O pensamento africano no século XX 9788594820006

Durante os períodos da colonização europeia, descolonização e reorganização das sociedades africanas, ao longo dos sécul

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O pensamento africano no século XX
 9788594820006

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O PENSAMENTO AFRICANO NO SÉCULO XX

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José Rivair Macedo (Organizador)

O PENSAMENTO AFRICANO NO SÉCULO XX

1ª edição Outras Expressões São Paulo – 2016

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Copyright © Outras Expressões 2016 Revisão: Lia Urbini e Dulcineia Pavan Imagem da capa: Bruno Ortiz Capa e diagramação: Zap Design Todos os direitos reservados. Nenhuma parte deste livro pode ser utilizada ou reproduzida sem a autorização da editora.

1ª edição: julho de 2016 OUTRAS EXPRESSÕES Rua Abolição, 201 – Bela Vista CEP 01319-010 – São Paulo – SP Tel: (11) 3522-7516 / 4063-4189 / 3105-9500 editora.expressaopopular.com.br [email protected] www.facebook.com/ed.expressaopopular www.expressaopopular.com.br

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Sumário

Prefácio................................................................................................7 Severino E. Ngoenha Introdução ........................................................................................11 José Rivair Macedo PARTE 1 DESCOLONIZAÇÃO Negritude, construção e contestação do pensamento políticointelectual de Léopold Sédar Senghor (1928-1961)............................23 Gustavo de Andrade Durão Marcien Towa, da crítica aos pressupostos da negritude senghoriana à possibilidade da filosofia africana...............................53 Roberto Jardim da Silva Cheikh Anta Diop e a produção do conhecimento científico.............75 Gabriel Ambrósio, Kassoum Diémé A perspectiva africana de Joseph Ki-Zerbo...................................... 111 Guilherme Machado Botelho, Muryatan Santana Barbosa, Thiago Clemêncio Sapede PARTE 2 REVOLUÇÃO AFRICANA Kwame Nkrumah, o neocolonialismo e o pan-africanismo............. 143 Mathias Inacio Scherer

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Revolução e cultura no pensamento de Frantz Fanon e Amílcar Cabral.............................................................................167 Gustavo Koszeniewski Rolim A África de Fanon: atualidade de um pensamento libertário ..........199 Walter Günther Rodrigues Lippold Fontes populares do discurso revolucionário de Amílcar Cabral...........................................................................229 José Carlos Gomes dos Anjos PARTE 3 PÓS-COLONIALSMO (Des)caminhos da produção do conhecimento em África: o Codesria na disseminação do conhecimento no contexto da globalização ...............................................................................263 Anselmo Panse Chizenga, Frederico Matos Alves Cabral Wole Soyinka, da essência negra a um mundo africano.......................................................................289 Adriano Moraes Migliavacca Intelectuais africanos e estudos pós-coloniais: as contribuições de Paulin Hountondji, Valentim Mudimbe e Achille Mbembe............................................................................313 José Rivair Macedo O paradigma libertário de Severino Ngoenha: uma encruzilhada subversiva........................................................................................339 Eduardo Felisberto Buanaissa Bibliografia Comentada...................................................................361 Sobre os autores...............................................................................365

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Prefácio Severino E. Ngoenha

A primeira qualidade deste livro é meter o acento sobre os protagonistas africanos do pensamento, contrariando ao que comumente se faz, que é olhar para África a partir de uma historiografia colonial, dominada por escritos de administradores, militares, clérigos, e antropólogos. Mathias Inacio Scherer, no seu texto, invoca a figura emblemática de Kwame Nkrumah e o seu percurso, quer de luta contra o neocolonialismo, quer da sua adesão teórica aos ideais do pan-africanismo. É uma coincidência feliz, dado que o pan-africanismo inicia exatamente em 1900 com o primeiro congresso, que se deveria ter realizado em Paris, mas acabou realizando-se em Londres. Esse congresso se queria primeiramente de caráter científico, para contrapor as ideias de Gobineau e as suas teses sobre a diferença das raças humanas, mas acabou sendo um congresso político. De um lado, porque as práticas que começavam-se a implementar no continente africano, ligadas à divisão da África em Berlim e à instauração do colonialismo, faziam temer que a escravatura, ou pelo menos a opressão, voltasse; e de outro lado, porque se temia que o filantrópico colonialismo invocado em Berlim se transformasse – como foi de fato o caso – em nova forma de opressão. Este primeiro congresso pan-africanista, para além de ter feito emergir personalidades da diáspora, como Anténor Firmin,

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Marcus Garvey, Abdias do Nascimento, Eric Williams, fez sobretudo, emergir aquele que é historicamente considerado pai do pan-africanismo, William Dubois. Nkrumah foi alimentado por este processo, de reivindicação, e foi no último dos cinco congressos, em 1945, que na continuidade do que o segundo congresso tinha proclamado, em 1919, em Paris, reivindica para o conjunto do continente, a autodeterminação política. Por sua vez, Gustavo de Andrade Durão, invoca Senghor e Gustavo Rolim invoca Frantz Fanon e Amílcar Cabral. Senghor é sem dúvida o poeta e pensador mais conhecido da Négritude, e Fanon, apesar de ter-se rebelado aos ideais deste movimento, num segundo tempo, ele mesmo foi aluno de Césaire, e portanto, educado nos ideais da Négritude. Ora, quer Senghor, quer Césaire, e mesmo Damas, reconhecem uma primazia não só cronológica, mas também nos temas tratados, e na virilidade da nova posição do negro face a opressão do Movimento do Renascimento de Harlem, do qual se inspiraram e tiveram mesmo contatos pessoais com os protagonistas, como Langston Hughes, Dubois e Claude Mackay. A ligação de Nkrumah com o pan-africanismo, e da Négritude ao renascimento de Harlem mostram, como bem asseveram os autores deste livro, uma ligação intrínseca entre a gênese do pensamento africano do século XX e a diáspora. Se Nkrumah anunciava que primeiro tinha que vir a independência política e o resto viria em acréscimo, o grande desafio com que África começou a confrontar-se desde a década 1960 foi a afirmação de uma História e de uma identidade que o colonialismo tinha tentado negar. É neste sentido que se pode ver os trabalhos de Cheikh Anta Dipo trazidos no artigo de Gabriel Ambrósio e Kassoum Diémé; e no de Joseph Ki-Zerbo feito por Guilherme Machado Botelho, Muryatan Barbosa e Tiago Sapede. Esta reivindicação identitária ganhou contornos filosóficos com a emergência da etnofilosofia, que mais tarde viria a ser con8

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Prefácio

testada pelos tenores da corrente crítica como Marcien Towa (artigo de Roberto Jardim da Silva) e Hountondji, Mudimbe e Achile Mbembe (artigo de José Rivair Macedo). O segundo desafio da África independente é ligado ao desenvolvimento político, econômico e social. Muito rapidamente os africanos, sobretudo com os trabalhos de Samir Amin, viram que as relações entre o primeiro e o terceiro mundo, mesmo quando vinham com cobertura de cooperação e ajuda ao desenvolvimento, eram de fato sempre desfavoráveis ao Sul, donde emerge a necessidade do que Amin chamou de desconexão do outro, a necessidade da criação de estudos sociais africanos, em prol do desenvolvimento do continente, que está na origem do Conselho para o Desenvolvimento da Pesquisa em Ciências Sociais em África (Codesria), como se pode ler no artigo de Anselmo Chizenga e Frederico Cabral. Neste processo histórico, a África Lusófona sujeita ao fascismo de Salazar teve que passar por um processo violento de luta de libertação nacional, constituindo assim, uma exceção, no processo histórico das autodeterminações africanas. Entre os líderes dos movimentos de libertação, não há dúvidas que Amílcar Cabral (como nos indicam os artigos de José Carlos dos Anjos e de Gustavo Rolim) foi aquele que desenvolveu o que ele mesmo chamou de as armas da teoria, fazendo uma distinção hierárquica clara, entre povo, Estado, e partido; mas ao mesmo tempo, definindo claramente que os objetivos da luta não eram nem contra Portugal, nem contra a raça branca, mas sim, contra o sistema colonial. A importância teórica de Cabral não se limitou somente a influenciar as políticas dos outros movimentos de libertação dos países de língua oficial portuguesa, mas o próprio Mandela, no início do processo das Comissões de Reconciliação na África do Sul, reconheceu quanto tinha aprendido do fundador do Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC). Em síntese, como faz entender o artigo de Eduardo Felisberto Buanaissa, eu defendo que se existe um paradigma através do qual 9

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se pode ler o percurso histórico do pensamento africano, esse paradigma é libertário. Antes do século XX, o pensamento africano emerge como luta de libertação contra a escravatura. Depois das diferentes fases de abolição, continua ainda hoje, a ser um processo de uma liberdade que se chama integração social. Quer dizer, defende-se que os sujeitos de origem africana tenham as mesmas possibilidades previstas pelas diferentes constituições para os seus cidadãos. A prova da atualidade deste processo está nos movimentos cívicos nos Estados Unidos da década de 1960 com Martin Luther King, ou mais ainda, no fato de que o presidente Lula sentiu a necessidade de criar leis de descriminação positiva, e a integração da história de África nos processos de ensino brasileiro, do qual esse livro tem que ser saudado como uma das mais positivas respostas. Do fim da Segunda Guerra Mundial e do 5º Congresso Pan-africano de Manchester, até a década 1960, e como vimos, com a exceção do mundo lusófono, a liberdade tomou a figura de autodeterminação política. A partir de então, o grande desafio com que África está confrontada – e no qual incidem os principais trabalhos de investigação, dos quais o Codesria é uma suma exemplar – está ligado ao tríplice-desenvolvimento, econômico, político e social. Para ser moçambicano, terminaria dizendo, a luta continua! De um lado, num esforço que tem sido levado a cabo no Brasil e, no caso presente, pelo professor José Rivair, em explorar as várias fases e os vários processos da produção de um pensamento africano, e do outro lado, na luta pelo desenvolvimento, a que estamos carentes, e do qual o Brasil é um parceiro de que se pode esperar uma colaboração ainda mais forte e incisiva. Digo colaboração, porque um dos méritos deste livro está no fato de que ele não se limita a ser uma obra somente de brasileiros sobre o pensamento africano, mas integra também jovens investigadores africanos e promissores, que com o professor Rivair, querem contribuir para a extensão das percepções sobre o pensamento africano no século XX. 10

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Introdução José Rivair Macedo

Ao longo dos séculos XIX-XX, durante os períodos da colonização europeia, descolonização e reorganização das sociedades africanas, os intelectuais nascidos na África apropriaram-se de um vasto conjunto de referenciais teóricos, conceituais e metodológicos, empregando-os para expressar a posição de seus coetâneos em relação ao mundo. Paralelamente aos saberes orais, tradicionais, e à experiência vivida que orientavam as formas de organização sociocultural dos povos anteriores ao período de predomínio europeu, ganhou corpo um novo tipo de saberes, eruditos, fundados em pressupostos acadêmicos, científicos, e que deu sustentação ao que se tem denominado de pensamento africano. Um primeiro esclarecimento quanto ao alcance e a natureza dos capítulos que integram este livro tem que ver, portanto, com a explicação sobre os campos de abrangência do pensamento africano tradicional e do pensamento africano não tradicional. No primeiro caso, tem-se um vasto conjunto de saberes acumulados pela experiência ancestral, alimentado e transmitido por meio da oralidade, com acesso relativamente restrito a grupos especializados que são os tradicionalistas. Esta esfera do conhecimento africano, que poderia ser qualificado como endógeno, desenvolveu-se em paralelo aos conhecimentos escritos desde tempos recuados, e preservou elementos essenciais das culturas que lhe deram substância por vezes com maior eficácia do que os saberes escritos antigos que acabaram parcialmente desaparecen-

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do em virtude das pressões do tempo (Aguessy, s.d., p. 113-114). O pensamento não tradicional, por sua vez, diz respeito ao conjunto de saberes acumulados por um grupo particular de escritores, intelectuais, lideranças político-sociais, filósofos, literatos, artistas e cientistas sociais nascidos na África, para explicar as realidades específicas do continente. Cabe também um esclarecimento prévio acerca da delimitação dos estudos aqui apresentados, que se referem exclusivamente a autores e questões provenientes ou envolvidos diretamente com o continente africano, caso do caribenho Frantz Fanon, que militou durante anos no movimento pela Independência da Argélia, tornando-se o teórico por excelência da revolução africana. Tomamos, portanto, o cuidado de distinguir, e separar, pensamento africano de pensamento diaspórico. Não porque sejamos partidários da ideia de uma “essência africana” ou de uma “autenticidade africana”. Ocorre que, embora a substância que anima aquelas correntes de ideias diga respeito, praticamente, aos mesmos sujeitos, isto é, aos povos negros africanos ou de matriz africana, os deslocamentos decorrentes dos fenômenos associados à Diáspora Negra promoveram reconfigurações espaciais, temporais e culturais, com consequências inovadoras no plano identitário (Zoungbo, 2012). De modo que, não obstante a origem africana seja comum aos nascidos no continente e aos afrodescendentes, neste último caso a ruptura e o deslocamento promovidos pela condição do cativeiro fendeu a identidade étnica originária e promoveu uma dupla desterritorialização (na África e no Novo Mundo), forçando movimentos de recomposição sociocultural que capacitaram os cativos e seus descendentes a resistir em situação de profunda opressão e recriar sua existência em outros termos (Piault, 1997, p. 23; Hall, 2003, p. 40). Por isto, seria preciso repensar, em cada uma dessas grandes correntes de pensamento, os significados de “tradição” e “ancestralidade”, uma vinculada a reivindicações pautadas por uma 12

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Introdução

identificação supostamente “étnica”, entre africanos, e outra, calcada em reivindicações identitárias de cunho racial e aberta a variados processos de fusão, sincretismo e mestiçagem, entre africanos e entre afrodescendentes. O certo é que, para nós, americanos, latino-americanos, em busca de referências que nos capacitem a problematizar os pressupostos hegemônicos do pensamento ocidental, etnocêntrico, é fundamental recuperar, em conjunto, o aporte do pensamento africano e do pensamento afro-americano, afro-latino, afro-brasileiro. Se, no primeiro caso, a aproximação nos permite reavaliar nossa própria condição de subalternidade advinda de nossa “herança colonial”, no segundo caso trata-se da apropriação de um pensamento mantido praticamente em silêncio nas esferas acadêmicas (mas que nunca deixou de ter ressonância entre ativistas dos movimentos sociais e comunidades excluídas brasileiras), bem como da recuperação da obra de autores essenciais como Manuel Querino (18511923), Edison Carneiro (1912-1972), Abdias Nascimento (1914-2011) e Clóvis Moura (1925-2003), entre outros, algo que tem sido feito nos últimos anos pelos pesquisadores especializados em história e cultura afro-brasileira. *** Leitores de destacados escritores negros de orientação cristã do século XIX, como Samuel Ajayi Crowther (1809-1891), Alexander Krummel (1819-1898), ou críticos dela, como Edward Wilmot Blyden (1832-1912), e de afro-americanos das primeiras décadas do século XX, principalmente W. E. B. Dubois (18681963) e Marcus Garvey (1887-1940), alguns intelectuais africanos tomaram consciência de sua responsabilidade social no processo diaspórico desencadeado pela “situação colonial” de que falava Georges Balandier em meados do século XX (Balandier, 2011). Daí a identificação de jovens universitários, como Kwame Nkrumah (1909-1972) na Inglaterra, Léopold Sédar 13

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Senghor (1906-2001), Cheikh Anta Diop (1923-1986), Joseph Ki-Zerbo (1922-2006) e tantos outros, na França, com o ideário do pan-africanismo e as orientações culturais e estéticas de valorização da “África negra” – expressas de modo mais elaborado no movimento da Négritude dos anos 1930-1950. Detectam-se, desde então, as pautas que orientariam as discussões, opções teóricas e interpretações político-sociais dos ativistas e teóricos das independências africanas entre os anos 1930 e 1970, alinhadas em torno de proposições que tinham por fim uma crítica incisiva da ordem política e intelectual vigente, colonial, e a elaboração de referenciais próprios em que encontrassem autonomia e determinação do devir dos povos do continente. Os argumentos circularam e tiveram grande eficácia junto a autores que se poderia qualificar de anticoloniais, em diálogo constante com intelectuais afro-americanos como Aimé Césaire (1913-2008), C. L. R. James (1901-1989), Frantz Fanon (1925-1961) e Edouard Glissant (1928-2011), entre outros. A maioria deles apoiava-se em pressupostos de um “nacionalismo negro-africano”, de uma “identidade negro-africana” (Sanches, 2012; Hernandez, 2014). No plano historiográfico, entre os anos 1950 e 1980, os temas do “nacionalismo africano” aparecem de modo recorrente em publicações de pesquisadores oriundos da “Escola de Dakar” (muitos vinculados ao Institut Fondamental d’Afrique Noire – Ifan, e à atual Universidade de Dakar – Cheikh Anta Diop), da “Escola de Ibadan”, na Nigéria, e da “Escola de Dar-es-Salaam”, da Tanzânia (Falola, 2004, p. 223-260). Estamos, aqui, diante de tendências fundadoras de um pensamento crítico ao colonialismo e ao eurocentrismo cujos limites epistemológicos seriam evidenciados pela geração de intelectuais nascidos no período da descolonização. Todavia, está fora de dúvida sua extraordinária contribuição na elaboração de um discurso de autoridade em bases acadêmicas, científicas, que reivindicava legitimidade para a visão dos próprios africanos sobre o seu passado e o seu presente, quebrando, deste modo, com o monopólio do discurso ocidental. 14

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Introdução

Paralelamente aos autores vinculados ao “nacionalismo africano” e parcialmente vinculados a eles, dos anos 1970 para cá convém considerar a contribuição de teóricos e pesquisadores comprometidos com uma leitura crítica da tradição marxista, lendo-a de modo distinto, a partir das condições estruturais concretas do continente africano, cujo expoente é Samir Amin (1931), pensador egípcio radicado há décadas no Mali e no Senegal, autor, entre tantas obras, de O desenvolvimento desigual: ensaio sobre as formações sociais do capitalismo periférico (1976) e La desconexión (A desconexão) (1988), inspirador e primeiro Secretário Executivo do Conselho para o Desenvolvimento da Pesquisa em Ciências Sociais em África – Codesria (Dembelé, 2011). A matriz teórica de seus trabalhos está inserida em categorias gerais vinculadas a interpretações que levam em conta a existência de conexões fenomênicas de alcance universal, como os conceitos de sistema-mundo ou da “teoria da dependência”, traço visível também nos trabalhos de outros africanistas consagrados das últimas décadas como, por exemplo, Boubacar Barry e Walter Rodney (Devés-Valdés, 2003). Um aspecto que merece ser sublinhado diz respeito ao fato de que, em geral, tais autores africanos foram formados segundo os pressupostos do pensamento ocidental (laico ou religioso), com maior ou menor vinculação ao que o filósofo congolês Valentin Mudimbe denominou de “biblioteca colonial”, com obras e conceitos orientados para a desconstrução de uma “razão etnológica”, limitados a uma perspectiva racializada, construída em torno da noção de “África Negra” (Mudimbe, 2013). Um ponto importante concernente a tais condicionamentos diz respeito ao pequeno espaço reservado aos intérpretes africanos de formação muçulmana, nascidos no Magreb e na África Oriental. Bem antes da primeira edição de Orientalismo (1978), de Edward Said, livro considerado por muitos o texto fundador dos “estudos pós-coloniais”, o sociólogo marroquino Abdelkébir Khatibi formulava em seu curto ensaio L’Orientalisme désorienté (O 15

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Orientalismo desorientado) uma poderosa crítica às epistemologias ocidentais – extraídas da metafísica, da ciência, a partir de uma perspectiva eminentemente técnica – empregadas para explicar o Oriente – incluído aí o Magreb africano –, incapazes de dar conta de sua diversidade, compreendê-lo e interagir com ele. Mais recentemente, o pesquisador senegalês Ousmane Oumar Kane considera imperativo repensar a influência desmedida das línguas e dos pressupostos “ocidentais” (europeus ou africanos) sobre a “inteligibilidade do real na África”, sistematizando dados concernentes à contribuição intelectual do islã na produção de sentidos para o continente e ampliando o repertório de possibilidades de interpretação, ao incluir no panorama cultural da África no período anterior, durante e posterior ao colonialismo europeu, a contribuição dos autores (africanos ou não) de língua árabe (Kane, 2003). De modo geral, em que pesem as diferenças político-ideológicas e teórico-metodológicas, um traço recorrente da obra dos intelectuais aqui apontados tem que ver com a reivindicação de uma interpretação endógena das questões atinentes ao seu continente. Tem que ver com o fato de que a interpretação das realidades africanas nem sempre é feita a partir do próprio continente, nem em consonância com o ponto de vista de seus intérpretes locais, o que leva Paulin Hountondji (2008, p. 149-160) a perguntar-se quão “africanos” são os “estudos africanos”, e Carlos Pimenta e Vítor Kajibanga (2011) a formularem a hipótese segundo a qual os estudos africanos, o modo que têm sido elaborados usualmente, seriam “um conhecimento periférico sobre a periferia”. É, certamente, neste mesmo sentido que devem ser entendidas as proposições de Toyn Falola, em defesa de uma relativização das interpretações ocidentalizantes e de uma “politização da identidade”, de modo que, aos africanos, seja reconhecido seu “poder de definição”, isto é, sua capacidade de iniciativa na interpretação de sua existência social (Falola, 2007, p. 21). *** 16

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Introdução

A concepção deste livro deve muito aos eventos e debates promovidos pela Rede Multidisciplinar de Estudos Africanos, do Instituto Latino-Americano de Estudos Avançados da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ilea–UFRGS), que vem se constituindo como espaço de debate, pesquisa e divulgação de conhecimento acadêmico a respeito do continente. A inspiração inicial partiu das discussões travadas durante o ciclo de debates A construção do saber na África contemporânea, realizado no período entre 29 de agosto e 12 de dezembro de 2014. A obra conta com a participação de integrantes locais do Grupo de Estudos Africanos (Adriano Migliavacca, Anselmo Chizenga, Frederico Cabral, José Rivair Macedo) e colaboradores da Rede Multidisciplinar (Eduardo Buanaissa, José Carlos dos Anjos). Outros autores foram convidados a apresentar contribuições ou porque sabíamos se tratar de assuntos de seu interesse de pesquisa, ou porque sabíamos terem simpatia pelos problemas atinentes à África e aos africanos. Convém aqui sublinhar que o livro não pretende ser uma referência para o estudo do pensamento africano contemporâneo. Estamos cientes de suas limitações e do desequilíbrio que se poderá observar no desenvolvimento dos conceitos ou no tratamento das questões examinadas nos capítulos. Entre a opção por uma discussão temática, ou por uma abordagem de caráter conceitual, ficamos meramente com a apresentação de autores e obras consideradas fundamentais para a compreensão dos problemas africanos no período da colonização europeia, descolonização e pós-emancipação, no século XX. No que diz respeito à formação dos autores convidados, a obra conta com a contribuição de docentes-pesquisadores inseridos na carreira acadêmica universitária ou em pesquisa institucional (Eduardo Buanaissa, Frederico Cabral, José Carlos dos Anjos, Muryatan Santana Barbosa, Walter Lippold) e jovens pós-graduandos com temas de pesquisa vinculados diretamente aos estudos africanos (Adriano Migliavacca, Anselmo Panse Chizen17

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ga, Gabriel Ambrósio, Guilherme Machado Botelho, Gustavo de Andrade Durão, Kassoum Diémé, Roberto Jardim da Silva, Thiago Clemêncio Sapede) ou a outras áreas do conhecimento (Gustavo Rolim, Mathias Sherer). Por considerá-la introdutória, optou-se por dividi-la em capítulos que tratam de questões nucleares do pensamento africano no século XX, a partir da enunciação feita por autores consagrados, mais ou menos conhecidos no Brasil, como Léopold Sédar Senghor (capítulo 1), Cheikh Anta Diop (capítulo 3), Joseph Ki-Zerbo (capítulo 4), Kwame Nkrumah (capítulo 5), Frantz Fanon (capítulos 6 e 7), Amílcar Cabral (capítulos 7 e 8) e Wole Soyinka (capítulo 10). Outros capítulos pretendem contribuir para a difusão do nome e aporte teórico-conceitual de intelectuais reconhecidos internacionalmente, mas praticamente anônimos no Brasil, como Marcien Towa (capítulo 2), Achille Mbembe, Paulin Houn­ tondji­, Valentin Mudimbe (capítulo 10) e Severino Ngoenha (capítulo 11). Num caso específico, o foco da análise dirige-se para o papel de uma importante instituição internacional de pesquisa, o Codesria (capítulo 9). Na parte final, apresentamos uma relação sumária de obras consideradas importantes para o estabelecimento de um panorama do pensamento africano nos séculos XIX-XX, com comentários gerais sobre elas, na seção intitulada “Bibliografia comentada”. Constam também microbiografias com as respectivas vinculações institucionais dos colaboradores, na seção intitulada “Sobre os autores”. Visando conferir certa uniformidade nas definições e conceitos, duas obras foram sugeridas aos colaboradores deste livro. Para a visão processual do pensamento político, historiográfico, filosófico, pedagógico, econômico e estético, com as tendências gerais de abordagem e eixos gerais de discussão enfocados pelos intelectuais africanos, indicamos o livro de Eduardo Devés-Valdés, O pensamento africano subsaariano. Conexões e paralelos com o pensamento latino-americano e asiático – um esquema 18

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Introdução

(2008). A intenção foi permitir uma contextualização, conceitua­ ção e problematização mínimas, de modo a evitar repetições desnecessárias ao longo dos capítulos. Para a definição geral de conceitos recorrentes nas obras dos autores estudados, sugerimos a utilização do livro organizado por Livio Sansone e Cláudio Furtado, Dicionário crítico das ciências sociais dos países de fala oficial portuguesa (2014), que conta com a contribuição de especialistas africanos, brasileiros e portugueses na redação de verbetes sobre termos técnicos, categorias e conceitos amplamente difundidos nos círculos acadêmicos para interpretar a natureza das relações político-sociais entre africanos e não africanos, como “assimilação/assimilacionismo”, “emancipação”, “colônia/ colonização/colonialismo”, “raça”, “desenvolvimento” etc. Para finalizar esta parte, parece-nos importante realçar as razões de nossas escolhas. Porque não obstante estarmos cientes do caráter introdutório deste livro, devido em grande medida ao descompasso existente entre nossos conhecimentos e nossa formação e os avanços significativos dos estudos africanos no exterior, se tivermos que aguardar uma maior consolidação da área para a divulgação de trabalhos especializados e aprofundados continuaremos no estágio em que estamos. Os assuntos tratados pelos intelectuais aqui estudados parecem-nos importantes demais para ficar circunscritos apenas aos “territórios” dos especialistas. Precisam ser divulgados e debatidos, ainda mais no momento crucial que estamos vivendo do aumento de visibili­ dade­­de formas de expressão não hegemônicas.

Referências bibliográficas AGUESSY, Honorat. “Visões e percepções tradicionais”, in: SOW, Alpha; BALOGUN, Ola; AGUESSY, Honorat; DIAGNE, Pathé. Introdução à cultura Africana (Biblioteca de Estudos Africanos). Lisboa: Edições 70, s.d., p. 95-136. BALANDIER, Georges. “A situação colonial: uma abordagem teórica”, in: SANCHES, Manuela Ribeiro (org.). As malhas que os impérios tecem: textos anticoloniais, contextos pós-coloniais. Lisboa: Edições 70, 2011, p. 219-252.

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Parte 1 Descolonização

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Negritude, construção e contestação do pensamento político-intelectual de Léopold Sédar Senghor (1928-1961) Gustavo de Andrade Durão

Nas últimas décadas, sobressaíram no debate sobre o continente pensadores desassociados do centro do debate intelectual europeu e estadunidense nas pesquisas do meio universitário e nas letras em geral. De certa forma, a globalização mobilizou parte da comunidade acadêmica ao abrir caminho para “novas fronteiras” na busca por outros paradigmas científicos. História, geografia, antropologia, filosofia, literatura e outras áreas buscaram compreender a complexidade das transformações que atravessavam a humanidade. A pesquisa sobre o conceito de négritude1 – muito difundido, mas pouco refletido – entrou nesse mesmo nível de curiosidade e investigação. Pensadores africanos se destacaram nos círculos científicos e de pesquisa do mundo todo. A escrita africana e obras de interpretação social, sobretudo, foram atingindo um espaço representativo, considerando-se as produções mais recentes. Isto pode ser observado, por exemplo, na composição da coleção História Geral da África, que conta com a participação de inúmeros africanos inseridos no debate intelectual contemporâneo.

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Na definição do conceito de négritude, a palavra será sempre será em itálico e em minúscula, por se tratar de um conceito em outro idioma. Quando estiver fazendo referência ao movimento, a palavra será escrita em “N” maiúsculo, definindo o movimento da Négritude.

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Grande parte das iniciativas entre os estudos africanos dedica-se à tarefa de desfazer o mito da inferioridade do homem negro. Nesse processo, não é possível desprezar o fator colonial. “O complexo de inferioridade e o complexo de dependência da África representam os dois lados de uma mesma medalha colonial” (Sertima, 1985 e 1986; Singer, 1959 apud Mazrui, 2010, p. 771). Foi em busca de compreender como foram erigidos muros que impediam o entendimento de temas relativos à África que surgiu a obra de Léopold Sédar Senghor, considerada fundamental para a compreensão da ruptura colonial. Mesmo sem implicar uma quebra total e completa, ela representou um momento histórico específico para o pensamento africano do século XX. A língua empregada foi a do colonizador, e as tradições orais cederam espaço à escrita, o que inviabilizou uma análise estritamente africana dos povos do continente. Como base para reflexões iniciais, encontra-se uma contradição nos estudos da história da África, ou seja, o idioma do colonizador foi utilizado para a constituição das características de alguns países africanos, e a colonização tornou o pensamento africano mais complexo (Mazrui, 2010, p. 813).

A formação de Senghor O papel de Léopold Sédar Senghor não se restringiu ao campo das produções escritas, tendo esse pensador sido uma importante personalidade no cenário político do Senegal e da África como um todo. Compreendendo como Senghor idealizou seu pensamento em torno da négritude, percebe-se que esse conceito pode ter representado uma forma de questionamento em relação à colonização francesa. Abordar um pouco de sua trajetória no debate intelectual entre Europa e África contribuiu para a expansão de um campo profundo de reflexões. Nascido em 1906, no vilarejo de Joal, Senegal, Senghor foi um dos primeiros pensadores africanos a se oporem à hipótese 24

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de que a África não possuía uma civilização. Senghor teve acesso ao ensino religioso da Escola dos Padres Brancos da Congregação do Imaculado Coração de Maria, fundada por François Libermann (1804-1852) em 1848, que em sua proposta de se adaptar ao modo de vida das comunidades onde atuavam, defendia o lema segundo o qual seria preciso “ser negro, como os negros, para conquistar Jesus Cristo” (Santos, 2002, p. 138). Acredita-se que a própria noção de civilização na obra de Senghor foi basilar para que, ao longo de sua trajetória, ele pudesse recuperar os valores que imaginava serem características da civilização negro-africana (Vaillant, 2006, p. 42-43). Ao mesmo tempo em que pregavam o catolicismo, os missionários da Escola dos Padres Brancos se preocupavam em fornecer uma formação humanista que buscasse “espalhar a instrução moral e o amor do trabalho... e constituir a família regular e a propriedade, fundamentos da sociedade humana assim como da verdadeira religião” (Vaillant, 2006, p. 45). Sua formação como seminarista foi muito importante, pois, por meio do contato com o Padre Lalouse, ele pôde desenvolver seu potencial religioso, o que não o impediu de experienciar suas faculdades críticas. Lalouse colocou muitos obstáculos no caminho de Senghor para que ele não continuasse sua trajetória de se ordenar padre. Inesperadamente, foi esse padre o responsável pela indicação de sua bolsa de estudos na França (Durão, 2011, p. 58; Vaillant, 2006, p. 54-56; Wilder, 2005, p. 153). Durante o ano de 1926, Senghor teve a possibilidade de entrar na École Normale Supérieure, passando antes, como ocorria normalmente, pela khâgne, isto é, pelos estudos preparatórios no Lycée Louis-le-Grand. Foi no Lycée onde ele recebeu os conhecimentos escolares necessários para sua admissão, e durante esse período inicial de estudos, antes de se submeter ao concurso de admissão, que, “como uma criança levada pelos pais”, pôde aprender a exaltar a sua négritude (Senghor, 1964, p. 315). Na sequência, graças aos professores da Sorbonne, ele pôde questionar os “nossos ancestrais, os gauleses”, mito que a escola 25

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colonial francesa difundia no Senegal. Em seu discurso de 1960, na mesma universidade, Senghor exaltou alguns professores que foram importantes para sua formação intelectual: “munidos dos vossos instrumentos de análise, foram vocês que me pediram a retornar às minhas fontes para esclarecê-las e canalizá-las. Parece que minhas fontes – as fontes da Négritude – são os mares de fundos abissais” (Senghor, 1964, p. 316). Na Sorbonne, Senghor foi capaz de, pouco a pouco, desenvolver a noção de Négritude e compreender que ela representava o Universal, de algum modo, um novo humanismo integral. Senghor fez referências a Teilhard de Chardin (filósofo cristão), destacando a influência de seu humanismo na construção da noção de Civilização do Universal (Senghor, 1964, p. 317). No mesmo discurso mencionado no parágrafo anterior, Senghor lançou uma definição de Négritude que, para ele, era “essencialmente, este calor humano, que é a presença de vida: o mundo. É um existencialismo para falar como vocês, enraizado na Terra-Mãe, aberto ao sol da fé” (Senghor, 1964, p. 317). Sob esse aspecto, vê-se que a Négritude senghoriana buscava, de maneira mítica, o contato com a terra, com a noção de africanidade e ancestralidade. E sua noção de Négritude, enquanto humanismo, carregava um forte apelo, quase religioso, ao contato com o espiritual, a valores que, segundo ele, tinham deixado de fazer parte da “civilização francesa”: “Sim, para mim, Paris é, em primeiro lugar, uma cidade – uma sinfonia de pedras – aberta em uma paisagem harmoniosa de água, flores, florestas e colinas. Paisagem, que é a paisagem da alma, a medida do homem. E tudo o que se clareia pela luz do espírito” (Senghor, 1964, p. 313). Para Senghor, Paris significava uma abertura ao mundo onde era possível estabelecer uma procura pelo “outro”, representando a criação e um pouco do espírito da genialidade francesa. “Tudo fala do homem e tende para o homem, tudo se realiza como uma expressão do espírito, que é o espírito humano” (Senghor, 1964, p. 313). Contudo, ali ele aprendeu mais sobre si mes26

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mo do que sobre o “outro”. Tal viagem interna foi facilitada pela experiência de viver em Paris. Em suas próprias palavras, Paris era o maior museu de arte negro-africana que conheceu. A capital francesa revelou-lhe valores de uma civilização ancestral que ele se via obrigado a assumir e fazer nascer dentro de si mesmo (Senghor, 1964, p. 313-314). Ele logo compreendeu que em Paris havia toda uma geração de africanos e antilhanos que poderiam fazer florescer os valores da “art nègre” dentro de si mesmos.

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como movimento literário

Nos anos de 1980, com o surgimento da teoria pós-colonial, o movimento da Négritude ganhou um importante espaço de interpretação, e a caracterização do movimento – mesmo para que fosse a seguir desconstruído – foi o que recolocou em destaque personalidades como Aimé Césaire e Léopold Sédar Senghor. De certo modo, era um ressurgimento e uma renovada atenção ao significado de uma crítica literária de expressão francesa feita por negros na década de 1930 (Ashcroft et al., 2004, p. 122). Em seu momento de eclosão, o movimento representou a valorização da escrita literária, sobretudo da poesia, explicitando a relação entre produção intelectual e condição colonial. A Négritude representou uma das primeiras tentativas de se elaborar uma teoria da escrita africana, em que temas semelhantes foram abordados por três intelectuais negros de diferentes nacionalidades: Léopold Senghor, do Senegal, Aimé Césaire, da Martinica, e Léon-Gontran Damas, da Guiana, que debateram coletivamente sobre as especificidades naturais do negro. Essas características, artísticas ou psicológicas, do negro-africano estavam representadas pela Négritude (Ashcroft et al., 2004, p. 123). Nesse sentido, não obstante todas as críticas posteriores, deve-se a eles “um dos conceitos decisivos no desenvolvimento da moderna consciência negra, e é a primeira afirmação dessas culturas negras que a colonização procurou suprimir e negar” (Ashcroft et al., 2004, p. 123). 27

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Entretanto, a crítica pós-colonial ressalta que a obra de Frantz Fanon teria dado uma espécie de continuidade ao pensamento dos escritores do movimento. Ainda enquanto crítica, tem-se a afirmação do escritor nigeriano Wole Soyinka que, em tom de reserva, afirmou que “o tigre não precisava exaltar sua tigritude, mas saltava sobre sua presa” (Ashcroft et al., 2004, p. 123). Nota-se aí seu posicionamento em direção a uma crítica de caráter mais político, e não estético e cultural, âmbito privilegiado pela Négritude, no que Soyinka enfileira-se com os inte­lectuais­da nova geração de pensadores negros anglófonos da década de 1960 (Chevrier, 2003, p. 46). De resto, no meio anglófono, o conceito que gozou de maior aceitação foi o de African Personality (Personalidade Africana), empregado para definir o conjunto de características estéticas e culturais de valorização dos negros, algo já defendido pelo pensador afro-americano Edward Wilmot Blyden desde 1920 e que nos permite pensar em uma coexistência e paralelismo com a Négritude: O surgimento e o desenvolvimento do conceito de ‘negritude’ são inseparáveis do meio ambiente afro-parisiense, ainda que isso não baste para explicá-lo. Em um contexto muito diferente, E. W. Blyden havia criado décadas antes o ‘african personality’, ainda que tenha tido muito menos desenvolvimento e projeções, e por isso mesmo não tenha sido capitalizado por L. Senghor e A. Césaire, os criadores da négritude (Déves-Valdés, 2008, p. 107).

Os escritores da Négritude tinham acompanhado a criação de revistas literárias animadas por escritores negros, como a Revue du Monde Noir (1930-1931) e a Légitime Défense (1932). Mais especificamente, a Revue du Monde Noir contestava a ordem vigente e englobava pensadores como Étienne-Leroy, René Maran, Jean Price-Mars e os jovens Senghor e Césaire. Sem fazer distinção entre as produções em língua inglesa e francesa, esses autores se interessavam por todas as formas de produção cultural 28

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vindas de intelectuais negros. O periódico L’Étudiant Noir propiciou a produção e a gênese do movimento da Négritude e contou com a participação de, além de Senghor e Césaire, escritores como Léon-Gontran Damas, Léonard Sainville, Birago Diop e Ousmane Socé (Chevrier, 2003, p. 37-38): Nós estávamos, então, imersos (entre 1932 e 1935), escreveu Senghor, com alguns outros estudantes negros, em uma espécie de desespero-pânico. O horizonte estava obstruído. Nenhuma reforma em perspectiva e os colonizadores legitimaram nossa dependência política e econômica com a teoria da Tábula Rasa. Nós não tínhamos, achavam eles, inventado nada, criado nada, nem esculpido, pintado ou cantado... Para estabelecer uma revolução eficaz, nós tivemos primeiro que nos livrar de nossas fantasias, aquelas da assimilação, e afirmar o nosso ser, ou seja, a nossa negritude (Chevrier, 2003, p. 38-39).

Esquematicamente se pode dizer que o movimento aqui mencionado, enquanto produção do saber, esteve ligado às bases de um “nacionalismo cultural negro-africano”. Nesse sentido, a ideologia da Négritude gerou material para grande parte dos escritores negros, demonstrando sua característica primordial, a de um etnocentrismo ao reverso (Parry, 2004, p. 43), maneira encontrada para causar o mesmo efeito no sistema de dominação colonial. De modo que, utilizando-se da ideia de um passado mítico e imutável para os africanos, a Négritude de Senghor foi uma “essencialização do negro” que, no momento específico em que foi criada, teve um grande impacto sobre os pensadores em situação colonial (Parry, 2004, p. 43).

Algumas perspectivas do pensamento de Senghor Senghor acreditava no caráter transformador da missão francesa e, em alguns discursos, apontava a dificuldade de viver sob a condição colonial. Prisioneiro de guerra, na Alemanha, em 1941, afirmava que, durante esse tempo, no campo de prisionei29

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ros denominado Frontstalag 230, lhe foi útil a leitura das obras do humanismo francês, pois ajudaram-no a relembrar seu lugar de origem. Ele aceitava a ideia dessa missão da França de conduzir as civilizações exóticas rumo a um ideal de cultura e avanço intelectual. Encontra-se aí, em parte, a razão da ambiguidade que o levava a pensar que Négritude e francité (francidade) fossem conceitos complementares e que o escritor negro não precisaria escolher entre um ou outro (Vaillant, 2006, p. 340-341). Talvez esse tenha sido seu primeiro impulso diante de um ideal de civilização francesa, o que sempre fez questão de enunciar de modo claro e objetivo em seus discursos: “Hoje, mais do que nunca, estamos conscientes de nossas deficiências: as lacunas da civilização negro-africana. Eis porque nós sempre nos recusamos em recusar as contribuições europeias, principalmente os valores franceses. Estes são complementares aos nossos” (Senghor, 1964, p. 318). O vínculo com o ideal de uma civilização europeia levou os escritores da Négritude a expressarem-se preferencialmente em língua francesa; mesmo depois da independência, esse foi o molde em que se formariam as elites africanas. Entretanto, havia mais do que um problema técnico, havia um problema cultural. Para “tratar da formação do Homem Integral” (Senghor, 1964, p. 318), o intelectual Senghor compreendeu que, de alguma forma, a colonização era construída através do ideal de cultura (ou civilização) e isso o levou a atuar no campo da cultura na tentativa de romper com o estatuto de submissão dos povos africanos. O projeto inicial era articular a atuação política e o embate cultural, um em conformidade com o outro. Ou seja, a colonização vista como um ato econômico (ou político) também buscava o âmbito cultural e, de alguma maneira, as uniões transnacionais da Négritude laboravam para que o combate tivesse início no campo da produção intelectual (Mazrui, 2010, p. 576). Como tantos outros pensadores de seu tempo, Senghor estava inserido nos movimentos que almejavam a unidade. É 30

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possível que o autor, ao fim da Segunda Guerra Mundial, tenha revisto seus próprios conceitos, precisando assumir posturas mais vinculadas a uma realidade político-social, como tem sido salientado em estudos biográficos recentes (Vaillant, 2006, p. 281-282). Sob esse aspecto, ao retornar para o Senegal, após a Segunda Guerra Mundial, com sua carreira já consolidada, Senghor não precisava pleitear um espaço de interlocução com a França no campo cultural, mas via-se forçado a se dedicar à militância como forma de expandir ainda mais o diálogo com o país, fazendo-se valer de sua condição de porta-voz. Com maior espaço no meio político, distanciou-se de seu antigo tutor (e amigo) Lamine Guèye. Desse momento em diante, procurou constituir um espaço próprio no jogo político da colonização (Vaillant, 2006, p. 262). O poeta mostrou-se perspicaz ao perceber que o poder estava concentrado nas estruturas da burocracia francesa. Ele pensava em penetrar nessas estruturas para fazer valer os interesses comuns aos africanos e franceses no contexto de dominação da África Ocidental Francesa. 2 Nessas circunstâncias, abandonou o conceito de négritude e atuou na estrutura político-administrativa, propícia ao seu status de “nègre nouveau” (Vaillant, 2006, p. 262).

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de Senghor: um panorama geral

Muitos foram os elementos que contribuíram para o processo de constituição identitária de uma “África negra”. O fim da Primeira Guerra colocou em evidência músicos negros dos Esta2

Em 1946, a França tinha controle sobre duas regiões previamente definidas: a África Ocidental Francesa (AOF) e a África Equatorial Francesa (AEF). A AOF englobava 8 territórios: Senegal, Mauritânia, Sudão Francês, parte da Nigéria, Costa do Marfim, Guiné e Daomé; enquanto a AEF englobava apenas quatro, Médio Congo, Gabão, Oubangui-Chari (atualmente República Centro Africana) e o Chade (Kipré, 1989, p. 22).

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dos Unidos que retornaram do conflito, bem como as divisões e desigualdades existentes que oprimiam os afro-americanos, considerados em seu país de origem cidadãos de segunda classe. Ao mesmo tempo, o surgimento do jazz em Paris deu maior visibilidade às novas formas de expressão artística protagonizadas pelos descendentes de africanos (Njami, 2006, p. 138). A literatura definida como negro-africana surgiu em um contexto plural do início do século XX. As descobertas de pensadores como Michel Leiris e de artistas como Paul Guillaume trouxeram a “arte negra” à baila nas discussões sobre raça, cultura e civilização no meio cultural europeu. Nas representações culturais, o espetáculo La Revue Nègre apresentava Josephine Baker e Sidney Bechet como uma expressão caricatural e exótica do negro. Outro exemplo foi o ballet La Création du Monde que, por meio da noção de art nègre em voga, trouxe a performance idealizada por Darius Milhaud de que havia uma nova expressão “primitiva” a ser mostrada. Aliado a isso, as ideias estéticas inspiradas nas máscaras africanas desenvolvidas primeiramente por Picasso começavam a ganhar forma nas representações artísticas de Fernand Léger no começo do século XX (Chevrier, 2003, p. 22). No campo da literatura, várias foram as manifestações que refletiam o papel do negro. Dentre elas, destacaram-se as obras de Blaise Cendrars, Les petits contes nègres pour les enfants des blancs (1928), e Le Nègre blanc (1927), de Philippe Soupault, o primeiro apresentando uma antologia de poemas e contos tidos como africanos, e o segundo, uma obra que romanceava a questão do primitivismo (Chevrier, 2003, p. 22). As produções intelectuais dos pensadores africanos e a influência do primitivismo sobre os artistas modernistas europeus do início do século XX, em particular os surrealistas, apesar de se basearem em estereótipos, propiciaram novas discussões sobre exotismo, primitivismo e percepções culturais fora de espaços tradicionais da produção europeia. Vale lembrar, por exemplo, que André Breton, um dos mais consagrados escritores franceses da época e um dos incentivadores do surrealismo, foi quem assi32

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nou o prefácio do livro de Aimé Césaire em Cahier d’um retour au pays natal (Micheli, 2004, p. 152). Segundo uma visão mais tradicional de pesquisa inserida no tema da Négritude trilhada por Senghor, tem-se o movimento do Renascimento do Harlem (ou Harlem Renaissance) como um acontecimento que influenciou ideologicamente os pensadores falantes do francês. O Renascimento do Harlem foi, em linhas gerais, a reunião de apresentações de poesia, música e outras manifestações artísticas animadas pelos escritores negros dos Estados Unidos, tais como James Weldon Johnson, Claude McKay, Countee Cullen, Langston Hughes e Sterling Brown (Chevrier, 2003, p. 23). Este movimento significou, de alguma forma, a concretização de uma intelligentsia estadunidense que explorou os valores do primitivismo e da criatividade artística, sobretudo através do conceito de “soul”, baseado na ideia da redescoberta de uma essência negra. Dentre seus representantes, destacou-se Claude McKay, o mais ligado aos escritores do periódico L’étudiant noir (O estudante negro), cujo romance Home to Harlem (De casa para o Harlem) influenciou consideravelmente os pensadores africanos (Chevrier, 2003, p. 23).3 O início do Movimento do Harlem, datado de 1920, vincula-se à antologia poética de Alain Locke intitulada The new negro (O novo negro), e seu declínio ocorreu por conta da crise dos anos de 1930, que provocou sua desarticulação e levou alguns intelectuais que dele participavam a procurar outros modos de vida na Europa e em outros países fora do continente americano (Chevrier, 2003, p. 24).

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Interessante lembrar que Senghor foi criticado por escritores afro-americanos por causa do nome dado ao movimento Négritude, o que ele não entendia, já que se imaginava herdeiro do Movimento do Harlem Renaissance que carregava, igualmente, uma palavra francesa, sem ter sido por isso vilipendiado. Em relação ao movimento do Renascimento do Harlem ver: Huggins, Nathan Irvin. The Harlem Renaissance. NY: Oxford University Press, 1971.

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Um último fator relevante na formação intelectual de alguns escritores africanos (como Senghor) foi a obra do escritor guianense René Maran, Batouala – véritable roman nègre, (Batouala – verdadeiro romance preto), de 1920. Considerada uma das primeiras formas de expressão da literatura negra em língua francesa, o livro de Maran ganhou, em 1921, o prêmio Goncourt, que prestigia as principais produções literárias estrangeiras (Chevrier, 2003, p. 30-31).4 Senghor identificou-se com Maran em virtude da crise de identidade que este viveu no contato com a colonização francesa, mesmo que tal crise não tenha sido manifestada em uma crítica à França e nem mesmo ao sistema colonial em si (apenas à maneira como a metrópole geria seus territórios). De qualquer modo, ainda que de forma indireta, atingia-se o cerne da questão do escritor negro falante do francês. Nesse sentido, Maran pode ter representado o assimilado por excelência e, ao mesmo tempo, ter percebido que a França fazia uma diferenciação entre antilhanos e africanos: Os estudantes da geração de Senghor viam-no como um escritor de sucesso e sobrevivente repleto de sabedoria de uma outra geração. Maran, por sua vez, estava repensando a situação enquanto negro, totalmente francês por sua cultura, certamente, mas, no entanto, e seguramente, ainda inaceitável para a maioria da sociedade francesa (Vaillaint, 2006, p. 146).

Sob esse aspecto, Maran era o antilhano que não via a separação entre africanos e antilhanos, rompendo com a perspectiva de que uns teriam mais prestígio que outros. Ele foi tido por Senghor como humanista por excelência, pois percebia que sua identidade

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René Maran, na condição de administrador de um território da África Equatorial Francesa (atualmente República Centro-Africana), narrou as dificuldades pelas quais passou em seu cargo, durante seis anos. Ao constatar o tratamento que a França impunha aos africanos, sem considerá-los como seres humanos, Maran foi afastado das funções administrativas (Chevrier, 2003, p. 31).

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cultural era múltipla e lutava para não reproduzir a separação entre franceses, africanos e antilhanos, preconizada anteriormente.

Antilhanos e africanos – a identidade negra Sentavam-se todos à mesa no restaurante universitário, no ano de 1928, onde homens negros, oriundos da Martinica e da Guiana, vinham participar de um momento de confraternização, na pausa de seus estudos na Cidade Universitária de Paris (Wilder, 2005, p. 187).5 Tomavam assento, também, senegaleses e marfinenses em outro lado do refeitório. Eram estudantes de direito, engenharia, letras e outros futuros profissionais que consideravam essa oportunidade de estudo na capital francesa algo fundamental para as suas vidas. Essa divisão acabava deixando a vida intelectual, em Paris, ainda mais complicada: o aprendizado do francês, as dificuldades acadêmicas, a diferença da cor da pele, o fato de ser “o estrangeiro”, inclusive as limitações monetárias afetavam profundamente a psique desses indivíduos. Senghor levou os africanos para almoçar com seus pares das Antilhas, na Cité Universitaire, apesar de uma desconfiança mútua. Senghor reuniu-se, regularmente, com o grupo maior de estudantes antilhanos, incluindo Césaire e aqueles filiados à Légitime Défense. Eles o viam como um ‘representante da África’, liam os seus poemas, nos quais os valores negro-africanos eram glorificados. Estes Antilhanos estavam ansiosos para aprender com os poucos africanos em Paris (Wilder, 2005, p. 186; Diop, 1978, p. 77-78).

O papel de Senghor limitava-se a unir as mesas, chamar todos à mesma convivência e incentivar os grupos a viverem em

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A Cidade Universitária (Cité Internacionale Universitaire de Paris) foi criada em 1920, graças à iniciativa de grandes mecenas, para abrigar estudantes sem condições de habitar o centro de Paris. Senghor morou algum tempo na Fondation Deutch de la Meurthe e Aimé Césaire passou algum tempo nessa mesma casa (Wilder, 2005, p. 187).

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cordialidade. A cor da pele era o primeiro fator de identificação, mas também havia as aspirações profissionais, as perspectivas em relação aos incentivos da colonização e mesmo as relações interculturais entre os países. Em geral, os estudantes provindos das colônias estavam mais preocupados em seguir sua formação acadêmica do que em organizar algum tipo de resistência à colonização. Talvez, por isso, tenham se concentrado muito mais em recobrar sua dignidade negra do que em lutar para melhores condições sociais em África (Wilder, 2005, p. 185). Apesar de tudo isso, esse momento de descoberta de experiên­ cias novas alterou profundamente a vida do jovem Léopold Senghor: angústias, medos e o sentimento de que deveria provar a outrem sua capacidade de pensar, agir e criar, tudo estava à prova. Um amigo relatou que, depois de pagar o aluguel, Senghor só tinha dinheiro para uma refeição diária, livros que precisava e uma ida mensal ao teatro. Ele escrevia várias cartas para a administração senegalesa, pedindo dinheiro para poder continuar a ter aulas na Sorbonne. Sua ajuda de custo consistia em apenas 250 francos e ele precisava de mais fundos para comprar livros e continuar sua formação no curso de letras. Nessas cartas, ele discutia suas finanças pessoais, que eram irrisórias. Isso o levava a graves crises de depressão (Wilder, 2005, p. 153-154).6 Assim como Senghor, Césaire passou por momentos de tristeza profunda, principalmente por não conseguir sua “agrégation” (agregação) em letras. O pensador da Martinica ficava doente cada vez que tinha uma decepção em sua vida acadêmica

Senghor entrou para o khâgne no ano de 1928. Ele escreveu como trabalho final a tese L’Exotisme chez Baudelaire (O Exotismo em Baudelaire). Em 1935, tornou-se um dos primeiros negros a ter a agrégation, título máximo que possibilita aos professores ensinar nos liceus, nos cursos preparatórios e, inclusive, lecionar nas universidades francesas (Wilder, 2005, p. 153). De certo modo, ser um agrégé representava, automaticamente, a obtenção da cidadania francesa.

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enquanto realizava seus estudos no ambiente parisiense (Wilder, 2005, p. 154).7 A amizade de Senghor e Césaire foi interessante: de um lado, havia o estudante africano que precisava de outro referencial intelectual não europeu, e, do outro, havia um antilhano que buscava os saberes africanos para rever suas origens. Quando chegou a Paris, Césaire percebeu que a assimilação da cultura francesa havia resultado na sua alienação. Dessa maneira, Senghor era seu ponto de apoio. Com o convívio, ambos constituiriam suas experiências de “ser negro” na metrópole (Wilder, 2005, p. 153). Os estereótipos relativos aos negros não eram totalmente esquecidos, pois, se existiam, era porque, de algum modo, a ciência da época assim tornou possível sua existência. Essa experiência vivida por homens negros, seja africanos ou antilhanos, era forte demais para ser ignorada e fazia parte do contexto político-social desses indivíduos no período entre guerras. Concomitantemente, esses antilhanos e africanos assumiram a cidadania francesa durante o período em que estiveram no país. Apesar da determinação da sociedade francesa (e do tratamento diferenciado reservado a eles), esses homens participaram da esfera política e viveram como franceses, na época. Mesmo não estando totalmente inseridos na sociedade civil, os emigrantes coloniais foram bem-sucedidos, pois criaram uma “esfera pública negra” alternativa no espaço da metrópole (Wilder, 2005, p. 160-161). Com o passar do tempo, os fundadores do movimento chegariam a diferentes concepções de consciência racial, de nacionalismo cultural e várias outras definições. No entanto, todos concordavam em que o conceito de Négritude era uma rejeição à assimilação, uma identificação com a “blackness” e,

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Césaire entrou para a École Normale Supérieure (Escola Normal Superior) no mesmo ano em que Senghor se formava na Sorbonne, em 1935 (Wilder, 2005, p. 153).

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ao mesmo tempo, uma celebração da civilização africana (Wilder, 2005, p. 156).

O homem negro como o “outro” A vida em Paris alterou profundamente a maneira de Senghor de se posicionar no mundo, e foi o início da percepção de sua alteridade. Suas ideias em relação à cultura francesa modificaram-se e, na metrópole, ele percebeu sua dupla identidade, como negro e como francês (Vaillant, 2006, p. 130). A passagem de Césaire abrangia um pouco da construção desta identidade: “Em Paris, ao mesmo tempo em que eu descobri a cultura, eu compreendi melhor as razões de minha insatisfação: eu tomei consciência de meu vínculo à condição original de preto. A minha poesia nasceu dessa constatação” (Vaillant, 2006, p. 130). O sentimento de não poder se desvincular de sua cor o levou a integrar-se com outros homens negros. Desse modo, Senghor iniciava uma investida quase inconsciente de unir africanos e antilhanos em torno das noções de pertencimento ou exclusão em relação à metrópole. Frantz Fanon foi um pensador que investigou e explicou essa noção de deslocamento, por parte do negro, em contato com a metrópole. Oriundo da Martinica, Fanon desenvolveu nos anos de 1950, em sua obra Pele negra, máscaras brancas, uma teoria da exclusão (Fanon, 2008, p. 31). Ele explicou o referencial do antilhano que enfrentava sérios problemas quando na metrópole, sentindo-se mais francês do que o próprio colonizador. Eles não se identificavam em nada com os africanos e ficavam alheios aos problemas vividos pelos homens negros em território francês (Vaillant, 2006, p. 130).8 8

David Macey, na biografia de Fanon, aponta que o pensador da Martinica não se adaptou à realidade parisiense e teria ido para Lyon, onde havia uma comunidade de estudantes martinicanos numerosa em solo francês (Macey, 2012, p. 132-133).

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De acordo com Fanon, o antilhano só se daria conta de que ele é um preto (nègre) quando chegasse a Paris e visse o tipo de tratamento que lhe seria reservado. Apesar de um status de francité (francidade), o antilhano só percebe que não faz parte da cultura francesa quando se descobre um estrangeiro entre os brancos. Assim, as divisões poderiam acontecer de modo a situar africanos e antilhanos como iguais, todos sob os signos da exclusão e do preconceito (Vaillant, 2006, p. 130-131; Macey, 2012, p. 133). Para tentar resolver o problema, as associações de estudantes e organizações, tidas como pan-africanas, cumpriram, de certa maneira, a função de tornar os grupos de estudantes negros um pouco menos marginais. Por isso, antes de compreender-se a relação dos escritores africanos com a metrópole, faz-se necessário vê-los como uma geração que saía da condição de súditos e, paulatinamente, alterava sua condição de cidadãos, pois conseguiam circular melhor no sistema europeu através da instrumentalização de seus signos (Wilder, 2005, p. 160-161).9

: movimento e conceito A négritude (enquanto conceito) não foi simplesmente um conjunto de teorias elaborado contra o colonialismo, mas uma pró-africanidade, uma espécie de formação discursiva e uma produção pan-africana pública, produzida por (e através de) indivíduos e instituições que formavam uma rede específica, historicamente constituída (Wilder, 2005, p. 150-151). O conceito de négritude deve ser diferenciado do movimento da Négritude. Enquanto o primeiro é plural e encontra ainda hoje inúmeras definições, o movimento teve um lugar específico

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As primeiras organizações de estudantes africanos foram a Indépendants d’Outre-Mer (Independentes do Além-Mar) e a Société Africaine de Culture (Sociedade Africana de Cultura). Ambas puderam contar com a participação de Léopold Senghor. Esta última deu origem à editora Présence Africaine (M’Bokolo, 2011, p. 588-616).

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no tempo e no espaço, o que representava uma importante contribuição para o cânone das ciências humanas, seja para a filosofia, a sociologia, a história, ou mesmo para as relações internacionais. A definição de Wilder se mostra bastante objetiva e ilustra, de modo histórico, o movimento: Nunca uma organização formal, Négritude foi um projeto cultural que emergiu através de intensas discussões e da amizade íntima entre um grupo diaspórico, cujos membros partilhavam origens coloniais semelhantes e desafios metropolitanos, bem como um interesse em África (Wilder, 2005, p. 151).

Gary Wilder e Janet Vaillant realizaram análises com base em documentos de época e entrevistas feitas com os integrantes do movimento, demonstrando as relações desses pensadores negros entre si e com o mundo intelectual que os rodeava (Wilder, 2005, p. 258; Vaillant, 2006, p. 118). Tem-se, dessa maneira, a caracterização do movimento que surge concretamente a partir de 1934 e encontrou seu ápice na antologia poética de escritores negros na qual Jean-Paul Sartre colaborou com famoso prefácio, Orphée Noir (Orfeu Negro). Por outro lado, pensadores como Achille Mbembe e Simon Njami abordaram mais a força da Négritude como um legado (héritage) com apelo ideológico e filosófico para a retomada dos valores ancestrais dos negros (Mbembe, 2001, p. 191; Njami, 2006, p. 137). Vale lembrar também que, graças à projeção do conceito da négritude, as trajetórias dos representantes do movimento conseguiram atingir o campo das representações políticas (Njami, 2006, p. 138). Os críticos do conceito da négritude preocupavam-se, pois, com a realidade africana, cuja definição poderia isolar os negros falantes do francês. Ou seja, os pensadores das gerações de 1960 e 1970 viram essa concepção como um mito perigoso para a África. 40

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Contudo, a négritude desenvolvida por Senghor gerou muita desconfiança por parte de intelectuais negros, fossem eles falantes do francês ou não. É possível que Senghor tenha ventilado o conceito de tal maneira que políticos africanos tenham percebido seu potencial de penetração. “O que começou como um conjunto de ideias sobre identidade e cultura se transformou em ideologia política” (Vaillant, 2006, p. 292). Com o distanciamento dos escritores das manifestações culturais, Senghor acabou tomando um papel de destaque na divulgação da ideologia do movimento Négritude, o que demonstra a necessidade de uma pesquisa para se estabelecerem relações entre o conceito de négritude e o Socialismo Africano na trajetória de Senghor (Vaillant, 2006, p. 385).

As críticas ao movimento Tachado de desatualizado (dépassé), o conceito de négritude ainda assim, voltou ao debate, principalmente entre filósofos africanos como Kwame Anthony Appiah, Achille Mbembe, Paulin Hountondji e Valentin Yves Mudimbe. De algum modo, esses autores foram obrigados a reconhecer que a négritude foi algo importante em um período crucial da história africana e na trajetória dos escritores ligados à luta anticolonial. Durante o período de maturação política da África francesa, o conceito de négritude foi atrelado à trajetória de Léopold Senghor. Para os intelectuais de língua inglesa, esse conceito e Senghor representavam quase a mesma coisa. Desse modo, nos anos de 1960 e 1970, pensadores negros como o beninense Stanislas Speros Adotevi e o camaronense Marcien Towa abordaram o tema como uma ideologia, prevendo perigos em sua disseminação (M’Bokolo, 2008, p. 532; Benot, 1974, p. 146-161). O Festival Pan-africano de Alger (1969) representou uma ocasião especial para o refinamento das apreciações do movimento. Nesse encontro, ficou evidenciada a distância entre os escritores negros de língua inglesa e os de francesa. Os autores da 41

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Négritude provinham, originalmente, das ilhas do Caribe e da África francófona. Esse fator linguístico foi enfatizado por aqueles que queriam se distanciar dessa denominação (Senghor, 1971b, p. 10). Pode-se dizer que grande parte das críticas se originou da vontade de uma ruptura com os pensadores africanos francófonos. Levados, sobretudo, pela crítica de Wole Soyinka ao papel de acomodação que a Négritude suscitava nos escritores negros, os autores das novas gerações perceberam o conceito como um mito, já que não representava unanimidade e, tampouco, aceitação. Dois exemplos de crítica da Négritude são emblemáticos – os de Adotevi e de Towa. O escritor camaronês Marcien Towa representava essa nova geração dos anos de 1970, que, influenciada pelo congresso de 1969 em Argel, optou por posturas mais políticas nas suas manifestações escritas. Towa voltava suas análises ao contexto social do seu país e preocupava-se com as mudanças do mundo em plena crise de ideologias do contexto da guerra fria (Chevrier, 2003, p. 12). Towa preocupava-se, igualmente, com a produção de um sistema de ideias e de uma linha de pensamento para o Camarões que não se baseasse somente no modelo de Négritude, mas que representasse sua realidade nacional (Towa, 1971 apud Benot, 1974, p. 159). Ele também relacionou a etnofilosofia à ambiguidade da Négritude, sugerindo que os valores dessas duas correntes abordavam temas totalmente alheios aos pensadores de sua geração. Essa “africanidade” foi considerada uma construção artificial dos escritores das décadas de 1930 e 1940 (Mudimbe, 2013, p. 192). O filósofo camaronês percebia o conceito forjado por Senghor como uma ideologia para os povos africanos, como uma resposta diante de um mundo globalizado e dividido entre capitalismo e socialismo. Towa associava a négritude de Senghor a um “mimetismo” que reproduzia a cultura europeia como uma “ideologia” aparentemente representativa para o continente afri42

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cano, mas a serviço da colonização e de novos tipos de racismo (Benot, 1974, p. 161). De maneira geral, Towa negava a definição de Senghor, pois percebia que ela estabelecia um modelo a ser seguido. Para ele, esse modelo servia mais à França do que aos países africanos, sendo Senghor apenas um receptáculo das deman­das da antiga metrópole.10 Por sua vez, o escritor Stanislas Adotevi rejeitava a négritude como escola literária, não se identificando com essa “fraternidade abstrata dos negros” engendrada pelos representantes do movimento. Adotevi tinha conhecimento de que a noção de négritude não se referia aos problemas dos homens de Gana, da Costa do Marfim, de Ruanda ou do Daomé (Adotevi, 1998, p. 45-46). O escritor também se opôs à mudança do papel de Senghor do campo literário para o político, postulando que os valores da sensibilidade que o senegalês exaltava não representavam os negros da África em sua totalidade. Nesse sentido, Senghor é caracterizado como o porta-voz dos povos negros sem englobar uma quantidade representativa de indivíduos de outras nacionalidades. Por isso, Adotevi é direto em sua análise do pensamento de Senghor: “O interesse de Senghor reside, na verdade, menos naquilo que escreveu do que na confusão do seu pensamento. É nessa adequação de suas noções dos problemas africanos que se encontra a chave das dificuldades que levanta a négritude” (Adotevi, 1998, p. 103). O discurso de Adotevi criticava a Négritude de Senghor e ainda distinguia a trajetória política desse pensador, que não correspondia aos compromissos dos povos negros. Senghor está diretamente associado à França e, consequentemente, ao neocolonialismo, o que não deixava espaço algum para que o pensador e seu conceito fossem levados em consideração (Adotevi, 1998, p. 99-100). 10

Nesse ponto, Simon Njami discorda da ideia de Marcien Towa de que Senghor tenha feito da Négritude sua aventura pessoal. “A négritude é uma palavra valise, uma palavra metáfora. Uma palavra que conta histórias, mais do que relata os fatos” (Njami, 2006, p. 144-145).

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Dois filósofos recentes reforçam essa visão crítica. Em primeiro lugar, o pensador Achille Mbembe interpreta a négritude como conceito associado a uma noção de africanidade, com características utópicas. Essa identidade mítica carrega consigo subjetividade e reproduz as noções da etnologia francesa que gerou a colonização (Mbembe, 2001, p. 191). De certo modo, Mbembe interpreta as movimentações culturais dos homens negros como formas de lidar com as imposições dos valores europeus vis-à-vis suas culturas. Para ele, a négritude, e mesmo o pan-africanismo, se trazidos para os dias atuais, não se enquadrariam nas demandas dos diversos Estados-nacionais, podendo criar utopias e tradições artificiais. Nesse sentido, a análise desse pensador é, antes de tudo, a constatação de que uma noção de “africanidade” gera uma avaliação quase sempre artificial e imaginada, não contemplando aqueles que reivindicam sua real identidade (Mbembe, 2001, p. 191). Valentin Yves Mudimbe, outro pensador que retomou o conceito de négritude, procurou compreender seu papel de sistema de pensamento, e levá-lo em consideração, apesar das características diaspóricas e transnacionais do movimento. Ele trabalhou com a perspectiva de négritude como uma forma de expressão cultural na qual o negro pudesse expor suas visões de diferença enquanto negros (Mudimbe, 1988, p. 83). Mudimbe considerava a Négritude um dos movimentos pan-africanos, tais como a criação da Présence Africaine e os Congressos de Artistas e Escritores Negros que ocorreram em Paris, em 1956, e em 1959, em Roma. A crítica desse pensador aponta para a tentativa da négritude (enquanto conceito) de essencializar a “experiência de ser negro”, ou seja, a ideia de négritude esvaziando a heterogeneidade da experiência vivida pelos negros do mundo todo. Mudimbe leva em consideração o caráter europeu do movimento, demonstrando que ele nunca se desvencilhou da estética ocidental, representando um acontecimento inserido em 44

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uma série de transformações sociais das culturas não europeias. Os mais originais [novos tipos de discursos] incluem o movimento da Négritude, a quinta conferência Pan-Africana e a criação da Présence Africaine. Eventualmente, esses sinais de uma vontade africana de poder conduziram a confrontos políticos e intelectuais (Conferências de Bandung, Paris e Roma). Na década de 1950, também testemunhamos uma crítica radical da antropologia e das diferentes ideias de culturas não ocidentais. Desde então ocorreu um debate estimulante sobre o significado africano das ciências sociais e humanas (Mudimbe, 2013, p. 112).

O Movimento da Négritude foi interpretado durante muito tempo como um sistema de pensamento ou até uma forma de organização do pensamento nos moldes africanos (Benot, 1974, p. 135). Essa apreciação não representou o primeiro impulso do movimento, de modo que o conceito não foi utilizado para que ocorressem articulações de poder. Como destaca Janet Vaillant (2006, p. 293-294), Senghor deixava de utilizar o termo négritude em seus discursos políticos dos anos de 1940 e preferia ser denominado como um Nègre Nouveau.11 Além disso, é inegável que intelectuais como Senghor, Césaire, Cheikh Anta Diop e Fanon tenham sido relevantes para se iniciarem novas reflexões mais afro-centradas.12

Foi preciso abandonar um pouco a divulgação do conceito para que Senghor pudesse investir no campo político. O pensador senegalês teve grande abertura na política, pois a França já o reconhecia como cidadão francês e ele já possuía uma vantagem diante dos diálogos entre a metrópole e os territórios coloniais. 12 Desde 1947, a Revista Présence Africaine, organizada por Alioune Diop, reuniu publicações e encontros intelectuais entre Aimé Césaire, Léopold Senghor, Jean Price-Mars (Haiti), Richard Wright (Estados Unidos), Amadou Hampaté Bâ (Daomé), Frantz Fanon (Martinica), entre outros influentes escritores negros (Chevrier, 2006, p.156-157). 11

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Na década de 1970, Senghor retomou o conceito de négritude e se apropriou da definição de Césaire de que a “négritude é o simples reconhecimento do fato de ser negro e sua aceitação, de nosso destino de negro, de nossa história e de nossa cultura” (Senghor, 1971b, p. 6). O escritor senegalês também fez referência às apreciações de escritores como René Despestre (Haiti) que definiu a négritude como uma experiência histórica bem pontual. O pensador haitiano rejeitou a característica mais mítica do conceito, ao criticar o esvaziamento político que ocorrera com essa concepção (Senghor, 1971b, p. 15). Impossível compreender a Négritude senghoriana subtraindo-a de seu contexto. Alguns autores acabaram limitan­ do-a à qualidade de manifesto literário e artístico para os pensadores africanos, como Senghor e Césaire, sem perceber sua essência e seu intento de ligar os saberes e os indivíduos sob o signo da exclusão (Njami, 2006, p. 137). No colóquio organizado em abril de 1971, defendendo-se das críticas à négritude, Senghor retoma o tema para se posicionar diante dos ataques: Aí não está o verdadeiro debate. Ele está entre os homens de cultura e os homens políticos, entre a ideologia da Négritude e as ideologias que, na Europa, na Ásia e na América estão a serviço dos imperialismos na luta pela dominação do mundo. Sentiu-se bem isso no Festival Pan-africano de Alger (Senghor, 1971b, p. 17-18).13

Senghor, ciente das possíveis críticas, como homem de cultura, sabia que as dificuldades encontradas pelo caminho eram fruto dos homens que privilegiavam a política, negligenciando o campo cultural. Após governar o Senegal, de 1960 a 1980, Senghor encerrava sua carreira política, afastando-se da presi13

Como se vê, Senghor atribui as críticas à Négritude aos pensadores de língua inglesa que estavam ligados às grandes potências imperialistas da época: Grã-Bretanha e Estados Unidos.

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dência e iniciando um processo de divulgação da francofonia – uma maneira de reunir as obras literárias dos escritores africanos de expressão francesa cuja formação acadêmica baseava-se no idioma francês (Vaillant, 2006, p. 380).

Senghor – homem político Contradizendo aqueles que apontam a Négritude como algo sem representatividade e repercussão, Senghor e Césaire atingiram o meio intelectual do Senegal e da Martinica, respectivamente, graças a essa concepção. Sua abrangência levou-os a atuar de uma melhor maneira no campo político (Njami, 2006, p. 138). Senghor foi um dos primeiros políticos a presidir um país africano – o Senegal – na estrutura da antiga África Ocidental Francesa. Césaire tornou-se prefeito de Fort-de-France, na Martinica. Os dois pensadores foram fundamentais na organização e estrutura política na busca de maior autonomia em seus respectivos países, sobretudo no pós-independência (Njami, 2006, p. 138). O político senegalês chegou a fazer parte da SFIO, a Seção Trabalhista Francesa, de orientação marxista, mas, devido a uma rixa política com seu adversário, o advogado Lamine Guèye, rompeu com o partido para criar o seu próprio. No ano de 1948, surge o Bloco Democrático Senegalês e, a partir daí, deu-se a gênese da conceituação de socialismo africano na atuação política de Senghor (Vaillant, 2006, p. 289-290). Nesse processo, Senghor foi abandonando suas definições culturais e adotando uma ruptura ideológica com a França. Desse ponto em diante, tornou-se importante perceber a evolução do marxismo para Senghor. O conceito de socialismo africano, em seu primeiro texto sobre o tema (1949), alterou-se profundamente até sua chegada ao poder em 1960 (Senghor, 1971, p. 54-55). A noção mesma de socialismo (influenciada pelo marxismo), em 1960, não passou de mais um método do mundo ociden-

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tal, e Senghor estabeleceu um novo conceito no imediato pós-independência, em que o socialismo africano pudesse unir as posturas ideológicas e políticas do pensador senegalês (Vaillant, 2006, p. 303). A visão de socialismo africano de Senghor correspondia a um aspecto de sua bagagem intelectual na etapa de negociações rumo ao estabelecimento de uma estrutura política para o Senegal e, possivelmente, para toda a África francófona, antes do eclodir nos anos de 1960 (Vaillant, 2006, p. 303). O posicionamento político de Senghor tão somente foi capaz de romper com o partido comunista internacional. Ele imaginava que a noção de socialismo adequada à realidade africana era possível e concreta, e por isso, lançava a ideia de um socialismo africano. Essa noção, muito adequada à realidade senegalesa, representaria a aplicação da ideologia da négritude, um procedimento para atender aos anseios dos grupos étnicos no continente. Léopold Sédar Senghor, finalmente adepto do socialismo africano, não deixaria de reconhecer a utilidade do quadro conceitual oferecido pelo marxismo, recusando-se, contudo, a aderir a uma ideologia que supõe a luta de classes e o ateísmo: ‘nós podemos, portanto, legitimamente, conquanto empreguemos o método de Marx para analisar a situação colonial no Senegal e na África negra, sob domínio do capitalismo, conceder, aos nossos valores religiosos e culturais, o seu posto natural em nossa vida espiritual’ (Mazrui, 2010, p. 583).

Considerações finais Senhor, entre as nações brancas, coloque a França à direita do Pai, Oh! Eu sei que ela é também Europa, Que ela roubou meus filhos

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Como um assaltante para fecundar suas lavouras De milho e algodão, porque o negro é adubo. Ela também trouxe morte e armas às minhas tristes aldeias, E jogou meu povo um contra o outro, Como cães brigando por um osso… Sim, Senhor, perdoe a França que odeia seus dominados E ainda assim impõe tão duramente sua dominação sobre mim… Porque tenho um grande fraco pela França. (Senghor, 1965, p. 135-136 apud Mazrui, 2010, p. 675-676)

O principal problema da négritude foi o fato de seu conceito ter ficado estritamente relacionado à personalidade de Senghor. Como bem destacou Marcien Towa, a négritude foi interpretada, durante muito tempo, como uma aventura pessoal de Senghor e isso levou a uma desconfiança e má vontade por grande parte dos pensadores contemporâneos em analisar o conceito. Talvez representasse uma ingenuidade intelectual de Senghor, mas certamente foi uma visão para restabelecer o orgulho dos povos que se acreditavam excluídos da História, os verdadeiros “Condenados da Terra”, para se utilizar a expressão do título da obra de Fanon. Senghor, como os outros pensadores da négritude, engajou-se no pensamento colonial, na cultura francesa e na política negro-africana, como caminho para imersão no relacionamento com o sistema colonial imposto pela França. A sua maior dificuldade foi compreender como “viver” a nação como um francês e, ao mesmo tempo, se sentir profundamente conectado às sociedades africanas (Wilder, 2005, p. 156). A entrada na política e seu “fraco pela França” podem ter feito com que grande parte da obra de Senghor fosse desconsiderada pelos historiadores contemporâneos. Sua noção de cultura foi muito mais ampla do que se crê e, no fundo, por defender um diálogo abrangente (inclusive multiculturalista), não conseguiu conciliar os pensadores negros, salvo aqueles dos anos de 1930 e 1940. A ambiguidade do discurso do pensador senegalês pode ser exemplificada de várias maneiras. Mesmo suas poesias não po49

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Négritude, construção e contestação do pensamento político - intelectual de L éopold Sédar Senghor (1928-1961)

dem ser descartadas como futuro material de análise. É preciso uma maior atenção para com sua obra no âmbito da história das ideias e nos estudos pós-coloniais, mesmo que hoje ela somente ilustre um conceito (négritude) forjado para compreender os mecanismos da “assimilação francesa” em busca da conservação de suas características culturais africanas em tempo e espaço bem específicos.

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Marcien Towa, da crítica aos pressupostos da negritude senghoriana à possibilidade da filosofia africana Roberto Jardim da Silva

A formação que estudantes recebem nos colégios e nas universidades do Brasil comporta um sistema de ideias veiculado no circuito ocidental, tendo como referência o conhecimento produzido nos países da Europa e do norte da América. Essa formação se mostra precária e incompleta, uma vez que são eleitos alguns poucos referenciais como base para a aquisição do conhecimento. Corre-se o risco de se entrar em contato com muitas ideologias e reproduzi-las sem, de fato, refletir sobre elas e, assim, apreender o mundo de forma parcial, limitada e, às vezes, deturpada. Neste texto, pretendo apresentar o pensamento do filósofo camaronês Marcien Towa, que se encontra fora desse circuito de ideias ocidentais do Norte e que, por isso, apresenta diferentes pontos de vista sobre a maneira como a filosofia pode apreender o mundo e construir conhecimento acerca dele. Marcien Towa (1931-2014) iniciou seus estudos de filosofia em Otélé (Camarões), complementando-os, a seguir, em Caen e Paris, onde se concentrou no pensamento de Henri Bergson e Georg Wilhelm Friedrich Hegel. Em 1969, concluiu o doutorado (3° ciclo), sob a orientação de Lucien Goldman, a respeito do tema Qu’est-ce que la Négritude? (Que é a negritude?) e, em 1977, defendeu, sob a orientação de Paul Ricoeur, seu doutorado

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de estado1 em filosofia com tese intitulada Identité et transcendance (Identidade e transcendência). Com o tempo, tornou-se destacado especialista em filosofia, professor e orientador de trabalhos sobre pensamento africano no Centre de Recherche des Études Anthropologiques de Institut des Sciences Humaines na Universidade de Yaoundé, onde atuou até 1999, inclusive como reitor. De 1996 a 2002, já como personalidade pública consagrada, assumiu a responsabilidade de governar a comunidade rural de Elig Mfomo, na região central do país. Os textos basilares que serão considerados, neste capítulo, para uma explanação das ideias do autor, são dois livros sobre o pensamento filosófico africano, seus obstáculos, suas possibilidades e os caminhos que deve tomar para se efetivar, chamados L’idée d’une philosophie négro-africaine (A ideia de uma filosofia negro-africana) (1979), que traduzi e encontra-se em curso de publicação, e um ensaio intitulado Essai sur la problématique philosophique dans l’Afrique (Ensaio sobre a problemática filosófica na África) (1981). O presente texto está organizado em três partes. Na primeira, discute-se a definição do autor acerca do que é a filosofia e o ser filosofante, na qual ele diz que todas as pessoas, de todas as culturas e origens étnicas são capazes de desenvolver um pensamento filosófico, desde que se disponham a pensar o absoluto, livres de amarras, dogmas ou qualquer outra doutrina que impeça o pensamento crítico e livre. A partir desse referencial de liberdade de pensamento, Towa define também a filosofia em contraposição à religião, ao mito e à ciência, com a subsequente crítica da etnofilosofia e da concepção de negritude senghoriana. Na segunda parte, são apontados traços de racionalidade na cultura africana a partir da estrutura dos contos camaroneses e da religião do antigo Egito. Na terceira parte, são tecidas algumas

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Doutorado de estado é uma modalidade de doutorado na França em que não se impõe um limite temporal para o término da tese.

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considerações acerca do pensamento do autor, evidenciando os obstáculos que este ainda não deu conta de superar.

Mito, religião, ciência, filosofia e a produção de conhecimento Normalmente, costuma-se dividir o pensamento filosófico africano contemporâneo em três grandes vertentes. Na primeira, busca-se estabelecer reflexões acerca do sentido da filosofia bem como de suas possibilidades, motivo pelo qual por vezes é identificada como “escola crítica”. A segunda se centra nas visões de mundo dos ancestrais africanos e é conhecida como etnofilosofia ou “escola etnológica”. A terceira investiga, em especial, o sistema de pensamento letrado africano. Marcien Towa faz parte da primeira vertente, a qual buscou associar, a partir das décadas de 1970 e 1980, essa forma de pensar com as vertentes que discutiam as possibilidades das ciências econômicas e sociais para o continente africano. Dessa vertente participam também Paulin J. Hountondji, Fabien Eboussi Boulaga, Kwasi Wiredu, Jean-Marc Ela, P. A. Ulungu e outros pensadores. Para falar do pensamento filosófico africano e do caminho que tomou após o fim do período colonial na maioria dos países da África, Towa julga necessário primeiramente definir a filosofia e o ser filosofante. Porém, antes de definir o ser filosofante, ele busca definir a filosofia como “a coragem de pensar o absoluto” (Towa, 1979, p. 7). Qualquer homem ou mulher que se lança no empreendimento de pensar o absoluto é capaz de filosofar, independente da etnia ou da localização geográfica de seu país ou continente. Assim, o filosofar – o bem pensar, a capacidade de reflexão – é um atributo conferido a todas as pessoas que se disponham a fazê-lo. Para o filósofo camaronês, algumas formas de compreensão do mundo buscam estar aquém de toda discussão e toda crítica, melhor dizendo, do pensamento reflexivo. É o caso de algumas

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religiões e dos mitos, pois certas religiões, por exemplo, são, segundo ele, pautadas pelo dogma, que se caracteriza por não permitir que seus preceitos sejam questionados, devendo somente serem aceitos. Como a filosofia é caracterizada pelo questionamento e pela liberdade de pensamento, ele crê ser impossível encontrar, dentro do pensamento religioso, um pensamento filosófico. Para confirmar essa sua constatação, analisa o mito de Adão e Eva, uma das narrativas essenciais para a forma de conduta das religiões abraâmicas e evidencia em tal mito a inviabilidade da liberdade de pensamento. O homem é um escravo dos deuses (...). Ele não pode refutar e nem mesmo discutir o que lhe ordena a divindade. No Gênesis, encontramos a mesma concepção de homem. (...). ‘Javé pegou então o homem e o colocou no Jardim do Éden para que ele o trabalhasse e cuidasse dele’, com a proibição de comer do fruto da ‘árvore do conhecimento do bem e do mal. Do ponto de vista do mito, querer julgar por si mesmo o bem e o mal, é o mal absoluto. É a razão pela qual o Gênesis atribuiu tamanho projeto ao Diabo em pessoa. Ora, desenvolver o pensamento para poder discernir entre o bem e o mal e assumir a direção da própria vida é precisamente esse o projeto da Filosofia. E é por isso que existe entre ela e (a algumas religiões) uma oposição profunda (Towa, 1979, p. 9).

Em seu modo de ver, os mitos e certas religiões são domínios da vida humana que pretendem se subtrair a toda discussão e a toda crítica, ou seja, ao pensamento, sendo, portanto, incapazes de gerar o bem pensar. A filosofia, tanto quanto a ciência, são formas de conhecimento e admitem a crítica a esta última, que se caracteriza pela observação, mensuração e experimentação, e só toma como verdade o que é comprovado através da sua metodologia. Enfim, assim como a filosofia, ela é pautada pela reflexão.

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Mas o que caracteriza, de fato, a ciência, para Towa, e o que a diferencia da filosofia, é a neutralidade. Para ele, enquanto a filosofia busca intervir no rumo que toma a realidade social, política, econômica, cultural, a ciência limita-se a estudar, definir e diagnosticar como a realidade se apresenta. Embora o autor admire muito o conhecimento científico, critica a postura neutra da ciência porque, em sua concepção, esta dá margem para que “os políticos e as igrejas tenham total liberdade para impor arbitrariamente e autoritariamente à humanidade, leis e diretrizes éticas que somente se apoiam na fantasia do mito e nas paixões cegas” (Towa, 1979, p. 12). Vale lembrar que essa neutralidade da ciência, evidenciada pelo autor, de fato não existe. Basta lembrar as teorias raciais presentes na ciência do século XIX. Para ele, “enquanto a ciência é neutra no seu estudo da realidade, a filosofia, ao contrário, busca intervir em todo debate travado sobre o destino da humanidade” (Towa, 1979, p. 12).

A concepção de negritude senghoriana e a etnofilosofia A definição do ser filosofante feita por Towa, na qual o filósofo (ou a filósofa) é aquela pessoa que se dispõe a pensar o absoluto, autoriza homens e mulheres de qualquer etnia ou de qualquer nação a praticar o bem pensar, o filosofar. Mas, ao analisar a forma como alguns pensadores africanos compreendiam a capacidade de produção de conhecimento das pessoas negras da África, ele percebe alguns problemas. Towa critica, sobretudo, as implicações filosóficas da obra do senegalês Léopold Sédhar Senghor, que viriam a ter grande ressonância na África até os anos 1960-1970. O ideário da Négritude constituiu objeto de análise desde os tempos em que realizava os estudos de doutorado na França, mas foi tratado de modo mais detido e sistemático no livro intitulado Léopold S­édhar­ Senghor: negritude ou servitude? (1971). Aqui, aponta os limites e equívocos do poeta, ensaísta e homem público senegalês e como,

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de sua interpretação, a dimensão revolucionária inicial do movimento da Négritude foi reduzida a um essencialismo de cariz racial. Inicialmente, o movimento da Négritude teve um caráter artístico-cultural e visava a contestar a política de assimilação da cultura europeia, enaltecendo os valores da cultura africana. Certa influência marxista visava a problematizar o conceito de classe, que é universal, reservando o conceito de raça a uma categoria que abrange parcela específica das pessoas que estão à margem da sociedade. Depois da Segunda Guerra Mundial, a Négritude entra em uma fase militante em que a ideologia negritudinista buscava embasar as ideias que fortaleciam a luta pela libertação das colônias africanas da dominação europeia (Domingues, 2005, p. 7). Para Senghor, os africanos trazem em sua estrutura psíquica uma “alma negra”. Esta teria uma natureza essencialmente sensitiva e emotiva, algo que ele resumiu na célebre frase: “a emoção é negra, como a razão, helena”, no ensaio escrito originalmente em 1939, intitulado Ce qui l’homme noir apporte (O contributo do homem negro). Uma diferença de atitude entre o branco europeu e o negro africano, por exemplo, poderia ser observada na forma como cada um deles se relaciona com o “outro”. Aquele se esforça ativamente para dominar e assimilar, mas é este que, ao deixar-se assimilar e ir ao encontro do “outro”, o assimila: Até aos ritmos imperceptíveis, aparentemente, a todas as solicitações do mundo, o corpo negro, a alma negra são permeáveis. Não apenas às do cosmos. Sensibilidade moral também. É um fato frequentemente notado que o Negro é sensível às palavras e às ideias, embora o seja singularmente às qualidades sensíveis – porventura sensuais? – da palavra, às qualidades espirituais, não intelectuais, das ideias. Sedu-lo o bem dizer, seduzem-no tanto o teórico comunista quanto o herói e o santo... O que dá a impressão de que o Negro é facilmente assimilável, quando é ele que assimila (Senghor, 2012, p. 75).

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Segundo Towa, ao fixar os traços da cultura e civilização negra em termos quase biológicos, contrapondo-os ao ethos europeu, as definições de Senghor pendiam perigosamente para o particularismo e o conformismo. Sua concepção teria como armadilha sua própria base teórica, que era dualista e universalista. Dualista porque, embora pareça a princípio libertadora, ao demonstrar um distanciamento do ex-colonizador, a forma como tal distanciamento se dá é polarizada, dual, na qual o africano é o não europeu e, uma vez que se define o europeu como racional, o africano é o não racional. Isso reforça o argumento que foi fundamental para justificar a ação colonizadora de certos países da África: seres não humanos, irracionais. Universalista porque coloca os africanos em uma única categoria, a de negros, caracterizada pela predominância da sensibilidade em detrimento da racionalidade, definindo-os como seres que compreendem o mundo através do universo mágico-religioso, concepção que Nkolo Foé (2013) chamou de “biologização da alma negra” (2013). Para Towa, “pode-se dizer que o senghorismo foi vítima de uma miopia semelhante, opondo a emoção negra à razão grega (...) [assim], devemos nos tornar prudentes e desconfiados em relação às generalizações simplistas” (Towa, 1979, p. 24). A denominação etnofilosofia foi empregada pela primeira vez por Kwame Nkrumah, em uma tese de doutorado inacabada, no período em que estudou na Abraham Lincoln University, nos Estados Unidos. Nos anos 1970, o termo seria retomado por Towa e por Paulin Hountondji, que o empregou para identificar os traços gerais de interpretação daquilo que os leitores e seguidores da obra do missionário belga Placide Tempels denominaram de “filosofia banto”. No livro La philosophie bantoue (A filosofia banto) (1945), o referido missionário, contrariamente ao que os filósofos ocidentais afirmavam até então, demonstrou que os negros africanos de língua banta seriam capazes de desenvolver um 59

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pensamento ordenado, de acordo com um sistema de pensamento e uma cosmologia em que o seu universo estava formado: “todo o universo visível e invisível – desde Deus até o grão de areia, passando pelos espíritos, antepassados, animais, plantas e minerais – está composto de ‘vasos comunicantes’, de forças vitais solidárias que dimanam de Deus” (Altuna, 2005, p. 53). Eis como Tempels explica o funcionamento deste sistema de pensamento: O princípio central da filosofia banto é o da força vital. A motivação é o fim de todo o esforço banto e não pode ser mais que a intensificação da força vital. Mantê-la ou aumentá-la, eis a chave e o sentido profundo de todos os seus usos. É o ideal que anima a vida do ‘muntu’, a única realidade que pode mover o ‘muntu’ e única causa pela qual ele se dispõe a sofrer e a se sacrificar (Tempels, 2009, p. 105).

A etnofilosofia nega aos africanos aquilo que é mais precioso na filosofia: a capacidade de pensar de modo autônomo. O objetivo maior do livro de Tempels era permitir aos missionários o conhecimento efetivo da cultura banto para transformá-la. Os elementos constituintes do próprio sistema de pensamento evidenciado não seriam, em sua opinião, percebidos como tais pelos povos bantos. Apenas os analistas ocidentais, melhor aparelhados de referenciais analíticos e interpretativos, poderiam traçar um quadro sistemático dele: Não pretendemos que os bantos sejam capazes de nos presentear com um tratado filosófico acabado, já com todo o vocabulário próprio. É graças à nossa própria preparação intelectual que ele será desenvolvido de uma forma sistemática. Cabe-nos fornecer-lhes um quadro preciso da sua concepção das entidades, de forma a que eles se reconheçam nas nossas palavras e concordem, dizendo: ‘Vós percebestes-nos, agora conheceis-nos completamente, conheceis da mesma forma que nós conhecemos’ (Tempels, 2009, p. 22-23).

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Malgrado o livro ter sido bem recebido por alguns intelectuais de renome na França e no continente africano, e apesar de parecer, à primeira vista, uma valorização desinteressada do pensamento africano, Towa chama o trabalho de Tempels de “etnofilosofia” porque, segundo ele, para esse autor, a filosofia banto se restringe a uma força vital postulada por povos que partilham línguas de estruturas parecidas. Logo, seria uma ontologia, uma visão de mundo coletiva, e nada mais do que isto. Eis sua avaliação do impacto provocado pela obra em questão: O surpreendente é o acolhimento simpático que a obra encontra em muitos filósofos autênticos. Bachelard a considera ‘profunda’ e suscetível de fundar, ao lado da metafísica sobre o modo ocidental, uma ‘metadinâmica’. Lavelle aprova a tese do missionário, Gabriel Marcel igualmente (e certamente, Masson-Oursel) Jean Wahl salienta analogias desta obra com o bergsonismo. Um etnólogo como Marcel Griaule vê nela a confirmação de suas próprias conclusões. Depoimentos precipitados nos quais entrava uma parte importante de polidez? Sem dúvida. Mas a convergência de todos esses fenômenos: as hesitações de Bréhier, as afirmações escandalosas de Masson-Oursel, de Tempels e de outros etnólogos parecia ser o indício de um grave mal-estar na filosofia (Towa, 1971, p. 9).

A filosofia deveria ser bem mais. Ela envolve o esforço de pensar o absoluto em um grau de abstração mais específico. A etnofilosofia tomaria por filosofia a cultura em todos os seus componentes (mitos, contos, provérbios, magia, cosmogonia, sabedoria etc.). Seria, no máximo, uma filosofia dos sistemas de pensamento coletivos, das tradições pensadas, ou seja, das visões de mundo. Outro intelectual africano que difundiu a obra de Tempels e a endossou foi o teólogo ruandês Alexis Kagame, que publicou, em 1955, o livro La philosophie bantu-rwandaise de l’être (A filosofia banto-ruandesa do ser) e, em 1976, o La philoso-

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phie bantu comparée (Filosofia banto comparada). A partir de uma análise detalhada da língua kyniarwanda, falada pelos povos ruandeses, e de elementos encontrados na família linguística banto, o autor estabeleceu uma série de conexões entre categorias de pensamento banto e categorias aristotélicas, detectando, deste modo, certa unidade metafísica – mesmo que seus princípios não tenham sido analisados ou sistematizados (Roseman, 1998, p. 294). Resumindo, pode-se dizer que a Négritude senghoriana apresentava um problema de ordem ontológica, pois advogava uma forma de se colocar no mundo a partir da ausência de algo. Já a etnofilosofia trazia um problema de ordem epistemológica, pois implicava a produção de conhecimento pautada e limitada pelos elementos da sensibilidade religiosa, como expressão de uma visão de mundo que seria compartilhada entre diferentes povos pertencentes a um mesmo universo linguístico. Tais concepções, embora bem intencionadas, inviabilizavam a concepção de que os africanos fossem seres filosofantes, seres humanos plenos e produtores de conhecimento.

Adotar categorias de pensamento europeias ou elaborar categorias africanas? Pensando a construção da filosofia negro-africana, especificamente as suas possiblidades, Towa percebe dificuldades na própria nomenclatura utilizada para defini-la. Neste caso, seria válido e legítimo o uso do termo “filosofia” (de origem europeia), ou seria melhor empregar uma nomenclatura retirada de palavras das línguas africanas, problematizar e refletir sobre sua realidade? Para Towa, nada impede que se elabore uma via de acesso para chegar ao sentido da filosofia partindo de uma das línguas africanas, de textos africanos ou de línguas europeias. O importante não deveria ser a origem do conhecimento, mas a originalidade e dimensão crítica da análise desenvolvida por pensadores

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africanos. Neste ponto, sua posição assemelha-se à de Paulin Hountondji, que propôs a seguinte definição do campo: “denomino de filosofia africana um conjunto de textos: ao conjunto, propriamente, de textos escritos por africanos e qualificados por seus autores como ‘filosóficos’” (Hountondji, 1977, p. 11). Se Towa buscasse rechaçar tudo o que é produzido na Europa como forma de conhecimento, estaria reproduzindo o que ele mesmo criticara em Senghor, erguendo um muro entre os dois continentes, reforçando a ideia de que tudo o que vem da Europa não tem relação alguma com a África, inclusive, a racionalidade e a filosofia analítica. Para ele, a partir de tais ideologias, filósofos europeus deduziram o silogismo do racismo que, inclusive, é uma barreira para se conceber a ideia da existência de uma filosofia negro-africana. Tal silogismo pode ser enunciado assim: “O homem é um ser essencialmente pensante, racional. Ora, o negro é incapaz de pensamento e raciocínio. Ele não tem filosofia, ele é uma mentalidade pré-lógica etc. Portanto, o negro não é verdadeiramente um homem e pode ser, legitimamente, domesticado, tratado como um animal” (Towa, 1979, p. 17). Conforme Towa, uma vez que os europeus consideram a filosofia como sendo o produto da manifestação mais brilhante da razão humana, “negá-la aos negros não passa de uma especificação dada à premissa menor do silogismo racista e imperialista” (Towa, 1979, p. 17). Dito de outra forma, a desumanização dos negros africanos foi um mecanismo usado pelos europeus para justificar o processo colonial sem que houvesse um sentimento de culpa por estarem subjugando outros seres humanos. A dificuldade de se pensar uma filosofia africana é uma das consequências de tal construção da animalidade das pessoas negras da África. Ao concentrar as energias em definir a filosofia africana a partir de uma palavra africana ou buscar no pensamento mítico ou religioso a base para o pensamento africano, só porque filosofia é uma 63

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noção europeia, corre-se o risco de reforçar tal silogismo racista do colonialismo. Os adeptos da etnofilosofia, por exemplo, acreditavam que, ao rejeitar as categorias de pensamento europeias, estariam sendo autênticos. Em contrapartida, Towa afirma que a autenticidade não está simplesmente na reelaboração de categorias de pensamento, mas, sim, na forma de utilizá-las e na eleição dos problemas filosóficos. Para ele, o que conta é o fato de que a cultura africana é dotada de racionalidade. Para dar prova de tal racionalidade, analisou algumas (e não todas, como fizeram os etnofilósofos) expressões da cultura de alguns países do continente africano.

A religião egípcia, os contos e a racionalidade na cultura africana A fim de evidenciar a racionalidade na cultura africana, Towa utiliza a concepção de deus dos egípcios e os contos de iniciação camaroneses. Antes de falar especificamente das reli­ giões­africanas, ele afirma que, embora todas as culturas tenham a capacidade do bem pensar, nem todas, na forma em que estão configuradas, conseguem filosofar, pois não toleram o questionamento sobre suas crenças e seus valores – Towa as classifica como antifilosóficas. Como exemplo, cita as culturas hebraica e muçulmana. A primeira, por não permitir o questionamento de seus dogmas, e a segunda, por se basear em muitos de seus princípios primeiros sem questionar essa aversão à discussão. No que toca às religiões egípcias, dois elementos importantes são evidenciados na concepção de deus: a verdade era encontrada a partir do resultado de uma discussão advinda de um colégio formado por deuses que dialogavam entre si antes do veredito; a verdade não era ditada, como no caso do deus hebreu. Nessa concepção, existia também uma igualdade fundamental entre deuses. Tais características possibilitavam o debate e o diálogo, atividades essenciais do pensar filosófico. A cultura egípcia tinha traços importantes, como o valor atribuído ao comportamento racional. Tanto as normas de con64

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duta quanto a organização da sociedade deveriam ser orientadas pela Maat – a justiça e a verdade. Tais elementos pautariam a exatidão, a medida das coisas – atitude inteiramente racional. A Maat “se apresenta como um valor fundamental e não como um código preciso e detalhado descido do céu como a lei mosaica. No entanto, ela deve ser conhecida e aplicada às situações concretas. O conhecimento da Maat era justamente o propósito dos escritos sapienciais” (Towa, 1979, p. 29). Os sábios egípcios partiam do pressuposto, retomado milênios mais tarde por Sócrates, de que a virtude devia se basear em uma ciência e se tornar objeto de ensino (Obenga, 1990). Dessa forma, as orientações tinham a finalidade de moldar o ignorante em um assunto, tornando-o um sábio, ao expor-lhe a Maat (Towa, 1979, p. 31). Com relação aos contos, em sua opinião, estes têm um papel muito importante no desenvolvimento da sapiência. Towa ressalta que, em Camarões, esses contos são transmitidos na infância e na vida adulta – hoje praticamente apenas nas comunidades que mantêm o estilo de vida tradicional – e são usados para ensinar a prudência, a astúcia e a reflexão. O aprendizado adquirido é que, no enfrentamento das adversidades ao longo da vida, “deve-se confiar na própria inteligência. Os heróis desses contos não acreditam em nenhuma ‘revelação’, não confiam em ninguém a não ser neles mesmos e na sua inteligência” (Towa, 1979, p. 33). Diferente da mitologia hebraica, os contos camaroneses convidam à reflexão e à autonomia do pensamento. Para os personagens de tais narrativas, submeter-se a alguém, recusando-se a refletir sobre os rumos que o seu destino tomaria é uma prova de estupidez. A crença em milagres apresenta-se como uma boa maneira de se submeter uma pessoa.2 Os contos trazem também si-

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Alguns ciclos desses contos, como os de Leuk a Lebre, de Kulu a Tartaruga, e de Guizo a Aranha, foram recolhidos e podem ser consultados na obra de Nkoumba, Beling. Contes du Cameroun II. Yaoundé: Éditions CLÉ, 1985.

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tuações em que os personagens medem forças com um deus, usando astúcia, conseguindo sempre se sobressair. Tanto os deuses quanto os personagens não são seres perfeitos, mas têm limitações e falhas, condição para se chegar à verdade através da reflexão e do diálogo, e não através da revelação. Por meio da análise dos contos e de sua função na organização da vida social de grupos étnicos em Camarões, bem como da religião na organização da vida social do Egito antigo, Towa prova a existência na África de diferentes formas de conhecimento com características universais, traço revelador de uma atitude bem distinta da “atitude emotiva diante do real” de que falava Senghor, ou da ideia da força vital que anima as culturas negras de que falavam os etnofilósofos. Embora o senso comum possa ver os contos como estórias que visam a entreter crianças e adultos, estes têm a função de aprimorar o pensamento e o mesmo se pode dizer da forma como os egípcios organizavam a religião. Mas provar que as culturas africanas produziram conhecimento e são portadoras de racionalidade desde muito tempo não é o suficiente para o devir da filosofia africana. A história que se estuda hoje nas universidades ocidentais e, em muitos países que são suas ex-colônias, coloca a filosofia ocidental (circunscrita historicamente) como a única filosofia (Obenga, 1990) e a história do Ocidente como a única história, sendo as noções de pré-história e história categorias políticas forjadas para consolidar e conferir veracidade à centralidade do Ocidente na construção da história universal. Estes dois pressupostos, além de carecerem de argumentos consistentes, acabam por comprometer o devir da filosofia africana (Towa, 1981, p. 7).

Caminhos para a efetivação do “vir a ser” da filosofia africana Dado que a etnofilosofia é um dos grandes obstáculos para o “vir a ser” da filosofia africana, Towa considera importante

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rechaçar a atitude encontrada em alguns intelectuais de seu continente, e reforçada pelo discurso científico e filosófico ocidental, que nega aos africanos a capacidade de iniciativa intelectual, de reflexão e capacidade crítica. Todavia, a afirmação do pensamento filosófico está condicionada à existência de um ambiente sociopolítico e econômico favorável ao continente africano ou a boa parte dele. Dito de outro modo, quando um país ou grupos de países detém o poder econômico e político, tornando-se hegemônico, pode ditar o que é o conhecimento, de forma que o saber tende a estar ligado às preocupações reais e ao poder. Sem essas preocupações, acaba perdendo sua razão de ser: O pensamento filosófico grego culminou com a afirmação da potência ateniense. A filosofia europeia moderna foi, essencialmente, a obra da Inglaterra, da França e, sobretudo, da Alemanha. Unicamente porque esses países foram as principais potências europeias e mundiais durante os três últimos séculos. Por serem potências mundiais, esses países se sentiam responsáveis pelo destino do mundo. (...) Por que a Grécia, que deu ao mundo Demócrito, Platão e Aristóteles, tornou-se filosoficamente estéril? Não porque ela não se sente mais responsável pelo curso do mundo, mas porque ela perdeu o poder e com ele a confiança em si e a segurança histórica (Towa, 1979, p. 49).

Assim, para Towa, o fortalecimento do pensamento filosófico na África está condicionado ao seu destino político e econômico. Somente quando o continente se fortalecer, poderá impor um pensamento ao mundo e ser ouvido. É essa ambição que permeou as tentativas filosóficas dos anos em que essa obra foi escrita.

Considerações finais Essas considerações sobre a proposta filosófica de Marcien Towa, sobretudo no que toca à crítica que faz à concepção sen-

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ghoriana da Négritude e à etnofilosofia, deixam evidente que ambas são obstáculos para o “vir a ser”, não só da filosofia negro-africana, como também para a retomada do estatuto ontológico das pessoas negras, enquanto grupo étnico-racial que carrega mundialmente o estigma de seres desumanizados, através das ideologias da modernidade colonial. Towa dá um passo adiante em relação a tais concepções, mas ainda não consegue romper com a estrutura dualista e universalista que o pensamento africano herdou do europeu. Em seus textos, fica evidente a perspectiva dialógica acerca da construção do conhecimento. Embora critique a postura de Senghor em rechaçar tudo o que vem da Europa em termos de conhecimento, e tentar começar do zero na elaboração da forma como os diferentes países da África contribuiriam para a história universal, essencializando a ideia de “nós” e “eles”, acaba fazendo algo semelhante, não conseguindo se livrar da perspectiva pós-colonial em que operam as categorias de ex-colonizador e ex-colonizado. Talvez o faça porque escreveu as obras, aqui examinadas, em data próxima das independências das nações africanas, quando questões de afirmação e protagonismo precisavam ser realçadas para a afirmação dos ex-colonizados. Quando diz que se pode pensar a realidade africana a partir de categorias de análise europeias, a grande armadilha continua sendo as características universais e dualistas do pensamento europeu. Não existe o africano ou o europeu. Essas são categorias universais elaboradas pelo colonialismo, sendo o africano pensado e definido em contraposição ao europeu. O conhecimento faz um movimento cíclico em que é moldado em diferentes momentos históricos por diferentes culturas. Cheikh Anta Diop, em suas pesquisas, a fim de romper com a ideologia do “milagre grego”, fala da troca cultural entre egípcios e gregos, em que filósofos como Platão, Pitágoras de Samos e tantos outros visitavam o Egito, passando anos ali e adquirindo conhecimento científico. A 68

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escola de Alexandria, que era um centro cultural helenístico, é outro exemplo dessa interação (1967, p. 216-229). Até alguns séculos atrás, não se falava da África como um continente e nem da Europa. As trocas entre as culturas eram e continuam sendo bastante intensas. Assim, procurar uma essência racional no africano para contrapor ou equiparar ao europeu é seguir a lógica dualista. Autores africanos mais recentes no campo da filosofia têm procurado romper, de fato, com tal dualismo. Severino Ngoenha (1993), por exemplo, problematiza as duas principais tendências de pensamento etnocentradas, tanto o eurocentrismo quanto o afrocentrismo, apontando outra via que se abre ao olhar para o futuro, não considerando o período colonial e nem o europeu como referência para a elaboração da filosofia, mas toda a humanidade na sua troca constante de conhecimento.

Referências bibliográficas DIAKITE, Samba. “La problématique de l’ethnophilosophie dans la pensée de Marcien Towa”. Le Portique, maio 2005. Disponível em: . Acesso em: 21 abr. 2015. DIOP, Cheikh Anta. Antériorité des civilisations nègres: mythe ou vérité historique? Paris: Présence Africaine, 1967. DOMINGUES, Petrônio. “Movimento da negritude: uma breve reconstrução histórica”. Mediações. Revista de Ciências Sociais (Londrina), v. 10, n. 1, 2005, p. 25-40. HEGEL, Friedrich. The Philosophy of History. Ontario: Batoche Books, 2001. HOUNTONDJI, Paulin J. Sur la “philosophie africaine”. Paris: François Maspero, 1977. KAGAME, Alexis. La philosophie bantu-rwandaise de l’être (extraits - ARSC, classe des Sc. mor et pol., N.S., VI, 1). Bruxelles, ARSC, 1955. KAGAME, Alexis. “L’ethnophilosophie des bantu”, in: La philosophie contemporaine. (Chronique, t. IV). Florence: R. Klibansky, 1971. NGOENHA, Severino Elias. “Da etnofilosofia à filosofia crítica”, in: ______ . Filosofia Africana: das independências às liberdades. Maputo: Edições Paulinas, 1993, p. 89-100. OBENGA, Theóphile. La philosophie africaine de la période pharaonique. Paris: Editions L’Harmattan, 1990.

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ROSEMAN, Philippe. “Penser l’Autre: la philosophie africaine en quête d’identité”. Revue Philosophique de Louvain, t. 96, n. 2, 1998, p. 285303. SENGHOR, Léopold Sédar. “O contributo do homem negro”, in: SANCHES, Manuela Ribeiro (org.). Malhas que os impérios tecem: textos anticoloniais, contextos pós-coloniais. Lisboa: Edições 70, 2012, p. 73-92. TAGNE, David Ndachi. Un entretien avec Marcien Towa, professeur et philosophe. Yaoundé : Editions du Crac, 1998. TEMPELS, Placide. La philosophie bantoue. S/L: Éditions de l’Evidence, 2009. TOWA, Marcien. L’idée d’une philosophie négro-africaine. Yaoundé: Clé, 1979. ______ . A ideia de uma filosofia negro-africana. Trad. Roberto Jardim da Silva. Belo Horizonte: Nandyala; Curitiba: Neab-UFPR, 2015. ______ . Essai sur la problématique philosophique dans l’Afrique actuelle. Yaoundé: Clé, 1981. ______ . Léopold Sédar Senghor: Négritude ou servitude? (Collection Points de vue). Yaoundé: Clé, 1971.

ANEXO – Análise de Marcien Towa acerca dos contos da África Negra (Trecho extraído do livro A ideia de uma filosofia negro-africana. Trad. Roberto Jardim da Silva. Belo Horizonte: Nandyala; Curitiba: Neab-UFPR, 2015, p. 39-42). Busquemos nos concentrar na literatura oral tal como ainda pode-se ouvi-la atualmente entre os africanos que vivem no meio tradicional. Nossa atenção será especialmente voltada para os ciclos de contos cuja preocupação principal parece ser ensinar a astúcia, a prudência e a reflexão. Trata-se dos ciclos de Kulu, a tartaruga; de Leuk, a lebre; e de Guizo, a aranha. Esses contos nos ajudam a descobrir um universo dilacerado por conflitos e lutas perpétuas. Eles nos mostram também que o homem, para sair vitorioso do combate da vida, não tem melhor arma, nem guia mais seguro que sua inteligência. Sejam quais forem as dificuldades, elas podem sempre ser superadas graças à reflexão. Os heróis desses contos não seguem nenhuma “revelação”, não confiam em ninguém que não seja eles mesmos e a sua inteligência. A

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promoção da inteligência humana à categoria de guia supremo e único no combate da vida contrasta violentamente com as tradições semitas dominantes que, relembremos, identificam tamanha pretensão para o mal, para o pecado por excelência. Do ponto de vista de Kulu, a Tartaruga, e de Leuk, a Lebre, a submissão a um outro, seja quem for, tido como guia na existência, constitui, se tratando de um adulto, uma prova evidente de estupidez. Aquele que renuncia a seu pensamento para seguir cegamente um guia será manipulado por esse último, logo que este perceber o quanto ele pode tirar benefício da situação. É o que aprendem, aos seus próprios custos, os adversários, geralmente mais fortes, de Kulu ou de Leuk: Ze, a Pantera, ou Bouki, a Hiena. Uma bela manhã, a Hiena recebe a visita de um indivíduo que se diz Filho de Deus. E quando o Filho de Deus ordena, executam-se suas vontades. A Hiena se submete com tanta docilidade às vontades do Filho de Deus, que ela mesma se colocou... dentro de um saco. Só restou ao Filho de Deus, que não era nada menos que Leuk disfarçada de Marabu, oferecê-la de presente a Fama Korodian.

De um modo geral, nos contos dos ciclos sapienciais, a crença nos milagres e no sobrenatural se apresenta como a melhor maneira de se fazer possuir. Em um conto dagari (Alta-Volta), a Lebre em prantos reclama, depois da morte do rei, a sucessão ao trono do augusto morto. Espanto. Nem um pouco perturbada, a Lebre acrescenta: ‘O rei está morto, mas sua alma esta viva. Vamos ao seu túmulo. Tenho certeza de que ela se manifestará a meu favor.’ Ele fez o esquilo falar, a corte foi convencida e a Lebre tornou-se rei. Kulu,a Tartaruga, usa de um estratagema análogo para obter um julgamento ao seu favor em um assunto de terras que a opunha a Ze, a Pantera. Toda parte do terreno que Kulu queria cultivar, Ze, a Pantera a reclamava para si. Vencida pelo cansaço Kulu apelou para o julgamento de Ancestrais. Dois túmulos foram cavados. Kulu

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fez abrir pelo Rato-palmado um corredor que ia de seu túmulo à sua casa. No mesmo dia, ela foi jogada no seu túmulo e imediatamente chegou à sua casa pelo corredor, enquanto que Ze ficou de fato muito bem enterrada. Kulu retorna aos outros com, como pretendia, novidades e presentes da parte dos ancestrais deles! Todo o terreno disputado lhe foi atribuído.

Mais um exemplo do lugar estabelecido nos contos sapienciais entre a crença no sobrenatural e a estupidez. Para se esquivar de um compromisso com Kulu, a Tartaruga, Ndoe, a Águia construiu para si um ninho no topo de uma sumaúma e envia através de Kosso, o Papagaio, essa mensagem a Kulu: ‘Diga a Kulu que eu vim construir minha casa onde nada poderá me acontecer’. Kulu, ao receber essa mensagem, refletiu profundamente para encontrar uma resposta ao desafio. Ela preparou cola, uma corda e pediu a sua companheira que colocasse tudo em um pacote no qual Kulu entraria também. Kosso entregaria o pacote a Ndoe com a seguinte mensagem: ‘Você construiu sua casa aí, onde nada poderá jamais te acontecer; saiba que, de minha parte eu construí minha casa aqui onde jamais nada me ultrapassará’. A réplica de Kulu é impressionante e sublinha o poder ilimitado que a inteligência confere.

Na verdade, Kulu, transportado por Kosso, chegará à casa de Ndoe surpreso. Comentando negligenciadamente com seu anfitrião a insuficiência de sua descendência, propôs a ele um pequeno rito de fecundidade, consistindo em revestir as asas de cola. O rito comportava uma proibição, apenas uma: Uma vez que eu tiver passado esse remédio em suas asas, disse Kulu, não as abra mais. Se você as abrir, você morrerá, e também toda a sua família. Ndoe e toda a sua família se conformaram com as ordens de Kulu que pôde colocar tranquilamente a cola nas asas deles; e depois que a cola secou bem e que ficaram a partir de então incapazes de fazer uso de suas asas, Kulu os exterminou até o último.

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O objetivo do pensamento dos autores desses contos é explícito. A credulidade, e especialmente a crença no sobrenatural, no mágico-religioso, constitui o terreno no qual prolifera a estupidez. Bemele, o Javali, que, para os Beti, encarna a estupidez, ignora os processos naturais e imagina ser capaz de realizar, em virtude de algum poder sobrenatural, tudo o que o atinge e o surpreende. Ele será esfolado vivo, querendo, “graças aos poderes sobrenaturais herdados de seu pai”, imitar Mvomole, a cobra, que periodicamente muda de pele; em outra ocasião, ele romperá os próprios ossos tentando, certo de seus poderes mágico-religiosos, “pegar” os grãos em pleno voo como os corvos etc. Sendo Kulu ou Leuk símbolos da inteligência, nossa tradição é bem cuidadosa em não fazer deles seres perfeitos. Apesar de sua inteligência, eles se mostram às vezes desatentos. Ninguém é perfeito, nem alcança totalmente a sabedoria. Um conto do ciclo de Kulu o ilustra claramente. Kulu, um dia, fez um grande pacote cheio de inteligência e resolveu percorrer o mundo para vendê-la. Ela chegou diante de um enorme tronco de sumaúma e sentou-se esperando que o tronco apodrecesse para poder seguir seu caminho. Mvâga-saca rabos surgiu! ‘O que você faz aqui, Kulu, minha irmã?’, pergunta ele. Estou percorrendo o mundo para vender a sabedoria. Me encontrei diante desse gigantesco tronco que está barrando minha passagem. Eu não tenho nem grande altura e nem boas pernas e eu devo esperar que ele apodreça para seguir meu caminho’. ‘O que?’, responde Mvâga surpreendido, ‘você ficará aqui mofando durante todo o tempo que esse tronco levará para apodrecer? Uma árvore tem uma copa e um caule. Se você for deste lado, você chegará aos ramos e se você for do outro, você chegará às raízes’. Kulu foi de um lado, depois de outro e verificou que era efetivamente assim. Desapontado, ele jogou longe seu embornal de sabedoria e voltou para casa se dizendo: ‘eu acreditava que eu era o único a ser inteligente, mas ninguém poderá alcançar totalmente a sabedoria’.

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Então, ninguém detém o monopólio da perfeição e da inteligência, ninguém, nem mesmo Deus em pessoa. O pensador africano tradicional não desconfia somente dos filhos de Deus e dos fabricadores de milagres, mas também de Deus em si a quem ele não hesita atacar.

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Cheikh Anta Diop e a produção do conhecimento científico Gabriel Ambrósio Kassoum Diémé

Falar de produção de conhecimento científico em si é desafiador e impõe certo domínio sobre a história deste processo. É ainda mais desafiador quando se trata daquele produzido pela pessoa negra. Considerando a configuração geopolítica atual, a produção do conhecimento é atribuída ao Norte, não ao Sul.1 Tal configuração se aplica às ciências naturais, bem como às sociais (Connel, 2012). A África, sendo o berço de humanidade e residência de mais ou menos 905 milhões de habitantes, dos quais pelo menos 60% são negros, faz parte do Sul. O Brasil, país cuja população é de 203 milhões de habitantes, tem 51% de negros2, ou seja, mais de 100 milhões de pessoas, e está também no Sul. Os negros produtores de conhecimentos científicos estão fora destes dois espaços físicos imediatamente referidos. Como abordar este assunto num mundo de hegemonia ocidental marcado pela negrofobia? Mostrar o negro numa posição socialmente inesperada dá a este trabalho uma preocupação incomum. Para responder a estas perguntas, a obra de Cheikh Anta Diop será fundamental. 1

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Boaventura Sousa Santos chama de “epistemicídio” a morte de conhecimentos alternativos. Reduz a realidade porque “descredibiliza” não somente os conhecimentos alternativos, mas também os povos, os grupos sociais cujas práticas são construídas nesses conhecimentos alternativos (Santos, 2007, p. 29). E especificamente (...) nas epistemologias do sul, que se baseia na ideia central: não há justiça entre o global sem justiça cognitiva global, ou seja, sem justiça entre os conhecimentos. (Santos, 2007, p. 40). O substantivo “negro” deve ser entendido, neste artigo, como a pessoa negra.

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Cheikh A nta Diop e a produção do conhecimento científico

Cheikh Anta Diop nasceu em 1923 no reino de Cayor (Ela, 2014, p. 13). Ele fez “os seus estudos secundários em Dakar e em St. Louis, no Senegal, a munir-se de uma formação multidisciplinar em ciências humanas e em ciências exatas, alimentada por leituras extremamente numerosas e variadas” (Diop, 2014, p. 94). Seu lugar de nascimento localiza-se na parte oeste da África Negra, que “fez parte dos grandes impérios africanos pré-coloniais, tal como os Impérios do Gana e do Mali” (Diop, 2014, p. 87). Cheikh Anta Diop fez os estudos superiores em Paris (França). Tinha domínio linguístico e manejava bem sua língua materna, o wolof. Aprendeu a decodificar os hieróglifos, que depois ajudaram-no nas pesquisas sobre o Egito Antigo. Possuia competência pluridisciplinar: foi egiptólogo, historiador, linguista, antropólogo, físico, químico, referido por Jean-Marc Ela, Boubacar Keita, Théophile Obenga, entre outros. Participou da redação da História Geral da África, e “fundou a escola africana de Egiptologia, em 1981, sendo professor de história associado na Faculdade de Letras e Ciências Humanas na Universidade de Dakar, vinte anos após o seu doutoramento. Diop faleceu em 1986, em Dakar (cf. Diop, 2014, p. 87-110). Suas principais obras são: Nations nègres et culture (Nações negras e cultura); L’Afrique noire pré-coloniale (A África negra pré-colonial); L’Unité culturelle de l’Afrique noire (A unidade cultural da África negra): Domaines du patriarcat et du matriarcat dans l´Antiquité classique (Domínios do patriarcado e do matriarcado na Antiguidade clássica); Civilisation ou Barbarie (Civilização ou barbárie); dentre vários livros e artigos (cf. Ela, 2014, p. 119). Este artigo aborda quatro pontos: 1) Realidade socio-histórica em África Negra, em que serão tratados certos grandes aspectos da história desta parte da África; 2) da inspiração à negação do conhecimento em África Negra, em que será mostrado como a contribuição da África Negra ao mundo foi central, apesar disto ter sido negado posteriormente; 3) o negro e a epistemologia da ciência, em que será evidenciada a importância do 76

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questionamento africano à forma de produção do conhecimento ocidental; e 4) a produção teórica e conceitual, os diálogos internos e o alcance da produção científica de pensadores negros, em que será mostrada a contribuição científica dos negros num contexto relativamente recente com a elaboração de teorias e debates que acabaram por desafiar a resistência ocidental e obter alguns avanços.

Realidade sócio-histórica da África Negra O continente africano, tal como o concebido hoje, é indiscutivelmente um produto ocidental em mais de um aspecto. A propósito do mesmo N’diaye (2008, p. 18), escreve que “(...) os conhecimentos sobre este continente e o nome dado a seus povos teriam evoluído, sobretudo com os romanos.” Ele acrescenta que: “os romanos tiveram relações duradouras com os Afris, de onde vem o nome África. Estes Afris eram guerreiros da tribo dos Awragas, que ocupavam o sul da Tunísia” (N’diaye, 2008, p. 18). Do ponto de vista geográfico, é sabido de todos que a Conferência de Berlim, que se estendeu do final de 1884 aos primeiros meses de 1885, foi um marco importante para efetivar a configuração das partes que, a partir de então, são universalmente consideradas como aquelas que compõem o continente africano. A partilha da África pelo Ocidente, como assinalado em outro trabalho,3 era um projeto de redução dos africanos ao nível 3

Cabe dizer que, na ótica de Diop, o legado da Conferência de Berlim não poderia trazer mais vantagens para os africanos do que para os próprios europeus que a organizaram para atender o próprio interesse. Daí toda a legitimidade de qualquer novo projeto pensado por africanos e que leve à implementação de um novo mapa para os africanos. Este projeto de partilha da África é, sem dúvida, uma das brutais violências proferidas e sofridas por europeus e africanos, respectivamente. Não sendo um projeto ingênuo, a não ser para a grande maioria dos africanos de hoje leigos em geopolítica, esta partilha almejava, dentre outros objetivos, embaralhar as antigas formas de organização dos africanos, enfraquecer as relações entre africanos, apagar sua história, impor-lhes uma nova, na qual se enxergam a partir da do seu colonizador, perpetrar sua dominação, em todos os sentidos, sobre eles próprios (Ambrósio & Diémé, 2014, p. 4-5).

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de seres sem direitos nem mesmo a suas terras, contra os quais se podia praticar mais um ciclo de violência sem remorsos. Cabe lembrar que os princípios de tal projeto coincidem praticamente com o fim do processo abolicionista da escravidão no chamado mundo ocidental. Em resumo, pode-se dizer que o fim da prática aberta de uma forma de violência e crime contra os negros africanos e seus descendentes no solo americano, que durou minimamente três séculos, era confirmado pelo anúncio do início de outra, aparentemente mais suave e voltada novamente para os africanos no continente de onde retiraram milhões de braços válidos – e cérebros férteis – para serem escravizados no continente americano. Conforme o pensamento ocidental, a África, repleta de dialetos, carecia de línguas. Estas, dentre outras necessidades, lhe eram indispensáveis para entrar na civilização, daí a justificativa da imposição do francês, do inglês, do espanhol e do português, da qual decorreu a criação posterior de comunidades linguísticas tais como a Francofonia e os Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa (Palop), cuja direção respectiva é, hoje, motivo de disputas entre africanos, mas não exclusivamente – e de orgulho nacional do país cujo candidato vence a corrida. Antes do tráfico negreiro e da escravidão perpetrados pelos brancos europeus, e sobre os quais vários pesquisadores se debruçaram ou aos quais apenas se referiram (Diop, 1987, N’diaye, 2008, Fanon, 1971 etc.), houve o tráfico negreiro árabe-muçulmano que, na ótica de Tidiane N’diaye, é claramente um genocídio velado. A esse respeito, ele escreve que: apesar de não haver níveis no horror nem no monopólio da crueldade, pode se advogar, sem risco de errar, que o comércio negreiro árabe-muçulmano e os jihad (guerras santas) provocados por estes impiedosos predadores para se abastecerem em cativos foram para a África negra bem mais devastadores do que o tráfico transatlântico. E isso, ainda sob nossos olhos hoje (janeiro de 2008), com seu pa-

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cote de massacres, com seu genocídio a céu aberto. (N’diaye, 2008, p. 11)

A conquista do Egito pelos árabes no século VII coloca na condição de escravo numerosos povos oriundos da Núbia, da Somália, do Moçambique ou de outros lugares, durante a primeira expansão islâmica (N’diaye, 2008, p. 22). É desta conquista que resultou um tratado cujo quinto artigo ordena o fornecimento anual de “trezentos escravos de ambos os sexos, que seriam escolhidos dentre os melhores” nacionais e levados “ao imã dos muçulmanos. Todos serão impecáveis (...). Foi assim que o tráfico negreiro foi, pela primeira vez, inventado e planificado pelos árabes quando este emir e general Abdallah ben Said impôs aos núbios o fornecimento anual de centenas de escravos” (N’diaye, 2008, p. 23). Se o tráfico de africanos negros de ambos os sexos para sua escravização na América “durou quatro séculos, foi durante treze séculos ininterruptos que os árabes pilharam a África subsaariana. A maioria dos milhões de homens que eles deportaram desapareceu por conta de tratamentos desumanos e da castração generalizada” (N’diaye, 2008, p. 10). A escravidão, tal como o assinalam (Diop, 1987, N’diaye, 2008) era praticada na sociedade africana na época do império do Gana, por exemplo. Mas N’diaye (2008, p. 16) menciona a existência de fontes segundo as quais “o Egito antigo não foi nem escravagista nem racista”, daí a inexistência de vocábulo escravo na sua língua. Ele acrescenta que proclamar que tal sociedade foi “escravagista” ou teve tal ou tal prática imoral é, de certa forma, querer julgar um defeito provavelmente universal (N’diaye, 2008, p. 15). Seria a afirmação destes autores uma forma de justificar o tráfico negreiro que o povo da África negra sofreu por 1.300 anos? Evidentemente, a resposta é negativa. Primeiro, porque caberia ressaltar que as conclusões de N’diaye apontam que “Somente os estrangeiros capturados em campanhas militares ou

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entregues como tributo por regiões vassalas podiam ser submetidos à escravidão. A tradição egípcia não permitia escravizar os sujeitos do faraó” (N’diaye, 2008, p. 19). Segundo, se tomarmos como referência a escravidão praticada pelos árabe-muçulmanos ou pelos europeus, podemos dizer que a sociedade africana conheceu, internamente, infinitamente mais a servidão do que a escravidão propriamente dita. “A servidão, nas sociedades de linhagem africanas, era diferente da escravidão antiga porque o cativo era integrado à família. Ele tinha o status de um adotado, ou até mesmo de um ‘parente’” (N’diaye, 2008, p. 31). Ainda, à guisa de comparação para destacar a diferença entre os modos de tratamento da pessoa cativa e explorada entre negros africanos e brancos europeus ou árabes, N’diaye afirma que: Sejam quais foram as formas de servidão na maioria das sociedades negro-africanas, elas não poderiam ser comparadas com os horrores dos tráficos árabe-muçulmano e transatlântico, em outras palavras, com práticas que conduzem a deportações maciças e tratamentos mutilantes, traumáticos ou assassinos. A servidão africana, aceita com resignação pelas pessoas, tornou-se parte de seu modo de vida (N’diaye, 2008, p. 37).

Terceiro, os romanos, bem como os gregos e árabes, conheciam a escravidão. No tocante aos dois primeiros, N’diaye (2008, p. 17) escreve: “sabemos graças a Teofrasto que era particularmente desonroso não dispor de nenhum escravo a seu serviço” para os gregos. Quanto aos romanos, sobretudo durante as numerosas guerras conduzidas por Júlio Cesar, a escravidão era comum. Cativos ou reféns, na sua maioria de “raça” branca eram escravizados. “Roma antiga inaugurou o recurso à escravidão em larga escala para a produção de mercadorias. Haveria até três milhões de escravos na Itália, ou seja, quase 30% da população” (N’diaye, 2008, p. 14).

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Aparentemente, a introdução desta parte remete à concepção comum, que associa a história da África Negra aos processos de tráfico e colonização aos quais foram submetidos. No entanto, reconhecer fatos referidos nos parágrafos anteriores mostra algumas influências sofridas, sem almejar corroborar a ideia de uma África sem história antes do contato com o mundo ocidental ou árabe-muçulmano. Diop (1987, 1979) mostra que a África Negra não esperou o contato com o mundo árabe-muçulmano nem com o Ocidente para dispor de uma estrutura social, cultural, religiosa, política, técnica, filosófica e científica consolidada. Apesar das tentativas de falsificação da história, principalmente praticada pelos brancos europeus eminentemente racistas, Diop (1979, p. 62) concluiu que tal projeto de negação do pertencimento à raça negra dos antigos egípcios era motivado pela incapacidade dos europeus em acreditarem que negros pudessem ter realizado obras de tamanha envergadura em diversos aspectos. Portanto, sua base fundamental não passava de uma ideologia. Nas suas palavras, Os egiptólogos foram tomados pela admiração diante do passado de grandeza e de perfeição que encontram enquanto, pouco a pouco, passaram a reconhecer como sendo o da mais antiga civilização que gerou todas as outras. Contando com o imperialismo, tornava-se cada vez mais ‘inadmissível’ continuar aceitando a tese de acordo até então evidente de um Egito negro (Diop, 1979, p. 62).

Quando ele fala dos impérios africanos enquanto formação política concreta, estes não remetem a uma organização importada para o continente por meio do contato com povos oriundos de outras partes do mundo (Diop, 1987, p. 54-70). Há suspeita de que a islamização dos reis africanos os levaria a uma perda de autoridade. De todo modo, o que importa observar é que já havia de fato formas de organizações políticas africanas quando os árabe-muçulmanos procuravam expandir o islã em África Negra. Lembremos que a parte islamizada da África Negra não vi81

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veu este processo da mesma forma, e que há partes da África Negra que não foram diretamente afetadas pela presença dos árabe-muçulmanos. Do ponto de vista religioso, por mais que o politeísmo no Egito Antigo seja conhecido, ao falar da influência do Egito, Diop afirma que Mil anos antes dos pensadores gregos, Sócrates, Platão, Zenão etc., os egípcios, com a reforma de Amenófis IV, tinham claramente em mente a ideia de um Deus universal responsável pela criação, e que todos os homens, sem exceção, podiam louvar: ele não era o Deus de nenhuma tribo, de nenhuma cidade, tampouco de nenhuma nação, mas sim, o do gênero humano. Parece que estas concepções que o cristianismo adotou posteriormente não constavam nele no início. (...) Não se saberia mencionar tudo o que o cristianismo primitivo pegou emprestado ao culto de Isis em Roma, inclusive na estrutura das procissões. O Egito é o país donde a devoção contemplativa penetrou na Europa (Diop, 1987, p. 37).

No tocante ao aspecto sociopolítico, a lógica matrilinear da sociedade africana, notadamente no Império do Gana, a distinguia da lógica patrilinear do mundo ocidental. Sobre a sucessão no trono, Diop (1987) lembra que: “Em Gana, o velho hábito africano estava ainda estritamente em vigor. Al Bakri é categórico: a sucessão é matrilinear. Apenas, o imperador e seu herdeiro presuntivo, o filho de sua irmã, tem o direito de vestirem roupas de corte e costuradas”. Nas palavras de Al Bakri: Para este povo, a prática e os regulamentos exigem que o rei tenha como sucessor o filho de sua irmã, pois, dizem, o soberano tem a certeza de que seu sobrinho é mesmo o filho de sua irmã, mas não pode se certificar que aquele que ele olha como seu próprio filho seja de fato seu filho (apud Diop, 1987, p. 54).

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O império do Mali também conheceu este tipo de sucessão. “Ibn Khaldun dá detalhes interessantes sobre a sucessão do trono em Mali: o regime ainda é matrilinear” (Diop, 1987, p. 54). Apesar da absoluta influência ocidental e oriental na África Negra contemporânea, tal lógica pode ser encontrada entre os diola e os sérère do Senegal, por exemplo, para os quais o filho ou filha da irmã é a visita de honra na casa do tio.4 Longe de ser um receptáculo de conhecimento exterior, a África Negra soube ensinar aquilo que ainda é de grande relevância para a Humanidade. Segundo Boubacar Keita, as pesquisas de Cheikh Anta Diop, desenvolvidas no livro Antérioritédes Civilisations Nègres. Mythe ou vérité historique?, teriam demonstrado que os gregos: apesar do seu etnocentrismo e chauvinismo, iam regularmente ao Egito em estudo. Autores gregos escreveram sobre isso. Heródoto, Diodoro de Sicília, por exemplo. Dentre os que frequentaram o Egito, então negro, em busca de conhecimento, ele cita Thales (fundador da Filosofia e da Geometria na Grécia asiática), Sólon de Atenas, homem de Estado grego e chamado um dos sete sábios da Grécia, Pitágoras de Samos, que passou 22 anos a estudar em Menfis e outros lugares, Demócrito de Abdera, fundador da escola atomista, Platão de Atenas, estudou a filosofia, as matemáticas, as leis (direito), a imortalidade da alma em Heliópolis, Menfis etc. (Keita, 2008, p. 77-78).

A África, tal como é concebida atualmente, reflete longos séculos de dominação expressamente caracterizada pelo horror. A violência sofrida pela África Negra, tal como assinalada an-

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Informação fornecida por Kassoum Diémé coautor deste trabalho e testemunha ocular de tais práticas ainda reais entre os diola do Senegal. Léopold Sédar Senghor dizia: “Chez nous on est de la race d’as mère, on est noble par as mère et non pas par son père, et c’est pourquoi j’étais très souvent avec mon oncle maternel, je l’accompagnais dans ses champs, je l’accompagnais traire ses vaches (...)”. Disponível em: . Acesso em: 10 set. 2015.

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teriormente, foi além do âmbito físico, atingindo o econômico, o social, o político, o cultural, o simbólico, o psicológico e o espiritual. É dentro deste contexto que podemos entender a adoção de línguas europeias como oficiais pela quase totalidade dos atuais­países africanos, a pobreza, a dependência econômica dos seus povos e a dependência psicológica da maioria dos seus dirigentes políticos. Entretanto, pode-se dizer que nunca houve um “transplante cultural”, seja do Ocidente, seja do Oriente nesta parte do continente. Em outras palavras, os negros souberam conservar ainda algumas práticas ancestrais, como as línguas e em grau menor as religiões. Do ponto de vista político, as novas formas hegemônicas de democracia são institucionalmente adotadas por boa parte dos países da África Negra. Mas, nas relações cotidianas e pes­ soais, as noções de democracia ocidental em muitas sociedades nacionais africanas não se aplicam. Os mais velhos, os sábios, tomam as decisões em nome da comunidade, da família. Porém, a perda de tais valores é paulatina e inquestionável. A África Negra permanece aquém dos muitos índices satisfatórios em vários aspectos, apesar da riqueza do seu solo e subsolo. Quais seriam as causas profundas desta situação? Suas relações com o Ocidente precisam, sem dúvida, ser revistas. Conforme Théophile Obenga, em conferência proferida na Universidade de Kinshasa, em junho de 2012, apesar de não ser a única causa, o Ocidente é a causa profunda do subdesenvolvimento africano (Obenga, 2012). Poder-se-ia dizer que é ele que programa a pobreza dos negros da rica África, pois é responsável pelo financiamento do “desenvolvimento” da pobreza dos africanos em troca da imposição de políticas exploratórias. Internamente, algumas razões são as fáceis manipulações dos líderes políticos, a falta de coragem para rejeitar propostas nocivas para seus governados, a crença no mito da “hóstia branca”, a falta de vontade perante as prioridades sociais e os desafios dos nossos tempos. 84

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Uma das soluções que Cheikh Anta Diop propõe, após análise das potencialidades, é que é crucial que os diversos territórios que já constituíam a África Negra nos anos 1950 se unissem num Estado Federal (cf. Diop, 1974 e Ambrósio & Diémé, 2014). Para Théophile Obenga, o nascimento de tal Estado é imprescindível, mas este deve investir para garantir a própria segurança e o controle de seus recursos.

Da inspiração à negação do conhecimento em África Negra Considerando o retrato feito na parte anterior sobre a África Negra do passado e de hoje, recorrendo às fontes precitadas, fica evidente, por um lado, sua produção não só científica, mas também política, religiosa, cultural, dentre outras. Por outro, este mesmo retrato permite entender por que se negou por muito tempo a produção do conhecimento da África Negra. Nesta parte, procura-se num primeiro momento reafirmar a existência da cultura científica de não europeus, evidentemente inspiradora. Em seguida, o foco será dado às razões do esforço para negar qualquer ligação do negro com a ciência. Apesar de diversas tentativas de destituição, o estágio atual do conhecimento científico certifica que a África Negra ainda é o berço da humanidade. Desde milhares de anos, o ser humano procurou conhecer a natureza, isto é, tudo o que está à sua volta. Para mostrar o que os negros africanos produziram em termos de conhecimento, Kamabaya (2011) afirma: A magnitude das realizações do africano compreende-se melhor refletindo sobre a história primitiva no paleolítico da sociedade humana em África, onde a humanidade começou a inventar a civilização universal a partir do zero, ao notar o seguinte: primeiro, o progresso desde os instrumentos toscos de pedra ao uso dos metais; segundo, a mudança de vida da caça e coleta de frutos selvagens, a domesticação de animais e a agricultura para o provimento de alimentos constantes; e terceiro, do melhoramento da

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organização do trabalho, da atividade individual para atividade social coletiva, através da participação de muitos na vida ativa da comunidade (Kamabaya, 2011, p. 37).

Kamabaya (2011, p. 38) acrescenta que a África, que não tinha modelo para se inspirar, está no início do desenvolvimento da humanidade, pois foi ela que deu os primeiros passos do progresso industrial, tecnológico, social e humano. Numa só palavra, a civilização. É evidente que estas iniciativas, hoje mais que banais, não pararam no tempo paleolítico no tocante ao território africano. Na primeira parte, foi mencionado que o Egito, então terra de povo negro, serviu de lugar de formação de ilustres pensadores e cientistas ocidentais até hoje venerados (cf. Keita, 2008, p. 7778). A obra de Diop é uma das que mais evidenciam que a África Negra já foi um grande templo de conhecimento científico. O Ocidente, ao adotar o cristianismo, passa a viver espiritualmente de uma religião cujo nascimento se inspirou na religiosidade africana (Diop, 1987, 1984). Na sua conferência em Niamey, Diop reitera que “foi o continente africano que deu origem a todo o desenvolvimento da civilização” (Diop, 1984). Ainda a respeito do passado da África Negra, notadamente o Egito Antigo, que serviu de exemplo inspirador para o mundo em diversos aspectos, Diop cita a invenção da escrita, do calendário, da arquitetura, os conhecimentos astronômicos e matemáticos, medicinais, dentre outros. Segundo Diop, o calendário moderno é o mesmo calendário usado pelos egípcios, e foram os egípcios que inventaram o ano de 365 dias composto assim: 12 meses de 30 dias que perfazem 360 dias por ano. (...) O calendário egípcio correspondia ao nascimento dos seguintes deuses egípcios: Osíris, Isis, Horus, Seth e Nephtys. São os mesmos deuses que, segundo a mitologia do Egito, vão dar a origem ao gênero humano e inaugurar o ciclo dos tempos históricos (Diop apud Kamabaya, 2011, p. 61).

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O próprio Diop (1984) lembra ainda que, conforme Diodoro da Sicília, “todos os gregos, uma vez em casa, se apropriavam das invenções dos egípcios”. Quanto a Senghor (1980, p. 59), ao se pronunciar sobre as criações do povo negro, ele afirma que “os escritores surrealistas e os pintores da Escola de Paris, como Pablo Picasso, Henri Matisse, Marc Chagall, deviam muito à arte negra”. Com a fonte de inspiração dos ocidentais exposta, pergunta-se: como se chegou a estes achados? Nos primeiros estudos e pesquisas, Cheikh Anta Diop manifestou a sua preocupação sobre o passado virgem e o destino do continente africano cuja história foi até então escrita por europeus. As revelações sobre a história africana, mormente através da obra Nations Nègres et Culture, demonstraram a relevância da contribuição do cientista e da África Negra na produção científica universal. Há de reconhecer, como afirma Keita (2008, p. 50), que a obra de Diop (1979) começa uma autêntica iniciação do público em geral, e do africano, em particular, à “compreensão” da essência tão complicada (tal como os tinha habituado a egiptologia clássica). Em outras palavras, com ela, uma nova leitura da história mundial, mas, sobretudo, do continente negro, e um ganho da consciência histórica africana começam a tomar forma. Negar o passado alheio, em particular do negro africano, a partir de parâmetros em vigor no Ocidente ou com base na falta de rigor científico, faz parte dos mecanismos de alimentação do complexo de superioridade ocidental. Malcolm X (1965) viria a dizer, a respeito, que: O homem branco cometeu contra si mesmo, assim como contra o homem preto, uma fraude tão gigantesca que está numa entalada e neurótica de esconder o verdadeiro papel do homem preto na história. O homem branco tem de enfrentar hoje o que está acontecendo no continente preto, a África. Pense nos artefatos que estão sendo descobertos ali, comprovando repetidamente que o homem preto possuía

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uma civilização excepcional e sensível, muito antes do homem branco sair das cavernas (Malcolm X, 1965, p. 194).

É só neste sentido de negação do outro que se pode entender Rabaka (2009, p. 135) quando escreve que o imperialismo ocidental obriga os não ocidentais a se empenharem para demonstrar seus méritos na esfera científica ou em outras. Contudo, tais esforços são dificilmente aceitos. Boubacar Namory Keita (2008) defendeu, no seu ensaio sobre Cheikh Anta Diop, que o livro Nações Negras e Cultura é uma obra-prima, um trabalho de vulto, pioneiro, um trabalho ‘assustador’ numa altura histórica específica e num mundo acadêmico ainda muito refratário a ‘instruções de bárbaros’. Segundo esse autor, Diop não era considerado especialista, portanto, não era iniciado e autorizado. Ainda, o mesmo Cheikh Anta Diop era considerado um estrangeiro ignorante das subtilezas do pensamento e da cultura do ‘orientalismo’ ou da ‘Egiptologia’ (Keita, 2008, p. 50).

Aqui, vemos claramente o desprezo e os primeiros ataques contra um dos maiores intelectuais negros: Cheikh Anta Diop. As condições de escravizado e colonizado, referidas na primeira parte, geraram uma “incapacidade” nos submetidos a estes mecanismos de dominação e de violência de contar a própria história, ou limitaram nitidamente o alcance de sua versão dos fatos, independentemente do rigor científico que estes tenham adotado. Rabaka (2009) teria escrito que os aspectos vivenciais da existência dos negros, para muitos, só têm o privilégio de ser negados, levando em consideração este contexto. É neste sentido que Obenga (2013), preocupado com o esforço dos cientistas eurocêntricos em negar a produção dos africanistas africanos, vai dizer que: os africanistas racistas e eurocentristas, inimigos dos africanos e da África, como os (Jean-Pierre) Chrétien, os Marc

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Etienne, os Fauvelle-Aymar, os Agnès Leiné (...) transformaram os nossos objetivos científicos e políticos, claramente assumidos, em objetivos ideológicos, para, à medida dos seus desejos, baralhar a situação africana atual (Obenga, 2013, p. 52, grifo nosso).

No que tange aos questionamentos sobre a obra de Diop, Keita ressalta: A crítica desconhece o conjunto da obra cheikhantiana, ou por escolha deliberada, ou então, ela é incapaz de compreen­ der, o que nos parece irreal, porquanto é feita por especialistas, ou seja, ‘o silêncio’ é consciente, proposital, a fim de não reconhecer que as reflexões do senegalês põem, fundamentalmente, em causa o edifício científico construído em volta da África negra em geral e, do Egito em particular (Keita, 2008, p. 47).

Em Condenados da Terra, Frantz Fanon retrata a história sob diversas posições do colonizador contra os africanos colonizados, e desta maneira a própria história ficou colonizada, manipulada, deturpada e negada. Este contexto não anula as possibilidades de disputa no campo científico entre cientistas do mundo colonizador e os do mundo colonizado. O artigo de Diallo & Diallo descreve, primeiro, a capacidade que Diop teve de enfrentar os vários teóricos europeus, com destaque em: Hume, Hegel, Gobineau, Lévy Bruhl etc. que defendiam e legitimavam a inferioridade intelectual dos negros. E a visão de uma África sem história cujos habitantes, os negros, nunca foram responsáveis, por definição, de um único fato de civilização, impõe-se agora, nos escritos e se fixa nas mentes (Diallo & Diallo, 2008, p. 115).

Vemos, aqui, o sistema de pensamento construído pelos grandes nomes da filosofia, da moral, da política e da ciência em

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geral, negando e excluindo a África no mundo científico e cultural. Segundo Keita (2008), as teses de validade eterna defendidas por filósofos europeus como Hegel, dentre muitos, foram responsáveis pela construção estereotipada dos negros africanos. Segundo destaca ele, boa parte dessas teses dá sequência às de Hegel e, tal como estas, teria uma “missão – vagamente – civilizadora”. O que leva Keita (2008) a dizer que: O objetivo é completar a obra de Hegel num outro registro. Com efeito, era preciso reforçar a demonstração de que o negro nunca foi responsável de o que quer que seja de válido, incluindo o que existe na sua própria terra. Essas ‘verdades históricas’ deveriam passar sob a capa da ciência, valendo-se de que são catedráticos, mestres, do pensamento da maior parte dos intelectuais africanos na altura (Keita, 2008, p. 56).

Diallo & Diallo afirmam que até ao século XIX o Egito era afastado de forma arbitrária e convencional do continente africano, e era ligado apenas ao Oriente Médio. Isto vigorou até a publicação, em 1954, da obra: Nações Negras e Cultura, que foi, para estes autores, uma bomba no seio do estabelecimento intelectual, pois, com ela, Cheikh Anta Diop demonstrou que “a civilização do Egito antigo era negro-africana”, mediante seus “questionamentos, cientificamente embasados, sobre os fundamentos da cultura ocidental em relação à gênese da humanidade e da civilização” (Diallo & Diallo, 2008, p. 116). Eminentes cientistas ocidentais, com vasto conhecimento, não reconheceram nem respeitaram a civilização do negro africano. Mostrou-se acima, por meio de Diop (1979, p. 62), que surpresos, os egiptólogos (ocidentais) descartaram a menor possibilidade de que aquelas obras fossem realizadas por negros. Ainda na linha da negação do conhecimento africano, Diallo & Diallo (2008) disseram: De fato, nesta iniciativa tão laboriosa quanto desesperada, Champollion queria sustentar os resultados de um cientista

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francês de boa-fé, o Comte de Volney (1757-1820), que tinha observado nos Coptes5 o povo do qual se originaram os faraós os mesmos traços de célebre Sphinx6 descoberto no Egito. (...) ‘Champollion tornou-se daltônico’, pensou o homem que revolucionou o pensamento negro, pois, com toda a evidência, estávamos longe das leis científicas. É por isso que o cientista senegalês retrucou, dizendo que: ‘agora não bastava só ser negro da cabeça aos pés e ter cabelos crespos para ser negro’ (Diallo & Diallo, 2008, p. 119120).

O que estamos vendo, aqui, é que os intelectuais ocidentais estavam mergulhados numa falta de objetividade científica e, ao mesmo tempo, estavam imbuídos na ignorância do “senso comum”, da “inferioridade do negro”. É isso que era proliferado pelos filósofos daquela época (século XVIII e XIX). Para eles, o verdadeiro conhecimento e a fonte da inspiração não partiriam de negros. Essa era a crença que ainda hoje tem adeptos. Mas, para Malcolm X: ‘O verdadeiro conhecimento’ sempre foi nos escondido (...). O verdadeiro conhecimento aqui reconstituído, muito mais sucintamente do que me foi explicado, era o de que a história havia sido ‘embranquecida nos livros de história do homem branco e que o homem preto sofrera uma lavagem cerebral por centenas de anos’. O homem original era preto, no continente chamado África, onde a raça humana surgira no planeta terra (Malcolm X, 1965, p. 177).

Basta verificarmos que, em diversas universidades, muitos acadêmicos eurocêntricos não aceitam que África é a fonte de um conhecimento também. E, sem sombras de dúvida, o conhecimento tem sido “embranquecido” pelos intelectuais, principalmente, aqueles do mundo ocidental.

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Coptas. Esfinge.

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Pode-se dizer que a negação do passado da África Negra trouxe consequências nunca imaginadas pelos intelectuais brancos, que a promoveram e, tampouco, pelas gerações que os sucederam. Das negativas, ressaltam-se a alienação da quase totalidade do povo africano ao Ocidente e sua consequente aceitação da negação de sua própria história e cultura promovida pelos ocidentais. No entanto, por outro lado, iniciada explicitamente por Diop, a disputa intelectual é prosseguida por outros autores como Kamabaya. Seguindo especificamente esta obra de Diop (1979), não se tem dúvida da importância do intelectual negro que contrarie cientificamente alguns espíritos euro-ocidentais que distorcem e excluem da humanidade os negros com base nos próprios processos históricos e culturais. O conhecimento construído por Diop desaliena não só a própria história africana, mas também a de sua diáspora, e consequentemente da Europa e do mundo, o que inclui diversos intelectuais em várias partes do planeta terra. Neste sentido, o conhecimento produzido por ele liberta objetivamente do jugo da alienação cultural e científica ocidental. Nós, africanos, hoje, ao dizermos que foram os ante­ passados dos negros que vivem hoje principalmente na África negra, os primeiros homens que inventaram as matemáticas, a astronomia, o calendário, as ciências em geral, as artes, a religião as técnicas, a arquitetura, a organização social, a medicina, a escrita, que foram os negros os primeiros que elevaram edifícios de 6 milhões de toneladas de pedras (a Grande Pirâmide), não só como simples operários, mas também como os próprios arquitetos e engenheiros, podemos ver onde tínhamos caído como simples escravos a ser explorados da África como animais e simples objeto de comércio (Kamabaya, 2011, p. 61-62).

Com Kamabaya, reitera-se que os negros africanos deixaram uma herança científica. O trabalho inspirador diopiano não se limitou a fortalecer o mundo africano. No entanto, é preciso 92

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dizer que o fato de Diop ser um intelectual negro, que confrontou a falsificação secular da história pelo Ocidente, praticamente impossibilitou a renovação do pensamento histórico e científico e levou à rejeição ou ocultação de seu pensamento no mundo ocidental. Talvez não se tenha mais muitas dúvidas acerca do seu pensamento baseado em fontes sólidas. Acredita-se que os novos pesquisadores negros ou brancos, conhecendo os estudos da afrocentricidade, não terão mais esse complexo de negação a que foram submetidos a África e seus vários cientistas no mundo acadêmico. De certa forma, a produção do conhecimento desenvolvido pelos negros africanos e sua diáspora continuam rejeitadas, ou seja, são dificilmente aceitas. Em outras palavras, os intelectuais ocidentais recusam referenciar este conhecimento. Apesar das referências negativas, os conhecimentos produzidos por negros servem de inspiração para o pensamento moderno. A negação do conhecimento abrange muitos, como já foi referenciado acima. Até os próprios intelectuais, os chamados “africanistas”, negam o conhecimento produzido por negros, e, sobretudo por Diop. Este costuma dizer que entre os negros “La vérité sonne blanche” (a verdade soa branca), inclusive quando esta esbarra contra evidências produzidas por negros. As respostas da negação da contribuição do negro à civilização mundial encontraram-se no pensamento científico produzido nos séculos XIX, XX e XXI, notadamente, por W. E. B. Du Bois, Frantz Fanon, Théophile Obenga, Ama Mazama, Malcolm X, Maulana Karenga, mas, mormente por Diop, cujo pensamento foi herdado pelos afrocentristas. Fica claro que a África Negra serviu de inspiração ao mundo, teve seu passado manipulado, falsificado e negado, mas apesar disso sabe-se hoje que a produção científica do negro foi e é também universal, sendo importante para a epistemologia da ciência, objeto de análise da parte subsequente. 93

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O negro e a epistemologia da ciência Fazer uma epistemologia do conhecimento na sociedade ocidental demanda necessariamente uma volta para o passado. A Grécia Antiga é ainda hoje o território coroado pelos historiadores europeus como o berço da civilização e do conhecimento, portanto, da filosofia, mãe da sabedoria. Nos tempos modernos, a ciência, bem como a epistemologia, centrais nesta reflexão, seriam consequências naturais de um passado de erudição da sociedade ocidental. Esta condição de destaque, para não dizer de exclusividade na produção do conhecimento, era naturalmente aceita até mesmo fora dos limites geográficos das terras ocidentais, notadamente em África Negra. Não é um acaso que Pinedo & Pinedo (2008, p. 9), ao pensar sobre a epistemologia da ciência, começam seu trabalho deixando evidente a origem grega da filosofia. Quando passam para a definição da palavra epistemologia, percebe-se um procedimento similar. Esta palavra, escrevem eles, quer dizer: “o estudo da ciência” (do grego episthéme que significa conhecimento, ciência, e logo, que quer dizer estudo, discurso). Keita (2008, p. 121) diria que a epistemologia é “o estudo crítico do desenvolvimento dos métodos e dos resultados da ciência (...)”. Quanto a seu surgimento, Pinedo & Pinedo (2008, p. 9) ressaltam o papel fundamental que Auguste Comte teve ao confiar à filosofia o estudo das ciências, a determinação de seus objetos e de suas tarefas, por exemplo. É nesta circunstância que nasceu uma filosofia da ciência que passou a ser chamada de epistemologia. Esta se identifica com a crítica metodológica da ciência, na medida em que essa crítica tende à explicitação consciente e sistemática do método e das condições de validade dos juízos particulares, singulares ou universais; tornados próprios pelos cientistas, perseguindo assim uma reconstrução racional, convencionalmente designada por senso empíri-

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co-pragmático, do conceito de conhecimento científico (Pinedo & Pinedo, 2008, p. 10).

Prosseguem dizendo que a palavra epistemologia é usada em dois sentidos. Isto é, seja “para indicar o estudo da origem e do valor do conhecimento humano em geral (e neste sentido é sinônimo de gnosiologia ou crítica)”, seja “para significar o estudo às ciências (físicas e humanas), dos princípios sobre os quais se fundamenta, dos critérios de verificação e de verdade, do valor dos sistemas científicos.” À guisa de conclusão, eles destacam que ela poderia ser dividida: em dois sentidos básicos: 1) a crítica do conhecimento científico: exame dos princípios, das hipóteses e das conclusões das diferentes ciências, tendo em vista determinar seu alcance e seu valor objetivo e 2) a filosofia da ciência (empirismo, racionalismo etc.), e a história do desenvolvimento científico (Pinedo & Pinedo, 2008, p. 9).

Neste trabalho, é adotado o primeiro dos dois sentidos imediatamente enumerados, pois se pretende focar na centralidade da objetividade e da “imparcialidade” no processo de produção do conhecimento, apesar delas não esgotarem este sentido. A história do Ocidente, desde sua hegemonia militar, econômica e técnico-científica não é certamente a mais horrível, mas é, sem dúvida, como referido anteriormente, marcada pela violência, o crime, o racismo e a negrofobia. A situação destes últimos comportamentos deve ter atingido níveis alarmantes para levar a Unesco, em 1952, a publicar “uma série de panfletos dedicados ao problema do racismo no mundo” (Lévi-Strauss, 1987, p. 7. Nota do Editor) e à redação da História Geral da África, a partir de 1964. Caberia reconhecer que, num contexto social assim caracterizado, as possibilidades dos cientistas reproduzirem estes horrores, total ou parcialmente, nos seus modos de pensar, não podem ser negligenciadas. Em outras palavras, quanto mais negrófoba é 95

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a sociedade mais tenderia a tolerar tal prática e, consequentemente, mais provável teria negrófobos entre seus cientistas. O inverso também pode acontecer, já que teorias racistas, como as cientificamente combatidas, também podem gerar sociedades racistas. A rejeição do outro, do diferente, daquele que tem outra crença e fala outra língua, e suposto desconhecer a escrita no seu passado, não é uma prática nova entre os ocidentais. Com base nas primeiras partes deste capítulo, sabemos que tampouco é exclusividade destes, mas não se pretende, com isso, defender o Ocidente, pois Aimé Césaire (1978) dizia que o “Ocidente é indefensável”. Há séculos que se considera detentor exclusivo da civilização e até mesmo da humanidade. A propósito da rejeição do estrangeiro e de tudo o que traz consigo, Lévi-Strauss escreve que: Assim, a Antiguidade colocava tudo o que não participava da cultura grega (e depois greco-romana) no mundo da barbárie; a civilização ocidental usou, depois, o termo selvagem no mesmo sentido. No entanto, por trás dos qualificativos está um mesmo julgamento: é provável que a palavra bárbaro se refira, etimologicamente, à confusão e à falta de articulação do canto dos pássaros contrapostas ao valor significante da linguagem humana; e selvagem, que quer dizer ‘da floresta’ também evoca um modo de vida animal, em oposição à cultura humana. Nos dois casos, se recusa admitir o próprio fato da diversidade cultural; prefere-se jogar para fora da cultura, na natureza, tudo o que não se conforma à norma sob a qual se vive (Lévi-Strauss, 1987, p. 20).

É dentro de um contexto social como este, que desembocou no menosprezo total do ser humano, notadamente do negro africano, que o Discurso sobre o colonialismo de Césaire faz todo sentido. Neste discurso, Césaire denuncia crimes seculares promovidos pelos europeus contra outros povos julgados inferiores ou subumanos, particularmente na África e na América. Também é num contexto assim que a colaboração, quando não o pro96

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tagonismo, dos cientistas europeus na destruição simbólica e física de povos não europeus busca sua justificação. Aqueles intelectuais que diziam que a África Negra não tinha história herdaram desta cultura a que Lévi-Strauss se refere, e a que boa parte do mundo dava razão. Diop foi, dos pesquisadores negros, aquele que mais evidenciou a falsidade de tais afirmações em que muitos intelectuais ocidentais e africanos acreditavam e reforçavam por ignorância, persuasão, dissuasão ou conivência. Partia do testemunho de alguns historiadores como Heródoto, por exemplo. Em nome da objetividade científica, diante da desconfiança de certas verdades consolidadas nos círculos dos intelectuais e pesquisadores brancos, sobretudo no que era relativo à história do mundo negro, Diop (1979) recorreu a um trabalho árduo. Isto é, conferir, por meio de trabalhos científicos e também filosóficos, a forma como os trabalhos anteriores foram realizados. Keita (2008, p. 122) deixa claro sua convicção de que Diop estava “empenhado sinceramente, sem subjetivismo nem preconceitos em estudar, analisar e criticar com argumentos, praticamente tudo que tinha sido escrito, e continuava a ser, sobre a África e o Egito Antigo”. Ele ainda fala que “(...) cresceu também em Diop esta dimensão filosófica, indispensável para ‘enunciar’ o valor e garantir o fundamento de verdade da ciência histórica” (Keita, 2008, p. 122). A propósito, Obenga escreve que: O discurso histórico de Cheikh Anta Diop apresenta desafios, embates que ressaltam mais da tarefa do filósofo do que da do historiador. Dá-nos, de fato, os fundamentos de uma ‘nova’ filosofia da História, nomeada e particularmente, da África negra (Obenga apud Keita, 2008, p. 125).

O resultado ao qual Diop chegou, isto é, o Egito Antigo era negro e que as grandes obras nele realizadas eram trabalho de negros, o levou a refutar “categoricamente, o esquema hegeliano da leitura da história humana (...)” e a fazer críticas sobre 97

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os modos de produção do conhecimento científico (Keita, 2008, p. 121). James Henry Breasted na sua obra La conquête de la civilisation (A conquista da civilização) (apud Diop, 1979, p. 202) descarta qualquer influência negra perceptível na civilização egípcia, portanto, esta civilização é efetivamente obra “exclusiva da raça branca”. Diop afirma que as ideias de Breasted são infundadas, pois revelam claramente “uma concepção errônea do povoamento do continente africano”. Como já se percebeu, Breasted não estava só. Vários autores, que compartilhavam as ideias deste autor, contornavam a fragilidade de seus estudos “falando de (...) brancos de pele negra sem que seu bom senso cartesiano esteja chocado” (Diop, 1979, p. 202). Ele acrescenta, como justificativa, que “uma coleta de fatos leva a pensar que o povo negro primeiro viveu em grande número neste vale antes de se espalharem em ondas sucessivas em todas as direções do continente” (p. 202). Neste sentido, pode-se perceber que, ao fazer ciência, Diop acabou também desenvolvendo uma epistemologia sobre uma ciência produzida por ocidentais supostamente preocupados em compreender e explicar a história do negro africano. Considerando a epistemologia como “o estudo crítico do desenvolvimento dos métodos e dos resultados das ciências, então Cheikh Anta Diop, no conjunto de sua obra monumental, enquadra-se, perfeitamente, nesta realidade.” (Keita, 2008, p. 121). De acordo com Pinedo & Pinedo (2008, p. 10) a epistemologia, que se faz mais perguntas do que fornece respostas, propõe-se a responder dentre outras, às seguintes questões: “O que é conhecimento científico? (...) em que consiste propriamente o trabalho do cientista? O que faz ele quando faz ciência? Interpreta, descreve, explica, prevê?”. A resposta principal que se pode tirar da obra de Diop (1979, 1987) é que muito do que cientistas brancos, com destaque em Hegel, falaram sobre a África Negra era muito mais sustentado pela ideologia do que pelo rigor científico baseado na objetividade ou nos fatos. 98

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Das críticas do Cheikh Anta Diop à ciência desenvolvida pelo Ocidente decorreu a afrocentricidade. Os defensores do movimento intelectual afrocentrista, ao contrário das ideologias movidas pela falsificação da história, partem de fatos que resultaram de pesquisas científicas anteriores. Cabe vislumbrar que é o que levaria Reiland Rabaka a dizer que: “os textos antiafricanos são anti-humanos, e por essa exclusão, urge a necessidade dos afrocêntricos que trazem a crítica por meio de leituras radicais à luz da epistemologia e das experiências orientadas pela história e culturas africanas” (Rabaka, 2009, p. 131). A Europa, em geral, por meio de seus intelectuais, buscou desde cedo despertar a consciência histórica com base na qual os brancos se reconhecem como oriundo de um mesmo ancestral. A ciência produzida pelos brancos está conexa a um contexto e a uma história. Tal como referido acima, a Grécia Antiga e sua história foram e ainda são de fundamental importância quando se trata de ciência na sociedade ocidental. Porém, seria legítimo suspeitar que as ideias racistas, e particularmente negrófobas, explicitadas por diversos teóricos e pesquisadores das mais diversas áreas, como mencionado por Diallo & Diallo (2008) possibilitara o nascimento ou a consolidação de uma epistemologia negro-africana da ciência, até então, desenvolvida por ocidentais. Ademais, boa parte dos clássicos gregos conhecidos nas academias ocidentais foi estudar no Egito a fim de adquir conhecimento, como lembra Téophile Obenga (2013). De acordo com o pensamento de Boubacar N. Keita (2008, p. 123), ler o que há de fundamental na obra de Diop “leva-nos, prática e efetivamente, a esta importante conclusão: o estudo crítico do desenvolvimento, dos métodos e dos resultados das ciências da história e da epistemologia foi uma autêntica análise epistemológica das mesmas”. Diop, prossegue Keita, foi (quase) o único historiador africano não ‘convencional’ que teve a ousadia de enfrentar a poderosa comunidade científica euro-ocidental, nomeadamente do Orientalismo

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e da Egiptologia, obrigando-a a ceder em muitos terrenos e a rever muitas das suas antigas posições e/ou atitudes; necessidade porque a erudição deste homem era incomum se comparada com aquilo que se tem pensado e ainda se pensa do negro-africano no plano das ideias, do rigor científico e coerência filosófica (Keita, 2008, p. 27).

A teoria da negritude elaborada por Aimé Césaire, Léopold Senghor e Léon Damas, também, por sua vez, faz uma crítica ao modo como o conhecimento científico vinha sendo produzido pelos brancos ocidentais. Frantz Fanon (1952) denuncia implicitamente as teorias racistas que afirmam toda a superioridade do branco em relação ao negro, por um lado. Por outro, critica a alienação deste, quando se empenha cientificamente para demonstrar sua igualdade ao branco. A promoção do respeito à condição humana parece, para ele, o que deve ser a preocupação do cientista. Para Rabaka (2009, p. 137), os afrocentristas, que embasam na ciência suas críticas, não se opõem ao pensamento e à cultura europeia, mas questionam a imposição deles como superiores e obrigatoriamente universais.

Produção teórica, conceitual e científica de pensadores negros e os diálogos internos Graças aos cientistas e pensadores negros, o mundo científico ampliou seu leque de conceitos. Dentre estes se pode mencionar o de Consciência histórica, de alteridade, de afrocentricidade, de afrobrasilidade, de identidade negra, de negritude, de falsificação da história, de Pan-africanismo, para citar apenas estes. O mundo moderno ficou marcado pelas duas guerras mundiais, assim narram os historiadores, mas os países africanos narram a descolonização africana como destaque histórico do século XX. Ainda não se tem ideia completa do que foi a colonização na África. Para Moore (2010, p. 65), “poucos têm uma ideia do que realmente foi a colonização para os africanos. Mui-

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tos continuam ignorando ou minimizando o fato de que a colonização da África foi um verdadeiro ato de genocídio contra a raça negra”. Foi por meio da barbárie que a civilização ocidental se enriqueceu com o trabalho dos negros africanos durante a escravidão e, posteriormente, no processo colonial. Porém, os europeus continuam a desprezar os negros. Fanon (2010) recomendou que a luta da descolonização africana e os intelectuais não esquecessem o apoio externo dos descendentes africanos que sentiam a necessidade de solidariedade com negros africanos. Moore destaca essa solidariedade na seguinte afirmação: o movimento pan-africanista com a sua ideologia política criada fora da África, pelos grandes pensadores da diáspora que predicavam que a diáspora e a África tinham um destino comum; que a emancipação dos afro-americanos não podia ser desvinculada da emancipação dos povos do continente ancestral, e vice-versa (Moore, 2010, p. 69-70).

Percebe-se a existência de diálogos entre intelectuais negros, contemporâneos ou não do Diop7 da África Negra e de sua diáspora, como Aimé Césaire, Moore, Senghor, Obenga, por exemplo. Com a publicação do Discurso sobre o colonialismo, Césaire fez uma afronta, tal como Diop na mesma época, contra o colonialismo, evidenciando a confluência de certas ideias entre intelectuais negros. Moore ressalta o peso deste discurso e seu alcance, dizendo: O discurso sobre o colonialismo explodiu como uma bomba. Foi naquele momento que dois jovens e intrépidos pensadores anticolonialistas irromperam na cena: Cheikh Anta

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O segundo congresso dos escritores negros e artistas negros realizado em Roma, em 1959, teve como figuras proeminentes Frantz Fanon, Jean Price-Mars, Alioune Diop, Cheikh Anta Diop, René Depestre, Mário Coelho Pinto de Andrade, Léopold Sédar Senghor, Amadou Hampaté Bá, Aimé Césaire e Marcelino dos Santos (Kamabaya, 2011, p. 124).

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Diop, cientista senegalês e Frantz Fanon, psiquiatra martinicano. Pan-africanistas, militantes já influenciados pelas ideias de Césaire, (...) eles se tornaram os mais inovadores teóricos negros do pós-guerra. Suas contribuições teóricas fortaleceram a negritude, tornando-a ainda mais abrangente, redirecionando e enraizando-a, pela primeira vez, no campo da ciência (Césaire, 2010, p. 23- 24).

Os intelectuais envolvidos na luta anticolonial estão aplicando os conhecimentos científicos para a libertação mental, política e simbólica dos colonizados. Muitos contemporâneos dialogaram com o pensamento do Diop. A convivência da época da descolonização, os seus embates acadêmico-político, social e cultural favoreceram bastante a disputa científica nos círculos parisienses, com as presenças significativas de “Fanon e Diop, que, efetivamente, promoveram uma verdadeira revolução conceitual na maneira de conceber e analisar a condição do negro, tanto no passado como no presente” (Césaire, 2010, p. 28). Charles Finch & Elisa Larkin Nascimento (2009, p. 48), referenciando um dos primeiros intelectuais negros, sob o prisma da visão pan-africanista, citam Du Bois como expoente na luta que influenciou o pensamento dos intelectuais negros ao longo do século XX. Conforme estes autores, Du Bois dialogou com o marxismo, o liberalismo capitalista, o nacionalismo negro e o pan-africanismo. A história demonstra, implicitamente, que teve diálogos que prevalecem quando encontramos as figuras negras com teorias e pesquisas científicas voltadas para o povo negro na África e no mundo. Segundo Moore (2010) e Ela (2014), Diop herdou o pensamento pan-africanista e refletiu bastante sobre a visão da negritude. A herança deste pensamento pan-africanista permitiu a Diop enfrentar, com coragem, intelectuais ocidentais de má-fé, mas também dialogar com certos teóricos da negritude. Ele se tornou uma fonte inesgotável da ciência moderna dos 102

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afrocentristas africanos e diaspóricos. E, nisso, Keita (2008, p. 19) reforça que “os mistérios do Nilo só constaram na historiografia africana pelo pioneirismo desenvolvido por Diop e Joseph Ki-Zerbo”. A atualidade do pensamento diopiano, através das obras de Jean-Marc Ela (2014) e Boubacar Keita (2008), é indiscutível, pois continua a inspirar e a influenciar muitos intelectuais africanos e também mundiais. Ama Mazama (2009) é talvez uma das atuais intelectuais negras mais influenciadas pela obra do Diop. No seu artigo Afrocentricidade como um novo paradigma, ela descreve: “A afrocentricidade como uma resposta da supremacia branca em todo o planeta” (2009, p. 112). Seria uma supremacia efetiva ou a alcançar por meio da ocupação do espaço psicológico e intelectual, dos que devem ser submetidos? Para Mazama, a manipulação mental seria um recurso que os brancos não dispensaram para tentar dominar os negros africanos. Em suas palavras, “a tomada do espaço mental africano ocorre por meio do disfarce de ideias, teorias e conceitos europeus como universais, normais e naturais. Todos são “étnicos”, menos os europeus” (Mazama, 2009, p. 112). Evidentemente, ela assinala que tal concepção da Europa como a norma “é altamente problemática” na ótica dos povos africanos. O conhecimento clássico não perde facilmente a validade, ou seja, as ideias de Diop continuam vivas, fortes e centrais nas pesquisas que buscam analisar e compreender a África Negra como é o caso de Mazama, Obenga, Kamabaya, Moore, Keita, Cheikh M’backé Diop, Jean-Marc Ela. Portanto, Estudar Diop não é um ato de ‘vingança’ (a do oprimido intelectual de ontem contra o seu antigo mestre, ou do ‘colonizado em estado’!) mas, simplesmente, inscreve-se no nosso combate (mesmo pequeno) participativo para a construção e a restituição de uma ciência histórica humana, universalista e capaz de libertar o homem em geral. Inscreve-se no combate contra o obscurantismo, a intolerância ou

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a ‘barbárie’, a xenofobia e o racismo. Estudar Diop é munir-se de, adquirir e reforçar a ‘consciência histórica’ dos povos da África negra. (...) é o melhor meio (hoje) de encontrar todos os elementos da existência real e da profundidade histórica do continente negro e de se libertar das amarras da historiografia universal (Keita, 2008, p. 29).

Os estudos africanos atuais, como os de Mazama e de Obenga, por exemplo, bebem da fonte do pensador africano do Senegal, conscientizador da história negro-africana. Keita (2008) afirma, também, que é incontestável que as academias ou as universidades africanas estejam cada vez mais se preocupando com a forma de como o pensamento africano poderia ser incluído nos currículos, pois a nova geração não conhece muito a obra de Diop e outros grandes cérebros africanos e diaspóricos. Como podemos ver em Keita (2008, p. 33), Cheikh Anta Diop tocou de forma enérgica em assuntos que preocuparão intelectuais meio século depois. A inclusão real ou iminente do “pensamento africano” (político, religioso, científico, isto é, sociológico, antropológico, histórico e filosófico etc.) nos currículos da quase totalidade das universidades africanas serve hoje de prova. Cabe dizer que o Brasil do século XXI manifesta o mesmo interesse. A cultura negra, menosprezada pelos “pseudocientistas” europeus, passou a ser defendida por intermédio das pesquisas de campo científicas. Esta preocupação aparece em grande parte das obras de Diop, bem como no pensamento do Obenga, Fanon, Césaire, Senghor. A preocupação prevalece de maneira que muitos países têm, hoje, se embasado na obra de Diop, consciente ou inconscientemente, para refletir acerca da questão cultural. Desde os anos 1950, as preocupações de Diop com as línguas africanas tinham como objetivo “latente” a emancipação cultural. Ele se referia à possibilidade da ciência ser ensinada em línguas africanas, bem como às desvantagens em querer adotar uma expressão (entende-se uma língua) estrangeira, que não são somente de ordem prática, mas cultural (Diop, 1979, p. 407). Na mesma ló104

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gica de busca de valorização, Césaire (2010) defendia intelectualmente a produção de conhecimento do negro. Ele ainda enfatiza a importância da “tomada de consciência” dos negros na afirmação dos valores intelectuais e culturais. Por ser uma tomada de consciência de comunidade da sua condição e afirmação de solidariedade, e a fraternidade em combate, ela só poderia atrair aqueles que compartilham de uma mesma herança a se engajarem na reabilitação dos valores das civilizações destruídas e das culturas negadas. (...) os negros diaspóricos estavam na revalorização e reafirmação plena da parcela africana de nossas identidades (Césaire, 2010, p. 61).

Embora Diop fosse crítico à ideologia e à visão da negritude de cunho político cultural de Césaire, Moore afirma que a “negritude é mais profunda e, exatamente uma soma de experiências vividas e também uma forma do humanismo criado pela história; é uma das formas históricas de condição humana” (Césaire, 2010, p. 108). A importância da obra de Diop é reiterada por Keita (2008), que a coloca como uma leitura indispensável para qualquer historiador, e aqueles que desejam reconstruir o patrimônio histórico-filosófico africano, antropológico e sociológico. Indo na mesma direção, Mazama (2009, p. 116) enfatiza “A necessidade de produção de conhecimento por si mesmo, mas sempre em função da libertação dos africanos” como um paradigma que “deve ativar a consciência africana para ter alguma utilidade”. A produção acadêmica afrocêntrica deve refletir a ontologia, a cosmologia, a axiologia e a estética (Mazama, 2009, p. 122) para assim restituir o lugar do povo africano. Considerando a produção científica de intelectuais negros no mundo, deve se notar sua ampla contribuição para o desenvolvimento não só da teoria científica (mediante a pesquisa e a epistemologia), mas também da arte, da literatura, da cultura, em

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suma, da civilização universal. Isto, apesar das omissões, das falsificações, das negações e do menosprezo das obras exemplares que negros produziram e produzem.

Considerações finais Observamos que a produção de conhecimento da África Negra serviu de base para o mundo que chamamos hoje de Ocidente, mas não só para este. Por seremos habitantes do berço da humanidade, os negros foram os primeiros a se dotar de conhecimentos em diversas áreas. A atual hegemonia ocidental em termos técnicos e científicos prova que o conhecimento científico não é um privilégio dos brancos ou europeus. O conhecimento é produzido por todos os povos independentemente da cor da pele (amarela, branca ou negra), da classe social, da cultura ou da localização geográfica. Cheikh Anta Diop buscava defender a dignidade da história e da ciência, por meio do rigor no procedimento. A objetividade científica é reivindicada por ele em detrimento da ideologia de certos pesquisadores e pensadores ocidentais. O seu legado é notável na produção dos negros intelectuais da África, de sua diáspora e entre teóricos da afrocentricidade. Ele dialogava direta ou indiretamente com movimentos como o pan-africanismo cujas algumas referências são Marcus Garvey, W. E. Du Bois, Jane e Paulette Nardal, Kwame Nkrumah, e com o movimento da Négritude, então conduzido por Senghor, Césaire e Damas, que se inspiraram das ideias das irmãs Nardal para lutar contra a assimilação e a alienação do povo negro num mundo dominado pelo Ocidente e pelos brancos. Estes diálogos foram úteis tanto para a epistemologia, quanto para o desenvolvimento da ciência. A importância da obra de Diop é de certa forma tributária das ideias anteriores ou contemporâneas, falsas ou “insuficientes”, defendidas por brancos ou negros. Ela está também na capacidade de restabelecer fatos históricos dos

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povos negros falsificados pelos brancos. Daí a necessidade de se colocar à disposição do público, não só africanos, mas do mundo todo “de maneira livre, sem entraves por parte dos famosos acadêmicos ou catedráticos a fim de se poder conhecer (...) o caminho para a necessária ‘consciência histórica’, para a plenitude cultural em África, e no mundo” (Keita, 2008, p. 48). Ainda os legados do Diop, dos teóricos da Négritude e do pan-africanismo continuam a ter influência sobre muitos intelectuais negro-africanos. Mas, o que se observa é que estes conhecimentos, apesar das independências adquiridas, de forma violenta ou não, foram e estão sendo pouco aproveitados pelos negro-africanos de hoje. O Comitê Científico Internacional da Unesco para a Redação da História Geral da África, a pedido dos países da comunidade africana, já em 1964, composto por 39 especialistas dos quais 2/3 são africanos, mostra um pequeno avanço no reconhecimento da capacidade de africanos falarem de si por meio de estudos científicos de grande abrangência. Entretanto, no geral, para um pesquisador negro ser reconhecido, ainda hoje, pela comunidade científica e acadêmica como grande cientista, ele precisa ser singular, não se comprometer com a questão racial, não questionar os intelectuais ocidentais nem as políticas ocidentais para a África Negra no seu estudo além de estar no Norte global. Diop é uma ilustração que denuncia um quadro geral e atual de menosprezo, de omissão e de desqualificação dos temas pesquisados e os resultados dos trabalhos rigorosamente desenvolvidos por pesquisadores negros no meio acadêmico. Na produção de conhecimento científico, a competência não é suficiente para o negro ser respeitado como pesquisador. A resistência por parte dos reprodutores do eurocentrismo associado ao racismo e o desprezo, que têm os pesquisadores brancos, são algumas das barreiras que negros produtores do conhecimento científico enfrentam.

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A perspectiva africana de Joseph Ki-Zerbo Guilherme Machado Botelho Muryatan Santana Barbosa Thiago Clemêncio Sapede

Em 2006, morreu Joseph Ki-Zerbo (1922-2006), um dos grandes historiadores do século XX. Natural de Burkina Faso, na África Ocidental, Ki-Zerbo foi um dos intelectuais mais respeitados de sua geração. Era, ademais, um homem de ação, tendo participado ativamente da vida política de seu país e da África, de um modo geral.

Sobre Joseph Ki-Zerbo Formado pela Sorbonne e pelo Instituto de Estudos Políticos de Paris, na década de 1950, ele fez parte da primeira geração dos historiadores acadêmicos africanos, em que se destacaram nomes como os de Kenneth Onwika Dike (1917-1983), Bethwell Allan Ogot (1929), Cheikh Anta Diop (1923-1986), Sékéné Mody Cissoko (1932-2012), Amadou Hampaté Bâ (1901-1991), Djibril Tamsir Niane (1932), Albert Adu Boahen (1932-2006), Jacob Ade Ajayi (1929-2014), Ebiegberi Joe Alagoa (1933) e outros. Mais precisamente, ele foi o primeiro africano negro formado como professor titular de História na Europa (1956). Também por isto, a importância de Ki-Zerbo para estes intelectuais é marcante. E, por este prestígio e suas inegáveis qualidades acadêmicas, tornou-se um dos principais organizadores do conhecido projeto História Geral da África, sob os auspícios da Unesco.

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Como historiador, sua trajetória intelectual ficou marcada por ter sido um dos primeiros formuladores de uma visão mais africana para o conhecimento histórico de África, livre dos preconceitos colonialistas de outrora. Era, em verdade, o ideal de uma geração, recém-saída do pós-Segunda Guerra Mundial e participante dos movimentos de descolonização da África. O historiador de Burkina-Faso desenvolveu sua abordagem histórica em poucas obras. A principal delas, que será aqui investigada pormenorizadamente, é a conhecida Histoire de l’Afrique noire, cuja primeira edição é de 1972. Trata-se de uma obra grandiosa, em dois volumes, que se tornou um clássico da história da África. Ou seja, um texto sobre o qual os autores posteriores, obrigatoriamente, tiveram que passar para construir novos saberes sobre o continente africano. Ki-Zerbo foi também autor de outros livros de menor volume, como Le Monde africain noir (1963), Alfred Diban: premier chretien de Haute-Volta (1983), Eduquer ou périr (1992), Les sources du droit chez les diola du Senegal (1997), Afrique noire (2005), em colaboração com Didier Ruef e A quand l’Afrique (2004), em colaboração com René Hollestein. Além dos livros, o autor escreveu dezenas de artigos importantes sobre temas variados da história da África. Talvez os mais conhecidos destes sejam aqueles publicados na História Geral da África. Por estas e outras razões que não cabe aqui esmiuçar, é certo dizer que Ki-Zerbo foi um dos intelectuais africanos mais influentes de sua geração.

A perspectiva africana O primeiro ponto aqui tratado diz respeito à chamada perspectiva africana, no pensamento de Ki-Zerbo. Por perspectiva africana, no pensamento do autor, entende-se sua tentativa de construir uma abordagem historiográfica sobre a África, que tem por objetivo destacar a importância dos fatores internos na expli-

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cação da evolução singular dos africanos na história universal; em oposição aos fatores externos.1 Inicialmente, vale esclarecer que esta perspectiva africana, para o autor, não significava a defesa de um ponto de vista que pretenderia ir além (ou aquém) da ciência histórica. Pelo contrário, para ele, falar nisto significaria colocar-se nos parâmetros desta ciência, a partir da tríade clássica de argumentação racional, método e trabalho empírico. Nisto, aliás, o autor foi um continuador da práxis teórica de sua geração de historiadores africanos do pós-guerra, aqui citada. A ciência, para estes, era o ideal regulador e o lócus de enunciação. Dizer isto, todavia, não implica acreditar que Ki-Zerbo e seus colegas (Alagoa, Diop, Niane etc.), tivessem um viés positivista do trabalho teórico. Em diversas passagens do seu trabalho, Ki-Zerbo deixa evidente seu distanciamento da crença positivista, como as seguintes: 1

É importante distinguir esta abordagem aqui delineada, chamada de “perspectiva africana”, daquela intitulada de “Afrocentrismo”. Por perspectiva africana, designamos aqui uma abordagem teórico-metodológica, que julga-se poder sintetizar a contribuição de Ki-Zerbo ao pensamento historiográfico, sobre história da África. Resumidamente, uma visão internalista e evolucionista da história da África. Esta abordagem não possui nenhuma relação direta com o chamado Afrocentrismo. Esta corrente de pensamento nasceu nos anos 1970, associada aos intelectuais negros estadunidenses, como Molefi Asante, John H. Clarke e J. Jackson. A revista Civilizações Africanas, editada pelo historiador ganense, Ivan Sertima, tornou-se a principal referência desta tendência. Mofeli Asante foi o único autor que, em livros como Afrocentricidade: a teoria da mudança social (1980) e A ideia afrocêntrica (1987), buscou definir o que seria este “afrocentrismo”. A afrocentricidade é definida por Asante como a conscientização da agência dos povos africanos e afrodescendentes. Ele define a agência como a capacidade de dispor dos recursos psicológicos e culturais necessários para o avanço da liberdade humana, capacitando o indivíduo para agir de forma independente de acordo com os seus interesses (Asante, 2009, p. 94). Asante vê outros intelectuais negros, especialmente Maulana Karenga e Cheikh Anta Diop, como iniciadores deste movimento. Mas, sem dúvida, ele é o legítimo formulador deste ideal. Como destaca Paulo Farias (2003), muitas vezes, o afrocentrismo, sobretudo nos EUA, é visto como uma visão romântica da realidade histórica. Mas é importante salientar que, independente do juízo que se faça desta teoria social contemporânea, Diop, Ki-Zerbo e outros historiadores africanos nunca se designaram “afrocentristas” ou defensores de uma “perspectiva africana”. Estas são rotulações posteriores, sobre as quais cabe análise e discussão acadêmica.

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Diz-se muito aos africanos que estes não podem esquecer que a história é uma ciência. Perfeito. Mas dizer ciência não implica positivismo. Existe uma subjetividade no trabalho histórico que é facilmente perceptível nas escolhas do historiador, no seu público etc. Este não procura apenas a Verdade, mas também a sua verdade. O grande professor Bloch, fuzilado pelos nazistas, é um exemplo disto (Ki-Zerbo, 1979, I, p. 34).

Ainda: A história da África não será escrita por frenéticos da reivindicação. Sê-lo-á ainda menos pelos diletantes sem simpatia, desejos simplesmente, na melhor das hipóteses, de preencherem os seus lazeres de cidadãos de países superdesenvolvidos. Será escrita por não africanos que tenham posto de lado a libré imperial dos ‘civilizadores’ para tomarem a vestimenta mais modesta, mas muito mais bela, do humanista. Homens destes são nossos amigos e, ao mesmo tempo, amigos da verdade. (...) Esta história será escrita, sobretudo, por africanos que tenham compreendido que as glórias do passado, como as misérias da África, os altos e os baixos, os faustos como os aspectos populares e cotidianos, constituem todo um conjunto no qual as novas nações podem e devem haurir energias espirituais e rituais de viver (Ki-Zerbo, 1979, I, p. 39).

Em passagens como estas, Ki-Zerbo deixa evidente sua valorização do papel subjetivo na prática historiográfica. Ao fazê-lo, dá consequência a uma visão moderna de história, libertada do positivismo do século XIX. É consciente disto que, na Introdução do seu livro mais importante, História da África Negra, Ki-Zerbo explicita cinco elementos primordiais para o trabalho historiográfico sobre a África: a) antirracismo; b) princípio de identidade, entendendo a história como a memória coletiva dos povos; c) espírito crítico-assimilativo, diante das tradições historiográficas; d) interdisciplinaridade, tida como o único caminho capaz de reconstruir a complexidade da realidade histórica africana; e) verdade histórica, visto que a história aí pensada estaria baseada em premissas científicas. 114

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Para o autor, uma história da África alicerçada nestes princípios deveria superar as duas maiores vertentes do trabalho intelectual sobre África à sua época: a difusionista e a da Antropologia-Etnologia. A primeira seria, em verdade, um difusionismo de mão única, externalista, na construção da história da África. Neste, tender-se-ia a associar qualquer progresso ou dinamismo em África como resultante de influências externas ao continente. Várias são as teses neste sentido: a) origem mediterrânica dos egípcios antigos; b) genealogia indo-europeia da língua banto; c) origem externa do ferro em África; d) centralidade do islamismo na formação dos Reinos e Impérios sudaneses etc. A segunda seria aquelas interpretações derivadas da Etnologia e da Antropologia. Afinal, estas, centradas na especificidade cultural dos povos africanos, estariam aí reforçando, segundo ele, uma falsa diferenciação étnica e racial de sua população. O autor, buscando superar tais preconceitos, analisa o desenvolvimento endógeno das sociedades africanas, um tema central nos volumes de História da África Negra. Destacar-se-á dois momentos históricos em que esta questão é marcante e controversa. O primeiro é o da Antiguidade africana. Sobretudo em relação ao Egito Faraônico e sua relação com a África. O outro momento são os chamados “séculos de reajustamento” (XV-XVIII), marcados por intensos contatos entre os africanos e os europeus por conta do tráfico de escravos. Vamos ao primeiro ponto. O caso da sociedade egípcia é controverso, e merece maior destaque. Até a década de 1970, era ainda recorrente nos livros de História da África se atribuir ao Egito uma origem mediterrânica, desconectando-o da África negra. Esta tendência continua recorrente nos livros que tratam da História Antiga, especialmente naqueles voltados para o estudo da “Antiguidade Clássica”. Como mostrou, entre outros, Martin Bernal (The Black Athena, 1987) trata-se de uma teoria de fundo racista, embasada na linguística alemã do século XIX. 115

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Neste particular, Ki-Zerbo foi na contramão desta tradição eurocêntrica. Seguindo pioneiros como Edward Wilmot Blyden (1832-1912) e Cheikh Anta Diop, ele qualifica o Egito faraônico como uma civilização africana, formada por populações majoritariamente negroide e fruto de migrações e desenvolvimentos internos ao continente. Em suas palavras: “Longe de ser um milagre, a civilização egípcia foi apenas, sem dúvida, o coroamento da liderança que a África manteve quase sem interrupção aproximadamente durante os 3 mil primeiros séculos de humanidade” (Ki-Zerbo, I, 1979, p. 79). Sua originalidade está em atestar uma origem saariana desta civilização, mas a forma de interpretação é aproximada a tais pioneiros. A teoria de Ki-Zerbo sobre esta origem saariana pode ser assim sintetizada. Ao fundamentar sua percepção histórica de viés internalista, o autor buscou analisar as primeiras civilizações africanas (Egito faraônico, Núbia, Kush e Nok) desde uma genea­ logia própria, que deveria ser buscada nas especificidades do Neo­lítico africano. Em particular, na difusão da olaria, que se comprovaria nos estudos arqueológicos sobre o Neolítico saariano e sudanês (Grandes Lagos e Cartum). Acreditava o autor que esta particularidade teria sido fundamental para a anterioridade do desenvolvimento da vida social em África. Afinal, a partir da olaria, ter-se-ia possibilitado o armazenamento de alimentos e instrumentos de trabalho, algo essencial à formação de uma economia doméstica. Esta olaria, entre outros elementos, permitiria um deslocamento mais ágil das populações, com a guarda de alimentos, ao redor dos rios e lagos que, entre 9.000 e 2.500 a.C, eram muito maiores do que hoje.2 Disto derivaria o que o autor chama de um “mundo saariano”, onde circulariam ideias, técnicas e costumes de uma aldeia para outra. A linha de influências 2

Daí a enorme quantidade de instrumentos de pesca, anzóis, arpões, e de ossadas de animais aquáticos (hipopótamos, peixes, crocodilos etc.) que os arqueólogos, desde a década de 1920, têm datado desta época nesta vasta região Leste-Oeste, do Atlântico à Etiópia, cruzando o continente africano (Stahl, 2004).

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seria aí horizontal, de leste para oeste e vice-versa. Este mundo saariano teria se desenvolvido, diz Ki-Zerbo, com a formação de uma economia doméstica e da fixação territorial. Se, outrora, bastava aos agrupamentos humanos à caça, coleta e pesca, a partir do 6º milênio, em África, ir-se-ia desenvolvendo a especialização e a diferenciação social. Por isto, mesmo com uma baixa domesticação de animais, própria do Neolítico em África, ter-se-ia ali produzido uma agricultura própria desde o 6º milênio, voltada para a produção dos seguintes produtos: sorgo, inhame, gergelim, variedades de arroz, massango, quiabo, cola e palmeira de dendê. Esta, diz o autor, complementaria a caça e a pesca, com a produção de alimentos específicos ao continente africano (Ki-Zerbo, 1979, I, p. 66). Observa o historiador africano que esta unidade civilizacional teria se desarticulado com a desertificação do Saara, que ter-se-ia intensificado a partir de 3.500 a.C. Desde então, ela teria se difundido pela migração de populações para outras comunidades, que, por sua vez, teriam desenvolvido regionalmente esta cultura original, dando origem às civilizações africanas antes de Cristo. Esta argumentação central do autor, explica sua ênfase no caráter africano da Núbia Antiga, de Kush e do Egito Faraônico, na História da África Negra. Afinal, seriam civilizações, na essência, filhas desta tradição civilizacional neolítica. Para o autor, a soberania histórica do Alto Egito sobre o Baixo Egito, e os inegáveis parentescos culturais destes para com seus vizinhos, núbios e cuxitas, seriam a prova cabal deste fato histórico. O fato é que sendo fruto desta unidade milenar, as primeiras civilizações africanas deveriam, portanto, ser entendidas como desenvolvimentos regionais desta mesma essência, que tornar-se-ia gradativamente diferenciada. Por vezes, complementada por influências externas, como no Egito Faraônico e na Etiópia. É também a partir desta tese do núcleo civilizacional Neolítico, ainda que indiretamente, que o historiador africano 117

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explica o surgimento das primeiras civilizações do Oeste Africano. Em especial, o aldeamento de Nok. Sempre cuidadoso em suas afirmações, o autor acredita que se possa explicar o surgimento de Nok, no último milênio a.C., como resultante da dispersão populacional advinda da desertificação final do Saara. Nok seria, assim, um caso específico e tardio de fixações territoriais que teriam advindo de migrações sucessivas. Deste fato, poder-se-ia explicar sua complexidade social, cujas principais características seriam a cultura de terracota e a fundição autóctone do ferro – embora o autor reconheça que ainda não haveria provas definitivas para comprovar tal hipótese à sua época. É uma pena que o autor, na História da África Negra, seja tão sucinto em relação a esta tese, tão importante para a reconstrução histórica do continente. Embora não estivesse ali construí­ da sobre provas definitivas, como o próprio autor admitiu, esta teoria do núcleo civilizacional saariano parece potencialmente mais frutífera do que outras teorias que, a sua época, buscaram explicar a gênese cultural africana, em termos de “civilização aquática” (Sutton, 1974, p. 527-546) ou de “anterioridade civilizacional egípcia” (Diop, 1973). Isto porque, ao contrário destas, ela aponta para uma gênese mais verossímil da unidade civilizacional africana, de caráter milenar. Esta parece ser a ideia-chave para qualificar as interpretações que buscam explicar a anterioridade do Neolítico africano. Seguindo o mesmo princípio da perspectiva africana, nos capítulos iniciais da História da África Negra, Ki-Zerbo buscou mostrar como se poderia explicar o surgimento de sociedades complexas africanas na África Ocidental, no início da presente Era, como Gana, Mali e Songai, como resultado de uma evolução singular dos povos africanos, nesta região particular do continente, na África Ocidental sul-saariana. As pesquisas arqueológicas e historiográficas atuais dão fundamento às afirmativas do autor, em meados da década de 1970. Hoje, se conhece melhor cidades como Jenné-Jeno e Igbo-Ukwu, na atual 118

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Nigéria, que foram fundamentais para a história da região. Os trabalhos de Charles Thurstan Shaw e dos McIntosh, ao longo das décadas de 1970 e 1980, foram decisivos nesta reconstrução (Shaw, Andah, Okpoko, Sinclair, 1995; Holl, 2006). No cerne desta argumentação está a percepção de que o processamento do ferro, supostamente autóctone, tenha sido um elemento fundamental para a difusão destas sociedades complexas na região (Ki-Zerbo, 1979, I, p. 124). Ao postular esta interpretação, que a época era uma hipótese um tanto vaga, o autor se contrapunha às teorias como as de John Fage e Roland Oliver (Breve história da África, 1962) que colocavam as influências externas, cartaginesas, romanas ou islâmicas, como fatores decisivos para a explicação do desenvolvimento civilizacional da África Ocidental saheliana. Esta perspectiva africana da História da África Negra busca comprovações de todo tipo e de fontes diversas (arqueológicas, linguísticas, tradição oral, históricas e antropológicas), se encontram fartamente expostas nas observações de Ki-Zerbo acerca do surgimento de sociedades complexas sul-saarianas no primeiro milênio da Era atual, especialmente Axum, Congo, Mali e Songai. Ao tratar desta temática, a perspectiva africana do autor ganha em amplitude, na medida em que ele analisa o islamismo e o cristianismo (etíope), em África, mais como um elemento “autóctone” ao continente, do que uma força de coação externa. Para o autor, tratar-se-ia de um islamismo e de um cristianismo africanos, pois cada vez mais adaptados à realidade social e herança cultural regional. Por isto, tornar-se-iam elementos internos à história da África. Esta argumentação do autor se mantém contínua até os chamados “séculos de reajustamento”: XV-XIX. Aí pode-se observar um momento interessante para a problematização do papel dos atores estrangeiros e locais no processo histórico africano, desde o enfoque da perspectiva africana ki-zerbiana. Por um lado, na África ocidental, vê-se o intenso contato, ainda que costeiro, com os euro119

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peus. Por outro, na África Setentrional e Nordeste, vê-se o avanço das populações muçulmanas, provindas do Oriente Médio. Para Ki-Zerbo, o período de intensificação dos contatos entre africanos e estrangeiros, a partir do século XV, coincidiria, não por acaso, com uma fase de crise para as maiores sociedades africanas da época. E isto é muito significativo do papel que o historiador confere às populações estrangeiras – em maior grau ao europeu – nesse processo. Em suas palavras: “mais grave ainda, a Europa, que até então se contentara com relações e os serviços árabes, vai procurar conhecer a África e depois utilizá-la. É o começo de uma aventura sombria. Vamos encontrar os sinais prenunciadores dessa mudança em três pontos da África: Songai, Etiópia e Congo” (Ki-Zerbo, 1979, I, p. 251). As três sociedades citadas seriam politicamente complexas e centralizadas, além de ocuparem vasto território. Segundo o autor, à medida que avança a dominação dos povos estrangeiros sobre estas sociedades, maior a crise e desagregação social. No caso de Songai e da Etiópia, os inimigos teriam vindo do norte. São invasores muçulmanos, de diversos agrupamentos e origens mediterrânicas. Mas são também africanos magrebinos: berberes, garamantes e outros. O autor vê a islamização de Songai e o gradativo controle exercido pelos “hispano-marroquinos”, como a razão principal para a desagregação dessa sociedade. Ele não deixa de apontar que as pestes e a fome que teriam dizimado parte da população songai, no século XVII, tiveram causas naturais. Mas, segundo ele, foram os invasores estrangeiros os responsáveis pela extinção final deste Império. O caso da Etiópia é muito interessante, pois haveria no perío­ do em questão dois agentes estrangeiros, os invasores muçulmanos (turcos e somalis) e os “parceiros” portugueses. Na relação com os portugueses, o historiador africano louva a soberania que o rei Etíope, também cristão, tinha sobre seu território e a superioridade desta “brilhante civilização” em relação a Portugal. 120

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Orgulhoso desta glória nova, Lebna Dengel [soberano Etío­pe] ficou decepcionado com os magros presentes que lhe vinham da Europa. E, quando num mapa que lhe mostraram viu quanto pequeno era o espaço ocupado por Portugal em comparação com seu próprio reino (...) encheu-se de um sentimento de orgulho. Tendo sabido que havia guerras na Europa, ficou consternado por reinos cristãos terem que recorrer às armas (Ki-Zerbo, 1979, I, p. 157).

Mas, diz o autor, mesmo neste caso em que haveria uma relação de negócios respeitável entre europeus (portugueses) e africanos (etíopes), as consequências teriam sido igualmente funestas para as populações africanas, de um modo geral. No caso da Etió­ pia, por exemplo, o autor lembra que esta negociação, de fato, foi inicialmente proveitosa para os etíopes, visto que por este meio conseguiram as armas de fogo que utilizaram contra os invasores turcos e somalis. No entanto, diz o autor, estas mesmas armas de fogo, com o aumento do comércio, teriam se tornado um instrumento mortífero contra os próprios etíopes. Em suas palavras: “abrindo brutalmente um novo capítulo na história africana”. Nota-se, portanto, no caso etíope, que o ator externo europeu, mesmo que de forma indireta e inicialmente proveitosa para sociedades africanas particulares, teria sido de fato, para o autor, o fator de interrupção do desenvolvimento endógeno africano. Outro caso interessante deste período na interpretação do autor é o Reino do Congo. O Congo foi o local onde teria ocorrido o contato mais intenso entre europeus e africanos.3 Segundo o historiador africano, a conversão do Manicongo (rei do Congo)

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Desde os anos 1920 e mais tarde na década de 1930 e 1940, obras etnológicas foram publicadas na Europa chamando atenção ao antigo reino do Congo, como uma sociedade, para os olhos da época, excepcionalmente interessante por sua história particular de contatos com europeus. Além do grande número de fontes missionárias nos arquivos europeus de testemunhas dos períodos de centralização do poder. Entre tais obras, estão as de Joseph Van Wing (1921) e do missionário belga Jean Cuvelier (1946). Autores contemporâneos de Ki-Zerbo que exaltaram a centralização do poder no Congo foram Jan Vansina (1966) e W. G. L. Randless (1968).

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e das elites nativas à religião cristã, assim como a abertura de escolas de gramática portuguesa, por exemplo, fizeram parte de um mesmo processo de “europeização”, em que os congoleses tiveram um papel passivo. O soberano convertido do Congo, D. Afonso (1456-1542), para Ki-Zerbo, era um cristão fervoroso, que combatia cultos animistas e se esforçava para transformar o Congo em um reino cristão a imagem do reino português. Em suas palavras: Afonso era um “rei que nada compreendia o que se passava em sua volta”. Vê-se aí uma percepção claramente negativa deste contato (Ki-Zerbo, 1979, p. 261). Apesar do autor não citar textualmente, tampouco debater diretamente com outros autores, nota-se que Ki-Zerbo apresenta uma interpretação do Congo oposta, por exemplo, à época, a conhecida tese de Jan Vansina, no livro sobre os reinos da savana (1966). Afinal, para Vansina, foi a ação voluntária das elites congolesas a responsável pelos aspectos culturais europeus e cristãos incorporados. Em seus termos: No estudo da história africana e para o historiador contemporâneo não há narrativa mais instigante do que a história do reino do Congo. Esse foi um Estado completamente soberano que autonomamente buscou incorporar o cristianismo e muitos outros elementos da cultura europeia (Vansina, 1966, p. 33).

Para este autor, o que diferenciaria o Congo de outras sociedades seria justamente a preservação de sua soberania, mesmo incorporando elementos culturais portugueses. Além disso, Vansina não acredita que os contatos com europeus marquem uma crise rumo ao colapso do reino, como afirma Ki-Zerbo. Para ele, o Congo permaneceu um Reino soberano organizado (com momentos de crise), por mais dois séculos no mínimo. Portanto, se comparada com a interpretação de Vansina, nota-se que a visão do historiador de Burkina Faso confere, neste caso, maior passividade ao africano, delegando aos europeus um papel mais ativo 122

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nas transformações negativas que ocorreriam posteriormente no Congo e na África em geral. Outro tema no qual se pode notar uma atitude semelhante do autor é o tráfico de escravos. O autor dedica um capítulo ao funcionamento do tráfico escravista e suas consequências. Seu recorte é essencialmente atlântico, priorizando a narrativa do sistema atlântico dos portos ao mar. Para isto, foca a maneira com que os europeus organizavam o tráfico a partir do litoral, e as acirradas disputas entre as companhias de comércio pelo monopólio do tráfico em tais portos. As elites políticas africanas são pouco citadas e vistas como joguetes das companhias de comércio, que disputavam a prioridade no tráfico em cada região: Os métodos de ação [dos europeus] eram muito simples. Propaganda psicológica, que faz crer os negros, por uma demonstração de forças ou faustos, que se é o primeiro país da Europa, ou que se desviam dos outros negreiros das zonas particularmente interessantes, contando fábulas terríveis a seu respeito (Vansina, 1966, p. 268).

Um tema que aparece muito perifericamente na obra de Ki-Zerbo é a maneira com que os estados africanos atendiam à demanda de escravos das companhias de comércio europeias, o que foi bastante abordado pela historiografia estadunidense pós-1980. Na verdade Ki-Zerbo relativiza a pró-atividade dos africanos em temas polêmicos; como o tráfico de escravos. O mesmo ocorre com sua análise da participação dos africanos na administração colonial. De um modo geral, permanece o argumento de que, independente da participação africana nestes processos históricos, o motor da história estava, a partir do século XV, na constante interferência dos fatores externos, em particular, europeus, no continente. Aí estariam as raízes da dominação de tipo colonial-exploratório, que teriam inibido o desenvolvimento endógeno das sociedades africanas. Certas passagens de Para quando África (2006) deixam evidente este posicionamento do autor: 123

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A África evoluiu, como todos os outros povos do mundo, de maneira progressiva, até o século XVI, através das chefaturas, dos reinos, dos impérios cada vez mais importantes (...). No século XVI, começou a invasão vinda do exterior: uma grande intromissão com as ‘grandes descobertas’, dessas descobertas implicou o tráfico de negros (...). O tráfico de negros foi o ponto de partida de uma desaceleração, um arrastamento, uma paragem da história africana. Não falo da história na África, mas de uma inversão, uma reviravolta da história africana (Ki-Zerbo, 2006, p. 24).

O autor trata também de uma incompatibilidade entre o “metabolismo básico” das sociedades africanas com o sistema político, econômico e territorial impostos aos africanos pelos europeus. Dessa incompatibilidade teria nascido uma das principais explicações para o atraso e subdesenvolvimento da África no contexto do capitalismo globalizado. Não é apenas pela ação dos homens que o historiador africano analisa estas ondas de retardamento da evolução africana. Ao tratar deste assunto desde uma perspectiva metodológica, o autor ampliou tal perspectiva na Introdução Geral e na Conclusão do primeiro volume da História Geral da África. Aí, ele deu continuidade a esta compreensão de que a história da África deveria ser entendida como a história da evolução singular da África à civilização universal. A diferença é que, aí, ele também sumariza alguns fatores internos, não tão explorados na História da África Negra, que seriam corresponsáveis pelo “atraso” africano. Isto fica evidente, em primeiro lugar, quando o autor ressalta a importância que o entendimento da realidade geográfica e demográfica do continente teria para a história da África. Isto porque, diz o autor, tal realidade teria sido, historicamente, um entrave para o estabelecimento de um ritmo de evolução mais rápido em determinados setores do continente (Ki-Zerbo, 2010, p. XXXV). No mesmo sentido, na Conclusão da obra, o autor 124

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sintetiza suas explicações para o “arcaísmo” em África. Destaca dois aspectos. O primeiro seria dos obstáculos estruturais endógenos: a) baixa apropriação da terra; b) baixo desenvolvimento das forças produtivas; c) diluição demográfica; d) barreiras ecológicas. O segundo seria a exploração externa, aí destacando o período de dominação romana, o tráfico escravista e o colonialismo. Ao apontar tais fatores de “atraso”, Ki-Zerbo se coloca desde uma postura combativa, militante e busca humanizar o africano colocando-o como sujeito de sua história. Sua apreciação era que, sem dúvida, existiam os condicionamentos estruturais, mas o Homem poderia superá-los, em prol da continuação do progresso, ou seja, da humanização do Homem. Esta apreciação levanta o último ponto a ser destacado da obra ki-zerbiana, a saber, sua formação política e teórica.

Romantismo historiográfico? Joseph Ki-Zerbo deve ser enquadrado na leva de historiadores africanos que afloram em um momento específico da história: o período de luta anticolonial. Tal fato, sem dúvida, marcou sua escrita histórica. Henri Moniot aponta este fenômeno como sendo uma retomada da posse que se traduz, na prática, como reconhecimento das heranças e do passado não divulgado (Moniot, 1998, p. 100). A luta de Ki-Zerbo era colocar a África dentro da própria história global, universal. Sua escrita descreveu o progresso na África, não como uma linha reta e contínua, mas apontando e incluindo possibilidades de alterações neste percurso. Em suma, um progresso singular, retardado pela simbiose de fatores internos e externos. É evidente que, na medida em que se coloca como uma visão da África desde uma perspectiva africana, conforme analisada, a historiografia de Ki-Zerbo é essencialmente política. Afinal, esta era uma interpretação “descolonizada” da história,

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interessada em entender a África por ela mesma, e em destacar o papel de sujeito histórico que os africanos teriam tido na história mundial; ainda que se possa discutir, como aqui se fez, o teor desta interpretação. A história que assim surge buscou desvelar a evolução progressiva e singular das sociedades africanas, relacionada, sobretudo, com a difusão do ferro e a formação de sociedades complexas no continente, em fins do primeiro milênio d.C. Esta evolução, para o autor, ter-se-ia revertido com a crescente dominação europeia na África, a partir do século XVI. Desde então, poder-se-ia observar uma descontinuidade na história africana. Em contraste com os males causados por esta secular dominação ocidental, engendrada pelo capitalismo, o autor atribui como características tradicionais africanas, tendências opostas à economia de mercado: “No sistema africano a propriedade sempre foi mínima. A produção ficou confinada, durante muito tempo, no nível familiar clânico”. Em outra passagem: “O sistema africano tradicional visava limitar os desperdícios e evitar açambarcamento de propriedade por alguns poucos, garantindo a cada indivíduo a possibilidade de dispor de um lote, a fim de aplicar suas próprias capacidades produtivas”. Sobre o espaço territorial africano: “Era um espaço sempre disponível, para onde as pessoas recuavam em busca de refúgio. Por causa da grande dimensão do continente, durante muito tempo, as pessoas podiam se utilizar do espaço como queriam” (Ki-Zerbo, 2006, p. 34). Ao citar estes e outros exemplos, tem-se, de fato, a impressão que Ki-Zerbo apresenta um olhar romântico sobre a tradição aldeã africana, anterior ao início dos contatos com europeus na costa. Esta seria coletivista, tolerante e democrática. Tal tradição estaria baseada em trocas culturais e comerciais de longa duração, dentro de marcos regionais. Contra isto, ter-se-ia imposto, gradativamente, a dinâmica do capitalismo eurocentrado. Este 126

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teria desarticulado o “desenvolvimento endógeno” africano, que ele assim define: Nenhum povo se desenvolveu unicamente a partir do exterior. Se ele se desenvolve, é por que extrai de si mesmo os elementos do seu próprio desenvolvimento. Na realidade, todo o mundo se desenvolveu de forma endógena (...). Para mim, o desenvolvimento é a passagem de si para si mesmo, em um nível superior (Ki-Zerbo, 2006, p. 149).

Essa concepção de desenvolvimento que Ki-Zerbo vê o passado, sem dúvida, de forma projetiva. O “desenvolvimento” para ele não implica modernização eurocêntrica, mas reversão criativa do subdesenvolvimento. Significava a busca por um caminho pan-africano, voltado para a complementaridade econômica e o federalismo de base. Seria o que ele chama de Estados Unidos da África, com a eliminação de fronteiras comerciais, a democratização da vida política, a divisão de papéis produtivos e o estabelecimento de cooperativas de base. Trata-se de uma escolha civilizacional intra-africana, que deve buscar sua fonte na história. Vale dizer, portanto, longe de qualquer nativismo culturalista (Ki-Zerbo, 2006, p. 124). Na medida em que Ki-Zerbo vai buscar no passado africano, especialmente pré-colonial, as raízes deste caminho pan-africano a se construir, muitos diriam que o autor deva ser qualificado de historiador romântico. Alguns comentaristas, como Philip Curtin (2010, p. XXXV), Caroline Neale (1985) e Carlos Lopes (1995, p. 21-29) alertaram que tal tendência era um elemento central da historiografia africana do ano pós-guerra. Afinal, esta historiografia tenderia a um maniqueísmo entre uma Era africana (até o século XVI) e outra Europeia (séculos XVI-XXI, atualizada pelo neocolonialismo). Caroline Neale, em especial, destacou, pormenorizadamente, como a incorporação dos ideais pan-africanistas e nacionalistas de época, sobretudo os de Kwame Nkrumah 127

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(1909-1972)4, trouxeram uma série de consequências problemáticas para a nascente historiografia africana do pós-guerra. Em particular, sua tendência a aderir a uma visão teleológica da história, baseada na evolução das sociedades complexas na África. Daí sua tendência ao estatismo e certa visão romântica do passado africano. Não entraremos nesta polêmica. O certo é que, se qualificar-se o autor como romântico, vale assinalar que era daquela classe dos românticos utópicos, progressistas, de que fala, em especial, Michael Löwy (1995). Mas vale dizer que o próprio Ki-Zerbo negou o título numa passagem de Para quando África. Em suas palavras: “Mas não fazemos romantismo retrospectivo – ao falar sobre a marca democrática da cultura política africana. Houve tiranos na África, e continua a haver. Mas queremos ficar com as pedras preciosas, e não com os resíduos maus do nosso patrimônio sociocultural” (Ki-Zerbo, 2006, p. 64). Concorde-se ou não com este posicionamento de Ki-Zerbo, é certo que ele é um historiador de grande coerência. Sem dúvida, um dos critérios para se qualificar qualquer grande autor. Por isto, e por sua vasta obra, cuja complexidade e riqueza é imensa, vale sempre lembrar de Ki-Zerbo como um intelectual comprometido com o resgate histórico do passado africano, e com a construção de um futuro melhor para o continente.

Ki-Zerbo e o pensamento social africano Ki-Zerbo teve uma vida intelectual e política ativa. Cabe agora fazer uma ponderação final, tendo em conta o exame geral já realizado de suas ideias historiográficas, em relação à sua visão do futuro da África e de sua correlação com o pensamento social africano. 4

As ideias e a figura de Nkrumah marcaram profundamente a trajetória política e intelectual de Ki-Zerbo, como o próprio autor assevera nas entrevistas de Para quando a África (2006).

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Enquanto terminava seus estudos em Paris, no decorrer da década de 1950, Ki-Zerbo ajudou a formar a Associação dos Estudantes do Alto Volta e a Associação dos Estudantes Católicos da África, Antilhas e Madagascar, em que teve papel de liderança. Nesta época, portanto, Ki-Zerbo era um nacionalista, um pan-africanista, e um devotado católico. Talvez aos olhos de hoje isto possa aparecer contraditório, mas não o era à época (nem hoje em dia). Em primeiro lugar, porque nacionalismo e pan-africanismo eram visto como posições complementares. O primeiro levaria à independência nacional; o segundo, ao regionalismo e a unidade africana. Em segundo lugar, em relação ao catolicismo, vale lembrar que tal identificação foi muito presente nos ativistas africanos e negros da época. Em particular, os francófonos. Não se tratava apenas de uma questão relativa ao início da trajetória destes. Era uma contínua formação e diálogo intelectual, em que autores como Jacques Maritain (1882-1973) e Emmanuel Mounier (1905-1950) tinham uma influência marcante na juventude católica de então. Em 1956, Ki-Zerbo tornou-se um membro importante da equipe editorial – liderada por Alioune Diop – de Présence Africaine, a revista mais importante do mundo negro na segunda metade do século XX. Nesta época, esta já era uma revista consolidada e respeitada internacionalmente. Era também uma livraria e uma editora, parte da atmosfera intelectual parisiense, que contava, então, com outras revistas de renome como Les Temps Modernes, Esprit e Critique. Nesta época, a Presence Africaine já havia publicado três obras importantes para o debate anticolonialista e antirracista da época: a) Nações negras e cultura, de Cheikh Anta Diop (1954); b) Discurso sobre o colonialismo, de Aimé Césaire (1956); c) A filosofia bantu, de Placide Tempels (1955). A Presence Africaine, nesse período, não era apenas uma revista acadêmica. Era o principal meio de expressão dos intelectuais africanos e da diáspora. Em particular, da África francófo129

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na. A organização do I e do II Congresso dos Escritores e Artistas Negros, respectivamente, em 1956 (Paris) e 1958 (Paris-Roma), foi o ápice da revista, pois ali estiveram reunidos alguns dos maiores intelectuais negros do pós-guerra. Em 1956, este grupo formou a Sociedade Africana de Cultura, tendo como missão defender os interesses das nações africanas e o enriquecimento da solidariedade internacional do povo negro.5 Como historiador, Ki-Zerbo contribuiu para pensar alguns dilemas intelectuais (e políticos) prementes que o grupo da Presence Africaine tentava resolver, entre fins da década de 1950 e início da de 1960. Não se tratavam, em verdade, à época, de questões acadêmicas. Eram ideias referentes à formação ideológica do Pan-africanismo como filosofia da práxis. Talvez o debate para o qual o nosso autor tenha mais contribuído neste contexto tenha sido o da “personalidade africana”. Salvo melhor juízo, este termo foi utilizado de forma pioneira pelo célebre Edward Wilmot Blyden, em fins do século XIX e início do XX. Foi ele quem afirmou a igualdade entre africanos e afrodescendentes (em especial, estadunidenses), ao dizer que eles fariam parte de uma mesma unidade: a “personalidade africana”. Sua teoria buscava fundamentar a ideia de raça dando-lhe um enfoque cultural, enquanto especificidade de um povo, de uma circunstância histórica. No seu entender, a “personalidade africana” seria o caminho específico do negro (africanos e afrodescendentes) à civilização universal. Blyden foi um dos primeiros intelectuais a dizer que as sociedades africanas ancestrais tinham valores civilizatórios, como se poderia observar da im5

Vale lembrar que se estava num momento de ebulição política da luta colonialista e anti-imperialista. E os movimentos pela Descolonização Africana já eram uma força política poderosa e quase incontrolável em muitos destes países, como Gana, Senegal, Congo, Nigéria, Guiné. Não por acaso, estávamos próximos do “ano glorioso” de 1960, quando 16 países africanos adquirem a sua independência. Em particular, na África ocidental. Vale lembrar também que, em 1955, ocorreu a famosa Conferência de Bandung, que é o marco fundador do “Terceiro Mundo” enquanto bloco político.

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portância que ali se dava a família, a vida coletiva e ao uso comum da terra e da água. Estes valores deveriam ser reconhecidos universalmente. Suas obras mais conhecidas foram Cristandade, Islã e a raça negra (1887), África Ocidental depois da Europa (1905) e Vida e costumes africanos, de 1908 (Déves-Valdés, 2008, p. 28-37). Por estas e outras questões, Blyden é reconhecidamente tido como um dos fundadores do pan-africanismo. Como é sabido, o tema da “personalidade africana” foi retomado pela négritude 6 francófona na década de 1950. Aí o termo é tido como uma essência própria, que seria a contribuição cultural do negro à civilização universal (Munanga, 1988). Etimologicamente, o termo significa a individualidade consciente, ou, em outros termos, o caráter pessoal e original de algo. Trata-se de um termo adequado para os fins que se desejava à época: defender à especificidade do homem negro ao universal. Mas para o grupo da Presence Africaine, em 1956, o termo “personalidade africana” seria ainda mais do que isto. Atentos para a era pós-colonial que estava se aproximando, eles pretendem que a “personalidade africana” seja também o núcleo duro de uma “cultura vivificada”, modo pelo qual a ideologia pan-africana seria apropriada pelas massas populares. Sem isto, eles dizem, este pan-africanismo poderia se tornar um discurso de elites e da política ordinária. Não por acaso, o termo é utilizado como a ideia-força do grupo da Presence Africaine à época. Assim ela é apresentada, por exemplo, por ocasião da abertura dos trabalhos do I Congresso dos Escritores e Artistas Negros, em Paris, no editorial intitulado A cultura moderna e seu destino:

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Existem diversas acepções do termo negritude. Para Munanga (1988, p. 6), deve-se compreendê-lo historicamente, como uma resposta dos intelectuais negros diante da inferiorização racial por eles sofrida, nas primeiras décadas do século XX. Nesse contexto, a negritude era entendida como uma retomada de si mesmo, que pressuporia a negação do embranquecimento e a aceitação da herança sociocultural africana e negra.

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Talvez seja permitido, no entanto, retomar novamente a justificativa de nossa preocupação com a cultura. (...) Com efeito, a cultura (hoje) torna-se um formidável instrumento de ação política, no exato momento em que ela tem a ambição e a vocação para inspirar a política. A cultura ao serviço da política ordinária não é um fenômeno novo. Os políticos sempre fizeram uso da cultura, bem como da espiritualidade para encontrar uma base e reforçar a sua autoridade. (...) Mas a cultura criativa tende a rejeitar qualquer subordinação e está determinada a desempenhar plenamente as suas próprias responsabilidades, dos quais a principal é manter a liberdade de expressão. (...) A cultura é apenas o esforço vital através do qual cada raça e cada indivíduo por sua experiência e aspirações, os seus trabalhos e reflexões, busca reconstruir um mundo que está cheio de vida, pensamento e paixão. E parece, mais do que nunca, com sede de justiça, amor e paz (...). Isso deixa claro que nós, por nossa parte, temos duas tarefas primordiais: I. trazer à audiência mundial a expressão de nossas culturas originais, tanto quanto elas representem a vida atual dos nossos povos e nossa personalidade; II. espelhar de volta para os nossos próprios povos a imagem de suas aspirações, as suas experiências e as suas alegrias, iluminadas pelas experiências, alegrias e esperanças do mundo. Em suma, tornar a nossa cultura uma força de libertação e de solidariedade, e, ao mesmo tempo, o hino da nossa personalidade mais íntima (Présence Africaine, 1956, p. 5-6).

Mas o que seria, afinal, esta “personalidade africana”? O termo reaparece diversas vezes nos editoriais e artigos da Presence Africaine, entre 1958 e 1962, mas com acepções diferentes e, por vezes, abstratas. Desta forma, sem uma definição precisa e concreta, ele perderia a possibilidade de ser utilizado como o grupo da Presence Africaine pretendia: como núcleo duro da ideologia pan-africana. Neste momento, entra a participação decisiva de Ki-Zerbo. Na Presence Africaine, ele discorre sobre o tema 132

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sucintamente, desenvolvendo-o em três partes. Na primeira, define as características clássicas da referida “personalidade africana”, de acordo com a realidade histórica e geográfica do continente. Segundo ele, o relativo isolamento, o atraso tecnológico e uma tradição não codificada (oral) das populações africanas teriam formado uma vida social voltada para o coletivismo, a gerontocracia e a solidariedade. Historicamente, estas seriam, portanto, as marcas essenciais da “personalidade africana”, que possuiria tanto tendências positivas (anti-individualismo, fraternidade), quanto negativas (tendencialmente autoritárias). Ocorre que esta personalidade, diz o autor, estaria se perdendo diante da nova realidade africana, marcada pelos influxos externos. Em particular, os valores do individualismo e da acumulação de dinhei­ro. Haveria aí uma contradição em potencial, especialmente para os jovens africanos. Visando superar tal situação, Ki-Zerbo aponta para a necessidade de formação de uma nova “personalidade africana”, que pudesse criar uma síntese original destas duas tendências em prol do desenvolvimento endógeno do continente. Algo que, para ele, teria que se articular dentro de uma visão pan-africana, ou seja, voltada para a unidade do continente. Bela síntese de uma longa discussão (Ki-Zerbo, 1962). Esta visão dialética e pan-africana de um desenvolvimento endógeno africano, já apontada em 1962 – e que será exposta também em Le Monde africain noir (1963) – será retomada por Ki-Zerbo ao longo de toda a sua trajetória intelectual e política. Ela é, em verdade, o arcabouço teórico e político em que sua perspectiva africana se enquadra, visto que o objetivo pelo qual sua interpretação histórica busca destacar a importância dos fatores internos na explicação da evolução singular dos africanos na história universal; em oposição aos fatores externos. É a imagem de futuro que move o autor, em suas visitas ao passado. Esta percepção estava absolutamente integrada à vida política de Ki-Zerbo. Em 1958, ele já era professor em Paris e na Universidade de Dakar (Senegal). Neste mesmo ano, desistiu de 133

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suas posições recém-conquistadas, para ir trabalhar na Guiné-Conacri de Sékou Touré (1922-1984), o único país da África Francófona que havia votado pela independência imediata no referendo de 1958. E, por consequência, tinha perdido toda assistência técnica do poder colonial.7 No mesmo ano, criou o Movimento de Libertação Nacional (MLN), que dirigiu até a sua morte. Nesta época, conheceu Kwame Nkrumah, por quem tinha grande admiração. Este o estimulou na construção do MLN como um partido pan-africanista, transnacional, que defendia a independência imediata das colônias, a criação dos Estados Unidos da África e o socialismo. Em 1960, o Alto Volta adquire a sua independência e Ki-Zerbo deixa a Guiné para regressar ao seu país. Rapidamente, torna-se diretor-geral da educação nacional. Mas, no decorrer dos anos, o primeiro presidente voltaico, Maurice Yaméogo (1921-1993), instaurou uma ditadura de partido único e o MLN teve que agir na clandestinidade. Ki-Zerbo então participou da resistência ao regime, tendo sido uma pessoa importante nas manifestações de 1966, que levaram à queda de Yaméogo. Concomitantemente, nesta vida dinâmica de intelectual e político, em 1967, ele formou o Conselho Africano e Malgaxe para o Ensino Superior (Cames), que foi um pioneiro na pesquisa sobre a farmacopeia africana (Abdelmadjid, 2005, p. 29). Teórica e politicamente, portanto, Ki-Zerbo foi, desde o começo, um assíduo defensor do pan-africanismo, da educação e da 7

Trata-se do referendo colonial francês, que impôs duas alternativas aos povos da África Ocidental-francófona: a) independência imediata; b) formação de uma comunidade franco-africana. Foi um ultimato inteligente do poder colonial. Sobretudo porque, como disse posteriormente Ki-Zerbo (2007), foi uma arma letal contra o pan-africanismo, dividindo os partidários da independência em dois grupos praticamente irreconciliáveis: Monróvia versus Casablanca. Parece-me que, à época, a posição de Ki-Zerbo e seus grupos políticos de então – MLN e African Independence Party – foi correta: voto nulo! Afinal, não se podia negociar com a descolonização. Ela teria de ocorrer conforme os próprios interesses e ritmos dos movimentos de libertação, como diria Fanon posteriormente (Os condenados da terra, 1961). Mas, sem dúvida, esta opção não era tão óbvia à época.

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democracia na África. Três elementos que ele via como algo indivisível. Afinal, para ele, conhecer (e recriar) a “personalidade africana” era o único meio de seguir em frente, de forma digna e autônoma. Diante deste fato, o exemplo exterior à África, portanto, em sua opinião – fosse ele de esquerda (marxista-comunista) ou de direita (liberal-capitalista) – seria sempre algo necessário, mas secundário. Neste sentido, talvez se entenda melhor os profundos desentendimentos que marcaram a relação do autor com o governo de Thomas Sankara (1949-1987), revolucionário e líder pan-africanista, que liderou o Burkina-Faso (nome oficial, desde 1984) entre 1983 e 1987. Esta questão é importante, também, porque Sankara é muito respeitado pelos jovens africanos de hoje na África Ocidental, que possuem uma formação política robusta, ligada aos partidos políticos e aos movimentos sociais e culturais urbanos. Entre outras razões, porque ele foi o último líder dos grandes nomes da geração pan-africana, junto com Kwame Nkrumah, Frantz Fanon (1925-1961), Mohamed Ahmed Ben Bella (1918-2012), Amílcar Cabral (1924-1973), Samora Machel (1933-1986), Agostinho Neto (1922-1979), Julius Nieyere (1922-1999) e outros. A questão fica mais intrigante quando percebemos que, tanto em Ki-Zerbo quanto nos discursos de Sankara, à época, é flagrante a preocupação de ambos em defenderem uma visão política baseada no “desenvolvimento endógeno do continente”. Algo que o grupo de Sankara buscou concretizar em cinco princípios: a) a necessidade de contar com suas próprias forças; b) a participação das massas na política, com o objetivo de mudar a sua condição de vida; d) a emancipação das mulheres e a sua inclusão nos processos de desenvolvimento; e) a utilização do Estado como instrumento de transformação econômica e social (Dembélé, 2013).

Em tese, duvidamos que Ki-Zerbo tivesse grandes divergências deste particular. Mas a política é complexa. Para além do seu 135

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comprometimento com as ideia gerais de como concretizar o ideá­rio pan-africanismo e do desenvolvimento endógeno, existiam diferenças cruciais entre as concepções políticas destes dois famosos personagens da história política da África. Ki-Zerbo era um “democrata”8 e um “reformista”9; Sankara era um “revolucionário”, de tendência marxista-leninista. Em outros termos, para o primeiro, a democracia, o pluralismo, a não violência, eram questões incontornáveis. Para o segundo – como pode-se atestar do seu governo de Partido Único –, tais princípios eram secundários diante da causa maior: a revolução “democrático-popular”. Não por acaso, enquanto que o primeiro buscou criar uma alternativa política democrática ao governo neocolonial de Saye Zerbo (1932-2013), no Alto Volta, no início dos anos 1980, o segundo chegou ao poder pelas armas, promovendo um Golpe Militar contra o citado governante. Em suma, embora, teoricamente, faça sentido colocar Ki-Zerbo e Sankara (assim como muitos outros intelectuais e políticos africanos) dentro da mesma tradição de pensamento – o pan-africanismo –, é forçoso constatar que, no plano da política concreta, tal “identidade” diz menos do que o nosso senso comum tende a admitir. E, muitas vezes, tal fato trouxe consequências trágicas para à história política da África. No Burkina Faso, neste caso, o rompimento entre os jovens (grupo radicalizado de Sankara) e dos velhos pan-africanistas (democratas do MLN-UPV10) foi, sem dúvida, um prelúdio do isolamento do próprio Sankara, que, em 1987, acabou morto por alguns dos seus colegas de armas...

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As aspas aí são essenciais, visto que não se trata da concepção comum – ocidental – do termo. A democracia de que falava Ki-Zerbo era algo maior do que a democracia representativa ocidental. Era a refundação das tendências pluralistas da democracia africana antiga. O termo, aliás, era utilizado pelo próprio Sankara publicamente, quando fazia referência à Ki-Zerbo (Abdelmadjid, 2005, p. 34). É provável que o fazia pejorativamente. Eu o utilizo conforme definição acima, sem imputar-lhe tal conotação. Em 1974, o MLN foi obrigado a trocar de nome. Formou-se então o UPV: União Progressista Voltaica (Abdelmadjid, 2005, p. 33).

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Mas voltemos a Ki-Zerbo. Exilado por Sankara, ele continuou seu progresso intelectual no Dakar. Formou, ali, o Centro de Pesquisa para o Desenvolvimento Endógeno (CRDE), que retomava seus estudos sobre o desenvolvimento endógeno africano, iniciado de forma sistemática e coletiva no Centro de Estudos para o Desenvolvimento Africano (Ceda), em Ouagadougou (Burkina), no início dos anos 1980. Publicou também obras pedagógicas destinadas ao grande público africano. E, em 1990, sintetizou tais observações no livro: Éduquer ou périr; em que expôs a tese de que o desenvolvimento econômico de África não pode ser conseguido se este descurar as culturas africanas e os próprios africanos. Numa frase sua, que ficou clássica: “Nós não nos desenvolvemos. Nós desenvolvemos a nós próprios”. Ki-Zerbo volta ao Burkina em 1992 e, desde então, tentou manter uma vida mais fixa em seu país natal, apesar das constantes turbulências políticas e militares locais. Vale dizer, ele nunca se escusou de continuar participando da vida política do seu país, por mais dissabores que tal fato tenha lhe trazido. Isto mostra que ele, de fato, nunca desistiu da África! Não resta dúvida de que ele poderia ter-se eximido de tal responsabilidade. Foi um intelectual importante na Unesco. Tornou-se um historiador de renome, que poderia ter sido um professor ou consultor de universidades e governos do exterior. Ele não o fez. Seu compromisso com o continente africano era inquebrável. Talvez para a atual geração “globalizada”, este exemplo de Ki-Zerbo seja tão valioso quanto o legado das suas ideias, que continuam vivas na intelectualidade africana. Ou, pelo menos, naquela que continua comprometida com o seu continente e o futuro dos povos africanos.

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Parte 2 Revolução africana

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Kwame Nkrumah, o neocolonialismo e o pan-africanismo Mathias Inacio Scherer

O presente capítulo pretende apresentar e refletir, de modo introdutório, sobre dois conceitos desenvolvidos na obra de Kwame Nkrumah: os conceitos de neocolonialismo e pan-africanismo. A proposta é pensar a ação de Nkrumah não apenas como líder político, mas também como intelectual que se esforçou para transformar a sua realidade. Para isto, precisou teorizar sobre a essência do neocolonialismo e imperialismo e, posteriormente, desenvolver sua prática política baseado na leitura e na análise crítica da realidade concreta. O ganês Kwame Nkrumah nasceu em setembro de 1909, em Nkroful (Costa do Ouro) e faleceu em abril 1972, aos 62 anos de idade, com destacada formação acadêmica, militância política e atua­ção política institucional em Gana. Ele escreveu mais de uma dezena de livros, dentre os quais destacam-se A África deve unir-se (1963), Neocolonialismo: último estágio do imperialismo (1965), Consciencismo: filosofia e ideologia para a descolonização (1964) e Luta de classes em África (1970). Além de lutar pela libertação do continente africano e participar diretamente da independência de Gana, ali exerceu o cargo de primeiro ministro entre 1957 e 1960, sendo depois presidente entre 1960- 1966, além de ter sido o terceiro presidente da Organização da Unidade Africana entre 1965-1966, quando foi derrubado do poder em seu país por um Golpe de Estado desfechado pelo exército.

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Sua formação intelectual percorre, inicialmente, as melhores escolas da cidade de Acra e é complementada no ensino superior nos Estados Unidos da América, para onde migrou em 1935. Frequentou a Universidade de Lincoln, na Pensilvânia (estudos sobre arte, teologia, filosofia ou educação), onde fez a graduação e obteve grau de bacharel em Humanidades, Economia e Sociologia, em 1939. No mesmo ano, iniciou mestrado em ciências da educação, que concluiu em 1942 (Biney, 2011, p. 11-28). Neste período, ajudou a fundar e foi diretor da Associação de Estudantes Africanos para EUA e Canadá. Após cerca de dez anos nos EUA, em 1945, a Inglaterra para o desenvolvimento de sua tese de doutorado que, em virtude de sua intensa ação política, foi interrompida. Na ilha britânica, entra em contato com outros importantes intelectuais, como George Padmore e Jomo Kenyatta, com quem irá organizar o V Congresso Pan-africano, em Manchester. Tal congresso foi fundamental para o entendimento dos processos históricos vindouros no continente Africano, pois contou desde sua preparação e participação com uma quantidade importante de africanos (cerca de 200 delegados), além dos já citados, como Obafemi Awolowo, H. O. Davies e Jaja Wachuku, da Nigéria; J. E. Taylor, Ako Adjei e o Dr. R. G. Armattoe, da Costa do Ouro; Jomo Kenyatta, do Quênia e Hastings Banda, do Malaui. No congresso, foi aprofundada a discussão, pela primeira vez, da necessidade de se promover uma independência completa e absoluta, e uma África unificada e sedimentada, sendo traçadas estratégias para serem seguidas de modo a concretizar esta proposta. Para tanto, foram convocados operários, agricultores e intelectuais das colônias a unirem-se e organizarem-se para atacar o imperialismo (utilizando-se de greves, boicotes, ações diretas e outros métodos não violentos) e conquistar a independência. Por último, os africanos que participaram do encontro, logo que retornaram aos seus respectivos países, baseados nas resoluções, levaram a cabo campanhas pela libertação, ou se 144

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somaram a outras iniciativas já em andamento (Suret-Canale; Boahen, 2010, p. 197). O ano de 1947 marca o regresso de Nkrumah à sua terra natal após assumir o cargo de Secretário-Geral da Convenção da Costa do Ouro Unida (UGCC), organização política pró-independência dos territórios coloniais. Esse período foi marcado pela intensificação de sua atuação política em Gana, com viagens por outros países da Costa do Ouro, como a Libéria, Costa do Marfim e Serra Leoa. Momento que foi fundamental para sua formação e para o reconhecimento da sua figura política em prol das lutas de libertação. Toda sua ação política deste período é materializada em 1949, quando da criação Partido de União Popular (Convention People’s Party – CPP). A partir de 1950 o partido começa a colocar em prática atividades de boicote, greves e outras táticas de desobediência civil. Na África Ocidental, Kwame Nkrumah foi um dos importantes entusiastas nas ideias de Mahatma Mohandas Gandhi de não violência, baseado na tática da “ação positiva” para a libertação da Costa do Ouro, o que o leva a ser preso pela segunda vez. Em 1957, ocorreu a independência de Gana, momento no qual a CPP e Nkrumah alcançaram destacado protagonismo ao vencerem a primeira eleição do país, ponto que marcou a sua entrada definitiva na política institucional. Ele ocupou o cargo de primeiro ministro do país durante os anos 1957-1960, e de presidente entre 1960-1966, quando sua atividade política institucional foi interrompida pelo golpe de Estado desencadeado por militares ganeses com o apoio dos EUA, enquanto encontrava-se em visita a Hanói, capital do Vietnã do Norte. Exilou-se, então, na Guiné-Conacri sob os auspícios de Ahmed Sékou Touré até 1972, quando faleceu. O objetivo desta curta apresentação da vida de Nkrumah é evidenciar que ele cumpriu importantes tarefas durante sua vida, tanto no âmbito político quanto no intelectual. Fez parte de uma rede de intelectuais que, inicialmente, assentou bases fora do con145

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tinente africano (principalmente na Europa), configurando um movimento de resistência ao colonialismo em andamento desde o fim da Primeira Guerra Mundial. Nos anos 1930, esta rede de intelectuais já dispunha de certa estabilidade e sedimentação com a publicação de jornais, criação de instituições, capacidade logística de receber e acolher jovens estudantes ou emigrados em geral. Ele participou da terceira geração dos teóricos do pan-africanismo, ou pan-africanismo independentista, e foi um dos difusores do conceito de socialismo africano (Devés-Valdés, 2008, p. 101-102).1 Ele ocupa posição de centralidade como representante do pensamento pan-africanista, que não deve ser entendido como um bloco monolítico único, pois passou por diversas fases, sendo que cada uma delas serviu para o acumulo de formulações que levaram ao seu desenvolvimento, cada etapa incorporando elementos das anteriores, sem negar por completo suas formulações precedentes, mas ampliando-as. De modo geral, pode-se delimitar a primeira geração de pan-africanistas por volta de 1900, quando Henry Sylvester Williams propunha a defesa dos negros de todo o mundo sujeitos às diferentes formas de exploração. O segundo momento, em 1920, quando W. E. B. Du Bois procurou articular os negros com o objetivo de obter igualdade de direitos. A terceira geração nos anos 1940, no bojo do Quinto Congresso Pan-Africano, tem como tese central a independência dos povos africanos, destacam-se George Padmore e Nkrumah, sendo que este último iria dar ares a uma nova variante nos anos 1960. E a quarta geração, “que apostaria na unidade dos Estados do continente africano para lutar contra o neocolonialismo e construir o socialismo africano” (Devés-Valdés, 2008, p. 111).

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Os componentes mais característicos dessa tendência são: a) o anticapitalismo; b) o marcado destaque anti-imperialista e anticolonial; c) o repúdio à existência de luta de classes na África e, frequentemente, a substituição dessa ideia pela luta entre Estados ou regiões; d) a afirmação de que o socialismo é ancestral na África e que as fórmulas futuras deveriam inspirar-se nessa trajetória ou dar continuidade a ela; e e) o pan-africanismo entendido como unidade continental (Devés-Valdés, 2008, p. 126).

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Será justamente para as questões que tocam a realidade do continente africano, a partir da década de 1940, mais precisamente no pós-Segunda Guerra, que Nkrumah direcionou suas reflexões teóricas. O ponto central delas dizia respeito à premência das independências e às mazelas da colonização, da exploração e dominação humana, econômica e política a que a África estava submetida. O fim da Segunda Guerra, com a derrota do Eixo, principalmente na concretização do combate impetrado contras as ideologias nazistas e fascistas e a tudo que elas simbolizavam e materializavam, significou um lampejo de esperança para os povos submetidos à dominação colonial na África e na Ásia. A partir deste momento, o colonialismo começou a ser posto em xeque. A Carta do Atlântico de 1941, que trazia como um de seus pontos o “direito próprio a cada povo em escolher a forma de governo sobre a qual ele deseja viver”, ou seja, a sua autodeterminação, que era um documento de guerra dos aliados, passou a ser postulado pelos povos coloniais. Também cabe destacar que a Segunda Guerra deixou outros rastros, “a mobilização forçada de tantos africanos para a guerra suscitou uma intensa cólera junto a todos os africanos, de todas as classes sociais e, em especial, junto às esposas, às mães e às avós que não suportavam perder seus maridos, seus filhos e netos” (Suret-Canale; Boahen, 2010, p. 192); além das experiências vivenciadas por combatentes africanos que lutaram na Índia ou na Birmânia, e lá entraram em contato com movimentos independentistas, fazendo com que tivessem contato com táticas e estratégias anticoloniais que depois poderiam aplicar em seus países. Por último, muitos dos soldados que voltaram após a guerra não tiveram o reconhecimento por parte do Estado, em formas de indenizações, prêmios ou promoções, o que acabou fortalecendo as fileiras nacionalistas e anticoloniais. A conjuntura aberta pela Guerra Fria, no final da década de 1940, também se mostrou fértil para os processos de libertação 147

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nacional, pois, embora os dois grandes blocos (socialista e capitalista) do mundo bipolar tivessem fortes divergências políticas, econômicas e ideológicas, ambos contestavam o colonialismo, ainda que por motivos diferentes, e ambos acabaram influenciando a difusão de ideias anticoloniais. Os processos de independência seguiram dois modelos: um caracterizado pelo confronto armado e outro marcado pela negociação e barganha com os governos metropolitanos. Foi este último o modelo adotado em Gana nos anos 1956-1957 sob a liderança de Nkrumah. Todavia, a emancipação não significou, necessariamente, uma ruptura ou avanço concreto em relação à situação colonial, como se pode observar na síntese proposta pelo sociólogo Cláudio Furtado: As independências dos países africanos resultam de processos diferenciados em função das potências colonizadoras. Se as colônias inglesas e francesas foram as primeiras a aceder à independência em meados dos anos 1960, através de uma negociação que permitiu manter relações de cooperação privilegiadas, na maior parte dos casos com as antigas metrópoles, para alguns consideradas tutelares ou neocoloniais, as colônias portuguesas apenas tornaram-se independentes uma década e meia mais tarde após igual período de guerra de libertação (Furtado, 2014, p. 99).

Neocolonialismo A dominação colonial apresenta duas características gerais: a primeira é uma desproporção nas relações entre o país colonizador e o país colonizado, e a segunda é uma descontinuidade territorial e cultural entre ambos. Contudo, o processo de colonização praticado pelos europeus busca ainda articular três planos fundamentais para materializar o sistema. O primeiro é econômico, através da exploração dos seres humanos e da terra; o segundo é ideológico, pela legitimação de seus atos através do 148

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recurso à “salvação” daqueles povos, ou ainda no intuito de civilizá-los; e o terceiro é político, pela ordenação de um conjunto de meios administrativos, legislativos e judiciais para a imposição de domínio e primazia sobre territórios e populações extranacionais (Henriques, 2014, p. 45). O início da filosofia política de Nkrumah é baseado na ação positiva, um conjunto de meios legais e não violentos. A ação positiva foi o método utilizado por ele para realizar a mobilização pela independência de Gana. Durante este momento ele ainda não vislumbrava uma ação revolucionária que contasse com a luta armada como primordial, em seu horizonte estava apenas ação política e pacífica. Prática muito similar à utilizada por Mahatma Gandhi no movimento de independência da Índia. Nkrumah inicialmente se definia como um discípulo do indiano, porém, com a evolução do processo político por ele vivido, indubitavelmente, após chegar ao poder, passou por uma transformação em sua reflexão de ação que fica visível em seus escritos. Neste período, um novo conceito começa a aparecer em suas obras, sendo empregado para interpretar as realidades inerentes às sociedades africanas anteriores ao período colonial, o consciencismo. Baseia-se na ideia segundo a qual a ação política no presente devia seguir as orientações gerais das sociedades tradicionais, que eram igualitárias e de tipo comunitário, sendo os meios de produção coletivos e a propriedade privada, inexistente. Então, a luta de classes, no seu entender, não era ainda um elemento essencial para a revolução africana. Em Consciencism: philosophy and ideology for decolonization and development (Consciencismo: filosofia e ideologia para a descolonização e o desenvolvimento), lançado em 1964, pregava o quanto as lógicas da tradição africana já davam conta de problemas que o marxismo e a luta de classes pretendiam resolver. As antigas sociedades africanas são nomeadas pela lógica do comunalismo. Esta elaboração interferiu diretamente no entendimento e enfrentamento ao neocolonialismo. “A luta contra o neo­colonialismo aparece então como uma luta de classes em esca149

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la internacional como sendo introduzida como efeito do próprio colonialismo” (Hountondji, 1977, p. 177-180). Contudo, esta concepção não ficou estática, foi transformada, após Nkrumah assumir o poder em Gana, quando sofreu pressões politicas que resultaram em sua derrubada do poder. Estas circunstâncias foram fundamentais para sua mudança de percepção sobre as dinâmicas internas das próprias sociedades africanas. Na segunda edição do livro O consciencismo, revisada em 1969 e editada em 1970, por ocasião de seu exílio na Guiné-Cronacri, ele passa a defender a existência da luta de classes como uma característica fundamental da sociedade africana, ou seja, a luta contra o imperialismo, na sua forma colonial ou neocolonial, não seria mais que uma luta de classes em escala internacional. (Hountondji, 1977, p. 190). No prefácio, o próprio autor deixa claro sua mudança de posição acerca do papel das elites africanas na subordinação aos interesses externos e da necessidade de romper com quaisquer formas de essencialismo na interpretação da situação do continente: Desde a publicação de Consciencism, em 1964, a revolução africana entrou resolutamente em uma fase nova, a fase da luta armada. Em cada parte do continente, os revolucionários africanos se preparam para a luta armada ou são ativamente engajados em operações militares contra as forças da reação e da contrarrevolução. O objetivo é claro: a sucessão de golpes de Estado militares em todas as partes do continente revelam os laços estreitos entre os interesses do neocolonialismo e os interesses da burguesia indígena. Os golpes de Estado são colocados na mesma natureza e extensão da luta de classes na África e os capitalistas monopolistas estrangeiros estão em relação estreita com os reacionários locais e utilizam as forças armadas e a polícia para bloquear os interesses da revolução socialista. Essa nova situação, assim criada na África, rendeu necessário certo número de modificações no presente livro (Hountondji, 1977, p. 191).

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Ao estudar as teorias do imperialismo, Nkrumah desloca para o centro de suas interpretações e reflexões sobre o continente africano o neocolonialismo, identificando-o como “o maior perigo que a África enfrenta atualmente” (Nkrumah, 2011, p. 287). Seria ele “o imperialismo em seu estágio final e talvez mais perigoso” (Nkrumah, 1967, p. 3). Segundo Nkrumah com a emergência do pós-guerra e a necessidade da instauração do Estado de bem-estar social (Welfare State) na Europa, inaugurou-se também uma política colonial diversa, cujos ganhos advindos dos rendimentos coloniais seriam canalizados para financiar e bancar os benefícios e direitos sociais da população, em vez destes recursos ficarem sob o controle direto da classe burguesa europeia (Nkrumah, 1967, p. 4). O neocolonialismo2 estava se tornando o principal instrumento do capitalismo, deixando de lado o velho colonialismo (mesmo que este não estivesse abolido), pois a conjuntura dos anos 1960, em que as áreas coloniais estavam se tornando nominalmente independentes, impossibilitava uma reversão do processo e uma consequente volta ao colonialismo de velho estilo. Porém, com o neocolonialismo, os países sofriam com a ingerência e controle externo (muitas vezes subjugados nas esferas militares ou econômicas e monetárias, sendo estas últimas as mais comuns), “a essência do neocolonialismo é de que o Estado que a ele está sujeito é, teoricamente, independente e tem todos os adornos exteriores da soberania internacional. Na realidade seu sistema econômico e, portanto, seu sistema político é dirigido do exterior” (Nkrumah, 1967, p. 1).

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Segundo Nkrumah, o valor do estudo no neocolonialismo, no contexto do continente africano, é que esta análise forneceria exemplos para todos os tipos de sistemas. Não seria suficiente tentar definir a situação africana distinguindo os Estados independentes (não alinhados ou “colonialistas”), colônias ou Estados racistas como a África do Sul. Todos os territórios que alcançaram a independência estariam sujeitos, de alguma forma, a pressões neocolonialistas. O que poderia diferenciá-los seria a capacidade de resistir ao neocolonialismo ou simplesmente aceitá-lo.

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O Estado que detém o controle neocolonial é, muitas vezes, a antiga metrópole que já exercia a exploração anteriormente, porém isto não é unanimidade, uma vez que o país independente pode ser controlado por outro Estado (caso do Vietnã do Sul que era parte do império francês e depois passou a sofrer influência dos Estados Unidos), ou ainda por uma coalizão de interesses econômicos e financeiros compostos por corporações que impossibilitava a identificação direta com qualquer Estado Nacional (caso do Congo). Este foi um momento de grande crescimento do capitalismo industrial, com a expansão industrial levada a todas as partes do globo, nas regiões capitalistas, socialistas, e no “Terceiro Mundo” (Hobsbawm, 2013, p. 256). Contudo, internamente, os governos assentados no comando recebiam poder para governar, não do povo, mas do respaldo dos senhores neocolonialistas. Sendo assim, não tomavam qualquer medida em favor do país ou da população que pudesse desagradar seus controladores, objetivando sempre manter intactas as redes comerciais e políticas. O processo de balcanização3 do território africano será o principal alicerce de edificação e sustentação do neocolonialismo. Este processo consistia em dispersar os territórios coloniais, que se encontravam previamente coligados, desagregando-os em numerosos pequenos Estados que, pelos mais diferentes motivos, seriam incapazes de se desenvolver independentemente, precisando de alguma forma de ajuda estrangeira, sendo que a primeira oferta, muitas vezes, partia da antiga potência colonial:

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Balcanização é um termo utilizado na geopolítica para descrever um processo truculento de fragmentação ou divisão de uma região ou de um Estado em regiões ou Estados menores, geralmente com o objetivo de enfraquecer e dificultar qualquer associação entre eles. O conceito foi inicialmente utilizado para descrever a operação de divisão da península balcânica, governada por séculos pelo Império Otomano, em uma porção de pequenos Estados, ocorrido no período das guerras balcânicas (1912-1913). O termo costuma ser empregado em referência aos diversos pequenos Estados que surgiram do colapso dos impérios Austro-Húngaro e Russo após a Primeira Guerra Mundial.

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Este tipo de arranjos faz do território africano uma aparência de nação, mas deixa a substância da soberania nas mãos da potência metropolitana. Esta envia uma espécie de ajuda para enganar o povo e dar a impressão de que de alguma coisa se está a fazer por ele. O objetivo é desviar a atenção da exigência nascente de uma mudança de governo que envolva uma independência mais positiva e um programa dirigido para o bem-estar do povo (Nkrumah, 2011, p. 293).

Assim, decompondo os novos Estados em organismos débeis e dependentes da ajuda externa, esta assistência normalmente vem acompanhada da perda da independência e da soberania nacional. Transformaram uma vasta quantidade de territórios em pequenos e frágeis Estados, convertendo o continente africano em um espaço instável e exposto às contínuas ações das antigas potências colonizadoras, principalmente no âmbito econômico e político. Estes Estados recentes desenvolveram, então, uma autonomia apenas nominal, pois continuaram servindo aos “interesses do novo imperialismo, que procura salvar alguma coisa do naufrágio do imperialismo antigo” (Nkrumah, 2011, p. 195). Isto ocorre como uma espécie de peça de tabuleiro, por exemplo, quando os países europeus fortemente industrializados se utilizavam de seus recursos para, através de acordos econômicos danosos, submeterem os países africanos às velhas lógicas de exploração, continuando estes últimos a servir de fonte de fornecimento de matérias-primas de baixo custo e potencial mercado consumidor de produtos industrializados. Assim as vantagens recebidas entre os dois países são díspares, uma vez que enquanto um obtinha benefícios, o outro conservava perdas da “lógica colonial”. Na composição do pacto neocolonial, os países europeus e os EUA (que exerce a função na América Latina) se beneficiavam de trocas de mercado, com preços garantidos e estáveis, de produtos primários como cacau, café, algodão etc., enquanto os Es153

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tados africanos se comprometiam a importar uma quantidade fixa de produtos industrializados, maquinarias, têxteis, ou outros produtos que necessitavam. Assim, muitas vezes não obtinham os melhores preços para os produtos comprados, além de serem coagidos na quantidade de importações feitas com aqueles países.4 Cabe sublinhar que os acordos econômicos não precisavam ser realizados apenas entre Estados Nacionais. Os países em fragilidade econômica podiam, muitas vezes, assumir empréstimos ou acordos com o setor privado e/ou órgãos transnacionais (como o FMI, Bird etc.). Deste modo, o processo da descolonização promoveu uma independência apenas aparente, motivo pelo qual Nkrumah afirmava que “descolonização” era uma palavra insincera, “frequentemente usada pelos porta-vozes imperialistas para descrever a transferência do controle político, da soberania colonialista para a africana” (Nkrumah, 1967, p. 35). Por que insincera? Justamente porque o fio condutor do colonialismo continua operando em seu conteúdo intrínseco, uma vez que, a cada uma das partes, nas transações econômicas, continuam reservados os mesmos papéis. Embora o objetivo dos neocolonialistas seja o domínio econômico, não limitam suas operações à esfera econômica. Utilizam os velhos métodos colonialistas da infiltração religiosa, educacional e cultural. Por exemplo, nos Estados independentes, muitos professores expatriados e ‘embaixadores culturais’ influenciam as mentes dos jovens contra o próprio país e o povo. Fazem isso solapando a confiança no Governo nacional e no sistema social, através da exaltação de suas noções próprias de como um Estado deve ser admi-

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Podemos tomar o exemplo da França com a suas antigas colônias, em que o Estado europeu chegava a limitar as taxas de importação dos países africanos fora da zona do franco. Estes acordos podiam até ser trocados na forma, mas não no conteúdo: a França até pode abrir mão do protagonismo da relação em nome do protagonismo do Mercado Comum Europeu.

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nistrado e esquecem de que não há monopólio sobre o saber político (Nkrumah, 1967, p. 40).

O neocolonialismo se utiliza de alguns mecanismos econômicos para seu sustento, como controle dos preços dos produtos pelo capital internacional. Através deste expediente, consegue administrar os preços dos produtos por ele comprados e vendidos, fazendo com que o preço dos produtos primários caia (com exceção do petróleo), e elevando o preço dos produtos industrializados, tornando menor a entrada de capitais nos países africanos, mesmo que estes aumentem em volume o número da exportação. Outro mecanismo utilizado é o controle das taxas de juros (mantidas em níveis elevados) sobre os empréstimos financeiros, tornando mais dificultoso o pagamento dos juros e dos serviços da dívida, fazendo com que o montante total da dívida externa dos países devedores seja maior. Ou seja, o que à primeira vista pode ser percebido como uma ajuda financeira aos países que buscam o desenvolvimento5 torna-se, essencialmente, uma brutal exploração por parte do capital internacional. Outro estratagema neocolonialista vem por meio da ajuda multilateral, quando empréstimos são promovidos por organismos internacionais. Os países em fragilidade econômica podem, muitas vezes, assumir empréstimos com órgãos financeiros como o Fundo Monetário Mundial (FMI), ou Banco Internacional para Reconstrução e Desenvolvimento (Bird). Em troca, estes exigem contrapartidas pesadíssimas, desde informações econômicas sobre o país endividado até orientações sobre como e em que investir nele.

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Apesar dos múltiplos entendimentos e significados que a palavra “desenvolvimento” pode suscitar, no presente texto, ela será empregada segundo a acepção dos nacionalistas e independentistas, no quadro da situação colonial, numa perspectiva fortemente emancipatória (Furtado, 2014, p. 95).

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Pan-africanismo O Pan-africanismo tem duas dimensões importantes. A primeira, como fator de integração nacional, como uma força para se alcançar a unidade e cooperação política, cultural e econômica entre os países africanos, em três momentos particulares: “a fase colonial, de 1935 a 1957; a fase da independência, como movimento de libertação e uma terceira fase iniciada nos anos 1970, no curso da qual o pan-africanismo torna-se uma força de integração” (Asante, 2010, p. 873). No caso desta última, é que se pode sentir os efeitos da inserção dos Estados africanos na economia capitalista mundial e o avanço do neocolonialismo. A segunda dimensão do pan-africanismo seria como movimento de libertação nacional. Perspectiva que teve origem no ano de 19356, quando os fascistas italianos invadiram a Etiópia, evento que serviu de estopim para sacudir os africanos e afrodescendentes em solidariedade ao território africano invadido, marcando o início da ação de estudantes africanos na luta pela independência de seus países. Este nacionalismo ganhou maior intensidade por ocasião do V Congresso Pan-africano, realizado em Manchester, no ano de 1945 (Biney, 2011, p. 13). “A luta africana pela independência e a unidade deve começar pela união política” (Nkrumah, 1960, p. 1).7 É com esta frase que Nkrumah inicia o seu discurso como presidente de Gana perante a Assembleia Nacional, em agosto de 1960, chamando a atenção à necessidade de uma coalizão dos Estados africanos. No mesmo discurso, alerta para o que ocorreu na América quan-

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O Imperador Hailé Selassié enviou reiterados pedidos aos líderes da Liga das Nações para que repelissem e repudiassem a invasão italiana, que muito pouco ou nada fizeram para conter os ataques. Tanto que intelectuais negros da importância de C. L. R. James, George Padmore, Jomo Kenyattta, entre outros, fundaram, ainda em 1936, a organização internacional African Friends of Ethiopia (Iafe). Extrato do discurso do presidente Kwame Nkrumah frente à Assembleia Nacional de Gana, no dia 8 de agosto de 1960, momento que deve ser compreendido dentro do marco da invasão do Congo pelas tropas belgas.

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do os impérios coloniais, espanhol e português, foram desfeitos, e estes países foram dissolvidos em vários em vez de criarem um único Estado Unido da América do Sul, pois unido poderia ser tão forte quanto os EUA. Dizia isto provavelmente em referência às independências de 11 países que ocorreram naquele mesmo ano. Com efeito, entre 1º de janeiro e 28 de novembro de 1960, 19 territórios africanos proclamaram a sua soberania, somando 27 Estados politicamente independentes. As independências foram concebidas e postuladas como uma primeira etapa da revolução política. O próprio lema do PCP: “primeiro, a liberdade” aspirava à necessidade da independência política como importantíssima, sem a qual seriam impossíveis os planos de desenvolvimento social e econômico (Nkrumah, 1965, p. 82-83). O projeto elaborado pelos principais dirigentes das independências destinava-se a devolver aos africanos a sua condição plena de seres humanos, desfrutando dos seus direitos, riquezas e liberdade. Nosso continente nos oferece em extensão a segunda superfície de terras do mundo. Se estima que as riquezas naturais da África, são maiores que as de qualquer outro continente do mundo. Para tirar o máximo de proveito de nossos meios existentes e potenciais, para alcançar a abundância e o bem social, necessitamos unificar nossos esforços, nossos recursos, nossas técnicas e nossas intenções (Nkrumah, 1965, p. 283).

O próprio Nkrumah deixou muito claro, em seus escritos, que uma vez conquistada a independência, entraria em jogo uma tarefa maior; tanto que o PCP aceitou uma quantidade considerável de empecilhos constitucionais no âmbito político-administrativo imposta pelo Império Britânico para alcançar a independência. Por exemplo, quando foi discutida a constituição de 1956, que iria reger o Estado de Gana após a independência, ficou estabelecido que para mudar qualquer dispositivo constitu-

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cional seriam necessários dois terços de votos do total de representantes da câmara, ou seja, muito mais do que a maioria simples. Este mesma exigência também valia para leis que afetassem os poderes regionais, decisão que acabou por dificultar a ação do poder executivo central, inviabilizando um projeto de Estado Nacional centralizado. Para o poder central conseguir abrir estradas ou instalar postos de saúde e hospitais nos territórios seria preciso contar com o apoio das assembleias regionais, pois estas poderiam vetar a empreitada, impossibilitando obras e ações que o governo julgasse importantes para o desenvolvimento do país. Assim, esta estratégia dos negociadores britânicos mostrou-se eficiente para fomentar instabilidades e conflitos políticos no interior do país (Nkrumah, 1965, p. 96-97). Nkrumah entendia que os territórios dependentes possuíam déficit em áreas como educação, agricultura e indústria. Porém, para saná-las era necessário bancar a independência política como uma exigência de esforços e de mobilização total do povo. Portanto, o “primeiro dever era assegurar a unidade da nação e sua tranquilidade, para seguir adiante” (Nkrumah, 1965, p. 96) com as propostas e tarefas do desenvolvimento. O momento-chave de afirmação do movimento pan-africano ocorreu principalmente após a independência de Gana. Sob o comando de Nkrumah foram, a partir daí, traçados objetivos e dinâmicas para se alcançar uma integração regional, continental e extracontinental. Ele sustentava que os países africanos só alcançariam a segurança e o progresso quando todos os dirigentes tomassem consciência da necessidade da união sem reservas no continente: Sempre que as associações entre países africanos e europeus se mostrarem contrárias aos interesses africanos fundamentais, seja em que aspecto for, e nos impedirem de alcançar o nosso objetivo, que é a unidade, será necessário denunciá-las e rejeitá-las quando nos forem propostas. Em todas as nossas relações com o restante do mundo, a principal consideração não deve ser as vantagens, superficiais

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ou mesmo importantes, que essas relações possam comportar para este ou aquele país africano, mas sim, os nossos deveres para com o conjunto do continente. Por mais veementes que sejam as nossas declarações de fidelidade à causa da liberdade e da unidade da África, elas serão vãs se não tomarmos este ponto de vista como princípio fundamental (Nkrumah, 2011, p. 299).

A unidade africana vislumbrava o desenvolvimento baseado na planificação econômica sustentada em escala continental com o objetivo de incrementar o poder industrial e econômico, de modo que os recursos da África fossem utilizados com maior proveito em benefício de todos os africanos. Cada Estado dispunha de algum tipo de produto agrícola, industrial ou até mesmo tecnologia que poderia contribuir para o desenvolvimento do Estado vizinho. Como consequência destes câmbios, deveria ser considerada a construção de um Mercado Comum de uma África Unida, para barrar muitos negócios nocivos ocasionados por acordos com o Mercado Comum Europeu. O pan-africanismo não postulava o fim das relações econômicas dos novos Estados independentes com suas antigas metrópoles ou mesmo com outras potências industriais, mas ponderava que estas relações deveriam ser feitas de maneira livre e negociadas em pé de igualdade entre as duas nações, como com qualquer país do mundo – quebrando, assim, a ideia de que os Estados africanos eram menores e merecessem tratamento diferenciado. Nkrumah defendia que a África deveria deixar de buscar o seu desenvolvimento fora do continente (na Europa) e se voltasse para ela própria, porque era ali que poderia encontrar, de fato, os caminhos para todos os tipos de desenvolvimento. Advogava, portanto, um processo de desenvolvimento endógeno. Para que o sucesso da unidade econômica fosse realizado, era indispensável que ele estivesse lastreado numa unidade política continental: “as duas são inseparáveis, ambas necessárias à futura grandeza do nosso continente, e ao pleno desenvolvimento dos recursos” (Nkrumah, 1967, p. 35). 159

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Advogava, igualmente, uma unidade partidária, não de partido único, mas de um partido comum. Por exemplo, que o Partido da Convenção Popular em Gana se tornasse o Partido Popular de Gana, assim como o Partido Progressista do Quênia se transformasse no Partido Popular do Quênia, e assim sucessivamente. Para que estas agremiações tivessem horizontes de perspectivas comuns, deveriam ter finalidades e objetivos compartilhados. Ao operar em conjunto, estes partidos poderiam ter uma organização central e uma sede central, bem como pessoal bem instruído: “se este tipo de solidariedade fosse alcançado ao nível dos partidos políticos, com certeza, fortaleceria a liberdade e unidade continental de África” (Nkrumah, 1965, p. 85). Apesar de muitos governantes africanos concordarem com as leituras de Nkrumah, nem todos estavam inclinados a aceitar as propostas do dirigente ganês, pois, como fica explícito na Conferência de Addis Abeba (Etiópia), em 1960, muitos líderes não percebiam o neocolonialismo como uma calamidade para o continente africano, a ponto de justificar a transferência das soberanias nacionais para a figura de uma única autoridade política central. Ainda mais que, com a explosão de processos de independência, entre os anos de 1960 e 1964, acentuou-se uma divisão entre os novos países que, reproduzindo a lógica da Guerra Fria, dividiram-se também em dois blocos: um pró-ocidental e outro pró-socialista, de modo que, a partir de 1961, os governantes africanos acabaram por formar dois grupos com visões não necessariamente opostas, mas diferentes em alguns pontos (Asante; Chanaiwa, 2010, p. 876). A proposta de criação de união africana teve suas bases lançadas com a formação da união formal entre os Estados de Gana e Guiné-Conacri em 1/5/1959. Porém, episódios envolvendo o processo de independência da República dos Camarões e da República Democrática do Congo, em 1960, tornaram-se 160

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os primeiros obstáculos na busca de uma unidade continental (M’bokolo, 2011). O Grupo Casablanca, de espectro político progressista, era formado por Gana, Guiné, Egito, Mali, Marrocos, Líbia e a FLN Argelina. Seus membros defendiam uma sólida união política, algo como Estados Unidos da África, com economia continental planificada e de centralização econômica e política, postulando até mesmo a unidade de um sistema de defesa e segurança associados em um grande exército. Posição esta defendida pessoalmente por Nkrumah, e que encontrava forte resistência por parte do grupo Monróvia. Este outro grupo era assim denominado por ter origens no encontro de maio de 1961 na capital da Libéria, e caracterizava-se por um espectro político moderado à direita. Dele faziam parte a Nigéria, Etiópia, Libéria, Serra Leoa e antigas colônias francesas, e seus membros defendiam uma organização por meio de uma confederação de Estados africanos, soberanos e independentes, onde as politicas e acordos econômicos continentais fossem tomados de forma facultativa e espontâneos. O grupo defendia que “a unidade que devemos realizar neste momento não é a integração política de Estados africanos soberanos, mas a unidade de aspirações de ações do ponto de vista da solidariedade africana e da identidade africana” (Mbokolo, 2011, p. 551). As nações do grupo Monróvia se mostravam irredutíveis a respeito da soberania e integridade de seus territórios – talvez antevendo algum tipo de intromissão interna por parte de outro Estado –, (Asante; Chanaiwa, 2010, p. 877). Além de não confiarem a uma organização de Estados africanos e, sim, à ONU o encargo de arbitrar e encontrar as soluções para o caso do Congo e, ainda, condenava a ingerência de um grupo de Estados africanos sobre o assunto de outros territórios. Enquanto a perspectiva do Pan-africanismo em prol de uma integração continental foi dificultada durante os anos de 19601964, a segunda perspectiva, preocupada apenas com o movi161

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mento de libertação, foi favorecida e maximizada. Apesar das divergências entre o Grupo Casablanca e o Grupo Monróvia em torno da integração, eles continuavam conjuntamente compromissados com pontos de não alinhamento e de libertação irrestrita das colônias remanescentes (Kodjo; Chanaiwa, 2010, p. 902). Esta concordância foi importante para ratificação da criação da Organização da Unidade Africana (OUA) em Addis Abeba, em 25/5/1963.8 Nesta reunião, ocorreu um fato importante, Nkrumah, nas vésperas do encontro, foi o primeiro a fazer um discurso propondo distinguir um pan-africanismo de um pan-negrismo, embasado pelos acúmulos dos congressos de Manchester e de Acra. O último visava apenas uma unidade racial dos negros da África e de outros continentes, e deveria ser substituído pelo pan-africanismo, entendido no seu sentido imediato, cujo projeto deveria ser a unificação da África Continental e de suas margens insulares do Mediterrâneo, aos Oceanos Atlântico e Índico, independentemente dos grupos humanos que o compunha, e por outro lado a solidariedade ativa com o conjunto das pessoas e grupos de ascendência africana (Mbokolo, 2011). Contudo, o saldo do encontro na capital etíope, já estava desenhada pela incontestável divisão das nações africanas, em pelo menos dois grupos, que precisava responder a anseios e ávidos desejos da população em prol da união, e ao mesmo tempo conseguir conservar um mínimo de conformidade de interesses políticos opostos dos dirigentes políticos. O saldo do encontro pendeu positivamente muito mais para o lado do Grupo Monróvia: Se é certo que Nkrumah se esforçou em desenvolver argumentos de todo tipo, históricos, culturais, econômicos e

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Estavam nela representados, 31 Estados (as denominações são aquelas da época): Argélia, Burundi, Camarões, Congo-Brazzaville, Congo-Léopoldville, Costa do Marfim, Daomé, Etiópia, Gabão, Gana, Guiné, Alto-Volta, Libéria, Líbia, Madagascar, Mali, Mauritânia, Níger, Nigéria, Uganda, República Árabe Unida, República Centro-Africana, Ruanda, Senegal, Serra Leoa, Somália, Sudão, Tanganyika, Chade, Tunísia. Posteriormente Togo e Marrocos também assinaram a carta.

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políticos e embora a sua intervenção tenha sido de longe a mais aplaudida, o compromisso que se chegou em Addis Abeba, foi em proveito dos moderados. Circulava uma lenda tenaz que contribuiu para esse resultado incitando a inquietude e a inveja de outros chefes de Estado a qual insinuava que Nkrumah sonhava em ser o único e todo poderoso presidente dessa África unida, quando é certo que a sua abordagem se pretendia simultaneamente gra­ dual e desinteressada (Mbokolo, 2011, p. 551).

O resultado obtido em Addis Abeba foi um acordo que fundamentalmente versava sobre a autodeterminação dos povos, liberdade, justiça, igualdade, um desejo comum de união e de ajuda mútua entre os países. Cada um dos países signatários comprometeu-se em conservar a independência e a soberania dos Estados africanos, e de auxiliar os povos que estavam ainda subjugados. Na realidade, foram afirmados mais princípios do que propostas de ação conjunta. Em virtude da disputa de interesses, o acordo que garantiu a constituição da OUA produziu uma organização frágil, em que faltava a vontade política, mecanismos de tomada de decisão eficazes e meios financeiros que pudessem garantir o tamanho de suas necessidades. Assim, as preocupações se reportaram à esfera política orientada pelo duplo problema da segurança dos Estados existentes e da libertação dos territórios ainda colonizados (Mbokolo, 2011, p. 552). Cabe destacar que a OUA prestou importantes serviços no auxílio às independências a partir do momento em que passou a reconhecer os movimentos de libertação nacional nos mais diferentes territórios africanos. Principalmente após a criação do Comitê Africano de Libertação, também em 1963: Este comitê, cuja sede foi estabelecida em Dar es-Salaam, estava encarregado de coordenar a ajuda fornecida pelos Estados africanos e gerenciar o Fundo Especial. Este Fundo Especial deveria ser alimentado por contribuições voluntárias realizadas anualmente pelos membros da OUA, para

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ajudar material e financeiramente os movimentos de libertação nacional (Kodjo; Chanaiwa, 2010, p. 907).

Os países membros recebiam e abrigavam militantes da libertação nacional, os capacitavam militar e intelectualmente com treinamento militar e estudos, além de financiarem equipamentos para as lutas nacionais, mas isso não mascarou todas as dificuldades impostas para a unificação política, seja no plano interno, seja no externo. Em outubro de 1965, durante a conferência de Acra, boicotada por oito países africanos francófilos que marcavam oposição ao chefe político de Gana, foi redigida e adotada a declaração sobre subversão que visava atingir aparentemente as potências exteriores do continente. Contudo, instruía também os Estados-membros contra toda e qualquer intervenção sobre outros Estados, posição que não demorou a ser corrompida por circunstância da crise de Biafra (Guerra Civil da Nigéria 1967-1970), e dificuldades ocorridas em Uganda. Isto fez fracassar a pretensão da unidade continental e aumentar as resistências à influência de Nkrumah na OUA. Em 1966, ele foi deposto em virtude de um Golpe de Estado chefiado pelo tenente-general Emmanuel Kwasi Kotoka, com apoio da agência de inteligência estadunidense (CIA) enquanto visitava o Vietnã do Norte e a China.

Considerações finais Kwame Nkrumah fez parte de uma geração de intelectuais e políticos em extinção. Pessoas que conjugaram o esforço intelec­ tual com a prática política, que colocaram em prática a famosa 11ª tese sobre Feuerbach, de Karl Marx, a de que, mais do que interpretar, seria preciso transformar o mundo. Em seu caso, a África. Este capítulo procurou sublinhar a importância dos conceitos de neocolonialismo e de pan-africanismo tanto em sua dimensão teórica quanto em sua utilização prática na trajetória política do líder ganês. A atenção foi direcionada, primeiramente, para a 164

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aplicação teórica do conceito de neocolonialismo, de modo a detectar se ele realmente foi capaz de auxiliar na explicação da realidade histórica da África nos momentos que sucederam a Segunda Guerra Mundial – no período das lutas pela libertação nacional, que ocorriam conjuntamente à expansão do capitalismo industrial e da bipolarização do mundo. Em seguida, o foco de análise recaiu nos sentidos atribuídos por Nkrumah o pan-africanismo no contexto da descolonização, mesmo que suas posições não tenham obtido sucesso completo na prática. Ele defendia a ideia de que o movimento de unificação continental deveria atuar em duas frentes: primeiro, em prol da libertação nacional completa e, depois, em prol da organização continental, como instrumento de uma integração africana. Diante disso, é possível constatar que o pan-africanismo foi mais efetivo como propulsor e incentivador das libertações nacionais de países mantidos em condição colonial – ainda que Nkrumah tenha sido deposto da presidência de Gana. O projeto de criação dos Estados Unidos da África, entretanto, nunca foi concretizado. Dentre as ponderações possíveis para tentar explicar, sem entrar no mérito de valor, é compreender primeiro que, mesmo as jovens nações que concordavam com a independência não aceitavam esta unidade quase extrema, rompendo, assim, a rede, ou melhor, dividindo-a em duas. Além disso, é importante lembrar-se das elites econômicas nacionais, que muitas vezes ganhavam mais com transações externas (parceiros internacionais, tanto da esfera pública quanto da esfera privada) mesmo que, para isso, tivessem que abrir mão de relações mais equânimes. E é preciso pontuar, também, a conjuntura bipolar de Guerra Fria, em que nenhuma das duas grandes potências que procuraram controlar o cenário político internacional apreciaria tal posição de distância e isolamento. Contudo, é necessário trazer à baila os conceitos e concepções de pensadores que, muitas vezes, ficam à margem de discussões teóricas importantes para ensaiar e/ou experimentar novas explicações que possam melhor responder nossas indagações. 165

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Neste capítulo, trataremos da práxis revolucionária – que pressupõe o acúmulo teórico e a prática incisa na realidade. A escolha pela análise centrada (mas sem ignorar outros pensadores) em Amílcar Cabral e Frantz Fanon se deu de forma temática: não são os únicos, mas são dois expoentes pensadores e revolucionários que se debruçaram, na luta anticolonial, com as questões sobre a cultura. Estamos, como Déves-Valdés (ainda que este analise em seu livro apenas os pensadores sul-saarianos), averiguando o “processo de constituição (...) crescimento, solidificação, caráter, autorreconhecimento e diversificação” (Valdés, 2008, p. 18) do pensamento africano e não verificando de forma teleológica a construção destas concepções calcada em uma compreensão de causa e consequência entre ambos, ou mesmo de conexões imediatas entre suas ideias. Ainda que coloquemos o texto em ordem cronológica em relação aos dois autores que analisaremos, isso se deve ao fato de existirem correlatos de acúmulo na teoria revolucionária. Principalmente se tomarmos conceitos e questões que ambos os autores tratam, além da cultura e da revolução, como o neocolonialismo, o imperialismo e o suicídio de classe. Importante ressaltar que o objetivo deste capítulo é principalmente apresentarmos os pensamentos dos dois autores escolhidos e colocá-los em seus contextos, com uma preocupação de citar as principais obras (primárias

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e secundárias), para futuras pesquisas mais aprofundadas do que traçarmos teses ou mesmo ter a pretensão de cobrir inteiramente questões que estas personagens históricas nos trouxeram. Outro ponto importante que gostaríamos de frisar é a necessidade de nós, brasileiros, nos inteirarmos mais dos exemplos de revolucionários que nos cercam. Em épocas em que paira um estranho miasma, em que a “ditadura do pensamento único” é acusada pela “ditadura de pensamento nenhum”, precisamos nos acercar do passado dos grandes lutadores para agir minimamente na nossa própria realidade (que parece ter esquecido o significado de práxis, e ainda mais o de revolucionária...), que carecem de mudanças estruturais o mais rápido possível. Criticar nosso passado deveria ser uma ferramenta de atuação no presente, e não somente descarte de ideias – podando realidades enquanto se podam utopias –, criando novos conceitos que têm, praticamente, a mesma função de antigos para se desvincular de qualquer responsabilidade de mudanças estruturais. Necessitamos conhecer as experiências que outros países subdesenvolvidos tiveram em sua história de exploração e a consequência direta e dialética disto: as resistências. Se no Brasil já ignoramos os pensadores e processos latino-americanos (Júlio Antonio Mella, José Carlos Mariátegui, os neozapatistas, os sandinistas, Schafik Handal e tantos outros), para a situação africana o esforço deve ser ainda maior. Ou iremos negar que não temos nada a aprender (em pleno capitalismo dependente no Brasil) com a caracterização das burguesias subdesenvolvidas de Fanon? Ou com a preocupação de Amílcar Cabral na elaboração de uma teoria revolucionária calcada no conhecimento profundo e exaustivo da realidade que se pretende mudar?

Antecedentes – a construção do pensamento contestatório Os antecedentes que se colocam para nós se dão em duas formas: os antecedentes cronológicos da construção do pensa-

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mento contestatório africano, na forma principalmente da Négritude 1 (que, como veremos adiante, teve importância na constituição dos pensamentos de Frantz Fanon e Amílcar Cabral), permitindo uma interlocução crítica e acúmulo sobre a realidade colonial, suas formas de dominação e superação e, também, a valorização do negro como ser humano; e, principalmente, os antecedentes contemporâneos. A este último, deve-se uma explicação: trata-se principalmente da situação mundial e a colonial que englobavam os dois pensadores. As lutas anticoloniais surgiram em um contexto politicamente delicado, com a guerra fria, as próprias especificidades do sistema colonial francês e português e a situação de capitalismo dependente no continente africano – característica esta que chegou a ser observada com mais ou menos detalhes por ambos os pensadores, como veremos. As definições, a seguir, se farão de forma muito rápida e sucinta, mais do que as questões levantadas mereceriam, de forma que possamos explorar mais a fundo as ideias e textos de Fanon e Cabral. No que se refere à questão da Négritude, precisamos brevemente ressaltar a importância que os pensadores deste tema tiveram em épocas posteriores – e inclusive nos dois autores que iremos trabalhar. Nomes como Leopold Senghor e Aimè Cesaire foram essenciais para a construção de um pensamento verdadeiramente contestatório. Da frase de Senghor “A emoção é negra, enquanto a razão é helena”, às formulações mais precisas que fizeram da sua filosofia e sua definição de negritude uma metafísica ontológica existencial, baseada no caráter sensual ou sensitivo do negro africano (Valdés, 2008, p. 107-108), a valorização do negro toma forma. Embora seu forte seja sua limitação, ao colocar o contributo do homem negro sempre em relação e com-

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A questão da Négritude foi já abordada com mais propriedade e espaço na primeira parte deste livro, aqui apenas retornaremos a alguns pontos essenciais à compreensão dos nossos pensadores.

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parado ao mundo europeu, podemos utilizar as palavras do poeta Mário de Andrade sobre a importância da Négritude, como sendo o “rechaço à assimilação”2 (Valdes, 2008, p. 108). Quanto à Aimè Cesaire, na sua defesa de não apenas uma cultura, mas uma civilização negro-africana estava um importante elemento anticolonial. Cesaire procurava unir as diversas culturas negras da civilização africana contra o colonialismo, clamando os seus iguais a “tomar partido” (Cesaire, 2012, p. 256-261). Dos pontos de vista de nossos pensadores (cujas ideias serão mais bem analisadas ao longo do texto), Fanon vê a Négritude como “a antítese afetiva senão lógica desse insulto (o colonialismo) que o homem branco fazia à humanidade” (Fanon, 1979, p. 176). Atenta à importância do movimento também, ao demonstrar que a tentativa da Négritude era de dar ao negro uma cultura tal qual um francês, um russo etc. (Fanon, 2008, p. 46). Entretanto, constata que “a Négritude encontrou (...) seu primeiro limite nos fenômenos que justificam a historicização dos homens” (Fanon, 1979, p. 180), quando defende que a cultura é, antes de tudo, nacional, portanto, histórica e particular. Quanto a Amílcar Cabral, sua compreensão está ligada à ideia de que num sistema de repressão colonial, que destrói a cultura do colonizado, a sua contestação terá como primeiro princípio a contestação cultural deste domínio e de seus sistemas racistas de justificação (Cabral, 2012, p. 360), sendo a Négritude a semente das lutas de libertação nacional (Villein, 2012, p. 186). Quanto à questão do capitalismo dependente, devemos lembrar que, no período pós-guerra houve um boom na demanda eu2

O termo assimilação refere-se, no nosso contexto, às políticas europeias de assimilacionismo. Estas políticas constituíam uma das bases da dominação colonial, em que se justificava a presença europeia pela quantidade de africanos que eram “assimilados” à metrópole, o que significava receber melhores salários e poder estudar em universidades na Europa. Na prática, o sistema de assimilação era um fracasso, o assimilado não apenas representava um número insignificante na população colonizada como continuava virtualmente inferior ao Europeu, tanto em direitos civis como no valor do salário que recebia.

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ropeia, principalmente por produtos do setor primário, embora o aumento de capital privado também tenha sido registrado. Este boom, entretanto, deve ser visto como um aprofundamento da dependência africana, visto que esses investimentos e demandas estão ligados às necessidades do primeiro mundo, e não corresponderam a nenhum melhoramento na saúde, educação ou infraestrutura dos países africanos, que estão em uma economia não apenas periférica, como colonial (Fage & Oliver, 1984, p. 199200). O período pós-guerra foi também marcado por diversas iniciativas dos países europeus em programas de desenvolvimento econômico. Nas colônias francesas, o processo de “assimilação” dos países africanos enquanto território francês colocava as colônias sob os mesmos planos de modernização da França, Portugal e Espanha, mas, por outro lado, não realizaram nenhum tipo de investimento especial em relação às suas colônias (Fage & Oliver, 1984, p. 201). As relações que o capital europeu e seus investimentos produzem nas colônias se referem ao agravamento, e não a superação do subdesenvolvimento, gerando uma classe burguesa nativa que atende às demandas das metrópoles – cujas consequências presenciamos até hoje. Pautada pela teoria da dependência, esta é a tese de um importante livro de Samir Amin, O desenvolvimento desigual – Ensaio sobre as formações sociais do capitalismo periférico, de 1976. Justamente a respeito deste contexto econômico e social, o interessante acerca das duas personagens históricas que escolhemos para analisar é que, além de terem sido autores que se tornaram referência para o estudo da África, em função de suas análises da realidade, arcabouço conceitual e qualidade intelectual, ambos também podem ser tomados, em alguma medida, como fonte primária para suas respectivas realidades coloniais. O colonialismo português se caracteriza pela imposição de uma ideologia de princípio da igualdade racial e harmonia da convivência racial (Villein, 2013, p. 65-66), calcada ainda em ideias de Gilberto Freyre, afirmando estar impondo-se por razões altruís171

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tas em convívio pacífico com os povos africanos (Mondlane, 2012, p. 310 e Villein, 2013, p. 81-101). O sistema de assimilação era importantíssimo nessa legitimação, mas ineficiente na prática, tanto no baixíssimo número que conseguia produzir de africanos assimilados, quanto no próprio resultado: um assimilado tinha, por exemplo, salário ainda muito inferior que um europeu (Mondlane, 2012, p. 313-318). A violência no mundo colonial português – diferentemente do que dizia sua legitimação ideológica – era comum, sendo qualquer manifestação duramente reprimida. Os primeiros anos de resistência pacífica do Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA) viu em um protesto contra a prisão de um de seus fundadores, Agostinho Neto, uma repressão fortemente armada deixando 20 mortos e 300 feridos. O “Império que se afirmava pelo amor” ainda contou com mais massacres: em Moçambique, no vilarejo Wiriyamu, cerca de 400 pessoas foram mortas; e na ilha de São Tomé e Príncipe, em Batepa, mais de mil perderam sua vida (Villein, 2013, p. 42-43). Estes números ainda se somariam a muitos outros, e não estão sendo citados aqui para fazer volume ou impressionar: servem para lembrar a violência de proporções absurdas e o cinismo das legitimações coloniais. O próprio Amílcar Cabral pontuava isto, uma vez que qualquer movimento de libertação teria de dar seu primeiro passo a partir da negação da dominação portuguesa; ou, como o autor afirma, os “frágeis argumentos”, referindo-se aos “direitos históricos de Portugal”, “os processos de civilização” e as “teorias de assimilação” (Cabral, 1979, p. 18-19). Após a Segunda Guerra Mundial, diferentemente de Portugal, a França empreendeu uma série de reformas no sistema colonial, com o intuito de vincular ainda mais os territórios coloniais à metrópole. De fato, as colônias viraram território francês, ganhando inclusive representação na Assembleia Nacional Francesa. As reformas também suprimiram o trabalho forçado, aboliram a condição do indigénat, permitiram a mudança de “sujeito” 172

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para “cidadão” aos moradores das colônias e legalizaram os sindicatos, com o intuito de aumentar os laços com a metrópole e não interferir no domínio colonial. Entretanto, a contrapartida com tais mudanças foi o desejo pela independência. Mesmo com tais reformas, o sistema colonial francês ainda baseava-se no racismo do espírito civilizatório, e o sistema de assimilação ainda gerava a exclusão: os colonos africanos não podiam votar, e aqueles que podiam tinham seu voto inferior ao de um europeu (Fage & Oliver, 1984, p. 41-42). Não é necessário que façamos larga descrição de como o racismo e a opressão eram praticados na Argélia, os guetos criados, as separações étnicas e a utilização destas para o domínio colonial. Basta-nos referenciar o estudo que certamente poderia ter sido mais extenso, de Frantz Fanon sobre as “Perturbações Mentais” geradas pelo colonialismo (Fanon, 1979, p. 209-269), os numerosos mortos durante a guerra da independência pelas forças francesas e os massacres, inclusive em território europeu – como o de 1961, em Paris, em que uma manifestação pacífica pela libertação da Argélia terminou com dezenas de mortos. É importante delinearmos alguns conceitos que nos acompanharão durante a leitura de Fanon e Cabral. Como ambos os pensadores se enquadram no escopo marxista (de formas diferenciadas, como veremos), é importante que tenhamos em mente certas concepções e premissas dos pensamentos de Marx e Engels. O conceito de base e superestrutura3 é presente em ambos os pensadores, de forma diferenciada e com muita liberdade de aplicação. Como estará bem explicitada sua utilização nos textos de 3

Do ponto de vista acadêmico, é a partir dos anos 1970 que teremos novas interpretações do conceito. Explorando diretamente a noção de cultura, nota-se Raymond Williams (1997 e 2011) e E. P. Thompson (2002). Enquanto Williams ainda pondera sobre, Thompson advoga o abandono do conceito por ser problemático e não funcional. Na América Latina, o pensador Ludovico Silva insiste que a expressão não seria um conceito e, sim, uma metáfora de Marx – sendo as discussões seguintes, da economia (base) determinante sobre a consciência-cultura (superestrutura), partindo de uma falsa premissa (2012).

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Fanon e Cabral, basta lembrar que, apesar das aplicações economicistas e dogmáticas que o conceito sofreu, Marx, no texto em conjunto com Engels, estava a refutar o idealismo de Feuerbach, atentando para a existência de uma realidade “material” pela qual as concepções ideológicas poderiam se formular (Marx & Engels, 2012). Outra questão em voga na época e sobre a qual ambos pensadores versarão, direta ou indiretamente, se refere aos conceitos de forças produtivas, relações de produção e meios de produção. Comumente relacionadas aos textos da maturidade de Marx, estes termos se relacionavam, principalmente, às questões de dinâmica do modo de produção capitalista e suas contradições. Ou seja, o desenvolvimento das forças produtivas levaria a novas relações entre os seres sociais, que ocasionariam em rupturas (revoluções) no modo de produção. O modo de produção seria o que definiria uma época histórica – escravismo, feudalismo, capitalismo, socialismo e comunismo (Bottomore, p. 157 e p. 267). Este modelo de pensar o processo histórico tomou diversas formas mecanicistas compreendendo estas funções de modo quase inevitáveis, sendo todas as realidades locais adaptáveis a esta equação. A própria forma como os autores compreendiam e aplicavam estes conceitos, quando formos analisar suas obras, irá explicá-los melhor. Inclusive, este é um dos importantes momentos em que vemos suas excepcionalidades e ou limites enquanto teóricos – a adaptação de questões contemporaneamente tomadas de forma ortodoxa. O conceito de Lenin, imperialismo, divulgado pelo seu panfleto Imperialismo, estágio superior do capitalismo também encontra utilização aqui. E não à toa. Na teoria do imperialismo, é preciso levar em conta a acumulação capitalista e suas fases ou estágios, a localização destes fenômenos nos diferentes Estados (países), e o impacto destes sobre outros países em formações sociais não capitalistas, ocasionando a opressão e a subjugação de povos pelo domínio do capital. Em resumo, Lenin define o impe174

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rialismo como o estágio no qual ocorreu a substituição da livre concorrência pelos monopólios capitalistas – ou seja, o estágio monopolista do capitalismo (Lenin, 2012, p. 123-124). Neste estágio, Kwame Nkrumah advoga que o imperialismo passa por outra etapa: o desenvolvimento do neocolonialismo. Para Nkrumah, o principal instrumento deste é a balcanização da África. Este fenômeno se daria pela falsa independência dos países africanos, que em teoria teriam sua independência política, mas na prática permaneceriam “Estados-clientes” (Nkrumah, 2012, p. 288-289). Nkrumah também atenta para a totalidade de ação do neocolonialismo, tanto no plano econômico, como no social, religioso e cultural. Das instituições de fomento econômico aos assassinatos de revolucionários (aqui há a lembrança de Patrice Lumumba e do próprio Amílcar Cabral), até as telas de Hollywood, em que filmes demonstram a superioridade do “branco” e a barbárie dos africanos, afro-americanos, povos originários americanos e asiáticos (Nkrumah, 1966, p. 239-246). A situação neocolonial está alinhada, portanto, à dependência econômica dos países coloniais e à classe burguesa que comandaria este país de acordo com os interesses do capital monopolista. Delineados, novamente frisamos, de forma muito geral e simples, alguns dos principais conceitos e pontos de partida que pautavam as discussões dos autores, podemos passar agora para os textos de Frantz Fanon e Amílcar Cabral.

Revolução e cultura em Frantz Fanon Se há algum elemento em Frantz Fanon (1926-1961) que perpassa suas concepções de revolução e cultura, este é, certamente, a violência. Não existe luta anticolonial, no processo de descolonização, que não seja violenta. De fato, o sistema colonial não passa de uma ocupação militar reforçada por uma administração civil e policial (Fanon, 1967, p. 81) e suas formas de se expressar são maniqueístas e violentas, na qual, para o homem

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colonizado poder se expressar, resta apenas uma violência maior ainda. A descolonização, processo pelo qual agirá a violência, é caracterizada por Fanon, como um processo histórico, não podendo ser compreendida sem levar em conta a totalidade de fenômenos que dão a sua forma e conteúdo – dois dos principais levantados pelo autor são: o encontro de duas forças antagônicas e a criação de “Homens Novos” (Fanon, 1979, p. 26-27). O autor realiza, de forma clara, a distinção entre estas duas forças que irão se bater durante o processo de descolonização; trata-se do colono e do colonizado. Enquanto o primeiro é o intermediário, aquele do qual a violência parte e se alia à metrópole, o segundo é o explorado, vetor que recebe toda a violência (Fanon, 1979, p. 2829). A forma que essa cisão toma é palco de uma importante reflexão por parte de Fanon, que chama a atenção pela proposição e que vale a pena ser citado em extenso: Nas colônias, a infraestrutura econômica é igualmente uma superestrutura. A causa é consequência: o indivíduo é rico porque é branco, é branco porque é rico. É por isso que as análises marxistas devem ser sempre ligeiramente distendidas cada vez que abordamos o problema colonial. Não há nem mesmo o conceito de sociedade pré-capitalista, bem estudado por Marx, que não exigisse ser repensado aqui. O servo é de essência diferente da do cavaleiro, mas uma referência ao direito divino é necessária para legitimar essa diferença estatutária. Nas colônias, o estrangeiro vindo de qualquer parte se impôs com o auxílio de seus canhões e das suas máquinas. A despeito do sucesso da domesticação, malgrado a usurpação, o colono continua sendo um estrangeiro. Não são as fábricas nem as propriedades nem a conta no banco que caracterizam em primeiro lugar a ‘classe dirigente’. A espécie dirigente é, antes de tudo, a que vem de fora, a que não se parece com os autóctones, ‘os outros’. (Fanon, 1979, p. 29-30)

Desta inflexão, são derivadas ainda outras perguntas que o autor faz ao mesmo contexto: “Quando se pode dizer que a situa­ 176

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ção está madura para um movimento de libertação nacional? Qual deve ser a sua vanguarda?” (Fanon, 1979, p. 44). A forma como vê a saída é através da decisão dos meios e das táticas, da conduta e da organização como únicas formas de se escapar de um voluntarismo (Fanon, 1979, p. 43). Para, então, esta tarefa ser realizada, e para ligar as pontas deixadas por estas duas citações acima, é necessário que haja a identificação dos setores dispostos no contexto de luta. Por um lado, temos os partidos políticos (ditos nacionalistas, pelo autor), e as elites intelectuais e comerciais. Fanon identifica os partidos como eleitoreiros, que proclamariam princípios, mas não palavras de ordem, ou seja, não estariam comprometidos com a destruição radical da ordem – se dirigem, portanto, à burguesia colonialista. Esta corresponde à porção de operários, professores primários, pequenos artesãos e comerciantes, que anseiam por reformas na sociedade, tais como representação eleitoral, liberdade de imprensa, liberdade de associação, melhorias na infraestrutura e aumento de salários (Fanon, 1979, p. 44-45). Fanon descreve o proletariado argelino, então, como a camada do povo colonizado mais “mimada” pelo regime colonial, sendo relativamente privilegiado, necessário para o andamento do sistema colonial. Fanon acredita que, em um país colonial, estes correspondem à classe burguesa do povo colonizado (Fanon, 1979, p. 91). Nesta “clientela” dos partidos nacionalistas, os camponeses são totalmente negligenciados. Embora Fanon admita que estas características citadas tenham uma forma minimamente progressista (Fanon, 1979, p. 52), é também aí que reside o imobilismo e a continuidade do sistema colonial – e, portanto, da manutenção e da reprodução contínua da violência. É desta forma que o autor enxerga no campesinato o único estrato verdadeiramente revolucionário: por sofrer diretamente a violência, será a partir da violência, que ele utilizará para se livrar da subjugação, que qualquer tipo de acordo, de meio termo, estará invalidado. Portanto, a luta não terá outras características que não a revolução e a descolonização: “trata-se (...) de uma 177

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relação de forças” (Fanon, 1979, p. 46). Temos a violência como método, como palavra de ordem, na possibilidade de moldar a experiência em comum, caracterizar o autorreconhecimento das pessoas no processo e servindo como ferramenta de organização, uma vez que compromete o militante com a luta (Fanon, 1979, p. 56 e p. 66). A situação dos colonizados (do campesinato em especial), é justamente tão grave, calcada em uma repressão tão grande, que no momento em que o colono o agride, atribuindo a teoria do “indígena mal absoluto”, o oposto também ocorre e vemos aparecer a teoria do “colono mal absoluto”. Para Fanon, esta violência contra os colonos adquire traços positivos, formadores e totalizantes, visto que ela se origina numa violência inicial que parte do colono. Esta violência une as pessoas, que se identificam umas com as outras e as colocam em um único caminho, um mesmo objetivo – uma história coletiva (Fanon, 1979, p. 73). Se são os camponeses que Fanon diz “nada terem a perder e tudo a ganhar” (Fanon, 1979, p. 46), que tipo de mediação ele está fazendo para tal? Vemos que ele não descarta o marxismo – aplica-o. Para isso, temos que voltar à citação principal e fazer o trajeto de Fanon. O que o autor propõe é, de fato, inverter a lógica de uma sociedade invertida: onde o proletariado é o setor da sociedade com mais benesses e permanece peça fundamental para a reprodução da lógica colonial, este se estabelece enquanto burguesia. Aquele que, de fato, nada tem a perder é o mais afetado pela lógica colonial: o camponês (ainda mais grave, o camponês sem-terra), identificado como lumpen-proletariat (Fanon, 1979, p. 93). Fanon reflete rapidamente sobre o contexto desta luta no qual estavam colocadas as nações subdesenvolvidas em suas lutas de libertação e a escolha do regime econômico. O revolucionário aponta para o desespero que o “Bloco Ocidental” entra ao ver surgir um “Terceiro Bloco”, desligando-se da tutela econômica das metrópoles e atuando em conjunto (Fanon, 1967, p. 178

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124-126). Efetivamente, entre capitalismo e socialismo 4, fica claro ser mais importante a auto-organização dos povos, construindo sistemas com métodos e valores próprios. Entretanto, Fanon afirma que o sistema capitalista, com seus monopólios e trustes, é inimigo dos países subdesenvolvidos. Sua reflexão se dá através da concepção de ser necessário mais do que o “investimento humano” para que o socialismo, “um regime inteiramente voltado para o conjunto do povo, baseado no princípio de que o homem é o bem mais precioso”, possa funcionar, atentando para a modificação das condições de trabalho, sem as quais será impossível “humanizar este mundo tornado animal pelas forças imperialistas” (Fanon, 1979, p. 79-80). Finalmente, um dos problemas mais candentes, resultado direto da luta e do uso da violência é abordado por Fanon: a questão da espontaneidade. Das reflexões realizadas até aqui, uma conclusão ainda estava por ser feita: o claro descompasso entre os quadros dos partidos nacionalistas e a atuação das massas. Isto derivaria de um fetichismo pela organização em que os instrumentos das lutas e os modelos de partido estariam sendo aplicados na realidade africana sem nenhum tipo de alteração ou mediação. E este erro levaria aos partidos nacionalistas a se dirigirem unicamente ao proletariado do país (que corresponderia a 1% da população) que, como vimos, está em descompasso com o que Fanon acredita (Fanon, 1979, p. 89-90). Inclusive, uma primeira espécie de rivalidade campo-cidade se daria no momento em que estariam em lados opostos o colonizado excluído das vantagens coloniais e aqueles que teriam algum tipo de proveito (como no esquema que já mencionamos anteriormente) (Fanon, 4

Neste ponto, Jean Paul Sartre, no prefácio ao Os Condenados da Terra, é muito mais enfático em afirmar o caráter socialista das lutas de libertação nacional do que o próprio Fanon (Sartre, 1979, p. 6-7). Talvez o contexto extremamente conturbado e incerto do apoio a essas lutas em relação às esquerdas europeias (principalmente ao PC Francês, que recebeu duras críticas inclusive de Sartre), tenha deixado Fanon mais reticente, embora ele mesmo saúde os franceses que se recusaram a pegar em armas contra os argelinos (Fanon, 1967, p. 85-90).

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1979, p. 93). A ligação entre o campo e a cidade se daria apenas quando militantes mais radicais, perseguidos nas cidades, se refugiariam no interior, entrando para a “escola do povo” e iniciando cursos de formação política para essas populações (Fanon, 1979, p. 105). Neste período ainda, Fanon declara que a “espontaneidade é rei” e “fazer guerra e fazer política” se torna “uma coisa só” (Fanon, 1979, p. 108). Ao mesmo tempo, Fanon logo afirma que esta “impetuosidade voluntarista”, a “doutrina do instantaneísmo”, está fadada a negar a si mesma. É neste momento, então, que os dirigentes se fazem necessários para orientar a luta, negando o caráter do movimento enquanto simples sublevação, transformando-a em luta revolucionária5. Neste ponto, Fanon conclui: “Não triunfamos numa guerra nacional, não derrotamos a terrível máquina do inimigo, não transformamos os homens se esquecemos de educar a consciência do combatente” (Fanon, 1979, p. 110-111). O outro motivo básico para a total atenção ao lumpen-proletariat se dá pelo fato do poder colonial poder utilizar-se de antigas rivalidades tribais ou como massa de manobra própria. Para estas condições o “desejo legítimo de vingança”, ou, novamente, a espontaneidade, não seriam suficientes (Fanon, 1979, p. 112-114). Ainda no que tange à organização revolucionária das massas, Fanon atenta para a questão das concessões por parte da metrópole afirmando, por um lado, que as concessões podem servir de amarras, compromissos com o status quo; por outro lado, que fique claro que estas concessões não são dádivas da metrópole e, sim, conquistas, obras do colonizado (Fanon, 1979, p. 116).

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Numa livre interpretação, poderíamos comparar as atitudes de Frantz Fanon frente à sublevação, frente à análise das lutas em forma espontânea, com as que Lenin fez em seu livro Que Fazer?. No momento em que este coloca que “o elemento espontâneo no fundo, não é senão a forma embrionária do consciente” (Lenin, 1978, p. 24) e quando afirma a necessidade dos quadros teóricos de compreender a sublevação e de ter a consciência necessária para dirigir o movimento (Lenin, 1978, p. 41).

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Para um segundo momento do processo revolucionário, vemos Fanon realizando análises acerca dos limites que uma burguesia de um país subdesenvolvido impõe na constituição de uma nação livre. Da acusação que o autor parte, denominando a burguesia de subdesenvolvida e narcisista, pronta para simplesmente substituir a burguesia metropolitana, segue a indicação de que ela deveria realizar um suicídio de classe (Fanon, 1979, p. 124-125). Para o autor, esta burguesia serve apenas como correia de transmissão para o capitalismo em uma fase posterior, identificada como neocolonialismo. Este tipo de dominação faria voltar os “tribalismos” e a posterior fraqueza da nação, impossibilitando inclusive a União Africana – que seria possível somente com a pressão das massas (Fanon, 1979, p. 131-136). A conclusão de Fanon não é nada otimista: (...) essa microburguesia que faz tanto barulho está condenada a marcar passo. Nos países subdesenvolvidos, a fase burguesa é impossível. Haverá certamente uma ditadura policial, uma casta de aproveitadores, mas a elaboração de uma sociedade burguesa revela-se fadada ao malogro (Fanon, 1979, p. 143).6

A segunda conclusão do revolucionário é mais simples e pragmática: é preciso se opor à burguesia nos países subdesenvolvidos “porque, a rigor, ela não serve para nada” (Fanon, 1979, p. 145). A função de um partido verdadeiramente revolucionário é novamente resgatada aqui. A necessidade de politizar as massas deve levar o partido a ser o mais descentralizado possível, no

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Aqui, Frantz Fanon refere-se à questão corrente na época acerca do etapismo. Tratar-se-ia das fases que as revoluções nos países subdesenvolvidos deveriam realizar: primeiro uma revolução democrático-burguesa, para depois atingir a fase da revolução socialista. O pensador Julius Nyerere também considera a fase burguesa impossível em seu Ujaama – The Basis of African Socialism (Nyerere, 1962). Amílcar Cabral, não chega a mencionar etapas, mas põe a pequena burguesia com papel ativo no processo revolucionário, culminando, como veremos, em seu próprio suicídio de classe.

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sentido de alcançar as regiões mais remotas, com o intuito claro de não viciar o partido ou confundi-lo com a máquina pública – e que almeje ser a expressão direta das massas, livrando-se da ideia “burguesa e ocidental” de que elas não saberiam se dirigir a si mesmas (Fanon, 1979, p. 152-154). Ainda por cima, o importante é que, como programa político dos partidos nacionalistas, seria preciso ressaltar que o nacionalismo em si não deveria ser uma “doutrina política (...) um programa”, e que seria “preciso passar da consciência nacional para a [consciência] política e social” (Fanon, 1979, p. 166). Quando pensamos na concepção de cultura, de Fanon, temos que ter em mente que ele não se refere somente às formas abstratas acadêmicas e, sim, a formas estruturais de produção e reprodução de sistemas, no caso, do colonialismo e do racismo. Ainda que também atente à criação de culturas nacionais e continentais por intelectuais africanos, ligando estes com as lutas de libertação nacional, como veremos adiante. Um de seus pensamentos, desenvolvido de forma mais clara, é o de considerar o racismo um elemento cultural. Calcando-se primeiramente em questões religiosas e depois científicas, vemos que o racismo, entretanto, não é a discriminação do homem particular, mas de “uma certa forma de existir”, afirma o autor ao lembrar, como exemplo, a luta “da cruz contra o crescente”. O racismo é, portanto, “um elemento de um conjunto mais vasto: a opressão sistematizada de um povo” (Fanon, 2012, p. 274-275). Esta operação se daria no sentido de que, no processo de pilhagem e assassínio geral do povo colonizado, imperaria a necessidade de destruir os sistemas de referência deste povo. Porém, a intenção não é de destruição total da cultura autóctone e, sim, uma “mumificação cultural”, no sentido de imobilizar os indivíduos, criar uma cultura que alimente e também sustente o regime colonial (Fanon, 2012, p. 275-276). Neste momento, em que o autóctone aceitou o sistema colonial, através da violência terrível de ser negada sua existência enquanto raça, cultura e ser 182

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pensante, Fanon chama a famosa assimilação de alienação (Fanon, 2012, p. 280). Desta reflexão, Fanon destaca algo deveras importante já mencionado: o fato de o racismo não ser uma constante do espírito humano. A defesa desta perspectiva compreende que uma dada sociedade ou é ou não é racista, mas que não existiriam graus de racismo (Fanon, 2008, p. 85). “Não se deve dizer que tal país é racista mas que não há nele linchamentos ou campos de extermínio. A verdade é que tudo isso, e muito mais, existe como horizonte” (Fanon, 2012, p. 282), dependente das condições humanas, psicoafetivas e econômicas. Desta forma, um desses horizontes é apontado justamente como a realidade colonial, colocando, com toda a clareza, que “o racismo colonial não difere de outros racismos” (Fanon, 2008, p. 87). A existência de uma cultura nacional, a partir da negação do racismo colonial imposto, é colocada como um “campo de batalha”. Os intelectuais que procuram valorizar as culturas pré-coloniais estão em franca batalha pela reivindicação de uma identidade, de um passado que, ao mesmo tempo “justifica uma cultura futura” (Fanon, 1979, p. 173-175). Neste caso específico, Fanon afirma: Ao colonialismo não basta encerrar o povo em suas malhas, esvaziar o cérebro colonizado de toda forma e de todo conteúdo. Por uma espécie de perversão da lógica, ele se orienta para o passado do povo oprimido, deforma-o, desfigura-o, aniquila-o. Esta tarefa de desvalorização da história do período anterior à colonização adquire hoje sua significação dialética (Fanon, 1979, p. 175).

Esta alienação cultural, possuindo graves consequências a médio e longo prazos, faz da reivindicação do passado colonial, mesmo a nível acadêmico, “não (...) um luxo, mas a exigência de um programa coerente” (Fanon, 1979, p. 175). Inclusive, segundo Fanon, o esforço intelectual acaba não sendo exclusivamente

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nacional e, sim, continental. Uma vez que se valoriza a cultura africana e as antigas sociedades africanas, se valoriza o homem negro. Como a deturpação colonialista se fez em destruir o negro enquanto ser humano dotado de cultura, civilização e raciocínio, a condenação desses pensamentos é continental – a cultura afirmada é a cultura africana (Fanon, 1979, p. 176). O perigo deste tipo de retorno seria a transformação da cultura passada em uma espécie de fuga do presente, ou seja, isolar-se em um passado idealizado. De fato, se o intelectual retorna a seu povo apenas através das obras culturais, “comporta-se (...) como um estrangeiro”, realizando um “estoque de particularismos” (Fanon, 1979. p. 185). A diferenciação entre a cultura e as tradições é importante, e enquanto o intelectual pode confundir uma com a outra, o povo, quando engajado em uma luta armada, está claramente ressignificando-a (Fanon, 1979, p. 186). Para Fanon, o engajamento da recuperação da cultura deve se dar no sentido de justificar a sua ação na luta do presente, situando-se no centro da luta de libertação, e não como um adendo: “Bater-se pela cultura nacional é, em primeiro lugar, bater-se pela libertação da nação, matriz material a partir da qual a cultura se torna possível” (Fanon, 1979, p. 194). Justamente são essas as correlações entre a constituição de uma cultura nacional e as lutas de libertação: no momento em que a situação colonial, ao despojar todas as estruturas indígenas e deslegitimá-las, qualquer tentativa de sua reconstrução já é uma abertura para o início (ou a sustentação) de uma luta (Fanon, 1979, p. 198). O importante nisso é que, nos primeiros anos de constituição do intelectual colonizado, ele produzia com o intuito de ou fascinar seu opressor ou denunciá-lo. Apenas em um segundo momento é que teremos o intelectual se dirigindo diretamente a seu próprio povo – dialeticamente, poderíamos dizer –, a cultura nacional destacada por estes pensadores só pode se desenvolver em um Estado que não a agrida sistematicamente. A conclusão é novamente colocada: “A condição de existência da 184

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cultura é, portanto, a libertação nacional, o renascimento do Estado”. A máxima de Frantz Fanon constrói-se: a luta de libertação nacional, organizada e consciente, é tida como expressão da cultura (Fanon, 1979, p. 200-204).

Revolução e cultura em Amílcar Cabral Termos em mente as concepções de revolução e cultura no pensamento de Amílcar Cabral (1924-1973), é levar em consideração suas noções acerca da libertação nacional – afinal, o processo que o povo da Guiné e Cabo Verde estavam levando a cabo contra Portugal fascista. Assim, para Cabral, a revolução só era possível a partir do estudo minucioso e da compreensão mais exata e densa possível da realidade colonial e do seu país, para que as teorias revolucionárias estivessem em consonância e fossem evitados erros estratégicos e táticos. A consequência imediata disto seria a prática constante e permanente de elaboração e adaptação teórica – não apenas na criação da teoria revolucionária como na adaptação das principais teorias e referenciais à realidade que se desejasse transformar. Realidade esta também contendo sua faceta cultural, elemento-chave para a libertação nacional. Podemos compreender sua ênfase neste tipo de aproximação frente à realidade da luta quando verificamos sua trajetória de vida e carreira: agrônomo, realizou o levantamento geográfico e social acerca de seu país em diversos estudos. Para sua teoria revolucionária, Cabral parte das realidades de cada grupo tribal, sabendo suas especificidades nas estruturas sociais e culturais – se eram verticais ou horizontais. Amílcar Cabral percebe um dos principais obstáculos para o desenvolvimento das lutas de libertação como a deficiência, senão ausência total de ideologia na luta contra o imperialismo. Desta forma, ele se propõe a delinear uma reflexão teórica, e adverte, para aqueles que poderiam considerar esta posição como muito “teorética”: “que se uma revolução pode falhar, ainda que

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nutrida de teorias perfeitamente concebidas, ninguém ainda praticou com sucesso uma revolução sem uma teoria revolucionária” (Cabral, 1979, p. 123). Assim, a primeira reflexão que toma conta é partir da questão da luta de classes enquanto motor da história. Para Cabral, a definição de uma classe é, antes de tudo, uma definição historicamente construída; ou seja, dentro da evolução da humanidade, as classes não apareceriam nem como um fenômeno generalizado e simultâneo, muito menos como um todo pronto, perfeito e uniforme. Com o perdão da repetição, a classe é um fenômeno histórico, ocorrendo conforme o desenvolvimento das forças produtivas e sua distribuição da riqueza – produzida por um grupo e usurpada por outro, por exemplo. De acordo com Cabral, portanto, o fenômeno socioeconômico de classe surgiria e se desenvolveria como função de pelo menos duas essenciais e interdependentes variáveis: o nível das forças produtivas e o sistema de propriedade dos meios de produção – que num processo lento, levaria ao surgimento das classes e dos conflitos de classe (Cabral, 1979, p. 123). As transformações abruptas que se dariam neste processo, tanto no nível das forças produtivas como no sistema de propriedade são, na linguagem convencional econômica e política, chamadas de revoluções (p. 124). Aceitar a premissa de que a história começaria apenas com o advento das classes e, consequentemente, da luta de classes seria tirar de seu escopo muitas eras e muitos povos. Portanto, a conclusão de Cabral é de que, se a luta de classes é o motor da história (como ele mesmo concorda), ela o é num período histórico específico. Isto implica que, num período anterior ao advento da luta de classes (e mesmo após o desaparecimento desta) algum ou alguns fatores foram e serão sua força motriz. Para o pensador, este fator é o modo de produção (nível das forças produtivas e o sistema de propriedade) que são característicos do grupo social em questão. Entretanto, a definição de classe e luta de classe já é o resultado do desenvolvimento das forças produtivas em 186

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conjunção com o sistema de propriedade dos meios de produção, o que seria razoável para sua conclusão, ser o nível das forças produtivas – o verdadeiro determinante do conteúdo e forma das classes e lutas de classe – o verdadeiro motor da história (Cabral, 1979, p. 124-125). Desta forma, estaria salvaguardada a existência da dimensão do histórico para todos os povos que muito foram detratados e negados, assim como compreendemos o fenômeno de classe como algo histórico, isto é, que pode vir a desaparecer tal como surgiu. Para aqueles que, como Cabral, acreditam na inevitabilidade do desaparecimento das classes e na luta pelo socialismo, e que o homem continuará a fazer a história mesmo quando este fenômeno desaparecer, esta é uma “contente conclusão” (Cabral, 1979, p. 125). Sobre o modo de produção, então, que foi colocado como fator da força motriz da história e sobre a qual se dá o desenvolvimento das forças produtivas, Cabral delimita três estágios pelos quais a humanidade haveria passado: o baixo nível das forças produtivas, em que o homem domina a natureza, em que a propriedade privada ainda é inexistente e não há classes; o momento em que o aumento das forças produtivas leva à apropriação privada dos meios de produção e, portanto, há classes e luta de classes; e, finalmente, o terceiro nível, em que ocorre a eliminação da propriedade privada e, dessa forma, o fenômeno de classe e luta de classes é removido e dá lugar a uma nova e desconhecida força motriz da história (Cabral, 1979, p. 125). Cabral toma os três estágios como concomitantes, cada um possuindo a semente do estágio posterior não sendo, ainda, não necessária a sequência dos estágios. Esta possibilidade do salto no processo histórico seria possível politicamente, graças ao advento que teria mudado radicalmente a “face do mundo” e a “marcha da história”: a criação dos Estados socialistas (Cabral, 1979, p. 126). De todas estas reflexões, que o próprio Amílcar Cabral havia colocado no início como sendo profundamente teóricas, é que vem uma importante conclusão: 187

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Vemos, portanto, que nossos povos têm sua própria história, quaisquer que sejam os estágios de seu desenvolvimento econômico. Quando eles foram submetidos ao domínio imperialista o processo histórico de cada um dos nossos povos (...) foi sujeitado a uma ação violenta de um fator externo. Esta ação (...) não poderia deixar de influenciar os processos do desenvolvimento das forças produtivas nos nossos países e a estrutura social dos nossos povos, assim como a forma e conteúdo da nossa luta de libertação nacional (Cabral, 1979, p. 126).

Partindo deste impacto deixado nos países africanos, o imperialismo, desta forma, pode ser definido como: “(...) a expressão mundial do lucro e da crescente acumulação dos valores excedentes pelo capital financeiro monopolista, em duas regiões do mundo: primeiro na Europa e, depois, na América do Norte” (Cabral, 1979, p. 127). Segundo Cabral, o imperialismo, sendo de fato o último estágio do capitalismo, foi uma necessidade histórica assim como a libertação dos povos e o advento do socialismo era a necessidade daquele presente (Cabral, 1979, p. 127). Como o imperialismo é a forma contra a qual a luta de libertação irá se confrontar, seria importante demonstrar as suas formas de dominação. Cabral indica duas: a dominação direta, se dando através de um poder político (com aparato militar, judicial etc.) estrangeiro ao povo dominado, chamado de colonialismo clássico ou simplesmente colonialismo; e a dominação indireta, sendo esta através de um poder político feito parcial ou completamente por agentes nativos, denominada de neocolonialismo. No caso do colonialismo clássico, as situações a que se pode colocar as regiões submetidas seriam a total destruição da população indígena; a destruição parcial, geralmente acompanhando num maior ou menor estabelecimento de população exótica; e a preservação ostensiva, com o confinamento das sociedades nativas em áreas especiais. As últimas duas situações são as em que

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se encontram grandes parcelas do território africano e com as quais a luta de libertação nacional deverá lidar. No caso do neocolonialismo, o imperialismo criaria uma burguesia local ou pseudoburguesia que estaria sempre submetida à classe dominante do país dominante (Cabral, 1979, p. 128-129). Estas novas dinâmicas afetam a estrutura social conjuntamente. No campo, as estruturas sociais permanecem, mas a criação da pseudoburguesia e intermediários acentua a diferença entre os estratos sociais. Ocorre também o gradual desenvolvimento de uma classe trabalhadora urbanizada e, com a introdução da propriedade privada agrícola, lentamente, cria-se um proletariado agrícola. Um movimento interessante ocorre no sistema neocolonial, em que é permitido um pequeno despertar na dinâmica social, o que não passaria de uma ilusão de autonomia, que seria ainda reforçada por um Estado composto de indivíduos nativos. A burguesia nacional não pode, nem consegue ser, efetivamente, uma burguesia nacional. Cabral afirma, portanto, que no cerne, o colonialismo e o neocolonialismo mantêm as mesmas características do essencial de uma dominação imperialista: a negação do processo histórico do povo dominado, por meio de violenta usurpação da liberdade do processo do desenvolvimento das forças produtivas nacionais (Cabral, 1979, p. 129). O pensador chama a atenção que esta identificação das dife­rentes formas de dominação imperialista é de primordial importância para o pensamento dos movimentos de libertação nacional, no curso e a após a independência. Afinal, (...) a libertação nacional é o fenômeno pelo qual um todo socioeconômico rejeita a negação de seu processo histórico. Em outras palavras, a libertação nacional de um povo é a reconquista da personalidade histórica daquele povo, é o seu retorno à história através da destruição da dominação imperialista à qual ele foi sujeitado (...), podemos, então, concluir que a libertação nacional existe quando, e somente quando as forças produtivas nacionais forem completa-

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mente libertadas de todo e qualquer tipo de domínio estrangeiro (Cabral, 1979, p. 130).

A condição que os países estariam vivenciando na época é identificada como a fase do neocolonialismo. Desta forma, compreendendo a libertação nacional como uma profunda mudança nos processos de desenvolvimento das forças produtivas, Cabral afirma que o fenômeno de libertação nacional deve necessariamente corresponder a uma revolução. Para tanto, traçar as formas de luta se faz necessário: na forma colonial, seria necessário haver uma vanguarda, a partir de uma frente ampla de diversos setores “esclarecidos” da sociedade, que dirigiriam o início da luta; na forma neocolonial, a classe dominante permanece cada vez mais “burguesa”, permitindo a uma classe trabalhadora e aos proletários rurais se organizarem – a aliança destes dois com a pequena burguesia nacionalista deveria ser procurada, dentro de um quadro de uma forte e bem estruturada organização política (Cabral, 1979, p. 130-133). Os resultados da luta em ambos os casos também são diferentes. Se, no caso colonial, a luta da classe nacional contra forças repressivas da burguesia colonizadora pode levar a uma revolução nacional, em que a nação adota a estrutura econômica de sua preferência, no caso neocolonial a classe trabalhadora e seus aliados combateriam simultaneamente, portanto, a burguesia imperialista e a classe dominante nativa. Aqui, não é possível uma solução nacionalista, é necessária a destruição do sistema capitalista e a implantação do socialismo. Sendo a solução socialista dependente somente do grau de consciência revolucionária daqueles que lideram a luta (Cabral, 1979, p. 133). O papel da pequena burguesia é outra importante pauta de reflexão de Amílcar Cabral. Ele aponta para o fato de ela ser a única camada social capaz de ter a consciência da realidade da dominação imperialista e da lida do aparato estatal herdado desta dominação. Novamente, as distinções: se na forma colo-

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nial ela é a camada que mais rápido se dá conta da necessidade de se livrar do domínio estrangeiro, na forma neocolonial ela compartilha a luta com as classes trabalhadoras, tendo papel proeminente. Entretanto, Cabral frisa que, por mais consciência revolucionária que esta classe tenha, ela não detém o poder político. Este está destinado a apenas duas entidades: ou ao capital imperialista, ou à classe trabalhadora. Para completar o processo revolucionário, portanto, resta à burguesia apenas duas alternativas: ou trair a revolução ou cometer um suicídio de classe.7 Segundo Cabral, ainda por cima, a escolha em favor da revolução dependeria do que Fidel Castro havia chamado de desenvolvimento da cons­ciência revolucionária. Isto também demandaria dos quadros dirigentes e da organização política formada de se manterem fiéis aos pressupostos colocados no início da luta (Cabral, 1979, p. 134-137). Se nos deparamos com estas questões socioeconômicas, para Amílcar Cabral é mais que importante ressaltar as íntimas ligações entre estas duas e o fato cultural. A cultura seria, como resultante mais ou menos consciente, das atividades econômicas e políticas, a expressão mais ou menos dinâmica dos tipos de relações sociais que são estabelecidas pelo homem com a natureza e com outros grupos de indivíduos. O valor da cultura como elemento de resistência se dá por ela ser uma manifestação vigorosa, no plano ideológico ou idealista, da realidade material e histórica da sociedade – fruto da história de um povo, a cultura determinaria simultaneamente a história (Cabral, 2012, p. 359).

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Aqui, vemos Cabral resgatando uma concepção de Fanon. Ambos estavam pautados pela preocupação da totalidade da sociedade, e isto incluía a burguesia. A diferença entre ambos se daria principalmente na preocupação maior por parte de Cabral no papel do partido e do alvo da conscientização neste processo. Fanon se preocupa, claramente, mais com as massas e com quem ele definiu como lumpen proletariat, cabendo à burguesia apenas a decisão pelo suicídio ou não. Em Cabral, vemos uma clara distinção entre uma burguesia apta e não apta à luta revolucionária e o papel que o partido deve ter nessa mediação.

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Não existindo nenhuma forma de domínio que não afete a vida econômica, política e cultural do povo dominado, encontramo-nos em um dilema da resistência cultural: o imperialismo colonial cria teorias raciais que, na prática, não passam de um verdadeiro estado de sítio para as populações nativas. A teoria da assimilação é o exemplo máximo (Cabral, 2012, p. 358). Como já explicitamos, a libertação nacional será o momento em que o povo dominado poderá realizar de forma autônoma o desenvolvimento de suas forças produtivas a partir do modo de produção de sua escolha. Para Cabral, “falar disso é falar de história, mas é também falar de cultura” (Cabral, 2012, p. 360). É aqui que, em seu pensamento, o âmbito social, o econômico e o cultural aparecem ligados como elemento essencial da história de um povo. A analogia que Cabral realiza para partir suas considerações é esta: [A cultura] é talvez resultante dessa história como a flor é a resultante de uma planta. Como a história, ou porque é a história, a cultura tem como base material o nível das forças produtivas e o modo de produção. Mergulha as suas raízes no húmus da realidade material do meio em que se desenvolve e reflete a natureza orgânica da sociedade, podendo ser mais ou menos influenciada por fatores externos (Cabral, 2012, p. 360).

Se, então, poderíamos conhecer a natureza e a extensão de desequilíbrios e de conflitos a partir da dimensão histórica, podemos saber quais as sínteses dinâmicas foram elaboradas e racionalizadas pela consciência social para a resolução destes conflitos a partir da cultura. As lutas de libertação nacional, como aponta Cabral, são geralmente precedidas por uma intensificação das manifestações culturais – principalmente no movimento de afirmação da cultura do povo oprimido. Temos, portanto, no fato cultural o germe da contestação (Cabral, 2012, p. 360-361).

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Uma importante ponderação que Cabral faz, justamente a partir da colocação da cultura dentro do âmbito das lutas de libertação, é em consideração ao caráter de classe da cultura. A delimitação principal é que se a cultura tem um caráter de massa, ao mesmo tempo ela não se desenvolve igualmente entre todos os setores da sociedade. Se o domínio colonial cria um perfeito sistema de repressão da vida cultural do povo colonizado, ele provoca conjuntamente uma “alienação cultural” de parte da população, pela falaciosa assimilação ou pelo abismo ainda maior entre as elites autóctones e as massas populares. A pequena burguesia, aqui, se vê como culturalmente superior às outras camadas da população. O que é necessário no processo da luta é a “reconversão dos espíritos”, a reafricanização. Isto é colocado com a preocupação política de que oportunistas, sem perder os preconceitos culturais de classe, possam atingir postos elevados no movimento. Mesmo dirigentes célebres podem ser “alienados culturais” (Cabral, 2012, p. 362-363). Para que o movimento avance, portanto, ele deve estar em sintonia principalmente com a cultura popular, nunca negando as contribuições positivas que podem dar as camadas privilegiadas. Desta forma, Cabral afirma: A contestação cultural do domínio colonial – fase primária do movimento de libertação - só pode ser encarada eficazmente com base na cultura das massas trabalhadoras dos campos e das cidades, incluindo a ‘pequena burguesia’ nacionalista (revolucionária), reafricanizada ou disponível para uma reconversão cultural (Cabral, 2012, p. 365).

Seja qual for a complexidade do panorama cultural, o que Cabral aponta, e aqui é uma de suas importantes conclusões, é que o movimento de libertação consiga sempre ser capaz de distinguir o “essencial do secundário”, o “positivo do negativo”, o “progressivo do reacionário”, sempre tendo como horizonte a construção de uma cultura nacional, que cumprirá um papel na 193

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dimensão da luta de libertação, fazendo a confluência em direção à dimensão nacional. É desta forma que Cabral coloca ambas as dimensões: a luta de libertação será tanto pela sobrevivência como pela harmonização e desenvolvimento da cultura num quadro nacional (Cabral, 2012, p. 366). Sobre a dinâmica da cultura, Cabral enfatiza as íntimas relações desta com a economia e a realidade social, com o nível das forças produtivas e o modo de produção da sociedade que a cria. Não sendo nem mesmo um todo acabado, como um todo perfeito (contém, sim, aspectos positivos e negativos), é pontuada a inexistência de uma cultura continental ou racial. Ou seja, não é possível que haja uma só cultura africana. Como os processos de evolução da cultura (assim como da história) variam dependendo do espaço do tempo e de outros determinantes, é possível falar em várias Áfricas, em várias culturas africanas. Disto, o importante a ressaltar é que se o racismo foi um conjunto danoso de ideias, mais ainda, é a supervalorização cega de culturas (Cabral, 2012, p. 369-370). A aceitação de valores negativos dentro de uma cultura é um erro que a luta de libertação não pode cometer: no decorrer do processo, os aspectos positivos da cultura devem ser valorizados, deve-se realizar a “confluência dos níveis de cultura”, tudo para que a luta de libertação nacional não seja algo estranho ao povo, que ele se identifique com ela e que as táticas e estratégias desta luta estejam em confluência (Cabral, 2012, p. 370-371). No momento em que processo revolucionário coloca todas as suas exigências, e o povo a corresponde, armado em conjunto com as outras forças progressistas, muitos problemas surgem e exigem ser resolvidos: unidade política, uso eficaz de armas modernas e outros meios de guerra, redução da mentalidade tribal, recusa de regras e tabus sociais e religiosos (gerontocracia, nepotismo, inferioridade social da mulher). É aqui que a luta de libertação nacional mostra-se como “uma verdadeira marcha forçada no caminho do progresso cultural”, pois, no momento em que 194

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estas questões são colocadas, conjuntamente há a prática da demo­cracia, da crítica e autocrítica, a alfabetização e mesmo a assistência sanitária. Como Cabral postula: “vemos, então, a luta armada não apenas como um fato cultural mas também como um fator de cultura” (Cabral, 2012, p. 373).

Considerações finais O principal objetivo, em nossa exposição, da visão acerca da revolução e da cultura no pensamento de Frantz Fanon e Amíl­car Cabral é atentar para a capacidade de ambos os pensadores, com grande potencial interpretativo, daquilo que Lenin colocou como uma definição do marxismo: realizar uma análise concreta de uma situação concreta. Nossa definição inicial (resumida, é verdade) dos conceitos que os autores utilizam justifica, inclusive, nosso dever de ler e conhecer estes pensadores: eles estão, sim, balizados pelas questões de suas épocas e pelos seus referenciais, mas não limitados por eles. A visão geral dos textos de Amílcar Cabral dada pelo historiador Basil Davidson, de que a obra de Cabral postula “as bases necessárias de uma revolução democrática, seja na libertação da mulher, numa educação antielitista, num sistema descentralizado de saúde pública, e, como a garantia essencial de todos estes ganhos, na construção de estruturas políticas participativas nas e para as bases” (Basil Davidson, 1979, p. XII), é de uma proximidade espantosa com as necessidades de nossa própria realidade. E não deve ser esquecida a atualidade do pensamento de Frantz Fanon no que concerne ao arcabouço conceitual deixado por ele, ao analisar as angústias de um sistema injusto e violento, ao empregar seus conhecimentos de psicologia numa interpretação total da realidade argelina. Sua crítica ao academicismo vigente na época, e a inclusão do lumpen como classe que terá papel histórico são questões de válida reflexão na teoria revolucionária.

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Outro motivo claro para a preocupação destes dois pensadores em relação ao papel da cultura na revolução foi justamente a percepção de ambos das especificidades do sistema colonial, um sistema de ponta-cabeça, invertido, como vimos anteriormente em expressões utilizadas. Sua dominação que se dava não apenas pelo fator econômico, mas também pelas racionalizações e construções culturais existentes para sustentar e legitimar tal sistema. Sem derrotar um, seria impossível derrotar o outro: vemos aqui uma noção madura de concepção dialética e da totalidade da sociedade. Mesmo que muitos pontos de partida de ambos os autores estivessem calcados pelas questões da época – Cabral reproduz “esquemas” de revolução e prende-se demasiadamente na leitura também “esquemática” das relações de modo de produção, forças produtivas e meio de produção; enquanto Fanon coloca a “nação” como a base pela qual a cultura (superes­ trutura) nacional brotará – a prática de ambos os revolucionários estão longe de serem descartadas por causa disso. Cabral foge, por um lado, de esquematismos quando inverte e dispõe de seu modo estes conceitos para adaptá-los à realidade de seu povo; e Fanon sabe muito bem que uma nação, assim como uma cultura ou mesmo uma revolução se constroem no sentido mais estrito da palavra. Ambos os revolucionários deram as suas vidas e fizeram o que estava ao seu alcance por uma nova interpretação teórica de sua realidade e uma prática de fato emancipadora e de ruptura com um sistema calcado em exploração e dor. Muito embora certas visões acerca destes autores insistam em podar o teor revolucionário e socialista de suas teorias e práticas, isto não deve nem nos surpreender nem nos desanimar. É nosso dever reconhecer as lutas que foram travadas e resgatar (de forma dialética) estes pensadores em nossa realidade. Se durante o correr do texto o leitor teve a sensação de estar sendo admoestado a tomar uma posição, se de alguma forma se viu na obrigação de ter empatia pelos seres humanos que se levantaram apenas para cair frente a uma violência das mais injus196

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tas que o mundo já viu, o autor que ora escreve, confessa estes terríveis crimes. Muito sangue já foi vertido (e ainda verte) pelo domínio imperialista em países subdesenvolvidos para termos tomado outra posição que não esta no decorrer do artigo. Se estas páginas de fato pretendem divulgar, por linhas gerais, o pensamento revolucionário africano, com ênfase nos grandes pensadores Frantz Fanon e Amílcar Cabral, para respeitar a memória de ambos e de todos aqueles que morreram lutando pela liberdade e pelo socialismo, eu não poderia ter escrito de outra forma.

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A África de Fanon: atualidade de um pensamento libertário Walter Günther Rodrigues Lippold

Frantz Fanon é um destes nomes que reverberam na história, mesmo com sua célebre afirmação de que sua obra estava calcada no tempo, tempo imediato, tempo do agora. Tempo de descolonização, de libertação dos corpos e das mentes, tempo de contraviolência, de afirmação-de-si e de negação dos valores da metrópole. O tempo da revolução que para Walter Benjamim também era um tempo messiânico. Fanon, o guerreiro-sílex – como Césaire o chamou em um poema – através de seu estilo inconfundível de escrita, atacou a desumanização empreendida por aqueles que sempre cantaram o Homem, este ente abstrato, que na verdade não tinha nada de universal, era o europeu. Na periferia do mundo capitalista, nas colônias e até mesmo nas periferias da própria metrópole, estavam os untermenschen, os calebans, os sub-homens, os condenados da terra. Fanon foi o intelectual que mergulhou na sua teoria através da ação, o agir/pensar sem dissociação. As anotações de Fanon sobre o tratamento psiquiátrico na Clínica de Blida-Joinville são bons indícios da guinada que a vida deste intelectual daria a partir do momento que decidiu se desligar da França, abandonando a clínica e ingressando nas fileiras da Frente de Libertação Nacional na Argélia. Mas o nome de Fanon não reverbera somente por ser testemunho intelectual das tentativas de libertação na África: suas análises sobre violência, campesinato, lumpemproletariado,

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A Á frica de Fanon: atualidade de um pensamento libertário

espontaneismo, psicologia do racismo colonial, cultura e racismo, sexualidade e racismo, mídia, seu método de investigação e exposição, seu arcabouço conceitual, enfim, suas contribuições são inúmeras para pensar o século XXI. Neste capítulo, farei uma breve exposição da teoria de Fanon, focalizando principalmente suas duas obras mais famosas: Pele negra, máscaras brancas (2008), publicada em 1952, e Os condenados da terra (2010), publicada em 1961. O objetivo principal é compreender a centralidade da África nas análises de Fanon, presentes em sua obra e apontada por Mbembe (2012), e a sua atualidade, defendida por Wallerstein (2008) e Faustino (2013). Como objetivo secundário, busco analisar o método de pesquisa de Fanon e alguns de seus conceitos que podem ser pensados, atualmente, para os estudos sobre a África e sobre o racismo e violência na sociedade brasileira, buscando o fortalecimento dos estudos fanonianos no Brasil.

Fanon, África-Brasil, século XXI Os estudos africanos no Brasil deram um passo decisivo nos últimos doze anos: fomentados por um debate que perpassa desde a questão da especificidade do racismo brasileiro, a descolonização do saber, as ações afirmativas – incluindo leis que tornam obrigatório o ensino de história e cultura africana, as relações internacionais do Brasil com países africanos, a vinda de estudantes africanos para as universidades brasileiras, a criação de núcleos de estudos africanos e afro-brasileiros; enfim, um desenvolvimento e aprofundamento destas temáticas, nunca vistos em nosso país. Uma das necessidades para as atuais pesquisas sobre a história africana e a diáspora é o conhecimento dos intelectuais africanos e afrodiaspóricos, suas obras e biografias, seus conceitos e metodologias, sua inserção e engajamento nas lutas de seus respectivos tempos, sua herança nas lutas sociais de hoje e suas conexões com o chamado pensamen-

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to periférico não só na África, mas na América e Ásia (Déves-Váldes, 2008). Por que ler Fanon no século XXI? (Wallerstein, 2008; Faustino, 2013). Esta questão é fundamental, pois o próprio Fanon ressaltou sempre que sua obra está calcada em seu tempo. É o que poderíamos chamar, hoje, de história imediata, com todas as suas possibilidades e interfaces com outras disciplinas. Muito da crítica à obra de Fanon parte de que esta seria limitadamente datada, organicamente presa ao momento em que desenvolveu sua teoria. Mas, dentro das particularidades do contexto em que viveu, Fanon lançou interpretações pioneiras através de um método criado pelo intelectual em processo de descolonização do saber; é a criação teórica sendo forjada a golpes duros dos grandes desastres do século XX em que Fanon atuou como protagonista. Pan-africanista, marxista, freudiano, lacaniano, humanista, existencialista, materialista? Todos tentam enquadrar Fanon ou esconjurá-lo de suas linhas teóricas, o que não conseguem, pois Fanon dialoga, incorpora, critica, supera as contradições destas teorias em prol da criação intelectual que seja condizente com o Terceiro Mundo, que seja contra-hegemônica e se contraponha à velha ladainha colonialista e racista, ungida pelo eurocentrismo, que penetrou não só na direita xenófoba, mas também nas esquerdas, inclusive no Partido Comunista Francês que foi contra a independência da Argélia – baseado na ideia que esta deveria esperar uma eventual revolução proletária na metrópole. Fanon explicita um método interdisciplinar de investigação, galgando os limites cartesianos entre as ciências humanas e um método de exposição dissonante do academicismo reinante na época: vai do discurso científico à poesia no mesmo parágrafo. Psicologia, análise de publicidade e propaganda, cinema e racismo, configurações de classe, violência sexual; ao ler Fanon somos expostos a uma escrita violentamente lírica, poética, que amarra conceitos, vivências, clínica médica e filosofia. O preço da ousadia seria a reprovação de sua tese que teve que ser mudada por 201

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um trabalho mais técnico dentro da hegemonia positivista reinante na psiquiatria da época. O método de Fanon seria um novo modo de compreender o mundo, transformando-o? Seria a efetivação da 11ª Tese de Marx sobre Feuerbach? Esta última questão é importante, pois Fanon (2008, p. 33) no inovador capítulo O negro e a linguagem de seu livro Pele negra, máscaras brancas, comenta sobre a famosa tese de Marx: “Como não deixar de ouvir novamente, desorganizando o andamento da História, esta voz: ‘O problema não é mais conhecer o mundo, mas transformá-lo’”. Aliás, este espectro ronda a obra de Fanon, os títulos de duas obras são uma referência direta ao socialismo e à obra de Marx: L’an V de la révolution algérienne (O ano V da revolução argelina)1 (1966), escrito em 1959, visa analisar uma situação revolucionária e faz referência ao O 18 Brumário de Luis Bonaparte, de Marx. Inclusive, Fanon cita o famoso trecho sobre a necessidade da revolução criar o novo e não apenas ficar evocando nomes do passado no último capítulo de Pele negra, máscaras brancas. Já Les damnés de la Terre (Os condenados da terra) é uma alusão ao primeiro verso do hino da Internacional, Debout! Les damnés de la terre. Como afirma Grohs: A revolução social do século XX, a revolução dos países em desenvolvimento, é experienciada por Fanon como observador e participante na Revolução Argelina. Ele deixou o reino da teoria e adentrou na práxis política. Os primeiros resultados de suas observações ele publicou como L’An V de la révolution algérienne (...) um título cuja similaridade ao O 18 Brumário de Luis Bonaparte, de Marx, não é acidental. Os livros se assemelham em oferecer não um relato histórico, mas uma análise de uma situação social que pro1

Este livro, muito raro e difícil de achar no Brasil, agora circula numa cópia digitalizada em espanhol. Pessoalmente, uso a 3ª edição em espanhol, de 1976. Esta, assim como a publicada em 1966 pela editora François Maspero, se chama Sociología de una revolución e, em inglês, a tradução do título ficou como Studies in a Dying Colonialism.

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duziu um evento histórico e que foi alterada por este evento. Mas eles são diferentes em que o herói do livro de Fanon é o povo, um herói que marcha para a vitória. O herói do livro de Marx é o proletariado, e está perdendo a batalha contra as forças reacionárias. O livro de Fanon é sociológico. O médico e psicólogo torna-se um sociólogo sem esquecer a sua formação. Seu método é a observação participante (Grohs, 1968, p. 546, tradução minha2).

Em termos da abrangência do método e da análise de Fanon, será possível ir além de seu tempo? Será que a leitura de Fanon pode ajudar a uma compreensão/ação na sociedade brasileira? Em uma sociedade violenta que se afirma democrática, mas racializa o acesso ao mercado de trabalho, a estética e a morte e assassinato de jovens; onde o racismo estrutural permeia as relações entre negros e brancos, as contribuições de Fanon podem ser férteis. Não é a toa que muitos pensadores do mundo periférico, para compreender suas sociedades pós-coloniais, lançam mão do pensamento fanoniano. A geopolítica da violência mundial se reconfigurou desde a época da descolonização, mas, em geral, o fenômeno da violência, ou seja, da aniquilação, inferiorização, destruição, anulação e exploração do outro, continua em sua essência, fundamentalmente presente na existência humana. As tecnologias e a ciência, ao mesmo tempo que libertam o ser humano e potencializam a criação, criam a possibilidade de aniquilação em massa através 2

“The social revolution of the twentieth century, the revolution of the developing countries, is experienced by Fanon as both observer and participant in the algerian revolution. He left the realm of theory and entered the political práxis. The first results of his observations he published as L’An V de la révolution algérienne – a title whose similarity to Marx’s The 18th Brumaire of Louis Bonaparte is not accidental. The books resemble each other in offering not a historical account but an analysis of a social situation which has produced a historical event and which has been changed by this event. But they are different in that the hero of Fanon’s book is the people, a hero marching to victory. The hero of Marx’s book is the proletariat, and it is losing the battle against the reactionary forces. Fanon’s book is sociological. The doctor and the psychologist becomes a sociologist without forgetting his training. His method is participant observation”.

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de artefatos termonucleares e armas de última geração que há pouco tempo figurariam em filmes de ficção científica. Quando o presidente do conselho de administração da Bayer, Marijin Dekkers, afirma sobre um medicamento para o tratamento de câncer de fígado e rins: “Não criamos este medicamento para os indianos, mas para os ocidentais que podem pagar por ele” (Benito, 2014) não estaríamos dentro do que Achille Mbembe (2011) chamou de necropolítica? Os poderes imperialistas das potências capitalistas, dentro da globalização que se aprofunda, contraditoriamente também apostam na balcanização e nos conflitos de baixa intensidade, guerra suja, cyberguerra, contrainsurgência em escala mundial. Tudo isto demonstra que a globalização capitalista, o chamado sistema-mundo para Wallerstein, apesar de reconfigurações, novos simulacros para cimentar hegemonia, conserva fundamentalmente aspectos essenciais do imperialismo e do neocolonialismo, que segundo Steffan “(...) vem agora sobre as asas da tecnologia Stealth” (1999, p. 76-77). Eu poderia atualizar um pouco esta frase do Professor Heinz Dietrich Steffan; hoje os poderes imperialistas atuam sob a forma de bits, de código binário, vírus feitos por governos, vants (drones) que vigiam com supercâmaras gigapixel e se necessário podem atacar alvos humanos, veículos ou até mesmo prédios, não podemos duvidar que um drone possa carregar dispositivos de destruição em massa ou nukes táticos. Com o escândalo associado a Edward Snowden e a emergência da Wikileaks, de Julien Assange, o imperialismo demonstrou ter desenvolvido tecnologia e know-how em prol do domínio, da espionagem militar, diplomática e industrial e intervenções contra o novo mal que aflige os ocidentais e fermenta os lucros da indústria armamentista, das terceirizações de logística militar (corporação Halliburton) e até de contratação de mercenários (organização Blackwater).

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Todo este mundo está cheio de violência, violência física que mutila corpos e destrói a psiquê das novas gerações, violência ideo­ lógica que despersonaliza, também marcando no corpo, nos indivíduos e no inconsciente coletivo. A violência do racismo, da xenofobia, do ódio étnico balcanizado chegou com toda força nas metrópoles. O que diria Fanon, ao ver no alvorecer do século XXI, uma migração em massa dos africanos para a Europa? O que diria Fanon sobre o crescimento da islamofobia na Europa e Estados Unidos e sobre o fundamentalismo islâmico na África como resposta reacionária ao projeto ocidental de dominação? Sobre a fragmentação e a não efetivação da passagem da consciência nacional para a social, como ele defendeu? Como afirma Faustino: Muitos acontecimentos históricos posteriores à morte de Fanon nos levantam o questionamento de como ele analisaria ou confrontaria o colonialismo no século XXI? Os retrocessos políticos observados na Argélia com a islamização do Estado após a independência; as diversas e sucessivas ditaduras e decapitação de líderes anti-imperialistas nos países africanos recém-libertos; a queda do Muro de Berlim e o surgimento de uma geração para o qual a perspectiva de futuro está ausente; as conquistas democráticas (relativas) obtidas sem violência nos países subdesenvolvidos; e mesmo as drásticas alterações na sociedade moderna, provocada pela reestruturação produtiva e sua crescente financeirização da economia e readequação das fronteiras nacionais; o surgimento dos novos movimentos sociais, suas viradas paradigmáticas e o próprio neoliberalismo. Todos estes novos conflitos e contradições, impensáveis à época de Fanon levantam o questionamento se o autor estaria ultrapassado (Faustino, 2013, p. 229).

No pós-independência africano, a burguesia nacional que substitui os antigos quadros coloniais deflagra um processo perigoso que do nacionalismo libertário pode desaguar no ódio mútuo entre os povos, as etnias. Sobre a burguesia nacional africana, ele já afirmava que: 205

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Efetivamente, o seu comportamento, cada vez mais, vai colorir-se de racismo. (...) Na Costa do Marfim, há motins propriamente racistas antidaomeanos [Daomé, atual Benin] e antivoltaicos [Alto Volta, atual Burkina Fasso]. (...) Do nacionalismo, passamos para o ultranacionalismo, para o chauvinismo, para o racismo. (...) No Senegal, são manifestações antissudanesas (...) (Fanon, 2005, p. 183).

Em 1961, numa acertada análise do cenário social africano de sua época, lançava elementos para pensar o cenário atual, inclusive as questões ligadas a ódio étnico e religioso: Assiste-se a um vaivém permanente entre a unidade africana que naufraga cada vez mais na evanescência e a volta desesperadora ao chauvinismo mais odioso, mais raivoso. (...) Do chauvinismo senegalês ao tribalismo uólofe [sic], a distância não poderia ser grande (Fanon, 2005, p. 185).

Os ecos da obra do pensador martinicano também chegaram ao cinema atual. No dia 5 de dezembro de 2014, no sítio eletrônico do jornal Aljazeera, Belén Fernandez (2014) analisou o novo filme sobre Fanon, Concerning Violence, nome do capítulo mais famoso de Os condenados da terra, dirigido pelo sueco Göran Hugo Olsson e narrado pela rapper, atriz e ativista estadunidense Lauryn Hill. O filme usa o texto de Fanon como eixo narrativo em cima de imagens das guerras coloniais na África. O diretor Olsson já havia rodado um filme com imagens raríssimas do auge do black power nos Estados Unidos: Black Power Mixtape 1967-1975 (2011). Em ambos os filmes, ele utilizou imagens de arquivos da televisão sueca. Segundo Fernandez (2014), Fanon vive, pois os “legados coloniais na África fazem surgir questões sobre os colonialismos de hoje” e que “depois de tudo, a violência é a prerrogativa do império”. Outro filme, chamado “Frantz Fanon: black skin white mask” (1995), adentra principalmente nos aspectos sociopsicológicos presentes na obra Pele negra, máscaras brancas (2008). 206

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Mesclando técnicas de documentário e com o ator Colin Salmon interpretando Fanon, o diretor Isaac Julien busca as intersecções entre a biografia, a teoria e ação do pensador, mesclando cenas reais, cinematográficas – como as de A batalha de Argel, de Gillo Pontecorvo – e testemunhos de pessoas próximas de Fanon e do pensador Stuart Hall. O resultado é um filme de suma importância para os estudos fanonianos que infelizmente não tem legendas em português e é bastante difícil de conseguir na internet em versão de boa qualidade. Partindo de diálogos e debates com intelectuais africanos e da diáspora e com europeus, Fanon produz uma teoria que revoluciona a questão da alienação da consciência do colonizado e da violência como instrumento de libertação revolucionária no contexto das independências africanas. Ele mergulha em uma análise da cultura e do racismo e do maniqueísmo que se forma no sistema colonial, dualismo que se manifesta até na geografia das cidades colonizadas. Em um trecho de Os condenados da terra3 , vemos como se configura a geografia colonial urbana, sendo um

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“A cidade do colono é uma cidade sólida, toda de pedra e ferro. É uma cidade iluminada, asfaltada, onde os caixotes do lixo regurgitam de sobras desconhecidas, jamais vistas, nem mesmo sondadas. Os pés do colono nunca estão à mostra, salvo talvez no mar, mas nunca ninguém está bastante próximo deles. Pés protegidos por calçados fortes, enquanto que as ruas de sua cidade são limpas, lisas, sem barracos, sem seixos. A cidade do colono é uma cidade saciada, indolente, cujo ventre está permanentemente repleto de boas coisas. A cidade do colono é uma cidade de brancos, de estrangeiros. A cidade do colonizado, ou pelo menos a cidade indígena, a cidade negra, a medina, a reserva, é um lugar mal afamado, povoado de homens mal afamados. Aí se nasce não se importa onde, não importa como. Morre-se não importa onde, não importa de quê. É um mundo sem intervalos, onde os homens estão uns sobre os outros, as casas umas sobre as outras. A cidade do colonizado é uma cidade faminta, faminta de pão, de carne, de sapatos, de carvão, de luz. A cidade do colonizado é uma cidade acocorada, ajoelhada, uma cidade acuada. É uma cidade de negros, uma cidade de árabes. O olhar que o colonizado lança para a cidade do colono é um olhar de luxúria, um olhar de inveja. Sonhos de posse. Todas as modalidades de posse: sentar-se à mesa do colono, deitar-se no leito do colono, com a mulher deste, se possível. O colonizado é um invejoso. O colono sabe disto; surpreendendo-lhe o olhar, constata amargamente mas sempre alerta: ‘Eles querem tomar o nosso lugar.’ É verdade, não há um colonizado que não sonhe pelo menos uma vez por dia em se instalar no lugar do colono” (Fanon, 1968, p. 28-29).

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importante ponto de partida para compreender a questão da periferia nas grandes cidades do século XXI. Quando descreve e interpreta o mundo compartimentado do colonialismo efetivado na divisão e oposição entre a cidade do colono e a cidade do colonizado, Fanon nos leva a reconhecer traços de nossas atuais cidades, com seus bairros ricos e suas favelas, vilas e áreas invadidas. O intelectual brasileiro, provavelmente todos os intelec­ tuais­periféricos que conhecem estas contradições, rapidamente identifica algumas similaridades da análise fanoniana e da realidade urbana no século XXI, é como um deja vú. O conceito de violência, que é desenvolvido na última obra de Fanon, Os condenados da terra (2010), e o método utilizado para inquirir o fenômeno da violência colonial é de extrema importância para todos aqueles que buscam compreender a realidade africana atual, mas também a brasileira. Poderíamos partir das análises e do método de Fanon para mergulhar nas raízes da violência brasileira, encontrar o seu fundamento. Com a guerra do tráfico nas favelas das grandes cidades, o assassinato de jovens negros nas periferias efetuado por uma polícia, um Estado que implementou uma espécie de colonialismo interno ao ocupar as favelas em cidades como o Rio de Janeiro. Como se articulam as relações entre sociedade de consumo e crime, riqueza e pobreza, a repartição geográfica das cidades em áreas de brancos ricos e favelas onde a maioria é negra? Para quem estuda e para quem luta contra as violências perpetradas no Brasil, a leitura da obra de Fanon é necessária devido ao seu pioneirismo, sua visão do intelectual que, através da experiência pessoal e do estudo constituiu uma sociologia da violência colonial, dando contribuições essenciais para qualquer estudo sobre violência urbana, sobre violência e geopolítica e sobre violência revolucionária. Em um artigo de Guimarães (2008), vemos uma pesquisa de grande importância para estudar Fanon no Brasil: a recepção de sua obra nos meios intelectuais brasileiros. Guimarães (2008, p. 99) se depara com o enorme volume de estudos sobre Fanon 208

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nos Estados Unidos, Europa e África e, ao procurar os estudos fanonianos no Brasil, encontra muito pouco. O autor então busca refazer a trajetória da entrada de ideias de Fanon no Brasil e chega à conclusão que eles chegaram logo após a morte do pensador martinicano, via obra de Jean-Paul Sartre. Influenciando intelectuais como Paulo Freire e o cineasta Glauber Rocha, Fanon finalmente começa a circular no Brasil através das leituras e estudos de grupos do movimento negro. Em sua conclusão, o pesquisador deixa explícita a importância do estudo do pensamento de Fanon no Brasil: Em resumo, Fanon entrou definitivamente no rol de autores clássicos, aqueles que servem de referência obrigatória para o estudo de alguns fenômenos do mundo moderno, entre eles, principalmente, o racismo e a violência política. Consolidou-se, do mesmo modo, no panteão dos heróis africano-americanos, tornando-se leitura obrigatória para ativistas ou cidadãos negros brasileiros. O fato, no entanto, é que ainda estamos engatinhando nas investigações sobre Fanon. Minha sugestão é de que isso se deve, mesmo que parcialmente, à pouca presença de negros nas universidades brasileiras e à consequente escassez de reflexão teórica sobre as identidades raciais. Se eu estiver certo, portanto, a entrada gradual, mas constante, de negros nas nossas universidades de pesquisa poderá abrir, quem sabe, uma larga avenida para os estudos fanonianos (Guimarães, 2008, p. 114).

Precisamos fortalecer os estudos fanonianos no Brasil, criar espaços de circulação de obras do próprio autor e sobre ele. Espero que nos próximos anos as obras esgotadas de Fanon sejam reeditadas e disponibilizadas para pesquisadores e/ou militantes do movimento negro e do movimento campesino, para os intelectuais orgânicos das classes subalternas e para qualquer coletivo ou indivíduo que busque compreender o fenômeno da violência e do racismo na sociedade brasileira. Especialmente para os que estudam História da África, o referencial de Fanon é fundamen209

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tal, já que sua obra partiu principalmente de sua experiência como revolucionário na Argélia.

Fanon e o colonialismo na Argélia Frantz Omar Fanon nasceu em Fort-de-France, na Martinica, em 1925, e morreu nos Estados Unidos, devido às complicações geradas por uma leucemia mieloide, em 1961. Com 17 anos, ingressou nas forças francesas para combater o nazismo: (...) muito jovem, Fanon se engajou nas forças gaullistas, no batalhão V, que reunia os voluntários do Caribe. Foi durante esse engajamento que ele adquiriu a sua cultura de resistência, e também viveu a experiência do racismo banal, cotidiano. Desmobilizado, com a Cruz de Guerra (outorgada pelo futuro General Salan, única coisa que Fanon dizia ter em comum com o general), voltou para a Martinica em 1945, terminou seus estudos secundários e frequentou Aimé Césaire, por quem tinha grande admiração, mas de cujas opções políticas já não partilhava. Na época, Césaire decidiu considerar a Martinica como um departamento francês (Cherki, 2010, p. 8).

Após uma estadia na Martinica, Fanon volta para a França, onde concluiu o curso de medicina em Lyon, especializando-se em psiquiatria. Concomitante com os estudos em medicina, Fanon estudava filosofia: Hegel, Marx, Lenin, Kierkegaard, Husserl, Heidegger, Sartre e Merlau-Ponty eram alguns dos nomes de pensadores europeus que foram estudados. Ao mesmo tempo a influência da Négritude e de sua própria experiência como negro estudante de medicina e como um negro na Europa produziam um contraponto neste diálogo com a filosofia europeia. Fanon publica seu Pele negra, máscaras brancas em 1952, no mesmo ano em que escreve seu primeiro artigo na revista Esprit, O “Sindroma norte-africano” (Fanon, 1980, p. 7-20). “No hospital psiquiátrico de Saint-Alban, onde permaneceu

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por quinze meses, Fanon teve um encontro essencial com François Tosquelles, psiquiatra de origem espanhola e militante antifranquista...” (Cherki, 2010, p. 9). Passa a atuar, então, na Clínica de Blida-Joinville, na Argélia, onde atende pacientes torturados argelinos e torturadores franceses, e começa a compreender que estava diante de uma sociopatologia. No final do ano de 1956, pede demissão com uma carta ao Ministro Residente (Fanon, 1980, p. 57-60) e é expulso do território argelino (Cherki, 2010, p. 10). Em Túnis, exerceu uma dupla atividade, psiquiátrica e política. Tornou-se membro da equipe do jornal da FLN, El Moudjahid. Assistiu, de dentro, todas as contradições da Frente, inclusive as crescentes disputas entre os representantes políticos e o exército. Interessou-se cada vez mais pela África subsaariana e foi nomeado pelo governo provisório da república argelina como embaixador itinerante na África Negra, em fins de 1959 (Cherki, 2010, p. 11). A história de Frantz Fanon, e consequentemente de sua teoria, estavam organicamente ligadas com a história da Argélia, a luta pela libertação e contra a alienação colonial internalizada no colonizado, produzindo uma despersonalização. Para a maioria dos franceses, a colonização da Argélia significou a civilização de um “povo inferior e primitivo”, que era beneficiado com os avanços da sociedade europeia. Não há como negar que, no território argelino, foram implementadas estradas modernas, hospitais e escolas. Não podemos negar também que o nacionalismo argelino nasceu com a influência de ideias europeias. Mas isto não quer dizer que o colonialismo beneficiou a população muçulmana, ela apenas teve acesso às migalhas do desenvolvimento ocorrido na colônia, já que este está atrelado ao poder colonial e aos seus projetos. Uma estrada é construída para ligar pontos estratégicos da economia e nunca para beneficiar os colonizados; as escolas são para formar colonizadores, ou para reproduzir a ideologia que justifica o colonialismo. 211

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Podemos falar em benefícios da colonização sabendo que em 1954, 82% dos argelinos eram analfabetos? Neste mesmo ano, a mortalidade infantil era de 28,4%, ou seja, a cada 100 nascimentos, 28 crianças morriam antes de um ano de vida! Os dados levantados por Poerner (1966, p. 39-40) mostram, de modo categórico, a desigualdade nas condições de vida entre colonizados e colonizadores, em 1954, conforme se pode ver na tabela a seguir:

Calorias consumidas por dia Médicos (num total de 1.900) Universitários Funcionários da Administração (num total de 2.000)

Pied-noirs (brancos)

Argelinos

Mais de 3.000

Menos de 1.500

1 em cada 227

500 (6 médicos para cada 100 mil) 1 em cada 15.550

1.994

6

1.400

O deputado Auguste Burdeau, em 1892, fez uma recomendação aos professores primários argelinos que nos diz muito sobre a ideologia colonialista e desmistifica o “colonialismo benéfico”: O professor dos indígenas deve ser muito mais um agente geral da civilização elementar do que um mestre primário na acepção ordinária do termo. Seria, igualmente, melhor não dedicar muito tempo à História da Antiguidade e da Idade Média, que ocupa metade dos currículos, nem tampouco às catástrofes de nossos governos e às revoluções que ocupam uma parte da outra metade do programa. Uma coisa é formar os futuros cidadãos, os espíritos livres, racionadores, críticos mesmo; outra coisa é iniciar os pobres árabes ou kabyles nas primeiras noções da língua francesa, do cálculo, em algumas ideias sãs sobre o respectivo lugar da Argélia e da França no mundo das descobertas e nas ideias que constituem a força da civilização

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moderna... É importante, ainda, que os indígenas tenham de nossa pátria a ideia mais pura e elevada: nós daremos, por conseguinte, aos nossos alunos, através de lições apropriadas a sua idade e ao seu nível cultural, as noções sobre a grandeza da França, sobre sua força militar, sobre sua riqueza. Nossa situação seria bem mais sólida se os indígenas começassem a pensar: os franceses são fortes e generosos; são os melhores amos que poderíamos ter (apud Poerner, 1966, p. 42).

Estes “benefícios”, incluindo o da educação relegada aos árabes, que tinham sua língua considerada como estrangeira, logo seriam descartados pelos argelinos. Na visão do deputado Burdeau, podemos averiguar no que consistia a “missão civilizatória” da França na Argélia: os franceses acreditavam estar ti­ rando das trevas estes seres considerados primitivos, sub-humanos. Mas os argelinos queriam muito mais do que aprender sobre “a grandeza da França”, e, além disso, como ver grandeza num país que cotidianamente desumanizava o povo argelino, e benefícios numa relação opressiva que expropriava e inferiorizava os árabes, berberes e tuaregues. Mas como o colonialismo tecia a corda de sua própria forca, trazendo novas visões de mundo, como o nacionalismo, que foram dialeticamente absorvidas e utilizadas contra o próprio colonialismo, o seu benefício consistiu exatamente isto: em ter criado sua própria superação. Como veria Fanon a Argélia pró-independência? Seus apontamentos sobre os descaminhos da consciência nacional, em Os condenados da terra (2005) já trazem uma compreensão pioneira do futuro da África pós-libertação. Com a Independência, em 2 de julho de 1962, ocorre a fuga de mais de 900 mil franceses e os argelinos têm uma tarefa gigantesca a sua frente: reconstruir um país devastado pela guerra. O Governo Provisório entra em conflito com Ben Bella, chegando-se quase a uma guerra civil. Mas Ben Bella acaba sendo eleito presidente pela Assembleia Constituinte e a FLN torna-se o partido único da Argélia. Apesar

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dos avanços do governo Ben Bella, a sua hesitação em ampliar a reforma agrária e a industrialização e o seu personalismo, levaram-no à derrocada. Sobe ao poder o coronel Houari Boumedienne, que começa a consolidação do que se chamou socialismo argelino. Em 1968, ocorrem dezenas de nacionalizações de empresas estrangeiras e consolida-se a política externa argelina, extremamente solidária aos povos que lutam pela libertação, principalmente os africanos, como também com grupos revolucionários, como os Panteras Negras dos Estados Unidos, que possuíam “na Argélia (...) o que se chamou a primeira embaixada do povo afro-americano” (Soares, 2003, p. 56). Os governos Houari Boummedienne (1965-1978) e Chadli Bendjedid (1979-1992) dão continuidade à centralização política de Ben Bella (todavia em torno de outros segmentos políticos) e a seu projeto de reforma agrária que procurava, sobretudo, diversificar a produção agrícola e diminuir a importação de alimentos. Paralelamente as jazidas de petróleo e gás natural foram viabilizadas através da exploração estatal a ponto de, nos anos 1970, serem responsáveis por 90% das exportações argelinas. (...) Em síntese, consolidava-se um sistema político modernizante que conjugava uma versão estatal e militarista do socialismo com base numa identidade terceiro-mundista (Svartman, 1998, p. 231). Entretanto, este modelo apresentava falhas, pois a indústria desenvolvida geralmente não conseguiu sair dos limites da produção petrolífera. Com a baixa do barril de petróleo e a nova conjuntura mundial, baseada na nova guerra fria da era Reagan, com sua reação conservadora, com o neoliberalismo e com a chamada globalização, a Argélia sofre diretamente este duplo impacto e o crescimento anual do PIB que era 6,2% em 1980, já em 1993 era de -1,8% (Svartman, 1998, p. 233)! O modelo de reforma agrária não deu conta de diminuir a importação de alimentos, o que piorou a situação argelina, junto com o crescimento do desemprego. Tentou-se reformas econômicas para “ajustar” os gastos públicos, e reprimiu-se violentamente os protestos, como 214

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quando ocorreu o saque de Argel, em 1988. Concomitante à crise, cresceram as correntes políticas ligadas ao fundamentalismo islâmico, como a Frente Islâmica de Salvação (FIS). Com a nova constituição de 1989, que acabou com o regime de partido único, em 1992, a FIS ganhou as eleições no primeiro turno, mas o exército interveio e, assim, estourou uma guerra civil, que ainda ganhou mais um participante, o Grupo Islâmico Armado (GIA) que denunciava a “traição” da FIS quando esta negociou com o governo da FLN (Svartman, 1998, p. 232-239). Tem-se, assim, um quadro complexo e violento, decorrido em grande parte dos erros e dos limites do modelo do chamado socialismo árabe argelino.

O sentido da africanidade em Fanon Um debate de grande relevância diz respeito à questão do uso e influência da teoria fanoniana na terra que ele adotou como sua, ao se tornar argelino: a África. Um dos autores que defendem a centralidade da África no pensamento e na práxis de Fanon é o intelectual camaronês Achille Mbembe (2012), para quem a África não é apenas o lugar a partir do qual Fanon pensa, é o próprio tema desse pensamento, bem como a sua matéria. E é à África que ele se dirige em primeiro lugar. Foi essa “africanidade” do pensamento de Fanon que, infelizmente, se perdeu de vista, precisamente porque a África terá sido o ponto de partida da sua teoria revolucionária e da sua práxis anticolonial. Mbembe edifica uma das melhores periodizações da utilização do pensamento fanoniano desde o terceiro-mundismo até o pós-colonialismo e afirma que não é possível exaurir em algum aspecto isolado o pensamento de Fanon. Ele é universal e, no século XXI, assim como escreveu Wallerstein (2008), a sua leitura é obrigatória para aqueles que inquirem as questões de identidade, o uso da violência e a luta de classes, principalmente para os que lutam por um sistema-mundo mais justo.

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Um dos elementos mais importantes na teoria fanoniana é o modo pelo qual ela é influenciada e dialoga com intelectuais que o antecederam. Vemos que a influência da négritude é um dos portos de onde Fanon zarpa intelectualmente para logo criticar a produção de uma concepção fixista da essência negra, defendida principalmente por Leopold Sedar Senghor. Lembremos que Aimé Césaire era conterrâneo de Fanon, ambos nascidos na Martinica. Na avaliação do pesquisador chileno Eduardo Devés-Valdés, sua obra encontra-se num ponto de ruptura com os movimentos anteriores, apontando mudanças fundamentais nas interpretações sociais do período das independências: Pode-se afirmar que o período de transição ocorre com Fanon e Cabral, pois Fanon inicia a autocrítica e Cabral termina com as ideias independentistas, ou entre Nkrumah, que assinalou o grande desafio pós-independência, e Mazrui, que representa a nova geração em termos de profissionalismo e de busca por resposta às diversas frustrações. Outra manifestação de uma mudança é a crítica a algumas das ideias marcantes do período anterior. Dentre as mais importantes, podem ser citadas: a crítica ao socialismo africano, substituído pelo ‘afromarxismo’ e a crítica à négritude (Devés-Váldes, 2008, p. 140).

Fanon e Kwame Nkrumah são considerados por Devés-Valdés (2008, p. 141) como intelectuais que inauguram as análises do pós-independência: o primeiro, com sua análise da atuação desastrosa da burguesia nacional africana; o segundo, introduzindo a noção de neocolonialismo. Em setembro de 1956, no I Congresso de Escritores e Artistas Negros em Paris, Fanon palestra sobre racismo e cultura, posteriormente tendo o texto, em que baseou sua fala, sido publicado na revista Présence Africaine, de junho-novembro do mesmo ano. Fanon lançava, na sua época, questões bastante pertinentes aos dias de hoje como a análise do cinema e da literatura e as manifestações de racismo. Para ele, seria preciso 216

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“procurar incansavelmente as repercussões do racismo em todos os níveis de sociabilidade” (Fanon, 1980, p. 38), mas embora o colonialismo impusesse uma política cultural. Ela não era capaz de destruir totalmente a cultura do povo colonizado: Esta cultura, outrora viva e aberta ao futuro, fecha-se, aprisionada no estatuto colonial, estrangulada pela canga da opressão. Presente e simultaneamente mumificada, depõe contra seus membros. Com efeito, define-os sem apelo. A mumificação cultural leva a uma mumificação do pensamento individual... (Fanon, 1980, p. 38).

É nesta cultura “mumificada” pelo colonialismo que irrompem vozes dissonantes de intelectuais nativos. Muitos deles intelectuais formados na metrópole, indivíduos fendidos culturalmente, obtendo uma autonomia cultural devido ao lugar onde se encontram, um lugar de certa forma privilegiado intelectualmente: o chamado não lugar. A africanidade do pensamento de Fanon se manifesta no arcabouço conceitual que ele utiliza e conhecer alguns de seus conceitos fundamentais ajuda-nos a julgar se ainda são válidos para além da África: para o Brasil e outras partes do mundo outrora colonizado. A arquitetura do método qualitativo interdisciplinar de Fanon é sustentando por pilares teóricos de um referencial conceitual criado e usado para inquirir, compreender e explicitar os fenômenos da violência, do racismo e da alienação colonial. Alguns conceitos da clínica psiquiátrica são trespassados pelo arcabouço conceitual das ciências humanas, o quantitativo se torna qualitativo a todo o momento, e Fanon, superando a ontogenia e a filogenia, propõe uma sociogenia para a compreen­ são da psicopatologia do racismo. Mesmo os conceitos clássicos das ciências humanas são rear­ticulados, deixando esta marca de originalidade e de pioneirismo representada pelo intelectual que uniu reflexão teórica e ação revolucionária, numa experiência vivificada na práxis da 217

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ação política. Vamos analisar alguns dos conceitos mais marcantes na obra de Fanon, conceitos que poderiam ser adaptados para o estudo da sociedade brasileira. Escolhi os seguintes conceitos para representar um pouco do potencial teórico-metodológico do pensamento fanoniano, focando sua obra Pele negra, máscaras brancas (2008): epidermização, esquema corporal e esquema epidérmico racial, alienação, estrutura econômico-psicológica, negrofobia, catharsis coletiva, repartição racial da culpa e linguagem. Fanon focaliza, em sua obra Pele negra, máscaras brancas, a questão da psicologia colonial, mas em nenhum momento deixa de fazer ligações entre aspectos psicológicos e os socioeconômicos, criando neste sentido o conceito de epidermização: (...) A análise que empreendemos é psicológica. No entanto, permanece evidente que desalienação do negro implica uma súbita tomada de consciência das realidades econômicas e sociais. Só há complexo de inferioridade após um duplo processo: – inicialmente econômico; – em seguida, pela interiorização, ou melhor, epidermização dessa inferioridade (Fanon, 2008, p. 28).

A epidermização é um processo violento cuja vítima do racismo introjeta na sua consciência toda a inferioridade ideologicamente construída o que acaba penetrando na mente e também no corpo do negro. É o momento em que um esquema corporal é tomado por um esquema epidérmico racial que leva a uma despersonalização do indivíduo, o chamado embranquecimento estético-cultural. Fruto do colonialismo e do racismo colonial, a epidermização, ou internalização do racismo no oprimido, se rear­ ticula no mundo neocolonial e continua se reproduzindo através da mídia e da educação. Sua origem econômica e social se fortalece e retroalimenta na psicologia coletiva, adentrando também no inconsciente coletivo, que para Fanon é a cultura irrefletida.

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O conceito de epidermização está ligado com o clássico conceito de alienação, aqui no sentido de estranhamento, de estar fora-de-si. A alienação colonial cria uma identidade fraturada, uma condição que Fanon acredita ser psicopatológica, uma anulação do eu perante o outro por parte do colonizado e uma construção de um eu superior perante a aniquilação do outro, do negro, do indígena. Como leitor de Hegel, Fanon utiliza o conceito de alienação, mas o rearticula diante da particularidade dos fenômenos que se propôs a analisar. Alienação engloba a noção de externalização e de estranhamento, tanto em Hegel, como em Marx. A diferença é que para Marx a mediação efetivada pelo trabalho, a externalização na produção humana através da práxis, produzia estranhamento no trabalhador, sendo uma ontologia do ser social calcada na historicidade. Já para o idealismo hegeliano era uma questão de externalização e estranhamento do espírito absoluto. Fanon dialoga com os clássicos europeus, mas precisa criar novas ferramentas conceituais, assim ele forja o seu método original. Por exemplo, para Fanon a metáfora de infra e superestrutura idealizada por Marx, embasa um conceito de estrutura econômico-psicológica. Nesta totalidade concreta, Fanon centra a sua análise, aproveitando-se de seus estudos específicos na área de psiquiatria e na filosofia. Se, por um lado, a psicopatologia do racismo afeta diretamente o negro, levando ao processo de internalização epidérmica do racismo, introjetando a suposta inferioridade ideologicamente construída no colonialismo e rearticulada no pós-colonialismo, por outro, se manifesta no caso dos brancos, em seu caso extremo de racismo, no que Fanon chamou de negrofobia. É um medo irracional, paralógico, uma fobia que tem fundamentos e origem na sexualidade, segundo a compreensão fanoniana influenciada por Freud. Fanon (2008, p. 138-145) analisa como se constrói o mito biologizante do negro: o corpo do negro e a sexualidade do negro são vistos como selvagens, superiores à potência sexual do branco. O judeu representa uma ameaça intelectual, o negro uma 219

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ameaça biológica-sexual. Fanon se pergunta por que o judeu é esterilizado ou morto em massa e por que o negro é castrado e linchado. No negro, o símbolo fálico, o pênis, é atacado, é aniquilado, numa espécie de vingança sexual, como ocorria nos Estados Unidos até meados do século XX. A mídia, hoje, é um fenômeno farto para análise da erotização-espetacular do corpo do negro e da negra seja na teledramaturgia ou na publicidade e propaganda. O título da novela A cor do pecado já é um sintoma de que a mídia ainda reproduz o estereótipo do negro sexualizado e com uma virilidade selvagem e da mulher negra como objeto sexual do neosinhozinho. Tendo Jean-Paul Sartre estudado magistralmente o problema do antissemitismo, vejamos o que se passa com a negrofobia. Esta fobia se situa no plano instintual, biológico. Indo às últimas consequências, diríamos que através do seu corpo, o preto atrapalha o esquema postural do branco, e isto, naturalmente, quando surge no momento fenomênico do branco... (Fanon, 2008, p. 140)

Neste momento, Fanon recorda o conceito de imago através da “noção lacaniana de estágio de espelho” e chega à conclusão que o verdadeiro outro, a verdadeira alteridade do branco é o negro e vice-versa (Fanon, 2008, p. 141). Esta construção mítica, com raízes inconscientes que leva à negrofobia é trazida à tona através do método de Fanon, cuja influência freudiana aparece com toda força: Qualquer aquisição intelectual exige uma perda do potencial sexual. O branco civilizado conserva a nostalgia irracional de épocas extraordinárias de permissividade sexual, cenas orgiásticas, estupros não sancionados, incestos não reprimidos. Estas fantasias, em certo sentido, respondem ao conceito de instinto vital de Freud. Projetando suas intenções no preto, o branco se comporta ‘como se’ o preto as tivesse realmente. Quando se trata do judeu, o problema é nítido: desconfia-se dele, pois ele quer possuir as riquezas

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ou se instalar nos postos de comando. O preto é fixado no genital, ou pelo menos aí fixado. Dois domínios: o intelectual e o sexual (Fanon, 2008, p. 143).

Dentro ainda do plano das pulsões sexuais e agressivas, Fanon começa sua análise quanto ao processo de canalização destes impulsos numa sociedade racista, através do conceito de catharsis coletiva. Toda sociedade deve construir canais de apaziguamento destas energias instintivas e inconscientes. Mas quando o racismo perpassa as relações entre os sujeitos desta sociedade, temos um fenômeno importantíssimo, a racialização da catarse coletiva. Quanto a este conceito, Fanon explica que (...) Em toda sociedade, em toda coletividade, existe, deve existir um canal, uma porta de saída, através do qual as energias acumuladas sob forma de agressividade, possam ser liberadas. É a isso que tendem os jogos nas instituições para crianças, os psicodramas nas terapias coletivas e, de modo mais genérico, os revistas ilustradas para os jovens, – cada tipo de sociedade exigindo, naturalmente, uma forma de catarse determinada. As histórias de Tarzan, dos exploradores de doze anos, de Mickey e todos os jornais ilustrados tendem a um verdadeiro desafogo da agressividade coletiva. São jornais escritos pelos brancos, destinados a crianças brancas. (...) E o lobo, o diabo, o gênio do mal, o mal, o selvagem são sempre representados por um preto ou um índio, e como há sempre identificação com o vencedor, o menino preto torna-se explorador, aventureiro, missionário ‘que corre o risco de ser comido pelos pretos malvados’, tão facilmente quanto o jovem Branco (Fanon, 2008, p. 130-131).

Necessária para a reprodução metabólica do sistema, para a canalização das energias destrutivas e agressivas, em uma sociedade racista, a catarse coletiva acaba reforçando o processo de epidermização, criando e reproduzindo estereótipos que ligam o negro ao mal, ao perverso e ao diabo. Mas é muito fardo para o homem branco carregar sozinho, toda a culpa do racismo na

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sociedade. No filme Crash – no limite, de 2004, vemos como o racismo impregna uma sociedade politicamente correta na aparência como a estadunidense, o ódio étnico-racial mútuo, dentro de uma hierarquia racial da estrutura econômico-psicológica. Em Pele negra, máscaras brancas aparece, também, o conceito de repartição racial da culpa: (...) O francês não gosta do judeu, que não gosta do árabe, que não gosta do preto (...) Ao árabe se diz ‘se vocês estão pobres é porque o judeu vos enrolou, tomou tudo de vocês’. Ao judeu se diz: ‘vocês não estão em pé de igualdade com os árabes, porque, na verdade vocês são brancos e têm Bergson e Einstein’. Ao preto se diz: ‘vocês são os melhores soldados do império francês, os árabes se consideram superiores a vocês, mas eles estão enganados’. Aliás, não é verdade, não se diz nada ao preto, não se tem nada a lhe dizer, o soldado senegalês é um infante, o bom-infante-do-seu-capitão, o valente que só-sabe-receber-ordens (...). O branco, incapaz de enfrentar todas as reinvindicações, se livra das responsabilidades. Eu denomino isso de repartição racial da culpa (Fanon, 2008, p. 98).

A partir desta citação, podemos começar a traçar algumas linhas gerais sobre as relações complexas em uma sociedade racista, buscando inclusive compreender os ódios interétnicos, os fenômenos de ataques violentos a estrangeiros vizinhos em países da África, o racismo árabe perante o negro e toda uma totalidade de relações, ligações e contradições que perpassam as esferas da sociedade, principalmente quando está em jogo o acesso ao mercado de trabalho. O estudo de Fanon, mergulhando na psiquê do oprimido e do opressor, cabe tanto ao maniqueísmo racial na época colonial, quanto também pode embasar uma análise desta repartição da culpa racial no Brasil, dentro dos quadros da ideologia de democracia racial. Para Fanon (2008, p. 33) a questão da linguagem é fundamental, pois “falar é estar em condições de empregar certa sinta-

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xe, possuir a morfologia de tal ou qual língua, mas é sobretudo assumir uma cultura, suportar o peso de uma civilização”. O colonizado ao adotar a língua do colonizador, internaliza parte do mundo cultural daquele, as palavras estão impregnadas deste mundo cultural, inclusive de elementos raciais. Fanon analisa fenômenos da linguagem no seu método que rompe com as fronteiras das ciências humanas e da psiquiatria, principalmente de como o colonizado ao adotar a língua metropolitana, no caso o francês, acaba por adentrar em uma encruzilhada de possibilidades: aprender a língua do colonizador buscando fugir de seu estigma de falar a língua inadequadamente, europeizando-se culturalmente, ou melhor, como diria Fanon, embranquecendo-se; ou ser eternamente desprezado por falar creole ou petit-nègre. Apesar de analisar especificamente o caso das Antilhas, os estudos de Fanon na área de linguagem e colonização são hoje base obrigatória para estudos culturais e pós-coloniais. Os estudos sobre racismo e linguagem ainda estão engatinhando no Brasil, Fanon pode servir de partida para fortalecer pesquisas nesta área tão necessária para a sociedade brasileira. Em seu apelo final na obra que escreveu antes de morrer aos 36 anos, Fanon, visivelmente emocionado, pede aos intelectuais engajados na luta anticolonial que criem algo novo e não sejam meros repetidores do pensamento europeu metropolitano: Não percamos tempo com litanias estéreis ou mimetismos nauseabundos. Deixemos essa Europa que não cessa de falar do homem enquanto o massacra por toda a parte onde o encontra, em todas as esquinas de suas próprias ruas, em todas as esquinas do mundo. (...) Decidamos não imitar a Europa; retesemos nossos músculos e nossos cérebros em uma direção nova. Tratemos de inventar o homem total que a Europa foi incapaz de fazer triunfar. Há dois séculos, uma antiga colônia europeia resolveu alcançar a Europa. E tal foi o seu êxito que os Estados Unidos da América se converteram num monstro, em que as taras, as doenças e a inumanidade da Europa atingiram dimensões espantosas.

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Camaradas, nós não temos outro trabalho a fazer do que criar uma terceira Europa? (Fanon, 1968, p. 271 -273).

É esta voz que reverbera na história e que nos clama para a produção de uma nova concepção de humanismo, longe do pseudouniversalismo europeu, longe do mimetismo que mecanicamente transpõe teorias de intelectuais europeus para o outrora mundo colonizado.

A influência de Fanon nas Américas Até o assassinato de Martin Luther King, em 4 de abril de 1968, em Memphis, havia uma concepção de resistência não violenta e uma proposta de integração do negro no american way of life. Concomitantemente, surgiam ideologias como a dos black muslins, com correntes totalmente antibrancas, pregando a segregação perante o demônio branco. Malcolm X, em sua primeira fase, sustenta o discurso antibranco, mas após sua visita a Meca, torna-se “El Hajj”, Malik AL Shabbaz (nome islâmico de Malcolm) e compreende que é possível a convivência das diferentes raças, fruto do impacto hierofânico de participar do movimento em volta da Caaba. Malcolm X começa a se aproximar do terceiro-mundismo, inclusive recebendo Fidel Castro no famoso encontro do Hotel Thereza, no Harlem, em 1960. O black power estadunidense recebe influências de W. E. B. Du Bois, Marcus Garvey, dos caribenhos Aimé Césaire e de Frantz Fanon, tendo crescido exponencialmente as teses de autodefesa, de contraviolência do colonizado expostas por Fanon e Malcolm X, polos antitéticos das teses de não violência e resistência pacífica, apesar do segundo reconhecer a importância histórica de Martin Luther King. Devés-Valdés (2008), na sua produção de cartografias e genealogias do pensamento africano sul-saariano, também contempla os pensadores afrodiaspóricos, e na busca das influências intelectuais do movimento black power nos Estados Unidos, o 224

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nome de Fanon aparece sempre como um nome cabal para o movimento negro, nas décadas de 1960 e 1970. Este fluxo intelec­ tual, muitas vezes, parte do Caribe e Estados Unidos, chegando à África e voltando às Américas. Nas conexões deste mundo atlântico, vemos que Fanon foi a síntese do intelectual fendido por uma educação metropolitana e por uma vivência como alteridade, como colonizado. O Poder Negro se manifestava e organizava através de homens e mulheres como Stokely Carmichael, Huey P. Newton, Bobby Seale, Angela Davis e Eldrige e Kathleen Cleaver. O primeiro foi a voz e o criador da expressão Black Power; nascido em 1941 em Trinidad y Tobago, com 9 anos foi morar no Bronx, em New York. Os outros foram fundadores e membros do Partido Pantera Negra para Autodefesa, tendo Angela Davis ingressado no Partido Comunista. O pensador guianense, Walter Rodney, ainda segundo Devés-Valdés (2008, p. 222) também recebe a influência de Fanon, que por sua vez, é conectado com a Négritude de Césaire e Senghor. Com a emergência dos estudos pós-coloniais pelo palestino Edward Said, pelo indo-britânico Homi Bhabha, dos estudos subalternos na Índia e descoloniais na América Latina, vemos que o nome de Fanon é um dos pilares da crítica ao eurocentrismo e a despersonalização do outro, empreendida em plena globalização e descentramentos das identidades, como diria o jamaicano Stuart Hall. Na América Latina, diversos autores, dentre os quais Enrique Dussel, Edgard Lander e Walter Mignolo buscam fortalecer um contraponto descolonial aos estudos culturais e pós-coloniais que se limitam apenas a desconstruir e criticar sem produzir uma epistemologia alternativa. Estes intelectuais fazem parte do Grupo Modernidad/Colonialiad, e, no final dos anos 1990, radicalizaram as perspectivas pós-coloniais e subalternas rompendo com elas (Balestrin, 2013). Dussel (2005), por exemplo, critica o eurocentrismo e propõe uma análise da modernidade como produto da interação do eu europeu com o outro, o 225

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indígena. Denuncia a modernidade como autonarrativa de superioridade que classifica e justifica o colonialismo e vê no mito da modernidade uma ladainha teleológica que cria uma história linear e evolutiva que tem a Europa como síntese final. Mignolo (apud Balestrin, 2013) explicita as diferenças entre produção intelectual de seu grupo e a dos pós-coloniais. Colonialidade e descolonialidade introduzem uma fratura entre a pós-modernidade e a pós-colonialidade como projetos no meio do caminho entre o pensamento pós-moderno francês de Michel Foucault, Jacques Lacan e Jacques Derrida e quem é reconhecido como a base do cânone pós-colonial: Edward Said, Gayatri Spivak e Hommi Bhabba. A descolonialidade – em contrapartida – arranca de outras fontes. Desde a marca descolonial implícita na Nueva Crónica y Buen Gobierno, de Guamán Poma de Ayala; no tratado político de Ottobah Cugoano; no ativismo e crítica descolonial de Mahatma Ghandi; na fratura do marxismo em seu encontro com o legado colonial nos Andes, no trabalho de José Carlos Mariátegui; na política radical, o giro epistemológico de Amílcar Cabral, Aimé Césaire, Frantz Fanon, Rigoberta Menchú, Gloria Anzaldúa, entre outros.

Esta extensa citação é extremamente importante para conectar os caminhos percorridos pelo pensamento de Fanon nas Américas, já que ele mesmo nasceu no Caribe, e ver que há uma disputa dentro dos desdobramentos intelectuais onde Fanon é evocado. Vimos que o pensamento de Fanon, apesar de singrar por um extenso mar de possibilidades, parte de uma centralidade africana nas suas análises, onde deixou de ser apenas um teórico, mas um agente prático da revolução argelina. Mergulhou na práxis com todas suas possibilidades criadoras em termos teóricos e foi o pioneiro nas análises do pós-independência. O estudo de Fanon faz-se necessário no Brasil do século XXI (Faustino, 2013): em seus aspectos culturais de epidermização racista, explorados

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em Pele negra, máscaras brancas; em seus aspectos sobre violência, configuração de classes e papel da burguesia subserviente do neocolonialismo, em Os condenados da terra. Para os que estudam a história da África e da diáspora, o instrumental teórico-metodológico e as interpretações de Fanon são de grande valia, assim como para os que buscam compreender a violenta e racista sociedade brasileira atual.

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Fontes populares do discurso revolucionário de Amílcar Cabral José Carlos Gomes dos Anjos

As fontes epistêmicas dos discursos emancipatórios das lideranças políticas dos processos nacionalistas africanos, geralmente, são buscadas em textos eruditos de filosofias ocidentais. Assim, é comum que se pergunte se Amílcar Cabral era ou não um marxista ou se teria sido influenciado e o quanto pelo pensamento de Franz Fanon que, por sua vez, teria sofrido influências do existencialismo, da fenomenologia, do marxismo e da psicanálise. Por um lado, entre os estudos antropológicos sobre dimensões da cultura popular crioula e as explorações historiográficas do processo de descolonização do arquipélago até aqui se tem estabelecido poucas pontes. Pelo fato de terem sido poucas as incursões analíticas sobre as relações entre cosmopolíticas populares e o processo de descolonização, as versões nacionalistas dos países africanos tendem a ser largamente elitistas, como se tivesse sido intelectualmente nutrido exclusivamente por uma pequena elite escolarizada. Por outro lado, de modo geral as discussões teórico-metodológicas visando objetivar mediações entre elites revolucionárias e pensamentos subalternos são áridas e as grandes teorias têm sido pouco operacionalizáveis nas análises de processos localizados de mediação em recortes espaciais e temporais estritos.1 1

Penso, aqui, particularmente na problemática fecundidade heurística do conceito de hibridismo (Bhabha, 1998) e na paradoxal impotência em que Spivak (1988) joga a subalternidade quando entra em diálogo tenso com o pós-estruturalismo sobre as possibilidades da representação subalterna.

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Este texto explora o quanto os escritos programáticos de Amílcar Cabral podem ser inseridos na extensão de uma formação discursiva própria ao interior da ilha de Santiago. Sigo aqui orientações que, grosso modo, poderiam ser chamadas de arqueo­ lógicas no sentido conferido por Foucault (1995) ao tipo de investigação que busca regularidades enunciativas como campo de forças de emergência de objetos, enquadramentos conceituais e lugares estratégicos de enunciação. Exploro as modalidades em que Cabral, sobretudo em seus discursos dirigidos às tropas em guerrilha, recorre a ditados, máximas e adágios populares buscando expor um a priori histórico de um popular discurso insurgente. O eixo principal de argumentação na primeira seção do artigo é o de Cabral que precisou romper com uma literatura intelectual cabo-verdiana que das décadas de 1950 a 1960 constituiu um imponente lugar de enunciação que é o de um sujeito lírico bloqueado e cindido. É contra esse boqueio que irrompe a utilização da literatura oral popular por Amílcar Cabral. Na segunda parte do texto, busco analisar as relações entre uma literatura revolucionária descolonial e uma filosofia popular crioula encarnada nas finason, gênero literário oral do interior da ilha de Santiago. Por fim, analiso lugares estratégicos de enunciação conformados pelos discursos revolucionários das décadas de 1960 e 1970, a modelação dos conceitos e os objetos construídos ao longo da obra militante do fundador do Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC), no modo como foram tornados possíveis pelo deslocamento que uma literatura oral popular impõe ao marxismo.

Intelectuais bloqueados Não se poderia entender corretamente as profundas rupturas que os textos de Amílcar Cabral promovem, em relação aos discursos intelectuais que lhe são contemporâneos, sem se

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analisar as condições sociais de possibilidade da produção literária cabo-verdiana das décadas de 1950 e 1960. Por sua vez, a reconstrução do espaço estratégico do discurso intelectual cabo-verdiano requer uma retomada das relações entre raças e escrituras no arquipélago, o que só poderei traçar em largas pinceladas. Tendo como pano de fundo uma literatura que indica que Cabo Verde se constituiu como uma sociedade sem raças, mas com a persistência de um racialismo como concepção de mundo, aqui buscarei apenas ressaltar o papel da escolarização na manutenção de hierarquizações acreditadas como biológicas, mesmo na impossibilidade de demarcações fenotípicas incisivas no arquipélago. A filha de Amílcar Cabral, a historiadora Iva Cabral, foi quem analisou de forma mais detalhada até agora, como o processo de transplante de uma fração da nobreza portuguesa no século XV inscreveu de forma persistente uma concepção racial de mundo que perdura mesmo com o desaparecimento do segmento nativo fenotipicamente branco. A demonstração realmente instigante é a de como uma elite “endógena”, filha da anterior (nobreza portuguesa), cujos membros se chamavam a si mesmos “brancos da terra” irão dominar as ilhas de Santiago e Fogo (Cabral, 2014, p. 24). O afastamento, gradativo (século XVII), dos europeus – que, desde o povoamento, compunham a elite dos ‘homens honrados brancos’ – das posições que antes ocupavam na ilha, irá reestruturar a sociedade santiaguense, transformando-a numa sociedade onde a posição econômico-social de topo equivalerá ao branqueamento da pele. E é por isso mesmo que a elite da segunda metade do século XVII e século XVIII – cujos precursores foram, entre outros, os nossos conhecidos Diogo Homem da Costa e André Alvares de Almada – se apelidará de ‘branca da terra’. Essa designação será posta em causa e satirizada pelos reinóis representantes do rei na ilha (Cabral, 2014, p. 180).

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Negros e mulatos deixados no arquipélago no lugar de antigos senhores brancos aprenderam, sobretudo em Santiago, que ascender socialmente é se embranquecer (Cohen, 1989; Anjos, 2002). Esse embranquecimento só pode ser experimentado numa trama biopolítica que descarta a pureza racial embora implique releituras de traços de fenótipos à medida da mobilidade ascendente e dos posicionamentos na geopolítica colonial. Em Cabo Verde, pretos que ascendem socialmente se transformam em pretos ou mestiços de traços de fenótipo e de caráter realçados como “finos”, portanto, percebidos como quase brancos. Nesse sentido, pode se falar de um racismo sem uma concepção essencializada de raça. Em compensação, o arquipélago configura, até pelo menos boa parte do século XX numa polarização geográfica largamente racializada entre a ilha de Santiago, tida como a mais negra, e as restantes ilhas, em que supostamente a mestiçagem teria sido mais intensa, portanto, ilhas menos negras. O povoamento do arquipélago teve início no século XV pela maior ilha do arquipélago e nela permaneceram maiores contingentes de descendentes de escravizados trazidos da costa africana. Mesmo tendo sido precoce e intenso o cruzamento sexual entre senhores de terras brancos e escravas e, mais tarde, camponesas negras, a mestiçagem não atingiu, nessa ilha, a proporção genocida que foi possível nos povoamentos posteriores das demais ilhas. Desde o século XVII, a colonização portuguesa buscou sistematicamente, até pelo menos metade do século XX, asfixiar os “brancos da terra” da ilha de Santiago, de suas pretensões raciais. Demasiado escuros, insolentes e economicamente decadentes, no início do século XX, já só podiam se reproduzir em posições dominantes por via da escolarização. O golpe mortal para as pretensões dessa elite terratenente foi não instalar o estabelecimento de ensino secundário na ilha mais povoada e onde se localizava a capital. Deslocou-se um liceu para várias outras ilhas do arquipélago antes de se ter um na capital. Da ilha Brava, a São Nicolau onde se 232

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estabelece o seminário-liceu, em 1866, até se estabelecer definitivamente em São Vicente, a escolarização secundária tornou-se para os badios – como são designados os nativos de Santiago – sempre distante e onerosa. Apenas em 1955, foi criada a primeira Seção Liceal, com o 1º e 2º ciclos, na ilha de Santiago. Para escapar à carreira negativa ou estagnada, numa província sem recursos de enriquecimento rápido, a escolarização tornou-se um dispositivo decisivo de mobilidade social, consequentemente racial. A asfixia da elite de Santiago refez o sistema de distinções raciais sob as estratégias de distinção pela escolarização. Na primeira metade do século XX, a população cabo-verdiana se dividia entre uma pequena elite de escolarizados e uma grande massa sem acesso à escola. Dentre os escolarizados, a divisão entre o primário e o secundário podia ser estabelecida como oposição entre dois estados do ser colonizado. Embora em Cabo Verde não se tivesse estabelecido a distinção entre assimilados e indígenas, os princípios de divisão impostos pela escolarização determinavam de forma decisiva as expectativas de mobilidade ascendentes no universo do império português por onde os cabo-verdianos passaram a circular de forma cada vez mais intensa em múltiplas funções de intermediação colonial, sobretudo a partir dos anos 1960. Os poucos estudantes que puderam sair da ilha de Santiago para estudar no liceu ao norte do arquipélago, em Mindelo, encontraram naquela ilha dispositivos mais consolidados de “civilização” do colonizado visando a sua completa ocidentalização (Castro-Gomez, 2005, p. 83). Para os oriundos da ilha de Santiago, as dificuldades econômicas para se manterem em Mindelo se acrescia o peso do estigma associado à ilha mais negra do arquipélago. É nesse ambiente de problemática escolarização de santiaguenses que Cabral se escolariza graças a incomensuráveis esforços da mãe que teve de se deslocar com outros dois filhos para trabalhar numa fábrica de costuras em Mindelo (Sousa, 2013, p. 92). 233

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Da ilha de Santiago saíram para Mindelo, ao longo da década de 1950, um punhado de secundaristas que vivenciaram, naquela cidade em efervescência intelectual, uma modalidade peculiar da dupla consciência, essa que se instala na reivindicação de uma cabo-verdianidade inclusiva e a percepção de um gradiente geopolítico de raça, uma espécie de racismo sem uma clara fronteira de fenótipos e que precisa de outros marcadores como a origem geográfica e a variante linguística. Aqueles em melhor situação econômica e/ou desempenho escolar seguiram para uma formação superior na metrópole e serão esses badios, os intelectuais cabo-verdianos que irão enfatizar de forma mais duradoura a africanidade do arquipélago, quais sejam, Amílcar Cabral, Manuel Duarte, Feliberto Vieira (Kaoberdiano Dambará), Leitão da Graça. Os anos de 1960 estão marcados pela chegada às universidades metropolitanas de uma pequena leva de colonizados beneficiados pela expansão do sistema educacional superior que chega timidamente aos nativos das colônias portuguesas em África. Se seguirmos Bourdieu (2007, p. 95-161) no modo com descreveu a desclassificação pela inflação de diplomas e que alimentou uma crítica feroz ao sistema educacional e contribuiu para a eclosão do amplo movimento de contestação estudantil de 1968, entendemos, em parte, a incorporação de discursos de contestação pelos estudantes do império português. Com a desvalorização relativa dos títulos escolares que acompanhou a massificação do ensino, os intelectuais da África lusófona se viram no ambiente de decepção da “geração enganada” que explode nas universidades europeias da segunda metade da década de 1960. A primeira elite intelectual africana que pode se pensar em Lisboa como grupo, partilha na metrópole de um ambiente de frustração dos jovens metropolitanos das camadas médias diante das falsas promessas do sistema de ensino superior. Outra dimensão importante para os estudantes cabo-verdianos é a desclassificação racial com a chegada à metrópole e o 234

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seus efeitos de deslocamentos de identidades. São os filhos de famílias cabo-verdianas com recursos para reconvertem capitais fundiários e sociais em percursos de ascensão escolar e que passam a aportar timidamente nas universidades portuguesas, nas décadas de 1950 e 1960, atônitos diante de um “racismo com raças” na metrópole. Aquilo que, sob a nomenclatura sociológica de Bourdieu, poder-se-ia chamar de experiência de histeresis e que eclode como perplexidade e depois como revolta intelectual diante do inesperado fato de uma inesperada eclosão de “raça” e do racismo. Não há, para essa elite superiormente escolarizada, nos inícios da década de 1960, um desinvestimento tão brutal quanto no anterior sistema que dividia indígenas e metropolitanos como universos infranqueáveis. Contudo, desprovidos de capitais simbólicos, sobretudo o racial, para fazerem render em pleno o reconhecimento de seus diplomas, nas décadas de 50 e 60 do século XX, os intelectuais oriundos das províncias africanas são levados a investirem insatisfações profissionais em sentidos de emancipação descolonizadora. É nesse ambiente que os intelectuais africanos lusófonos são iniciados, primeiro no marxismo e depois, no pan-africanismo (Sousa, 2013, p. 97). A promessa traída do sistema de ensino que provoca a aproximação, apesar das diferenças, entre brancos filhos de burgueses e os filhos das províncias ultramarinas que chegam à formação superior, cria o rescaldo cultural em que marxismo e pan-africanismo conferem o sentido das disputas e das diferenças a toda uma geração que empurra o império português na dissolução de abril de 1974. O império colonial português em África tornou-se para a minoria de escolarizados cabo-verdianos, nas décadas de 1950 e 1960, um espaço em que as indefinições e deslocamentos de identidades raciais permitem um constante reajuste entre diplomas e cargos em conformidade com as disposições herdadas e as aspirações permitidas pelo racismo. Mais próximos dos brancos, 235

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sempre que possível, muitos negros quando inseridos nas lutas clandestinas de libertação das colônias, os intelectuais cabo-verdianos só podiam jogar na literatura a carência de sentido de suas carreiras presas no futuro indeterminado.

Sujeitos ilhados: as poesias das décadas de 1950 e 1960 Não se pode situar bem os discursos militantes de Amílcar Cabral sem se reconstituir o campo discursivo cabo-verdiano contra o qual essa peça de guerra insurge. Cabral precisou destruir um sujeito poético cindido para fazer emergir um devir guerreiro negro em seus escritos políticos. Se tomarmos como uma regularidade enunciativa a emergência de um sujeito cindido entre horizonte moderno e um bloqueio existencial diante do modo de dar-se de uma crioulitude ilhada, as poesias de Amílcar Cabral das décadas de 1940 e 1950 se encaixam bem na configuração estética do sujeito cindido e bloqueado. Tomemos, por exemplo, um poema de Amílcar Cabral de 1945: Ilha: teus montes e teus vales não sentiram passar os tempos e ficaram no mundo dos teus sonhos – os sonhos dos teus filhos – a clamar aos ventos que passam, e às aves que voam, livres, as tuas ânsias! Ilha: colina sem fim de terra vermelha – terra dura – rochas escarpadas tapando os horizontes, mas aos quatro ventos prendendo as nossas ânsias!

A poesia, assinada por Cabral, do Liceu de Mindelo e anos seguintes, no modo de assinalar uma terra bloqueada e bloqueadora, esculpe o sujeito que enuncia num dar-se cindido, com ânsias modernas e que simultaneamente ainda não é plenamente 236

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cosmopolita. Em outras circunstâncias, caberia nesse ponto, análises mais extensas sobre a relação entre o interior da ilha de Santiago da adolescência e a rápida passagem de Cabral do sujeito cindido ao sujeito em metamorfose guerreira. Gostaria de argumentar que a adolescência de Cabral no interior da ilha de Santiago em todo o seu estofo cultural impregnado de uma poesia oral campesina – a finason – feita de máximas forjadas na trama de lutas contra secas e contra implacáveis senhores de terras foi de fundamental importância ao despoletar de outra prática de sujeito. A realização dos estudos secundários, em Mindelo, colocou diretamente Cabral diante dos estereótipos racistas internalizados pelos escolarizados da cidade do norte do arquipélago. Ele podia, naquela cidade, ter encarnado a figura de uma negritude rejeitada tanto pelo fenótipo mais escuro e carregado de marcas faciais percebidas como africanas como na variante da língua cabo-verdiana falada pelos habitantes da ilha de Santiago. Embora não se tenha estudado em minúcia a passagem de Cabral por Mindelo, minhas entrevistas com contemporâneos santiaguenses de Cabral, nomeadamente Leitão da Graça, que passaram pela mesma ilha, testemunham um racismo velado sofrido pelos que vinham da ilha supostamente mais negra. A contraposição entre a negritude do interior da ilha de Santiago e a mestiçagem das demais ilhas foi largamente forjada pela elevada elite constituída em torno do polo escolar de Mindelo ao longo do século XX. A partir da década de 1950, há um esforço dos poetas nucleados no norte do arquipélago para constituírem pontes entre a poética popular e a literatura erudita. Mas esse esforço foi se estilhaçando sistematicamente na impossibilidade de se percorrer as intensidades identitárias negras do arquipélago. O resultado é a celebração poética de um lugar de sujeito dilacerado, que não se reconhece nem como branco nem como negro. As secas e a calamitosa mortandade são os cenários 237

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de fundo, paisagens de um sujeito em dissolução numa poesia de catástrofe. Eu. Depois ninguém me acuse de ter sido misterioso... Apenas guardei comigo a calma verde da terra e certa repetição das madrugadas sem sono... A encenação poética de um sujeito inquieto numa ânsia por um verde e uma calma que não coincide com a aridez da existência colonizada no arquipélago cristaliza o protótipo do eu poético das décadas de 1950 e 1960. Uma autoapresentação de um sujeito que promete uma alteridade interior que não se realiza. Se poderia aqui contrapor, com mais densidade do que o espaço me permite, as poesias dos intelectuais nucleados em Mindelo à poesia que irrompe do interior da ilha de Santiago nas penas dos poucos que têm o acesso ao secundário em Mindelo. É o caso de Felisberto Vieira que escreve sob o pseudônimo Kaoberdiano Dambará (1964). Sob esse pseudônimo, Felisberto Viera se insurge contra toda a sua geração de escritores desde os Claridosos, cometendo a ‘indignidade’ de colar o sujeito lírico à terra e ao povo negro. ‘Peli ta barsa osso/pa morê pertado na labada; ami ê tchon di kaoberdi: nha corpo ê si tera (...)’.

Sob o crioulo pesado do interior da ilha de Santiago, Dambará pontua intensidades afetivas da terra e faz insurgir uma subjetivação calcada no povo em emergência como o evento. O esforço aqui é insistir na questão já formulada por Amílcar Cabral em A arma da teoria: “como se operou tão profunda transformação na poesia de Cabo Verde”? Os poetas, agora, são homens comuns que caminham de mãos dadas com o povo, e de pés fincados na terra. Cabo Verde não é o sonhado jardim hesperitano, mas, sim, o ‘arquipélago’ e o ‘ambiente’, onde as árvores morrem de sede, os homens de fome – e a esperança nunca morre. O mar já

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não tem sereias e as ondas não beijam a praia. O mar é a estrada da libertação e da saudade, e o marulhar das vagas é a tentação constante. (...) A voz do Poeta, agora, é a voz da própria terra, do próprio povo, da própria realidade cabo-verdiana (Cabral, 2013, p. 28).

Por exemplo, em Dambará, é a poesia que se faz a intensidade afetiva da pele descarnada, colada aos ossos de uma terra calcinada. O lugar de enunciação se apresenta como o chão da terra cabo-verdiana porque o poeta faz vibrar a enunciação como afecção a ponto de dissolver o sujeito poético. Trata-se de outra cena poética, que não aquela, por exemplo, que, sob a pena de Mário Fonseca, o mais negrófilo dos poetas do norte do arquipélago, dilacera o sujeito poético entre um presente esmagado e um revoltoso porvir. Estilhaçado no tempo, o sujeito fissurado investe uma potência que será apenas plenamente no futuro: Quando a vida nascer... Quando a vida nascer rasgarei as grades rasgarei os açaimes enterrarei a dor, gritarei bem alto a minha sede de viver... QUANDO A VIDA NASCER... Aqui, soterrado no fim do mundo. prisioneiro do destino e do mar

Trata-se, aqui, de práticas de escritura em um sujeito híbrido, em parte ainda mestiço mas que já carrega uma silenciada negritude ainda por vir. A essência apenas prometida é um sujeito lírico adiado. No gesto de se anunciar, renega-se o sujeito de uma identidade estabilizada. Trata-se, aqui, da experiência de um eu fissurado, que não comete a “indignidade” de falar em nome dos subalternos, mas projeta essa potência no futuro. Do rasgão de um eu dolorosamente aberto e dividido emerge a promessa de uma vontade emancipatória.

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Para contrastar, poder-se-ia sentir como a metamorfose do radicalismo pequeno-burguês em ação revolucionária encontra a sua expressão literária na poesia de Kaoberdiano Dambará e sua expressão militar nos discursos de guerra de Amílcar Cabral, sobretudos os discursos para as tropas, nas matas da guerrilha dos anos de 1960. Mesmo quando Dambará se projeta no futuro é para continuar intensivamente colado à negritude da terra, da floresta, da noite. Nessa afirmação de um presente de revoltas, nessa poesia, não há desbloqueio futuro, mas a espera da repetição na ressurreição: Noite escura, mistério na floresta O mar roncando tormentas As feras gemendo... Ao longe o batuque vibrando o chão: O galo não cantou ainda... Nesta noite escura de mistério Em que nos fala a alma da nossa gente Mãe, eu venho jurar no teu regaço... Eu quero morrer aos teus pés Pobre, escuro, negro Para que a minha alma ressuscite Na floresta do tormento...2

Busco, em seguida, argumentar que é o espaço de possibilidades enunciativas proporcionado pelo arcabouço epistêmico da literatura oral popular que torna possível tanto a ruptura literária de Dambará quanto o discurso militante de Amílcar Cabral.

Comparação de conversas Em Cabo Verde, o período imediatamente pós-colonial trouxe um conjunto de políticas culturais de resgate e constituição de patrimônios populares. A política de busca de autenticidade nacionalista

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Tradução para o português por Andrade (1997).

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que favorece práticas arquivistas populistas possibilitou a compilação do que se entendeu como patrimônio cultural popular. Dentre um conjunto de ações de constituição de arquivos populares, destaca-se o modo como adágios foram compilados nos anos 1980, com esmero, pelo linguista Tomé Varela. Mas não se procede ao congelamento de enunciados em ato sem se provocar um deslocamento, pela escrita, em relação ao uso ordinário das máximas. No mínimo, como assinala Rancière (2007) ocorre no deslizamento do oral ao escrito, a saída de uma comunidade encarnada pela voz viva do decla­mante para uma comunidade que não corresponde a nenhum corpo pré-constituído, esse quase corpo que é simultaneamente constitutivo do espaço democrático e do espaço criativo literário. Como Comparação de Conversas, Varela reúne um conjunto de máximas da literatura oral popular. A catalogação obedece a princípios de proximidade que cria um efeito de composição, algo próximo do que Badiou (2002, p. 25) chama de configuração artística.3 Quantas modalidades de composição de mundo se insinuam no arquivo? Nesta exploração inicial, gostaria de destacar um pragmatismo4 popular muito incrustado à particularidade do modo como a sociedade cabo-verdiana é inventada como modernidade periférica. Esse pragmatismo aparece em estado concentrado nas compilações de Varela, que reconfiguram, pela escritura, a arte das finasons: Póbri na dimanda ku branku é sima garafa na mei di pédra. [Pobres em disputas com brancos é como uma garrafa em meio a pedras.]

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“É uma sequência identificável, iniciada por um acontecimento, composta de um complexo virtualmente infinito de obras, que nos permite dizer que ela produz, na estrita imanência à arte que está em questão, uma verdade dessa arte, uma verdade-arte” (Badiou, 2002, p. 25). Penso o pragmatismo popular próximo da definição que Stengers atribui a William James, no sentido do procedimento epistemológico que consiste na verificação de um saber pela constatação do conjunto das diferenças que é capaz de produzir (Stengers, 1995).

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Póbri na dimanda ku branku é sima porku na dimanda farélu. [Pobres demandando justiça a brancos é como porcos demandando farelo].

Num mesmo quadro das compilações de Varela, se pode encontrar um adágio utilizado por Kaoberdiano Dambará e outro utilizado por Amílcar Cabral. “Pedras e garrafas não brincam juntas” ou em crioulo “Pédra ka ta djuga ku garafa”. No mesmo quadro, composto por Varela, de proximidades enunciativas de máximas, pode-se encontrar a máxima já utilizada por Cabral: “Nha bóka ka sta la”. Nos dois casos, os enunciados ganham, na utilização, o sentido da ação de denunciar no estado de sítio de uma guerra clandestina; são dimensões de uma vontade em marcha. Não é coincidência que nas variações de ditados sobre as correlações de força entre pedras e garrafas apareça a correlação entre brancos e pobres (pretos). Numa variante típica de um contexto rural colonial, o signo da subalternidade pode ser o contraste entre a dureza de ovos e pedras. “Ka ta djugadu óbu ku pédra”. Do mesmo modo que não se joga ovos contra pedras, não se pode não dramatizar o pleito legal de um pobre contra ricos. “Póbri na dimanda ku riku é sima garafa na mei di pédra”. Na oposição entre brancos e pretos, a denúncia da assimetria já aponta para outras estratégias que não o pleito em justiça e nem a postura mendicante do porco pedindo farelo. A constatação compele à ação subversiva. O enunciado disparado por Cabral para conter o oportunismo no partido está sob a mesma pragmática. “Nha bóka ka sta la”. No modo como Cabral ilustra o fenômeno não há no enunciado nenhum convite à prudência. Com a expressão se configura a prudência como uma entidade moral a combater. Pode-se seguir Varela no modo como sequencia um conjunto de variantes populares da máxima em torno da prudência ao falar.

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Lumi ki ka kema-u, ka bu sopra. [Não apague o fogo que não te queima]. Bóka ki ta pô pé na kaminhu. [É a tua boca que te pode colocar a correr]. Bóka ki ta nbarka pé. [A boca embarca o pé]. Lingua k’é lémi di korpu. [A língua é quem conduz o corpo. Galinha ki ta garbata, ta kontra ku osu sigentis grandi. De tanto esgravatar a galinha encontra os ossos dos antepassados]. Obi, bu kala. [Oiça e cale-se]. Nha bóka ka sta la. [Não tenho nada a ver com isso].

Quando Cabral usa essa última expressão o sentido que se lhe cola ao acontecimento não se estende numa regularidade prudente. Trata-se de um mundo da guerra de libertação nacional em que indisciplina e o oportunismo pequeno-burguês ameaçam o movimento. Contra o oportunismo individualista pequeno-burguês, o enunciado solta-se do corpus de regularidades previdenciais e se instala como uma denúncia, peça da sabedoria popular que sonda atos, prescreve e corrige. Normalmente, não se consulta manuais de ditados populares nem para agir nem para citá-los em meio às conversas corriqueiras. Os adágios vêm aos acontecimentos e se instalam como recurso suplementar de memória para a dotação de sentido. No caso de Cabral, os adágios não se instalam sem deixar um rastro ontológico que confere à máxima o lugar de signo pleno para os quais os conceitos marxistas funcionam como significantes vazios. O conjunto das providências enunciadas como máximas não se articula como uma teoria, no máximo sonda possibili­ dades de ação sobre uma realidade áspera, indiciando princípios de constituição de uma vontade prudente. Sobre esse fundo de um pragmatismo prudente, realizações inesperadas são possíveis, desde que devidamente sondados os obstáculos. É este princípio epistemológico de combinação peculiar de pragmatismo e voluntarismo que pretendo encontrar nos textos de Amílcar Cabral. 243

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O modo pinçado como, tanto Cabral quanto Dambará, usam os adágios populares poderia ser aproximado à forma como Stengers e Pignarre (2005) propõem que se pense as “receitas” para o empoderamento. Uma receita não deriva de uma teoria geral que a legitima. Uma receita é experimental, no sentido de que vale na medida em que é eficaz. Os adágios populares não são em si mesmos conservadores ou progressistas, não se dão jamais de maneira boa ou má, racional ou irracional, são enunciados e podem ser usados como pharmaka, estas coisas perigosas que requerem uma arte da dosagem. Em lugar das grandes contraposições entre o bem e o mal, a verdade e a falsidade, a arte da dosagem obriga, ao contrário, a encontrar o efeito local de uma experimentação para um problema específico. Propõem, na sequência da arte grega, Stengers e Pignarre (2005), uma nova relação entre práticas científicas e práticas não científicas que poderia também iluminar a relação entre adágios populares e o marxismo em Cabral. A ontologia subjacente à operação de Cabral faz colar o aparecer ao ser sob a articulação da vontade humana, pequena burguesia e povo, terra e revolucionários, partido e revolução. De tanto ser compelido a parecer, o sujeito se faz ser numa gesta que é tanto vontade humana quanto autoria impessoal do acontecimento. Na mesma gesta, o acontecimento funde e cinde, conforma as circunstâncias de um impulso em metamorfose. Nesse quadro, é impossível se discernir o que é da vontade humana daquilo que a conjunção de eventos encaminha como passível de sentido. Reivindicados para o prosseguir das ações, adágios em ato dispensam a oposição entre práticas discursivas e não discursivas. Coladas aos gestos, as máximas articulam evento em evento como sentido gestualizado, palavras empunhadas.

O pragmatismo de Amílcar Cabral Que efeitos poderia se produzir do encontro entre um sistema de sabedoria popular e uma modalidade de ciência da histó-

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ria numa situação de guerra nacionalista? Que deslocamentos o sistema de pensamentos populares poderia impor à filosofia da história marxista? Três dimensões epistemológicas dos discursos de Cabral são fundamentais para que se entenda as deformações que a sabedoria popular opera em seu discurso de origem marxista. Cabral tem uma formação técnica em agronomia e a sua apropriação do discurso marxista é largamente indisciplinada e demasiadamente urgente para os detalhes das oposições entre as diferentes doxas. Trata-se de uma apropriação profundamente impregnada pela episteme5 do interior da ilha de Santiago. Sugiro, a partir da análise das comparason di konbersu (Varela, 1988), que a episteme do interior da ilha de Santiago opera por uma intensa metaforização de conceitos que lhe são externos ao universo corriqueiro. Essa operação torna os conceitos flexíveis ao contexto sociocultural da ilha e intrinsecamente pragmáticos porque articulados a uma rede de analogias que emana de acontecimentos próximos. Essa modulação de conceitos externos à rede corriqueira torna possível uma intervenção que cria fissuras na prefiguração marxista, intervenção sensível na linguagem que recusa atitudes meramente contemplativas. Como a “terra” é reconstituída enquanto realidade entre realidades? Da realidade do camarada Manuel Mandigna, à realidade da nossa terra, à realidade da África Ocidental, à reali­ dade da África, à realidade do mundo, há muitas realidades entre essas realidades. Cabral parte do ponto presente próximo, a complexidade dividida do camarada Manuel Mandigna com quem é necessário compor a unidade. De plano em plano, a realidade vai sendo composta a partir da complexidade desse entorno inicial que são as interações que preparam a luta de libertação nacional.

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Refere-se aqui às “condições de possibilidade do que se pode pensar, conhecer e dizer em um momento histórico determinado, além da forma possível de um determinado fazer e da própria existência de alguns fazeres” (Stengers, 1995, p. 37).

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Esse tipo de exercício epistêmico é levado ao limite por Cabral, quando se apropria e deforma o conceito de centralismo democrático para chegar à noção de democracia cooperativa. É assim que conceitos como forças produtivas, lutas de classe, modos de produção, cultura, pequena burguesia, massas, tribos operam num quadro de pensamento que tritura a parte essencial do sentido original e faz a palavra ecoar quase vazia em redes de analogias que visam produzir um pragmatismo urgente. A mesma operação pode ser encontrada na metáfora do suicídio pequeno-burguês que opera sob os interstícios da concepção de Gramsci do intelectual orgânico. O sentido dos enunciados sobre a possibilidade do engajamento pequeno-burguês deriva do conjunto das circunstâncias em que os militantes são convocados pelas exigências da guerra a uma responsabilidade histórica. “Nha boka ka sta lá” é o enunciado que opera a rasura enquanto o reflexo de um retorno sobre um ponto de tensão: a possibilidade de eclosão do intelectual orgânico. A terceira dimensão epistemológica, a se ter presente quando perspectivamos Cabral no quadro de uma crioulidade, é o tipo de voluntarismo com que opera. Inexoravelmente pragmático, Cabral não opera muito longe de um recorte urgente da dimensão do presente e numa operação de geopolítica que assume uma perspectiva autocentrada. A dimensão pragmática dessa epistemologia política esclarece a situação de humilhação colonial que se expressa num brio pequeno-burguês que busca o reconhecimento. Por exemplo, uma parte da pequena burguesia poderia aderir à luta de libertação, não essencialmente porque as suas condições materiais de vida estivessem prejudicadas, mas porque estavam, pelos colonialistas, ultrajadas em seus brios. A luta como golpe de brio confere sentido inusitado ao acontecimento histórico provendo-o de um além das determinações materiais. Cabral antecipa esquemas analíticos de origem marxistas que procedem a uma tardia “guinada moral” (Honneth, 2011; Fraser, 2001), nomeadamente quando sugere que 246

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a consciência revolucionária, quando eclode na pequena burguesia, “revela em certa medida, que se a libertação nacional é essencialmente um problema político, as condições de seu de­sen­volvimento imprimem-lhe algumas características que são do âmbito da moral” (Cabral, 2013, p. 255). A partir da construção de um si mesmo – um povo, sua terra e a sua cultura – a urgência é participar da história como protagonista ativo. A combinação de uma perspectiva simultanea­ mente pragmática e um realismo não isento de dimensões cientificistas, perspectivismo conscientemente autocentrado e um voluntarismo obsessivo constituiem-se como dimensões de uma máquina de operar o pensamento naquilo que se apresenta e choca como a “realidade”. Cabral quase nunca divaga além de um presente dimensionado na escala dos enfrentamentos mais decisivos. O suporte para uma compreensão mais acabada do pragmatismo presente na obra de Cabral requer uma etnografia minuciosa que faria saltar a epistemologia política do interior da ilha de Santiago. Nessa epistemologia política, a vontade humana não é exterior à realidade a ser encarada em toda a sua dureza. Ela é parte interna do real a ser decodificado; a parte solta do real pela qual o imprevisível e o improvável podem se instaurar. É esse voluntarismo que torna possível a Cabral pensar a liberdade como a possibilidade de uma independência total em relação à dominação colonial. Pensar pela própria cabeça, assumir o controle de sua própria história, são os imperativos que só um sujeito dotado de uma vontade intempestiva pode erguer contra forças que em princípio, realisticamente, lhe são superiores. Na definição do processo de encarnação do brio voluntarista, Cabral procede a partir de uma rigorosa divisão de tarefas: a revolução emana da vontade popular de reconhecimento da identidade cultural, de um imperativo de luta pela sobrevivência material e pelo sentido de participação no processo de desenvolvimento como povo dotado de uma história própria. 247

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Cabe à pequena burguesia competências para a análise científica da situação real. Cabral chama de suicida a essa von­ tade de emancipação que se apropria realisticamente de suas próprias condições de existência e dissolve expectativas de carreira profissional (Cabral exemplifica com a sua própria brilhante carreira de engenheiro agrônomo que parece estranha à pequena burguesia de Bissau no modo como estava sendo arruinada) na urgência da luta popular. As competências técnico-científicas de trajetórias intelectuais pequeno-burguesas, colocadas ao serviço da revolução, devem ser operadas para aprofundar o pragmatismo popular intensificando a dramaticidade dos desafios através de uma compreensão científica do meio humano e material circundante em suas dimensões hostis e em seus recursos potenciais. A pequena burguesia, especialmente tocada em seus brios pela humilhação imposta pelo colonialismo, se faz intelectual orgânica às massas oprimidas. O suicídio como abandono das expectativas de carreira e ascensão social é mais sentido que emana do acontecimento emancipador do que interesse de classe. Ditados populares tal como encarnados nos textos de Cabral funcionam como uma rede de metáforas que se estendem para recobrir o mundo da ação revolucionária de princípios de um senso localizado. É esse princípio de operação de conhecimento que se revela fecundo quando uma situação é tomada como crítica, e a intervenção se faz urgente. Considere-se o princípio da unidade entre a Guiné e Cabo Verde. Na medida em que é necessário à ação revolucionária que pode efetivamente emancipar o arquipélago; na medida em que o arquipélago só pode se emancipar sob a unidade, é a própria unidade que se faz o sujeito para o acontecimento. Cabral prescinde da unidade de um sujeito supra-histórico. Em lugar de um proletariado revolucionário, pensa a possibilidade da unidade de dois povos subalternos, uma resultante dos desafios históricos da resistência ao colonialismo português. Não abdica da possibilidade de que a unidade exista em potência na realidade, mas assume 248

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que se terá de trabalhá-la para que se efetive. A unidade não reside no real tal como em algumas versões da categoria marxista de totalidade; a unidade é uma potência que emana ou é obstruída em acontecimentos cotidianos de resistência. Para reconhecer a multiplicidade como unidade em potência, Cabral metaforiza o balaio de frutas, uma multiplicidade que só se faz unidade na medida em que alguém vem com elas à cabeça para vendê-las. A operação de fabricação de metáforas é a mesma da produção costumeira das máximas populares. Elas funcionam como operação de conhecimento na utilização local, em que se exige um princípio de ação coordenada. A questão é que, quando Amíl­ car Cabral recorre a uma metáfora que emana de um ditado popular local, dá-se uma abertura pragmática. Franqueiam-se os limites de certa leitura determinista do historicismo marxista. Existem múltiplas realidades e muitas coisas entre essas realidades com as quais se pode aprender. A metáfora preferida por Cabral, para rejeitar um realismo transcendental, é aquela de que é dentro da panela que coze o arroz e de que a água da fonte por mais que quente que esteja não consegue cozinhar. A operação de tradução é uma modalidade de intervenção frente às tropas. A realidade dos outros, interpretada pelas teorias dos outros é fogo que queima apenas o lado de fora. Cá dentro, o real impõe testes próprios, o arroz que coze é a realidade que precisa ser testada com os instrumentos cognitivos intrínsecos à luta local. A interpretação que os outros dariam ajuda a entender, mas não detém o princípio de historicidade em jogo para esta realidade que é o acontecimento da luta de libertação “na nossa terra”. Consequentemente, há uma recusa a princípios universais sem uma recusa à necessidade de comparação de realidades e a aprendizagem pela intercessão de princípios de realidade. As partições entre realidade interna e externa permitem pensar a radicalização simultaneamente como resultado de um fator externo, o imperialismo, e como expressão de forças produtivas endógenas. A luta de libertação nacional aparece, assim, 249

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como realidade particular e acontecimento dotado de seu próprio princípio de inteligibilidade. O esquema teórico mais amplo fornece apenas pistas gerais para uma realidade que precisa ser decifrada em seus próprios termos.

A abertura pequeno-burguesa para a emancipação O partido é o princípio do voluntarismo, o seu lugar por excelência de realização, onde os diferentes segmentos colonizados são chamados a “pegar teso”. Quando a tua palhota arde, não adianta tocar o tam-tam”. A realidade local impõe seus próprios testes e as teorias anti-imperialistas com pretensões universalistas alardeiam inutilidades. Cabral na primeira conferência de solidariedade que se realizou em Havana, em 1966, diante do imponente auditório marxista, tinha um leque de problemas-chave: como poderia tornar aceitável que a revolução nacional guineense e cabo-verdiana pudessem ser percebidas uma revolução em direção ao socialismo, quando se tratava de sociedades que não tinham propriamente modos de produção dominantemente capitalistas? Como poderia essa revolução ser conduzida por uma combinação de camponeses, lumpemproletariado e pequeno-burgueses? Como pensar a vontade de emancipação diante das determinações estruturais dos diversos modos de produção na combinação colonial? Tento situar as respostas de Cabral a essas questões em paralelo ao pensamento de Fanon6 , mas que de forma mais desprendida, afirma um dualismo de voluntarismo e determinação da ação pela impessoalidade do acontecer. Pretendi, na seção anterior, demonstrar que esse dualismo é próprio a uma epistemologia política crioula. 6

É inspiradora a leitura que permite à Mbembe partir das mediações da experiência popular do escravismo, colonialismo e racismo como constitutivos de uma africanidade e se situar na contramão das leituras que fundem Fanon nas poderosas correntes filosóficas ocidentais como o marxismo, o existencialismo, a psicanálise (Mbembe, 2011).

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Conclamar a especificidade da luta de libertação nacional, enfatizar a singularidade, portanto, a autonomia regional do acontecimento, e inscrevê-lo nos marcos do discurso materialista histórico é uma forma de reescrita que subverte, deturpa e transforma o quadro analítico marxista em que Cabral tinha sido socializado na clandestinidade. Em lugar das previsões teóricas funcionalistas de um certo marxismo, os ditados funcionam como sondas pragmáticas quando o que está em jogo é um rompante voluntarista, “pegar em armas e lutar”. A recuperação da potência da vontade de emancipação, sob o esboço de um quadro analítico determinista marxista, passa em Cabral pelo deslocamento do nódulo central do motor da história, dos homens para a articulação mão, cérebro, necessidades e coisas, o que chama de forças produtivas. Para recuperar a historicidade de sociedades sem classes antagônicas, como supõe ser o caso da etnia balanta, Cabral desarticula a universalidade das determinações estruturais. É como se as determinações estruturais (pseudo) universais do marxismo passassem a depender do estado das lutas nas regiões, culturas, acontecimentos em especificidade. “A eternidade não é coisa deste mundo, mas o homem sobreviverá às classes e continuará a produzir e a fazer história, porque não pode libertar-se do fardo das suas necessidades, das suas mãos e do seu cérebro, que estão na base do desenvolvimento das forças produtivas” (Cabral, 2013, p. 245). Cabral desenvolve uma concepção descontinuista do desenvolvimento social na periferia da modernidade ocidental. A possibilidade de passagem do subdesenvolvimento para o socialismo, sem o trânsito pelo capitalismo é o desafio teórico que Cabral só se impõe na medida em que pensa com base nas possibilidades de um radicalismo pequeno-burguês. A teoria da história vê-se assim desembaraçada de determinismos e exposta às vontades humanas. Resgatar a agência da aliança anticolonialista de classes sob direção pequeno-burguesa se põe a par do resgate de uma 251

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historicidade anterior a luta de classes. Portanto o desafio de escapar ao determinismo histórico sem “se repugnar” de tomar o modo de produção como motor das transformações históricas se dá aqui por singularização tanto do que se pode entender por modo de produção quanto por transformações históricas. A primazia do acontecimento da luta de libertação nacional sobre a pretensão universalista da teoria marxista não significa aqui prescindir da teoria (revolucionária), mas de situá-la nos marcos da “própria experiência de luta”.

O radicalismo pequeno-burguês Que as etapas de uma história universal possam ser readequadas às realidades locais e que se possa chegar a fases superiores, sem passar pelas etapas pressupostas como intermediárias, significa um desarranjo do esquema historicista marxista, o que traz à espreita uma epistemologia pragmática popular. Cabral atribui às forças produtivas uma primazia sobre a luta de classes o que, paradoxalmente, o permite despoletar a agência enquanto voluntarismo pequeno-burguês. Qualquer que seja o nível atual das suas forças produtivas e da estrutura social que a caracteriza, uma sociedade pode avançar rapidamente, através de etapas definidas e adequadas às realidades concretas locais (históricas e humanas), para uma fase superior de existência. Tal avanço depende das possibilidades concretas de desenvolver as suas forças produtivas e é condicionado principalmente pela natureza do poder político que dirige essa sociedade, quer dizer, pelo tipo de Estado ou, se quisermos, pela natureza da classe ou classes dominantes no seio dessa sociedade (Cabral, 2013, p. 246).

O modo de produção, entendido essencialmente como nível de controle técnico da natureza – forças produtivas – é diretamente articulado aos condicionalismos do poder político, ou seja, da vontade da classe que domina o Estado. Tendo descarta252

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do as exigências de uma leitura da história sob determinações lineares e universais, as máximas da cultura popular funcionam aqui como espécies de sondas na abertura do acontecimento a possibilidades inusitadas. Em lugar das chaves marxistas da história, Cabral tateia o futuro próximo encaixando eventos nas malhas éticas fornecidas pelas máximas populares. Por exemplo, na utilização da máxima, “Nha boka ka sta lá”, é o princípio da irresponsabilidade individualista pequeno-burguesa por excelência que é preciso denunciar e erradicar do seio do partido. Cabral precisa convencer-se de que pode retirar uma uni­ dade de ação de uma heterogeneidade de forças sociais e que essa heterogeneidade pode ser liderada por uma pequena burguesia. Amílcar Cabral reinventou a figura do intelectual orgânico enquanto pequeno-burguês subalternizado pelo racismo colonial que se faz vanguarda político-científica de um nacionalismo radicalizado. A questão do ceticismo em relação ao radicalismo intelectual pequeno-burguês ressentido fica aqui em aberto como um risco próprio à revolução nacionalista. A unidade de diferentes princípios de radicalismo sob um mesmo projeto nacionalista é a base da concepção de partido revolucionário. O radicalismo dos diferentes segmentos populares são historicamente consistentes, porém, localizados, portanto, desprovidos dos princípios de pensamento de unidade para a magnitude do enfretamento. O princípio de análise é o da verificação dos interesses dos diferentes segmentos passíveis de serem despertados para a luta de libertação e a natureza das unidades que, assim, podem ser conformadas diante do desafio da guerra de libertação nacional. Dentre os segmentos com predisposição à radicalização revolucionária, Cabral reconhece numa espécie de lumpemproletariado, que vive na periferia das cidades, que não tem muito a perder e em que o partido pode consolidar as predisposições anticoloniais. Há um modelo de análise que articula cada segmento de classe a um interesse e depois num movimento de zoom, traz à tona as contradições em filigrana. Assim contra253

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dições aparecem como manifestações, não só do conflito de classes, mas também de conflitos intraclasse. Entre os interesses pequeno-burgueses, os interesses são expostos até a expressão mais singularizada. Essa perspectiva poderia ser tomada como uma sociologia de determinações por interesses vinculados à posição na estrutura social à qual se acresce uma ontologia voluntarista. A questão toda é que a determinação da agência pelos interesses fica tão fragilizada que a lógica do sentido que emerge na trama dos acontecimentos impõe-se como definidor das potências da revolução. A questão é tanto mais difícil porque o que Cabral reconhece na categoria pequeno-burguesa é, também, uma multiplici­ dade de forças em dispersão. Não é difícil a Cabral reconhecer vários princípios de contradição no seio da pequena burguesia. Dentre elas, justamente destaca as aspirações carreiristas que fazem sucumbir o princípio da luta por reconhecimento, brio, a realização plena de expectativas culturais e históricas que só se efetivariam como sentido em alianças populares. Mas isso não o impede de distinguir, apesar das contradições no seio do segmento, um potencial de liderança emancipatória. A possibilidade de um radicalismo pequeno-burguês parece ser o diferencial revolucionário das lutas nacionalistas na periferia colonizada pela Europa, particularmente o continente africano. É essa potência que o partido – enquanto multiplicidade de vontades agregadas e unificadas – precisa trabalhar com esmero para que o acontecimento – a revolução – ecloda sob os devidos cuidados. Como dessa estrutura amarrada de interesses e sentidos se poderia vislumbrar um vetor de radicalização das lutas para além da segmentação dos interesses? A inquietação se expressa na desconfiança de que as lideranças nacionalistas pudessem se revelar incapazes de cometer o “suicídio de classe” isto é, de submeter seus próprios interesses à evolução e à expansão das demandas populares. O papel da pequena burguesia como liderança nacio254

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nalista e o uso que poderia vir a fazer do Estado é por onde Cabral explora a interrogação. A integração de diversos interesses de classe, inclusive do lumpemproletariado e de uma pequena burguesia, num processo de radicalização anti-imperialista não é uma obviedade. A metáfora da gravidade, para pensar a tensão da situação colonial, leva Cabral a pensar o mundo como um puxa-empurra de forças em dispersão a que se pode regular apenas de local em local, em horizontes curtos, sondados intensivamente. A luta de libertação é pensada como uma eclosão, um devir histórico trabalhado por uma vontade humana em busca de sentido histórico. É sobre uma tensão permanente entre o devir e a vontade que aparece o partido como o princípio de unificação de uma resistência histórica. É esse princípio de realidade que leva o pensador revolucionário a colocar a história como princípio de leitura da realidade, a disciplina que lhe fornece lucidez à prática revolucionária. Há, assim, uma espécie de regionalização ontológica desde que percebida como enraizada numa temporalidade longa de resistências camponesas na Guiné-Bissau e em Cabo Verde. O imperialismo aparece como violência sobre um curso natural de historicidade a que se pode responder com outra violência que repõe a liberdade de percurso pela própria vontade. Aqui, se poderia contrastar a genealogia da violência do Estado moderno tal como aparece nas aulas de Foucault, de 1978, ao modo como Cabral justifica o recurso à violência. Foucault (2008, p. 351-354) sustenta que a razão de Estado nasce no tempo indefinido de um governo dos homens que visa à estabilidade. A violência, recurso inteligível de uma razão de Estado. Cada coisa tem sua própria essência e é possível dirigir a vontade segundo a essência da coisa; no caso do Estado, a violência lhe é conforme a razão. Em Cabral, a violência revolucionária só eclode quando falha a possibilidade do diálogo com forças imperialistas. Ela é essencialmente antiestatal, uma insurreição popular dirigida pelas armas da teoria porque o imperialismo é contra o curso 255

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natural de desenvolvimento das forças produtivas de um povo. A violência é cifrada como restauração do sentido de uma historicidade interrompida. Impõe-se aqui pensar a história própria de cada povo como uma espécie de desenvolvimento de uma razão intrínseca a cada realidade histórica, geográfica e cultural. O sentido portado pela violência aparece como a reposição da história nos termos de uma realidade própria. Se a violência está, simultaneamente, encarnada em potência em uma realidade local e deve ser despoletada nos marcos de um quadro teórico, então, ela demanda o tempo todo o esclarecimento intelectual, a possibilidade de um julgamento permanente que possa colocá-la a termo tão logo possível. Aqui se requisita a peça fundamental de um vanguardismo revolucionário. A possibilidade de uma frente nacional de unidade e luta emana não da proximidade identitária das forças heterógenas, mas da forma que toma o acontecimento nomeado luta de libertação nacional que por força de uma confluência local de eventos, constitui uma realidade como a “a nossa” realidade e o sujeito de uma vontade de emancipação como um “nós” os colonizados. Esse “nós” torna-se, sob a força da enunciação, uma “ampla frente de unidade e luta”. O voluntarismo que se cristaliza na ideia da necessidade de criação de uma vanguarda da luta de libertação nacional é a outra face de uma determinação das vontades pelo acontecer. Isso é mais ou menos do que uma versão leninista de vanguardismo e o ligeiro deslocamento faz toda a diferença. Em primeiro lugar, porque os desdobramentos não têm mais fiança científica; o cientificismo é restrito ao domínio do diagnóstico e não da previsão da sequência histórica. Em segundo lugar, porque a articulação de forças que constitui a vanguarda é pensada como instável, sendo sempre sujeita a rearticulações. Para essa definição de uma vanguarda se fez indispensável livrar-se da noção de desenvolvimento histórico universal. A vontade de mudança emana menos da subjetividade dos atores, e mais do próprio devir do acontecimento revolucionário que se apodera 256

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e constitui processos singulares de subjetivação. A aliança de classes constitui uma vanguarda não por uma derivação histórica, mas pela vontade que reclama reconhecimento no próprio processo da luta. O voluntarismo que nasce da aliança de forças heterogêneas só pode ser o produto do próprio processo emancipador. O suicídio pequeno-burguês poderia ser assim compreendido como expectativa de um acontecimento incontido nas estruturas das determinações históricas, irrupção de sentido que exala das práticas revolucionárias. É a própria práxis revolucionária que forja o sentido futuro do acontecimento como indecisão entre a continuação neocolonialista ou a ruptura revolucionária. A leitura da história como aberta para o acontecer indeterminado, dá-se como sentido que pode se encarnar nas práticas como vontade, luta do colonizado pequeno-burguês por reconhecimento, carências materiais e culturais do lúmpen e o vazio de sentido do campesinato nativo no esquema colonial português. A ambiguidade do vanguardismo pequeno-burguês não oferece garantias. Cabral está consciente de que é provável que a pequena burguesia seja incapaz de cometer o “suicídio de classe”, no sentido de “submeter-se à evolução e expansão das demandas populares”. É nesse ponto que os aforismos funcionam como sondas, medindo as possibilidades de se passar de uma forma de pensamento a outra, de uma ontologia determinista a uma voluntarista sem que o conjunto se despedace. A permanência do dualismo torna particularmente pensável o segmento pequeno-burguês que faz a mediação da luta de libertação nacional. Se assim for, o dualismo entre determinismo e voluntarismo pode ser tomado como dimensões intrínsecas da ontologia do acontecimento revolucionário.

Considerações finais O que Amílcar Cabral promove é mais do que um deslocamento de uma produção literária dominantemente lírica para

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uma literatura programática de ativismo político-militar. A literatura forjada na militância política escava novos espaços estratégicos de enunciação, o que fica cristalizado também numa poesia que emerge do interior da ilha de Santiago, cristalizada em Kaoberdiano Dambará. Tentei mostrar como essa filosofia popular desbloqueia um sujeito lírico tipicamente modernista das poesias dos intelectuais cabo-verdianos nucleados em Mindelo, nas décadas de 1950 e 1960, e abre as possibilidades para uma ontologia política dualista que enfatiza tanto as determinações estruturais como o voluntarismo, fazendo irromper o sentido do acontecimento revolucionário como força motriz. Não esteve em jogo exaltar a genialidade teórica de Amílcar Cabral diante de um pequeno quebra-cabeça posto pelo encontro do marxismo com uma ontologia popular, mas, sim, perceber como peças de uma cultura popular crioula irrompem no interior de uma estrutura discursiva e quebram uma regularidade para abrir horizontes de pensamento. Sobretudo, quis apostar na ideia de que os ditados populares em Cabo Verde e Bissau funcionam no interior de ontologias que combinam de modo muito particular o pragmatismo e o voluntarismo. Quis ver no modo de funcionamento das metáforas populares crioulas, no interior do esforço para a construção de uma teoria revolucionária, uma modalidade da radicalização pequeno-burguesa que Cabral encarna e nomeia como revolução. O sentido do acontecimento emancipador, que é a luta de libertação nacional, se projeta como um destino: que após o imperialismo cada povo possa seguir a sua própria história, em trocas que se dão para o bem comum da humanidade.

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(Des)caminhos da produção do conhecimento em África: o Codesria na disseminação do conhecimento no contexto da globalização Anselmo Panse Chizenga Frederico Matos Alves Cabral

Desde finais do século XIX, o continente africano constitui entidade de inúmeras investigações. Nos últimos anos, essas e outras investigações em curso têm sido problematizadas na arena dos grandes debates intelectuais na área das humanidades e das ciências sociais. Reflexões teóricas e estudos empíricos, ao questionarem as abordagens nas quais a África aparece como “objeto”, entidade e “sujeito” epistêmico, trazem à tona os conflitos, tensões, crises e mudanças paradigmáticas que se impõem às humanidades no contexto africano questionando o seu papel face às metamorfoses sociais de grande magnitude como as que vivenciamos atualmente, marcadas pelo processo de globalização e o desenvolvimento diante da situação presente que o continente atravessa – extroversão epistemológica. No sentido de compreender mudanças nas diferentes esferas sociais, acadêmicos, pesquisadores e instituições de pesquisa produzem uma vasta literatura calcada por reflexões e estudos empíricos com análises pertinentes. Nesta perspectiva, se destaca o Codesria como um centro de pesquisa de referência continental, que procura agregar, nas suas pesquisas, as transformações em curso e no imaginário sociocultural africano e produzir resultados plausíveis em prol da construção de um ideal pan-africanis-

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(Des)caminhos da produção do conhecimento em Á frica: o Codesria na disseminação do conhecimento no contexto da globalização

ta, de modo a elevar a contribuição econômica, social e cultural do continente, abrindo a possibilidade da sua coparticipação horizontal na nova sociedade de conhecimento. Grosso modo, essas reflexões, ao mesmo tempo que reclamam do lugar das ciências sociais praticadas em África na nova sociedade do conhecimento global e plana, também voltam os seus olhares ao presente e às condições da produção científica existentes no continente. Iniciando com as discussões etnológicas que marcaram a gênese da produção colonial – perceba-se por colonização como época histórica e disposição intelectual –, que constituem fontes incontornáveis no processo de produção de conhecimento sobre a África, refletindo sobre o ecoar dessas gramáticas entre os teóricos africanos, desde os críticos, os críticos dos críticos aos hermenêuticos, o trabalho pretende analisar o papel do Conselho para o Desenvolvimento da Pesquisa em Ciências Sociais em África (Codesria) na disseminação do conhecimento no contexto da globalização, elencando algumas lacunas e desafios.

O genitivo objetivo e subjetivo de “África” nas Ciências Humanas Os debates intelectuais envolvendo a África como “objeto” de enunciação das ciências humanas caracterizaram-se por distintos modos de aparição e produção gramaticais, nos quais os estudiosos buscaram imprimir em seus horizontes históricos, a produção intelectual sobre africanos (genitivo objetivo) e por africanos (genitivo subjetivo). Sobre a aparição paradigmática dos africanos na “história universal”, o filósofo moçambicano Severino Ngoenha (2011) refere que os africanos coparticipam como “objetos” susceptíveis de serem caraterizados como escravos, colonizados, e hoje, globalizados. A maneira de conceber a África como adversa à modernização, pureza selvagem, local de crença e costumes bizarros não só é repartida por alguns teóricos e intelectuais ocidentais,

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mas têm seus partidários africanos que, no interior das suas disciplinas e práticas intelectuais, veneram esse ideal. Para Masolo (1994), esses modos de aparição e produção da África nos discursos acadêmicos consistiram em dois caracteres: o discurso e retórica ocidental sobre a África, e a resposta africana a esse discurso. O primeiro momento pode ser caracterizado como aquele de uma produção exótica da África, consistindo, assim, na negação da condição humana aos africanos. É durante este momento que se dá a “invenção de África”, como objeto do olhar e interpretação alheia. De modo a legitimar essa concepção, as ciências, as humanidades neste caso, foram instrumentos fundamentais na produção e legitimação de gramáticas tendentes a subalternizar, mobilizando um conjunto de variáveis como crença, pensamento, espaço e tipo de ser humano. Podemos destacar tais ideias em autores como Immanuel Kant (1724-1804), Friedrich Hegel (1770-1831), Auguste Comte (1798-1857) e outros pioneiros das ciências humanas. Em sua obra intitulada Observação sobre o sentido do belo, Kant estabelece um conjunto de traços caraterísticos dos povos de diferentes origens e, ao chegar aos africanos, afirma: Os negros da África não possuem, por natureza, nenhum sentimento que se eleve acima do ridículo. O senhor Hume desafia qualquer um a citar um único exemplo em que um negro tenha mostrado talentos, e afirma: dentre os milhões de pretos que foram ‘deportados’ de seus países, não obstante muitos deles terem sido postos em liberdade, não se encontrou um único sequer que apresentasse algo grandioso na arte ou na ciência, ou em qualquer outra aptidão; já entre os brancos, constantemente arrojam-se aqueles que, saídos da plebe mais baixa, adquirem no mundo certo prestígio, por força de dons excelentes. Tão essencial é a diferença entre essas duas raças humanas, que parece ser tão grande em relação às capacidades mentais quanto à diferença de cores. A religião do fetiche, tão difundida entre eles, talvez seja uma espécie de idolatria, que se

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aprofunda tanto no ridículo quanto parece possível à natureza humana. A pluma de um pássaro, o chifre de uma vaca, uma concha, ou qualquer outra coisa ordinária, tão logo seja consagrada por algumas palavras, tornam-se objeto de adoração e invocação nos esconjuros. Os negros são muito vaidosos, mas à sua própria maneira, e tão matraqueadores, que se deve dispersá-los a pauladas (Praxedes, 2008).

A partir deste trecho, podemos ver que, para Kant, as dinâmicas socioculturais no continente africano se resumiam no caráter bizarro dos negros. O mesmo percurso foi trilhado por Hegel, para quem a África era um continente sem história, mercê da inferioridade civilizacional, que levava os seus povos à escravatura. Para ele, o humanismo universalista não era aplicável aos africanos sob o jugo da escravidão. A escravatura teria efeitos benéficos para os negros, constituindo “uma relação jurídica fundamental” na medida em que o próprio negro não tinha consciência de liberdade (Hegel, 1996). Assim como Kant e Hegel, os pais fundadores da sociologia não se eximiram de dar seu contributo nesse manancial teórico. A título de exemplo, Comte, ao se indagar sobre as razões pelas quais a Europa e seus povos constituíram o lugar de desenvolvimento social de uma civilização preponderante, refere que a grandeza está ligada à caraterística peculiar da “raça branca”, estando no aparelho cerebral “alguns germes positivos de sua superioridade”. Na mesma linha, afirma Alexis de Tocqueville (1805-1859) que o homem africano era um ser horrível, com inteligência limitada, razão pela qual era considerado um ser “intermediário entre o animal e o homem”. Já para Max Weber (1864-1920), a aparência do negro constituía um fator de aversão (Praxedes, 2008). Como se observa, no momento anterior, a aparição e produção do discurso sobre a África e africanos figuram como obje266

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to de designação alheia a partir dos pressupostos eurocêntricos e racistas então em voga. Isso não surpreende, tendo em conta as circunstâncias do panorama ideológico e intelectual da época. O evolucionismo e o racismo eram revestidos de caráter científico, e provavelmente, seria uma aberração para estes autores não enunciá-los, pois constituíam teorias e quadros analíticos válidos e avançados, naquele contexto. É também nele que a etnologia surge como uma ciência particular destinada a estudar a dinâmica das sociedades não evoluídas, entre as quais as africanas, consideradas “sociedades presas no tempo”. Perante o clima epistemológico do século XIX, ligado à divisão e delimitação do objeto de estudo das ciências, estas compartilhavam um campus sobre a particularidade e caraterização de grupos humanos. O africano constituía objeto de estudo da Etnologia, pois as sociedades por esta estudada eram definidas pela falta, ausência e antítese à abundância do Ocidente, elas foram caraterizadas por não possuírem “nem história, nem verdade, nem Estado” (Ela, 2013; Ngoenha, 2014). Nesta ordem de ideias, fica aqui patente a imperfeição como categoria africana por excelência. Conforme Engelbert Mveng (1999), essa concepção é o corolário da “pauperização antropológica” ligada à invenção de categorias sociais tendentes à coisificação do outro, com base no estereótipo, localização geográfica e traços socioculturais numa escala hierárquica de valores onde os africanos se encontram em posições hierárquicas inferiores. Portanto, a ciência e a religião serviam para legitimar o ideal expansionista, negando a humanidade ao africano (Asante, 2012). Para Asante, não só a ciência, mas a religião tem a sua parte na produção desses estereótipos. Esta “cimentou que os brancos cometessem maldades contra os africanos. A relação entre o cristianismo e os africanos originou-se na ideia, formulada pelos europeus, segundo a qual os africanos poderiam ser escravizados uma vez que não fossem cristãos” (Asante, 2009, p. 210). 267

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Na tentativa de legitimar o direito evangélico sobre os povos “descobertos”, a religião cristã não estava impedida de usar o que estivesse ao seu alcance para converter os africanos, inclusive através da difusão da ideia da sua inferioridade, de que seu “estado pagão” estaria em conflito com a lei divina. Perante a esta situação, Asante denuncia a cumplicidade entre ciência e religião na difusão da inferiorização e racismo, mas também da manipulação ideológica que os dois exerceram, nos seguintes termos: “a religião concedeu ao homem branco o direito de escravizar o africano, também ditou a sua posição inferior no universo, em virtude de considera-lo sem alma e sem Deus” (Asante, 2009, p. 210-211). Isto também está presente no discurso científico, de modo que religião e ciência convergiam num objetivo comum, a produção de um discurso que legitimou a imagem do africano no genitivo objetivo, ou seja, o africano como ser desprovido de valores, fossem humanos ou religiosos. Para o sociólogo Francês Michael Wieviorka, tal posição tinha como objetivos destruir os que pareciam constituir um obstáculo econômico, político e cultural à progressão do homem branco e dominar os “outros”, que acabaram sendo subordinados em nome da superioridade racial, fossem “populações autóctones (...) ou populações deslocadas no quadro da escravatura” (Wieviorka, 1998, p. 170, apud Chizenga, 2011). Após a discussão anterior da produção acadêmica de matriz eurocentrista, em que a África e os africanos figuram como “objetos” de outro olhar, inicia-se o segundo momento, denominado por Dismas Masolo (1994) como o momento da resposta ou réplica africana ao discurso sobre a África. Este momento é caraterizado como o da construção endógena, em que os próprios africanos procuram assumir as rédeas da produção intelectual, colocando-se, assim, no centro e como sujeitos na enunciação do discurso. Este segundo momento foi marcado pela presença de seis grupos ou tendências divergentes no que respeita ao conteú268

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do semântico/pragmático das suas produções acadêmicas: a diáspora e a vertente política; a escola etnológica; a escola crítica; a escola crítica da crítica; a escola hermenêutica, e a escola autonomista-intersubjetivista. De uma forma sucinta, destacaremos aquilo que foi o principal conteúdo dos três primeiros grupos ou correntes filosóficas sobre a produção do conhecimento em África, principalmente aquelas que tiveram repercussões nas áreas das humanidades e ciências sociais: a diáspora e a vertente política a escola etnológica e a escola crítica. Não obstante a diferença epistemológica substancial entre estas diferentes escolas, grosso modo, pode-se dizer que seus pressupostos convergem na materialização daquilo que Ngoenha (2014) designa de “negação da negação”, isto é, corporificam um conjunto de operações críticas (discursos e ações) mobilizando conceitos, referencial teórico, objeto empírico, e metodologias específicas de modo a afirmar a posição dos africanos na marcha existencial com base em repertórios e experiências vivenciadas que orientam suas cosmovisões. Trata-se, assim, de uma “reinvenção da África”. No que diz respeito à diáspora, ela foi constituída de afrodescendentes e a primeira geração de intelectuais africanos formada nas academias ocidentais, instruídos com base nas teorias etnocêntricas do Ocidente, e empreendeu um esforço no sentido de se emancipar das objeções falaciosas nas quais os negros eram referenciados1, marcando assim o primeiro esforço endógeno. Uma passagem rápida de seus principais teóricos do século XX, nomeadamente os afrodescendentes, cujas reflexões orientaram para uma matriz identitária, para os ideais da négritude e da

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O filósofo ganês Kwasi Wiredu (1931) conta, em uma das suas obras, ter ficado surpreso ao perceber em idade e formação avançada, tempos depois, o significado e o alcance real das teorias em que fora instruído, os termos pejorativos sobre os africanos que predominavam. Daí ele ter começado a dedicar grande parte de suas reflexões para descontruir a concepção que lhe ajudaram a construir sobre si.

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“personalidade africana”,2 em que a “raça” e a suposição de uma origem comum de africanos e afrodescendentes constituíam um elemento de unidade e de mobilização social. Nesta linha, destacam-se figuras como Alexander Krummel (1819-1898), Edward Blynden (1832-1912), Marcus Garvey (1887-1940) e W. E. B. Dubois (1868-1963); e outro grupo de afrodescendentes e intelectuais africanos de primeira geração formados na diáspora, que se ocuparam da questão política: Joseph B. Danquah (1895-1965), Kwame Nkrumah (1909-1972), Léopold Sédar Senghor (1906-2001), Aimé Césaire (1913-2008), Frantz Fanon (1925-1961), Julius Nyerere (1922-1999), dentre outros. Esta linha de pensamento de cunho pan-africano e nacionalista se insere entre os primeiros esforços de uma produção intelectual com referência ao continente africano como horizonte histórico e existencial (Hallen, 2001). Quanto à escola etnológica, a partir da segunda metade do século XX, sobretudo na década de 1970, iniciou-se com diversas produções intelectuais e debates no campo da filosofia, tendo como resultado posições contraditórias e abordagens polêmicas entre seus próprios teóricos. Na época, o debate girava em torno da possibilidade de fazer ciência no contexto africano, e a sua especificidade. O mesmo valia para a área da filosofia, e a questão teórica central dizia respeito à existência e definição da filosofia africana. Na descrição do início da entofilosofia, Ngoma Binda (Binda, 1983, apud Ngoenha, 2014), refere que a publicação, em 1945, da obra La philosophie bantu do missionário belga Placide Tempels (1906-1977) marca a gênese do debate filosófico escrito.3 Nesta obra, o autor procura se contrapor ao etnólogo francês Lucién Lévy-Bruhl, segundo o qual os africanos e outros povos

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Sobre o conceito de “personalidade africana”, ver nesta obra os capítulos 1 e 4. Para uma análise detalhada sobre por que em torno da filosofia africana, mais do que qualquer outra disciplina das ciências humanas veja-se: Appiah (1996), Hountondji (2010), e a monografia científica intitulada “Os desafios da filosofia africana na construção das identidades africanas em Kwame Anthony Appiah”, de Chizenga (2011).

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primitivos seriam pré-lógicos. Para Tempels, a filosofia bantu deve ser percebida como lógica, mas com uma lógica menor, apegada a sua ontologia, com princípios e ideias do homem, das coisas que o circundam, da existência, da vida, da morte e da vivência. Em outras palavras, os negros dispunham de um sistema ontológico elaborado há tempos, mas tal sistema escapa ao pensamento dos bantu. A advertência do autor pode ser verificada no trecho a seguir: Não pretendemos reivindicar que os bantos são capazes de formular um sistema filosófico acabado com um vocabulário adequado. O nosso objetivo é desenvolver e sistematizar esse pensamento. É graças a nossa própria preparação intelectual que ele irá sendo desenvolvido de forma sistemática. Cabe-nos fornecer-lhes um quadro preciso de concepções das entidades de forma a que eles se reconheçam nas nossas palavras e concordem dizendo: Vós percebestes-nos, agora conhecei-nos completamente, ‘conheceis’ da mesma forma que nós conhecemos (Tempels, 2006, p. 17).

Com a obra de Tempels, surge um conjunto de trabalhos científicos – teses, dissertações, artigos, obras, entre outros – de autores africanos com a mesma linhagem ou contestatória, marcando, assim, distintas correntes com eixo de reflexão ou prescrição normativa das formas de produção intelectual africana e seu conteúdo. Dos que optaram na linhagem de Tempels, destaca-se Alexis Kagame (1912-1981), através do seu trabalho La philosophie bantu-rwandaise de l’Etre (A filosofia banto-ruandesa do Ser) (1956), e John Mbiti (1931). Estes referem que a essência da africanidade e da possibilidade da sua cientificidade reside nas suas línguas, tradições, contos, lendas, religião, ou seja, advogam uma ontologia eminentemente africana. Como observa Ngoenha (2014), a perspectiva trilhada pelos partidários de Tempels, suscitou enormes críticas. Para os seus críticos, aqueles autores empreenderam esforços regressivos, pois fazem uma filosofia sem filósofos, ou seja, uma filosofia centrada na 271

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visão coletiva e irrefletida do mundo. Esta é a posição dos intelectuais que formaram a primeira geração da escola crítica, contrapondo-se à perspectiva etnográfica daquilo que designaram por etnofilosofia, entre os quais estão figuras como F. Crahay, Paulin Hountondji, Kwasi Wiredu e Fabien Eboussi Boulaga. Em suas incursões, estes autores questionam o substrato epistemológico duma ontologia africana através do estatuto da oralidade e do pensamento coletivo na produção da ciência. Como pretendia a etnofilosofia, trata-se de saber até que ponto os saberes locais, os contos, as lendas transmitidos oralmente são dignos de um tratamento científico, até que ponto a tradição oral e seus dogmatismos servem na consolidação do saber científico premente na oralidade. O que significa dizer que, para estes autores, não há produção científica onde domina a cultura oral e um horizonte histórico voltado para o passado. Para Ngoenha, esse enunciado pretende demonstrar que os nossos contos morais, as nossas lendas didáticas, os aforismos, os nossos provérbios, aos quais normalmente se faz referência, não exprimem uma investigação (Ngoenha, 2014, p. 98). A partir dessa explanação, podemos ver que a produção científica está longe de ser consensual e conduzir a um unanimismo entre os pesquisadores africanos. Ela está envolta de pluralismos, com contradições, debates e tensões internas. Isto é interessante sob o ponto de vista do debate, mas analisando a agenda e as circunstâncias em que o conhecimento é debatido e produzido constatam-se problemas. Longe de proporem desafios e alternativas teóricas e empíricas novas, os intelectuais africanos tendem a viciar sua produção intelectual com distorções e ficções sobre a África introduzidas pelos teóricos ocidentais e acabam influenciando os próprios cientistas que, nas suas análises, reproduzem as categorias essencializadas, mesmo de forma (in)intencional (Mudimbe, 1988; Appiah, 1996). Segundo Elísio Macamo (1998), as respostas à “invenção de África” acabam sendo, elas mesmas, o arcabouço teórico da pro272

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dução intelectual em que os acadêmicos africanos são levados a assumir responsabilidades intelectuais próprias, num contexto plural, tendo noção das contradições, dos debates internos e das tensões intelectuais que retroalimentam a produção científica no continente. A institucionalização do Codesria constitui um momento de produção científica onde se repensam não só as condições e a problemática da produção científica em África, mas, acima de tudo, como a África tem sido apropriada e produzida nesses estudos. Ademais, a produção científica parece ter alvos e interesses outros que não os dos africanos. A começar pelas revistas nas quais perfilam ou são divulgados os estudos acadêmicos, em idiomas de publicação (nas três principais línguas oficiais: inglês, francês e português) que, no interior dos países do continente são faladas apenas por uma pequena parte da população. Isto tende a reforçar a alienação e exclusão dos africanos, que estão privados de acesso aos resultados das investigações nestas línguas de origem europeia (Hountondji, 2010). Após esta breve contextualização sobre os debates intelectuais envolvendo a África como “objeto” de enunciação das ciências humanas, nos debruçaremos naquilo que é o foco principal de nosso trabalho: a problemática da produção científica na África a partir do Conselho para o Desenvolvimento da Pesquisa em Ciências Sociais em África (Codesria), e o lugar que ela ocupa na nova sociedade do conhecimento.

O Codesria e a produção científica na África O período das independências, nos anos 1960, despertou aquilo que podemos chamar do espírito e garra africana. Essa época não só fez com que a liberdade fosse o caminhar duma “África livre” desejada por todos os movimentos de luta pela descolonização do continente, mas permitiu que houvesse a construção duma verdadeira identidade africana. Camponeses, letrados

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e não letrados traçaram juntos alternativas para definir o percurso do continente no contexto global, liberado que estava da domi­nação colonial. Entretanto, outros desafios foram colocados aos recém-formados Estados africanos, desafios provocados não só pela falta de quadros técnicos para a administração da nova máquina estatal, como também pela influência e controle invisível do poder ocidental no futuro do continente. Esta situação passou a afetar os campos político, social, econômico e cultural. Longe de ser independente, o pensamento intelectual e a produção de conhecimento em África evoluíram durante muito tempo num quadro emprestado e de dominação que colocou constrangimentos sérios ao avanço das próprias ciências sociais no continente (Cardoso, 2011). Apesar de ter conquistado espaço, ao longo do tempo, nas academias africanas e nas próprias sociedades, por meio de conferências, publicações, e nas repostas ativas aos diversos problemas sociais demandados a elas, as ciências sociais em África também enfrentam dificuldades em sua própria identidade, demandando recursos para o seu desenvolvimento na denominada era da globalização ou da localização. Conforme Zygmunt Bauman (1999), hoje o mundo vivência aquilo que é o fenômeno de globalização para alguns, e localização para outros, sinalização de liberdade para alguns, e destino indesejado e cruel para muitos outros. Perante este contraste social, cultural, político e econômico mundial, ao analisarmos a produção do conhecimento na África, constatamos que existe uma discrepância entre a vontade de pesquisar e as condições efetivas em que é feita a pesquisa em centros de investigação científica no continente. Mesmo que a divulgação da produção intelectual tenha aumentado na atualidade devido ao emprego das novas tecnologias informacionais, as condições para o seu desenvolvimento constituem alvo de preocupação, embora representem também para os pesquisadores um grande desafio. As 274

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universidades e centros de investigação são convocados a desempenhar um papel de extrema relevância neste desafio, a fim de disponibilizar, através das suas pequenas instalações, as ferramentas mínimas para pesquisar e criar teorias e metodologias científicas alternativas para as realidades africanas. As ciências sociais na África, na maior parte dos casos, dependem totalmente das Instituições de Ensino Superior (IES) e universidades locais. Muitas, por não disporem de condições mínimas em termos estruturais e recursos financeiros e carecerem de incentivos às pesquisas não conseguem realizar as atividades acadêmicas em perspectiva crítica, em que os sujeitos se vejam como atores das sociedades onde estão inseridos, mas limitam-se a ser espaço de reprodução de ideias e teorias oriundas do Norte. Apesar de demonstrarem um grande esforço, em algumas situações elas encontram-se no mesmo estado dos liceus da época colonial. Segundo o teólogo e sociólogo camaronês Jean Marc Ela (1936-2008), para sair desta situação será preciso proceder a uma avaliação crítica destas instituições, colocando em pauta sua funcionalidade e sua missão: “é necessário proceder a um questionamento dos esquemas conceituais, dos modelos e dos paradigmas que orientam e conduzem a investigação empírica a fim de permitir a interpretação rigorosa das realidades complexas e das mudanças do nosso continente” (Ela, 2012, p. 85). Diante deste desafio, as ciências sociais, juntamente com as demais áreas do conhecimento, precisam lançar novas tarefas do pensamento às inteligências africanas a fim de desenvolver uma capacidade de reflexão sobre os problemas e soluções que as diferenciem daquelas vindas do exterior. Neste sentido, Mogobe Ramose enfatiza que a era da globalização representa um processo de aceleração da hegemonia sociocultural e econômica do Ocidente que difunde o neoliberalismo centrado na difusão da lógica do mercado a custo do respeito da dignidade humana. Para ele, esta nova forma de colonialismo, sustentado pela busca incansá275

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vel da mão de obra barata, conduziu à fragmentação da atividade econômica de um centro para múltiplas periferias: Armada das redes de produção, e impelido apenas pela busca de maior lucro no menor prazo possível, o mercado financeiro procurou abolir as fronteiras entre Estados-nação e obrigar as autoridade soberanas a abdicar ou relaxar o forte controle sobre as suas economias. Esta foi a condição que o mercado financeiro impôs sobre os Estados-nação que desejassem beneficiar dos seus serviços. Assim se estabeleceu, durante as últimas décadas, a desregulação que se juntou a rede como conceito regulador e operador da atividade econômica interna e externa (Ramose, 2010, p. 142-143).

Esse novo espírito de colonialismo dos países desenvolvidos sobre os menos desenvolvidos afeta, principalmente, as nações consideradas frágeis em sua autonomia, com maior dificuldade de reagir diante das determinações internacionais. O novo mundo dito “plano”, através da sua horizontalidade, cria oportuni­ dades de crescimento para alguns e desastres para outros. A começar pelas importações e exportações de matérias-primas, produtos de bens de consumo, culturas políticas e sociais exteriorizadas e interiorizadas nas sociedades, tudo isto afeta negativamente as bases sociais e culturais africanas, mas convém assinalar que, não obstante este quadro, algumas nações do continente estão se destacando nessa nova configuração geopolítica mundial. Da mesma forma, no setor educacional algumas instituições vêm se destacando na produção do conhecimento científico diferenciado, principalmente no campo das humanidades. O maior destaque cabe ao Codesria, que durante décadas vem contribuindo na disseminação do conhecimento intra e intercontinental nas áreas das ciências sociais. Desde a sua fundação, este órgão tem por missão e objetivo desempenhar dois papéis principais para o desenvolvimento do conhecimento científico: primeiro, aprofundar as bases das ciências sociais no sistema do 276

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conhecimento em África e, segundo, promover e divulgar o conhecimento em África e sobre a África (Codesria, 2007). Criado em 1973, a partir da vontade de alguns investigadores em ciências sociais do continente para desenvolver habilidades e instrumentos científicos que promovam a coesão, bem-estar e progresso das sociedades africanas, este apresenta como um dos seus objetivos principais facilitar a publicação e promoção dos resultados de pesquisas multidisciplinares, assim como capacitação de pesquisadores africanos de variado nível, consolidando um programa forte com base em liberdade acadêmica e fóruns de informações entre os pesquisadores (Codesria, 2014). Por ser uma organização pan-africana pioneira e líder no domínio da pesquisa em ciências sociais na África, desempenha uma função fundamental para a promoção do diálogo entre as disciplinas e do pensamento social africano não só dentro do continente, como também em âmbito internacional. De modo a desenvolver o objetivo da sua criação, o Codesria possui quatro eixos fundamentais da sua atividade que são: pesquisa, publicação, conferência e formação. O primeiro eixo pretende permitir aos pesquisadores africanos contribuir na expansão das fronteiras do conhecimento científico, assim como responder aos múltiplos desafios do desenvolvimento das sociedades africanas. Parte-se do princípio de que, somente com a pesquisa, as sociedades sejam capazes de se desenvolver e se projetarem na nova sociedade do conhecimento. Ao final de um relatório elaborado, no início da década de 1990, pelo economista angolano José Gonçalves, a respeito do histórico e evolução da pesquisa em ciências sociais dos cinco países de colonização lusófona, conclui que os especialistas nascidos nestes países já tinham, naquela ocasião, acumulado experiência tanto no plano científico quanto no dos conhecimentos dos problemas específicos de seus respectivos países, e que o passo seguinte deveria ser a busca de condições para a internacionalização da reflexão, debate e pesquisa conjunta: 277

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Desejamos (...) sublinhar a importância que poderão ter a organização de encontros entre especialistas em ciências sociais dos ‘Cinco’, a criação de uma publicação comum regular, a elaboração de estudos pluridisciplinares por país e uma maior abertura aos colóquios, conferências, seminários etc., africanos ou internacionais. O aprofundamento do nosso trabalho e o reforço de sua credibilidade e audiência no continente disso dependem em grande medida (Gonçalves, 1992, p. 61).

Esta perspectiva tem sido adotada, pois segundo Carlos Cardoso (2011), o Departamento de Pesquisa do Codesria recebe anual­ mente em torno de 150 a 200 projetos de investigação submetidos a um concurso para financiamento no quadro das plataformas estabelecidas pela própria instituição. O incentivo visa fomentar as redes de pesquisa comparada, e os Grupos Nacionais e Multinacionais de Trabalho (GNT e GMT). As propostas selecionadas recebem um financiamento para desenvolverem as suas pesquisas. Esta ação marca uma extrema diferença em comparação com os demais institutos de pesquisas, universitários ou não, no continente. Com condições precárias, alguns pesquisadores são obrigados a prestarem consultorias para as entidades não governamentais, de modo a construírem alternativas não só para se subsidiar, assim como para se afirmar como pesquisador. Isto vem sendo questionado e criticado por outros grupos de pesquisadores que põem em dúvida a ética da arte do pesquisar e alegam a venda do produto e da identidade profissional. O segundo eixo, por seu lado, possibilita a divulgação dos resultados de pesquisa e conceitos/temáticas desenvolvidos por meio de redes de instituições de pesquisa ou congressos científicos. Os materiais produzidos neste eixo servem, além disso, como fonte de alimentação das bibliotecas de diversas Instituições de Ensino Superior (IES) e universidades, lembrando que este aspecto acaba sendo uma das dificuldades comuns enfrentados por inúmeras IES africanas (Codesria, 2014).

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O terceiro eixo visa constituir a união e a articulação dos pesquisadores de diferentes regiões do continente. A partir das conferências, representantes da sociedade civil, implementadores das políticas públicas e comunidade científica formam uma plataforma de trocas, debates de ideias e questionamentos a fim de traçarem caminhos possíveis para os fenômenos sociais e naturais do continente e do mundo. Além disso, “servem também de oportunidades para reunir os membros da comunidade que operam no continente com os da diáspora e, por extensão, com membros da comunidade de pesquisa em ciências sociais do mundo, incluindo os da América Latina e Ásia” (Codesria, 2014, p. 1). O último eixo diz respeito ao departamento de formação, bolsas e pequenas subvenções, que por sua vez, organiza anualmente um concurso extremamente concorrido, com mais de 500 candidatos, para atribuição de um prêmio à melhor tese de doutorado, e um outro concurso com vista à atribuição de pequenos subsídios aos jovens investigadores em processo de conclusão das suas teses na ajuda do custo do deslocamento do campo e materiais necessários (Cardoso, 2011, p. 303).

A partir destes eixos, podemos ver que o Codesria pretende não só enraizar no continente uma prática de pesquisa científica de excelência, mas também, contribuir na implementação de programas e políticas públicas demandadas pelas sociedades africanas. Durante os anos 2007-2011, aquele órgão internacional de pesquisa traçou como meta principal do seu plano estratégico “repensar o desenvolvimento africano”. Esse plano estratégico tinha como objetivo principal: catalisar a comunidade de pesquisa social para ultrapassar o impasse nas políticas e teorias de desenvolvimento que tanto tem penalizado a África, e trabalhar com vista a al-

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ternativas que poderão não só consolidar como alargar as ciências sociais enquanto órgão de conhecimento que seja relevante para a compreensão e a transformação dos modos de vida, para melhor (Codesria, 2007, p. 3).

Um dos grandes desafios da Codesria logo após a sua criação foi responder a seguinte pergunta: Como poderiam os pesquisadores sociais africanos ser mobilizados num esforço coletivo de ultrapassar o legado divisionista do colonialismo e, ao fazê-lo, proceder para ocupar lugar decisivo na definição da agenda intelectual, com base na qual a África é estudada e as políticas de ação formuladas? (Codesria, 2007, p. 7).

A construção de redes de pesquisadores africanos, em sua variada forma e caráter social e linguístico, permitiu esse ideal. Hoje, o Conselho possui aquilo que podemos denominar de “plataforma de pesquisadores africanos de ciências sociais”, assim como permite um diálogo intra e intercontinental entre estes pesquisadores. A ideia da construção duma revista científica pan-africana abriu leque para que os cientistas, tanto do norte do continente assim como do sul ou do oeste, conseguissem debater as ideias, elemento outrora quase impossível, que acontecia às vezes fora da própria África. Ou seja, se antes os pesquisadores africanos dialogavam nas mesas de debate de algumas instituições de ensino superior ou de pesquisas no exterior, em conferências internacionais, hoje, eles têm um espaço daquilo que podemos chamar de “laboratório interno”. Lugar este que pode possibilitar um verdadeiro teste das hipóteses ou resultados através de outros pesquisadores ou sujeitos conhecedores do campo social africano. Podemos mencionar, neste caso, as assembleias trienais do Codesria, quando os pesquisadores e pensadores sociais africanos são convidados a debater temas comuns e específicos conforme a agenda intelectual do órgão, temas como: “liberdade acadêmica nas academias africanas; integração africana; repen280

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sar o desenvolvimento; os desafios da África no século XXI e na era da globalização; cultura e corrupção em África; gênero e cidadania em África; reforma do ensino superior”. Não podemos também deixar de mencionar que mesmo com inúmeros esforços, o Conselho não conseguiu ainda se libertar do legado colonial, marcado pela questão linguística, uma vez que as atividades são produzidas e divulgadas em inglês, francês e, em menor proporção, em português. A demarcação do território linguístico através dos idiomas oficiais deixadas pelo colonialismo continua ainda a ser um dos desafios a superar no campo científico africano. Primeira forma de romper com essa barreira consiste em trazer outras línguas tradicionais africanas desenvolvidas gramaticalmente para o centro das publicações. Sabemos que isso pode levantar diversas opiniões, principalmente no que tange ao número do público a ser atingido pelas mesmas, mas também pode significar o espaço da expansão das mesmas, uma vez que as consideradas “línguas oficiais internacionais” também se difundiram através de certo processo de expansão. Ou seja, as pessoas aprendem quando são ensinadas.

Globalização e saberes endógenos africanos Hoje, parece haver um consenso entre os estudiosos de que a contribuição da África para a produção do conhecimento, principalmente nas ciências sociais, está na gênese do seu saber endógeno, outrora excluído no seu passado e presente (Asante, 1988; 2011). Ao longo de muito tempo, uma das questões pujantes é o de saber o que a África tem para contribuir no desenvolvimento das ciências sociais no século XXI e nos demais séculos vindouros! O renomado historiador burquinabense Joseph Ki-Zerbo (19222006) apresenta uma interessante reflexão crítica sobre o quanto se deveria valorizar o fato de que a África é o berço da humanidade, ao afirmar que: “todos os cientistas do mundo admitem

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hoje que o ser humano emergiu na África. Ninguém o contesta, mas muita gente esquece isso. Estou certo de que, se Adão e Eva tivessem aparecido no Texas, ouviríamos falar disso todos os dias na CNN” (Ki-Zerbo, 2009, p. 13). A ciência já comprovou que o continente, antes de conhecer a invasão europeia e islâmica, já tinha contribuído para o desenvolvimento da humanidade. Grandes filósofos, pensadores e pais das disciplinas científicas modernas ocidentais aprenderem no saber endógeno africano, hoje excluído das academias. Estatisticamente, nos relatórios mundiais, a África aparece como um dos continentes fracos em termos da produção acadêmica em ciências sociais. Diante desta espécie de fascismo social de “um regime social e civilizacional” que tende a marginalizar regiões e países inteiros que não cumprem com as condições ditadas pelo capital (Santos 2003), perguntamos: e se a África já deu historicamente a sua contribuição científica e cultural à humanidade? Deveria ela (re)contribuir? Atualmente, algumas IES africanas, perante o cenário da internacionalização do ensino superior, estão adotando políticas de reforma do ensino superior europeia, adotando os pressupostos acadêmicos associados ao que se tem denominado de “processo de Bolonha”.4 Acabam, assim, participando de uma reforma consolidada pelas universidades europeias de modo a poderem competir principalmente com as universidades estadunidenses (Cabral, 2010). Embora contando com a participação de um número significativo de países europeus, a reforma universitária de Bolonha está se expandindo para as universidades 4

A expressão “processo de Bolonha” designa o conjunto de iniciativas inseridas no documento denominado “Declaração de Bolonha”, assinado pelas autoridades de 29 países da União Europeia reunidos na cidade de Bolonha, em 19/6/1999, com a intenção de estabelecer uma reforma universitária pela qual os sistemas de ensino europeus alcançariam certa harmonização e homogeização dos planos educacionais e currículos de seus cursos. Ver: Enjeux et perspectives d’une réforme institutionnelle: les universités africaines face au processus de Bologne (Hamidou Nacuzon Sall). Disponível em: .

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africanas. Para os críticos, sua recepção representa uma (re)colonização das universidades africanas, uma vez que a sua adoção lhes garantem o estatuto financeiro externo. Por outro lado, têm surgido muitas críticas da parte dos próprios estudantes destas universidades, uma vez que não foram consultados sobre as mudanças que estão em curso. Vale a pena lembrar que no início da sua implementação na Europa houve ondas de manifestação de estudantes similares às reivindicações dos estudantes locais africanos. A adoção desta política por algumas universidades africanas nos permite questionar e debater a construção do conhecimento nas academias dos países considerados do Sul, principalmente na África: Para que serve? E para quem serve? Conforme Ki-Zerbo, a globalização é o desenvolvimento lógico do sistema capitalista de produção, no qual, a África tornou-se ainda mais vulnerável. Se você comparar o papel da África com o dos Estados Unidos verá os dois polos da situação na globalização: os globalizadores, que são os Estados Unidos, e os globalizados, que são os africanos. (...) A África, como continente, situa-se mais nesta categoria, porque é uma questão de relação de forças. É a questão de saber se somos sujeitos da história, se estamos aqui para desempenhar um papel na peça de teatro (Ki-Zerbo, 2009, p. 23).

O mesmo autor indica que os próprios africanos não souberam (re)aproveitar a sua contribuição histórica para se projetarem no contexto mundial. Em outros locais, nações excluídas e negligenciadas no passado vêm dando respostas positivas em termos econômicos e culturais para o novo sistema mundial. Na nova reconfiguração geopolítica, muitos daqueles dados como “perdedores” se posicionarem em vantagem em relação aos “vencedores”. A China é o exemplo mais conhecido deste caso. Segundo Mark Leonard, a existência da China criou problema para os

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registros ocidentais sobre a história mundial: “a Bíblia não dizia nada sobre ela, mas de repente o Ocidente descobriu que no Oriente existe essa tal de China: um grande império, com uma longa história e um passado glorioso. Um completo novo mundo acaba de surgir” (Leonard, 2008). Diríamos que esse novo mundo que acabou de surgir veio para deixar agora o seu registro histórico que foi esquecido e excluído da história da humanidade. Da mesma forma, a África poderia recuperar a sua posição se trilhasse o seu caminho através da sua própria vara e não recorrendo a bengalas sem suporte emprestadas a ela. Segundo o filósofo moçambicano, Severino Ngoenha, existe na África o conceito de liberdade pensado inteiramente na linha de identidade dos valores africanos: Libertar-se aqui significa destacar-se do Ocidente, para encontrar a África no seu ser, nas suas fontes espirituais e na sua trajetória histórica. A África com as suas próprias religiões, a sua própria visão da política, da economia, da vida social e da cultura (Ngoenha, 1992, p. 116).

Há muito tempo, a reprodução dos conceitos produzidos no Norte e difundidos na África, transformando-a em “mercado do consumo intelectual”, faz com que haja uma dependência enraizada no pensamento de muitos pesquisadores africanos. Claud Ake chama atenção sobre o papel destes últimos na desconstrução deste paradigma, ao argumentar que o que está em causa é menos o poder político ou econômico e mais uma certa maneira de pensar, e que os cientistas sociais têm um papel central a desempenhar a este respeito: “Enquanto não lutarmos para um desenvolvimento endógeno da ciência e do conhecimento, não podemos emancipar-nos” (Ake, 1986, apud Cardoso, 2011, p. 142). Os desafios precisam ser encarados por todos os africanos em diferentes setores de atuação. Como dizia Severino Ngoenha já há algum tempo, “O tempo dos destinos isolados faz parte do 284

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passado. Nós temos que participar no novo mundo como construtores, e o nosso lugar nesse mundo, depende essencialmente da nossa maior ou menor capacidade de ser coartesãos na sua construção” (Ngoenha, 1992, p. 118). De modo a participar desta construção, nos propormos em não fazer um fechamento ou conclusão sobre a produção do conhecimento em África no campo das ciências sociais, tendo em conta as marchas e contramarchas para este processo. O que podemos mencionar é um grande esforço a partir dos próprios pensadores africanos e da diáspora, na tentativa de procurar o lugar do pensamento social em África e para a África. Os desafios são enormes, mas as conquistas e a possibilidade da existência de um órgão como o Codesria faz valer esse esforço, embora existam ainda caminhos a trilhar.

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A importância capital que o movimento da Négritude teve na valorização das culturas e populações negro-africanas dentro do mundo ocidental é tão inegável quanto são incontornáveis as críticas que a ele se teceram. Surgido e desenvolvido entre intelectuais negros caribenhos e africanos provenientes de ambientes francófonos, a Négritude parece ter herdado a incômoda situação de grande parte dos movimentos intelectuais e literários surgidos modernamente na África: a necessidade de reagir a um agente opressor na “casa” do próprio opressor – sua cultura e, talvez com maior importância, sua língua. De fato, cristalizou-se uma relação quase simbiótica entre a Négritude e a língua francesa, especialmente tendo em conta que o movimento tomou como seu campo de ataque preferencial a poesia, onde uma língua se encontra mais intimamente consigo mesma em seus sentidos, ritmos e tonalidades. Com tal situação, a Négritude não poderia senão ser um movimento polêmico em si mesmo, na própria dinâmica que a anima internamente. Essa polêmica viria a transbordar para fora do movimento em ambientes de debate intelectual, inclusive fora do mundo francófono.

Senghor e a Négritude Em sua obra The Negritude Moment (2011), o crítico nigeriano Abiola Irele nos oferece uma análise profunda e siste-

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mática do movimento em seus aspectos mais variados. Irele nos lembra que, mais que uma dominação econômica e política, o colonialismo prevê uma dominação na própria forma de um povo estruturar sua identidade social e, inclusive, racial e cultural. A essa forma de colonização, a Négritude reagiu com a busca por formular uma nova identidade social, cultural e racial do negro. Irele a enfatiza como, por um lado, fenômeno histórico e movimento cultural; por outro, como uma ideia filosófica. O primeiro se define como uma culminação de diversas reações contra a dominação ocidental e seus impactos sobre os povos negros; a segunda se caracteriza por uma busca por se identificar, predicar e valorizar uma “essência negra”, ou seja, por se descobrir o que é o negro. A importância da Négritude como fenômeno histórico é incontestável; suas postulações filosóficas – encontradas principalmente na obra do poeta senegalês Léopold Sédar Senghor (1906-2001) – são o principal alvo de ataques e críticas, em parte pela premissa altamente discutível dessa empresa: a de que existe uma “essência negra”; em parte, e principalmente, pela forma como foi definida e predicada essa essência. Antes de se examinarem algumas das ideias que informaram a substância filosófica da Négritude, é preciso lembrar que postulações sobre uma essência do negro como um ser algo apartado do resto da humanidade estavam longe de ser algo novo. Páginas e páginas de inquérito antropológico, biométrico, etnológico e psicológico já haviam sido escritas a esse respeito. Talvez a grande novidade da Négritude tenha sido o fato de, pela primeira vez, tais definições terem sido sistematicamente elaboradas por intelectuais que pertenciam à mesma raça que estava sendo definida. Não há dúvida de que os esforços antropológicos e filosóficos para se estudar “o negro” tiveram um sentido mormente derrogatório, em linha com a empresa colonial que acompanharam. No entanto, entre os séculos XIX e XX, alguns autores tiveram sucesso em conter um pouco do escândalo e desprezo 290

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inicialmente provocados pelo que viam como hábitos selvagens e sub-humanos e conseguir ver a lógica presente nestes. A escola antropológica evolucionista, na qual se destacam os nomes de Edward Burnett Tylor com seu Primitive Culture (2012, publicado originalmente em 1871) e James George Frazer com o célebre The Golden Bough (2009, publicado originalmente 1890), embora ainda longe de ver os humanos das assim chamadas culturas primitivas como iguais aos europeus, intuía que, sob seus hábitos e ritos, havia uma lógica idêntica àquela que animou os povos europeus em períodos arcaicos, diminuindo, de certa forma, a distância entre uns e outros. No entanto, a doutrina negritudinista tem seus principais antecedentes em dois autores mais modernos, a saber, o antropólogo francês Lucien Lévy-Bruhl (1857-1939) e o etnólogo e arqueólogo alemão Leo Frobenius (1873-1938). Ambos foram prestigiados e influentes em sua época e hoje suas obras despertam pouco mais que interesse histórico. De resto, não poderiam ser mais diferentes. Lévy-Bruhl era um acadêmico; com formação em filosofia, dedicou a maior parte de sua obra ao estudo do que chamava “a mentalidade primitiva”, ou seja, a mentalidade ou forma de concepção de mundo de povos não europeus, tendo como material de base relatos de viajantes e expedicionários que entraram em contato com tais povos. Em uma prosa austera e lúcida, Lévy-Bruhl afirmou que a percepção de mundo dos povos chamados primitivos se baseia em categorias mentais bastante diferentes das utilizadas pelo homem civilizado; o homem primitivo, segundo o antropólogo, interpreta o mundo a partir de uma série de participações e identidades místicas entre forças invisíveis e o mundo fenomênico, em vez de relações de causalidade entre eventos materiais (Lévy-Bruhl, 1928, 1947). Com tais teorias, Lévy-Bruhl originou uma importante escola de pensamento etnológico, um dos maiores expoentes da qual é o etnólogo Maurice Leenhardt (1876-1954), famoso por seus estudos sobre os canacas da Nova Caledônia. 291

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Frobenius, por sua vez, derivando sem raízes entre os campos da arqueologia e da etnologia, estudou in loco diversas culturas da África negra. Apesar de ter, no final de sua vida, atingido um considerável grau de prestígio acadêmico, sua obra se caracteriza por uma prosa mais feérica e poética que sóbria e científica; suas interpretações e observações sobre os fenômenos que estudou se preenchem de emoção e subjetividade. O resultado foi menos uma teoria etnológica como a de Lévy-Bruhl do que uma filosofia da cultura, segundo a qual esta se desenvolve de forma quase autônoma à medida que um povo é progressivamente surpreendido pelos poderes daemônico-divinos que se insi­ nuam no ambiente circundante. O homem emociona-se diante dos mistérios da flora e, para cultuar suas divindades fitomórficas, desenvolve complexos rituais que mais tarde darão origem à agricultura; da mesma forma, desenvolve a pecuária a partir do culto às divindades teriomórficas que o surpreendem em um segundo momento; e a matemática e a geometria surgem a partir da observação das formas exatas dos astros (Frobenius, 1936). Suas ideias, portanto, se aproximam mais da filosofia romântica alemã do que de qualquer escola de etnologia de sua época, e sua influência se fez sentir em uma gama bastante ampla de autores – dos mitólogos e historiadores Karl Kerenyi (1897-1973), Joseph Campbell (1904-1987) e Johann Huizinga (1872-1945) ao ex­ poente do movimento revolucionário conservador alemão Oswald Spengler (1880-1936). De Lévy-Bruhl, a Négritude herdou sua concepção do homem negro como possuidor de uma lógica distinta da do ocidental, mais atinada ao místico e à comunhão com a natureza que à observação fria e mecânica da realidade. A influência de Leo Frobenius parece um pouco mais complexa. É sabido como as explorações e a revalorização das culturas negro-africanas, que se veem na obra do etnólogo alemão encantaram e estimularam Léopold Sédar Senghor e Aimé Césaire (1913-2008). No entanto, a preponderância que Frobenius dava à emoção na formação da cultura 292

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humana muito provavelmente teve um impacto sobre as teorias de Senghor sobre o homem negro como mais guiado pela emoção que pela razão, especialmente se levamos em conta que as teorias de Frobenius, mesmo que se pretendam generalizáveis para o surgimento de qualquer cultura humana, foram desenvolvidas a partir da observação de culturas africanas negras. Abiola Irele informa que Sartre, o primeiro a ensejar um debate sobre a assim chamada negritude, a define como “o ser-no-mundo do negro” (Irele, 2011, p. 96), apontando para o essencialismo contido nessa definição; essencialismo esse que se faria ainda mais presente e profundo na concepção de Senghor. Em um ensaio chamado O contributo do homem negro (2012, publicado originalmente em 1938), Senghor desenvolve suas concepções da essência do homem negro ou, segundo ele mesmo, a alma negra (Senghor, 2012, p. 74), da qual derivam a personalidade, o estilo, as artes e as instituições negras. Acima de tudo, percebe-se que, para Senghor, a alma negra se mostra em uma indiferenciação entre as instâncias antes apontadas ou, melhor, uma continuidade orgânica entre elas. Em sua essência, o negro não se distingue radicalmente de seu ambiente, mas é parte dele, assim como os ritmos de sua música e as formas de suas artes plásticas surgem organicamente dessa mesma experiência sincrética do mundo de que surgem também suas instituições. Ele não se distingue de sua comunidade, é parte orgânica dela; sua pele é permeável aos dados sensoriais que emanam do mundo e talvez a formulação mais global que se possa tirar das predicações poéticas de Senghor é que, para o negro, não há uma diferenciação entre sujeito e objeto. Como dito antes, é provável que Senghor estivesse ecoando Frobenius quando disse, no mesmo ensaio, que “a emoção é negra, como a razão, helena” (Senghor, 2012, p. 73). Abiola Irele (2011), sobre a definição de Sartre da negritude como “ser-no-mundo do negro”, lembra que, embora esta seja essencialista, a discussão de Sartre se volta para considerar a Négritude em seu momento histórico como um movimento antitéti293

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co a uma tese que surgira entre os dominadores brancos. Em outras palavras, Sartre enfatiza o papel do negro em um movimento revolucionário de contestação de valores ocidentais estabelecidos, dando à Négritude marcados tons políticos e históricos. Senghor segue o caminho contrário. Ainda que não negue o fundamento histórico e sua importância na formação de sua ideologia, o papel dessa situação histórica específica seria mais o de permitir à modernidade a contemplação de uma essência negra que, esta, permanece fora da história, sendo eterna e imutável.

Wole Soyinka e a busca de um mundo africano Depois de Léopold Sedar Senghor, o autor africano de maior notoriedade e influência mundial foi provavelmente o nigeriano Wole Soyinka, escritor iorubá de língua inglesa, dramaturgo e poeta acima de tudo, mas com obra importante nos âmbitos ensaístico e memorialista e autor também de dois romances. Nascido em 1934, em Abeokuta, Nigéria, notabilizou-se como o primeiro autor africano negro a receber o Prêmio Nobel de Literatura (em 1986). Assim como ocorreu com Senghor, sua vida se destacou tanto pelo mérito intelectual e artístico quanto por um forte ativismo político. Em 1952, começava seus estudos de literatura inglesa, grego e história na Universidade de Ibadan para, dois anos depois, seguir para a Universidade de Leeds, onde conhece mais de perto o teatro inglês, tanto clássico quanto moderno, e estuda sob a orientação do influente crítico shakespeariano Wilson J. Knight (1897-1985). Este, a partir de suas investigações sobre a ligação entre tragédia e mito, lhe fornece alguns dos instrumentos que usará para estudar o teatro ritual de seu próprio povo e elaborar suas próprias teorias. Em 1965 e 1967, é preso em seu próprio país por sua posição contrária ao governo militar que então se impunha. Durante sua vida, sua produção intelectual e artística o levaria às mais prestigiosas universidades e mais célebres palcos ao redor do mundo tanto quan-

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to seu ativismo político poria sua vida em risco em mais de um momento. Sua obra é vasta, incluindo peças como A dance of the forests (1960), The road (1965) e Death and the King’s Horseman (1975), os volumes de poemas Idanre and other poems (1968), A shuttle in the crypt (1971), Ogun Abibiman (1976) e as coletâneas de ensaios Myth literature and the African World (1976) e Art, dialogue and outrage (1985), entre tantas outras. Para os estudantes da obra de Soyinka, mesmo iniciantes, sua reação à Négritude é um fato notório e até anedótico. Soyinka destacou-se já no início de sua carreira como o antinegritudinista, tanto em suas opiniões e teorias quanto na visão de África que transparece em suas primeiras obras. Eldred Durosimi Jones, em sua contribuição à obra coletiva Introduction to Nigerian Literature (editada por Bruce King, 1972) aponta que “há nos escritores da Négritude um tipo de veneração pela Mãe África que está ausente na obra de Soyinka” (Jones, 1972, p. 114, tradução minha). O anedótico corre por conta de seu famoso dito de que um tigre não sai por aí proclamando sua tigritude, mas só ataca1, encontrado às vezes em versões alternativas e em diversos livros (admito que não consegui localizar a fonte original dessa citação). No entanto, um comentário de Eldred Jones, no mesmo ensaio, nos deixa perplexos: Soyinka está permanentemente estabelecido como o arquioponente da negritude, quando, na verdade, sua obra exibe tudo o que essencialmente diz respeito à Négritude, menos a gritaria (Jones, 1972, p. 113). Em breve, veremos que Jones não está sozinho em sua avaliação. Antes de examinarmos a complexa teoria de Soyinka e suas relações com a negritude, é importante desenvolvermos uma questão cuja relevância foi enfatizada por Abiola Irele e pelo próprio Soyinka: a considerável diferença entre os intelectuais afri-

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No final de seu ensaio Qu’est-ce que la Négritude?, Senghor responde a essa famosa declaração: “O tigre não fala de sua tigritude porque é uma fera. Mas o homem, ele, fala de sua humanidade porque é homem e pensa” (Senghor, 1977, p. 101).

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canos de formação francesa e os de formação inglesa. Wole Soyinka, em seu ensaio Negritude and the Gods of Equity (2000) explica que a França marcou muito mais fortemente sua presença na educação dos colonizados negros, quer no Caribe francófono, quer na África francófona. Mais do que isso, havia estímulo à interação de um grupo com outro, visto que os franceses frequentemente nomeavam intelectuais e funcionários negros caribenhos para assumirem postos importantes na África francófona; o próprio movimento da Négritude nos mostra esse fato, já que foi idealizado e desenvolvido por autores de ambos os lados do Atlântico, tendo como seus dois principais expoentes um martinicano, Aimé Césaire, e um senegalês, Léopold Sédar Senghor. Nada disso se constatava no mundo negro anglófono. Em primeiro lugar, como diz Soyinka, havia pouco, às vezes nenhum, contato entre intelectuais de Gana, da Nigéria e outros países africanos de língua inglesa e Jamaica, Barbados ou Trinidad. No caso dos Estados Unidos, a situação parece duplamente inusitada, já que um movimento intelectual negro do porte da Harlem Renaissance 2 foi pivotal para a formação da Négritude na África francófona, mas, paradoxalmente, teve pouca influência sobre autores da África anglófona. Há que se introduzir, aí, um elemento de formação literária. A França foi, no século XX, um epicentro de movimentos de vanguarda em que ideologias revolucionárias eram utilizadas igualmente para se propor uma nova estética literária e novos rumos políticos; no caso da Négritude, o surrealismo teve particular impacto, especialmente na obra de Aimé Césaire. Na Inglaterra, se os autores não ficaram infensos às inovações modernistas, não aderiram a elas com o mesmo entusiasmo de seus pares continentais. O único movimento modernista de origem britânica, o 2

Movimento estadunidense surgido nos anos de 1920, a Harlem Renaissance buscava uma valorização das artes afro-americanas bem como um questionamento sobre a posição que a população negra ocupava nos Estados Unidos, tendo, entre seus expoen­tes, os poetas Langston Hughes, Countee Cullen e James Baldwin.

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vorticismo, teve pouca notoriedade, e as posições profundamente reacionárias e racistas de seu principal proponente, Wyndham Lewis (1882-1957) – exemplificadas em seu apoio aberto ao fascismo e à invasão da Etiópia pela Itália (Bolton, 2012) – dificilmente o ajudariam a angariar adeptos na África negra. Os modelos literários que animaram os poetas da África anglófona, como as obras e teorias de G. M. Hopkins (1844-1889), W. B. Yeats (1865-1939) e T. S. Eliot (1888-1965), chegaram aos seus receptores africanos sem qualquer pareamento ideológico-político, e é mais uma vez Soyinka (2000) quem nos lembra que, diferentemente do que ocorreu na África francófona, na anglófona, a atividade literária e o ativismo político, incluindo os protestos à segregação racial, se viram bastante separados, o último sendo exercido preferencialmente no âmbito da teoria política. Essa distância se percebe mesmo na obra de autores de intensa atividade política, como Kofi Awoonor (1935-2013), J. P. Clark (1935) e o próprio Wole Soyinka. Irele (2011) nos informa que a oposição mais extrema à negritude veio exatamente do mundo africano anglófono, inicialmente na oposição do intelectual sul-africano Ezekiel Mphahlele (1919-2008), que considerava o movimento irrelevante. Irele destaca que seria um erro postular que não houve no mundo anglófono uma teoria da personalidade africana – esta se encontrava nos escritos de Edward Wilmot Blyden (1832-1912), mas não teve o mesmo impacto que a Négritude teve no mundo francófono, e a reação do mundo anglófono tendeu para a rejeição do movimento, tendo suas críticas mais notórias vindo de Wole Soyinka. Anteriormente, vimos nos comentários do crítico Eldred Durosimi Jones (1925) o que parece ser um paradoxo: Wole Soyinka destacou-se como crítico da Négritude, tendo rejeitado a visão idílica que esta tinha da África, ao mesmo tempo que sua obra se encontrava inteiramente dentro do escopo do movimento. Esse paradoxo pode se dissolver um pouco se prestamos aten297

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ção à obra Wole Soyinka (2009), do crítico Biodun Jeyifo, conterrâneo de nosso autor. No capítulo em que discute as obras críticas e teóricas de Soyinka, Jeyifo as divide, em seu conjunto, em três fases: uma primeira fase abertamente antinegritudinista e cosmopolita, em que diversos temas encontrados nas vanguardas ocidentais são reinventados em termos africanos; uma segunda fase que Biodun Jeyifo chama de “neonegritudinista”, em que a defesa de uma cultura africana, de um mundo africano, toma o primeiro plano; e uma terceira que se caracteriza por uma volta ao cosmopolitismo em termos intelectualmente mais rigorosos e ideologicamente mais nuançados. Embora todas tenham interesse, este artigo tem seu foco na segunda fase, pois é nela possivelmente que encontramos o pensamento de Soyinka em seu desenvolvimento mais detalhado, incluindo sua complexa relação com a Négritude, especialmente levando em conta que seus postulados se encontram concentrados no livro que é, possivelmente, o mais completo e célebre da obra ensaística de Soyinka: Myth, Literature and the African World, publicado primeiramente em 1976. Acrescento que há um ensaio que Jeyifo coloca como uma intersecção entre a primeira e a segunda fase – “The Fourth Stage” – como apêndice de Myth, Literature and the African World. A centralidade desse ensaio, na obra de Soyinka, nos leva a dar-lhe uma atenção especial. A primeira fase do pensamento de Wole Soyinka, segundo Biodun Jeyifo, se espalha em diversos artigos, alguns nunca publicados em livro. Seu combate antinegritudinista se amplia em uma crítica ao que Jeyifo chama de “literatura de redescoberta” – uma literatura que tende a exoticizar e romantizar a África. Em um ensaio como The Writer in a Modern African State (1991), vemos Soyinka lidando com a posição ambígua do escritor em nações recém-surgidas da experiência colonial. O escritor africano, então, se vê entre exigências de uma nova nação, a presença de um passado pré-colonial que deve ser recuperado ou, pelo menos, levado em conta, e sua posição como a voz de sua nação 298

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para o mundo exterior. Tal situação, segundo Soyinka, muitas vezes levou autores africanos a fantasias escapistas ou abstrações universalistas que buscam justificar a presença e contribuição da África no mundo, como ocorreu com a Négritude. No entanto, Jeyifo enfatiza que, já nessa primeira fase, começa a surgir na obra de Soyinka uma preocupação com o delineamento de um mundo africano, ainda que bastante diferente da imagem, tida por ele como ingênua, ventilada pelos defensores da Négritude. É neste momento que Soyinka começa a lançar mão da figura mítica de Ogum, o orixá do ferro, da guerra e de tantas artes e habilidades. Ogum fornece a Soyinka uma imagem muito mais dinâmica, polêmica e engenhosa do africano do que a que poderia ser oferecida pela Négritude. É neste ponto que o ensaio The Fourth Stage, talvez o mais célebre da obra ensaística de Soyinka, toma sua centralidade.

A África de Ogum Para se entender o pensamento de Soyinka acerca da existência e da natureza de um “mundo africano”, que é o que vemos no que Jeyifo chamou a “segunda fase de seu pensamento crítico”, é importante ter em mente a afirmação do crítico Stanley Macebuh de que “Soyinka é, acima de tudo, um mitopoeta (mythopoiest); sua imaginação é, em um sentido bastante fundamental, uma imaginação mítica” (Macebuh, 2001, p. 29, tradução minha). É fato que Macebuh faz essa afirmação no contexto de uma discussão da poesia de Wole Soyinka, mas se estudamos com atenção a obra Myth, Literature and the African World, vemos que o mito informa não só sua obra literária propriamente dita, mas também sua filosofia. Em primeiro lugar, talvez seja importante averiguar que estatuto de realidade Soyinka delega ao mundo mítico. Para o filósofo brasileiro Vicente Ferreira da Silva, a consciência mítica é aquela para a qual “não existe uma dualidade entre o humano e o divino,

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abrangendo as forças numinosas todo o âmbito das manifestações fenomênicas” (Silva, 2010, p. 87). Em outro artigo, o mesmo autor diz que “[o] mito conforma a consciência e determina todos os seus conteúdos imagináveis” (Silva, 2010, p. 351). Neste e em outros ensaios, vemos como o autor brasileiro conceitua o mundo mítico como uma suprarrealidade que conforma a realidade mundana e o modo como a percebemos. Já no ensaio de abertura de Myth, Literature and the African World, intitulado Morality and Aesthetics in the Ritual Archetype, percebemos que Soyinka não compartilha da mesma visão sobrenatural que Ferreira da Silva tem do mito: “Pois, vamos sempre nos lembrar de que os mitos surgem da tentativa do homem de externalizar e comunicar suas intuições interiores”(Soyinka, 2005, p. 3). Em uma entrevista, de 1981, a James Gibbs, Soyinka foi ainda mais enfático nesse ponto: “(...) Aliás, eu não gosto de Deuses! Deuses para mim têm significado só como expressões da vontade humana, da força humana, um aspecto supra-humano de energia humana, de ser coletivo” (Soyinka, 2001, p. 86). No entanto, é importante notar que, se Soyinka nega (ou, pelo menos, não considera relevante) a existência substantiva de divindades, não está ausente de seu pensamento uma dose considerável de metafísica e espiritualidade. Em outras palavras, Soyinka não é um pensador religioso propriamente dito, mas também não é materialista. Biodun Jeyifo lembra que, no combate ao fanatismo e à intolerância religiosa (uma das principais lutas de Soyinka), o autor nigeriano favorece não o ateísmo ou o secularismo, como grande parte dos intelectuais modernos, mas sim, uma espiritualidade “pagã”, animista e um agnosticismo poético (Jeyifo, 2009. p. 76). Nos últimos anos, Soyinka tem enfatizado a importância das religiões indígenas da África negra, em particular, da religião iorubá, no debate religioso mundial, em diversas entrevistas e escritos, como vemos em seu último livro, Of Africa, ao falar sobre as tentativas de entendimento entre cristãos e muçulmanos: 300

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Portanto, as reivindicações de ambas as religiões à tolerância mútua, propus, ainda se limitavam à insularidade binária dos incorrigíveis hegemonistas do mundo, já que se mostravam incapazes de levar em consideração os direitos de outras religiões a respeito, espaço e tolerância iguais. Ainda assim (...) sugeri que, por esse mesmo motivo, essas religiões ‘invisíveis’ do mundo ocupavam uma posição única para agir como árbitros neutros sempre que as duas rivais se lançavam contra a jugular uma da outra (Soyinka, 2012, p. XII, tradução minha).

O ensaio que abre Myth, Literature and the African World se inicia com uma saudação aos deuses por seu sacrifício no altar da literatura e a exortação de que ajam em serviço da sociedade humana. Soyinka parece, aqui, estar se referindo àquele momento discutido por Huizinga em que o mito passa de realidade vivida à “função de exprimir o divino em linguagem poética, o que é alguma coisa mais do que a função estética, é função litúrgica” (Huizinga, 2001, p. 145). De fato, após sua exortação inicial, Soyinka nos leva diretamente ao mundo africano, no qual os deuses ainda estão vivos e habitam o mundo humano, assim como um dia o fizeram na Europa e em partes da Ásia, de onde foram expulsos por paradigmas de pensamento mais abstratos e incorpóreos como o cristianismo e o budismo. No mundo africano, explica-nos Soyinka, a totalidade do cosmos é o local onde vivem e agem os humanos, mas também onde se presentificam os deuses em cada ritual; as amplitudes geográficas são o palco onde se estabelecem as relações dos humanos com os deuses, com a eternidade, com os paradigmas do ser e do não ser na forma de rituais em que, como aponta a citação de Huizinga, o litúrgico e o estético se mesclam; rituais que são, em parte, uma forma de dramatização e uma forma de revivência; ou seja, um mundo entre a prática teatral e a evocação mística. Tais rituais-peças, informa-nos Soyinka, ocorrem a céu aberto, geralmente no mesmo local onde ocorreram os feitos dos deuses que estão sendo representados. É, também, neste mundo 301

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físico e sólido que se estabelece a relação cíclica entre os três reinos que compõem o fundamento metafísico da visão comunal do mundo iorubá: o mundo dos vivos, o mundo dos ancestrais e o mundo dos que ainda não nasceram. Esses três reinos e suas relações são uma das principais forças informantes da obra de Soyinka (bem como da visão de mundo iorubá) e se, como já foi dito antes, os deuses são para Soyinka paradigmas simbólicos, em mais de uma ocasião o autor nigeriano se referiu a esses três mundos não como conceitos teóricos, mas sim como realidades factuais. O pensamento ocidental, acostumado com a temporalidade linear inaugurada pela visão de mundo cristã, tem a tendência a imaginar esses três mundos como, na verdade, fases sucessivas e irredimíveis na vida de um indivíduo. Nada pode nos afastar mais da visão articulada por Soyinka do que esta noção. Esses três mundos são, na verdade, realidades dinâmicas e circulares imbricando-se uma na outra o tempo todo – quer nas vidas de indivíduos separados, quer na sociedade como um todo. A espiritualidade iorubá postula a existência da reencarnação de uma pessoa em seus descendentes, o que quer dizer que cada indivíduo tem em si, como realidades vivas, seus antepassados e aqueles que vai gerar bem como a sociedade tem em si a sociedade que foi antes e a que virá a ser no futuro. A importância dessa dinâmica interação entre três mundos será retomada ao se discutir a figura de Ogum. Nesse palco, onde divindades assumem seus papéis como paradigmas da existência humana, Soyinka destaca três orixás, ou seja, três paradigmas a serem discutidos: Xangô, Obatalá (no Brasil, conhecido como Oxalá) e Ogum, destacando seus locais no mundo mítico iorubá e as falhas que os constituem como divindades tanto quanto seus grandes feitos. Os que estão acostumados a conviver com essas divindades por meio dos mitos e das religiões afro-brasileiras imediatamente recordam as associações entre Xangô e Ogum, devido a certas semelhanças em seus temperamentos, as complementaridades de suas funções (a energia 302

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elétrica de Xangô e a inventividade tecnológica de Ogum) e suas rivalidades amorosas – o próprio Soyinka elabora a dialética entre os dois deuses no poema narrativo Idanre. Aqui, no entanto, Xangô é posto à parte em relação aos dois outros orixás, que se localizam em dois polos. Xangô, diz Soyinka, se destaca por sua origem inequivocamente antropomórfica. É fato que o historiador S. Adebanji Akintoye, em seu A History of the Yoruba People (2010), apresenta a hipótese de que Obatalá, assim como Xangô, foi um rei antes de ser uma deidade enquanto Ogum é mantido no mundo da mitologia. A diferença fundamental, no entanto, é que a origem humana de Xangô aparece no seu próprio mito, enquanto Obatalá e Ogum são apresentados na mitologia como orixás desde o início da criação do mundo. Xangô, enfatiza Soyinka, corresponde ao paradigma da origem racial e social do homem. O trovão e o raio representam um instrumento de sua agência como portador da justiça retributiva. Seu erro, a injustiça cometida por ele contra o povo de Oyo consolidada na rivalidade que instaura entre seus soldados Timi e Gbonka, é, de acordo com Soyinka, um erro contra sua raça, sua sociedade. O simbolismo de Xangô é estudado especialmente no segundo ensaio do livro, Drama and the African World-View na análise que Soyinka faz da peça de Duro Ladipo, Oba Koso. Obatalá e Ogum, por sua vez, nos apresentam paradigmas menos humanizados. A origem, o drama e a consagração de Xangô ocorrem no interstício em que o mito se mescla com a história, pois são localizados temporalmente dentro da história do reino de Oyo e, paradoxalmente, como Soyinka também afirma, ao consagrar-se orixá, Xangô assume a tutela do trovão, algo que se situa fora da história. As ações dos outros dois deuses, por sua vez, são jogadas para o tempo mítico, o tempo da origem. Obatalá, nos diz Soyinka, é a figura do santo, do sofredor, deus da serenidade e da criação, aquele que molda a figura humana e cujo erro foi exagerar no consumo do vinho de palma 303

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e criar uma série de corpos defeituosos, razão pela qual seus adeptos deverão sempre se abster da bebida. É curioso notar que, como veremos, o erro de Ogum também teve origem no excesso da mesma bebida, mas, ao contrário do pacato orixá da criação, Ogum exige de seus fiéis que a bebam sem reserva. Por fim, Ogum é a figura na qual nos deteremos mais tempo, pois é o símbolo central da obra de Soyinka e de sua teoria sobre a existência de um mundo africano. Antes de tudo, precisamos voltar aos três reinos da existência antes referidos – o reino dos vivos, dos ancestrais e dos não nascidos – e fazer o acréscimo de um quarto reino, algo que Soyinka diz não ser explicitamente referido na teologia de seu povo, mas que está implícito e que ele toma como uma hipóstase determinante em seu pensamento: o abismo de transição que permeia esses três reinos. Soyinka o descreve como um reino ctônico, atemporal, cíclico e indeterminado. Em poemas como Idanre e Around us, Dawning ou em sua peça mais famosa, Death and the King’s Horseman, esse abismo aparece constantemente. Voltemo-nos aos mitos de Ogum para explicar melhor esse aspecto. Assim como em muitas mitologias do mundo, há, na iorubá, a noção de que deuses e humanos um dia viveram juntos, mas essa convivência foi rompida por um evento traumático (há diversas versões para isso). Soyinka esclarece que os deuses decidiram descer do Orum (o mundo do além) e se reencontrar com o homem, mas se depararam com uma grande rocha separando-os de seu objetivo. Nenhum dos deuses, com seus artefatos, conseguiu romper a rocha e abrir caminho. Ogum, no entanto, engenhosamente moldou uma faca com o minério de ferro que extraiu da própria rocha que os impedia de seguir viagem. Os deuses seguiram, louvaram Ogum e decidiram fazer dele rei. Ogum recusou e, prometeicamente, entregou o segredo do ferro aos homens. O local onde Ogum aportou foi a cidade de Ire, até hoje consagrada a ele, e os sábios o sagraram rei. Novamente, Ogum recusou, mas o homem é mais insistente que os deuses e, após pedidos subse304

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quentes, Ogum aceitou tornar-se o soberano da região. Com sua engenhosidade, competência estratégica e bravura, Ogum guiou a cidade de Ire em inúmeras vitórias. Certo dia, seus fiéis o procuraram – estavam perdendo a guerra. Ogum buscou suas armas, mas, sem ser percebido, o trapaceiro orixá Exu depositou uma cabaça de vinho de palma em seu trajeto. Ogum bebeu o líquido até o fim e, inebriado, partiu para a guerra. Sua sede de sangue (“Tendo água em casa, ele se banha com sangue”, nos diz um de seus poemas litúrgicos) se acendeu com o álcool e o orixá destroçou tanto o exército inimigo quanto seus próprios súditos. Inconsolável, cravou sua espada no chão e foi recebido no fundo da terra, sagrando-se a divindade da região. Eis o mito. Passemos para a teorização de Soyinka. A sanguinolência e a engenhosidade nos surgem como as características mais marcantes de Ogum. Se levarmos em consideração seu papel prometeico na aproximação entre deuses e homens, o vemos como uma divindade liminar, um deus que transpôs o limite entre um mundo e outro. A partir dessa interpretação, sua sanguinolência tem seu sentido ampliado. Lembremos que Pierre Verger (2000) nos apresenta outra divindade liminar, Exu, como tendo um caráter suscetível e violento. A violência, em ambos os casos, parece derivar exatamente da natureza tensa de divindades que vivem em pontos limítrofes.3 Sua outra característica, a engenhosidade, nos aparece em sua capacidade de forjar um instrumento de ferro a partir da rocha que buscava romper. É bom lembrar que todos os instrumentos de ferro, quer sejam usados para a caça, a agricultura, quer para a guerra, são atribuídos a Ogum; por isso trata-se de uma divindade associada à criação e à destruição.

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Ao descrever o festival Gelede, festividade tradicional e importante na sociedade iorubá, Henry John e Margareth Drewal apontam para essa identidade entre os dois orixás no papel que têm como “mediadores” e “deuses que abrem o caminho” (Drewal, Drewal, 1990, p. 41).

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O ferro surge como um símbolo da engenhosidade global de Ogum. Soyinka, então, amplia sua engenhosidade e sua tutela para a poesia, a dança e a música; em outras palavras, Ogum se torna, sob o olhar de Soyinka, um deus da criatividade, das artes e dos ofícios, bem como de seu contraponto, a destruição. No ensaio The Fourth Stage, o limite entre os mundos divino e humano que ele rompe com sua faca é também associado ao quarto reino antes referido (que dá nome ao ensaio) – o reino limítrofe entre os três estágios habitados pelo homem. Ogum é a divindade que transpõe esse quarto reino. Ou, como diz a professora Eliana Lourenço de Lima Reis, a função de Ogum consiste em “estabelecer uma mediação entre a natureza e a cultura, entre a essência de todos os seres, entre o homem e as várias dimensões do cosmos” (Reis, 1999, p. 157). Soyinka nos diz que, no mundo humano, esse abismo entre os três reinos é transposto por meio da ação ritual e todos os ofícios que a compõem – a dança, a música, a representação, a poesia, o sacrifício. O ator do drama ritual assume uma função análoga à de Ogum. Não à toa, Izevbaye (2003) encontra traços da figura de Ogum em diversos personagens do teatro de Soyinka que cumprem uma função mediadora bem como identifica o arquétipo de Ogum nos protagonistas de algumas de suas peças.4 Na mitologia que povoa a obra de Soyinka, há outra figura que pode ser colocada em paralelo com Ogum; esta, no caso, não de um deus. Trata-se de Atunda ou Atooda, associado a um mito de origem dos orixás. Diz-se que, no início dos tempos, quando havia apenas a cidade de Ifé, Obatalá era a única divindade a habitar o mundo. As terras existentes foram divididas entre os 4

Em seu livro Pós-colonialismo, identidade e mestiçagem cultural – a literatura de Wole Soyinka (1999), a professora Eliana Lourenço de Lima Reis dá mais um passo e associa o caráter liminar de Ogum com o percurso do próprio Soyinka em seu caráter de artista sincrético atuando em um espaço intersticial entre tradições diversas. Tal liminaridade se vê também, nos diz a autora, no inglês usado por Soyinka, que, sendo a língua da metrópole, não deixa de ostentar certos traços adquiridos na colônia.

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viventes, e Obatalá, seguindo sua natureza generosa e abnegada, escolheu para si as de pior qualidade. Ainda assim, sendo Obatalá a divindade dispensadora da energia vital, suas terras pedregosas geravam mais frutos que as dos outros habitantes, causando inveja a estes. Tão produtivas eram suas propriedades que Obatalá, seguindo o conselho dos invejosos, adquiriu um escravo, de nome Atunda (ou, alternativamente, Atooda). A convivência entre mestre e servo era pacata e amigável, mas o servo nutria por Obatalá a mesma inveja que seus concidadãos e, certa manhã, Atunda subiu até uma colina e, ao divisar ao longe o manto branco de Obatalá, fez rolar uma grande rocha que estraçalhou a divindade, espalhando seus pedaços pelo mundo. Olorum, o deus supremo, ao saber, requisitou a Orumilá que coletasse os pedaços e os levasse ao Orum. Assim o fez, e Obatalá pôde ser revivido. No entanto, nem todos os pedaços puderam ser coletados; daqueles que permaneceram espalhados, nasceram os outros orixás. Na obra de Soyinka, especialmente no poema Idanre, Atunda surge como uma figura arquetípica do revolucionário, aquele que cindiu o monoteísmo inicial e inaugurou a pluralidade politeísta, democratizando a função divina e sua relação com o homem. Tal leitura é reforçada pela análise linguística feita por Niyi Osundare, segundo quem “Atunda” poderia ser traduzido como “recriador” (Osundare, 2001). Atunda e Ogum se associam como caracteres revolucionários. Assim, a tríade escolhida por Soyinka no primeiro ensaio de Myth, Literature and the African World se estrutura: Obatalá é o deus sereno da criação, seu domínio é o do ser e da essência, e sua arte é a escultura; Ogum, o deus desafiador de padrões, deus do tornar-se e da criatividade (que Soyinka faz questão de distinguir da “criação” tutelada por Obatalá), que cruza o abismo e dá aos homens o segredo do ferro e dos ofícios, e suas são as artes performáticas que compõem a ação ritual; Xangô é o deus antropomórfico que inaugura uma raça e 307

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uma sociedade, deus da justiça retributiva, da lei e do Estado, e sua arte é a política. Esses são os deuses que compõem o mundo africano de Soyinka. Dentre os três, é a Ogum que Soyinka presta suas principais homenagens literárias, o deus que funda sua obra. Em Idanre, Soyinka revive o mito de origem de Ogum; em Ogun Abibiman, o deus iorubá da forja se une ao rei Shaka dos zulus na luta pela libertação dos povos africanos; e, como vimos antes, Ogum se insinua atrás de tantos protagonistas das obras teatrais de Soyinka, além de fornecer o eixo condutor de seu ensaio The Fourth Stage. 5 Na escolha de Ogum como divindade tutelar, não há como não ver uma influência da situação de guerra e revolução em que se encontrava (e, em grande parte, ainda se encontra) o continente africano no tempo em que Soyinka começou a escrever suas obras. O autor nigeriano viu a independência de seu país bem como a sucessão de governos totalitários contra os quais ele mesmo lutou ativamente. Essa escolha por Ogum é identificada por Eliana Lourenço de Lima Reis com a oposição entre as visões de mundo trágica-grega e semítica-cristã, em que a última rejeita o mundo dos sentidos e da “terrestrialidade” em favor de um mundo abstrato das ideias. A autora enfatiza que Soyinka associa Ogum à visão trágica e o elege representante não apenas da identidade iorubá, mas da identidade africana como um todo. De fato, Ogum encarna não só o espírito ativo de rebelião e revolução, mas, ainda segundo a autora, uma preferência pela multiplicidade e dinamicidade, algo que compartilha com Atunda, autor do primeiro ato de rebelião e da multiplicidade dos orixás.

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O uso das divindades iorubás como uma espécie de cultura comum a um mundo africano não poderia passar sem críticas. Kwame Anthony Appiah, em seu ensaio “Myth, Literature, and the African World” lembra que não há nada que se aproxime de uma cultura africana comum, mas apenas muitas culturas diferentes e que um escritor Akan “não tem mais obrigações para com Ogum do que para com Vishnu” (Appiah, 2000, p. 166).

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Sob essa luz, a diferença entre a Négritude postulada por Senghor e o mundo africano de Wole Soyinka aparece de forma muito mais nítida. A teoria de Senghor fala de uma essência negra, ou seja, um núcleo estático e atemporal que se inscreveria em uma “alma negra”. Seria um exagero dizer que Soyinka negligencia esse reino atemporal e a-histórico, como mostram suas considerações metafísicas. Além disso, é mais uma vez Eliana Lourenço de Lima Reis que chama a atenção para um caráter essencialista na teoria de Soyinka ao postular a existência de um “mundo africano”. No entanto, é fato que ele dá ao seu “mundo africano” um caráter fundamentalmente dinâmico. Essa diferença pode ser constatada inclusive se comparamos passagens dos dois escritores sobre um tema comum: a capacidade assimilativa do africano. Senghor escreve: Até aos ritmos imperceptíveis, aparentemente, a todas as solicitações do mundo, o corpo negro, a alma negra são permeáveis. (...) É um fato frequentemente notado que o Negro é sensível às palavras e às ideias, embora o seja singularmente às qualidades sensíveis – porventura sen­ suais? – da palavra, às qualidades espirituais, não inte­ lectuais, das ideias. O seduz o bem-dizer; seduzem-no tanto o teórico comunista quanto herói e o santo. (...) O que dá a impressão de que o negro é facilmente assimilável, quando é ele quem assimila (Senghor, 2012, p. 75).

Por sua vez, Soyinka aponta: Estudiosos europeus sempre traíram uma tendência a aceitar o mito, a tradição, as técnicas sociais de transmissão do conhecimento ou de estabilizar a sociedade como evidência de rigidez ortodoxa. Ainda assim, o oposto, uma atitude de acomodação filosófica, constantemente se demonstra nos atributos da maioria das deidades africanas. (...) Experiências que, até o evento, jazem externas à cognição da tribo são absorvidas por meio da agência do deus, são convertidas em ainda outra peça da armadura social em sua luta por existência e entram na tradição da tribo (Soyinka, 2006, p. 53-54, tradução minha).

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Wole Soyinka , da essência negra a um mundo africano

A diferença se faz notar até na escolha de palavras. Senghor descreve a capacidade assimilativa do negro como essencialmente passiva, permeável e seduzível. Soyinka, por sua vez, descreve essa faculdade como uma agência mediada pelos deuses, uma absorção ativa. Em sua avaliação do pensamento de Senghor, “L. S. Senghor and Negritude” (2000), Soyinka enfatiza o papel que o cristianismo teve em uma atitude fundamentalmente conciliatória de Senghor, inclusive com a França, que colonizou seu povo. Se quisermos nos manter no mundo africano de Soyinka, devemos dizer que, se o autor nigeriano prefere o dinamismo de Ogum, seu contraponto senegalês parece, sabendo ou não, prestar culto à serenidade essencialista de Obatalá.

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Intelectuais africanos e estudos pós-coloniais: as contribuições de Paulin Hountondji, Valentim Mudimbe e Achille Mbembe José Rivair Macedo

No último quartel do século XX, as condições de produção, debate e reflexão sobre o continente são fortemente influenciadas por diversos fatores, responsáveis por uma importante mudança de sensibilidade e inovação da parte dos intelectuais africanos. As ideias difundidas a partir da década de 1970, nascidas num momento em que as independências já tinham sido em geral alcançadas por elites políticas, procuraram dar conta dos impasses gerados no bojo das emancipações e da constituição dos Estados-nações, e refletir sobre as condições concretas dos países em que os autores nasceram. Menos idealista, e menos envolvida com projetos emancipatórios, a obra desses autores caracteriza-se pela autocrítica e pela busca de referenciais endógenos nas ciências sociais e na filosofia para a interpretação dos fenômenos observados a partir do próprio continente. Outro traço distintivo tem que ver com o significativo aumento da institucionalidade acadêmica e, consequentemen-

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te, do número de intelectuais de diferentes disciplinas, formações teóricas, políticas e ideológicas, formados parcialmente nos centros de poder intelectual do hemisfério Norte e parcialmente na África. A diversificação das ciências sociais e humanas, assim como a ampliação das universidades e redes de investigação e pesquisa, conferiu maior complexidade aos temas discutidos, e caráter mais acadêmico aos debates: Eis alguns elementos que constituem os novos ecossistemas que vão facilitar o aparecimento, entre outras coisas, de um pensamento mais acadêmico e sujeito a uma organização disciplinar em que os líderes sociais e políticos estão menos presentes; um pensamento que procura explicar fracassos e buscar soluções, e não gerar independências; um pensamento mais heterogêneo em que proliferam diversidade de escolas, paradigmas e linguagens; um pensamento marcado pelos fracassos... O tema do desenvolvimento, a causas do fracasso econômico e a democracia são alguns dos mais importantes objetos de trabalho (Devés-Valdés, 2008, p. 138).

A circulação internacional das ideias dos autores aqui considerados prende-se também ao fenômeno da “fuga de cérebros” para universidades europeias e sobretudo estadunidenses a partir dos anos 1980, onde se concentra prioritariamente centros de pesquisa, colóquios e redes de intercâmbio em que a participação dos africanos reforçam relações intelectuais voltadas para os interesses hegemônicos do Norte. Por outro lado, a internacionalização permitiu que alguns intérpretes africanos recolocassem em outros termos as condições de produção do conhecimento em busca de outras alternativas epistemológicas que levassem em conta os saberes locais. Neste capítulo, serão apontadas as contribuições teórico-conceituais e metodológicas de três autores de origem africa-

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na incontornáveis nos debates sobre o pós-colonialismo1: o marfinês radicado na República do Benin, Paulin Hountondji; o congolês radicado nos Estados Unidos, Valentin Mudimbe; e o camaronês radicado na África do Sul, Achille Mbembe. A escolha leva em conta não apenas o impacto de suas obras, mas certas particularidades biográficas ou afinidades intelectuais: embora formados em disciplinas distintas (filosofia; literatura; ciências políticas), representam elites intelectuais africanas com trajetória acadêmica consolidada em importantes centros de ensino e pesquisa na Europa e Estados Unidos, vivendo, pois, em situação de diáspora (Dedieu, 2003). São articuladores privilegiados do debate sobre a África, dentro e fora do continente, com grande possibilidade de observação dos impasses do colonialismo, a partir do que se poderia considerar como o “centro” intelectual de onde emanam as interpretações “ocidentais” sobre a África (Sá, 2010).

Etnofilosofia e saberes endógenos A obra do filósofo Paulin Hountondji (1942) vem sendo construída desde o início dos anos 1970, quando concluiu o doutoramento na École Normale Supérieure com uma tese sobre Ed1

Os termos pós-colonialismo e pós-colonial têm sido empregados nas ciências sociais em duas acepções não totalmente excludentes, mas conceitualmente distintas. Na primeira, aplica-se ao período histórico posterior ao momento em que sociedades africanas e asiá­ ticas foram colonizadas por europeus, da década de 1950 para cá. No segundo, designa uma tendência de interpretação mais ou menos vinculada aos “estudos culturais” e aos “estudos subalternos”, integrada por autores de origem oriental (Edward Said; Homi Bhabha; Gayatri Spivak) ou afro-diaspórico (Paul Gilroy, Stuart Hall) que, não obstante as preferências temáticas, metodológicas e analíticas, têm em comum o fato de questionarem a validade das elaborações discursivas, representações e paradigmas explicativos etnocentrados, problematizarem as percepções convencionais do que seria a ciência, a modernidade e o cosmopolitismo, e estudarem os fenômenos de hibridização, deslocamentos culturais e transculturação (Sanches, 2005). É na segunda acepção que o termo será aqui utilizado, mesmo não sendo consensual entre intelectuais identificados ao pensamento crítico, como Nelson Maldonado Torres, Aníbal Quijano e Walter Mignolo, que preferem a denominação de “estudos descoloniais” e outros, como Boaventura de Souza Santos, que se alinham ao que denominam de “epistemologias do Sul”.

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mund Husserl. De lá para cá, lecionou na República do Congo, França e Estados Unidos, mas fixou-se definitivamente na Université Nationale du Benin (atual Université d’Abomey Calavi), em Cotonou, e é diretor do Centro Avançado de Estudos Africanos, em Porto Novo. Ocupou cargos públicos na República do Benin, como Ministro da Educação (1990-1991) e como Ministro da Cultura e das Comunicações (1991-1993). Destacou-se no plano internacional por suas atividades como professor e pesquisador, atuando desde sempre no campo da filosofia e participando ativamente dos sinuosos debates em torno das condições da elaboração do conhecimento na África. A contribuição teórica de Hountondji tem sido reconhecida desde 1977, data da publicação do livro Sur la “philosophie africaine” (Sobre a “filosofia africana”) que pode ser considerado um divisor de águas nos debates acadêmicos sobre o conhecimento na e sobre a África. As aspas no título indicam desde aí uma tomada de posição na questão da existência ou não de uma filosofia africana genuína, questão levantada ainda no período colonial após a publicação, no então Congo Belga, pelo missionário católico Placide Tempels, da obra intitulada La philosophie bantoue (A filosofia banto) (1945), retomada e ampliada pelo teólogo ruandês Alexis Kagame, La philosophie bantu-rwandaise de l’être (A filosofia banto-ruandesa do ser) (1955). Aquelas obras postulavam, a partir de uma cosmologia haurida do pensamento tradicional de povos de matriz linguística banto, uma ontologia, uma forma particular de pensar e agir no mundo, expressa pelos mitos e transmitida oralmente, que seria comum a todos os povos africanos, embora sob uma forma inconsciente (Diagne, 2000). A essa filosofia tradicional africana transcendental reagiram alguns filósofos além de Hountondji, como os camaroneses Fabien Eboussi Boulaga (1934) e Marcien Towa (1935-2014), e o ganês Kwasi Wiredu (1931), que logo identificaram no que denominam de etnofilosofia uma tentativa equivocada de associar tradição coletiva, ontologia e “visão de mundo” ao pensamento filosófico 316

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tout court, erudito, individual, com capacidade de crítica e autocrítica do conhecimento (Roseman, 1998, p. 295-297; Diakityé, 2007; Boulaga, 2004, p. 15-41). A cumplicidade, desejada ou não, da etnofilosofia africana com a hierarquia do saber pretendida pelo colonialismo é o que explica a tomada de posição de Hountondji. Para ele, haveria que se distinguir entre a filosofia propriamente dita, sem aspas, um conjunto de textos e discursos explícitos, com intenção filosófica; a “filosofia africana” em sentido impróprio, com aspas, que se reduziria a uma hipotética visão de mundo de um dado povo; e a etnofilosofia, que se fundamenta, no todo ou em parte, na hipótese de uma tal visão de mundo, restringindo-se ao ensaio de reconstituição de uma suposta “filosofia” coletiva. A crítica dirigia-se à potencial capacidade de essencialização e petrificação dos conhecimentos africanos, enclausurados no anonimato da tradição, do mito e da oralidade. Sua resposta a tudo isso é muito clara, e contribuiu positivamente para o avanço das discussões: “denomino de filosofia africana um conjunto de textos: ao conjunto, propriamente, de textos escritos por africanos e qualificados por seus autores como ‘filosóficos’” (Hountondji, 1977, p. 11). É por isso que, ao final do ensaio biográfico dedicado a Anton Whilelm Amo, também conhecido como Amo Guinea Afer (1703-1753), que atuou, durante décadas, como professor de filosofia nas universidades germânicas de Halle e Wittemberg, após a indagação do que haveria de “africano” em suas ideias, e de ter respondido com um categórico “nada”, ele argumenta sobre o porquê de necessidade de haver, nos seguintes termos: Digamos claramente: nossa decepção não é de não ter encontrado em Amo teses que se poderia reivindicar de origem africana, conceitos ou temas, que se poderia dizer característicos do ‘pensamento africano’, da ‘visão de mundo dos povos negros’, da ‘metafísica negra’ ou simplesmente da ‘negritude’. É preciso rever, ao contrário, o que haveria de inadmissível, de altamente contraditório de uma tal expecta-

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tiva. Exigir de um pensador que ele se contente em reafirmar as crenças de seu povo ou de seu grupo social, é impedi-lo de pensar livremente e condená-lo a uma asfixia intelectual. Há no fundo dessa exigência um profundo ceticismo, um relativismo teimoso; e mais, pior ainda, talvez, por detrás destas aparentes tomadas de posição antirracistas e antieurocêntricas, um secreto desprezo pelo pensador não ocidental, a quem se nega sutilmente toda pretensão ao universal, quer dizer, à verdade, recusando-lhe o direito a uma pesquisa autêntica e esperando dele apenas que manifeste, através de suas palavras, as particularidades de uma cultura (Hountondji, 1977, p. 168).

O alvo da crítica eram os adeptos dos ideários da “personalidade africana” e da Négritude que, com Léopold Sedhar Senghor à frente, defendiam os princípios da “identidade” e “diferença” da cultura e pensamento africanos ao valorizar a busca do que seria próprio da cultura negra, e o estabelecimento de sua distinção e originalidade frente à racionalidade grega. O que caracterizaria o espírito africano seria sua “atitude emotiva diante do real”, expressa na ideia do “sinto, logo, sou” (Roseman, 1998, p. 289-290). Hountondji rejeita tais proposições, que buscavam numa hipotética unidade, identidade e autenticidade cultural a melhor alternativa de oposição ao lugar subalterno até então reservado à África e aos africanos pelos europeus. Em face do etnocentrismo e do mito da superioridade ocidental, ele apostava no dinamismo interno das culturas e seu pluralismo no seio de uma “civilização mundial” – tese defendida no derradeiro capítulo do livro, significativamente intitulado “Vrai et faux pluralisme” (Verdadeiro e falso pluralismo) (Houn­tondji, 1977, p. 219-236). Longe de negar protagonismo aos africanos, o que Hountondji pretendia, desde suas primeiras obras, era recolocar em outros termos as relações desequilibradas de produção intelec­ tual de conhecimento. A filosofia seria uma instância, letrada, erudita, acadêmica, pela qual os filósofos africanos, como auto318

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res, poderiam a justo título expressar os pontos de vista sobre si e sobre os outros, a partir de categorias de pensamento de validade “local” ou “universal” (Hountondji, 2008, p. 156-158). Tanto essa instância, quanto a ciência, amplamente valorizada, e tomada durante o século XX pelo pensamento ocidental como foco principal de enunciação de conhecimento, deveriam ser submetidas a exame e reavaliadas a partir do cotejamento com as instâncias mais amplas, e mais profundas, dos conhecimentos acumulados pelas experiências ancestrais, cunhadas por ele de “saberes endógenos”, aspecto sistematizado na obra coletiva sob sua coordenação, intitulada Les savoirs endogènes: pistes pour une recherche (Os saberes endógenos: pistas para uma investigação) (1994). As perspectivas abertas nesta obra se inserem no debate em torno das “epistemologias do Sul” (Tavares, 2009, p. 183-189). A finalidade de Hountondji é recolocar em outros termos os conhecimentos locais, práticos, hauridos das estruturas antigas de pensamento, criados e transmitidos pelos africanos, das tecnologias e sistemas de pensamento transmitidos através das gerações, fora da lógica do escrito e de princípios que se poderiam chamar “lógicos”, “racionais” ou “modernos”. Entre o “universalismo” dos paradigmas ocidentais, e o “relativismo” cultural, aposta na possibilidade de se falar em “racionalidades”, assim, no plural. Distanciando-se de uma perspectiva eminentemente etnocêntrica, preocupada em detectar o que haveria de genuíno, de particular, evita a denominação “saberes tradicionais”, rodeado de qualificativos petrificantes, entificantes, e opta pela valorização da criação local expressa na ideia maior de endogenia ou autoctonia. Saber, nesse caso, ganha sentido englobante e inclui não apenas o seu significado stricto sensu de conjunto de conhecimentos, mas também o de saber-fazer, as normas que presidem a ação das pessoas no mundo e os diferentes modos de sua transmissão. Entre os saberes ditos antigos, orais, ancestrais, e os saberes modernos, escritos, filosóficos, científicos, o que busca não é a oposição 319

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ou uma hierarquia de competências, mas as variadas formas de apropriação, articulação e circulação, onde os africanos respondem como sujeitos. Diminuem-se por esse meio as fronteiras entre um pensamento dito “tradicional” e outro dito “moderno” porque elas não são vistas como fixas, nem imutáveis, mas como sendo redesenhadas e redefinidas em cada época, com novos valores e em novas bases, em função dos projetos e perspectivas sociais dadas em seus respectivos contextos; e de acordo com suas especificidades e meios de transmissão, seja o caráter público e escrito do texto, ou o caráter secreto dos conhecimentos mágico-religiosos restritos aos iniciados e transmitidos oralmente mediante rituais apropriados (Hountondji, 2012, p. 13-29).

Gnose africana e biblioteca colonial Está por ser estabelecida uma avaliação global da contribuição teórico-conceitual do conjunto da obra de Valentin Mudimbe (1941), que vem sendo desenvolvida desde meados dos anos 1960, quando teve início sua extraordinária e longeva carreira como docente, escritor e pesquisador. O caráter inovador de sua prosa narrativa, em romances como O belo imundo (1976), Entre les eaux (Entre as águas) (1973) e L’Ecart (A autópsia) (1979), ambientados no momento da descolonização e das repúblicas africanas nascentes, tem maior reconhecimento junto a crítica especializada (Mulumba, 2000; Bisanswa, 2003; Bruyère, 2006). A formação educativa, graduação e pós-graduação em línguas indo-europeias e estudos comparados em filologia orientou suas atividades docentes em universidades africanas e europeias, até se fixar na área de estudos literários da Universidade de Duke. Paralelamente, publicou trabalhos de cunho epistemológico que problematizaram e conferiram maior complexidade às abordagens sobre a África, dos quais os mais conhecidos são L’Autre face du royaume: introduction à la critique des langages en folie (A outra face do reino: introdução à crítica das lingua-

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gens em estado de loucura) (1973), L’odor du père: essai sur les limites de la science et de la vie en Afrique (O odor do pai: ensaio sobre os limites da ciência e da vida na África) (1982) e sobretudo A invenção de África: gnose, filosofia e a ordem do conhecimento (1988) (2013) e A ideia de África (1994) (2014). Em conjunto, sua obra tornou possível, no mínimo, uma reavaliação do campo dos estudos africanos ao introduzir uma reflexão aprofundada dos seus elementos constitutivos e os condicionamentos externos que interferiram em sua elaboração. O que passa a estar em causa é o direito não apenas de narrar, mas o que narrar, e como narrar, por parte dos intelectuais africanos (Mangeon, 2008), uma vez que o foco da análise recai nos diferentes regimes enunciativos que dão sustentação aos discursos sobre a África em seus diferentes contextos epistemológicos. Daí resultaram instrumentos teóricos que tornam possível uma reavaliação da prática das ciências humanas e filosofia na África e fora dela, acompanhada de uma crítica sofisticada e vigorosa dos postulados etnocêntricos europeus e africanos, dos essencialismos e binarismos produzidos em toda parte (Bisankawa, 2000, p. 709-710; Kresse, 2005). Por consequência, acaba por ser, também, uma contribuição importante para a autocrítica das ciências sociais feitas por africanos, pondo em evidência as dificuldades enfrentadas na busca de alternativas próprias para uma “descolonização epistêmica”. Desde o título de seu livro mais influente, A invenção de África, há evidentes analogias com a obra fundadora dos estudos pós-coloniais, Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente, de Edward Said. Em ambas, o fio condutor é entremeado por múltiplos referenciais teóricos, mas o apoio essencial está na concepção de episteme e práticas discursivas, da obra de Michel Foucault. Confirma-se aqui o débito teóricometodológico de intelectuais provenientes de meios não hegemônicos à desmontagem dos discursos proporcionada pela análise foucaultiana – algo apontado com certa insistência por 321

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acadêmicos franceses em reação à escalada teórica da tendência dos estudos pós-coloniais. 2 Mudimbe vale-se do campo analítico da episteme, pelo qual Foucault definiu as condições de possibilidade de todo o conhecimento – expresso em teoria ou aplicado na prática, a partir de dife­rentes paradigmas (função e norma, conflito e regra, significado e sistema), dando origem a modelos discursivos e diversos regimes de enunciação – para demonstrar a maneira pela qual o que se entende comumente por África resulta de um emaranhado de discursos formulados a partir do Ocidente, que denomina de “africanismo”. As representações do que seria a “África”, construídas a partir de categorias eminentemente etnocêntricas, teriam interfe­ rido de tal modo na compreensão das realidades concretas do continente que acabaram por orientar a concepção e a ação não apenas de atores externos que lá estiveram, mas dos próprios africanos, que “leem, desafiam e reescrevem estes discursos como forma de explicar e definir a sua cultura, a sua história e a sua existência” (Mudimbe, 2013a, p. 12). Ao pôr em causa as condições de elaboração do discurso africanista, pretende criar condições para uma “prise de parole” (conquista da palavra), uma instrumentação teórico-conceitual aos filósofos e, por extensão, aos cientistas sociais da África que praticam suas respectivas disciplinas segundo parâmetros válidos 2

É digno de nota a maior representatividade de autores vinculados aos estudos pós-coloniais nos meios intelectuais anglófonos, sobretudo em universidades estadunidenses. As questões por eles tratadas desde os anos 1980 chegaram tarde na França e despertaram mais resistências do que adesões. Mesmo em textos de autores aparentemente neutros prevalecem críticas e reparos, sendo sublinhadas suas deficiências teórico-metodológicas (Dubreil, 2008, p. 56). Outros são abertamente reticentes ao seu valor acadêmico, ou empregam um curioso recurso de autoridade que consiste em atribuir a autores franceses dos anos 1950-1960 (como Georges Balandier e Jean-Paul Sartre, por exemplo) a antecipação dos conceitos desenvolvidas nos postcolonial studies, ou a teóricos franceses de renome (Jacques Derrida, Gilles Deleuze e Michel Foucault) a paternidade das inovações teóricas salientadas no debate atual (Bayart, 2009; Amselle, 2010), o que sugere, salvo engano, uma disputa de precedência que sutilmente atribui aos críticos do status quo intelectual apenas valor político ao discurso pós-colonial, negando-lhe qualidade “científica” ou acadêmica.

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de conhecimento acadêmico. Na medida em que tais parâmetros têm sido estabelecidos fora da África, com base em sistemas de pensamento não africanos, o próprio conceito foucaultiano de episteme, extraído de uma concepção de filosofia de matriz greco-cristã e iluminista, não daria conta de elementos dos sistemas de pensamento tradicionais africanos – encarados como processos dinâmicos pelos quais as experiências concretas são integradas numa ordem de conceitos e discursos não contemplados nos regimes atuais de enunciação do “africanismo”. Daí a proposição, como ferramenta metodológica, do conceito de gnose africana, vinculado a uma esfera mais ampla, a do “saber”, a do “conhecimento”, como possibilidade de ampliação do “africanismo” e uma renovação epistemológica substancial. Os críticos de Mudimbe, em geral, insistem no que lhes parece ser o ponto fraco de sua obra: a superinterpretação dos enunciados discursivos e a redução da África a uma “invenção” do Ocidente (Mouralis, 1984, p. 28-31). Em nosso modo de ver, preocuparam-se demais com a longa demonstração dos regimes discursivos (escritos, visuais) empregada pelo autor, dando pouca atenção a um de seus argumentos centrais, isto é, a potencial capacidade de alienação do “africanismo”, enredado em discursos extrovertidos cujos moldes aprisionam o pensamento, impedindo-o de produzir alternativas teóricas autônomas. Era preciso se deter longamente na teia discursiva do “africanismo” justamente para identificar os fios e tramas do que ele denomina de biblioteca colonial, isto é, o conjunto de enunciados emanados de distintos grupos de observadores externos que acabaram por constituir “regimes de verdade” e servir de recurso de autoridade de uma “razão etnológica” amplamente empregada na interpretação das realidades africanas – inclusive por africanos. Trata-se do “discurso do missionário” e do “discurso dos viajantes e exploradores”, elaborados a partir do século XV, e posteriormente do “discurso etnológico” dos antropólogos (evolucionistas, funcionalistas, estruturalistas) no período colonial, fundados em con323

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cepções etnocêntricas e racistas de uma suposta superioridade cultural ocidental. Estes balizaram, pela adesão ou repúdio, as noções de “identidade da África negra”, de “personalidade africana”, “negritude”, “cristianismo africano”, da “etnofilosofia” e “afrocentrismo”, pois mesmo ao pretender inverter a ordem dos discursos anteriores, não puseram em causa sua fundamentação epistêmica, reiterando elementos provenientes das ideologias do colonialismo – como as categorias raciais e identitárias essencialmente dadas, chamadas de “ideologias da alteridade” (Mudimbe, 2013a, p. 117). As controvérsias suscitadas pelas interpretações apontadas acima levaram-no a ampliar o seu espectro analítico, de onde a publicação, em 1994, do livro A ideia de África, que, desde o prefácio, Mudimbe apresenta como continuação da anterior. A ênfase, nesse caso, está mais na arqueologia dos discursos ocidentais, desde o visão especular que orientou o olhar dos europeus aos fetiches africanos na constituição da ideia do “selvagem” no Iluminismo, e do “exótico” e do “primitivo” no período colonial; nas implicações dos paradigmas explicativos do relativismo cultural (Melville Herkovits), da mestiçagem (Jean-Loup Amselle) e da anterioridade africana para contrabalançar a hegemonia do pensamento grego (Martin Bernal). E também a maneira pela qual os especialistas em arte e em literatura determinaram, pela negação ou pela assimilação estética, a ideia do que seria uma arte e uma literatura africana autênticas (Mudimbe, 2013b). A parte menos desenvolvida em seus argumentos talvez seja a mais instigante. Diz respeito ao papel dos saberes emanados dos sistemas de pensamento nos discursos do “africanismo” (de caráter ‘antropológico’, até o período colonial; e de caráter ‘político’, na crítica ao colonialismo) expresso nos interstícios da “tradição” e da “modernidade”. Mas não em termos de uma oposição hierárquica, ou de uma perspectiva diacrônica, e sim em termos de sucessivas rupturas e recomposições, “pois tradição (traditio) significa descontinuidade através de uma continuidade dinâmica 324

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e possível conversão de traditia (legados)... É a episteme do século XIX e início do XX que inventa o conceito de tradição estática e pré-histórica” (Mudimbe, 2013a, p. 234). Por caminhos diferentes, mas por motivos parecidos aos de Paulin Hountondji, o núcleo da problemática encontra-se na relação entre os conceitos de “pensamento”, “conhecimento”, e os saberes ditos tradicionais, que nunca desapareceram na África: O fato de estas formas consideradas ‘tradicionais’ não terem desaparecido deve ser óbvio ao atentarmos nas contradições atuais que existem por todo o continente, sobretudo entre os processos de produção e as relações sociais de produção, entre a organização do poder e da produção e, por outro lado, os discursos políticos. Com feito, as culturas africanas dispuseram e dispõem de saberes e conhecimentos próprios, os quais estão inscritos em, e dependentes de, tradições. Todavia, creio que seria ilusório encetar em busca por tradições africanas originárias, puras e definitivamente fixas, mesmo no período pré-colonial... A realidade das miscigenações desafia a ideia de tradição enquanto essência pura, que testemunha o seu próprio ser originário... As tradições não são fixas: constituem, de fato, continuidades, mas também descontinuidades; são ‘processos’, ‘desenvolvimentos únicos que emanam de princípios básicos e estáticos’ (Mudimbe, 2013b, p. 262-263).

Por este meio, devolve-se à ideia de tradições (e não tradição, no singular) seu caráter eminentemente histórico, portanto, descontínuo, mutável, retirado ou pelo menos enfraquecido pela concepção engessada que identificava nelas fatores de continuidade e inércia cultural, mantendo-as presas ao passado. A maneira pela qual os autores das diversas camadas discursivas, produzidas fora ou dentro do continente, em diferentes contextos, se apropriaram (ou não), incorporando, rechaçando ou ignorando as tradições locais, em termos de conhecimento e experiência, constituem processos em que os africanos não se encontram em posição passiva. Conviria, então, reconhecer tais descontinuida325

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des históricas e intelectuais, identificar a circulação dos saberes, as rupturas sociais e as negociações políticas das tradições africanas. Em síntese: “as formações discursivas na África ou noutro local não constituem genealogias escorreitas de saberes e conhecimento, oferecendo antes índices de dissenções de ordem intelectual e epistemológica que demonstram aculturações fabulosas” (Mudimbe, 2013b, p. 263).

Pós-colônia e afropolitanismo Dos três autores aqui considerados, Achille Mbembe (1957) é o mais jovem, o que goza de maior prestígio na cena intelectual atual, o mais discutido e, muito provavelmente, o mais controverso. Sua trajetória profissional, iniciada nos anos 1980 em Camarões, onde preparou dissertação de mestrado sobre o processo de independência e a formação do Estado-nação camaronês, ganhou outro rumo no ambiente universitário francês, onde seus interesses de pesquisa se estenderam aos temas gerais do continente, em obra inovadoras pelo alcance teórico-conceitual, como África insubmissa: cristianismo, poder e Estado na sociedade pós-colonial (1988) (2013a), On the postcolony (Sobre a pós-colônia) (2001a), e o impactante ensaio intitulado As formas africanas de autoinscrição (2001b) – em que avalia os impasses dos paradigmas interpretativos fundados em pressupostos identitários de caráter racial, nacionalista e nativista. A experiência profissional acumulada no ambiente intelectual estadunidense, durante sua passagem pela Universidade de Duke e o contato com nomes consagrados do Postcolonial studies lhe permitiram certo distanciamento do mundo francófono, que passa a ser visto por ele como um modelo cosmopolita, metropolitano e imperial defasado quando comparado aos Estados Unidos, onde a luta pela aquisição dos direitos civis de uma maioria racialmente discriminada produziu uma ideia de emancipação social – algo dificultado numa sociedade como a

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francesa, carente de uma “descolonização interior” (Mbembe, 2010, p. 121-172). Desde 2001, sua itinerância o levou novamente à África, em Johannesburgo, na Universidade de Witwatersrand, de onde sugiram obras que consolidaram sua posição como referencial teórico de prestígio dos estudos africanos feitos na África, principalmente Johannesburg: the elusive metropolis (Johannesburgo: a elusiva metrópole), de 2008, publicada nos Estados Unidos, e as recentes Sortir de la grand nuit: essair sur l’Afrique décolonisée (Sair da grande noite: ensaio sobre a África descolonizada) (2010) e Critique de la raison noire (Crítica da razão negra) (2013b). Tanto quanto a de Mudimbe, a obra de Mbembe deve muito às inovações teóricas da crítica teórica foucaultiana. Entretanto, ao contrário daquele e de outros intérpretes vinculados aos estudos pós-coloniais, sua leitura não se dirige aos sistemas discursivos, e sim, aos dispositivos de análise das instâncias de poder na modernidade, a partir das noções de biopolítica, biopoder e governamentabilidade (Gigena, 2011, p. 9). Todavia, tais noções, quando aplicadas ao contexto africano, ganham nova conformação e rumo diverso, indo muito além da simples apropriação e reprodução teórica – como os seus críticos, que não são poucos, teimaram em apontar.3 Durante algum tempo, Mbembe mostrou-se mesmo reticente em relação ao rótulo que lhe atribuíam de autor vinculado ao pós-colonialismo. Cientista político, interessa-lhe averiguar 3

Na avaliação de Jean-Loup Amselle, ele é um “intelectual brilhante mas pouco diplomático, ensaísta de prosa perspicaz mas por vezes sulforosa, sobretudo para um público africano” (Amselle, 2012, p. 91). Pouco apreciado pelos intelectuais locais africanos, foi criticado pelo apego excessivo aos referenciais europeus e considerado mero epígono de Foulcault. Suas interpretações são enquadradas numa deriva epistemológica africanista devido ao ecletismo metodológico e à supervalorização de fatores internos que produziriam uma visão eminentemente negativa da África, por vezes designada de afropessimismo (Biaya, 1995). Em sentido inverso, sua obra tem sido saudada por pesquisadores oriundos de antigas áreas coloniais francesas como uma promessa de renovação crítica em face da hegemonia epistemológica dos intelectuais do hexágono (Pouchepadass, 2003, p. 171-176).

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em profundidade a natureza do poder nas sociedades africanas, e nesse caso, os conceitos clássicos de Estado-nação, instituições políticas e participação não lhe servem, tanto quanto pouco lhe serviria reduzir o ângulo da análise aos enunciados discursivos. Parte de seus argumentos reside na ideia que as sociedades africanas do período posterior às emancipações não teriam saído plenamente da condição colonial. Daí o conceito de pós-colônia, empregado para descrever a experiência visceral de sociedades vivendo em regimes de dominação marcados pela violência extrema, engendrada no período da colonização. Como tal, caracteriza-se como uma “pluralidade caótica”, mas dotada de coerência interna, com sistemas de signos particulares e maneiras específicas de fabricar simulacros, reconstruir estereótipos e expropriar os sujeitos de suas identidades (Mbembe, 2001a, p. 25-64). A pós-colônia seria, em sua definição, um tipo de “poder bruto” partilhado por aqueles que detêm o monopólio sobre a vida e a morte, e o sistema de signos pelos quais esse poder se imagina. Consiste igualmente numa série de corpos de instituições marcada pela promiscuidade entre a esfera pública e a esfera privada, a familiaridade e a domesticidade, cujo compromisso está antes com a manutenção do poder, de um lado, e a sobrevivência social, do outro. O estudo da pós-colônia assenta, então, no exame das formas de sujeição e das formas de indisciplina que eventualmente possam conduzir à emancipação dos sujeitos, o que faz lembrar de imediato a análise do que Jean-François Bayart chamou de “neopatrimonialismo” em seu livro L’Etat en Afrique: la politique du ventre (O Estado na África: a política do ventre) (1989). Eis a razão pela qual as noções e conceitos foucaultianos, empregados por Mbembe como ponto de partida, acabam tomando rumo diverso em suas análises. Primeiro porque, em seu modo de ver, compartilhado por outros intérpretes do pensamento pós-colonial, o teórico francês não teria escapado de um essencialismo epistêmico ao deixar de lado a análise das 328

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macroestruturas capitalistas que deram centralidade ao Ocidente e estruturaram fora das esferas da modernidade ocidental, nos espaços americanos, africanos e asiáticos os fundamentos do racismo e do colonialismo. Para Mbembe, a gênese da “modernidade global” e das formas de poder que lhe dão sustentação ao distinguir, hierarquizar e enquadrar os indivíduos em categorias valorativamente distintas é bem anterior ao Iluminismo, e deve ser buscada nos “laboratórios” que foram a plantation escravista e o tráfico internacional de escravos na América. Aí teriam sido lançadas as bases dos paradigmas sociais racistas desenvolvidos posteriormente na África, no bojo do colonialismo, e na própria Europa pelo nazismo – a forma mais bem acabada e destrutiva de um Estado alicerçado em princípios discriminatórios de fundo racial (Mbembe, 2013b). As instâncias da biopolítica, entendidas por Foucault como meios de exercer o poder na modernidade visando o bem-estar da população e a submissão corporal e sanitária dos cidadãos, são levadas ao extremo e servem de referência para o desenvolvimento e aplicação do conceito radical e transgressor de necropolítica – empregado para nomear regimes de governamentalidade em que a soberania é definida pela capacidade de decidir quem deve viver e quem deve morrer. Mbembe explora as relações profundas entre razão, modernidade e terror em Estados orientados por uma “política da morte”, onde as formas de imposição de poder passam a ser uma finalidade em si e a vida das populações transcorre em zonas de conflito permanente, como ocorreu no regime do apartheid da África do Sul ou na Palestina. Aqui prevalecem formas de controle e alto grau de militarização com a finalidade de dominar territórios ou populações inteiras, numa verdadeira institucionalização do “estado de sítio”. As noções de política da morte e poder da morte refletiriam então os meios pelos quais, no mundo contemporâneo, as armas são empregadas com o objetivo de destruição máxima de pessoas e a criação de mundos da morte, “formas únicas e novas de existência social 329

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em que numerosas populações são submetidas a condições de existência que as reduzem a condição de mortos-vivos” (Mbembe, 2011a, p. 75). Tais parâmetros de análise de sociedades pós-coloniais subvertem categorias analíticas tidas como consensuais nas ciências sociais, extraídas da experiência da modernidade ocidental. O que há de mais impactante em sua leitura das formas de poder vigentes na pós-colônia é a liberdade no uso de metáforas que expressam a promiscuidade e obscenidade pelas quais aqueles poderes se manifestam e se imaginam, com imagens fálicas, escatológicas, fetichistas, antropofágicas. Na contramão de uma interpretação objetiva, clara, límpida, transparente, o autor vale-se em diferentes momentos de imagens que evocam uma “zona escura”, “princípios noturnos” dominados pela irracionalidade, pela desrazão, pela loucura. A distância conceitual entre Foucault e Mbembe deve-se a gradual centralidade das categorias explicativas da condição colonial extraídas de Frantz Fanon. Os deslocamentos de significado e as subversões conceituais advêm do fato de que os referenciais africanos são lidos a partir da experiência dos colonizados, e não dos referenciais do colonizador (Ajari, 2013). As noções retiradas de Michel Foucault têm eficácia analítica mas carecem de um componente pouco explorado pelos teóricos europeus, o fenômeno da violência intrínseca que define as relações de poder em sociedades submetidas pelo colonialismo. A redução extrema da humanidade dos indivíduos, instaurada pelas formas de hegemonia em sociedades colonizadas, por poderes que os violaram, torturaram, enlouqueceram, e as condições pelas quais se poderia fazer nascer um tipo de sujeito novo, capaz de habitar o mundo e partilhá-lo de modo pleno são buscadas nos textos de Fanon, aquele que melhor e mais profundamente desvendou a extensão dos sofrimentos psíquicos causados pelo racismo e a presença viva da loucura no sistema colonial. A partir desta perspectiva entende-se que a emancipação e a reestrutu330

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ração social no período posterior à colonização não foram seguidas de mudança social profunda, sendo as marcas residuais do colonialismo dadas pela ambiguidade e monopólio da violência pelos donos do poder; e a rebelião e insurreição permanente contra toda ordem emanada desses poderes estatais, a revanche contra a teocracia estatal de cunho ocidental-cristão, a contrainsurreição em face das lógicas de extração na esfera econômica e as lógicas de racialização no campo social. A “zona escura” e os “princípios noturnos”, alheios à clareza e transparência dos referenciais modernos, dominariam a cena na pós-colônia porque, no final das contas, o trabalho da libertação plena ainda não estaria completo, sendo algo que ocorrerá mediante o gigantesco esforço que Fanon chamava de “passar à outra coisa” e “saída da grande noite” (Mbembe, 2007; 2010, p. 229). Nos últimos anos, observa-se maior interesse de Mbembe por análises macroestruturais das sociedades africanas nas últimas décadas do século XX, com acento nos fatores internos e externos que orientaram suas transformações em âmbito político, sociocultural e socioeconômico. Os temas são estudados com vista à detecção de elementos transversais que afetaram o continente, em sua interface com o mundo. Paralelamente, o fenômeno colonial e seu duplo, o racismo, tendem a ser vistos como determinantes na cartografia dos poderes em âmbito global. Daí ter, em sua última obra, estudado em profundidade a gênese e desenvolvimento da categoria racial tornada inerente ao “negro”, que se torna uma representação primal, estruturante, de um tipo de hierarquização extremamente eficaz não apenas para a sujeição dos indivíduos identificados a esta cor, mas para a codificação no início do século XXI de diferentes formas de distinção e segregação entre grupos humanos de diferente procedência, a partir de caracteres de natureza biológica, genética: “Raça e racismos têm não apenas um passado. Têm também um futuro, notadamente num contexto em que a possibilidade de transformar os se331

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res vivos e criar espécies mutantes não provém unicamente da ficção” (Mbembe, 2013b, p. 41). Publicado em 2001, o ensaio On the post colony (Sobre a pós-colônia) tinha em referência as três primeiras décadas da segunda metade do século XX, posteriores às independências, em que as sociedades africanas passavam por uma situação de transição e reajustamento. Uma década mais tarde, nos capítulos finais do livro Sortir de la grand nuit (Sair da grande noite), o exame das formas constitutivas de poder político e econômico revelam alterações em relação aos elementos estruturantes anteriores: entre 1980-2000, um capitalismo atomizado e desprovido de grandes polos de crescimento se desenvolveu sobre os escombros de uma economia antes dominada, de um lado, por grupos estatais ou estatizantes controlados por clientelas associadas ao poder, e de outro, por grupos monopolistas que remontavam ao período colonial, operando em mercados cativos. Esta fragmentação extrema é ainda mais acentuada por fenômenos de circulação transnacional que afetam mercadorias, pessoas, crenças e ideologias, modas e estilos de vida, que produzem complexos entrelaçamentos sociais, culturais e econômicos de alcance continental. Outro traço distintivo diz respeito à tendência à informalização das relações de poder, a dispersão da autoridade dos detentores das instituições estatais e a privatização de seus poderes por agentes locais, produtores de autoctonia. A esses traços gerais de fragmentação e transnacionalização emergentes no seio de sociedades resistentes às forças centrípetas de Estados militarizados controlados por elites altamente ocidentalizadas Mbembe acrescenta uma forma original de cosmopolitismo emergente a partir da África que denomina afropolitanismo, termo empregado em lugar do ideário do pan-africanismo e ao discurso da négritude. Para os intelectuais e artistas africanos, os problemas colocados na atualidade já não encontrariam resposta em conceitos que reservam espaços privilegiados a um tipo de solidariedade racial transcontinental, nem a categorias identitá332

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rias apoiadas num “fetichismo das origens”. Entre o “eu” e o “outro”, o problema passa a ser a autoexplicação e uma estética da transgressão: “a realidade (quer se trate da raça, do passado, da tradição ou melhor ainda, do poder) não se refere apenas ao que existe e é passível de representação, de figuração. Ela é igualmente o que recobre, oculta e ultrapassa o existente” (Mbembe, 2010, p. 223). Fortemente marcadas pela circulação de pessoas, processos de dispersão e imersão, crioulização e mestiçagem, pela alta capacidade de adaptação e recomposição, as sociedades africanas estariam abertas a diferentes graus de entrelaçamento e fusão que lhe conferem sua marca distintiva no mundo: A consciência desta imbricação entre o que é local e o que é de fora em todas as partes, esta relativização das raízes e dos pertencimentos primários e essa maneira de abraçar em todo conhecimento de causa o que lhe é estranho, estrangeiro e de longe, essa capacidade de reconhecer sua face no rosto do estrangeiro e de valorizar os traços do distante no próximo, de domesticar o não familiar, de trabalhar com coisas o que tem todo o jeito de serem contrárias – é esta sensibilidade cultural, histórica e estética que o termo ‘afropolitanismo’ bem indica (Mbembe, 2010, p. 229)

Considerações finais O presente artigo não teve a intenção de mapear a obra de todos os autores africanos que se poderia aproximar das discussões abertas pelo pós-colonialismo, entre os quais se poderia incluir, dentre tantos outros, o cientista social queniano Ali A. Marzui, o cientista social guineense Carlos Lopes e o economista egípcio radicado no Senegal Samir Amin, o filósofo ganês Anthony Kwame Appiah e os cientistas sociais senegaleses Souleymane Bachir Diagne e Mamadou Diouf. O critério de escolha dos autores

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aqui tratados levou em conta o grau de inovação de seus conceitos no debate teórico contemporâneo e o seu provável impacto deles nos meios acadêmicos dentro e fora do continente. A este respeito, conviria lembrar as considerações de Paulin Hountondji, para quem, nas relações de produção científica e tecnológica do mundo globalizado, o conhecimento elaborado pelos pesquisadores do Terceiro Mundo, no caso, da África, permanece essencialmente extrovertido, isto é, organizado e direcionado para responder a uma demanda (teórica, científica, econômica) que vem do “centro” do mercado mundial, motivo pelo qual reclama a necessidade de uma transformação das relações de produção intelectuais (Hountondji, 2001, p. 8). Também se verifica, entre eles, reconhecimento e diálogo com autores consagrados identificados com os estudos pós-coloniais e descoloniais. Edward Said, Homi Babha, Gayatri Spivack, por exemplo, são citados como referência de apoio por Valentim Mudimbe, e Achille Mbembe é leitor da obra de Paul Gilroy e Enrique Dussel sendo, por outro lado, visto como referência de apoio por Walter Mignolo. A partir de 2005, as questões desenvolvidas por Mbembe incorporaram de modo muito mais visível os temas consagrados pelo pós-colonialismo, como a identificação dos impasses do universalismo francês e as reminiscências dos paradigmas coloniais e racistas (Mbembe, 2011b). Além disso, as obras aqui consideradas apresentam alguns traços recorrentes, quais sejam: a problematização dos pressupostos teóricos, metodológicos e conceituais empregados usualmente no “Ocidente” para explicar a África e os africanos; a revisão crítica dos enunciados emanados das antigas metrópoles; a proposição de alternativas epistemológicas novas, ou renovadas, em que se reconheça o protagonismo intelectual de africanos, de modo a deixarem de ser considerados meros objetos de estudo e serem reconhecidos como autores de interpretações dos fenômenos locais e mundiais. Outro ponto de aproximação entre eles é sua vinculação, maior ou menor, ao Codesria, que é na atualidade o mais desta334

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cado polo de irradiação de produção acadêmica na África. Foi com o apoio desta instituição que Paulin Hountondji organizou e publicou o livro Les savoirs endogènes: pistes pour une recherche (Os saberes endógenos: pistas para uma investigação) (1994). Alguns anos mais tarde, entre 1996-2000, Achille Mbembe foi seu secretário executivo, e o artigo As formas africanas de autoinscrição, redigido ao fim do seu mandato, parece conter algo de um acerto de contas com as tendências de pesquisa abraçadas pelos pesquisadores vinculados ao marxismo, à teoria da dependência e ao “nacionalismo africano” (Amselle, 2010, p. 90-91). Quanto a Valentim Mudimbe, sua obra inspirou a organização pelo Codesria de um grande colóquio em janeiro de 2013, intitulado Africa Nko: la bibliothèque coloniale en Debat (Africa Nko: a biblioteca colonial em debate), com a participação, entre tantos outros, de Achille Mbembe. Não seria demais afirmar, portanto, que a referida instituição funcionou, em certo grau, como espaço de articulação das reflexões, pesquisas e conceitos desenvolvidos pelos intelectuais aqui enfocados.

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Intelectuais africanos e estudos pós- coloniais: as contribuições de Paulin Hountondji, Valentim Mudimbe e Achille Mbembe

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Alvitrei-me a escrever sobre o paradigma libertário de Severino Ngoenha por encontrar nele o modelo essencial de fazer filosofia, pelo menos, nos contextos em que as independências face ao colonialismo não se parecem efetivas, quando analisadas as propostas a que os movimentos libertários se colocaram, no sentido de libertar a terra, de um lado, mas, sobretudo, de libertar os homens, em termos sociopolíticos e econômicos.

Primeiras palavras: liberdade como condição da historicidade moçambicana Já há cerca de três décadas, a preocupação central na filosofia de Severino Ngoenha tem sido a questão da liberdade. Como ele defende em suas próprias palavras, “um esforço filosófico comum a partir de Moçambique não pode deixar de se inscrever no quadro de um esforço africano mais global ligado ao nascimento da filosofia africana que, por seu turno, está intrinsecamente ligado à busca da liberdade que caracteriza a visão continental de África” (Ngoenha, 2004, p. 77). Este tipo de asserção pode ser encontrado nas suas obras anteriores, como Por uma dimensão moçambicana da consciência histórica (1991), em que o nosso autor trata da necessidade do fortalecimento da liberdade como sustentáculo da nossa historicidade; na obra Duas interpretações filosóficas da história

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do século XVVII: Vico e Voltaire (1992), a liberdade é apresentada como aquela que habita na história, sendo que o espaço histórico é a única garantia da sua existência. Como ele afirma: “(…) A história do espírito humano é verdadeiramente uma história, isto é, uma combinação de movimentos contrários, produto de contingências imprevisíveis. Em suma, a liberdade habita nessa história” (Ngoenha, 1992, p. 169). Nesta obra, Ngoenha mobiliza autores como Vico, de um lado, que vê a liberdade no limite entre a teologia e a filosofia da história, e de outro lado Voltaire, que vê a liberdade no interior da própria racionalidade histórica. A partir daqui, saltou-nos a imagem de um Ngoenha que usa o conhecimento filosófico como aquela verdade que pode libertar o homem. Aliás, como aquele que mantém na sua filosofia, um viés ético-religioso, e se quisermos, moral, e cuja base pode até ser o famoso texto bíblico: “E conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará” (João, 8:32). Referências equivalentes à ideia de liberdade, anteriormente apresentadas, podem ser encontradas em outras obras do mesmo autor – e aqui apresentamos somente mais um exemplo – tal como Das independências às liberdades (1993). Nesta obra, sobretudo no capítulo sobre Liberdade fulcro da historicidade, Ngoenha é mais direto sobre a questão da relação entre a história do africano e a questão da liberdade. Para ele, os esforços que começaram no final do século XIX, quer eles se chamem pan-africanismo, negritude, socialismo africano, etnofilosofia, filosofia crítica ou filosofia hermenêutica; se afiguram movimentos que vivem do espírito e tendem para a mesma realidade: a liberdade do homem negro: condição da sua historicidade. Ora, o nosso autor vê que a reflexão filosófica africana deve manter-se, pelo menos em termos de fundamentos, na sua busca pela humanidade negada, pois, as linhas orientadoras do nascimento de uma consciência africana, que se assuma efetivamente filosófica têm o interesse de reabilitar o homem negro e a sua história, visto que o objetivo era libertar o negro da sua condição de objeto da história. 340

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Mas como é que emerge a filosofia de Severino Ngoenha? Em outras palavras, quem é Severino Ngoenha?

Alguns elementos de seu percurso intelectual: a emergência de um pensamento crítico em Moçambique Parte das metamorfoses do percurso identitário de Severino Elias Ngoenha pode ser encontrada num dos textos publicado por si e por José Castiano1, na obra intitulada Pensamento Engajado (2011). Um elemento curioso que me saltou à vista no texto em referência, é que Ngoenha fala do seu percurso identitário num texto em que ele pretende atualizar o pensamento do antropólogo Henri Junod. Ngoenha nasceu em 1962, na então cidade de Lourenço Marques (hoje Maputo, capital de Moçambique). Seus pais são oriundos da província de Gaza, ainda a Sul de Moçambique. Quando a independência moçambicana se deu, ele tinha apenas 12 anos. Porém, aquele momento marca igualmente a sua cons­ ciência identitária. Fascinado por Samora Machel, pelos seus discursos carismáticos e incisivos, como todos os adolescentes da sua geração, aprendia assim, a ser moçambicano. Mas a este postulado identitário se adscrevia uma negação de outras identidades consideradas, na altura, nefastas para a identidade moçambicana (a saber: tribalismo, regionalismo e racismo). Como se pode ler em suas próprias palavras: A minha afirmação como moçambicano foi de tal maneira marcante, que ainda hoje, talvez também por outras ra1

Filósofo moçambicano que, a meu ver, ascende intelectualmente no mundo da filosofia, graças à inspiração que encontra no trabalho de Severino Ngoenha e, sobretudo, graças à amizade que os dois têm desenvolvido nos últimos anos. Prova disso, é a declaração que ele faz em relação a esse assunto, nas suas palavras iniciais no seu famoso livro Referenciais da filosofia africana: em busca da intersubjectivação. De referir que José Castiano, por mais que tenha feito um doutoramento em Sociologia, nunca se assumiu sociólogo de fato.

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zões, continuo a fazer da moçambicanidade o socle fundamental da autocompreensão do meu EU em termos identitários. Eu me identifico, me compreendo e me afirmo antes de mais e sobretudo como moçambicano (Ngoenha & Castiano, 201, p. 99).

Nos inícios dos anos 1980, Ngoenha entra para o Seminário Maior São Pio X em Maputo, para fazer teologia. E, em 1984, parte para Roma para continuar com os seus estudos de teologia e filosofia. Como ele afirma na sua “curta-autobiografia”, foi paradoxalmente na capital da cristandade que aprendeu a ser africano. Aliás, ele assevera: “não fui o primeiro nativo de algures em África a africanizar-se na Europa. Personagens como Léopold Sédar Senghor, Cheikh Anta Diop, Sekou Touré (…) tinham ido para Europa (França) como walof, séréré, mamaleque e foi em Paris que descobriram o orgulho de uma certa africanidade” (Ngoenha & Castiano, 2011, p. 99). Quando Ngoenha chega a Europa na década de 1980, o movimento da Négritude estava já sem fôlego para seguir a corrida dos tempos, e se encontrava comutado por uma literatura africana crítica, de alguma forma diferente do pensamento de Senghor, Cesaire e Damas. Deste modo, a pouca filosofia que se aprendia em Moçambique era uma simplificação do marxismo para o maior número de aprendizes, e escolástica para o exíguo número de seminaristas ao qual o nosso autor pertencia. Em Roma, os seus colegas oriundos de outras partes de África (anglófona e, sobretudo, francófona), analisavam a emergência de um pensamento filosófico grego a partir de uma perspectiva que Molefi Kete Asante chamaria de afrocêntrica, que parte de Cheikh Anta Diop até Obenga. Viam a filosofia da história e do direito de Hegel com os olhos críticos de Towa, esgrimiam as teorias diferencialistas de Gobineau a partir do criticismo de E. Firman e racialistas de Blyden, entre outras abordagens (Ngoenha & Castiano, 2011, p. 100).

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É nesta senda que Ngoenha começa a deixar-se formar, não só pelos seus professores, dominadores da Filosofia ocidental, mas igualmente, pelos seus colegas iniciados na neotentativa de filósofos africanos de levar a África a ser sujeito da sua historicidade, mobilizando a filosofia face aos problemas do continente africano. Aqui, o seu interesse pela questão africana começou a aprofundar-se, tanto é que, na altura da elaboração da sua tese de licenciatura, este interesse foi interpelado, como veremos a seguir: O afro-moçambicano, talvez fosse melhor dizer, o moçambicano-africano em que eu me tinha tornado, solicitou um professor alemão para dirigir a sua tese de Licenciatura sobre temas de filosofia africana. Isso não é filosofia, ouvi-me responder. E de uma maneira mais pertinente, você é jovem, aprenda a fazer filosofia debruçando-se sobre os clássicos da disciplina, quando tiver aprendido e consolidado o método e o espírito da filosofia, então fará o que quiser. Que remédio, aceitei a melhor parte deste discurso epistemologicamente e moralmente discutível e fiz uma tese de licenciatura sobre Giovanni Battista Vico e um doutoramento sobre Vico e Voltaire (Ngoenha & Castiano, 2011, p. 101).

Ainda em seus tempos de estudante em Roma, viaja a Londres para um estágio linguístico e foi lá onde conheceu a sua atual esposa, uma antropóloga suíça de nome Moira Laffranchini (conterrânea de Junod). É através desse vínculo com a sua esposa que Ngoenha cimenta o seu interesse pela Suíça e por Junod, o que provavelmente deverá ter influenciado, de alguma forma, na sua aceitação ao convite para trabalhar como professor universitário na Universidade de Lausanne, no ano de 1995. De 1995 a 2008, Ngoenha trabalha como professor na universidade de Lausanne, ocupando várias funções no campo da pesquisa, com destaque para representante da Universidade pela Suíça francesa na Escola doutoral em ciências da educa343

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ção, coordenador do programa de mestrado em educação, responsável pelo laboratório de ciências de educação, fundador e diretor do atalier de intercultura, entre outras. Para além disso, de 2005 a 2012, Ngoenha foi professor convidado no mestrado europeu de filosofia intercultural na Universidade de Roma III; de 1999 a 2002, professor convidado no mestrado europeu de estudos de desenvolvimento na Universidade de Bolonha; de 1997 a 2002, professor convidado de filosofia política no Instituto Superior de Relações Internacionais em Maputo; desde 2006 é professor de diversas disciplinas de filosofia na Universidade Eduardo Modlane e na Universidade Pedagógica de Moçambique. E desde finais de 2014, foi indicado para reitor da Universidade Técnica de Moçambique. Depois da independência, em Moçambique, o ensino de filosofia era muito reduzido, e como me referi antes, se limitava a perspectivas marxistas e escolásticas. Contudo, Ngoenha é considerado de forma consensual, pelos filósofos e cientistas sociais moçambicanos, como aquele que reabre as condições para um pensamento crítico no país e que reinvoca a filosofia para dar respostas aos problemas com que Moçambique estava se confrontado. Foi aí que o nosso autor começa a pensar Moçambique no quadro da sua dimensão histórica 2 , que igualmente se pode associar às lutas pela democracia, em que uma das primeiras propostas feitas pela filosofia foi o respeito pelas diversidades culturais e pela igualdade na diferença. Nesta linha, Ngoenha sugeriu, então, o federalismo como alternativa para a superação dos problemas sociopolíticos da sociedade moçambicana (Ngoenha & Buanaissa, 2012, p. 179). Outrossim, o seu pensamento sobre a interculturalidade apresentado nos últimos anos, como falaremos mais adiante, é retrato dessa sua filosofia.

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Trabalho que pode ser confirmado na sua obra Por uma dimensão moçambicana da consciência histórica (1991).

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O esforço de reimplementação da filosofia em Moçambique atingiu resultados interessantes, quando, em 1995, Ngoenha foi convidado para conceber um currículo de filosofia para a Universidade Pedagógica e acompanhar a formação de professores que se encarregariam, num segundo momento, de introduzir a filosofia em todas as escolas secundárias do país. A pergunta que centralizou este processo foi a de saber o que estava por detrás do interesse do Ministério moçambicano de educação em introduzir a filosofia no ensino secundário. Era necessário, então, elaborar um currículo de filosofia que não se distanciasse tanto da história secular da filosofia nas suas disciplinas basilares (história da filosofia, ética, antropologia filosófica, metafísica e gnosiologia), mas que, contudo, pudesse incorporar temáticas fundamentais do contexto moçambicano e com olhos no global. Os seus esforços de reimplementação de filosofia em Moçambique edificaram três campos basilares da possível contribuição da filosofia no país: a gnosiologia, a ética e a política. Ngoenha acreditava que os estudos sobre a gnosiologia haveriam de ajudar a superar as dificuldades que os alunos apresentavam face às questões abstratas, um déficit epistemológico associado à falta de logicidade no ensino moçambicano e a fraca preparação no conjunto das disciplinas das humanidades, como a história, a gramática, a literatura, as línguas clássicas, entre outras, de modo a conferir um posicionamento ético e, ao mesmo tempo, crítico aos moçambicanos, para com a sua condição histórica do presente que nos é dado a viver. Então a gênese que envolve a preparação do ensino de filosofia em Moçambique estava associada à tomada de consciência da necessidade de uma introspecção crítica sobre o nosso ‘eu-histórico’, como ponto de partida para um debate de ideias, associado sobretudo à questão do nosso espaço social democrático (Ngoenha & Buanaissa, 2012, p. 180).

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Para além da nossa historicidade, era necessário também que a crítica fosse reservada ao nosso olhar sobre as nossas culturas, de um modo geral, e tradições de modo particular. Aqui, reserva-se à filosofia a tarefa de permitir com que os moçambicanos pudessem interrogar-se sobre o seu futuro, através das suas experiências sobre a natureza do colonialismo, e das condições sociopolíticas, por exemplo, para fazer emergir as razões que admitiram a sua emergência. Aliás, a mesma filosofia deveria estar em condições de possibilitar aos moçambicanos a capacidade crítica em relação à escolha do marxismo com Samora Machel, numa altura em que sinais de sua decadência eram inegáveis. Era necessário ter condições de se indagar sobre a impraticabilidade dos sistemas alternativos como o socialismo Ujaama; das razões endógenas da não realização dos Estados Unidos de África bastante defendida por Kwame Nkrumah; da impossibilidade de uma revisão das fronteiras coloniais para criar espaços culturais homogêneos ou economicamente equivalentes. Em termos de filosofia política, Ngoenha queria distanciar-se daquele modo de fazer reflexão política que as ciências como a sociologia política, a ciência política, a economia política, o direito, e outras ciências afins na sua relação com a filosofia nos habituaram. Já não se tratava simplesmente de refletir sobre a política e o político, tratava-se, sobretudo, de se interrogar sobre a possibilidade de refletir sobre o fato político, quando ele já não se confunde com nenhuma teoria do conhecimento, nenhuma moral, e acima de tudo, quando se deve ter em conta a plurali­ dade de opiniões como um fato humano fundamental. O nosso autor escusa-se em aceitar que o funcionamento da sociedade seja unicamente analisado à luz das ciências políticas e das sociologias, a não ser que a decisão fosse ignorar o conhecimento do bem e do mal que foi sempre possível subverter, mas não esquecer. Até porque a sociedade e o espaço político nem sempre são idênticos e demonstrar isso era uma obrigação da filosofia. 346

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Ngoenha estava convencido de que o sociólogo e o politólogo – por exemplo – têm as suas ideias sobre o estado do mundo. É a partir desse ponto de vista que o nosso autor é crítico aos trabalhos de conceituados sociólogos e cientistas sociais moçambicanos, mostrando, deste modo, que não se pode negar que as contribuições intelectuais de Carlos Serra3 e de Elísio Macamo4 tenham uma visão de Moçambique sobre o que é aceitável e sobretudo o que não é, porém, as suas análises, descritivas ou explicativas, se querem neutras. Uma tal neutralidade, entende Ngoenha, é impensável para a filosofia que deve tornar explícito o que é implícito nos outros discursos. O critério do juízo. O critério da lógica, no nosso caso, é o caminho em direção à liberdade da qual emerge, primeiramente a africanidade “moderna” e, em segundo lugar, o pensamento político africano, e só depois, a filosofia africana (moçambicana). Este esforço de Ngoenha permitiu que hoje todos os alunos do ensino secundário geral em Moçambique tenham a filosofia como parte de suas disciplinas de aprendizagem. Aliás, todos os docentes efetivos do departamento de filosofia da Universidade Pedagógica, ao nível de todas as províncias de Moçambique tiveram-no como docente. Até mesmo vários docentes e pesquisadores de outras universidades moçambicanas como a Eduardo Mondlane, São Tomas de Moçambique, Católica, en3

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Carlos Serra é um dos mais importantes sociólogos de Moçambique. Formou-se inicialmente em História e mais tarde, decidiu-se pela atividade sociológica, e há mais de duas décadas tem desenvolvido trabalhos sobre Sociologia, encontrando-se neste momento como pesquisador ligado ao CEA – Centro de Estudos Africanos da Universidade Eduardo Mondlane (a mais antiga e prestigiada universidade moçambicana). O seu interesse fundamental, já anunciado no seu blog: Diário de um Soció­ logo, é “tirar a casca dos fenômenos e tentar perceber a alma dos gomos sociais sem esquecer que o mais difícil é compreender a casca”. A semelhança de Carlos Serra, Elísio Macamo é um dos mais importantes sociólogos moçambicanos, que sempre se manteve interventivo em relação aos problemas sociais de Moçambique. Apesar de desenvolver quase toda a sua vida intelectual em países como a Inglaterra, a Alemanha e atualmente na Suíça, sempre se manteve atendo às dinâmicas sociais de Moçambique, e soube – por intermédio de jornais, livros e redes sociais – emitir o seu ponto de vista.

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tre outras, têm Ngoenha como mentor da reflexão crítica sobre a sua prática intelectual e de docência. Isso implica dizer que, de fato, Severino Ngoenha é incontornável na sociedade moçambicana, não só por ter tido a responsabilidade de montar a empresa filosófica nacional, mas, sobretudo, porque a essência do espírito crítico que anima o debate contemporâneo moçambicano tem a sua mobilização no pensamento deste filósofo. Não é por acaso que, quando interpelei alguns dos docentes de filosofia da Universidade Pedagógica de Moçambique, e lhes pedi que, de forma espontânea, pudessem dizer alguma coisa sobre Ngoenha, eles tenham, em momentos isolados e diferenciados, afirmado: a) “é um filosofo que se engaja numa reflexão em torno dos problemas de Moçambique em particular, e de África em geral”; b) “é o Sócrates de Moçambique”; c) “incontornável na Filosofia em Moçambique, e ela só existe entre nós, graças a ele”; d) “ele é muita coisa que é difícil dizer o que é”; e) “é um guru da Filosofia em Moçambique”; f) “Severino é um filósofo contemporâneo (nasce na época contemporânea). A única coisa que o caracteriza, é a ideia de liberdade – até a forma de se vestir e estar, o identifica com a liberdade”. Enfim, estes são só alguns dos depoimentos de alguns profissionais de filosofia em Moçambique. E é certo que é uma ideia que reúne consenso por parte da maioria dos intelectuais moçambicanos. Não obstante, já ter existido, por exemplo, uma crítica negativa a uma abordagem televisiva de Ngoenha, numa das redes sociais, o que fez, aliás, com que o famoso sociólogo moçambicano Elísio Macamo me tivesse alertado sobre a crítica e mostrando o seu desgaste e me perguntado: “é dessa forma que se trata alguém como Severino Ngoenha?”. A crítica que apareceu na rede social, no ano 2014, foi um criticar só por criticar, porque o autor do post crítico (que usa o pseudônimo 348

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de Livre Pensador) criticou Ngoenha simplesmente porque ele foi perguntado sobre a situação do país e o filósofo tivera responsabilizado a cada moçambicano pelo atual estado da situação moçambicana, e não pautou, por exemplo, a criticar a Frelimo5, como muito provavelmente esperava o Livre Pensador. Para aquele “pensador”, Ngoenha deveria ter afinado mais o seu grau de crítica, porque o país anda mal. Da abordagem anterior, salta um interesse importante sobre a maneira moçambicana de fazer a crítica, e sobre isso, já faz alguns anos que Ngoenha tem chamado atenção para a maneira moçambicana de criticar. Em várias palestras e debates televisivos, ele tem criticado o formato da crítica moçambicana, uma espécie daquilo que ele chamou de “criticar só por criticar”. Ngoenha prefere mais uma crítica que se apresenta como um modelo prospectivo de ver a realidade do que imbuir o debate moçambicano através de tendencialismos ligados a nomes, cores partidárias, grupos associativos e interesses corporativos. É preciso que a crítica seja a base cristalizadora para um bom debate de ideias no país. Aliás, Elisio Macamo tem partilhado a ideia de Ngoenha sobre o nível de crítica em Moçambique que, se é verdade que tenha crescido em termos de número, vai ser menos verdade que, em termos de qualidade, possa se ter como um trampolim para a qualidade do debate sobre as questões do país e do mundo. Num dos seus interessantes textos6, Elisio Macamo afirma: aproveito um reparo do Júlio Mutisse para desabafar em relação à qualidade do raciocínio na nossa esfera pública (…). O problema que estou a levantar tem a ver com a imensa dificuldade que temos de avaliar a qualidade dos 5

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Frente de Libertação de Moçambique. Partido no poder desde a independência nacional. Publicado no facebook em setembro de 2014 e cujo título me parece menos interessante para a nossa abordagem neste trabalho, e por isso não o trago.

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argumentos que nos são propostos independentemente dos fatos. Aceitamos, muitas vezes, a relação entre um argumento e certos efeitos, sem nos preocuparmos com a sua real relação.

Ora, a questão da qualidade do debate moçambicano é problemática porque muitos preferem ficar no lado de posições de conforto em relação as suas crenças, sem antes analisar os méritos das questões que se colocam. Isso faz – por exemplo – da pretensão de Ngoenha de emancipar o nível e a estrutura do debate moçambicano, de um debate de “pessoas” para um debate de fatos e ideias, algo ainda utópico. Essa utopia de pensar um Moçambique melhor, onde a razão filosófica é a cristalizadora da liberdade, é, sem dúvida, como dissemos antes, o centro da filosofia de Severino. Para além das obras indicadas ao fim deste texto, neste momento, Ngoenha está a escrever um livro interessante. Tive acesso ao texto todo, mas por razões deontológicas, prefiro não falar do título. Contudo, este último livro se constitui numa dura crítica à maneira como a sociedade moçambicana está politicamente organizada, no sentido mais abrangente do termo. Aliás, como provavelmente termina o texto desta sua última obra, Ngoenha afirma: Ė verdade que uma capacidade de decisão política fraca incrementaria a instabilidade nas relações de cidadania. Mas por outro lado, também não é hoje praticável, nem é realista pensar que se pode continuar com um sistema de decisões políticas unidirecionais e exclusivamente hierárquicas. Por isso, ocorre encontrar um sistema misto, em que o poder hierárquico exista e seja forte, mas se contrabalançado por um poder que parta de baixo para cima, e que os dois atuem numa contínua dialética.

Com esse texto, Ngoenha pretende mais uma vez mostrar que a liberdade que se quer, tem que ser aquela em que todos os 350

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agentes da sociedade moçambicana tomem parte nas decisões e nos destinos do país. Que de fato, a cada cidadão, através da sua emancipação socioeconômica e política, lhe seja reservado o espaço para a sua inscrição na história de Moçambique e do mundo.

A essência do paradigma libertário e a encruzilhada da subversão Como me referi antes, o polo galvanizador da filosofia de Ngoenha é a ideia da liberdade. Todo o seu pensamento, ao longo das últimas três décadas. tem a liberdade como o centro da emancipação do homem africano. Mesmo nos seus textos sobre educação em Moçambique, Ngoenha sempre defendeu que esta só tem sentido, se de fato servir-se de garantia da liberdade. Estas ideias podem ser encontradas nas obras já referidas, como Estatuto e axiologia da educação, A longa marcha de uma educação para todos em Moçambique e nos Barómetros da educação básica em Moçambique. Porém, como o meu trabalho não se ocupa essencialmente de questões de educação, senão, da ideia da construção de um pensamento emancipador para Moçambique-África, e por isso, de filosofia africana, vou me cingir a explicitar a essência do paradigma libertário de Ngoenha e, no final, explicar por que a vejo também como uma encruzilhada subversiva. Para Ngoenha, a liberdade dos africanos e dos seres humanos, em geral, pode ser lida em quatro dimensões, designadamente: liberdade como emancipação da escravatura; liberdade como integração social; liberdade como emancipação política e liberdade como desenvolvimento econômico e social. Estas subdivisões foram discutidas no verbete “emancipação”, que escreveu para o Dicionário crítico das ciências sociais dos países de fala oficial portuguesa, organizado por Lívio Sansone e Cláudio Alves Furtado e publicado em 2014. Eu preferi agrupar estas dimensões em dois grupos, como explicarei a seguir:

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Liberdade como emancipação da escravatura e como integração social Para Ngoenha, o fim da escravatura não significou a inserção como sujeitos de direito dos supostos novos cidadãos nos territórios onde se encontravam. Um século depois do fim desta prática desumana, as populações de origem ameríndia e negra, encontram-se ainda em sistemas de estigmatização e de marginalização. Os diferentes sistemas de poder dominante encontraram formas para não permitir que os antigos escravos (e dominados índios) se tornassem de fato cidadãos. Nos EUA, criou-se o Ku Klux Klan, fizeram-se altas reformas constitucionais para dificultar a participação democrática da parte dos negros, e até as letras vieram em socorro do sistema dominante, criando uma literatura dita negrista, cujo objetivo era “diminuir a imagem do negro”. O que fez com que, até os anos 1960, fossem necessárias as chamadas marchas sobre Washington, lideradas por Martin Luther King (1929-1968). Esta situação de estigmatização e de marginalização é partilhada pela maioria dos Estados latino-americanos, o que explica que a teoria chamada de discriminação positiva, avançada pelo sociólogo W. E. B. Du Bois, no início do século XX, nos EUA, faça ainda hoje debate no Brasil, por exemplo, sob forma de ações afirmativas. E, de outro lado, que só em 2003, com o presidente Inácio Lula da Silva, se tenha introduzido, em termos legais, a obrigatoriedade dos estudos de história africana e dos afrodescendentes nas escolas (cf. Sansone & Furtado, 2014, p. 154-156). Ngoenha busca o exemplo da política brasileira para mostrar que ainda hoje, já relativamente bem distante do cenário da escravatura, existe reconhecimento do mal que aquela causou e, por isso, o reconhecimento do direito dos afrodescendentes e dos indígenas à integração social, o que tem estado a incrementar os esforços para a “devolução” dos espaços destes, conferindo, por

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exemplo, direito de propriedade de terra as famílias de comunidades quilombolas, facilitando a entrada dos indígenas e afrodescendentes nas universidades e o acesso a empregos em setores públicos por intermédio do sistema de cotas etc. Todavia, estas medidas se demonstram ainda insuficientes para colmatar a clivagem social entre as classes, quer no Brasil, quer em Moçambique, quer no mundo em geral. Liberdade como emancipação política e como desenvolvimento econômico: a emancipação política foi uma das principais conquistas dos ex-colonizados O que se distanciou da vista dos emancipados foi a condição de responsabilidade que tal forma de emancipação representava. Ora, para Ngoenha, o movimento de emancipação política dos países africanos inscreve-se no processo das independências africanas que podemos situá-lo a partir de 1945, com o discurso de Kwame Nkrumah no V Congresso Pan-africano de Manchester, em que se reivindica, claramente, o direito de autodeterminação política dos povos africanos. A sustentabilidade das independências africanas, quer sob ponto de vista político, quer sob ponto de vista econômico, para Nkrumah, dependia da criação do que ele chamava dos Estados Unidos de África, o que evitaria conflitos intra-africanos, tornaria a África menos porosa às veleidades neocoloniais, e por último, permitiria à África falar a uma só voz. Apesar das resistências diversificadas dos poderes coloniais na década de 1960, a maior parte dos países africanos conseguiu conquistar as suas independências políticas, mesmo se estas se inscrevem, geopoliticamente, no quadro da divisão de Berlim de 1885 (cf. Sansone & Furtado, 2014, p. 158-159). Se é verdade que houve, de fato, emancipação dos países africanos em termos políticos, poderá ser menos verdade que essa emancipação seja também econômica. A isso, Ngoenha se refere que é necessário que nos afastemos de paradigmas estritamente ocidentais de desenvolvimento econômico, para tentarmos tri353

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lhar por caminhos mais adequados ao contexto africano. Para tal, é preciso seguir-se um caminho de liberdade que se sublinhe num itinerário crítico, metódico e dialético em direção à conquista de nós mesmos (da nossa própria história econômica). Esta decisão exige a reintrodução no projeto de emancipação de tudo o que, nos projetos precedentes, foi reduzido ao silêncio. Tudo isso exige uma tomada de consciência acerca de como usufruir da nossa tradição como forma de utopia crítica e mobilizadora do presente com vista à realização de uma história real do futuro (p. 160). Ora, Ngoenha lê mais o desenvolvimento como única coisa que pode dar sentido às utopias de liberdade-emancipação para hoje. Aliás, o que faz com que a liberdade econômica dos africanos ainda não seja uma realidade é de fato, a endêmica pobreza que se vive e que se multiplica em várias formas de dependência em relação aos outros povos, fazendo, deste modo, com que os africanos sejam os eternos dependentes. Uma solução para este problema, vê o nosso filósofo, poderia ser, por exemplo, o cultivo real do espírito de solidariedade entre os povos, já não mais somente na relação Norte-Sul, mas sobretudo, no interior das próprias culturas, em que as populações poderiam ser galvanizadas pela partilha dos bens. É aqui que Ngoenha fala da necessidade de engajarmo-nos em uma filosofia intercultural, como anunciei nas palavras iniciais desse trabalho. A interculturalidade valorizaria – no interior dos países africanos – a reunião dos diferentes povos numa incessante participação na luta pela emancipação, instituindo uma corrente dupla que ligasse as partes ao todo, ao mesmo tempo que as afirmasse como partes. Isto favoreceria o respeito pelas diferenças, e permitiria tirar melhor partido das características diferentes das suas componentes. Com Ngoenha, percebe-se que o problema não é uniformizar as culturas, mas valorizar as diferenças; não é absorver as diferenças, mas encaminhá-las a um 354

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objetivo comum, que se apresenta claro: desenvolvimento econômico. O processo de decisão seria dialético, pois resultaria de um diálogo franco e aberto, sobre como é que os seus cidadãos podem, de fato, alcançar o dito desenvolvimento. Para Ngoenha, essa é uma questão importante, mesmo que para tal, tenhamos que ser subversivos.

Últimas palavras: o papel da filosofia em Moçambique Depois de ter afirmado que a filosofia moçambicana foi reintroduzida no país por Severino Ngoenha, e que o seu elemento central era ajudar os cidadãos moçambicanos a desenvolverem uma mentalidade crítica para as suas condições sociais, políticas, culturais (o que Ngoenha chamou de contratos) e econômicas, numa relação de intersubjetivdade, resta dizer que nos últimos anos, os seus escritos são construídos como forma de dar resposta aos problemas especificamente moçambicanos. Nos últimos dez anos, o problema moçambicano é essencialmente um problema político. Não restam dúvidas de que a necessidade de resolver-se problemas econômicos básicos das populações, como o caso da exigência de uma profunda melhoria das infraestruturas sociais (água, saneamento, energia, postos de saúde, escolas, transportes, vias de acesso etc.), a formação profissional dos moçambicanos, a boa governação financeira e a transparência na exploração e gestão dos recursos minerais, seja, de fato, um imperativo nacional. Mas à problemática econômica moçambicana se junta um problema maior. É que, segundo Ngoenha (2014), a política moçambicana, galvanizada pela era da biopolítica ou do neoliberalismo, imbricou-se no econômico, o que diluiu as fronteiras entre o econômico e o político, e de consequência, imoralizou a política e o político. Ngoenha (1993) chegou mesmo a considerar que os “libertadores da pátria moçambicana” libertaram o país politicamente, mas simplesmente para ocupar os mesmos lugares que anteriormente eram ocupa-

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dos pelos colonialistas. Isso implica dizer – e aqui eu lanço uma crítica a Ngoenha – que a liberdade que Moçambique tanto almeja, se calhar já não é meramente econômica, porém, sistêmica, em que a política reconquista novamente o seu lugar de centralidade. É claro que essa ideia aparece no pensamento do primeiro Ngoenha7, mas de forma implícita, e só no segundo Ngoenha, que ainda está em construção, é que conseguimos encontrar alguns elementos de sua evidência. Estou a dizer o seguinte: se é verdade que há quatro décadas os novos políticos do Moçambique independente poderiam se orgulhar de terem libertado a pátria e de estarem no direito de conduzir o país rumo à prosperidade econômica, hoje eles devem se envergonhar de – em nome da liberdade econômica do povo – usar a política para satisfazer os seus interesses econômicos individuais. Então, o que Moçambique precisa, é se calhar, não uma dissociação com as ex-colônias em termos de modelos e paradigmas de desenvolvimento, pois estamos num mundo cada vez mais global e interligado, onde um esforço desta natureza poderia significar igualmente o isolamento completo dos nossos desenvolvimentos, porém, de uma dissociação ao modo de fazer política na atualidade moçambicana. O país precisa, isso sim, de mais uma vez: libertar-se politicamente, e hoje, tal intento deverá acontecer no interior das fronteiras nacionais. É certo que há fortes interesses neoliberais mascarados em grandes instituições financeiras globais, mas este pode não ser um risco maior, quando a interioridade de Moçambique estabelecer parâmetros justos de desenvolvimento, em que a distribuição equitativa das riquezas se torna um imperativo nacional.

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Considero o primeiro Ngoenha a imagética que se pode ter dos seus escritos de 1990 até 2003 (onde apelava aos políticos para se engajarem na resolução dos problemas económicos dos seus países), e o segundo Ngoenha, a imagética dos seus escritos de 2004 até hoje (onde apela aos políticos para se reconstituírem, melhorando deste modo a sua própria ação política).

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A filosofia de Severino Ngoenha renova a sua “clássica autoridade” quando, novamente, desde 2004, resgata paulatinamente a crítica à política moçambicana, e mesmo que entrelinhas sugerindo a todos moçambicanos, uma relativa subversão à forma de governar o país. É fato que o problema da confusão entre o econômico e o político é um problema das formas de organização socioeconômicas dos países neoliberais do mundo inteiro. Contudo, a maneira como este fenômeno tem se dado em Moçambique, tem proporções bastante alarmantes, pois vê-se as elites políticas e econômicas esquecendo-se de procurar solucionar os problemas mais básicos da sociedade, para se preocuparem unicamente com os seus negócios. Não é por acaso que alguns órgãos de comunicação social moçambicanos têm denunciado um forte envolvimento de elites políticas em graves problemas de corrupção e branqueamento de capitais. O que é interessante é que tais denúncias ficam simplesmente nas linhas dos jornais, e são imediatamente esquecidas, assim que as próximas edições dos mesmos órgãos tragam outras notícias mais generalistas sobre o país e o mundo. Ou seja, por mais que haja denúncia, da parte dos órgãos de comunicação social ou da crescente sociedade civil no país, há a ideia de que a elite política tem um controle absoluto de todas as outras formas de poder nacional e, sobretudo, a da justiça. A asserção aqui apresentada, faz-nos pensar que é necessário reinventar a política moçambicana. É preciso que a política ocupe o seu verdadeiro espaço de ação, pretendendo distanciar-se consideravelmente dos seus interesses exclusivamente econômicos, e de poder absoluto, que é capaz de criar a lei (ao seu beneplácito) e de imediato, “engoli-la”. A política deve ser capaz de se “humilhar” e se retratar, passando, deste modo, a servir única e exclusivamente, aos interesses dos cidadãos. Em 2013, numa famosa palestra proferida na Universidade Pedagógica de Moçambique, alusiva ao dia mundial de Filosofia, e cujo tema era Rousseau, um filósofo subversivo, Ngoenha defendia que os intelectuais de hoje tinham que procurar se identi357

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ficar com Rousseau, engajando-se na batalha pela libertação da política, mesmo que, para tal, tenham que ser considerados, subversivos. Foi, neste momento, que um dos participantes da palestra perguntou-lhe: “Então Professor, você se acha subversivo”? E Ngoenha, com toda convicção respondeu: “se ser subversivo é defender a melhoria da condição de vida das populações, não aceitando a injustiça, insistindo que as leis devem deixar de servir interesses de cidadãos particulares e subjugando os fracos, então sim: eu sou subversivo”.8 Penso que os leitores de Ngoenha poderão confirmar que – apesar do nosso autor fazer “várias viagens” no mundo intelec­ tual, passando por realidades das Américas, Europas e de lugares longínquos de África, incluindo as abordagens em volta da educação, da filosofia política, da intercultura, da filosofia africana e da história – o interesse mais evidente do seu pensamento é a liberdade dos africanos, através da ciência, da “boa política” e da construção de uma realidade histórica capaz de ser libertária e proporcionadora do bem-estar sociopolítico e econômico, não só para as elites, mas, sobretudo, para todos moçambicanos.

Textos de Severino Ngoenha * * * * *

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Por uma dimensão moçambicana da consciência histórica. Porto: Edições Salesianas, 1991. Vico e Voltaire. Duas interpretações filosóficas do século XVII. Porto: Edições Salesianas, 1992. Filosofia africana. Das independências às liberdades. Porto: Edições Paulistas, 1993. Mukatchanadas. Lisboa: Edições Escritor, 1995. Estudo: por uma reconciliação entre a política e a(s) cultura(s). Maputo: GTZ e Ministério da Administração Pública, 1997.

Devido à perda da gravação original da palestra, uso as minhas palavras para atualizar a sua resposta.

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Mozambique. Coutry Assistance Review. Report n. 17.209. The World Bank, 1997. “Identidade moçambicana: já e ainda não”, in: Carlos Serra. Identidade, moçambicanidade, moçambicanização. Maputo: Imprensa Universitária, 1998. “Os missionários suíços face ao nacionalismo moçambicano. Entre a tsonganidade e a moçambicanidade”. Revista Lusotopie (Enjeux Contemporains). Paris: Karthala, 1999. Estatuto e axiologia da educação. O paradigmático questionário da missão suíça. Maputo, Livraria Universitária, 2000. Os tempos da filosofia. Filosofia e democracia em Moçambique. Maputo: Imprensa Universitária, 2004. A longa marcha por uma “educação para todos” em Moçambique. Maputo: Imprensa Universitária, 2013 (escrita com José Castiano). O pós-colonialismo na África lusófona. O Moçambique contemporâneo. Torino: L´Harmattan Italia, 2006 (A cura di Luca Bussotti e Severino Ngoenha). “Per une pensée migrante”. Revue Suisse des Sciences de l´ éducation. Ecoles et contextes transnationaux. Exigences pour la recherché et l´enseignement. 29 année/3, 2007, p. 399-416. “Per un contratto culturale”. Filosofia in Africa. Mimesis, Pensiere d´Oriente, Anno 12, 2007, p. 41-60 (A cura di Giovanni Leghissa.) “Ubunto: Novo modelo de justiça glocal?” Denktraditionen im Dialog: Studien zur Befreiung und Interkulturalität. Band 28. Dokumentatin des XII. Internationalen Seminars des Dialogs Programms Nord-Sud “The Encounter of Knowledje Cultures in the North-South Dialogue”. Sous la dir. De Raúl Fornet-Betancourt, 2008, p. 95-108. Histoire de l´ éducation au Mozambique. Paris: L’harmattan, 2009. 359

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* Machel, ícone da primeira República? Maputo: Ndjira, 2010. * Le grandi figue della´Africa Lusofona. idee, protagonisti e representazioni. Udine: Aviani, 2011 (A cura de Luca Bussotti e Severino Ngoenha). * Barómetro de Educação Básica em Moçambique: estudo piloto sobre a educação básica em Moçambique. Maputo: Publifix, 2012 (em coautoria de José Castiano e Manuel Guro). * Fronteiras da filosofia para a construção da democracia em Moçambique. Em: Síntese, 10, p. 173-186, 2012 (artigo escrito com Eduardo F. Buanaissa). * A longa marcha por uma “educação para todos” em Moçambique. Maputo: Imprensa Universitária, 2013 (em coautoria de José Castiano). * Barómetro (II) de educação básica em Moçambique: o professor – o elo mais fraco da qualidade do “saber saber” do ensino básico? Maputo: Publifix, 2014 (escrita com José Castiano e Manuel Guro). * Intercultura, alternativa a governação neoliberal? Maputo: Publifix, 2014. * “Emancipação”, in: SANSONE, L. & FURTADO, C. (orgs). Dicionário crítico das ciências sociais dos países de fala portuguesa. Salvador: ABA Publicações, 2014.

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Bibliografia Comentada

AMSELLE, Jean-Loup. L’Occident décroché: enquête sur les postcolonialismes. Paris: Fayard, 2010. Ensaio desenvolvido por antropólogo francês especialista em estudos africanos acerca dos limites e possibilidades dos “estudos subalternos”, “estudos pós-coloniais” e “estudos descoloniais” como alternativa epistemológica ao campo dos “estudos de área”\: latino-americanos, africanos e asiáticos. O autor dedica um longo capítulo ao estudo do perfil intelectual dos mais destacados pesquisadores do Codesria, e suas conexões com o grupo dos “estudos subalternos”. APPIAH, Kwame Anthony. Na casa de meu pai. A África na filosofia da cultura. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997. Estudo sobre as principais tendências de interpretação da realidade africana no século XX, com a finalidade de problematizar as noções associadas a marcadores identitários de caráter étnico-racial, a literatura nativista, as relações antinômicas entre tradição e modernidade e a ideia de solidariedade transcontinental expressa no ideário do pan-africanismo. COPANS, Jean. A longa marcha da modernidade africana. Lisboa: Mangualde (Portugal); Luanda (Angola): Edições Pedago; Edições Mulemba, 2012. Ensaio sobre as condições políticas, sociais e institucionais em que se foi constituindo o campo dos estudos africanos e da historiografia africanista africana a partir dos pontos de vista do autor, que atuou em diversos projetos de pesquisa antropológicos e sociológicos, nas décadas de 1960-1980.

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Bibliografia Comentada

CURTIN, Philip D.. Africa and the West. Intellectual Responses to European Culture. Madison: University Wisconsin Press, 1972. Organizada com material de conferências proferidas por pesquisadores estadunidenses, em 1969, o livro trata das formas culturais detectadas nas culturas africanas que expressam o impacto provocado pelos contatos com os europeus, e as formas de reação a esses contatos, desde a expressão de sentimentos coletivos através da tradição oral até o posicionamento de elites intelectuais africanas nos séculos XIX-XX. DEVÉS-VALDÉS, Eduardo. O pensamento africano sul-saariano: conexões e paralelos com o pensamento latino-americano e o asiático. Rio de Janeiro: Educam; Clacso, 2008. O livro apresenta as linhas de rumo essenciais do pensamento africano moderno. O autor apresenta, em perspectiva conjuntural, as tendências interpretativas, ideário político-social e conceitos fundamentais apropriados, debatidos e transmitidos por sucessivas gerações de intelec­ tuais africanos desde a metade do século XIX até o fim do século XX, observando as influências recíprocas de tais ideias no desenvolvimento de um pensamento periférico. ELA, Jean-Marc. Restituir a história às sociedades africanas, promover as Ciências Sociais na África. Lisboa: Mangualde (Portugal); Luanda (Angola): Edições Pedago; Edições Mulemba, 2011. Estudo sociológico acerca da emergência das disciplinas das Ciências Sociais nas universidades africanas, vista pelo autor como condição para a emancipação intelectual frente aos modelos de pensar ocidental e uma crítica ao legado do etnocentrismo. ELUNGU, P. E. A. O despertar filosófico em África. Lisboa: Mangualde (Portugal); Luanda (Angola): Edições Pedago; Edições Mulemba, 2013. Análise comparada e crítica das principais correntes ideológicas (pan-africanismo, négritude, personalidade africana) e filosóficas (etnofilosofia, filosofia crítica) e seu vínculo com projetos de emancipação intelectual do continente. KANE, Ousmane. Les intellectuels non europhones. Dakar: Codesria, 2003. Estudo sistemático do papel desempenhado pela erudição islâmica na formação das sociedades da África ocidental, Egito e Maghreb. Espe-

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Bibliografia Comentada

cial destaque é conferido ao significado histórico-cultural das antigas escolas corânicas e universidades e dos movimentos de renovação espiritual das confrarias e formas associativas afro-muçulmanas. JULY, Robert W.. The origins of modern african thought. Its develop­ ment in West Africa during the nineteenth and twentieth centuries. Asmara (Eritrea): African World Press, 2004 (or. 1968). Estudo sobre a gestação do pensamento político e social na África ocidental (Senegal, Libéria, Serra Leoa, Níger, Costa do Ouro, Níger), com acento na tomada de consciência dos problemas étnico-raciais inerentes ao período da instalação do colonialismo europeu e a resposta a eles da parte dos fundadores do pensamento africano moderno, entre os quais Alexsander Crummel, Samuel Johnson, Edward Blyden e Casely Hayford. MUDIMBE, V. Y. A invenção da África: gnose, filosofia e a ordem do conhecimento. Lisboa: Mangualde (Portugal), Luanda (Angola): Edições Pedago; Edições Mulemba, 2013. Análise dos sistemas discursivos empregados para a constituição de um campo definido pelo autor como africanismo, isto é, os conjuntos de signos produzidas pelo Ocidente a respeito da África. Valendo-se dos conceitos de “biblioteca colonial” e de “gnose”, o autor discute a maneira pela qual tais signos foram recebidos, apreendidos e debatidos pelos teólogos, filósofos e cientistas sociais africanos. EZE, Emmanuel Chukwudi (ed.). Pensamiento Africano. Ética y Política. Barcelona: Ediciones Bellaterra, 2001. Compilação e tradução em língua espanhola de textos de intérpretes sociais e líderes políticos fundamentais no período da colonização e descolonização, dentre os quais Kwame Nkrumah, Julius Nyerere e Amílcar Cabral. NGOENHA, Severino Elias. Filosofia africana: das independências às liberdades. Maputo: Edições Paulinas, 1993. Visão de conjunto, em perspectiva crítica, das principais correntes filosóficas desenvolvidas no século XX, desde a etnofilosofia e a filosofia crítica.

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Bibliografia Comentada

SOW, Alpha; BALOGUN, Ola; AGUESSY, Honorat; DIAGNE, Pathé. Introdução à cultura africana (Biblioteca de Estudos Africanos). Lisboa: Edições 70, s.d. Obra coletiva organizada e patrocinada pela Unesco, em que pesquisadores africanos de diferentes áreas do conhecimento definem o essencial das formas de expressão cultural das sociedades africanas contemporâneas. Para as questões discutidas no presente livro, interessa particularmente o derradeiro capítulo, desenvolvido por Pathé Diagne, intitulado “Renascimento e problemas culturais em África”. TOWA, Marcien.A ideia de uma filosofia negro-africana. Trad. Roberto Jardim da Silva. Belo Horizonte: Nandyala; Curitiba: Neab-UFPR, 2015. O livro, escrito em 1979, busca responder à questão sobre as possibilidades de desenvolvimento de uma filosofia negro-africana. Ao longo da obra, o autor examina as condições em que se pode identificar, na África, o “ser filosofante e as marcas de um pensamento eminentemente crítico”. V.V.A.A. Ciências sociais em África: alguns projetos de investigação. Dakar: Codesria, 1992. Coletânea de estudos assinados por pesquisadores vinculados ao Codesria a respeito de problemas comuns do continente, como os movimentos sociais e os conflitos étnicos, os programas de ajustamento estrutural e o processo de militarização. Interessa particularmente o relatório sobre as pesquisas em ciências sociais desenvolvidas nos Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa (Palop), redigido pelo economista angolano José Gonçalves.

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Sobre os autores

ADRIANO MORAES MIGLIAVACCA – É mestre em Literaturas Estrangeiras Modernas no Instituto de Letras da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS); realiza estudos de doutorado no mesmo instituto a respeito da obra de Wole Soyinka, com bolsa do CNPq; integra o Grupo de Estudos Africanos, vinculado à Rede Multidisciplinar de Estudos Africanos do Ilea-UFRGS. ANSELMO PANSE CHIZENGA – É docente na Universidade Pedagógica de Moçambique, junto ao Departamento de Filosofia da Faculdade de Ciências Sociais e Filosóficas; realiza estudos de doutorado no Programa de Pós-Graduação em Sociologia da UFRGS; é membro do grupo de pesquisa Tecnologia, Meio Ambiente e Sociedade (Temas – www.ufrgs.br/temas) e da Rede Multidisciplinar de Estudos Africanos do Ilea-UFRGS. EDUARDO FELISBERTO BUANAISSA – É docente no Departamento de Filosofia da Universidade Pedagógica de Moçambique; realiza estudos de mestrado na Universidade de Magdeburg, Alemanha; é membro do Comitê e do Conselho Editorial da Revista de Ciências Sociais e Filosóficas: Síntese; Membro do Comité Editorial da Primeira Revista Moçambicana de Filosofia, Curandeiro; é colaborador da Rede Multidisciplinar de Estudos Africanos do Ilea-UFRGS. FREDERICO MATOS ALVES CABRAL – É docente na Universidade Lusófona, em Bissau, e atua como pesquisador colaborador na Universidade Amílcar Cabral; concluiu mestrado no Programa de PósGradua­ção em Sociologia na UFRGS, com pesquisa sobre os estudantes africanos em mobilidade acadêmica nas Instituições de Ensino Supe-

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Sobre os autores

rior brasileiras, participantes do Programa de Estudantes Convênio de Graduação (PEC-G); é membro do Grupo de Estudos sobre Universidade (GEU-Sociologia/UFRGS) e do Grupo de Pesquisa em Violência e Cidadania (GPVC/UFRGS); é pesquisador do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisa da Guiné Bissau (Inep); atua na equipe técnica de monitorização dos projetos de cooperação Brasil-Guiné-Bissau; é vice-coordenador da Rede Multidisciplinar de Estudos Africanos do Ilea-UFRGS. GABRIEL AMBRÓSIO – É graduado em Letras, com especialização em Português-Inglês pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC-GO); é membro do Programa de Estudos em Extensão Afro-brasileiros (Proafro-PUC-GO); é colaborador do sítio eletrônico Por dentro da África (http://www.pordentrodaafrica.com/); é autor do livro: Áfricas ocultas (2015). GUILHERME MACHADO BOTELHO – É bacharel em História pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo; é membro pesquisador do Núcleo de Estudos de África, Colonialidade e Cultura Política, do Departamento de História da Universidade de São Paulo (Neacp-DH-USP). GUSTAVO DE ANDRADE DURÃO – É graduado em História pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio); desenvolveu estudos de Mestrado na Universidade Estadual de Campinas sobre o Movimento da Négritude; é doutorando no Programa de História Comparada da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGHC-UFRJ), com análise comparativa entre o pensamento de Léopold Senghor e Frantz Fanon; entre 2014-2015, realizou um estágio de pesquisa no Institut de Sciences Politiques (Sciences Po – Paris) a respeito da formação dos Estados nacionais africanos, da luta contra o colonialismo e do pan-africanismo nos países francófonos. GUSTAVO KOSZENIEWSKI ROLIM – É bacharel em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS); é mestrando em História Social pela Universidade Federal Fluminense (UFF), onde desenvolve projeto sobre as relações sociais do fenômeno da santidade na Gália dos séculos IV a VI.

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Sobre os autores

KASSOUM DIÉMÉ – É graduado em Sociologia pela Universidade de Brasília (UnB), com Especialização em Políticas Públicas pela Universidade Federal de Goiás (UFG); atuou como professor contratado de História e Sociologia no Colégio Estadual do Setor Finsocial – GO (2009-2010); é mestrando em Sociologia no Instituto de Filosofia e Ciên­cias Humanas da Universidade Estadual de Campinas (IFCH-Unicamp), com bolsa do CNPq, onde estuda a imigração haitiana e as formas de acolhimento institucional em São Paulo. JOSÉ CARLOS GOMES DOS ANJOS – É docente no Departamento de Sociologia e no Programa de Pós-Graduação em Sociologia da UFRGS; coordenador do Curso de Doutorado em Ciências Sociais da Universidade de Cabo Verde; realizou estudos de pós-doutorado na École Normale Supérieure, Paris; é colaborador da Rede Multidisciplinar de Estudos Africanos do Ilea-UFRGS, e pesquisador vinculado ao Núcleo de Estudos Afro-brasileiros, Indígenas e Africanos da UFRGS; trabalha com Sociologia de elites e Relações Interétnicas, atuando principalmente nos seguintes temas: mediação político-cultural no mundo rural, etnodesenvolvimento, identidades étnica e nacional, intelectuais, desigualdade racial. JOSÉ RIVAIR MACEDO – É docente no Departamento de História e no Programa de Pós-Graduação em História da UFRGS, onde leciona, orienta e realiza pesquisa em História da África; é pesquisador, com bolsa de produtividade em pesquisa do CNPq; participa do Conselho Editorial da Revista da Associação Brasileira de Pesquisadores Negros; é sócio da Academia Portuguesa da História; coordena o Núcleo de Estudos Afro-brasileiros, Indígenas e Africanos da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Neab-UFRGS) e a Rede Multidisciplinar de Estudos Africanos do Ilea-UFRGS. MATHIAS INACIO SCHERER – É licenciado em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS); realiza estudos de mestrado no Programa de Pós-Graduação em História UFRGS na linha de pesquisa de Relações Sociais de Dominação e Resistência; participa do projeto de pesquisa “Futebol: história social e identidades estudando o futebol no Rio Grande do Sul e no espaço platino”. MURYATAN SANTANA BARBOSA – É docente na área de Relações Internacionais da Universidade Federal do ABC (UFABC); é bacharel

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Sobre os autores

em História, mestre em Sociologia e doutor em História Social, todos pela FFLCH-USP, com tese a respeito da história do projeto editorial História Geral da África; é membro do Conselho Editorial de Sankofa: Revista de História da África e da Diáspora Africana, vinculada ao Núcleo de Estudos de África, Colonialidade e Cultura Política (Neacp-DH-USP); é coautor da Síntese da História Geral da África, v. 1: da Pré-História ao século XVI (Unesco/MEC/Ufscar, 2013). ROBERTO JARDIM DA SILVA – É mestre em Sociologia pela Universidade Federal do Paraná; integrante do Conselho Editorial da revista Sociologias Plurais; é membro do grupo de tradução de filosofia africana do Núcleo de estudos afro-brasileiros da UFPR, através do qual traduziu o artigo de Nkolo Foé, publicado no periódico Educar em Revista (Curitiba, n. 47, 2013, p. 175-228) e concluiu a tradução do livro L’idée d’une philosophie negro-africaine, de Marcien Towa. THIAGO CLEMÊNCIO SAPEDE – É bacharel em História pela FFLCH-USP; mestre em História Social pela FFLCH-USP; é doutorando da École de Hautes Études em Sciences Sociales (EHESS), Paris; é membro da equipe editorial de Sankofa: Revista de História da África e da Diáspora Africana, vinculada ao Núcleo de Estudos de África, Colonialidade e Cultura Política (Neacp-DH-USP). WALTER GÜNTHER RODRIGUES LIPPOLD – É docente no curso de História da Faculdade de Comunicação do Centro Universitário Ritter dos Reis (Uniritter), em Porto Alegre; concluiu mestrado em Educação na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (2008), especialização em História do Mundo Afro-Asiático (2005) e licenciatura plena em História pela Faculdade Porto-Alegrense (Fapa, 2003); atualmente realiza estudos de doutorado no Programa de Pós-Graduação em História da UFRGS sobre a obra de Frantz Fanon e a cena intelectual argelina; é membro do Coletivo Fanon, grupo de estudos, pesquisa e formação em estudos fanonianos, criado em 2001.

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