser qualitativamente indiscemíveis em suas propriedades puras. 2.2.3 A proposta alternativa de reconstituição de uma teoria da substância O objetivo básico de M. Loux é pôr em questão a pretensão da teoria do substrato e da teoria dos feixes de esgotar as possibilidades teóricas de 71Cf. BLACK, M. “The Identity of Indiscernibles”. In: LO U X, M. (org.). Metaphysics. Contemporary readings. Op. cit., p. 104-113.

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explicação da estrutura dos concretos particulares. Por essa razão, ele vai repor a questão de como entender a substância e, segundo ele, retomar a tradição aristotélica72que vai consistir, em primeiro lugar, em romper com o quadro teórico comum às duas teorias segundo o qual os concretos particulares são realidades redutíveis a entidades mais básicas. E isso o que ele denomina a “postura construtivista”: o concreto particular é uma realidade construída a partir de materiais previamente dados. Para a tradição aristotélica, a raiz das dificuldades apresentadas pelas duas teorias está na aceitação do quadro teórico do todo e seus constituintes, o que na realidade é um mal-entendido categorial. Daí por que a única possibilidade de superar as dificuldades é romper com esse quadro teórico enquanto chave de explicação da estrutura ontológica dos concretos particulares - embora os aristotélicos concordem com os teóricos dos feixes quanto ao ser dos concretos particulares se radicar nos atributos a eles associados. Numa palavra, a tese básica aqui é que o ser de um concreto particular se funda nos universais que ele exemplifica, ou seja, como diz Puntel nessa segunda tendência de compreensão de substância, [...] a ideia de um sujeito (ontológico) não é inteiramente rejeitada por esses autores. Eles afirmam que as próprias substâncias ou as coisas particulares concretas, isto é, as próprias coisas individuais, possuem o status de sujeitos em vista de todos os atributos que lhes correspondem;73 [...] a substância ou a coisa individual concreta também possui o status de um sujeito (um portador) em vista de uma espécie (kind).H

Para a tradição aristotélica, segundo Loux, a teoria dos feixes se engana em duas questões fundamentais: 1) Por considerar que todos os atributos associados a um particular concreto constituem igualmente seu ser (postura ultraessencialista); 2) Por restringir os atributos relevantes para a caracterização de um particular concreto ao que os realistas de­ nominam propriedades. As propriedades não são os únicos universais. Há, também, as “ espécies” a que os particulares pertencem como, por exemplo, ser humano, cachorro etc., e que representam um tipo distinto e irredutível de universais. 72 Para ele, os principais defensores dessa tradição hoje são: A NSCO M BE, G. E. M. “ Substance”. Proceeâings fo r the Aristotetían Society, vol. sup., 1964. STRAWSON, P. F. Individuais. Londres: Methuen, 1959. W IGGINS, D. Sameness and Substance. Cambridge (MA): Harvard University Press, 1980. INW AGEN, P. van. Material Beings. Ithaca (NY): Cornell University Press, 1990. LO U X , M. Substance and Attribute. Dordrecht: Reidel, 1978. HOFFM AN, J.; RO SENKRA NZ, G. Substance among Other Categories. Cambridge: Cambridge University Press, 1994. 73 Cf. PU NTEL, L. B. Estrutura e ser. Op. cit., p. 252. 74 Cf. ibidem, p. 253.

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Nesse contexto se faz necessária uma observação prévia: as espécies são muitas vezes confundidas com os conjuntos da matemática. Ocorre que, embora a linguagem utilizada nos dois casos seja semelhante, há diferenças significativas entre as duas realidades. A identidade de um conjunto é determinada por seus membros, porque ele é uma construção a partir deles, ao contrário das espécies que precedem seus membros. Sendo a espécie o universal a que um objeto pertence, ela nos torna capazes de responder à pergunta sobre o que o objeto é. Numa palavra, para M. Loux, a tese central dos aristotélicos a respeito das espécies é: identificar o que é um particular concreto é identificar sua essência ou seu ser nuclear. Assim, as espécies a que eles pertencem constituem os particulares como tendo as essências que eles têm: elas nos dão as condições de existência do particular. Pertencendo a uma espécie, um particular concreto terá determinadas propriedades, embora nem todas as propriedades associadas a ele constituam sua essência. Como para os teóricos dos feixes, também aqui os universais são os elementos básicos para a concepção da estrutura ontológica dos particulares concretos, mas aqui se distingue o que pertence propria­ mente à essência e o que está fora de seu ser nuclear. Essa proposta teórica se distingue também da dos teóricos do substrato. Por um lado, os aristotélicos concordam com esses teóricos na ideia de que os atributos associados a um particular concreto necessitam de um sujeito, mas não concordam tanto com a “concepção construtivista” - que afirma serem o sujeito e seus atributos os constituintes do particular concreto - quanto com a ideia de que esse sujeito é puro. Rejeita-se, portanto, a ideia de um “sujeito puro”, mas não a “ideia de sujeito” como sendo fundamental para pensar a estrutura ontológica do particular concreto. Aqui é o próprio particular concreto que é o sujeito de todos os universais associados a ele, ele é a entidade básica do mundo. Ele pode ser o sujeito de atributos - propriedades - que são externas a seu ser nuclear. Na medida, então, em que o próprio particular con­ creto possui uma estrutura, ele não é uma entidade construída a partir de outras entidades mais básicas. Enquanto tais, eles são “substâncias”. A tese ontológica central de Loux é, então: um particular concreto é simplesmente uma instanciação de sua própria espécie, o que significa dizer que ele exibe a forma de ser da espécie a que pertence, e uma vez que a forma de ser é irredutivelmente unificada, são também assim as coisas que a exibem, coisas que não podem ser construídas a partir de entidades mais básicas. As espécies não são entidades que constituem as coisas - algo que entra na composição do objeto -, mas o que o objeto é. Essa postura resolve o problema posto de forma diferente tanto para os teóricos do substrato quanto para os teóricos dos feixes: o pro­

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blema da diferenciação numérica das entidades. Espécies são tais que sua instanciação múltipla resulta em particulares numericamente diferentes, ao contrário de uma propriedade que é numericamente idêntica em suas diferentes instanciações. Loux concebe a possibilidade de alargar sua postura básica em três campos de questões: a) Na realidade, cada ser vivo pertence a diferentes espécies. Isso não significa, contudo, dizer que ele tem diferentes essências, mas, antes, que as espécies, às quais uma coisa pertence, cons­ tituem uma hierarquia em rede, em que as espécies mais gerais estão incluídas nas menos gerais, e a espécie ínfima a que uma substância pertence lhe dá a essência completa. b) Isso implica que as essências de um objeto concreto sejam coisas partilhadas por todos os membros de uma espécie. Nem todos os essencialistas concordam nesse ponto. Leibniz, por exemplo, e outros defendem a tese de que qualquer particular tem sua essência individual própria. Assim, a propriedade de identidade associada a um particular é necessariamente única. Essa posição é normalmente contraposta ao essencialismo aristotélico e levanta a pretensão de ser fundamental para o enfrentamento de diversas questões filosóficas. c) Há aristotélicos como, por exemplo, P. van Inwagen/5que negam que haja coisas como montanhas e automóveis - embora se possa falar assim na linguagem quotidiana - e defendem a tese de que as únicas entidades materiais que existem são seres vivos e seres físicos simples. Eles reconhecem que as coisas que Aristóteles chamou substâncias são entidades com estruturas físicas comple­ xas. Por exemplo, um ser vivo é uma coisa com uma variedade de partes físicas. Esse fato levanta enormes questões a respeito da postura aristotélica que precisam ser enfrentadas. A posição de Loux é um esforço claro de apresentação de uma teoria alternativa às duas teorias existentes a respeito da concepção ontológica da estrutura do particular concreto - de modo muito espe­ cial, uma tentativa de superação do conceito de substrato como con­ ceito inaceitável. Supera-se verdadeiramente o conceito de substrato quando se conservam as ideias de sujeito e de exemplificação? A per­ sistência de categorias vinculadas a esse quadro teórico certamente mostra que esse objetivo vai exigir outro quadro teórico para poder ser alcançado.

75 Cf. INWAGEN, P. van. Material Beings. Op. cit.

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Para Puntel,76o grande mérito dessa teoria foi o esforço feito para superar o obscuro conceito de substrato, embora se deva duvidar de que realmente o objetivo tenha sido alcançado. Aqui a coisa individual foi simplesmente identificada com sua espécie, o que tem como conse­ qüência que o conceito de instanciação ou exemplificação seja destitu­ ído de qualquer valor explanatório. O cerne da objeção tem a ver com as próprias categorias básicas aqui empregadas, pois desembocam em algo ininteligível; afinal, quando se diz que o sujeito não é algo com uma identidade independente do universal do qual é sujeito, o que pode significar isso? Pois não se pode entender como algo possa ser um sujeito de um universal se sua identidade não é independente dele. 2.3 SUBSTÂNCIA EN TEN D ID A CO M O EXISTÊN CIA IN D EPEN D EN TE 2.3.1 Reformulação do conceito de substância em Espinosa O conceito de substância vai encontrar uma nova formulação na modernidade a partir de Descartes77 e Espinosa. Passará ao primeiro plano na conceituação ontológica da substância o conceito de indepen­ dência. O conceito constitui o cerne da teoria do ser (ontologia) e da teoria da inteligibilidade do ser (lógica) de Espinosa juntamente com os conceitos de atributos e modos.78A reviravolta se mostra claramente na definição que Espinosa dá de substância já no início de sua Ética: “Por substância entendo o que existe em si e é concebido por si, isto é, aquilo cujo conceito não carece do conceito de outra coisa pelo qual deva ser formado”.79 A substância emerge aqui em primeiro lugar como o ser que subsiste em si, ou seja, que possui em si mesmo, e não numa causa externa, o princípio de seu existir e de sua permanência no ser, o que significa dizer que é absolutamente livre porque radicada unicamente na necessidade de sua essência,80 uma vez que “ [...] livre é a coisa que 76 Cf. PU NTEL, L. B. Estrutura e Ser. Op. cit., p. 253. 77 Descartes define a substância como aquilo que enquanto existente não depende de nenhuma outra coisa (ita existit ut nulla re indigeat ad existendum). Cf. DESCARTES, R. Pincipia philosopbiae (1644/47). ADAM, C.; TANNERY, P. (orgs.), vol. 8, parte 1, p. 24. 78 Cf. H ECKER, K. Spinozas allgemeine Ontologie. Darmstadt: 'WIssenschaftliche Buchgesellschaft, 1978. RIZK, H. Compreender Spinoza. Petrópolis: Vozes, 2006. 79 Cf. SPINOZA. Ethica. Darmstadt: Wissenschafdiche Buchgesellschaft, 1967, prima pars, p. 86: “Per substantiam intelligo id, quod in se est, et per se concipitur: hoc est id, cajus conceptus non indiget conceptu alterius rei, a quo formari debeat. ” 80 ibidem, p. 88: "Ea res libera dicitur, quae ex sola suae naturae necessitate existit, et a se sola ad agendum determinatur [...]*; p. 114: “ Corollarium II. Sequitur II. solum Deum esse

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existe exclusivamente pela necessidade de sua natureza e por ela é de­ terminada a agir, ou seja, é livre o que é causa de si e vice-versa, o que é causa de si é livre”.81 Dessa forma, substância é essencialmente poder (potentia) de autoafirmação na existência (potência de existir) e autoconservação no ser, o que revela que o sentido do ser, para ele, é em última instância “poder”82 enquanto "força substantiva de constituição e conservação do ser”,83 afirmação de si mesmo, “atualidade produtiva necessária”.84 A substância é Deus,85 o ser absolutamente infinito86 que possui uma potência absolutamente infinita de existir e por isso existe necessaria­ mente.87 Dessa forma, ele identifica o ser em si e o ser por si: “ [...] é causa de si o que existe em si. A definição da causa de si e o axioma 1,1 oferecem a estrutura da realidade [...]” .88 Numa palavra, a substância única é potência infinita de existir89 e agir; enquanto tal está sempre implicada na potência das essências finitas que são múltiplas expressões modais dessa potência infinita. Dessa forma, [...] a potência infinita de Deus explica-se pela potência dos seres finitos que, em vez de serem apagados ou esvaziados da sua espessura e riqueza, são promovidos à altura de expressões irredutíveis ainda que parciais da po­ tência.90

causam liberam. Deus enim solus ex sola suae naturae necessitate existit [...] et ex sola suae naturae necessitate agit, [...] solus est causa libera. ” 81 Cf. CHAUÍ, M. A nervura do real. Imanência e Liberdade em Espinosa. Vol. I - Imanência. São Paulo: Companhia das Letras, 1999, p. 748. 82 Cf. ABREU, L. M. de. Spinoza - a utopia da razão. Dissertação de Doutoramento em Filosofia apresentada à Universidade de Aveiro, Lisboa. Coleção Veja Universidade, 1993, p. 253: “Além da forma da argumentação pelo absurdo, a Ética dá um passo decisivo. Concebe a potência como idêntica à essência e assim instaura a ontologia da potência, pondo-a em ação no sistema de Spinoza”. 83 Cf. ibidem, p. 254. 84 Cf. CHAUÍ, M. A nervura do real Op. cit., p. 762. 85 Cf. ibidem, p. 749: “ [...] são essas oito definições que, apreendendo a necessidade imediata do que é em si, apreendem a inteligibilidade imediata do que é concebido por si, e constituem uma só definição, a do ser absoluto”. 86 Cf. SPINOZA. Etbica. Op. cit., p. 86: “ VI. Per Deum intelligo ensabsolute infinitum, hoc, est, substantiam constantem infinitis attributis, quorum unumquodque aetemam, et infinitam essentiam exprimit” . Cf. a respeito: SANTIAGO, H. “ O ente absolutamente infinito” . Discutindo Filosofia, n. 8,2007, p. 43-45. 87 Cf. ibidem, Propositio XI, p . 98-102. Cf. H O RN ÀK, S. Espinosa e Vermeer. Imanência na Filosofia e na Pintura. São Paulo: Paulus, 2010, p. 52 e ss. 88 Cf. CHAUÍ, M. A nervura do real. Op. cit., p. 791. 89Cf. ibidem, p. 788: “ Causa sui é o pode de ser por si mesmo aquilo que é, ou, como insiste Espinosa, a essência que é força para ser por si mesma o que ela é em si mesma” . 90 Cf. ABREU, L. M. de. Spinoza. Op. cit., p. 255.

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Sua essência,91 ou seja, aquilo sem o que não podem ser nem ser concebidos consiste em ser os “modos”92 (modificações) da substância infinita, ou seja, suas afecções, seus efeitos necessários, o que existe na substância e por ela é compreendido - 93portanto, o que existe em outro e é concebido por outro, e consequentemente nada há de contingente na realidade, uma vez que, para Espinosa, “ [...] o contingente e o possível não se referem à realidade, mas, antes, exprimem nossa ignorância quanto à essência ou à causa das coisas”.94 Daí a tese de Espinosa95 de que as coisas particulares nada mais são do que afecções dos atributos de Deus, ou seja, seus modos através dos quais seus atributos se exprimem de uma forma específica e deter­ minada. Na expressão de Chauí, “[...] o absoluto é o ser como ação de existir que se propaga por ondas contínuas a todos os seres singulares, seus efeitos”.96 Isso leva a uma nova forma de pensar a diferença entre Deus e as coisas, que consiste [...] em que Nele a essência envolve existência necessária e, nelas, a essência exprime um atributo divino e por isso é uma existência que depende de uma causa necessária, de sorte que a distinção não se estabelece entre essência e existência (como queria a tradição) e sim entre substância e modo, e que essa distinção não se estabelece entre o necessário e o possível, mas, no interior do necessário, entre o necessário pela essência e o necessário pela causa.97

Substância é, assim, antes de tudo um ser que existe em si,98e, muito além da tradição, isso significa dizer que a substância é o ser que é causa de si mesmo99e igualmente causa imanente necessária e não transcenden­ te de todas as coisas,100 pela atuação necessária de sua potência. O que 91 Cf. CHAUÍ, M. O Ser Absolutamente Infinito. Op. cit., p. 109: "Essência é também o princípio de inteligibilidade de uma coisa porque é a ratio de suas propriedades e afecções. E a essência é o princípio das ações que se deduzem da natureza da coisa, é causa de suas ações e operações.” 92 A respeito da crítica de Hegel a essa concepção, cf. A Q UIN O , J. E. F. de. "Diferença e Singularidade. Notas sobre a Crítica de Hegel a Spinoza” . Philosophica, 28, Lisboa, 2006, p. 109-133. 93 Cf. H O RN Ã K , S. Espinosa e Vermeer. Op. cit., p. 86 e ss. 94 Cf. CHAUÍ, M. A nervura do real. Op. cit., p. 791. 95 Cf. SPINOZA. Ethica. Op. cit., Corolário da proposição XXV, p. 128. 96 Cf. CHAUÍ, M. A nervura do real. Op. cit., p. 788. 97 Cf. ibidem, p. 755. 98 Uma tese já defendida por Tomás de Aquino. Cf. STh 1 q. 3 a 5: “Substantia enim est ensperse su b siste n se também Descartes, que definiu a substância como: “ res qttae ita existit ut nulla alia re indigeat ad existendum” (Princ. Phil. I, 51) e no Ad quartas responsiones, AT, VII, p. 226: “Nempe haec ipsa est notio substantiae, quod, per se, hoc est absque ope ullius alterius substantiqe possit existere". 99Cf. SPINOZA. Ethica. Op. cit., p. 86:1. “Per causam sui intelligo, id cujus essentia involvit existentiam; sive id, cujus natura nonpotest concipi, nisi existens” . Para Scruton, essa definição é tomada de Maimônides. Cf. SCR U TO N , R. Espinosa. São Paulo: Loyola, 2001, p. 48. 100 Cf. ibidem, p. 120: “Propositio XVIII. Deus est omnium rerum causa immanens; non vero transiens".

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caracteriza a causa imanente, para Espinosa, é que o efeito permanece na substância, sua essência está presente nele. Assim, “ [...] o ato pelo qual Deus se produz é o ato pelo qual ele produz a totalidade da Natureza. A causa de si é causa imanente. Fica abolida a ideia de criação”.101 Portanto, trata-se de um ser que se caracteriza por sua indepen­ dência no ser e consequentemente no conhecer; portanto, trata-se de um conceito primitivo independente de qualquer outro conceito, inteligível em si mesmo precisamente por não precisar de uma causa externa. Para Scruton, muitos pensadores escolásticos e cartesianos consideraram as substâncias os constituintes últimos da realidade e, como tais, dependentes de si mesmas. O que eles deixaram de ver foi a conseqüência desse pressuposto - a saber, que qualquer substância precisa ser causa sui e, portanto, necessariamente existente.102

Em primeiro lugar, Espinosa defende a tese de que a substância não só existe em si, que é o ser em si mesmo, autocausalidade, que não precisa de uma causa externa, mas que, na realidade, nada existe além dela, e tudo que existe existe nela - o que diferencia sua posição tanto da tradição escolástica como da posição de Descartes. Para Scruton, a questão fundamental da ontologia de Espinosa é a questão “o que exis­ te?”, e, em última instância, para ele o que existe está em Deus, e nada pode existir ou ser concebido sem Deus, como ele diz nas proposições XIV e XV.103 Segundo, além de existir em si, é concebida por si, é o ser com­ preendido por si mesmo e, portanto, que não precisa de propriedades como mediações de seu conhecimento, o que revela que ser e pensar são duas faces da mesma moeda (lógica e ontologia se identificam).104E fundamental aqui o questionamento radical à concepção de substância da tradição como um substrato passivo enquanto sujeito de inerência de atributos. Para Chauí, o questionamento da ontologia da substân­ cia é mais radical ainda, porque o que se põe em questão é a própria substância como o fundamento de tudo: “Doravante, o princípio é a causa como actio e ratio. Em outras palavras, o fundamentam não é a 101 Cf. CHAUÍ, M. “ Consultoria”, em Baruch de Espinosa. Pensamentos Metafísicos, Tratado da Correção do Intelecto, Tratado Político, Correspondência. São Paulo: Abril Cul­ tural, 1983, p. XV. 102 Cf. SCR U TO N , R. Espinosa. Op. cit., p. 48. 103 Cf. ibidem, p. 45. 104 Cf. ibidem, p. 46: “ O pressuposto oculto da filosofia de Espinosa é que realidade e concepção coincidem de tal modo que as relações entre as ideias correspondem exatamente às relações na realidade [...] as relações de dependência no mundo são todas inteligíveis como relações lógicas entre ideias”.

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substância, mas a causa; não é o subjectum ou substrato, mas a ação que * * ser 5>. e* o propno Para Espinosa há uma única substância,106uma vez que a existência de mais de uma substância, a distinção numérica, implicaria uma causa exterior que explicasse o número de indivíduos em que uma determi­ nada essência se realizaria. Ora, não se pode atribuir uma causa exterior à substância, pois isso negaria sua própria definição; já que compete à natureza da substância existir, ela não depende de qualquer causa exte­ rior para existir;107portanto, só pode haver uma única substância - em contraposição a Descartes, que defendia a pluralidade de substâncias, atributos e modos. O “real” é assim marcado por uma unicidade fun­ damental e por uma necessidade absoluta de ação.108 Dessa forma, ela não deixa nada fora de si, abrange tudo,109contém em si todos os atributos que constituem sua essência, porque é um sujeito ativo, dinâmico, é a produtividade originária, a potência operativa, causa de si mesma e causa imanente de todas as coisas, cuja essência implica existência necessária; portanto, força interna de existência e ação, unidade inseparável de essência e existência: na substância se identificam causa, essência e existência. E isso que se chamou de racionalismo causai, uma vez que “o princípio da causalidade está no fundamento da filosofia de Espinosa como um todo. O enunciado [...] representa a chave para a compreensão de sua teoria”.110 O universo é aqui, então, compreendido como um todo abran­ gente necessário111 de autogestação da substância única através de seus atributos e modos.112 “Todo ser, toda e qualquer coisa individual, são, na condição dos modos, não mais que determinadas disposições de existir da substância una”.113 Isso implica uma reformulação radical da 105 Cf. CHAUÍ, M. A nervura do real. Op. cit., p. 790. 106 Cf. SPINOZA. Ethica. Op. cit., p. 104: “Propositio XIV. Praeter Deum nulla dari, neqtte concipi potest substantia” . 107 Cf. ibidem, p. 90: “Propositio VI. Una substantia non potest produci ab alia subs­ tantia” . 108 ibidem, p. 130: “Propositio XX IX. In rerum natura nullum datur contingens, sed omnia ex necessitate divinae naturae determinata sunt ad certo modo existendum et operandum”. 109 Cf. HO RN ÂK, S. Espinosa e Vermeer. Op. cit., p. 36: “ Só o infinito e, com isso, o que tudo abrange, pode, ao mesmo tempo, conter todas as coisas deste mundo e renunciar à admissão de uma esfera que esteja para além deste mundo” . 110 Cf. ibidem, p. 37. 111 Cf. SPINOZA. Ethica. Op. cit., p. 130: “Propositio X X IX . In rerum natura nullum datur contingens, sed omnia ex necessitate divina naturae determinata sunt ad certo modo existendum, et operandum”. 112 Cf. ibidem, p. 104: “Propositio XIII. Substantia absolute infinita est indivisibilis”. “Propositio XIV. Praeter Deum nulla dari, neque concipi potest substantia”. “Propositio XV. Qmcquid est, in Deo est, et nihil sine Deo esse, neque concipi potest” . 113 Cf. HO RN ÂK, S. Espinosa e Vermeer. Op. cit., p. 27.

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concepção tradicional, porque aqui as duas características fundamentais da substância para a tradição - a inseidade e aseidade - são simplesmente identificadas: A substância [...] é definida como em si, porém a existência inde­ pendente não significa, à maneira da Escola, “não estar em outro como num sujeito”, e sim que é causa sui - a inseidade aparece imediatamente como aseidade positiva; ser em si é necessariamente ser causa de si.114 A partir dessa noção de substância, Espinosa reformula radi­ calmente a noção de atributo:115 ele não é mais algo acrescentado à substância, algo que lhe é externo, mas constitui sua essência, sua inteligibilidade;116portanto, “os atributos só existem e são concebidos por força da essência da substância”.117 Cada um deles em seu gênero específico exprime o ser eterno e infinito da substância,118 a essência absolutamente infinita de Deus; todos existem simultaneamente e não são nem causados nem dependentes uns dos outros, e sua distinção não é de ordem numérica. Os atributos exprimem a substância do ponto de vista da qualidade, mas não do ponto de vista da quantidade. A distinção real das qualificações da substância não é acompanhada de uma distinção numérica correspon­ dente.119

Nós só conhecemos dois desses atributos: o pensamento e a exten­ são que exprimem dois aspectos completamente heterogêneos da mesma realidade fundamental: a única substância, uma estrutura infinitamente complexa. O que está em questão aqui é a superação da ideia de subs­ tância enquanto substrato, sujeito suporte de predicados, mas que é em si mesma incognoscível, ininteligível. Para Espinosa, a substância pode ser conhecida nela mesma; o intelecto capta o que constitui sua essên­ cia, ou seja, na medida em que conhecemos a substância, conhecemos seus atributos, aquilo que a constitui em seu ser.120 “Assim entendida, a substância é o ens realissimum - o ser absolutamente real dotado de 1,4 Cf. CHAUÍ, M. O Ser Absolutamente Infinito. Op. cit., p. 103-104. 115 A respeito do debate sobre a noção de atributo em Espinosa, cf. GUÉROULT, M. Spinoza. I Dieu (Éthique, I). Paris: Aubier-Montaigne, 1968, p. 428-461. 116 Cf. SPINOZA. Ethica. Op. cit., p. 86: “IV. Per attrihutum intelligo id, quod intellectus de substantia percipit, tanquam ejusdem essentiam constituem” . 117 Cf. ABREU, L. M. de. Spinoza. Op. cit., p. 237. 118Para Deleuze, os atributos são “significados qualitativos”, todos referidos à substância. Cf. DELEU ZE, G. Differenz und Wiederholung. Munique: Fink, 1997,2a ed., p. 64. 119 Cf. ABREU, L. M. de. Spinoza. Op. cit., p. 240. 120 Cf. ROV1GHI, S. V. História da Filosofia Moderna - da revolução científica a Hegel. São Paulo: Loyola, 1999, p. 186: “ [...] a substância, justamente porque é infinita e inexaurível riqueza de perfeição, exprime-se e se manifesta, evidencia-se em infinitos atributos, ou seja, em infinitas formas, em infinitos aspectos, cada um dos quais a exprime totalmente”.

Teoria da substância enquanto categoria ontológica fundamental

todos os atributos e propriedades em completa oposição ao ser vazio dos eleatas”.121 De nenhuma forma para ele o atributo é constituído pelo intelecto humano, já que ele é uma estrutura ontológica122e, enquanto tal, existe em si mesmo, mas depende do intelecto para ser conhecido. Rejeita-se aqui, então, radicalmente a ideia da substância como um substrato, um fundo indeterminado e ininteligível, o újüoksíjievov da tradição. Nesse sentido pode-se dizer, como o faz M. Chauí,123 que “o atributo é uma atividade ou ação constituinte, uma ação que é o seu próprio ser” e “a substância é uma ligação ou união firme e permanente de ações (de seu atributo) das quais ela é a nascente ou origem” . 2.3.2 Substância e independência ontológica em E. J. Lowe Lowe enfrenta a discussão a respeito do conceito de substância dentro do objetivo maior de seu livro:124 ajudar a recolocar a metafísica numa posição central na filosofia, enquanto a forma mais fundamental de pesquisa racional com seus métodos distintivos próprios e critérios de validação. Essa proposta se justifica na tese de que qualquer pesquisa racional se radica em pressupostos metafísicos de modo que uma pos­ tura crítica exige a tematização desses pressupostos implícitos. Para ele o pré-requisito fundamental para trabalhar a questão da substância é a articulação de uma noção adequada de "dependência ontológica”, pois só com essa noção é possível explicar as relações ontológicas entre as substâncias e outras entidades de várias outras categorias. Para ele, a noção de que um objeto depende de outro para sua existência é uma noção crucial em metafísica num sentido propriamente ontológico. Nesse contexto, entende-se a substância como um objeto que não depende de nada para sua existência, enquanto propriedades são objetos que dependem dos objetos que as possuem. Nesse sentido, pode-se dizer, como Armstrong, que os universais são coextensivos com suas respectivas instâncias.125 A questão central aqui, então, é: como se 121 Cf. ABREU, L. M. de. Spinoza. Op. cit., p. 236. 122Cf. ibidem, p. 237: “ O atributo não é uma representação produzida pelo entendimento na medida em que este construiria uma imagem do que a substância seria para e/e, mas é a própria essência ou realidade substancial em si percebida pelo entendimento”. 123 Cf. CHAUÍ, M. O Ser Absolutamente Infinito. Op. cit., p. 106. 124Cf. LOWE, E. J. The Possibility of Metaphysics. Substance, Identity, and Time. Oxford: Claredon Press, 1998, p. V. A respeito da concepção de substância como independência, cf. HO FFM AN, J.; RO SENKRA NTZ, G. S. Substance Among Others Categories. Cambridge: Cambridge University Press, 1994, cap. 4. 125 Cf. ARM STRONG, D. M. Universais: an opinionated introduction. Boulder (CO): Westview Press, 1989; “Universais as attributes”. In: LO U X , M. J. (org.). Metaphysics. Con­ temporary readings. Londres/Nova York: Routledge, 2001.

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A ontologia em debate no pensamento contemporfineo

pode definir essa relação de dependência? Uma proposta óbvia consistiria em dizer simplesmente: (D l) x depende, para sua existência, de y = necessariamente x só existe se y existe.

Para Lowe, (Dl) parece captar exatamente a noção intuitiva de dependência existencial, pois (Dl) implica que qualquer coisa depende de si mesma para sua existência. Pode-se, de acordo com o que já foi dito da substância, defini-la a partir daqui da seguinte forma: (D2) x é uma substância = não há nenhum y, de tal modo que y não é idêntico a x e x dependa de y para sua existência.

Substituindo o definiens de (Dl) em (D2) teremos o teorema: (Tl) x é uma substância se e somente se não há um y, de tal modo que y não é idêntico a x e, necessariamente, x só existe se y existe.

O esclarecimento da problemática da dependência existencial que é fundamental para o tratamento da questão da substância é realizado através da discussão de quatro questões básicas: a) Propriedades e dependência ontológica Se presumivelmente admitirmos que há substâncias que podem ser objetos compostos, ou seja, que eles podem possuir partes pró­ prias, então, a pergunta se impõe: objetos compostos só existem se necessariamente suas partes existem? Aqui se faz necessário distinguir diferentes casos, pois, por exemplo, quando se trata propriamente de uma coleção de coisas, dificilmente se pode atribuir a essa entidade o caráter de substância. Já no caso dos seres vivos, sem dúvida pode ocorrer uma mudança em alguma de suas partes. Certamente não pode haver organismo sem partes, mas nem todas lhe são essenciais, e essa distinção é fundamental.126 Faz-se necessário agora, para esclarecer a questão da dependência ontológica, retomar a questão das propriedades,127 cuja existência de­ 126 A respeito da distinção entre propriedades essenciais e acidentais, cf. LECLERC , A. “ O essencialismo desde Kripke”. In: IM AGUIRE, G.; ALM EIDA, C. L. S. de; OLIVEIRA, M. A. de (orgs.). Metafísica Contemporânea. Op. cit., p. 381-389. 127 Cf. ARRUDA, J. M. Universais e particulares: platonismo e nominalismo. Op. cit., p. 223: “Alguns grandes filósofos - entre eles: Platão, Aristóteles, Leibniz e Frege - consideram que dada uma entidade x qualquer, ou x é uma entidade irrepetível, que não pode ser instanciada por nenhuma outra entidade, ou x é uma entidade repetível que pode ser instanciada em diversos segmentos distintos do espaço-tempo. Se x for uma entidade do primeiro tipo, então x é um particular; se pertencer ao segundo, x é um universal”.

Teoria da subslflnda enquanto categoria ontológica fundamental

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pende dos objetos que as possuem. Exprimindo isso na forma de um axioma, temos: (A l) Se x é uma propriedade e y é um objeto que possui x, então x depende de y para sua existência.

Substituindo o definiens de (Dl) em (Al) temos: (T2) Se x é uma propriedade e y é um objeto que a possui, então, necessaria­ mente, x só existe se y existe.

Mas (T2) pode ser questionada, pois mesmo que alguém aceite a tese aristotélica de que não pode haver propriedades não exemplificadas, ele pode aceitar que, dada uma propriedade x, sendo y o objeto particular que a possui, é possível defender que a propriedade, caso y não exista, pode existir em outros objetos. Uma maneira de escapar à objeção seria afirmar que aqui não está em jogo uma propriedade universal, mas uma proprie­ dade particularizada (um tropo ou um modo), o que faz T2 bem plausível. Outra dificuldade referente ao status ontológico das propriedades é a respeito do sentido dos universais. Se o universal em princípio não depende de nenhum objeto determinado para sua existência, e inclusive pode depender de outro universal (sendo, então, universal de segunda ordem), pode-se excluir o universal da categoria de substância? Para ele, Aristóteles nas Categorias resolveu a questão considerando o particular como substância primeira, enquanto o universal é substância segunda. Nesse contexto, pode-se, então, em primeiro lugar articular uma definição da dependência ontológica assim: (D lg) x depende para sua existência de objetos do tipo T = necessariamente, x só existe se existe algum y, de tal modo que y é do tipo T.

Nesse sentido, tanto substâncias compostas como universais aris­ totélicos são objetos existencialmente dependentes. Pode-se, então, definir alternativamente a substância como aquela entidade que para sua existência só depende de suas partes. Para Lowe, todas essas estratégias possuem problemas, daí a necessidade de procurar outros caminhos. b) Propriedades essenciais e eventos Uma questão intimamente vinculada à primeira é o problema de propriedades particularizadas essenciais a um objeto128. Pode-se dar 128 A respeito de uma interpretação modal dessa distinção, cf. BR A N Q U IN H O , J. “ Pro­ priedade” . In: BR A N Q U IN H O J . ; M URCH O, D.; GOMES, N. G. (orgs.). Op. cü., p. 639: “ A propriedade (j) de um objeto x é uma propriedade essencial de x se e somente se x exemplifi-

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A ontologia em debate no pensamento contemporâneo

um exemplo de uma propriedade particularizada essencial de Sócrates? Certamente, se existe tal coisa como a humanidade particularizada de Sócrates, ele não pode perdê-la sem deixar de existir. Para Lowe, se há tais coisas como propriedades particularizadas essenciais, elas devem ser identificadas com as substâncias assim que não constituam ameaça a Tl. Mas talvez se possa negar que a humanidade de Sócrates seja algo distinto do próprio Sócrates, e afirmar que essa distinção é meramente uma distinção de razão. Lowe defende a tese de que, se, de fato, há propriedades essenciais particularizadas que são possuídas pelas substâncias, na realidade elas são identificadas com essas substâncias. Há, porém, outros casos mais problemáticos. Por exemplo, a relação entre o evento temporal ou o processo de vida de Sócrates. Certamente há coisas que são verdadeiras da vida de Sócrates e não são verdadeiras dele, e vice-versa. Mas se pode discutir se Sócrates é existencialmente dependente de sua vida. Sua vida pode ter sido em muitos sentidos qualitativamente diferente, mas o que aqui está em questão é se ele poderia ter tido uma vida numericamente diferente. É duro ver que ele poderia, pois já aceitamos que vidas depen­ dem, para sua existência, das pessoas de que elas são a vida. Isso significa necessariamente dizer que a vida de x existe se x existe. Essa discussão conduz a uma modificação na definição de substância: (D2íi-*) x é uma substância = x é um particular não evento, e não há particular não evento y, tal que y não é idêntico a x, e x depende de y para sua existência.

Isso incorpora a intuição forte pré-teórica de que substâncias são entidades permanentes antes que eventos. Nesse contexto, uma estra­ tégia atraente consiste em definir a categoria de entidade permanente como uma categoria que abrange substâncias e coleções de substâncias e eventos e processos como mudanças e seqüência de mudança nas propriedades e relações das entidades permanentes. c) Assimetria e dependência existencial O caso da vida de Sócrates demonstra que a definição (Dl) per­ mite a possibilidade de dependência existencial mútua entre coisas não idênticas, o que não se ajusta à nossa noção intuitiva de dependência ontológica, que é a de uma relação assimétrica. Se considerarmos a relação entre Sócrates e sua vida, de acordo com (Dl) Sócrates é tanto existencialmente dependente de sua vida quanto sua vida dele. ca í|) em qualquer mundo possível (ou situação contrafatual) no qual x exista; intuitivamente, trata-se não apenas de uma propriedade que o objeto de fato tem, mas de uma propriedade tal que, se o objeto não a exemplificasse, deixaria simplesmente de existir” .

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Nossa intuição vai, contudo, na direção contrária: a vida de Só­ crates é uma entidade totalmente dependente enquanto Sócrates é um existente totalmente independente. A vida de Sócrates só existe porque Sócrates existe. Ora, a conjunção “porque” é assimétrica, uma vez que exprime uma relação explanatória, e a explanação é assimétrica; o que está intimamente ligado à inaceitabilidade de argumentos circulares: dois estados de coisas distintos não podem explanar-se mutuamente. A partir dessas considerações, podemos reelaborar (Dl): (D l*) x depende, para sua existência, de y = necessariamente x somente existe porque y existe.

É importante considerar que a palavra “somente” aqui não deve ser entendida no sentido de que ela implica que um objeto não pode depender de duas ou mais diferentes coisas para existir. Também não é implicação de (D l*) que uma substância composta dependa, para sua existência, de suas partes como também que um universal aristotélico dependa de seus exemplares particulares para sua existência. Na realidade, o definiens de (D l*) contém o definiens de (Dl), embora não vice-versa, o que gera o teorema: (T3) Se, necessariamente, x somente existe porque y existe, então, necessaria­ mente, x somente existe porque y existe.

No entanto, mesmo que se possam eliminar as fontes de erro que podem surgir daqui, Lowe é de opinião que (D l*) como está não pode constituir uma definição satisfatória da dependência existencial, porque é insuficientemente perspicaz, pois o que se precisa para uma definição satisfatória da dependência ontológica é uma relação perspicaz entre x e y mais forte do que: necessariamente, x existe somente se y existe. d) Dependência existencial enquanto dependência-identidade Para Lowe, a relação procurada é a relação de dependência- iden­ tidade que pode ser expressa assim: ( D l**) x depende, para sua existência, de y = necessariamente a identidade de x depende da identidade de y.

Afirmar isso significa dizer: o que y é de sua espécie determina o que x é de sua espécie. Mesmo sem oferecer uma definição formal da dependência-identidade, para ele uma conseqüência de tal definição seria o teorema: (T4) Se a identidade de x depende da identidade de y, então necessariamente existe uma função F de tal modo que F de x é necessariamente idêntico à F de y.

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A ontologia em debate no pensamento contemporâneo

O objetivo da segunda ocorrência da palavra “necessariamente” em (T4) é garantir que F é uma função que capta x como referente da expressão "F de y” em todo mundo possível em que a expressão refere algo. A partir daqui é possível tirar duas conseqüências de (D l**): (T5) Se a identidade de x depende da identidade de y, então necessariamente x existe somente se y existe. (T6) Se x não é idêntico a y e a identidade de x depende da identidade de y, então a identidade de y não depende da identidade de y.

Tudo isso nos permite afirmar que pode haver algumas espécies privilegiadas de itens que possuem condições-identidade determinadas, mesmo que não sejam governadas por um critério adequado de identi­ dade. Para sua identidade, tais itens dependeriam somente de si mesmos. A partir das discussões sobre esses pontos, torna-se possível para Lowe propor uma definição revisada de substância: (D2*) x é uma substância = x é um particular e não existe um particular y, tal que y não é idêntico a x, e x depende de y para sua existência

Substituindo o definiens de (D l**) em (D2), pode-se derivar: (T7) x é uma substância se e somente se x é um particular, e não há particular y, tal que y não é idêntico a x, e a identidade de x dependa da identidade de y.

Geralmente, substâncias não dependem, para sua identidade, de propriedades (acidentais, se existem) particularizadas, nem de eventos em que são participantes, nem de lugares que ocupam, nem de outras subs­ tâncias. Propriedades e eventos dependem claramente das substâncias para sua identidade, mas não as substâncias de propriedades acidentais e eventos. Embora as substâncias físicas ocupem algum lugar, que lugar elas ocupam não determina o que são, e elas não dependem de outras substâncias para sua identidade. Numa palavra, substâncias não dependem a não ser de si mesmas para sua identidade. Dessa forma, a "dependência de identidade” consti­ tui a espécie forte de dependência existencial que se buscava. No entanto, considera-se a vagueza do conceito de independência responsável pelos inúmeros debates sobre sua aplicação: A vagueza presente na noção de independência ontológica é responsável por debates acerca da aplicação correta da noção de substância na modernidade. Enquanto para Aristóteles, seres humanos particulares seriam exemplos plenos de substância, para autores como Espinosa somente Deus poderia ser uma substância, pois, somente Ele, enquanto causa de si mesmo (cansa sui), diferente dos seres finitos, é completamente independente ontologicamente,

Teoria do substância enquanto categoria ontológica fundamental

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isto é, independente não apenas de um portador, mas também de uma causa exterior.129

Para Puntel, o problema fundamental dessa concepção é que inde­ pendência, no sentido de que um ente possui a capacidade de existir por sua própria força e de forma autônoma, é apenas condição necessária, mas não suficiente para a determinação do que constitui a substância: “Independência existencial de outros é somente um aspecto externo; ela não determina a estrutura interna do ente substancial”.130

129 Cf. IMAGUIRE, G. A Substância e suas alternativas: feixes e tropos. Op. cit., p. 276. 130 Cf. PUNTEL, L. B. Estrutura e Ser. Op. cit., p. 254.

Capítulo 3

A ONTOLOGIA MONOCATEGORIAL: A TEORIA DOS TROPOS DE K. CAMPBELL

IN TRO D U ÇÃO As ontologias que rejeitam a categoria de substância concebem, para Puntel, as coisas singulares concretas e toda espécie de entidade complexa como um feixe (bundle) de determinadas espécies de entidades, e, por isso, são denominadas teorias dos feixes. Há, contudo, várias divergên­ cias a respeito dos feixes. E possível distinguir pelo menos três versões dessa teoria: a) a teoria dos tropos; b) a teoria que interpreta as coisas individuais como feixes de qualidades, que são enfeixadas mediante a relação de copresença; c) a teoria que interpreta as coisas individuais como feixe de universais imanentes. A proposta de Campbell de uma teoria alternativa à concepção da “substância” como categoria ontológica fundamental se situa claramente no seio de uma determinada concepção da tarefa básica da “metafísica”: articular uma explicação sobre os constituintes fundamentais de qualquer realidade, ou seja, explicitar sua estrutura ôntica, articular a estrutura da realidade como um todo em seu nível mais fundamental. Fundamental nesse contexto é, para ele, o assim chamado "axioma de uniformidade”: a convicção de que alguns padrões básicos perpassam o universo, ou seja, numa palavra, a convicção de que, no último nível, o universo possui uma estrutura comum. Por isso, sua primeira tarefa é explicar como concebe seus itens reconhecidos, e, de modo muito particular, como concebe seus itens básicos, o que significa propor uma explicação ontológica pelo menos de todas as condições normalmente encontradas do cosmos. Não há aqui, como na proposta de Puntel, uma distinção entre ontologia e metafísica, o que é uma postura comum entre os filósofos analíticos que retomaram questões ontológicas. Assim, não há aqui propriamente uma “teoria do ser” em distinção com uma “teoria dos entes”. Esses elementos abrangentes se denominam “categorias”, de tal forma que a metafísica se revela antes de tudo como uma “teoria categorial”. Nessa perspectiva, a metafísica emerge como o departamento

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A ontologia em debate no pensamento contemporâneo

mais geral de uma investigação comum, mas não compartilha mais a pretensão antiga de fornecer verdades necessárias, ou seja, a pretensão de que há um única ontologia consistente, e, assim, de que a ontologia é o campo apriori de verdades quase lógicas. Na realidade nos situamos num campo de teorias rivais em que as propostas precisam ser avaliadas. 3.1 O N T O LO G IA M ONOCATEGO RIAL EN Q U A N TO FILOSOFIA PRIMEIRA 3.1.1 A ontologia clássica aristotélica duocategoriaí: substâncias e propriedades Utiliza-se na tradição uma linguagem, cujos enunciados possuem a estrutura básica de sujeito-predicado. A esses enunciados corresponde uma ontologia duocategoriaí: o universo possui objetos (coisas) e es­ ses objetos tem traços (características) e modos de ação. Há aqui uma isomorfia completa entre linguagem e realidade: o sujeito denota os objetos e o predicado uma qualidade ou uma relação entre os objetos. Trata-se, então, de uma ontologia dualista: há "substâncias”, in­ divíduos verdadeiros capazes de existência independente, e "universais abstratos”, propriedades universais e relações, características que podem instanciar-se de diferentes modos: por exemplo, os particulares a, b e c são cada um deles vermelhos, o que significa dizer que uma e a mesma entidade, a propriedade de ser vermelho, é idêntica entre eles. A pre­ sença de uma característica ocorre na linguagem através do uso de um termo geral em posição predicativa. O dualismo dessa posição defende a tese de que o uso correto do termo geral implica a presença de uma entidade universal, o verdadeiro elemento comum de cada substância assim descrita. A partir daqui se pode descrever o mundo manifesto como cons­ tituído por uma configuração espacial de itens em três dimensões: unidade, complexidade e recorrência de similaridades através do tempo e do espaço. Nesse contexto, a semântica constituída por enunciados articulados no esquema sujeito-predicado se revela adequada para a captação da estrutura do mundo manifesto. A postura essencial da ontologia duocategoriaí é a seguinte: há substâncias particulares, que são o único particular existente, e há propriedades universais das substâncias a que pertencem e em que são inerentes. Assim, cada substância possui uma natureza definida que ela compartilha com outras coisas. Dessa forma, dois particulares perten­ cem à mesma espécie quando compartilham uma propriedade comum, universal.

A ontologia monocatogorlal: a teoria dos tropos de K. Campbell

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3.1.2 Problemas dessa ontologia 3.1.2.1 Problemas com a substância A ontologia duocategoriaí constitui ainda hoje a ontologia adotada pela maior parte dos metafísicos, mas não triunfa pura e simplesmente porque apresenta sérios problemas. Para Campbell, há fundamental­ mente quatro questões em relação à substância que nunca foram satis­ fatoriamente resolvidas. Primeira: quanto do todo do objeto é a substância? As qualidades são universais, as mesmas nos diferentes objetos, o que exige um ele­ mento de particularização, ou seja, um elemento que particularize cada caso de qualidade para seu objeto próprio. Podemos chamar de substrato esse elemento que confere particularidade e individualidade. Então o substrato é a substância somente ou é o substrato mais as propriedades? No primeiro caso, a substância seria um particular puro, ou seja, sem propriedades. Ora, sem propriedades não é possível distinguir os par­ ticulares puros uns dos outros. Além disso, se eles são puros, eles são destituídos de qualquer capacidade - portanto, também da capacidade de ter propriedades. Mas eles precisam exatamente disso para poder cumprir seu papel. Por outro lado, se a substância é o substrato mais as propriedades, ela é composta de itens de duas categorias completamente distintas. Esse composto não pode ser básico, ele admite uma análise maior. Assim, o substrato é fonte de obstáculos insuperáveis para essa ontologia. Segunda: a questão da mudança. Podemos tomar como exem­ plo uma porta que é pintada. Nesse caso, a substância troca uma de suas propriedades inerentes por outra, o que é plenamente possível, pois uma propriedade pode ter diferentes instanciações. Mas e o caso do que muda mais radicalmente, por exemplo, quando a porta é des­ truída? A substância ou as substâncias que eram a porta não existem mais; na linguagem da tradição, ocorreu uma mudança substancial. Contudo, essa ontologia não tem espaço para tais eventos, pois aqui o particular é imperecível, perdura com identidade intacta através das mudanças: a substância, nessa concepção, distingue-se das proprieda­ des porque tem a capacidade de persistir, isto é, tem a capacidade de reter sua identidade. Pode-se tentar salvar a teoria dizendo que a porta não é propriamente uma substância, mas um complexo de substâncias. Outra possibilidade consiste em eliminar todo o problema in­ troduzindo a ideia de partes temporais: os particulares simples não são coisas que perduram, mas seqüências ordenadas de particulares reais. Teorias como a filosofia do processo de Whitehead e as teorias da identidade diacrônica das coisas familiares mostram que essa no­

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ção nos permite desvincular particularidade e permanência, de mo­ do que a ideia de uma mudança substancial se torna inteligível. Essas teorias têm também suas próprias dificuldades, dentre as quais a mais importante é especificar uma duração não arbitrária para as partes temporais. O papel da substância é particularizar, dar ao objeto uma realidade particular enquanto um objeto definido. Mas isso não é suficiente, pois o objeto não é simplesmente um particular, mas um indivíduo. Substratos particularizam, mas não individuam. Ora, a introdução de elementos de individuação traz outro problema: se esses elementos são distintos dos que particularizam, então temos uma ontologia tricategorial. Onde pôr um fim? Terceira: a questão da unidade. Substâncias são unidades; uma substância singular é o caso de uma coisa. Na vida de cada dia, tra­ tamos os objetos que encontramos como constituindo unidades. Os filósofos, porém, não consideram objetos que têm partes próprias como uma substância, mas como coleção de substâncias; ou seja, o que numa observação superficial parece ser uma verdadeira unidade pode dissolver-se em complexidade através de uma análise mais apu­ rada. Veja-se o caso da física: molécula, átomo, partícula subatômica etc. - ou seja, não há garantia de que um candidato nomeado seja uma verdadeira unidade. Isso não constitui, para Campbell, um problema sério em si mesmo, mas o que realmente dramatiza é que temos muitas quase substâncias - por exemplo, cadeiras, mesas e automóveis que não possuem uma unidade metafísica genuína enquanto objetos. A unidade metafísica de uma verdadeira substância não é essencial para ser um objeto. Por que supor que se necessita de algo unificante que particularize? Quarta: a relação das substâncias com o espaço. São os substratos de objetos espaciais eles mesmos espaciais? Se for o caso, eles possuem características e deixam de ser genuinamente puros. Mas o cerne racional da ontologia de substâncias/propriedades consiste em distinguir o que constitui a particularidade (a substância) do que constitui a natureza (a propriedade). Aqui, porém, essa dualidade se faz confusa na medi­ da em que se atribuem à substância enquanto substrato propriedades relacionais que possam garantir sua localização. Por outro lado, se os substratos desses objetos não são espaciais, então somos, em última instância, convocados a acreditar que são requeridos um ou mais itens misteriosos, a fim de que a cadeira em que sento possa ser uma coisa. Mas por que o substrato não espacial se vincula com essa cadeira e não com outra? Como pode algo que é intrinsecamente não espacial tomar um carácter espacial?

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3.1.2.2 Problemas com Universais Na ontologia da tradição, o que constitui a natureza das coisas são os universais, ou seja, itens que podem indefinidamente ser instanciados em diferentes objetos. Um universal sem ser dividido pode estar em diferentes lugares ao mesmo tempo. Perguntas aqui, para Campbell, são inevitáveis: como pode uma e a mesma entidade, um universal, ser instanciado multiplamente e estar totalmente presente em diferentes lugares ao mesmo tempo? Que é uma substância privada de seus uni­ versais? Como se relacionam substâncias e universais? Alguns filósofos propõem aqui a relação de instanciação. Como pensar essa relação? De qualquer modo, aqui se situa o cerne da ontologia da tradição: com essas categorias temos as duas categorias ontológicas básicas, mutu­ amente exclusivas - particulares e universais com que podemos pensar toda e qualquer realidade. Os que aceitam que propriedades são univer­ sais divergem a respeito do caso zero. Um coelho ou milhões de coelhos não fazem diferença para a “coelhidade”. Mas, se em nenhum estágio da história do mundo há um coelho, o que então ? Para os plantonistas isso não afeta a realidade da "coelhidade”, enquanto Armstrong1defende que universais genuínos têm de ser instanciados pelo menos uma vez. Reações a essa posição emergiram através da história. Locke, por exemplo, defendeu uma tese central em sua filosofia, com que concorda Campbell: todas as coisas existentes são particulares. O particularismo sistemático continua sendo um grande problema para os realistas a respeito dos universais. A proposta de Campbell consiste em desen­ volver uma posição particularista que possa evitar a crítica clássica ao nominalismo. A questão básica é: se universais podem ser dispensados, que sejam evitados. Os universais são sujeitos a muitas dificuldades. Por exemplo, uma vez admitidos, não parece ser possível pôr um limite a seu número. Ou­ tra dificuldade tem a ver com a determinação. Para o realismo, se existe semelhança entre objetos, isso se explica através da presença de algo universal em cada um desses objetos. Tomemos o caso de laranjas verdes: elas são semelhantes umas às outras pois são coloridas de tal forma que elas devem partilhar o universal apropriado - a “coloridade”. Mas, se as cores fossem espécies de um gênero, deveria ser possível distinguir nos objetos coloridos aquilo em que são semelhantes e aquilo em que diferem. Não parece ser o caso. 1 Já no livro de 1978, Armstrong defende um realismo imanente, em que universais e parti­ culares são igualmente abstrações dos estados de coisa. Cf. ARM STRONG, D. M. Universais and Scientific Realism. Vol. II. Cambridge: Cambridge University Press, 1978; A World of States ofAffair. Cambridge (UK): Cambridge University Press, 1997.

A ontologia em debate no pensamento contemporâneo

3.1.2.3 Problemas com a inerência Desde sua emergência no Parmênides de Platão, a ontologia da substância/propriedade tem dificuldade com a questão da relação en­ tre seus dois constituintes; ou seja, trata-se de encontrar um modelo para pensar a relação entre o particular e o universal. A dificuldade é, em primeiro lugar, formal: propriedade inclui tanto qualidade quanto relação. Para a tradição, para que um objeto O l seja da espécie K, um universal apropriado tem que inerir em O l; e se dois objetos O l e 0 2 estão na relação R, um universal apropriado, usualmente relacionai, tem de inerir em O l e 0 2 . Dessa forma, para ser consistente, parece que a inerência da propriedade P no objeto O requer que o universal “inerir” deva inerir em P e O. Surgem aqui diferentes objeções, por exemplo: 1) regresso ao infi­ nito; 2) a inerência, que seria o modo básico de pertença de qualidades e relações aos objetos, termina tornando-se uma relação entre outras. Os defensores do quadro ontológico em discussão são levados a concluir que a inerência é, na realidade, sui generis: trata-se de uma ligação não relacionai que é objeto de muitos questionamentos. Esse problema é fundamental para toda ontologia duocategoriaí. 3.1.2.4 Problemas com a dependência mútua Muitos filósofos modernos aceitam a visão platônica que afirma a existência de universais, sejam instanciados ou não. Contudo, muitas versões modernas da ontologia clássica negam que substância e universal possam existir em si mesmos. Seguem Aristóteles, afirmando que o que atualmente existe é, em última instância, um complexo de particularidade e propriedade, um “este-tal”. Que necessidade metafísica peculiar liga um ao outro? Nenhuma qualidade específica é requerida para ser tal. Elas podem estar todas ausentes? E pensável um vácuo de propriedades? O que caracteriza a ontologia clássica é a tese da constituição do real por duas categorias básicas. Mas é justamente essa tese que nos conduz a um mistério no coração do mundo: dois elementos de cuja distinção como itens não se duvida, vinculados por um elo não relacionai que desafia uma análise. 3.2 PROPOSTAS AN TERIO RES DE O N TO LO G IA M O N O CATEGO RIAL As grandes dificuldades apresentadas pela ontologia tradicional justificam a busca por uma ontologia alternativa. O caminho seguido em primeiro lugar consistiu em tomar uma das categorias clássicas

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como fundamental e apresentar a outra como derivada, o que levou à articulação do nominalismo e da teoria dos feixes. a) O nominalismo A tese fundamental é: só há objetos particulares concretos. O que esses objetos têm em comum é o fato de pertencerem a diversas classes. Na versão medieval,2 eles usam o mesmo nome;3 daí a denominação “nominalismo” para esse conjunto de doutrinas. Armstrong4distingue entre “nominalismo de predicado” e “nominalismo de classes”,5 e am­ bos foram submetidos a uma crítica devastadora. Há aqui, de qualquer forma, uma postura antropocêntrica: não há qualquer espécie de coisa antes que o ser humano a classifique. O “nominalismo de semelhança”,6articulado por Carnap, desen­ volvido por Price e aprovado por Quine, evita os erros dos precedentes. Aqui se consideram semelhança e diferença entre os objetos como algo primitivo, e se tenta construir uma teoria das propriedades a partir dessa base. Para Campbell, a falha básica do nominalismo ordinário já se mostra em sua tese básica: não é verdade que não há propriedades e somente classes e objetos, pois as classes são classes de objetos com propriedades, o que, contudo, não implica afirmar a universalidade das propriedades. b) A teoria dos feixes de B. Russell Apresenta-se como a oposição completa ao nominalismo e incom­ patível com suas diferentes formas: não há substâncias, só há universal, qualidades e relações. Quando encontramos um objeto, encontramos um "nexo de qualidades e relações”, um centro para operações causais, ativas e passivas. Que é, então, uma coisa nesse quadro teórico? O 2 Cf. ARRUDA, J. M. “Universais e particulares: platonismo e nominalismo” . In: IMA­ GUIRE, G.; ALMEIDA, C. L. S. de; OLIVEIRA, M. A. de (orgs.). Metafísica Contemporânea. Petrópolis: Vozes, 2007, p. 225: “N o período medieval, após forte influência do platonismo de Plotino e Santo Agostinho, que defendiam a anterioridade dos universais (tmiversalia sunt ante res), Boécio retomou a questão da existência independente das substâncias segundas (gê­ nero e espécie) e foi o principal defensor do realismo em sua versão mais branda (universalia sunt in rebus)” . 3 Cf. Ibid.: “No século XII, Roscelinus esboçou uma primeira reação antirrealista, ao declarar os universais um mero sopro vocal” . 4 Cf. ARM STRONG, D. M. Universais: a opinionated introduction. Boulder (CO): Westview Press, 1989, p. 53-57. 5 Cf. ARRUDA, J. M. Universais eparticulares. Op. cit., p. 240: "O nominalismo de classes apela para o conceito de classes ao invés do conceito de universais. Para um objeto qualquer, ser vermelho significa pertencer à ciasse das coisas vermelhas” . 6 Cf. ibidem, p. 241: “Dois objetos, x ey , são ditos semelhantes se ambos estão em relação de semelhança com um objeto z, que atua aqui como paradigma para a formação da classe dos objetos semelhantes”.

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A ontologia em debate no pensamento contemporflneo

próprio feixe de propriedades vinculadas somente pela coincidência no espaço-tempo: portanto, uma totalidade de propriedades copresentes. Há objeções muito sérias à teoria dos feixes na versão de Russell. Nessa proposta, os itens do feixe são propriedades universais. Se os feixes nada contêm além de universais, então não pode haver dois feixes exatamente semelhantes, pois a propriedade universal PI no feixe BI é, uma vez que universal, o mesmo item que que Pl no feixe B2 . Ex hypothesi, se os dois feixes contêm justamente todos e somente os itens exatamente numericamente idênticos, então, nesse caso, são o mesmo feixe, o que significa dizer que essa versão da teoria dos feixes faz da lei da Identidade dos Indiscemíveis uma verdade necessária, o que ela não é. Há inúmeros contraexemplos. Para Campbell, as dificuldades encontradas com a teoria dos feixes nos dão indicações preciosas a respeito do caminho a seguir na busca de uma alternativa à ontologia da tradição, ou seja, de uma ontologia monocategorial: devemos partir de uma categoria que não seja nenhu­ ma das duas usadas na ontologia tradicional - concreto particular ou o universal abstrato -, mas de uma categoria a partir da qual ambas possam ser formadas. 3.3 A ON TO LO GIA ALTERNATIVA MONOCATEGORIAL: TEORIA DOS TROPOS Essa categoria buscada se tem denominado, desde Williams,7jus­ tamente tropos,8de tal modo que a teoria dos tropos9emerge como uma teoria que manifesta a pretensão, antes de tudo, de articular uma teoria da constituição ontológica do universo. Sua tese fundamental é justamente a de que o universo é um universo de tropos,10 os tropos são não só os 7 Cf. WILLIAMS, D. C. “O r the Elements of Being” . Review of Metaphysics, 7, 1953, p. 3-18 (republicado em: INW AGEN, P.; ZIMMERMANN, D". W. (orgs.). Metaphysics: the hig question. Oxford: Blackwell, 1998). Campbell considera a obra de Williams sua inspiração principal. Cf. CAM PBELL, K. Abstract Particulars. Op, cit., p. XI. 8 Sobre o histórico dessa teoria, cf. MERTZ, D. W. Moderate Realism and Its Logic. New Haven/Londres: Yale University Press, 1996. A respeito das razões da ignorância da filosofia dos tropos na filosofia contemporânea, cf. K Ü N G , G. Ontology and the Logisitic Analysis of Language. Dordrecht: Reidel, 1967. 9Entre os teóricos que propõem os tropos, houve um debate a respeito de sua natureza, e havia duas posições básicas: os tropos são tipos de propriedades ou são tipos de substancias. N o contexto desse debate, Chrudzimski defende a tese de que, de modo geral, os tropos foram introduzidos de modo ambíguo. Cf. CHRUDZIMSKI, A. “Two Concepts of Trope” . Grazer Philosophische Studien, 64,2002, p. 137-155. 10 Cf. IMAGUIRE, G. A Substância e suas alternativas. Op. cit., p. 283: “A teoria dos feixes tem, assim, um fundamento epistêmico muito forte: já que não se pode conhecer uma substância diretamente, mas sempre e necessariamente através das suas propriedades, então não faz sentido falar de uma substância independente das suas propriedades”.

A ontologia monocategorial: a teoria dos tropos de K. Campbell

elementos fundamentais do ser, mas a única categoria ontológica,11o que faz com que uma coisa individual concreta seja compreendida como um feixe de tropos, o conjunto de seus atributos.12O universal, por sua vez, é entendido como um feixe de tropos, enfeixados através de uma relação de localização e de similaridade. Isso significa afirmar que todos os tipos de entidade podem ser pensados com a categoria dos tropos, portanto não há tarefa na ontologia que não possa ser enfrentada com os recursos de uma teoria dos tropos. Assim, propriedades e relações aparentemente compartilhadas podem ser explicadas em termos de tropos exatamente semelhantes, e os objetos complexos do mundo em termos de tropos copresentes espaço-temporalmente. Dessa forma, coelhos e mesas são feixes de tropos.13 Essa proposta ontológica alternativa14se articula sem uma conside­ ração da linguagem: em sua elaboração não se apresenta uma tematização da semântica que aqui é pressuposta, e é justamente isso que Puntel vai considerar a deficiência básica da teoria dos tropos.15Nesse sentido, afir­ ma Campbell, a categoria de tropos não é uma parte de qualquer teoria semântica,16mas é uma categoria ontológica. Moltmann dá um primeiro passo na direção da introdução da questão da relação entre semântica e teoria dos tropos, afirmando que a linguagem natural contém certos fenômenos cujo tratamento semântico se exprime da melhor maneira através de uma ontologia que contém tropos.17

11 A respeito de como Williams introduziu a categoria dos tropos enquanto alternativa à ontologia duocategoriaí da tradição, cf. IMAGUIRE, G. A Substância e suas alternativas. Op. cit., p. 285 e ss. 12 Simons vê uma antecipação do conceito de tropos no conceito de acidentes individuais de Aristóteles, e da escolástica medieval. Cf. SIMONS, P. “Particular in Particular Clothing: Three Trope Theories of Substance” . Philosophy and Phenomenological Research, vol. LIV, n. 3, 1994, p. 554. Cf. também: A N G ELELLI, I. Studies on Gottloh Frege and Traditional Philosophy. Nova York: Humanities Press, 1967. 13 Cf. DALY, C. Tropes. Op. cit., p. 254. 14E. Luft também propõe uma reformulação da ontologia no sentido do que ele denomina uma “deflação” da ontologia da tradição, isto é, de uma redução de complexidade. Cf. LUFT, E. “ Ontologia deflacionária e ética objetiva” . In: LUFT, E.; CIRNE-LIM A, C. (orgs.). Ideia e Movimento. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012, p. 331: “ Esse processo de redução radical de complexidade da teoria dos primeiros princípios é uma deflação, e a ontologia constituída a partir desse processo de redução é uma ontologia deflacionária”. 15 Cf. PUNTEL, L. B. Estrutura e Ser, Um quadro referencial teórico para uma filosofia sistemática. São Leopoldo: Ed. Unisinos, 2008, p. 255: “ Essa dificuldade provém de uma circunstância que se pode designar de deficiência sistemática da teoria dos tropos: embora a teoria esteja baseada numa intuição valiosa, falta-lhe totalmente a semântica que seria necessária para articular adequadamente essa intuição” . 16 Cf. CAM PBELL, K. Abstract Particulars. Op. cit., p. 25. 17 Cf. MOLTM ANN, F. “Degree Structure as Trope Structure: A Trope-Based Analysis of Positive and Comparative Adjectives”. Linguistics and Philosophy, 32,2009, p. 51 -94; “Tro­ pes Bare Demonstratives and Apparent Statements of Identity” . Nous, 47, 2013, p. 346-270.

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A ontologia em debate no pensamento contemporâneo

Para Campbell, podemos partir de um exemplo: ervilhas numa vagem. São todas ervilhas, mas variam na cor, na forma. Consideremos os casos de vagem: o verde dessa ervilha, a forma daquela outra. São casos de espécies ou instâncias de propriedades,18o que Williams chama de "particulares abstratos”. São abstratos somente no sentido de que ocorrem em conjunção com muitas outras instâncias (todos os outros traços da ervilha); contudo, podem ser captadas pelo espírito por um processo de seleção de outras qualidades de que temos consciência. Tal ato de ignorância seletiva é o que aqui constitui a abstração: temos no espírito um item que ocorre em companhia de outros. No entanto, trata-se de estruturas ontológicas19e não de produtos do espírito que não implicam algo indefinido ou puramente teórico, algo não espaço-temporal. “Abstrato” aqui se contrapõe a “concreto”: Campbell descreve uma entidade concreta como sendo a totalidade dos seres que podem ser encontrados em que estão nossas cores, nossas temperaturas etc. - ou seja, as qualidades que estão em conjunção. Por outro lado, os particulares abstratos são “particulares” porque possuem uma habitação local: existem como indivíduos num tempo e espaço únicos; a cor que pertence a essa vagem é a cor dessa vagem e não de outra. Ao contrário da qualidade "tipo”, ela não pode ser instanciada simultaneamente em diferentes situações. Campbell considera que a intuição oferecida por Stout20e Williams, que nos liberta da concepção da tradição, é precisamente a tese de que, em contraposição tanto ao realismo como ao nominalismo, propriedades podem ser particulares, de tal modo que a negação dos universais não precisa ser negação das propriedades. Dessa forma, o “particularismo” não tem de ser nominalista.21 Por essa razão, Simons considera os termos nominalismo e realismo ambíguos e prefere falar de particularismo e universalismo, uma vez que a característica que define os universais é precisamente que eles podem ser multiplamente exemplificados.22 Do ponto de vista da categoria que aqui se esboça, a grande no­ vidade diante da ontologia tradicional é que “particular abstrato” não

18 A respeito de diferentes padrões de propriedades, cf. CAM PBELL, K. Abstract Particulars. Op. cit., p. 81-95. 19 Cf. CAMPBELL, K. “Trope” . In: KIM, J.; SOSA, E. (orgs.). A Companion to Meta­ physics. Oxford: Blackwell, 2002, p. 500: “In contemporary Metaphysics a trope is not afigure of speech, but a particular case o f a quality or relation”. 20 Cf. STOUT, G. E “Are The Characteristics of Particular Things Universal or Particu­ lar?” . Proceedings of the Aristotelian Society, supplementary vol. III, 1923, p. 114-122. 21 Cf. CAM PBELL, K. Abstract Particulars. Op. cit., p. X I e XII. 22 Cf. SIMONS, P. Op. cit., p. 557.

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é uma categoria entre outras, mas a única categoria fundamental23 e imprescindível para a compreensão do universo. Williams a denomi­ nou de “tropos” e ele foi, para Campbell, o primeiro a propor que uma “ontologia completa” poderia ser construída a partir dos tropos como a categoria fundamental, de tal modo que as outras categorias seriam construídas a partir dela. É precisamente esse programa que Campbell pretende efetivar. Os tropos básicos de uma ontologia particularista abstrata são categorial e qualitativamente simples, ou seja, são categorialmente simples na medida em que, tendo-se abandonado a ontologia duocategoriaí, eles não podem ser pensados como a união de uma natureza universal e uma entidade que individua. Esses tropos podem ser múltiplos no que diz respeito a suas relações, e podem ser agrupados de acordo com regras de vários graus de rigor: cada gradação de verde é exatamente o que é. Tropos, então, como diz Daly,24 são propriedades particularizadas e relações. Eles não são nem universais nem substâncias, mas constituem um tipo distinto de entidade. Sendo aquela gradação, ela se assemelha tão rigorosamente a outros verdes que mesmo um olho treinado não pode distinguir, ainda que estejam próximos um do outro. Esses verdes, que se assemelham uns aos outros, constituem uma espécie natural, um processo que pode ser alargado para incluir, por exemplo, os verde-azuis ou verde-amarelos, porque semelhança é uma questão de grau. Por essa razão, tropos simples podem pertencer simultaneamente a uma pluralidade de espécies naturais. Isso pode ocorrer também quando não nos reportamos a tropos básicos, mas a complexos copresentes conjuntivamente - por exemplo, quando falamos de coelho. A pluralidade de dimensões forma a base para a classificação em “gêneros e espécies” sem que seja necessário introduzir universais. Um dos pontos básicos dos críticos da teoria dos tropos vai consistir na tentativa de demonstrar que, em primeiro lugar, a assunção de universais é imprescindível na ontologia através da tese de que sua não assunção desemboca num regresso ao infinito, como se mostra na teoria da semelhança.25 23 Cf. IMAGUIRE, G. A Substância e suas alternativas. Op. cit., p. 286: “ O inédito da teoria dos tropos é justamente isto: ela propõe que os tropos são as últimas unidades componentes de tudo o que existe no mundo, ou melhor, em qualquer mundo possível. Os tropos são os componentes fundamentais dos quais todas as outras categorias, que a tradição considerava elementares, são meramente derivadas”. 24 Cf. DALY, C. Tropes. Op. cit.,p. 253: “ Tosummarise, tropesareparticularisedproperties and relations. They are neither universais nor substances, but form a distinct type of entity". 25 Cf. K Ü N G , G. Ontology and the Logistic Analysis o f Language. Dordrecht: D. Riedel Publishing Company, 1967.

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Assim, no coração da ontologia dos tropos está a tese: os itens básicos, “o alfabeto do ser” na expressão de Williams, são casos de espécies. São entidades particulares, mas não particulares puros; cada um deles tem uma natureza simples, de tal modo que um tropo básico não é a união de elementos distintos, é uma natureza particularizada. As propriedades diferentes mutuamente independentes constituem nesse quadro teórico itens distintos, cada um tem sua natureza própria. Por sua vez, um objeto ordinário de nossa experiência, um concreto particular, é um grupo total de tropos copresentes.26 Tomemos o exemplo de um diamante* Um diamante é um feixe copresente de tropos, ou seja, de casos particulares de qualidades. Precisamente porque são particulares, não se põe aqui o problema do princípio da Identidade dos Indiscemíveis. Um segundo diamante é um feixe de particulares diferentes que se assemelham mais ou menos aos particulares do primeiro diamante, o que faz precisamente a diferença com a teoria dos feixes de Russell. Nesse contexto, Campbell enfrenta um problema que, segundo ele, foi sempre considerado na tradição com muita perplexidade: o da relação entre o determinável e seus determinados.27 O exemplo clássi­ co é o caso das cores: todas são cores, mas não espécies do gênero cor, uma vez que não podem ser distinguidas umas das outras em virtude de traços específicos distintos para cada cor adicional a seu traço genérico comum. Cores são propriedades simples; duas cores não concordam numa propriedade (sendo coloridas) e diferem noutra (sendo vermelho em oposição a ser azul). Par Campbell, uma solução geral para essa questão se baseia na tese da simplicidade dos determinados básicos. Um determinável é uma espécie natural com um padrão de semelhança mais ou menos frouxo do que seus determinados. É importante considerar que a maior parte das espécies naturais não é intrinsicamente determinável ou determinada, mas isso depende do contexto, o que significa dizer que a relação entre determinável e determinado é uma questão relativa. Dois princípios são aqui decisivos: 1) princípio da determinidade absoluta: para algo ser de uma espécie determinável ele tem de ser pelo menos de uma espécie própria; 2) princípio da incompatibilidade de 26 Cf. CAMPBELL, K. Abstract Particulars. Op. cit., p. 21. Para Loux, a teoria dos feixes deve ser considerada em primeiro lugar como um modelo de análise dos particulares con­ cretos em contraposição ao modelo da teoria do substrato. Cf. L O U X , M. J. Metaphysics. A contemporary introduction. Londres/Nova York: Routledge, 2001, 3a ed., p. 101: “[...] an,d the bundle theory that construes the familiar objects as clusters of atributes standing in the relation of compresence, collocation, or co-occurrence” . 27 Cf. ibidem, p. 83 e ss.

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determinados: determinados do mesmo degrau se excluem um ao outro assim que cada item determinado é no máximo uma espécie determinada do degrau dado. Isso significa dizer que nada pode ser vermelho e azul, mas pode ser ultramarino e azul. Numa palavra, a incompatibilidade surge no mesmo nível de determinação, mas não entre os níveis. Determináveis são espécies naturais, cujos membros se assemelham todos uns aos outros num certo degrau. Determinados, que estão sob um determinável, constituem novas espécies distintas umas das outras de acordo com a exigência de semelhança com um grau mais alto de rigor. Outra grande vantagem dessa teoria é que aqui não há a necessidade de invocar nenhuma substância metafísica contrariando a visão de Aris­ tóteles para quem só é possível pensar qualidades enquanto inerem numa substância que lhes sirva de suporte. A questão ontológica central aqui é saber se a natureza ou as propriedades das coisas são essencialmente entidades dependentes ou secundárias como pensava a ontologia clássica. A nova ontologia elimina o quadro teórico da ontologia tradicional e pensa os tropos como a entidade básica que ocorre normalmente em grupos copresentes não por uma necessidade metafísica, mas como uma questão de fato. Esses grupos copresentes constituem os particulares concretos da vida, que são na realidade entidades complexas derivadas. Assim, um objeto da vida quotidiana, um particular concreto, é um grupo total de tropos copresentes. A teoria dos tropos para Campbell é plenamente capaz de integrar em si mesma outras categorias utilizadas em considerações ontológicas. A primeira delas é a categoria de "eventos” que são sempre particulares, qualitativos ou relacionais e ocorrem em lugares e tempos específicos. Eles implicam uma ocorrência que resulta em mudança de propriedade em um ou mais objetos. Por essa razão muitos ontólogos acham que ela exige a categoria de substância para explicar sua particularidade e suas propriedades. Para Campbell, não há dificuldade de integrar essa categoria ao esquema dos tropos, já que os tropos são eles mesmos particulares - uma sucessão de tropos num lugar será ela mesma uma ocasião particular. E como os tropos têm natureza, a sucessão de tropos implica aquela transformação de qualidade ou relação em que consiste um evento. Por sua vez, cadeias de eventos são “processos”. Uma segunda categoria é a de "causa”. Ora, a relação causai é sempre uma relação de tropos.28 O agente causai é um estado, ou um evento, um processo sempre particular e qualitativo. A acomodação 28 Cf. EH RIN G, D. Causation & Persistence: A Theory o f Ca.usa.tion. Oxford: Oxford University Press, 1997. GA RCIA-ENCINAS, M. J. “Tropes for Causation” . Metaphysica., 10,2009, p. 157-174.

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da ontologia das causas ao esquema dos tropos acontece também sem problemas, pois o que é requerido é que se combine particularidade com um caráter qualitativo verdadeiramente restrito já que causas são sempre características e cada causa particular é uma característica par­ ticular ou uma constelação de características.29 Por essas razões, para a maioria dos teóricos dos tropos, eles têm um papel muito importante a desempenhar no processo de causação,30 embora a elaboração dessa tese esteja se tornando mais rara na literatura. 3.4 O PROBLEM A DOS UNIVERSAIS Esse é para Campbell o título tradicional para um dos problemas clássicos da filosofia. A filosofia dos tropos é decididamente particularista e, enquanto tal, assume a tese de Locke de que tudo o que existe é particular, todas as entidades são necessariamente particulares, e dessa forma nega a tese de que há elementos comuns, os universais, presentes em todos os membros de um grupo de particulares semelhantes. Muitas vezes interpreta-se essa tese como essencialmente vinculada a outra que diz que não há entidades abstratas (não localizáveis no espaço-tempo), mas só concretas. No entanto, as duas características não são plenamente equivalentes. Há posições nominalistas que admitem objetos ditos abs­ tratos como números e classes.31 Para alguns autores, segundo Campbell, toda negação de universais é nominalismo, o que significa não levar em consideração uma distinção crucial: a posição nominalista ordinária só admite a existência de parti­ culares e conjuntos, e ao negar os universais, nega também as proprie­ dades. Ora, a filosofia dos tropos afirma enfaticamente a existência de propriedades (qualidades e relações) e mais radicalmente ainda afirma que só há propriedades (ou propriedades e espaço-tempo). Só que essas propriedades não são universais, isto é, não são entidades em princípio repetíveis, exemplificáveis ou predicáveis de algo como, por exemplo, “ a propriedade de ser sábio e o atributo da brancura”.32 3.4.1 O papel dos universais numa ontologia Que questão fundamental levou à introdução dos universais? Um fato geral no mundo: há semelhanças entre as realidades do mundo, há 29 Cf. CAM PBELL, K. Abstract Particulars. Op. cit., p. 113 e ss. 30 Cf. HEIL, J. From an Ontological Point ofView. Oxford: Clarendon Press, 1967. 31 Cf. B R A N Q U IN H O , J. “Universal” . In: B R A N Q U IN H O , J.; M U R CH O , D.; GOM ES, N. S. (orgs.). Enciclopédia de termos lógico-filosóficos. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 781. 32 Ibid.

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recorrência de caracteres nas entidades. O mundo não é um caos, um todo indiferenciado, mas um cosmos diverso e ordenado que apresenta padrões de recorrência. Como explicar esse fato? Os universais foram propostos como solução para essa questão, ou seja, foram propostos como aquele elemento na estrutura ontológica da realidade capaz de explicar as semelhanças entre as entidades da realidade: há semelhança em virtude da presença em todas elas do mesmo item, uma propriedade universal. Essa problemática foi pensada, portanto, em primeiro lugar como uma questão estritamente ontológica, e só num segundo momento foi pensada uma questão semântica em correspondência com a questão ontológica básica. Dessa forma, o que levou propriamente à problemática dos universais foi o “fenômeno da semelhança”. Campbell considera importante, nesse contexto, distinguir duas questões: a) tomamos um objeto vermelho e perguntamos: o que faz com que esse objeto seja vermelho? É a presença nele do universal "vermelhidade”; b) tomamos dois objetos vermelhos e perguntamos: o que constitui esses dois objetos como vermelhos? A resposta é paralela à primeira: a presença em ambos do universal "vermelhidade”. Para ele é fundamental que distingamos claramente as duas questões. A primeira questão é em si muito simples, pois a introdução de universais aqui para solucionar o problema é inteiramente gratuita, a não ser que se suponha que a natureza de um item jamais pode ser particular, o que é precisamente o ponto não demonstrado da teoria. A segunda questão, contudo, parece conduzir necessariamente à afirmação de uni­ versais: todas as coisas vermelhas têm de possuir algo em comum, elas simplesmente participam de uma natureza comum que reconhecemos na medida em que temos um termo multiplamente aplicável a todas elas: o termo vermelho. Cada uma delas é plena e completamente vermelha. Dessa forma, a “vermelhidade” tem de ser um universal instanciável multiplamente,33 de tal forma que a semelhança se explica pelo fato de os diferentes particulares exemplificarem a mesma propriedade, o mesmo universal. No entanto, para Campbell, na realidade não há necessidade da introdução de universais para solucionar essa questão, pois precisamos é de tropos que se assemelhem uns aos outros. O que faz com que dois objetos sejam vermelhos? Sua semelhança os faz tropos da mesma es­ 33 Trata-se, para Branquinho, do argumento conhecido como “argumento do um-em-muitos” . Cf. BRAN Q U IN H O , J. Universal. Op. c i t p. 783-784: os universais, como entidades essencialmente repetíveis ou predicáveis de um grande número de particulares, são indispensáveis para explicar as semelhanças ou identidades qualitativas que se estabelecem entre particulares numericamente distintos” .

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pécie. É sua natureza que os faz vermelhos e não azuis; cada um deles é um caso de vermelho. Numa palavra, o que se oferece aqui, em lugar de uma teoria de universais, é uma “teoria da semelhança”, uma explicação em termos de particulares semelhantes. Nessa perspectiva, a semelhança é inteiramente objetiva. O mundo é cheio de tropos que formam famílias, as espécies naturais. Essa teoria tem de enfrentar as questões de onde ela partiu. Assim, à questão “qual é natureza comum em duas coisas semelhantes?” ela tem de responder: elas não têm nenhuma natureza comum, somente naturezas semelhantes. À questão “o que faz com que duas coisas participem de uma propriedade comum?” ela tem de responder: não há tal participação, exceto o ser membro de uma espécie natural, que não é um universal, mas uma coleção de tropos. À questão “há algo que é o mesmo em dois objetos?” a resposta tem de ser: não há item numericamente idêntico presente em ambos. É a similaridade entre os objetos que cria a ilusão de um traço comum. Para Campbell, um problema fundamen­ tal subjacente às objeções feitas à teoria da semelhança é que se parte de concretos particulares, ou seja, de objetos complexos constituídos por muitas propriedades diferentes. O que gera as dificuldades são as muitas propriedades diferentes. Se os termos da relação de semelhança não são os objetos ordinários, mas os tropos, então as dificuldades desaparecem ~34 uma solução rejeitada pelos críticos da teoria dos tropos. 3.4.2 A análise da predicação Defende-se a tese de que um dos méritos básicos da teoria da substância/propriedade universal é que ela é capaz de fornecer uma explicação da predicação isenta de dificuldades. Tomando as sentenças com a estrutura sujeito/predicado, temos, então, que os termos do sujeito se referem às substâncias (ou quase substâncias), enquanto os termos do predicado se referem às qualidades universais ou relações, e as sentenças afirmam que a propriedade referida pelo predicado inere às substâncias referidas pelo sujeito. Dessa forma, a predicação é um processo em que a mesma coisa é atribuída a diferentes sujeitos de tal modo que uma sentença é verdadeira se o particular denotado pe­ lo sujeito exemplifica o universal monádico denotado pelo predi­

34 Veja, sobretudo, seu confronto com a objeção de Carnap e Goodmann. Cf. CAMPBELL, K. Abstract Partictilars. Op. cit., p. 32-34.

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cado.35 Portanto, correspondência plena entre semântica e onto­ logia.36 Quando se abandona a ontologia duocategoriaí em favor de uma ontologia dos tropos, essa semântica para a predicação perde sua validade. Os casos ordinários envolvem nosso vocabulário ordinário de termos singulares definidos: nomes próprios, descrições definidas e demonstrativas e pronomes em remissão recíproca a termos singula­ res definidos. Esses termos se referem a complexos de tropos, cole­ ções indefinidamente múltiplas de tropos copresentes, todos causalmente independentes uns dos outros, Predicações ordinárias quanti­ ficadas terão alcances variáveis a respeito dos complexos de tropos com predicados com extensões que são elas mesmas complexos de tropos. Tropos ocorrem usualmente em complexos de modo que temos de ser capazes de dizer duas coisas: que um certo tropo ocorre (uma espécie básica de predicação), e que um certo complexo contém um tropo de uma certa espécie (a forma mais usual). Aqui desaparece completamente o problema clássico, já posto por Platão: o "terceiro homem”, que gera o regresso ao infinito; o homem Sócrates (a substân­ cia) e a humanidade (a propriedade universal) são portadores de uma semelhança, o que exige um segundo universal (o terceiro homem) para explicar a semelhança. A filosofia dos tropos não tem esse problema, pois o particularismo abstrato insiste em que não há nada em comum, apesar da semelhança entre os tropos gerar a ilusão de identidade. Os tropos são casos de espécies, os predicados se aplicam a ambos: aos tropos tomados singularmente e aos complexos em que os tropos são elementos e constituição. 3.5 A TEORIA DOS TROPOS E N Q U A N T O TEORIA DOS ENTES: AS O N TO LO G IA S REGIO N AIS Por ser a filosofia dos tropos em primeiro lugar uma explicação dos itens fundamentais do universo (uma ontologia geral), ela se põe em condição de pensar qualquer entidade que encontramos no cosmos. A partir daqui, podemos articular a compreensão de todas as entidades 35 Cf. ARM STRONG, D. M. Universais. Boulder: Westview Press, 1989. 36Cf. B R A N Q U IN H O J. Universal Op. cit., p. 782:" A postulação de universais é julgada necessária com base na ideia de que uma especificação correta das condições de verdade de uma predicação monádica - como ‘Teeteto é humilde’, por exemplo envolve uma referência aos dois gêneros de objetos (particulares e também universais), bem como a uma relação especial que se verifica ou não entre eles, a relação de exemplificação ou predicação”.

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constitutivas do universo, ou seja, articular uma teoria dos entes, o que a tradição, desde Wolff, denominou de metafísica especial, e a partir de Husserl se denomina de ontologia regional. Tomemos, a título de ilustração, o mundo individual e social. 3.5.1 O mundo do indivíduo 3.5.1.1 O materialismo com os tropos A “filosofia da matéria” nos encoraja, para Campbell, a aceitar uma visão holística do espaço, do tempo e da matéria, o que significa pensar o cosmos como uma coleção de alguns poucos campos de tropos, todos interconectados e coextensivos com todos os outros, cada um agindo sobre os outros para gerar as transformações ao longo do tempo que compõem a história do mundo. Essa postura torna possível tratar tropos derivados, locais, que constituem sub-regiões de nossos campos básicos. Dessa forma, nada nos impede, na filosofia da matéria, de articular nossa compreensão de com­ plicações físicas locais como, por exemplo, as inúmeras complexidades do cérebro humano. Mas se pode ignorar tudo isso e passar diretamente para o estudo dos fenômenos químicos e elétricos que constituem o nível em que estão situados os processos e os padrões significativos de nossa vida mental. Portanto, cérebros e seus processos elétrico-químicos constituem sub-regiões complexas de campos. O grande debate a res­ peito da adequação do fisicalismo enquanto filosofia da mente tem sua continuidade no quadro teórico dos tropos. Uma primeira afirmação nesse contexto é que uma filosofia dos tropos pode ser materialista. Tropos locais, aparentemente mentais, podem ser submetidos a uma redução estrita - como, por exemplo, no caso da análise das disposições comportamentais de ser um cozinhei­ ro. Essas explicações reducionistas que identificam um estado mental como um fenômeno “Gestalt”, tal como ter um sorriso feliz ou ter um estilo ousado e agressivo no xadrez, podem ser tomadas no contexto de uma teoria dos tropos. Tais tratamentos, mesmo que não estritamente reducionistas, manifestam a pretensão de que o mental sobrevêm ao físico. Campbell defende a tese de que tropos locais mentais, explícita ou implicitamente, sobrevêm aos complexos locais de sub-regiões de campos de tropos. 3.5.2 Dualismo de tropos Embora a postura do campo de tropos admita o materialismo como teoria metafísica, ela, contudo, não o exige. A filosofia dos particulares abstratos é uma ontologia, uma filosofia primeira, mas

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deve deixar o quanto possível em aberto questões aposteriori- como, por exemplo, se o mundo contém ou não realidades não físicas. O debate entre fisicalismo e dualismo pertence ao que Williams deno­ mina “cosmologia especulativa”,37 que trata de questões que impli­ cam considerações adicionais ao que o particularismo abstrato pode dizer. Numa palavra, não há, para Campbell, problema algum para o particularismo abstrato em admitir dois tipos básicos distintos de tro­ pos,' portanto, ele pode ser fisicalista ou dualista. Há dois caminhos, já conhecidos na tradição, de ser dualista. O primeiro programa, que tem sua raiz em Espinosa, consiste em apresentar os fenômenos mentais não físicos do cosmos como emergindo ou derivando de uma variação local especial do tropo consciente e seu comércio com os campos físi­ cos locais. O segundo caminho consiste em aceitar o tropo consciente como um novo tipo de tropo básico restrito a umas poucas sub-regiões no espaço-tempo, que prova coincidir com convoluções especialmente complexas - uma posição que tem seus problemas, como é também o caso da primeira posição. Esses problemas são menos graves numa filosofia dos tropos, porque, mesmo que eles sejam não físicos, eles não precisam de uma substância completamente nova para ser seu portador. Nesse sentido, a filosofia dos tropos é mais receptiva ao dualismo do que a maior parte das ontologias implícitas no debate do materialismo e, de modo espe­ cial, menos hostil ao dualismo do que as filosofias da substância e da matéria. Para a filosofia dos tropos, o mundo é feito de tropos, separa­ dos, independentes e meramente enfeixados em particulares concretos estáveis (mesas, pranchas e moléculas) e tipos recorrentes de matéria. Essa visão não é favorável à imagem de um universo fechado de matéria em que suas partes podem afetar ou ser afetadas somente por outras partes dele mesmo. Não há, na filosofia dos tropos, um imperativo metafísico que exija que nenhum pedaço de matéria tenha um caráter não comparti­ lhado. Não há proibições de relações causais para tropos fora do círculo material. Antes de todas as experiências há poucas restrições a serem postas a respeito de que tipos de processos causais podem existir, como também ela não dá espaço à ideia de que tropos emergentes não possam ter impacto no curso do cosmos.

37 Williams divide a metafísica em duas partes: a) ontologia analítica, que examina os traços necessários de tudo o que é; b) cosmologia especulativa, que levanta a pergunta sobre que tipos de coisas há. Cf. WILLIAMS, D. C. The elements o f being. Op. cit.

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3.5.3 O ser individual No contexto do debate tradicional da questão da relação corpo/ mente, o dualismo dos tropos é mais próximo do “dualismo dos atri­ butos”, que reconhece tanto atributos físicos como não físicos sem a postulação de uma substância singular, prévia e subjacente. O particula­ rismo abstrato decompõe as entidades familiares - os objetos naturais, os artefatos e as próprias pessoas - em tropos, e há uma pressão poderosa para continuar essa decomposição na dimensão do tempo. Isso gera uma visão dos objetos familiares ordinários, inclusive das pessoas, como sendo seqüências de feixes de ocorrências de características. Isso não concede aos indivíduos uma unidade realmente mais profunda do que é concedido, no pensamento ordinário, a uma comissão ou a qualquer outra coleção agrupada. Tal concepção atomística do indivíduo constitui uma versão ex­ trema da conhecida visão dos feixes de Hume. Mas isso parece estar em desacordo com nossa autoconsciência, cujos pronunciamentos parecem implicar um conhecimento de nossa identidade de um dia para o outro. Para Hume essa identidade não é manifesta à introspecção, e nisso, para Campbell, ele tinha razão. Mesmo a unidade do indivíduo de cada vez - nunca da mente através do tempo - é mais frágil e mais incompleta do que a autoconsciência considera. No entanto, há algum sentido em que é correto dizer que somos uma pessoa, e essa mesma pessoa permanece através de extensos períodos. Uma unidade efetiva persistente do indivíduo não constitui apenas um aspecto da realidade a ser reconhecido num sistema metafísico sadio, mas constitui também um aspecto essencial da ética. A vida moral - em suas aspirações de desenvolver a virtude e perseguir o bem, e em seu reconhecimento da responsabilidade com relação às ações executadas no passado e planejadas para o futuro - só é inteligível na base de nossa identidade individual continuada. Essas são as razões (apresentadas no nível da psicologia e da ética) que justificam, para Campbell, evitar a ontologia russelliana atomística do evento em favor de uma visão holística dos campos do espaço-tempo que podem ser aceitos como tropos singulares persistentes. Complexos estáveis de tais tropos, vinculados uns aos outros por suas próprias liga­ ções de rede causai interna, constituirão entidades complexas, estáveis, persistentes. Tais realidades são o que exatamente é exigido ao indivíduo unitário, persistente, da psicologia e da ética. 3.5.4 O mundo social As pessoas, sendo feixes de tropos, são, nesse sentido, entidades dependentes e derivadas. Quando consideramos a sociedade humana,

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encontramos um nível mais avançado de dependência: a maior parte das entidades sociais são feixes mais frouxos de espécies de tropos que se originam de relações complexas entre as pessoas. O exemplo mais claro disso são as instituições. Por exemplo, uma família: um grupo associado por padrões de origem e atividade partilhadas, que em socie­ dades estabelecidas constitui também um feixe de pessoas situadas em padrões de obrigações mútuas, de expectativas especiais, comandadas por convenções, e de distintos conjuntos de relações legais uma com outra e com outras estruturas sociais. No caso de instituições mais formais, mais artificiais, podemos citar como exemplo um empreendimento comercial ou uma igreja. Aqui há não somente padrões complexos de características que distinguem seus membros de outros externos, mas também uma es­ trutura de papéis - como, por exemplo, diretor de comercialização -, que podem ser realizados por diferentes pessoas em rodízio para dar à instituição uma espécie de realidade independente e contribuir para sua indestrutibilidade potencial. Há aqui entidades em diferentes ní­ veis: pessoas individuais, grupos particulares, médios, mais ou menos organizados em forma institucional, como há também estruturas sociais oniabrangentes, como as estruturas econômicas ou estatais. No entanto, a complexidade social da vida humana não se reduz a papéis e estruturas. Há também muitas formas de comportamento, de sensações, de consciência que só emergem em contextos sociais. Além disso, há muitos artefatos sociais que não são nem grupos organizados de pessoas nem complexos de comportamento. Tudo isso é pensável com a categoria dos tropos de tal modo que se manifeste sua unidade e iden­ tidade para poderem ser descritos e reconhecidos enquanto complexos relativamente estáveis no mundo. A filosofia dos tropos defende que não somente feixes manifestos como galáxias, mas também particulares naturais familiares como gatos, cachorros, florestas e pessoas possuem aquele tipo de feixe de unidade e identidade. Ora, entidades sociais são feixes da mesma forma: elas não possuem essência identificável, nem um cerne de constituintes indispensáveis sob o qual radica sua existência e identidade. Não se faz necessário, para pensá-las, apelar para um substrato, de tal modo que podemos afirmar que o mundo social é um mundo sem substâncias. 3.5.4.1 Fatos sociais e aspectos da vida Uma característica fundamental dos fatos sociais é que, por exem­ plo, um papel social é apenas um aspecto da vida da pessoa. Pessoas que são juizes de paz são muito mais do que isso. É somente em sua capacidade enquanto juizes de paz, ou em virtude de serem juizes de

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paz, ou enquanto juizes de paz, que elas podem fazer declarações legais. Precisamos isolar esse aspecto dos outros e considerá-lo como uma parte independente na vida social. Da mesma forma, a administração da justiça exige que ponhamos em evidência as características particulares separadas das pessoas. Assim, no caso do delito de dirigir veículo sem habilitação, a equidade, antes da lei, exige que a única questão relevante aqui seja se a pessoa é ou não devidamente habilitada, antes de serem consideradas outras caraterísticas como raça, sexo, classe etc. Que os fenômenos sociais sejam, em alguns sentidos, importantes, dependentes da existência de pessoas com características e relações apropriadas, não é, certamente, controverso. No entanto, as instituições sociais têm uma vida própria e não são redutíveis à existência ou à atividade de algumas pessoas específicas. Mas, é claro, se não houvesse pessoas não haveria instituições. Uma questão muito mais controversa é se os fenômenos sociais representam realidades emergentes novas nem redutíveis nem sobrevenientes a fatos concernentes a pessoas individuais. Assim, os atos de um caixa de banco são o que são em virtude da construção posta neles pela generalidade das pessoas na sociedade que possui banco, e essa significação nem é produto de indivíduos identificáveis nem é alterável por pessoas, exceto enquanto agem como uma estrutura social - por exemplo, estatuindo uma lei que torna inválida a moeda corrente. Aqui se põe um desafio sério à teoria dos tropos, pois se trata de saber se eles são realmente fundamentais, não derivados, ou se o campo social de fato resiste a uma análise de tropos de qualquer tipo. Se há algumas características sociais realmente emergentes, elas nunca serão ocorrências particulares de características que dizem respeito a pessoas, mas não são sobrevenientes à biologia ou à psicologia individual dessas pessoas. Tropos sociais emergentes serão, muito provavelmente, altamen­ te relacionais em seu caráter, uma vez que o que constitui a essência do campo social é a interação de muitas pessoas, organizada e estruturada de muitas formas. 3.5A.2 A questão causai Pelo menos desde o tempo de Platão, o poder é reconhecido como a marca do ser. Ora, a questão anteriormente tratada nos conduz à questão do papel causai independente do social. À primeira vista, parece tranqüilo que seja assim. Os escritos de história e sociologia, nas discussões sobre mudança e desenvolvimento, têm a ver com grupos e movimentos, com seu envolvimento em mudanças políticas, em classes e igrejas, e também com “forças sociais” impessoais, com desenvolvimentos econômicos e tecnológicos - como a elevação das taxas de juros ou a introdução

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de computadores - que ocorrem por caminhos não conscientemente planejados, previstos ou mesmo desejados por indivíduos ou grupos. Tais forças são descritas como efetivando a evolução de toda a sociedade num caminho autônomo, governado por leis. Que nenhuma dessas características é conclusiva pode, para Camp­ bell, ser visto a partir da consideração do capital e da troca de moedas. O que fazem os mercados, como eles mudam, são questões claramente inteligíveis. Os preços representam vendas pactuadas e, o que é funda­ mental para Campbell, todo fato a respeito do mercado deriva direta e completamente das opiniões, decisões e ações de pessoas individuais. Dessa forma, todos concordam que o mercado não possui um poder causai independente: mercados e preços nada podem fazer por si mesmos. E uma tese muito plausível que os mercados possam funcionar como modelos de toda a vida social. Uma filosofia dos tropos pode proporcionar uma atitude tranqüila e verdadeiramente empirista a respeito da questão da emergência. Como não é exigido nenhum substrato para os caracteres emergentes, não há em princípio objeção ontológica aos caracteres holísticos emergentes no campo social ou em qualquer outro. A pergunta aqui é simplesmente: há alguns fenômenos no campo social que justamente não podem ser produzidos enquanto formas sobrevenientes na interação de crenças individuais, esperanças, propósitos, desejos, preferências, hábitos, vícios etc.? Para Campbell a resposta, por enquanto, é não. O mundo social, na realidade, é uma imensa nuvem de tropos holísticos entrelaçados sobrevenientes. Esses tropos dependem tipicamente de crenças, enten­ dimentos e valores das pessoas envolvidas. 3.6 ALGUM AS O BJEÇÕ ES GERAIS À TEORIA DOS TROPOS 3.6.1O problema da espaço-temporalídade Uma primeira objeção,38na interpretação de Campbell, decorre da própria concepção do que se entende por tropo como categoria ontológi­ ca fundamental: os tropos são particulares, e é precisamente por isso que eles se distinguem das propriedades universais como “ vermelhidade ”, por exemplo. Cada um é diferente do outro, embora possam ser mais ou menos semelhantes entre si. A particularidade aqui foi introduzida em referência a um lugar no espaço-tempo. Como podem dois itens exata­ mente semelhantes - por exemplo, dois casos de vermelho - ser dois e 38 Cf. CAM PBELL, K. Abstract Particulars. Op. cit., p. 53-54.

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não um? Estando em diferentes lugares ao mesmo tempo ou um cessando de ser no tempo anterior ao tempo em que o outro vem a ser. Os tropos, portanto, têm sempre uma localização determinada, um lugar singular no espaço-tempo. Isso os faz contrapostos aos universais que podem ao mesmo tempo estar completamente presentes em inúmeros lugares. A questão que se põe aqui é a seguinte: se as entidades básicas são todas tropos, se os tropos são todos particulares, e se os particulares são todos localizados, isso não implica necessariamente uma concep­ ção sobre a estrutura última do mundo em que é impossível pensar em entes não-espaço-temporais? Com isso, estaríam sendo eliminados da ontologia, além de divindades, espíritos e anjos, as formas platônicas, as ideias de Berkeley, as unidades kantianas da apercepção, e talvez também conjuntos e números. Mas algumas percepções não são localizadas - por exemplo, sons e sabores, as notas num acorde de piano, sugere Moreland. E aceitável a posição que elimina qualquer entidade não espaçotemporal mesmo que filósofos fisicalistas estejam aqui muito à vontade? Os defensores de entidades não espaço-temporais coerentemente não estariam dispostos a aceitar uma teoria da particularidade que produz esse resultado para eles inaceitável, pelo menos até que se demonstre a impossibilidade de tais entidades. Numa filosofia da possibilidade, poder-se-ia perseguir um programa de pesquisa em que um princípio guia seria a ideia de que a espaço-temporalidade seria um a posteriori essencial de todo ser particular. Nesse caso, no sentido de Kripke, a espaço-temporalidade seria uma necessidade de tal modo que ela seria uma característica de todo ser particular possível. Essa posição, porém, para Campbell, não derivaria do próprio conteúdo conceituai da noção de particularidade, mas do que se tenha determinado como sendo a melhor teoria da possibilidade. Se ou não a possibilidade metafísica é mais estreita do que o teoricamente possível nessa perspectiva, poderíamos, pelo menos em princípio, admitir a particularidade enquanto uma categoria não alicerçada na localização espaço-temporal. Como poderia, então, uma teoria dos tropos acomodar uma particularidade não espaço-temporal? 3.6.2 Conceitos estendidos de dimensionalidade Nossos particulares concretos ordinários tetradimensionais se dis­ tinguem uns dos outros por cada um ocupar um conjunto diferente de intervalos, um em cada uma das quatro dimensões. Ao contrário, tropos não monopolizam seus lugares, mas uns dos outros, da mesma espécie, jamais se distinguem da mesma forma: cada tropo de uma espécie dada ocupa um conjunto de intervalos nas dimensões. Contudo, matematica­ mente não há barreira para considerar variedades de dimensionalidade

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estendida. Por exemplo, há geometria em infinitas dimensões; isso significa que “lugar numa dimensão” pode ser considerado como um conceito primariamente formal implicando ordem e estrutura. A ques­ tão que se põe aqui é: quão longe nos pode conduzir esse conceito de dimensionalidade estendida? Podemos inaugurar um processo de busca de análogos para nossas dimensões familiares, embora para Campbell não possamos saber até onde isso nos pode conduzir. 3.6.3 Particularidade pura ou limitada A questão que muitos consideram uma objeção à proposta teó­ rica dos tropos como categoria fundamental, que consideramos aqui, é a questão de particulares não localizados. Williams defende a tese de que não se pode excluir seres sobrenaturais ou não espaço-temporais unicamente a partir dos requisitos da particularidade, e tende a afirmar que ser um particular é um fato básico e não analisável a respeito de cada particular. Isso não depende de uma localização dimensional única, embora essa seja sua manifestação típica e familiar. Poder-se-ia denominar essa proposta de teoria da particularidade pura ou limitada, ainda que isso não implique a existência de particulares limitados no sentido usual. Os itens puramente particulares (espaço-temporais ou não) são tropos e, enquanto tais, não são puros, uma vez que cada um possui uma natureza - nos casos básicos, uma nature­ za singular. Nesse sentido, pode-se dizer que todos os tropos, por­ que particulares, são “vestidos”, embora essa metáfora seja estranha a uma teoria dos tropos, uma vez que sugere uma dualidade que cons­ titui precisamente o cerne da teoria ontológica que a teoria dos tropos rejeita. Essa tese de que todos os particulares são particulares e que cada um deles possui uma natureza não implica a tese de que um tropo é, antes de tudo, complexo, no sentido de afirmar que eles são constitu­ ídos pela união da particularidade e da propriedade que constitui sua natureza. A distinção aqui é formal, no sentido em que D. Scotus usou o termo: trata-se de uma questão do nível em que um item está sendo considerado. Assim, pode-se considerar um caso em vários níveis de abstração. A particularidade dos particulares é o que Campbell deno­ mina um “hiperabstrato”, incapaz de existência distinta e independente. Se particulares podem ser particulares justamente por serem par­ ticulares, e se isso não tem implicações a respeito de localização, então a possibilidade da realidade fora do espaço-tempo não constitui mais problema. Toda teoria implica alguns conceitos primitivos inanalisáveis: um conceito analisável é aquele que pode ser esclarecido através de

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conceitos mais primitivos e mais claros.39 Então, não pode ser motivo de reclamação que se escolha a particularidade para ser um deles. Para Campbell, aqueles que defendem uma concepção clara de divindades ou poderes particularizados, concepção essa nem espaço-temporal nem dimensional de outro modo, são quase obrigados a aceitar a particula­ ridade primitiva, pois não se conhece concepção de particularidade que traga mais luz à questão. 3.6.4 A paridade dos tropos com as substâncias A afirmação básica aqui é que substâncias particularizadas po­ dem explicar a particularidade de todos os tipos de ser - espaciais e não espaciais, temporais e não temporais, de localização única ou de localização em dimensões análogas, de particularidade primitiva ou de outros modos. A questão é, então: se as substâncias podem fazer isso, por que não os tropos? Na realidade, pode-se dizer que o caso da substância é facilmente compreensível porque a substância é especialista em particularidade, ela foi teoricamente introduzida para solucionar essa questão. Ora, os tropos também são particulares, mas não particulares puros. Seu papel é sempre duplo: ser naturezas particulares. Assim, se substâncias podem ser particulares não espaço-temporais, os tropos podem também. 3.6.5 Argumentos de Hochberg Hochberg parte das teses básicas da ontologia tradicional. Assim, para ele, o esquema sujeito/predicado, substância/propriedade, torna possível pensar com universais reais uma ligação não relacionai anômala, cuja melhor denominação é exemplificação, entre qualquer universal e seu portador. Nessa ótica, a ontologia realista reconhece três categorias fundamentais: particulares, universais e exemplificação. A teoria dos tropos dispensa esse trio e pensa o mundo com duas categorias: quali­ dades/instâncias e a vinculação universal de similaridade. Nessa ótica, ganharia o nominalismo moderado, em virtude da economia ôntica. Para Hochberg, a relação de similaridade da teoria dos tropos é um universal. Então, se os universais ordinários abrem o caminho para conjuntos de casos, como se defende nesse livro, então não há razão para não se dizer o mesmo do universal "similaridade”, que pode abrir espaço para um grupo de casos de similaridade. Dessa forma, esses po­ 39 A respeito das variantes abrangentes desse conceito, cf. BEANEY, M. “ Conceptions of analysis in the early analytic and phenomenological traditions: Some comparisons and relationships” . In: BEANEY, M. (org.). The analytic tum: Analysis in Early Analytic Philosophy. Nova York: Routledge, 2007.

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dem ser aqui apenas uma categoria, ao invés das três do realismo. Além disso, como já mostrado, relações podem ser sobrevenientes sobre seus relacionados e, portanto, não se faz necessário atribuir-lhes existência independente. Se o particularismo abstrato defende uma ligação fundamental, o candidato natural aqui seria a copresença em virtude de que muitos tropos se combinam para produzir os particulares concretos ordinários. Contudo, apesar de ser uma relação muito vasta, a copresença não é requerida nos verdadeiros termos da ontologia para abranger todos os exemplos de outra ou outras categorias, como é o caso na teoria alter­ nativa da substância/propriedade que renuncia tanto particulares puros como universais não instanciados. Na teoria dos tropos são admitidos como possibilidades tropos individuais isolados que não são copresen­ tes com nada. Essa concepção o leva a formular quatro problemas em relação a esse nominalismo moderado: a) A intenção primeira de Hochberg é mostrar que essa economia ôntica não é genuína. A razão é que a ontologia dos tropos dá a um tipo de entidade uma dupla função. A exemplificação conecta particulares e universais para formar estados de coisa; a ligação de similaridade, por sua vez, não somente faz isso produzindo “fatos similaridade” a respeito de dois tropos, mas também fornece o conteúdo qualitativo para um objeto. Essa é uma crítica que atínge radicalmente o sucesso de qualquer teoria do particularismo de similaridade. Na realidade, para Campbell, na teoria particularista a semelhan­ ça entre os itens ocorre em virtude do fato de esses itens serem F (por exemplo, sólido). É fatal para tais teorias insistir em que um objeto a é F em virtude de sua similaridade com outros itens b, c etc. se ou não um desses outros é selecionado como paradigma de sólido. O objeto a pode permanecer sólido mesmo se outros sólidos no mundo tenham desaparecido e, portanto não haja mais similaridade. Por que a não pode ser sólido em seu próprio direito? Tropos têm de ser naturezas particulares e não particulares puras sem qualquer vinculação de similaridade, sem qualquer natureza. Assim, o particularista diz “o é vermelho”, enquanto um tropo vermelho entre os copresentes no local de o. Ele não tem de acrescentar que o fato de aquele tropo ser vermelho depende da semelhança com outros tropos do círculo de similaridade vermelho. Assim, os laços de similaridade não dão a seus termos a natureza dos termos e, consequentemente, não possuem uma dupla função. A relação de similaridade é na verdade uma relação interna, e fatos de similaridade entre tropos são fatos neces­ sários, enquanto fatos de exemplificação são contingentes. Portanto, há sem dúvida uma diferença entre similaridade e exemplificação, mas

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essa diferença não é uma marca contra a similaridade e a favor da exem­ plificação. b) Para Hochberg nenhuma forma de nominalismo pode lidar adequadamente com relações, uma vez que o nominalista só pode reco­ nhecer instâncias particulares, qualidades ou relações, e essas instâncias têm todas de ser localizadas no espaço-tempo. Porém, não tem o menor sentido localizar uma relação. Hochberg apresenta uma crítica a esse programa, mas assume que os fundamentos da relação têm de ser os mesmos em todos os casos, e que esses fundamentos têm de garantir que a relação exista. Campbell aceita que essas exigências são fatais para o programa, mas não há nenhuma necessidade de adotá-las, como ele vai argumentar depois. c) Um realismo moderado terá de reconhecer entidades, cuja função, como os universais do realista, é fazer a teoria realista em tudo declaradamente nominalista, exceto no nome. O nominalista é obrigado a especificar as condições de verdade para (Fa). Se isso se faz através da referência ao paradigma F, então ele tem de especificar as condições de verdade desse paradigma, o que na realidade é uma posição circular ou trivial. Aquilo em que Hochberg pretende insistir é que essa soma de Fss. é como um universal, de modo a fazer do nominalista um criptorrealista, e dessa forma cada instância de F é portadora da mesma relação ao universal ou à soma deles. O universal instanciado (a soma) é uma entidade espacial e temporal, mas não localizada no sentido ordinário. Ele é imutável. Então por que não admitir universais reais e tratar com eles? Para Campbell, porque um nominalismo criterioso que atribui uma natureza particular a cada instância de cada tipo não necessita nem de um para­ digma, nem de uma soma, nem de um universal, em sua especificação da condição de verdade para Ka é F M. Assim, embora se reconheça a legitimidade do todo ou da soma mereológica de tropos F, isso não tem a menor significação na determinação do ser F. Os nominalistas não precisam e não devem ser criptorrealistas. d) Ele insiste contra os nominalistas moderados no problema da ordem relacionai. Temos de reconhecer relações de ordem na análise dos fatos relacionais, e, se esses não são aceitos como universais, o problema da ordem é insolúvel. Na realidade, para Campbell, entra aqui em cena fundamentalmente a questão dos níveis de consideração, e, assim como para Hochberg, uma assimetria fundamental entre uni­ versal e particular detém corretamente o regresso; assim, a assimetria fundamental que envolve níveis, no caso das instâncias relacionais, detém o regresso tanto para o nominalista moderado como para os não moderados.

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3.6.6 A crítica de Moreland O cerne de sua crítica ao particularismo abstrato40se concentra na tese de que um tropo não é uma entidade simples como o particularismo abstrato afirma, mas um complexo de três entidades: um universal, um elemento de individuação e um nexo de predicação. Para ele, o proble­ ma central de uma teoria dos tropos é precisamente a questão de saber se os tropos podem ser categorialmente simples e constituir uma base adequada para uma ontologia satisfatória. É nesse contexto que ele apresenta, seguindo Armstrong, sua objeção principal que, segundo Campbell, pode-se denominar “a objeção da múltipla instância”. Suponhamos que algum objeto seja opaco, e que, além disso, possua outras características. Para a teoria dos tropos há tropos copresentes, por exemplo, O l e 0 2 , que constituem esse objeto. Então, se muitos tropos podem ser copresentes, o que constitui esses objetos como dois, sendo os dois opacos? Na concepção do realismo, cada variedade de opaco deriva de um universal, que é a mesma entidade presente em cada ocasião, de tal modo que, onde quer que ocorra, é sempre a mesma entidade que ocorre. Mas há muitos tropos opacos distintos, portanto não idênticos entre si, e O l e 0 2 são dois entre eles. Dessa forma, para um objeto ser opaco basta que O l e 0 2 sejam diferentes tropos e, assim, constituam um estado de coisas diferente a partir de seu ser opaco, cada um de uma vez. Para Campbell, pode-se enfrentar essa objeção através de duas estratégias: 1) Realidade e poder causai. Itens supostamente pertencentes ao mundo natural sem poderes causais não fazem diferença, não são ex hypotbesi detectáveis, e não há provas de sua existência. Mas, de acordo com uma tradição que remonta pelo menos ao tempo de Platão, poder é a marca do ser; o que não tem poder não é. Com isso, a objeção da instância múltipla se confronta com um dilema: o suposto segundo tropo traz consigo um poder ou não? Se sim, então fará diferença, e seremos em princípio capazes de descobrir aqueles casos em que uma espécie de tropo é duplo ou triplo, copresente consigo mesmo. Se, no caso alternativo, o segundo caso de uma espécie de tropo não possui eficácia causai, o ônus de mostrar por que e como se deve supor que exista cai sobre o objetor. Mas como sabemos se nossos casos singulares não são todos eles múltiplos, com o soco total causai que atribuímos a um caso singular de opacidade, e não, de fato, o produto conjunto de dois ou seis ou vinte e 40 Cf. M O RELAND , J. P. Universais, Qualides and Quality-instances: A Defense of Realism, 1985.

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seis todos atuando, mas sempre todos atuando juntos? Resposta: pode ser uma possibilidade, mas é uma possibilidade ociosa a ser ignorada por razões ocamistas, como aquela possibilidade ociosa em que nos perguntamos como sabemos se o universo inteiro não deixa de existir por um período curto, não mensurável, a cada segundo (ou a cada dois segundos...) e então é restaurado exatamente como era. 2) Admitir a possibilidade de uma duplicidade ocasional, o que permitiria a copresença de dois ou mais tropos opacos. Contudo, na ausência de qualquer razão positiva atual para admitir instâncias múlti­ plas, sua possibilidade permanece uma possibilidade ociosa. 3.6.7 Simplicidade e individuação Moreland defende a tese de que um tropo, por exemplo, verde é tanto simples como individuado por seu lugar. Assim, se é individuado por seu lugar, isso significa que ele tem de ter um lugar, e, se é simples, esse lugar não pode ser algo genuinamente distinto de sua cor. Então, nesse caso, os diferentes tropos copresentes se identificam, uma conseqüência inaceitável. Para evitar isso, Campbell propõe abandonar a perspectiva de que um tropo de cor é individuado por seu lugar. Considera-se, então, que a copresença seja uma questão mais abstrata, mais formal, e reconhece-se que um tropo de cor e um quase tropo espacial são entidades distintas, e considera-se a presença de verde no lugar como a copresença de um tropo verde com um único lugar. A presença de outras características será uma adição a essa totalidade copresente. Nenhuma se faz idêntica a qualquer uma das outras. Dessa forma, para preservar a simplicidade dos tropos, é, para Campbell, necessário afirmar que a individuação é básica e não analisável. Assim, a resposta à questão “o que faz com que um tropo F seja F e não outro?” é simplesmente: ele é o tropo F e não outro. Para ele, a análise das propostas alternativas faz ver que essa resposta não é ilegítima. 3.6.8 A objeção de tropos trocados Se propriedades são particulares, então um caso da mesma proprie­ dade F é um item diferente de qualquer outro caso, independentemente de quanto possam assemelhar-se. Assim, há dois casos diferentes, mas exatamente semelhantes ( Fi e F2). Temos aqui duas situações possíveis: F1 é no lugar PI e F2 é no lugar P2, ou F1 é em P2 e F2 é em Pl. Poder-se-ia considerar F1 e F2 trocáveis um por outro. Tal troca é impossível segundo a tese de que propriedades são universais, desde que F em Pl é idêntico ao universal F em P2, de tal modo que qualquer troca deixa tudo como era.

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Para Campbell, uma forma de enfrentar essa questão na teoria dos tropos é a tese de que a diferença entre F1 e F2 é somente uma diferença de individuação; ex hypotbesi, eles se assemelham exatamente, e, assim, suas naturezas são parecidas. Consequentemente, se eles são trocados, então as únicas diferenças que podem ser antecipadas são diferenças de individuação, e não diferenças na natureza da situação. Há, portanto, uma diferença na individuação. 3.6.9 Similaridade exata Moreland levanta objeções a respeito do apelo à semelhança entre tropos enquanto uma alternativa à presença de propriedades universais em tropos e particulares concretos. Uma primeira e fundamental é que tropos vermelhos se assemelham uns aos outros numa forma diferente de como tropos verdes se assemelham, e a tese da similaridade exata nada pode dizer a respeito. Para Campbell, a única resposta aqui é sim­ plesmente a negação da tese apresentada, pois a única diferença entre a semelhança exata entre o par de vermelhos e o par de verdes é que o primeiro é de vermelhos e o segundo de verdes. A semelhança nada acrescenta que possa gerar distinção. 3.6.10 Referência abstrata Para Moreland, referência abstrata diz respeito a construções que pelo menos superficialmente se referem a propriedades, antes que a objetos particulares. E muito difícil evitar expressões que parecem im­ plicar a existência de propriedades e universais. Para Campbell, algumas das dificuldades diminuem se temos quantificadores que têm a ver com tropos antes que com objetos particulares. No entanto, para ele, nossa capacidade de enfrentar a problemática não depende desse procedimento. Os quase universais que ele reconhece possuem todos os traços necessários para serem tomados como referen­ tes de substantivos abstratos, e como valores de variáveis em sentenças que quantificam sobre propriedades em geral. Mesmo admitindo que essas expressões sejam indispensáveis e não possam ser substituídas por paráfrases contendo somente particulares concretos ou abstratos, isso não constitui problema para uma ontologia de tropos. 3.6.11 Leis da natureza e indução Uma objeção numa linha diferente é a que levanta Armstrong.41Sua questão é que, se propriedades ocorrem como particulares ou não em 41 Cf. ARM STRONG, D. M. What is a Law of Nature. Cambridge: Cambridge Univer­ sity Press, 1983.

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casos de espécies, ainda se tem de reconhecer universais com o objetivo de fornecer uma explicação convincente para as leis da natureza e de fornecer uma base racional para o raciocínio indutivo. Ele defende a tese de que as teorias das leis da natureza que derivam da posição de Hume são fatalmente falhas. Para Hume, as regularidades expressas pelas leis se distinguem pelo papel que elas exercem em nossas teorizações, e não em virtude da descrição de alguma realidade metafísica além e acima dos eventos que ocorrem atualmente. Dessa forma, Hume situa os fun­ damentos da necessidade nomológica em nossas mentes e práticas.42 A tese básica de Armstrong, ao contrário, é, então, que as leis da natureza expressam relações de necessidade entre os universais, e que a indução só pode ser defendida na medida em que depende de uma inferência à melhor explanação, que hipoteca uma tal lei de natureza como a única base metafísica em que a generalização indutiva pode basear-se. Para Campbell, os argumentos de Armstrong, contra a concepção de que as leis de natureza sejam generalizações universais, são convin­ centes. Leis podem ter exceções, e algumas generalizações verdadeiras não são leis. Daqui não se segue o envolvimento de universais reais. O essencial para a posição particularista é que as diferenças entre as associações entre propriedades e seqüências que se originam das leis da natureza ou que são meramente contingentes não se radiquem na presença de um vínculo metafísico especial entre os termos relatados. O único portador especial de verdade para a lei natural consiste em ser o nível básico da natureza, ou surgir dele. Os trabalhos do mundo que incluem os poderes internos dos objetos naturais estabelecem quais padrões de associação e quais linhas de desenvolvimento são naturalmente possíveis e quais são excluídas. Por essa razão, antes de fazermos, em função de um misterioso poder necessário nas coisas, algumas afirmações a respeito de conexões naturais, as leis da natureza expressam o que tem de ser, e não o que meramente acontece. Pode-se afirmar, nesse contexto, que universais são necessariamente imutáveis, de forma que, se eles contingentemente estão vinculados a uma relação necessária, então isso foi, é e será em toda parte o caso. Campbell sustenta que não há segurança nisso. Pode haver universais dinâmicos, propriedades com um caráter de desenvolvimento diacrônico. Tudo o que possui essas propriedades será depois diferente do que era antes. Dessa forma, para Campbell, leis de natureza, enquanto opostas a meras generalizações, são especiais em sua epistemologia e pragmática, 42 Cf. LOEWER, B. Law o f nature. In: KIM, J.; SOSA, E. (orgs.). A Companion to Me­ taphysics. Malden: Blackwell, 2002, p. 266.

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em seu lugar na explanação e em seu papel em situações experimentais. Elas emergem do coração da natureza, mas não precisam implicar uma ontologia especial. Se de fato generalizações podem dizer respeito a tropos antes que a universais, assim podem as leis da natureza. Seu status especial não depende de necessidade natural vigente entre universais e, portanto, não é isso que dá uma base natural ao raciocínio indutivo. Foi essa a grande contribuição que nos deu Williams com seu The Ground of Induction. 3.7 PROBLEMAS DA TEORIA DOS TROPOS SEG U N D O PETER SIMONS Para Simons,43 a teoria dos feixes é muito atrativa, antes de tudo por sua promessa de uma ontologia monocategorial. Ela é elegantemente articulada no horizonte do pensamento de Ockham, e dispensa qualquer substrato incognoscível. Mas tem problemas44em duas grandes direções. 3.7.1 Relação de copresença Não é claro se essa deve ser uma relação dual vinculando dois tropos ou uma relação tripla, uma ligando um lugar com dois tropos ou uma relação de muitos mais lugares ligando todo o grupo a um sistema. Le­ vando em consideração a primeira alternativa: já que substâncias normais possuem muitos tropos, tem de haver muitas copresenças de todos os que são copresentes para formar uma substância singular. Volta aqui o problema do regresso: com quatro tropos copresentes há seis copresenças; com cinco, são dez; e assim sucessivamente. Aqui não se pode dizer que o regresso não seja vicioso como no caso da semelhança, pois os casos são diferentes: a semelhança é uma relação interna entre dois tropos, o que não é o caso da copresença. Pode haver alguns casos em que dois ou mais tropos ocorrem, mas, nas substâncias particulares, muitos desses tropos estão somente de forma contingente no feixe: aquela substância pode estar noutro lugar, pode mudar. A segunda sugestão consiste em pensar a relação de copresença em termos de uma relação tripla entre os dois tropos e o lugar em que os dois estão: A e B são copresentes no lugar P. Isso tem três desvantagens. Em primeiro lugar, pressupõe-se aqui que lugares possam propriamente ser os termos das relações, e isso é uma forma de absolutismo a respeito do lugar que deve ser evitado. 43 Cf. SIM ONS, P. Op. cit., p. 558. 44A respeito da crítica de S. Kripke, cf. IMAGUIRE, G. A Substância e suas alternativas. Op. cit., p. 285.

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Segundo, pode-se objetar que a relação faz dos lugares substratos, já que um número de tropos estará copresente se houver um lugar P com o qual os tropos estarão todos copresentes, de tal forma que ele assegura a identidade de P que, por sua vez, garante a integridade de todo o feixe. Com isso se retorna à teoria do substrato. Terceiro, a teoria faz o movimento das substâncias mais misterioso ainda do que deveria ser. Se os lugares fossem os portadores, os tropos não poderiam mover-se, já que, quando um tropo abandona o lugar onde estava, ele cessa de ser, mesmo que reposto num lugar exatamente semelhante. Se os tropos não se podem mover, também os feixes não se podem mover daí, e estará perdida a identidade das substâncias através do tempo. Se uma substância é o feixe de copresença associado com o lugar P, então mover o feixe significa mover toda a série de lugares das relações de copresença com P, recolocando numa série similar com outros lugares P*, P” etc. O que explica, então, o fato de que todas essas relações de copresença não afetam somente os mesmos tropos, mas que são todas geradas no mesmo tempo e todas confluem juntas em harmonia perfeita? O que impede os tropos de vagar em diferentes dimensões? Esses fatos, para Simons, são facilmente explicáveis pelo fato de que o feixe se move como um todo. A terceira proposta é de uma relação de vários termos. Não pode­ mos saber a aridade dessa relação; pode até mesmo ser infinita, e pode haver diferentes aridades para diferentes tipos de particulares concretos independentes, mas nunca haverá tal relação. Para Simons, é difícil ver por várias razões a força explanatória dessa proposta. 3.7.2 Natureza não substancial dos tropos A questão de entrada aqui é da inabilidade dos tropos, dada sua natureza não substancial de constituir uma substância enquanto um feixe de tropos. Simons parte da tese de Martin45 de que um objeto não é a coleção de suas propriedades ou qualidades como uma multidão é uma coleção de seus membros, pois, para cada e qualquer propriedade ser, ela tem de estar no objeto, o que não é o caso dos membros de uma multidão. Por sua vez, Levinson, Seargent e Armstrong pensam os tropos como modos particularizados. No entanto, é muito difícil ver como as substâncias possam ser compostas por um feixe de tais entidades. Os tropos são entidades dependentes e justamente aqui está o golpe comum 45 Cf. MARTIN, C. B. “ Substance Substantiated”. Australasian Journal of Philosophy,

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da objeção de Martin e Armstrong, se é que se devem pensar as subs­ tancias enquanto compostas por eles. Talvez a ideia seja de que nenhuma soma de coleção ou de liga­ ção de entidades dependentes resultará em algo que seja apenas uma entidade dependente ou uma coleção de entidades dependentes. Dessa forma, a existência de uma entidade independente, pelo menos uma, tem de ser afirmada, se algo tem de existir enquanto tal. Uma explica­ ção razoável da relação que garante o estar junto dos tropos não somente dará conta de sua dependência, mas tentará mostrar por que ter um grande número de tropos juntos pode produzir algo, se for uma cole­ ção ou um indivíduo que tem uma propriedade emergente de inde­ pendência. Simons é de opinião que a proposta de Husserl nas Investigações Lógicas46 é muito importante nessa questão. Husserl distingue vários conceitos de todo, entre os quais um que Simons chama de "todo integral”. Dois particulares são ditos relacionados diretamente se um é fundado no outro fraca ou fortemente. Dois particulares são, então, relacionados do ponto de vista da fundação se e somente se eles trazem o ancestral da relação da relacionalidade direta fundacional de um para com o outro. Uma coleção forma um sistema fundacional se e somente se cada membro nele é relacionado fundacionalmente a qualquer outro, e nenhum é relacionado fundacionalmente com algo que não seja membro da coleção. Um objeto é um todo integral se e somente se ele pode ser divido em partes que formem um sistema fundacional. A relação de relacionalidade fundacional é definida em termos de dependência e de fundação. Dessa forma, a definição de um sistema fundacional requer que as necessidades de dependência de cada membro da coleção sejam atendidas no interior da coleção, e requer ainda que todo o sistema seja completamente conectado. Por outro lado, Levinson, Seargent e Armstrong pensam os universais não como coisas, mas como modos como as coisas podem ser.47 Simons considera a descrição de um modo como uma resposta natural à questão “como” que nos diz como as ações e outros eventos são, e não como são as substâncias. Para ele, a questão de ver os tropos como modos48 particularizados de como uma coisa é tem o objetivo 46 Cf. H USSERL, E. Logical Investigations. Londres: Routledge & Kegan Paul, 1970. 47Cf. LEVINSON, J. “ Properties and Related Entities”. Philosophy and Phenomenological Research, 39, 1978, p. 1-22. ARM STRONG, D. M. Universais and Scientific Realism. Cam­ bridge: Cambridge University Press, 1978. SEARGENT, D. A. J. Plurality and Contínuity. An Essay in G. F. Stout’s Theory o f Universais. The Hague: Nijhoff, 1985. 48 Simons tem reservas, linguisticamente fundamentadas, a chamar todos os tropos de modos. Cf. SIMONS, P. Op. cit., p. 564.

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de garantir que eles sejam o menos substancial possível. Isso lembra Ockham que, quando desejava evitar que determinado modo de falar se comprometesse com determinadas entidades, usava o latim no caso oblíquo. Assim, em lugar de dizer que uma substância tinha um modo particular de ser (modus essendi), ele fala de seu ser assim ou assado, de algum modo (alio modo, aliquo modo). Temos a tentação de reificar o que se diz com a terminação “dade” (humildade, bondade). Nunca nossas línguas nos obrigam a falar de coisas empregando substantivos em frases na posição de sujeito ou predicados. Não devemos, contudo, levar a sério a posição que diz que tropos de forma alguma são entidades. Modos e outros tropos não são nada, eles são algo, mas não como coisas, quando com isso entendemos substâncias. Tropos não são “res” (coisa), eles são “rei” (da coisa) ou “rerum” (das coisas). Para Simons, contudo, a objeção principal dessa seção da teoria dos tropos que permanece sem solução é que a versão mais promissora da teoria baseada no conceito de fundação de Husserl tem dificuldade de explicar algo como a distinção em status entre tropos acidentais e essenciais de uma substância. 3.7.3 Teoria nuclear como proposta alternativa Em virtude desses problemas que afetam as teorias dos tropos, Si­ mons apresenta uma proposta alternativa de uma articulação dessa teoria, que ele denomina “teoria nuclear”.49 Trata-se de uma teoria articulada em duas etapas: na primeira, tem-se uma coleção de tropos que têm de ocorrer enquanto indivíduos. Esses constituem um cerne ou núcleo essencial da substância. Poder-se-ia em princípio, para Simons, falar aqui de um substrato para explicar seu estar junto, mas em virtude dos problemas levantados a respeito desse conceito ele prefere uma teoria dos feixes no estilo de Husserl. Sendo esses tropos todos mutuamente fundados, eles constituem um sistema de fundação, no sentido do que já se mostrou. Esse núcleo constitui, então, a essência individual ou natureza individual de uma substância, mas usualmente não será uma substância completa, já que há mais propriedades, propriedades não essenciais, que a substância possui. Esses tropos suplementares podem ser substituí­ dos sem que o núcleo cesse de existir, e podem ser considerados como dependentes do núcleo enquanto portador. Nesse caso, o núcleo, um feixe compacto, serve de substrato para um feixe mais frouxo de tropos acidentais e, dessa forma, explica seu estar juntos. 49 Cf. SIMONS, P. Op. cit., p. 567-569.

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Para Simons, a teoria nuclear não só não rejeita a noção de substrato, mas, antes, constitui uma síntese entre a teoria do substrato e a teoria dos tropos. Enquanto tal, ela é, para ele, análoga à posição de Aristóteles e Tomás de Aquino, na medida em que, para esses autores, o substrato é a matéria; portanto, a forma substancial corresponde ao núcleo e serve de portador para os tropos não essenciais. Uma vantagem, para ele, dessa proposta teórica é que ela é muito mais flexível uma vez que permite núcleos de diferentes tamanhos e complexidades. Talvez haja substâncias sem a periferia de tropos acidentais, uma substância em que tudo é núcleo. Isso são as mônadas de Leibniz; em todas as propriedades, são necessárias para a substância. Pode ser que sejam, assim, os constituintes básicos do universo físico de tal forma que todas as suas propriedades não relacionais são essenciais, e só podem ser destruídas por aniquilação. Mas talvez também haja coleções substanciais de tropos sem núcleo. 3.8 CRÍTICAS À TEORIA DOS TROPOS POR CHRIS DALY Daly interpreta a teoria dos tropos enquanto uma teoria alter­ nativa à teoria dos universais - portanto, à ontologia duocategoriaí manifestando a pretensão de pensar o real a partir de uma categoria (os tropos), que não é nem substância nem universal, mas um tipo distinto de entidade. Essa teoria apresenta, para ele, pelo menos dois problemas graves.50 3.8.1

A questão da semelhança

Propriedades aparentemente partilhadas por distintas entidades podem ser explicadas por classes de tropos semelhantes.51 Dessa forma, uma “teoria da semelhança” se põe no lugar de uma teoria dos univer­ sais. A pergunta decisiva aqui é: o que é propriamente semelhança? Fundamental nesse contexto é o argumento de Russell52contra as teorias que rejeitam o universal e aceitam a semelhança. Sua tese central é que a teoria da semelhança tem de aceitar o universal sob pena de cair num regresso vicioso. Daly propõe adaptar o argumento contra a teoria dos tropos para dizer o mesmo: ou ela aceita o universal ou cai num regresso.

50 A respeito de outra postura crítica, cf. STJERNBERG, F. “ An Argument against the trope theory”. Erkenntnis, vol. 59, n. 1,2003, p. 37-46. 51 Cf. DALY, C. Op. cit., p. 254-258. 52 Cf. RUSSELL, B. “ On The Relation of Universais and Particulars” . Proceedings ofTbe Aristotelian Soáety, vol. XII, 1911-1912,p. 1-24; TheProblemsofPhilosophy. LondonHome University Library, 1912.

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A ontologia em debate no pensamento contemporâneo

O ponto de partida é a suposição de três tropos, A, B e C, com a mesma tonalidade de vermelho, que se assemelham exatamente um ao outro. Portanto, certos tropos de semelhança se mantêm entre eles. Numa palavra, há tropos de semelhança se mantendo entre os pares A eB, B e C e A e C . Podem-se chamar esses tropos de semelhança de Rl, R2 e R3. Cada um desses tropos de semelhança é exatamente um tropo "exatamente-semelhante-na-cor”, mantendo-se entre dois tropos verme­ lhos. Sucessivamente, cada um desses tropos se assemelha exatamente a cada outro. Portanto, certos tropos de semelhança se mantêm entre esses tropos, isto é, há tropos de semelhança entre os pares R l e R2, R2 e R3 e Rl e R3. Pode-se chamar essa nova semelhança de R4, R5 e R6. Ora, cada um desses tropos de semelhança é um tropo de semelhança exata mantendo-se entre dois tropos exatamente semelhantes em cor. Numa palavra, cada um desses tropos é um tropo de “semelhança-exata-entre-dois” “ tropo s-exatamente-semelhantes-em cor”. Logo, cada um desses novos tropos é exatamente semelhante a cada outro. Consequentemente, deve haver ainda outros tropos de semelhança, mantendo-se entre os pares formados por R4, R5 e R6. Assim, desembocamos num regresso. A teoria dos tropos se propõe oferecer uma análise da semelhança entre A, B e C exclusivamente através da categoria dos tropos, a saber, através dos tropos relacionais Rl, R2 e R3. Ocorre que as instâncias da própria relação recorrem ao analisante para poderem ser analisadas. Se é para aplicar essa análise de forma consistente, ela deve ser aplicada igualmente ao analisante. Ora, surge claramente o mesmo resultado: a introdução de novos tropos relacionais traz com eles novas semelhanças, que por sua vez devem ser analisadas. Segue-se que em cada estágio se repõe a mesma questão: surgem semelhanças que podem ser completa­ mente analisadas em termos de tropos. É precisamente essa falha que impulsiona ao regresso e o faz vicioso. Mas, então, se a análise falha, a relação de semelhança não pode ser um tropo, tem de ser um universal: algo é partilhado pelos particulares semelhantes. A reposta de Campbell é que, porque cada estágio no regresso sobrevêm a seu predecessor, nenhum deles constitui adições ônticas, e adições sobrevenientes são, para ele, pseudoadiçÕes, não envolvem compromissos ônticos novos. Para Daly, essa tentativa de Campbell de interpretar o regresso simplesmente como um caso de sobreveniência mostra que ele falha na distinção entre um regresso virtuoso e um regresso vicioso. Outro argumento de Campbell, em prol da sobreveniência, é que se trata de uma relação interna, ou seja, é uma relação que existe neces­ sariamente, dada a existência de seus relata. Mas isso de forma alguma significa, para Daly, que a semelhança sobrevêm sobre seus relata no

A ontologia monocategorial: a teoria dos tropos de K. Campbell

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sentido de não ser uma adição ôntica sobre eles, pois semelhança poderia ser uma adição ôntica que necessariamente ocorre, dada a existência de seus relata. Pode-se considerar um caso paralelo. Há necessariamente uma conexão entre assassinato e assassino, de tal modo que, necessa­ riamente, se há assassinato há assassino; mas isso não significa que um assassino não seja uma adição ôntica à existência de um assassinato. Dessa forma, persiste o argumento de Russell: a semelhança tem de ser admitida como um universal e não como um tropo. Ora, se se admite um universal, por que não outros? A conseqüência a tirar daqui é que os tropos não podem ser o único tipo de entidade de uma ontologia. 3.8.2 A infiltração da instanciação Daly retoma as teses centrais da teoria da substância.53No mundo, há substâncias, como o sol e o céu, e universais, como azul e amarelo. No nosso mundo, o céu é azul e o sol é amarelo, mas, num outro mundo pos­ sível, o céu pode ser amarelo, e o sol, azul. Isso os conduz à necessidade de uma explicação de como as substâncias e os universais se combinam para formar fatos. O fato de que o céu é azul não pode ser explicado pelo simples fato de ele ser uma substância, o céu, e uma propriedade, azul, uma vez que ambos são entidades que poderiam ser diferentes. Além disso, precisamos de uma explicação de como substâncias e universais se combinam para formar certos fatos e não outros. Como é que mundos diferentes podem conter as mesmas substâncias e os mesmos universais e, no entanto, diferir nos fatos em que eles estão presentes? Para enfrentar essa problemática, alguns realistas postularam uma relação de instanciação vinculando as substâncias com seus universais. Para o céu ser azul ele tem de estar numa relação de instanciação com a propriedade azul. No mundo em que o céu não é azul, ele não está nessa relação. A instanciação é uma relação sui generis, pois, diferentemente de outras relações, supõe-se que exista entre seus relata sem requerer uma relação a mais de instanciação. A teoria dos tropos parece estar imune a essas dificuldades porque, não admitindo nem substâncias nem universais, ela estaria livre da re­ lação de instanciação. No entanto, aqui também surgem questões. Por exemplo, se temos o particular a e dois tropos, F e G, que pertencem ao feixe que constitui a: o que faz com que F e G pertençam ao mesmo feixe e não a feixes distintos, uma vez que em princípio isso é possível? Ou todos os tropos do feixe podem existir sem que F e G existam, ou tropos não precisam existir em feixes para existir. 53 Cf. DALY, C. Op. cit., p. 258-260.

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A ontologia em debate no pensamento contemporâneo

A teoria dos tropos apela para a “noção de copresença” para explicar como os tropos formam feixes. Sendo F e G copresentes, eles possuem a mesma locação espaço-temporal, de tal modo que eles serão copresentes com todos os outros tropos que formam a e, dessa forma, constituem um feixe unitário, um particular concreto singular. Mas o que significa mesmo para F e G ser copresentes? Não pode ser apenas que F, G e uma relação de copresença C existam, pois todas essas en­ tidades podem existir sem ser esse o caso. Introduzir outra relação de copresença C ’ não ajuda, e não é claro como a relação de copresença C poderia ela mesma estar numa relação de copresença. Aqui reaparece, nesse novo nível, o problema original, e, afinal, deve-se pôr a relação de instanciação, que não pode ser dispensada. Numa palavra, a sugestão da teoria dos tropos de introduzir uma nova categoria, a copresença, não a torna imune à categoria da instanciação, com toda a problemática que ela implica.

Capítulo 4

A O N T O LO G IA DE ACO N TECIM EN TO S (EVENTOS) E PRO CESSO S

4.1 A PROPOSTA DE UM A O N TO LO G IA DE A C O N TECIM EN TO S De modo geral, quando hoje se introduz a categoria de “aconteci­ mento” (evento)1 como categoria ontológica fundamental, entende-se acontecimento como algo que ocorre num certo lugar, num intervalo particular do tempo, podendo ser tanto de curta como de longa duração. Para Lombard,2 na medida em que a categoria de evento é vinculada à categoria de mudança, sua história é coextensiva à história do pensa­ mento ocidental como um todo, mas encontrou no século passado um interesse renovado na pesquisa filosófica, sobretudo através do trabalho de McTaggart,3Whitehead4 e Broad.5 A grande importância dessa categoria para a metafísica se radica, para Branquinho, no fato de que a relação de causalidade é normalmente interpretada como uma relação que tem acontecimentos como “relata”: um acontecimento que é uma causa e um acontecimento que é um efeito, o que significa afirmar que uma compreensão de acontecimento é condi­ ção de possibilidade de uma compreensão adequada da relação causai.6 Uma aplicação específica da relação causai ocorre hoje na filosofia da mente nas discussões a respeito de relações causais entre aconteci1Cf. DAVIDSON, D. Essays onActions and Events. Nova York: Oxford University Press, 1980. LOM BARD, L. B. Events: A Metapbysical Study. Londres: Routledge and Kegan Paul, 1986; “Event Theory” . In: KIM, J.; SOSA, E. (orgs.). A Companion to Metaphysics. Malden: Blackwell, 1995, p. 140-145. BRAN Q U IN H O , J. “ Acontecimento” . In: BR A N Q U IN H O , J.; M U RCH O , D.; GOMES, N. G. (orgs.). Enciclopédia de termos lógico-filosóficos. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 14-19. 2 Cf. LOM BARD, L. B. Event Theory. Op. cit., p. 140. 3 Cf. MCTAGGART, J. M. E. The Nature of Existence. Vol. II. Cambridge: Cambridge University Press, 1927. 4 Cf. W HITEHEAD, A. N. The Principies of NaturalKnowledge. Cambridge: Cambridge University Press, 1919; Process and Reality. London: Macmillan, 1929. 5Cf. BROAD, C. D .An Examination of McTaggart’ s Philosophy. Cambridge: Cambridge University Press, 1933. 6 Cf. BR A N Q U IN H O , J. Acontecimento. Op. cit., p. 16.

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A ontologia em debate no pensamento contemporâneo

mentos mentais e comportamentos e ações, uma questão que se situa inevitavelmente dentro do contexto maior de uma teoria da mente/ corpo que por sua vez se situa no seio de uma teoria da realidade en­ quanto tal como é o caso claramente do fisicalismo, que situa todas as suas discussões a respeito da problemática mente/corpo dentro de sua tese básica de que todos os elementos do universo são constituídos de elementos físicos.7Essa tese expressa como a categoria de acontecimen­ tos se formula, então, na filosofia da mente, como a tese de que todos os acontecimentos mentais são eventos físicos. A pretensão aqui é que uma teoria de acontecimentos seja a base de tudo o que se possa discutir filosoficamente. A teoria dos acontecimentos se concentrou em duas questões bá­ sicas: 1) a questão da existência. Existem acontecimentos? Precisamos dessa categoria numa teoria do mundo, numa ontologia? A resposta de Davidson a essa questão se formula numa filosofia que pôs em seu centro a linguagem, o que tem como conseqüência que os traços fundamentais da realidade são pensados a partir da estrutura da lingua­ gem.8A aplicação dessa tese básica à ontologia se efetiva na afirmação de Davidson de que o fragmento da linguagem que contém sentenças como “a caldeira explodiu” produz uma ontologia de acontecimentos. A forma lógica dessas sentenças, para Davidson, é responsável por sua posição numa estrutura de inferências válidas. Dessa forma, a melhor maneira de ajustar a validade intuitiva do tipo de inferência que se pode efetivar aqui consiste em atribuir a frases desse tipo a forma lógica de uma quantificação existencial sobre acontecimentos.9 A ontologia de acontecimentos permite a Davidson distinguir dois aspectos que essas sentenças contêm: relações causais que se es­ tabelecem entre acontecimentos e que são puramente extensionais; e explanações causais que são intencionais, que dependem de como os acontecimentos são descritos.10 Essa distinção é, para Davidson, fun­ damental para a solução do problema mente/corpo, pois é possível a partir daqui afirmar que não há correlação entre os conceitos mentais e os conceitos empregados nas descrições físicas de acontecimentos. Dessa forma, no nível conceituai, não há identificação entre conceitos mentais e conceitos físicos, o que, contudo, não implica um dualismo 7Cf. BRUNTRUP, G. Das Leib-Seele-Problem. Eine Einführung. Stuttgart: KohJhammer, 2008, 3a ed., p. 76 e ss. 8Cf. DAVIDSON, D. “Was ist eigentlich ein Begriffsschema?”. Wahrbeit und Interpretation. Frankfurt am Maiw: Suhrkamp, 1986, p. 261-282. 9 Cf. idem. Essays on Actions and Events. Oxford: Oxford University Press, 1980, capí­ tulo 6. 10 Cf. ibidem, cap. 7.

A ontologia de acontecimentos (eventos) e processos

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ontológico, uma vez que todo acontecimento mental é idêntico a um acontecimento físico.11 Por outro lado pode-se aplicar aqui o critério quiniano do compromisso ontológico: para que afirmações desse tipo possam ser verdadeiras, “ é necessário que entidades como acontecimentos este­ jam entre os valores das nossas variáveis quantificadas. Por conseguin­ te, existem acontecimentos; ou, antes, o nosso esquema conceptual - a ‘teoria’ incorporada em nossa linguagem - diz que há aconte­ cimentos”.12 2) A questão da identidade. Que são acontecimentos? Para Lombard,13 há nos debates atuais quatro questões fundamentais a respeito da natureza dos acontecimentos: a) se causas ou efeitos de acontecimentos são essenciais para os acontecimentos que as têm; b) se sujeitos de acontecimentos são essenciais ou não; 3) se é essencial para um acontecimento que ele ocorra no tempo em que ele de fato ocorre; 4) se é essencial que cada acontecimento seja uma mudança em respeito às propriedades em relação às quais ele de fato é uma mudança. Há na filosofia contemporânea várias propostas de resposta a essas questões. Para Lombard,14 uma teoria de acontecimentos é uma variante de uma teoria de exemplificação de propriedade, uma ideia que para ele deriva da ideia de acontecimento enquanto mudanças que os objetos físicos sofrem quando mudam. Tais mudanças são movimentos em objetos do ter uma propriedade para o ter outra, através de espaços de qualidade densamente povoados, em que cada um desses espaços é uma classe de propriedades contrárias, cuja mera posse por um membro num objeto não implica mudança. Os acontecimentos podem ser, para ele, atômicos e compostos. Davidson e muitos outros defendem a tese de que acontecimentos são particulares concretos, entidades no espaço-tempo, semelhantes, em muitos aspectos, aos objetos materiais de nossa experiência. A ideia central dessa posição é que um acontecimento se determina pela posição particular que ele ocupa no espaço e pelo intervalo particular de tempo em que ocorre. Numa palavra, a localização espaço-temporal é determinação constitutiva do acontecimento enquanto aconte­ cimento.

11Foi isso que ele denominou “ monismo anômalo” . Cf. DAVIDSON, D. Essays on Actions and Events. Op cit., cap. 11. OLIVEIRA, M. A. de. Antropologia Filosófica Contemporânea. Subjetividade e inversão teórica. São Paulo: Paulus, 2012, p. 152 e ss. 12 Cf. BR A N Q U IN H O , J. Acontecimento. Op cit., p. 17. 13 Cf. LOM BARD, L. B. Event Theory. Op cit., p. 142. 14 Cf. idem. Events: A Metaphysical Study. Op cit.

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A ontologia em debate no pensamento contemporâneo

Por sua vez, Kim15 e outros defendem que os acontecimentos são particulares abstratos, entidades que se assemelham mais a pro­ posições do que a objetos materiais. Normalmente, nesse contexto, acontecimentos são identificados com estados de coisas, isto é, com exemplificações de atributos por seqüências de objetos em determina­ das ocasiões. Numa palavra, um acontecimento é uma exemplificação de uma propriedade ou relação num objeto (ou objetos) num tempo dado. Isso significa dizer que um acontecimento e êo mesmo que um acontecimento e* se e somente se e e e’ são exemplificações da mesma propriedade, no mesmo objeto (ou objetos) no mesmo tempo (prin­ cípio de individuação). Quine16 defende que objetos físicos como eventos possuem par­ tes temporais, e que os eventos podem ser identificados com as partes temporais de objetos físicos. Dessa forma, objetos temporais e aconteci­ mentos partilham a mesma condição de identidade: a mesma localização espaço-temporal. Lewis,17por sua vez, vai pôr no centro da concepção de aconteci­ mento o conceito de causalidade. Ele compreende um acontecimento como uma “propriedade-em-intensão” (uma função de mundos possí­ veis para conjuntos de coisas que possuem aquela propriedade) de uma região espaço-temporal de tal modo que, quando dois acontecimentos distintos ocorrem no mesmo lugar e no mesmo tempo, um pode ter uma localização espaço-temporal diferente do outro. Para ele, somente acontecimentos podem ser causa e efeito, e só são filosoficamente inte­ ressantes na medida em que servem de suporte para o enfrentamento de outras questões. Essa posição constitui também a posição de Bennett,18 que também considera um acontecimento uma propriedade, mais es­ pecificamente uma propriedade em extensão, ou seja, uma propriedade relacionada ao conjunto de coisas que atualmente têm essa propriedade e que é um particular que ele pensa como um tropo.

15 Cf. KIM, J. “Events as Property Exemplifications”. In: BRAN D, M.; WALTON, D. (orgs.). Action Theory. Dordrecht: Reidel, 1976, p. 159-177. 16Cf. Q U IN E, W. V. “Things and their place in theories”. In: Theories and Things. Cam­ bridge (MA): Harvard University Press, 1981, p. 1-23. 17 Cf. LEWIS, D. “ Events”. Philosopkical Papers, vol. II. Nova York: Oxford University Press, 1986, p. 241-269. 18 Cf. BENNETT, J. Events and Their Names. Indianapolis: Hackett Publishing Com-

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4.2 EN T E (MATEMÁTICA, O N TO LO G IA ) E A C O N TECIM EN TO (FILOSOFIA) N O PENSAM ENTO DE A. BADIOU 4.2.1 A matematização da ontologia Badiou19interpreta a situação da filosofia hoje marcada basicamente por três posturas filosóficas: Heidegger, que retoma a questão do ser, a racionalidade científica considerada hegemonicamente como o para­ digma do pensar e o desenvolvimento de uma doutrina pós-cartesiana do sujeito, cuja origem se situa em práticas não filosóficas - a política (Marx, Lenin) e a psicanálise (Freud e Lacan). Uma convicção básica no contexto desses pensamentos é que é impossível a articulação de um discurso filosófico acabado. Dessa forma se encerra a época da metafísica, e com seu fim se abre um horizonte diferente para o pensar. Ele considera basicamente quatro tipos de crítica à metafísica - a filosofia transcendental, o positivismo, a filosofia dialética e a filosofia de Heidegger - e as reúne sob o nome de "arquimetafísica”.20Em última instância, a metafísica manifestou a pretensão de enfrentar racionalmente a questão da existência do infinito, o que essas filosofias contemporâneas consideram estar para além daquilo que as capacidades do ser humano possibilitam, É isso que, para Badiou, faz com que essas filosofias se concentrem consensualmente na problemática da “finitude”.21 Badiou interpreta essas críticas atuais à metafísica como sendo todas elas, em última instância, uma crítica à incapacidade da metafísica de determinar a verdadeira natureza do ente.22 Para ele, os críticos da metafísica constroem uma oposição que é também política, como se mostra claramente na crítica de Heidegger, para quem a metafísica é um poder instituído, uma visão do mundo hegemônica que conduzirá à destruição do planeta entregue ao poder da técnica.23 A grande contribuição da filosofia analítica consiste, para Badiou, na retomada da postura dos gregos de que a matemática é o modelo da investigação ontológica - portanto, o discurso do ser, embora, por outro lado, ela permaneça na dimensão puramente semântica e gramatical,

19 Cf. BA D IO U , A. O Ser e o Evento. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed./Ed. UFRJ, 1996,

P- n20‘ Cf. idem. “ Metaphysics and the critique of metaphysics” . PU, n. 10, Warwick, 2000, p. 178. Cf. D IAS, B. M. F. P. Acontecimento, Verdade e Sujeito. A Política como Condição da Filosofia em Alain Badiou (mimeo). Dissertação de Mestrado, Universidade de Lisboa, 2011, p. 50-51. 21 Cf. idem. Court Traité d >Ontologie Transitoire. Paris: Seuil, 1998, p. 21. 22 Cf. idem. Metaphysics and the critique of metaphysics. Op cit., p. 174-190. 23 Cf. idem. p. 176-178.

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A ontologia em debate no pensamento contemporâneo

reduzindo suas análises aos enunciados. É uma filosofia simpática, mas conservadora, pois elimina a revolta, o risco, o engajamento e se faz uma “filosofia da regra”.24 Daí sua contraposição à redução da filosofia à análise das expressões lingüísticas, à investigação sobre as condições de possibilidade de enunciados verdadeiros e à substituição da metafísica pela experimentação das ciências. Por outro lado, Badiou acentua a dívida que temos com Heidegger por ele ter reorientado a filosofia à questão do ser, e ter mostrado o problema do esquecimento do ser na filosofia do Ocidente desde Platão,25 embora não concorde com a interpretação de Heidegger, que vê a metafísica marcada por uma disposição niilista de fundo.26 Com Heidegger, ele assume que a questão central é a questão do ser, embora se tenha de afirmar que a maneira como Heidegger en­ tende o ser27 não é propriamente o que Badiou trabalha como sendo a questão de ser pelo menos no que ele apresenta como ontologia, pois em Heidegger não se trata simplesmente de recuperar de outra forma a questão levantada por Aristóteles do “ente enquanto ente”. Certamente se pode dizer que as considerações de Badiou sobre o “ acontecimento” se situem, de certa forma, na linha de pensamento aberta por Heidegger. Na realidade, seu problema fundamental é como pensar o “ente enquanto ente”,28 e ele o faz em radical contraposição à forma de articular essa questão que constitui para ele, desde Aristóteles, o fio condutor do pensamento ocidental, que pensa o ente a partir da supremacia absoluta da unidade. E nesse sentido de recuperação da “questão do ente” que Badiou afirma que não se submete às injunções críticas de Kant e de toda a tradição de filosofias que sustentam a tese de que a constituição dos objetos do mundo se faz a partir de um sujeito transcendental, e, por conseqüência, que o eixo fundamental da interrogação filosófica se centra na consideração desse aparato transcendental.29A crítica elaborada por essa tradição esquece o que constitui o essencial da metafísica, que consiste precisamente na subsunção do existente ao racional, um 24 Cf. BADIOU, A. Para uma teoria do sujeito: conferências brasileiras. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994, p. 16. 25 Cf. idem. Court Traité d’ Ontologie Transitoire. Op cit., p. 25. 26 A respeito da superação do pensamento de Heidegger por Badiou, cf.: MADARASZ, N . R. “ A Superação da Ontologia Fundamental de Heidegger pela Filosofia em Sistema de Alain Badiou” . Ensaios Filosóficos, v. IV, 2011, p. 93-119. 27 Cf. OLIVEIRA, M. A. de. “ Teoria do Ser primordial como tarefa suprema de uma Filosofia sistemático-estrutural”. Síntese. Revista Filosófica, v. 39, n. 123,2012, p. 56-63. 28 A tradução em língua portuguesa traz o título Ser e Evento. Filosoficamente, levando em consideração o que Heidegger entende como a questão do ser e a diferença ontológica, seria mais preciso falar aqui de "ente”. Por essa razão falarei de ente e não de ser. 29 Cf. BA D IO U , A. Deleuze, la Clameur de 1’Être. Paris: Hachette, 1997, p. 69.

A ontologia de acontecimentos (eventos) e processos

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procedimento que tem na matemática seu paradigma, como se deu, por exemplo, em Platão, Descartes, Espinosa e Leibniz. Q. Meillassoux denomina essa posição de “correlacionismo”, que consiste, segundo ele, basicamente na tese de que somente temos acesso à correlação entre pensamento e ente, e a nenhum dos termos separado do outro; ou seja, não conseguimos representar o "em si” sem que ele se torne um “ em nós” . Para ele, uma das principais questões da filosofia até Kant era a problemática da “ substância”. Com a virada transcen­ dental, a questão fundamental é pensar a correlação: o ente só existe enquanto correlato entre mente e mundo. Daí a tese da finitude: todo conhecimento do absoluto de qualquer tipo é impossível.30Meillassoux procurou estabelecer os marcos teóricos dessa posição alternativa que já se denominava “realismo especulativo (virada especulativa)”,31 que se caracteriza precisamente por se contrapor à redução da filosofia à análise de textos ou à estrutura da consciência em favor da consideração de questões ontológicas. Badiou apresenta uma nova proposta de articulação da filosofia32a partir de três pontos básicos: a questão ontológica, como nos mostrou Heidegger, é o ângulo da reestruturação da filosofia; a revolução mate­ mática de Frege e Cantor apresenta o quadro teórico para a configuração da ontologia; por fim, “nenhum aparato conceituai é pertinente se ele não for homogêneo às orientações teórico-práticas da doutrina moderna do sujeito, ela própria interior a processos práticos (clínicos ou políticos)”.33 Por essa razão, o quadro conceituai da filosofia deve, para ele, abarcar hoje fatores distintos: sua própria história, as matemáticas pós-castorianas, a psicanálise, a arte contemporânea e a política (marxismo), e sua tarefa básica consiste em “propor um quadro conceituai onde se possa refletir a compossibilidade contemporânea desses elementos”,34 embora Badiou não legitime explicitamente a possibilidade de conju­ gação de diferentes quadros teóricos. De qualquer forma, para ele essa posição se contrapõe claramente ao historicismo vigente no pensamento contemporâneo que reduziria a filosofia a comentários a respeito dos seus momentos mais impor­ tantes, uma posição que Badiou denomina a “vertente museológica” 30 Cf. M EILLASSOUX, Q. Après la finitude. Essai sur la nécessité de la contingence. Paris: Seuil, 2006, p. 6. 31 Cf. BRYANT, L. R.; SRN ICEK, N.; HARMAN, G. The speculative tum: continental matenalism and realism. Melbourne: re. press, 2011. 32 Cf. BARKER, ]. Alain Badiou: A Criticai Introduction. Londres: Pluto Press, 2002. BESANA, B.; FELTHAM, O. (orgs.). Écrits Autour de la Pensée d’ Alain Badiou. Paris: UHarmattan, 2007. NORRIS, C. Badiou' s Being and Event. Londres: Continuum, 2009. 33 Cf. BAJDIOU, A. O Ser e o Evento. Op cit., p. 12. 34 Cf. ibidem, p. 13.

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A ontologia em debate no pensamento contemporâneo

da filosofia. Nessa perspectiva, o pensamento de Badiou significa uma retomada do caráter propriamente teórico da atividade filosófica, o que certamente lhe foi possibilitado pela proximidade às teorias ma­ temáticas.35 Levando em consideração a problemática do pensamento clássico e a das filosofias contemporâneas no pensamento de Badiou, B. Dias afirma que ele estabelece duas tarefas fundamentais para uma filosofia que se articula no contexto teórico vigente hoje: acabar com os temas da “unidade” do ente e da “finitude”. Trata-se de retomar a afirmação básica da metafísica clássica da possibilidade de uma consideração racional do infinito, mas, para além dela, deixar de remeter o infinito à figura do um.36 A tese inicial dessa proposta é que a ciência do ente enquanto ente existe desde os gregos, uma vez que esse é o estatuto e o sentido das matemáticas que são, a partir de Platão, o modelo da certeza, o que significa dizer que a filosofia não tem a ontologia como seu centro; mais precisamente, a filosofia, em sentido estrito, não pode produzir um discurso sobre o ente: “ [...] a filosofia está originariamente separa­ da da ontologia”?7 A ontologia é uma disciplina exata e separada que constitui o cerne das matemáticas, embora os matemáticos não saibam disto: os matemáticos são ontólogos sem o saber. Dessa forma, o que é dizível sobre o ente enquanto ente de nenhuma forma pertence ao discurso filosófico. Para Madarasz,38 a principal contribuição de Badiou para a filo­ sofia é sua tese sobre a ontologia, e a relação pensada entre matemática e metafísica foi o que ajudou a filosofia francesa a superar uma longa fase heideggeriana.39 Essa base, para Badiou, constitui na realidade a delimitação do campo específico da filosofia: a questão do que não é o ente enquanto ente. Daí sua tese que é fundamental para o objeto deste

35 Cf. BADIOU, A. Conditions. Paris: Seuil, 1992,p. 57. DIAS, B. M. F. P. Acontecimento> Verdade e Sujeito. Op át., p. 47. 36 Cf. ibidem, p. 54. 37 Cf. BA D IO U , A. O Ser e o Evento. Op cit., p. 20. 38 Cf. MADARASZ, N. R. O múltiplo sem um: uma apresentação do sistema de Alain Badiou. Aparecida: Ideias & Letras, 2011, p. 29. 39 Com essa tese, para Madarasz, Badiou retoma um traço característico do pensamento francês da década de 1960. Cf. ibidem, p. 14,17-18: “ De fato, o momento filosófico do estruturalismo, organizado nos projetos de pesquisas em tomo de Lacan e de Althusser, dava um lugar central tanto à lógica quanto à matemática. Esse movimento do pensamento, entre tantos outros, foi transformado pelo acontecimento maio-junho de 1968... o projeto de um campo estritamente lógico-matemático dentro da filosofia como trabalho de fundamentação diminuiu em intensidade, inclusive caindo em suspeição, por ser uma redução da prática filosófica às regras da lógica” . Foi isso que fez surgir uma nova forma de filosofar que os norte-americanos denominaram “pós-estruturalismo” e que teve em Lyotard, Foucault, Deleuze-Guattari e Derida seus maiores expoentes.

A ontologia do acontecimentos (eventos) e processos

livro: a ontologia só se pode articular sob a forma das matemáticas,40já que “as matemáticas escrevem aquilo que, do próprio ser, é pronunciável no campo de uma teoria pura do múltiplo”.41 A ontologia é, assim, a teoria matemática do múltiplo, o que signifi­ ca uma decisão clara de Badiou de romper com a supremacia do "um” na ontologia. Dessa forma, a primeira afirmação dessa ontologia é: situações não são mais em seu ser do que pura multiplicidade. Isso implica que o discurso do ente enquanto ente se subtrai da definição do múltiplo, uma vez que a definição instaura a unidade na linguagem. A alternativa aqui é o recurso ao axioma, porque ele não define o que pensa.42Badiou enumera os axiomas do múltiplo que considera fundamentais: o axioma da extensionalidade, dos subconjuntos, da união, da separação, da subs­ tituição, do conjunto vazio, do infinito, do fundamento.43 Para Badiou, há duas vias ou duas orientações que marcam todo o pensamento do Ocidente: a primeira se apoia na natureza em seu sentido originário, acolhido em poesia, do aparecer como presença “ad-venante” do ente. A outra se apoia na ideia, no sentido platônico, e submete ao matema a falta, a subtração de toda presença, o que separa o ente do aparecer, a essência da existência. O pensamento originário se move no poético e no “deixar-ser” do aparecer. O que caracteriza propriamente a emergência da filosofia na Gré­ cia não é esse pensamento originário que existe também na China, na índia, no Egito etc.: “ O que constitui o evento grego é, ao contrário, a segunda via, que pensa substrativamente o ser no modo de um pensa­ mento ideal, ou axiomático”.44Os gregos interromperam o poema pelo matema, desligaram o pensamento do ente de seu encadeamento poético e articularam a ontologia enquanto ontologia matemática. Nesse contexto, é de importância decisiva para a compreensão da essência da matemática a tese de Cantor45 de que, qualquer que seja o objeto e a estrutura matemática, todos eles são designáveis como “multiplicidades puras”. Aqui Cantor díz o que entende por conjunto: para ele, “conjunto” é toda coleção M de determinados objetos bem diferenciados m de nossa intuição ou de nosso pensamento (que são 40 Cf. BADIOU, A. Court Traité d’ Ontologie Transitoire. Op cit., p. 35. 41 Cf. idem. O Ser e o Evento. Op cit., p. 14. RAM OND, C. (org.). Alain Badiou: Penser la Multipliáté. Paris: L’Harmattan, 2002. 42 Cf. BAD IO U, A. Court traité d'ontologie transitoire. Op cit., p. 31. 43 Cf. idem. O Ser e o Evento. Op cit., p. 56-63. MADARASZ, N, R. O múltiplo sem um. Op cit., p. 43-51. 44 Cf. BAD IO U, A. O Ser e o Evento. Op cit., p. 107. 45 Cf. CANTOR, G. “ Beitrâge zur Begriindung der transfiniten Mengenlehre”. Mathematische Annalen, Berlim, n. 46, 1895. Reimpresso em: idem. Gesammte Abhandlungen. Berlim: Springer, 1932, p. 282.

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denominados os "elementos” de M) numa totalidade. Muitos teóricos concordam hoje que se trata de uma caracterização intuitiva em que os conceitos principais permanecem totalmente indeterminados.46 Essas multiplicidades puras são edificadas a partir unicamente do conjunto vazio, isto é, o que não tem nenhum elemento.47 Daí a afirmação básica de Badiou: “A questão da natureza exata da re­ lação das matemáticas com o ser está, portanto, inteiramente concen­ trada - na época em que estamos - na decisão axiomática que autoriza a teoria dos conjuntos",48 uma teoria que hoje tem uma aplicação universal em todas as ciências formais, embora hoje a teoria dos con­ juntos seja cada vez mais questionada através da teoria matemática das categorias.49 Daí a tese radical de Badiou: enquanto o ente, como ente, nada mais é do que multiplicidade pura, é legítimo dizer que a ontologia nada mais é do que a própria matemática, ou seja, a teoria matemática do múltiplo. Nos anos sessenta realizou-se, segundo ele, uma grande revolução intelectual protagonizada pelas matemáticas, que propôs para a filosofia tarefas inteiramente novas.50 Para Badiou, o objetivo fundamental de seu esforço teórico se concentra, portanto, na defesa do que ele chama uma tese “meta-ontológica” (por não dizer respeito ao ente, mas à linguagem em que o ente pode ser dito): as matemáticas constituem a historicidade do discurso do ente enquanto ente, ou seja, as matemáticas são a ontologia, o que, por sua vez, delimita o espaço próprio possível da filosofia, isto é, “o que não é o ser enquanto ser” - que se organiza em torno de dois conceitos, verdade e sujeito -, que nada mais é do que uma fidelidade ativa ao acontecimento da verdade. Uma razão que justifica a teoria matemática como o discurso próprio para a ciência do ente enquanto ente - sua forma obrigatória enquanto “ciência do imóvel” é que não há objetos matemáticos; as matemáticas, em sentido estrito, para Badiou não apresentam nada a não ser a própria apresentação, ou seja, o múltiplo. Ora, jamais convir 46 Cf. PU NTEL, L. B. Estrutura e ser: um quadro referencial teórico para uma filosofia sistemática. São Leopoldo: Ed. Unisinos, 2008, p. 354. 47 O exemplo de J. Branquinho: “ O conjunto dos satélites naturais de Mercúrio é idêntico ao conjunto das cidades portuguesas com mais de 5 milhões de habitantes”. BRAN Q U IN H O , J. “Conjunto vazio”. In: BR A N Q U IN H O , J.; M URCH O, D.; GOM ES, N. G. (orgs.). En­ ciclopédia de termos lógico-filosóficos. Op. cit., p. 187. 48 Cf. BADIOU, A. O Ser e o Evento. Op. cit., p. 15. 49 Cf. CORRY, L. “Nicolas Bourbaki and the Concept of Mathematical Structure” . Synthese, n. 92,1992, p. 315-338. M ACLANE, S.; MOERDIJK, I. Sbeaves in Geometry and Logic. A First Introduction to Topos Theory. Berlim/Nova York: Springer, 1992. A respeito do desenvolvimento da reflexão de Badiou a partir desses questionamentos, cf. MADARASZ, N. R. O múltiplo sem um. Op. cit., p. 142-147. w Cf. BADIOU, A. O Ser e o Evento. Op. cit., p. 21-22.

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à forma do objeto é para ele uma condição de todo discurso do ente enquanto ente. Badiou entende sua tese como uma tese epistemológica, ou seja, ela não é uma tese sobre o mundo, mas sobre o discurso capaz de pronunciar o que é dizível do ente enquanto ente. Por isso, contra a tese de Russell, ele defende que as matemáticas são o único discurso que sabe absolutamente do que fala, o ente como tal, que enquanto tal não pertence ao domínio do discurso filosófico. Pensar o ente não é tarefa do filósofo, mas do matemático. Assim, a ontologia poética, de que Heidegger em nossos dias é o grande represen­ tante, deve ser substituída pela ontologia matemática (Cantor,51 Gõdel, Cohen). Numa palavra, trata-se de rearticular a ontologia a partir da tese da identidade entre ontologia e matemática. Por sua vez, o ser da verdade, provando ele mesmo uma exceção a qualquer predicado pré-constituído da situação em que a verdade é desdobrada, é chamado “genérico”. A verdade é um procedimento genérico, e a situação enquanto tal não pode fornecê-la. Daí por que, nesse contexto, a categoria propriamente central será, para Badiou, a de “ genérico”, que supõe a travessia completa das categorias do ente (múl­ tiplo, vazio, natural, infinito) e do acontecimento (ultra-um, indecidível, intervenção, fidelidade). “Um múltiplo genérico (e tal é sempre o ser de uma verdade) é subtraído ao saber, desqualificado, inapresentável.”52Essa é a categoria que Badiou considera o emblema de todo o seu empreen­ dimento, e ele a tomou de P. Cohen, que, para ele, concluiu o grande monumento de pensamento iniciado por Cantor e Frege. Badiou se confronta em primeiro lugar com o que ele considera a tese básica de toda a tradição ocidental: a reciprocidade do um e do ente: Durante séculos, a filosofia pensou o ser-apresentado através de dois pares dialéticos: o par um/múltiplo e o par todo/partes. Não é exagero dizer que o exame das conexões ou desconexões entre a unidade e a totalidade envolvia toda ontologia especulativa.53

O ente é um; portanto, o múltiplo não é: a reciprocidade entre o um e o ente é tanto o axioma inicial da filosofia como seu impasse. A decisão a respeito do “axioma inicial” de seu projeto teórico o conduz à contratese: o um não é (a tese básica da teoria dos conjuntos), por isso o um nunca é uma apresentação e existe somente como operação. Não há

51 Cf. GOM IDE, W. “As noções de conjunto vazio e unidade cardinal: a condição de possibilidade de apresentação do múltiplo - um diálogo entre Alain Badiou e Cantor” . Ethica. Cadernos Acadêmicos, vol. 25, n. 2 ,2008, p. 53-65. 52 Cf. BADIO U, A. O Ser e o Evento. Op. aí., p. 22. 53 Cf. ibidem, p. 73.

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o um, só existe a “conta-por-um”. Daí por que a unidade com que um objeto se apresenta a nós é fruto de uma operação. Numa palavra, “o múltiplo é o regime da apresentação, o um é, no tocante à apresentação, um resultado operatório [...] ”.54 Nessa perspectiva, o ente no sentido mais geral e fundamental é, para Badiou, um conjunto,55 ou seja, uma multiplicidade (a primeira categoria do ente) e nada mais do que multiplicidade, uma vez que a multiplicidade é composta de multiplicidade: os conjuntos não têm uni­ dades por elementos, mas outras multiplicidades, e isso indefinidamente. Todo múltiplo é múltiplo de múltiplos, é composto de múltiplos, ente “ sem-um”, e essa é a primeira lei ontológica; portanto, a multiplicidade é o elemento básico da ontologia, o conjunto é a categoria ontológica fundamental. E por esta razão que “as categorias de Aristóteles (ou de Kant), unidade e totalidade, não podem servir para apreendê-lo”.56 O conceito de multiplicidade que é absolutamente fundamentai na proposta de Badiou é, para Madarasz, um sinal claro do afastamento de Badiou de Heidegger.57 E precisamente isso que implica a identidade entre matemática e ontologia,58 uma vez que a teoria dos conjuntos, considerada a teoria adequada do múltiplo puro,59 reflete qualquer situação na medida em que reflete seu ente enquanto ente, ou seja, o múltiplo dos múltiplos que compõe toda apresentação.60 Assim, o conjunto constitui a única base 54 Cf. BADIOU, A. O Ser e o Evento. Op. cit., p. 30. 55 Cf. FERREIRA, F. “Teoria dos conjuntos”. In: BR A N Q U IN H O , J.; M URCH O, D.; GOM ES, N. G. (orgs.). Enciclopédia de termos lógico-filosóficos. Op. cit., p. 755: “A principal maneira de formar um conjunto é por meio de uma propriedade: esta unifica como conjunto o agregado das entidades que a possuem. É o chamado PRINCÍPIO DA ABSTRAÇÃO. N a virada do século X X descobriu-se que o uso irrestrito deste princípio origina paradoxos [...]” . Sobre a posição de Badiou a respeito dos paradoxos, cf. BAD IO U, A. O Sereo Evento. Op. cit., p. 43 e ss. 36 Cf. ibidem, p. 73. 57 Cf. MADARASZ, N . R. O múltiplo sem um. Op. cit., p. 38. 58 Cf. DIAS, B. M. F. P. Acontecimento, Verdade e Sujeito. A Política como Condição da Filosofia em Alain Badiou. Op. cit., p. 35: “A identidade entre matemática e ontologia é uma proposta que resulta de uma decisão filosófica essencial, a que postula o ser como pura mul­ tiplicidade, sem qualquer determinação predicativa e, acima de tudo, sem qualquer resolução numa figura de unidade” . 59 A respeito da teoria das categorias que se apresenta como alternativa à teoria dos con­ juntos, cf. LAWVERE, F. W.; SCH A N U EL, S. Conceptual Mathematics: A First Introduction to Categories. Cambridge: Cambridge University Press, 1997. ASSIS N ETO , F. R. de. “Teoria das categorias”. In: BR A N Q U IN H O , J.; M U RCH O , D.; GOM ES, N. G. (orgs.). Enciclo­ pédia de termos lógico-filosóficos. Op. cit., p. 751-753. A respeito da supremacia da teoria das categorias perante a teoria dos conjuntos, cf. DESANTI, J. T. “ Quelques remarques à propos de P ontologie intrinsèque d ’ Alain Badiou” . Les Temps Modemes, n. 526, 1990, p. 61-71. McLARTY, C. “Uses and Abuses of the History of tópos Theory” . British Journal for the Philosophy o f Science, 14, 1990, p. 351-375. 60 Cf. BADIOU, A. O Ser e o Evento. Op. cit., p. 110.

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da ontologia, seu único objeto: as multiplicidades são o unicamente real, visto que a teoria dos conjuntos é a única ontologia, a única ciência do ente, porque todos os entes são conjuntos. Uma axiomatização particular da teoria dos conjuntos - os axiomas de Zermelo/Fraenkel - fornece os primeiros princípios do ente, a lei de ideias. Badiou chama de “situação” toda multiplicidade apresentada, e de “estrutura” o que prescreve o regime da “conta-por-um” para uma multiplicidade apresentada; isto é, uma estrutura é aquilo através de que o número advém ao múltiplo apresentado. Então, "o múltiplo é o inevitável predicado do que é estruturado, pois a estruturação, isto é, a ‘conta-por-um’, é um efeito”.61Ele distingue dois tipos de multiplicidade: a “multiplicidade inconsistente”, que é a pura apresentação, na medida em que é retroativamente apreendida como não uma, já que o ente-um é apenas resultado de uma operação; e a "multiplicidade consistente”, que é a multiplicidade composta de vários uns (“homens-uns”, “animais-uns” etc.), eles próprios contados pela ação da estrutura. São essas multiplicidades consistentes que constituem nossa expe­ riência imediata do real: "tudo o que é, é multiplicidade inconsistente, mas não aparece num mundo ou numa situação senão como multiplici­ dade consistente, como uma unidade”.62 A tarefa própria da ontologia consiste, então, em retroceder da consistência aparente das situações ao ser inconsistente das multiplicidades. A ontologia é uma teoria do ente, mas Badiou apresentou, numa obra posterior,63 o que ele chamou de “teoria do aparecer”, para tratar um problema que permaneceu em suspenso em sua ontologia: como explicar que o ente que é pura multiplicidade inconsistente possa apa­ recer como multiplicidade consistente? A introdução do um em nossa experiência das coisas se faz a partir de um ente que nada é além de multiplicidades ao infinito. Por que, então, o ente não se apresenta como multiplicidade inconsistente? É nesse sentido que B. Dias fala de duas ontologias em Badiou.64 Trata-se, então, de pensar o específico do aparecer perante o ente que, embora imutável, estático, eternamente atual e imóvel, aparece em numerosos mundos de modos muitos diferentes e igualmente frágeis, ou seja, em contextos distintos regidos segundo lógicas extremamente va­ 61 Cf. BADIO U, A. O Ser e o Evento. Op. cit.7p. 30. 62 Cf. DIAS, B. M. F. P. Acontecimento, Verdade e Sujeito. Op. cit., p. 24. 63 Cf. BAD IOU, A. Logiques des Mondes - UÉtre et VÉvénement 2. Paris: Seuil, 2006. 64 Cf. DIAS, B. M. F. P. Acontecimento, Verdade e Sujeito. Op. cit., p. 24: “Temos, portanto, duas ontologias ou duas regiões do inquérito ontológico: uma subordinada às multiplicidades puras, entendidas fora de qualquer determinação, que é a ontologia entendida como ciência do ser-enquanto-ser (être-en-tant-qu’ être), e outra que dá conta do ser tal como ele aparece”.

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riadas - e a vinculação entre um e outro. O ente é imutável; seu aparecer, porém, não cessa de se multiplicar nos diferentes mundos. A questão, nesse novo contexto, é, então, mostrar como uma verdade transistórica, transmundana e eterna pode aparecer em mundos distintos. Essa questão ultrapassa o objetivo desta apresentação. A esta altura surge uma questão decisiva: depois de tudo que foi dito, como pode ser um discurso sobre o ente? Duas dificuldades emer­ gem aqui: 1) a questão da apresentação do ente como tal. É necessário haver tal apresentação? Tudo indica que o ente esteja compreendido em tudo o que uma apresentação apresenta, mas não é concebível que ele possa apresentar-se enquanto ente; 2) se a ontologia é uma situação, ela admite um modo de “conta-por-um”, ou seja, uma estrutura. Mas a “ conta-por-um” do ente não nos reconduz às aporias em que ente e um são reciprocáveis ? Mas se o um é apenas o resultado da “conta-por-um”, não se faz necessário dizer que o ente não é um? A grande tentação das ontologias aqui, para Badiou, é afirmar que a ontologia não é uma situação, e que, portanto, o ente não pode significar no múltiplo estruturado. A única saída, então, consistiria em afirmar que somente uma experiência situada além de toda estrutura nos abre acesso ao velamento de sua presença, o que se manifesta conceitualmente, por exemplo, nas teologias negativas que instituem o um do ente arrancado ao múltiplo, e nomeável unicamente como o “outro absoluto”. Esse tipo de ontologia Badiou denomina “ontologia da presença” (ontologia não matemática, poética) que é radicalmente contraposta a seu proje­ to de ontologia, uma vez que a presença é exatamente o contrário da apresentação que é o ser múltiplo tal como efetivamente exposto. Do ponto de vista lingüístico, a linguagem poética é a mais adequada para a ontologia da presença. Conceitualmente, para Badiou uma ontologia existe no regime positivo da predicação e até da formalização, ou seja, na experiência da invenção dedutiva. Assim, a contraposição à ontologia da presença vai consistir no “rigor do subtrativo em que o ente não é dito senão por ser inconjecturável por toda presença e por toda experiência”.65Daí sua tese central em contraposição às ontologias da presença: a ontologia só pode ser uma “teoria das multiplicidades inconsistentes enquanto tais”. Ela é, assim, a ciência do múltiplo enquanto múltiplo, o que significa dizer que seu tema axial é a multiplicidade inconsistente. Uma questão permanece aqui em aberto: onde está o ponto de ser absolutamente inicial? Para Badiou, aqui se põe precisamente a questão explicitada por

65 Cf. BADIOU, A. O Ser e o Evento. Op. cit., p. 32.

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Leibniz: por que existe algo e não nada? De que múltiplo primeiro se afirma a existência? Esse constitui para Badiou o problema central da sutura subtrativa da teoria dos conjuntos, e para ele isso implica afirmar que a primeira multiplicidade apresentada tem de ser múltipla de nada, que é justamente o nome da inapresentação na apresentação, pois do contrário ela seria múltipla de alguma coisa que, enquanto tal, estaria na posição do um: “[...] o inapresentável não pode vir à linguagem senão como o que é ‘múltiplo’ de nada”.66 O nada nomeia precisamente o indizível da apresentação,67 que é tanto da estrutura, da consistência, quanto o nada do múltiplo puro, isto é, da inconsistência. Enquanto tal ele é uma sutura ao ente, uma sutura ontológica, a existência de um inexistente. Portanto, qualquer composição só pode ser feita a partir desse "múltiplo-de-nada”, ou seja, do “vazio”, que assim se constitui como o nome próprio do ente e como sua segunda categoria fundamental. Numa palavra, “o único termo de que se tecem as composições sem conceito é forçosamente o vazio”.68 Esta é também uma lei de toda apresentação, ou seja, a errância do vazio, a inapresentabilidade como não encontro, o que significa afirmar que a ontologia é obrigada a propor uma teoria do vazio. Daí a afirmação: “ [...] toda apresentação estruturada inapresenta ‘seu’ vazio, no modo desse ‘não um5 que nada mais é do que a face subtrativa da conta”.69 A ontologia é a teoria do múltiplo inconsistente de qualquer situação, numa palavra, do múltiplo subtraído a toda lei particular, a toda “conta-por-um”. Como diz Madarasz: “Para Badiou, torna-se necessária a identificação entre ontologia e matemática. A razão é que a multiplicidade sem unidade quebra a série unificadora entre infinito, um e absoluto”.70 Ora, o modo próprío como a inconsistência vagueia no todo de uma situação é o nada, e o modo como ela se inapresenta é a subtração à conta, o “não um”, o vazio. “ [...] O vazio é esse ponto insituável que revela que ‘o-que-se-apresenta’ vagueia na apresentação sob a forma de

66 Cf. BADIO U, A. O Ser e o Evento. Op. cit., p. 61. 67 Para R. Nierenberg e D. Nierenberg, a solução que Badiou apresenta aqui é simples­ mente uma assunção, uma escolha, e não algo matemática e logicamente necessário. Cf. N IER EN BERG , R.; N IER EN BERG , D. “Badiou’ s Number: A Critique of Mathematics as Ontology” . Criticai Inquiry, 37 A, 2011, p. 591: " The importantpoint to note here is that the ‘solution' Badiou presents to the question ‘is there something rather than nothing’, the ‘verification’ of the 'unpresentahle alone as existing \ is an assumption, a matter o f a choice, not of mathematical or logical necessity“ . 58 Cf. BADIOU, A. O Ser e o Evento. Op. cit., p. 53. 69 Cf. ibidem, p. 52. 70 Cf. MADARASZ, N. R. O múltiplo sem um. Op. cit., p. 38.

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uma subtração à conta”.71Dessa forma, o tema absolutamente primeiro da ontologia é o vazio, ela não pode contar como existente senão o vazio que se caracteriza por sua onipresença: “ O vazio, a que nada pertence, inclui-se por isso mesmo no todo”,72 o que se articula no teorema de que o conjunto vazio seja um subconjunto de não importa que conjunto supostamente existente. De tudo o que não é apresentável se pode inferir que ele é apresentado em toda parte em sua falta como inclusão, ou seja, o vazio está em situação de inclusão universal. Isso implica dizer que há duas relações possíveis entre múltiplos, o que para Badiou constitui uma distinção conceituai crucial: a relação de “pertença” (í) (um múltiplo é contado como elemento na apresentação de um outro, o que permite pensar o múltiplo puro sem recorrer ao Um) e a relação de “inclusão” (I) (um múltiplo é um subconjunto de um outro). Elas dizem respeito a dois operadores de conta distintos, e não a duas maneiras de pensar o ente do múltiplo. Um termo de uma situação é o que essa situação apresenta e conta por um. Pertencer a uma situação significa ser apresentado por essa situação, ser um dos elementos que ela estrutura. Estar incluído numa situação quer dizer ser contado pelo estado da situação. Nesse contexto, Badiou demonstra o que ele denomina o “teo­ rema do ponto de excesso” (a terceira categoria do ente): o múltiplo dos subconjuntos compreende forçosamente ao menos um múltiplo que não pertence ao conjunto inicial. Isso significa dizer que nenhum múltiplo está em condições de “fazer-um” de tudo o que inclui, ou seja, o recurso imanente de um múltiplo apresentado ultrapassa a ca­ pacidade de conta da qual ele é o “resultado-um”. Daí a necessidade para numerar esse recurso da introdução de uma potência de conta que não é ele mesmo. O excesso é a reduplicação representativa da estrutura da apresentação. Em toda essa consideração está sempre pressuposta a "apresenta­ ção”, que é, para Badiou, a palavra primitiva da meta-ontologia, pois ela é o ser múltiplo como efetivamente exposto e, por isso, é reciprocável com a multiplicidade inconsistente. Por sua vez, Badiou denomina um termo como “normal” quando ele é ao mesmo tempo apresentado na situação e representado pelo estado da situação. Assim, um termo normal pertence à situação e também está incluído nela. Enquanto tal, a normalidade é um atributo essencial do ser natural. A "natureza” (quarta categoria do ente) é a normalidade recorrente, ela é a forma de estabilidade e de homogeneidade do manter-se múltiplo, um equilíbrio 71 Cf. BAD IO U, A. O Ser e o Evento. Op. cit., p. 402. 72 Cf. ibidem, p. 77.

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maximal entre apresentação e representação, entre a pertença e a inclusão, entre a situação e o estado de situação. Ora, a tese dos modernos é que “a natureza é infinita”, o que significa dizer que, em contraposição ao pensamento grego que dava à infinitude a função de distribuição das regiões do ente em seu todo (Deus e a natureza criada),73a infinitude na modernidade passa a ser uma característica do ente enquanto ente sob a forma da noção de conjunto infinito, que decide a expansão do múltiplo natural além de seu limite grego. Dessa forma, o ente é infinito, pois nenhum limite imanente determina a multiplicidade enquanto tal sob pena de se reintroduzir a unidade/4 Somente o ente é infinito, e o finito é útil para se pensar as diferenças empíricas, ou seja, os entes intrassituacionais. Essa é, para Badiou, a quinta categoria do ente. Essa ontologização matemática do infinito (ontologia do infinito) o separa absolutamente do um, o que significa dizer que há necessariamente múltiplos infinitos, e isso ao infi­ nito. Numa palavra, a tese da infinidade é necessariamente uma decisão ontológica, isto é, um axioma. Com a matematização da ontologia, Badiou toca numa questão bá­ sica da história da filosofia ocidental. O fundamental aqui é ter presente que essa história foi sempre marcada por uma determinada concepção da relação entre estruturas lógico-matemáticas e estruturas ontológicas. A característica básica dessa concepção é a tese da dicotomia entre as estruturas lógico-matemáticas - que nessa concepção se referem à esfera da linguagem, no sentido de que elas têm a ver com a formulação de modelos abstratos da realidade (do mundo), mas que não se referem diretamente à própria realidade - e as estruturas ontológicas que se referem ao mundo. Badiou, matematizando a ontologia, rompe com essa dicotomia, uma vez que, para ele, as matemáticas constituem o discurso em que o ente, enquanto ente, é dito; portanto, as estruturas matemáticas são dire­ tamente ontológicas, possuem em si mesmas um caráter ontológico, ou seja, as matemáticas são os fatores de configuração da própria realidade. No entanto, duas questões podem ser levantadas aqui em relação à sua proposta de matematização da ontologia. A primeira é decorrente de sua não tematização da problemática da teoricidade, ou seja, do caráter teórico da filosofia enquanto tal.75 73 Cf. BADIO U, A. O Ser e o Evento. Op. cit., p. 120: "Foi da óptica da hipótese, não de um ser infinito, mas de múltiplos números infinitos, que a revolução intelectual dos séculos XVI e XVII provocou no pensamento a ruptura arriscada da interrogação sobre o ser, e o abandono irreversível da montagem grega”. 74 Cf. DIAS, B. M. F. P. Acontecimento, Verdade e Sujeito. Op. cit., p. 56. 75 Cf. PU N TEL, L. B. Estrutura e ser. Op. cit., p. 228 e ss.

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A teoricidade é aquela dimensão em que teorias são desenvolvidas, ou seja, ela é a forma de discurso metódico e rigorosamente ordenado que é configurado através de sentenças puramente declarativas. Filosofia é entendida estritamente enquanto teoria, de forma que, antes de tudo, é necessário esclarecer a dimensão teórica em geral e a concepção de uma teoría filosófica em particular. Portanto, a primeira tarefa da filosofia consiste no esclarecimento de toda a dimensão da teoricidade, ou seja, de seus componentes irrenunciáveis. Esse objetivo se cumpre, para Puntel,76 em primeiro lugar pela introdução do conceito de “quadro referencial teórico”, que é a to­ talidade dos fatores que preenchem esses requisitos necessários. Isso significa dizer que qualquer afirmação nossa, qualquer concepção e, de modo especial, qualquer teoria só tem sentido, ou seja, um status determinado e claro, na medida em que se encontra situada no seio de um quadro teórico. Isso tem conseqüências fortes para a filosofia: antes do tratamento de qualquer questão filosófica, temos de dispor de uma linguagem, de uma lógica, de uma semântica, de uma conceitualidade ontológica fundamental; numa palavra, temos de ter clareza de todos os componentes de um quadro teórico adequado. Badiou não empreendeu uma análise adequada dos elementos constitutivos de um quadro teórico que ele na realidade faz coincidir pura e simplesmente com a estrutura formal matemática, e sua conside­ ração se reduz a ela. Por essa razão, falta aqui a compreensão de que as estruturas matemáticas, embora ontológicas, constituem ainda um nível extremamente abstrato do dizer a realidade, pois são as estruturas mais gerais, as irrestritamente universais, “já que elas constituem, por assim dizer, a ‘textura* interna de cada discurso e, desse modo, também de cada ‘item’ ontológico V 7 Na medida em que toda a esfera da teoricidade é considerada, vê-se que se deve falar de um processo de determinação que vai das estruturas mais abstratas, as estruturas formais, às mais concretas, as estruturas ontológicas, que desse modo constituem o ponto final do discurso teórico-filosófico. A simples identificação de matemática e ontologia tem o mérito de entender o caráter ontológico da matemática, mas não exprime a dimensão ontológica em sua abrangência. Outra questão é a da teoria matemática que aqui é considerada adequada para dizer o ente enquanto ente: a teoria dos conjuntos. Uma análise das estruturas semânticas e das estruturas ontológicas, como componentes irrenunciáveis de uma teoria, e uma crítica radical da se­ 76Cf. PU NTEL, L. B. Estrutura e ser. Op. cit., p. 11 e ss. 77Cf. idem. Ser e Deus. Um enfoque sistemático em confronto com M. Heidegger, É. Lévinas e J.-L Marion. São Leopoldo: Ed. Unisinos, 2011, p. 157.

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mântica e da ontologia composicionais, a que ainda está ligada a teoria dos conjuntos, teria mostrado a sua inadequação como instrumento formal para a expressão do real/8 R. Nierenberg e D. Nierenberg defendem a tese de que a base mate­ mática sobre que Badiou constrói sua ontologia é apenas convencional, o que tem como conseqüência que também sua ontologia é convencional/9 Além disso, a ontologia implícita nos axiomas de Zermelo e Fraenkel, em que se baseia Badiou, é extremamente restrita e incapaz, por essa razão, de constituir a base de uma ontologia geral. Esses axiomas só admitem objetos e conjuntos de alguns tipos: números, estruturas e aqueles ob­ jetos que são sempre os mesmos e não afetáveis por qualquer tipo de acontecimento, como, por exemplo, as mônadas de Leibniz ou os fatos atômicos no espaço lógico do Tractatus de Wittgenstein. Tal ontologia tem, então, de afirmar que os objetos matemáticos são os únicos reais, e a matemática é o único conhecimento real.80 No entanto, não se pode negar que mesmo nos níveis mais baixos as entidades são afetadas por interações e resistem a ser reduzidas a números imutá­ veis. Por essa razão, a rejeição do afetável é catastrófica para a ontologia geral, pois ela nos priva da maior parte de nossos pensamentos - o que significa dizer, de nossa humanidade. 4.2.2 A filosofia enquanto teoria do acontecimento Nesse nível de pensamento em que Badiou se propõe precisamente articular uma consideração “do que não é o ente enquanto ente” - da­ quilo que acontece, e não daquilo que é -, ele começa reconhecendo-se devedor de Heidegger, e determina, a partir dessa herança, que o lugar desse pensamento é a não natureza: “O que se apresenta de outro que não as multiplicidades naturais, ou estáveis, ou normais”.81Numa pala­ vra, adentramos agora a esfera do anormal, do instável, da antinatureza, do oposto da natureza, da surpresa, do que não é previsível como fato, "daquilo que, do estrito ponto de vista dessa situação ou da legalidade desse mundo, é propriamente impossível”.82 Trata-se aqui da multiplicidade que pertence a si mesma (a € a), 78 Cf. PU N TEL, L. B. Estrutura e ser. Op. cit., p. 353-356; 566-572. 79 Cf. N IER EN BERG , R.; N IER EN BERG , D. Badiou’ s Number. Op. cit., p. 599: "In short, the mathematical basis which Badiou builds is conventional, and therefore whatever ontology results will be similarly conventional, even if it be a purely mathematical ontology, let alone the more general ontology Badiou proposes 80Cf. ibidem, p. 606-607: “An ontology that takes ZFset theory as its basis must deny reality to that which is affected; it must take math as the only real knowledge and the mathematical objects as the only real beings, as Badiou himself repeatedly asserts”. 81 Cf. BAD IO U, A. O Ser e o Evento. Op. cit., p. 143. 82 Cf. BADIO U, A. A Hipótese Comunista. São Paulo: Boitempo, 2012, p. 138.

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que é elemento de si mesma, daquela multiplicidade que é rejeitada da axiomática padrão da teoria dos conjuntos,83pois “a ontologia não ad­ mite que possam existir, isto é, que possam ser contados por um, como conjuntos por sua axiomática, múltiplos que pertencem a si mesmos”,84 uma vez que toda autopertença contradiz uma ideia fundamental do múltiplo, ou seja, "aquela que prescreve a finitude fundadora da origem para toda apresentação”.85 A pergunta central nesse novo momento do pensamento é, então: o que é este “anormal” ? Ora, o primeiro oposto das multiplicidades normais são as "multiplicidades singulares”, que são múltiplos que pertencem à situação sem, contudo, estar nela incluídos, na medida em que alguns dos múltiplos de que este múltiplo se compõe não são termos da situação. Nessa perspectiva, é possível, para Badiou, pensar o anormal, a antinatureza, a história enquanto a “onipresença da singula­ ridade”, enquanto o puramente fortuito, ininferível a partir da situação, em contraposição à natureza que é a "onipresença da normalidade”. A essência do acontecimento é ser indecidível quanto a sua pertença efetiva à situação;86 a indecidibilidade é “um atributo racional”, intrínseco, do acontecimento. Badiou denomina “sítio eventural” este múltiplo totalmente anor­ mal: o próprio sítio é apresentado, mas nada que o compõe o é, de modo que o sítio não é uma parte da situação, ele está na borda do vazio, ele é fundador. O sítio é “aquilo que expõe a si mesmo no aparecer de uma situação”.87 O paradoxo aqui consiste precisamente no fato de que o sítio eventural não se deixe reconhecer [...] senão a partir do que ele não apresenta na situação em que ele mesmo é apresentado. De fato, é apenas por fazer-se um dos múltiplos inexistentes na situação que um múltiplo é singular 88

O sítio está na situação, mas nada do que o compõe está. Daí por que esse múltiplo não pode resultar de uma combinação interna à situa­ ção: ele não pode resultar de contas anteriores, mas se impõe a si mesmo todos os elementos que concorrem para sua existência.

83 Cf. M EILLASSO UX, Q. Intervention au séminaire “Marx au X X Ie siècle: Vesprit & la l e t t e r Paris, 02/02/2008, p. 4. 84 Cf. BADIO U, A. O Ser e o Evento. Op. cit., p. 156. 85 Cf. idem. 86 Cf. ibidem, p. 158. 87 Cf. BADIOU, A. A Hipótese Comunista. Op. cit., p. 116. 88 Cf. idem. p. 158.

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O que é importante aqui é notar que um evento não é a realização de uma possibilidade interna à situação ou dependente das leis transcendentais do mundo. Um evento é criação de novas possibilidades.89

O acontecimento constitui a novidade dos possíveis, o que ocorre pela subtração da força do estado, um processo infinito, pois “é sempre formalmente possível que a linha divisória estabelecida pelo Estado entre o possível e o impossível seja deslocada mais uma vez [..,]”.90Dessa for­ ma, a natureza é absoluta, e a história é relativa, uma vez que o conceito de sítio eventual, em contraposição ao conceito de multiplicidade natural, não é nem intrínseco nem absoluto. A definição dos sítios eventurais é sempre local. Por isso, podemos pensar a "historicidade” de certos múltiplos, mas não podemos pensar uma “história”. Assim, “toda ação transformadora radical se origina em um ponto 91 Um acontecimento está sempre num ponto da situação. Não há acontecimento a não ser numa situação que apresente pelo menos um sítio. Todo acontecimento tem um sítio singularizável numa situação histórica; não há acontecimento a não ser relativamente a uma situação histórica, e ele está preso a ela, mesmo que uma situação histórica não produza necessariamente acontecimento.92Badiou insiste que é funda­ mental para a compreensão do real distinguir as situações em que há sítios eventurais daquelas em que não há. Para que haja um aconteci­ mento é necessária uma situação em que seja apresentado pelo menos um múltiplo na borda do vazio. Além disso, nossa existência é marcada, acima de tudo, por situações neutras "em que não se trata nem da vida (natural), nem da ação (história)”.93 Para esclarecer o que chama de acontecimento, Badiou dá o exem­ plo da Revolução Francesa.94O que faz da Revolução Francesa propria­ mente um acontecimento? O que nos permite nomeá-la como revolução e não caos, desordem, punição divina? A Revolução não é nenhum dos fatos que a compõem, nem sua reunião. Trata-se de um acontecimento atestado não só por seu sítio, mas, sobretudo, pela nomeação militante do que aí se produz. Nomear a Revolução “Revolução” significa afirmar, a título de hipótese, um sentido: algo de fundamental está prestes a se realizar no campo político a que vale a pena ser fiel, tentando detectar

89 Cf. BA D IO U , A. A Hipótese Comunista. Op. cit., p. 138. 90 Cf. ibidem, p. 145. 91 Cf. BADIOU, A. O Ser e o Evento. Op. cit., p. 146. 92 Cf. ibidem, p. 148. 93 Cf. idem. 94 Cf. M EILLASSOUX, Q. Intervention au séminaire aMarx au X X Ie siè c le O p . cit., p. 5-6.

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na situação o que diz respeito a uma verdade emancipatória em via de elaboração e que se opõe a todas as forças do velho mundo. Um acontecimento é, assim, a emergência de uma ruptura pura com a situação vigente,95que nada na situação permite classificar sob um repertório feito,96 “um múltiplo, cuja pertença à situação é indecidível; decidir que ele lhe pertence é uma aposta que jamais podemos esperar que seja legítima [...]”.97Dessa forma, ele é completamente heterogêneo aos mundos históricos estabelecidos com seus costumes, hábitos, regras e expectativas e, portanto, abala a situação. O acontecimento é justamente o que se subtrai ao possível e à sua consideração; é por isso que não pode entrar nas considerações feitas a partir dos saberes que se vão formando e acumulando.98

Assim, o acontecimento rompe com o regime normal da descrição e do saber e aponta para outro tipo de decurso, para quem admite que justamente aí, nesse lugar, pode muito bem ter ocorrido algo até então não nomeado.99Assim, ele não somente se produz no sítio, “mas a partir da suscitação daquilo que o sítio contém de inapresentável [...]”.100Ba­ diou denomina “estado” ou “estado da situação” justamente o sistema de imposições que estabelece limites à possibilidade dos possíveis, e, assim, o acontecimento emerge não no nível das possibilidades objetivas, mas no nível da possibilidade dos possíveis. O estado é o que estabelece, numa situação determinada, o impossível próprio dessa situação. Se existe um acontecimento, o fundamental, para Badiou, é que sua pertença à situação de seu sítio seja simplesmente indecidível a partir da própria situação. Nesse sentido, o acontecimento é imprevisível e incalculável, do ponto de vista da situação; ele é a exceção de um acaso,101ele é “o aparecer/ desaparecer de um múltiplo cujo paradoxo é o autopertencimento”.102 “ O evento advém ao estado como ser de um enigma.”103 Para Badiou, 95 Cf. MADARASZ, N. R. O múltiplo sem um. Op. cit., p. 22: “ [...] um acontecimento é uma ruptura, um efeito sem causa necessária, que desestabiliza uma situação a um ponto em que desencadeia uma nomeação que doravante tentará se verificar diante da natureza real do que vem ocorrendo”. 96Cf. MEILLASSOUX, Q. Intervention au séminaire “Marx au X X Ie siècle Op. cit., p. 4. 97 Cf. BADIOU, A. O Ser e o Evento. Op. cit., p. 165. 98 Cf. DIAS, B. M. F. P. Acontecimento, Verdade e Sujeito. Op. cit., p. 25. 99 Para Badiou, dentre as religiões o cristianismo é a única que tem um caráter eventural. Ele tem no seu cerne um acontecimento situado e exemplar: a morte do filho de Deus na Cruz. Todos os parâmetros da doutrina do acontecimento estão presentes no cristianismo, embora haja aqui também restos de uma ontologia da presença. Cf. BA D IO U , A. O Ser e o Evento. Op. cit., p. 173-180. 100 Cf. ibidem, p. 158. ’01 Cf. ibidem, p. 166. 102 Cf. BADIOU, A. A Hipótese Comunista. Op. cit., p. 119. 103 Cf. idem. O Ser e o Evento. Op. cit., p. 170.

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nesse contexto é fundamental a questão da intensidade da existência de um sítio. Daí uma distinção básica: “fato” é um sítio sem intensidade máxima, enquanto "singularidade” é um sítio com intensidade máxima de existência. Uma singularidade pode ser fraca ou forte, dependendo dos víncu­ los de conseqüência que o sítio estabelece com os outros elementos da situação que o apresentou no mundo. Assim, uma singularidade forte tem como conseqüência na situação fazer o inexistente existir, ou seja, fazer existir no mundo o que não existia nele, de tal modo que algo cujo valor de existência na situação é nulo adquire valor de existência positivo. Da intensidade depende a duração verdadeira de um sítio, ou seja, o desdobramento lógico de suas conseqüências. Portanto, tudo depende das conseqüências que constituem relações fracas ou fortes entre existências: "Sob o efeito de um evento, o inexistente do sítio existe absolutamente”.104 Por todas essas razões, o acontecimento é interditado, a ontologia o lança no que não é ente enquanto ente, o que significa dizer que a onto­ logia não admite uma doutrina do acontecimento - consequentemente, da historicidade - em sentido próprio, de tal forma que o acontecimento é o primeiro conceito exterior ao campo da ontologia matemática. A conseqüência disso é que para Badiou a realidade é fundamentalmente bidimensional: ela é ente e acontecimento, de forma que precisamos de um esquema teórico para além da ontologia, um axioma especial, o axioma da fundação, a fim de pensar o acontecimento. O axioma de fundação, introduzido por Zermelo, diz que “todo múltiplo puro é histórico, ou contém ao menos um sítio”;105 numa palavra, num “múltiplo-um” existente há sempre um múltiplo por ele apresentado que, em relação ao múltiplo inicial, está na borda do vazio. Esses múltiplos, enquanto múltiplos, nada têm a ver um com outro; nenhum elemento pertencente a um pertence ao outro, eles nada têm em comum a não ser o ser múltiplos. Essa disjunção total é, para Ba­ diou, um conceito da alteridade. O axioma da fundação106diz que todo múltiplo não vazio contém Outro que não ele. Isso significa dizer que todo múltiplo existente provém de uma origem imanente que é disposta

104Cf. BADIO U, A. A Hipótese Comunista. Op. cit., p. 125. 105 Cf. BAD IO U, A. O Ser e o Evento. Op. cit., p. 152. 106Para F. Ferreira, o axioma de fundação, também conhecido como “ axioma da regularida­ de”, afirma que o universo dos conjuntos é bem fundado para a relação de pertença. Ele impede precisamente que um conjunto seja membro de si mesmo, previne círculos para a relação de pertença e evita que ocorram seqüências infinitas descendentes para a relação de pertença. Cf. FERREIRA, F. “Axioma da fundação”. In: BR A N Q U IN H O ,J.; M U RCH O , D.; GOMES, N. G. (orgs.). Enciclopédia de termos lógico-filosóficos. Op. cit., p. 102.

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pelos Outros que lhe pertencem, A pertença não pode, assim, regredir ao infinito, o que estabelece, para Badiou, uma espécie de finitude original para baixo. A apresentação pode ser infinita, mas ela é sempre marcada pela finitude quanto à sua origem. Essas considerações permitem a Badiou articular uma diferen­ ça que é simplesmente central em seu pensamento: a diferença entre “natureza” e “história”. Para ele, uma situação é natural quando não apresenta nenhum termo singular, ou seja, quando todos os seus termos são normais; só o vazio funda tudo o que lhe pertence, o que significa que temos aqui uma estabilidade de estabilidades. Por sua vez, uma situação é histórica se ela contém pelo menos um sítio eventual ou na borda do vazio ou fundador. Não há nenhuma matriz ontológica que possa admitir o acontecimento; do acontecimento a ontologia nada pode dizer, ou antes, ela demonstra que ele não é, e por isso o histórico se situa além da ontologia. Dessa forma, o axioma da fundação delimita o ente pela interdição do acontecimento. O sujeito é exatamente a invenção de uma fidelidade ao que talvez se produziu no sentido de desdobrar parcialmente no mundo através de uma série de operações finitas de uma verdade, cujo ente é sempre infi­ nito. Uma verdade é um múltiplo que Badiou chama de “genérico”, um múltiplo que a linguagem matemática não pode nomear porque ele será feito um pouco de tudo.107 Nesse sentido, uma verdade resulta de uma fidelidade cuidadosa das conseqüências ilimitadas de um acontecimento. Nesta perspectiva, o sujeito não é simplesmente o indivíduo, ou um dado da natureza humana, ou uma entidade que dependa de uma realidade anterior, mas o sujeito é fundamentalmente uma construção contingente e débil, pura hipótese, uma condição permanentemente transitiva, dependente de uma decisão e de perseverança nela. Em contraposição a Kant, para Badiou o sujeito nunca é constituinte, mas constituído: o sujeito é raro, temporalmente finito e sempre dependente da ocorrência de um acontecimento que ele mesmo não pode produzir. O sujeito é, por assim dizer, o que dá corpo às verdades, é o fragmento material de um processo de verdade, e o é sempre em virtude de uma decisão: a decisão de incorporar o procedimento genérico despoletado por um acontecimento.108

“Verdade” ou “processo de verdade” consiste na organização con­ tinuada das conseqüências de um acontecimento numa situação, e é por essa razão que uma verdade não pode ser composta de puros fatos. Há, 107 Cf. M EILLASSO UX, Q. Intervention au séminaire “Marx au X X Ie siè c le O p . cit p. 7 e ss. 108 Cf. DIAS, B. M. E P. Acontecimento, Verdade e Sujeito. Op. cit., p. 40.

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para Badiou, quatro tipos de verdade que ocorrem em quatro instâncias da vida humana, que Badiou denomina "procedimentos genéricos”: política, ciência, arte e amor, as esferas onde ocorrem rupturas com o estado de situação, em que vem à luz um indiscernível do tempo e, consequentemente, quatro tipos de sujeito (científico, político, artísti­ co e amoroso), porque o sujeito é sempre sujeito de um procedimento genérico. A existência de uma verdade depende da ocorrência de um acontecimento. A filosofia, por sua vez, não produz verdade, não é um aconteci­ mento de verdade; ela, assim, não se funda a si mesma,109 mas depende desses domínios em que as verdades acontecem, e cabe a ela interpretar as verdades que emergem nesses domínios. Assim, esses quatro domínios são as quatro condições básicas da filosofia, embora eles não possam ser deduzidos racionalmente como os únicos tipos de produção humana capazes de pretensão à universalidade. A proposta aqui é apenas negativa: Badiou não vê outros tipos como satisfatórios.110 Dessa forma, por um lado, uma verdade não pode existir fora da história concreta dos sujeitos, por outro lado, ela é eterna, capaz de "carregar” a história, já que é portadora, em princípio, de um número infinito de conseqüências, e é suscetível de se prologar em momentos históricos e contextos muito diferentes; é, portanto, um múltiplo infinito, nunca totalmente presente, resultado de uma fidelidade preocupada com as conseqüências ilimitadas de um acontecimento que são incalculáveis e da busca de formas de organização adequadas a ele.111 As verdades, por serem eternas, renascem, mas, porque infinitas, renascem sempre de forma diferente, são portadoras de uma potência inesgotável de novidade. 4.3 A TESE DO PRIMADO DO A CO N TECIM EN TO N A FILOSOFIA DO ACASO DE K. UTZ 4.3.1 A questão central da filosofia 4.3.1.1 O paradigma do saber fundamental no pensamento ocidental A filosofia do acaso articulada por K. Utz112 se apresenta como um projeto teórico que tem como pretensão básica articular, a partir 109 Cf. DIAS, B. M. F. P. Acontecimento, Verdade e Sujeito. Op. cit., p. 38: "Badiou nega à filosofia uma posição soberana - a filosofia não é, portanto, autofundante, nem autorreferencial - ela é sempre segunda em relação ao real que a condiciona e que a antecede na ordem da existência [...] a filosofia chega sempre depois do acontecimento” . 110 Cf. BADIOU, A. Second Manifeste pour la Philosophie. Paris: Fayard, 2009, p. 149. 111Cf. MEILLASSOUX, Q. Intervention au sémvnaire “Marx au XXIe siècle”. Op. cit., p. 7. 112Cf. UTZ, K. Philosophie des Zufalls. Ein Entwurf. Paderbom/Munique/Viena/Zurique: Ferdinand Schõningh, 2005.

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de um único pensamento, os traços fundamentais de uma ontologia, de uma epistemologia e de uma teoria da práxis humana; numa palavra, articular a configuração própria da filosofia enquanto empreendimento teórico.113Isso significa, do ponto de vista da ontologia, uma proposta de uma ontologia monocategorial114e, do ponto de vista da filosofia como um todo, a articulação de uma filosofia sistemática no sentido de que a partir da categoria básica de acaso são tematizados os conteúdos que constituem o objeto da reflexão filosófica e suas conexões fundamentais, suas ordenações determinadas.115 A reflexão encontra seu ponto de partida naquilo que o autor denomina o “traço redutivo” da ciência e da filosofia: o procedimento do conhecimento consiste fundamentalmente na recondução da varie­ dade de fenômenos e dados a algo mais simples, mais abrangente, mais universal - numa palavra, a um fundamento. Esse procedimento não é algo específico do saber científico, mas ocorre em nossa vida cotidiana em cada pergunta “por que”, e consiste basicamente na busca de algo que supere o imediatamente dado e ao qual este possa ser reconduzido, ou seja, possa exprimir-se em sua inteligibilidade. Essa forma de o ser humano estar no mundo encontrou um alar­ gamento numa dupla direção: a) na medida em que foi efetivado de maneira consciente e metódica no conhecimento científico; 2) na me­ dida em que foi estendido até as questões últimas e fez-se busca de um fundamento último, de algo que tudo abrange, de algo absolutamente simples. O conhecimento que tematizou essas perguntas foi conside­ rado a ciência suprema e última, e denominado, em nossa tradição, de “metafísica”116 enquanto ciência do “último” e do “primeiro” . O que é o último, o primeiro, o fundamento último, é a pergunta central da metafísica.

113 Cf. a respeito do debate contemporâneo sobre o conceito de teoria e da especificidade de uma teoria filosófica: PU NTEL, L. B. Estrutura e ser: um quadro referencial teórico para uma filosofia sistemática. São Leopoldo: Ed. Unisinos, 2008, p. 159-186. 114 Toda a problemática é apresentada aqui no contexto do que nesse livro se chamou de ontologia no sentido estrito, ou seja, de uma “ teoria dos entes” (e não do ser, no sentido de Heidegger, ou no de Utz, para quem ser é sinônimo de existência); mais especificamente, teoria dos entes e do Ente Supremo como seu fundamento de modo que a problemática do ser necessário entraria para Heidegger no que ele denominou de “ onto-teo-logia” como característica fundamental do pensamento ocidental. 115 Cf. UTZ, K. Philosophie des Zufalls. Op. cit., p. 80. 116 M. Müller interpreta a metafísica desde Aristóteles como sendo fundamentalmente "arqueologia”, busca do primeiro, a verdade, e “ escatologia”, busca do último, a salvação. Cf. M ÜLLER, M. “Das Erste und Das Letzte (Wahrheit und Heil)”. In: Erfahrung und Geschichte. Grundzüge einer Philosophie der Freiheit ais transzendentale Erfahrung. Friburgo/Munique: Karl Alber Verlag, 1971, p. 17-42.

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Para Utz, nossa tradição encontrou dois conceitos básicos como resposta a essa questão: a metafísica pode, em primeiro lugar, significar a recondução de toda a multiplicidade das coisas e suas manifestações a algo que lhes é comum, de que todos participam. Aqui a metafísica se faz ciência do ser, "ontologia”, pois o ser é o que é comum a todos os entes. Mas a recondução pode também ser entendida como abstração de toda particularidade, de tudo o que distingue um do outro. Aqui a metafísica se faz “ciência do uno”, “henologia”. De qualquer forma o que caracteriza essa forma de interpretar o conhecimento humano é que ele é fundamentalmente busca de funda­ mento, quer seja busca dos fundamentos dos fenômenos nas ciências, quer seja busca do fundamento último na metafísica.117Tendo aceitado o axioma fundamental de que todo contingente tem uma causa, essa causa não pode ser outro contingente, pois isso só repõe a pergunta pela causa suficiente, uma vez que nenhum contingente é causa suficiente de sua existência, e que a série de causas não pode continuar indefinidamente; então, tem de haver algo absolutamente necessário como fundamento suficiente último de tudo. Numa palavra, o fundamento é o que sustenta o ser do fundado; sem o fundamento o fundado é nada. Porque o contingente existe, então tem de haver o ser necessário como fundamento do contingente. Essa é a formulação de Tomás de Aquino daquilo que constitui o cerne da metafísica ocidental.118 Dessa forma, a pergunta pela causa119 de qual­ quer conteúdo com que nos deparamos é plena de sentido e promete ter sucesso inclusive na persecução da corrente de fundamentos até o fundamento último. Para a metafísica, a relação de fundamento é em certo sentido pa­ radoxal: por um lado, o que fundamenta é, de certa forma, encontrável no fundado, é-lhe imanente, mas por outro lado lhe é transcendente

117 Pensar o fundamento é para Heidegger a essência da metafísica. Cf. H EID EGG ER, M. “A constituição onto-teo-lógica da metafísica”. In: Escritos e Conferências. Trad. de E. Stein. São Paulo: Nova Cultural, 1996, p. 193: “A metafísica pensa o ser do ente, tanto na unidade exploradora do mais geral, quer dizer, do que em toda parte é indiferente, como na unidade fundante da totalidade, quer dizer, do supremo acima de tudo. Assim é previamente pensado o ser do ente como fundamento fundante. Por isso toda a metafísica é, basicamente, desde o fundamento, o fundar que presta contas do fundamento, que responde a ele e, por fim, exige-lhe contas”. m A respeito de uma consideração crítica ao argumento de Tomás de Aquino, cf. PU N ­ TEL, L. B. Ser e Deus. Um enfoque sistemático em confronto com M. Heidegger, E. Lévinas e J. L. Marion. São Leopoldo: Editora Unisinos, 2011, p. 53-57. 119 Que a tradição pensou a relação entre o ser contingente e o ser absolutamente necessário a partir do conceito de causalidade é uma questão indiscutível. Isso não significa, contudo, dizer que esse enfoque é indispensável e muito menos que é o enfoque adequado para o tratamento dessa problemática. Cf. ibidem, p. 230-231.

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numa relação que é essencialmente assimétrica; na medida em que o fundamento supera o fundado, ele nunca é completamente encontrável no fundado. Daí por que a recondução só funciona numa direção: o fundado é reconduzido ao fundante, mas o contrário nunca pode ocorrer plenamente. 43.1.2 A reviravolta paradigmática: dos fundamentos para as ordenações de relações Esse modelo fundamental de saber passou por uma profunda transformação na modernidade. Perdeu-se, em primeiro lugar, a evi­ dência de que se tem necessidade de um fundamento suficiente: o ente “é simplesmente”, tudo é contingente e não há questão sobre isso.120Na física moderna, como também hoje, de modo especial, na nova biologia e na teoria da evolução, não há mais propriamente fundamentos no sentido da tradição, mas, no caso da física, "condições antecedentes” de distribuição de massa de energia, que são puramente contingentes. Os objetos físicos são entre si completamente do mesmo valor e estão em relações recíprocas: nenhum pode ser considerado fundamento ou princípio dos outros. O superior - ou o fundamento, ou o necessário - situa-se agora numa outra esfera, na esfera das ordenações dos fenô­ menos, as leis da natureza. A reviravolta paradigmática em relação à tradição do pensamento ocidental consiste basicamente no fato de que as ordenações dizem res­ peito unicamente às relações dos objetos uns para com os outros, sem que se levante a questão de sua existência. A questão da existência enquanto tal desaparece do horizonte do pensamento: desapareceu a pergunta por um princípio de existência; não temos mais fundamentos do ser, mas fundamentos de ordenações. Nisso está o cerne da reviravolta que articula a diferença entre a tradição metafísica clássica greco-medieval e o pensamento que se elaborou na modernidade. Nesse novo quadro, é totalmente arbitrária a escolha da situação que deve ser considerada como condição antecedente, que só é tal como, por exemplo, no caso da “ explosão originária” - justamente através da escolha arbitrária do observador. Isso significa apenas explicar a atual situação do universo através de outra situação, tam­ bém ela contingente. Não se põe mais nesse novo quadro o problema do regresso indefinido. Essa virada na concepção do saber constitui uma inversão radical da concepção clássica: desloca-se a necessidade

120 Pressupõe-se aqui a tese onicontingenteísta sem qualquer legitimação. Cf. a respeito dessa tese: PU NTEL, L. B. Ser e Deus. Op. át., p. 213 e ss.

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das coisas para as ordenações das coisas entre si, e com isso se gesta um novo tipo de diferença, isto é, a diferença entre a pura doação e a relacionalidade. A legitimação dessa forma de pensar se gestou num longo processo e encontrou no pensamento de Kant uma formulação rigorosa, no seio de um projeto teórico novo para a filosofia enquanto tal: o projeto da filosofia transcendental.121Aqui, tudo o que se pode dizer de determina­ do sobre as coisas está sob ordenações universais e necessárias, que são, como nas ciências naturais, ordenações de relacionalidade. No nível de uma teoria filosófica, não mais se tratam de relações das coisas entre si, mas de todas elas ao pensamento humano.122Esse é o elemento decisivo do novo quadro teórico da filosofia: somente em sua relacionalidade ao pensamento humano enquanto tal as coisas podem ser para nós.123 A determinidade se decide, portanto, agora de outra forma: só em sua relação a nós, e sob a medida das ordenações pré-dadas por nosso pensamento, as coisas de nosso conhecimento possuem determinidade. Dessa forma, é essa "necessidade do pensamento” que fundamenta a for­ ma de necessidade tematizada pelas ciências da natureza - a necessidade das formas universais de relação e não há nas coisas em si mesmas nenhum outro tipo de necessidade. A ordenação de tudo, em última aná­ lise, ao ser mesmo se tornou possível em virtude da diferenciação entre a esfera da existência e a esfera das ordenações. A expressão filosófica dessa tese é a afirmação de Kant de que “o ser não tem determinação em si mesmo”, mas só na relação ao conhecimento humano. Não há mais ordem do ser, pelo menos não uma cognoscível por nós, mas somente uma ordem epistemológica. Numa palavra, essa virada paradigmática teve como conseqüência teórica fundamental o fato de a pergunta por fundamentos e pela neces­ sidade dizer respeito à relação dos entes entre si e não à existência. No 121 Cf. a respeito: PU NTEL, L. B. “ Idealismo transcendental e Idealismo absoluto”. In: idem. Em busca do objeto e do estatuto teórico da filosofia. Estudos críticos na perspectiva histórico-filosófica. São Leopoldo: Ed. Unisinos, 2010, p. 175-199. OLIVEIRA, M. A. An­ tropologia Filosófica Contemporânea. Subjetividade e inversão teórica. São Paulo: Paulus, 2012, p . 107-135. 122Isso significa para Kant a necessidade de uma rearticulação daquilo que uma teoria filo­ sófica pode pretender, que agora é “ buscar uma resposta à questão da relação entre pensamento, linguagem e realidade pela mediação de uma consideração epistemológica; portanto, realizar a passagem de uma teoria do ente a uma teoria do conhecimento, de uma ontologia para uma teoria epistemológica enquanto a nova ‘filosofia primeira’, cuja tarefa básica é conhecer o que pode aparecer ao espírito humano a partir do quadro categorial de que ele dispõe”. Cf. O LI­ VEIRA, M. A. de. “Filosofia: lógica e metafísica” . In: IMAGUIRE, G.; ALM EIDA, C. L. S. de; OLIVEIRA, M. A. de (orgs.). Metafísica Contemporânea. Petrópolis: Vozes, 2007, p. 163. 123 Cf. OLIVEIRA, M. A. Antropologia Filosófica Contemporânea. Op. cit., p. 107: “A conseqüência fundamental dessa reviravolta que continua central no pensamento contempo­ râneo é a referência ao sujeito como elemento determinante de uma teoria filosófica”.

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que diz respeito à existência, “contentamo-nos” com sua casualidade, com seu caráter fortuito, contingente. O ser mesmo, a existência en­ quanto tal, constitui somente “uma pura imediatidade do ser dado” em tais relações enquanto tais, que, em virtude disso mesmo, não constitui mais objeto de indagações.124 Encerrou-se a questão a respeito do fundamento suficiente do ente. Temos o ente necessariamente sempre como algo contingente para nós, e não podemos saber se ele possui um fundamento suficiente. Isso não nos diz respeito. De agora em diante, qualquer exigência de explicação se reduz à relacionalidade entre os entes, ou seja, qualquer explicação e determinação sobre algo se reduzem ao situar-se em ordenações de conexões; têm, portanto, a ver com a mediação de um ente com outro numa cadeia que nunca termina. Por outro lado, temos começos em nosso saber, precisamos de condições antecedentes que são plenamente explicáveis pelo acaso: a ca­ sualidade é completamente suficiente. Numa palavra, a pura casualidade é plenamente suficiente para explicar tudo o que temos em nosso pensa­ mento para além da necessidade das ordenações de nosso pensamento. Bastam-nos as ordenações de relação e o acaso, não só nas ciências da natureza, mas para o pensamento teórico enquanto tal, porque além disso nada há teoricamente a pensar ou a perguntar. Isso significa afirmar que as coisas enquanto tais se manifestam no espaço e no tempo, possuem qualidade e quantidade, estão em determinadas relações e modos, e que isso é necessário através de sua relação ao pensamento. Que lugar, que tempo, que quantidade etc., tudo isso é em primeira instância casual para o pensamento. Numa segunda instância, o pensamento pode tematizar relações necessárias entre os objetos de pensamento, ou seja, relações necessárias entre si das coisas no espaço e no tempo, afirmações que revelam com toda clareza que o quadro teórico da “ontologia da substância” é plenamente preservado na ontologia do acaso: o mundo é constituído por objetos (coisas), suas propriedades e relações, e agora se acrescenta que essas relações são, em última instância, casuais; as conexões necessárias são conexões de “casuais com casuais” . As categorias da ontologia da tradição são aqui repensadas enquanto referidas ao evento, a categoria central: as proprie­ dades são caraterísticas das coisas que, por sua vez, são compreendidas como momentos dos eventos.

124 A respeito de um confronto com esta posição cf. PU NTEL, L. B. Ser e Deus. Op. cit., p .231-236.

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4.3.1.3 A lógica como a metafísica depois da virada paradigmática Hegel - 125 na esteira da virada kantiana em que se eliminou a per­ gunta pelo fundamento último do ser e se passou para as ordenações de relação - articulou uma nova pergunta, a pergunta pela origem da ordenação, da mediação e da determinação. Sua ideia básica é que, se a necessidade não mais se apresenta num imediato, mas em formas de relação e mediação, então a mesma pergunta que fora dirigida ao ime­ diato se dirige agora à mediação: a que são redutíveis as ordenações de relação? Como é a redução suprema das formas de relação? Qual é a condição suficiente para a mediação determinada e determinante? Qual é a origem da determinação? Essas são as perguntas da nova “filosofia primeira”, da nova metafísica. Numa palavra, quando todo conteúdo e toda necessidade se põem nas ordenações de relação, então a pergunta fundamental é pela possi­ bilidade do ser mediado, ou seja, a pergunta pelo que é precisamente a determinação. Essa é a nova pergunta da metafísica depois de Kant, e, enquanto tal, essa nova metafísica é lógica, porque a lógica contém as ordenações de relação últimas, intranscendíveis e que determinam tudo. Nesse sentido, a lógica se constitui como a "esfera suprema de redução”, na compreensão moderna da ciência, e dessa forma ela se constitui como a “ciência primeira” num tempo pós-metafísico, capaz de eliminar de forma radical qualquer ordem do ser - como ainda ocorreu com Kant, que conservou a “ordem do ser” do sujeito, uma vez que a ordenação do aparato do conhecimento se situava no sujeito real. Na lógica desaparece a referência a qualquer ordem de sujeito,126o que significa dizer que a ideia básica de redução se conservou no novo paradigma, e o que mudou é justamente a esfera da redução. No entanto, faz-se necessário ter clareza de que a lógica enquanto ciência primeira se distingue radicalmente do que hoje denominamos lógica formal, que se entende a si mesma como a ordenação universal, não temporal e intranscendível. A lógica de Hegel é uma "lógica da determinação”, que é aquilo através de que algo pode entrar numa re­ lação específica com outro. A pretensão de Hegel na lógica é apresentar a totalidade dos conceitos fundamentais de nosso pensamento, em sua determinação, e seu lugar no sistema dos conceitos. Sua lógica não teve, contudo, o sucesso que pretendia; em primeiro lugar, por sua pretensão 125 Cf. UTZ, K. Die Notwendigkeit des Zufalls. Hegels spekulative Dialektik in der “Wissenschaft der Logik”. Paderborn/Munique/Viena/Zurique: Ferdinand Schõningh, 2001. 126 Com isso se atinge o cerne do esquema transcendental de pensar. Cf. OLIVEIRA, M. A. “A crítica hegeliam à Filosofia d a Subjetividade”. Antropologia Filosófica Contemporânea. Op. cit., p. 108-115.

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de absolutidade; mas também porque nem sempre se compreendeu o que Hegel realmente pretendia, ou não se entendeu verdadeiramente que sua pergunta constituía um problema a ser levado a sério. O resultado é que o problema da determinação permaneceu amplamente desconsiderado. 4.3.1.4 A pergunta pela determinação como a nova pergunta fundamental da filosofia No século passado, realizou-se o que se convencionou chamar de “reviravolta lingüística”, cujo cerne consiste no fato de agora a lingua­ gem passar a ser considerada o lugar universal, último e abrangente da determinação, o que fez com que a pergunta pela linguagem se transfor­ masse na questão central. Utz não discute aqui as conseqüências para a configuração de uma teoria filosófica da centralidade da linguagem, mas aponta para o fato de que isso levou a uma compreensão fundamental de uma inversão necessária no procedimento da reflexão: não se deve em primeiro lugar trabalhar uma lógica formal e, então, tentar determinar aquilo com que ela deve operar, mas, antes, procurar em primeiro lugar mostrar a origem e a essência do conceito e da determinação enquanto tal e, então, mostrar como é possível uma lógica formal a partir dessa base, e, sobretudo, explicar por que uma tal lógica formal é exigida e qual sua significação. Com isso se retorna à questão fundamental de Hegel: a lógica for­ mal é “necessitada de conteúdo”, o que nos conduz à pergunta de como deve ser especificada a relação para que possa transmitir conteúdo - o que implica dizer que a relação de alguma forma deve ser mediadora, deve ser marcada por certo tipo de continuidade. Como especificar essa continuidade? Como se deve compreender o que a lógica contém através do “fora da lógica”, e o que, por isso, deve ser visto como o que em ambos é igual, vinculando a ambos? Superada a metafísica, na medida em que todo ente não tem mais sua constituição universal no ser, a per­ gunta que se impõe é então: em que os entes estão em relação uns com os outros? Em que se diferenciam uns dos outros? Como compreender suas relações entre si? Essa problemática nos conduz ao conceito de determinação, pois o que constitui as relações das coisas entre si e o que advém à lógica em sua relação ao “fora da lógica”, de qualquer forma, é a determinação, no sentido do ser assim, e não do dever ser, do declarar ou do levantar subjetivo de determinações. Mesmo que se admitam diferentes formas de relação, trata-se sempre de diferentes formas de relação, e sua posição de relação é sempre uma "determinação determinada”; numa palavra, a pergunta pela determinação se repõe sempre.

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Se se eliminou a metafísica porque o absoluto, o uno, o universal é desprovido de conteúdo, então a pergunta é como pode haver determi­ nação.127Nesse sentido, a pergunta pelo absoluto, pelo ser supremo ou pelo "um-todo” é a pergunta predecessora da pergunta pela determina­ ção, ou a pergunta pela determinação é a reformulação da pergunta pelo absoluto. Na medida em que a pergunta pelo absoluto é também uma pergunta pela determinação do absoluto, as duas perguntas se identificam desde o começo.128 Essas considerações significam dizer que o projeto da filosofia enquanto tal, isto é, enquanto saber abrangente, deve ser repensado a partir do problema da determinação. 4.3.2 O acaso (a coincidentia) como categoria central para pensar a determinação 4.3.2.1 O dilema da determinação Se a questão central da filosofia é agora a determinação, para Utz logo de entrada se faz necessário enfrentar uma questão delicada: a determinação é marcada estruturalmente por um dilema fundamental. Por um lado, a negação não é nela algo acidental,129 mas constitutivo; não há determinação sem negação: quando um algo é determinado, ele imediatamente não é o outro; algo que não se demarca ou não se deixa demarcar perante outro simplesmente não é determinado. E isso o que foi expresso por Espinosa com a fórmula “omnis determinado est negatio” (expressão concisa do que Aristóteles já havia discutido), que exprime precisamente a “diferencialidade” de qualquer determinado perante outro.130 Portanto, determinação não pode ser outra coisa que negação; por outro lado, ela não pode ser só negação, porque se destrói

127 Para Luft, a tradição dialética se caracteriza de Platão a Hegel por uma concepção relacionai e holística da determinação: toda determinação pressupõe relação, mas, se a cadeia de relações se perdesse no infinito, nenhuma determinação seria possível. Portanto, toda on­ tologia relacionai pressupõe holismo. Cf. LUFT, E. "A Lógica como metalógica” . In: LUFT, E.; CIRNE-LIM A, C. (orgs.). Ideia e Movimento. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012, p. 211: “Em Platão [...] ideias não se determinam por uma cadeia de determinações sem fim, mas se codeterminam como momentos de uma configuração de ideias; por sua vez, configurações de ideias se codeterminam pela configuração de todas as configurações que é a própria esfera inteligível... Hegel defende posição semelhante: toda categoria só se determina semanticamente como momento de uma rede categorial autorreferida ou uma dada configu­ ração semântica autocoerente”. 128 Cf. UTZ, K. Philosophie des Zufalls. Op. cit., p. 51-52. 129A respeito da problemática da negação na dialética hegeliana, cf. UTZ, K. Die Notwendigkeit des Zufalls. Op. cit., p. 68 e ss. A respeito de uma crítica a esse conceito de negação e ao procedimento dialético em Hegel, cf. PU NTEL, L. B. “ É possível aclarar o conceito de dialética em Hegel?”. In: Em busca do objeto e do estatuto teórico diafilosofia. Estudos críticos na perspectiva histórico-filosófica. São Leopoldo: Ed. Unisinos, 2010, p. 201-219. 130 Cf. UTZ, K. Die Notwendigkeit des Zufalls. Op. cit., p. 38 e ss.

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a si mesma. Utz apresenta dois argumentos para mostrar que esse dilema é estrutural, portanto insuperável: 1) Uma espécie de argumento transcendental no sentido formal e geral de condição de possibilidade do ser dado. Se a possibilidade perten­ ce a um dado necessariamente, e se a possibilidade é determinada, então se faz possível, a partir da possibilidade, tirar conclusões concernentes às determinações fatuais do dado. Numa palavra, se uma possibilidade necessária de um dado (é sempre, fundamentalmente, possível que) só pode existir sob condições determinadas, e cada possibilidade determi­ nada só pode existir quando suas determinações puderem ser realizadas, então essas condições de possibilidade são condições necessárias do próprio dado. Considera-se aqui apenas o aspecto formal das conclusões. O núcleo dessa argumentação é, então: de uma possibilidade determinada, vinculada necessariamente a algo dado, chega-se a uma determinidade fatual necessária do algo dado. Assim, se uma determinação originária, mesmo que não esteja em relação a outro, mas possa em qualquer tempo ser posta nessa relação e aí determinar não arbitrariamente a posição da relação, então as condições dessa possibilidade constituem a determi­ nação da determinação originária. Dessa forma, se uma determinação de alguma forma deve ser comunicável, ou seja, se somente em possibilidade deve ser parte de conhecimento, linguagem ou teoria, então, a condição fundamental dessa possibilidade constitui sua determinação. Sendo assim, a negação é elemento essencial da determinação (omnis determinado est negatio)7ela diz respeito a qualquer determinação em si mesma. Há, assim, um nexo fundamental entre determinação e negação. Dessa forma, a determinação não é simplesmente também negação, mas ela é sempre essencialmente negação, embora ela não possa sê-lo somente, o que fica claro quando se considera o conceito formal usual de negação. Nesse caso, o mundo das determinações se apresenta como um universo holístico-primitivo, de tal forma que qualquer determinação implica a exclusão de todas aquelas determinações do que ela não é, o que vale também para essas determinações. Nunca se chega, assim, no outro lado da negação, a um conteúdo pleno, pois o que se tem aqui é simplesmente pura negatividade. Nesse holismo só há, em última análise, o colapso de qualquer determinação. Ora, a pura negação, a negação vazia, não tem outro conteúdo além da negação, o que conduz qualquer determinação a nada. Numa palavra, tudo não pode ser relativo; se tudo fosse relativo, então a relati­ vidade seria absoluta e, enquanto tal, seria solitária, o que contradiz seu conceito. Daí por que a essência da determinação não pode consistir na

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relação. Por outro lado, ela só pode subsistir na relação, ou seja, não dá para eliminar nenhum dos lados. Mostra-se, assim, justamente o dilema da determinação da determinação. 43.2.2 Argumento formal (lógico-semântico) Parte-se aqui da sentença básica nesse contexto - toda determinação é negação -, e se formula a pergunta se a sentença exprime uma iden­ tidade estrita, ou seja, se a determinação nada mais é do que negação, ou se a negação é apenas uma característica da determinação, ou seja, se a determinação é negação, mas se ela é também algo diferente da determinação. Numa palavra, determinação e negação são ou idênticos ou parcialmente não idênticos. Se for o caso de uma identidade estrita, então determinação nada mais é do que negação. Se se supõe que a ne­ gação é um conceito formal e que nada mais significa do que o “não” de qualquer coisa, então determinação nada mais significa do que o "não”. Nesse caso, só existe uma determinação, ou seja, o "não”. Com isso desaparece tudo o que possa distinguir determinações umas das outras. Se se considera a alternativa, ou seja, que determinação não é simplesmente negação, então se põe a pergunta em que sentido a deter­ minação vai além da negação. Teria de ser algo que não fosse negação, o que implicaria que não fosse determinação; ou seja, por essa razão, algo além da negação só pode ser indeterminidade. Independentemente da pergunta se isso não é uma antinomia, de qualquer forma indeter­ minidade em nada contribui para a determinação. Portanto, aquilo que vai além da negação tem de ser uma determinação que, por sua vez, é negação, um processo que se pode continuar ao infinito, o que significa dizer que as negações nunca encontram um ponto fixo, ou seja, elas nunca são negações de algo. Numa palavra, na busca por uma origem da determinação, chega-se a um regresso infinito. Trata-se aqui fundamentalmente de um pro­ blema lógico que, por isso, diz respeito tanto à realidade como a nosso conhecimento. Está em jogo aqui aquela diferença fundamental entre sujeito e objeto, entre imediato e mediado. A determinação é justamente aquilo que possibilita a mediação determinada dos polos. O resultado desse argumento é que a determinação nem pode ser apenas negação, nem pode ser algo mais ou além da negação; numa palavra, por razões lógico-semânticas, a determinação é algo impossível. No entanto, a recusa dessa "lógica da negação” e seu dilema conduz à impossibilidade de qualquer comunicação, o que significa afirmar que a opção pelo discurso implica a aceitação da lógica da negação. Mas não somente a comunicação entre sujeitos se torna impossível, igualmente é impossível a própria reflexão de um sujeito,

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porque sem essa lógica nada de determinado pode ser pensado, e algo só é enquanto determinado, e só enquanto tal pode ser pensado. Se não temos determinidade, temos simplesmente nada. Afirmar, portanto, que a determinação é simplesmente indeterminada é uma contradição performativa, pois com isso já se diz algo determinado. Isso, para Utz, significa dizer que, por um lado, a negação é algo constitutivo da deter­ minação, mas por outro lado não é difícil mostrar que ela não pode ser somente negação, o que conduziria a uma contradição performativa, uma vez que a pura negação se destrói a si mesma. A aceitação desse dilema implica dizer que nosso intelecto nunca compreende plenamen­ te a determinação, já que a própria determinação nunca é completa. Isso significa dizer que nunca compreendemos plenamente qualquer determinação concreta. O dilema da determinação implica dizer que a inteligibilidade do mundo não é total, mas que, por outro lado, nada pode ser plenamente ininteligível. Dessa forma, a tese fundamental aqui é que nunca podemos separar o inteligível e o ininteligível, o determinado e o indeterminado. Esse é o dilema estrutural que marca a determinação: determinação não pode ser outra coisa que negação e não pode ser somente negação. Quem conclui, a partir daqui, que a determinação não pode existir por­ que é autocontraditória vai chocar-se com o fato de que o princípio de contradição só tem campo de validade na esfera da determinação, e assim, pelo menos de acordo com a possibilidade, esse princípio pressupõe determinação. Se não existe determinação, então não existe também o princípio de contradição, pois ele regula a relação de determinações entre si. A possibilidade de determinação é, assim, condição de possibilidade do princípio de contradição: se por um lado, de acordo com o princípio de contradição, a determinação é necessariamente impossível, por outro, só a determinação faz o princípio de contradição possível. 43.2.3 O acaso como condição de possibilidade da compreensão da determinação A questão fundamental que brota do que foi exposto é: como compreender o dilema da determinação? O primeiro desafio é entender o “ao mesmo tempo” de ambas as dimensões: determinidade e indeterminidade, o que em primeiro lugar não pode significar que determinação seja, na mesma medida, não mediada e mediada, pois isso seria pura e simplesmente contraditório; nem também que imediatidade e mediação sejam diferentes quotas na relação, pois tomadas isoladamente se põe para ambas o mesmo problema do início: imediatidade para si e mediação para si não podem ser. Trata-se basicamente de pensar sua unidade na diferença, e isso põe justamente o problema da mediação. Do ponto de

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vista formal, isso significa que nessa unidade a imediatidade já medeia através da negação, e na distinção da relação a mediação já é imediata. Dessa forma, o problema da relação entre imediatidade e mediação se repõe em si mesmo em cada um dos lados, e esse mesmo resultado se repete quando se considera a dimensão do conteúdo. Numa palavra, imediatidade e mediação só podem ser em conexão um com o outro; eles apontam um para o outro, mas são igualmente radicalmente separados, resistem a essa conexão, excluem de si esse ser conectado e se afirmam no caráter próprio de cada um. Chamou-se a isso de dialética: a deter­ minação, em primeira e última instância, radica-se em dialética,131 isto é, em relacionalidade.132 Trata-se aqui de uma conexão muito especial, pois nela os conec­ tados permanecem resistentes um ao outro, ou seja, cada um permanece tanto irredutível ao outro como em sua relação com ele. Está em jogo aqui a unidade e a diferença de irredutibilidade e comunicabilidade, ou seja, trata-se de uma relacionalidade que articula tanto uma como outra. A realidade da determinação é tal que imediato e mediado são, ao mesmo tempo, uma fórmula que em sua estrutura pertence à mais antiga tradição filosófica: determinação não é imediata; determinação não é mediada; determinação é “não-não” imediata; determinação é “não-não” mediada. Essa formulação “não-não”, nessa clareza e abstração, já se encontra no "neti-neti” dos Upaníxades da tradição hinduísta, como também na tradição da teologia cristã, especificamente na doutrina da Trindade e na cristologia. Os acentos aqui são diferentes: no Ocidente, a tendência básica consiste em separar o contraditório em seus diferentes lados ou momentos e, com isso, atenuar a contradição, enquanto que no Oriente a tendência é a concentração no meio ou na unidade. A questão que se põe agora é: como compreender o “um ao outro” de imediatidade e mediação em seu "não-não” ? Pode-se começar a re­ flexão em qualquer lado do dilema. Assim, pode-se tomar a mediação que tem de ser pensada como algo que em si mesma dá espaço para a 131 A respeito do debate sobre a natureza da dialética, cf. OLIVEIRA, M. A. de. Dialética hoje. Lógica, metafísica e historicidade. São Paulo: Loyola, 2004. 132Numa outra compreensão de dialética e relacionalidade, Luft articula o princípio mini­ malista de determinação constitutivo de toda dialética, radicado no caráter relacionai e holístico da determinação: o “ princípio de coerência", que é para ele o resíduo mínimo de logicidade, a única estrutura profunda do pensamento (p. 214). Coerência significa união, ligação. Somente permanece determinado o que está ligado a, unido a, isto ê, relacionado. Esse princípio não é, contudo, apenas princípio do pensamento, mas de tudo o que há ou é possível (p. 224). Cf. LUFT, E. A Lógica como metalógica. Op. cit., p. 212-213: “ Não há nenhum ser-em-sí sem a copresença de um ser-para-outro, nem nenhum ser-para-outro sem a copresença de um ser-para-si. Toda semântica e ontologia relacionais pressupõem o holismo. Salta, assim, aos nossos olhos, o princípio minimalista de determinação constitutivo de toda teoria dialética, de Platão a Hegel, o princípio da coerência: ‘Só o coerente permanece determinado’” .

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imediatidade, que em si mesma não é completamente mediação, mas também não mediação, uma mediação que enquanto tal, antes de tudo, põe o imediato. Isso significa dizer que a mediação não inclui completamente na mediação aquilo que ela medeia, de forma que os mediados não emer­ gem em sua mediatidade e, com isso, são irredutíveis ao respectivo outro e à mediação no todo. Com isso se diz que a mediação não pertence aos mediados, mas que ela lhes advém. Já que esse “advir” não é redutível a qualquer determinação definitiva, ou seja, não é redutível à necessidade, ele é “acaso” (coincidentia). Por outro lado, o acaso não significa a imediatidade pura e simples, mas já constitui mediação. Tem-se um procedimento semelhante quando se parte do outro lado do dilema. Daí por que se pode dizer que o acaso é um evento em que se dá uma determinidade, mas de modo indeterminado e a partir de algo que, pelo menos em relação a esta determinidade, era indeterminado, ou seja, em que esta determinidade ainda não estava presente.133O exemplo aqui é o do jogar dados, cujo resultado é um número determinado; mas o jogar dados era indeterminado em relação a esse resultado, nele ainda não estava presente a determinidade, e o procedimento de determinação não se dá de forma determinada.134 O acaso não é o totalmente indeterminado: nele se dá a determina­ ção, e com isso ele não é simplesmente o oposto à necessidade e à ordem, o que seria propriamente o caos. Por essa razão, a filosofia do acaso não significa uma simples insistência em contingência, abertura e indeterminidade. O acaso se deixa definir, assim, em relação a um “incidente" que se situa numa conexão “ingressiva”, numa relacionalidade negativa a um dado. Dessa forma, o acaso nunca é indeterminado em todas as dimensões: o jogar dados é indeterminado em relação a este número determinado, mas diz respeito a números, e não a letras ou símbolos. A indeterminidade, portanto, tem caráter momentâneo e se mostra em aspectos, mas está sempre relacionada com uma ocorrência, ela é atual. Nesse contexto, é negada, no resultado, a relacionalidade ao pré-dado de um aspecto determinado do ser-o-caso. 133 Para Luft trata-se aqui de uma questão de compreender corretamente a vigência do princípio básico da dialética, o princípio de coerência. Cf. LUFT, E. “ Ontologia deflacionária e ética objetiva” . In: LUFT, E.; CIRNE-LIM A, C. (orgs.). Ideia e Movimento. Op. cit., p. 336-337: “ O princípio de coerência, em sua vigência universalíssima, determina a coerência do Universo consigo mesmo enquanto sistema, mas subdetermina as potencialmente infinitas maneiras de realizar a autocoerência do todo nessa ou naquela configuração do Universo, nesse ou naquele ‘mundo’ possível”. Cf. LUFT, E. Sobre a coerência do mundo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005, p. 85 e ss. 134 Cf. UTZ, K. Die Notwendigkeit des Zufalls. Op. cit., p. 304.

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Para Utz, com o conceito de acaso não se elimina o dilema da deter­ minação, mas se alcança uma compreensão mais profunda, na medida em que ela é reconduzida a um “conceito fundamental”: o acaso é aquilo em que e através de que ocorrem posição e determinação enquanto tal. Ele produz a passagem inexplicável e “inderivável” do indeterminado para o determinado, do não ser para o ser.135 Por essa razão, não é possível compreender o mundo sem o acaso, embora à filosofia do acaso seja completamente indiferente que conexões, ordenações e regularidades existam ou não existam no mundo, ou se existem regularidades de um único tipo (por exemplo, se existem apenas as leis da física ou também outras leis) ou não, uma vez que isso não é de competência dessa filosofia. A afirmação fundamental da filosofia do acaso é que nada ocorre sem nenhuma conexão com o dado, que de fato tudo tem um funda­ mento e nada ocorre sem necessidade; portanto, nesse sentido nada é totalmente acaso, quando se entende acaso simplesmente como contraconceito à necessidade. Nada pode ser completamente determinado através de sua conexão com outro, e nenhuma ocorrência é totalmente abarcada pela necessidade. Não há determinação e necessidade com­ pletas. Quando não se trata de algo que existe sempre e é onipresente, quando algo não é válido universal e atemporalmente, ou seja, quando não se trata de algo necessário e incondicionado, então unicamente seu ser-o-caso ou ser-assim decidem se este algo ocorre atual e faticamente. Isso significa dizer que a efetividade se realiza no acaso, e que "necessidade e possibilidade”136 são na realidade somente as explica­ ções dialéticas do ocorrer, do tornar-se efetivo.137 Em sua ocorrência se efetiva o momento do casual, da irredutibilidade ao necessário e da produtividade do novo. No sentido em que se entende acaso aqui, ele sempre gera uma co­ nexão que sempre implica, em algum sentido, em reducibilidade. O outro lado da medalha é que nada pode ser completamente determinado pela conexão, e nenhuma ocorrência é completamente e em última instância necessidade: o casual é igualmente independente perante a conexão em que se situa. Fundamental, nesse contexto, é compreender que a filosofia do acaso defende a tese da condicionalídade, da limitabilidade e da não universabilidade de todas as ordenações e regularidades e, consequen­ temente, é cética perante a pretensão de absolutidade de determinados tipos de ordenações e regularidades. 135 Cf. UTZ, K. Die Notwendigkeit des Zufalls. Op. cit., p. 307. 136Categorias modais que certamente são fundamentais para compreensão e justificação da tese onicontingenteísta, mas que aqui são usadas sem nenhuma explicitação de sua concepção de e seu papel numa ontologia. 137 Cf. UTZ, K. Die Notwendigkeit des Zufalls. Op. cit., p. 306.

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Nessa concepção, o acaso se distingue do contingente porque a ele falta o momento do evento, do advir, ou pelo menos isso, no contingente, permanece em segundo plano. Também para o contingente, contudo, que é, mas poderia não ser, vale que, enquanto ele é, ele está em conexão. Se, porém, algo é completamente sem conexão em diferentes sentidos, então não existe espaço para a possibilidade de não ser. Só numa cone­ xão é possível determinação, e para realizar essa possibilidade é exigido determiná-la em consideração ao poder ser e também ao não poder ser. Isso significa, para o contingente, que a conexão em que ele está não estabelece se ele é ou não é, ou seja, a existência do contingente não está presa à determinação da conexão. Retorna sempre a tese básica: imediatidade e mediação só na co­ nexão podem ser juntas e se excluírem em seu caráter próprio, o que manifesta que o acaso é uma estrutura complexa. Esse para o outro e contra o outro é o que constitui a dialética. Daí a afirmação central: determinação se radica em primeira e última instância na dialética, em relacionalidade, e por isso ela nunca pode ser completa e absoluta. No início da dialética tem de haver indeterminidade determinada,, e seu resultado é sempre determinidade indeterminada,138O acaso é o evento em que algo se realiza em seu ser próprio, ou seja, na conectividade do mundo, o que significa dizer que determinação se realiza numa dialética "ingressiva” . Dessa forma, não se pode compreender o acaso como um universal num sentido ontológico, que apenas é instanciado nos diferentes casos singulares de acaso. O acaso não simplesmente substitui ou toma o lugar do princípio do universal ou, respectivamente, da necessidade, mas antes ele nega que haja tal lugar. Por outro lado, não se pode compreender o acaso como se ele fosse um singular existindo em si mesmo, um singular absoluto que regesse as conexões como na tradição em que, em última instância, há um fundamento último (como, por exemplo, Deus) que rege tudo. Com isso se demarca claramente a filosofia do acaso perante a tradição metafísica do Ocidente: filosofia primeira não pode significar a busca de determinações universais nem a busca pelo ente supremo, seja este um ente singular último (o absoluto), ou uma multiplicidade de entes singulares últimos, inelimináveis e originários, como no caso do atomismo. Revela-se, assim, que a filosofia do acaso de nenhuma forma constitui a solução do problema da determinação, mas a articulação de uma nova maneira de compreender sua realidade.

138 Cf. UTZ, K. Die Notwendigkeit des Zufalls. Op. czí., p. 298.

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Nesse sentido, a filosofia do acaso é uma nova filosofia primeira: tudo, em última instância, é redutível à determinação; algo enquanto tal só pode existir enquanto tal como determinado; consequentemente, a pergunta pela determinação é a pergunta essencial de uma teoria filosó­ fica, e dessa forma o acaso emerge como o originário enquanto tal, ou seja, ele é o originário de tudo, ou melhor, em tudo; é, podemos dizer, “a categoria ontológica e epistemológica fundamental” numa ontologia claramente monocategorial139 e, nesse sentido, é incontornável. Daí por que é no acaso que originalmente se constituem validade e ordem, o que significa dizer que dele não se seguem indiferença e arbitrariedade, nem no campo da teoria nem da práxis, uma tese que, para Utz, se contrapõe tanto ao determinismo (tese do primado da necessidade) quanto ao relativismo (dos entusiastas contemporâneos da tese do primado da contingência).140 Isso significa repensar tanto a necessidade quanto a contingência. A necessidade do acaso consiste em que, por um lado, algo é e não nada; que há ordens (limitadas) e necessidades, e não indiferença e caos; que são levantadas validade e pretensões; que nem tudo é indi­ ferente e arbitrário, mas, por outro lado, não surge, para isso, nenhum determinado ou existente absolutamente, nenhuma ordem absoluta e necessidade ou um princípio absoluto. Isso implica repensar radical­ mente as modalidades, o que é feito sem nenhuma referência explícita às diferentes concepções lógicas e metafísicas das modalidades. Assim, a necessidade do acaso não é incondicionada, mas está sob a condição do saber originário, imediato - e, com isso, não fundamentado e casual - de que algo é e não nada. Daí por que a pretensão de validade dessa necessidade não é uma pretensão absoluta que burla o acaso, mas perfeitamente em sintonia com seu advir. Com isto se afirma que a dimensão necessária é aqui condicionada pela dimensão contingente e, enquanto tal, não é necessária no sentido estrito, pois nesse caso “ser necessário” significa o que por definição não pode não ser, o que justamente se opõe radicalmente ao contingente que é, mas pode não ser. Isso revela que, em última instância, a filosofia do acaso defende a tese onicontingenteísta: toda a dimensão do ser é contingente, já que a necessidade de que se pode falar aqui é uma necessidade condicionada pelo contingente - portanto, situa-se na esfera do contingente, é depen­ 139 N o sentido em que esse termo foi utilizado neste livro, e não no sentido em que Utz utiliza, que considera a ontologia a segunda parte de sua filosofia sistemática enquanto teoria das categorias e dos transcendentais. 140 Cf. UTZ, K. Die Notwendigkeit des Zufalls. Op. cit., p. 308.

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dente dele. Essa dependência nega precisamente o caráter “absoluto” do necessário no sentido estrito, já que absoluto significa incondicionado, algo que não pode ter um condicionante, uma relacionalidade que im­ plique dependência. 43.2.4 A relacionalidade Como pensar os “casos” de acaso? Considerado como um todo, um caso de dialética ingressiva se concebe como uma relação, mas se tem aqui de novo uma situação contraditória. Por um lado, temos um todo/uno/distinto, o que é necessário para podermos pensar o acaso, o que é ineliminável, num certo nível de reflexão; por outro, tal concepção é inadequada para pensar o acaso, pois ele é, enquanto tal, inalcançável e se contrapõe à unidade distinta e à totalidade intacta, apesar de, ao mesmo tempo, constitui-la originariamente. Isso revela a exigência de se repensar a categoria relação. Uma relação é constituída pelo relacionamento dos elementos que nela estão inseridos, e isso exprime o que um membro da relação determina em relação a outro. Assim, a relação “é filho de” é outra que não a relação “ é um dos pais de” . Essas duas relações são necessaria­ mente vinculadas entre si, e Utz denomina o idêntico nas duas relações de “relacionalidade”. Há duas formas de relacionalidade: a primeira, a forma imediata, pode-se chamar de simétrica, porque, como no caso da geometria, aqui um lado reproduz o outro; na outra, os elementos da relação não se reproduzem mutuamente de forma imediata como no caso da relação simétrica, mas somente através da relacionalidade simétrica subjacente, que não necessariamente se tem de fixar numa relação determinada específica, o que significa dizer que ela pressupõe a relacionalidade simétrica que, por sua vez, pressupõe a segunda forma de relacionalidade. Esse tipo de relação pode ser dito “igualmente válido” porque seus membros se relacionam uns com os outros valendo igualmente. Não precisam ser iguais, mas têm de valer igualmente, e podem igualmente ser expressos em formulação simétrica. Além dessas duas formas de re­ lacionalidade, há também formas mistas. Importante, nesse contexto, é levar em consideração que em qualquer sentido tem de haver aqui uma autorrelação, pois do contrário as duas formas de relacionalidade não seriam distinguíveis uma da outra. A partir da consideração dessas duas formas de relacionalidade, Utz leva a cabo a tarefa de repensar a concepção de relação em seu emprego numa dialética ingressiva. A reflexão até agora nos conduziu à afirmação de que a relação do acaso tem, por um lado, a determina­ ção da irredutibilidade de seus lados um em relação ao outro, e no que

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concerne à sua relação respectivamente ao todo; por outro lado, possui a determinação da comunicatividade de seus lados um em relação ao outro, como também em relação ao todo. A questão aqui é: como pode a relacionalidade articular, de forma adequada, irredutibilidade e comunicatividade? Simetria e validade igual implicam imediatamente uma determinação dos relacionados em relação à relacionalidade. Ambos os lados são redutíveis um ao outro e dependentes em relação à relacionalidade. Essa dependência, contudo, não é ilimitada, já que os lados se situam um em relação ao outro numa relacionalidade de igual validade. É precisamente essa dependência perante a relacionalidade que se radicaliza no caso da dialética ingressiva enquanto relacionalidade origi­ nária. Já que não pode haver determinação prévia à relacionalidade, que é uma decorrência do dilema da determinação, os lados têm de retornar à relacionalidade em sua determinidade plena. Não há, portanto, espaço para determinações autônomas. Aqui a irredutibilidade deve ser afir­ mada no contexto da simetria. Isso, contudo, só é possível rompendo com a simetria enquanto tal. Portanto, a relacionalidade originária tem de ser assimétrica. A assimetria deve significar a irredutibilidade justamente na re­ lacionalidade mútua determinante. É buscada aqui, então, a ruptura, naquela relacionalidade, que diz respeito aos mediados um pelo outro, e não enquanto estão mediados ao lado de sua relacionalidade simétri­ ca: a relacionalidade assimétrica deve ser buscada na mediação mútua. Essa forma de relação tem de ser de alguma forma ambígua, uma vez que nessa ambigüidade está a redutibilidade dos lados. Atinge-se a ambigüidade na mediação por meio da "extensão” do meio em relação aos lados, na medida em que este se pensa como não simples. Um tão ambíguo, não uno, é para Utz algo não pensável, mas com que se tem de contar, pois somente ele garante a irredutibilidade na própria mediação determinante, sem o que não pode haver determinação. Isso conduz, como já a assimetria de mediação mesma, ao "abismo do impensável” que caracteriza o acaso.141No entanto, só nessa relacionalidade unilateral pode ser pensada a imediatidade originariamente mediada. O alcance dessa tese pode ser visto, para Utz, na relação da teo­ ria do acaso com a concepção usual de ser e ser determinado. O ente (o determinado) é representado enquanto um dado em si mesmo que também ainda pode ter uma relação com outro, o que significa dizer que aqui o ser enquanto tal é pensado como indiferente em relação à

141 Cf. UTZ, K. Philosophie des Zufalls. Op. cit., p. 69.

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relacionalidade. A relacionalidade, por sua vez, é pensada como simé­ trica e de igual validade, o que para a teoria do acaso é algo derivado e não originário. Sem dúvida, trata-se, na teoria do acaso, de um dilema, o dilema da relacionalidade de não igual validade assimétrica, que é na realidade uma maior explicação do dilema da imediatidade e da mediação da determinação. 4.3.2.5 A filosofia do acaso enquanto nova metafísica A reflexão feita partiu do paradigma moderno em que tudo retorna à questão da determinação: algo enquanto tal só pode ser enquanto deter­ minado, e então a pergunta pela determinação é a pergunta propriamente fundamental de uma reflexão filosófica. Daí se segue que o acaso é o propriamente originário de tudo, ou melhor, em tudo. O resultado dessas considerações anteriores é absolutamente fundamental para se entender o que pretende a teoria do acaso: a assimetria, enquanto irredutibilidade na mediação, faz com que a relacionalidade enquanto tal só seja, na te­ oria do acaso, em sua mediação, e não enquanto um universal que pode ser isolado perante os polos singularmente considerados. Isso significa que ela só é na relacionalidade ao imediato, ou seja, ela só é enquanto mediação imediata, e não fora dessa relação. A universalidade do acaso se mostra através do fato de que ninguém pode afirmar ou pensar, sem contradição performativa, que há nada e não algo. Contudo, a afirmação de sua validade universal não o transforma em um princípio absoluto. Pode-se dizer que o acaso é o princípio, o absoluto, o primeiro da metafísica: ele emergiu no procedimento da busca de princípios, ou seja, na busca da maior redução possível a partir da pergunta pela determinação. Nessa perspectiva, o acaso é sim prin­ cípio, mas apenas no sentido de que ele é um princípio transcendental enquanto resultado da pergunta pela possibilidade da determinação e suas condições, mas não um princípio transcendental sob a pressuposição de um campo de fenômenos determinado, como é o caso na filosofia de Kant. Na realidade, ele é um princípio “transcendental-absoluto”, na medida em que ele diz respeito a tudo; ele é oniabrangente, ele subjaz a todo ente e a toda consciência. Ele não só é condição de possibilidade de tudo, mas fundamento da efetividade, ou seja, primeira “causa” de todo determinado. Nesse sentido ele é simplesmente um princípio absoluto: tudo, enquanto determinado, retrocede ao acaso, isto é, a seu princípio de originação. Mesmo no paradigma da metafísica tradicional, ou seja, da busca de fundamentos, o acaso emerge como princípio, porque o funda­ mento só pode garantir sua superioridade perante o fundado se ele está perante o fundado numa relacionalidade válida assimétrica. Além disso,

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o acaso é princípio absoluto não enquanto um princípio que enquanto tal determina completamente o principiado, mas enquanto princípio que deixa livre o principiado perante o originário - ou, expresso posi­ tivamente, abre-lhe um espaço de possibilidade. O acaso é, então, a resposta à pergunta pelo princípio primeiro, absoluto no sentido explicitado, mas exige igualmente que se revide a representação de um princípio primeiro, absoluto, uma vez que o acaso é justamente aquilo em que é negado um fundamento, uma determi­ nidade firme e uma necessidade universal. O acaso é princípio não no sentido de um universal último e supremo, um universal entendido ontologicamente que se instancia nos diferentes casos de acaso, como também não no sentido de um ente singular em si mesmo primeiro e irrenunciável, um singulare absoluto que rege todas as conexões como um fundamento último (eventualmente Deus); portanto, nem princípio universal nem princípio atômico. Nesse sentido, o acaso não substitui nem o princípio de universalidade nem o princípio de necessidade; ele não toma esse lugar, mas nega que tal lugar exista. Afinal, em que sentido é, então, o acaso princípio se ele não é nem o princípio nem o fim do que dele se origina, nem o fundamento universal do qual ou o espaço em que tudo se origina? A originariedade do acaso não está nem nas fronteiras nem na continuidade, mas ela está no que medeia e separa fronteira e continui­ dade - não, em princípio, uma vez por todas, mas sempre no respectivo acaso. A analogia mais adequada aqui está na representação do tempo como o "agora” que é somente o fugidio, agora que desaparece entre o passado e o futuro, e que enquanto é, não é ele mesmo, já que no mo­ mento seguinte já é um outro. 4.3.2.6 O caráter sistemático da metafísica e seus limites De tudo o que foi exposto, emerge uma questão fundamental: se se pensa o acaso como princípio, então se pensa necessariamente como “um” princípio, mas com isso se põe a unidade acima da diferença. Mas, por outro lado, como o acaso é originariamente dirimente, a unidade e a totalidade não podem constituir uma verdade maior perante a dife­ renciação em lados singulares, unilaterais, ou à composição na posição de uma relação firme, não transitiva. Nesse caso, não se deveria propor o acaso como um princípio, e, antes, a diferença seria o fundamental. Aqui retornam os dualismos já encontrados na tradição, agora legi­ timados pela filosofia do acaso. No entanto, o pensamento da diferença constitui apenas uma direção insuficiente da explicação do acaso que é também uno, todo. O decisivo aqui para diferenciar dos dualismos é que a diferença não é concebida como simétrica e indiferente, mas como

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relacionalidade casual assimétrica. Dessa forma, pensar dois diferentes em sua relacionalidade mútua significa sempre igualmente articular, num pensamento redutivo-científico, o conceito de sua unidade e de seu apontar um para o outro. Isso significa dizer que não se pode pensar em unidade sem diferença nem em diferença sem unidade: a filosofia tem a tarefa de, para além da diferença, articular a unidade. Daqui se conclui que se com a diferença sua unidade é sempre também pensada, então com isso já temos um sistema minimal: uma relação tripla com uma ordenação igual de dois de uma supraposição de uma terceira perante esta. Essa relação tripla apresenta simplesmente a explicação formal da relacionalidade assimétrica indiferente. Esta o pen­ samento só pode diferenciar enquanto concebe uma relação simétrica/ diferente e uma relação assimétrica/indiferente numa unidade abran­ gente. Na realidade, essa explicação formal apresenta uma “abstração” da forma originária de relação, aquele encurtamento e isolamento em que se separa ordenadamente o que justamente é para ser posto como irredutível e irrenunciável. O procedimento da ciência é mesmo de redução e abstração, e por essa razão é seu dever chegar ao sistema. No casual ela dá ordem e orientação, ela deve ser redutiva e sistemática. É justamente o acaso que obriga a ciência a chegar ao sistema: a doutrina do acaso obriga a ciência a articular um pensamento de unidade entendida como um monismo internamente diferenciado. Isso significa dizer que o velho projeto de uma redução última, ou seja, de uma ciência primeira, fun­ dante, permanece de pé, e essa ciência tem evidentemente de proceder sistematicamente. Pode-se chamar essa ciência de metafísica, para designar a deter­ minação formal do projeto. No entanto, este projeto de uma redução suprema, efetivado no seio de uma teoria do acaso, não pode esquecer que a redução é essencialmente unilateral, e, dessa forma, a metafísica nunca pode apresentar a totalidade da verdade: o acaso garante a ir­ redutibilidade dos diferentes perante a unidade abarcante em relação sistemática. Se a metafísica é apresentada como a ciência abarcante, ele deve não só ser o ponto de unidade das ciências, mas deve trabalhar também sua diferenciação. Dessa forma, a teoria do acaso constitui o começo da metafísica. A primeira ciência plenamente articulada contém o desdobramento sistemático das ciências particulares - respectivamente, dos diferentes campos da realidade em cujo trabalho a metafísica não pode intrometer-se. Mas ela deve mostrar, a partir do originário, a ori­ gem dos campos particulares juntamente com sua sistematicidade (sua legalidade) interna. Numa palavra, a filosofia do acaso tem de desdobrar sistematicamente a realidade do acaso.

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Isso, de certa maneira, implica uma situação paradoxal. A filosofia se efetiva na medida em que ela produz uma teoria que é um todo siste­ mático de sentenças, o que implica uma forma específica de sistematização - portanto, uma ordenação determinada142 em que ela se articula e que é objeto da reflexão filosófica. Essa ordenação é necessariamente formal, uma vez que ela tem de possibilitar a reflexão sistemática sobre os esquemas de ordenação determinados de acordo com o conteúdo. As possibilidades de ordenações fundamentais formais resultam das caracte­ rísticas fundamentais formais da sistematização. As duas opções básicas de sistematização são: o monismo (superioridade da identidade sobre a diferença) e o dualismo (superioridade da diferença sobre a identidade) e cada teoria filosófica enquanto teoria é obrigada a se decidir a respeito de uma dessas formas fundamentais. No entanto, nenhuma dessas formas é adequada ao acaso, já porque a teoria é de antemão incapaz de articular o todo da verdade.143 A verdade plena é inacessível à teoria. A filosofia opera sempre com diferenciações fundamentais, e as filosofias se articulam e se distinguem a partir das diferenças com que trabalham ou das sistemáticas dessas diferenças. Dessa forma, a história da filosofia é a história dessas opções. A filosofia do acaso de nenhuma forma se contrapõe a este pensar das diferenças; ao contrário, defende sua inevitabilidade - portanto, a crítica aqui articulada contra a filoso­ fia da tradição não significa uma rejeição das diferenças. A questão é que, antes de uma teoria filosófica articular-se no seio das diferenças, ela deve compreendê-las. Em última instância, todas as diferenças são redutíveis à relacionalidade assimétrica não arbitrária, ou seja, ao acaso como condição de possibilidade da efetividade da determinação. A pergunta que a filosofia aqui faz em primeiro lugar é como a diferença originária, não derivada, pode, enquanto tal, dar-se, se determinação necessariamente é negação. Em primeiro lugar, cada filosofia, enquanto se articula na base das diferenças fundamentais, não é obsoleta, mas insuficiente, e isso diz respeito a toda a tradição ocidental:144 o problema da determinação se 142 A filosofia sistemático-estrutural de Puntel fala aqui de “ quadro referencial teórico”. Cf. PU N TEL, L. B. Estrutura e ser. Op. cit., p. 27 e ss. 1+3Supõe-se, então, que uma teoria seja capaz de articular alguma verdade, o que levanta a questão de como se relacionam entre si estas diferentes verdades. Consequentemente está posta, dessa forma, a questão da unidade da filosofia e de suas diferentes ordenações sistemáticas. 144 Cf. aqui a proposta de Cirne-Lima de reformulação do sistema neoplatônico em que o princípio da diferença tem um papel central. Cf. CIRNE-LIM A, C. “Analítica do dever-ser” . In: LUFT, E.; CIRNE-LIM A, C. (orgs.). Ideia e Movimento. Op. cit., p. 68 e ss. OLIVEIRA, M. A. de. “ A Dialética enquanto pensamento sintético do Absoluto como Totalidade em movimento em Cirne-Lima” . In: Dialética hoje. Lógica, metafísica e historicidade. São Paulo: Loyola, 2004, p. 335 e ss.

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manifesta somente como uma dificuldade em casos singulares, mas não é tematizada a problemática geral da determinação e da diferenciação. Isso implica dizer que antes de enfrentar os grandes problemas que se põem à reflexão filosófica, é necessário ter clareza sobre a estrutura fun­ damental em que unicamente se podem situar as diferenciações últimas. Essa estrutura fundamental é caracterizada por uma indissolubilidade - que se pode descrever, embora não compreender - de “ao mesmo tempo” e “nem-nem”, de determinidade e indeterminidade, de simetria e assimetria, de não indiferença e indiferença. O que realmente se manifesta obsoleto é a tentativa de alcançar uma posição inequívoca e definitiva. Por essa razão, a filosofia do acaso reconhece também o valor daquelas filosofias que ela critica, pois sua crítica diz respeito à falta de consciência do caráter unilateral e limitado de toda proposta, o que é irrecusável, dada nossa finitude. Nessa perspectiva, o caminho da filosofia deve consistir em reconduzir sempre à origem de diferença e determinação as diferenças atingidas justamente naquela clareza que se conseguiu alcançar. Dessa forma, há sempre uma “pbilosohia perennis” e um “progresso” no pensamento filosófico. 43.2.7 A ontologia como primeiro momento do desdobramento sistemático da filosofia do acaso A centralidade do acaso na filosofia provoca conseqüências meto­ dológicas de dois modos. Primeiro: na medida em que o acaso significa o meio de diferenciação e de mediação dos diferenciados, ele pode ser buscado pelo pensamento através da “concentração” nesse meio a partir dos diferenciados. Esse procedimento sempre se chocará com contradi­ ção, desequilíbrio e inconsistência. Segundo: na medida em que o acaso tem de ser compreendido enquanto o fundamentalmente unilateral, o inadequado ou a limitação e incompletude de tudo o que é determinado, o caminho através do qual podemos atingi-lo é a “dialética”, ou seja, através da manifestação da incompletude interna e do caráter contradi­ tório das teorias dadas. A crítica fundamental da teoria do acaso às outras teorias é que elas compreendem insuficientemente as diferenciações com que operam. A questão que se põe agora é se, uma vez demonstrado que o fundamento, o primeiro e o originário, de uma teoria filosófica, é o que foi apresen­ tado com o conceito de acaso, daqui resulta um critério que estabelece em que a teoria filosófica deve se concentrar em seu desenvolvimento ulterior. Numa palavra, são estados de coisas ou estruturas, originários ou próprios da filosofia, aqueles que são portadores da característica da “acasualidade” e de suas explicações sistemáticas, que se exprimem a partir de uma conceituação mais aprofundada dela.

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Utz aponta três momentos fundamentais neste processo de des­ dobramento: em sua compreensão exterior, não mediada, o acaso é “acontecimento”; num grau de reflexão posterior, o acaso se manifesta como a relacionalidade assimétrica enquanto "consciência”; a última forma de compreensão do acaso é “amor” e "amizade”. Esse passo re­ vela que a filosofia do acaso não é apenas crítica perante outros projetos teóricos, mas também é positivamente construtiva, ou seja, desenvolve ela mesma conteúdos. O fato de já ter sido demonstrado que é impossível uma deter­ minação absoluta, não mediada, diz-nos que essa teoria não pode ser puramente a priori - portanto, que ela depende de pressupostos que ela mesma não põe. Isso significa afirmar que, sempre que se pensa, algo já ocorreu no pensamento, ou seja, ele está lidando com algo que não provém completamente dele nem é redutível a ele. E isso que Utz denomina o "autoacaso” do pensamento: o pensamento, quando pensa, pensa algo, e com isso algo é dado, algo é o caso, algo ocorre atualmente. Dessa forma, manifesta-se que o alargamento da teoria filosófica leva em consideração a ocorrência (o acaso) do não filosófico no pen­ samento. Trata-se aqui da simples evidência de que “algo é e não nada”, e a filosofia de nenhuma forma pode passar por cima dessa evidência básica, o que implica dizer que o acaso é, pois, algo que só pode ser no modo da determinidade, e determinação só se dá no modo do acaso. Para Utz, esse fato fundamental responde também à pergunta por que existe algo e não nada, naturalmente, somente na forma em que o acaso é uma reposta; ou seja, através do acaso algo é algo, e não nada; é acaso que algo seja algo, e não nada. Quando algo é algo, e não nada, então há acaso; e não emerge somente enquanto uma estrutura determinada - embora não plenamente, juntamente com os critérios formais de sua interpretação mas também enquanto fato, enquanto facticidade. Assim, a teoria do acaso fornece um conceito fundamental para a interpretação do acaso que algo é, que é justamente a articulação do próprio acaso na esfera do algo. Esse conceito fundamental é o acaso compreendido na forma de um algo enquanto fato, enquanto facticidade que subjaz a todos os fatos. Tal ocorrência distinta, que tanto se separa quanto se vincula com o outro, Utz denomina “acontecimento”. Dessa forma, o acontecimento é o conceito da efetividade imediata do acaso, isto é, do acaso enquanto um fato objetivo. Numa palavra, acontecimento é o conceito do acaso enquanto origem da efetividade, do dar-se enquanto tal, da facticida­ de. Daí por que a primeira tese construtiva da filosofia do acaso é: há acontecimentos, e estes constituem a realidade. “Que algo seja algo, e não nada, é acontecimento. Algo é, na realidade, em seu ser efetivo,

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acontecimento”.145 Com isso, ao tematizar a exteriorização da relacio­ nalidade do acaso, do ponto de vista sistemático, faz-se a passagem da lógica do acaso (a lógica fundamental, a lógica do determinar) para a ontologia. Nessa perspectiva, o mundo entendido como o todo em que o acontecimento ocorre é um conceito ontológico. E, portanto, na esfera da ontologia que o acaso se articula como acontecimento. A origem do acontecimento é a conexão atual e concreta dialético-ingressiva que é a mediação tanto irredutível como comunicativa na mediação de seus momentos, como também em seu próprio relacionar-se com outras conexões semelhantes. Enquanto tal, o acontecimento é tanto uma passagem para as facticidades de diferentes tipos (coisas, estados de coisas, fatos etc.) como também o espaço em que as esferas do universal e do singular são mediadas. Aqui se manifesta a especificidade desta ontologia do acontecimen­ to: as ontologias dos acontecimentos normalmente tratam dos diversos tipos de facticidade, dos diferentes entes e de suas características transcategoriais. Na proposta sistemática de Utz, a teoria do acontecimento se situa num nível mais fundamental, porque o acontecimento subjaz a todos os tipos de facticidades, aos diferentes tipos de entes. Nesse sentido, aqui a teoria do acontecimento precede a ontologia entendida enquanto teoria das categorias e dos transcendentais, e nesse sentido estrito ela pode ser dita pré-ontológica, por trabalhar questões mais fun­ damentais do que as que usualmente são tratadas pelas ontologias. Dessa forma, pode-se dizer que o acontecimento é a origem das categorias e dos transcendentais, o que significa dizer que as ontologias tradicionais são uma interpretação do acontecimento. A tese da originariedade do acontecimento manifesta a pretensão de não só pensar de maneira diferente as conexões no mundo - ou seja, de pensar o “mundo”, a “realidade” -, mas de pensá-las enquanto acontecimento que emerge atual e concretamente, e nisso começa um “processo de diferenciação” que interpretamos como a diferença de universal e singular. Daí a tese do "primado do acontecimento” : nada existe na realidade antes do acontecimento, nada existe na realidade senão acontecimentos.146 Ele constitui o aparecer dos entes (sua inteli­ gibilidade) e sua realidade. O acontecimento é, para nós, “o primeiro”: nosso encontro com algo é sempre uma ocorrência no tempo e um emergir temporal de algo. Mas essa tese do primado diz muito mais: o acontecimento não é só o primeiro para nós, mas em si mesmo, ou 145 Cf. UTZ, K. Philosophie des Zufalls. Op. cit., p. 92. 146 Cf. ibidem. Cf. p. 93. Utz, contudo, não tematiza pontos de contato com outras for­ mulações de uma ontologia dos acontecimentos e processos.

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seja, o primeiro da realidade em si mesma, o primeiro e o próprio da efetividade das coisas. Com isso, supera-se radicalmente a visão tradicional radicada no “primado do imediato”, em que as coisas eram pensadas em si mesmas e, enquanto tais, dotadas de determinações. Só depois emergiam no evento, em contato com outras coisas. Na medida em que são pensadas enquanto acaso, destrói-se o primado do imediato. Com isso, põe-se em questão a visão das coisas da ontologia tradicional. Por exemplo, as propriedades na visão da tradição são absolutamente fundamen­ tais, porque são elas que constituem as coisas como um algo deter­ minado, específico. Na postura de Utz, não há mais “propriedades em descanso” já que elas só se exprimem em seu agir, em sua relação mútua com outras coisas, o que significa que elas só se mostram no acontecimento. Dessa forma, não temos qualquer acesso a elas fora de seu agir. Essa nova visão se deriva da tese de que toda determinação é negação e, com isso, mediação. Daí a determinação efetiva é determinação no agir. Da tese do primado do acontecimento resulta que propriedades são propriedades “atuais”; ou seja, propriedades só são efetivas em atuali­ dade, e propriedades potenciais apresentam abstrações de determinações atuais. Sendo assim, o conceito de atualidade se torna mais forte do que o de propriedade, e a propriedade, por sua vez, é concebida como um momento do “actus” da ocorrência originária. Nesse contexto, as coisas, enquanto portadoras de propriedades, para além de suas propriedades e para além do agir, constituem uma abstração maior do que a das pro­ priedades em descanso. Na realidade, as coisas são componentes dos acontecimentos, seus momentos. No acontecimento, o próprio acaso separa sua atualidade e sua concreção nos momentos da universalidade e da singularidade. Essa tese do primado do acontecimento significa que tudo emerge, em primeira e última instância, no ato do realizar-se relacionai assimetricamente válido, ou que isso constitui o supremo e o irrenunciável, para onde nos conduz o prosseguimento do esforço de redução. A atualidade responde à pergunta pelo lugar da originariedade, e, quando se pergunta pelo modo como o acaso é o originário, a resposta é a con­ creção. Tudo o que é é acaso enquanto algo “concreto”, algo que é em si um/distinto, sem que essa concreção seja redutível a singularidades, a uma totalidade fechada em si que as sustenta e fundamenta. Só assim algo pode ser enquanto tal. A “principialidade” do acaso se radica na atualidade e na concreção, o que significa que a compreensão do que seja princípio, quando pensada a partir do acaso, é profundamente modificada.

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4.4 AS FILOSOFIAS D O PROCESSO: A VERSÃO DE N. RESCH ER 4.4.1 A virada processual: a nova proposta de ontologia geral Para N. Rescher,147temos na filosofia tanto um pluralismo da di­ versidade doutrinai num dado tempo quanto o historicismo da mudança doutrinai ao longo do tempo. A conseqüência disso é que os itens traba­ lhados pela filosofia - questões, conceitos, teorias e doutrinas - não são objetos fixos para sempre, mas se desenvolvem em iterações recíprocas nas situações diferenciadas no tempo. No século XX, a "filosofia do processo” encontrou grande reper­ cussão no mundo filosófico a partir de A. N. Whitehead148e seus segui­ dores, para quem a natureza enquanto tal é um processo, a realidade não é feita de substâncias, mas de acontecimentos e movimentos. Os entes emergem de encontros e relações, e isso é o princípio-guia que nos per­ mite ver a temporalidade, a historicidade, a mudança e a passagem como os fatos fundamentais do mundo que é um fluxo permanente. A realidade não cessa de evoluir e de se transformar, de tal modo que a estabilidade, a inércia e a fixidez constituem ilusões, e o devir constitui seu cerne. Para Whitehead, a filosofia do processo não representa a doutrina de algum pensador particular, mas exprime a tendência maior que marca a tradição filosófica ocidental desde os pré-socráticos, embora a partir de Aristóteles o pensamento ocidental se tenha centrado nas coisas ou substâncias. Na realidade, como afirma Seibt, Por toda a sua história, a ontologia tem operado sobre a premissa de que o tipo “primário” ou básico de entidades é "substância” ou, mais genericamente, a interpretação ontológica daquilo sobre o que falamos quando falamos sobre coisas eternas ou persistentes (incluindo coisas viventes e pessoas).149

Por sua vez, Puntel reconhece que nas ontologias contemporâneas não se fala apenas de objetos (substâncias), mas frequentemente são introduzidas outras categorias como fatos, processos, acontecimentos, condição, campo. Isso, contudo, não significa, sem mais, uma superação da ontologia substancialista. Daí sua crítica fundamental: 147 Cf. RESCH ER, N. Process metaphysics ~ An introduction to process philosophy. Nova York: University Press, 1966; A System o f Pragmatic Idealism. VoL III: Metaphilosophical Inquires. Princeton/New Jersey: Prmceton University Press, 1994, p. 168 e ss. 148Cf. W HITEHEAD, A. N . The Concept ofNature. Cambridge: Cambridge University Press, 1920; Process and Reality. Londres: Macmillan, 1929; An essay in cosmology. Sherbume: Free Press, 1979. 149 Cf. SEIBT, J. “ Ontologia de Processo". In: IMAGUIRE, G.; ALMEIDA, C. L S. de; OLIVEIRA, M. A. de (orgs.). Metafísica Contemporânea. Petrópolis: Vozes, 2007, p. 290-291.

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A circunstância em que frequentemente são introduzidas e aceitas outras categorias, diferentes da categoria da substância, como, por exemplo, aconte­ cimento, processo etc., de modo algum representa uma superação do quadro básico substancialista; pelo contrário, as “outras” categorias pressupõem a categoria da substância e os conceitos diádicos que descrevem e caracterizam mais precisamente a categoria da substância, como, por exemplo, sujeito-universais, sujeito-atributos (entendendo-se os atributos como propriedades e/ou relações).150

Que pretende essa filosofia? Trata-se de uma proposta alternativa para pensar a realidade em seu todo - portanto, de uma proposta de ontologia geral que se apresenta como complementar ou alternativa às propostas ontológicas hegemônicas no pensamento ocidental. Nessa perspectiva, J. Seibt151 fala de uma "virada processual” na filosofia e distingue aqui duas formas de sua realização: alguns teóricos pretendem, com a filosofia do processo, articular, de certa maneira, uma espécie de extensão categorial em relação ao pensamento da tradição, na medida em que ao lado das categorias estáticas, que são, aí, hegemônicas, são introduzidas "categorias dinâmicas”. Essas constituem uma espécie de "terapia” da metafísica. Por outro lado, há propostas que se entendem como revisões teóricas mais abrangentes, "teorias de substituição” das propostas ontológicas hegemônicas na tradição, e isso é o que ela denomina as "ontologias processuais radicais”, ou seja, propostas ontológicas que pretendem articular um novo conjunto de conceitos analíticos para que possamos entender o que nos cerca, a nós próprios e nossas re­ lações com o que nos cerca - portanto, um novo quadro teórico para entender a realidade em seu todo, programas “que visam servir como alternativas completas para uma abordagem substância-ontológica ou tropo-ontológica” .152 Numa palavra, Seibt distingue as ontologias provenientes da "vi­ rada processual” na ontologia em dois tipos de ontologia do processo: as "conservadoras”, que pensam lado a lado as velhas categorias estáti­ cas e as novas categorias dinâmicas, e as “radicais”, que pretendem ser alternativas completas às ontologias da substância e dos tropos, o que se explicita na afirmação:

150 Cf. PU NTEL, L. B. Estrutura e ser. Op. cit., p. 256. 151 Cf. SEIBT, J. General Processes. A Study in Ontological Category Construction. Habilitationsschrift, Universitãt Konstanz, 2004. 152 Cf. idem. Ontologia de Processo. Op. cit., p. 292.

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A ontologia em debate no pensamento contemporâneo

A ontologia e a metafísica processuais visam, tipicamente, à revisão teórica dentro da ontologia ou metafísica; elas não são “terapias” da metafísica.153

Para Seibt,554há três intuições básicas na compreensão do que seja processo, e, consequentemente, três formas de articulação da filosofia do processo: 1) processo enquanto mudança ou diferença dinâmica; 2) processo como produção; 3) processo como atividade. Sua tese básica é que processos, e não coisas ou pessoas, constituem a categoria mais central de uma teoria filosófica. Para Rescher,155 a filosofia do processo possui cinco proposições básicas: 1) o tempo e a mudança estão entre as principais categorias da compreensão metafísica; 2) processo é a categoria principal da descrição ontológica; 3) processos são mais fundamentais ou, de qualquer maneira, não menos fundamentais do que coisas para os objetivos da teoria ontológica; 4) vários, se não todos os elementos maiores do repertório onto­ lógico (Deus, natureza enquanto um todo, pessoas, substâncias materiais), são melhor compreendidos em termos vinculados a processo; 5) contingência, emergência, novidade e criatividade estão entre as categorias fundamentais da compreensão metafísica. Estes constituem os fatores básicos para a compreensão do real. Em última instância, trata-se de uma questão de prioridade: estes são os traços mais característicos e mais significantes da realidade. Essas categorias são mais bem indicadas por verbos do que por substantivos; tempestades e calor são tão reais como cachorros e laranjas. Para os teóricos dos processos, “como” é tão significante como “o que”. Os processos em geral não são uma questão de obras de coisas. O calor do fogo, por exemplo, ferve a água, mas o calor claramente não é uma coisa. O que está em curso nesses processos autossubsistentes e sem sujeito não são agentes, mas forças, e estas podem estar difusamente localizadas ou não ter localização alguma.156 153 Cf. SEIBT, J. Ontologia de processo. Op. cit., p. 292. 154 Cf. ibidem, p. 300 e ss. 155Cf. RESCHER, N. “ Process Philosophy”. In: KIM, J.; SOSA, E. (orgs.). A Companion to Metaphysics. Malden: Blackwell, 1995, p. 417. PU NTEL, L. B. “Einführung in Nicholas Reschers pragmatische Systemphilosophie”. In: RESCHER, N. Die Grenzen der Wissenscbaft. Stuttgart: Reclam, 1985, p. 7-47. 156 Cf. G O U N E LLE , A. “ Process Theology”. In: LACO STE, J.-Y. (ed.) Dicionário Crítico de Teologia. São Paulo: Paulinas/Loyola, 2004, p. 1428: “ Cada ser nasce de um entrecruzamento de encontros e de relações. N ão existem antes de tudo objetos ou pessoas que

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Para Rescher, o protagonista desse esquema ontológico foi Heráclito, para quem a realidade não é uma constelação de coisas, mas de processos, ou seja, o cerne do mundo não é substância material, mas processo - especificamente, fogo e as coisas são o produto de suas ações. Tudo o que é, é uma forma de processo, de atividade, de mudança.157Na modernidade, o grande defensor da filosofia do processo foi Leibniz, para quem as coisas de nossa experiência não são realmente coisas. O mundo, de fato, consiste em aglomerados de processos que ele denomi­ nou de “mônadas”, que são “centros de força” ou feixes de atividade, e isso constitui propriamente o objeto da ontologia. Para um filósofo do processo, o processo tem prioridade, tanto epistemológica como ontológica, sobre seu produto. Há uma forma de entender processo que, na realidade, não constitui uma alternativa para a ontologia da substância. Aceita-se a tese de que o mundo está repleto de muitas e variadas atividades e processos, mas se insiste que isso é produto de agentes substanciais. O esquema teórico aqui implícito é que o mundo se compõe de coisas, de suas propriedades e atividades - ou seja, é o esquema da ontologia substancialista e, por­ tanto, o grande e fundamental pressuposto ontológico do pensamento ocidental.158 Consideremos um processo como uma flutuação no campo magné­ tico da terra ou um enfraquecimento do campo gravitacional do Sol. E claro que tais processos farão um impacto em coisas, mas esses processos são eles mesmos as atividades/ações das substâncias/coisas. Não é uma coisa que faz algo. Na filosofia do processo o princípio clássico “operari sequitur esse” é revertido em "esse sequitur operan \ pois tudo é, em última análise, produto de processo. Numa palavra, os processos são as entidades básicas; as coisas, as derivadas. Na metafísica da tradição, os processos são considerados manifestações de disposições, que se radicam nas propriedades estáveis das coisas. A metafísica dos processos inverte essa perspectiva: as propriedades categoriais das coisas são simplesmente aglomerados estáveis de disposições gerando processos. Mesmo numa ontologia substancialista, as propriedades disposicionais são epistemologicamente fundamentais, pois sem elas uma coisa é inerte, inacessível, desconectada do comércio causai do mundo; numa entrariam em seguida em contato uns com os outros, mas um conjunto de interferências que faz surgir pessoas e objetos". 157 Cf. G O U N E LLE , A. Process Theology. Op. cit., p. 1428: “ O mundo e cada ser cons­ tituem um fluxo, ou uma marcha que continua sempre, modifica-se sem jamais se deter”. 158 Cf. PU N TEL, L. B. Estrutura e ser. Op. cit., p. 218: “ Chama a atenção, porém, que todas essas entidades, em última instância, com poucas exceções (cf., por exemplo, Seibt, 2004), são introduzidas e entendidas no quadro de uma teoria ontológica básica da substância” .

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palavra, incognoscível. Nosso único acesso epistêmico às propriedades absolutas das coisas se dá através da triangulação inferencial de suas propriedades disposicionais, ou melhor, através dos processos através dos quais elas se manifestam. Uma ontologia substancialista não pode passar sem processos, pois sem eles não temos acesso às disposições, e sem propriedades disposicionais as substâncias nos são incognoscíveis. As coisas são simplesmente o que fazem. Tudo o que podemos obser­ var a respeito da substância é o que ela faz, que tipos de impactos ela produz em sua interação com outros, ou seja, que tipos de processos ela engendra. Na realidade, uma ontologia de processos simplifica as coisas: ao invés de uma realidade de dois níveis, que combina coisas com seus processos inevitáveis coordenados, ela defende uma ontologia de um único nível: o dos processos. Ela pensa as coisas como manifestações de processos, enquanto aglomerados complexos de processos coor­ denados. Dessa forma, o cerne de uma ontologia de processos consiste em substituir o dualismo ontológico, que marca a ontologia substan­ cialista de coisa e atividade, pelo monismo de atividades de diferentes espécies. 4.4.2 As ontologias regionais 4.4.2.1 A filosofia da natureza A quintessência de uma visão processual da natureza é a física de campos159e forças que operam a partir de si mesmas sem referência a coi­ sas substanciais, em contraposição à ontologia da substância, que pensa a natureza como uma coletividade de coisas e objetos. Um problema que emerge imediatamente dessa visão é a questão da explicação de leis que coordenem o comportamento de coisas. Desaparecem essas dificuldades quando se pensa o mundo como uma pluralidade de processos, vendo a natureza como a substanciação de uma família de princípios operativos dos quais nós mesmos participamos. A física moderna nos ensina que no nível do muito pequeno não há coisas (objetos e substâncias), há somente padrões de processo que exibem estabilidade. O desenvolvimento de "coisas” estáveis começa no nível subsubmicroscópico com a proliferação de "acontecimentos” que têm pouca, se é que têm alguma, natureza fixa neles mesmos, mas exis­ tem somente em interação recíproca um com outro. Para a física con­ 159 Cf. ROSA, L. P. “ Os Problemas Atuais da Física de Partículas e Campos” . In: Tecnociências e Humanidades. Novos paradigmas, velhas questões. A ruptura do determinismo, incerteza e pós-modemismo. São Paulo: Paz e Terra, 2006, p. 211 e ss. SCH N EIDER, C. “Towards a Field-Ontology”. Dialectica, v. 60, n. 1 ,2006a, p. 5-27.

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temporânea, a matéria, no mundo subatômico, não é um sistema pla­ netário rutherfordiano de objetos semelhantes a partículas, mas uma coleção de processos flutuantes organizados em estruturas estáveis por regularidades estatísticas. A visão quântica demole o atomismo clássico, pois, para ela, no micro nível, o que usualmente foi considerado uma coisa física, um objeto que permanecia imutável e indivisível, nada mais é do que um padrão estatístico, uma onda num mar de processo. As coisas na realidade são padrões de estabilidade de processos variáveis. Numa palavra, ao invés de coisas muito pequenas em combinação para produzir processos-padrão, a física moderna vê processos muito pequenos (os fenômenos quânticos) se combinando para produzir coisas-padrão (os macro ob­ jetos ordinários) como resultado de seu modus operandi. Para Puntel, as inúmeras tentativas para empregar a categoria substância a fim de compreender as produções da física moderna mostram claramente o caráter problemático dessa categoria.160 A linguagem da natureza não exibe nem a lógica do objeto e do predicado nem a gramática de sujeito e verbo; sua linguagem preferida é a das equações diferenciais, a linguagem matemática do processo, das funções de transformação e das equações que são nosso melhor auxílio na captura da realidade física do mundo. Como pensar essa linguagem? Quais seus elementos constitutivos? Rescher não diz uma palavra a respeito. 4A.2.2 A filosofia da mente: psicologia filosófica O eu (Self ou Ego) constitui um problema para o paradigma da ontologia substancialista por oferecer resistência à submissão à categoria de substância. A ideia de que o eu é uma coisa e seja o que for que se pode instalar “em minha mente” ou “em meus pensamentos”, e que é uma questão da atividade de uma coisa de certo tipo, ou seja, de uma substância mental, essa ideia parecia um tipo de ficção. Havia certo des­ conforto de compreender pessoas como coisas (substâncias), sobretudo o eu, porque se resiste a uma simples identificação com nossos corpos. Aristóteles evitou o problema na medida em que pensou o eu não como uma substância, mas como uma "forma substancial” - uma proposta que levantou outros problemas. As pessoas geralmente se inclinam a 160 Cf. PU N TEL, L. B. Estrutura e ser. Op. cit., p. 347: “ Com o desenvolvimento da física moderna tornou-se muito claro como o recurso a essa categoria é problemático. Assim, primeiro pensou-se ter encontrado o plano da substancialidade no âmbito da molécula, mas logo depois no plano do átomo, em seguida no âmbito das partículas elementares e assim por diante. No mais tardar, diante disso ficou claro que essa categoria é inaprovável para compreender ou interpretar os resultados da física moderna” .

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ver a si mesmas e suas ações, em termos processuais, enquanto fonte de atividades teleológicas geradas para a satisfação de suas necessidades e seus desejos. Há uma questão mais grave na aplicação ao ser humano da onto­ logia substancialista: a tendência inexorável a uma visão materialista que termina pensando a pessoa como o corpo e suas ações, pois se há algo que nos pertence e que é mais assimilável ao paradigma substan­ cialista é o corpo. A partir da ótica de uma metafísica do processo, tem-se uma visão muito diferente. Temos dificuldades de saber o que somos, mas não temos dificuldades em apreender o que fazemos, nossas habilidades, nossos traços, nossas disposições, hábitos, inclina­ ções, tendências; numa palavra, tudo o que define uma pessoa como um ser individual. O que faz minha experiência propriamente minha não é um caráter qualitativo peculiar que ela exiba, mas simplesmente seu fazer parte do processo abrangente que define e constitui minha vida. Quando definimos o cerne do "eu” de uma pessoa como um aglo­ merado unificado de processo atual e potencial - de ação e de capacidades e disposições para a ação, tanto física como psíquica- então, possuímos um conceito de personalidade que torna o eu experiencialmente acessível. Nessa perspectiva, o eu, que é o cerne da pessoa, é simplesmente um megaprocesso, um sistema estrutural de processos, um centro de ações. O ponto central desse empreendimento consiste precisamente no des­ locamento de orientação da substância para o processo na compreensão do ser humano, isto é, de uma unidade de hardware, de uma maquinaria física, para uma unidade de software, de programação e modo de fun­ cionamento. Para Seibt, a tese central de uma filosofia do processo na atual discussão é precisamente que o mundo consiste em atividades, em dinâmicas entrelaçadas.161 A grande vantagem da ontologia do processo na compreensão do eu como um processo internamente complexo de “condução de uma vida” é que ela acaba com a necessidade de apelar para um obje­ to substancial unificante, misterioso e experiencialmente inacessível, para constituir o eu fora da variedade de suas experiências. A unidade do eu no quadro da ontologia do processo é compreendida como a unidade de um megaprocesso que inclui muitos processos menores, o que evita pensar o eu como uma entidade separada de suas ações, atividades e experiências. Portanto, o eu não é uma coisa, mas um processo integrado.

161 Cf. SEIBT, J. Ontologia do Processo. Op. cit., p. 307, 311.

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4.4.3 Processo e o problema dos universais Somos rodeados por instâncias de tipos de itens não somente físicos, mas também artefatos conceituais, como palavras, letras do alfabeto, canções, poemas e jogos. Para Rescher, esses itens são mais facilmente concebíveis como processos do que como coisas substanciais. Processos podem e devem ter padrões e periodicidades que os tomam, em princípio, repetíveis. Dizer que uma coisa tem uma estrutura de alguma espécie significa atribuir-lhe algo que outros itens em princípio podem também ter. Mas uma estrutura é algo que, apesar de repetível, uma coisa concreta exibe concretamente. Daí porque a abstração não cria a estrutura, mas, antes, a pressupõe. Para Rescher, há três teorias rivais dos universais: para o nomina­ lismo, os universais são criados pelo espírito humano e imputados às coisas por meio de operações do espírito; para o realismo platônico, eles são entidades extramentais, independentes do espírito e de instanciações no mundo atual. Eles são descobertos pelo espírito como aspectos pré-existentes das coisas; para o conceptualismo, os universais são gerados na interação espírito/coisa. O paradigma ontológico da tradição vê os universais como pro­ priedades das coisas, pois divide o mundo em dois tipos de entidades: “os objetos particulares” (coisas) que são entidades irrepetíveis, que, portanto, não podem ser instanciadas por outras entidades, e os "uni­ versais”, que são entidades repetíveis, na medida em que podem ser instanciadas em diversas entidades distintas do espaço/tempo, de tal modo que tudo o que existe ou é particular ou é universal.162 A grande dificuldade nesse quadro teórico é que nessa base se tende inexoravel­ mente para o platonismo, que substancializa os universais, tornando-os entidades ontologicamente independentes. Numa ontologia do processo, os universais são pensados como estruturas processuais. Processos são inerentemente universais e repe­ tíveis: ser um processo é ser um processo de certo tipo, de uma certa composição, e o que o concretiza é simplesmente sua posição espaço-temporal, seu posicionamento no quadro da realidade. Dessa forma, um processo é em sua natureza um universal; um processo atual é

162 O que do ponto de vista semântico pressupõe a “ semântica composicional”. Cf. AR­ RUDA, J. M. “Universais e particulares: platonismo e nominalismo”. In: IM AGUIRE, G.; ALM EIDA, C. L S. de; OLIVEIRA, M. A. de (orgs.). Metafísica Contemporânea. Petrópolis: Vozes, 2007, p. 224: “ [...] enquanto os particulares ocupam somente o lugar de sujeito - e nunca de predicados - em sentenças bem formadas, os universais podem ocupar tanto uma posição quanto a outra” .

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igualmente concreto e universal.163Nessa ótica, os universais descem do reino platônico para receber traços estruturais nas formas em que nós conduzimos concretamente nossos negócios e nossos pensamentos.164 Essa posição pode ser interpretada no sentido do que hoje se chama "realismo moderado” : não existem universais exemplificados, o que significa dizer que a categoria de universal ainda continua aceita no quadro ontológico da ontologia substancialista, e consequentemente sua crítica a atinge também.165 4.4.4 Processo e metafilosofia Metafilosofia, para Rescher, é o estudo teórico da filosofia e do filosofar; ela constitui uma parte da própria filosofia. Dessa forma, se um quadro teórico foi produtivo na filosofia, ele tem também um papel importante na metafilosofia. Ora, a filosofia, para Rescher, é antes de tudo radicada num processo ideacional: um empreendimento do espí­ rito com termos como realidade, usando ideias que nos façam capazes de captá-la. Aqui uma distinção se faz importante: a distinção entre um tex­ to e uma ideia, entre as formulações de filósofos particulares e as ideias filosóficas operativas, as questões, os problemas, doutrinas que se revelam como questões em suas obras. Numa palavra, a filosofia é, antes de tudo, disputas e discussões contínuas que representam as atividades atuais da comunidade dos filósofos em trabalho, por meio de que ideias são desenvolvidas, refinadas, inter-relacionadas no processo permanente de adaptação cognitiva a uma experiência em constante mudança. A filosofia é um empreendimento que se efetiva através do ajusta­ mento de nossas respostas às questões perenes a um corpo em constante mudança de informação e reflexão; ou seja, filosofia não é um objeto, é um processo de exploração de possibilidades de pensamento sob a guia da experiência. Sua natureza é, assim, estritamente processual, um processo teleológico com um fim visado. Já que a vida humana, em nível

163 Isso implica uma ruptura com a tese da tradição. Cf. ARRUDA, J. M. Universais e particulares: platonismo e nominalismo. Op. cit., p. 223: “ Particular e universal constituem, para eles, categorias ontológicas básicas, mutuamente exclusivas: tudo o que existe ou é um particular ou é um universal e nada do que existe pode ser ambas as coisas”. 164Cf. RESCHER, N . Process Philosophy. Op. cit., p. 418: “How distinct minds canperceive the same universal is now no more mysterious then how distinct walkers can share the same limp - it is a matter of actions proceeding in a certain particular way'\ 165Cf. PU NTEL, L. B. Estrutura eser. Op. cit., p. 256: “ ...as ‘outras* categorias ontológicas (acontecimento, processo etc.) são enunciadas como entidades que possuem propriedades e es­ tilo cm rclnçSlo umas com as outras. Em conseqüência, o vocabulário substancialista é mantido”.

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individual ou coletivo, é ela mesma um processo em constante mudança, assim também deve ser o caso com a articulação de uma perspectiva filosófica que reflete sobre ela.166Daí por que toda posição ou doutrina filosófica é em si mesma algo não terminado, incompleto.

166 Cf. RESCHER, "N. A System ofPragmaticIdealism. Vol. III. Op. cit., p. 181: “ Throughout philosophy, the presently attained stage is not the end o f the road - the journey continues” .

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Capítulo 5

A O N T O LO G IA CO M O UMA DIM ENSÃO DA FILO SO FIA SISTEM ÁTICO-ESTRUTURAL

5.1 A CEN TRALID A D E DA LIN G UA GEM E A NOVA PROPOSTA DE ARTICULAÇÃO DA TEORIA FILO SÓ FICA 5.1.1 A filosofia transcendental pré-linguística: o mundo se nos dá em intuições puras: a fenomenologia husserliana Para Husserl, a filosofia exige uma mudança radical de postura, o que revela o caráter ingênuo da atitude da postura natural. Essa transformação radical de postura nos vai mostrar que todos os entes só nos podem ser dados na esfera da subjetividade transcendental através de múltiplos modos de manifestação, que são em princípio variáveis e ilimitados. Nesse sentido, fenomenologia não é simples descrição do que aparece sem que possa haver uma decisão sobre o que o ente é em sua essência e seu ser, mas ela é precisamente o esclarecimento dos entes em sua essência, em seu sentido e em seu ser. Nessa perspectiva se deve dizer, contudo, que a questão central da fenomenologia não é o ser, no sentido de Heidegger, mas o sentido, embora não seja claro como Husserl interpreta o sentido. De qualquer modo, ele sempre tematiza o sentido e não o ser mesmo.1 Isso se faz através do retorno às vivências intencionais nas quais os sentidos vêm à doação. Dessa forma, o tema específico da fenome­ nologia é a correlatividade entre as “formas de doação” dos objetos e os momentos intencionais das vivências (dos atos intencionais), em suas inúmeras modificações.2 Numa palavra, fenomenologia é análise

1Cf. PU N TEL, L. B. Ser e Deus. Um enfoque sistemático em confronto com M. Heidegger, E. Lévinas e J-L. Marion. São Leopoldo: Editora Unisinos, 2011, p. 305. 2 Cf. TUGENDHAT, E. Der Wakrheitsbegriff hei Husserl und Heidegger. Berlim: de Gruyter, 1967, p. 172. A respeito do caminho que vai de Bolzano a Husserl, cf. PORTA, M. A. G. “Platonismo e intencionalidade: a propósito de Bemard Bolzano (2a Parte)” . Síntese, v. 30, n. 96,2003, p. 85-106.

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da correlação entre objeto intencional e ato intencional, ou seja, trata-se de determinar a partir da intenção o sentido do “intendido”. Portanto, o que temos é sempre um objeto num modo determinado de nos dar-se: não há objeto sem a mediação de seu modo de dar-se. Fenômeno é, então, aqui um correlato intencional da consciência,3 e a subjetividade é o princípio da originariedade.4 Ser é, então, ser para a consciência: essa é a tese básica da filosofia transcendental, e não se pode entender o projeto husserliano de filoso­ fia sem vinculá-lo à tradição do pensamento transcendental de Kant e, sobretudo, de Fichte,5 no giro reflexivo da filosofia - na expressão de Tugendhat - 6aceita e radicalizada por Husserl. Isso significa dizer que o sentido e o ser de qualquer objeto que conservamos, idêntico através das diferentes formas de consciência, formam-se através de nossas ações sintéticas no “como" de sua doação, isto é, nos diferentes tipos de objetualidade.7 Para a postura fenomenológica, todos os entes, abstratos ou concretos, reais ou ideais, têm seus modos de doação ( K 169). Numa palavra, tudo se revela na consciência como objeto constituído por atos constituintes e, portanto, a subjetividade emerge como a fonte última de toda doação de sentido. Husserl rejeita o método regressivo à subjetividade, não no sentido da pergunta pelas condições de possibilidade do conhecimento objeti­ vo, mas no sentido de que essa pergunta, no pensamento de Kant, não realiza um retorno à intuição e, nesse sentido, é em última análise uma construção através de dedução. Com isso, todo o procedimento se radica em suposições não intuídas, o que tem como conseqüência que, dessa forma, não é possível atingir a autodoação da subjetividade em seu ser em si: ela é apenas “construída” num pensamento vazio. O grande ausente no pensamento de Kant é precisamente a intuição, que Husserl denomina o “princípio dos princípios”, entendida como a fonte originária, a evidência fundante de todo conhecimento (Hua III 3 Cf. FINK, E. Nàhe und Distanz, Phànomenologiscbe Vortrãge und Aufsàtze. Friburgo/ Munique: Verlag Karl Alber, 1976, p. 83. 4 Cf. ibidem, p. 91. 5Essa é a tese básica de Siemek. Cf. SIEMEK, M. J. “Husserl e a herança da filosofia trans­ cendental”. Síntese, v. 28, n. 91,2001, p. 190 e ss. Cf. OLIVEIRA, M. A. de. Subjektivitãt und Vermittlung. Studien zur Entwicklung des transzendentalen Denkens bei I. Kant, E. Husserl und H. Wagner. Munique: Wilhelm Fink Verlag, 1973, p. 139-220. 6Cf. TUGENDHAT, E. Vorlesungen zur EinfÜhrung in die sprachanalytische Philosophie. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1976, p. 16 e ss. 7 Cf. HABERMAS, J. “Vorlesung zu einer sprachtheoretischen Grundlegung der Soziologie". In: Vorstudien und Ergànzungen zur Theorie des kommunikativen Handelns. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 2a ed., 1986, p. 37. H á quem defenda a tese de que Husserl é um predecessor da teoria dos tropos como constitutivos de toda a realidade fenomênica. Cf. CO RREIA , F. “ Husserl on Foundation”. Dialectica, 58, 2004, p. 349-367.

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25).8 Dessa forma, a tese central da fenomenologia é que só o retorno aos atos intencionais pode produzir aquela autodoação em evidência intuitiva (visão) que constitui o cerne da fenomenologia. Assim, as coisas mesmas não são objetos no sentido de uma "posição transcendente de ser”, mas o que é intuído na satisfação de atos intencionais.9 Um confronto com a tese fundamental da fenomenologia a res­ peito da forma suprema do dar-se da realidade a nós pode iniciar-se com a crítica articulada por E. Tugendhat:10conhecido é, para Husserl, precisamente o que nos é imediatamente dado. Para Tugendhat, jus­ tamente nisso se mostra o caráter unilateral da concepção husserliana de conhecimento: a função do conceito para o que é sensivelmente pré-dado perde importância perante o papel da intuição em relação ao que é significado, de tal modo que ascensão no conhecimento significa exclusivamente maior proximidade da coisa, e não aumento em dife­ renciação e distinção. Esse pré-conceito da fenomenologia, ou seja, de que a simples presença garante por si mesma o cumprimento último de uma intenção significante, tem para Tugendhat enormes conseqüências na concepção husserliana da filosofia. Em primeiro lugar, isso é decisivo para o modelo de filosofia transcendental que ele articulou e para a concepção da cons­ ciência pura como o campo absoluto, precisamente porque é o campo do que se dá adequadamente. Em segundo lugar, para a conseqüência metódica de que a análise fenomenológica se restringe ao que é simples­ mente dado intuitivamente na intuição originária (Hua III 52). A não consideração da questão da determinação tem como conseqüência que o determinado é aceito ingenuamente e não é considerado expressamente, mas por outro lado ele é o resultado de um processo de determinação que se faz através de sua relação à forma de seu dar-se. Isso conduz sempre a uma absolutização da experiência em questão. De fato, aqui se situa a questão fundamental de confronto com o pensamento de Husserl e sua proposta de articular a filosofia enquanto fenomenologia transcendental, mesmo na sua formulação última de filosofia do mundo vivido como o originariamente dado. Trata-se, para ele, de atingir a dimensão mais originária do conhecimento enquanto tal, e esta é para ele a intuição que se dá originariamente e que constitui a

8 Cf. STRÕ KER E. Pbànomenologische Studien. Frankfurt am Main: V. Klostermann, 1987, p. 1-34. 9 Cf. GADAM ER, H.-G. “ Die phãnomenologische Bewegung”. In: Gesammelte Werke, vol. 3, Tübingen, 1987, p. 118. 10 Cf. TUGENDHAT, E. Der Wahrbeitsbegriff bei Husserl und Heidegger. Op. cit., p. 85-87.

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fonte de justificação de todo conhecimento. Isso leva, segundo E. Fink,11 a uma postura “intencionalista” na concepção do ser e da verdade como posição específica da fenomenologia enquanto filosofia. Na realidade, aqui não se articula propriamente uma justificação, mas se defende a tese de que se trata em última instância de um ver, de um mostrar-se: a dimensão originária se mostra, dá-se. Como diz Habermas,12 em Husserl a intuição sensível serve de modelo para pensar qualquer outro tipo de intuição possível, pois aqui aparece em nível elementar o que constitui a intuição: a autodoação de um objeto. Sua suposição fundamental é que temos, na experiên­ cia sensível, acesso intuitivo a algo dado imediata e evidentemente. Para E. Fink,13 em Husserl a percepção intuitiva constitui de fato o modo originário de autodoação. Sua tese é de que em Husserl isso não significa um intuicionismo inimigo do pensamento, mas defesa do “primado da intuição” e do caráter secundário do pensamento. Habermas aponta para a dificuldade de defesa dessa tese do "primado da intuição” a partir, inclusive, de considerações do próprio Husserl em sua obra Erfahrung und Urteil.14 A razão fundamental é que em cada intuição originária já estão presentes determinações categoriais, o que para ele significa que o modelo de uma filosofia da consciência tem de ser substituído pelo modelo de uma filosofia enquanto teoria centralizada na linguagem. A filosofia, para Habermas, encontrou-se diante de um desafio que tem a ver com a própria forma de sua configuração enquanto teoria, ou seja, o desafio da articulação de um novo paradigma teórico. O ponto de partida dessa situação foi, para ele, a “reviravolta lingüística”, ou seja, a substituição no pensamento de Frege da análise de sensações, representações e juízos pela análise das expressões lingüísticas. Essa é uma posição que ele compartilha com Quine que, ao fazer um balanço dos resultados que marcaram positivamente a filosofia do século XX, afirmou que o evento decisivo e irreversível depois de Hume foi a re­ viravolta lingüística.15 11 Cf. FIN K , E. Nàbe und Distanz, Pbànomenologische Vortrãge undAufsãtze. Friburgo/ Munique: Karl Alber Verlag, 1976, p. 85. 12 Cf. HABERMAS, J. “Vorlesungen zu einer sprachtheoretischen Grundlegung der Soziologie (1970/71)” . In: Vorstudien und Ergànzungen zur Theorie des kommunikativen Handelns. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 2a ed., 1984, p. 47-59. 13 Cf. FIN K , E. Nàbe und Distanz. Op. cit., p. 84. 14 Cf. HUSSERL, E. Erfahrung und Urteil Untersuchungen zur Genealogie der Logik. Hamburg: Claassen Verlag, 1964, 31 ed. 15 Cf. Q U IN E, W. V. O. “The Pragmatists, Place in Empiricism” . In: MULVANEY, R. J.; ZELTNER, P. M. (orgs.). Pragmatism: Its Sources and Prospects. University of South Califórnia Press, 1981, p. 23.

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Que significa isso para a filosofia? Em primeiro lugar, que, depois da reviravolta lingüística, não podemos mais analisar nossa capacidade de conhecimento independentemente de nossa capacidade de falar e agir, uma vez que nós enquanto sujeitos cognoscentes já sempre nos encontramos no horizonte de nossas práticas no mundo vivido. Lin­ guagem e realidade estão mutuamente imbricadas de tàl modo que toda experiência humana é linguisticamente impregnada. Com isso, supera-se definitivamente o “mito do dado”, uma vez que mesmo a experiência sensível já é mediada linguisticamente de tal modo que ela perde a au­ toridade epistêmica daquela instância que nos daria imediatamente a realidade pura. Para Habermas, foi mérito de W. Sellars,16 em sua crítica ao empirismo do Círculo de Viena, ter explicitado essa conseqüência da reviravolta lingüística.17 É esta a tese fundamental que Kutschera articula na linguagem da semântica e da ontologia composicionais: não conhecemos o mundo primeiramente no pensamento e depois exprimimos o conhecido na linguagem, mas captamos a realidade, os objetos, suas diferenças, propriedades e relações em forma lingüística. Pensamento e linguagem se desenvolvem sempre juntos: os pensamen­ tos só se exprimem em forma lingüística. A linguagem é o “médium” do pensamento.18 Uma contraposição a essa tese se revela através de uma compreen­ são da linguagem prioritariamente não enquanto instância universal de expressabilidade, mas enquanto atividade discursiva. Assim entendida, a linguagem é essencialmente posterior a um sentido dado na intuição intelectual. Essa intuição ou compreensão prévia do sentido das coisas é o fundamento do próprio discurso e, portanto, superior à sua expressão discursiva, o que faz com que a linguagem seja em princípio incapaz de esgotar as possibilidades significativas do que é dado na experiência intelectual. Numa palavra, a razão humana é interpretada como pos­ suindo duas funções básicas, mutuamente complementares e em íntima conexão, mas fundamentalmente distintas: a compreensão (intuição) e a exposição do sentido (discurso). A intuição tem precedência enquanto fundamento do discurso que constitui sua complementação necessária, uma vez que ele diz o que já foi compreendido. A experiência (intuição) é captação de sentido, contato imediato com a realidade sem mediação lingüística. A linguagem constitui o 16 Cf. SELLARS, W. Empirismo e Filosofia da Mente. Com uma introdução de Richard Rorty e um guia de estudos de Robert Brandom. Petrópolis: Vozes, 2003, p. 23 e ss. 17 Cf. HABERMAS, J. Wahrheit. Op. cit., p. 20. 18 Cf. KLTTSCHERA, F. v. Die Teile der Philosophie und das Ganze der Wirklichkeit. Berlim/Nova York: de Gruyter, 1998, p. 111.

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momento posterior da atividade cognitiva, ou seja, o momento de sua tradução em conceitos ou símbolos lingüísticos (discurso) a fim de que o sujeito tome posse do conteúdo de sua compreensão intuitiva.19Essa posição Apel consideraria um exemplo do que ele denominou uma “ concepção instrumentalista da linguagem”, pois para ele a tradição ocidental pensou a linguagem precisamente como um instrumento, um meio de designação e comunicação de um conhecimento realizado sem ela, o que já teria começado com o Crátilo de Platão.20Essa problemática é trabalhada por Puntel a partir da ideia da expressabilidade universal do mundo, do universo, do ser: a tese de que o mundo (a natureza, a realidade, o universo) existe ou possa existir em absoluta independência do espírito, e consequentemente da linguagem, não é inteligível e é, por isso, inaceitável.21 Uma conseqüência fundamental da centralidade da linguagem é precisamente a eliminação do primado da intencionalidade e de sua substituição pelo primado de uma compreensão lingüística. Nesse caso, a urgência de uma fundamentação, que é central na filosofia, não pode satisfazer-se através de uma consideração fenomenológica da história da originação do mundo vivido, mas através da acareação das pretensões de validade que levantamos em nossas práticas simbólicas ordinárias. Não intuição, mas argumentos são o que pode justificar a aceitação ou não das pretensões de validade, e, por conseguinte, é nesse nível que se situa uma teoria filosófica. Em direção semelhante, Apel rearticula a filosofia transcendental clássica a partir do diálogo com as filosofias que saíram da reviravolta lingüística: a filosofia analítica e a filosofia hermenêutica. Para ele, essa reviravolta provocou uma transformação daquilo que constitui a questão central dessa tradição de pensamento filosófico, ou seja, a pergunta pelas condições de possibilidade do conhecimento válido. Foi nesse contexto que Tugendhat interpretou a reviravolta lingüística como radicalização do movimento do pensamento que constitui o cerne da filosofia trans­ cendental, que ele denomina “reviravolta reflexiva” - cujo cerne consiste em dizer que a filosofia não tem como tarefa o conhecimento direto dos 19 Cf. McDOWELL, J. A. “A fé como compreensão intuitiva pessoal do sentido da rea­ lidade”. Síntese, v. 40, n. 128, 2013, p. 438-445. 20 Cf. APEL, K.-O. “Der transzendentalhermeneutische Begriff der Sprache” . In: Transformation der Philosophie. Das Apriori der Kommunikationsgememschaft. Vol. 2. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1976, p. 334. OLIVEIRA, M. A. de. “ Karl-Otto Apel. Pragmática Transcendental” . In: Reviravolta linguístico-pragmática na filosofia contemporânea. São Paulo: Loyola, 2006, 3* ed., p. 267 e ss. 21 Cf. PUNTEL, L. B. Estrutura e ser: um quadro referencial teórico para uma filosofia sistemática. São Leopoldo: Ed. Unisinos, 2008, p. 493 e ss.

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objetos do mundo, mas sua especificidade é uma reflexão sobre como os objetos do mundo, enquanto tais, podem ser-nos dados.22 E nesse sentido estrito que K.-O. Apel afirma ser a filosofia da linguagem a nova "filosofia primeira”, ou seja, não uma filosofia primeira enquanto pergunta pelo ente enquanto tal, ou pela estrutura da consciência transcendental enquanto fundamento do conhecimento válido, mas uma filosofia primeira à altura da consciência crítica alcançada em nossos dias, o que nesse contexto significa a consciência da inevitabilidade da mediação lingüística de nosso acesso ao mundo. Com isso, supera-se, para ele, precisamente a concepção ‘'instrumentalista” da linguagem vigente na tradição para quem a linguagem se reduz a um simples instrumento de exposição e comunicação de um conhecimento que já se efetivou independentemente dela. Em contraposição a essa concepção, para a filosofia transcendental a linguagem é uma “grandeza transcendental”, ou seja, a instância de possibilidade e validade do conhecimento humano enquanto tal - portanto, mediação irrecusável de nosso conhecimento do mundo. Nesse sentido, não há, como diz J. McDowell, qualquer experi­ ência originária que esteja fora da esfera conceituai, não há uma fron­ teira exterior para além da esfera conceituai, como ele diz comentando Wittgenstein: “Não existe lacuna ontológica entre o tipo de coisa que podemos querer dizer, ou, de modo geral, entre o tipo de coisa em que podemos pensar e o tipo de coisa que pode ocorrer. Quando alguém pensa de modo verdadeiro, aquilo em que ele pensa é aquilo que ocorre. Como o mundo é tudo que ocorre (como ele próprio escrevera), não há lacuna entre o pensamento enquanto tal e o mundo”.23 Se não há lacuna entre o pensamento e o mundo, há, porém, um jogo recíproco entre conceitos e intuições, entre receptividade e es­ pontaneidade, o que, porém, não nos impede de falar de uma realidade independente que exerce um controle racional sobre nosso pensamento - o que não significa, contudo, que o mundo seja completamente no espaço de um sistema de conceitos. Precisamos de um trabalho longo e paciente, o que implica uma obrigação permanente de reflexão. O importante aqui é a afirmação de que a realidade não está fora da esfera conceituai, e a rejeição do “mito do dado” significa precisamente que não existe uma presença pura, originária, fora da esfera conceituai. É isso que McDowell chama de “o caráter indelimitado do conceituai”. 22 Cf. TUGENDHAT, E. Vorlesungen zur Einführung in die sprachanalytische Philosophie. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1976, p. 16: “Sie konzipiert ihre Fragestellungen nicht in direkter Thematizierung jeweiliger Gegenstànde, sondem in der gleichzeitigen Reflexion darattf, wie uns diese Gegenstànde gegeben sein kónnen.wie sie uns zugànglich werden”. 23 Cf. McDOW ELL, J. Mente e Mundo. Aparecida: Ideias & Letras, 2005, p. 64.

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5.1.2 A posição da filosofia sistemático-estrutural Para Puntel, a questão do lugar e do papel da linguagem na filosofia é, sem dúvida, uma questão central, partindo-se de uma nova maneira de articular a filosofia e suas questões, que é fruto do que se convencio­ nou chamar de "giro ou reviravolta lingüística” da filosofia, cuja tese básica pode, para Braida, ser assim articulada: “O real experimentado, enfrentado e vivido no curso da existência humana, individual e coletiva, é ele mesmo estruturado pela consciência, que sempre já é perpassada e constituída pela linguagem”. Daí se conclui que a análise da linguagem é o único modo de se filosofar.24 Aqui não está em jogo um novo objeto ou um novo campo de investigação para a filosofia, mas a filosofia mesma em sua forma de articulação teórica, embora isso não tenha sido claro para muitos filóso­ fos analíticos, que em primeiro lugar falaram de reviravolta lingüística. Na interpretação de C. Costa, a reviravolta lingüística conduziu a uma nova concepção da filosofia, que reivindicava um objeto próprio e um método específico. O método se configura como a análise conceituai, e o objeto próprio é a estrutura lógico-gramatical de nossos conceitos mais centrais. Essa nova articulação de uma teoria filosófica se efetivou em duas formas básicas: a) crítica da linguagem, com o objetivo fun­ damental de mostrar as falhas dos argumentos filosóficos; b) análise da linguagem: trata-se aqui de oferecer uma sinopse da estrutura gramatical dos conceitos mais fundamentais de nossa linguagem, buscando elucidar o que Tugendhat chamou de a “malha conceituai” constitutiva de nosso entendimento como um todo. Para ele, muitos dos defensores da filosofia enquanto análise con­ ceituai defendem a tese de que, quando um filósofo expõe a estrutura conceituai de nossa linguagem, ele não está nem expondo uma hipótese especulativa sobre o mundo, como o filósofo tradicional, nem uma hipótese empírica sobre o mundo, como fazem os cientistas, uma tese a que se contrapunham tanto Frege como Mill a partir de sua concepção de linguagem, pois para eles usamos expressões lingüísticas para falar das coisas mesmas, e não de nossos estados subjetivos. Por essa razão, Frege distingue, por exemplo, entre a sentença (o sinal), o que se diz com ela (o sentido) e seu valor de verdade (o significado).25 Numa palavra, para essa concepção que se fez hegemônica, a filosofia, enquanto tem como objeto a estrutura de nossa linguagem, 24 Cf. BRAIDA, C. R. “A Filosofia da Linguagem como disciplina filosófica fundamental”. In: Filosofia e Linguagem. Florianópolis: Rocca Brayde, 2013, p. 76. 25 Cf. idem. “ Linguagem e análise lógico-semântica”. In: Filosofia e Linguagem. Op. cit., p. 101-102.

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de nenhuma forma tem a ver com o mundo. Análise da linguagem e ontologia são, então, duas coisas inteiramente separadas.26Essa compre­ ensão da reviravolta lingüística inaugura, para P. Faria, um prolongado eclipse do realismo na tradição analítica, uma situação que foi revertida no último quartel do século XX através de um “progressivo abandono da reviravolta lingüística”.27 Fala-se hoje em seu esgotamento. E o que se mostra em primeiro lugar através do deslocamento para a filosofia da mente. Para Engel, houve, na filosofia analítica contemporânea, uma profunda inversão paradigmática, na medida em que a “filosofia da mente" ocupa o lugar que antes a linguagem ocupava na filosofia analítica. Ao invés da centralidade da linguagem, hoje se defende a tese de uma prioridade ou de, pelo menos, uma autonomia relativa do pensamento perante a linguagem. A filosofia da mente emerge, então, nesse contexto, como um elemento metodológico necessário prévio, ou seja, como fundamento objetivo não só de uma análise da linguagem, mas da filosofia enquanto tal.28 Afirma-se hoje que a filosofia do início do século XXI efetiva uma nova vírada: a "virada ontológica” (virada especulativa do realismo) que se caracteriza em primeiro lugar por dispensar a crença na reviravolta lingüística. Para muitos, porque a reviravolta lingüística conduziu a um relativismo lingüístico e histórico, trata-se fundamentalmente, nessa postura, da tese de que nenhuma verdade é suscetível de ultrapassar a particularidade de uma época, de um contexto, de um jogo de lingua­ gem.29 Voltaram para a ontologia tanto seguidores de Deleuze como pensadores como A. Badiou, Q. Meillassoux, S. Zizek, M. Gabriel, e, no mundo anglo-saxão, pensadores como S. Cavell, D. Lewis, D. Chalmers, J. Shaffer, K. Fine, I. Bogost, L. R. Bryant, N. Srnicek, G. Harman.30 C. Braida defende a tese de que foi J. G. Hamann que, na obra Metakritik über den Purismus der Vemunft de 1783, contrapondo-se a 26 Cf. COSTA, F. C. A Indagação Filosófica. Por uma Teoria Global. Natal: ED UFRN, 2005. 27 Cf. FARIA, P. "História da filosofia analítica”. In: BR A N Q U IN H O , J.; M URCHO, D.; GOM ES, N . G. (orgs.). Enciclopédia de termos lógico-filosóficos. Op. cit., p. 343. 28 Cf. EN G EL, P. “ La philosophe de Pesprit et des sciences cognitives”. In: MEYER, M. (org.). La philosophie anglo-saxonne. Paris: Presses Universitaires deFrance, 1994, p. 531-536. 29A respeito de uma crítica radical a essa postura, cf. BADIO U, A. Logiques des Mondes. L ’Être et VÈvénement 2. Paris: Seuil, 2006. 50 Cf. BADIOU, A. O ser e o evento. Rio de Janeiro: Zahar/Ed. UFRJ, 1996; Logiques des mondes: 1’être et 1’événement, tome 2. Paris: 2006. M EILLASSO UX, Q. Après la finitude. Essai sur la nécessité de la contingence. Paris: Seuil, 2006. ZIZEK, S. Menos que nada: Hegel e a sombra do materialismo dialético. São Paulo: Boitempo, 2013. GABRIEL, M. II senso delVexistenza. Per un nuovo realismo ontológico. Roma: Carocci, 2012. BRYANT, L. R.; SRNICEK, N.; HARMAN, G. The speculative tum: Continental materialism and realism. Melbourne: re-press, 2011. BOGOST, I. Alien Pbenomenology or what it’s like to be a thing. Minneapolis: University of Minnesota Press, 2012.

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Kant, pôs a linguagem como pressuposição fundante de todo conheci­ mento humano, “de tal modo que a linguagem seria o único, primeiro e último meio e também critério da própria razão” .31 Para Puntel, a tematização da linguagem não constitui uma disciplina filosófica nova ou o objeto próprio da investigação filosófica que a distingue, por exemplo, das ciências, mas sua consideração faz parte da tematização dos pressupostos irrenunciáveis da articulação da filosofia enquanto uma forma de atividade teórica na vida humana, já que se trata aqui da instância imprescindível de articulação de uma teoria filosófica: sem ela nada é dado a uma teoria filosófica,32 o que seria dizer que a teoria seria inviável. A reviravolta lingüística se configurou na tese básica de que não é mais possível pensar a filosofia sem linguagem, e isso tem conse­ qüências fundamentais em sua articulação, o que se configura como tese da centralidade da linguagem na filosofia.33 Na proposta da filosofia sistemático-estrutural de Puntel, esta é interpretada no contexto de uma revolução copernicana da revolução transcendental que desemboca numa filosofia pós-transcendental. O que isso significa propriamente? Uma filosofia sistemático-estrutural, como ela é proposta por L. B. Puntel,34origina-se da concepção fundamental de que filosofia é uma atividade humana que se diferencia de outras atividades em virtude de seu propósito básico que consiste na elaboração e na apresentação de teorias. Teoria é a forma de discurso metódico e rigorosamente ordenado que se compõe de sentenças puramente declarativas. Nessa perspectiva, a filosofia emerge, então, como um empreendimento estritamente teórico. Essa “atividade” e seu "produto” têm a ver com o “mundo”, entendido como a totalidade ilimitada dos “ objetos”, “campos” ou “âmbitos”, a totalidade do que é dado na linguagem. Não se trata aqui do universo concebido como “conjunto”35 em relação a que se pode sempre pensar algo além, mas da “totalidade de 31 Cf. BRAIDA, C. R. "Análise lingüística como método de investigação filosófica”. In: Filosofia e Linguagem. Op. cit., p. 154. 32 Nietzsche defende a tese radicalmente contraposta a essa, afirmando que se deve abjurar a crença na gramática, nas palavras, pois “ quem pensa em palavras [...] não pensa as coisas, os objetos, não pensa objetivamente” . Cf. NIETZSCH E, F. Genealogia da Moral. São Paulo: Brasiliense, 1988, III, & 8, p. 122. 33 N o início de seu artigo “ O método da verdade na metafísica” , Davidson afirma que é plausível defender que, estudando os aspectos mais gerais da linguagem, estamos a estudar os aspectos mais gerais da realidade. Por essa razão a possibilidade de articular a metafísica consiste em investigar a estrutura da linguagem. Cf. DAVIDSON, D. “Die Methode der Wahrheit in der Metaphysik” . In: Wahrheit und Interpretation. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1986, p. 283. 34 Cf. PU NTEL, L. B. Estrutura e ser. Op. cit., p. 97 e ss. 35 Como, por exemplo, faz A. Badiou, que identifica ontologia e teoria dos conjuntos. Cf. BADIOU, A. O Ser e O Evento. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora/Editora UFRJ, 1996.

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tudo que existe, simpliciter, tanto incluindo tudo o que está contido na totalidade concebida como conjunto, quanto incluindo tudo o que resta fora da totalidade concebida como conjunto”.36 A não distinção entre os dois sentidos em que se pode falar de totalidade, de universo, de mundo, tem levado alguns autores a defender a tese de que o universo ou o mundo não existe.37 A junção desses três fatores básicos nos permite, então, falar da “dimensão expositiva” como sendo o específico da atividade filosófica. Sua primeira tarefa é, então, o esclarecimento da dimensão da teoricidade e do conceito de uma teoria filosófica de seus componentes irrenunciá­ veis. Numa palavra, sendo ela uma atividade que se efetiva na esfera da linguagem, exige-se a tematização de seus pressupostos lingüísticos, que é uma conseqüência da reflexividade que caracteriza a atividade teórica nesse nível de sua efetivação. Isso significa dizer que uma filosofia deve começar pela consideração de sua mediação lingüística. Num sentido programático, Puntel elabora uma quase definição de filosofia que servirá de fio condutor para toda a exposição: “ a filosofia sistemático-estrutural é a teoria das estruturas universais (mais gerais) do universo do discurso [universe of discurse] ilimitado”.38 “Universo do discurso” pode ser explicitado por conceitos mais determinados do ponto de vista do conteúdo como “mundo”, “universo”, “realidade” e em última instância “ ser”. A dimensão do universo do discurso é o dado abrangente: dado é o “ expressum” de uma sentença; portanto, algo pré-dado como linguisticamente articulado, aquilo que é dado para ser compreendido ou explicado pela filosofia, seu objeto, sua temática específica, tudo o que é candidato a um tratamento teórico-filosófico. Numa palavra, os dados, no sentido explicado, constituem o ponto de partida da filosofia. A pretensão básica de qualquer teoria é, assim, compreender um setor do mundo, ou o mundo enquanto tal, no caso de uma teoria fi­ losófica. Dessa forma, é tarefa do filósofo sistemático-estrutural tentar integrar numa teoria compreensiva todos esses dados que, num primeiro momento, emergem justamente como candidatos à compreensão, como candidatos à teoria. O que é, então, compreender? O que implica o compreender? Essa é uma questão que subjaz a todo empreendimento teórico, uma vez que compreender um determinado X constitui a tarefa específica de qualquer empreendimento teórico, “sendo que ‘compreender’, nesse caso, é um 36 Cf. PU NTEL, L. B. Estrutura e ser. Op. cit., p. 570. 37 Cf. GABRIEL, M. Warum es die Welt nicht gibt. Berlim: Ullstein, 2013. 38 Cf. PU NTEL, L. B. Estrutura e ser. Op. cit., p. 33.

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conceito geral para ‘entender’, ‘explicar’, ‘articular’”.39O X, por sua vez, designa a coisa, a temática, o objeto do compreender. As diferentes posições filosóficas40 podem ser classificadas a par­ tir de como elas pensam a relação entre o compreender e a coisa a ser compreendida. A pergunta básica aqui é, então, se o compreender se determina a partir da coisa a ser compreendida ou ao contrário. Para a primeira posição,41 nós não criamos, produzimos ou constituímos o mundo efetivo, mas, antes, o encontramos: o mundo efetivo nos é prédado, ou seja, apreendemos a realidade sem conceito, sem linguagem,42 sem teorias, o que se mostra em muitas experiências. Uma coisa é a apreensão da realidade; outra, sua compreensão. Nesse caso, a verdadeira tarefa de uma atividade teórica consiste em descobrir o mundo, aprendê-lo, descrevê-lo e explicá-lo como ele é para além de nossos esquemas conceituais, e independente deles. O mundo, portanto, situa-se fora do conceituai e possui suas leis próprias: isso constitui o cerne do realismo. Essa tese fundamental é retomada hoje pelo chamado “novo realismo” . Assim, M. Ferraris, em seu Manifesto dei Nuovo Realismo, afirma que os pós-modernos se caracterizam por confundir a ontologia com a epistemologia, ou seja, confundem o que é com o que conhecemos acerca do que é. É claro que, para conhecer que água é H 20, precisamos de linguagem, esquemas e categorias. Mas o que a água é, ela o é independentemente se a conheço ou não, e para além de nossos esquemas categoriais.43 A posição contraposta - normalmente é denominada “idealista” pelos realistas, mas hoje se fala mais de antirrealismo - procura revelar a ingenuidade dessa primeira posição apontando para a mediação inevitável de um sistema conceituai em toda atividade teórica, de tal modo que uma realidade completamente isenta de esquemas conceituais constitui uma impossibilidade. Realidade, mundo, universo, só tem sentido no interior de um esquema conceituai por nós articulado. Nós distinguimos os objetos através da introdução deste ou daquele esquema conceituai. Nós já sempre estamos em relação com o mundo pela atividade con39 Cf. PUNTEL, L. B. Estrutura e ser. Op. cit., p. 205. 40 Cf. ibidem, p. 206. 41 Cf. PU NTEL, L. B. Grundlagen einer Theorie der Wahrbeit, Berlim/Nova York: de Gruyter, 1990, p. 266 e ss. 42Há filósofos que distinguem entre significado lingüístico e conteúdos mentais. Cf. MILLER, A. Filosofia da Linguagem, São Paulo: Paulus, 2010, p. 208: “Filósofos chamam estados mentais, tais como crenças, desejos, vontades, intenções, esperanças, e assim por diante, de atitudes proposicionais. Podemos dizer que, enquanto sentenças possuem significado lingüís­ tico, atitudes proposicionais possuem conteúdo mental”. Cf. a respeito: B R A N Q U IN H O , J. "Atitude proposicional” . In: BR A N Q U IN H O , J.; M URCH O, D.; GOMES, N. G. (orgs.). Enciclopédia de Termos Lógico-filosóficos. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 72-78. 43 Cf. FERRARIS, M. Manifesto dei Nuovo Realismo. Roma: Ed. Laterza, 2013, 6a ed.

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ceitual, de modo que, fora desta relação a um esquema conceituai, o mundo é simplesmente ininteligível. Falar de independência do mundo não significa falar que ele se situe fora da esfera conceituai. Nessa ótica, os antirrealistas articularam uma crítica radical à concep­ ção clássica empirista do conhecimento, como também à sua reformulação no Círculo de Viena, que concebe o conhecimento como a combinação de lógica e dado empírico. Uma primeira questão acentuada aqui, já antes da reviravolta lingüística, é a do caráter criativo do trabalho científico, ou seja, da formação de nossos conceitos e de nossos projetos teóricos. Como acentua Einstein,44 não se pode esquecer, como faz o empirismo, que nossos conceitos são criações livres do pensamento que não podem simplesmente vir indutivamente de nossas vivências sensíveis. O costume de vincular determinados conceitos a determinadas vivências nos pode levar a esquecer o enorme abismo entre conceitos e vivências, entre o mundo dos conceitos e sentenças e o mundo das vivências sensíveis. Hume considerou todos os conceitos e todas as sentenças que não vêm diretamente da experiência sensível como dotados de caráter metafísico. Consequentemente, teria de declarar o pensamento humano enquanto tal como portador de um caráter metafísico no sentido de uma conversa vazia. Para Einstein, o sistema conceituai possui justamente como tarefa ordenar o que é vivenciado sensivelmente de modo que não se justifica esse “medo de metafísica” que caracteriza nossa época. A reviravolta lingüística afirma, como sua tese central, precisamente que nosso pensamento é linguisticamente articulado, tese que na tradição hermenêutica encontrou uma primeira formulação na afirmação de Schleiermacher de que a linguagem é o modo do pensamento se tornar efetivo, uma vez que não há pensamento sem discurso, e que ninguém pode pensar sem palavras.45 Nesse contexto, McDowell faz uma distinção fundamental: "pen­ samento” pode significar o ato de pensar, mas pode significar também o conteúdo que é pensado - aquilo que alguém pensa. Ora, se quisermos dar o devido reconhecimento à independência da realidade, precisamos de uma coerção exterior ao pensamento e ao juízo, entendidos enquan­ to exercícios de espontaneidade. Essa coerção não precisa vir de um lugar exterior aos conteúdos pensáveis.46 Na perspectiva da filosofia 44Cf. EINSTEIN, A. “Bemerkungen zu Bertrand Russells Erkenntnistheorie”. In: SCHILPP, P. A. (org.). The Philosophy of Bertrand Russell. La Salle (IL), 1971,4a ed., p. 278-290. 45Cf. SCHLEIERM ACHER, F. Hermeneutik und Kritik. Ed. por FRANK, M. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1977, p. 77. 46 Cf. McDOWELL, J. Mente e Mundo. Aparecida: Ideias e Letras, 2005, p. 65, par, 73: “ O objeto de uma experiência [...] é entendido como parte do mundo pensável tomado como um todo”.

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sistemático-estrutural, pensamento (no sentido de Gedanke, conteúdo pensado, e não de Denken, ato de pensar), proposição e estado-de-coisas são expressões sinônimas e constituem o “expressam.” de uma sentença.47 As duas posições mencionadas são extremas, e não são normalmente encontradas dessa forma, uma vez que as diferentes filosofias são em geral formas mistas, o que se pode mostrar mesmo no pensamento de Kant, fundamentalmente marcado pela dicotomia sujeito/objeto. Putnam procurou caracterizar com precisão a primeira posição. Ele sustenta, a partir de 1976, a posição denominada por ele mesmo "realismo interno”, que manifesta a pretensão de ser uma posição intermediária entre o que ele chama de “realismo metafísico” da tradição e o "relativismo”, muito divulgado em nossos dias. Putnam atribui ao próprio Kant a distinção entre esses dois tipos de realismo.48A primeira, o realismo metafísico,49 é o que Moore e Russell teriam recuperado depois de ter sido rejeitado pelo idealismo moderno de Kant e Hegel. Outros autores falam simplesmente de "realismo”50 ou, como é caso de Puntel,51 de "realismo transcendente”. Para ele, pode-se dis­ tinguir aqui duas variantes: a) o realismo transcendente absoluto, que afirma existir um único sistema conceituai correto reduzindo os demais a algo puramente subjetivo; 2) o realismo transcendente moderado, que reconhece a pluralidade de sistemas conceituais, na medida em que os interpreta, como também as teorias, como aproximações ao único mundo efetivo. Fala-se recentemente de uma “ ontologia orientada nos objetos”, em contraposição ao pensamento moderno que pôs a subjetividade em seu centro. Agora são os objetos que constituem o centro da filosofia, sem que se leve em consideração sua referência ao humano: as coisas não existem só e apenas para nós.52 Em nossos dias, o realismo metafísico, para Putnam, constitui a tese específica dos materialistas, que se explicita na afirmação básica de que a física representa uma aproximação de uma teoria verdadeira e completa da estrutura do mundo.53 Putnam reconhece ter sido essa 47 Cf. PUNTEL, L. B. Estrutura e Ser. Op. cit., p. 214-216. 48 Cf. PUTNAM, H. “Auf Messers Schneide Internet Realismus und Relativismus” . In: Von einem realistischen Standpunkt. Scbriften zu Sprache und Wirklichkeit. Ed. e trad. de V. C. Müller. Reinbek bei Hamburg: Rowohlt Taschenbuch Verlag GmbH, 1993, p. 213. 49Cf. idem. "Why there isn't a ready-made world”. In: Realism and Reason. Philosophical Papers. Vol. 3. Cambridge: Cambridge University Press, 1996 (set.), p. 205. 50 A respeito do debate contemporâneo sobre o realismo, cf. DUMMETT, M. Truth and Others Enigmas. Londres: Duckworth, 1978, p. 145-165. 51 Cf. PUNTEL, L. B. Grundlagen einer Theorie der Wahrheit. Op. cit., p. 269. 52 Bom exemplo dessa ontologia é o livro de: BOGOST, I. Alien Phenomenology or What ifs to be a thing. Minneapolis: University of Minnesota, 2012. 53 Cf. PU I^JA M , H. Why there isn’t a ready-made world. Op. cit.., p. 208: “ Metaphysics, or the enterprise of describing the fumiture o f the world\ the *things in themselves‘ apart from

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sua primeira posição teórica,54uma vez que também ele defendeu a tese de que as ciências descrevem e explicam uma realidade inteiramente independente de nós. Um argumento central para ele, nesse momento, era que a mudança de significação dos termos teóricos não implicava que se deixasse de falar de uma única e mesma realidade, o que não seria possível se ela não se situasse para além de nossas teorias. O realismo metafísico se radica, então, na crença de que existe apenas uma teoria verdadeira capaz de descrever plenamente a estrutura do mundo como ele é em si mesmo, independente de nós, de nossas concepções a seu respeito. Numa palavra, o realista metafísico afirma que podemos falar de coisas e pensar nelas como elas são em si mesmas em sua constituição intrínseca, independentemente de nosso espírito, de nossa linguagem, de nossas teorias, e isso porque há uma relação de correspondência entre as expressões de nossa linguagem e certos tipos de entidades independentes. Nessa perspectiva, o mundo é interpretado enquanto a totalidade inalterável de objetos independentes de nosso espírito, de nossa linguagem, de nossas teorias.55 Hoje se aceita a tese de que essas entidades têm nos objetos materiais seu paradigma, e que a correspondência em questão é uma relação causai. Numa palavra, o mundo efetivo nos é pré-dado enquanto plena­ mente estruturado em si mesmo (a ready-made world, expressão sugerida por N. Goodman), e o trabalho básico de toda e qualquer atividade teórica consiste em expor o mundo como ele é em si mesmo da maneira mais fiel possível. Putnam denomina esta posição de “externalística”, já que sua postura pressupõe que nós podemos dispor do ponto de vista de Deus (God^s-eye view) - que teria condições de alcançar os dois lados do abismo entre linguagem e mundo de tal modo que fosse possível com­ parar linguagem e mundo e decidir se há correspondência entre os dois. Nesse caso, seria possível distinguir claramente entre o que re­ almente é o caso e o que se julga ser o caso.56 Essa é a razão pela qual uma teoria correspondencial da verdade é um elemento essencial dessa posição, uma teoria que, segundo ele, é negada por Kant.57Putnam cha-

our conceptual imposition, has been rejected by many analytic philosophers (though not, as I remarked, by Russell) and by ali the leading brands o f continental philosophy. Today, apart from relics, it is virtually only materialists (or ‘physicalists\ as they like to call themselves) who continue the traditional Enterprise". 54 A respeito das raízes teóricas do realismo metafísico no pensamento de Putnam, cf. EN G EL, P. “Les post-quiniens: réalisme et antiréalísme”. In: MEYER, M. (ed.) La philosophie anglo-saxonne. Paris: PUF, 1994, p. 363-364. 55 Cf. PUTNAM , H. “Wie man zugleích interner Realist und transzendentaler Idealist sein kann” . In: Von einem realistischen Standpunkt. Op. cit., p. 156. 56 Cf. idem. Vemunft. Op. cit., p. 102. 57 Cf. ibidem, p. 92-93.

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ma a teoria da correspondência de “teoria da semelhança de relação”,58 precisamente por ela afirmar que a relação vigente entre nossas repre­ sentações e os objetos externos é uma relação de semelhança. São muitos os fatores que levaram Putnam a abandonar essa posição. Puntel59 enumera os três mais importantes: 1) a compreensão de que a suposição de que poderíamos dispor, de uma perspectiva de Deus, é uma presunção e uma ilusão; 2) o realismo metafísico conduz a uma conseqüência inaceitável: uma vez que o abismo entre linguagem (teoria) e mundo é intransponível para seres finitos, não se pode eliminar a possibilidade de que mesmo uma teoria ideal por nós elaborada possa equivocar-se em relação ao mundo, e isso é certamente ininteligível; 3) o contato com o último Wittgenstein o levou a considerar o realismo metafísico uma ingenuidade, no sentido em que simplesmente não se sustenta mais. No entanto, para Puntel, a posição alternativa que ele apresenta ao “realismo interno”, que é uma espécie de posição antirrealista,60 apesar de ter um aspecto profundamente correto, tem também uma dimensão inaceitável. Certamente, a tese de que o mundo (a natureza, a realidade, o universo, as coisas mesmas) existe ou possa existir em absoluta inde­ pendência do espírito e, consequentemente, da linguagem enquanto tal, autodestrói-se em sua enunciação - portanto, não é inteligível e, por isso, é inaceitável.61 Antes de tudo porque inteligibilidade implica algo conceituai. Na realidade, tal mundo não passa de um constructo contraditório: por um lado, o mundo é aceito como algo independente de qualquer elemento conceituai; por outro lado, fala-se de mundo, relaciona-se com o mundo - o que inclui elementos conceituais em múltiplas for­ mas linguisticamente expressos.62 Essa tese é, para Puntel, correta, mas insuficiente, porque ele não mostrou em que sentido, exatamente, a tese de uma realidade concebida desse modo seria nua. 58 Cf. PUTNAM, H. Vemunft. Op. cit., p. 85. 59 Cf. PUNTEL, L. B. Estrutura e Ser. Op. cit., p. 480. 60Uma posição semelhante é a de T. Kuhn, para quem o conhecimento científico não des­ creve uma realidade, as coisas reais, independente do pensamento, mas a partir dos diferentes paradigmas que criamos: nosso conhecimento é sempre mediatizado, tudo é visto a partir do paradigma em vigência. Cf. KU H N , T. S. A estrutura das revoluções científicas. São Paulo: Editora Perspectiva, 1975. 61 Cf. PUNTEL, L. B. Grundhtgen einer Theorie der Wahrheit. Op. cit., p. 271-272. “ A. Keller defende a tese de que a palavra, em contraposição a sílabas sem sentido, caracteriza-se por ser uma seqüência de sons com significado. A partir daqui ele justifica a vinculação entre “ conceito e linguagem”, afirmando que já que não existe significado sem uma seqüência de sons pelo menos pensada, não existe conceito sem uma seqüência de sons: sem palavra, nenhum conceito. Cf. KELLER, A. Sprachphilosophie. Friburgo/Munique: Verlag Karl Alber, 1979, p. 93.

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Para Puntel, a verdadeira razão da insuficiência do antirrealismo é que perguntas a respeito da dicotomia entre pensamento/atos consti­ tuintes, espírito/linguagem e mundo/natureza/realidade/coisa mesma não podem ser esclarecidas se não se defende explicitamente uma tese ontológica central que é pressuposta por qualquer forma de empre­ endimento teórico: o que possa ser aquela dimensão que se costuma denominar mundo/realidade/coisa mesma, ela possui de qualquer forma uma estruturação imanente fundamental, ou seja, uma expressabilidade plena, sem a qual a teoria seria destituída de sentido. Expressabilidade é um termo usado por Puntel63 como uma espé­ cie de fórmula abreviada de uma série de termos como inteligibilidade, conceituabilidade, compreensibilidade, explicabilidade, articulabilidade etc. Portanto, se o ser em sua universalidade é expressável, e é isso que pressupõe, em princípio, qualquer empreendimento teórico sob pena de ou ser autocontraditório ou não ter sentido, então a essa universali­ dade corresponde uma instância de sua expressão igualmente universal, uma instância expressante, a linguagem, de modo que, parafraseando Gadamer, pode-se dizer "o ser que pode ser entendido é o universo do discurso”,54 o que significa uma relação essencial entre o ser e a linguagem. Em contraposição ao realismo metafísico, a posição aqui é que a expressabilidade do mundo, pressuposta por nossos empreendimentos teóricos, não é compreensível sem uma instância que a exprima, ou seja, a tese de um “mundo nu” sem qualquer relação a algo como linguagem, espírito, conceitualidade etc., numa palavra, a tese de um mundo en­ clausurado em si mesmo é uma impossibilidade metafísica e, por essa razão, ininteligível. “Quando se afirma [...] a ‘independência absoluta’ do mundo (do universo etc.), isso dá a impressão de que se está afirmando algo não inteligível, a saber, um cmundo não conceitualizado’, ‘não es­ truturado5, totalmente incompreendido e incompreensível, situado fora do alcance do compreensível, do articulável etc. Essa é a aporia em que incorre o realista (metafísico)”.65 Portanto, a linguagem diz o mundo, ela é a instância intransponível da expressabilidade do mundo, e por isso seu lugar na filosofia é absolutamente central.66 63 Cf. PU N TEL, L. B. Estrutura e Ser. Op. cit., p. 482. 64 Cf. ibidem>p. 526-527. 65 Cf. ibidem>p. 498. 66 Keller, partindo das teses da antropologia do início do século X X , afirma que o ser humano enquanto “ ser biologicamente carente” não está, contudo, preso por seus instintos a um meio-ambiente específico, mas é relacionado ao mundo em seu todo. Ele não conhece, contudo, essa totalidade simplesmente através de um conjunto desordenado de impressões, mas capta através de esquemas aprendidos o que se pode denominar a “ estrutura-enquanto”, porque ele sempre capta algo enquanto algo determinado, isto é, linguisticamente delimitado.

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Em segundo lugar, Putnam, como os antirrealistas em geral sempre falam, afirma que a realidade (o mundo, o universo) se refere a “nosso espírito”, a "nossa linguagem”. Nessa posição, pode-se dizer que a forma como o mundo está estruturado depende da respectiva linguagem em que ele vem à palavra, e essa linguagem é sempre uma "nossa linguagem”: um mundo em si independente de nossa linguagem é inaceitável; o mundo é mediado por nossa linguagem, é impossível falar dos objetos do mundo sem expressões lingüísticas que se articulam nas diferentes linguagens criadas pelos seres humanos. Nesse sentido, nem tudo se pode dizer em cada linguagem: trata-se aqui de uma grandeza limitada. Nossas visões do mundo são sempre diferentemente relativas às nossas diferentes linguagens, porque a lin­ guagem não é simplesmente meio de descrição de objetos, atributos e estados-de-coisa, mas, antes, meio de diferenciação. Os limites de ex­ pressabilidade de uma linguagem determinam não só os limites do que podemos falar, mas os limites do que podemos conceituar e, em certo sentido, os limites de nossa experiência. Já Humboldt afirmava que só com o auxílio da linguagem captamos o mundo, seus objetos, propriedades e relações, e a linguagem é sempre um todo, uma estrutura, cujas partes devem ser vistas em sua função no todo.67Fazemos isso, no entanto, sempre numa linguagem determinada, de uma forma determinada. Cada linguagem contém uma transformação do mundo em linguagem,68 uma visão do mundo (Weltansicbt), uma concepção específica69 do mundo e de sua estrutura, uma ontologia própria. Nesse sentido, se a cultura é criadora da linguagem, a linguagem é, perante o indivíduo, um poder que determina seu pensamento e sua experiência na forma de sua visão do mundo. Assim, cada linguagem constitui uma individualidade espiritual70 que marca o caráter nacional de tal forma que o ser humano não fala do modo que fala porque quer falar assim, mas porque tem de falar assim.71 A forma de falar é nele uma coação de sua natureza inteDaí por que para o ser humano a linguagem é tão vitalmente necessária, como o instinto para o animal. Cf. KELLER, A. Sprachpbilosopbie. Op. cit., p. 121; 129. 67 Cf. HUM BOLDT, W. v. Gesammelte Schrtften. Org. pela Academia Real Prussiana das Ciências. Berlim, 1903 e ss, vol. IV, p. 14-15. 66Cf. ibidem, p. 28. 69 A respeito das questões epistemológicas que marcam essa posição, cf. KUTSCHERA, F. v. Spracbpbilosopbie. Munique: Wilhelm Fink Verlag, 1975,2a ed., p. 332 e ss. 70Cf. HUM BOLDT, W. v. Gesammelte Schriften. Op. cit., vol. VI, p. 151. 71 Cf. SAPIR, E. “The status of linguistics as a Science” . Language, 5, 1929, p. 209: “Human beings do not live in the objective world alone, not alone in the world o f social activity as ordinarily understood, but are very mtich at the mercy o f the particular language which bas become the medium o f expression for their society”. Cf., a respeito dessa posição: AURO U X, S. A Filosofia da Linguagem. Campinas: Ed. UNICAMP, 1998, p. 190-194.

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lectual,72de tal modo que assim se revela uma dependência recíproca en­ tre pensamento e palavra.73Pensando a partir da consciência, Humboldt fala do caráter inseparável da consciência e da linguagem humanas, já que a linguagem é o órgão que forma o pensamento. A linguagem não é simplesmente um meio para a expressão e comunicação de conteúdos de pensamento, de uma verdade já conhecida sem ela, mas, antes, pen­ samento e linguagem constituem uma unidade inseparável, uma tese que foi desenvolvida por Sapir.74 A grande questão das filosofias antirrealistas, para Puntel, que toca o cerne das filosofias da subjetividade, inclusive as que fizeram a reviravolta lingüística, é a seguinte: essas afirmações implicam constituir a subjetividade como instância doadora de sentido a tudo. A questão se põe também na forma de uma pragmática, uma vez que o fundamental, na pragmática,75 é a investigação da relação entre a linguagem e os seus falantes, ou a linguagem considerada na perspectiva do modo como os falantes a usam, o que implica que aqui seja determinante a ação dos falantes. Nesse sentido, a passagem da subjetividade para a intersubjetividade não implica a superação do caráter central da subjetividade na filosofia, ou seja, da postura em que a subjetividade é a instância teórica que determina tudo. Ora, nós somos entes puramente contingentes; logo, inevitavel­ mente surge a questão: "Como poderiam, então, os ‘entes humanos’ (mesmo em sua totalidade, como quer que esta seja pensada) ser tomados como ‘parâmetro’ para o que é o mundo?”.76Já que nessa postura não se pode coerentemente falar do grande mundo, uma saída pensável aqui seria, então, restringir a grande dimensão do mundo ao nosso mundo, no sentido do nosso mundo vivido, com a conseqüência de considerar

72 Cf. HUM BOLDT, W. v. Gesammelte Schriften. Op. cit., vol. VI, p. 127. Na perspectiva da pragmática, nada há aqui de necessário. Cf. ZILH AO , A. Linguagem da filosofia e filosofia da linguagem. Op. cit., p. 205-206: “ [...] nada há de necessário no facto de usarmos os nossos sinais do modo como os usamos, isto é, em vez de uma forma lógica que espelha a forma da realidade, a gramática é algo de arbitrário. [...] Não se pode, assim, falar de uma gramática errada, mas tão só de uma desadequação de uma linguagem ou jogo de linguagem em função de determinadas necessidades práticas [...] na linguagem, tal como no xadrez, se seguirmos outras regras gramaticais estaremos, respectivamente, ou a dizer outra coisa qualquer noutro sistema de regras ou a jogar outro jogo” . 73 Cf. HUM BOLDT, W. v. Gesammelte Schriften. Op. cit., vol. IV, p. 27. 74 Cf. ibidem, vol. VI, p. 22 e ss. SELLARS, W. "Conceptual change” . In: PEARCE, G.; MAYNARD, P. (orgs.). Conceptual Change. Dordrecht: D. Reidel, 1973, p. 82: “ Thinking at the distinctly human levei[ ... ] is essentially verbalactivity". 75 Cf. OLIVEIRA, M. A. “A centralidade da intersubjetividade: uma leitura pragmática da filosofia transcendental em J. Habermas” . In: Antropologia Filosófica Contemporânea: Subjetividade e inversão teórica. São Paulo: Paulus, 2012, p. 87-106. 76 Cf. PU N TEL, L. B. Estrutura e Ser. Op. cit., p. 482-483.

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sem sentido ou ficção tudo o que não for compatível com este mundo como, por exemplo, muito do que é alcançado pelas ciências. O caráter implausível dessa postura abre o espaço para a verdadeira questão, nesse contexto: como se deve entender linguagem (espírito) para que se possa dizer que não tem sentido falar de um mundo sem nenhuma relação a ela? Essa é a questão decisiva; em primeiro lugar, para a elaboração de uma teoria filosófica enquanto teoria, ou seja, trata-se, antes de tudo, da indicação de um critério universal de teoricidade - e justamente de um critério lingüístico -, pois uma teoria se compõe de sentenças, especificamente de sentenças teóricas; em segundo lugar, para o enfrentamento da questão do lugar central atribuído à subjetividade pela filosofia moderna, e a resposta a essa questão contém uma virada no pensamento moderno que justificará falar de uma despontencialização da subjetividade. O primeiro passo é, para Puntel, a distinção entre duas formas diferentes de compreensão da linguagem. Quando falamos de signos lingüísticos no sentido familiar, então o ser humano, com sua própria história e suas produções e contingências, é seu produtor; e nessa pers­ pectiva há razão para falar de “nossa” linguagem, uma vez que, sem o ser humano, não se pode falar de símbolos lingüísticos bem determinados. E precisamente nesse sentido que A. Keller define a linguagem como um sistema de formas de proferimentos desenvolvido pelo ser humano para expressar-se, para entender-se, para ordenar seus conhecimentos e comunicá-los, e para defrontar-se de diferentes formas com a realidade.77 Numa palavra, na medida em que a linguagem se compõe de símbolos lingüísticos assim entendidos, ela é uma produção histórico-contingente de sujeitos humanos,78 de tal forma que a refe­ rência a esses sujeitos é ineliminável; e nisto têm razão os pragmáticos: aqui nossa ação é simplesmente determinante, “isto é, o modo particular através do qual intervimos na realidade”.79 Porém, a linguagem no sentido maximal, ou seja, como linguagem absolutamente universal, não é um produto humano, mas já está dada com o mundo no sentido do ser em seu todo. Ela é a instância da expres­ sabilidade universal enquanto esfera correlata à expressabilidade do ser 77 Cf. KELLER, A. Spracbpbilosopbie. Op. cit., p. 42. 78 Embora se possa dizer, também, que a linguagem não é só um produto da comunidade e da cultura humanas, mas igualmente sua condição de possibilidade. Nela com uma quan­ tidade finita de vocábulos e uma quantidade finita de regras gramaticais pode-se comunicar uma quantidade infinita de informações que tornam possível a forma de comunicação que gera a comunidade e a cultura. A linguagem é a pressuposição da qualidade especificamente humana de comunidade. Cf. KUTSCHERA, F. v. Die Teile der Philosophie und das Ganze der Wirklichkeit. Berlim/Nova York: W. de Gruyter, 1998, p. 105 e ss. 79 Cf. ZILH ÃO , A. Linguagem da filosofia e filosofia da linguagem. Op. cit., p. 207.

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enquanto tal: "Não se pondera que 'expressabilidade’ é uma relação que só é explicável e, desse modo, compreensível se também seu inverso for reconhecido: X é expressável se, e somente se, houver um Y que seja a instância expressante de X ”.80Isso significa dizer que o relacionamento com a realidade só ocorre linguisticamente. Numa palavra, a expressabilidade universal81implica uma instância expressante universal, uma linguagem universal que consequentemente tem de ter um caráter diferente da “nossa” linguagem. Nesse sentido ela não é üm produto humano puramente contingente, mas uma estruturalidade imanente, ou seja, um momento estrutural do mundo entendido como ser em seu todo, e nesse sentido ela já está dada com o mundo no sentido do todo da realidade. Enquanto tal ela é um sistema semiótico objetivo.82 O ser, na medida em que é expressável enquanto tal, possui uma re­ lação imanente essencial com a linguagem que é precisamente a instância correlata a essa expressabilidade universal, uma característica imanente do ser em si mesmo. Nesse contexto, linguagem é entendida como um sistema semiótico abstrato que contém uma quantidade inumerável de expressões. Esse é, para Puntel, o locus originarius da compreensão da linguagem, ou melhor, da linguisticidade. Ele denomina, por essa razão, a linguagem assim entendida como “linguagem originária”, e é ela que ocupa a posição primordial na filosofia. Assim, a linguagem, como linguisticidade do ser enquanto tal, é a linguagem absolutamente universal e designa precisamente o lado inverso da expressabilidade universal do ser em seu todo. Essa linguagem assim entendida é coextensiva ao ser em seu todo, pois o mundo (o universo, o ser) em seu todo é expressável, o que constitui o pressuposto ineliminável de qualquer passo teórico, pois se não se assume de antemão que aquilo a que se refere um enunciado teórico é expressável, este carece de qualquer sentido. Nada existe que não seja ou não possa ser articulado em forma de linguagem. Nesse sentido, a expressabilidade é um momento estrutural ima­ nente do mundo e, desse modo, coextensional com o mundo, como o é consequentemente a linguagem. Isso significa dizer que todo conteúdo conceituai é articulado no seio da linguagem,83 e é precisamente nesse sentido que a linguagem emerge como meio indispensável da expressão ou da exposição, no sentido de que conteúdos conceituais não existem 80 Cf. 81 Cf. 82 Cf. 83 Cf.

PU N TEL, L. B. Estrutura e Ser. Op. cit., p. 501. a exposição a partir da p. 33. PU N TEL, L. B. Grundlagen einer Theorie der 'Wahrheit. Op. cit., p. 135. idem, Estrutura e Ser. Op. cit., p. 226.

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sem sua articulação lingüística: “entre o teor conceituai e a articulação lingüística, existe uma relação íntima, inseparável”. Uma conseqüência primeira, fundamental aqui, é: na articulação lingüística é possível apre­ ender o que é o conteúdo conceituai, como ele é estruturado. Quando se entende linguagem como símbolos lingüísticos, entra em jogo o ser humano com sua história, ou seja, aqui a linguagem é produção humana, e é isso que explica a contingência histórica dessas linguagens.84 Ele, então, revela-se como a pressuposição, na expressão de Kutschera, de todas as nossas produções culturais, de nossa autocompreensão, de nossa autoconsciência e de nosso pensamento.85Mas quando se leva em consideração a estruturalidade semântico-ontológica da linguagem, então ela é o resultado da expressabilidade da própria realidade, e “falantes e sujeitos são determinados e entendidos a partir da linguagem, e não a linguagem a partir dos falantes ou sujeitos”.86 A unilateralidade da posição antirrealista consiste justamente em reduzir a linguagem a uma produção humana e, portanto, à “nossa linguagem”, no esquecimento total da linguagem maximal ou abso­ lutamente universal. Isto significa dizer que falta aqui uma visão para “todo” o fenômeno da linguagem e, consequentemente, a compreensão de que “nossa” linguagem é apenas um segmento de uma linguagem muito mais abrangente, ou seja, de um sistema semiótico composto de uma quantidade infinita não enumerável de expressões, que é o “inver­ so” da expressabilidade universal do ser em seu todo. Nesse sentido, a linguagem possui um poder de expressão muitíssimo maior do que a linguagem entendida como sistema semiótico de comunicação. Na consideração da linguagem maximal, a referência à subjetivida­ de se torna simplesmente supérflua, uma tese que Apel87já vê presente na posição de Wittgenstein. Ele defende a tese de que o Tmctatus de Wittgenstein é uma filosofia transcendental sem sujeito, uma vez que Wittgenstein identifica o sujeito com a operação formal constitutiva da linguagem. Com isso, a referência ao sujeito se torna supérflua. Em contraposição a essa posição, Apel defende a tese do caráter irrecusável, 84 Cf. ZILHÃO, A. Linguagem da filosofia e filosofia da linguagem. Op. cit., p. 206: “A analogia adequada que nos permite compreender a ligação que Wittgenstein entendia existir entre linguagem ou pensamento e mundo é-nos dada pela consideração das ferramentas que usamos. Se soubermos olhar para elas, poderemos ficar a saber tudo o que há para saber tanto acerca da ‘forma* do mundo como do comportamento e da vida de quem as usa [...]”• 85 Cf. KUTSCHERA, F. v. Die Teile der Philosophie und das Ganze der Wirklichkeit. Op. cit,, p. 113. 86 Cf. PU NTEL, L. B. Estrutura e Ser. Op. cit., p. 130. 87 Cf. APEL, K.-O. “Wittgenstein und Heidegger. Die Frage nach dem Sinn von Sein und die Sinnlosigkeitsverdacht gegen alie Metaphysik*. In: Transformation der Philosophie. Vol. 1. Op. cit., p. 240 e ss.

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pelo menos implicitamente, de uma autorreferência à linguagem que é, depois da reviravolta lingüística, a nova forma de autorreflexividade. Com isso se dá a referência a um sujeito individual como suporte da forma lógica, a fim de que ela possa exercer sua função transcendental. Portanto, a referência ao sujeito é ineliminável. Puntel denomina a linguagem maximal - que de nenhuma forma é tematizada pelas diferentes formas de filosofia antirrealista como a de Apel - originária ou, antes, o “locus originarius” de compreensão da linguagem, “no sentido de sistema semiótico que se baseia na ideia da expressabilidade universal do mundo (do universo, do ser)”.88 Nesse contexto, uma observação é absolutamente fundamental: “A linguagem filosófica e científica infinita não enumerável não é compreendida como se fosse uma grandeza ‘manipulável’; ela é, antes, uma espécie de ideia reguladora ou emolduradora, em qualquer caso uma assunção metafísica, cuja função principal consiste em desempenhar um importante papel explanatório ”,89 5.2 O LU G A R SISTEMÁTICO DA O N TO LO G IA N UM A TEORIA FILO SÓ FICA Puntel parte de uma tese básica: o empreendimento teórico, que já no início de uma tradição de mais de dois mil anos se denominou filosofia, sempre se interpretou a partir de sua intenção, de sua autocompreensão e de suas produções como um saber abrangente e de caráter universal, o que não é mais o caso no pensamento contemporâneo que, antes, caracteriza-se por ser fragmentário. Seu objetivo fundamental é retomar esse caráter sistemático da filosofia, ou seja, articular a teoria filosófica como uma teoria da totalidade do ser, como uma concepção global da realidade, que possuí, por isso, duas características básicas: a completude da temática e a demonstração das conexões entre todos os componentes temáticos. Isso será feito, contudo, não através de um simples retorno a uma das formas em que o saber abrangente se articulou em nossa tradição de pensamento, mas a partir de uma posição estritamente sistemática, no sentido de que enfrenta as questões em si mesmas e não simplesmente através de referências à história do pensamento, e que, ao mesmo tempo, pretende pôr-se no nível teórico que atingimos em nossos dias, o que permite à filosofia recuperar sua tarefa originária própria e desenvolver plenamente suas potencialidades. 88 Cf, PU NTEL, L. B. Estrutura e Ser. Op. cit., p. 129. 89 Cf. ibidem, p. 522.

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O enfrentamento dessa problemática é levado a cabo por Puntel a partir de uma afirmação fundamental: a filosofia é um tipo específico de teoria. Puntel distingue três atitudes originárias do ser humano perante seu mundo: a teoria, a prática e a estética. Uma teoria é uma espécie de entidade abstrata que de alguma forma mostra um relacionamento com o mundo (ou com uma parte ou um fenômeno do mundo). Na formulação de Wittgenstein podemos dizer que uma teoria explicita como o mundo se comporta. Normalmente se diz que uma teoria diz algo sobre o mundo, explica algo sobre o mundo, articula algo sobre o mundo ou algo no mundo. Como ocorre isso? Há hoje duas formas principais de entender a teoria como uma entidade abstrata: a) para a concepção enunciativa {statement view of theories), uma teoria é uma classe de sentenças, ou seja, uma teoria científica (T) é um sistema axiomático articulado numa linguagem científica (L) com os meios da lógica matemática, que preenche algumas condições. Essa teoria é em primeiro lugar um siste­ ma formal não interpretado, e um modelo dela é uma interpretação da linguagem científica aceita, na qual todos os axiomas não lógicos dessa teoria são válidos. Aqui se compreende o relacionamento com a realidade a partir da linguagem entendida formalmente, e se entende essa relação como um processo complicado com vários degraus; b) a concepção não-enunciativa {non-statement view of theories) compreende essa relação a partir das estruturas matemáticas. Aqui uma teoria científica não é uma classe de sentenças, mas uma classe de modelos no sentido de estruturas matemáticas. O conceito estrutural de teoria aceita três componentes de base: linguagem (L), estrutura (S) e universo do discurso (U). Pode-se, sob um aspecto determinado, juntar os componentes linguagem e estrutura na medida em que se tem em conta que a dimensão da linguagem pertence ao conceito de estrutura, já que estrutura não pode ser adequadamente definida sem seu relacionamento à linguagem, isto é, poder-se-Ía chamar linguagem e estrutura simplesmente de estrutura. Assim, teremos um conceito filosófico diádico de teoria enquanto o par ordenado: L, S e U. A tarefa central desse conceito de teoria consiste, portanto, em determinar com exatidão a relação entre a dimensão estrutural e a dimensão do universo do discurso. Ora, as teorias enquanto tais efetivam, para ele, uma redução da linguagem humana a um de seus objetivos fundamentais, ou seja, à apre­ sentação do mundo, que constitui precisamente o específico da teoria em relação às outras duas dimensões fundamentais da vida humana. Se toda atividade humana tem uma conexão com o mundo, trata-se, no caso específico da teoria, de uma relação que antes de tudo se articula

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no seio da linguagem com uma meta determinada: a apresentação do mundo. Para a compreensão adequada desse objetivo, faz-se necessário atender à distinção entre linguagens naturais - normais, utilizadas pelos diversos grupos humanos, e que são caracterizadas em primeiro lugar como processos de comunicação - e linguagens artificiais - as constru­ ídas, que possuem como objetivo central a apresentação descritiva ou teórica do mundo. As linguagens naturais contêm, certamente, também de modo muito parcial ou reduzido, a dimensão da apresentação do mundo e com isso possuem, pelo menos implicitamente, elementos teóricos. Todos esses elementos estão aqui, contudo, submetidos à finalidade específica dessas linguagens, que é a comunicação intersubjetiva. No nível das teorias, no sentido estrito, sucede a transformação: apesar de nelas estarem presentes elementos de comunicação, sua finalidade própria é a apresentação do mundo. O que justamente especifica a teoria é uma linguagem centra­ lizada na apresentação do mundo, e a diferença se manifesta no fato de que uma linguagem em que há primazia da dimensão comunicativa se centraliza na relação com os outros parceiros. Na teoria, é a “coisa” que passa para o primeiro plano. Assim, o objetivo da linguagem filosófica, que é teórica, é a expres­ são da coisa. Isso significa dizer que, enquanto teoria, ela situa algo no espaço que Frege denominou o "terceiro reino”; Popper, o “terceiro mundo”; Sellars, o “ espaço de razões”; e McDowell, o “caráter ilimi­ tado do conceituai”. Ou seja, para Puntel um estado de coisas dado entra nesse espaço enquanto é articulado no quadro de uma teoria, no espaço das razões. A compreensão do papel que a linguagem ocupa na filosofia é o resultado, como vimos, de uma consideração por parte de Puntel da reviravolta pós-transcendental que a filosofia analítica realizou e que pôs no centro da filosofia a lógica, a linguagem etc. Assim, a linguagem não só tem um papel importante, mas central, o que constitui uma das teses básicas do pensamento contemporâneo. Daí por que uma das primeiras tarefas de uma filosofia sistemática consiste em desenvolver explicitamente o conceito de uma linguagem filosófica e de seus traços básicos. Filosofia é entendida aqui estritamente enquanto teoria, mas antes de tudo é necessário esclarecer a dimensão teórica em geral e a concepção de uma teoria filosófica em particular. Nesse contexto, uma das questões básicas é a tese de que toda formulação de um problema, toda interro­ gação teórica, todo enunciado teórico, toda argumentação, toda teoria só é compreensível e avaliável no contexto de um “quadro teórico”, e do contrário tudo permanece vago e indeterminado.

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Um quadro teórico implica sempre uma diferença específica entre dois lados ou aspectos: a diferença entre o quadro referencial em cujo centro está o conceito de “estrutura” (a dimensão estrutural), e aquilo que o quadro contém ou representa. A relação entre essas duas dimen­ sões, que constitui a ideia básica da filosofia sistemático-estrutural, não é entendida aqui como no caso de um sistema formal não interpretado: um quadro teórico científico ou filosófico “é, antes, um instrumento que permite apreender, compreender e explicar algo (um nexo, um domínio objetual...). A formação de uma teoria filosófica consiste em trabalhar a interconexão entre a dimensão dos dados e a dimensão das estruturas de tal forma que as estruturas afinal emergem como estruturas dos dados, ou os dados são incluídos na dimensão das estruturas. Dentro de ou por intermédio de um quadro teórico se faz referência a algo”.90 Esse “algo” é aqui, num primeiro momento, denominado “dado” num sentido técnico, ou seja, o que no início de um empreendimento te­ órico é expresso por sentenças pré-teóricas ou incoativo-teóricas. Dessa forma temos, de um lado, a imensa dimensão das estruturas (com tudo o que a ela pertence: subjetividade, conhecimento, conceito, espírito, linguagem, entidades ideais, teorias etc.), e, do outro lado, o mundo dos dados, o mundo objetivo, o ser objetivo que constitui o enorme campo dos entes individuais, dos campos de entes de todos os tipos. Esses dados são, enquanto tais, ainda teoricamente indeterminados ou subdeterminados. Sua maior determinação ocorre precisamente através de sua integração numa conexão estrutural. Nesse nível da exposição, a dimensão estrutural e a dimensão dos dados emergem como os dois polos de uma relação. Daí por que um quadro referencial teórico científico ou filosófico contém elementos que não são de natureza puramente formal, mas também elementos “materiais”, isto é, com conteúdo. A cada quadro teórico pertencem, enquanto momentos constitu­ tivos, uma linguagem, com sua sintaxe e sua semântica; uma ontologia; uma teoria do ser; uma lógica e uma conceitualidade, com todos os componentes que constituem um aparato teórico. Ora, há, de fato, uma pluralidade de quadros teóricos, e cada quadro teórico possibilita sen­ tenças verdadeiras, mas não no mesmo nível. São verdades relativas ao quadro teórico em questão, e, para Puntel, essa relatividade constitui uma forma específica de um relativismo moderado e isento de contradições. Se a filosofia se caracteriza por um tipo específico de teoria, o que constitui sua forma própria de teoria? Enquanto ser espiritual, o ser humano se distancia de tudo e se situa na esfera da universalidade,

90 Cf. PUNTEL, L. B. Estrutura e Ser. Op. cit., p. 29.

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enquanto nomeia, conceitua, objetiva, distingue seus objetos em partes e elementos e os sintetiza. H. G. Gadamer91 exprime isso dizendo que não existe um campo fechado do que se pode dizer, ao lado do campo do indizível, porque a linguagem é oniabrangente. Nada existe que se subtraia ao poder ser dito: os limites da linguagem ocorrem no seio da própria linguagem. Por poder distanciar-se de tudo, o ser humano se revela, então, não como a simples coincidência com o ser enquanto tal, mas antes como o ente da pergunta pela totalidade do ser como a instância de expres­ são da inteligibilidade universal. Essa é uma tese básica da tradição da filosofia ocidental. Assim, Aristóteles92 afirma, a respeito do espí­ rito ou do pensamento, que ele de certo modo é tudo. "O espírito é correlativo ao ser como totalidade inteligível”,93 sua estrutura própria se constitui pela abertura ilimitada ao ser: pensar, como já viram os gregos, significa sempre pensar tudo (rcávia voeifiv). Tudo é em prin­ cípio pensável, inteligível, cognoscível, assim que se deve dizer que a totalidade do ser é simplesmente dada com o estatuto ontológico do espírito humano, isto é, do ser subjetivo enquanto ser espiritual e, en­ quanto tal, ela constitui a condição de possibilidade do conhecimento de qualquer entidade. Aqui a própria formulação já manifesta a superação radical do dua­ lismo articulado por Kant e ainda hegemonicamente presente em boa parte da filosofia contemporânea. No horizonte da superação da di­ cotomia, como Puntel articula, compete ao sujeito enquanto espírito uma co-extensionalidade intencional com o universo ou com o seri94 com aquele “todo que abrange simplesmente tudo”,95 não só com o universo existente, pois a potencialidade do espírito vai além do existente, 91 Cf. GADAMER, H. G. “ Mensch und Sprache". In: Gesamte Werke II. Tübingen: Mohr, 1986, p. 152, Tradução em português de: Maia-Flickinger, M. em: ALMEIDA, C. L. de; FLIN C K IN G ER , H.-G.; RO H D EN , L. (orgs.). Hermenêutica Filosófica. Nas Trilhas de Hans-Georg Gadamer. Porto Alegre: Edipucrs, 2000, p. 125. 92 Cf. De anima III. 8. 431 b 21: “f\ xá óvxa itcofiç éÃcm jcávta”. E que o sábio sabe tudo. Met. A 2 982 a S. Cf. a respeito: M ÜLLER, M. Philosophische Anthropologie. Op. cit-, p. 43 e ss. Para Leibniz, o ser humano é uma mônada, cuja especificidade consiste em espelhar ou representar o todo. Cf. LEIBNIZ, G. W. Monadologie. Franzõsisch/Deutsch. Stuttgart: Reclam, 1998, p. 62-63; 83. 93 Cf. LIMA VAZ, H. C. de. Antropologia Filosófica 1. Op. cit., p. 211. Lima Vaz procura mostrar aí as origens platônicas dessa afirmação. Daí a tensão fundamental que marca o ser humano. Cf. HERRERO, F. J. “ A recriação da tradição na antropologia filosófica de Pe. Vaz”. Síntese. Revista de Filosofia., v. 30, n. 96,2003, p. 8: “ Pois o ser do homem surge numa tensão entre a finitude e limitação da situação (eidos), por um lado, e a infinitude ou ilimitação que aparece no ato de afirmação pela qual o sujeito se põe (thésis) a si mesmo no horizonte ilimitado do ser” . 94 Cf. PU NTEL, L. B. “ A Totalidade do Ser, o Absoluto e o tema ‘Deus’”. Rev. port. de Filosofia, 60, 2004, p. 306-309. 95 Cf. ibidem, p. 307.

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na medida em que inclui todas as possibilidades de infinitos outros universos não realizados precisamente enquanto são inteligíveis. Ora, o ser humano é e, enquanto tal, pertence também ao universo. E, se pertence ao universo, ao mundo, ao ser, então, pertence também ao ser tudo o que ele faz, tudo o que ele realiza.96Assim, o conhecimento e a ação humanos não são em primeiro lugar algo realizado por um sujeito, mas um estado de coisas no mundo; são, portanto, partes do mundo, da natureza, do universo. Evidentemente, de nenhuma forma se nega aqui que o conhecimento seja algo também produzido por um sujeito, mas que ele consista primária ou fundamentalmente nessa efetivação subje­ tiva. Em sua significação originária, o conhecimento é, na realidade, um modo de manifestação, de expressão do mundo, do ser. Isso implica precisamente a superação da dicotomia total entre o sujeito (o cognoscente, o teórico) e a natureza, o mundo, o ser em sua totalidade. Essa tese tem implicações de grande importância, porque na realidade constitui uma mudança radical de perspectiva, uma reviravolta da “reviravolta copernicana” de Kant, da postura transcendental, que levou à centralidade do sujeito no pensamento filosófico. Nesse hori­ zonte, toda a dimensão teórica (conceitos, teorias etc.) se revela então como sendo uma parte do universo, como parte do Ser em sua totalidade: a teoria também é, é ser, é parte do ser em seu todo, ela é uma forma de manifestação do ser. A mudança em relação à concepção da subjetividade que daqui decorre é radical, já que na medida em que ela é coextensiva ao ser em seu todo, ela se revela como uma subjetividade universal, a instância em que o todo se expressa. Se o ser em sua universalidade é expressável, então a essa universalidade deve corresponder uma instância de sua expressão igualmente universal (linguagem, espírito, sujeito): só a partir daqui se tem uma concepção adequada da subjetividade e de seu lugar no universo. Esta é a resposta de Puntel ao grande desafio articulado por McDowell como a questão central do pensamento contemporâneo: ultrapassar a separação entre pensar e ser, já que o grande empecilho para a exposição do mundo enquanto totalidade do ser, tarefa própria da filosofia, é, no pensamento contemporâneo, precisamente esse abismo insuperável entre a dimensão do sujeito e a dimensão da realidade. Isso leva a concentrar toda a esfera do conhecimento, do conceituai, no polo subjetivo dessa dualidade. A filosofia crítica de Kant se radica nessa dicotomia rígida que tem suas raízes na escolástica tardo-medieval97 e que continua hegemônica % Cf. PUNTEL, L. B. Estrutura e Ser. Op. cit., p. 535. 97 Cf. LIMA VAZ, H. C. de. Raizes da modernidade. São Paulo: Loyola, 2002.

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no pensamento contemporâneo. Essa postura se mostra com clareza, por exemplo, na trajetória intelectual de H. Putnam, embora em sua fase recente esse autor - em vinculação com outros, como, por exemplo, justamente J. McDowell - tenha acentuado a necessidade de superação dessa posição dicotômica. No pensamento de McDowell, esse esforço de superação se expres­ sa na afirmação de que o mundo não está fora da dimensão conceituai, tese que ele pretende esclarecer com a expressão “the unhoundeâness of the conceptual” (a indelimitação do conceituai).98 No entanto, para Puntel esse abismo é superado no pensamento de McDowell" apenas a partir de um dos polos, ou seja, a partir da dimensão do conceituai (o sistema de conceitos).100McDowell não trata especificamente do outro polo, e é por essa razão que não existe nele propriamente uma ontologia. Assim, ele trata do polo do sujeito para afirmar que o sujeito já sempre tem acesso ao outro polo - o ser, a realidade, o mundo, a natureza; nada se diz, porém, sobre o outro polo, o que significa, em última instância, dizer que sua posição ainda é de alguma forma a posição da filosofia transcendental moderna. E nesse contexto da tematização da dimensão estrutural e, mais especificamente ainda, no contexto da mútua relacionalidade entre semântica e ontologia que se estabelece o lugar próprio da ontologia na filosofia sistemático-estrutural. Isso significa dizer que a ontologia não esgota a tarefa da filosofia, mas se situa num contexto de uma concepção mais abrangente de filosofia, em que ela se constitui como um momento central de sua articulação. Nisso se revela com clareza a vinculação com a tradição e igualmente a posição profundamente diferente da filosofia sistemático-estrutural, tanto no que diz respeito à concepção de onto­ logia e da teoria do ser, quanto na concepção da filosofia enquanto tal e o papel da ontologia numa teoria filosófica. A filosofia analítica retomou, sob certos aspectos, a tradição da metafísica anterior a Kant. Na modernidade, essa tradição foi sistema­ tizada no século XVI por F. Suarez, e depois, no século XVIII, por Chr. Wolff. Na realidade se tratava do desenvolvimento escolástico do con­ ceito de metafísica presente na filosofia de Aristóteles: o conhecimento do ente enquanto ente. Esse conhecimento foi denominado por Suarez “metaphysica generalis” e desde o início do século XVII foi chamado de “ontologia”. Desse saber se distinguia a “metaphysica specialis”, que 98 Cf. McDOWELL, J. Mente e Mundo. Op. cit., p. 61 e ss. 95 Cf. ibidem; Meaning, Knowledge and Reality. Cambridge/London: Harvard Universi­ ty Press, 1998; Mind, Vahie and Reality. Cambridge/London: Harvard University Press, 1998. !0CCf. PUNTEL, L. B. Estrutura e Ser. Op. cit., p. 490.

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considerava os diferentes campos dos entes: a natureza (a cosmologia filosófica), o ente humano (a psicologia metafísica), o ente supremo (a teologia natural). Numa palavra, o que caracteriza fundamentalmente essa tradição é sua concentração em duas questões fundamentais: a) a pergunta pelo ente enquanto ente; b) a pergunta pelos campos dos entes. Para Puntel, é uma questão central nesse contexto a distinção entre a ontologia e o que ele denomina a "metafísica primordial”, que não é uma teoria do ente, mas, no sentido estrito, uma teoria do ser. Onto­ logia é aqui estritamente uma teoria do ente enquanto ente (ontologia geral) ou uma teoria dos entes (ontologias especiais), e isso distingue radicalmente a filosofia sistemático-estrutural tanto da tradição vinda de Aristóteles como da filosofia analítica contemporânea. Além disso, a ontologia retomada pela filosofia analítica assume a semântica da tra­ dição, a semântica composicional, e a ontologia que a ela corresponde, a ontologia da substância - a que se contrapõem de forma radical a semântica e a ontologia da filosofia sistemático-estrutural. 5.3 TRAÇOS BÁSICOS DA NOVA SEM ÂNTICA E DA NOVA O N TO LO G IA 5.3.1 A semântica enquanto dimensão fundamental da linguagem L. B. Puntel101parte do que ele denomina o fato lingüístico original: a linguagem em seu sentido mais geral é fundamentalmente um sistema semiótico, um sistema de signos102 e enquanto tal ela é inteiramente indeterminada ou subdeterminada. Nesse nível, é essa sua única deter­ minidade, já que aqui os signos são indeterminados em todos os seus aspectos. A primeira determinação que se pode dar desse sistema é uma determinação sintática, ou seja, aquela que consiste na consideração de determinadas relações dos signos entre si puramente enquanto signos, sem que os signos signifiquem alguma coisa. Somente na segunda de­ terminação, a semântica, os signos significam algo. Quando se parte de uma concepção puramente sintática de lin­ guagem, de uma linguagem puramente formal, então, em princípio, há inúmeras possibilidades de interpretação dessa linguagem, ou seja, 101 Cf. PU NTEL, L. B. Estrutura e Ser. Op. cit., p. 196 e ss. 102 Cf. PENCO , C. Introdução à Filosofia da Linguagem. Petrópolis: Vozes, 2006, p. 41-42: “A semiótica pretende ser uma ciência geral dos signos, e não somente dos signos lin­ güísticos. [...] Nos Estados Unidos as tradições peirceana e fregeana se encontram nas figuras de Charles Morris e Rudolf Carnap. Ambos reconhecem a importância da semiótica geral, que se subdivide em três campos: sintaxe - estudo da relação dos signos com outros signos; semântica - estudo da relação dos signos com os objetos; pragmática - estudo da relação dos signos com os falantes”.

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faz-se isso através da introdução de modelos para essa linguagem. Na realidade, quando se parte de uma linguagem determinada de forma pu­ ramente sintática, nada há de fixo no que diz respeito à sua interpretação. Com relação a cada expressão da linguagem, pode-se vincular qualquer significação possível. Foi em confronto com essa problemática que se articularam teses que se tornaram famosas, como a tese da indeterminidade da linguagem, a tese da relatividade ontológica etc. No sentido usual da linguagem, ela se constitui como um sistema de signos, mas, em diferença radical com um puro sistema semiótico, ela já é aqui em muitos aspectos um sistema inteiramente determinado, isto é, sintaticamente correto e semanticamente significativo, o que é o caso em nossa linguagem coloquial. Por essa razão, uma questão básica na consideração da linguagem é a problemática de sua determinação, que em princípio, para Puntel, pode ser pensada em três planos básicos. Em primeiro lugar, usa-se a linguagem na vida cotidiana para proferir sentenças no contexto de um processo comunicativo entre sujeitos membros de um determinado mundo sócio-histórico. A especificidade da determinação nesse nível do contexto da vida cotidiana é que ela se efetiva por meio de um elemento externo à lin­ guagem, a saber, o próprio contexto do mundo da vida. A tese bási­ ca nesse plano é que o mundo em que vivemos é um mundo a que temos acesso linguisticamente: a linguagem é a instância em que o mun­ do se nos dá. A visão que nós fazemos do mundo é o produto de uma ação cultural em que o papel da linguagem é simplesmente decisivo. Um elemento característico desse nível de determinação é que há uma ausência de reflexão sobre o que ocorre no uso da linguagem, ou seja, não existe uma avaliação desse uso. O determinante é o contexto, o que se pode exprimir com rigor antepondo um operador - “Está contextualmente dado que p ” - para explicitar o status exato da sentença em questão. Habermas, em diversas ocasiões de sua obra, expõe a exigência de uma ruptura com esse nível no momento em que surgem questio­ namentos referentes aos proferimentos lingüísticos dessa esfera, ou seja, quando ocorre “uma ruptura entre a linguagem e sua utilização ‘natural5”.103 Trata-se, na realidade, da questão da passagem da esfera da linguagem ordinária para a esfera do “discurso”, que é o plano em que são justamente acareadas as pretensões de validade levantadas na esfera da linguagem ordinária do mundo vivido. Aqui emerge um novo plano de determinação que, entre outras possibilidades, pode ser, por

103 Cf. PU N TEL, L. B. Estrutura e ser. Op. át., p. 199.

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exemplo, o plano pragmático, isto é, o plano no qual é empregado um vocabulário pragmático. Esse plano de determinação é externo-interno à linguagem na medi­ da em que a determinação se efetiva através de uma ação do ser humano104 (a pragmática filosófica se centra na tese de que falar é uma maneira de agir numa situação determinada), de um ou mais falantes (elemento externo), que se configura e se articula linguisticamente enquanto uma ação de um tipo determinado (elemento interno). Introduz-se aqui o vocabulário pragmático, por exemplo: “ eu afirmo que p” e o operador correspondente: “Pragmático-linguisticamente está posto que p” . É precisamente nesse nível que se situa fundamentalmente a semântica de orientação pragmática de Habermas. R. Brandom também desenvolveu uma semântica radicalmente norteada pela pragmática, uma vez que para ele a semântica deve ser elaborada nos moldes da pragmática. Nessa proposta, os sujeitos agentes exercem um papel absolutamente central no quadro de uma práxis social e constituem a perspectiva a partir de onde são articuladas a semântica, a ontologia, a filosofia do espírito e toda e qualquer outra temática filosófica .105 No entanto, para Puntel, a questão teórica fundamental aqui, que decide o tipo de filosofia que se deve articular, tem a ver com a fundamentalidade e a centralidade da semântica em sentido estrito, isto é: através do uso explícito de um vocabulário semântico, em relação aos planos contextual-quotidiano e pragmático-lingüístico, “já que é só na dependência das estruturas semânticas que as estruturas formais e onto­ lógicas podem começar a ser compreendidas e definidas” .106O primeiro passo da argumentação consiste em mostrar que no plano semântico está em jogo uma determinação puramente interna à linguagem, o que constitui sua especificidade em relação aos dois planos anteriores. Nesse plano, o operador central e máximo é: “E verdadeiro que”, operador que não comporta referência a qualquer fator externo à linguagem (sujeito, ações, eventos etc.). Numa palavra, trata-se aqui de um determinante 104 Nisso está, para Zilhão, a superação decisiva por Wittgenstein da ideia de uma cone­ xão entre pensamento e realidade entendida como representação e a proposta de pensar essa problemática a partir da categoria de uso, o que implica a primazia da pragmática sobre a semântica. Cf. ZILH ÃO , A. Linguagem, da filosofia e filosofia da linguagem. Op. cit., p. 201: “ [...] a relação entre o pensamento e o facto do mundo com o qual ele se relaciona é uma relação gramatical. Isso significa [...] que a relação [...] é totalmente independente das imagens e representações mentais. [...] O que confere vida aos sinais por nós usados e transforma, por isso mesmo, aglomerados de sinais em pensamentos é o uso que lhes damos no interior do sistema simbólico em que se inserem”. 105 Cf. BRANDOM , R. Making itExplicit. Reasoning, Representing and Discursive Commitment. Cambridge (MA)/Londres: Harvard University Press, 1994, p. 83. 106 Cf. PU NTEL, L. B. Estrutura e ser. Op. cit. p. 227.

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puramente interno à linguagem, o que significa dizer que o específico desse nível é precisamente que, através do vocabulário semântico, a própria linguagem se autodetermina. Uma vez estabelecida a distinção fundamental entre os três níveis de determinação, o segundo passo da argumentação consiste em mostrar a tese básica da pressuposição do plano semântico pelos dois planos anteriores. Trata-se de um processo de pressuposição que se articula a partir do princípio de inteligibilidade: o plano contextual-cotidiano pressupõe, ou seja, só é inteligível a partir do plano pragmático, que por sua vez pressupõe, só é inteligível a partir do plano semân­ tico. A questão da pressuposição significa aqui, então, condição de inteligibilidade. Assim, para poder ser inteligível, a determinação da linguagem contextual-cotidiana deve levar suas sentenças à esfera da determinação pragmática, uma vez que para poderem ser entendidas se faz necessário identificar essas sentenças como sentenças de um tipo determinado por exemplo, como afirmação - e é precisamente isso o que faz o plano pragmático na medida em que diz que a sentença do plano contextual-cotidiano possui o status de afirmação. A questão, no entanto, retorna aqui: o que significa dizer que uma determinada sentença possui um status determinado, o status de afirmação? Quando expressões lingüísticas são usadas de modo significativo,107 então há uma relação a algo, ou seja, pode-se dizer que as expressões designam algo, exprimem algo. Com isso se fala do caráter informacional da linguagem: ela possui um conteúdo informativo. Nesse sentido, toda linguagem é em princípio pelo menos também informativa, isto é, expressões lingüísticas em princípio possuem um valor semântico, informacional. Por essa razão é que o uso racional e compreensível de algo pressupõe que esse algo tenha sido entendido. Isso significa dizer que todo conteúdo conceituai é articulado no seio da linguagem, e é precisa­ mente nesse sentido que a linguagem emerge como meio indispensável da expressão ou da exposição, no sentido de que conteúdos conceituais não existem sem sua articulação lingüística: “entre o teor conceituai e a articulação lingüística existe uma relação íntima, inseparável”.108 Uma conseqüência primeira fundamental aqui é que é na articulação lingüística que é possível apreender o que é o conteúdo conceituai, captar como ele é estruturado. Nesse sentido a semântica, que é a dimensão significativa, tem a ver com o cerne do que é linguagem. 107 Cf. PUNTEL, L. B. Grundlagen einer Theorie der Wahrheit. Berlim/Nova York: de Gruyter, 1990, p. 69. 108 Cf. idem. Estrutura e Ser. Op. cit., p. 227.

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Nesse contexto se pode retomar a pergunta: que é uma afirmação em termos gerais? Vinculando-se a Frege,109 embora reconheça que o estado da questão em Frege é muito complexo e intricado,110Puntel asse­ vera que afirmar diz algo referente à verdade, é o apresentar da verdade, tem a ver com a verdade, ou seja, tem a ver com o caráter plenamente determinado da linguagem. Ora, isso implica dizer que a determinidade pragmática só é inteligível sob a pressuposição da “verdade” em geral, ou seja, sua inteligibilidade pressupõe a determinidade do que é expresso na linguagem, isto é, a determinidade semântica que assim emerge como o plano fundamental de determinação da linguagem. Uma posição semelhante é a de M. Dummett, que defende a tese de que não podemos resolver os conflitos entre propostas metafísicas distintas levando em consideração imagens da realidade, mas o caminho promissor para a articulação da metafísica é uma “ caracterização semântica”, ou seja, a metafísica só é possível a partir de uma “teoria do significado”. Isso vai implicar um deslocamento de questões: ao invés da pergunta tradicional pela natureza ou pela existência de determinadas entidades, as questões agora são sobre o significado e a verdade que julgamos corretas para nossos enunciados. Numa palavra, o conteúdo de uma questão metafísica é essencialmente semântico.111 Dessa forma, para Puntel, a proposta de Habermas de fazer da pragmática a dimensão central da linguagem a partir de onde se articula a reflexão filosófica é marcada por um déficit teórico básico: ele não se pergunta pela condição de inteligibilidade da própria pragmática. Sua consideração sobre a relação interna entre exposição e comunicação é uma consideração estritamente operativa: sua pretensão é demonstrar que, para que se efetive com sucesso a função expositiva ou a função comunicativa, cada uma delas tem de pressupor a outra. Assim, o falante não pretende apenas que o ouvinte conheça sua opinião, mas que chegue à mesma concepção que ele, o que só é possí­ vel na base do reconhecimento intersubjetivo da pretensão de verdade levantada pela sentença comunicada. Isso significa, para Habermas, dizer que o fim ilocucionário do falante (dimensão comunicativa) só se efetiva em unidade com a função cognitiva da linguagem (dimensão expositiva). Um argumento análogo vale para a dimensão expositiva que só chega a se efetivar em unidade com a dimensão comunicativa. 109 Cf. FREGE, G. “Ausführungen über ‘Sinn und Bedeutung’ ” . In: Schriften zur Logik und Sprachphilosophie. Hamburg: Meiner, 2a ed., 1978, p. 139. 110 “ Para apresentar algo como verdadeiro, não necessitamos de um predicado especial, mas apenas a força afirmativa com que proferimos a sentença”, citado apud PUNTEL, L. B. Estrutura e Ser. Op. cit., p. 202. 111 Cf. DUMMETT, M. Truth and Others Enigmas. Op. cit., p. 18.

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Então, a questão aqui é de como se efetivam as duas dimensões, e não a respeito da estruturalidade específica de cada uma - uma questão que precede a problemática de sua efetivação. 5.3.2 A interconexão recíproca entre semântica e ontologia A conclusão que se pode tirar de tudo o que foi dito até agora é que a linguagem tem um lugar simplesmente central numa teoria filosófica. Apel trata dessa problemática no contexto do desafio da transformação da filosofia transcendental, que para ele consiste basicamente numa mu­ dança de seu esquema básico. Trata-se para Apel da passagem de uma filosofia da consciência, baseada na relação sujeito-objeto, para uma fi­ losofia da linguagem, cujo centro é a relação sujeito-sujeito. Transforma-se a compreensão do conhecimento, que agora é entendido enquanto produto de um processo interativo do entendimento linguisticamente mediado, ou seja, trata-se no fundo de uma nova concepção de verdade, entendida, então, como a formação intersubjetiva de consenso na base de um entendimento lingüístico (argumentativo). No entanto, o elemento decisivo nesse processo de transformação é a mudança na própria compreensão da linguagem em relação a toda a tradição do pensamento ocidental, e é isso precisamente que vai exi­ gir essa transformação da filosofia. Segundo Apel a tradição ocidental pensou a linguagem precisamente como um instrumento, um meio de designação e comunicação de um conhecimento realizado sem ela. O que constitui em última análise a reviravolta lingüística é a compreensão de que a linguagem não se reduz a um instrumento de comunicação, mas constitui a mediação fundamental de nosso acesso ao mundo. Dessa forma a linguagem não é simplesmente um objeto empiricamente dado a ser analisado como qualquer outro objeto, mas a esfera em que todos os objetos nos são dados, ou seja, ela é condição de possibilidade e vali­ dade da compreensão e da autocompreensão e com isso do pensamento conceituai, do conhecimento de objetos e da ação sensata.112 Assim, todo conhecimento e toda ação no mundo são mediados linguisticamente, o que significa dizer que a linguagem articula todo o âmbito da experiência humana. Numa palavra, a linguagem é a condição, o pressuposto de todo conhecimento possível e válido, e a aceitação desta tese configura, para Apel, a articulação de um terceiro quadro fundamental para a filosofia, em substituição aos dois anteriores, ou seja, a filosofia do ser (metafísica) e a filosofia da consciência (filosofia transcendental anterior à reviravolta lingüística). 112 Cf. APEL, K.-O. Der transzendentalhermeneutische Begriff derSprache. Op. dí., p. 333.

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Puntel defende também a tese da centralidade da linguagem na filosofia a partir, porém, de uma postura pós-transcendentál. A filosofia enquanto teoria é uma exposição, uma articulação de saber, o que só pode ocorrer através de sinais palpáveis. Já foi dita a razão que justifica essa tese básica: o que possa ser aquela dimensão que se costuma deno­ minar mundo/realidade/coisa mesma, ela possui de qualquer forma uma expressabilidade plena, sem a qual a teoria seria destituída de sentido. Ora, a expressabilidade só pode ser concebida como uma relação que implica uma relação inversa: a relação de expressar o que, por sua vez, implica uma instância que expressa - que é precisamente a linguagem que, assim, revela-se como um sistema semiótico da expressabilidade universal do mundo. Essa instância expressante contém tanto símbolos como conceitos, ou seja, o que é expresso por esses símbolos. Então, deve-se dizer que a expressabilidade universal do ser implica a dimensão do lingüístico e do conceituai, que dessa forma se revelam como não sendo algo fora da dimensão do ser. Dessa forma, tudo o que é conteúdo conceituai é articulado no seio da linguagem. Isso implica também como em Apel, embora em sentido fundamentalmente diferente, ocorre uma mudança radical na concepção de linguagem. Linguagem não é entendida como um meio para exposição ou expressão de conteúdos conceituais que de algum modo “existem” ou são “possuídos” independentemente da linguagem. Antes, lingua­ gem constitui meio indispensável da expressão ou exposição, uma vez que, se compreendidos adequada e rigorosamente, os assim chamados “conteúdos conceituais” não existem sem sua articulação lingüística. Isso significa dizer que os conteúdos conceituais, embora entidades não lingüísticas, são dependentes da linguagem na medida em que são articuláveis; portanto, sua articulação lingüística é um ingrediente essencial dos conteúdos conceituais. A diferença essencial entre as concepções de Apel e de Puntel se põe no fato de que Apel permanece fundamentalmente na esfera da sub­ jetividade, colocando ao mesmo tempo a linguagem como fator central nessa esfera. Dessa forma, a determinação da linguagem, para ele, ocorre no plano do vocabulário pragmático, e não no plano do vocabulário estritamente semântico. Pode-se dizer que o vocabulário semântico, que Apel também usa, é em sua concepção absorvido pela esfera pragmática e pelo vocabulário pragmático. Em oposição radical a essa posição, Puntel defende o primado absoluto da esfera estritamente semântica, apoiando-se em dois argu­ mentos. O primeiro argumento aponta para o fato de que o vocabulário estritamente semântico não inclui nenhuma indicação de vocabulário pragmático (como: “eu afirmo que...”) e nenhuma relação a fatores como

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sujeitos e semelhantes. Com efeito, o uso do vocabulário estritamente semântico produz formulações como, por exemplo (usando o predicado "verdadeiro”): “a sentença ‘a terra gira em redor do sol’ é verdadeira”; ou (usando o operador de verdade): "é verdade que a terra gira em redor do sol” etc. Aqui não há lugar nenhum para fatores como sujeitos etc. Contra esse argumento alguém poderia objetar que às sentenças como as citadas pode-se sempre antepor um operador pragmático, o qual inclui sempre um sujeito, por exemplo: “eu afirmo que é verdade que a terra gira ao redor do sol”. E se poderia acrescentar que isso parece muito plausível, uma vez que é sempre um sujeito que profere a sentença: “é verdade que a terra gira em redor do sol”. Sem dúvida trata-se sempre de um sujeito que profere tal sentença. Mas o problema que aqui se levanta é de que sujeito se trata, quando ele é nomeado explicitamente - por exemplo, fazendo uso do operador pragmático: “ eu afirmo que...”. O uso explícito desse operador pragmático pressupõe sempre um sujeito particular ou limitado no sentido de que ele expressa uma perspectiva distinta da perspectiva do operador de verdade. Ora, já foi mostrado que o operador pragmático não pode sobrepor-se ao operador de verdade, o que pode ser demonstrado de outra forma muito simples: uma sentença com o operador pragmático anteposto, como “eu afirmo que a terra gira em redor do sol”, pode ser confrontada com muitas questões de diferentes tipos, como, por exemplo: essa afirmação é justificada? Mas a questão mais radical que pode ser levantada aqui é a seguinte: essa afirmação é verdadeira,? Essa questão é a mais radical, pois supera e é pressuposta por toda e qualquer outra questão que possa ser formulada com respeito à sentença tomada como exemplo. O resultado dessas considerações é claro: somente ao articular uma formulação estruturada exclusivamente pelo operador de verdade chega-se ao ponto máximo e último de qualquer questionamento e, assim, de determinação da linguagem. Isso significa dizer que o sujeito “desaparece(u)” ? A resposta a essa questão é igualmente clara: o sujeito no sentido particular e limitado não é mais determinante e, nesse sentido, “desaparece(u)”. Mas o sujeito que se pode chamar de universal, isto é, o sujeito elevado à perspectiva absolutamente universal, não desapare­ ce, apenas não há mais necessidade de nomeá-lo, pois essa perspectiva universal é idêntica ao plano em que se situa a verdade. Dessa forma, o sujeito que se eleva ao plano universal torna-se redundante. Isso se pode ver através da formalização de algumas teses expostas. Da sentença: “eu afirmo que a terra gira ao redor do sol” não se pode inferir: “logo, é verdade que a terra gira em redor do sol”; formalização simples: seja p = a terra gira em redor do sol; seja ASL(p) = eu como Su­

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jeito Limitado Afirmo que p; seja V(p) = é verdade que p. Então vale: de ASL(p) não se pode inferir V(p), formalizado: ASL(p) -> V(p). Mas introduzamos uma modificação profunda no status do sujeito: seja Asu = eu como Sujeito Universal Afirmo que... Então vale: de Asu(p) pode-se inferir V(p); formalizado: Asu -> V(p). Pode-se inferir também uma relação mais forte que a implicação, a saber, a relação de equivalência: Asu(p) se e somente se V(p); formalizado: Asu(p) V(p). O segundo argumento tem um caráter geral. Toda ciência genuína e toda filosofia coerente e séria só contêm sentenças teóricas (não sen­ tenças práticas ou estéticas). Ora, há um claro critério lingüístico para determina^ o que é uma sentença teórica: é o critério segundo o qual uma sentença teórica tem um caráter declarativo, o que se manifesta no fato de à sentença como tal estar anteposto (raramente, explicitamente, ou, na maioria dos casos, implicitamente) o que se pode chamar de ope­ rador teórico. Como já foi mostrado, apoiando-se numa famosa frase do Tractatus de Wittgenstein, Puntel explica o operador teórico como o operador que se articula linguisticamente da seguinte forma: “é o caso que... (por exemplo: a terra gira em redor do sol).” Ora, esse operador não inclui absolutamente nenhuma referência ou relação a algo de não lingüístico. Assim, ele é nesse sentido um operador estritamente semân­ tico, que abstrai completamente de qualquer relação a sujeitos, falantes etc. Puntel mostra que toda filosofia, em última análise, pressupõe esse operador teórico. Filosofias, como a de Apel, que pretendem pôr o sujeito (o falante) como centro absolutamente irrecusável se autocontradizem, pois, para explicar-se e justificar-se inteiramente, toda filosofia não pode mais recorrer a um operador teórico baseado num fator particular ou limi­ tado, como é o sujeito na filosofia de Apel. Com efeito, essa filosofia contém sentenças de fundamentação com a seguinte estrutura: “a partir da subjetividade transcendental-pragmática, é o caso que...”. Ora, tais sentenças representam um círculo vicioso evidente. Uma justificação não circular só pode basear-se em sentenças estruturadas pelo operador teó­ rico absolutamente ilimitado: “E (ilimitadamente) o caso que...”. Toda filosofia, em última análise, só pode definir-se e, assim, autojustificar-se, articulando sentenças sobre si mesma com a estrutura determinada pelo operador teórico ilimitado. Chega-se a essa tese absolutamente central da filosofia só quando se toma verdadeiramente a sério o papel absolutamente central da linguagem, o que não acontece em filosofias como a de Apel. E nesse quadro que se pode levantar a questão da semântica e da ontologia já sempre implícita no que foi dito anteriormente. O que está em jogo quando se fala em semântica é em primeiro lugar a questão da

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interpretação das expressões lingüísticas. Na perspectiva de Frege se pode dizer, como faz J. Sàágua, que "essa interpretação consiste em estabele­ cer: l)o sentido das diversas expressões (simples ou compostas) de uma linguagem; e, sendo o caso, 2) a referência dessas mesmas expressões”.113 A linguagem é a instância expressante do mundo, e essa dimensão fundamental, enquanto uma dimensão de uma teoria da linguagem, é o que se chama de "semântica”, que, enquanto tal, é o centro da linguagem. Por essa razão se entende semântica como aquela dimensão em que as ex­ pressões lingüísticas significam e expressam algo. Por isso para Tarski114 a semântica é a teoria da relação entre linguagem e mundo, o que na realidade significa dizer que semântica e ontologia estão estreitamente conectadas. Numa palavra, a semântica tem um caráter realista, ou seja, as sentenças declarativas dessa linguagem articulam um relacionamento com a realidade como quer que se entenda realidade. “Uma semântica ontologicamente orientada retoma fundamental­ mente a tradição tarskiana, todavia com modificações essenciais, já que a semântica de Tarski está, em essência, baseada na estrutura de sujeito-predicado das sentenças.”115 Aqui, nessa articulação, manifesta-se que a questão fundamental é a da “relação linguagem e mundo” (realidade, universo, ser), o que significa dizer que essa posição se contrapõe radi­ calmente a todas as semânticas que não reconhecem ou não tematizam a referência ontológica da linguagem. Com isso se exclui toda concepção de linguagem puramente orientada na perspectiva pragmática, como no caso da tese de que o significado é o uso (meaning is use). Nesse sentido, a dimensão semântica se revela como aquela em que está em jogo o elemento central da linguagem, ou seja, seu caráter expressivo: linguagem é sempre linguagem de algo (mundo), e o mun­ do é sempre o mundo que se expressa na linguagem de modo que uma semântica plenamente determinada é uma ontologia. Está em jogo aqui a inteligibilidade do mundo: trata-se de conceber e articular o mundo. A relação mútua entre semântica e ontologia é determinada aqui exclu­ sivamente a partir do critério da inteligibilidade da coisa. Uma questão básica nesse contexto116é: se linguagem e mundo forem compreendidos 113 Cf. SÀÁGUA, J. “ Semântica lógica” . In: B R A N Q U IN H O , J.; M U R C H O , D.; GOMES, N. G. (orgs.). Enciclopédia de termos lógico-filosóficos. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p .695. 114 Cf. TARSKI, A. A concepção semântica da verdade. MORTARI C. A.; ARAÚJO DUTRA, L. H. de (org.). São Paulo: Editora UNESP, 2007, p. 149. PUNTEL, L. B. Estrutura e Ser. Op. cit., p. 126. PEN CO , C. Introdução à Filosofia da Linguagem. Petrópolis: Vozes, 2006, p. 90-94. BRAIDA, C. R. “ Significatividade, verdade e ontologia” . Problemata, vol. 2, n. 1,2011,p. 52-88. 115 Cf. PU N TEL, L. B. Estrutura e Ser. Op. cit., p. 245. 116 Cf. ibidem, p. 515.

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como duas dimensões que existem fundamentalmente independentes entre si, então surge o problema de como explicar seu encontro. Como se pode dizer nesse caso que o mundo é articulável pela linguagem? A tese da expressabilidade ontológica do mundo implica, ao con­ trário, uma interconexão fundamental entre linguagem e mundo, ou seja, entre semântica e ontologia, o que significa dizer em primeiro lugar que "o acesso ao mundo (ao universo, ao ser) é absolutamente mediado pela linguagem: ele ocorre ca partir do interior da linguagem’ ou ‘dentro da dimensão lingüística’ mesma” .117 Puntel chama a atenção para a possibilidade de entender essa tese básica de uma forma inaceitável, ou seja, quando se reduz o mundo à dimensão da “nossa” linguagem. Nesse caso, de fato, reduz-se completa­ mente o mundo ao “nosso mundo”, e correspondentemente a linguagem à nossa linguagem. Num segundo momento se articula uma dicotomia fundamental entre o “nosso mundo” e o “mundo em si” sendo que este último é considerado inacessível a nós. Entendendo, porém, a linguagem no sentido maximal, ou seja, como um sistema semiótico composto de uma quantidade infinita não enumerável de expressões - isto é, quando a linguagem é entendida como o reverso da expressabilidade do mundo -, então a fala sobre o mundo (a realidade) a partir do interior da linguagem de nenhuma forma implica sua redução ao mundo da nossa linguagem, e com isso cai também por terra a dicotomia “ em si e para nós”. Uma primeira conseqüência dessa tese é que não pode haver entidades excluídas da dimensão da linguagem, pois isso implicaria que tais entidades não fossem expressáveis. Assim, a quantidade de sentenças deve corresponder pelo menos ao número de entidades ou de fatos do mundo. Uma pergunta que emerge nesse contexto inevitavelmente é: o que é mesmo essa linguagem maximal, essa linguagem universal? Para Puntel, deve-se dizer em primeiro lugar que ela, por um lado, não existe em lugar algum, mas, por outro lado, existe em toda parte, no sentido de que “nada existe que não seja ou não possa ser ‘articulado em forma de linguagem5”.118 E essa a razão por que se fala aqui de linguagem maximal, e ela não só constitui o lugar originário da compreensão da linguagem, mas também apenas a partir daqui se pode compreender adequadamente o que significa propriamente falar de centralidade da linguagem na filosofia. A grande tarefa teórica que se põe agora é articular os traços funda­ mentais da nova semântica e da nova ontologia. Uma primeira diferença n7Cf. PUNTEL, L. B. Estrutura e Ser. Op. cit., p. 516-517. 118Cf. ibidem, p. 527.

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básica em relação às três posições anteriormente apresentadas (as teorias da substância, as teorias dos tropos e as teorias dos acontecimentos/processos) é que: a) nessa posição a linguagem é absolutamente central para a filosofia; ela constitui o ponto de partida e o ponto de referência para toda a exposição filosófica, o que significa dizer que não se pode articular uma ontologia sem referência à linguagem; b) tendo a semântica primazia na linguagem, a primeira questão da nova proposta ontológica consiste na articulação de uma nova semântica. Essas duas teses desembocam na afirmação fundamental de que semântica e ontologia constituem os dois lados de uma e mesma moeda. Ambas as questões, e sua conseqüência fundamental, não são tematizadas pelas posições expostas. 5.3.3 A semântica e a ontologia composicionaís O ponto de partida é a tese já antes demonstrada de que a lingua­ gem constitui o centro de toda e qualquer consideração filosófica, o que designa o traço específico da posição de Puntel perante as ontologias anteriormente consideradas. Ele parte de uma consideração da lingua­ gem normal (natural ou coloquial) e de sua semântica, que se radica no “princípio de composicionalidade” e cujas sentenças têm a estrutura básica de sujeito/predicado. A essa semântica corresponde uma ontologia composicional que é a ontologia substancialista. A argumentação vai consistir em mostrar que essa ontologia é insustentável e, consequente­ mente, a semântica a ela correspondente, em virtude do entrelaçamento recíproco entre semântica e ontologia. Essa crítica radical da semântica e da ontologia composicionais é o pressuposto e o ponto de partida para articulação de uma nova semântica e de uma nova ontologia. A tese básica da semântica composicional se articulou na for­ mulação do “princípio de composicionalidade”: “O significado (ou o valor semântico) de uma expressão complexa ou composta é uma função dos significados (ou dos valores semânticos) de suas partes ou componentes”.119A forma mais importante de uma expressão complexa é a forma da sentença declarativa, e o princípio de composicionalidade das sentenças reza: “ O significado (ou o valor semântico) da sentença é uma função dos significados (ou dos valores semânticos) de seus com­ ponentes subsentenciais”.120A semântica tem a ver com a interpretação das expressões lingüísticas, e isso diz respeito, como diz Frege, a seu con­ teúdo público e objetivo, e não aos efeitos psicológicos em nós que são 119 Cf. PU NTEL, L. B. Estrutura e Ser. Op. cit., p. 247. A respeito das raízes desse prin­ cípio no pensamento de Frege, cf. PEN CO , C. Introdução à Filosofia da Linguagem. Op. cit., p. 55 e ss. 120 Cf. PU N TEL, L. B. Estrutura e Ser. Op. cit., p. 247.

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privados e incomunicáveis. O ponto de partida aqui para enfrentar essa questão são linguagens que contêm sentenças com a forma de sujeito-predicado - “Sócrates é um filósofo”-, e a tese é de que o significado dessas sentenças é fruto de uma composição entre os significados dos componentes subsentenciais: o sujeito (o termo singular) e o predicado (o termo universal).121 "Em uma linguagem com essas características, portanto, o sig­ nificado de uma frase pode ser descrito em termos de contribuição semântica feita pelas suas partes atômicas (isto é, palavras) e pelo modo como elas se organizam (sintaticamente) em ‘constituintes’”;122 ou seja, o significado de uma expressão é uma espécie de soma dos significados de suas sub expressões; na linguagem de Puntel,123 trata-se aqui de uma "estruturalidade semântica composicional” tanto no nível subsentencial, isto é, da frase singular, como no nível supersentencial, ou seja, de um sistema lingüístico composto de sentenças. Isso significa dizer que o valor semântico de uma expressão lingüística é apreendido antes e independentemente de qualquer sentença em que ocorra. Numa palavra, o valor semântico da sentença é funcionalmente dependente dos valores semânticos dos subcomponentes da sentença. Portanto, o que é primário aqui não é a sentença, mas seus subcompo­ nentes. Nessa concepção, o problema semântico central é o problema da referência do termo singular, e o conceito de verdade é um aspecto desse problema. O valor semântico da sentença que é funcionalmente dependente dos valores semânticos de seus subcomponentes é aqui identificado com o valor de verdade da sentença.124 O valor semântico do sujeito é o denotado dessa expressão que é o objeto (real). No caso do predicado, há duas posições:125a extensional defende que seu valor semântico é o conjunto de objetos aos quais ele se aplica; para a intencional, o valor semântico do predicado é um atributo, uma propriedade (no caso de um predicado unário) e uma relação (no 121 Cf. PEN CO , C. Introdução à Filosofia da Linguagem. Op. cit., p. 61: “Junto com esse e como contraprova desse princípio, Frege utiliza a lei da substitutividade: duas expressões correferenciais podem ser substituídas uma pela outra em um enunciado, deixando inalterado o valor de verdade”. 122Cf. SANTOS, P. “ Composicionalidade, princípio da”. In: BR A N Q U IN H O , J.; M UR­ C H O , D.; GOMES, N . G. (orgs.). Enciclopédia de termos lógico-filosóficos. Op. cit., p. 149. m Cf. PUNTEL, L. B. Grundlagen einer Theorie der Wahrheit. Berlim/Nova York: Walter de Gruyter, 1990, p. 144. 124 Cf. ibidem, p. 342. 125Santos fala de dois princípios diferentes a partir da distinção de Frege entre sentido (Sinn) e referência (Bedeutung): o princípio de composicionalidade extensional que tem a ver com a referência (ou a “ extensão”) de uma expressão complexa e o princípio de composicionalidade Lntensional que tem a ver com o sentido (ou a “ intensão”) de uma expressão complexa. Cf. SANTOS, P. Op. cit., p. 150.

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caso de um predicado n-ário). Para Santos,126 a partir dos desenvol­ vimentos recentes da semântica formal (sobretudo a partir da teoria das representações do discurso), emergiram objeções à aplicabilidade universal desse princípio às estruturas das línguas naturais. No entanto, são inúmeras as vantagens descritivas e explicativas de sua aplicação. À semântica composicional que se articula numa lógica de predi­ cados de primeira ordem corresponde, para puntel, uma ontologia da substância, pois o que é designado genericamente como objeto constitui outra expressão para o que a tradição chamou de substância. Dessa forma, o objeto é, então, aquela entidade da qual se predica uma propriedade ou uma relação, ou seja, é a entidade subjacente pressuposta na predi­ cação que pode ocorrer em diferentes graus.127 A questão central aqui consiste em demonstrar que a ontologia substancialista é inaceitável - e consequentemente a semântica composicional que a ela corresponde. Puntel apresenta dois tipos de argumentos128 contra o quadro teórico substancialista: 1) Argumento radicado no “critério da inteligibilidade”.129Substân­ cia é uma categoria dual, ou seja, só se pode falar dela em conexão com determinações que são predicadas dela, propriedades ou relações. Por essa razão, o instrumentário adequado para falar de substância, propriedades e relações é a lógica de predicados de primeira ordem. O problema de fundo desse quadro semântico-ontológico se revela, para Puntel, com clareza precisamente na questão da predicação, cuja forma mais simples é Fa, ou seja, a atribuição do predicado F a a: tem-se uma entidade, e a essa enti­ dade são atribuídas propriedades e relações. Uma entidade (su­ jeito ou substrato) é aqui pressuposta simples e absolutamente. Toda a questão se situa no fato de que tal entidade pressuposta não é inteligível, porque, de acordo ao que é pressuposto pelo procedi­ mento em tela, ela precisa ser aquele algo que, enquanto tal, possibilita a atribuição ou predicação de toda espécie de universais. Uma pergunta nesse contexto é decisiva: o que é essa entidade pressuposta? Ora, se 126 Cf. SANTOS, P. Op. cit., p. 151. 127 Cf. PEN C O , C. Introdução à Filosofia da Linguagem. Op. cit., p. 61: “ O princípio permite explicar de que modo, com um repertório finito de expressões dotadas de sentido, é possível construir sistematicamente um número infinito de enunciados dotados de sentido”. 128 A respeito dos critérios de inteligibilidade e coerência em que se baseiam esses argu­ mentos, cf. PUNTEL, L. B. Estrutura e Ser. Op. cit., p. 613-618. 129Puntel formula o que ele denomina o “princípio de inteligibilidade ontológica”: “Uma teoria filosófica em princípio só deve aceitar entidades inteligíveis, ou seja, entidades que apre­ sentam imediata ou mediatamente um conteúdo conceituai; todas as outras (não inteligíveis) entidades devem ser reduzidas às inteligíveis”. Cf. PU N TEL, L. B. Grundlagen einer Theorie der Wahrheit. Op. cit., p . 184.

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abstraímos de todas as determinações (reais ou possíveis) que lhe são atri­ buídas, o que resulta é nada determinado, uma entidade completamente indeterminada, totalmente vazia. A substância, portanto, é ininteligível e consequentemente inaceitável, uma vez que em filosofia não se deve aceitar entidades ininteligíveis. 2) Argumento radicado no “critério de coerência” . Quando se aceita a categoria de substância, incorre-se numa incoerência com a conseqüência de que não se explica nada. Um dos elementos básicos da tese substancialista é a ideia de que a substância é o fator ontológico que garante a identidade de um ente através de suas mudanças.130Por exemplo, um homem concreto, Sócrates, é o mesmo homem, idêntico, desde seu nascimento através das diferentes fases de sua vida até sua morte. O argumento da teoria substancialista é de que é inconcebível a identidade do indivíduo através do tempo sem um fator estável que permaneça sempre o mesmo. Esse fator é justamente a substância que subjaz a todas as propriedades e relações, a todas as mudanças, desenvolvimentos, permanecendo sempre a mesma e idêntica entidade em sentido estrito. Desde Aristóteles é aceito o quadro categorial substância/ acidente como evidente e não problemático, em que a substância é o que permanece idêntico e o acidente é o mutável. Esse argumento, para Puntel, é incoerente por produzir uma conse­ qüência absolutamente inaceitável, pois pertence à plena realidade de um indivíduo tudo o que se passa com ele e em relação a ele; numa palavra, toda sua história. A pergunta central nesse contexto reza: como se rela­ cionam com ele, enquanto indivíduo, todos esses acontecimentos de sua história? Trata-se de sua própria história. Se utilizamos aqui a categoria de substância como fator que garante a identidade do indivíduo, temos que dizer que se trata da história da substância que o constitui. Tudo concerne, portanto, à substância, que é o indivíduo. Ora, concernir é uma determinação e com isso uma mudança na ou da substância, o que significa dizer, contra o pressuposto, que a substância não é a mesma, uma vez que, se ela permanecesse a mesma, intocada pela história do indivíduo, então a história do indivíduo não seria a história do indivíduo. Isso significaria separar a história do indivíduo do próprio indiví­ duo, o que significa dizer que ele deixaria de ser o homem real; portanto, 130 Cf. IMAGUIRE, G. “A Substância e suas alternativas: feixes e tropos”, In: IM AGUI­ RE, G.; ALMEIDA, C. L S. de; OLIVEIRA, M. A. de (orgs.). Metafísica Contemporânea. Petrópolis: Vozes, 2007, p. 276: “A independência ontológica está correlacionada com outra noção fundamental, a saber, a noção da mudança e da identidade transtemporal: a substância tem a capacidade de manter sua identidade e individualidade mesmo trocando algumas de suas propriedades com o passar do tempo”.

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esse quadro ontológico não é adequado para captar e articular a realidade de indivíduos enquanto seres humanos, apesar de esse quadro ontológico há mais de dois mil anos ter estado presente na linguagem normal e nos hábitos de pensamento do homem ocidental, filósofos ou não filóso­ fos. A conseqüência que se impõe a partir desses argumentos é que "a estrutura das sentenças qualificáveis como filosoficamente adequadas não pode mais assumir a forma de sujeito/predicado”;131 numa palavra, impõe-se o abandono da semântica composicional e com ela também a linguagem entendida como o conjunto das sentenças com a forma de sujeito/predicado, em virtude de suas implicações relativas à ontologia a ela correspondente, a ontologia da substância. Isso implica a tarefa de articular outra linguagem sem a estrutura sentenciai de sujeito/predicado, ou seja, uma linguagem isenta de ter­ mos singulares (sujeitos) e termos universais (predicados); portanto, uma concepção de linguagem inteiramente nova com uma semântica inteiramente nova que deve excluir radicalmente uma entidade como a da substância. Trata-se aqui exclusivamente de uma “questão semântica” com seu correspondente ontológico, ou seja, o que está aqui em jogo não é a forma sintática das sentenças (sobretudo as que têm a forma sujeito/predicado), mas unicamente “como tais sentenças deveriam ser interpretadas na perspectiva filosófica e para propósitos filosóficos V 32 o que implica dizer que, se são empregadas sentenças com a forma sujeito/ predicado, a filosofia as encara como abreviações cômodas de uma grande quantidade de sentenças que não possuem essa estrutura. 5.3.4 Um passo importante, embora insuficiente, para a elaboração da nova semântica e da nova ontologia: a eliminação dos termos singulares em Quine Como diz Puntel: Anteriormente a Quine, Russell já havia desenvolvido um procedimento lógico semântico para clarificar as ambigüidades e perplexidades de fenôme­ nos como as descrições definidas. Tais desenvolvimentos lógico-semânticos são o resultado da decisão de transformar significativamente a compreensão filosófica da linguagem natural.133

131 Cf. PU N TEL, L. B. Estrutura e Ser. Op. cit., p. 258. 132 Cf. ibidem, p. 268. 133Cf. PU N TEL, L. B. “O conceito de categoria ontológica; um novo enfoque” . Kriterion, vol. XLII, n. 104, 2001, p. 15. Cf. a respeito de Russell: PEN CO , C. Introdução à Filosofia da Linguagem. Op. cit., p. 70-74. IM AGUIRE, G. Russells Fühphilosophie. Propositionen, Realismus und die sprachontologische Wende. Hildesheim/Zurique/Nova York: Georg Olms Verlag, 2001, p. 182 e ss.

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Quine parte de uma tese muito importante para a realização dessa tarefa que ele considera uma revolução na semântica: “ a primazia se­ mântica da sentença”, que se concretiza na afirmação de que o veículo primordial do significado não é mais identificado com a palavra, mas com a sentença.134 A conseqüência para a filosofia dessa tese básica foi mostrada através do procedimento de eliminação dos termos singulares, que é um passo importante, embora Quine não tivesse explicitamente o objetivo de buscar a elaboração de uma nova semântica e uma nova ontologia.135Seu objetivo era elaborar um instrumento lógico-semântico na perspectiva de clarificar o problema posto pelo fato de alguns termos singulares não possuírem referência real.136 O procedimento consiste basicamente em deslocar os termos singulares para a posição do termo universal, do predicado, o que ele faz transformando as sentenças em que aparecem termos singulares em sentenças às quais é anteposto um quantificador que liga variáveis indi­ viduais. O resultado é que os termos singulares não aparecem mais como termos singulares, “mas as sentenças quantificadas, nas quais aparece o novo termo geral como predicado, articulam aquilo que teria sido a função dos termos singulares se estes não tivessem sido eliminados”.137 Com isso desaparece por si mesmo o problema de onde ele partiu. Por essa razão, o procedimento não conduz a qualquer reformulação da ontologia pressuposta: o que acontece aqui é apenas um deslocamento da função semântica do plano dos termos singulares para o plano das variáveis - só pode ocorrer referência a objeto na medida em que eles aparecem como valores de variáveis ligadas. O que Quine faz, então, é elaborar um procedimento técnico para eliminação dos termos singulares, reformulando as sentenças de tal modo que, na sentença reformulada, não se trata propriamente de referência de um termo singular (ou nome próprio) a qualquer objeto. Segundo Quine, a relação da linguagem à dimensão ontológica se faz unicamente através de sentenças que são os argumentos do quantificador existencial; mais exatamente: os “objetos” como entidades ontológicas são os valores que as variáveis ligadas pelo quantificador existencial assumem e articulam. 134 Cf. Q U IN E, W. O. v. Theories and Things. Cambridge (MA)/Londres: Harvard University Press, 1981, p. 69. 135 Cf. PU N TEL, L. B. Grundlagen einer Theorie der Wahrheit. Op. c i t p. 193-199. 136 Cf. PEN CO , C. Introdução à Filosofia da Linguagem. Op. cit., p. 71: “ Como ponto-chave de sua alternativa a Frege e a Meinong, Russell defende a tese pela qual o significado de um nome próprio se reduz ao fato de se referir a um objeto. Mas os nomes próprios da linguagem natural não desempenham essa função justamente por não darem garantia de se referirem a um indivíduo. [...] que outra função desempenham? [...] os nomes próprios da natural são abreviações de descrições definidas” . I,? Cf, PUNTEL, L. B. Estrutura e Ser. Op. cit., p. 261.

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Na realidade, ele pressupõe aqui o quadro teórico semântico-ontológico da tradição (que não é questionado) - objetos que têm propriedades e estão em relação uns com os outros mas esses objetos não são mais considerados como as entidades, às quais se referem os termos singulares, isto é, os sujeitos das sentenças, mas são antes considerados como os valores das variáveis ligadas. Para Puntel, o procedimento de Quine deve ser interpretado como uma tentativa de superar a forma sujeito/predicado da linguagem na­ tural, mas permanece incompleto e inconseqüente. Em primeiro lugar, seu procedimento é parcial, porque todo ele tem como objetivo apenas enfrentar um problema parcial - o problema da não referencialidade de alguns termos singulares -, e não o quadro teórico semântico-ontológico a ele subjacente. Daí por que está em jogo aqui não um repensamento do quadro teórico da tradição, mas apenas a elaboração de um artifício lógico-semântico que deixa esse quadro intocado. Puntel aponta para uma incoerência sutil no procedimento de Quine, que consiste basicamente em transformar o termo singular em um termo geral. A pergunta que aqui emerge é: “Sob que condições pode ser considerada satisfeita a pressuposição na qual essa posição se baseia?” .138A pressuposição aqui é que para poder enunciar um determi­ nado predicado de qualquer coisa, ou seja, do valor das variáveis ligadas x, essa coisa, a saber, esse valor de x, deve poder ser identificado. Como é possível isso se nada determinado consta a respeito do valor de x? Ora, falar de algo que só se pode identificar como determinado unicamente como valor ontológico das variáveis ligadas x é dizer pura e simplesmente nada. Para haver determinação aqui, seria necessário explicitar o grande espaço ontológico em que essa coisa está situada. Por outro lado, a posição de Quine é também marcada por outra incoerência sutil. Por que Quine só aceita uma redução de termos singulares ou de nomes a predicados? Por que ele exclui a possibilidade de os termos singulares serem reduzidos ou traduzidos em sentenças, como faz a filosofia estrutural sistemática? 5.3.5 Traços básicos da semântica alternativa: a semântica contextual 5.3.5.1 Elementos de uma teoria da sentença Como foi visto, a sentença é a unidade lingüística originária e central. Uma sentença só pode ser compreendida através da tematização de suas dimensões ou níveis: a sintática, a semântica e a pragmática. 138 C f. P U N T E L , L . B. Estrutura, e Ser. Op. cit., p. 263.

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Enquanto uma formação semiótica, ela é em primeiro lugar uma for­ mação de signos que possui uma estruturalidade sintática, na medida em que os signos possuem certa vinculação entre si. A estruturalidade semântica significa que, enquanto uma formação de signos, a sentença expressa algo, possui um valor que por essa razão se denomina “valor semântico” . Por fim, a sentença está em relação com instâncias que a proferem. A condição mínima para que se possa falar em atividade semântica é que esteja vinculado um valor semântico com as expressões utilizadas. Para Puntel, uma tese central139de sua concepção da semântica diz respeito a duas formas irrenunciáveis de valor semântico das expressões lingüísticas: o valor semântico informacional e o valor semântico fun­ cional, o que significa dizer que os conceitos "informação” e "função” (no sentido estritamente matemático) são de importância decisiva para a explicação do valor semântico. Nesse contexto, importa-nos o valor semântico informacional. Quando usamos expressões lingüísticas, de modo significativo nos relacionamos com algo. Pode-se exprimir isso dizendo que as expressões lingüísticas designam algo, no caso das sentenças afirmarem algo. Esse algo é hoje normalmente denominado “conteúdo informacional”, pois a linguagem é fundamentalmente (ou pelo menos também) “informativa”, de tal modo que as expressões lingüísticas possuem fundamentalmente um valor semântico informacional. As concepções que interpretam a linguagem exclusivamente a partir da dimensão pragmática entendem a linguagem enquanto “jogo” e o valor semântico enquanto determinado exclusivamente pelo uso das expressões lingüísticas. Assim, numa perspectiva pragmática, a referência a um jogo de linguagem é essencial, o que significa dizer que o significado lingüístico não sé esgota na esfera da semântica. Como diz Zilhão,140 [...] só no interior dos jogos de linguagem correspondentes é que determina­ das expressões, mesmo quando apresentam uma estrutura formal declarativa, adquirem o caracter de "pensamentos” e “proposições”, isto é, a sua simples aparência formal, considerada independentemente do uso que elas tenham num contexto determinado, não nos autoriza a classificá-las de acordo com qualquer categoria.

Por essa razão têm, para Puntel, dificuldades em reconhecer o valor informacional semântico e situá-lo numa teoria adequada da sentença. 139 Cf. PU N TEL, L. B. Grundlagen einer Theorie der Wahrheit. Op. cit., p. 67 e ss. 140 Cf. ZILH ÃO, A. Linguagem da filosofia e filosofia da linguagem. Estudos sobre Wit­ tgenstein. Lisboa: Edições Colibri, 1993, p. 204.

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O valor informacional primário é o valor informacional semântico da sentença declarativa, já que ela é a unidade lingüística primária, e seu papel semântico fundamental consiste em expor informação. O setor central de informação é o valor informacional da sentença, ou seja, a “proposição”, o que significa dizer que os valores de informação das outras expressões lingüísticas se definem em relação à proposição. No debate contemporâneo, há duas propostas básicas para a compreensão do que seja a proposição:141 a) a proposição é o expresso da sentença declarativa; b) a proposição é o objeto das assim chamadas atitudes pro­ posicionais ou intencionais. No contexto de uma semântica contextual, como ela é defendida aqui, uma proposição é o expresso de uma sentença prima declarativa, ou seja, é seu conteúdo informacional. 53.5.2 O princípio do contexto A articulação da nova semântica parte da introdução de um novo princípio semântico que foi exposto em diferentes formulações por Frege142 em seu livro Die Grundlagen der Aritkmetik de 1884, e deno­ minado por M. Dummett "princípio do contexto”: "Somente no con­ texto de uma sentença as palavras significam algo”.143Aqui não se trata do contexto no sentido pragmático, mas a própria sentença constitui o contexto em questão.144 Há atualmente uma controvérsia sobre sua interpretação e seu papel sobretudo na obra posterior de Frege, e um debate a respeito de seu papel como um princípio semântico ou como uma regra metodológica.145 Hoje muitos autores defendem esse princípio como expressão da tese do “primado semântico da sentença” na linguagem, mas uma 141 Cf. PUNTEL, L. B. Estrutura e Ser. Op. cit., p. 270. Cf. M URCHO, D. "Proposição”. In: BR A N Q U IN H O , J.j M U RCH O , D.; GOM ES, N. G. (orgs.). Enciclopédia de termos lógico-filosóficos. Op. cit., p. 628. IMAGUIRE, G. “ Proposição, argumentos e teorias da”. In: BR A N Q U IN H O , J.; M U RCH O , D.; GOMES, N. G. (orgs.). Enciclopédia de termos lógico-filosóficos. Op. cit., p. 628-631. 142 Cf. PEN C O , C. Introdução à Filosofia da Linguagem. Op. cit., p. 62-63: “ Frege discute dois contraexemplos de sua teoria: o discurso entre aspas e o discurso indireto não respeitam composicionalidade e substitutividade. [...] Frege resolve o problema com um lance original, utilizando um princípio por ele definido em seus primeiros escritos: o princípio de contextualidade” . 143 Cf. PU N TEL, L. B. Estrutura e Ser. Op. cit., p. 265. 144 Cf. BRAIDA, C. R. F. “ Linguagem e análise lógico-semântica” . In: Filosofia e Lin­ guagem. Op. cit., p. 123: “ Em termos mais técnicos, o que o princípio do contexto diz é que a função, o conteúdo e o valor semântico de uma palavra são determinados pelo lugar que a palavra ocupa na estrutura frasal, não fazendo sentido perguntar pelo significado de uma palavra isoladamente, como sugerem os dicionários” . 145 A respeito de seu papel como um princípio semântico, cf. DUMMETT, M. The Interpretation o f Frege ’s Philosophy. London: Duckworth, 1981; ou como uma regra metodológica, cf. CURRIE, G. Frege, An Introduction to His Philosophy. Sussex: The Harvester Press, 1982. Cf. PU N TEL, L. B. Grundlagen einer Theorie der Wahrheit. Op. cit., p. 138 e ss.

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questão central nesse contexto é que normalmente os dois princípios são apresentados como princípios semânticos básicos sem que minima­ mente emerja a questão a respeito de sua mútua compatibilidade. Essa é a versão fraca do princípio. Para Puntel, é a aceitação não questionada da compatibilidade dos dois princípios que leva, em alguns autores, a teses completamente incompreensíveis sem essa pressuposição - como, no caso de Quine, à tese da inescrutabilidade da referencia e, no caso de Davidson, à tese do dilema da referência.146 Para Puntel, ao contrário, uma comparação entre os dois princí­ pios revela claramente seu caráter incompatível, e essa interpretação é a versão forte do princípio.147O argumento central aqui é que o princípio de composicionalidade atribui prioridade aos valores semânticos dos subcomponentes da sentença que, por pressuposição, podem e devem ser identificados antes da identificação do valor semântico da sentença; é precisamente o oposto do que é afirmado pelo princípio do contexto, ou seja, que é o valor semântico da sentença que determina e explica os valores semânticos dos componentes da sentença. Assim, a versão forte do princípio do contexto parte da tematização da estruturalidade da sentença. A tese básica aqui é que o primado semântico da sentença implica uma estruturalidade semântica da sentença que não pode ser concebida composicionalmente, supondo-se uma concepção funcional da composicionalidade. A razão é que, numa concepção funcional, a composicionalidade é compreendida como o valor de uma função,548 e os valores semânticos dos componentes da sentença são compreendidos como os argumentos de uma função. Ora, os argumentos de uma função são dados e deter­ minados antes e independentemente do valor da função. Portanto, se se entende composicionalmente a estruturalidade de uma sentença e com isso seu valor semântico, então os valores semânticos dos componentes da sentença são dados e determinados antes e independentemente de sua ocorrência numa sentença, o que se contrapõe radicalmente à tese do ’46 Cf. PU NTEL, L. B. Estrutura e Ser. Op. cá., p. 265. 147 Cf. idem. “Uma versão forte do princípio do contexto (Frege)” . In: D E BO NI, L. A. (org.). Finitude e Transcendência. Festschrift em Homenagem a Ernildo J. Stein. Petrópolis/ Porto Alegre: Vozes/Edipucrs, 1996, p. 371-387. 148 Trata-se aqui de um tipo particular de relação. Cf. LO U R EN Ç O , M. S. “ Função” . In: BR A N Q U IN H O , J.; M URCH O, D.; GOMES, N. G. (orgs.). Enciclopédia de termos lógico-filosóficos. Op. cit., p. 365-366: “Uma função unária é uma correspondência por meio da qual a um objeto, o argumento da função, se associa um outro objeto, único, chamado o valor da função para esse argumento. [...] aqueles objetos que são argumento de uma função constituem o seu domínio, e os valores que a função toma para esses argumentos são o seu contradomínio” . MORTARI, C. A. Introdução à lógica. São Paulo: Ed. UNESP/Imprensa Oficial do Estado, 2001, p. 53-55.

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primado da sentença. Isso significa dizer que, de acordo com o princípio de composicionalidade, em primeiro lugar se estabelece o valor semântico dos constituintes subs entendais singulares, e só então sua combinação enquanto o valor semântico total da sentença. Na perspectiva de uma concepção contextual, a ideia básica é que a sentença é compreendida como um todo configurado a partir de onde prioritária e exclusivamente são compreendidos e explicados os componentes subsentenciais. Portanto, rejeita-se aqui a ideia da com­ posição de sujeito e predicado como "explicação semântica” adequada da sentença e, consequentemente, a ideia de que o valor semântico de uma sentença é uma função de seus constituintes subsentenciais, o que não significa dizer que na filosofia não sejam mais empregadas senten­ ças com a estrutura sintática sujeito/predicado: o decisivo na filosofia, com foi mostrado, não é a sintaxe, mas a semântica. Afirma-se, com o princípio do contexto, que o valor semântico da sentença é o fator pri­ mário e determinante a partir de onde se determina o valor semântico dos componentes subsentenciais. Uma sentença, que é uma entidade lingüística, só pode ser compreendida e explicada se se assumir que ela possui um conteúdo informacional, isto é, que ela expressa uma proposição, que é uma en­ tidade não lingüística. Então, explicar os elementos sentenciais a partir da sentença como um todo significa dizer que tanto o termo singular como o predicado devem ser reinterpretados “de modo rigorosamente proposicional”, ou seja, seus valores semânticos são proposições ou configurações de proposições, de modo que eles devem ser compreen­ didos como abreviações de sentenças - pois, do contrário, eles teriam valores semânticos próprios independentemente de sua ocorrência em sentenças. Sentenças em que não há em sentido próprio (em sua interpretação semântica) nem o termo singular nem o predicado são denominadas por Puntel “sentenças primas”. Sua forma generalizante semiformalizada é: “é o caso que (p’\ Nessa fórmula aparece o velho predicado F, mas não mais como um universal que se aplica a diferentes substratos, mas na forma de uma sentença prima, isto é, tp. Portanto, é mantida a dimensão do universal, mas de forma transformada. Conhecemos alguns exem­ plos de sentenças desse tipo nas linguagens naturais como “ chove”, “enverdece” etc. Essas sentenças primas, como qualquer sentença, expressam um determinado conteúdo informacional, uma determinada proposição chamada de “proposição prima, que é aquela que expressa uma propo­ sição que não contém como componente nenhum objeto ou indivíduo pressuposto como já plenamente constituído. Objetos/indivíduos,

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plenamente constituídos, são configurações de proposições primas” .149 Com isso se exprime que se trata de uma proposição especial no sen­ tido de que ela não é compreendida no quadro teórico da semântica/ ontologia composicional. Aqui também há vários signos lingüísticos que são ligados entre si através de uma relação determinada; a relação do ser expresso, portanto, trata-se de uma estrutura semântica. Tomemos como exemplo a sentença: Sócrates é um filósofo. O nome Sócrates, que, no quadro do princípio de composicionalidade, é interpretado como um termo singular que designa um objeto no mundo - no caso a pessoa Sócrates, que tem propriedades e relações é reinterpretado como abreviação de sentenças primas da forma: é o caso que grego, é o caso que nascido em 469 a.C., é o caso que mestre de Platão etc. O predicado “é um filósofo" é interpretado semanticamente com a sentença prima: é o caso que filósofo. A transformação da sentença como um todo resulta numa sentença prima altamente complexa que articula as sentenças primas abreviadas através do nome Sócrates, e a sentença prima abreviada da qual o predicado é um filósofo é uma abreviação. Quando essas sentenças são verdadeiras, isso significa que elas expressam cada vez uma proposição verdadeira, e a conjunção de todas essas sentenças primas verdadeiras expressa a conjunção de todas as proposições primas verdadeiras expressas através das sentenças primas verdadeiras. Na realidade, o que aqui se fez foi a articulação das estruturas semânticas básicas que são condição de possibilidade para a efetivação da tarefa a ser empreendida de articular as novas estruturas ontológicas básicas. Uma estrutura é um conjunto de dados (ou entidades de qualquer tipo) e um conjunto de relações (ou funções) a respeito desses dados, o que é o caso no que diz respeito a sentenças primas, proposições primas e fatos primos. Uma sentença prima consta de um ou mais signos lingüís­ ticos que estão vinculados entre si através de uma determinada relação, a relação do exprimir, e com isso estão estruturados. Uma sentença prima, como toda sentença, é caracterizada pelo fato de que ela pode expressar um conteúdo informacional (uma proposição). A proposição, por sua vez, pressupõe um conjunto de signos lingüísticos vinculados entre si por uma relação determinada: a relação do ser expresso, o que se pode dizer igualmente dos fatos primos. Uma questão importante posta aqui diz respeito às condições de identidade das proposições. Para Puntel se faz necessário distinguir entre condições semânticas e ontológicas, e a indicação das condições responde a uma dupla pergunta: com que critérios se pode dizer que duas

149 Cf. PUNTEL, L. B. Grundlagen einer Theorie der Wahrheit. Op. cit., p. 192.

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ou mais sentenças expressam a mesma proposição? Sob que condições duas ou mais proposições primas são idênticas? A primeira pergunta se decide na base da compreensão da relação entre linguagem e mun­ do. A semântica que foi apresentada rejeita uma relação “ solta” entre linguagem e mundo, de tal modo que nessa concepção cada ocorrência sentenciai individual expressa uma proposição prima individual própria. A compreensão adequada dessa tese exige que sejam considerados três aspectos: a) Essa tese parece ser negada pela comunicação comum entre falantes, pois aqui tudo indica que duas ou mais sentenças ex­ pressam uma e mesma proposição. Haveria verdadeiramente comunicação se não fosse assim? Para Puntel a comunicação de modo algum pressupõe proposições idênticas no sentido estrito. As proposições expressas em diferentes ocorrências de sentenças num processo de comunicação não são propriamente idênticas num sentido estrito, mas possuem, na linguagem de Wittgenstein, uma "semelhança de família” que admite muitos graus abaixo de identidade em sentido estrito. b) A tese tem de ser vista como conseqüência direta de uma das teses fundamentais dessa proposta teórica que é a tese da interconexão rigorosa entre linguagem e mundo, já que ambos estão inseparavelmente relacionados, dada a expressabilidade do ser enquanto tal, que implica a relação conversa com a instância expressante, ou seja, com a linguagem em sentido abrangente. c) É necessário distinguir com clareza o plano sintático-gramatical e o plano semântico. Como foi mostrado, a eliminação das sentenças com a forma sujeito/predicado se dá exclusivamente no plano semântico, de modo que as sentenças da linguagem normal nessa forma devem ser semanticamente entendidas como abreviações de um conjunto de sentenças primas. A segunda questão dizia respeito à identidade de duas proposi­ ções primas. Nesse contexto se faz necessário distinguir entre pro­ posições primas simples e complexas, ou seja, a configuração de pro­ posições primas. Para enfrentar essa questão, a proposta é recorrer aos princípios de Leibniz - a identidade dos indiscemíveis e o prin­ cípio da indiscernibilidade do idêntico lendo-os à luz da semântica contextual.150

150Cf. PUNTEL, L. B. Estrutura e Ser. Op. cit., p. 274. Cf. nesse livro as considerações sobre esses princípios no capítulo sobre a substância.

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5.3.6 A ontologia contextual: o mundo enquanto a totalidade dos fatos primos configurados com extrema variedade e complexidade Puntel reconhece na filosofia analítica contemporânea uma cor­ rente importante que manifesta a pretensão de superar a ontologia da substância e articular um quadro ontológico novo, a "teoria dos feixes”. Seu problema fundamental é que ela assume simplesmente a semântica composicional com as sentenças da estrutura sujeito/predicado sem a consciência clara de que essa semântica implica a ontologia da substân­ cia que ela pretende superar, o que significa que ela é marcada por uma incoerência interna. A concepção sistemático-estrutural se distingue radicalmente da concepção tradicional, a começar pelo papel absolutamente central exercido pela linguagem na filosofia. Em segundo lugar, faz-se a crítica da semântica tradicional por ela implicar conseqüências inaceitáveis, o que conduz à rejeição das sentenças semanticamente interpretadas com a estrutura sujeito/predicado. Em terceiro lugar, constrói-se uma nova semântica com sentenças sem essa estrutura que são denomina­ das sentenças primas. Essas sentenças, como toda sentença declarativa ou teórica, expressam um conteúdo informativo a ela correspondente que por isso se denomina proposição prima: nessa proposição não há propriamente um sujeito (termo singular, nome próprio) como fator semanticamente relevante. A tese básica da filosofia sistemático-estrutural é que uma propo­ sição prima verdadeira é idêntica com uma entidade do mundo, o que significa dizer que aqui a única espécie de “referência” semântica (ao mundo) é uma característica das sentenças primas, o que significa dizer que é a partir dessa base que se pode esclarecer a dimensão ontológica.151 Essa entidade do mundo é denominada um fato primo precisamente para significar que fato primo não contém nada como um sujeito, uma substância no sentido de uma entidade x que possui propriedades. Essa é, nessa filosofia, a única categoria ontológica aceita em nível mais fundamental; portanto, trata-se aqui decididamente de uma “ontologia monocategorial”, e sua categoria básica é, consequentemente, universal, ou seja, expressa a categorialidade básica de toda e qualquer entidade. Evidentemente não se trata aqui de universal no sentido do esquema semântico-ontológico composicional, pois no novo esquema não pode haver lugar para universais assim compreendidos. Antes, isso signifi15' Cf. PUNTEL, L. B. O Conceito de categoria ontológica: um novo enfoque. Op. cit., p. 30: “ O enfoque proposto para uma nova concepção do conceito de categoria ontológica apoia-se fundamentalmente em considerações de caráter semântico”.

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ca dizer que a filosofia sistemático-estrutural usa a expressão “fato” para significar todo e qualquer elemento do mundo, da realidade, do ser em seu todo. Assim, questões como a dos universais/particulares, exemplificação, instanciação, individuação simplesmente desaparecem, por serem questões que só têm sentido no interior do quadro teórico composicional. Um exemplo recente de uma ontologia monocategorial articulada, porém, sem consideração explícita da linguagem, é a proposta de Chalmers. Sua categoria básica é a de “informação” entendida não como uma noção semântica, mas formal ou sintática. Informação é pensada como um estado selecionado a partir de um conjunto de possibilidades, de tal modo que espaços informacionais são pensados como uma estru­ tura básica de relações de diferença entre estados. A tese básica dessa ontologia é: tudo é informação, o mundo é puro fluxo informacional, um mundo de diferenças primitivas e de relações causais e dinâmicas entre essas diferenças. A ontologia tradicional reconhecia como entidades as substân­ cias/objetos, as propriedades/relações e os fatos. Hoje são reconhe­ cidas outras entidades como processos, eventos etc. Nessa ontologia, um fato é aquela entidade que resulta da vinculação de um objeto/ substância com uma propriedade/relação e, enquanto tal, é uma en­ tidade secundária ou derivada das entidades básicas que, juntamente com a ontologia em que ocorre, é inaceitável. Para Puntel,152 o fato de aceitar uma única categoria ontológica não impede de reconhecer três especificações dessa categoria, a saber: enquanto subespécies ou tipos de fatos primos; enquanto redução de certos tipos de fatos primos a outros; e, por fim, mostrando que fatos primos simples são membros de configurações. Os fatos primos podem ser simples ou complexos, e configurações de fatos primos simples ou complexos, por sua vez, são fatos primos complexos.153 Assim, todas as entidades do mundo são configurações de fatos primos, ou seja, configurações de “uma única e originária cate­ goria de entidade” .154 Os fatos primos constituem a entidade originária precisamente na medida em que as outras entidades são compreendidas como configurações de fatos primos. “Sócrates” é a configuração de todos os fatos primos que são idênticos com as proposições primas 152Cf. PUNTEL, L. B. O Conceito de categoria ontológica: um novo enfoque. Op. c i t p. 23. 153 Cf. ibidem, p. 28: “ Esse ponto é exatamente análogo ao bem conhecido fato da lógica sentenciai (ou lógica proposicional) de que uma conjunção de sentenças (ou proposições) é também uma sentença (proposição), mas uma sentença (proposição) complexa” . 154 Cf. PU N TEL, L. B. Grundlagen einer Theorie der Wahrheit. Op. cit., p. 223.

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verdadeiras, que são expressas através das sentenças primas abreviadas pelo nome Sócrates. Temos de distinguir toda uma série de fatos primos de diferentes formas: estáticos, dinâmicos, processuais, eventuais; em outra perspectiva: físicos, espirituais, abstratos, concretos etc. Dessa forma, podemos dizer que o mundo é a totalidade dos fatos primos configurados em extrema variedade e complexidade. Numa palavra, há tantos tipos de fatos primos quanto tipos de entes. A primeira questão aqui é a respeito da compreensão dos fatos primos simples. Para Puntel, o ponto de partida nesse contexto é que um fato primo simples, com base no que foi exposto, não deve ser pen­ sado como isolado ou atômico - ou seja, totalmente encapsulado em si mesmo mas em si mesmo estruturado, isto é, determinado por uma rede de relações ou funções. Numa palavra, ele é em si mesmo essa rede de relações - portanto, uma estrutura prima ontológica. Para o esclarecimento dessa questão, oferecem-se, para Puntel, três possibilidades: a) O conjunto de suporte considerado como estrutura vazia. Tratar-se-ia de conceber os fatos primos simples enquanto estruturas ontológicas de aridade 0 que constituiriam o ponto de partida de uma série. A referência possível aqui é ao conceito de conjunto vazio ou zero.155 No entanto, a proposta é marcada por muitas dificuldades. Antes de tudo é necessário levar em consideração que, numa perspectiva lógica, as diferenças fundamentais que existem entre conjuntos 0 e estruturas 0, sobretudo porque existe apenas um conjunto vazio, e não existe, no sentido explicado, apenas uma estrutura 0. b) Indicação de uma relação ou função que diz respeito somente a um fato primo simples. No caso em questão, seria a relação de autoidentidade que se pode articular por meio da relação lógica de identidade ou por meio da função de identidade. Des­ se procedimento resultaria que, se o fato simples fosse com­ preendido como determinado, ele seria compreendido como idêntico a si mesmo. Aqui se efetiva a definição do conceito de estrutura de modo claro através de uma dupla restrição: a do conjunto de suporte A ao conjunto unário que é o fato primo em tela; e a do conjunto de funções/operações ao conjunto unário da função de identidade. Assim, o conjunto de relações seria vazio. 155 Cf. neste livro, no capítulo sobre as teorias dos acontecimentos/processos, a proposta de A. Badiou de entender a teoria dos conjuntos como a ontologia, e o papel desempenhado pelo conceito de conjunto vazio.

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c) Aplicação análoga de um procedimento elegante utilizado por Quine para responder à questão de como se deve interpre­ tar y e z. Sua solução é extremamente simples: o enunciado é verdadeiro ou falso dependendo se y=z ou y*z. Desaparece aqui o problema surgido com a aplicação da lei da extensionalidade aos indivíduos y e z. Essa interpretação, para Quine, também é acertada quando y for um indivíduo e z uma classe com um único elemento y. Como se dá a aplicação análoga ao caso da estrutura prima ontológica simples? No caso de uma estrutura não se trata do símbolo í, mas da relação entre os dois membros de um (simplificando) par ordenado. E a relação da ordenação fixa que, no caso da estrutura prima ontológica simples, é uma relação de identidade. Fundamental nesse contexto é, para Puntel, o fato de que uma estrutura prima ontológica simples pode ser articulada de diversos modos: de modo minimal, parcial ou maximal. A estrutura ontológica simples constitui o caso mínimo de determinação: um fato primo en­ quanto tal é uma entidade simples em sentido estrito. Ele constitui o caso de uma estrutura minimal, na medida em que se trata aqui de um "dado” que é ligado a si mesmo através da relação de autoidentidade. Aqui, dado e relação são o mesmo, de tal modo que se deve dizer que se trata de um dado que é idêntico a si mesmo ou de uma entidade estruturada pela relação de autoidentidade. A determinação se reduz a essa própria entidade simples, sua única determinação é a relação de autoidentidade. Essa estrutura pode estar inserida dentro de uma estrutura prima ontológica complexa, ou seja, numa configuração. Aqui se revela um traço fundamental da nova ontologia: a substância (entendida como ente singular, coisa singular) da ontologia tradicional não é aqui sim­ plesmente substituída por um fato primo simples, ou seja, por uma estrutura ontológica prima, mas é pensada enquanto uma configuração de fatos primos simples e complexos. Numa palavra, uma configura­ ção se constitui seja unicamente de fatos primos simples, seja de fatos primos já complexos, o que significa dizer que essa ontologia só aceita um único tipo de entidade, os fatos primos que são pensados como estruturas ontológicas primas. Por sua vez, uma configuração é o fato primo supremo ou a estru­ tura ontológica prima suprema quando ela “configura”, ou seja, estrutura outras estruturas ontológicas primas simples ou complexas de forma completa e definitiva - por exemplo, as chamadas entidades concretas ou o indivíduo concreto, como é o caso de um animal e, sobretudo, do ser humano. É essa teoria das configurações que supera as aporias

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da ontologia da substância. A seqüência de configurações pode atingir graus cada vez mais complexos e variados até sua acomodação dentro da estrutura abrangente do universo, ou seja, o ser em seu todo como estrutura prima ontológica abrangente. Uma configuração é um fato primo complexo, ou seja, ela pressupõe uma pluralidade de elementos - portanto, de fatos primos - de tal modo que a questão básica aqui é como compreender essa complexidade. Para Puntel, três instrumentais formais se apresentam como propostas para compreender essa complexidade: a) A teoria dos conjuntos. O conceito de conjunto possui hoje uma aplicação universal em todas as ciências formais. Quando se fala, por exemplo, de um amontoado, pode-se falar de conjunto para exprimir de forma mas precisa a configuração que aqui está em jogo - ou seja, coisas deitadas umas sobre outras, um monte de coisas -, de tal modo que ele expressa mais exatamente a forma de configuração em questão. Em outros tipos de configuração, como conglomerados, seres vivos, pessoas humanas, revela-se a inadequação dessa categoria para expri­ mir essas formas de configuração, de modo que ela mostra sua pobreza conceituai para realizar a tarefa em jogo. A teoria dos conjuntos156 foi propriamente elaborada por Cantor,157 que, contudo, articulou apenas uma definição intuitiva do que seja um conjunto, já que nessa definição os conceitos principais empregados permanecem totalmente indeterminados* Um avanço foi alcançado através do princípio de compreensão que se pode con­ siderar como princípio de formação de conjuntos e como critério de adequação de uma definição do conceito de conjunto. Em versão for­ malizada, o princípio irrestrito de compreensão tem o seguinte teor: 3yV x(x € y X T+: P per p € 2 Aqui Y é o conjunto de persentenças ou perproposições pPER no sentido elucidado; 2 é o conjunto de sentenças ou proposições p com­ pletamente determinadas, que resultam cataforicamente das persentenças ou perproposições Pper. c) A terceira função Tx articula a referência “ontológica” que é analisada no tópico seguinte. 5.3.5.7 A dimensão ontológica da verdade Como vimos, o argumento fundamental do operador de verdade é a proposição prima expressa pela sentença prima, o que faz com que a definição da verdade de uma sentença prima seja dependente da ver­ dade da proposição prima expressa pela sentença. Numa palavra, uma sentença prima é verdadeira na medida em que expressa uma proposição prima verdadeira. A questão, então, central aqui é saber o que é uma proposição prima verdadeira. A tese fundamental de Puntel aqui é: uma proposição prima ver­ dadeira é simplesmente idêntica a um fato mundano, um componente do mundo real. A entidade expressa pela sentença prima, a proposição prima, possui dois estatutos: um subdeterminado e um completamente determinado. O estatuto completamente determinado de uma sentença prima qualificada como verdadeira é uma proposição prima qualificada como verdadeira, e isso agora no sentido de ser completamente deter­ minada. Mas esse estatuto da proposição prima verdadeira de ser com-

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píetamente determinada não é outra coisa que o estatuto de ser idêntica a algo que pertence ao mundo, isto é, a um fato primo. Portanto, não há aqui relação de correspondência se se entende correspondência como uma relação entre duas entidades distintas. Há aqui simplesmente identidade entre a proposição expressa por uma sentença verdadeira e um fato do mundo;177portanto, uma proposição prima completamente determinada é um fato primo do mundo. Se se entende identidade como o caso-limite de correspondência, então pode-se e deve-se dizer que há aqui uma correspondência. Assim, a formalização da terceira função é: (T3) T : Z - F T : p •->f e F Aqui Z é o conjunto das sentenças e/ou proposições p completa­ mente determinadas, e F o conjunto dos fatos (Facts), valendo: vp € Z, vf e F (f = T'(p) Hp = f) Como resultado, o conceito de verdade completo (CVC) deve ser formulado como a composição das três funções explicadas: (CVC) T = T o T +o T No entanto, essa proposta não pode ser simplesmente considerada uma teoria da verdade-como-identidade, uma vez que a identidade é apenas um momento da verdade, ou seja, a terceira das funções da ver­ dade, a função ontológica. Essa função preserva a ideia central da teoria da correspondência: a referência ao mundo como elemento essencial da verdade. A ideia da identidade da proposição prima verdadeira e o fato primo articula explicitamente a relação entre linguagem e mundo, contrapondo-se, portanto, a uma concepção muito aceita, segundo a qual proposições são entidades rigorosamente mentais que se distinguem radicalmente dos fatos que são entidades mundanas. As duas esferas são pensadas aqui como radicalmente distintas, o que ê expressão de uma concepção hegemônica na modernidade de que linguagem e mundo constituem dois campos completamente heterogêneos e totalmente independentes um do outro. Nesse contexto, a teoria correspondencial da verdade emerge como uma tentativa de efetivar uma comparação e uma relação mútua entre os dois campos, o que implica problemas insolúveis. A questão que se põe agora é a respeito de como se deve pensar essa identidade entre uma proposição prima verdadeira e um fato primo do mundo. Normalmente os teóricos da identidade a pensam na ótica 177 Cf. BRANDOM, R. B. Making it Explicit. Op. cit., p. 327-333.

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da ontologia substancialista que pensa o mundo como constituído por objetos, propriedades e relações. Para Puntel, uma questão decisiva aqui é que uma teoria da verdade que comporta a referência ontológica permanece vaga e, em última instância, inconvincente, enquanto a ontologia, de uma ou outra maneira reclamada ou pressuposta por ela, não for explicitada e examinada criticamente.178

A ontologia antes explicitada, cuja afirmação fundamental é que o mundo é a totalidade dos fatos primos como estruturas ontológicas expressáveis, corresponde plenamente à teoria da verdade aqui articulada. Puntel completa essa concepção de verdade com duas teses centrais de sua proposta teórica: em primeiro lugar, a tese de que todo enunciado teórico é proposto dentro e em conformidade com um determinado qua­ dro teórico; e, em segundo lugar, a tese da pluralidade de quadros teóri­ cos. Como vimos, um quadro teórico é o conjunto de todos os elementos pressupostos por qualquer atividade ou manifestação discursiva teórica. Um quadro teórico tem quatro elementos constitutivos essenciais: uma linguagem, uma sintaxe/semântica, uma lógica e uma ontologia. Todo e qualquer filósofo ou toda e qualquer corrente filosófica pressupõe esses elementos em cada discurso teórico. A primeira conseqüência aqui é que a verdade de toda sentença e de toda proposição possui uma relatividade intrínseca a um quadro teórico, o que é explicitado, em primeiro lugar, com a tese de “grau de verdade”:179 cada quadro teórico bem formado e constituído possui uma referência ontológica e, assim, um grau determinado de verdade. Dessa forma, o que é verdadeiro (respectivamente falso) num determinado quadro teóri­ co será considerado - pressupondo o princípio de bivalência - como falso (respectivamente verdadeiro) a partir de outro quadro referencial teórico - e não num sentido absoluto, isto é, sem referencialidade (a outro quadro respectivamente grau).180

Isso implica dizer que o fenômeno verdade é na realidade um grande complexo contendo muitas facetas e, acima de tudo, muitos graus. A 178 Cf. PU NTEL, L. B. Estrutura e Ser. Op. cit., p. 314. 179 Cf. PU NTEL, L. B. A unidade da filosofia e a pluralidade de correntes filosóficas: expressão da potencialidade criadora do pensamento, prova de autodesqualificação da filosofia ou problema solúvel/insolúvel? Porto Alegre (mimeo), 2013, p. 15. 180 Cf. PUNTEL, L. B. “ Observações críticas sobre uma resenha de Guido Imaguire da obra: Estrutura e Ser. Um quadro referencial teórico para uma filosofia sistemática”. Síntese, v. 40, n. 126, 2013, p. 50-51.

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pluralidade de quadros teóricos não deve, então, ser entendida como se se tratasse simplesmente de diferentes opções de igual estatuto teórico situadas num mesmo plano, sem diferença de estatuto ou grau. Antes, um grau de verdade não é igual a outro, ele é inferior ou superior. Numa palavra, não há verdade absoluta no sentido de uma verdade completa­ mente independente de um quadro teórico. Assim, a escala de graus de verdade corresponde à escala dos quadros referenciais. Portanto, “quadros referenciais teóricos bem formados e cons­ tituídos formam uma hierarquia com base nos critérios de teorici­ dade, inteligibilidade, coerência, abertura temática ilimitada e rigor expositivo”.181 Isso significa dizer que esses diferentes graus de verdade constituem partes de um enorme processo hierarquizado chamado verdade. Hierarquia nesse contexto significa que o quadro teórico mais alto engloba todos os quadros teóricos inferiores. Verdade ab­ soluta aqui significa uma verdade que é verdade em todos os quadros referenciais teóricos. E isso o que Puntel denomina o "relativismo moderado da verda­ de”, um relativismo semântico-ontológico que se diferencia profunda­ mente do relativismo total ou radical que se autodestrói, porque marcado por uma antinomia insuperável: “se toda verdade é relativa, também a verdade da tese do relativismo radical é relativa - desse modo, porém, ela anula a si mesma”.182 A antinomia se radica aqui no fato de que se entende o caráter absoluto da verdade - que o relativista rejeita e o não relativista considera absolutamente irrecusável - como sendo a verdade independente de qualquer quadro teórico. Ora, essa problemática de forma alguma atinge o relativismo moderado, uma vez que ele afirma que toda e qualquer verdade teórica possui uma referencialidade intrínseca a um quadro teórico. Quais as conseqüências dessa tese, do ponto de vista ontológico? Se quadros teóricos são modos em que se manifesta e articula o mundo em sua estruturalidade, então se faz necessário assumir diferentes níveis de estruturalidade ontológica. Para Puntel, esses diferentes níveis de estrutura enquanto estrutura do mundo devem ser interpretados como estando numa inter-relação muito especial, ou seja, na relação entre estrutura grossa e estrutura fina de uma mesma entidade. Trata-se aqui de uma “unidade plural de uma e mesma estrutura(lidade) básica”.183 Nesse contexto são propostos três pares de conceito como critérios 181 Cf. PUNTEL, L. B. A unidade da filosofia e a pluralidade de correntes filosóficas. Op. cit., p. 17. 182 Cf. idem. Estrutura e Ser Op. cit., p. 321. 183 Cf. ibidem, p. 543.

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para a avaliação dos pontos fortes e fracos da adequação ontológica dos quadros teóricos: a) Graus de profundidade. Está aqui em jogo a distinção entre estruturas (planos, momentos) de superfície e estruturas pro­ fundas. As de superfície são aquelas que são articuladas numa perspectiva particularista ou num quadro teórico particularista que são consequentemente tão restritas ou parciais quanto seus quadros. As profundas são as que são articuladas em quadros teóricos crescentemente universais. b) Texturalidade fina e grossa das estruturalidades. Esse par de conceitos completa a postura anterior na medida em que se percebe que as estruturas de superfície são as estruturas ime­ diatamente globais que, por essa razão, constituem como que a forma exterior ou a primeira forma aproxímativa do mundo; ou seja, são estruturas de textura grossa. Faltam aqui ainda a dife­ renciação, o detalhamento e a especificidade que constituem as características das estruturas de textura fina. Esses dois tipos de estruturas constituem um contínuo, de modo que não é possível estabelecer limites precisos entre eles. c) Graus de coerência. Nesse contexto, coerência não é determinada simplesmente como sendo o mesmo que consistência em sentido rigorosamente lógico - portanto, como ausência de contraditoriedade -, mas, de modo positivo, o que se faz através de dois fatores: em primeiro lugar, pela quantidade maior de aspectos ou momentos estruturais que se possa captar, e, em segundo lugar, pela totalidade de relações que interconectam esses elementos. É a partir daqui que se pode falar de uma adequação ontológica gradual, no sentido de dizer que a cada uma das diferentes linguagens teóricas maiores corresponde uma estrutura ontológica diferente; cada uma das quais, no entanto, repre­ senta uma forma maís adequada de autoapresentação de uma estrutura unitária compreensiva.184

5.4 VISÃO DE C O N JU N T O DA PROPOSTA DA FILO SO FIA SISTEM ÁTICO-ESTRUTURAL A filosofia se caracteriza por ser uma teoria das estruturas universais do “universo do discurso” ilimitado, o que implica integralidade da te­ mática e a demonstração do nexo entre todos os componentes temáticos; 184Cf. PUNTEL, L. B. Estrutura e Ser. Op. cit., p. 547.

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ou seja, ela é fundamentalmente uma teoria geral da realidade como um todo. Dessa forma, sua primeira tarefa vai consistir no esclarecimento do conceito de teoria em geral e da teoria propriamente filosófica, ou seja, trata-se da sistemática da teoricidade como a dimensão da exposição fi­ losófica. O conceito central nesse esclarecimento é justamente o conceito de "quadro referencial teórico” (ou modelo teórico, Theorierahmen), inspirado no conceito de quadro lingüístico {linguistic framework) de Carnap, uma vez que todo enunciado teórico, toda formulação de um problema, toda argumentação, toda teoria, só são compreensíveis e avaliáveis no contexto de um quadro teórico. Trata-se aqui especificamente da proposta de trabalho de um quadro teórico para a filosofia enquanto saber sistemático, ou seja, enquanto teoria das estruturas universais do “universo do discurso” ilimitado - portanto, da totalidade do ser. O objetivo de um projeto teórico é exprimir a compreensão de algo, ou seja, do conteúdo, da coisa em questão que, no caso da filosofia, recebeu diferentes denominações através da história do pensamento ocidental: ser, realidade, natureza, universo, mundo etc. Para Puntel, como vimos, justamente aqui se encontra um possível critério de clas­ sificação das diferentes posições filosóficas, uma vez que elas podem ser diferenciadas a partir da forma como pensam a relação entre a esfera do conceituai e a coisa a ser conceituada. A pergunta, então, é se o conceituai é determinado a partir da coisa a ser conceituada ou, ao contrário, a partir de duas posições extremas - que normalmente não encontramos nessa formulação radical de contraposição, mas em geral em formas mistas o que se pode mostrar até mesmo no pensamento de Kant, que em seu cerne se alicerça na dicotomia sujeito/objeto. A proposta de uma filosofia estrutural parte da compreensão de que, no começo do empreendimento teórico, a dimensão da coisa a ser conceituada é vazia, enquanto que nos é disponibilizada em primeiro lugar a dimensão do conceituai, pois tudo o que fazemos em nível teórico já se situa nela, sem o que nada pode ser articulado. Por essa razão a investigação dessa dimensão, a tematização de seus momentos constitutivos, enquanto o quadro para a conceituação da coisa em si mesma, é a primeira tarefa da filosofia. Puntel denomina a dimensão do conceituai de “dimensão estrutural” e nesse contexto ele entende “estrutura”185como uma conexão diferenciada e ordenada, consequente­ mente enquanto relação e ação recíproca de elementos de uma entidade, de uma região ou de um processo. A estruturalidade implica a negação do simples ou da falta de conexão, e, nesse sentido intuitivo originário,

185 Cf. PUNTEL, L. B. Estrutura e Ser. Op. cit., p. 34.

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estrutura constitui o conceito originário ou o fator primeiro de qualquer empreendimento teórico. O quadro referencial teórico abrangente é constituído por dois tipos de estruturas: as estruturas formais e as estruturas de conteúdo. As estruturas constituem o cerne do quadro teórico e são o resultado da tematização dos três componentes essenciais que constituem um quadro teórico: a lógica, a linguagem (a semântica) e a relação à reali­ dade (a ontologia). As estruturas formais são as estruturas lógicas e as matemáticas, e as estruturas de conteúdo são as semânticas e as ontoló­ gicas. Essa diferenciação foi compreendida na tradição moderna como manifestação da dicotomia entre linguagem e realidade. No contexto de uma filosofia sistemático-estrutural, uma vez eliminada a dicotomia, ela é interpretada como distinção entre níveis estruturais, isto é, entre o nível mais universal - as estruturas lógicas e matemáticas que constituem a textura interna de cada discurso e de cada realidade - e o mais concreto - as estruturas semânticas e ontológicas. As estruturas formais, lógico-matemáticas, constituem o “expressam” de sentenças lógico-matemáticas; portanto, constituem o conteúdo dessas sentenças, nesse caso um conteúdo formal. Pode-se exprimir toda essa problemática, segundo Puntel, numa fórmula curta, afirmando que “tudo é estrutura”, porém não no mesmo degrau, o que implica dizer que há estruturas intermediárias entre os extremos. A questão fundamental que se põe aqui é: qual é o quadro estrutural fundamental para a conceituação da totalidade do ser, do universo ilimitado do discurso, ou seja, que estruturas uma linguagem filosófica tem de ter? Que estruturas exprimem a inteligibilidade da totalidade do ser? Numa palavra, quais são as estruturas fundamentais lógico-matemáticas, semânticas e ontológicas que constituem o quadro de expressão da inteligibilidade da totalidade do ser? Os dois tipos de estruturas, as formais (lógicas e matemáticas) e as de conteúdo (semânticas e ontológicas), constituem a dimensão estrutu­ ral fundamental e incluem tudo aquilo que na linguagem filosófica usual hoje é designado por conceitos como linguagem, aparato conceituai, aparato teórico, instrumental teórico etc. As estruturas constituem a dimensão da expressabilidade do universo. Dessa forma, o eixo de uma teoria filosófica é constituído pelas estruturas semânticas, porque sua es­ pecificidade é a configuração da relação linguagem-mundo: as expressões lingüísticas significam e expressam algo. Linguagem é sempre linguagem de algo, e o mundo é sempre mundo que se expressa na linguagem, a instância de sua expressabilidade. Daí o papel fundamental que a lin­ guagem tem numa teoria filosófica, e compete à filosofia esclarecer as implicações da linguagem para o tratamento dos problemas filosóficos.

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Entre as implicações mais importantes estão justamente as implicações ontológicas. Para Tarski a semântica é precisamente a teoria da relação entre lin­ guagem e mundo. A semântica pensada na filosofia sistemático-estrutural se põe dentro dessa tradição e é pensada precisamente como semântica da linguagem teórica. Por essa razão se parte das sentenças teóricas que exprimem algo, uma proposição. As estruturas semânticas,186 por um lado, constituem um nível intermediador: elas possuem um "donde”, elas são o expresso de sentenças; mas, por outro lado, elas têm também um “para onde”, elas expressam um plano a ser determinado, o plano ontológico. Nesse sentido, as estruturas semânticas constituem estruturas intermediárias entre a linguagem e o plano ontológico. Daí o axioma básico dessa teoria: semântica e ontologia são dois lados de uma mesma medalha. Entre elas reina conformidade perfeita, isto é, conformidade entre uma linguagem semanticamente estruturada e o nível ontológico, o que significa dizer que as sentenças da linguagem atingem realmente as coisas em si mesmas: estruturas semânticas plenamente determinadas são idênticas ao plano ontológico. Dessa forma, semântica e ontologia estão estreitamente conectadas. Fundamental para a compreensão mais precisa dessa tese é a con­ sideração de que a semântica aqui exposta é pensada como uma versão forte do “princípio do contexto” de Frege. Aqui se parte do primado da sentença: a sentença é uma configuração, um todo a partir de onde os componentes subsentenciais podem ser compreendidos e explicados. E enquanto uma configuração, enquanto um todo, que a sentença expressa uma proposição, e é a partir dela que os componentes subsentenciais se compreendem. Na medida em que os componentes subsentenciais só se compreendem a partir da sentença e da proposição por ela expressa, eles podem ser eliminados, o que significa que aqui desaparece a estrutura sujeito/predicado típica como estrutura da sentença numa semântica composicional inaceitável, por implicar, numa ontologia substancialista, que é ininteligível. As sentenças sem sujeito e predicado se denominam sentenças primas, que se explicitam através do operador teórico “é o caso que assim e assim”, e o que por elas é expresso é uma proposição prima que, quando verdadeira, é idêntica a um fato do mundo, um fato primo. Nesse sentido, as estruturas ontológicas constituem o ponto de chegada, o status definitivo das estruturas semânticas: a estrutura on­ tológica é uma proposição prima realizada. Dessa forma, quando uma

186Cf. PUNTEL, L. B. Ser e Deus. Op. at., p. 158 e ss.

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proposição prima possui um status ontológico plenamente determinado, ela se identifica com um fato primo. E nesse sentido, afirma Puntel, que "as estruturas ontológicas nada mais são que o estatuto definitivo das estruturas semânticas”.187 O conceito de verdade é que tematiza esse processo de determinação plena das sentenças primas, o que significa dizer que o estatuto plenamente determinado de uma sentença prima se refere à dimensão ontológica plena da linguagem. Podemos agora resumir os pontos fundamentais da proposta filo­ sófica de Puntel enquanto filosofia que se articula como superação da dicotomia linguagem/realidade. A partir dessa reviravolta, fica claro que uma teoria filosófica universal tem de trabalhar duas questões centrais: 1) A tematização das estruturas lógicas, semânticas e ontológicas enquanto análise das dimensões constitutivas de um quadro teórico adequado a uma filosofia sistemática. Isso é o que Puntel denomina a “sistemática estrutural”. Nesse nível se faz a exposição e a crítica da semântica e da ontologia da tradição, da semântica composicional (baseada no princípio da composicionalidade) e da ontologia da subs­ tância a ela correspondente, e se articula uma proposta alternativa: a semântica e a ontologia contextuais (baseadas numa versão forte do princípio do contexto). Portanto, nesse nível se explicita a “ontologia geral”. O conceito de verdade que conclui esse nível da teoria articula a inter-relação entre as três espécies de estruturas e tematiza o nexo entre uma proposição prima verdadeira (a estrutura semântica prima) e um fato primo (a estrutura prima ontológica). Num segundo momento se põe a questão da aplicação ou da especi­ ficação do quadro categorial articulado, ou seja, está em jogo nesse nível a tematização explícita dos campos do ser:188 “as ontologias especiais”. É aquilo que, com a tradição, Puntel chama de “metafísica especial”, ou seja, a consideração de campos determinados do ser em relação à totalidade do ser - como a natureza anorgânica, a esfera do orgânico, o mundo humano com tudo que, de uma forma ou de outra, pertence a esse campo (como os seres humanos enquanto pessoas espirituais), o campo da ação, o campo social, o mundo da estética e o mundo enquanto um todo: o cosmos, a religião, a história. Com a aplicação das estruturas fundamentais aos campos específi­ cos do real, as estruturas fundamentais são “concretizadas” e "especifi­ cadas”, e é explicitada a conexão entre esses diferentes campos. A tarefa consiste aqui em explicitar as estruturas específicas desses campos da totalidade do ser. É o que Puntel denomina a “sistemática do mundo”, 187 Cf. PU NTEL, L. B. Ser e Deus. Op. cit., p. 162. 188 Cf. idem, p. 328 e ss.

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cujo trabalho fundamental é tematizar o que é comum aos diversos cam­ pos, o ser. Eles emergem, assim, como campos do ser, porque a todos é atribuído ser. Nesse nível o ser se revela como a conexão ou a unidade de todos os campos dos entes e das estruturas que os constituem. 2) A conexão entre as estruturas formais, semânticas e ontológicas, isto é, entre a dimensão estrutural e a dimensão do mundo, dos entes. Aqui é o lugar em que se introduz o ser no sentido primordial, o que acontece na medida em que, precisamente nesse lugar da exposição da filosofia sistemática, pergunta-se não mais como os “relata” ou os polos se relacionam entre si, mas como o próprio relacionamento mútuo é possível. Portanto, não se trata mais de tematizar a relação entre os dois polos, mas a dimensão que antes de tudo a possibilita. A posição aqui defendida é de que a relação é possível através de uma dimensão que abarca ambos os polos. Isso só pode ser feito a partir da tese fun­ damental de que todas as estruturas possuem imediatamente um valor ontológico, e que tudo o que tem que valer ontologicamente é para ser entendido como estruturalidade ontológica. Nessa perspectiva, não há abismo entre as duas dimensões; antes, as dimensões se radicam numa "unidade originária, uma dimensão que abarca as duas dimensões diferenciadas”. Daí por que Puntel denomina esse nível da teoria de "sistemática abrangente". É a partir daqui que podem ser compreendidos todos os campos do ser, e se revela o axioma fundamental de uma filosofia sistemática: trata-se sempre de uma autoapresentação daquela dimensão originária e abrangente (ser) expressa na fórmula originária das sentenças. Para Puntel, o conceito ou a palavra “ser” constitui a melhor designação dessa dimensão primordial, ineliminável, pois já na tradição há uma constante intuitivamente aceita no emprego dessa palavra: ela não pressupõe nenhuma outra palavra mais originária - antes, é pressuposta por todas as outras. Para Puntel, uma etapa fundamental para o cumprimento dessa tarefa de articulação de uma filosofia sistemática consiste precisamente em demonstrar que a objeção fundamental à articulação da filosofia enquanto saber sistemático - isto é, a separação radical entre pensar/ ser, sujeito/objeto, teoria/mundo, típica da modernidade, ou seja, a dicotomia fundamental que marca o pensamento moderno e ainda é hegemônica hoje uma tese que contém muitos aspectos, é indefensá­ vel. O primeiro passo consiste na demonstração do caráter em princípio insustentável dessa dicotomia, o que ocorre através de uma estratégia argumentativa que acentua quatro pontos de vista básicos: 1) Primeiro, tal suposição de fundo que gera a dicotomia se mos­ tra arbitrária, porque sem justificação. Todas as investidas de solução através de um retorno a uma subjetividade encapsulada

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em si mesma contêm a mesma falha básica: pressupõem que é imprescindível considerar a dimensão da subjetividade, com­ preendida numa perspectiva mentalista ou linguístico-lógica, como o ponto de referência absoluto que determina tudo. Na realidade, tal posição retira a subjetividade de seu lugar no universo (no mundo, no ser) e produz, então, o abismo entre ela e o mundo; 2) A aceitação dessa suposição é incoerente e contraditória, pois tanto nosso estar no mundo como, sobretudo, ciência e filosofia seriam empreendimentos sem sentido se ficássemos presos em nossa subjetividade como é pressuposto na dicotomia, ou seja, se nosso falar sobre o mundo não passasse de uma pura projeção sobre o mundo de nossos conceitos e de nossas representações; 3) Em todas as nossas falas estritamente teóricas não nos referimos propriamente ao sujeito. A forma fundamental de linguagem - “o estado de coisas é assim que” —deixa compreender da maneira mais adequada que é o mundo mesmo (o universo, o ser) que vem à fala, que se manifesta; 4) A superação efetiva da dicotomia pressupõe o esclarecimento de questões fundamentais, dentre as quais a mais importante diz respeito à compreensão da linguagem teórica. Essa problemática é trabalhada por Puntel a partir da ideia da expressabilidade universal do mundo, do universo e do ser. A essa expressabili­ dade universal tem de corresponder uma instância igualmente universal, a linguagem, e essa, por sua vez, tem de ser conse­ quentemente entendida como um sistema semiótico dotado de incontáveis expressões. Puntel apresenta sucintamente um argumento indireto para mostrar o caráter insustentável do dualismo: Se a “ totalidade do ser” fosse apenas uma representação ou algo como uma ideia regulativa, como se poderia explicar a situação de que nós, enquanto falamos de representação ou de ideia regulativa, pressupomos justamente já sempre termos compreendido a diferença entre a “totalidade do ser” enquanto representação (ideia regulativa) e a “ totalidade do ser” enquanto algo outro, portanto não representação, não ideia regulativa? Mas se não tivéssemos “ atingido” o “ ser mesmo” , a “totalidade do ser mesmo”, com outras palavras: se não estivéssemos já sempre, se quisermos nos exprimir assim, “para além do puro conceito, para além da pura ideia/representação” , na “ coisa” mesma, ou seja, se não tivéssemos já sempre —mesmo que implicitamente - captado apropria totalidade do ser, então, o nosso discurso sobre “ conceito”, “ ideia (regulativa)” , “ representação” e outros não teria o menor sentido, não teria conteúdo algum. Isso mostra de forma conclusiva que, quando falamos sobre “ a totalidade do ser“ , já sempre significamos e captamos apropria totalidade

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do ser, isto é, que não permanecemos na representação ou na ideia regulativa da “totalidade do ser ”.189

O esclarecimento sistemático da superação da contraposição entre linguagem e ser se baseia, então, em quatro teses fundamentais:190 1) Tese 1: A forma adequada da apresentação da filosofia sistemáti­ co-estrutural são sentenças comforma teórica pura. A formulação mais concisa dessa forma de sentenças é o que Wittgenstein denominou “a forma geral das sentenças”: “ o estado de coisas é tal”; e a expressão, de uma forma semiformalizada, é: “o estado de coisas é tal que p”. Essa forma é absoluta na medida em que abstrai todos os pontos de referência exteriores - de modo es­ pecial os sujeitos, os falantes, as circunstâncias, lugares, tempos, culturas etc. A fórmula em si mesma nada diz a respeito da forma (definitiva ou provável) em que o estado de coisas é assim ou assado. O fundamental nesse contexto é que essa fórmula seja entendida num sentido relativo, uma vez que implica sempre uma relação a um quadro teórico específico. 2) Tese 2: Semântica e teoria dos entes, consequentemente do ser; se situam numa relação de reciprocidadefundamental. Isso significa dizer que semântica e ontologia são dois lados da mesma me­ dalha, ou seja, elas se implicam mutuamente e são mutuamente imbricadas de tal forma que, se uma ontologia se mostrar insus­ tentável, é também insustentável a semântica ligada a ela - ou o contrário, o que para Puntel significa já a demonstração da tese da mútua imbricação entre ontologia e semântica. 3) Tese 3: “Expressabilidade" é um momento estrutural dos entes e do ser. Para Puntel, a tese de que o mundo (a natureza, a realidade, o universo) existe ou possa existir em absoluta independência do espírito e, consequentemente, da linguagem não é inteligível e por isso inaceitável. A verdadeira razão disso é que perguntas a respeito da dicotomia entre pensamento/espírito/linguagem e mundo/natureza/realidade não podem ser esclarecidas se não se defende explicitamente a seguinte tese ontológica central: o que possa ser aquela dimensão que se costuma denominar mundo/ realidade/sistema; ela possui, de qualquer forma, uma estrutu­ ração imanente fundamental (autenticamente ontológica), ou seja, uma expressabilidade plena. Expressabilidade é um termo 189Cf. PUNTEL, L. B. “A Totalidade do Ser, o Absoluto e o tema ‘Deus’”. Rev. Portuguesa de Filosofia, tomo 60, fase. 2,2004, p. 308. 190 Cf. idem, Estrutura e Ser. Op. cit., p. 490 e ss.

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usado por Puntel como uma espécie da fórmula abreviada de uma série de termos como inteligibilidade, conceituabilidade, compreensibilidade, explicabilidade, articulabilidade etc. Nesse sentido, expressabilidade não é compreensível sem linguagem (espírito), uma vez que a expressabilidade implica uma instância que a exprima, e essa instância é justamente a linguagem. Nessa perspectiva, a tese de um "mundo nu”, no sentido de não ter qualquer relação a algo como linguagem, espírito, conceitualidade etc., ou seja, a tese de um mundo enclausurado em si mesmo é uma impossibilidade metafísica e, por essa razão, ininteligível. 4) Tese 4: A linguagem filosófica é uma linguagem de apresentação (não de representação). Puntel compreende filosofia como um tipo específico de teoria. Há na vida humana diferentes tipos de atividades, e a filosofia sempre se entendeu a si mesma como um tipo determinado de atividade teóricaym na medida em que a finalidade específica da atividade em questão é a articulação de teorias, o que a distingue, por exemplo, da atividade prática que tem como objetivo a produção de obras boas. Puntel distingue claramente um duplo sentido do ser: ser no senti­ do objetivo e ser no sentido primordial. "Ser objetivo” significa aquela dimensão que abarca todos os entes, na medida em que ela constitui o polo objetivo da relação entre a dimensão estrutural (com tudo o que esta inclui e implica) e a dimensão dos dados, aos quais as estruturas são aplicadas. Essa dimensão, entendida como a totalidade que abarca todos os entes objetivos, é o que Puntel (em seus últimos escritos) chama de mundo (com ctmwminúsculo). O mundo é, assim, a dimensão que em si não inclui toda a dimensão estrutural como tal (com todas as subdimensÕes que esta inclui, como foi explicado acima). Para entender o que Puntel chama de "ser primordial” é preciso empreender aqui o passo teórico seguinte. As duas dimensões mencio­ nadas, a estrutural e a objetiva, ao se distinguirem, também se relacionam uma com a outra. Essa relacionalidade mútua pressupõe como base uma unidade fundamental ou originária que possibilita essa relacionalidade. Puntel introduz aqui primeiramente o termo Mundo (com "M ” maiús­ culo): é a dimensão que abarca a dimensão estrutural e o mundo como a totalidade dos entes objetivos e, assim, como o ser objetivo. Essa concepção que diferencia “mundo” e "Mundo” pode parecer uma construção puramente especulativa. Não o é, absolutamente. Uma prova disso pode ser vista no fato seguinte: todos os materialistas e fisicalistas estritos de hoje pressupõem o que Puntel chama de Mundo. Com 191 Cf. PU NTEL, L. B. Estrutura e Ser. Op. àt., p. 118 e ss.

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efeito, ao defender uma concepção materialista/fisicalista, eles afirmam que o que Puntel chama de mundo e o que ele chama de dimensão es­ trutural constituem uma unidade, precisamente o Mundo. Ao reduzir o espírito humano com tudo o que este contém e implicar, portanto, toda a dimensão estrutural à “dimensão física”, eles "integram” a dimensão estrutural na dimensão física; numa fórmula breve: eles identificam Mundo e mundo, isto é, concebem o Mundo como mundo. Chegado a esse ponto, Puntel põe a questão de como pensar o Mundo não reduzível ao mundo no sentido explicado. Aqui, então, Puntel introduz a grande expressão "ser” com a qualificação “primor­ dial”, ou “dimensão primordial do ser”. A dimensão, entendida como a totalidade que abarca todos os entes objetivos, é o que Puntel (em seus últimos escritos) chama de mundo (com "m” minúsculo). O Mundo = ser primordial não pode mais ser um ente, pois ele seria apenas um ele­ mento na série dos entes, ele seria incluído entre os itens que o têm em comum, e o vínculo unificador não seria esclarecido. “Ser primordial” é aquela dimensão absolutamente abrangente que abarca os dois polos, a dimensão estrutural e o mundo enquanto ser objetivo. Isso é para Puntel um ponto essencial. A filosofia enquanto discurso da articulação do ser em si mesmo e em seu todo é em última instância um discurso sobre o ser no sentido da dimensão mais originária que abarca os dois polos,192 ela é “metafísica primordial”. Como se deve entender, tematizar, conceitualizar, compreender, articular “ser” enquanto a dimensão originária, como a conexão abar­ cante de pensamento/espírito/linguagem e mundo/universo/ser,193 como a dimensão primordial? A primeira tarefa consiste em explicar o ser enquanto tal. A proposta de Puntel é que se leve em consideração como a dimensão do ser foi metodologicamente introduzida como dimensão primordial. Quais são os pressupostos e as implicações dessa introdução? E a resposta a essa questão que torna possível esclarecer os traços fundamentais do ser enquanto tal. O ponto de introdução se revela como relacionamento do espírito humano ao ser enquanto tal. Há três formas básicas de relacionamento do espírito humano com o ser enquanto tal: a relação teórica, a prática e a estética. No espírito humano correspondem a esses relacionamentos três faculdades: o intelecto, a vontade e a faculdade estética. A essas três formas de relacionamento e 192Cf. OLIVEIRA, M. A. de. Subjektivitãt und Vermittlung. Studien zur Entwicklung des transzendentalen Denkens bei I. Kant, E. Husserl und H. Wagner. Munique: Wilhelm Fink Verlag, 1973, p. 302-303: "Die Identitàt, die hier anvisiert ist, ist derjenige Spielraum, in dem sowobl Subjektivitàt-Bewusstsein-Mensch ais aucb das Andere wurzeln und iibereinstimmen, der also ais ermõglicbender Grund ursprünglicher ais die beiden Pole ist". 193 Cf. PU NTEL, L. B. Estrutura e Ser. Op. cit., p. 550 e ss.

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respectivamente a essas três faculdades correspondem, no ser enquanto tal, momentos estruturais ou características fundamentais. À faculdade do intelecto correspondem três momentos estruturais. O primeiro é a expressabilidade universal do ser que resulta da centralidade da linguagem numa teoria filosófica. Na exposição da proposta da filosofia sistemático-estrutural, o universo do discurso emergiu em última instância como o ser enquanto tal. Ora, o universo do discurso pressupõe que ele seja expressável, articulável. O segundo momento é a inteligibilidade absolutamente universal, que é, assim, coextensiva com o ser enquanto tal. A palavra inteligibilidade, nesse contexto, exprime os diferentes modos do conceituar, do compreender, do explicar o ser e, assim, o momento conceituável, compreensível e explicável do ser. Todo empreendimento teórico só tem sentido se seu objeto for inteligível. A dimensão do ser se manifesta como a conexão universal que inclui toda a dimensão do pensamento/espírito/linguagem. Seria, por isso, impensável que ela se situasse fora do pensamento/espírito/linguagem. Enquanto o ser enquanto tal se manifesta essencialmente enquanto essa constelação, ele é acessível a pensamento/espírito/linguagem. É precisamente esse "ser-acessível-a” o que constitui a inteligibilidade da dimensão do ser: o ser é, por isso, conceituável, explicável, com­ preensível. É esse o sentido da tese da tradição da identidade entre ser e pensar;194 e, assim, a dimensão originária é compreensível, conceitu­ ável, cognoscível - portanto, princípio universal da inteligibilidade de tudo.195 Essa é a razão por que todo ou qualquer ente é, em princípio e

194 O que, no ser finito, é apenas identidade relativa, intencional; isso significa que aqui o conhecer é fazer emergir o outro na interioridade do sujeito, numa identificação formal e não real com ele. Cf. CORETH , E. Metaphysik. Eine methodisch-systematische Qmndlegung. Innsbruck/Viena/Munique, 1964, 2a ed., p. 358. LIMA VAZ, H. C. de. Antropologia. Op. cit., p. 223: “N o homem o espírito é formalmente idêntico ao ser universal, sendo capaz de pensá-lo. Mas é realmente distinto dos seres na sua perfeição existencial: a eles pode livremente inclinar-se, mas não realmente identificar-se com eles, o que configura o paradoxo profundo da contemplação e do amor”. OLIVEIRA, M. A. de. "Filosofia enquanto autorreflexão da razão” . In: A Filosofia na Crise da Modernidade. São Paulo, 1989, p. 135: “A realidade se manifesta aqui na interioridade do sujeito, pois o processo do conhecimento, a teoria, aparece essencialmente como um processo de interiorização da realidade [...]. Essa dimensão é antes de tudo uma dimensão de manifestação, pois é à medida que algo se interioriza que ele manifesta o próprio sentido [...]” . 195 ARISTÓTELES. De Anima, III, 43íb 21. Cf. A Q U IN O , T. de. De Veritate, q.l a lc. MARC, A La Dialectique de l’Affirmation: essai de Mêtaphysique réflexive. Paris, 1952. CO R ETH , E. Op. cit., p. 354. LIMA VAZ, H. C. Antropologia Filosófica II. São Paulo, 1992, p. 104: “ Presença que se descobre [...] transcendental, porque nessa e por essa intuição da pre­ sença do ser, a inteligência vê aberto o horizonte de inteligibilidade ilimitada no qual o ser se manifesta, e vê igualmente que é situado nesse horizonte que todo e qualquer ente particular pode ser conhecido” . Para J. B. Lotz, o ser é verdade, ou a razão formal da verdade é 0 ser-, daí por que todo ente, porque e enquanto a ele compete o ser, é verdadeiro. Cf. LOTZ, J. B. Ontologia. Op. cit., p. 118.



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na medida mesma em que é, inteligível, portador de um logos, de uma estruturalidade imanente. Por fim, na medida mesma em que a dimen­ são originária é a inteligibilidade originária e a conexão originária entre tudo, então ela é a coerência universal, a estruturalidade universal, raiz de toda e qualquer estruturação, a estrutura originária e abrangente, pois conceber, compreender, articular, explicar algo significa essencialmente captar a conexão e com isso a coerência em que esse algo se encontra. Nesse sentido, coerência significa sistematicidade. Uma quarta característica fundamental, imanente, estrutural, distingue-se das que foram apresentadas, já que elas se revelaram a partir da explicação do ser primordial com respeito ao intelecto. Agora emerge uma quarta característica à medida que se explica o ser primordial com respeito à outra faculdade humana equioriginária ao intelecto, ou seja, a vontade. Para designar esse momento estrutural, a grande tradição metafísica196usou as palavras "bem” ou "bom”; esse momento foi con­ siderado a partir da vontade como seu objeto formal, isto é, como o ponto de vista a partir do qual a vontade se relaciona com todos os seus objetos. Sob o ponto de vista do ser, a bondade foi considerada como aquele momento estrutural que corresponde à vontade. Numa palavra, o que quer que queira a vontade em cada caso, ela o faz sempre a partir da perspectiva do bem, pois é justamente esse rela­ cionamento ao bem o que define a vontade enquanto vontade. Assim, o quarto momento estrutural do ser pode ser designado como “bondade universal"; a dimensão originária é, então, a fonte de toda e qualquer amabilidade dos entes, ou seja, o fundamento de todo e qualquer bem197 e o princípio imanentemente presente em qualquer bem e, igualmente, transcendente a tudo. Na tradição metafísica, um quinto momento estrutural foi deno­ minado beleza. Esse momento estrutural foi determinado a partir da ideia de consonância dos outros momentos estruturais do ser, o que é uma forma de pensar a unidade dos momentos estruturais. A partir daqui surge a questão da compreensão da totalidade enquanto tal, ou seja, de uma explicação holístico-argumentativa-conceitual da totalidade do ser, do ser em seu todo, o que vai conduzir a uma compreensão da totalidade como constituída por uma dupla dimensão: uma dimensão absoluta (ou absolutamente necessária) e 196 Cf. PLATÃO. República (sobretudo o livro VI). ARISTÓTELES, Met. I, 7; Et. Nic. I, 6; VIII, 2-5. Para Tomás de Aquino, o bem é o perfeito. Cf. Cont. Gent. I, 37: “Naturaliter enim unimcujusque bonum est actio et perfectio” . S.th. I, 5 3: “Perfectum babet rationem appetibilis et finis” . 197 Em De Ver. 24, 7, Tomás chama esse fundamento absoluto de: “ipsu-m universale bonorum principiam

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uma dimensão não absoluta, isto é, contingente. Num passo seguinte se revela que a dimensão absolutamente necessária tem de ser pensada como ser espiritual ou pessoal absolutamente necessário e, por isso, deve ser pensada mais precisamente como liberdade absoluta, de tal modo que a questão aqui é de como deve ser compreendida a relação entre o ser livre absolutamente necessário e a dimensão contingente dos entes. A dimensão contingente é, enquanto tal, totalmente dependente da dimensão absolutamente necessária. Isso significa dizer que os entes contingentes não são necessa­ riamente, eles não são a partir de si mesmos, o que significa dizer que o fato de que “eles são” não é explicável a partir deles mesmos. Se os entes contingentes não vieram a ser a partir de si mesmos ou através de si mesmos, eles vieram a ser a partir de outro fator que só pode ser de acordo com tudo o que já foi dito: o ser absolutamente necessário. Sendo o ser absolutamente necessário a “liberdade absoluta”, a dimen­ são contingente do ser veio a ser através da liberdade absoluta do ser absolutamente necessário. "O absoluto-pôr-no-ser-efetnado-pelo-ser-absolutamente-necessário-livre-visando-à-dimensão-contingente, no sentido esclarecido, é o que significa a ideia da criação adequadamente articulada.”198 Deter­ minações maiores dessa esfera primordial são possíveis, para Puntel, na medida em que a filosofia se volta para a história, para a história da humanidade e de modo muito especial para a história das religiões, que manifestam a pretensão de articular as ações livres da dimensão abso­ lutamente necessária na história humana.

198 Cf. PUNTEL, L. B. Ser e Deus. Op. cit., p. 229.

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ÍNDICE

5 PREFÁCIO 11 1. STATUS E DESAFIO DA ONTOLOGIA NO PENSAMEN­ TO CONTEMPORÂNEO 43 2. TEORIA DA SUBSTÂNCIA ENQUANTO CATEGORIA ONTOLÓGICA FUNDAMENTAL 44 2.1 Substância enquanto substrato (“sujeito”) 44 2.1.1 Substância enquanto substrato como categoria ontoló­ gica fundamental 51 2.1.2 As aporias da noção de substrato segundo A. Denkel 52 2.2.2.1 O substrato enquanto princípio de individua­ ção é uma noção logicamente inadequada 52 2.2.2.2 Como pode a hipótese do substrato evitar essa redução? 54 2.2 A estrutura ontológica dos particulares concretos: M. Loux 55 2.2.1 A teoria da substância enquanto “substrato” 55 2.2.1.1 A articulação teórica da noção de substrato 57 2.2.1.2 O caráter problemático da noção de substrato 59 2.2.2 Teoria dos feixes 59 2.2.2.1 A teoria dos feixes enquanto proposta alternati­ va à teoria do substrato 60 2.2.2.2 Objeções à teoria dos feixes 60 2.2.2.2.1 O discurso sujeito-predicado 62 2.2.2.2.2 A identidade dos indiscemíveis 63 2.2.3 A proposta alternativa de reconstituição de uma teoria da substância 67 2.3 Substância entendida como existência independente 67 2.3.1 Reformulação do conceito de substância em Espinosa 73 2.3.2 Substância e independência ontológica em E. J. Lowe

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A ontologia em debate no pensamento contemporâneo

81 3. A ONTOLOGIA MONOCATEGORIAL: A TEORIA DOS TROPOS DE K. CAMPBELL 82 3.1 Ontologia monocategorial enquanto filosofia primeira 82 3.1.1 A ontologia clássica aristotélica duocategoriaí: substân­ cias e propriedades 83 3.1.2 Problemas dessa ontologia 83 3.1.2.1 Problemas com a substância 85 3.1.2.2 Problemas com Universais 86 3.1.2.3 Problemas com a inerência 86 3.1.2.4 Problemas com a dependência mútua 86 3.2 Propostas anteriores de ontologia monocategorial 88 3.3 A ontologia alternativa monocategorial: teoria dos tropos 94 3.4 O problema dos universais 94 3.4.1 O papel dos universais numa ontologia 96 3.4.2 A análise da predicação 97 3.5 A teoria dos tropos enquanto teoria dos entes: as ontologias regionais 98 3.5.1 O mundo do indivíduo 98 3.5.1.1 O materialismo com os tropos 98 3.5.2 Dualismo de tropos 100 3.5.3 O ser individual 100 3.5.4 O mundo social 101 3.5.4.1 Fatos sociais e aspectos da vida 102 3.5.4.2 A questão causai 103 3.6 Algumas objeções gerais à teoria dos tropos 103 3.6.1 O problema da espaço-temporalidade 104 3.6.2 Conceitos estendidos de dimensionalidade 105 3.6.3 Particularidade pura ou limitada 106 3.6.4 A paridade dos tropos com as substâncias 106 3.6.5 Argumentos de Hochberg 109 3.6.6 A crítica de Moreland 110 3.6.7 Simplicidade e individuação 110 3.6.8 A objeção de tropos trocados 111 3.6.9 Similaridade exata 111 3.6.10 Referência abstrata 111 3.6.11 Leis da natureza e indução 113 3.7 Problemas da teoria dos tropos segundo Peter Simons 113 3.7.1 Relação de copresença 114 3.7.2 Natureza não substancial dos tropos 116 3.7,3 Teoria nuclear como proposta alternativa

267 . .

índice

117 117 119

3.8 Críticas à teoria dos tropos por Chris Daly 3.8.1 A questão da semelhança 3.8.2 A infiltração da instanciação

121 4. A ONTOLOGIA DE ACONTECIMENTOS (EVENTOS) E PROCESSOS 121 4.1 A proposta de uma ontologia de acontecimentos 125 4.2 Ente (matemática, ontologia) e acontecimento (filosofia) no pensamento de A. Badiou 125 4.2.1 A matematização da ontologia 139 4.2.2 A filosofia enquanto teoria do acontecimento 145 4.3. A tese do primado do acontecimento na filosofia do Acaso de K. Utz 145 4.3.1 A questão central da filosofia 145 4.3.1.1 O paradigma do saber fundamental no pensa­ mento ocidental 148 4.3.1.2 A reviravolta paradigmática: dos fundamentos para as ordenações de relações 151 4.3.1.3 A lógica como a metafísica depois da virada pa­ radigmática 152 4.3.1.4 A pergunta pela determinação como a nova per­ gunta fundamental da filosofia 153 4.3.2 O acaso (a coincidentia) como categoria central para pensar a determinação 153 4.3.2.1 O dilema da determinação 155 4.3.2.2 Argumento formal (lógico-semântico) 156 4.3.2.3 O acaso como condição de possibilidade da compreensão da determinação 162 4.3.2.4 A relacionalidade 164 4.3.2.5 A filosofia do acaso enquanto nova metafísica 165 4.3.2.6 O caráter sistemático da metafísica e seus limites 168 4.3.2.7 A ontologia como primeiro momento do des­ dobramento sistemático da filosofia do acaso 172 4.4 As filosofias do processo: a versão de N. Rescher 172 4.4.1 A virada processual: a nova proposta de ontologia geral 176 4.4.2 As ontologias regionais 176 4.4.2.1 A filosofia da natureza 177 4.4.2.2 A filosofia da mente: psicologia filosófica 179 4.4.3 Processo e o problema dos universais 180 4.4.4 Processo e metafilosofia

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A ontologia em debate no pensamento contemporâneo

, A ONTOLOGIA COMO UMA DIMENSÃO DA FILOSO­ FIA SISTEMÁTICO-ESTRUTURAL 5.1 A centralidade da linguagem e a nova proposta de articulação 183 da teoria filosófica 5.1.1 A filosofia transcendental pré-linguística: o mundo se 183 nos dá em intuições puras: a fenomenologia husserliana 5.1.2 A posição da filosofia sistemático-estrutural 190 5.2 O lugar sistemático da ontologia numa teoria filosófica 205 5.3 Traços básicos da nova semântica e da nova ontologia 212 5.3.1 A semântica enquanto dimensão fundamental da lin­ 212 guagem 217 5.3.2 A interconexão recíproca entre semântica e ontologia 5.3.3 A semântica e a ontologia composicionais 223 5.3.4 Um passo importante, embora insuficiente, para a ela­ 227 boração da nova semântica e da nova ontologia: a elimi­ nação dos termos singulares em Quine 5.3.5 Traços básicos da semântica alternativa: a semântica 229 contextual 5.3.5.1 Elementos de uma teoria da sentença 229 231 5.3.5.2 O princípio do contexto 5.3.6 A ontologia contextual: o mundo enquanto a totalidade 236 dos fatos primos configurados com extrema variedade e complexidade 5.3.5.6 A teoria da verdade enquanto dimensão conclu­ 243 siva da semântica e da ontologia contextuais 5.3.5.6.1 A caracterização da ideia básica de ver­ 243 dade: a dimensão semântica 247 5.3.5.7 A dimensão ontológica da verdade 5.4 Visão de conjunto da proposta da filosofia sistemático-estru251 tural 183

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M a n f r e d o A r a ú j o de O l i v e i r a , nascido em 27 de fevereiro de 1941, em Limoeiro do Norte, Ceará, mestre em Teologia pela Pontifícia Uni­ versidade Gregoriana de Roma, doutor em Fi­ losofia pela Universidade Ludwig-Maximilian de Munique, Alemanha. Professor titular de Filosofia da Universidade Federal do Ceará. Professor visitante no mestrado-doutorado em Filosofia da PUC do Rio Grande do Sul, em Porto Alegre, e do CESEP, em São Paulo.

Publicações pela Paulus: • Ética, direito e democracia (2009); • Antropologia filosófica contemporânea Subjetividade e inversão teórica (2011).

Este livro tem por objetivo retomar a metafísica, o que certamente constitui uma tarefa das mais urgentes do pensamento contempo râneo, pois todo teórico em filosofia pressupõe, normalmente de forma implícita, certa visão metafísica como pano de fundo de seu trabalho. Ele trata fundamentalmente de questões que correspon­ dem, "repensadas", ao que a tradição trabalhou com o título de "metafísica geral ou universal" (ontologia geral) - uma teoria do ente enquanto tal. O livro não apresenta todo o espectro de questões que constituem a metafísica num sentido integral, o que implicaria ainda as metafí­ sicas especiais (ontologias especiais) enquanto teorias dos entes de diferentes domínios a partir de Heidegger, e, para além dele, uma teoria do Ser. A ontologia, enquanto teoria do ente, se posiciona no contexto de uma concepção abrangente de filosofia em que ela se constitui como um momento central. O objetivo deste livro é debater onde ela se situa, qual sua tarefa específica e como ela deve ser articulada a partir do intenso debate que hoje acontece; portanto, seu interesse não é apenas interpretativo, mas sistemático.

ISBN 978-85-349-4081-8

Coleção

FILO SOFIA

9 788534 940818