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Portuguese Pages 204 [195] Year 1976
Louis Althusser
Filosofia e Filosofia Espontânea dos Cientistas
FILOSOFIA E FILOSOFIA ESPONTÂNEA DOS CIENTISTAS
Biblioteca de Ciências Humanas
LOUIS ALTHUSSER
FILOSOFIA E FILOSOFIA ESPONTANEA DOS CIENTISTAS Tradução de
ELISA AMADO BACELAR
EDITORIAL PRESENÇA Portugal
•
LIVRARIA MARTINS FONTES Brasil
Titulo original PHILOSOPHIE ET PHILOSOPHIE SPONTANl:E DES SAVANTS
©
Librairie FRANÇOIS MASPERO Capa de F.
e.
Reservados todos os direitos para a língua portuguesa à EDITORIAL PRESENÇA, LDA. - Av. João XXI, 56 - 1.º LISBOA
ADVERn'lNCIA
Esta Introdução ao «Curso de filosofia para cientistas» foi pronunciada em Outubro-NovemlJro de 1967 na Escola normal superior. Tínhamos decidido entre vários amigos - interessados peT,os problemas da história das ciências e dos conflitos filosóficos a que esta dá lugar, tocados pela luta ideológica e pelas formas que pode assumir nos intelectuais da prática científica - dirigirmo-nos aos nossos colegas num curso público. Esta experiência, inaugurada pela presente exposição e seguida pelas intervenções de Pierre Macherey, Etienne Balibar, François Regnault, Michel Pécheux, Michel Fichant e Alain Badiou, devia durar até à véspera dos grandes acontecimentos de 1968. Os textos do curso foram logo copiografados, e depressa se divulgaram. Alguns foram até reproduzidos na província por iniciativa de estudantes (Nice, NantesJ. 7
Logo no começo, formámos o projecto, talvez precipitado, de publicar estes cursos. Uma «série» foi aberta para este fim na Colecção TEORIA, que publicou em 69 os cursos de M. Pécheux e M. Fichant (Sobre a história das ciências) e de Badiou (O conceito de modelo). Os outros cursos anunciados não puderam, por diferentes razões, aparecer. É para corresponder a numerosos pedidos, que hoje publico, com grande atraso, a minha Introdução de 61, sobre a filosofia e a filosofia espontânea dos cientistas. Com excepção de metade do primeiro curso e da crítica a Jacques Monod, que reproduzi sem nada .modificar, revi o resto deste curso: para tornar mais legível o que era apenas uma improvisação apressada e também para desenvolver certas f órmul,as que tinham ficado esboçadas, frequentemente enigmáticas. Mas tive a preocupação de respeitar no essencial os limites teóricos deste ensaio, que deve ser lido como um ensaio datado. Publico-o também como um testemunho retrospectivo. Encontrarão nele, com efeito, as primeiras fórmul,as que «inauguraram» uma viragem nas nossas investigações sobre a filosofia em geral e a filosofia marxista em particular. Anteriormente, com efeito (em Pour Marx e Lire le Capital), defini a filosofia como «teoria da prática teórica». Ora, neste curso, aparecem novas fórmulas: a filosofia, que não tem objecto (como uma ciência tem um objecto)~ tem cam8
pos de luta, a filosofia não produz conhecimentos mas enuncia Teses, etc. As Teses abrem o caminho à posição justa dos problemas da prática científica e da prática política, etc. Fórmulas ainda esquemáticas, que exigem um longo trabalho para as precisar e as completar. Mas pelo menos elas indicam uma ordem de investigação, da qual se encontrarão vestígios em obras ulteriores. 14 de Maio de 1974
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l.°
CURSO
O nosso cartaz anunciava um curso de iniciação à filosofia para cientistas. Vejo entre vós matemáticos, físicos, químicos, biólogos, etc. Mas também especialistas de «ciências humanas» e - que eles me perdoem aqueles a quem se convencionou chamar simples «literatos». Pouco importa: o que vos reúne é uma real experiência da prática científica ou a esperança de dar à vossa disciplina a forma de uma «ciência», e além disso, naturalmente, a pergunta: o que se pode esperar da filosofia? Têm diante de vós um filósofo: foram filósofos os que tomaram a iniciativa deste curso porque o julgaram possível, oportuno e útil. Porquê? Porque, à força de praticar nas obras da história da filosofia e das ciências, e de conviver com os nossos amigos cientistas, ficámos com uma certa ideia das relações que a filosofia tem necessariamente com as ciências. Melhor ainda: uma certa ideia das relações 11
que a filosofia devia. manter com as cxencias para as servir em vez de as dominar. Melhor ainda: porque adquirimos, à custa de uma experiência exterior à filosofia e às ciências, mas indispensável à inteligência das suas relações, uma certa ideia da filosofia própria para servir as ciências. E visto que fomos nós, filósofos, que tomámos esta iniciativa, é justo que dêmos os primeiros passos: falando antes de mais da nossa disciplina, a filosofia. Vou pois tentar, em termos tão simples e claros quanto possível, dar-vos uma primeira ideia da filosofia. Não me proponho apresentar-vos uma teoria da filosofia, mas, muito mais modestamente, uma descrição da sua maneira de ser e da sua maneira de agir: da sua prática. Daí o plano deste primeiro curso. Compreenderá duas partes: 1. Uma «colecção» de noções de base, conduzindo ao enunciado de vinte e uma Teses filosóficas. 2. O exame sumário de um exemplo concreto, onde se poderá ver a maior parte destas Teses exercer a sua «função» filosófica própria.
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I.
NOÇÕES DE BASE
Este curso vai começar pelo enunciado de um certo número de propostas didácticas e dogmáticas. Estes adjectivos, não o ignoro, não têm boa reputação. Mas isso não é grave: importa não ceder nem ao fetichismo, nem ao contra-fetichismo das palavras. Propostas didácticas: porque nenhum curso foge ao círculo da exposição pedagógica. Para dar uma ideia de um problema, é necessário começar, portanto, por dar antes de mais definições de aparência arbitrária que só serão demonstradas ou justificadas mais tarde. Propostas dogmáticas: este adjectivo respeita à natureza da filosofia. Definição: chamo dogmática a toda a proposição que reveste a forma duma Tese. Acrescento: «as proposições filosóficas são Teses», portanto proposições dogmáticas. Esta proposição é ela própria uma Tese filosófica.
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Portanto Tese 1. As proposições filosóficas são Teses. Esta Tese é enunciada sob forma didáctica: será explicitada e justificada mais tarde, no decurso deste trabalho. Mas preciso ao mesmo tempo que é uma Tese, isto é, uma proposição dogmática. Insisto pois: uma proposição filosófica é uma proposição dogmática e não apenas uma proposição didáctica. A forma didáctica está destinada a desaparecer na exposição. Mas o carácter dogmático subsistirá. Tocamos de chofre num ponto sensível. O que pode querer dizer «dogmática», não em geral mas na nossa definição? Para dar uma primeira ideia elementar direi o seguinte: as Teses filosóficas podem ser tomadas negativamente, como propostas dogmáticas na medida em que não são susceptíveis de demonstração no sentido estritamente científico (no sentido em que se fala de demonstração em matemática e em lógica), nem de prova no sentido estritamente científico (no sentido em que se fala de prova nas ciências experimentais). Extraio pois desta Tese 1 uma Tese 2 que a explicita. As Teses filosóficas, não podendo ser objecto de demonstração ou de provas científicas, não se podem afirmar «verdadeiras» ( demonstradas ou provadas como em matemática e em física). Podem apenas afirmar-se «justas».
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Tese 2. Toda a Tese filosófica se afirma justa ou não. O que pode significar «justa» ? Para dar uma primeira ideia, vejamos: o atributo «verdadeira» implica antes de mais uma relação com a teoria; o atributo «justa», antes de mais uma relação com a prática. (Assim: uma decisão justa, uma guerra justa, uma linha justa.) Paremos por um instante. Tratava-se simplesmente de dar uma ideia da forma do nosso curso. Como curso, enuncia proposições didácticas (a seguir justificadas). Mas como curso de filosofia enuncia didacticamente proposições que são necessariamente proposições dogmáticas: Teses. Notaremos: como Teses, as proposições filosóficas são proposições teóricas, mas como proposições «justas», estas proposições teóricas são ensombradas pela prática. Acrescento uma observação paradoxal: toda uma tradição filosófica opõe desde Kant o «dogmatismo» à «crítica». Ora, as proposições filosóficas têm justamente como efeito produzir distinções «críticas», isto é, «fazer uma triagem», separar as ideias umas das outras e mesmo forjar ideias próprias para tornar perceptíveis a sua separação e a sua necessidade. Teoricamente podemos exprimir este efeito dizendo que a filosofia «divide» (Platão) , «traç:i. linhas de demarcação» (Lenine) , produz (no sentido de tornar manifestas, visíveis) distinções, diferenças. Toda a história da filosofia o demonstra: os filósofos passam o
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seu tempo a distinguir entre a verdade e o erro, a ciência e a opinião, o inteligível e o sensível, a razão e o entendimento, o espírito e a matéria, etc. Fazem-no sempre: mas não dizem (só raramente) que a prática da filosofia consiste nesta demarcação, nesta distinção, neste traçado. Nós dizemo-lo (e diremos muitas outras coisas). Reconhecendo-o, dizendo.o e pensando-o, separámo-nos deles. Tomando nota da prática da filosofia, exercemo-la, mas para a transformar. Assim pois a filosofia enuncia Teses. Proposições que não dão lugar nem a demonstrações nem a provas científicas no sentido estrito, mas a justificações racionais de um tipo particular, distinto. Esta Tese implica logo duas consequências importantes: a filosofia é uma disciplina diferente das ciências (a «natureza» das suas proposições basta aqui para o indicar). 2. será necessário expor e justificar esta diferença, e em particular pensar a modalidade própria, específica, das proposições filosóficas: o que é que distingue uma Tese de uma proposição científica? 1.
Desde o começo, imediatamente, vemos que tocámos no primeiro grande problema: O que é a filosofia? Em que se distingue das ciências, E o que faz com que se distinga?
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Deixo estas perguntas em suspenso. Queria apenas em duas Teses dar-vos uma primeira ideia: em que poderão pensar os filósofos que vos falam? São necessárias algumas palavras de apresentação. E se agora nos conhecermos melhor?
. Não viestes aqui, vós cientistas, para ouvir o que acabo de dizer. Não sabíeis muito bem o que vos esperava. Viestes por diferentes razões: digamos, por amizade, por interesse, por curiosidade. Deixemos a amizade e tudo o que diz respeito ao local em que estamos: a Escola. Viestes por curiosidade e interesse. Sentimentos difíceis de definir. Julgo não me enganar dizendo que o vosso interesse e a vossa curiosidade se congregam em volta de dois pólos: um negativo e outro positivo. E que se o negativo é muito definido, o positivo é bastante vago. Vejamo-lo. 1.
O NEGATIVO
Façamos jogo franco. Ver de perto filósofos no exercício da sua profissão é um espectáculo que vale a pena! Que tipo de espectáculo? Cómico, evidentemente! Bergson explicou (O Riso) e Charlot demonstrou que o cómico é sempre, no limite, um homem que falha um degrau
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ou cai num buraco. Com os filósofos, sabemos com que contar: de um momento para o outro, estampam-se. Por detrás desta espera maliciosa ou perversa, existe uma realidade: desde Tales e Platão que a filosofia e os filósofos «caem nos buracos». Cómico da queda. Melhor ainda, pois desde Platão que é dentro de si própria que a filosofia cai. Queda em segundo grau: numa teoria filosófica da «queda». Claramente: o filósofo tenta, na sua filosofia, «descer de novo» do céu das ideias para encontrar a realidade material, tenta «voltar a descer» da sua teoria para reencontrar a prática. Queda «controlada», mas queda. Sabendo que cai, tenta «recuperar-se» numa teoria da queda (dialéctica descendente, etc.) e cai na mesma! Dupla queda. Duplo cómico. *
Sejamos bons jogadores. Os filósofos correm muito para nada. São intelectuais sem prática. Ã distância de tudo: o seu discurso não é senão o comentário e a negação desta distância. Ã distância, tentam captar o real nas palavras, inseri-lo em sistemas. As palavras sucedem às palavras, os sistemas aos sistemas; o mundo, entretanto, continua o seu curso, como antes. A filosofia? É assim o discurso da impotência teórica sobre o verdadeiro trabalho dos outros (a prática científica, artística, política, etc.). A filosofia: quanto mais pretensões menos
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títulos. Esta pretensão produz belos discursos. Seja: a filosofia como pretensão figurará pois entre as belas-artes. Uma arte. Eis-nos de novo no espectáculo. Desta vez na dança que é a queda conjurada. Sim, vamos estampar-nos. Notem que os cientistas (como todos os homens empenhados numa prática real) também podem estampar-se. Mas isso passa-se duma certa maneira; quando lhes acontece, verificam calmamente o facto, perguntam-se porquê, rectificam os seus erros e prosseguem os trabalhos. Mas, quando um filósofo se estampa, isso acontece duma forma completamente diferente: pois estampa-se na própria teoria que enuncia para demonstrar que não se estampa! Recobrou antecipadamente! Conhecem muitos filósofos que reconheçam que se enganaram? Um filósofo nunca se engana! Em resumo, por detrás desta curiosidade divertida, há uma certa ideia cómica e irrisória da filosofia. A convicção de que a filosofia não tem prática, não tem objecto, que o seu reino são as ideias e as palavras: um sistema que pode ser brilhante, mas que existe no vazio. Reconhecei que, mesmo se por tacto, vos defenderdes, não deixais de encontrar um certo prazer em frequentar essas ideias, ou as suas irmãs. Pois bem, digo já que assumo por minha conta todas estas ideias: pois elas não são nem gratuitas nem arbitrárias. Mas retomá19
-las-ei, naturalmente, sob a forma de Teses, pois, à sua maneira, elas são filosóficas e concorrem para definir a filosofia. Tese 3. A filosofia não tem como objecto os objectos reais, ou um objecto real no sentido em que uma ciência tem um objecto real. Tese 4. A filosofia não tem objecto no sentido em que uma ciência tem um objecto. • Tese 5. Existem «objectos filosóficos», se bem que a filosofia não tenha objecto (no sentido da Tese 4) : «objectos» interiores à filosofia. Tese 6. A filosofia é feita de palavras, organizadas em proposições dogmáticas chamadas Teses. Tese 1. As Teses são ligadas entre si sob a forma dum sistema. Tese 8. A filosofia «estampa-se» duma forma particular, diferente: para os outros. Para ela, a filosofia não se engana. Não há erro filosófico. Ainda aqui, procedo didáctica e dogmaticamente. As explicações virão mais tarde. Mas devem aperceber-se de que, para tudo vos conceder como o faço, guardo um pensamento escondido. Como devem calcular, quando avanço Teses, digo o que é mas ao mesmo tempo tomo as minhas distâncias: assumo já uma posição filosófica em relação a esta filosofia em geral. Que posição? Também isso se verá mais tarde.
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2.
O POSITIVO
Na verdade não viestes aqui apenas pelo prazer de nos ver no ridículo das nossas acrobacias falhadas. Pela nossa parte, concordo que viemos para para «estampar-nos», mas duma forma inédita, que nos distingue da maioria dos filósofos, e sabendo-o perfeitamente: para desaparecer na nossa intervenção. Como vêem já tomámos as nossas distâncias em relação à Tese 8. Mas vós? O que vos atrai e retém aqui? Vou dizê-lo: uma espécie de espera, de perguntas informuladas e sem respostas, umas talvez fundamentais outras porventura falsas. Mas todos formulando ou esperando uma resposta: seja uma resposta positiva seja uma resposta que mostre a vacuidade da pergunta. Grosso modo, esta espera (vinda tanto dos cientistas como dos literatos) pode ser enunciada sob a seguinte forma. Se pusermos de lado todo o pormenor das questões em suspenso (a que voltaremos), estas dão lugar em conjunto à interrogação seguinte: não haverá, apesar de tudo, a despeito de tudo, qualquer coisa a esperar da filosofia? Não haverá, no fim de contas, na filosofia, qualquer coisa que possa interessar às nossas actividades? Aos problemas da nossa prática científica ou literária? Este género de interrogação anda sem dúvida «no ar», visto que estais aqui. Não apenas por curiosidade, mas por interesse possível. 21
Se o permitem, vamos proceder por ordem: indo do mais superficial ao mais profundo. E para este efeito, distinguir três níveis nas razões deste interesse. A.
1. 0 nível
Há em primeiro lugar o que podemos chamar a moda da interdisciplinaridade. Reencontrarmo-nos entre representantes das diferentes disciplinas, eis o que contém, no tempo que corre, todas as promessas duma solução-milagre. Isto já se faz entre cientistas e é o próprio C.N.R.S. 1 que o recomenda. Ê um pouco a grande palavra de ordem dos Tempos modernos. Fizeram-se mesmo cidades, fisicamente concebidas para a coabitação e a concentração apenas de sábios (Princeton, Atomgorod). Isso «faz-se» também muito a todos os níveis possíveis nas ciências humanas. Então porque não aqui? Porque não um encontro entre filósofos, cientistas e literatos? Vamos mais longe: não será a presença de filósofos que dará sentido a este encontro interdisciplinar? Acaso não seria o filósofo, de bom ou mau grado, pelo facto da sua excentricidade em relação a qualquer disciplina científica, o artífice por natureza da interdisciplinaridade, por ser o seu «especialista»? 1 Centre N,ational de Recherches (N.T.).
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Bcientffiques.
Por detrás do termo de interdisciplinaridade, pode haver realizações objectivas definidas importantes e incontestáveis. Falaremos disso. Mas, por detrás da generalidade da palavra de ordem da interdisciplinaridade há também um mito ideológico. Para a clareza da exposição, tomo pois nota enunciando três Teses: Tese 9. Uma proposição ideológica é uma proposição que sendo o sintoma duma realidade diferente da que visa, é uma proposição falsa na medida em que tem por objecto a própria realidade que visa. Tese 10. A palavra de ordem da interdisciplinaridade é uma palavra de ordem que exprime hoje na maioria dos casos uma proposição ideológica. Tese 11. A filosofia não é nem uma disciplina interdisciplinar nem a teoria da interdisciplinaridade. Indico-o de passagem: é claro que por estas Teses abandonamos cada vez mais o domínio duma definição da filosofia em geral. A propósito dum lugar de intervenção (a interdisciplinaridade), tomamos partido nos debates interiores à filosofia, para marcar a nossa posição filosófica própria. Não se poderia definir a filosofia sem tomar posição na filosofia? Recordem-se desta simples pergunta.
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B.
2. 0 nível
Encontramos aqui, o que é também muito sério, os problemas postos pelo gigantesco desenvolvimento das ciências e das técnicas. Problemas internos a cada ciência, e problemas postos pelas relações entre várias ciências (relações de aplicação duma ciência a outra). Problemas postos pelo nascimento de novas ciências, em zonas que podem ser ditas, retrospecti vamente, zonas-fronteiras (ex.: química, física, bioquímica, etc.). Sempre houve problemas interiores à prática científica. Mas a novidade é que eles parecem pôr-se hoje em termos globais: remodelação das antigas ciências, redefinição das antigas fronteiras, etc. Põem-se também em termos globais do ponto de vista social: problemas teóricos da estratégia e da táctica em matéria de investigação; problemas das condições e das consequências materiais e financeiras desta estratégia e desta táctica. Então perguntamo-nos: poderá haver uma estratégia e uma táctica da investigação? Pode haver uma direcção da investigação? A investigação pode ser dirigida, ou deve ser livre? Em função.de quê? Deve ser dirigida em função de objectivos puramente científicos? Em função de objectivos sociais, isto é políticos (prioridade dos sectores), com todas as consequências financeiras, sociais e administrativas que isso comporta: não apenas os créditos, mas também 24
as relações com a indústria e com a política, etc. E se estas questões chegarem a ser resolvidas no plano geral, quais podem e devem ser as consequências disso no plano da investigação e dos próprios investigadores? Podemos pensar uma estratégia e uma táctica interiores a cada investigação? Em suma, haverá métodos que permitam «guiar» uma investigação, métodos da descoberta científica? Tudo problemas perante os quais os cientistas ficam hesitantes e divididos. Basta ler, por exemplo, os discursos oficiais e tecnocráticos do Colóquio de Caen e as críticas dos jovens investigadores de Porisme. Duas posições extremas: a liberdade absoluta dum lado; a planificação da investigação do outro. Entre as duas, a solução tecnocrática de Caen, inspirada em «modelos» americanos e soviéticos. No horizonte, a solução chinesa. Então, diante da complexidade e indecisão destes problemas gigantescos, em que já não se trata apenas da prática científica imediata (o investigador no seu laboratório), mas do processo social de produção dos conhecimentos, da sua organização e em definitivo da sua política (e da que a governa), então perguntamo-nos: não teria o filósofo, por acaso, qualquer coisa a dizer que se pareça com respostas a estas perguntas? Por exemplo, sobre a grande alternativa teórica e política da liberdade e da planificação da investigação? Sobre as condições e os fins sociais e políticos da organização
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da investigação? Ou mesmo sobre o método da descoberta científica? Porque não? Visto que este género de expectativa responde efectivamente a qualquer coisa que diz respeito à pretensão da filosofia. Quando se trata a filosofia de topa-a-tudo, de que nos rimos, isso pode, olhando mais de perto, alterar. -se: em termos nobres, esse topa-a-tudo pode ter ideias sobre o todo, sobre a maneira como as coisas se relacionam entre si, sobre os problemas de «totalidade». Velha tradição, que vem de Platão, para quem o filósofo é o homem que vê a conexão e a articulação do Todo. O filósofo tem por objecto o Todo (Kant, Hegel. .. ), é o especialista da «totalidade». Encontra-se a mesma expectativa nos literatos, que estão em gestação de ciências. Não terá o filósofo ideias sobre a maneira como as ciências, as letras, as artes, a economia e a política se ligam umas às outras, se conjugam e podem articular-se num Todo? Há qualquer coisa de verdadeiro nesta espera e nesta tradição. O filósofo ocupa-se efectivamente de questões que não são estranhas aos problemas da prática científica, aos problemas do processo de produção dos conhecimentos, aos problemas políticos e ideológicos, ao problema da relação entre todos estes problemas. Que o faça com razão é outro caso: mas fá-lo. Mas as questões filosóficas não são os problemas científicos. A filosofia tradicional pode 26
dar respostas a estas questões, não dá solução aos problemas científicos ou outros - no sentido em que os cientistas dão soluções aos seus problemas. O que quer dizer: a filosofia não resolve os problemas da ciência. Ainda aqui, tomamos posição na filosofia: a filosofia não é ciência, nem a f ortiori a ciência nem a ciência das crises da ciência, nem a ciência do Todo. As questões filosóficas não são ipso facto problemas científicos. Registo imediatamente esta posição nas Teses. Tese 12. A filosofia enuncia Teses que dizem respeito efectivamente à maior parte dos pontos sensíveis dos problemas ditos de «totalidade». Mas como a filosofia não é ciência, nem a ciência do Todo, não dá solução a estes problemas. Ela intervém doutra maneira: enunciando Teses que contribuem para desimpedir a via para uma justa posição destes problemas. Tese 13. A filosofia enuncia Teses que reúnem e produzem não conceitos científicos mas categorias filosóficas. Tese 14. O conjunto das Teses e das categorias filosóficas que aquelas produzem podem ser reunidas sob e funcionar como um método filosófico. Tese 15. O método filosófico é, pela sua modalidade e funcionamento, diferente dum método científico.
27
C.
3. 0 nível
Eis as últimas razões. Sentimos todos, por detrás dos problemas puramente científicos, a presença de acontecimentos históricos de mais vasto alcance. O vocabulário oficial sanciona este facto: «mutações» nas ciências, «passagem à idade cósmica», «revolução na civilização» ( de Teilhard de Chardin a Fourastier). Todos os problemas políticos que se sabem mais ou menos ligados com estas questões, o pano de fundo, os U.S.A., a U.R.S.S., a China. As verdadeiras revoluções políticas e sociais. O sentimento duma «viragem» na história da humanidade restitui então força à velha questão: donde vimos? Onde estamos? - apensa à questão das questões: para onde vamos? Questão a compreender em todos os sentidos do termo, e sob todos os seus aspectos. Interroga não só o mundo e a ciência: onde vai a história, vai a ciência ( exploração, bem-estar, guerra atómica?), mas também cada um dentre nós: qual é o nosso lugar no mundo? que lugar ocupar hoje no mundo em função do seu futuro aleatório? que atitude adoptar perante o nosso trabalho, as ideias gerais que guiam ou entravam a nossa investigação, que podem guiar a nossa acção política? última questão: para onde vamos? há a questão prática urgente, crucial, como orientar-se'! que direcção seguir?, que fazer? 28
Para os intelectuais, cientistas ou literatos, a questão toma forma precisa: que lugar ocupa no mundo, que lugar representa no mundo a nossa actividade? Que somos nós neste mundo como intelectuais? Porque, em definitivo, que é um intelectual senão o produto duma história e duma sociedade cuja divisão do trabalho nos impõe este papel e as suas viseiras? Será que as revoluções que nós conhecemos ou vemos não anunciam o nascimento de um outro tipo de intelectual? Mas então qual o nosso papel nesta transformação? Sentido da história, lugar no mundo, legitimidade da função: outras tantas questões que, quando o mundo abala as velhas certezas, não deixam de perturbar e acabam sempre por levantar a velha questão religiosa do destino. Para onde vamos? Bem depressa esta questão cedeu o passo. Ela torna-se nesta: qual é o destino do homem? ou: quais são os fins últimos da história? Então estamos perto de dizer: a filosofia deve ter subentendido qualquer coisa como uma resposta. De facto, do Todo ao Destino, às origens e aos fins últimos, a distância é curta. A mesma filosofia que pretendeu conceber o Todo pretendeu também enunciar o destino do homem e os Fins da história. Que devemos fazer? Que podemos esperar? A estas questões morais e religiosas a filosofia tradicional respondeu, duma forma ou doutra, por 29
uma teoria dos «fins últimos», como espelho duma teoria da «origem» radical das coisas. Não se deve iludir esta expectativa. Ainda aqui responderei com Teses, tomando, como sempre, partido na filosofia. Todos compreenderão, com efeito, que a filosofia de que se trata nestas Teses não é a filosofia em geral nem a fortiori a filosofia dos «fins últimos». Tese 16. A filosofia não responde às questões da «origem» e dos «fins· últimos», porque a filosofia não é nem a religião nem a moral. Tese 11. A questão da «origem» e dos «fins últimos» é uma proposição ideológica ( cf. Tese 9). Tese 18. As questões da «origem» e dos «fins últimos» são proposições ideológicas extraídas da ideologia religiosa e moral que são ideologias práticas. Tese 19. As ideologias práticas são formações complexas de montagens de noções-representações-imagens nos comportamentos-condutas-atitudes-gestos. O conjunto funciona como normas práticas que governam a atitude e a tomada de posição concreta dos homens em relação a objectos reais e problemas reais da sua existência social e individual, e da sua história. Tese 20. A filosofia tem por função traçar uma linha de demarcação entre o ideológico das ideologias, por um lado, e o científico das ciências, por outro.
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Vejam o que se passou. A questão sobre o sentido da história, sobre o destino do homem projectou para a primeira cena um novo personagem: o ideológico. Não na forma que nós conhecemos já na Tese 9 ( uma proposição ideológica é ... ) - que era apenas formal - mas sob outra forma: a que liga uma proposição ideológica à sua «terra natal»: a ideologia prática, portanto a uma realidade social exterior e estranha à prática científica. E vede o que se passa. Com a ideologia (referida às ideologias práticas), é um terceiro personagem que entra em cena. Até aqui tínhamos dois: a filosofia e a ciência. E a nossa questão central era: o que é que distingue a filosofia das ciências? O que é que dá à filosofia a sua natureza própria, distinta da natureza das ciências? Agora uma nova questão aparece: o que é que distingue o científico do ideológico? Questão que teremos ou que encarar ou que substituir por outra. Mas que, de súbito, explode na filosofia. Porque enfim a filosofia em que tomamos posição é completamente invadida pelas ideologias práticas! - porque as reflecte na sua teoria dos «fins últimos», sejam religiosos ou morais. Notemos apenas este ponto: desde agora, a filosofia define-se por uma dupla relação: com as ciências e com as ideologias práticas. Não se trata de especulação. Se esperamos receber algo da filosofia, devemos saber o que ela nos pode dar e, para isso, do que ela é feita, 31
de quem depende e como funciona. Avançamos passo a passo: descobrimos o que é a filosofia praticando-a. Não há outro caminho. E a nossa posição é coerente: bem dissemos que a filosofia era acima de tudo prática. Vede o resultado. O ter muito simplesmente tomado a sério e examinado mais de perto (mas ainda de muito longe) não só as razões, digamos, negativas, maliciosas em todo o caso, mas as razões positivas, embora imprecisas, que podíeis ter ao vir escutar um filósofo nos seus exercícios públicos, provocou este resultado: uma avalanche de Teses! Não vos assusteis. Vamos entrar no pormenor.
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II.
UM EXEMPLO
Justamente, para não ficarmos na secura das Teses, o melhor é mostrar como elas funcionam com um exemplo. Não é uma ilustração: a filosofia não se ilustra, não se aplica. Exerce-se. Não pode aprender-se senão praticando-a, porque ela não existe senão na sua prática. Este ponto pode enunciar-se sob a forma de Tese mas deixo-vos esse cuidado: a título de exercício «prático» ... Portanto, para demonstrar como a filosofia funciona, como ela traça as linhas de demarcação crítica para abrir uma via justa, vamos dar um exemplo, o duma proposição ideológica, o da palavra de ordem da interdisciplinaridade. Veremos que não é por acaso que o exemplo que escolhemos é o duma proposição ideológica. Volto a recordar: a interdisciplinaridade é hoje uma palavra de ordem muito espalhada, da qual se espera a solução de todas as espécies de problemas suspensos nas ciências exactas, 33
(matemáticas e ciências da natureza), ciências humanas e outras práticas. Volto a recordar: uma proposição ideológica é uma proposição que, sendo o sintoma duma realidade diferente da que visa, é uma proposição falsa na medida em que toma por objecto a realidade que visa (Tese 9). Em que vai consistir o trabalho da filosofia sobre esta proposição ideológica? Traçar uma linha de demarcação entre a pretensão ideológica da interdisciplinaridade e as realidades de que é o sintoma. Quando tomarmos o peso às realidades, pois bem, ver-se-á o que resta das pretensões ideológicas. É claro que qualquer coisa como a interdisciplinaridade corresponde a uma exigência objectiva e fundada, quando existe uma «encomenda» que requer a cooperação ordenada de especialistas de vários ramos da divisão do trabalho. Assim, logo que decidimos construir algures um grande conjunto, convocamos, de acordo com as exigências das diferentes necessidades, toda uma série de especialistas: economistas, sociólogos, geólogos, geógrafos, arquitectos, engenheiros de diversas artes e técnicas, etc. Os resultados são o que são (por vezes um fracasso), mas em princípio ninguém contesta que é necessário passar por aí. A interdisciplinaridade definida pelas exigências técnicas duma encomenda aparece
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então como o inverso da divisão do trabalho, a sua recomposição numa obra colectiva. Não poderemos dizer o mesmo da interdisciplinaridade intelectual nas ciências quando se trata de «encomendas» justificadas? Formalmente sim. Assim os físicos chamam os matemáticos, os biólogos recorrem aos serviços dos matemáticos, de biólogos e de químicos: mas sempre para resolver problemas definidos, cuja solução depende da intervenção de especialistas doutras disciplinas. Se o que eu digo é justo (pelo menos aproximadamente, pois se trata de simples notas), estou a fazer uma «distinção», portanto a «traçar uma linha de demarcação» entre o justo recurso à cooperação técnica e científica (que se pode definir por encomendas precisas dirigidas a especialistas doutras disciplinas para a solução de problemas surgidos numa dada disciplina), e um outro emprego, indevido, da palavra de ordem da interdisciplinaridade. No entanto, se a palavra de ordem generalizada, não definida, de interdisciplinaridade traduz uma proposição de natureza ideológica (Tese 9), é necessário considerá-la como tal: falsa no que pretende designar, mas ao mesmo tempo sintoma duma outra realidade diversa da designada explicitamente. Qual é então esta outra realidade? Examinemo-la. É a realidade das relações efectivas que, ou existem há muito entre certas disciplinas, científicas ou literárias, ou tentam constituir-se entre antigas dis-
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ciplinas e novas disciplinas (ex.: entre as matemáticas, etc., e as ciências humanas). Examinemos de perto do que se trata. E distingamos três casos: 1. as relações entre disciplinas pertencentes às ciências exactas; 2. as relações entre ciências exactas e ciências humanas; 3. as relações entre disciplinas literárias. 1.
RELAÇÕES ENTRE AS CIÊNCIAS EXACTAS
Muito esquematicamente, e sob reserva de todas as observações que me quiserem fazer, proponho-me dizer que existem dois tipos fundamentais de relações: de aplicação e de constituição. a)
Relações de aplicação
Distinguirei duas: a aplicação das matemáticas às ciências exactas e a aplicação duma ciência a outra. Faço pois, como se vê, uma distinção. Traço uma linha de demarcação entre estes dois tipos de aplicação. Esta distinção é o facto da filosofia. Relações entre matemáticas e ciências da natureza. Notemos já o duplo aspecto desta relação. Dum lado, todas as ciências da natureza são matematizadas: elas não podem dispensar as matemáticas. Pode-se, à primeira vista, considerar esta relação das matemáticas com as ciências da natureza como relação de 36
aplicação. Mas depressa se põe a questão filosófica: como conceber esta aplicação? Temos todos na cabeça uma noção comum e cómoda (na realidade, uma noção ideológica) da aplicação como efeito de impressão: «aplica-se>> uma assinatura a um texto, aplica-se um desenho sobre um tecido, um carimbo sobre um selo, uma folha sobre outra, etc. Uma «aplicação» é uma coisa própria para ser posta sobre ou contra. A imagem-mãe desta noção é a da sobreposição-impressão. Implica a dualidade dos objectos: aquele que é aplicado é diferente daquele sobre o qual se aplica; é a exterioridade - a instrumentalidade do primeiro em relação ao segundo. A noção comum de aplicação remete-nos assim para o mundo da técnica. Ora, traço uma linha de demarcação. Ê claro que as matemáticas não são aplicadas à física matemática, nem à física experimental, nem à química, nem à biologia, etc., à maneira da exterioridade e da instrumentalidade: à maneira de uma técnica. As matemáticas não são, para a física, uma simples «ferramenta», que se «utiliza» quando se necessita, nem sequer um «instrumento» (a menos que se dê a este nome o seu pleno sentido: por exemplo, quando se fala dum «instrumento científico» - e ainda é para ver), pois as matemáticas são a própria existência da física teórica, e infinitamente mais do que um simples instrumento na física experimental. Praticamente, podeis ver para que serve traçar esta linha de demarcação: 37
ela faz aparecer, no espaço que liberta, qualquer coisa que não se via. O quê? Perguntas: o que se deve compreender sob a categoria de aplicação das matemáticas às ciências da natureza? Primeira pergunta. Tentaremos falar nela, quanto mais não seja para ver o que a filosofia pôde perceber e falhar neste problema (e porquê. Porque teve necessariamente de falhar?). Mas esta primeira pergunta arrasta outra, sua correspondente, porque aquilo que, pelo nosso traçado, distinguimos sob a aplicação é a técnica: o que é a técnica? qual o seu campo de validade? Porque esta palavra encobre manifestamente várias realidades: entre a técnica do ferreiro, a do engenheiro, e os problemas técnicos que dominam actualmente toda uma série de ramos das ciências da natureza (física, química, biologia), há também, sem dúvida, diferenças. Portanto linhas de demarcação a traçar. Tentaremos. Mas a relação das matemáticas com as ciências da natureza não tem sentido único. As ciências da natureza põem problemas aos matemáticos: sempre lhes puseram. Sob a aplicação das matemáticas às ciências da natureza dissimula-se pois uma outra relação inversa: aquela pela qual os matemáticos são obrigados a pôr, para responder ao pedido das ciências, problemas que podem ser ou de matemática «aplicada», ou de matemática pura. Tudo se passa como se os matemáticos devolvessem às ciências, sob uma forma elaborada, o que
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receberam delas. Nesta troca orgânica, temos ainda o direito de falar de aplicação? Não devemos falar outra linguagem e dizer que existe entre as matemáticas e as ciências da natureza uma outra relação, uma relação de constituição - não sendo as matemáticas nem uma ferramenta, nem um instrumento, nem um método, nem uma linguagem ao serviço das ciências, mas parte participante na sua existência, na sua constituição? Uma palavra em vez de outra: constituição no lugar de aplicação: parece uma ninharia. Contudo, é assim que a filosofia procede. Basta uma nova palavra para desembaraçar o espaço duma pergunta, aquela que não tinha sido posta. A nova palavra abala as antigas, e faz o vazio para a nova pergunta. A nova questão põe em questão as antigas respostas, e as velhas questões adormecidas debaixo delas. Ganha-se aí uma nova visão das coisas. Assim se pode avançar com a palavra «constituição», se é «justa». b)
Relações de constituição
Tomemos o caso em toda a sua generalidade: quando uma ciência ou parte duma ciência intervêm na prática duma outra ciência. Estas relações são típicas dos fenómenos científicos contemporâneos. Põem cada vez mais em jogo disciplinas ditas «vizinhas» nas zonas outrora consideradas como «fronteiras~
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definitivas. Das suas novas relações nascem disciplinas inéditas: química-física, biofísica, bioquímica, etc. Estas novas disciplinas são frequentemente a consequência do desenvolvimento de novos ramos internos das disciplinas clássicas: assim a física atómica desabou sobre a química e a biologia; conjuntamente com os progressos da química orgânica, contribuiu para o nascimento da bioquímica. Estas trocas são as relações orgânicas que se constituem entre as diferentes disciplinas científicas, sem intervenção filosófica exterior. Obedecem a necessidades puramente científicas, e puramente internas às ciências consideradas. Uma coisa é certa: estas relações não cons-
tituem o que, na ideologia corrente, se chama hoje trocas interdisciplinares. As novas disciplinas (química, física, bioquímica) não são o produto de «mesas redondas» interdisciplinares: nem tão-pouco ciências interdisciplinares». São ou novos ramos de ciências clássicas ou novas ciências. Somos portanto obrigados a traçar uma linha de demarcação entre a ideologia interdisciplinar e a realidade efectiva do processo da aplicação e da constituição das ciências entre si. Traçar esta linha de demarcação tem consequências teóricas e práticas. Teoricamente esta linha de demarcação origina nitidamente questões filosóficas: O que é a aplicação das matemáticas às ciências? O que é a técnica? O que é a aplicação duma ciência a outra? 40
Porque devemos (à primeira vista) falar de constituição em vez de aplicação? Que dialéctica concreta actua nesta relações complexas? Estas questões filosóficas podem abrir o caminho a problemas científicos ( os da história das ciências, ou, antes, das condições dos processos de constituição das ciências). Praticamente, esta linha de demarcação pode ter efeitos reais: evitar certas concepções, certas tendências ou tentações em matéria de colaboração «interdisciplinar» cega e favorecer todas as práticas fecundas. Tiro uma última conclusão. Há ideias falsas sobre a ciência, não apenas na cabeça dos filósofos, mas na cabeça dos próprios cientistas. Falsas «evidências» que, longe de serem meios de progredir, são na realidade «obstáculos epistemológicos» (Bachelard). Ê necessário criticá-los e reduzi-los, mostrando os problemas reais que encobrem debaixo das soluções imaginárias que enunciam (Tese 9). Mas é preciso ir mais longe: e reconhecer que não é por acaso que estas ideias falsas reinam em certas sedes do domínio da actividade científica. São ideias e representações não científicas, ideológicas. Formam o que chamaremos provisoriamente a ideologia científica, ou ideologia dos cientistas. Uma filosofia capaz de as discernir e de as criticar pode ter como efeito chamar a atenção dos cientistas sobre a existência e eficácia do obstáculo epistemológico que representa esta ideologia científica espontânea: a
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representação que fazem os cientistas da sua própria prática e das suas relações com a própria prática. Ainda aqui a filosofia não se substitui aos cientistas: ela intervém para desimpedir a via, na qual se pode então traçar uma linha justa. Passo à Tese 21. A ideologia científica (ou dos cientistas) forma corpo com a prática científica: é a ideologia «espontânea» da prática científica. Ainda aqui antecipo. Explicar-me-ei. Não acrescento senão uma palavra sobre esta ideologia «espontânea»»: veremos que é «espontânea» porque não o é. São as surpresas da filosofia. 2.
RELAÇÕES ENTRE DISCIPLINAS CIENTíFICAS E DISCIPLINAS LITERARIAS
Estas relações estendem-se de forma espectacular. Para as fazer aparecer, façamos de novo «intervir» a diferença das nossas duas categorias: aplicação/constituição. Por exemplo: formalmente, pode-se aproximar a relação pública entre as matemáticas e as ciências humanas da relação anteriormente evocada entre matemáticas e ciências da natureza. Mas existe uma grande diferença: no caso das ciências humanas, a relação das matemáticas é manifestamente, no todo ou em parte, uma relação exterior, não orgâ-
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nica, enfim uma relação teórica de aplicação. Nas ciências da natureza, a questão das condições de aplicação das matemáticas, portanto da legitimidade desta aplicação e das suas formas técnicas, não é uma questão problemática: a filosofia pode pôr-lhe problemas, mas não constitui problema para a prática científica. Nas ciências humanas, pelo contrário, esta questão é a maior parte das vezes problemática. Certos (filósofos espiritualistas) contestam a própria possibilidade da matematização das ciências humanas: outros contestam as formas técnicas desta aplicação. É este carácter problemático, esta hesitação, que se exprimem no voto da interdisciplinaridade e na expressão «trocas interdisciplinares». A noção de interdisciplinaridade indica não uma snlução, mas uma contradição: o facto da exterioridade relativa das disciplinas postas em relação. Esta exterioridade (as matemáticas como «ferramenta», e como «ferramenta» mais ou menos bem adaptada) traduz o carácter problemático destas relações ou das suas formas técnicas (que uso se faz das matemáticas em «psicologia», em economia política, em sociologia, em história ... ? que cumplicidades são de facto seladas sob o prestígio deste uso?). De problema em problema, acaba-se por verificar que esta exterioridade traduz e trai a incerteza da maioria das ciências humanas no seu estatuto teórico. Esta impaciência generalizada em atirar-se sobre as matemáticas é
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um sintoma: a maturidade teórica não está atingida. Será uma simples «doença infantil» devida à juventude relativa das ciências humanas? Ou será mais grave: o indício de que as ciências humanas estão, na sua maioria, «deslocadas» em relação ao seu objecto, que não assentam no seu verdadeiro fundamento distintivo, que há entre elas e a sua pretensão uma espécie de mal-entendido, que elas falham o objecto que pretendem atingir, pela razão de que este objecto, paradoxalmente ( aquele que elas se atribuem), não existe? Todas estas perguntas são apoiadas numa experiência real, da qual Kant outrora tinha (para a teologia, e também para a psicologia racional e a cosmologia racional) extraído a lição: podem existir ciências cujos objectos não existem, podem existir ciências sem objecto (no sentido forte). Seriam aqui necessárias novas distinções. Mas, como sempre, devo antecipar. Corro pois o risco de me pronunciar sobre o fenómeno no seu conjunto, e tomo posição. Digo: no essencial, na maior parte das ciências humanas, a inflação matematizante não é uma doença de juventude, mas uma fuga em frente para preencher uma lacuna fundamental: salvo algumas excepções, precisas, as ciências humanas são ciências sem objecto (no sentido forte), têm uma base teórica falsa ou equívoca, produzem longos discursos e numerosos «resultados», mas, embora convencidos que sabem muito bem de
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quê elas são ciencias, a verdade é que «não sabem» de quê são ciências: mal-entendido. Mas deixemos a relação de aplicação e passemos à relação de constituição. Podemo-lo observar hoje numa disciplina tradicionalmente considerada como um ramo da filosofia: a lógica Presentemente a lógica tornou-se a lógica matemática, e tornou-se de facto independente da filosofia. O seu estatuto é particular. De certa maneira, pode-se compará-la às novas disciplinas-fronteiras que se observam nas ciências da natureza, tais como a química-física ou a bioquímica. A lógica matemática é um ramo das matemáticas. Mas, como disciplina científica, funciona antes de mais nas ciências humanas: é objecto de aplicações ou pode ser objecto de aplicações a toda uma série de disciplinas literárias (linguística, semiologia, psicanálise, história literária). Também aqui, toda uma série de questões. Destas observações ao mesmo tempo sumárias e gerais,. podem-se tirar algumas conclusões. Podemos dizer: - que entre as ciências humanas e as ciências, e antes do mais entre as ciências humanas e as matemáticas de um lado, e a lógica-matemática do outro existem relações formalmente semelhantes às relações existentes entre as ciências exactas, com o duplo fenómeno que ai observámos: aplicação e constituição; - mas que esta relação é muito mais exterior, portanto mais técnica (não orgânica),
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que a relação existente entre as próprias ciências exactas. Que esta exterioridade parece autorizar uma expressão como a noção de trocas «interdisciplinares», portanto a noção de interdisciplinaridade. Mas que esta noção tem todas as hipóteses de ser a denominação ilusória dum problema muito diferente daquilo que designa; - que, pelo contrário, a utilização de certas filosofias pelas ciências humanas parece necessária ao estabelecimento desta relação. Aqui temos mais um novo índice, e importante. Enquanto nas ciências exactas tudo se passa sem intervenção visível da filosofia e do seu aparelho, nas ciências humanas, a estrutura das relações entre as ciências e as ciências humanas parece requerer, por razões mal explicadas e portanto confusas, a intervenção invasora deste terceiro personagem que é a filosofia: em pessoa. Notemos aqui um ponto importante. 1) São as ciências humanas que utilizam categorias filosóficas e as submetem aos seus objectivos. Fazem um grande consumo de filosofia. Mas a iniciativa não parece vir da filosofia. Segundo todas as aparências não se trata duma intervenção crítica da filosofia nos problemas ideológicos das ciências humanas, mas do contrário: duma exploração pelas ciências humanas de certas categorias filosóficas ou de certas filosofias. 2) Não se trata da «filosofia» em geral, mas de categorias ou de filosofias muito
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determinadas, idealistas (positivistas, neopositivistas, estruturalistas, formalistas, fenomenológicas, etc.) até mesmo espiritualistas. 3) Estas categorias filosóficas e estas filosofias assim «exploradas» pelas ciências humanas são praticamente utilizadas por elas como o substituto ideológico duma base teórica que lhes falta. 4) Mas então a questão que se pode pôr é a seguinte: toda esta irrefutável prática filosófica tomada de empréstimo das ciências humanas, não será ao mesmo tempo uma aparência? Não será preciso inverter a ordem das coisas? Será que, na cumplicidade necessária entre as ciências humanas e estas filosofias idealistas, não são os filósofos que conduzem o baile? Não será que as ciências humanas são ciências sem objecto porque não fazem mais que «realizar» no seu «objecto» tendências filosóficas idealistas determinadas, enraizadas nas «ideologias práticas» do nosso tempo, isto é da nossa sociedade? Ciências sem objecto que não seriam mais que filosofias disfarçadas em ciência? No fim de contas tudo isto se ligaria perfeitamente, visto que nós sabêmo-lo: a filosofia não tem objecto. Seja como for, esta Tese: as filosofias servem de substituto ideológico duma base teórica que falta às ciências humanas - esta Tese vale para a maioria das ciências humanas: não para todas, pois há excepções ( ex. : a psicanálise e, em certa medida, a linguística, etc.) . Lembro
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também que esta Tese não implica que certos aspectos, certos processos, certos resultados mesmo das ciências humanas não possam possuir um valor positivo. Ê para examinar, em cada caso, em pormenor: mas como um aspecto interior e subordinado a uma problemática
de conjunto. Daí resulta que a proporção das ideias «duvidosas» cresce quando se passa da relação existente entre as ciências exactas à relação existente entre as ciências exactas e as ciencias humanas. Antes, tínhamos lidado com ideias falsas localizadas e localizáveis. Agora não temos que falar directamente de ideias falsas mas de ideias suspeitas generalizadas. A exploração de certas filosofias está na razão directa do carácter suspeito destas ideias. O que nós podemos chamar ideologias científicas e ideologias filosóficas reveste, no domínio das ciências humanas, uma importância extrema. Não somente estas ideologias existem e têm um grande lugar no nosso mundo mas comandam directamente a prática científica das ciências humanas. Elas servem de teoria às ciências humanas. Daí a importância duma filosofia capaz de traçar uma linha de demarcação que atravesse o domínio da maior parte das ciências humanas: para ajudar a distinguir as «verdadeiras» ciências das pretensas ciências e distinguir o seu fundamento ideológico de facto do fundamento teórico de direito (designado em vazio,
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provisoriamente) que faria delas algo mais que ciências sem objecto. Daí a importância da nossa posição, que se torna clara: este trabalho não pode ser empreendido e levado a bom termo em nome destas filosofias que as ciências humanas pensam explorar, quando na realidade elas são as suas escravas tagarelas, mas em nome duma outra, bem autra, filosofia. A linha de demarcação 'JXl,SSa assim na própria filosofia. 3.
RELAÇÕES ENTRE DISCIPLINAS LITERARIAS
Estas relações foram sempre muito numerosas e estreitas. Aparentemente, estão em vias de mudar de base. Se estão em vias de mudar de base, é porque as disciplinas das ciências humanas estão em vias de mudar de base: é pelo menos o que proclamam. Vejamo-lo mais de perto. Tradicionalmente, as disciplinas literárias repousam numa relação muito particular com o seu «objecto»: uma relação prática de utilização, de apreciação, de degustação, ou, se se prefere, de consumo. As letras, as humanidades e as práticas do ensino e da investigação que lhes estão ligadas desde há séculos, fazem delas uma escola de «cultura». Isso significa duas coisas. 1. A relação entre as disciplinas literárias e o seu objecto (literatura propriamente dita, belas-artes, história, lógica, filosofia, moral,
religião) tem por função dominante não tanto o conhecimento deste objecto, como a definição e a aprendizagem das regras, das normas e das práticas destinadas a estabelecer nos «letrados» relações «culturais» entre eles e estes objectos. Antes de mais nada: saber manejar estes objectos para os consumir como «convém». Saber «ler», isto é, «provar», «apreciar» um texto clássico, saber «utilizar as lições» da história, saber aplicar um bom método para «bem» pensar (lógica), recorrer às ideias justas (filo.. sofia) para aí nos reconhecermos nos grandes problemas da existência humana, da ciência, da moral, da religião, etc. Pela sua relação particular, as letras ou humanidades davam assim um certo saber: não o saber científico do seu objecto, não um saber sobre o mecanismo do seu objecto, mas, além duma certa erudição necessária à familiaridade, um saber-/azer: mais precisamente um saber-como•fazer-para bem apreciar-julgar, saborear-consumir-utilizar este objecto. O que é propriamente a «cultura»: um saber investido num saber-como-fazer-para... Ora, neste conjunto, o que é secundário ( e permanece superficial, formal, se bem que não negligenciável), é o saber; o que vence é o saber-como-fazer-para ... Fundamentalmente, por conseguinte, as letras eram o lugar por excelência da pedagogia, isto é, da domesticação cultural: aprender a bem pensar, bem julgar, bem saborear, bem consumir, bem comportar-se frente a todos os objectos 50
culturais da existência humana. Finalidade: o homem honesto ou o homem «culto». 2. A relação prática de consumo existente entre as disciplinas literárias e o seu objecto não pode ser considerada como uma relação de conhecimento científico. A «cultura» que as humanidades proporcionavam nos seus diversos ramos (letras, lógica, história, moral, filosofia, etc.) não eram senão o comentário, a propósito de objectos consagrados, da «cultura» existente na própria sociedade. Para se compreender o sentido da «cultura» que as humanidades proporcionavam, é necessário então interrogar não as próprias humanidades, ou as únicas humanidades, mas a cultura existente na sociedade que «cultivava» estas letras e as funções de classe desta cultura, portanto a divisão em classes desta sociedade. A «cultura» que se que se ensina nas escolas não passa efectivamente de uma cultura em segundo grau, uma cultura que «cultiva» visando um número, quer restrito quer mais largo, de indivíduos desta sociedade, e incidindo sobre objectos privilegiados (letras, artes, lógica, filosofia, etc.), a arte de se ligar a estes objectos: como meio prático de inculcar a estes indivíduos normas definidas de conduta prática perante as instituições, «valores» e acontecimentos desta sociedade. A cultura é ideologia de elite e/ou de massa de uma sociedade dada. Não a ideologia real das massas (pois em função das oposições de classe, há várias ten-
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dências na cultura): mas a ideologia que a classe dominante tenta inculcar, directa ou indirectamente, pelo ensino ou outras vias, e num fundo de discriminação ( cultura para elites, cultura para as massas populares) às massas que domina. Trata-se dum empreendimento de carácter hegemónico (Gramsci): obter o consentimento das massas pela ideologia difundida (sob as formas da apresentação e da inculcação de cultura). A ideologia dominante é sempre imposta às massas contra certas tendências da sua própria cultura, que não é reconhecida nem sancionada mas que resiste. Esta ideia das letras não é conforme às ideias recebidas. Não nos podemos contentar com as letras à letra e crer na definição que dão de si próprias. Por detrás das disciplinas literárias, há uma longa herança: a das humanidades. Para compreender as humanidades, é necessário procurar o sentido da «cultura:. que ministram nas normas de condutas dominantes da sociedade considerada: na ideologia religiosa, moral, jurídica, política, etc., enfim nas ideologias práticas. E eis a consequência: a «cultura» literária ministrada no ensino das escolas não é um fenómeno puramente escolar, é um momento entre outros da «educação» ideológica das massas populares. Pelos seus meios e efeitos, ela traz outros à superfície, postos em prática ao mesmo tempo: religiosos, jurídicos, morais, políticos, etc. Outros tantos meios ideológicos da hegemonia da classe dominante, que
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são todos reagrupados em volta do Estado de que a classe dominante detém o poder. Bem entendido, esta conexão, podíamos dizer sincronização, entre a cultura literária (que é o objecto-objectivo das humanidades clássicas) e a acção ideológica de massa exercida pela Igreja, pelo Estado, pelo Direito, pelas formas do regime político, etc., são a maior parte das vezes mascaradas. Mas aparecem à luz do dia nas grandes crises políticas e ideológicas, onde por exemplo as reformas do ensino são abertamente reconhecidas como revoluções nos métodos de acção ideológica sobre as massas. Vê-se então muito claramente que o ensino está em relação directa com a ideologia dominante e que a sua concepção, a sua orientação e o seu controlo são um terreno importante da luta de classes. Exemplo: a reforma do ensino da Convenção, a reforma do ensino de Jules Ferry, a reforma do ensino que tanto preocupava Lenine e Krupskaia, a reforma do ensino sob a revolução cultural, etc. Mas também as ciências são objecto dum ensino. As letras, entendidas como humanidades, segundo a sua longa história, não são pois a única «matéria» de formação «cultural», isto é ideológica. O ensino das ciências é também a sede duma formação semelhante, «cultural» se bem que sob uma forma infinitamente menos visível, e mais subtil. Mas a forma como se ensinam as próprias ciências exactas implica uma certa relação ideológica com a 53
sua existência e o seu conteúdo. Não há ensino de saber puro que não seja ao mesmo tempo um saber-fazer, isto é, em definitivo, de um saber-como-se-comportar-perante-esse-saber: da sua função teórica e social. Este saber-como ... induz uma atitude política frente ao objecto do saber, ao saber como objecto e ao seu lugar na sociedade. Todo o ensino científico veicula, quer se queira quer não, uma ideologia da ciência e seus resultados, isto é, um certo-saber-como-se-comportar perante a ciência, os seus resultados, repousando numa certa ideia do lugar da ciência na sociedade existente e numa certa ideia do papel dos intelectuais especializados no conhecimento científico, portanto da divisão do trabalho manual e intelectual. Perceber a ideologia veiculada pelo ensino, os seus programas, as suas formas, as suas práticas, etc., não somente nas letras mas nas ciências, nada mais difícil para os intelectuais. Eles estão na cultura como peixes na água: mas os peixes não vêem a água em que se banham. Pois tudo neles se opõe à percepção exacta do lugar que ocupam na sociedade, a cultura de que se alimentam, o ensino que a ministra, as disciplinas que praticam - sem falar do local que eles próprios ocupam como intelectuais, universitários e investigadores nesta sociedade. Tudo se opõe a essa percepção: os efeitos da divisão do trabalho (primeiro entre o trabalho manual e o trabalho intelectual, depois no interior do trabalho intelectual: a 54
divisão entre especialidades intelectuais), a imediatidade impressionante do objecto da sua actividade que lhe absorve a atenção, o carácter ao mesmo tempo extremamente concreto e extremamente abstracto da sua prática, etc. A prática que exercem, num quadro definido por leis que não dominam, produz assim espontaneamente uma ideologia na qual vivem sem ter razões para progredir. Mas ainda há mais. A sua própria ideologia, a ideologia espontânea da sua prática (a sua ideologia da ciência ou das letras), não depende apenas da sua prática própria: depende além do mais e em última análise do sistema ideológico dominante da sociedade em que vivem. É, em suma, esse sistema ideológico que governa as próprias formas da sua ideologia da ciência e das letras. O que parece passar-se diante deles passa-se na realidade, quanto ao essencial, nas suas costas. Mas voltemos às letras. Desde um certo tempo: desde o século XVIII, mas de forma infinitamente mais acentuada e rápida desde estes últimos anos, a relação das disciplinas literárias está, aparentemente, em vias de mudar de base. Era uma relação prática, isto é, ideológica e política, no fundo. Ora, de todos os lados, as disciplinas literárias proclamam que esta relação mudou. Ter-se-ia tornado científica. Mesmo que seja mais ou menos uma veleidade, este fenómeno é visível na maior parte das disciplinas que se intitulam ciências humanas. Não falemos da lógica: deslocou-se e faz 55
agora parte das matemáticas. Mas a linguística parece ter-se tornado, pelo menos em algumas das suas «regiões», uma ciência. A psicanálise, durante muito tempo condenada e banida, começa a ver reconhecidos os seus títulos. Outras disciplinas pretendem também ter atingido o nível científico : a economia política, a sociologia, a psicologia, a história ... A própria história literária renovou-se, deixando atrás de si a tradição das humanidades. Ê a partir desta situação contraditória que se podem compreender as relações que se esboçam actualmente entre as diferentes disciplinas literárias. Elas reivindicam o nome de ciências humanas, marcando, com a palavra ciências, a sua pretensão em ter posto fim à antiga relação com o seu objecto. Em vez duma relação cultural, isto é, ideológica, querem instaurar uma nova relação: científica. No conjunto, pensam ter conseguido esta conversão e proclamam-no no nome que se dão a si próprias, baptizando-se de ciências humanas. Mas uma proclamação pode ser apenas uma proclamação: uma intenção, um programa - mas também em parte um mito, destinado a alimentar uma ilusão, a «realização dum desejo». Não é certo que as ciências humanas tenham na verdade mudado de «natureza» ao mudar de nome e de métodos. A prova está no tipo de relações que se constituem actualmente entre as disciplinas literárias: matematização sistemática de numerosas disciplinas (economia polí-
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tica, sociologia, psicologia); e «aplicação» das disciplinas manifestamente mais avançadas na científicidade sobre as outras (papel piloto da lógica-matemática, e sobretudo da linguística, papel igualmente invasor da psicanálise, etc.). Contrariamente ao que se passa nas ciências da natureza, onde as relações são geralmente orgânicas, este género de «aplicação» permanece exterior, mecânico, instrumental, técnico - portanto suspeito. O exemplo actual mais aberrante da aplicação exterior dum «método» ( que na sua universalidade» depende da moda) a um objecto qualquer é o «estruturalismo». Quando as disciplinas andam à procura dum método universal, há fortes razões para se suspeitar que elas têm demasiada vontade de exibir os seus títulos científicos para os terem merecido. As verdadeiras ciências não precisam nunca de tornar público que encontraram a receita para o serem. Um outro ponto sensível deste processo equívoco apareceu na relação existente entre esta relação (entre disciplinas) e a filosofia. As ciências humanas em vias de constituição exploram abertamente certas filosofias. Procuram nestas filosofias (por exemplo, na fenomenologia, cuja influência está a decrescer, no estruturalismo, até no hegelianismo e mesmo no nietzscheanismo) um apoio e uma orientação. Procuram-no inclusive numa recusa agressiva de toda a filosofia, que, no estado em que estão, é também uma recusa filosófica da filo-
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sofia (variedade de positivismo). Já o vimos, esta relação inverte-se: as ciências humanas não exploram filosofias, ou outras disciplinas que se apresentam como filosofia (como a linguística e a psicanálise que servem cada vez mais de «filosofias» à história literária, à «semiologia», etc.), apenas porque realizam elas próprias a ideologia dominante. Neste jogo, qualquer coisa aparece, se quisermos ver, como uma falta. Justamente o que falta às ciências humanas para merecer o seu título: ter enfim reconhecido a sua base teórica. Através de todas as relações, directas ou cruzadas, reencontramos o nosso termo e a nossa questão: a interdisciplinaridade. Este mito aparece plenamente nas ciências humanas. A sociologia, a economia política, a psicologia, a linguística, a história literária, etc., não cessam de pedir emprestadas noções, métodos, processos e procedimentos às disciplinas existentes, quer sejam literárias ou científicas. É a prática ecléctica das «mesas redondas» interdisciplinares. Convidam-se os vizinhos, ao acaso, melhor ou pior, para não esquecer ninguém, nunca se sabe. Quando se convida toda a gente, para não esquecer ninguém, isso significa que não se sabe ao certo quem convidar, que não se sabe onde se está, que não se sabe para onde se vai. Esta prática das «mesas redondas» duplica-se necessariamente numa ideologia das virtudes da interdisciplinaridade, que é o contraponto e a missa. Esta ideologia encerra-se
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numa fórmula: quando se ignora qualquer coisa que toda a gente ignora, basta reunir todos os ignorantes: a ciência sairá da reunião dos ignorantes. Estou a brincar? Esta prática está em contradição flagrante com o que nós sabemos por outro lado do processo de constituição das ciências reais, incluindo novas ciências. Elas não nasceram nunca duma «mesa redonda» de especialistas. Pelo contrário, esta prática e a sua ideologia estão em relação com o que sabemos do processo de dominação das ideologias. Quando se convida toda a gente, não é a nova ciência, esperada, que é convidada, pois ela não é nunca o resultado da reunião de especialistas que a ignoram, mas um personagem que ninguém convidou - e que não é necessário convidar visto que se dá por convidado! - , a ideologia teórica comum que habita silenciosamente a «consciência» de todos estes especialistas: quando se reunem, é ela que fala alto - pelas suas vozes. Ã parte certos casos precisos, as mais das vezes técnicos, em que esta prática está efectivamente no seu lugar (quando uma disciplina «encomenda» justificadamente a outra, na base de laços orgânicos reais entre as disciplinas), a interdisciplinaridade permanece uma prática mágica, serve uma ideologia, na qual os cientistas (ou pretensos cientistas) representam imaginariamente a divisão do trabalho científico, as relações entre as ciên-
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cias e as condições da «descoberta», para se persuadirem de que agarram um objecto que lhes foge. Muito concretamente, a interdisciplinaridade é a maior parte das vezes a palavra de ordem e a prática da ideologia espontânea d'os especialistas: oscilando entre um espiritualismo vago e o positivismo tecnocrático. Sobre tudo isto, portanto: ideias falsas a afastar, para abrir o caminho a ideias justas. Daqui em diante, é preciso interrogarmo-nos sobre o que pode consistir nas disciplinas literárias a aplicação duma ciência de métodos determinados a um novo objecto. Daqui em diante é preciso também e sobretudo interrogarmo-nos sobre a natureza da ideologia anterior e sondar os seus disfarces actuais. É preciso enfim pôr a questão das questões: se as ciências humanas são, à parte algumas excepções limitadas, o que pensam ser, isto é ciências; ou se não serão na sua maioria, uma coisa muito diferente, técnicas ideológicas de adaptação e de readaptação sociais. Se assim fosse, elas não teriam, como o proclamam, rompido com a sua antiga função ideológica e política «cultural»: agiriam por outros meios, mais aperfeiçoados, até «sofisticados», mas sempre ao serviço da mesma causa. Basta notar a relação directa que mantêm com toda uma série de outras técnicas, como os métodos das human relations e as formas modernas dos mass media, para nos convencermos que esta hipótese não é imaginária.
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Mas então, não é só o estatuto das ciências humanas que está em causa, é também o estatuto da base teórica que pretendem atribuir-se Pergunta: de que é feito o dispositivo que permite às disciplinas funcionar como técnicas ideológicas? A filosofia põe esta questão .
. Resumamos as lições que se podem tirar do exame deste simples exemplo: a interdisciplinarida.de. O que encobre na verdade a palavra de ordem da interdisciplinaridade? 1. Certas práticas reais, perfeitamente fundadas e legítimas: práticas a definir, em casos a definir. Defini-las é distingui-las das outras. Primeira linha de demarcação. 2. No interior destas práticas e destes problemas reais, há novas distinções a fazer (aplicação, constituição), portanto novas linhas de demarcação a traçar. 3. Além destas práticas reais, encontram-se as pretensões de certas disciplinas que se declaram ciências (as ciências humanas). Que pretensões são estas? Por uma nova linha de demarcação, distinguimos entre a função real da maioria das ciências humanas e o carácter ideológico da sua pretensão. 4. Voltando-nos agora para a palavra de ordem da interdisciplinaridade, estamos aptos ( tendo em vista um certo número de sintomas resistentes) a concluir o seu carácter massivamente ideológico. 61
A «lição» a tirar deste breve resumo? Fizemos «funcionar» a nossa definição da filosofia: a filosofia enuncia Teses, que traçam linhas de demarcação. Pudemos comprovar que, mesmo «selvagem» como nestes cursos, esta prática dá resultados. Qualquer pessoa pôde observar uma coisa: nem uma única vez, nem um só instante, cedemos à tentação da maior parte das filosofias e dos filósofos. Não explorámos os resultados ou as dificuldades das ciências para maior glória duma Verdade ou da Verdade. Por isso, demarcámo-nos das correntes filosóficas dominantes e marcámos a nossa própria posição. Se respeitámos as ciências e os seus resultados, e se a filosofia é intervenção, em que interviemos nós? Reparem bem nisto. Cada vez que nós interviemos foi para traçar uma linha de demarcação. Ora cada vez que traçámos uma linha de demarcação foi para jazer aparecer qualquer coisa que não era visível antes da nossa intervenção. O quê? A existência, a realidade, a consistência e a função do que nós chamámos a ideologia teórica ou científica, ou ainda a ideologia espontânea da prática dos sábios ou pretensos-sábios. E por detrás destas formas de ideologia, outras formas, as ideologias práticas e a ideologia dominante. Mas, ao mesmo tempo que fazia aparecer o ideológico, a linha de demarcação fazia reconhecer, na outra face do seu traçado, o cien-
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tífico coberto pelo ideológico: descobrindo-o. O ideológico é qualquer coisa que tem relação com a prática e a sociedade. O científico é qualquer coisa que tem relação com o conhecimento e as ciências. Em que interviemos então? Muito exactamente no «espaço» onde o ideológico e o cientifico se confundem, mas onde podem e devem ser separados, para os reconhecer cada um na sua função e para libertar a prática científica duma dominação ideológica que a entrava. Podemos dizer provisoriamente que a filosofia, praticada sobre estas posições, tem por função essencial traçar linhas de demarcação, que parecem todas poder reconduzir-se em última análise à linha de demarcação entre o científico e o ideológico. Daí a Tese 22. Todas as linhas de demarcação que traça a filosofia reconduzem-se a modaUdades duma linha fundamental: entre o científico e o ideológico. Verificamos enfim que estas intervenções têm como resultado produzir novas questões filodóficas: o que é a aplicação duma ciência a outra? a constituição duma ciência por outra? a técnica? a ideologia? a relação entre o ideológico e o filosófico?, etc. Estas questões filosó ficas não são problemas científicos. A filosofia não se intromete no domínio das ciências. Mas estas questões filosóficas podem ajudar a pôr problemas científicos, no espaço que abrem.
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Tal é o «jogo» da filosofia, como nós a praticamos. Traçar linhas de demarcação que produzem novas questões filosóficas sem fim. A estas questões que produz, a filosofia não responde como uma ciência, por soluções demonstradas ou resultados provados (no sentido científico destas palavras): responde-lhes enunciando Teses não arbitrárias, justificadas, que por sua vez traçam novas linhas de demarcação, fazendo surgir novas questões filosóficas, até ao infinito. Eis o que se pode ver. Mas por detrás do que se vê, passa-se outra coisa. Esta operação: traçar linhas de demarcação, produzir questões filosóficas, provocar novas Teses, etc., não é um jogo especulativo. É uma operação que tem efeitos práticos. Quais? Resumem-se numa palavra: o traçado (que toma a forma de Teses justificadas, dando lugar a um discurso que pode ser entendido), que divide o científico do ideológico, tem por efeito prático «desimpedir uma via», portanto retirar obstáculos, abrir um espaço para uma «linha justa» para práticas que são o lugar de intervenção das Teses filosóficas. Mas creio que já basta para um primeiro curso.
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2.° CURSO
Filosofia e justeza Neste segundo curso, vamos retomar a nossa questão central: o que é a filosofia? E esta questão vai embrenhar-nos num longo percurso. Mas surge imediatamente uma objecção: não dei já a resposta a este problema? Sim e não. Sim, pois enunciei Teses sobre a filosofia e mostrei mesmo como a filosofia «funcionava», dando um exemplo preciso: a palavra de ordem da interdisciplinaridade. Não. Pois não basta enunciar Teses sobre a filosofia e mostrar como ela «funciona», para resolver a questão. As coisas não são tão simples. Por exemplo, para começar pelo fim (o «funcionamento»), e supondo-se que este género de comparação vale bem uma razão, pode-se objectar: não basta evidentemente ver «funcionar» uma máquina, por exemplo um motor de explosão, para compreender o seu meca65
nismo, e a f ortiori as leis físicas e qmm1cas que comandam o funcionamento deste mecanismo. Por exemplo, para voltar ao começo (as Teses sobre a filosofia): sentistes bem, nas cartas que eu jogava, o estranho «impasse» que eu criava. Quando, desde as primeiras palavras, disse: «As proposições filosóficas são Teses», e também acrescentei: «esta proposição é ela própria uma Tese filosófica», de que fiz logo a Tese 1, destes bem conta da circularidade do meu percurso visto que declarava Tese filosófica a proposição pela qual definia as proposições como Teses! Podia ser uma contradição despercebida, uma inadvertência, ou uma fuga. No entanto, foi deliberadamente que penetrei neste círculo necessário. Porquê? Para fazer sentir, mesmo brutalmente, que se é indispensável sair da filosofia para a compreender, deve-se ter cuidado com a ilusão de poder fornecer uma definição, isto é, um conhecimento da filosofia que possa fugir radicalmente à filosofia: não se pode atingir uma ciência da filosofia que seja uma «metafilosofia», não se pode escapar radicalmente ao círculo da filosofia. Com efeito, todo o conhecimento objectivo sobre a filosofia é ao mesmo tempo posição na filosofia, portanto Tese na e sobre a filosofia. Foi por isso que sentistes bem que eu não podia falar da filosofia em geral senão a partir duma certa posição na filosofia: demarcando-me, tomando as mi-
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nhas distâncias em relação a outras pos1çoeE: existentes. Não há discurso objectivo sobre a filosofia que não seja ao mesmo tempo filosófico, portanto discurso sobre posições na filosofia. E para marcar esta condição inelutável que a inscrevi no círculo duma Tese, que define as proposições filosóficas como Teses. Este círculo não era pois uma inconsequência, mas uma consequência: Dizia o que fazia. Quanto a explicar em quê este círculo é necessário e fecundo, ou seja, que ele não é, como os «círculos» lógicos, estéril, ou seja, não é um «círculo», é evidentemente impossível dizê-lo em algumas palavras. Mas é uma questão que reserva surpresas. Sempre sobre as primeiras Teses. Pronunciei uma pequena palavra que- sei-o pelos problemas que me foram postos- prendeu a atenção, intrigada, até mesmo inquieta. Com efeito, disse que as proposições filosóficas, diferentemente das proposições científicas que se dizem verdadeiras, porque demonstradas ou provadas, são declaradas justas (ou não) . E acrescentei que o «verdadeiro» se refere ao conhecimento, ao passo que o «justo» diz respeito à prática. Em resumo, duas simples palavras: comuns, mas singulares. Tanto mais singulares quanto a filosofia, em toda a sua história, fala sempre da Verdade e do erro, do Verdadeiro e do falso, e os filósofos partem sempre à «Procura da Verdade», e com-
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batem entre si sempre em nome da Verdade: que nunca as proposições filosóficas foram qualificadas de justas. E eis que pretendo que sejam ditas justas ou não; mas por quem o são? - visto que ninguém usou no concerto filosófico este adjectivo. Primeiro «impasse»: não são ditas justas, mas no entanto relevam inteiramente deste adjectivo: justo. Se quisermos compreender o que se passa na filosofia, devemos considerar que estas proposições, mau grado a sua pretensão ostensiva à presença e adequação da Verdade, estão ligadas ao mundo em que intervêm por uma outra relação: de justeza. Não são ditas justas, mas nós afirmamo-las justas, inclusivamente para compreender porquê são ditas «verdadeiras» pelos filósofos. Justo é a nossa senha para entrar na filosofia. Compreendemos que justo não é o adjectivo da justiça. Quando São Tomás distingue entre as guerras justas e as guerras injustas, fala em nome da justiça. Mas quando Lenine distingue entre as guerras justas e as guerras injustas, fala em nome da justeza: uma linha justa, do justo discernimento do carácter das guerras em função da sua significação de classe. Sem dúvida uma guerra politicamente justa é conduzida por combatentes tendo também dentro de si a paixão da justiça: mas não é unicamente a justiça (noção ideológica sob e na qual os homens «vivem» as suas relações com as suas condições de existência e as suas lutas) que faz
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para Lenine a guerra justa. Uma guerra é justa quando é conforme a uma posição e a uma linha justas, na conjuntura duma determinada relação de forças: como intervenção prática conforme ao sentido da luta de classes, justa porque ajustada ao sentido da luta de classes. Mas uma vez recusada a Verdade filosófica, uma vez evitado o escolho da Justiça, permanece sempre esta palavrinha: justo, e o seu correspondente: justeza. E esta interrogação: o que é que distingue o «justo» do «verdadeiro»? E logo por detrás desta questão surge o receio: não existe na filosofia que apresentamos uma Autoridade superior que decidirá do justo? Não será a filosofia de que falámos o Juiz ou o Juízo final que dão implacavelmente a César o que é de César? E em nome de quê vai ser implacável? Mas tomemos cuidado em não cair na vertigem da metáfora: pois o Juiz manda para a justiça, instituição do Estado, que diz e aplica um Direito preexistente. Nos códigos do seu Direito, a Justiça de Estado inscreve, sob a forma duma ordem pré-estabelecida, as regras da Ordem estabelecida, as regras da sua reprodução. Ora a justeza de que falamos não é pré-estabelecida: ela não preexiste ao ajustamento, é o resultado dele. Ajustamento: eis de momento a palavra essencial. Quando na prática, a filosofia «traça uma linha de demarcação», para resolver praticamente e enunciar teoricamente uma posição
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que é uma Tese ( Tese = posição) , a filosofia pode parecer que apela para Verdades ou Regras pré-estabelecidas a cujo Julgamento se submeteria e conformaria: mesmo quando o faz (e Deus sabe quantas vezes o fez na sua história: não fez mesmo mais que isso) , na realidade ajusta a sua Tese tendo em conta o conjunto dos elementos em causa na conjuntura existente, política, ideológica e teórica, tendo em conta o que ela chama o «Todo». Mas vejamos como são as coisas. Esta conjuntura é política, ideológica e teórica. E sabemo-lo, pode-se demonstrar: toda a grande filosofia (Platão, Descartes, Kant, Hegel, etc.) sempre teve em conta a conjuntura, tanto política (os grandes acontecimentos da luta das classes) , como ideológica ( os grandes conflitos entre as ideologias práticas e os que ocorrem no seu seio de cada ideologia), como teórica. Mas que quer dizer teórico'! Para nos limitarmos ao essencial, o domínio da teoria abarca o conjunto das ciências e da filosofia. A filosofia faz pois ela própria parte da conjuntura da qual intervém: está nesta conjuntura, está no «Todo». Segue-se que não pode manter com a conjuntura uma relação externa, puramente especulativa, uma relação de puro conhecimento, visto que é parte integrante deste conjunto. O que sugere que uma Tese não tem um objecto mas um campo de intervenção que a relação duma Tese como seu 70
campo de intervenção não pode ser uma relação de simples «verdade» (relação entre um conhecimento e o seu objecto), portanto de puro conhecimento, mas uma relação prática e uma relação prática de ajustamento. Como entender estes termos? 1) Relação prática não significa apenas (o que é no entanto exacto) que esta relação provoca efeitos práticos (falaremos disto). Relação prática significa outra coisa relação de forças no interior dum campo dominado por contradições e conflitos. 2) O que dá ao processo de ajustamento o seu sentido muito particular: um ajustamento na luta, digamos para dar um ar clássico, na luta entre as ideias existentes, umas dominantes, outras dominadas. 3) Ê então que intervêm os resultados práticos: a nova posição retida e fixada pela Tese (Tese= = posição) modifica as outras posições e afecta as realidades que são o campo de todo o processo de ajustamento na luta, e que remata com a fixação das Teses «justas» (ou não). Se isto é claro, vê-se que se escapa ao escolho dos escolhos, que surge dum mal-entendido inevitável logo que se pronuncia a palavra «prático». O mal-entendido é ter-se uma concepção pragmatista da prática. Ora, sei bem que estão à nossa espera para nos dizer : mas o mecânico também «ajusta» a sua peça para que o motor trabalhe! mas o cirurgião também deve «cortar certo», e «justa71
mente1 para salvar o doente! E o próprio Lenine tomava atenção a todos os elementos da conjuntura antes de fixar a linha justa da acção política! Ora, tudo isso nos é oposto com uma ideia preconcebida: uma representação pragmatista da acção, em que todos estes «ajustadores» ajustam uns a sua peça, outros a sua intervenção, outros a sua linha política, para atingirem um resultado, um fim, que comande do exterior a sua acção. Nesta representação, a acção é acção dum sujeito que «ajusta» ou «fabrica» a sua intervenção com vista a um fim, isto é, com vista à realização duma finalidade que «existe na sua cabeça» para ser realizada fora. Se deixamos afirmar isto, então somos tratados como pragmatistas, subjectivistas, voluntaristas, etc. :Él neste momento que precisamos de ter cuidado com as imagens. Certamente a «justeza», resultado dum «ajustamento», não deixa de ter relação com as práticas invocadas. Mas sobretudo porque esta afinidade de termos põe
' Althusser emprega aqui expressões oouper juste e justement, o que lhe permite jogar com a sua categoria de «justeza». Em português não conseguimos o mesmo efeito, porque o atributo «justeza» só forçadamente é aplicãvel a umi valoração da intervensão cirúrgica. E se deixãmos ficar a expressão «justamente» foi para manter um mínimo de aproximação com as considerações de Althusser a propósito deste jogo verbal à volta da palavra «justo». (N. T.).
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em primeiro plano a relação entre a «justeza» e a prática - na sua diferença com outra relação: entre a «verdade» e a teoria. De resto, não cairemos na ratoeira destas imagens. O mecânico que «ajusta» a sua peça sabe muito bem que o motor lhe preexiste, e espera que o seu trabalho esteja concluído para fazê-lo voltar a funcionar: é-lhe completamente exterior. Da mesma forma o cirurgião : é certamente mais complicado, mas não faz parte do doente. Pelo contrário o homem político Lenine interessa-nos doutra maneira, e não foi por acaso que a ele fomos buscar os seus termos: «traçar uma linha de demarcação», «Tese» (pensemos nas «Teses de Abril) e «justo». São termos políticos. Mas convêm-nos, como nos convém bastante que seja política a prática que nos ajuda a pensar do mais perto possível a prática própria à filosofia. Pois, diferentemente do mecânico e do cirurgião, estes sujeitos que agem em função duma «ideia que têm na cabeça»: 1) porque são sujeitos e 2) porque esta «ideia» reflecte simplesmente o facto de o motor a reparar ou o doente a operar lhes serem exteriores, «existem fora da cabeça deles», o homem político Lenine, dirigente operário, está bem no interior da conjuntura dentro da qual deve agir, para poder agir sobre ela. É por isso que a prática de Lenine não é pragmatista (portanto subjectivista-voluntarista). Não é um «sujeito» que tenha «na cabeça» uma «ideia que prossegue» e quer impor para fora: é o dirigente 73
duma organização de luta de classes, vanguarda das massas populares, e enquanto define uma «linha justa»: «um passo em frente das massas e um passo apenas», não faz mais do que reflectir para inflectir uma rela,ção de forças em que ele próprio é apanh,a,do e é a parte que apanha. Formalmente, a prática filosófica, que tentamos pensar sob as denominações leninistas de «traçado de linhas de demarcação», de «Teses» «justas», etc., está assim do mesmo lado da prática de Lenine: prática, mas não pragmatista. Só que a filosofia não é a política simplesmente. Se, pelo menos a partir das posições que defendemos, a prática filosófica «funciona» a muitos respeitos como a prática política de Lenine, é preciso apoiarmo-nos sobre este «como» para ver por cima do muro: para ver para lá como a filosofia «funciona» no seu próprio domínio; para ver em quê funciona ela filosoficamente. Trata-se de penetrar mais na determinação da especificidade da filosofia. Para isso, precisamos de voltar a duas das nossas Teses. 1. Ê preciso tomar a sério o facto de a filosofia enunciar propostas teóricas (a filocofia «faz parte» da «teoria») e intervir na «teoria», isto é, nas ciências, na filosofia e nas ideologias teóricas: o que a distingue de todas as outras práticas, incluindo a prática política.
2. Ê necessário retomar a Tese 22: todas as linhas de demarcação que traça a filosofia conduzem a modalidades duma linha fundamental: entre o científico e o ideológico. Lembrai-vos do meu exemplo sobre a interdisciplinaridade. Aí se via a filosofia «funcionar», traçando linhas de demarcação, operando distinções, para desimpedir um caminho justo, suscitando novos problemas, portanto novos traçados, até ao infinito. A análise deste exemplo pôs em evidência três pontos: 1. A filosofia funciona intervindo não na matéria (o ajustador), ou sobre um corpo vivo (o cirurgião) ou nas lutas de classes (o político), mas na teoria: não com ferramentas, ou um bisturí, ou medidas de organização e de direcção de massas, mas enunciando simplesmente proposições teóricas (as Teses), racionalmente ajustadas e justificadas. Esta intervenção na teoria provoca efeitos teóricos: posições de novas questões teóricas, exigindo novas intervenções filosóficas, etc., e efeitos práticos na relação de força das «ideias» em causa. 2. A filosofia intervém numa certa realidade: a «teoria». Esta noção é talvez ainda vaga, mas sabemos o que nos interessa nela. A filosofia intervém na realidade indistinta onde figuram as ciências e as ideologias teóricas e a própria filosofia. O que são as ideologias teóricas? Adiantemos uma definição pro-
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visona: são em última instância, na teoria, formas transformadas das ideologias práticas, mesmo quando revestem formas irreconhecíveis. 3. O resultado da intervenção filosófica tal como nós a concebemos é de traçar, nesta realidade indistinta, uma linha de demarcação que separa, em cada caso, o científico do ideológico. Esta linha de demarcação pode ser completamente recoberta, negada, rasurada na maioria das filosofias: ela é essencial à sua existência, mau grado toda a negação. A sua negação não é mais que a forma comum da sua existência. Esta análise faz pois salientar três temas essenciais: 1. a intervenção da filosofia; 2. a realidade na qual tem lugar esta intervenção; 3. o resultado desta intervenção. Vou desde já direito ao essencial dizendo que o enigma da filosofia está contido nas diferenças entre a realidade onde ela intervém ( o domínio das ciências + as ideologias teóricas + a filosofia), e o resultado que produz a sua intervenção (a distinção do científico e do ideológico) . Esta diferença aparece sob a forma duma diferença de palavras. Mas vejam o paradoxo! as palavras que empregamos para designar a «realidade» onde ... e as palavras que empregamos para designar o «resultado» do traçado são quase as mesmas palavras: de um lado, as 76
ciências e as ideologias teóricas; do outro, o científico e o ideológico. De um lado, os substantivos; do outro os seus adjectivos substantivados. Não será a mesma coisa? Não repetimos nós no resultado o que já temos na realidade? Aparentemente, com efeito, são os mesmos personagens que estão em presença: tão depressa sob a forma de substantivos, como sob a forma dos seus próprios adjectivos. Não será então uma simples distinção nominal, uma diferença de palavras? Portanto aparente? Será que o resultado produzido pela intervenção filosófica se distingue verdadeiramente da realidade onde intervém, se já aí não está inscrito? Não consiste toda a filosofia simplesmente em repetir, por outras palavras, pelas mesmas palavras, o que já foi inscrito na realidade? Portanto em modificar palavras, sem nada produzir de novo? Sim, a filosofia age modificando as palavras e a sua disposição. Mas são palavras teóricas e é esta diferença de palavras que faz aparecer, e ver, qualquer coisa de novo na realidade, que estava escondido e recoberto. A expressão: o científico não é idêntico à expressão: as ciências j a expressão: o ideológico não é idêntico à expressão: as ideologias teóricas. As novas expressões não reproduzem as antigas: fazem aparecer um conjunto contraditório, que é filosófico. As ciências são as ciências: não são a filosofia. As ideologias teóricas são as ideologias teóricas: não são redutíveis à filosofia.
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Mas «o científico» e «o ideológico», esses são categorias filosóficas e o seu par contraditório é posto à luz pela filosofia: é filosófico. Estranha conclusão, que é necessário cingir com firmeza. Dizíamos: a filosofia intervém nesta realidade indistinta: as ciências + as ideologias teóricas. E descobrimos que o resultado da intervenção filosófica, o traçado que revela o científico e o ideológico, separando-os, é inteiramente filosófico. Contradição? Não. Pois a filosofia não intervém na realidade senão produzindo resultados em si própria. Age fora dela pelo resultado que produz em si própria. Será necessário um dia tentar pensar este paradoxo necessário. Contentemo-nos em registá-lo sob uma nova Tese. Tese 23. A distinção entre o científico e o ideológico é interior à filosofia. Ê o resultado da intervenção filosófica. A filosofia faz corpo com o seu resultado, que constitui o efeito-filosofia. O efeito-filosofia é diferente do efeito de conhecimento (produzido pelas ciências). Mas, ao mesmo tempo, guardemos bem presente no nosso espírito que este resultado interno (o efeito-filosofia) faz um todo com a intervenção da filosofia na realidade = ciências + ideologias teóricas. Nesta realidade, o primeiro elemento é-nos familiar: as ciências. Elas têm uma existência histórica reconhecida, e os cientistas são a testemunha não apenas da sua existência, mas
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também das suas práticas, dos seus problemas e dos seus resultados. O segundo elemento pelo contrário não nos é familiar: as ideologias teóricas. Vamos deixar provisoriamente este elemento de lado. Porque eram necessárias longas análises para chegar ao seu conhecimento: esboçar uma teoria das ideologias, que conduza à distinção entre as ideologias práticas (religiosa, moral, jurídica, política, estética, etc.) e as ideologias teóricas, e a sua relação etc. Mas também porque reencontraremos caminho, fazendo-nos ter uma primeira ideia. E enfim porque é indispensável demorar muito tempo nos problemas filosóficos da existência das ciências e da prática científica para abordar os problemas da ideologia. Esta última razão não é nem de comodidade nem de simples método. Ela não interessa só às ideologias teóricas. Interessa em primeiro lugar à própria filosofia. Ora não podemos avançar senão com uma condição absoluta: iluminando a filosofia sobre ela própria. Adianto aqui uma Tese central, que vai comandar todo o resto deste curso. Tese 24. A relação da filosofia com as ciências constitui a determinação específica da filosofia. Não digo: a determinação em última instância, a determinação principal, etc. A filosofia tem outras determinações, que desenpenham um papel fundamental na sua existência, funcionamento e formas (exemplo: a sua relação com 79
as concepções do mundo através das ideologias práticas e teóricas). Digo específica, pois é-lhe própria, não pertence senão a ela só. «A relação da filosofia com as ciências ... » deve ser bem compreendida. Não quer dizer que só a filosofia fala de ciências! Trata-se da ciência noutros discursos: por exemplo, a religião, a moral, a política falam da ciência. Mas não falam como fala a filosofia: porque a sua relação com as ciências não constitui a determinação específica da religião, da moral, da política e da literatura. Não é a sua relação com as ciências que as constitui como religião, moral, etc. Da mesma forma isso não quer dizer que a filosofia fale apenas das ciências! Fala, todos o sabemos, de tudo e mesmo de nada (do nada), de religião, de política, de moral e de literatura, etc. A relação da filosofia com as ciências não é a dum discurso no seu tema «específico», ou até no seu «objecto» (visto que a filosofia não tem objecto). Esta relação é constitutiva da especificidade da filosofia. Fora da sua relação com as ciências, a filosofia não existiria. Na continuação deste curso, não farei mais do que comentar esta Tese 24. Vou seguir o único método possível numa introdução: procedendo pelas análises empíricas, propondo-me apenas mostrar, fazer perceber os factos, esta relação específica e a sua importância.
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Insisto nesta prec1sao: as análises empíricas. Naturalmente, não há análise empírica pura. Toda a análise, mesmo empírica, pressupõe um mínimo de referências teóricas, sem o que seria impossível apresentar o que se chamam os factos: pois não se saberia porquê se aceitam e se reconhecem como factos. Mas analisar empiricamente o «funcionamento» da filosofia na sua relação com as ciências não é fornecer uma teoria da filosofia: é precisamente um aviso prévio. Numa teoria da filosofia, é preciso também ter em conta outras realidades (por exemplo as ideologias práticas) e outras relações: as relações de produção. E é preciso sobretudo «retomar» os resultados das análises empíricas do ponto de vista da função (ou das funções) de conjunto da filosofia na história das formações sociais, o que não contradiz os resultados empíricos, mas transforma o seu sentido. Neste inquérito sobre a relação da filosofia com as ciências, vamos explorar antes de mais toda a vertente das ciências.
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A RESPEITO DAS CIÉ1NCIAS: A PRATICA CIENTíFICA
Como é que aparece a relação da filosofia com as ciências do lado das ciências, mais precisamente do lado da prática científica? Tese 25. Na sua prática científica, os especialistas das diferentes disciplinas reconhecem «espontaneamente» a existência da filosofia e a relação privilegiada da filosofia com as ciências. Este reconhecimento é geralmente inconsciente: pode tornar-se, em certas circunstâncias, parcialmente consciente. Mas permanece envolvido então nas formas próprias do reconhecimento inconsciente: estas formas constituem a «filosofia espontânea dos cientistas» ou dos «sábios» (F.E.C.) Para esclarecer esta Tese, começarei pelo caso em que este reconhecimento é (parcialmente) consciente. O exemplo mais célebre e mais surpreendente deste reconhecimento é dado pelas situações particulares chamadas «crises». Num 83
certo momento do seu desenvolvimento, uma ciência tropeça em problemas científicos que não podem ser resolvidos pelos meios teóricos existentes, ou(e) que repõem em causa a coerência da teoria anterior. Pode-se, numa primeira aproximação, falar seja duma contradição entre o novo problema e os meios teóricos existentes, seja (e) duma derrocada de todo o edifício teórico. Estas contradições podem ser vividas duma forma «crítica», até dramática, pelos sábios (cf. correspondência de Borel, Lebesgue, Hadamard). Todos conhecem exemplos célebres de «crises científicas: a crise dos irracionais nas matemáticas gregas, a crise da física moderna no fim do século XIX, a crise das matemáticas modernas e da lógica-matemática desencadeada em volta da primeira teoria dos conjuntos (entre a teoria cantoriana e a teoria de Zermelo, 1900-1908). Ora, como «vivem» os sábios estas crises? Quais são as suas reacções? Como se exprimem conscientemente, por que palavras, que discursos? Como se comportam diante destas «crises que abalam a ciência?» · Podem-se notar três espécies de reacções. Primeira reacção. Ê a dos sábios que mantêm a cabeça fria e afrontam os problemas da ciência sem sair da ciência. Debatem-se como podem nas dificuldades científicas e tentam resolvê-las. Se necessário for, aceitam não ver claro e avançar na noite. Não perdem a 84
confiança. A «crise», para eles, não é uma «crise da ciência», que põe a ciência em questão: é antes um episódio e uma provação. Como em geral não têm o sentido da história, não dizem que toda a crise científica é uma «crise de crescimento», mas praticamente é como se fosse. Na grande «crise» da física no século XIX e começo do século XX, viram-se sábios desta raça, que resistiram ao contágio geral e recusaram subscrever a grande novidade: «a matéria dissolveu-se». Mas iam contra a corrente e nem sempre estavam à vontade para argumentar. Segunda reacção. Diante destes, na outra extremidade, vê-se uma outra raça de sábios perder a cabeça. A «crise» apanhou-os tão em cheio, de tal maneira desarmados ou, sem mesmo o saberem, tão prevenidos, e ei-los de repente tão abalados nas suas convicções, tudo cedendo diante deles e, no seu desespero, indo até ao ponto de pôr em causa não um determinado conceito ou uma determinada teoria científica para os rectificar ou reformular, mas a validade da sua própria prática: o «valor da ciência»! Em lugar de se aguentarem firmemente no campo da ciência, para aí enfrentar os seus problemas inéditos e surpreendentes, e até desconcertantes, passam «para o outro lado», saem do domínio científico e consideram-no de fora: é então de fora que pronunciam o julgamento de «crise», e a palavra na sua boca não tem o mesmo sentido que antes. Antes,
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«crise» queria praticamente dizer: dificuldades de crescimento, sinais, nem que fossem «críticos», dum refazer científico em gestação. Agora, «crise» quer dizer: abalo da ciência nos seus princípios de ciência, fragilidade da sua disciplina- melhor ainda, precaridade radical de todo o conhecimento científico possível como empreendimento humano, tal o ser hu• mano, limitado, finito e errante. Então, estes sábios põem-se a fazer filosofia. Não «voa» talvez muito alto, mas é filosofia. A sua maneira de «viver» a crise é tornarem-se os «filósofos» dela, para a explorarem. Porque não fazem uma filosofia qualquer. Sobretudo se julgam inventá-la, não fazem mais do que retomar, conforme podem, os fragmentos e o coro da velha canção filosófica espiritualista, que espreita desde sempre as dificuldades «da» ciência para explorar as suas derrotas, para ameaçar e enquadrar nos seus «limites» como outras tantas provas da vaidade humana, que, no fundo do seu nada, rende ao espírito a homenagem das suas derrotas. É aos sábios, por exemplo, que devemos o anúncio das Grandes Notícias da «crise» da física moderna: «A matéria dissolveu-se!», «o átomo é livre!». Mas o espiritualismo religioso não fala sempre assim tão claramente, para proclamar a derrota da «matéria» e da «necessidade». Sustenta também outros discursos que levam a ciência para os seus «limites», para fixar e controlar as suas pretensões.
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Limitação dos «direitos» da ciência: que permaneça nas suas próprias fronteiras ( querendo isto dizer que elas são limitadas de fora, antecipadamente e para sempre, e de pleno «direito»). Ainda aí, os sábios que fazem esses discursos sobre a «crise» retomam uma velha tradição agnóstico-espiritualista: mas, sabêmo-lo, desde Pascal e Kant, que, por detrás das fronteiras que a filosofia assinala à ciência, há sempre mais ou menos uma religião que vela. Estas reacções oferecem-nos um espectáculo inesperado. Pensávamos, na nossa ingenuidade, que eram os filósofos que produziam a filosofia. Ora, descobrimos, nesta situação de «crise», que são os próprios sábios que se metem a «fabricar» a filosofia. Há pois, em todo o sábio, um filósofo adormecido, mas que pode acordar na primeira ocasião. Ei-lo que acorda num puro delírio religioso. Assim Teilhard de Chardin, paleontologista e padre, autêntico sábio, e autêntico religioso, explorando a sua ciência em benefício da sua fé: directamente. Mas estes sábios que acordam filósofos, se provam por um lado que um filósofo dormita em todo o sábio, demonstram pelo outro que a filosofia que fala pela sua boca nada mais faz do que repetir, com algumas variações individuais, a tradição ininterrupta na história duma filosofia espiritualista que, além de todas as misérias humanas, se atira também sobre as «crises» das ciências, para as explorar para fins apologéticos, em última análise religiosos
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(Bergson, Brunschvicg, etc.) É necessário saber que a nossa história está profundamente marcada, ainda hoje, por uma tradição filosófica que espreita as dificuldades, as contradições e as «crises» internas das ciências, como outras tantas fraquezas que ela revolve, isto é, explora - a exemplo de Pascal, que era no entanto um autêntico sábio e fazia da sua ciência um título para a sua filosofia - ad majorem Dei gloriam - , exactamente como certos religiosos espreitam a aproximação da morte para se precipitar sobre o moribundo descrente e infligir-lhe, na agonia, os últimos sacramentos (para a sua salvação, evidentemente, mas também para a saúde da religião). É preciso saber que existe na filosofia toda uma tradição que vive só da exploração ideológica dos sofrimentos humanos, da doença e dos cadáveres, da paz, dos cataclismos e das guerras e se precipita sobre todas as crises, e também quando estas alcançam as ciências. É difícil não aproximar esta exploração ideológica duma outra forma de exploração, que se chama desde Marx exploração do homem pelo homem. Na «crise» duma ciência, vemos também certos sábios abalados nas suas convicções reunir-se à facção destes filósofos que querem a todo o preço «salvar» a ciência à sua maneira: «perdoando-lhe», «porque ela não sabe o que faz», isto é, condenando-a ao nada e aos seus «limites» sobre os quais se edifica o reino de Deus ou do Espírito e da sua Liberdade. 88
A filosofia que propomos não quer a «salvação» da ciência. Convida os cientistas a desconfiar de toda a filosofia que quer a «salvação» da ciência. Professa pelo contrário que a questão da «salvação» é religiosa e não tem nada a ver com a ciência e a sua prática; que a «saúde» da ciência diz respeito à própria ciência; e confia nos cientistas para resolverem os seus problemas científicos, e mesmo ccríticos». Os cientistas devem antes de mais nada contar com as suas próprias forças: mas as suas próprias forças não cabem inteiras nas suas mãos ou nas suas cabeças; uma grande parte destas forças existe fora deles, no mundo dos homens, nos seus trabalhos, nas suas lutas e ideias. Acrescentarei: a filosofia, não uma qualquer, não a que explora as ciências, mas as serve, faz ou pode fazer parte das suas forças. Terceira reacção. Deixados de lado estes dois extremos: os cientistas que continuam o seu trabalho e aqueles que creem na «divina surpresa» da «matéria dissipada», fica uma terceira raça de sábios. Também eles se põem a fazer filosofia. Também eles «vivem» a «crise» não como a contradição dum processo de reformulação e de crescimento da teoria e da prática cientificas, mas como uma «questão» filosófica. Também eles saem do campo da ciência e, de fora, põem à ciência «problemas» filosóficos sobre as condições de validade da sua prática e dos seus
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resultados: sobre os seus fundamentos e títulos. Mas não se limitam, como os outros, a depor a homenagem da sua derrota nos degraus do Templo. Não incriminam tanto a ciência e as suas práticas, como as ideias filosóficas «ingénuas» em que descobrem que até aí viveram. Reconhecem enfim que a «crise» os tirou do seu «dogmatismo»: melhor, reconhecem tardiamente, uma vez acordados para a filosofia, que sempre, como cientistas, acalentaram em si um filósofo adormecido. Mas voltam-se contra a filosofia desse filósofo, declaram-na «dogmática», «mecanicista», «ingénua» e, para tudo dizer, «materialista», enfim condenam-a como má filosofia da ciência - e, consequentes, empreendem dar à ciência a filosofia que lhe falta: a boa filosofia da ciência. Para eles, a crise é na ciência o efeito da má filosofia dos cientistas que, até chegar a eles, reinou sobre a ciência. 'Nada mais lhes resta do que atirar-se ao trabalho. Dizia eu: estes cientistas saem também da ciência. Para nós, é isto o que se passa. Mas para eles, não. Para eles, ficam na ciência que não renegam. Melhor, invocam a experiência da sua prática científica, a sua experiência da «experiência» científica, invocam os seus conhecimentos científicos, e é de dentro da ciência que pretendem falar da ciência, que se põem a fabricar com argumentos científicos, emprestados pelas ciências-a física, a psicofisiologia, a biologia - esta boa filosofia da ciência de que
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a ciência precisaria. E quem melhor colocado do que um cientista para falar da ciência e da sua prática? .Uma filosofia da ciência, científica, feita por cientistas. Na verdade, que se poderia desejar de melhor? Tal é o espectáculo histórico que nos forneceu a «crise» da física moderna, no fim do século XIX e no começo do século XX: o aparecimento de grandes sábios, Ostwald, Mach, e de numerosos cientistas, que empreenderam prover «a» ciência da boa filosofia científica que necessitava para «criticar», «ultrapassar», «abolir» a causa da sua crise-a saber, a má filosofia que os sábios tinham na cabeça e que «lhe tinha feito tão mal», numa palavra o materialismo. Ao lado de muitos outros sistemas, o energitismo de Ostwald e o empiriocriticismo de Mach são os testemunhos desta prodigiosa aventura. Ora é aqui que as coisas se voltam, e se esclarecem. Porque notem bem este pequeno facto: estes cientistas que fabricam assim uma filosofia de cientistas para a ciência não estão sozinhos na liça! Encontram ao seu lado todo um batalhão de filósofos, e não dos menores, que fazem coro, retomam os argumentos «científicos» e lhes dão a mão para melhorar a grande obra comum. Assim A venarius, Bogdanov e vinte outros. A razão? É simples. Esta filosofia de cientistas, científica e crítica, tinha tudo o que necessitava para seduzir os filósofos, pois era crítica.
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Numa primeira acepção, visto que criticava as ilusões da má filosofia anterior dos cientistas, «dogmática» e «materialista». Mas também numa segunda acepção: visto que se propunha, em suma, elucidar, sob os fenómenos, as condições de possibilidade que garantissem que o conhecimento científico é o conhecimento do objecto da sua «experiência», portanto que edificam uma Teoria crítica do Conhecimento. Eis com que tornar felizes os filósofos, que, desde Kant, têm um fraco pela «crítica» e que «fazem», em todas as variantes, teoria crítica do conhecimento. Como havemos de nos admirar que apoiem Mach? Muito simplesmente porque se reconhecem como filósofos, na sua filosofia de cientistas. Mas se se reconhecem, é porque se sentem em casa. E os cientistas-filósofos, que julgam extrair a sua filosofia da sua experiência pura de cientistas e dos seus puros conhecimentos científicos, mais não fazem do que retomar por sua conta, na variante duma linguagem, e com exemplos aparentemente novos, os temas clássicos da filosofia dominante, da «filosofia dos filósofos». Julgarão estes cientistas que fazem uma obra revolucionária? Basta conhecer um pouco de história da filosofia para repor as coisas no seu lugar. Pois estas filosofias de cientistas, no fundo, não são novas, mas vêm na cauda duma longa tradição, à qual dão de novo forma e vida. As filosofias da ciência de Mach e Ostwald, por exemplo, não 92
passam de novas combinações, por vezes extremamente engenhosas, de empirismo, de nominalismo, de pragmatismo e de criticismo, etc., portanto de idealismo. Toda a constelação filosófica dos temas do empirismo inglês do século xvm, dominado pelo criticismo de Kant, combinados com os «resultados científicos» da física das sensações do século XIX, apoiam esta empresa. Ora, acontece que, por razões que ultrapassam de muito longe a simples «crise» da física, pois são no fundo políticas, a ideologia burguesa do fim do século XIX - operando o seu grande «regresso, a Kant», para lá de Hegel e do positivismo - e os cientistas filósofos, que julgam lutar contra a corrente, seguem a corrente que os arrasta e leva sem darem por isso. Nada de admirar se os filósofos os seguirem visto que uns e outros não fazem mais do que ceder a uma mesma corrente, a da filosofia dominante, no seu «regresso a Kant». As filosofias dos cientistas, provocadas pela «crise» «da» ciência, caem em cheio na história da filosofia, da qual se alimentam, inconscientemente: não dependem duma teoria da história das ciências, mas duma teoria da história da filosofia e das suas tendências, suas correntes e conflitos. Os cientistas apanhados pela «crise», ou seja, muito mais prosaicamente: os cientistas «apanhados» pela filosofia. Digamos: na altura das dificuldades científicas, anteriores à ciência, 93
e provocadas pelo seu crescimento contraditório, os cientistas descobrem de repente que trazem em si, desde sempre, filosofia; não a criticam senão para fabricar outra, que dizem boa. Traduzamos: na altura da reformulação de uma ciência, que outros se apressam a explorar para fins religiosos, declaram a ciência «em crise» e, sob este julgamento de «crise», «sofrem» o que podemos chamar a sua «crise» filosófica. Tudo isto faz muito barulho no mundo, e como, no mundo da ideologia dominante, cantar em coro é que faz a verdade, nada de admirar que seja preciso uma cabeça dura e quadrada como Lenine, formado na luta de classes, para romper brutalmente o «encanto» das cumplicidades e condenar a impostura. Mais uma palavra: estes cientistas que continuam o seu trabalho na provação e na noite, e se calam ou se defendem com as palavras que têm, sem explorar a «crise» da ciência, mas encarniçados em resolver os seus problemas e as suas contradições, serão também filósofos? E que filósofos? É o que veremos.
* Podemos agora voltar-nos para a nossa análise. Que fizemos nós? Aproveitámos a ocasião empírica dum facto, observável em várias circunstâncias da história das ciências: aquele que se convencionou chamar a «crise» duma ciência. 94
Ora, numa prova como é uma «crise», deve e pode ver-se a luz do dia ou, como dizia Platão «em grandes letras», o que vulgarmente se dissimula na sombra, ou na grafia das letras mais pequenas; a «crise», agindo como um «revelador», mostra claramente o que, no decurso do quotidiano sem crise das ciências, permanece escondido, desconhecido e inconfessado. A saber: que, efectivamente, em todo o cientista há um filósofo adormecido, ou, por outras palavras: todo o cientista é afectado por uma ideologia ou uma filosofia científica que nos propomos chamar por um termo convencional: filosofia espontânea dos cientistas ou, abreviando, pela sigla F.E.O. Dissemos que todos os cientistas são por ela permanentemente afectados, mesmo fora das manifestações reveladoras duma «crise», portanto sem seu conhecimento. Fora das «crises»: simplesmente, esta F.E.C. funciona em silêncio, tomando formas diferentes das grandes formas espectaculares das crises. Sem seu conhecimento: é mesmo necessário dizer formas filosóficas espectaculares das crises, pois os cientistas que se põem de repente a fabricar filosofia a propósito da ciência, que arquitectam uma «filosofia da ciência» destinada a tirar a ciência da sua «crise», não acreditam mais na existência da F.E.O. do que os outros: pensam apenas denunciar uma intromissão filosófica materialista na ciência e dar à ciência a filosofia de que ela precisa, mas apenas para 95
enfrentar um acidente exterior à ciência, visto que se representam a ciência, no seu curso normal, como ciência pura, isto é, livre de toda a F.E.C. Dizemos que esta F.E.C. toma, no decurso «normal» da prática científica, formas invisíveis e silenciosas; e, no caso duma crise, formas espectaculares. O que nos conduz a interrogarmo-nos sobre o próprio sentido da expressão: «crise das ciências». Existirão, na verdade, «crises das ciências» que não sejam simplesmente, como o defendeu Lénine, «crises de crescimento», que em nada são críticas mas, bem ao contrário, fecundas? E se há «crise», não deveremos então voltar abertamente este termo contra os seus autores, isto é, contra aqueles que, um belo dia, anunciam ao mundo que «a física moderna» ou «a teoria dos conjuntos» estão «em crise»? Porque, no fim de contas, são eles que pronunciam o julgamento de «crise»! E deveremos interrogar-nos sobre se tudo isso não se passa nas suas cabeças, isto é, na reacção ideológico-filosófica que as assalta (de júbilo ou de temor) diante do aparecimento dum certo número de problemas científicos inéditos e desconcertantes. Crise por crise, deveremos interrogar-nos sobre se a crise, não a crise fecunda mas a crise crítica, longe de ser a da ciência não será a sua; e, como eles a vivem na filosofia, se não será muito simplesmente a crise filosófica deles e nada mais. 96
Se for assim, isso reforça a nossa hipótese: que toda a prática científica é inseparável duma «filosofia espontânea» que pode ser-lhe, segundo a filosofia em causa, um auxílio quando materialista e um obstáculo quando idealista; que esta filosofia espontânea remete, «em última instância», para a luta espectacular que se desenvolve no campo de batalha (Kampfplatz, Kant) da história da filosofia, entre as tendências idealistas e as tendências materialistas; e que as formas desta luta são, elas próprias, comandadas por outras formas mais longínguas, as da luta ideológica ( entre as ideologias práticas ou no seio destas) e as da luta de classe. Ê às formas da luta de classe que é preciso chegar quando se quer compreender, no fim de contas, o que se passa na «crítica» da física mod3rna e na «filosofia espontânea dos sábios» que a reflectem. Enfim, porque é que, em última análise, os acontecimentos científicos do desenvolvimento da física moderna tomaram a forma duma «crise» e originaram discursos exemplares de filosofia neokantiana? Ê porque então «o vento soprava para Kant», é porque a conjuntura impusera o «regresso a Kant». A conjuntura... depois do grande terror e dos massacres da Comuna, os ideólogos e filósofos burgueses e, mais tarde, cedendo ao contágio, ideólogos do próprio movimento operário, se deitaram a festejar o «regresso a Kant» para lutar contra o «materialismo»: o da prática
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científica e o da luta de classes proletária. Quando a física moderna tomou consciência dos problemas inéditos e contraditórios, não fez mais que tomar o seu lugar numa corrente preexistente, que «seguir o movimento», enquanto os cientistas que fabricavam filosofia neokantiana se julgavam na vanguarda da história. Para denunciar esta mistificação, não foi preciso menos que Lénine (Materialismo e Empiriocriticismo) . Já citei Lénine várias vezes a propósito de filosofia. É preciso acreditar que este político ( que se dizia «simples amador» em filosofia) sabia bastante bem o que é lutar e qual a relação entre a luta política e a luta filosófica, já que soube intervir (e quem mais o fez? Ninguém!) nesta difícil matéria, para nela traçar as linhas de demarcação adequadas e abrir caminho para uma formulação justa dos problemas da «crise». E ao mesmo tempo, dando o exemplo, forneceu-nos matéria para entendermos a prática da filosofia. Basta dizer que sem Lénine e tudo quanto lhe devemos, este curso de filosofia para cientistas nunca poderia ter tido lugar.
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3.º CURSO
Eis-nos, portanto, no mar: já ao largo. Não só embarcados de repente, de surpresa, mas razoavelmente adiantados, ao que parece, e em novas águas. Ê o momento de recapitular para sabermos melhor donde vimos e para onde vamos, uma vez medido o caminho andado. Não deixamos de pôr o assento na questão: que é feito da filosofia? (Digo: que é feito, em vez de o que é?, para dar prazer a certos filósofos que a questão o que é? irrita para além de tudo o que podemos imaginar. Mas são questões intra-filosóficas, com cujos pormenores não vou maçar-vos.) Para isso, bordejámos ao longo das margens da história das ciências tão perto quanto possível. Porquê este cruzeiro «a respeito das ciências»? Porque julgámos poder adiantar uma Tese que diz que a relação entre as ciências constitui o específico da filosofia (recordo: não o determinante em última instância, mas o específico). Ê esta Tese que procuramos justificar.
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Foi com este fim que fomos ver o que se passa numa experiência que nos pareceu privilegiada, porque «reveladora» - a experiência, talvez mesmo a experimentação? - do que se chama uma «crise das ciências». E tirámos um certo número de conclusões, que são sem dúvida duras para os ouvidos dos nossos amigos cientistas: visto que lhes atirámos a «revelação» de que eram sempre afectados por uma «filosofia espontânea dos cientistas», mesmo quando não se metiam na pele histórica dos Grandes Sábios Filósofos que, julgando-se «incumbidos» duma Missão histórica sem precedente na história da filosofia, mais não fazem do que mastigar, como obreiros subalternos mas engenhosos, uma velha comida filosófica que as contradições ideológicas da conjuntura tornam dominante e obrigatória. Infligindo-lhes esta «revelação», chocámo-los sem dúvida nas suas convicções, na sua honestidade, mesmo que esta revista as formas duma certa ingenuidade (no fim de contas, imagem convencional por imagem convencional, se reconhecemos que os filósofos são os tais personagens ridículos que «caem nos poços», e daí tirámos conclusões, os cientistas sabem que, se não caem dentro da sua disciplina como os filósofos caem na deles, nem sempre têm os «pés na terra», mas um grão de ingenuidade na cabeça). É tempo de recuarmos em relação a esta experiência. Os nossos amigos cientistas vão ter oportunidade de se convencer que o exa-
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minar as conclusões à distância conveniente vai pôr as coisas no seu justo lugar, ao mesmo tempo que lhes fazemos a justiça que podem recear de que os privámos. A esta distância, que vamos nós reter da nossa análise dos fenómenos que «revelam» as «crises» das «ciências»? Duas descobertas, dois temas de primeira importância: 1. Existe uma exploração das ciências pela filosofia. 2. Existe, na «consciência» ou na «inconsciência» dos cientistas, uma filosofia espontânea dos cientistas (F.E.C.). Retomarei estes dois pontos.
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I.
EXISTE UMA EXPLORAÇÃO DAS CIÊNCIAS PELA FILOSOFIA
Mais exactamente: a imensa maioria dos filósofos sempre explorou as ciências para fins apologéticos, exteriores aos interesses da prática científica. N atem bem que não trago nada de novo. Não faço mais do que retomar explicitamente um tema que foi invocado a propósito da «crise» das ciências, quando falei da reacção dos cientistas da segunda espécie ( os espiritualistas, que votam o fracasso da ciência ad majorem Dei glariam, como fazem de todas as misérias e sofrimentos humanos). Mas, retomando este tema, vou generalizá-lo. E para lhe dar o seu sentido geral, sou obrigado a dizer: a imensa maioria das filosofias conhecidas sempre exploraram, na história da filosofia, as ciências ( e não apenas os seus fracassos) em proveito dos «valores» ( termo provisório) das ideologias práticas: religiosa, moral, jurídica, estética, política, etc.
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:BJ uma das características essenciais do idealismo. Se esta proposição é verdadeira, deve poder ilustrar-se conc!'etamente. Ora, é o caso. Creio que não há necessidade de nos alongarmos sobre o exemplo das filosofias religiosas (dominadas pela ideologia religiosa). Todo o génio científico de Pascal não o impediu de tirar belos efeitos de eloquência edificante e úteis ao cristianismo (um pouco herético) que ele professava, contradições do próprio infinito matemático e do «medo» religioso que lhe inspiravam estes novos (galilénicos) «espaços infinitos,» dum mundo em que o homem já não era o centro e de que Deus estava «ausente» - o que impunha, para lhe salvar a ideia, que se dissesse que ele era por essência um «Deus escondido» (visto que não se encontra em parte nenhuma, nem no mundo, nem na sua ordem, nem na sua moral: salvo a esperança de ser tocado pela sua graça imprevisível e impenetrável). Afirmo: todo o génio de Pascal, porque ele foi um grande sábio e, o que é extremamente raro (paradoxo que será necessário pensar), um espantoso filósofo da prática científica, quase materialista. Mas estava demasiado só no seu tempo, e submetido como qualquer pessoa a tais contradições, sustentando tais combates, e numa relação de forças tal (basta pensar na violência do seu combate contra os jesuitas) que não podia escapar à «solução» obrigatória, que era também para ele uma con104
solação, de resolver na religião (mesmo na sua) as contradições conflituais mais gerais duma ciência na qual trabalhava como autêntico prático materialista. A este título, ao lado de textos admiráveis (sobre as matemáticas, sobre a experimentação científica), Pascal deixou-nos o corpo duma filosofia religiosa da qual não podemos deixar de dizer que recorre à exploração, para fins apologéticos, exteriores às ciências, das «grandes «contradições» teóricas das ciências do seu tempo. Ao lado dum gigante como Pascal, que dizer nos nossos dias dum Teilhard? A mesma coisa, mas sem poder tirar da sua obra algo que compense este empreendimento hiante e alucinado dum paleontologista vestido de sotaina, e que se vangloria de ser padre nas conclusões aventureiras que tira da ciência: exploração «a céu aberto». O caso das filosofias espiritualistas é um pouco mais complicado. Não têm a simplicidade desconcertante, até mesmo comovente, de certas filosofias religiosas. São mais retorcidas, pois não vão direitas ao fim, antes adoptam o desvio de categorias filosóficas elaboradas na história da filosofia: o Espírito, a Alma, a Liberdade, o Bem, o Belo, os Valores, etc. E visto que faço intervir aqui a história da filosofia, notai bem isto: todas as filosofias de que falamos são-nos sempre contemporO,neas; temos nos nossos dias entre nós «representantes» da filosofia religiosa, da filosofia
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espiritualista, da filosofia idealista-crítica, do neopositivismo, do materialismo, etc. Mas estas filosofias não têm a mesma «data de nascimento», e a maior parte não existiu sempre: apareceram novas contra as antigas, e ganharam sobre elas o combate histórico. Mas, justamente, o próprio desta singular «história» da filosofia é que uma nova filosofia que se «sobrepõe» à antiga, acabando por dominá-la no decurso duma longa e pertinaz luta, não destrói a antiga, que continua a viver no subterrâneo e portanto sobrevive indefinidamente, a maior parte das vezes sujeita a um papel subalterno, mas por vezes trazida pela conjuntura para primeiro plano. Se assim é, é porque a «história» da filosofia «procede» de forma diferente da história das ciências. Na história das ciências, vê-se constantemente aparecer um duplo processo: o processo de eliminação pura e simples dos erros (que desaparecem totalmente) e o processo de reinscrição dos conhecimentos e elementos teóricos anteriores no contexto de novos conhecimentos adquiridos e de novas teorias construídas. Em resumo, uma «dialéctica» dupla: de eliminação total dos «erros» e de integração dos antigos resultados, sempre válidos mas transformados, no sistema teórico das novas aquisições. A história da filosofia «procede» doutra maneira: por uma luta pelo domínio das novas formas filosóficas sobre as antigas, que eram as dominantes. A história da filosofia é uma
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luta entre tendências, realizadas nas formações filosóficas, e é sempre uma luta pelo domínio. Mas o paradoxo é que esta luta não conduz a mais do que à substituição dum domínio por outro: e não à eliminação pura e simples duma formação passada ( como «erro» : pois não há erro em filosofia, no sentido em que a palavra existe nas ciências), isto é, do adversário O adversário nunca é totalmente vencido, portanto nunca é totalmente suprimido,. totalmente irradiado da existência histórica. É apenas dominado, e subsiste sob o domínio da nova formação filosófica que o destituiu, a seguir a uma longa batalha: subsiste como formação filosófica dominada, pronta naturalmente a ressurgir, por pouco que a conjuntura lhe acene e lhe dê ocasião, Estas observações eram indubitavelmente necessárias para dar o verdadeiro sentido à nossa análise das diferentes formações filosóficas que estamos a examinar. Não se trata duma simples enumeração de filosofias sobre as quais se pergunta porque existem, ou subsistem, umas ao lado das outras, mas do exame de formações filosóficas que subsistem ainda hoje, mesmo que muito antigas, sob formas subalternas, mas sempre vivas, dominadas por outras formações que conquistaram ou estão em vias de conquistar qualquer coisa a que se pode bem chamar «o poder». Volto às filosofias espiritualistas. Não para dar a sua «data de nascimento», mas para
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assinalar que foram dominantes em todo o período que precedeu a instauração das relações burguesas (sem falar das suas «raízes» na Antiguidade): sob o feudalismo, na Idade Média, para serem em seguida dominadas pela filosofia idealista burguesa, da qual não deixaram de aproveitar certos argumentos, desviando-os do seu sentido idealista clássico (há assim, vamos vê-lo, uma «interpretação espiritualista» de Descartes, de Kant, de Husserl, etc.). O que distingue as filosofias espiritualistas das filosofias abertamente religiosas é que exploram as ciências (para nos limitarmos ao que nos ocupa) directamente em benefício de temas abertamente religiosos: ad majorem gloriam Dei. Mas (e podem muito bem pronunciar também o nome de Deus, mas é «o Deus dos filósofos» - é uma categoria filosófica) exploram as ciências em benefício do Espírito (humano), da Liberdade (humana), dos Valores morais (humanos), etc., ou ainda daquilo que reúne todos estes temas, em benefício da Liberdade do Espírito (humano) que, como cada um sabe, se manifesta na «criação», quer científica, quer moral, quer social, estética ou até mesmo religiosa. Todos os filósofos conhecem isso. Mas não só os filósofos: pois estes temas filosóficos, aos quais Grandes Universitários célebres consagraram obras «imortais» (como nada morre completamente em filosofia, têm a sua oportunidade de imortalidade!), pas-
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saram para a linguagem «vulgar» dos discursos políticos, sermões, artigos de jornal, enfim chegam onde normalmente acaba toda a filosofia: na vida quotidiana, para servir de argumento às tomadas de partido práticas destes Senhores. Já ouvimos falar bastante do «suplemento de alma» (Bergson) de que a nossa «civilização mecânica» (ver Duhamel), e agora «de consumo», tem ao que parece «necessidade»? Do «suplemento de alma» à «qualidade da vida», o caminho é curto e directo. Ouvimos falar bastante da Liberdade do Espírito, da cultura, do poder criador do espírito humano, dos Grandes Valores (morais!) que justificam a existência e a defesa da nossa «civilização», a qual não seria no fundo uma simples organização da produção (as «sociedades industriais»!), mas «uma alma», que naturalmente se debate conforme pode contra toda esta matéria invasora, mas permanece na mesma o que é: uma alma! que é necessário salvar, naturalmente, e defender (contra quem? mas contra o materialismo invasor! qual? o da matéria mecanizada? mas não é assim tão grave, pois, elevando a «qualidade da vida» pelo «nível de vida» e «participação», alguma coisa se resolve; mas o outro, o dos materialistas políticos, que se unem e que lutam: portanto ameaçadores). Ora, se abandonarmos estas razões «baixas» para subir às alturas dos nossos filósofos espiritualistas, vemos bem como constroem o seu pensamento. Um Bergson fez toda a sua car-
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reira de espiritualista explorando as «dificuldades», isto é, no sentido que elucidámos, a «crise» da teoria das localizações cerebrais (Matéria e Memória), e também da física moderna (a relatividade) e da sociologia durkheimiana ( As duas fontes da moral e da religião). Pretextos para desenvolver, sob um vocabulário renovado, em benefício do Espírito, o antagonismo do espaço (material) e da duração ( espiritual) sob dez figuras variadas. Destino singular: no próprio momento em que se desenvolvia o «regresso a Kant», que devia provocar o nascimento das diferentes formas do neocriticismo, Bergson é um homem que escolhe uma outra via. Não conhece Kant, e se o leu, compreendeu-o mal, não querendo compreendê-lo. Bergson «cava» o velho fundo espiritualista, e é no modo espiritualista renovado com novos argumentos e novas categorias (a intuição, o movimento, a energia espiritual, etc.) , que explora as ciências. O modo é diferente, o resultado é o mesmo. Brunschvicg ( que tal como Bergson, mas em mais alta escala, exerceu um verdadeiro poder autocrático ideológico na Universidade), é aparentemente outra coisa. Um «grande espírito» (pelo menos para a história da filosofia francesa moderna), que não cessou de falar no Espírito. Que tenha tido um fim miserável numa França ocupada cujo governo dava caça aos judeus não muda nada ao seu passado oficial. Este homem que tinha lido Platão,
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Aristóteles, Descartes, Spinoza, Kant, Fichte e Hegel, possuía uma «impressionante» cultura histórica (que não tinha Bergson) e científica ( certamente em segunda mão). E parecia acomodar-se na grande tradição idealista crítica, visto que aos seus olhos tudo estava em Kant e Fichte, ao ponto de tratar Aristóteles e Hegel de atrasados ( «12 anos de idade mental»). Kantiano, criticista, Brunschvicg? É uma afirmação precipitada. Certamente, quando lia Descartes, não cessava de o relacionar com Kant. Mas Kant, não o lia ele através de Spinoza, um singular Spinoza, que ao ser lido como um espiritualista devia voltar-se no túmulo! A verdade é que todas estas referências são falsas, porque abusivas. Brunschvicg bem podia invocar Kant; ele não era um filósofo crítico. A espantosa mistura que fazia de Platão, de Descartes, de Spinoza e de Kant basta para entender para que lado ele pendia. Brunschvicg era um espiritualista, que sabia (como acontece muitas vezes com os seus pares) servir-se, para os inflectir em seu favor, do prestígio de certos juízos dos filósofos mais diversos. 'Nesta batalha que é a filosofia, todos os processos da guerra, incluindo a pilhagem e a maquilhagem, são bons. E quando era preciso não apenas «comentar» este ou aquele autor, mas pronunciar-se sobre factos da história das ciências (sobre as matemáticas, sobre a causalidade física), Brunschvicg mostrava o seu verdadeiro rosto. Também explorava as
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ciências para entoar hinos sagrados ao Espírito humano, à Liberdade do Espírito, à Criação moral e estética. Que ele não acreditasse num Deus pessoal (o espiritualista existencialista-cristão Gabriel Marcel ceusurou-lho bastante num célebre congresso de filosofia em Paris em 1937) não muda nada ao caso: era um conflito menor entre um filósofo religioso e um filósofo espiritualista. Será preciso citar outros nomes? Quando P. Ricoeur escreveu um grosso volume sobre a psicanálise (Da interpretação), é mais uma vez uma disciplina científica que paga as custas da «demonstração»: em benefício da Liberdade, desta vez extraída não de Descartes nem de Kant, mas de Husserl. Quando um Garaudy, que teve a sua hora de poder, extraía da obra científica de Marx efeitos de «liberdade» (o marxismo é uma teoria da «iniciativa histórica», fórmula retomada a Fichte), por muito marxista e materialista que se declarasse, não era menos espiritualista. Outros, que abusam de Marx para apresentar a sua teoria como «humanista», embora se declarem marxistas e materialistas, não são menos espiritualistas, «envergonhados» teria dito Lenine, pois este espiritualismo é mesmo assim difícil de engolir e portanto de confessar. Em todos os casos, as ciências (sejam da natureza, do inconsciente, ou da História) são exploradas pelos filósofos espiritualistas para fins apologéticos: para justificar os seus «objectivos», sem dúvida porque
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estes «objectivos» são de tal modo falhos de garantia que se veem na necessidade de a subtrair fraudulentamente ao prestígio das Ciencias. Dizia há pouco: no caso das filosofias abertamente religiosas é a ideologia prática religião que, por intermédio destas filosofias, explora para os seus próprias fins as ciências, as suas dificuldades, os seus problemas, os seus conceitos ou a sua existência. Mas, no caso das filosofias espiritualistas? Sugiro uma hipótese: é a ideologia prática moral. E podemo-lo verificar naquilo em que todas as filosofias espiritualistas culminam no comentário do Bem: numa Moral, numa Sabedoria, que mais não são do que a exaltação da Liberdade humana, quer seja contemplativa ou prática (prática-moral), na exaltação da Liberdade criadora simultaneamente moral e estética. A este nível supremo, o Belo da criação estética e o Bem da criação moral ( ou até religiosa: no sentido em que a religião é a forma superior da moral) terçam, sob a bênção da Liberdade humana e no seu elemento, as suas armas e encantos. Sei bem que a ideologia prática moral põe um problema, pois ela a maior parte das vezes «flutua», ou antes «anda à deriva». Ou é um subproduto das relações sociais, económicas e políticas: nos filósofos gregos, a moral é um subproduto da ideologia política, é política; ou então é um subproduto da ideologia reli113
giosa (assim na Idade Média); ou ainda é um subproduto da ideologia jurídica (no período burguês). Em todos os casos, a moral é um complemento ideológico ou um suplemento ideológico, que depende duma outra ideologia. Não esqueçamos, como acabamos de ver nos nossos autores, que ela pode estar também ligada à ideologia estética. Mas tal como é, esta ideologia prática encontra-se, em certos períodos e conjunturas, numa situação de privilégio, que lhe permite retomar através da sua forma subordinada, tratada como autónoma e dominante, os «valores» que se tornaram dificilmente defensáveis ou são dificilmente defensáveis em nome duma ideologia prática francamente confessada. Para dizer as coisas com clareza, quando a religião vacila pode haver vantagem em fazer baixar a moral: e pouco importa que ela se ligue ao mesmo tempo à ideologia religiosa em declínio e à ideologia jurídica em plena ascensão. Para dizer as coisas mais claramente, quando a ideologia jurídica é muito franca, e portanto perigosa para a causa que queremos defender, pode haver vantagem em fazer baixar a moral, que é um subproduto dela, e tratá-la como se ela estivesse mais ligada à religião do que à ideologia jurídica, e, se não à religião, pelo menos ao Espírito humano e à sua liberdade. Brunschvicg é típico deste último caso: fala da Liberdade, mas não é a liberdade da ideologia jurídica, é uma outra liberdade, a do espírito humano, q.ue ele
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esconde sob a primeira falando simplesmente da moral. Mas não acabamos aqui. Porque, além das filosofias religiosas e das filosofias espiritualistas, há ainda as filosofias idealistas clássicas, de Descartes a Kant e Husserl: do idealismo racionalista ao idealismo crítico. Estas filosofias podem invocar a seu favor o terem, numa primeira aproximação, toda uma outra «relação» com as ciências do que têm as filosofias religiosas e espiritualistas. De facto, de Descartes a Husserl passando por Kant, este idealismo pode reivindicar um real conhecimento dos problemas científicos e uma posição frente às ciências que parece demarcá-la das outras filosofias. Descartes era ele próprio matemático, deu o seu nome a descobertas, escreveu sobre o «método». Kant denunciou a impostura das «ciências sem objecto» tais como a teologia racional, a psicologia racional e a cosmologia racional, e interessou-se de perto pelos problemas cosmológicos e a física; inaugurou mesmo de certa maneira, nos seus Primeiros
princípios metafísicos duma ciência da natureza, o que se devia chamar mais tarde epistemologia. Quanto a Husserl, sabe-se que se alimentava de matemáticas e de lógica matemática. No entanto, se bem que duma forma diferente, infinitamente mais grosseira, este idealismo racionalista e crítico, mesmo pretendendo reconhecer os direitos da ciência, não explora 115
menos as ciências. Em todas as suas variantes, a filosofia aparece como a disciplina que diz o direito sobre as ciências, pois põe a questão de direito e responde fornecendo títulos de direito ao conhecimento científico. Em todos os casos, a filosofia aparece assim como a garantia jurídica dos direitos da ciência, ao ao mesmo tempo que dos seus limites. Não é por acaso que «a questão do conhecimento», e a «teoria do conhecimento» que lhe responde, passa então (o que antes não era o caso) a ocupar em filosofia o lugar central. Quem me garante que a verdade (científica) que eu detenho foge à dúvida, ou ao «logro» dum Deus que, qual «génio maligno», abusaria de mim na própria evidência da presença do verdadeiro (Descartes) ? Quem me garante que as «condições da experiência» me dão bem a verdade da própria experiência? E quais são então os limites de toda a experiência possível (Kant) ? Qual deve ser a «modalidade» da consciência para que «o objecto» que lhe é dado lhe seja «apresentado em pessoa», e qual deve ser esta «consciência» para ser ao mesmo tempo «a minha» consciência «concreta» e a consciência da idealidade científica (Husserl)? Bem entendido, estas questões que parecem prévias, e não dizem respeito senão a uma questão de direito, deixando em seguida às ciências toda a sua autonomia, empenham a própria filosofia nesta «teoria do conhecimento» que acaba invariavelmente numa filosofia da ciên116
eia, em que a filosofia «diz a verdade» sobre a ciência, «a verdade da ciência», numa teoria que liga a ciência, como uma dentre elas, ao sistema das actividades humanas, em que, como por acaso, a Liberdade se realiza na Moralidade, na Arte, na Religião e na política. Ê preciso desmascarar a volta subtil deste processo idealista racionalista-crítico, que não invoca os direitos da ciência, mas põe à ciência uma questão de direito exterior à ciência, para lhe fornecer os seus títulos de direito: sempre do exterior. Ora, o que é este «exterior»? Uma vez mais, uma ideologia prática. Desta vez, a ideologia jurídica. Pode-se com efeito dizer que toda a filosofia burguesa ( os seus grandes representantes dominantes, porque é preciso não esquecer os subalternos, que fabricam em segunda mão filosofia religiosa ou espiritualista) não é mais do que a repetição e o comentário filosófico da ideologia jurídica burguesa. Que a «questão de direito», que abre à estrada real da teoria do conhecimento clássico, seja relativamente estranha à filosofia antiga (Pla• tão, Aristóteles, os estóicos e o essencial da escolástica): ninguém o pode contestar. O que há de «teoria do conhecimento» nestas filosofias tem nelas um papel muito subordinado e um sentido muito diferente da «teoria» do conhecimento» da grande filosofia clássica burguesa. Que a intervenção maior desta «questão de direito» no próprio coração da filosofia 117
burguesa diga respeito ao domínio da ideologia jurídica, não devia sequer prestar-se à contestação, se bem que seja uma «verdade» desconhecida, e com boas razões! Mas que a «teoria do conhecimento» seja inteiramente baseada no pressuposto desta questão prévia, que os desenvolvimentos e portanto os resultados desta «teoria do conhecimento» sejam no fundo comandados e contaminados por este pressuposto de origem externa, eis o que é mais difícil de admitir. No entanto, que se reflicta bem. Não é por acaso que, para responder à «questão de direito», a teoria do conhecimento clássica põe em acção uma categoria como o «sujeito» (do ego cogito cartesiano, ao Sujeito transcendental kantiano, e aos sujeitos transcendentais «concertos» husserlianos). Esta categoria não é mais que o retomar, no campo da filosofia, da noção ideológica de «sujeito», tirada da categoria jurídica de «sujeito de direito». E o par «sujeito-objecto», «o sujeito» e o «seu» objecto, não faz mais do que reflectir no campo filosófico, à maneira propriamente filosófica, as categorias jurídicas de «sujeito de direito», «proprietário» de si próprio e dos seus bens (coisas). Assim a «consciência»: é proprietária de si própria (consciência de si) e dos seus bens ( consciência do seu objecto, dos seus objectos) . A filosofia idealista-crítica resolve esta dualidade de direito numa teoria filosófica da consciência constituinte (de si + do seu objecto).
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Husserl explicita esta teoria da consciência constituinte em consciência «intencional». A intencionalidade é a teoria do «de» ( consciência de si= consciência de seu objecto). Um único «de»: assim, a «consciência» está certa de ter de lidar consigo quando lida com o seu objecto, e vice-versa. Sempre a mesma necessidade de garantia! Apenas dou aqui um simples índice, mas podia-se facilmente mostrar, desenvolvendo a sua lógica e estendendo-a a todos os elementos conexos, que a demonstração é possível. Se assim é, compreende-se que a filosofia idealista racionalista-crítica submeta as ciências e a prática científica a uma questão prévia que contém já em si própria a resposta que pretende procurar inocentemente nas ciências. E como esta resposta, inscrita na questão de direito, não figura no direito senão porque figura ao mesmo tempo noutro sítio, em toda a estrutura da sociedade burguesa nascente, portanto na sua ideologia, nos «valores» prático-estético-religiosos desta ideologia, compreende-se que o que se representa, duma forma aparentemente exclusiva, neste pequeno «teatro» da Teoria do conhecimento e da epistemologia das filosofias racionalistas e críticas, diz inteiramente respeito a outros debates; em Kant, o destino do direito, da moral, da religião e da política na época da Revolução francesa, em Husserl, «a crise das ciências europeias» (sic!) sob o imperialismo. Compreende-se que 119
as ciências, exploradas pelo idealismo, paguem uma vez mais as custas da operação. Desta análise, retém-se isto: a imensa maioria das filosofias, quer sejam religiosas, espiritualistas ou idealistas, mantêm com as ciências uma relação de exploração. O que quer dizer: as ciências nunca são tomadas por aquilo que realmente são, mas que a sua existência, que os seus limites, que as suas dificuldades de crescimento (baptizadas de «crises»), ou o seu mecanismo, interpretados nas categorias idealistas das filosofias melhor instruídas, são utilizados de fora, de maneira grosseira ou fina, mas utilizados para servir de argumento ou de garantia a «valores» extra-científicos que as filosofias em questão servem objectivamente pela sua própria prática, pelas suas «questões:. e pelas suas «teorias». Estes «valores» pertencem às ideologias práticas, as quais representam o seu papel na consistência e nos conflitos sociais de sociedades de classes. Evidentemente, já ouço a objecção que não pode deixar de vir ao espírito. Pois os cientistas estarão voluntariamente de acordo com as minhas observações. Qual o cientista que não sentiu esta espécie de impressão muito particular que exerce, mesmo quando se declara sincera e honesta, a filosofia nas suas relações com as ciências: uma impressão de «chantagem» e de exploração? Os filósofos, evidentemente, não sentem esta impressão: os exploradores, em geral, e não só na filosofia, não têm nunca a im120
histórico: e que este conhecimento transformou o antigo materialismo num materialismo novo, o materialismo dialéctico 1 • Podemos ver que a filosofia que professamos ou, mais exactamente, a posição que ocupamos em filosofia, não deixa de estar em relação com a política, uma certa política, a dum Lenine, ao ponto que as fórmulas políticas de Lenine puderam servir-nos de referência para anunciar as nossas Teses sobre a filosofia. Não existe contradição: esta política é a do movimento operário, e a sua teoria vem de Marx, como vem de Marx o conhecimento das ideologias práticas que permite enfim à filosofia controlar e criticar o seu laço orgânico com a ideologia prática e portanto rectificar-lhe os efeitos segundo uma linha «justa». Fora uma garantia absoluta (que não existe, salvo na filosofia idealista, e sabemos o que pensar dela), eis os argumentos que podemos apresentar. Práticas (que nos julguem comparando os serviços que podemos prestar às ciências) e teóricas (o controlo crítico dos efeitos inevitáveis da ideologia sobre a filosofia pelo conhecimento dos mecanismos da ideologia e da luta ideológica: em particular, pelo conhecimento da sua acção sobre a filosofia). 1 Este conhecimento não transformou a filosofia em ciência, como se diz frequentemente: a nova filosofia permanece filosofia, mas o conhecimento científico da sua relação com as ideologias prãticas faz dela uma filosofia «justa».
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II.
EXISTE UMA FILOSOFIA ESPONTANEA DOS CIENTISTAS (F. E. C.)
Podemos agora voltar a este segundo ponto. Talvez se compreenda agora melhor o sentido da fabricação de «novas» filosofias, de «verdadeiras» «filosofias de ciência» pelos cientistas apanhados pela «crise» duma ciência. Na medida em que não fazem mais do que retomar temas espiritualistas ou idealistas «trabalhados» durante séculos de história da filosofia, tomam lugar, também eles, se bem que cientistas, na grande tradição dos que exploram as ciências para fins apologéticos, e naturalmente sem o contrapeso do materialismo e sem o controlo crítico que pode assegurar, no seio do materialismo, o conhecimento dos mecanismos da ideologia e dos seus conflitos de classe. Mas podemos ao mesmo tempo compreender outra coisa: o que nos é indicado pela reacção destes laboriosos cientistas, teimosos e calados que, mesmo na pseudo-crise, prosseguem o seu trabalho obstinado e o defendem com argumentos, sempre os mesmos, que os grandes
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filósofos da «crise» julgam ingénuos e materialistas. Desta raça de cientistas ( os da primeira reacção), falámos muito pouco. É no entanto deles que um Lenine, que ataca violentamente os outros, faz a defesa, quando os evoca bem como ao seu «instinto materialista». Esses cientista não proclamam que a «matéria desapareceu»: pensam que ela subsiste e que a ciência física dá bem o conhecimento das «leis da matéria». Esses cientistas não têm necessidade duma filosofia neocriticista que renova a ideia que eles têm da ciência e das «condições de possibilidade» do conhecimento científico; não têm necessidade duma filosofia que lhes garanta que os seus conhecimentos são mesmo conhecimentos, isto é, objectivos (em duplo sentido: conhecimento do seu objecto e conhecimento válido fora de todo o subjectivismo). Defendem-se como podem, os seus argumentos são talvez «simples», até mesmo «grosseiros» aos olhos dos seus adversários, podem mesmo enganar-se na ideia que fazem da resolução de contradições existentes na física moderna: mas quem pode garantir que não se engana? Representam uma posição bem diferente da dos seus pares «agarrados» pela filosofia que professam. A sua existência interessa-nos. Pois se queremos falar da filosofia espontânea dos cientistas em toda a sua extensão e contradição, devemos ter em conta dois extremos: não apenas os cientistas que fabricam uma filosofia que explora as dificuldades da ciência, mas também
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aqueles cientistas que se batem obstinadamente, com os seus riscos e perigos, em posições radicalmente diferentes. Paro aqui com análises que seriam indispensáveis para justificar em pormenor o exposto e vamos ao essencial. 1. Através dos elementos fornecidos pela experiência da «crise» duma ciência, adquirimos a convicção de que existe uma relação entre a filosofia e as ciências, e que esta primeira relação pode ser detectada nos próprios cientistas, enquanto portadores duma filosofia espontânea a que chamamos filosofia espontânea dos cientistas (F. E. C.). 2. Entendemos este termo (F. E. C.) num sentido estrito e limitado. Por F. E. C., entendemos não o conjunto das ideias que os cientistas têm sobre o mundo (isto é, a sua «concepção do mundo») mas apenas as ideias que têm na cabeça ( conscientes ou não) que dizem respeito à prática científica e à ciência. 3. Distinguimos pois rigorosamente 1) a filosofia espontânea dos cientistas e 2) a concepção do mundo dos cientistas. Estas duas realidades estão unidas por laços profundos, mas podem e devem ser distinguidas. Veremos mais tarde o que se passa com a concepção do mundo. A F.E.C. diz somente respeito às ideias ( «conscientes» ou não) que os cientistas fazem da prática científica das ciências e «da» ciência. 4. Se analisarmos o conteúdo da F. E. C., observaremos o seguinte facto (limitamo-nos 127
sempre a uma análise empírica) : o conteúdo da F.E.C. é contraditório. Esta contradição existe entre dois elementos que se podem distinguir da seguinte maneira: A. Um elemento de origem interna «intracientífico», a que chamaremos ELEMENTO 1. Na sua forma mais «difusa», este Elemento representa «convicções» ou «crenças» resultantes da experiência da prática científica em si, imediata e quotidiana: «espontânea». Se é elaborado filosoficamente, este Elemento pode naturalmente revestir a forma de Teses. Estas convicções-Teses são de carácter materialista e objectivista. Podem decompor-se assim: 1) crença na existência real, exterior e material, do objecto do conhecimento científico; 2) crença na existência e objectividade dos conhecimentos científicos que dão o conhecimento deste objecto; 3) crença na justeza e eficácia dos processos da experimentação científica, ou método científico, capaz de produzir conhecimentos científicos. O que caracteriza o corpo desta convicções-Teses é que elas não dão nenhum lugar a esta «dúvida» filosófica que põe em questão a validade da prática científica, afastando o que nós chamámos a «questão de direito», a questão dos títulos de direito da existência do objecto conhecido, do seu conl.ecimento e do método científico. B. Um elemento de origem externa, «extracientífico», a que chamaremos ELEMENTO 2. Este Elemento representa, também ele, na sua
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forma mais difusa, um certo número de «convicções» ou «crenças» que podem ser elaboradas em Teses filosóficas. Isto diz respeito, bem entendido, à própria prática científica, mas não derivou dela. Ê pelo contrário a reflexão sobre a prática científica mediante Teses filosóficas elaboradas fora desta prática, por «filosofias da ciência», religiosas, espiritualistas ou idealistas-críticas, fabricadas por filósofos ou cientistas. O próprio das «convicções-Teses» deste Elemento 2 é submeter a experiência da prática científica a Teses, e portanto a «valores» ou «instâncias» que lhe são exteriores, e que, explorando as ciências, servem sem crítica um certo número de objectivos saídos das ideologias práticas. Aparentemente, são tão «espontâneas» como as primeiras: de facto, são muito elaboradas e não revestem a forma da espontaneidade senão porque o seu domínio faz delas «evidências» imediatas. Para não retomar senão este caso, elas contêm, por exemplo, nas cambiantes da sua formulação, a marca da questão de direito», que pode apresentar numerosas formas: pôr em questão a existência exterior material do objecto (substituído pela experiência.), pôr em questão a objectividade dos conhecimentos científicos e da teoria (substituída pelos «modelos»), pôr em questão o método científico (substituído pelas «técnicas de validação»), ou ainda pôr o acento no «valor da ciência», no «espírito científico», na sua «virtude crítica» exemplar, etc.
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Tendo em conta o campo de luta que nos apareceu nos conflitos que opunham entre si os cientistas comprometidos na pseudo-crise da ciência (este campo de luta é abertamente o materialismo), podemos razoavelmente qualificar o Elemento 1 de Elemento materialista e o Elemento 2 de Elemento idealista (no sentido genérico das três filosofias, religiosa, espiritualista e crítica que examinámos rapidamente). 5. Na filosofia espontânea dos cientistas (F. E. C.) o Elemento 1 (materialista) é na grande maioria dos casos (e salvo excepção tanto mais notável), dominado pelo Elemento 2. Esta situação reproduz, no seio da F. E. C., a relação de força filosófica, existente no mundo onde vivem os cientistas que conhecemos, entre o materialismo e o idealismo, e o domínio do idealismo sobre o materialismo 1. Nada é menos «evidente» do que este último facto. E supondo mesmo os cientistas bastante instruídos sobre o que é a filosofia e o que são os conflitos que aí se jogam e as relações que mantêm com as grandes lutas políticas e ideológicas deste mundo, se estes cientistas querem reconhecer que em matéria social, política, ideológica, moral, etc., o materialismo é de facto massivamente dominado pelo idealismo ( o que reproduz na forma teórica o domínio
1 Sobre todas estas questões, ver o exemplo analisado no Anexo, a propósito de Monod.
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das classes exploradas pelas classes exploradoras), hesitarão em reconhecer a mesma relação de força no seio da sua própria F. E. C.. É pois necessário demonstrá-lo. Para conseguir na verdade aí chegar, será preciso uma longa análise teórica e histórica. Mas também aí, à falta de tempo, devemo-nos ater à produção de simples factos empíricos para tentar fazer «sentir» esta realidade decisiva. Mas, mesmo no caso desta «exibição», não devo dissimular a dificuldade da tarefa: a razão é que devemos aqui «trabalhar» no «espontâneo», isto é, nas formas de «representação» que se dão numa evidência imediata que importa rodear ou ultrapassar. Ora, nada é mais difícil de rodear ou ultrapassar do que a evidência. Considerem por exemplo o que se passa entre vós, que sois cientistas, e eu, que sou filósofo. Quando um filósofo fala, como eu o faço, do Elemento 1 da F. E. C. chamando-lhe «intracientífico», faz-se compreender muito bem. Pois a maioria dos cientistas não duvidam da existência do seu objecto, da objectividade dos seus resultados (conhecimentos), nem da eficácia do seu método. Mas se ele chama a este Elemento 1 materialista, não é compreendido por todos os cientistas. Uns compreendem: hoje, os especialistas das ciências da terra, os naturalistas, biólogos, zoólogos, fisiologistas, etc. Para todos estes cientistas, as palavras matéria, materialismo e o adjectivo materia131
lista exprimem qualquer coisa de essencial às convicções da sua prática científica: para eles, são «justas». Mas se se passa a outras disciplinas, as coisas mudam sensivelmente. Se deixarmos de lado os matemáticos (dos quais alguns se interrogam mesmo se o seu «objecto» «existe») e, com algumas excepções, os especialistas das ciências humanas ( que na sua maioria, não se confessariam materialistas), consideremos duas ciências que têm no entanto a ver com a matéria: a física e a química. Físicos e químicos são, quando se trata deles próprios, muito modestos e reservados. Vou pois tentar falar em nome deles: e dir-me-ão em seguida se vi justo ou errado. Ora, se se declarar hoje aos físicos, aos químicos, que têm uma filosofia espontânea de cientistas, que é contraditória e contém um elemento «intracientífico» e um elemento «extracientífico, um saído da sua prática, outro importado, eles não dizem que não. Isso não lhes parece inverosímil. Mas quando lhes dizem que o Elemento 1 ( «intracientífico») é de carácter materialista, e sobretudo quando se precisa que este elemento tem por nó a unidade de três termos: objecto exterior existente materialmente/conhecimentos ou teorias científicas objectivas/método científico - ou mais esquematicamente, objecto / teoria / método - , eles têm a impressão de que se fala uma linguagem não escandalosa, mas estranha aos seus
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ouvidos, pois indiferente ao conteúdo da sua própria «experiência». Isso quer dizer que, para eles, as coisas se apresentam espontaneamente noutros termos. E se lhe pedíssemos para tomar a palavra, é muito provável que ao pequeno grupo objecto/teoria/método, eles substituíssem um outro pequeno grupo, muito mais «moderno», em que se falaria de «dados de experiência», de «modelos» e de «técnicas de validação», ou mais esquematicamente: experiência/modelos/técnicas. Isto não tem ar de nada: no fim de contas, as palavras são apenas palavras e basta uma boa convenção para as mudar. Infelizmente, nestas matérias não se impõem as convenções que se quer, pois as palavras não são escolhidas sem razão, nem sem razão substituídas umas pelas outras. Para não tomar senão esta palavra de aparência perfeitamente inocente: «experiência» ( ou «dados da experiência»), é preciso saber que, no lugar que ocupa no segundo grupo, ela excluiu uma outra palavra: objecto exterior materialmente existente. Foi para isso que foi posta por Kant no poder contra o materialismo e reposta pela filosofia empiriocriticista de que já falámos. Quando se põe assim a experiência ( que é, notem bem, coisa diferente da experimentação) na primeira fila, e quando se fala de modelos em vez de teoria, faz-se mais do que mudar duas palavras: provoca-se um deslizar de sentido, melhor, recobre-se um sentido por outro e faz-se desaparecer o primeiro
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sentido, materialista, sob o segundo, idealista. É neste equívoco, insensível para eles, que se joga a dominação do Elemento 2 sobre o Elemento 1, na F. E. C. de numerosos físicos e químicos. O que prova que não basta a uma ciência ter a ver com a «matéria» para que os seus especialistas se reconheçam materialistas. O que prova também, pelo facto, que se joga entre os dois Elmentos da F. E. C. uma estranha dialéctica: visto que um dos elementos pode recobrir o outro ao ponto de o fazer desaparecer inteiramente, sob a aparência de «dar conta» da mesma prática que ele. Seja como for, e para ficarmos nesta dominação provocada por este deslizar, ela nem sempre existiu na história da física e da química, ou de todas as ciências «experimentais» que pensam a sua prática sob os termos «experiência/modelo/técnica». Há cem anos, os físicos e os químicos mantinham sobre a sua prática uma linguagem muito diferente, muito próxima da que usam hoje OJ cientistas da terra e da vida. Se os nossos amigos cientistas se dessem ao trabalho de estudar a história da sua disciplina e da representação que dela fizeram os seus antecessores, encontrariam documentos interessantes provando como e sob que influências se operou este deslizar na terminologia da sua F.E.C., chegando à dominação do Elemento 2, extracientífico, sobre o Elemento 1, intracientífico. Pode-se dai tirar a conclusão que, para decifrar o conteúdo duma
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F. E. C., é indispensável recorrer à história das ciências e à história das F. E. C., a qual depende ao mesmo tempo da história da filosofia. Mas tentemos ainda fazer «sentir» o facto desta dominação a propósito dum outro exemplo: invertido. Se se reconhece a existência destes dois elementos contraditórios na F. E. C., e a dominação do Elemento 2 sobre o Elemento 1, se se sabe que o Elemento 2 está organicamente ligado às filosofias que exploram as ciências para fins apologéticos, em benefício dos «valores» de ideologias práticas não conhecidas e não criticadas, é claro que os cientistas têm interesse em transformar a sua F. E. C. de maneira crítica, para reduzir as ilusões contidas no Elemento 2 e mudar a relação de força existente, a fim de pôr o Elemento 1, «intracientífico» e materialista, em posição de domínio. Ora, tanto este interesse é evidente, que a experiência most:i:-a que este derrubar de relações de força interna à F. E. C., e portanto esta transformação crítica da F.E.C., é praticamente impossível (salvo casos limites, que seria necessário estudar) apenas pelo jogo interno da F. E. C. Por outras palavras: na situação (a mais geral) em que o Elemento 2 domina o Elemento 1, é impossível inverter a relação das forças sem um complemento exterior. O Elemento 1 sendo dominado pelo Elemento 2 não pode sobrepor-se ao Elemento 2 pela simples confrontação crítica interna. Claramente,
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a F. E. C. é regra geral incapaz de se criticar a si própria pelo jogo do seu próprio conteúdo. Qual poderá ser esta contribuição exterior? Não pode ser antes de mais senão uma força exterior capaz de mudar a relação de força interna à F. E. C.? Antes de mais não pode ser senão uma força da mesma natureza que as forças que aí se afrontam: uma força filosófica. Mas não basta uma força filosófica qualquer: uma força filosófica capaz de criticar e reduzir as ilusões idealistas do Elemento 2, apoiando-se no Elemento 1; portanto, uma força filosófica aparentada à força filosófica do Elemento 1, em suma, uma força filosófica materialista que, em vez de a explorar, respeite e sirva a prática científica. Quer se trate em tudo isto de filosofia, de relações de força filosóficas, e portanto em última análise de luta filosófica, os cientistas sabem-no bem. Se conhecem um pouco do seu passado, sabem muito bem, por exemplo, a ajuda que as ciências experimentais do século XVIII receberam então dos filósofos materialistas. E à sombra da grandiosa História das Luzes, sabem muito bem qual era o alvo do combate na representação que os homens desse tempo (padres e seus intelectuais dum lado, Enciclopedistas materialistas do outro) faziam das ciências e da prática científica: tratava-se de desembaraçar os «espíritos» duma falsa representação da ciência e do conhe136
cimento, para fazer triunfar contra ela uma representação «justa» ou mais «justa». Tratava-se duma luta para transformar a F. E. C. existente: e nesta luta, para fazer oscilar a relação de forças, os cientistas tinham necessidade dos filósofos e apoiavam-se neles. Certamente estas coisas não se passam sempre assim de forma tão clara. Mas, como a nossa «crise da ciência» nos mostrava há instantes o filósofo que dormita em todo o cientista, a aliança aberta dos cientistas e dos filósofos das Luzes, sob a palavra de ordem do «materialismo», mostra-nos a condição sem a qual a relação de forças entre o Elemento 2 e o Elemento 1 não pode oscilar na F. E. C. Esta condição é a aliança dos cientistas com a filosofia materialista, que traz aos cientistas a contribuição duma força indispensável para fortalecer o elemento materialista até reduzir as ilusões religiosas-idealistas que dominavam a sua F. E. C. Sem dúvida, as circunstâncias eram então «excepcionais», mas ainda mais uma vez têm a vantagem de nos mostrar «em letras grandes» o que está escrito, no curso «normal» das coisas, em «letras pequenas», até em letras minúsculas ou ilegíveis. E visto que falamos desta Grande Aliança da filosofia materialista e dos cientistas no século XVTII, porque não recordar que a palavra de ordem pela qual foi selada: materialismo, foi trazida aos cientistas pelos filósofos que queriam servi-los e que, no conjunto, mau grado os revezes (meca-
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mc1smo, etc.) deste materialismo, neste ponto bem os serviram? Mas ao mesmo tempo, e para ficarmos no mesmo exemplo, é necessário medir bem os limites objectivos desta aliança. Pois o «materialismo», que vinha assim em socorro das ciências e dos cientistas, protegia-os antes de mais do poder e da impostura religiosa. A «linha de demarcação histórica» desse tempo passava aí: entre o «saber religioso», que não era senão dogma e «obscurantismo», querendo dirigir todo o conhecimento no mundo, e o saber científico, aberto e «livre» perante a infinita descoberta do mecanismo das coisas. Mas este mesmo «materialismo» sofria, na sua própria representação da «Verdade», o domínio dum outro idealismo: jurídico, moral e político. Não é por acaso que o materialismo do século XVIII foi também o materialismo do «Século das Luzes». No grande símbolo das Luzes, que a língua alemã definia numa palavra ainda mais explícita: Aufklarung, esclarecimento, iluminação (muito diferente da mística do «iluminismo»), os cientistas e filósofos desse tempo viviam também uma Grande Ilusão: a da omnipotência histórica do conhecimento. Velha tradição, que remonta muito longe nos séculos, ligada sem dúvida ao «poder» atribuído, na divisão do trabalho, àqueles que detinham o «saber» (mas não há «poder do saber» que não esteja ligado ao «poder») : exaltando a omnipotência do Conhecimento sobre a Igno-
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rância. Basta que a Verdade apareça e, tal como o dia que nasce afugenta a noite, dissipará todas as sombras: erros e preconceitos. Este «pensamento» nunca deixou de obcecar os cientistas, mesmo modernos. Têm sempre num canto da consciência a certeza de que, detendo a ciência e a experiência da sua prática, detêm verdades de excepção: além da Verdade que não duvidam que será um dia reconhecida e transformará o mundo, as «virtudes» da sua aquisição, honestidade, rigor, pureza, desinteresse - das quais estão inteiramente prontos a fazer uma Ética. E pensam que tudo isso lhes vem da própria prática! E como não o julgariam, visto que são, na prática, honestos-, rigorosos, puros e desinteressados? Estas «evidências» são as mais duras de vencer. Porque, para refazer o percurso pelo século XVIII, vê-se «claro como o dia», é caso para o dizer, que esta convicção da omnipotência da verdade científica estava mais ligada a outra coisa que às próprias ciencias: à «consciência» jurídica, moral e política dos intelectuais duma classe em ascensão segura de tomar o poder pela evidência da Verdade e da Razão, e pondo antecipadamente a Verdade no poder, para o ocupar. Na sua filosofia as Luzes, os sábios e filósofos do século XVIII, por muito materialistas que fossem na sua luta contra a religião, não eram menos idealistas na sua concepção da história. E era do seu idealismo histórico (jurídico, moral e político) que lhes vinha em
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última análise a concepção idealista que faziam da omnipotência da Verdade científica. Aqueles que, ainda hoje (como Monod), retomam, sob outras formas, os mesmos temas exemplares, estão, como outrora os seus predecessores, convencidos de que não falam senão da sua própria experiência científica, quando de facto falam doutra coisa muito diferente: duma filosofia da história agora amarga e desencantada - compreende-se porquê- que não fazem mais que reflectir na sua própria experiência científica e sobre ela. Porquê todas estas minúcias? Para chegar à seguinte conclusão: na história contraditória do materialismo das Luzes, podem-se ver actuar as condições da inversão da relação de forças entre o Elemento 1 e o Elemento 2, e os limites desta inversão. As condições: o materialismo dos filósofos serviu incontestavelmente a prática científica do tempo: reforçando o Elemento 1, contra as imposturas religiosas do Elemento 2, que dominavam então o Elemento 1. A Aliança dos cientistas com o materialismo serviu as ciências. Os limites: mas ao mesmo tempo, modificando a relação de forças anterior, a contradição do materialismo dos filósofos das Luzes (idealistas em história) restaurou de facto a antiga relação de forças: submetendo o Elemento 1, materialista, a um novo Elemento 2, idealista. Sim, um novo Elemento 2, que integrava, sob a ilusão da omnipotência da Verdade, portanto do conhecimento
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científico, todos os temas do empirismo então reinante. Se esta análise, que é apenas uma, tem algum valor indicativo, verifica, desta vez ao contrário, e (o que é ainda mais interessante) duma maneira contraditódia, a nossa Tese do domínio do Elemento 2 sobre o Elemento 1, e da impotência da F. E. C. em mudar a sua relação de forças internas, em criticar-se a si própria. Pois será preciso dizer que as ilusões alimentadas pelos filósofos e sábios das Luzes receberam da história golpes terríveis? Não são as suas. ideias que, «reformando o entendimento», fazendo reconhecer a «Razão», pondo a Verdade no poder, fazem mudar o mundo: são as massas populares camponesas e plebeias «sem Luzes», mas em andrajos, quando surgirem na Revolução. Como não foram as suas representações «luminosas» da prática científica que fizeram sempre avançar as ciências, mas o trabalho ingrato de alguns práticos que progrediam, por vezes por causa destas ideias, mas muitas vezes apesar delas: por causa doutras ideias. Astúcia da razão. Se quiserem seguir-nos, tiraremos deste episódio algumas conclusões. Espero, em primeiro lugar, ter feito «sentir» que a relação das forças internas a uma F. E. C. não pode ser mudada por uma «crítica» imanente: mas que é necessária uma força de complemento, e que esta força de complemento não pode ser senão filosófica e materialista.
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Espero em seguida ter feito compreender que esta relação contraditória entre os Elementos da F. E. C. assim como a filosofia materialista que pode intervir no seu conflito não são dados para toda a eternidade: pertencem a uma conjuntura histórica definida. Entram em jogo, não apenas o estado das ciências, a divisão científica do trabalho, as relações entre as diferentes ciências, eventualmente o domínio duma ciência sobre as outras impondo a sua própria prática como a prática científica tipo, etc. - , mas também o estado da F. E. C. dominante e o estado das filosofias existentes, as ideologias práticas e os conflitos de classe. Se se esquecer esta realidade histórica e as suas formas necessariamente contraditórias, ficamos inibidos de compreender seja o que for da F.E.C. e das condições da sua transformação. Espero enfim ter demonstrado que a filosofia materialista que pode servir de contribuição às forças do Elemento 1 para transformar de maneira crítica as forças do Elemento 2, deve ser outra que não a filosofia materialista que fez aliança com os sábios do século XVIII contra a Igreja, a filosofia e a ideologia religiosas. Pois esta última filosofia, materialista sob um aspecto, era idealista sob outro, e os serviços que prestou por um lado às ciências, fê-los pagar por outro, restaurando assim, na sua F. E. C., sob uma nova forma, o antigo domínio do idealismo (Elemento 1) sobre o materialismo (Elemento 2).
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Se assim é, podemos talvez definir as condições duma nova Aliança entre os cientistas e uma filosofia materialista que respeite e sirva a prática científica. 1. Não podem ser condições gerais (do género edificante: os cientistas têm necessidade da filosofia), mas condições específicas tendo em conta antes de mais nada as relações de força históricas. Não basta reconhecer na F. E. C. a existência de dois Elementos e a sua contradição; nem mesmo identificar um como materialista e outro como idealista; nem enfim verificar que o segundo domina, regra geral, o primeiro. E preciso conhecer em cada caso a forma actual, histórica, destes dois elementos e da sua contradição. Porque, é um facto da observação, a forma da representação da prática científica, a forma da sua contradição varia na história com a história das ciências e a história da filosofia, e, por detrás destas duas «histórias», com a história das lutas políticas e ideológicas que se reflectem finalmente nestes dois Elementos. E pois necessário identificar a forma histórica actual do antagonismo na F. E. C. dominante. Digo: dominante, pois é também um facto de experiência ( entrevimo-lo quando examinámos a posição de cientistas pertencendo a diferentes ramos do saber científico) que não existe uma só e única forma de F. E. C. numa época determinada, mas várias, das quais uma está
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em posição dominante, e as outras, que viveram a sua hora de poder, tiveram de se submeter, mas não subsistem menos na posição dominada. Assim o racionalismo mecanicista, dominante no século XVII, depois o racionalismo empirista, dominante no século XVIII, depois o positivismo, dominante no século XIX (perdoem-me estas indicações esquemáticas), se bem que dominados hoje pela F. E. C. neopositivista «lógica», subsistem e sobrevivem na nossa própria conjuntura, por muito dominados que sejam - e basta-lhes uma «ocasião» propícia para voltarem, em certas disciplinas, para o primeiro plano (assim o racionalismo mecanicista cartesiano fazendo a sua época da F. E. C. na linguística de Chomsky ou na biologia de vanguarda) . Esta enumeração, como compreenderam, não é em nada o índice duma sucessão linear. É pelo contrário o traçado duma história conflitual, que opôs, em longos e rudes combates, formas diferentes de F. E. C.: digamos «maneiras de pensar» a prática científica, «maneiras de pôr os problemas científicos» ( «problemáticas»), e enfim «modos de resolução» das contradições teóricas da história das ciências. É porque esta história é conflitual que ela se resolve necessariamente pela tomada do poder duma nova «forma de pensamento», uma nova F. E. C., que, a partir dum certo momento, suplanta as antigas.
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Mas se temos de falar duma história conflitual das F. E. C., temos então de considerar toda a conjuntura como conflitual (incluindo a nossa). E como em filosofia um conflito nunca é nem definitiva nem absolutamente resolvido, para ver claro neste conflito não basta reconhecer as forças em presença: é preciso também conseguir distinguir a tendência de resolução deste conflito, saber donde ele vem para saber para onde vai, em que «tomada de poder» vai desaguar. É preciso pois, considerando todas as formas de F. E. C. «estratificadas» que subsistem e intervêm directa ou indirectamente no conflito, e as formas mais vivas que se afrontam no primeiro plano do palco, discernir qual é realmente a força que sobe, e através de que processo contraditório está em vias de «abrir caminho» para chegar à dominação. Veremos mais longe qual é presentemente esta F. E. C. ascendente: o neopositivismo lógico. 2. As condições de Aliança entre os cientistas e a nova filosofia materialista devem ser particularmente claras. Repito que se trata duma Aliança pela qual a filosofia materialista traz o seu apoio ao Elemento 1 da F. E. C. para lutar contra o Elemento 2 da F. E. C.: para fazer mudar a relação de forças, dominada pelo idealismo do Elemento 2, em favor do Elemento 1. Por esta Aliança, a filosofia materialista está autorizada a intervir na F. E. C., e unica-
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mente na F. E. C. O que quer dizer: a filosofia não intervém senão na filosofia. Interdita-se pois toda a intervenção na ciência propriamente dita, nos seus problemas, na sua prática. Isso não quer dizer que haja uma separação radical entre a ciência e a filosofia, que a ciência seja um domínio reservado ao puro científico. Isso quer dizer que o papel das categorias filosóficas e mesmo das concepções filosóficas na ciência, de que até agora não falámos 1, exerce-se, entre outras formas, por intermédio da F.E. C., e que a intervenção filosófica de que aqui falámos é uma intervenção da filosofia na filosofia. Trata-se ainda mais uma vez de fazer oscilar a relação de forças internas da F. E. C. de forma a que a prática científica já não seja explorada pela filosofia, mas servida por ela. Compreende-se então porque insistimos no carácter novo da filosofia materialista cujo serviço a prática científica pode esperar. Pois para poder servir a prática científica, esta filosofia materialista deve estar em estado de combater todas as forças da exploração idealista das ciências e, para poder estar em estado de as combater com conhecimento de causa, esta filosofia materialista deve ser capaz 1 Podemos com toda a razão sustentar a ideia de que as categorias filosóficas - quando são «justas» - funcionam corno relação de produção e de reprodução dos conhecimentos científicos.
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de dominar pelo conhecimento e a crítica o laço orgânico que a une às ideologias de que depende, como qualquer outra filosofia. Vimos em que condições esse controlo crítico era possível: no caso único duma filosofia materialista que se liga às descobertas pelas quais Marx abriu a via ao conhecimento dos mecanismos das «relações sociais ideológicas» (Lenine), portanto da função das ideologias práticas e dos seus antagonismos de classe. Mas, se assim for, compreende-se também que não se trata duma simples «aplicação» duma filosofia acabada a uma determinada F. E. C. Pois supondo que se trata da aplicação
duma filosofia já pronta, perfeitamente elaborada e senhora de todas as suas categorias, é necessário não esperar milagres. A relação de forças não se derrubará num instante, as ilusões idealistas não serão varridas de repente. Se acreditássemos nisso, reproduzíamos no interior duma filosofia formalmente materialista o essencial da concepção idealista das Luzes: a saber a omnipotência da Verdade dissipando as trevas do erro. Poder-se-ia dispor duma filosofia materialista, que nem assim se disporia da prática materialista dessa filosofia. Ter-se-ia esquecido que em toda esta questão se trata duma luta. A Aliança que propomos não se reduz a um protocolo de acordo. Que se assine e se proclame, certamente. Mas depois, está por fazer: o longo e duro trabalho, que é um combate, para ganhar terreno sobre
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o adversário, para desarmar as suas manhas e estar atento aos regressos, o longo e duro combate para afrontar as formas imprevistas que podem surgir do desenvolvimento da própria prática científica, e de que o adversário sempre se saberá apoderar. Quando os aliados se põem de acordo para unir as suas forças, devem saber que se empenham numa luta comum, mas que é ao mesmo tempo uma luta sem fim. E uma luta tanto mais rude quanto nós vivemos sempre numa situação onde o idealismo é dominante e o será ainda por muito tempo, na consciência dos intelectuais, mesmo depois da Revolução. Neste raciocínio, temos como pressuposto que a filosofia materialista estava completa e certa das suas razões. Ora não é este o caso. Os cientistas a quem propusemos esta Aliança devem saber qual é a filosofia materialista a que se aliam. Se a filosofia é luta, e se, nesta luta, é a filosofia idealista que domina, isso quer dizer, infelizmente, que a filosofia materialista dialéctica se deve constituir ela própria nesta luta, conquistar pouco a pouco, nesta luta, as suas próprias posições sobre o adversário para adquirir a existência: a existência duma força histórica. Assim como a filosofia materialista não detém a «verdade» sobre as ciências, também ela não pretende apresentar-se como uma verdade acabada. Certamente, podemos enunciar um certo número de Teses de base, que começam a cons-
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tituir um corpo de categorias: e estas Teses são experimentadas na luta contra as Teses idealistas. Mas não constituem um «sistema», como nas filosofias idealistas: o sistema duma Verdade total e fechada. Se a filosofia materialista dialéctica é, com conhecimento de causa, uma força de combate na teoria, deve, na base dum mínimo de princípios firmes que asseguram a sua posição, ser suficientemente móvel para ir até onde a batalha a chame, e formar-se, isto é, constituir-se na própria batalha. Jamais alguém ofereceu aos cientistas uma tal Aliança? Ela é bem singular: visto que respeita as ciências no seu domínio; visto que não chama a filosofia em seu socorro senão para intervir na filosofia que explora as ciências; visto que, em lugar de prometer um milagre, anuncia uma luta conduzida com conhecimento de causa, e uma luta sem fim; visto que, em vez da intervenção duma filosofia já feita, previne que a filosofia se vai fazendo sem a sua intervenção. Ouvistes alguma vez falar duma filosofia que ponha tantas precauções ao apresentar os seus serviços? Pois bem, chamamo-vos para esta Aliança. Não esperamos dela grandes maravilhas, pois sabemos em que mundo vivemos, onde de qualquer forma as coisas essenciais, e mesmo aquelas que dizem respeito à filosofia espontânea dos cientistas, não se decidem na cabeça dos intelectuais, mas na luta de classes e seus 149
efeitos. No entanto, podemos esperar resultados: para os cientistas que sois e para os filósofos que somos. Convidando-vos a traçar uma «linha de demarcação» na vossa F. E. C. entre o Elemento 1 e o Elemento 2, não nos comportamos como espectadores e juízes propensos a conselhos. Convidando-vos a subscrever a Aliança com a filosofia materialista dialéctica, não nos comportamos como «mais velhos», dispondo da força de que necessitais. Porque nós aplicamos a nós próprios a regra que vos recomendamos. Em quê? «Traçando» por nossa conta uma «linha de demarcação» na filosofia, ocupando, na filosofia, as posições que nos tornam capazes de combater contra o idealismo. Se nos seguistes até aqui, parece-me que vos pudestes convencer de qual era a nossa prática. Desde o princípio, não podemos falar da filosofia senão ocupando uma posição definida na filosofia. Ora não se ocupa uma posição na filosofia como o bom selvagem de Rousseau ocupa, no Discurso sobre a origem da desigualdade entre os homens, um canto vazio da floresta. Em filosofia, todo o espaço já está sempre ocupado. Não se ocupa aí portanto uma posição senão contra o adversário que ocupa essa posição. Isto não se faz sem custo. Que isso se passa em «palavras», sabemo-lo nós. E nada é mais natural de ouvir do que as palavras. Mas estas palavras não são arbitrárias e além disso devem «manter-se em
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conjunto», sem o que, desertando em todas as direcções, não «ocupam» qualquer espaço, qualquer posição. Eis o que se passou entre nós. Por momentos, tivestes talvez a impressão de que vos servimos um discurso preparado de antemão. Pedagogicamente (didacticamente) talvez: mas filosoficamente, não. Na verdade, conquistámos o que conseguimos dizer-vos num longo esforço: um trabalho de reflexão que é ao mesmo tempo uma luta. E se demos o exemplo, pois seja: agora é a vossa vez.
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A.Pf'.:NDICE
SOBRE JACQUES MONOD Este apêndice é consagrado à análise ik)s extractos da lição inaugural de Monod no Oolégio de França, publicados pelo jornal Le Monde de 30 de Novembro de 1967. Esta crítica cpnstituía inicialmente .o 4. º curso. Reproduzo-a tal com.o J,oi pronunciada, sem modificação.
O texto de Monod é um documento excepcional, duma qualidade científica e duma honestidade intelectual fora do comum. Falo com o maior respeito e espero dar a prova disso ao longo da minha análise. Ver-se-á que não me reconheço nenhum direito de intervir no seu conteúdo propriamente científico, que aceito sem reserva como uma referência absoluta para toda a reflexão filosófica. Em compensação, ver-se-á que me reconheço não só o direito mas também o dever, inclusive para com Monod, de distinguir este conteúdo propriamente científico da utilização filosófica de que é objecto, não da parte de filósofos alheios a Monod, mas da parte do próprio Monod, no Elemento 2 da sua F. E. C., na sua filosofia e na sua concepção do mundo (C. D. M.). Tratarei a F. E. C. de Monod, a sua filosofia e a sua C. D. M. da forma mais objectiva possível. Falando de Monod, citando as declarações de Monod, não viso o próprio Monod mas as realidades que figuram na sua própria «consciência» como outras tantas realidades que figuram na «consciência» de todo o cientista,
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portanto como outras tantas realidades objectivas? independentes da personalidade subjectiva dos cientistas. Através da análise do texto de Monod, quero pois fazer aparecer realidades gerais objectivas, que assumindo formas variáveis consoante os indivíduos, a sua disciplina e o momento histórico da sua ciência, dominam a maior parte das vezes contra a sua vontade a «consciência» de todos os cientistas. Falo dos cientistas no sentido estrito, mas já devem ter compreendido que o que eu digo deles é infinitamente mais válido para os especialistas das ciências humanas, e também, embora com diferenças específicas, para os simples filósofos. Uma última palavra, sobre a forma particular que revestem estes elementos gerais em Monod. Como se verá, estes elementos culminam numa concepção do mundo idealista que não partilho. Mas a C. D. M. de Monod representa uma tendência idealista cuja forma é absolutamente particular: dá-se no interior da tendência idealista, o que se pode considerar como a forma de idealismo mais rica em conteúdos científicos. Vejo, entre outros sinais muito importantes, o índice disso no facto de que a moral que domina a C.D.M. de Monod é o que se chama uma ética de conhecimento, ou seja, uma ética estreitamente ligada à prática científica. Pela sua riqueza científica, pela sua honestidade, pela sua nobreza, o texto de Monod é aos nossos olhos um texto excepcional ao qual quero render publicamente homenagem.
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Não é mais do que a homenagem dum filósofo. Seria feliz se isto fosse entendido apenas pelo que é: homenagem de filosofia, mas homenagem. Para clareza de exposição, distinguirei quatro elementos no curso de Monod: 1. a ciência biológica moderna; 2. a filosofia espontânea do cientista (F.E.C.); 3. a filosofia; 4. «a concepção do mundo». (C.D.M.)
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1.
A CI:!!:NCIA BIOLOGICA MODERNA
Ela está presente na exposição que Monod dá dos seus resultados mais recentes e dos seus princípios fundamentais ( começo do parágrafo 2, parágrafo 4, 5, e 6). Esta exposição pode ser articulada em três «momentos», da seguinte maneira: a) Enunciado do conteúdo da descoberta que transformou a biologia moderna: o ácido desexuribonucleico (A.O. N. ) , «constituindo cromossomas, guardião da hereditariedade e fonte da evolução, pedra filosofal da biologia». b) Reflexão deste resultado científico revolucionário nos conceitos da teoria biológica: conceitos de emergência e de teleonomia. Novos conceitos-chave da teoria biológica moderna. c) Retrospectivamente: estes novos conceitos fazem aparecer os antigos conceitos da teoria clássica (evolução, finalidade) como conservados mas ultrapassados numa nova forma. Paralelamente, as antigas teorias filosóficas
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ligadas aos conceitos biológicos (vitalismo, mecanicismo) e as filosofias que exploram os resultados ou as dificuldades da biologia (filosofia religiosa, metafísica) aparecem como ultrapassados e recusados (parágrafo 2 e 3): ultrapassados, mas não conservados: rejeitados sem apelo.
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2.
A FILOSOFIA ESPONTANEA DO CIENTISTA (BlõLOGO) (F. E. C.)
Está presente logo na exposição dos resultados da biologia moderna, na sua reflexão na teoria biológica e efeitos retrospectivos. Ai se distingue a presença de dois elementos: Elemento 1, intracientífico, materialista; Elemento 2, extracientífico, idealista. Elemento 1 ( da F. E. O.)
Fundamentalmente materialista, fundamentalmente dialéctico. Regra geral o Elemento 1 é quase sempre, senão sempre, imbricado na exposição dos resultados científicos, portanto ligado ao próprio material científico: não está isolado e o cientista não faz dele o objecto da sua reflexão. Cabe-nos «destrinçar», fazê-lo portanto aparecer na sua distinção, por uma linha de demarcação filosófica. O Elemento 2 aparece então, no momento da exposição e seus considerandos, 11
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como tendência, confrontada e oposta a outras tendências. Este facto é bem saliente no texto de Monod, exemplar sob este respeito. Monod não se declara materialista nem dialéctico. As palavras não figuram no seu texto. Mas tudo o que ele diz da biologia moderna manifesta uma profunda tendência materialista e dialéctica, visível nas afirmações conjugadas com condenações filosóficas determinadas. a)
Materialismo
Pontos sensíveis: - Definição da realidade material do objecto da biologia pela crítica da noção ( cientificamente ultrapassada e não «funcionando» senão em certas filosofias) de «matéria viva». Esta denúncia duma palavra é a denúncia duma exploração filosófica, portanto duma tendência anticientífica: muito simplesmente, denúncia da filosofia vitalista implícita na noção de «matéria viva». A expressão «matéria viva» não tem qualquer sentido. «Há sistemas vivos não há matéria viva». Denúncia da utilização do equivoco da noção de «matéria viva», mesmo por «certos físicos» e da exploração desta noção pela metafísica religiosa (ataque a Teilhard). -A recusa da noção de «matéria-viva» não atira de forma nenhuma Monod para o espiritualismo ou o idealismo: permanece materialista. Os sistemas vivos «emergiam» no mundo
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material ( «emergência local de estruturas complexas» dotadas de propriedades específicas). Esta «emergência» é pensada em termos de tendência francamente materialista: esta «emergência» possui um «suporte físico», a A. D. N. Notar-se-á que as teses materialistas de Monod são apresentadas de forma ao mesmo tempo positiva e polémica: rejeita os elementos filosóficos (exploradores) para «desimpedir o caminho» da exposição dos resultados científicos. Esta operação é, por si própria e seus resultados, de tendência materialista. b)
Dialéctica
Pontos sensíveis: -Crítica da relação ideológica (exploração filosófica) anteriormente reinante entre a emergência e a teleonomia (ex-teleologia, finalismo). Monod rejeita qualquer teoria subordinando a emergência (o surgir da vida) à teleonomia: rejeita assim da forma mais clara a tendência espiritualista-religiosa que considera que, se a vida surgiu no mundo material, é «para» realizar um fim providencial ou natural, «para» produzir o «Espírito». Aqui ainda contra Teilhard e toda a exploração religiosa-espiritualista-idealista da biologia. - Esta crítica «abre o caminho», como antes, às categorias positivas: antes do mais, à categoria de emergência. De facto, a categoria de emergência «funciona» em Monod não ape163
nas como uma categoria puramente científica, mas também como uma categori~ representando uma teoria possível da dialéctica., operando na própria natureza. Categoria muito importante: Monod propõe de facto, neste conceito de emergência, um «núcleo racional» de origem puramente intracientífica, que é, pelas suas virtualidades teóricas e as tendências destas virtualidades, pesada de ressonâncias dialécticas. Praticamente, com que pensar, na condição de o tomar a sério, aquilo que é procurado por uma certa tendência filosófica a propósito do que foi chamado as «leis da dialéctica» e mesmo a dialéctica da natureza. Tradicionalmente, fala-se de «salto qualitativo», de «passagem dialéctica da quantidade à qualidade», etc. Monod oferece na noção de emergência com que renovar parcialmente, com os elementos intracientíficos, o enunciado desta questão. Resumo: materialismo, dialéctica. Tais são as componentes do Elemento 1 em Monod. 'No caso do biólogo moderno que é Monod, o Elemento 1 está em consonância directa com uma tendência filosófica definida: o materialismo dialéctico. Elemento 2 (da F. E. C.)
Extracientífico, idealista, disse eu. Ainda aqui, Monod é exemplar. Pois o Elemento 2 aparece nele quase no estado puro (o que nem
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sempre acontece nos cientistas) como o retomar do próprio Elemento 1 sob uma modalidade e sob uma tendência completamente opostas à modalidade e à tendência sob as quais determinámos o Elemento 1. E, no Elemento 2, temos praticamente a ver com o mesmo conteúdo que no Elemento 1, mas com inversão de sentido, inversão de tendência. Retomemos as duas componentes do Elemento 1: o materialismo e a dialéctica, para ver no que se tornam no Elemento 2.
a)
Materialismo
No Elemento 1, Monod definiu o conteúdo materialista da sua tendência eliminando o mecanicismo e o vitalismo e dizendo que não há «matéria viva», mas sistemas vivos, e designando na A. D. N. o «suporte físico» destes sistemas vivos. Mas, quando Monod sai do domínio da biologia, daquilo que ele chama, com um termo já suspeito, a «biosfera» ( termo teilhardiano), para falar do que ele chama, com um termo ainda mais suspeito, a «noosfera» (termo teilhardiano), já não respeita as regras que comandam o conteúdo materialista do Elemento 1. É então que se vê inverter, no uso dos próprios conceitos do Elemento 1, a tendência materialista que reinava no Elemento 1, em tendência idealista e até espiritualista. O sintoma mais flagrante desta inversão é-nos dado pela inver-
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são de atitude de Monod a respeito de Teilhard: no Elemento 1, Monod é 100% contra Teilhard. No Elemento 2, Monod recorre a dois conceitos de Teilhard: antes de mais, a «noosfera» e a «biosfera». Daí resulta, vamos vê-lo, que a componente dialéctica, expressa pelo conceito de emergência, torna-se ela própria idealista, e recai no que Monod evitou no Elemento 1, a saber, no par espiritualismo-mecanicismo. Claramente: Monod propõe uma teoria do nascimento da humanidade: «Só o último destes acidentes podia conduzir no seio da biosfera à emergência dum novo reino, a nooesfera, o reino das ideias e do conhecimento, nascido no dia em que as novas associações, as combinações criadoras num indivíduo, puderam, transmitidas a outros, não mais perecer com ele.» Tese precisada: /oi a linguagem que criou o homem. O reino do homem é a noosfera. A noosfera é «o reino das ideias e do conhecimento». Nesta extrapolação, Monod crê-se materialista, porque a linguagem não é para ele a origem espiritual, mas simplesmente uma emergência acidental, que tem por suporte biofisiológico os recursos informacionais do sistema nervoso central humano. No entanto, Monod é, na sua teoria da noosfera, de facto (e não segundo as suas declaradas convicções) idealista, mais precisamente mecanicista-espiritualista. Mecanicista, pois ele julga poder dar conta da existência
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e do conteúdo da «noosfera» pelos efeitos desencadeados pela emergência do suporte biofisiológico da linguagem ( o sistema nervoso central humano). Em termos claros: julga dar conta do conteúdo da existência social dos homens, incluindo a história das suas ideias, pelo simples jogo de mecanismos bioneurológicos. É mecanicismo estender sem qualquer justificação científica as leis biológicas à existência social dos homens. Monod insiste na legitimidade desta extensão arbitrária: «A noos-
fera, por ser imaterial, povoada apenas de estruturas abstractas, apresenta estreitas analogias com a biosfera da qual emergiu». E não chega ai por meias palavras: chamando com os seus votos a chegada do grande espírito que saberá escrever, como complemento à obra de Darwin,
uma «história natural da selecção das ideias». Monod não espera mesmo que esse grande espírito nasça: dá-lhe benevolamente as bases da sua futura obra: uma espantosa teoria biológica das ideias como seres dotados de propriedades específicas das espécies vivas, votados às mesmas funções e expostos às mesmas leis. há ideias que possuem um poder de invasão, outras votadas a definhar enquanto espécies parasitas, outras condenadas pela sua rigidez a uma morte inelutável. Recaímos, com este tão grande biólogo de vanguarda, nas banalidades que têm mais de um século de existência, e a que Malthus e o
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darwinismo social deram uma bela chama de vigor ideológico durante todo o século XIX. Teoricamente falando, o mecanicismo de Monod reside na seguinte tendência: colocar mecanicamente os conceitos e as leis do que ele chama a «biosfera» sobre o que chama a «noosfera», colocar o conteúdo do materialismo que é próprio das espécies biológicas sobre outro objecto real: as sociedades humanas. Ê um uso idealista do conteúdo materialista duma ciência definida (aqui a biologia moderna) na sua extensão ao objecto duma outra ciência. Este uso idealista de conteúdo materialista duma ciência definida consiste em impor arbitrariamente a uma outra ciência, possuindo um objecto real diferente da primeira, o conteúdo materialista da primeira ciência. Monod declara que o suporte físico da biosfera é a A. D. N. No estado actual da ciência biológica, esta tese materialista é inatacável. Mas, quando ele julga ser materialista dando como base biofisiológica ao que ele chama a «noosfera», isto é, à existência social e histórica da espécie humana, a emergência do suporte bioneurológico da linguagem não é materialista, mas, como se diz, «materialista mecanicista», o que significa hoje, em teoria da história humana, idealista. Hoje, porque o materialismo mecanicista, que foi no século XVIII o representante do materialismo em história, não é mais presentemente do que um dos representantes da tendência idealista em história.
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Mecanicista, Monod. é, ao mesmo tempo, e necessariamente, espiritualista. A sua teoria da linguagem que criou o homem pode ser escutada com um ouvido interessado por certos filósofos da antropologia, da literatura, até mesmo da psicanálise. Mas é preciso desconfiar dos ouvidos interessados: por vezes o seu interesse visa provocar contra-sensos interesseiros sobre o que lhes é dito, para poderem ouvir o que desejam, e que pode ser justo naquilo que querem ouvir, mas que é falso no que lhes é dito. A teoria da linguagem criadora do homem é, no curso de Monod, uma teoria espiritualista que ignora a especificidade da materialidade do objecto que de facto lhe diz respeito. Dizer que foi a linguagem que criou o homem é dizer que não foi a materialidade das condições sociais existentes, mas aquilo que o próprio Monod chama «a imaterialidade» da noosfera, esse «reino das ideias e do conhecimento», que constitui a base real, portanto o princípio da inteligibilidade científica da história humana. Nenhuma diferença essencial separa estas teses que Monod julga científicas, mas que não são mais que ideológicas, das Teses mais clássicas do espiritualismo convencional. De facto, quando se deu como base material, à «noosfera», o suporte biofisiológico do sistema nervoso central, é necessário preencher o vazio da «noosfera» com a ajuda do Espírito, pois se interditou qualquer outra ajuda, sobretudo qualquer ajuda científica.
169
:m
assim que o materialismo do Elemento 1
é invertido em idealismo no Elemento 2 da
F. E. C. de Monod. Inversão de tendência afectando um mesmo conteúdo (os mesmos conceitos): a tendência idealista sendo constituida em Monod como resultante do par mecanicismo-espiritualismo. Pode-se refazer a genealogia lógica desta inversão: materialismo à partida, depois mecanicismo, espiritualismo, enfim idealismo. No caso de Monod, o ponto preciso de sensibilidade, o ponto onde se opera a inversão, é o mecanicismo. Um uso mecanicista do materialismo biológico fora da biologia, na história, produz o efeito da inversão da tendência materialista em tendência idealista. b)
Dialéctica
A mesma inversão. No Elemento 1, a dialéctica é materialista: está presente no conceito de emergência. Este conceito de emergência funciona adequadamente do ponto de vista científico, no domínio da ciência biológica. Funciona aí a título materialista. Mas quando sai da esfera da biologia, para passar à noosfera, o conceito de emergência perde o seu conteúdo científico de origem e é contaminado pela maneira como Monod pensa a natureza do seu novo objecto: a história.
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Na história, a dialéctica funciona duma forma espantosa. Primeiro, a emergência prolifera aí: um verdadeiro deus ex machina. Cada vez que aí se passa qualquer coisa de novo, uma ideia nova, um acontecimento novo, Monod pronuncia a palavra mágica: «emergência». Regra geral, podemos dizer que, quando um conceito serve para pensar muitas coisas, arrisca-se a não pensar grande coisa. :m a contradição já enunciada por Hegel contra Schelling aplicando em toda a parte a sua teoria dos pólos: formalismo. Em seguida, a emergência funciona na história, não sob a forma própria da história mas sob a forma própria da biologia: testemunha a teoria da selecção natural das ideias, esta velha impostura que Monod julga nova. Enfim, quer queiramos quer não, e a despeito do que Monod dissera excelentemente do primado da emergência sobre a teleonomia contra Teilhard e os finalistas, como o que faz o fundo da história para M onod é a emergência da noosfera, isto é, a emergência do Espírito; como a noosfera é cientificamente falando um conceito vazio; como emergência e noosfera são constantemente associadas, e de forma repetida, resulta daí, um efeito-filosófico objectivo no espírito, não de Monod sem dúvida, mas dos seus ouvintes e dos seus leitores. Esta insistência gratuita produz de facto um efeito de inversão de sentido e de tendência:
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quer queiramos quer não, tudo se passa como se a noosfera fosse o produto mais complexo, mais fino, mais extraordinário de toda a sequência das emergências, portanto um produto «valorizado», senão de direito (Monod não o diz), pelo menos de facto. A multiplicação súbita e miraculosa das emergências na noosfera não é mais do que a manifestação algo empírica deste privilégio de facto, mas privilégio na mesma: a noosfera é a esfera privilegiada do funcionamento da emergência. Então a relação inverte-se e tudo se passa como se a sequência das emergências tivesse como finalidade escondida, por teleonomia, a emergência da noosfera. Monod pode contestar esta interpretação: mas como de facto ele não controla as noções que manipula no domínio da história, como as julga científicas, quando elas são apenas ideológicas, nada de admirar se ele não se aperceba senão da intenção do seu discurso e não do seu efeito objectivo. A dialéctica, materialista no Elemento 1, tornou-se idealista no Elemento 2. Inversão de tendência. Reconheço voluntariamente que o que acabo de dizer não está na verdade estabelecido, visto que falo apenas dum «efeito» de escuta ou de leitura, que é em si próprio imperceptível fora duma corivergência de efeitos diversos; vou analisar outros dois destes efeitos para reforçar o que acabo de dizer. 1. Monod dá uma definição da emergência que contém de facto duas definições muito
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diferentes uma da outra. O seu curso abre por esta definição. Cito: «A emergência, é a propriedade de reproduzir e de multiplicar as estruturas ordenadas altamente complexas, e de permitir a criação evolutiva de estruturas de complexidade crescente.» Seria apaixonante analisar mais de perto esta fórmula muito reflectida mas coxa. Porque ela contém duas definições diferentes, duas propriedades diferentes, pensadas sob um só e único conceito. A emergência é uma dupla propriedade: de reprodução e de criação. Tudo está no e. Pois a propriedade de reprodução é uma coisa e a propriedade de criação é outra. ~ claro que a segunda não tem sentido científico em biologia senão na base da primeira: se as formas de vida não fossem dotadas da propriedade de se re'J)'l"oduzir e multiplicar, nada de novo podia surgir entre elas que fosse ao mesmo tempo vivo e mais complexo. Há pois um laço entre reprodução e criação. Mas há também diferença, uma ruptura: a do aparecimento inesperado do novo, mais complexo que o precedente. A pequena palavra e7 que liga em Monod a reprodução e a criação, arrisca-se a confundir as duas realidades; de qualquer forma justapõe-as. Ora, uma justaposição talvez não seja suficiente do ponto de vista científico. Monod não pensa portanto inteiramente, de forma satisfatória; a partir da definição que manifestamente quer designar um dos componentes 173
essenciais do Elemento ,1 da F. E. C., o que diz. Monod não distingue verdadeiramente na sua definição as duas propriedades. No entanto, no domínio da ciência biológica, a sua prática científica distingue perfeitamente o que a sua definição se contenta em justapor: há fenómenos de reprodução-multiplicação e fenómenos de aparecimento. Não são os mesmos fenómenos. Na sua exposição científica, quando Monod faz intervir o termo emergência é regra geral para designar o surgir de novas formas: a reprodução fica sempre na sombra. De facto, quando se trata de surgir, ela não desempenha qualquer papel cientifico para pensar o surgir: designa apenas o que respeita à vida, às formas que se reproduzem e se multiplicam. Esta questão é regulada pela A. D. N. Portanto, na sua prática, Monod faz pura e simplesmente uma distinção que ele não pensa, na sua definição, a menos que considere que a pense sob a forma da conjunção e, o que é insuficiente. Hegel escreveu coisas bem interessantes sobre o uso que os sábios fazem, na sua linguagem e na sua prática, da pequena palavra e. Os cientistas deveriam ler estas páginas que lhes dizem respeito directamente (Fenomeno"logia do espírito). Prosseguindo nesta análise, que esta definição da emergência produz no seu silêncio central (esta palavra: e) um tal efeito real que a «criação» ( esta palavra não é feliz) de novas formas, duma complexidade «crescente», permite à noção de emer-
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gência oscilar insensivelmente do lado dum impensado que funciona como uma finalidade impensada, portanto mudar de tendência: do materialismo para o idealismo. 2. Podiam-se desenvolver considerações análogas a propósito do conceito de acaso em Monod. De facto, o conceito de emergência está ligado ao conceito de acaso. Em biologia, o acaso é de certa maneira o índice preciso das condições de possibilidade de emergência. Seja. Representa desde Epicuro um papel materialista positivo, contra as explorações finalistas da biologia. Mas pode-se observar que Monod conserva o mesmo conceito de acaso quando passa da biologia à história, à noosf era. Então, praticamente a junção emergência/ /acaso serve a Monod para pensar, como emergências fundadas sobre o acaso? fenómenos perfeitamente explicáveis na base duma ciência da história de que Monod não desconfia ou não menciona a existência. Na maior parte dos exemplos históricos de Monod (Shakespeare, o comunismo, Staline, etc.) o acaso funciona em Monod no sentido inverso ao do seu funcionamento na biologia: não como índice das condições de existência da emergência, mas como teoria biológica da própria história. O sintoma flagrante desta inversão é-nos fornecido pelo darwinismo histórico de Monod. Enquanto não faz intervir a teoria da selecção natural em biologia, ressuscita-a súbita e massivamente em história, falando deste grande espírito que
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fará uma história da «selecção das ideias». Apesar de tudo, é muito singular ver que uma noção como a selecção natural, que a biologia estritamente limitou ou até profundamente transformou, encontra, subitamente, o seu pleno emprego na história. E':: claro que, para Monod, o subdesenvolvimento da história justifica que ai se coloque um conceito num emprego incontrolado e desmedido, sem medida comum de resto com o emprego que a própria biologia moderna faz deste conceito. O resultado que nos interessa é em todo o caso este: pelo uso não controlado que dele é feito, o acaso mudou de sentido e de tendência. Passou dum funcionamento materialista a um funcionamento idealista. E como o acaso tem um pacto com a emergência, a emergência também mudou. Resumo pois com uma simples palavra, ou quase, o que acabamos de dizer, analisando o conteúdo dos Elementos 1 e 2 da F. E. C. de Monod. A F. E. C. de Monod é uma F. E. 0.-limite, exemplar de simplicidade e de clareza. :m notável o que ela faz: que a distinção que introduzimos nos nossos cursos anteriores entre o Elemento 1 e o Elemento 2 incida não no conteúdo conceptual destes dois elementos, mas sobre a tendência diferente de que um mesmo conteúdo é investido. O conteúdo dos dois elementos da F. E. C. de Monod é na essência comum. :m constituído por um certo número de conceitos-chave. No caso de Monod, os con-
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ceitos de matéria, de suporte físico, de sistema vivo, de emergência, de acaso, etc. Tais são os conceitos comuns aos dois elementos. Acrescenta-se, do lado do Elemento 2, o conceito de noosfera; mas como o conceito de biosfera figura no Elemento 1, pode-se pensar que se trata do complemento que o conceito de biosfera traz em si. Portanto, o conteúdo dos Elementos 1 e 2 é, no essencial, o mesmo
conteúdo. Há, no entanto, já o dissemos, uma contradição entre os dois elementos: o Elemento 1 é materialista e o Elemento 2 é idealista. Esta contradição não pode incidir sobre o conteúdo dos dois elementos, visto que é comum: incide pois sobre o seu sentido, sobre a significação do uso que dele é feito, isto é, sobre a tendência de que o seu emprego explícito ou latente os investe. Podemos concluir daí que a contradição entre o Elemento 1 e o Elemento 2, da F. E. O. de Monod, é uma contradição entre a tendência materialista e a tendência idealista a propósito da representação que Monod tem do conteúdo dos seus conhecimentos científicos ( estado actual da biologia), da validade do emprego e da extensão dos seus conceitos-csave e da natureza do conhecimento científico em geral. Podemos notar também que a tendência materialista (Elemento 1) não pode afirmar-se 12
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positivamente senão na luta contra as explorações filosóficas idealistas, espiritualistas e religiosas dos problemas da biologia (luta contra Teilhard), portanto que o Elemento 1 não é a pura constatação da realidade da prática científica, mas um resultado que deve ser conquistado numa luta polémica. Mas podemos ao mesmo tempo notar que a tendência idealista, expulsa do Elemento 1 sob a forma dos seus representantes (Teilhard), reaparece de facto no Elemento 2, idealista. A prova: encontra-se no Elemento 2 um conceito-chave de Teilhard que entra pela janela, o conceito de noosfera. A tendência idealista contra a qual Monod luta com todas as suas forças fazendo triunfar a tendência materialista no Elemento 1 entra subrepticiamente pela janela para triunfar no Elemento 2. O trágico do caso é que é o próprio Monod quem abre a janela. E como não se pode teoricamente comparar um cientista a um homem que abre voluntariamente uma janela para que o vento do idealismo por aí entre em lufada, dizemos que é o próprio vento do idealismo que abre a janela. Tem todo o poder que é preciso. Tudo o que se pode dizer de Monod é que ele não impede a janela de se abrir sob a pressão do vento. Não resiste à tendência idealista; melhor: cede-lhe, julgando resistir-lhe. Prova que o Elemento 2 é sempre mais forte que o Elemento 1. Prova
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que a F. E. C. não pode pelas suas próprias forças impedir a janela de se abrir. Prova que a F. E. C. não pode fazer por si as suas próprias críticas. Prova que a F. E. C. tem necessidae do apoio duma força exterior que seja aliada do Elemento 1 para triunfar do Elemento 2, do apoio duma tendência exterior que reforce a tendência materialista do Elemento 1 para derrubar o sentido da tendência idealista do Elemento 2. Podemos notar enfim qualquer coisa de importante, que retoma o que eu tinha dito a propósito da receptividade diferencial dos cientistas, consoante as disciplinas, a certos termos como o materialismo. No caso de Monod, isto é, da biologia moderna, as noções de materialismo e de dialéotioa não só não põem qualquer problema de sensibilidade auditiva (pelo menos no caso do ramo em que trabalha Monod), como «colam» muito bem com o conteúdo investido na tendência do Elemento 1. No caso da biologia moderna, pelo menos no caso do ramo ao qual Monod consagrou os seus trabalhos, a expressão materialismo dialéotioo pode possuir um sentido aceitável pelo menos a título presuntivo, e até a «mais ampla informação». Mas como não falo apenas perante biólogos, mas também perante outros cientistas e literatos, imagino o que terão na cabeça. Para me dirigir àqueles que estão verdadeira e objecti-
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vamente num mundo bem diferente do mundo de Monod, presumo o que os matemáticos podem ter na cabeça. O que acabo de dizer dum biólogo passa rigorosamente pela biologia. E pelas matemáticas? Conhecem o texto famoso de Sartre em As Palavras. Ele explica que não há «superego». O superego, quando existe, é o dos outros. A F. E. C., quando existe, é a dos outros. Assinalo apenas aos matemáticos que, se alguma vez eles pensassem in petto que eram preservados de toda a F. E. C. pela graça das matemáticas (a graça, isto é, não só a sua beleza, mas também a sua pureza e o seu rigor), assinalo apenas que existe um número considerável de textos de grandes matemáticos que se podem analisar como acabo de analisar o texto de Monod, e que esta análise tem todas as probabilidades de dar resultados semelhantes. E para lhes dar um exemplo preciso, assinalo-lhes a existência dum pequeno texto de Lichnerowitz, pronunciado perante a Sociedade francesa de filosofia de 27 de Fevereiro de 1965. Este texto tem um título que eu não ousaria inventar: A Actividade matemática e
o seu papel na nossa concewão do mundo. Assinalo que, no debate que se seguiu, Cartan desenvolveu observações muito interessantes. Nessa discussão, os papéis estão bem distribuídos. Os argumentos de Lichnerowitz são abertamente idealistas e os de Cartan mate-
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rialistas. Que eles se tranquilizem: os próprios matemáticos têm uma F. E. C. Também eles são, na sua F. E. C., os representantes contraditórios de tendências que os ultrapassam e que aí se afrontam: materialista (Elemento 1), idealista (Elemento 2). E para que todos tenham a sua parte, direi: os filósofos também, mas no caso dos filósofos a sua F. E. C. não é a filosofia, mas a sua concepção do mundo.
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3.
A FILOSOFIA
Depois de tudo o que acabo de dizer, serei breve sobre os dois últimos personagens do nosso teatrinho: a filosofia e a concepção do mundo. A filosofia está presente no curso de Monod sob duas formas: sob a forma de termos filosóficos tomados de empréstimo das filosofias existentes, e que funcionam no interior da sua filosofia espontânea de cientista. Na medida em que estes termos são tomados de empréstimo das filosofias existentes, eles reenviam-nos para estas filosofias. A filosofia está nele apresentada sob a forma de desenvolvimentos filosóficos explícitos. Monod sabe o que são as filosofias, em todo o caso sabe que elas existem, e sabe que as filosofias estão particularmente interessadas com o que se passa nas ciências. Cita sob este aspecto Aristóteles, a filosofia de Kant e de Hegel, o materialismo dialéctico, Engels ( a quem reserva uma ponta de florete eléctrica), Nie-
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tzsche e Teilhard de Chardin. Monod é particularmente perspicaz no seu momento materialista sobre, isto é, contra a filosofia de Teilhard. Diz que ela não é nova, o que nos dá bastante prazer, mas não dará prazer a toda a gente. Monod não se contenta em citar os filósofos, faz filosofia. Propõe mesmo uma definição da filosofia, dizendo que a sua função é «antes de mais nada estabelecer um sistema de valores», para o opor às ciências, que ignoram os valores. Entrega-se sobre este tema a todo um desenvolvimento filosófico. Os termos filosóficos mais notáveis presentes no curso de Monod são os seguintes: noosfera/biosfera (Teilhard, condenado como filósofo explorador da biologia ressurge como filósofo positivo da noosfera, isto é, da história humana); alienação, praxis, nada (do lado de Nietzsche), etc. Além disto, toda uma série de noções de aparência inocente são empregadas e funcionam filosoficamente em Monod: por exemplo, a noção de homem na frase «a linguagem que teria criado o homem mais do que o homem a linguagem». Inútil ir mais longe. Estamos numa atmosfera filosófica de matiz idealista (certas palavras nunca são pronunciadas: materialismo, dialéctica, etc.), mais precisamente existencialista-espiritualista-nietzscheana-ateia. O ateísmo declarado desponta na palavra final, em que Sartre como Nietzsche teriam tanta dificuldade em desmentir como em reconhecer o seu filho: «Que ideal propor
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aos homens de hoje, que esteja acima ou para ui de .si '[fl°Óprios, senão a reconquista, pelo conhecimento, do nada que eles pró'[YT°ios descobriram»?
Mais interessante é o facto de Monod nos dar um verdadeiro capítulo de filosofia no sentido forte: isto é, de filosofia precisamente sobre a relação entre a filosofia e as ciências. Distinção entre as ciências e a filosofia. Ãs ciêr~.cias o conhecimento, mas não os valores. À filosofia os valores. Distinção entre o método científico e a ética científica. «Ainda hoje se confunde muitas vezes a ética do conhecimento com o '[Yl"Ó'[Yl"io método científico. Mas o método é uma epistemologia normativa, não é uma ética. O método diz-nos que procuremos. Mas quem nos manda '[YT°Ocurar, e para isso adaptar o método, com a ascese que ele implica?» Ciências, método cien-
tífico, epistemologia normativa, ética do conhecimento, valores, filosofia. Monod faz bem o seu trabalho de filósofo: traça linhas de demarcação e propõe uma linha, que é para ele e para todo o filósofo, uma «linha justa». Não se trata de fazer chicanas a Monod sobre certas expressões filosóficas, pois ele não é filósofo de profissão, e seria injusto. Pelo contrário, devemos-lhe muito reconhecimento por nos ter exposto a sua filosofia e, através dela, a sua relação com as tendências filosóficas existentes.
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Tendência filosófica de Monod (resultante da comparação entre o género de termos que ela adopta e do desenvolvimento filosófico que nos dá): tendência idealista-espiritualista acrescida duma declaração de ateísmo categórico. Resultado: primado duma moral ateia. O espiritualismo é cortado das suas amarras religiosas pela declaração de ateísmo, fica como último termo uma moral ateia: moral da ciência, muito precisamente, ética da prática científica. Moral ascética, austera, aristocrática na austeridade, sem outro objecto de referência que a prática do conhecimento (recusa de dar a esta moral por fundamento a felicidade da humanidade, o seu poder material, ou o «conhece-te a ti próprio»). O que nos interessa mais precisamente é a relação orgânica existente entre a filosofia de Monod e a sua F. E. C. Mesma tendência idealista ateia. Mesmo acento sobre a prática científica. Na filosofia como na F. E. C., presença duma referência objectivista, materialista, cujo núcleo derradeiro é o conhecimento científico e a sua prática, mas simultaneamente, tanto na filosofia como na F. E. C., mesmo investimento da tendência materialista sob a tendência idealista que a domina. Vimos como se efectuava este investimento na F. E. C. de Monod. Observamos o mesmo investimento idealista na filosofia de Monod: mas o que é extremamente notável, e peço-vos que anotem este ponto, pois é da
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mais alta importância, este investimento não se opera, na filosofia de Monod, sob a forma duma inversão de sentido cujos momentos e termos nós podemos observar e descrever, em pormenor, empiricamente. Há uma ~erta tensão, portanto uma certa presença da luta de tendência entre o materialismo e o idealismo na filosofia de Monod (pode-se considerar que o facto de falar da ciência representa qualquer coisa como um eco da tendência materialista, sobretudo pela sua recusa da religião; pode-se considerar que a moral representa abertamente, e de forma dominante, a tendência idealista), mas pode-se considerar que esta tensão, portanto este conflito são de antemão regulados, em benefício da tendência idealista que triunfa sem combate na exaltação da ética do conhecimento. O que é que, no mais profundo destes laços, que são a simples observação de relações objectivas, une a filosofia de Monod à sua F. E. C.? Aquilo que elas têm essencialmente em comum, mais precisamente aquilo que tem de comum a filosofia e o Elemento 2 da F. E. C.: uma filosofia idealista da ciência, fundando a extensão das categorias biológicas à «noosfera», autorizando uma concepção da «noosfera», que funda uma teoria idealista da história, permitindo à exaltação da ética do conhecimento manter o seu lugar nesta filosofia da ciência. Este conteúdo comum pode escrever-se sob a forma duma sequência de igualdades transformadas:
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(emergência da noosfera) história= noosfera = reino do conhecimento (científico) = = ética do conhecimento científico. Esta sequência, que se pode pormenorizar, assenta em última análise sobre as duas igualdades seguintes: história = noosfera =
=
ciência(s).
Portanto, aquilo que permite em última análise à filosofia de Monod comunicar com a sua F.E.C. é o operador filosófico noosfera, cujo sentido (efeito da sua intervenção) podemos traduzir muito simplesmente dizendo que representa uma concepção da história perfeitamente clássica desde o século XVIII, desde o Aufküirung, para quem as ciências são a base e o motor da história, para quem a história se reduz definitivamente à história dos conhecimentos, das ciências e das ideias científicas. Mas a filosofia da ciência de Monod não passa de uma filosofia da ciência: é, como, toda a filosofia da ciência, uma filosofia da história, mais ou menos confessada. Se Monod é neste ponto exemplar, é porque ele confessa a sua filosofia da história. Mas, por ela, entramos no último objecto da nossa análise: a concepção do mundo.
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4. A CONCEPÇÃO DO MONOD (C. D. M.)
MUNDO
DE
Lembrem-se do que dissemos sobre a diferença que distingue uma filosofia de uma concepção do mundo. Numa concepção do mundo, pode tratar-se da ciência, mas uma concepção do mundo não é nunca centrada sobre a ciência como o é a filosofia. Não mantém com as ciências as relações que a filosofia mantém com a ciência. Uma concepção do mundo é centrada sobre algo diferente das ciências: sobre o que nós chamamos os valores das ideologias práticas. Uma concepção do mundo exprime as tendências que atravessam as ideologias práticas (religiosa, jurídica, política, etc.). Uma C. D. M. tem sempre directa ou indirectamente pontos de contacto com questões que pertencem a estes domínios: problemas da religião, da moral, da politica e, duma maneira mais lata, problema do sentido da história, da salvação da história humana. Toda a C. D. M. exprime finalmente uma certa tendência de carácter ou matiz político.
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O que é notável em Monod é que tudo nele é claro.
No centro da sua C. D. M., o problema da alienação do mundo moderno e da salvação do mundo moderno. Alienação do mundo moderno: criado, tecido pela ciência, é estranho ao seu próprio país. Porquê? «A alienação do homem moderno, em rel,a.. ção à cultura científica, que no entanto tece o seu universo, revela-se sob formas distintas do ingénuo horror expresso por V erlaine. Vejo neste dualismo um dos males mais profundos de que :wfrem as sociedades modernas, causas dum desequilíbrio tão grave que ameaçam desde já a realização do grande sonho do século XIX: a emergência futura duma sociedade não mais construída sobre o homem, mas para ele.» A alienação do mundo moderno ameaça pois o grande sonho socialista. Monod é pelo socialismo, mas inquieto com o seu futuro. A alienação: dualismo. Entre: a ciência e a cultura científica que tecem o mundo moderno de um lado, e os valores tradicionais do outro ( «ideias ricas em conteúdo ético»). «Estamos pois diante da seguinte contradição: as sociedades modernas vivem, afirmam, ensinam ainda- sem de resto acreditar nissosistemas de valores cujas bases estão arruinadas; quando afinal, tecidas pela ciência, estas sociedades devem a sua emergência à adopção, a
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maior parte das vezes implícita, e por um número de homens muito pequeno, desta ética de conhecimento que elas ignoram. Eis as raízes da própria alienação moderna». Dupla contradição: - ciências modernas/e valores religiosos morais caducas, com bases arruinadas; - ciências modernas/e a ignorância em que se está, em que os próprios cientistas estão, em que os homens estão, de que estas ciências e a sua prática implicam uma disciplina moral, uma verdadeira ética do conhecimento. Ora, há na contradição do mundo moderno entre as ciências actuais e os valores antigos, anacrónicos, ao mesmo tempo a mais grave alienação e o meio de salvação, contido na ética do conhecimento científico. O que vem a ser esta teoria da alienação do mundo moderno? Aparentemente uma descrição dum certo número de factos empíricos. Na realidade, duas coisas.: 1. uma teoria da história; 2. uma política. A teoria da história pode ser resumida assim: Monod sabe que a história da humanidade não é constituída exclusivamente por aquilo que se passa na ordem do conhecimento científico. Existe assim a ordem da «praxis», do poder material, das paixões religiosas, morais, políticas, etc. Mas Monod pensa que o especifico do homem, que fez dele um ser social e histó191
rico, que constituiu a «noosfera», é a linguagem e o conhecimento científico, que dela brotou num certo momento. Em todo o caso, tornou-se claro para Monod que, no mundo moderno, é a ciência que é a base da história, que é a actividade do cientista que tece o mundo moderno e que é a ética científica que pode salvar o mundo. Esta teoria da história desagua numa política: política de elaboração e de difusão da ética do conhecimento. A base do mundo moderno é o conhecimento científico. O motor da salvação da história moderna pode ser a ética do conhecimento. Monod afirma pois uma C. D. M. que propõe uma política de educação, de difusão e de propaganda moral. Uma certa moral, mas uma moral, da qual ele espera efeitos políticos, incluindo, se bem entendo, a esperança da chegada do socialismo. Dois pontos a notar: 1. Na C. D. M. de Monod, existe uma unidade de consequência interna entre a filosofia da história (idealista, fazendo do conhecimento a essência e o fermento da história) e a política (moral). Toda a C. D. M. está directa ou indirectamente em relação com uma certa política. Toda a C. D. M. propõe e traça, explícita ou implicitamente, directa ou indirectamente, um certa política. :m o caso de todas as C. D. M. Uma C. D. M. religiosa põe o acento sobre a religião, os valores religiosos: é propor uma
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escolha entre os diferentes valores, é propor uma política que se pode traduzir nos factos. Uma C. D. M. moral idem. Uma C. D. M. jurí-
dica também (pôr o acento no direito, considerado de facto como o essencial na dialéctica da história, é querer produzir certos efeitos históricos: os juristas são useiros neste género de C. D. M., mas não são eles os únicos). Uma C. D. M. política põe o acento nos valores políticos: considera que é a política que constitui o essencial da história, que é a política o motor da história, etc., dela espera efeitos. 2. Uma C. D. M. não existe sozinha: não existe senão num campo definido, em que procura situar-se em relação às concepções do mundo existentes, portanto distinguir-se das C. D. M. existentes, definir-se em relação a elas como diferentes delas, incluindo por oposição a certas dentre elas. Uma C. D. M. não se põe senão opondo-se, no limite lutando contra as C. D. M. diferentes dela. Na sua C. D. M., Monod procura manifestamente distinguir-se essencialmente de duas C. D. M.: a C. D. M. (tipo Teilhard) e a C. D. M. marxista. Contra a C. D. M. religiosa, afirma que não são os valores religiosos que podem salvar o mundo moderno, nem os valores morais tradicionais fundados sobre a religião (portanto luta contra as C. D. M. religiosas), mas uma nova moral, não religiosa, ateia, ascética, fundada sobre a prática científica, a moral dos cientistas. 18
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Contra a C. D. M. marxista, afirma que é o desenvolvimento do conhecimento e seus valores próprios que é o motor da história moderna, portanto - visto que para ele é aí que reside a possibilidade de pôr fim à alienação do mundo moderno - uma certa moral subjectiva aristocrática-intelectual, e não a «moral marxista» fundada na luta de classe proletária. Notar-se-á este ponto muito importante: Monod não se distingue da mesma maneira destas duas C. D. M. Distingue-se da C. D. M. religiosa lutando abertamente contra ela, para a suprimir, pois julga-a nefasta e em desuso. Distingue-se também da C. D. M. marxista, mas sem a querer suprimir. Declara guerra à primeira e não declara guerra à segunda. Não renunciou ao «sonho» que ela encarna ainda para ele, ao «socialismo». A concepção do mundo de Monod é pois muito precisa. l!l uma C. D. M. que propõe uma teoria da história ou filosofia da história capaz de fornecer uma interpretação da conjuntura histórica actual e o meio de sair dela, que acaba naturalmente numa política. Como C. D. M., esta concepção toma partido, situa-se necessariamente entre as O. D. M. existentes: toma partido entre uma C. D. M. tradicionalista dominada por uma política moral religiosa e uma C. D. M. marxista dominada por aquilo que podemos provisoriamente chamar uma «moral»
política,. 194
Mas aqui vamos ver as coisas inverter-se, não do ponto de vista das declarações de Monod, mas do ponto de vista do conteúdo real das suas teses teóricas. Pois esta posição intermédia não é igual. Monod não se situa a igual distância entre as duas C. D. M. O que separa Monod da C. D. M. religiosa que ele combate resolutamente não põe em causa a validade da moral como motor da história: simplesmente a moral que ele propõe não é uma moral religiosa, é uma moral ateia centrada sobre uma ética espontânea do conhecimento científico, mas esta moral permanece uma moral. Pelo contrário, o que separa Monod da C. D. M. marxista é muito mais importante: é uma grave divergência de concepção que incide sobre o papel da moral na história. Para Monod, a moral é tida, porque proposta, como o meio de salvação da história moderna, portanto como o motor, senão da história, pelo menos da história moderna. Para o marxismo, a moral, mesmo política, não é o motor da história, nem da história passada, nem da história moderna. Na expressão que empreguei: «moral política», é a palavra política que conta para os marxistas; e política quer dizer «luta de classes de massa», conforme aos dois grandes princípios do marxismo: 1) são as massas que fazem a história ( e não os indivíduos, não os intelectuais, mesmo cientistas) ; 2) é a luta elo
IOG
classes que é o motor da história, e não a moral, fosse ela a moral ateia, ascética, pura e desinteressada dos mais desinteressados intelectuais, os cientistas. No coração das C. D. M., o que divide as C.D.M., é efectivamente qualquer coisa que toca em definitivo a sua tendência política através do seu conteúdo ideológico. Idealismo = crença que são as ideias que conduzem o mundo/Materialismo = crença que é a luta de classes de massa que é o motor da história. Sobre este ponto fundamental, as teses teóricas de Monod entram em contradição com a maneira como ele situava a sua C. D. M. em relação às C. D. M. religiosa e marxista. A contradição, a oposição essencial, já não diz respeito à C. D. M. religiosa, mas à C. D. M. marxista, não já ao idealismo, mas ao materialismo. Uma última palavra: como se estabelece a relação entre a C. D. M. de Monod e a sua filosofia? Por intermédio da moral do conhecimento científico. A filosofia de Monod é uma filosofia da ciência, a C. D. M. de Monod é uma C. D. M. da moral científica. A filosofia e a C. D. M. de Monod têm em comum a ciência. A ciência está no centro da F. E. C. de Monod. A ciência é enfim a actividade de Monod. Daí uma última conclusão: se se dispõe graficamente as quatro personagens, as quatro componentes que se podem encontrar no texto de Monod (ciência, F. E. C., filosofia, C. D. M.),
196
chega-se a um cruzamento muito particular figurado neste gráfico:
-
N1
F.E.C.
N2
♦
cp
c.o.M.
O que significa: existência de dois núcleos irradiantes. 1. Núcleo 1 = a realidade da ciência que existe na realidade dos resultados científicos que Monod expõe, os quais remetem para a realidade da prática científica e para a realidade da história da produção dos conhecimentos biológicos. Tendência materialista. Este núcleo 1 irradia todo o conjunto da sua tendência materialista dialéctica. Está presente na tendência do Elemento 1 da F. E. C. de Monod. Presente duma forma muito modificada e extremamente atenuada na filosofia de Monod. Alguns traços negativos (moral ateia) na C. D. M. de Monod. 2. Núcleo 2 = a realidade, o que está no centro da C. D. M. de Monod: uma tomada de posição política, contra outras tomadas de posição políticas. Uma tendência idealista que
197
se afirma de forma subordinada contra a tendência religiosa-espiritualista, mas que se afirma de forma dominante contra a tendência materialista da luta de classes. Este núcleo 2 irradia todo o conjunto dos elementos presentes no texto de Monod: a sua tendência irradiante é idealista. Aí também, mas em sentido inverso, de forma cada vez mais atenuada, mas a filiação e a dependência são nitidamente reconhecíveis: na filosofia (filosofia idealista da ciência); no Elemento 2 da F. E. C.: interpretação idealista do conteúdo materialista do Elemento 1. Este resultado é simples, mas muito importante: dois núcleos irradiantes, centros de tendências opostas, uma tendência materialista irradiante a partir do núcleo material-objectivo da prática científica e da própria ciência (núcleo 1), uma tendência idealista irradiante a partir das tomadas de posição ideológicas de Monod em face dos «valores» implicadas em problemas sociais-políticos-ideológicos que dividem o mundo moderno (núcleo 2). A F. E. C. e a filosofia e a C. D. M. de Monod são a títulos diferentes, e em função da proximidade de cada um destes núcleos, compromissos entre estas duas tendências. O ponto em que se afrontam estas duas tendências da maneira mais aberta é a F. E. O.; na contradição entre o Elemento 1 e o Elemento 2. Nesta contradição, o Elemento dominante é o Elemento 2. Aí também observamos,
198
mais perto da confrontação das duas tendências, mais perto do núcleo-realista-materialista, i1-1to é, da prática científica, a lei que eu enunciei mais atrás: dominação do Elemento 1 pelo l•~lemento 2. Exploração do Elemento 1 pelo Imemento 2.
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DUAS CITAÇÕES DE MONOD
1
Tàl como certas diferenciações extremas, primeiro fontes de sucesso, conduziram grupos inteiros à sua perda num contexto ecowgico modificado (tais os grandes répteis da era secundária), assim também vemos hoje que a extrema e soberba rigidez dogmática de certas religiões (tais o islamismo, o catolicismo), numa noosfera que não é já a nossa, torna-se hoje causa de fraq_ueza extrema que conduzirá, senão à sua desaparição, pelo menos a dilacerantes revisões. Também desejaríamos bem conhecer o futuro e a sorte da mais poderosa ideia que jamais emergiu na noosfera: a ideia de conhecimento objectivo, definida como não tendo outra fonte senão a confrontação sistemática da 'lógica e da experiência. 201
2
O único fim, o valor supremo, o «sumo bem» na ética do conhecimento, não é, conf essêmo-lo, a felicidade da humanidade, menos ainda o seu poder temporal ou o seu conforto, nem sequer o «conhece-te a ti próprio» socrático, é o próprio conhecimento objectivo. Penso que é necessário dizê-lo, que tem de se sistematizar esta ética, extrair dela as consequências morais, sociais e políticas, que é preciso espalhar e ensinar, pois, criadora do mundo moderno, ela é a única compatível com ele. Ê preciso não esconder que se trata duma ética severa e constrangedora que, se respeita no homem o suporte do conhecimento, define um valor superior ao próprio homem. Êtica conquistadora e, em certos aspectos, nietzscheana, porque ela é uma vontade de poder: mas de poder unicamente na noosfera. Êtica que ensinará por conseguinte o desprezo pela violência e pela dominação temporal. Ética social, pois o conhecimento objectivo não pode ser estabelecido como tal senão no seio duma comunidade que lhe reconhece as normas.
202
fNDICE 1.• Curso I.
11
NOÇõES DE BASE . 1.
2.
O negativo O positivo A. 1. nível B. 2. • nível e. s. • Divel 0
II.
13
17 21 22 24 28
UM EXEMPLO
33
1.
36 36
Relações entre as ciências exactas a) Relações de aplicação b) Relações de constituição . . 2. Relações entre disciplinas científicas e disciplinas literárias . . . . 3. Relações entre disciplinas literárias
t.• Curso Filosofia e justeza A respeito das ciências: a prática científica
39
42 49 65 65 83
..........
99
Existe uma exllloração das ciências pela filosofia . . . . . . . .
103
Existe uma filosofia espontânea dos cientistas (F. E. C.) . . .
125
.,_.