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Portuguese Pages 263 [260]
I .
Sumério
Prefécio Robbie Davis-Floyd, PhD ....................................... 11
Prefécio Melania Amorim, PhD ........................................... 19
990.49»waer
Apresentagao ................................................................... 25 Caminhos Divergentes ......
................................... 35
Duas Vidas ...................................................................... 45
Das Dores ....................................................................... 61 Das Escolhas .................................................................. 73 Almas Apressadas ............................................................ 81
Da Intimidade ................................................................... 89
O Banquete da Nostalgia ................................................ 101 Genitalias Anacromcas .................................................... 113 Dos Merecimentos ......................................................... 121
10 .Parto Humanizado ......................................................... 125 11 . Jack ............................................................................. 139 12 . Depilaoéo Definitiva ....................................................... 151 13 . Das Rotinas .................................................................. 155 14 . A Falésia do Part0 Humanizado ....................................... 169 15 . Carta a uma Jovem Obstetra .......................................... 177 16 . Maverick ...................................................................... 201 17 . Paternidade .................................................................. 215 18 . Parir Sozinha ................................................................. 223 19 . Capacete para a Vida ..................................................... 233 20 . A Cama de Procusto ...................................................... 241 21 Caminhamos para a Luz .................................................. 247 22 . A Tormenta ................................................................... 255
Prefécio Robbie Davis-Floyd, PhD
Ricardo Jones encarna, vive e pratica um tipo de magia: é um dos raros obstetras em todo o mundo que realmente entende as
necessidades emocionais das mulheres durante o parto e se esforga em apoia-Ias no desafio de parir. Ele percebe, de uma maneira integradora, a fisiologia normal do nascimento e 0 impacto que as emogoes impoem sobre essa pratica. Assim, procura criar, em suas préprias palavras, uma “psicosfera” adequada para o part0, na qual * a mae possa se sentir completamente segura, apoiada, compreendida e acolhida. Quero Ihes contar algumas historias muito especiais sobre Ric. Ele fez o que eu chamo de “mudanga de paradigma" ha’ muitos anos, quando ainda se encontrava na residéncia médica em sua cidade natal. Sua formaoao seguiu o mesmo roteiro dos colegas tecnocraticamente treinados. da mesma maneira como qualquer outro obstetra brasileiro. Tenham em mente que o Brasil tern uma das maiores taxas de cesariana no mundo — enquanto escrevo este prefécio, nos umbrais do ano de 2012, um pouco mais de 52% dos nascimentos no Brasil estao ocorrendo através de cesarianas, o que, de certa forma, pode ser considerado uma tragédia na assisténcia médica. Um dia, durante seu primeiro ano de residéncia médica, ele foi chamado pela enfermeira para atender a uma emergéncia na sala de exames do centro obstétrico. Imediatamente para a sala onde um part0 estaria acontecendo, mas, com surpresa, notou que ela estava vazia. Ja’ mostrando uma indisfargavel contrariedade, perguntou a enfermeira onde estava a paciente. Esta entao Ihe disse: Por favor, doutor, basta abrir a porta até 0 fim e o senhor a veré. Foi o que fez e la encontrou uma mulher que, sem nenhum cuidado pré-natal prévio, apareceu no hospital ja no periodo expulsivo do trabalho de part0.
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Era uma mulher pobre, de vestes simples e olhar perdido. Estava
acocorada no canto da sala de emergéncia, dando a luz ao seu filho. Diante da cena inusitada, sua reacao imediata foi repreendé-la, afinal
tinha se ajeitado de cécoras no chao da sala, um local sujo e
potencialmente contaminado. Seus pés desnudos tocavam o chao, e suas maos agarravam os joelhos, puxando—os contra o peito. Naquele momento, diante das reprimendas que recebera do jovem obstetra, a paciente o mirou como se fosse “feito de Vidro". Esse foi a exata imagem que Ric usou para descrever a cena, muitos anos depois quando escreveu seu primeiro livro “Memdrias do Homem de Vidro — Reminiscéncias de um Obstetra Humanista”. Apesar da recepcao pouco amistosa por parte de quem devia estar Ihe prestando cuidados (e nao julgamentos), a mulher fechou os olhos e alguns instantes depois empurrou seu bebé para fora do ventre, antes mesmo que Ric tivesse tempo Secolocanas Iuvas. Sua descricao desse momento é tocante: pela primeira vez em sua vida, ele havia sentido a experiéncia de tocar um recém-nascido com suas préprias maos nuas. Enquanto ainda tentava se recuperar do susto de um part0 precipitado e em local inusitado — o piso frio de uma sala de emergéncias —, ela expulsou de um so golpe a placenta. Mais uma vez, ele a repreendeu por sujar o chéo que as funcionarias do centro obstétrico mais tarde teriam que limpar. Depois de avaliar o perineo e constatar, entre surpreso e um pouco decepcionado, que ele se mantivera integro, Ric entregou o pequenino para a enfermeira, que imediatamente o levou para a internacao neonatolégica. Claro, o bebé estava “contaminado” e nao poderia ficar no colo de sua mae. “Uma farpa ardente e corrosiva” permaneceu perturbando seu dia, cravada nas lembrancas daquelas imagens, que teimavam em rodopiar em sua mente insistindo em fazer uma pergunta. “O que houve naquela pequena sala que eu ainda nao entendi?". Mais tarde, naquele mesmo dia e apenas alguns minutos mais tarde, ele resolve voltar a ”cena do crime”, como ele mesmo descreve. La encontrou
uma funcionaria da limpeza, ainda retirando sangue e mecénio do chao, que Ihe exclamou com um sorriso inocente: “Gracas a Deus o
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senhor chegou aqui para atendé-la, doutor. Imagine o que teria acontecido se 0 senhor nao chegasse a tempo!". Talvez tivesse sido a inocéncia da pergunta, ou apenas o sorriso
benevolente da funcionaria, que criava um contraponto com a mirada enigmatica e silente que a paciente Ihe oferecera apenas alguns momentos antes. Talvez, por outro Iado, tenha sido a erupcao de antigos questionamentos sobre a posicao especifica de um Obstetra na cena de part0 que resolveram percorrer um caminho eruptivo para a superficie. A verdade é que a pergunta da ingénua funcionaria produziu uma queda vertiginosa em direcao as suas mais profundas angflstias. Ainda olhando para o chao manchado de rubro, ele chegou a conclusao logica de que, se nao estivesse la, esta mulher teria a oportunidade deter seu filho de 1. uma maneira muito mais saudavel, tranquila e digna. Tudo o que ele havia feito estava, sob todos os pontos de vista. equivocado. Nao havia nada em suas atitudes que pudesse ser sustentado cientificamente. Nada. Também nao havia nenhuma humanidade em suas acoes, no sentido de oferecer a mulher o controle da experiéncia que ela mesma estava vivenciando. Sem sua presenca arrogante e presuncosa, confessa Ric, aquela mulher poderia ter passado por uma perfeita experiéncia de parto. Tudo que ele fez foi interferir com o processo natural, pulsional e totalmente fisiologico de um part0, oferecendo apenas julgamentos, impressoes negativas e intervencoes inadequadas. Esse foi o comeco da “mudanca de paradigma" de Ric: uma inconformidade conceitual e ideologica com o que era ensinado na formacao obstétrica classica. A partir de entao, Ric iniciou uma trajetéria complexa em direcao ao que percebia como inovador na assisténcia ao nascimento, trabalhando duro para incorpora—la em sua pratica. Passou a ler de forma compulsiva os autores que questionavam o autoritarismo relacionado com a pratica obstétrica, comecando por
Moysés Paciornik, Ivan llich, Marsden Wagner, Henci Goer, Marshall Klaus, Frederik Leboyer e meus préprios trabalhos. Com esse arcabouco teorico, comecou a, lentamente, mudar sua pratica. Logo depois de terminar sua residéncia, trabalhou em um hospital da Forca Aérea Brasileira. La, durante uma reuniao durante
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o café da manha com um colega, teve a ideia de criar um modelo simplificado de atencao ao nascimento, que se baseava na utilizacao de recomendacoes da medicina baseada em evidéncias, na utilizacao do part0 vertical e através de indicacoes éticas e responsaveis das intervencoes cirurgicas no part0. Dos trés
obstetras do hospital, dois resolveram aderir a esse protocolo. Em dois meses de aplicacao, as cesarianas baixaram de 45 para 22%. Ric e seu colega conseguiram seus objetivos, mesmo que o terceiro colega tenha se mantido aferrado a uma prética intervencionista. A experiéncia em pequena escala apenas lhe mostrou que, sim, era possivel fazer modificacoes baseadas em protocolos simples, quando se acrescenta a eles uma boa dose de idealismo, coragem e boa vontade. A partir dessa experiéncia, ficou evidente que isso poderia ser feito! Durante sell perion como rnédico militar, Ric iniciou sua pratica privada em um consultério particular enquanto fazia plantées obstétricos em hospitais pLiblicos de periferia. Nesses locais, esforcava-se para oferecer o que existia de mais atual do ponto de vista de praticas baseadas em evidéncias. A partir da criacao de um protocolo — o qual chamou de PAOH (Protocolo de Assisténcia Obstétrica Humanizada) —, testemunhou a queda vertiginosa nas suas taxas de intervencao, com resultados inquestionavelmente positivos. Por outro Iado, ainda nao se percebia capaz de diminuir seu nivel de interferéncia no processo natural para valores preconizados pela OMS. Nao conseguia entender porque seu indice de cesarianas se mantinha em um patamar bem mais elevado do que as experiéncias internacionais que conhecia e se sentia envergonhado ao ler relatérios sobre o trabalho em The Farm, onde a parteira Ina May Gaskin tinha taxas de intervencao incrivelmente baixas, e com enorme sucesso. Ele entao fez uma “chamada para o Universo”, e as forcas invisiveis que comandam as engrenagens cosmicas se manifestaram. Sua resposta veio numa madrugada fria na capital da Argentina. Quando entrou na pequena livraria atulhada de livros até o teto em Buenos Aires, onde estava participando de um curso de p65-
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graduacao em homeopatia, um livro literalmente caiu da prateleira em suas maos. Este livro era Nasc/mento Renascido, de Michel Odent. A0 abri-lo e folhear com vivido interesse suas paginas repletas de fotos, deparou—se corn uma intrigante foto na pagina 128 da Edicao Errepar. Nesta foto, via-5e uma parteira da cidade de Pithiviers, onde o médico Michel Odent exercia suas funcoes de “chefe da clinica cirflrgica", abragada a uma paciente no chao do centro obstétrico. A imagem atropelou-o corn uma violéncia inesperada. Os corpos das duas produziam uma amalgama de. sombras, curvas, carnes e siléncios. A nudez da paciente contrastava com a brancura do avental da enfermeira. Entretanto, os corpos pareciam ser um 56, tile conectados e sincronos se encontravam naquele silente abraco. Ric .- descreve aquele momento como sua segunda grande “descida ao inferno". Ali percebera o seu limite, a margem; a sua borda pessoal. Néo havia como, em sua pratica de obstetra humanista solitario, oferecer aquele tipo de integracao, aquela conexao e o nivel de intimidade feminina que aquelas duas mulheres apresentavam. Ao mirar para aquela singela fotografia, no corredor estreito da livraria, Ric estava vislumbrando os aspectos psicolégicos mais intensos que envolvem o nascimento, na profundidade abissal da sexualidade e nas fronteiras do inconsciente. “Bern, se eu quero mesmo chegar nesse nivel de atencao integradora do part0, oferecendo um suporte que vai além das questoes fisiolégicas e mecanicas, eu precisarei do auxilio das mulheres nessa tarefa." Alguns anos se passaram até que chegasse a oportunidade para comecar um trabalho interdisciplinar. Esta ocasiao ocorreu quando Cristina, uma gravida que teve urn part0 hospitalar natural com sua ajuda, o procurou algumas semanas apés o nascimento de seu filho. Ainda extasiada com a oportunidade que teve de parir naturalmente, perguntou a Ric se ele sabia o que era uma “doula”. Diante da negativa, ela passou a lhe explicar as funcoes de uma doula, OS limites da sua atuacao junto a mulher e as vantagens demonstradas em va'rios estudos relacionadas a sua presenga no cenario do part0. “Eu preciso de vocé e vocé precisa de mim, e vamos trabalhar
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juntos." Ric estava sendo “contratado”, e via diante de si uma porta se abrir para oferecer um trabalho inédito e transformador. Era o embriao do “Trabalho em Equipe lnterdisciplinar" iniciado em Porto Alegre. Tao inovador foi esse trabalho que eu o inclui em minha coleténea internacional de experiéncias de sucesso na atencao ao parto, no capltulo “Team Work", do meu livro Birth Mode/s that Work. Enquanto Cristina explicava apaixonadamente as acoes de uma doula, Ric percebeu que esta poderia ser a tao esperada solucao para o “mistério da pégina 128". Ali se encontrava a necessaria conexao feminina que parecia ser fundamental para que seu trabalho ultrapassasse os Iimites impostos pela sua condigéo masculina. Cristina poderia fazer a tarefa que a parteira francesa desempenhava
no chao do centro obstétrico de Pithiviers: o suporte afetivo. emocional e espiritual ao processo de nascimento. Posteriormente, a esposa de Ric, Zezaénenferme‘ua.obstetra.(ou “parteira profissional pésmoderna”, como gosto de chamar) comecou a acompanha-los na atencéo ao parto. Esse nl’icleo transdiciplinar — obstetra, parteira profissional e doula — desenvolveu o que eu ohamo de um “modelo de parto eficiente” (Davis-Floyd et al 2009). Rio, Zeza e Cristina passaram a treinar doulas em todo o Brasil e no exterior, para criar uma frente de defesa do nascimento humanizado. Hoje em dia, a doula da equipe vai a frente, como uma “batedora”, ao se iniciarem as contracoes mais fortes, e auxilia o casal nos preparativos para o nascimento. Quando a doula percebe que as contragoes alcancaram
um limite determinado, avisa o resto da equipe para que venham a casa da paciente avalia-la. Ric sempre esta' presente nessas ocasioes. Levam todos os equipamentos necessarios em seu carro, de acordo com os protocolos mais exigentes com respeito a0 parto domiciliar. Ric sabe que parto e nascimento sao realmente “trabalho de mulher" e que seu trabalho é simplesmente estar Ia’ em caso de necessidade. Ele gosta de brincar que, se sua acao nao for necessaria, ficara’ tirando fotos e comendo bolo de chocolate. No parto, é fundamental criar um ambiente de positividade, corn acoes repetitivas por parte da gestante (como fazer um bolo, por exemplo), que a
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auxiliam a mergulhar na “partoléndia” e realizar o necessario apagamento neocortical. Se for desejo do casal um parto hospitalar, ou se as coisas n50
estao de acordo com a ideia de um “parto liso”, que seria um parto fisioldgico e sem riscos aumentados, a equipe se transfere junto com a paciente para 0 hospital. Se uma cesarea é realmente necessaria, Ric a realiza, mantendo o “continuum de cuidado" tao importante para a tranquilizacao da paciente. Hoje em dia, enquanto escrevo estas
Iinhas, sua taxa de cesarianas e de 133%, fiel as determinacoes da OMS (10 a 15%), como ele ha' tanto tempo desejava. Alguns dias apés o nascimento, Ric e sua equipe voltam a casa da paciente para levar o “video de parto", que é sua visao pessoal “dos eventos que cercaram o nascimento. Depois de passar horas colocando as melhores fotos e clips do nascimento em ordem,
ajustando-as a mi'isica que foi escolhida pelo casal, ele oferece a familia uma recordacao do momento da chegada do bebé a esse mundo. A ideia, segundo suas prdprias palavras, e’ garantir a esse
sujeito que nasce a certeza de que, por mais dificil que seja sua vida e mais duros os desafios, houve um momento em que todos estiveram felizes com sua presenca, e que sua chegada foi cercada de amor e alegria. Posso dizer, de forma inequivoca, que Ric é um dos obstetras mais holisticos do mundo. Este livro de histérias de nascimento é o seu presente para todos n6s. Por favor, leia com todo o carinho! Ele é um pioneiro da obstetricia humanista e integradora, e pertence a uma raga rara neste mundo tecnocratico em que as intervencoes, as interferéncias na fisiologia e as taxas de cesariana continuam a aumentar. Nosso mundo pode estar testemunhando o exterminio de uma funcao fisiolégica feminina, como o parto. O parto normal parece se encaminhar para a extincao, pois os Orgaos formadores se preocupam em treinar profissionais na intervencao, e néo na paciéncia e no respeito a sabedoria da natureza. As intervencées sao cada vez mais frequentes, realizadas diante do menor desvio, mesmo quando as evidéncias apontam para aumento do risco pelo seu uso. Ric e
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Zeza estao incorporando e preservando as habilidades que as geracoes futuras vao precisar, resguardando o nascimento em paz para que ele
nao desaparega diante de uma falsa “praticidade” ou “seguranca” prometida pela tecnologia exagerada. Ric e uns poucos obstetras no mundo estao fazendo o seu melhor para provar que a opgao por um
nascimento com base holistica e cientifica deve estar a0 alcance de todas as mulheres, principalmente no hospital, mas também fora dele, no melhor interesse de maes, bebés, familias e sociedade.
Robbie Davis-Floyd Pesquisadora Sénior, Departamento de Antropologia,
Universidade do Texas, Austin. Antropologa, palestrante internacional e autora sobre a humanizagao do nascimento
Austin, Togas — Janeiro 2012 Robbie Davis-Floyd, PhD, é uma antropologa médica especializada na antropologia da reproducao. Além de palestrante internacional sobre o tema do parto e nascimento, ela é autora de mais de 70 artigos e do Iivro Birth as an American Rite of Passage
(1992). co—autora do Iivro From Doctor to Healer: The Transformative Journey_(1998) e de The Anatomy of Ritual (ainda por ser Iangado); é co-editora de oito colegoes, Techno-Tots (1998), Daughters of Time: The Shifting Identities of Contemporary Midwives (um exemplar triplo especial of Medical Anthropology 20:2-3/4, 2001) e Mainstreaming Midwives: The Politics of Change . Publicou em 2009 o Iivro “Birth Models that Work", onde revela as experiéncias internacionais de sucesso na atengao ao parto e nascimento, numa perspectiva
humanistica, ecolégica e auto-sustentavel. Sua pesquisa em tendéncias globais e transformacoes no cuidado médico, parto, obstetricia e no trabalho das parteiras é continuo. Seus projetos atuais abordam mudancas em parteiras e obstetras americanos, mexicanos e brasileiros.
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Prefécio Melania Amorim, PhD
Eu conheci o Ric em 2005, depois deter devorado o seu primeiro Iivro, “Memérias do Homem de Vidro", e de longas discussoes em que varavamos a noite na lista “Part0 Nosso". Desde entao, apesar dos milhares de quilometros que nos separam, uma vez que moramos em extremos opostos deste pais de dimensées continentais, conseguimos sempre nos manter conectados, néo apenas pelas facilidades que a Internet nos proporciona para o contato com amigos distantes, -'mas porque partilhamos o mesmo ideal e perseguimos o mesmo sonho de transformer o modelo obstétrico vigente e resgatar o protagonismo feminino do parto. A Medicina Baseada em Evidéncias (MBE). esse paradigma que nem é mais téo recente (o prdprio termo foi cunhado em 1992, tem a idade do meu filho mais velho), entrou em minha vida por volta de 1994, quando eu era ainda uma jovem obstetra formada dentro do modelo tecnocratico. Nesta época eu cursava o mestrado em sai’Jde materno—infantil e comecava a vislumbrar o absurdo de muitas praticas que eram entao correntes na maior parte dos hospitals brasileiros, e que eu tinha aprendido como “rotinas” necessaries para a assisténcia ao parto: jejum, tricotomia, enema, repouso no leito, parto em posicao de Iitotomia, episiotomia e férceps de alivio em primiparas. Quando comecei a pesquisar seriamente sobre esses procedimentos, fiquei espantada ao constatar que nao havia nenhuma evidéncia cienti’fica solida demonstrando sua necessidade e efetividade e, ao contrério, ja existiam evidéncias demonstrando os seus efeitos deletérios para o binémio mée-bebé. Em 1983, Thacker e Banta jé tinham publicado sua excelente revisao demonstrando a auséncia de efeitos benéficos da episiotomia, destacando os seus riscos e complicacoes e sugerindo que o seu uso rotineiro nao se justificava. Eu estava, portanto, mais de uma década atrasada, repetindo os ensinamentos
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dos livros-texto e as pra’ticas dos meus preceptores da residéncia médica. Um novo e deslumbrante mundo se abria para mim e. depois
do término do mestrado e durante o doutorado, eu aprendi a questionar essas “rotinas” que nao se baseavam em nenhuma evidéncia cienti’fica solida. Progressivamente fui reformulando a minha pratica, passando a atender partos verticalizados e reduzindo as indicacoes de episiotomia, até abolir por completo esse procedimento que ja foi descrito por Marsden Wagner como uma verdadeira “mutilagao genital feminina”. Todavia, a0 passo em que eu me encantava com a Medicina Baseada em Evidéncias e modificava as minhas condutas, seguindo as conclusoes das revisoes sistema’ticas da Biblioteca Cochrane, ainda ficava perplexa constatando que, mesmo havendo evidéncias
cientificas solidas disponiveis demonstrando os beneficios do parto
vertical, a faltaflde necessidade e 03 efeitos adversos da episiotomia de rotina e de tantas outras praticas incorporadas a atenqao obstétrica, a maioria dos meus colegas, na maior parte dos hospitais brasileiros, ainda continuava seguindo préticas que a MBE nao referendava. Em 1996, a prépria Organizagéo Mundial de Saflde (OMS) publicou o seu Guia de Atengéo ao Part0 Normal, avaliando as praticas adotadas na assisténcia ao parto e classificando-as, de acordo com as evidéncias disponiveis, como “reconhecidamente Uteis e que devem ser adotadas", “ini'Jteis ou prejudiciais e que devem ser abolidas" ou “de efeito incerto ou indeterminado, requerendo avaliacao futura". Esse guia foi traduzido para o portugués e amplamente distribuido pelo Ministério da Sai’Jde no Brasil. Como, entao, poderia se explicar tanto “atraso”, tanta “resisténcia” ‘as mudancas? Eu estudava a estrutura das revolucoes cientificas de Kuhn e tentava entender o apego dos meus colegas as préticas antigas e defasadas dentro do processo de “choque de paradigmas". No entanto, foi somente quando Ii 0 brilhante livro de Robbie Davis-Floyd, “Birth as An American Rite of Passage" que pude entender, sob uma perspectiva antropoldgica mais ampla, o porqué dessas praticas e procedimentos realizados de forma ritualistica, traduzindo-os como
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“respostas ao medo exagerado a esse processo natural do qual depende a continuidade de nossa existéncia”. Enquanto eu me perturbava. estudava e aos poucos desconstruia um aprendizado de muitos anos, perseguindo um novo modelo de
assisténcia, nao sabia que outro jovem obstetra, que tinha se formado exatamente quatro anos antes de mim, ja havia trilhado a sua prépria jornada transformadora. Esse colega nao somente passou a adotar uma pratica de assisténcia ao part0 baseada em evidéncias como ja prosseguia rumo a propostas bem mais avancadas, dentro de um movimento que depois veio a se consolidar com o nome de “Humanizacao da Assisténcia ao Part0". Esse jovem obstetra, antenado com as recomendacoes da OMS e da Federagéo
,lnternacional de Ginecologia e Obstetricia (FIGO) e reconhecendo a autonomia das mulheres no seu direito reprodutivo ba’sico de escolher onde e como irao dar a luz, ja estava assistindo a partos domiciliares no Rio Grande do Sul, respeitando, é claro, o principio de que as mulheres “podem escolher ter seus partos em casa se elas tém gestacoes de baixo-risco, recebem o nivel apropriado de cuidado e formulam planos de contingéncia para transferéncia para uma unidade de saflde devidamente equipada se surgem problemas durante 0 parte" (OMS, 1996, 2007). Esse jovem obstetra era 0 Ric.
Os anos se passaram e a reacao cruel do estab/ishment médico nao tardou a chegar, o que ja era previsivel, uma vez que o modelo atual de assisténcia ao part0, embora falido e nao sustentavel em longo prazo, oferece ainda, a muitos profissionais, solucoes comodas a que esses se aferram, dentro de sua zona de conforto. Entre elas, a praticidade e a conveniéncia de programar cesarianas eletivas sem indicagao médica definida. Os defensores desse modelo, como bem explica Ric. iatrocéntrico, etiocéntrico e hospita/océntrico, manifestam sua oposicao visceral as Casas de Part0 e aos partos domiciliares, de forma que a perseguigao ostensiva aos profissionais ligados a0
movimento de Humanizagao do Part0 infelizmente é uma realidade em alguns estados, onde os conselhos e as sociedades médicas sao
mais conservadores. Curiosamente, séo esses os mesmos
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profissionais que defendem o “direito” da mulher de escolher sua via de part0, embora aparentemente esse direito tenha mao Unica: so vale para a minoria de mulheres que desejam uma cesariana e nao inclui aquelas que desejam um part0 normal nem tampouco se estende
para a decisao sobre 0 local de part0. A voz das mulheres e o seu direito de escolha tém sido grandemente ignorados. Ricardo Herbert Jones nao apenas dedicou-se com paixao a causa fascinante da humanizagao da assisténcia ao part0 baseada em evidéncias, acolhendo e ajudando indmeras mulheres que se aventuraram nessa fantastica aventura de resgate do préprio protagonismo, como veio a se tornar um baluarte do movimento, um
nome reconhecido e respeitado internacionalmente, porquanto como conferencista ele tem percorrido o mundo compartilhando suas
experiéncias, seus sabores e dissabores. Nao é um caminho facil, e ele mesmo‘eggplica que é.um .Iongo caminho, requerendo amadurecimento, paixéo e compaixao, porque é preciso “ter trilhado o vale das sombras, ter enfrentado a morte e suas dores ou ter se
encantado com a Vida sem cair na tentagao de banaliza-la" para entender o profundo significado dessa visao humanizada/humanizadora do nascimento. Em seu primeiro livro, ao qual ja me referi, ele nos brindou com o relato sensivel e emocionante de sua transformagao e de suas experiéncias redentoras como um obstetra humanista, o “Homem de Vidro". Essas “Memérias” correram o pals e inspiraram va’rios outros colegas, dentre os quais me incluo, a romper a casca, sair do armario tecnocratico e mergulhar de cabega no fantastico mundo da Humanizaqao. Também foram, e disso sou testemunha, extremamente importantes para muitas mulheres, que reconhecem ter sido este livro parte integrante do processo de descoberta e empoderamento que culminou em sua conquista de partos transformadores. Eis, porém, que n0s, Ieitores, continuamos avidos pelas historias do Ric, queremos saber por onde andam Max e Nadine, ansiamos por suas reflexoes filoséficas e pelos relatos dos partos dos quais ele participou nesses Ultimos oito anos, depois do lanoamento das
22 I Entre as orelhas
“Memérias” em 2004. Com este “Entre as Orelhas" ele vem atender
a demanda de milhares de pessoas que conseguiram esgotar ja duas edigoes do seu primeiro livro. Neste momento em que ja se procede
a transigao da MBE para a Medicina Translacional, em que o desafio para o terceiro milénio é encontrar solugées para assisténcia integral em um modelo de atenoao centrado no individuo e ecologicamente sustentavel, Ric vem nos mostrar que, mais uma vez, encontra-se a
frente do seu tempo, uma vez que todas as evidéncias vém reforqando esse modelo que ele ja pratica ha décadas. Que todos os Ieitores possam se encantar mais uma vez com as historias do Homem de Vidro e das poderosas mulheres que as protagonizam, e se sintam todos acolhidos nesta seara luminosa que estamos aos poucos 4. tragando, rumo ao porvir obstétrico redentor.
Melania Amorim Médica Ginecologista e Obstetra Professora de Ginecologia e Obstetricia da UFCG Professora da Pés—Graduagao em SaUde Materno-lnfantil do IMlP Pesquisadora Associada da Biblioteca Cochrane
Prefacio l 23
L» .
Apresentagfio
A obstetricia se abriu como oportunidade para mim em meio a nebulosidade obscura da escola médica. Nessa época, eu cursava o terceiro ano de medlcina na Universidade Federal e a possibilidade de assistlr a “medicina de verdade” era quase inexistente. Estavamos inseridos ainda nas cadeiras basicas, sem uma janela aberta para a patologia inserida no sujeito. Tudo era “virtual”. As pneumonias eram fotos de cortes histolégicos em livros, os partos eram tao somente -‘ descrigoes de planos e rotagoes. Alguns fatos marcantes, entretanto, marcaram de forma indelével a minha trajetéria. O primeiro foi o nascimento de meus filhos, Lucas e Bebel. As circunstancias desses partos hospitalares. corn toda a carga de agressividade e despersonalizagao, foram um choque de grandes proporooes. Aliado a isso, pela primeira vez eu conseguia perceber a magnitude da capacidade feminina de suplantar obstaculos e adversidades. O nascimento era um evento épico! O segundo evento fundamental para a minha escolha pela obstetricia foi o periodo em que trabalhei como “interno” em um servigo pt’Jblico de obstetricia. Nesse periodo de formagao médica. eu fazia plantoes em um hospital de periferia, onde os obstetras permitiam que os estudantes praticassem na sua auséncia. Minhas primeiras experiéncias como cuidador foram com as pacientes pobres do servioo pliblico deste hospital. La eu pude enxergar de forma muito clara como o sistema médico traduz e decodifica 0 fenémeno do nascimento. A matriz cultural valorativa sobre a mulher, a Vida, o dinheiro e o poder apareceram brutalmente a minha frente quando eu ainda era um menino, e esta violéncia acabou por determinar todo o meu futuro profissional. Claro que as razoes menos objetivas responsaveis pela minha escolha sao da ordem do inconsciente. Porém, por sobre essa base, esses fatos marcantes acabaram por me jogar no universo complexo do feminino.
Apresentagéo l 25
Minha formagao em obstetricia foi o que se pode chamar de “classica”. O modelo era construido a partir de uma visao vertical de “evoluoao cientifica”. Entendia-se a moderna obstetricia come 0 apice de uma edificagao sélida cujas bases eram afixadas sobre o obscurantismo e a magia, e o céu acima de n65 era constituldo pela ciéncia e pelo conhecimento. Em nenhum momento do meu aprendizado na faculdade, mencionava-se a possibilidade de um modelo de assisténcia ao nascimento que n50 fosse centrado na figura do médico, no combate as doengas e na centralizagao das aooes no hospital. Essa forma de entender o fenomeno do nascimento eu chamava de modelo “iatrocéntrico”, “etiocéntrico” e “hospitalocéntrico”, respectivamente centradas no médico, na enfermidade e no hospital. Para entender formas alternativas, ou modelos concorrentes de assisténcia, era necessario abandonar o ediflcio e suas verticalidades e imaginar formas horizontais .de disputa entre os modelos. Nesse aspecto, a formagao médica era extremamente falha: nao havia (pelo menos ha 25 anos) uma compreenséo mais abrangente dos paradigmas em choque, como brilhantemente nos revelou o fisico americano Thomas Kuhn. Para mim, absolutamente inquieto com o que percebia de imperfeito na atengao ao part0, a visao dessa ideia foi clarificadora. A medicina contemporanea, mormente nos aspectos relacionados a
assisténcia ao part0, era apenas o modelo dominante, o paradigma hegeménico, e nao a soma de todas as verdades! Havia propostas alternativas minoritarias que nao podiam ser desveladas em fungao
de interesses outros, de origem economica, financeira e profissional. A escola médica agia na manutengao, proteoao e disseminagéo de um modelo que claramente a beneficiava, mas que nao era necessariamente o Unico existente. Para produzir uma visao mais justa e panorémica de minha atuagao, era fundamental colocar toda a minha formagao como “relativa”, como uma “importante parte do todo", mas nao a verdade absoluta e derradeira. Era preciso abandonar a criaqéo totémica e mitologica do saber médico e assumir uma visao mais plural e centrada nas necessidades da mulher. Fazer isso, mesmo que secretamente em meus pensamentos, ja’ era, por si 56, uma heresia.
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A verdade é que os acontecimentos que precipitaram a minha
opoao pela obstetricia foram os partos de meus dois filhos: Lucas, ocorrido quando nao eu contava mais de 21 anos de idade, e Bebel, que nasceu 12 dias antes de minha ceriménia de formatura. Entrei na residéncia médica com dois filhos nascidos de part0 normal, tendo passado por uma experiéncia poderosa de amadurecimento. Obtive autorizagao para assistir a ambos os partos apenas por ser estudante de medicina, mas tal concessao me abriu as portas para uma nova realidade. Pude perceber a violéncia ,institucional velada, que se expressa através dos pequenos detalhes. Frases, expressoes, normas, proibigées eram constituintes da arquitetura de um sistema assimétrico e agressivo. Pude testemunhar as formas insidiosas de , desqualificagao das mulheres e a visao depreciativa que cultivamos sobre suas capacidades de gestar e parir. No nascimento de meus filhos, pude constatar, pela primeira vez, a misoginia essencia/ que comanda o proceder obstétrico, que se expressa pela compreensao defectiva da maternidade. E esta foi uma experiéncia fundamental. Além do choque estético e conceitual do nascimento de meus filhos e a minha experiéncia na grande escola obstétrica da periferia, outro evento marcante a produzir um terremoto em minhas convicqées foi um nascimento de emergéncia na sala de exames do hospital de clinicas, onde fazia a minha formaqao como residente. Esse evento foi descrito no meu livro anterior, Memorias do Homem de Vidro — Reminl'sce‘ncias de um Obstetra Human/Sta. Nesse part0, os singulares acontecimentos que o caracterizaram produziram uma mudanga paradigmatica de proporgées imprevisiveis. A rapidez do nascimento deu oportunidade para que eles fossem ditados pelo automatismo irreflexivo, o que desnudava, de alguma forma, os cédigos valorativos que eu acalentava inconscientemente. Diante da insensatez de minhas atitudes, da grosseria de minhas palavras, da violéncia de meus procedimentos e da gravidade de minhas agoes, minha reagao foi — inicialmente — a estupefagao e o espanto. Algum tempo depois, quando uma auxiliar de limpeza me perguntou: O que ter/a acontecido se 0 senhor néo tivesse chegado a tempo para o parto?, é que me dei
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conta de que a melhor resposta para essa pergunta seria: 0 part0
teria sido muito melhor. A partir de entao, minha condicao era tao somente de vergonha. Diante disso, so me restavam duas alternatives: abandonar o trabalho com as mulheres e gestantes, ou mudar radicalmente a forma de agir com relacao a elas. Resolvi escolher a segunda alternativa, mesmo sabendo que tal escolha me levaria a ser desprezado por muitos colegas e incompreendido por outros.
Durante os 12 anos seguintes ao evento na sala de emergéncia, nao obtive apoio de outros profissionais ligados ao parto e ao nascimento. Somente no primeiro congresso de Part0 Humanizado que compareci, no Rio de Janeiro em 1998, e que fui conhecer colegas que pensavam de forma semelhante. Durante essa década de reclusao, minhas Unicas fontes de informacao eram os livros de médicos que se tornariam mestres para a minha formacao de obstetra humanista entre eles Moyses Paciornik Michel Odent e Marsden Wagner. A partir desse encontro no Rio de Janeiro, além dos colegas
médicos, encontrei uma gama enorme de profissionais de outras areas que participavam da construcao de um novo modelo baseado na interdisciplinaridade. Nos primeiros congressos, conheci doulas, fisioterapeutas, enfermeiras, obstetrizes e psicélogas que me mostraram, de forma inequivoca, que os partos nao eram de uma so corporagéo, mas que pertenciam as mulheres, cabendo a todos a possibilidade de auxilia-Ias em conjunto e em harmonia.
A partir da experiéncia de participar de um congresso de humanizacao do nascimento, no final dos anos 90, tomei conhecimento de uma rede nacional voltada para o debate, 0 intercambio de informacoes e a construcao de alternativas a0 modelo obstétrico contemporaneo. Essa rede, formada por cidadaos comuns, médicos obstetras, epidemiologistas, pediatras, clinicos, fonoaudiélogos, psicélogos, enfermeiras, doulas e outros profissionais ligados a0 part0, havia sido criada em 1993, através de um documento chamado de “Carta de Campinas", onde estavam alinhavadas as diretrizes para uma revolucao na atencéo obstétrica no Brasil. Essa organizagao
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chama-se ReHuNa — Rede pela Humanizacao do Part0 e Nascimento — e hoje se consolida como o principal interlocutor da sociedade civil para a humanizacao do part0 e nascimento. Minha vinculacao com esse movimento, e com a ReHuNa foi imediata, tendo inclusive assumido a sua coordenagéo nacional por um breve periodo de tempo. Nos I'Jltimos 12 anos a ReHuNa esteve presente em todas as minhas palestras e em todos os meus pronunciamentos. Para mim n50 existe debate sobre as teses da humanizacao do nascimento sem que a ReHuNa seja ouvida e considerada. Ela é uma construgao coletiva de um grupo de apaixonados e lutadores em nome da dignificacéo do part0 e da mulher. Depois de algum tempo, acabei me envolvendo em urn esforco ,mundial pela humanizagao do nascimento através da International Motherbaby Childbirth Initiative (lMBCl). Fora do Brasil, acabei encontrando figuras extremamente importantes na minha trajetéria. A mais importante e significativa delas foi a antropéloga americana Robbie Davis-Floyd, de quem me tornei grande amigo e com quem aprendi os mais importantes ensinamentos sobre a mitologia que cerca o nascimento humano, assim como 0s valores inconscientes que regulam e controlam esse evento. A lista de outros profissionais fundamentais na minha caminhada seria Ionga demais, e me custaria o risco de esquecer alguém; por essa razéo, prefiro nao cité-Ios nominalmente e deixo minha amiga Robbie como exemplo de que as lutas também sao feitas através de lacos de amizade, companheirismo e confianca. Muitos foram os entraves que encontrei durante esta trajetoria, mas nunca me queixei disso. Néo ha como questionar os poderes constituidos sobre o saber médico sem que haja uma reacao violenta. O maior problema que ainda encontro é a forma preconceituosa com que a obstetricia “oficial” encara qualquer projeto que questione a preponderancia médica nas acoes de saL'Ide. O part0 domiciliar planejado, as Casas de Part0 e a atencao prestada pelas obstetrizes (parteiras profissionais) $30 as maiores dificuldades. Compreensivamente, esses pontos serao dificilmente aceitos por aqueles que possuem poderes autoritativos relacionados ao nascimento. As
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evidéncias cientificas que respaldam todas essas escolhas sao insuficientes, em uma primeira etapa, para produzir uma aceitagao. Entretanto, em Iongo prazo, vao produzindo um enfraquecimento
insidioso dos preconceitos que sustentavam tal rechago. Minha esperanga é que o tempo sera o Sen hor da Verdade e que uma atengao mais digna a0 nascimento prevalecera. “Humanizar o nascimento é restituir 0 protagonismo a mulher”, e sem essa conquista nenhum
avango seré significativo. A forma de lidar com os inevitaveis ataques que chegam dos setores mais conservadores da medicina é estar constantemente preparado para o confronto. Por essa razao, as discussoes no terreno do nascimento humano so podem acontecer na arena da Medicina Baseada em Evidéncias (MBE). Sem 0 respaldo das evidéncias, todo o debate se torna subjetivo, pessoal e estéril. E por isso que as pessoas que desfie‘jam debater honestamente esses assuntos devem
estar preparadas para o enfoque utilizando as evidéncias atuais, e nao experiéncias pessoais e preconceitos. O convivio com as mulheres me ofereceu uma das maiores experiéncias que o ser humano pode encarar: o encontro com a diversidade. O fato de as mulheres serem matrizes, carregarem no
ventre a nossa esperanga de imortalidade, enfrentarem as dificuldades e fragilidades da gestagao e do part0 e serem responsaveis diretas pelos cuidados com seus bebés, Ihes oferece uma perspectiva absolutamente diversa da vida, radicalmente diferente daquela que um homem pode experimenter. O mundo feminino é, para nés homens, um mistério inquestionével e insondavel. Costumo dizer que a gestagao é algo que ignoro por completo, pois apenas a vivéncia desse fenémeno pode oferecer uma compreensao minimamente satisfatéria. Entretanto, meu convivio com as tantas mulheres que povoaram minha vida, como minha mae, irmé, esposa, filha, cunhadas, amigas
e pacientes, oportunizou um mergulho no universo de suas paixoes, dores, ideias e amores. Tornei-me paulatinamente urn apaixonado pelo feminino, pois para mim ele simboliza a capacidade de extrapolar os limites da prépria epiderme e viver o amor como algo visceral.
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Sua Iigagao com as crias e seu amor incondicional por elas me oferecem uma visao criativa do universo e a maneira co mo se organizou nossa espécie. As mulheres eu devo tudo O que sei. Por outro lado, a mulher é vista pela escola médica como um ser defective e cuja “produgao” é o resultado de uma série de equivocos nao resolvidos. Para a visao me'dica contemporanea, o corpo biolégico da mulher é defeituoso in essentia. Todos os evento s fisiolégicos da vida feminina — que 550 o diferencial com o padrao masculino — sao vistos pela cultura como patologias que necessitam de tratamento médico. Assim, o ciclo gravido-puerperal — gestagao, part0 e puerpério — é visto como uma enfermidade, cuja solugao é drogal e cirflrgica. A menstruagao nao é vista como uma renovagao piclica, mas como uma “sangria inrJt/l", levando-se ao extremo a visao positivista e biologicista da medicina. A menopausa, outr o evento programado na fisiologia feminina, é visto como uma fase de “perdas”, de “falhas”, e a solugao para tal “faléncia” é a adigao perigosa de substéncias quimicas que objetivam reverter o envelhecimento e a decrepitude. Mesmo quando essas experiéncias se mostraram tragicamente frustradas, como a hormonioterapia da menopausa, que se provou falha em seus propésitos principais, estamos muito longe de reavaliar nossos conceitos sobre a mulher, pois isso significaria imaginar uma cultura cujas relagoes de poder entre os sexos seria diferente e, portanto, imprevisivel. Apesar dos ataques e das caIUnias que muitas vezes recebi, acredito na honestidade desses postulados, pois se baseiam em uma forma fraterna e solidaria de entender o mundo, que valoriza o em poderamento, a autonomia e a liberdade das mulheres de escolher seu destino e a forma de parir seus filhos. Sempre lutei para que as teses da humanizagao do nascimento nao se tornassem um “catecismo” ou uma “formula magica”, pois isso significaria a cristalizagao e a morte de um movimento de ideias. Nossa proposta passa por uma critica constante ao tecnicismo despersonalizante e uma abertura as novas descobertas cientificas, a fim de evitar 0 envelhecimento de nossos ideais.
Apresentagao | 31
“A Humanizaga'o do Nascimento vem trazer a sintese entre as conquistas recentes da ciéncia, que nos oferecem segurangra, com as forgas evolutivas e adaptativas dos mi/énios que nos antecederam. Esta re/eitura do nascimento humano se faz necessa’ria para acomodar as necessidades afetivas, psico/og/cas e espirituais das mulheres e seus fi/hos com as conquistas que o conhec/mento nos trouxe através da aquisiga‘o crescente de tecno/ogia." A partir dessa constatagao, é impossivel ficar passivo diante da necessidade de acomodar de forma adequada uma abordagem mais
humana. sem preconceitos e cientificamente embasada na atengao . . . ‘ M. ao part0. Muitas pessoas me pedem para que eu diga algo para os novos médicos, para aqueles que estao iniciando na carreira da obstetricia, e que terao diante de si a tarefa de auxiliar no momento magico do nascimento. Nao sou muito born em dar conselhos, até porque eles geralmente desconsideram a dinamica pessoal de quem os escuta, e apenas refletem as fantasias e dificuldades de quem os pronuncia.
Apesar disso, escrevi um texto neste livro chamado “Carta para uma jovem obstetra”, direcionado a filha recém-formada do meu “colega” Max, onde tento mostrar o caminho arduo que ela tera pela frente. Sei que meu espectro de agao é Iimitado, porque cada um faz seu préprio caminho a partir de sua historia. Se me dessem conselhos sobre partos humanizados no meio da minha formagao médica, eu provavelmente nao os escutaria; ainda estaria fechado a visao humanizante do nascimento. Para poder perceber outra realidade, fui
obrigado a percorrer o caminho lento e espinhoso do amadurecimento. A abertura desta porta 56 se faz por dentro. Como nos dizia Lacan a respeito dos psicanalistas, a maior virtude de um obstetra também é a “idade”. Sem ter trilhado o “vale das sombras”, ter enfrentado a morte e suas dores ou ter se encantado com a Vida sem cair na
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tentagao de banaliza-la, como poderia um obstetra entender o que se passa no momento de um part0? Somos os convidados mais privilegiados no espetaculo da Vida, aqueles a quem o criador colocou na tribuna de honra. Temos o panorama mais claro do mistério que se esconde por detras do meramente manifesto; o enigma que se expressa através da chegada de um bebé ao mundo. Entretanto, somente podem enxergar aqueles que assim o desejam: os que lutam contra a sedugao das certezas e que se convencem de que as dL'Ividas sao em verdade amigas dissimuladas, que nos estimulam a crescer.
Meu conselho aos jovens parteiros seria, se assim pudesse fazé-Io, que jamais esquecessem a chama de humanidade que cada um de nos carrega no peito. E fundamental manté-la acesa, para que ela ,nos lembre eternamente das razoes que nos motivaram a cuidar das mulheres e seus filhos. Para as mulheres, a quem dedico este livro, espero que sejam donas de suas préprias vidas e de seus corpos. Lutem contra a expropriagao indevida de seus partos e seus bebés. Jamais deixem de escutar seus instintos de mae. Sejam carinhosas e nunca esquegam de que vieram a0 mundo com a tarefa de cuidar e acalentar. Sua maior fungao neste mundo é ensinar o amor, e sem esse ensinamento nao passamos de bestas sem destino. Sejam condescendentes e nao tentem imitar os homens em suas fraquezas e futilidades. Sejam vocés mesmas, com seus desejos, suas dL'Ividas, seu carinho e seu amor. Nao tentem ser o que nao sao. Fujam da “ Igua/dade" e aproximem-se do respeito matuo as diferengas. Somos distintos, mas ocupamos o mesmo mundo, onde devemos respeitar uns aos outros em seus direitos. Nao esquegam jamais de amar os seus homens, porque esse amor é a maior vitéria que podemos construir na Vida. Somos “caminhantes dos milénios”, e nossa vestimenta — masculina ou feminina — é apenas um envoltdrio passageiro, mas que nos oportuniza um aprendizado inquestionavel. E, por fim, amem seus filhos e fagam deles cidadaos de verdade. para quem a fraternidade sera um trago inconfundivel e a liberdade uma tatuagem permanente marcada em suas peles.
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A construoao milenar do part0 humano é algo que se processa
entre as orelhas. E ali, nas dobras e circunvolugdes encefalicas, no emaranhado de sinapses, nos pontos de confluéncia, que o nascimento se processa. Ou, se quiserem, é nesse ambiente secreto, onde moram os medos, as alegrias. as paixoes e o amor, code a
alma se encaixa no corpo formando uma unidade que so a morte desfaz.
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1 - Caminhos Divergentes
Meus colegas ainda se cumprimentavam com admiravel contentamento, mas essa cena me trazia uma bizarra sensagéo de
dicotomia. A felicidade de mais uma vez encontra-los fazia-me sentir o coragao batendo mais forte no peito, ao mesmo tempo em que me
trazia uma angL'Jstia silente. Felizmente eu estava quieto; detesto ter que falar quando estou emocionado, pois me irrita o som da minha voz embargada. Também me causa estranheza esse tipo de emogao. -' E uma mescla de sentimentos estranhos: em certos momentos, um
deles se sobressai, e, em outros, uma sensagao diferente desponta. Vendo-os abragados e sorridentes, as vezes sentia alegria por ver que a chama de nossa amizade nao se havia apagado. Em outras ocasioes, entretanto, sentia uma espécie de tristeza nostalgica por ver que nos afastamos, constitufmos nossas vidas, seguimos caminhos diferentes e sonhamos tantas coisas que nao se realizaram. Sentia por Max uma admiragao que o tempo nao esvaneceu, e por Nadine uma ternura que nunca se desfizera. Max era 0 velho Max, a quem ainda sauda’vamos com Patu Sa/eh, como que a dizer que acreditavamos nas infinitas Iorotas que sempre nos contara. Nadine continuava maravilhosa, reservada, sensual e charmosa. E/egéncia é contengao, repetia Max, e Nadine exibia o pudor e a nobreza que apenas as mulheres verdadeiramente betas ostentam. Sua mao delicada era, ao mesmo tempo, gelada e tenra, e assim imaginavamos seu coragao, sem a chama de uma grande paixao a Ihe aquecer. A mim parecia que a frieza do seu tecnicismo era um reflexo de sua arquitetura emocional. Ninguém se esconde tao bem, e o que somos aparece nas fissuras do nosso discurso, nas palavras e nos atos. Eu costumava dizer ao meu filho Lucas que no futebo/ esta’ a Vida de cada jogador, pois cada um mostra, no jogo, o que traz na alma. O jogador fominha, o que nunca passa a bola, é aquele que centra sua
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vida em si mesmo, que nao aceita dividir responsabilidades e vitérias. Existem aqueles que servem es que estéo mais bem colocados em campo, desnudando um aspecto solidario em sua vida, ou talvez uma velada autoestima deficiente. Talvez Nadine isolasse os aspectos afetivos e emocionais do nascimento para se proteger da avalanche de emocoes que eles despertam. Talvez para ela fosse duro. ou cruel demais, admitir que part0 e nascimento sao constituintes da vida sexual normal de uma mulher. Como poderiam amigos téo proximos tracar destinos tao dispares? Afinal, haviamos estudado na mesma universidade, cursado as mesmas disciplinas e recebido ensinamentos e conselhos dos mesmos professores. O que poderia ter nos distanciado tanto e, mesmo assim, ter mantido essa amizade e esse carinho intactos? Talvez tenhamos recebido informacoes semelhantes, mas que foram metabolizadas de forma diversa. D.a mesma forma que escutamos uma mosica dé‘forma diferente, também as palavras nos marcam de maneira desigual. Algumas dessas palavras foram, para mim, transcendentais, mas talvez Nadine estivesse .fechada para o sentido ultimo que elas escondiam no vao que separa cada letra. Com excecao da amizade que construi com meus diletos colegas, eu nao tenho recordacoes pessoais prazerosas do periodo em que estive na escola de medicina. Nao guardei dessa época muitos momentos de alegria ou contentamento. A tensao era 0 padréo mais constante. A competitividade exacerbada quase nunca cedia lugar a uma convivéncia claramente fraternal. As aulas nao eram exemplos de dida’tica, e mais serviam para estimular os alunos a procurar por si mesmos as fontes para elucidar as dL'Jvidas. Entretanto, durante essas aulas na escola médica, tive algumas surpresas que acabaram produzindo movimentos internos curiosos, apesar de absolutamente casuais. Um deles foi quando, a0 assistir uma aula da disciplina de ginecologia, me deparei com a afirmagao de um professor que, no afa de produzir uma visao abrangente e didatica das respostas sexuais humanas, nos apresentou uma divlsao do fenomeno em quatro etapas distintas: DESEJO — EXCITAQAO — ORGASMO — PERlODO REFRATAR IO.
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Nessa classificacao, o desejo se caracterizava pelos componentes mentais, afetivos e emocionais do processo de atracao pelo outro. A excitacao ocorria quando, ja estando esse desejo instalado, alteracoes se manifestavam no corpo, produzindo respostas especificas e variadas como ingurgitamento peniano ou lubrificacéo vaginal, aumenfo da frequéncia respiratoria, suor nas maos, etc. 0 orgasmo consistia no climax sexual, com liberacao de adrenalina e contracoes ritmicas de estruturas genitais. Seguia-se o periodo refratério, no qual a excitabilidade era diminuida e o organismo retornaria lentamente a0 seu funcionamento basal. Todos esses fenémenos eram controlados por horménios especificos, como a ocitocina, a adrenalina e a endorfina. Era uma tipica aula médica, em que a complexidade de ,fenémenos era apresentada graficamente e de forma esquema’tica. Os alunos copiavam esses esquemas simplificados e imaginavam poder, através deles, entender os intrincados mecanismos do desejo humano. Apesar de ser uma classificacao interessante e, por si 56, capaz de mobilizar a atencao, foi a aula da semana seguinte que me provocou uma atencao especial e atigou a minha curiosldade. Um professor, agora da obstetricia, veio nos dar uma aula muito inicial dos eventos que caracterizavam o part0 e o nascimento, sob um
prisma eminentemente fisiolégico. Comecou sua conferéncia nos informando que o processo de nascimento se dividia em quatro etapas essenciais. Nesse momento, meu rosto, que seguia sofregamente
as linhas que minha caneta desenhava no caderno de anotacoes a frente, se elevou e mirou o professor. Curioso, pensei eu, lembro-me de ter escutado ha poucos dias um fenomeno sendo descrifo com o mesmo niJmero de etapas que e/e agora descreve. O professor entéo explicou que 0 processo reprodutivo se compunha destas etapas distintas: GESTAQAO - TRABALHO DE PARTO ~ PARTO — PU ERPERIO. Lembrei!!, gritei eu em pensamento. Eu estava me recordando da aula de ginecologia e da resposta sexual humana. Folheei as paginas do meu caderno de anotacao para tras e encontrei os rabiscos da aula anterior. La estava a descricao das etapas do sexo. O nL'Jmero
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quatro, que constava em ambas as classificagoes, havia me despertado a atengao. Outra coincidéncia: eu havia numerado e colocado etapas uma em cima da outra em ambas as aulas. formando duas listas de quatro elementos. Apenas por brincadeira, dobrei as folhas do caderno de maneira a aproxima-las, deixando-as lado a
Iado. Quando completei esse movimento produziu-5e diante dos meus olhos uma imagem graciosa e arrebatadora que, passados muitos anos, eu ainda trago em minhas lembranoas. Ainda hoje avalio as repercussées impressionantes que ela produziu na minha maneira de enxergar tanto os fenémenos da sexualidade quanto 05 do nascimento humano.
PERlODOREFRATARlO
PUERPERIO
Quando olhavamos as Iinhas que se produziam e a ligagao de elementos constantes nos dois fendmenos tornava-se inevitavel a tentativa de procurar uma relagao entre elas. O primeiro nos mostrava DESEJO — GESTAQAO, e a primeira coisa que me veio a mente foram as crendices corriqueiras e a ideia de que as gestantes eram cheias de desejos caprichosos. Sorvetes no inverno, morangos fora da época, comidas apimentadas ou extravagantes, e mesmo os desejos aberrantes. como giz, cal, areia. etc. Também me surgiram diante dos olhos as imagens poéticas que nos descreviam as gestantes desejosas de vida, como mulheres impregnadas de uma seiva, um visgo, um sabor e um gosto de renovagao, de energia criativa, de vida e de desejo. Mulheres i/uminadas por uma aura brilhante de esperanga, como sempre me repetia Maximilian. Se ampliarmos um
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pouco nossa compreensao, poderemos perceber que uma gravida nos remete a um desejo que se concretizou, um gozo frutificado. A segunda linha nos apresentava a ligagao EXCITAQAO — TRABALHO DE PARTO. Ora, isso era voz corrente no jargao médico, que eu aos poucos ia aprendendo para poder usar como recurso de retorica pelo resto de minha vida profissional. O trabalho de part0 é a excitaga'o do processo de gestaoao. NOs mesmos diziamos, ao descrevermos as alteragoes iniciais do processo de nascer, que a excitabilidade uterina se principia de forma incipiente no periodo prodromico, no qual ocorrem as priméiras contragées, ainda sem ritmo e intensidade definidas. O trabalho de part0 é um despertar quimico e emocional; ele prenuncia e estabelece as energias
, necessarias para que o nascimento se processe. Por seu turno, a excitaoao, do ponto de vista fisico, é a preparagao para a conjugagao dos corpos e, pelo olhar emocional, a alteraqao consciencial para o
mergulho no obscuro universo do sexo.
A quarta etapa me parecia obvia demais: PERlODO REFRATARIO — PU ER PERIO. Assim como ocorre uma baixa da excitabilidade depois do sexo, os mesmo eventos de dessensibilizagao acontecem apos a expulsao do bebé. Também aqui a danga hormonal impunha as mesmas caracteristicas dos eventos anteriores. As flutuagoes dos hormonios, em especial adrenalina, ocitocina e endorfinas, eram
provocativamente semelhante nos dois fenémenos, o que aumentava a minha curiosidade pela similaridade entre os eventos, para mim tao apartados entre si quanto a noite e 0 dia. Mal sabia eu o quanto enganado estava. Mas foi a etapa anterior, a terceira na minha lista, que me causou a mais intensa perturbagéo. Quando coloquei os olhos na terceira linha e as palavras ORGASMO—PARTO se aproximaram, eu imediatamente recuei. Nao havia, para mim, como entender que partos e orgasmos pudessem guardar qualquer relagéo entre si. Sexo é prazeroso, pensei eu. Partos 550 o oposto; $50 regidos pelo signo da dor. Mas os mistérios das forgas libidinais estavam apenas se descortinando diante de mim. Havia que levantar a cortina e olhar o que se escondia por detras do meramente manifesto aos
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sent/dos grosseiros, como sempre me oferecia como conselho meu
colega Maximilian. Alguns anos passados, no livro A Good Birth; a Safe Birth, escrito em meados da década de 1980, Roberta Scaer e Diana Korte me mostraram, de forma mais Clara e evidente, a realidade do paralelismo entre os fenomenos sexuais e 05 mecanismos do part0. Para mim,
recém-formado na escola médica tradicional — a puritana guardia dos valores patriarcais de nossa sociedade —, este texto fol uma descoberta. O grande segredo se revelava: part0 e sexualidade apresentavam o mesmo arsenal de respostas psico-organicas. O capitulo segundo do livro se chama The Pleasure Principle — “O Principio do Prazer", e mostra como as alteracoes fisiologicas do trabalho de part0 se assemelham incrivelmente com as manifestagoes do encontro sexual. tal como figuras que se aproximam de seu reflexo no espelho. blag) havia mais como fugir de uma evidéncia que se tornava incontestavelz sexo e parto eram fenomenos de um paralelismo impressionante. mas vistos por angulos e circunstancias diversas. Ali se encontrava o mistério que desafiava milénios e que, pela sua significacao, poderia ameacar a estrutura social vigente. 0 segredo mais bem guardado do Universo, como me diria a parteira americana lna May Gaskin muitos anos depois. Ha alguns anos tive a felicidade de poder agradecer pessoalmente a Roberta Scaer pela possibilidade de ter lido esse livro. e pelo quanto ele me ajudou a compreender melhor a dinamica erética do nascimento. Mas, téo logo percebi a sexualidade escondida por detras dos eventos que cercavam o nascimento, entendi que as
repercussoes dessa “nova" visao do nascimento so poderiam ser drama’ticas. Ja nao seria possivel encarar o part0 como um evento
mecanico, artificialmente controlado em fungao das variaveis mecanicistas que me foram ensinadas na escola médica: feto, percurso e forca contratil. Para proceder tal transicao, seria necessario fazer o part0 retornar ‘a sua posicao ancestral na cultura, retira-lo dos dominios do profano e ressacraliza—lo. Através dessa maneira radical de compreensao, tornava-se muito dificil continuar a entender o
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nascimento humano de uma forma mecanicista, pela evidéncia inequlvoca de que a sexualidade extrapola claramente os limites da corporalidade. Tanto quanto no sexo, existe muito mais no nascimento humano do que O que se pode encontrar no corpo e suas medidas. Assim sendo, abria-se automaticamente uma nova dimensao no
nascimento, a saber, a indissociabilidade das emocoes e sentimentos com os eventos mecénicos perceptiveis e mensuraveis. Percebi, na minha pratica obstétrica incipiente, que muitas mulheres ficavam impossibilitadas deter seus filhos de uma forma mais natural porque algo a/e’m do corpo as impedia. Passei a entender também que a prépria sensagao dolorosa estava nitidamente ligada a maneira como elas “sentiam” o part0, na integralidade dos processos participantes. A‘Elementos muito mais sutis, mas nao menos poderosos, do que as células, tecidos e Orgaos atuam durante a pratica sexual e o trabalho de part0. Caberia a nos, assistentes do nascimento, descobrir onde estavam essas outras “forcas ocultas”, que, assim como no sexo, se alojavam em um estrato diferente da consciéncia superficial. Mas como abordar esses elementos? Como questionar os pilares positivistas de nossa sociedade colocando o nascimento no mesmo patamar da sexualidade, com todos os seus tabus e mistérios? Como algar o nascimento humano a essa posicao sem, ao mesmo tempo, e inexoravelmente. colocar a mulhere o feminine em evidéncia, uma vez que esses fenémenos ocorrem na intimidade de seus corpos? A proposta se mostrava complexa demais: encarar o part0 como encaramos o sexo nos obrigaria a uma reveréncia especial, para a qual nunca fomos habituados. Olhar a cena de part0, escutar seus sons e seus gestos como movimentos plenos de sentido erético nos parece diruptivo e nos levaria a questionar nossa prépria sexualidade. Panico. E impossivel adentrar esse novo universo aberto pela dimensao sexual do part0 sem colocar em cheque toda a estrutura autoritaria que governa o nascimento humano. Seria inviavel introduzir uma mudanca conceitual de tal magnitude sem causar uma grave conturbagao, pols ela questiona a prépria estrutura patriarcal da sociedade.
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As marcas do modelo tecnocratico contemporaneo na atencao ao part0 podem ser vistas na maneira fria e asséptica com que conduzimos o nascimento nos hospitals do ocidente. Nos nos aprofundamos nos tecidos, no obscuro recondito das células, nos micleos e até na intimidade dos atomos, para assim fugir nosso olhar da evidéncia avassaladora do erotismo que emana do corpo de uma mulher parindo. Fechamos nossos olhos, impondo~nos a pier das cegueiras. Calamos no peito a clareza das palavras que nos chegam aos ouvidos. Ensurdecemo-nos aos gemidos, aos gritos, a0
éxtase da vida que finalmente brota da umidade vaginal. Para nés, parece insuportavel a ideia de que a existéncia se instala através de um gozo, na languidez de um corpo que se contorce, na dL’ibia penumbra que conjuga — ou separa — dor e prazer. Fugimos da cena tapando os corpos, cobrindo os rostos, desviando nosso olhar e colocando natc‘arne o bisturi que, por fim, nos confirma: “Nada ha’ que escape aos meus sentidos. Nada além do rubro liquido que mancha minhas macs". Suspiramos aliviados, mas apenas até a préxima mulher se acercar de nés e nos mostrar, no rosto, o sorriso enigmatico onde se esconde o segredo. E nossa ferida voltara a sangrar. O encontro com a dinamica erética do nascimento me obrigou a adentrar outra esfera de compreensao do fenomeno da parturicao. Como uma descoberta estarrecedora, passei a traduzir todos os fatos que observava durante o trabalho de parto, part0 e puerpério como eventos plenos de significado sexual. A forma como eu conversava com as pacientes, e a compreensao do nascimento como um evento muito maior do que aparecia a nossa visao superficial, foram as modificacées imediatas. Entretanto, ainda carecia da compreensao de “como" auxiliar essas mulheres, oferecendo-lhes uma abordagem que pudesse intensificar suas potencialidades. Minha ansiedade era por descobrir a chave que poderia fazer abrir as portas que eu percebia estarem ainda fechadas pela imposicao de regras, protocolos, proibicoes e determinacoes, na maioria das vezes criadas para favorecer as instituicoes e o trabalho dos profissionais, e nao para auxiliar a mulher que estava parindo. Como agir para que brotassem
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as energias adormecidas do nascimento, sufocadas por um modelo
que se negava a admitir sua dinamica sexual e criativa? A resposta para isso levou anos para surgir, mas a encontrei despindo-me dos preconceitos e aceitando os ensinamentos que as circunstancias graciosamente me ofereceram. Talvez nessa divergéncia fundamental estivesse contida a chave da nossa distancia. A dificuldade que Nadine mostrava em vislumbrar os conteL'Jdos emocionais contidos no fenémeno da parturicao, junto com todas as questées fisiolégicase patologicas igualmente envolvidas, fazia com que tivéssemos olhares bastante diferentes sobre o mesmo evento. Entretanto, Nadine percebia em minhas palavras, e principalmente nas de Max, um contraponto estimulante ,ao modelo médico que ela abracara. Por essa razao, e por outras inconfessas, ela sempre admirou as conversas que tivemos, e sempre dizia que éramos os seus “anjos preferidos". Nadine ja estava sentada a minha frente na cafeteria do hospital. Seus olhos azuis, a renda delicada de sua blusa, o batom suavemente combinando com o rubor discreto do seu rosto, faziam da cena um quadro especial. Max, esbaforido e descabelado, ja estava com o dedo levantado, acenando freneticamente para o garcom. Havia tanto a conversar, e tao pouco tempo, pensei eu.
Caminhos Divergentes l 43
2 - Duas Vidas
Max voltou a sentar-se ao meu lado depois de buscar mais guardanapos. Era um voraz devorador de pastéis, os quais ele chamava de 0 terceiro alimento mais importante na histo’ria do mundo. O primeiro, como todos sabem, é a Pastelina, e o segundo, o Miojo. — Minha filha me contou ontem uma histéria interessante ~ disse ele. Barbara, a filha de Max, era médica recém-formada. Alias, foi a rformatura dela que ensejou nosso reencontro. Ela tinha a vivacidade do pai e a beleza sisuda da mae. A esposa de Max era uma professora da universidade, a quem eu conheci durante a residéncia. Tinha feigées fortes, teuténicas e um jeito sério, quase desconfiado. Era muito ciumenta, o que deixava Max muitas vezes acabrunhado. — Conta ar’ — disse Nadine. — O namorado da minha filha estava aprendendo como usar um programa especr'fico de computador para gerar imagens graficas tridimensionais. Para tanto ele precisava fazer uma série de calculos sofisticados, tabelas complicadas e tal. Enquanto ele testava e se entusiasmava com a possibilidade de criar formas geométricas dessa maneira, minha filha estudava para um seminario da residéncia. Por fim, depois de muitas elaboraqées, ele criou uma bolinha que aparecia e pulava na sua frente como se fosse dotada de gravidade. Isto é, os pulinhos ficavam mais curtos a medida que a bolinha perdia impulso. Ele ficou todo bobo com sua criagao, e eu achei que era realmente algo admiravel, porque havia acompanhado sua determinagao em criar o objeto dotado de movimento. AI' 0 pobre coitado teve a pier de todas as ideias. Chamou sua namorada, a minha filha, para que ela visse o que tinha feito. Ela se afastou um pouquinho dos livros de medicina e meu genro Ihe explicou superficialmente o que havia criado, e come 0 fez. Abriu a tela do computador e rodou o programa.
Duas Vidas I 45
Siléncio: ambos olhamos para ela com expectativa. Ela entao falou: — Sim. Entendi... Uma bolinha pulando. Qual a novidade? — Eu e o meu genro cal'mos na gargalhada, apesar de parte da grace estar em que nos ja sabiamos que ela ia dizer aquilo mesmo.
O trabalho de um dia inteiro, uma pilha de calculos, a decisao de como sombrear a bolinha, o calculo do préximo pique (exponencialmente menos intenso que o anterior) e o comentario foi apenas uma bolinha que pu/a. — Pois essa sua histéria, Max, me fez refletir sobre a minha grande tristeza na obstetricia — disse eu. — Eu chamo esse ressentimento recidivante de As Duas Vidas. E faz alguns dias eu tive a possibilidade de pensar sobre isso mais uma vez. Posso contar a histéria para vocés? Meus arnjgos acenaram positivamente com a cabega. Terca-feira passada, uma paciente adentrou o consultorio aos prantos, acompanhada do marido. Depois que eu consegui que se acalmasse um pouco, ela jogou a minha frente o motivo de sua dor. Uma ecografia. Amalia é uma paciente de 40 anos, casada com JUIio. Alguns meses atras, ela havia trazido outra ecografia, mostrando uma gravidez gemelar. O grande sonho de ser mae pela segunda vez havia
sido conquistado. Sua filha, de um casamento anterior, ja tinha mais de 16 anos, e ela estava a quase um ano tentando uma nova gravidez. A confirmacao da gemelaridade, mesmo com a extensa explicacao que ofereci sobre os riscos inerentes a uma gravidez multipla, nao a deixou menos entusiasmada. Ela estava confiante, exultante. feliz e
motivada. A gestacao havia transcorrido de forma tranquila até entao. Os gémeos estavam bem posicionados, crescendo adequadamente,
sendo o maior deles aquele que nasceria primeiro. Duas semanas antes, haviamos “conversado” longamente com eles no consultorio, e escutado seus respectivos coracoes. Mas, dessa vez, o clima havia mudado.
46 | Entre as orelhas
— Um dos bebés nao esté bem, Ric. Fui fazer a ecografia que vocé solicitou e o ecografista me disse que um dos bebés esta... Ela nao quis dizer a palavra. Peguei a ecografia e avaliei. Trinta e quatro semanas de gestacao. O “Gémeo 1” estaria com aproximadamente dois quilos, cefalico, dentro de sua prépria bolsa e corn sua prépria placenta. Movimentava-se com despudor, e seu coracaozinho pulsava com desenvoltura. Seu irmao, entretanto, era 56 siléncio. O mesmo siléncio gelado
das injusticas; o breu imovel dos telefonemas na madrugada. A gelidez que acompanha as partidas; o vécuo que sobra nos abandonos. Ele havia morrido dentro do fltero. Nao havia movimento, nem batimentos em seu peito. Seu tamanho agora era visivelmente menor que 0 do irmao. Nenhuma vitalidade emanava daquele corpinho; nenhum sopro de vida o aquecia. Senti ganas de mudar o destino olhando para sua imagem pétrea no papel brilhante da ultrassonografia. Meus dedos passaram pelos chuviscos da imagem, mas nada aconteceu. — Diga para mim, Ric, o que houve com meu bebé? A dor das palavras amargas me subiu pela garganta, tal qual um fel de azedume corrosivo. Lembrei-me de suas palavras, Max, na residéncia, quando me falava das duas frases mais complexas e inconstantes do discurso de um médico. A primeira era “na”o faga nada”, pois ela nos remetia a um plano diferente da nossa moldagem médica: o plano da aceitacao, do seguimento de um fluxo preestabelecido pelas forcas adaptativas da natureza e que nos insinuava uma inutilidade ou. ao menos, uma nao interferéncia. Nao
somos produzidos em série na escola médica para dizer isso. Essas palavras, quando ditas, saem metalicas de nossa boca, como que mal formatadas e pouco treinadas. A segunda frase “maldita” era a que eu teria de dizer para minha paciente e seu marido. — Eu na'o sei — falei eu, tentando inutilmente disfarcar 0 malestar e o desconforto de dizé-lo. — Eu nao sei o que houve com ele. Vocé nao tem nenhum problema de sadde. Nao tem diabete. hipertensao, sifilis, AIDS, transtornos do colageno ou outra doenca
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qualquer. Seu outro bebé esta muito bem. A possibilidade de transfusoes feto-fetais é muito menor por serem duas placentas e duas bolsas amnioticas. Nao aparece nenhum descolamento
placentario, e nao ha nenhum acidente de cordao aparente. Eu
realmente nao sei o que houve. Max, vocé mais uma vez tinha razao. Nao ha sensagao pior de impoténcia para um médico do que reconhecer a sua ignorancia. O siléncio que fica depois dessa confissao nao consegue ser preenchido. Olho para os rostos que pedem uma explicaoao, mas me envergonho de nao a ter. Uma sensagao de estranhamento desconfortante. E como se me jogassem na cara: “Mas, se eu vim a0 seu consulto'rio para ter respostas, e se 0 senhor na'o as tern, o que estou fazendo
aqui entao?’
Minha paciente nao conseguia esconder o panico e a dor. A cena‘me remeteu. aos meus fantasmas adormecidos. Os monstros sal'ram da toca e me cumprimentaram como quem saL'Jda um velho conhecido. — Estamos aqui — disseram eles — para atormentar vocé. -‘ — Vou repetir a ultrassonografia. Sei que a chance de haver um erro é minima, mas nao posso perder essa oportunidade. Sei de casos em que... Eles concordaram, e o fariam mesmo que eu nao tivesse contado alguns casos pontuais de falhas de ecografias. Sairam do consultorio mais conformados, mas igualmente pesarosos. Mas os monstrinhos estavam apenas se acordando. Minutos depois, entraram o pai e a irma de JL'IIio, marido de minha paciente. A irma é advogada e invadiu meu consultério completamente transtornada. Disse que queria saber por que um dos bebés havia falecido e como eu nao havia previsto isso. Disse, inclusive, que estava pensando em me processar, porque hoje em dia a medicina tern tantos recursos e e’ inadmissive/ que... Senti minhas vistas escurecerem. Minhas maos comegaram a tremer. O olhar da mulher era de fUria incontida. Algum tempo depois, fiquei sabendo dos seus traumas pessoais sobre atendimentos
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médicos, quando quase perdeu a mafia por um suposto “erro médico".
Mas naquela hora eu estava cego, de dor e indignagao. Olhe i a mulher nos olhos e disparei faiscas de celera. Desfechei toda s as minhas convicgées e as minhas dores passadas, tudo misturad o corn pala— vras rr’spidas e duras. Terminei meu discurso com a dete rminagao de expulsa-la da minha sala, mas nao foi necessario, porque ela mesma se retirou, deixando-me com seu pai, de 78 anos. Ele se manteve em siléncio o tempo todo, so falando para solicitar que a filha tivesse calma. Quando ficamos a $65, eu pedi desculpas pelos meus exag eros. Ele sorriu e me respondeu: — Doutor. Eu sou pai de 11 filhos. Minha mulher também perdeu gm dos gémeos quando estava gravida, mas naquela época nao havia exames e 56 soubemos quando o bebé nasceu, ja sem vida. O outro menino se desenvolveu sauda’vel e hoje é um adulto. Eu entendi o que o senhor falou. Sei que existem coisas que estao, po r enquanto, além da nossa compreensao — completou ele. Sorriu um sorriso paternal e aceitou 0 char que lhe ofereci. A volta do casal apenas confirmou a ecografia anterior. O feto menor, que estava em apresentagao pélvica, nao apresent ava nenhum sinal de vida. Nao havia mesmo nenhuma explicagao qu e pudesse brotar dos exames ultrassonogra’ficos. Eu teria que me cont entar com as especulagoes. — Acho melhor irmos para 0 hospital. Nao sei o que ocorre u com o seu bebé, e precisamos cuidar para que tudo ocorra adeq uadamente com vocé e seu outro bebé. Eu acho que estamos di ante de trés alternativas: a primeira é fazer uma cesariana agora, para “sal var” o outro bebé de uma ameaga que nem sabemos qual e. A se gunda e' internar, avaliar o bebé que esta' vivo, maturar o pulmao do bebé com corticosteroides e interromper apos essa preparagao. A dltima alternativa seria nao fazer nada e aguardar esse bebé chegar a maturidade pulmonar por mais algum tempo. N50 foi necessario muito tempo para tomarem uma deci sao. Comunicaram-me que nao lhes parecia correto correr para realizar
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uma cirurgia sem antes usar um recurso para maturar o pulmao de prematuros. TInham medo de realizar uma cirurgia e depois o pequeno néo sobreviver na unidade de neonatologia. Por outro lado, nao havia condicoes emocionais para aguardar sem nada fazer; as pressées e
cobrancas seriam insuportéveis. A decisao estava tomada: rumariam para 0 hospital para realizar uma cardiotocografia, que é uma avaliacao gréfica dos batimentos cardiacos do bebé que estava vivo, e fazer a primeira dose de betametasona. A pem'Jria de ouvidos compassivos na area da humanizacao nos faz valorizar os poucos companheiros de ideal de uma forma muito
intensa. Falei com colegas cujas palavras me reconfortaram como um banho de cachoeira em uma tarde de calor sufocante. Meus amigos distantes concordaram com as condutas e alternativas apresentadas e solidarizaram-se com minha angflstia. Meu animo
melhorou imediatamente.
.
No hospi'ta‘l‘, eu avaliei 0 MAP, que é a monitorizacao eletronica dos batimentos cardiacos do feto: excelente. Boa frequéncia, variabilidade e adaptabilidade aos movimentos fetais. Por outro lado, curiosamente apareceram algumas contracoes, uma timida dinémica uterina. Por qué?, pensei eu. O que significariam essas contracé‘es? A atividade parecia estar relacionada a um determinismo organico de eliminar, por uma irritabilidade, algo que estaria melhor fora do L'Itero. Talvez estivesse ai uma insinuacao de que realmente era chegada a
hora de nascerem. Marquei a cesariana para as 13 horas de quinta-feira, exatas 48 horas apés a primeira dosagem de betametasona. Avisei o anestesista, o pediatra e minha auxiliar cirL'irgica. No dia seguinte, realizei mais trés monitorizacées fetais, todas excelentes. Minha maior preocupagao continuava sendo o estado emocional de Amalia. que parecia centrado, pelo menos aparentemente. E Obvio que os anos de consultorio me ensinaram a mic confiar plenamente na superficie iluséria das aparéncias. Vulcoes prestes a explodir se escondem frequentemente sob a face tranquila de lagos bucélicos. Sabia que
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ela estava tensa, mas tentava segurar a barra de suas angflstias para nao transtornar o resto da familia. Ela era 0 esteio, em cujo olhar todos procuravam firmeza e seguranga. e ela se portou de forma
exemplar. A Ultima monitorizacao, entretanto, mostrou com mais intensidade o quadro que eu ja havia percebido anteriormente: algumas contracoes esparsas e irregulares, porém constantes. Pensei se nao haveria a possibilidade de trazer esses bebés ao mundo pela via menos agressiva de um part0 normal. Eu nao podia fugir dessa possibilidade e tinha que lhes expor essa alternativa, que surgia da prépria aparicao inesperada da dinamica uterina. Falei com o casal sobre essa possibilidade. Expliquei que me manteria fiel as suas decisc'ies, mas que a possibilidade de um part0 ”normal deveria ser considerada, porque possivel e exequivel. Esclareci a ideia de dedicar um cuidado intenso as condicoes fetais, mas que nutria a esperanca de que o part0 de um bebé de dois quilos tenderia a ser répido e facil, desde que tivéssemos as contracées adequadas. Eles me escutaram com atencao. No final, Ama’lia respondeu: — Sei da sua preferéncia pelo part0 normal e concordo com ela, Ric. Na verdade, esta foi umas das razoes por nos mantermos sob seu cuidado. Eu aceito essa proposta, e, se eu entrar em trabalho de part0, aceito a ideia de cancelar a cirurgia e tentar um part0 vaginal. Sai da sala pensando: 0 qué, por Deus, eu ganho com isso? Por que eu fiquei fe/iz com a possib/Iidade de assistir a um part0 normal, quando existe gente na familia me ameacando? E se a/go acontecer? E 56... N50 conseguia escapar da minha sina de encrenqueiro. Eu sabia que um dos bebés tinha morrido, mas que o outro sempre se comportou de forma exemplar. Sabia também que a melhor via seria a vaginal, para diminuir a morbidade cirL'irgica. Eu nao queria induzir esse part0, para nao “agredir” com ocitocina um Utero que nao desse sinal de atividade. Mas, se ela entrasse espontaneamente em trabalho de part0, por que nao aproveitar? Sua dinamica agora era de duas contragoes fraquinhas a cada 10 minutos, que mal podiam ser distinguidas de uma banal contragao de Braxton Hicks, que sao
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as contragoes normais da gravidez, nao dolorosas e que servern como uma espécie de “treinamento” para o trabalho de part0. Sai do seu quarto e encontrei a enfermeira no corredor. Era uma
irma de caridade espirituosa e brincalhona que trabalhava havia décadas no hospital. Perguntei-lhe se ela acreditava no “poder das oragoes”. Ela sorriu e disse: “E claro, doutor!". “Entéo”, respondi, “ore esta madrugada para a nossa paciente entrar em trabalho de part0". Ela fez um sinal de positivo e deu meia volta, dizendo um “deixe comigo”. O telefone tocou as trés horas da manha. Acordei de sobressalto, porque nessas circunstancias minha preocupaoao me impede de aprofundar adequadamente o sono. A irma-enfermeira me disse, quase
rindo, que a paciente estava com trés contragoes medias a cada 10 minutos. Ainda sonolento, mas entusiasmado, pedi entao que a encaminhassern até o oentro obstétrico e fizessem uma nova monitorizagao. Nao me contive e agradeci as suas preces, ao que ela agradeceu, com notéria sinceridade. Cheguei ao hospital poucos minutos-apos as seis horas da manha. Confirmei para o casal a alternativa, e Amalia foi mais uma vez firme: queria tentar. Seu marido confirmou-me a sua concordancia com a escolha da esposa. Isso me tranquilizou. Cancelei a cirurgia marcada para as 13h e informei aos meus auxiliares da mudanga, mas deixei claro para eles que os chamaria se qualquer alteragao se apresentasse. Eles se prontificaram e, como se tivessem combinado, todos me disseram “boa sorte”. Fiz um toque e percebi que o colo estava apagado em 70%, um bebé alto e um centimetro de dilatagao. Mesmo nao sendo muita coisa, o colo estava alterado, e até alguma
dilataoao, mesmo que timida, ja' havia ocorrido. A monitorizaoao realizada no inicio da manha mostrou o mesmo padréo de todas as anteriores: boa frequéncia, variabilidade, adaptabilidade, etc. Fiquei mais tranquilo, mas me mantive fazendo avaliaooes a cada 15 minutos. Algumas vezes, vinha a minha mente a ideia de que os produtos de degradaoéo do irmao morto poderiam estar contaminando o pequeno sobrevivente. Em outras horas. me
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Iembrava de relatos de gestagoes que se mantinham absolutamente inalteradas por meses a fio, mesmo com a morte de um dos conceptos. Tentava me acalmar conversando com Amalia, que sempre
me passava a devida confianga nas decisoes tomadas. Mesmo que eu percebesse em seu marido certa preocupagao, em Amalia sobravam determinagao e seguranga. Entretanto, para minha frustragao, as contragoes, apesar de terem uma frequéncia muito boa, nao tinham a devida intensidade. O rosto de minha paciente nao se modificava durante as ondas contrateis, como me acostumei a ver nos ultimos 20 anos atendendo trabalhos de part0. Eram suaves demais, frageis demais, fugazes em excesso. O que fazer? No inicio da tarde, fiz um novo toque: dois centimetros de dilatagao, cefalico, colo apagado em 80%, apresentagao alta. Os exercicios, o descolamento de membranas, os Chas de canela, as massagens mamilares e a estimulagao nos pontos de acupressura nao haviam sido suficientes para aumentar a foroa contratil. Pouca modificaga'o, pensei. Por volta das 16h, tomei uma decisao: ou eu incremento essa dinamica ou é melhor desistir. Vou apelar para um soro com ocitocina,
mas para isso terei que usar uma monitorizagao continua. Néo ficarei tranquilo de corrigir dinamica com ocitocina sem o recurso da monitorizaoao em um caso de morte de um gemelar. Fol o que fiz. O soro foi instalado as 17 horas. As contragoes melhoraram um pouco, mas néo o quanto eu queria. Nesse momento, Zeza chegou ao hospital para me ajudar.
Zeza, como sempre, se preocupa comigo. Sabe o quanto sou visado e perseguido, e soube também, por mim mesmo, das ameaoas que eu havia recebido de um familiar da minha paciente. Zeza veio a este mundo para me ajudar, e isso é realmente um fato. Preocupouse com o fato de eu estar, mais uma vez, fazendo algo correto — tentando um parto vaginal em uma circunstancia em que a maioria dos meus colegas ja teria desistido —, mas que poderia ser cagado pelos donos do saber médico sem nenhuma piedade.
Duas Vidas I 53
— Ela val conseguir — disse para Zeza. — Eu tenho certeza, confio nela. — Vocé é sempre otimista demais — disse ela com um sorriso triste. - Mas, tudo bem. Vamos Ia. As contragoes melhoraram, mas nao conseguia ver nenhuma mudanga Clara na expresséo da paciente. Faltava-Ihe a “facies ocitocinica". como me dizia sempre Max, nos idos tempos da escola médica. Perto das 20h, tive a ideia de pedir que Zeza a levasse ao chuveiro para relaxar em um banho quente. Achei que ela poderia
estar tensa em demasia, e que isso estivesse interferindo na liberagao do coquetel hormonal do part0. Um palpite, mas, bolas, o que eu teria a perder? Desconectei a parafernélia da monitorizag'a'o e pedi que fosse com Zeza para o chuveiro. Durante o banho, sorvl minha vigésima caneca de café. O amargor me .Vcorroia a garganta, equestionei porque continuava a tomar aquele café sem ter com isso nenhum prazer. Muitas vezes, realizamos rituals francamente desprazerosos, mas que mesmo assim cu mprem sua fungao de apaziguar temores, pela repetigao enfadon ha de comportamentos. O café criava a saborosa ilusao de que, enquanto eu o estivesse tomando, o mundo pararia, ao aguardo da minha intervengao. De cada gole sorvido eu imaginava que tiraria a clarividéncia e a sabedoria para saber como agir. Zeza entrou na sala de estar médica e me contou que achava que a bolsa havia se rompido, pois viu um llquido diferente descendo pela perna. Fui até o banheiro e Amalia me confirmou que desceu “algo”. Um liquido e uma coisa parecida com "catarro". Mal terminou de me dizer isso, e sua face se contraiu. Juntou os dentes e franziu o cenho. lnstintivamente coloquei a mic em seu ventre e percebl uma contraqéo forte e firme. E issol, pensei. E exatamente o que eu queria. E/a rompeu bo/sa e isso deu intensidade a's contragoes. Era o “sinal” que eu esperava. Olho para Zeza e digo: “Eu sabia". Ela da de ombros, tentando diminuir um pouco meu entusiasmo. As contragoes dai em diante ficaram “punks". Sentia em cada contragao a forga dos masculos se retesando. Ela agora gemia, sentia.
54 l Enlre as orelhas
Seu corpo vibrava em cada onda. Eu Ihe pedia que nao reclamasse das contragoes, porque eu passara 0 dia inteiro rezando pela sua
chegada. Ela ria, mas so 0 tempo de uma nova onda chegar. Seu marido silenciosamente a ajudava, amparando durante cada contragao. As proximas trés horas foram de intensas contragées. Passando da mela-noite, resolvo fazer outro toque e percebo que a dilatagao estava completa, com o bebé quase “no visual”. E/e vai nascer de part0 vaginal, pensei. Ela va/ conseguir! Penso nas horas todas de
esforgo que juntos passamos no hospital e penso que, afinal, valeu a pena. Coloco-a de cc'Jcoras na mesa de part0 e oriento—a como agir durante as contragoes. Mais alguns esforgos e pego que ela coloque a mac sobre a cabega de seu filho que brota da vulva. Senti que naquele momento ela “conectou”. Caiu a ultima ficha; ele estava nascendo mesmo. Algumas forgas a mais e... la estava ele. Nascia seu filho, com um lndice de Apgar 8 e 8, que é a avaliagao que fazemos do bem estar de um bebé ao nascer, pesando 2005 gramas. Entrego rapldamente o bebé a um ansioso pediatra, que avalia que o pequenino estava absolutamente bem e saudavel. Respiro aliviado; Zeza me olha com o mesmo olhar de quem largou uma mochila de 200 qullos. Agora vinha a tarefa penosa do part0 do irmao que nao vingou. A bolsa se mantinha lntegra, e aguardel pacientemente as préximas contragoes. Passou-se mais de meia hora até que o irmao viesse, junto com a ruptura violenta da cémara amniética. Nao apresentava nenhuma alteragao fl’sica grave ou aparente. Era bem menor, com 1300 gramas, mas tinha os mesmos tragos de seu parceiro de viagem, e era um menino também. Mostrei aos pais as feigoes, a formagéo, os pés, as maos, o rosto. Percebi que eles conseguiram se despedir e cumprir uma etapa importante do luto. Fol entao que meus deménios mais birrentos resolveram aparecer. Logo apés o segundo part0, minha paciente relatou estar tonta. Disse que n50 estava se sentindo bem, e que a sensagao era parecida
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com a que sentiu apés 0 parte cle sua filha, ha 16 anos. Senti que ela estava soltando as rédeas; depois de trés dias de tensao e angustia, agora ela podia se dar ao direito de ter medo, de chorar e até de
desmaiar. Percebi que o seu sangramento era demasiado. Utero grande, placenta fragmentada. As duas placentas estavam grudadas, indistinguiveis uma da outra. A parte do feto que nao sobreviveu estava amarronzada e mais friavel, e se rompia com facilidade. Fiquei muito tempo esperando a saida da placenta e me determinei a nao tracionar, para evitar qualquer retencao de pedacos de placenta no interior do utero. Ela desmaiou. Percebi que seu Litero havia sangrado mais do que o esperado. Colocamos suas pernas elevadas, mas nao fol suficiente para fazer com que reqobrasse os senti_dos.-Comecei a infundir liquidos e ocitocina. Ela estava com a presséo baixa demais e palida. Seu rosto foi perdendo a cor. Temi pelo pior: quem sabe ela estivesse com uma atonia uterina pos-parto, e/ou este Utero nao estivesse se contraindo pela
manutencao de restos placentarios? Havia a necessidade de agir rapido, prontamente. Chamei o anestesista que chegava para a cesariana de um colega e pedi—lhe que anestesiasse minha paciente para uma curagem e curetagem pos-parto. A pressao de Amalia chegou a 60 x 30. Fiz a curetagem com presteza, nao saiu nada de material, apenas coagulos pequenos 8 material amorfo. 0 (Hero se contraia fortemente, para depois relaxar em seguida. Padrao “sanfona”. Sal da sala de cirurgia e resolvi infundir um concentrado de hemacias. Minha hipotese, aquela altura, era de que ela néo tinha nenhuma razao mecanica para se manter sangrando, mas que as manifestacées hemodinamicas e pressoricas eram devidas ao sangue que ela ja’ havia perdido. Se eu conseguisse repor sangue e volume, ela melhoraria. Meus fantasmas me rondavam. A sombra da angflstia de anos atras me perseguia.
56 l Entre as arelhas
O Litero se contraira e parara de sangrar, mas a pressao estava em 80 x 40 e nao conseguia subir além disso. Eu apertava o frasco
de papa de hemacias, tentando fazer o sangue fluir mais rapido. Zeza ficava massageando-lhe o Utero, que teimava em ficar flacido, mesmo sem sangrar. Eu olhava para o aparelho de pressao e rezava que a préxima medida fosse melhor. Ficamos estimulando o Utero e avaliando a melhora da pressao das 3h as 6h30min. Somente depois de termos certeza de que o Litero nao mais sangraria e de que a pressao estava estabilizada, fomos embora. Zeza foi direto para 0 hospital onde trabalha, sem
conseguir descansar sequer urn minuto. O pesadelo parecia ter terminado. A tarde, Amalia ja estava no quarto. Sua pressao havia normalizado, mas ela ainda estava muito fraca e debilitada. Quando
estava conversando com eles, a familiar que havia me ameacado apareceu, mas com um semblante muito mais ameno. Cumprimentoume com um sorriso envergonhado e tentou dizer, com sua expressao, que havia entendido as minhas opgoes e as alternativas que eu havia oferecido ao casal. Percebi, naquele momento, que as pressoes haviam se encerrado. Voltei para casa e contei a revisao pos-parto da tarde para Zeza, assim come 0 encontro com a advogada que havia me ameacado. Zeza, naquele momento, desabou em prantos. Ela chorou as lagrimas que sufocara durante nossa tensao no hospital. Agora ja podia liberalas. Disse que nao era aceita’vel Viver sob ameacas, que nao era justo receber das pessoas agressoes quando tudo o que se quer é auxiliar e fazer aquilo que acreditamos ser 0 mais correto, adequado e seguro. Viver em urn mundo de tecnocracia irracional e interesseira é muito duro para quem quer se postar ao lado dos pacientes. Disse a ela que eu sabia bem o que era isso, mas que nao conseguia vislumbrar alternativa. Ser fiel a si mesmo era 0 Unico caminho que eu conseguia perceber para um médico. Engrossar a fileira dos que teriam operado a paciente para “nao se incomodar" seria desonesto e cruel.
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Pensei que poucas pessoas conseguiriam perceber o esforco por tras de uma conduta como a que tomamos. Algumas so enxergam a bolinha que a filha de Max ingenuamente descreveu. Outras conseguem vislumbrar as dl'Jvidas, o sofrimento, o peso das decisoes e as apostas que fazemos, sempre buscando o melhor para quem
nos confiou sua gravidez carregada de sonhos. E ainda ha' aqueles que ilusoriamente acham que existem garantias na vida, ou caminhos determinados em que nao ha ddvidas ou angl’Jstias. Quando vi minha paciente no quarto, ainda cansada, recuperando-se e tomando café, pensei que somente se ela tivesse outra vida seria possivel comparar as experiéncias que ela vivenciou naquele dia. Se eu tivesse optado pela cesariana, pensando muito
mais na minha seguranca do que na de/a, ela provavelmente teria o mesmo sangramento, ocasionado por um utero hiperdistendido. Por outro lado, teriaacrescentado a perda de um dos gémeos a agressao emocional e clinica de uma cirurgia. com uma repercussao hemodinamica muito pior. As estimulacées manuais que Zeza fez no seu Utero nao poderiam ser feitas da mesma'forma em um abdome recém-operado. Ela nao teria conseguido amamentar seu pequeno bebé, com sonda na bexiga e cheia de drogas a Ihe percorrer as veias, como analgésicos, antiinflamatérios e morfina. Seu filho, em vez do massageamento pela passagem no canal de part0, teria sido abruptamente retirado pela via cirdrgica, e provavelmente n50 estaria mamando tao tranquilamente como eu vi na visita ao hospital. E dificil, e as vezes impossivel, que as pessoas percebam todos os angustiantes célculos e progressoes geométricas por detras das bolinhas que pulam na tela de um computador. Talvez seja igualmente complexo entender a tortura das decisoes que precisam ser tomadas em um quadro de adoecimento, morte ou dor. Mas me parece fundamental que procuremos sempre tentar entender o esforgo
empregado nessas tarefas, para que nao seja necessa’rio viver uma “outra vida" 56 para saber como seria se outra tivesse sido a escolha. Max me olhou com uma espécie de carinho paternal. Eu sabia que ele entendia essas dores e esses dilemas na vida de um médico.
58 | Entre as orelhas
Entretanto, nada falou. Limitou-se a terminar seu pastel e me sorrir. — Por que vocé acha que esse gémeo faleceu, Ric? — perguntoume Nadine.
— Semanas depois eu recebi o laudo — respondi. — O diagnostico foi bem claro: inserga'o ve/amentosa do cordao. O cordao umbilical se inseria através dos vasos umbilicais praticamente sem protecao da geleia de Warthon, aquela “gelatina” que envolve e protege os vasos sanguineos do cordao umbilical. Provavelmente, os giros do bebé dentro do Utero acabaram provocando um estrangulamento desses vasos anormalmente inseridos na placenta, ocasionando faléncia do transporte de oxigénio e o consequente Obito do bebé. — Que pena — disse Nadine. — Sim, que lastima — exclamou Max. — Entretanto, vamos comemorar pelo bebé que sobreviveu e saudar o fato de que ele entrou neste mundo através de um ato de coragem, determinacao, bom senso e, por que nao?, um pouco de rebeldia. — Patu Sale/7 — disse Nadine
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3 - Das Dores
Max olhou para os lados como que a buscar um espago qualquer
entre as Frestas dos vidros no bar do hospital para que sua inspiragao entrasse volitando e pousasse entre os cachos de sua cabeleira. Olhava urn ponto distante e perdido no infin/to césmico, Ia onde habita o astronauta Roger ladeado pela gata Morgana e Smart Selenith. Apertou as palpebras como a sorver a fumaga de um cigarro imaginario e me disse: — Nenhuma delas nasce assim, Ric. Nao acredito na ideia de que um mecanismo tao sofisticado seja criado pronto, como um sistema acabado. Nao. Seria simples demais, e isso contraria as leis sabias do processo evolutivo. Nenhuma mae nasce assim; uma mae se constréi, é forjada no calor de suas dores, suas angflstias, suas fraquezas, suas alegrias e suas superagoes. Nadine me olhou com certa impaciéncia. Ambos sabiamos aonde aquela conversa poderia nos levar. Nadine acreditava na ideia de que qualquer desisténcia de usar a tecnologia era uma confissao de masoquismo. Acreditava, como toda a minha geragao de colegas, na supremacia do recurso tecnolégico. Nossas crenoas foram firmadas na capacidade transcendente da maquina de superar a
deficiéncia e 05 limites do humano. Robos viajavam entre nossas lembranoas infantis e nossa vida cotidiana. Per/g0, perigo, gritava o sa'bio robo perdido no espago sideral; Mais a’gil, mais forte, mais veloz propagandeava o criador do Homem de Seis Mi/hoes de Do/ares. Impossiveis de distinguir de um ser humano normal, os replicantes de Blade Runner nos afirmavam que o mundo produziria algo quase indestrutivel, mais forte, inteligente e dotado de linguagem. Pior:
plenos de uma sabedoria rara entre seus préprios criadores, corriam em busca da resposta derradeira; a morte era seu limite, mas também
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sua fixagao, e nos deixaram a mensagem de que a vida é fabulosa exatamente por sua fragilidade. Nadine tinha mais de 40 anos e nao havia passado pela maternidade. O assunto era para ela automaticamente doloroso, e Max 0 sabia. Como falar da maternidade sem rogar as bordas de uma ferida em came viva que ela trazia? Max e eu adentramos o espaco da paternidade ainda meninos, e crescemos no ambiente da medicina embebidos nessa dimenséo. Max costumava me falar que era incrivel a quantidade de médicos recém-formados com 23 anos de idade, que tratavam a subjetividade, as dores, as angt’Jstias existenciais e a sexualidade das pessoas, sem nunca ter vivido na came a maioria dos dramas que caiam a sua frente através da fala de seus pacientes. Citava Lacan sempre nessas ocasioes; quando perguntado sobre qual a maior virtude de um analista, o mestre francés retrucava provocativamente: a idade. Nao se pode exigir born senso de um médico sem Irie‘ oferecer a experiencia de vida que, tal qual um idioma aprendido, vai ajudé-Io a compreender a dor do outro. Um médico também é esculpido pelo cinzel de seus medos e angflstias. Capas interminaveis de medos, arrogéncias, equivocos, pedantismos e ignorancia precisam ser lentamente retiradas do “gigante de cera". No final dessa tarefa de décadas, muitas vezes sobra um humilde questionador, alguém que, finaimente, pode dizer com sinceridade eu na’o sei ou n50 faga nada. A verdade é que a paternidade nos jogou violentamente nesse espago de questionamento e angflstia, de forma muito precoce. Nadine, que sempre estivera ao nosso lado, assistiu a esse espetaculo de maraviihosos sofrimentos, eternas insegurancas e perguntas sem fim, mas manteve seu corpo fechado a maternidade, - Mas por que pela dor, Max? — disse Nadine, quebrando um siléncio so interrompido até entao pela colher do meu cappuccino batendo contra as paredes da xicara. — Posso entender o que vocé diz em reiacao as questoes psicolégicas formativas da maternidade, que necessitam da forja firme e complexa do nascimento. Sei que uma mae nasce também das marcas em seu corpo, e que na sua
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energia e determinacao esta o verbo a animar o corpo de seu filho. Mas por que abrir mao do que a ciéncia nos ofereceu como recurso maravilhoso? Por que a entrada na vida adulta, na maternidade, teria que ser pelo sofrimento, pela dor, pelo sacrificio? O sistema de som do restaurante do hospital comecava a tocar uma milsica, e eu nao vou parar de te o/har, grita Ana Carolina.
Desnecessério, porque Max continuava magnetizado peios olhos azuis de Nadine. Ela sorriu para ele, como que dizendo que nesse terreno arenoso ele deveria ter 0 maximo de sutileza. — Nao acredito em conquistas sem sacrificio. Alias, este é o nome que uso, em vez de sofrimento. “Sacrificio” vem de “sacro oficio", trabalho sagrado. Uma mulher passa pelo ritual do nascimento a0 construir seu sagrado oficio de parir. Através desse ritual, ela adentra a maternidade, ultrapassando as etapas formativas pelas alteracoes psicologicas que a “danca hormonal” produz em seu corpo e sua alma. 0 processo de vinculagao com seu bebé demanda altas doses de ocitocina e endorfina, que sao disparadas pelas agruras fisicas. Sem essa quimica sofisticada e elaborada pelos milénios, receberi’amos os bebés com relativo despreparo. Nas mulheres, a alteracao consciencial, o transe e o apagamento fazem parte de fenomenos adaptativos sofisticados e ancestrais. Desprezar essa modificacao sensorial transformativa em nome da comodidade podera ter 0 mesmo efeito que acabar com os rituais que os namorados usam para cortejar suas amadas, por exemplo. Faz parte do enamoramento a angL’istia de poder ser rejeitado. Somente com esse “sacrificio”, valorizamos a nossa conquista; somente com a possibilidade de perder é que lutamos pela alcancar esse objetivo. Seria desastroso acabar com os rituais complexos que criamos para a nossa adaptacao a um mundo de linguagem. As dores do part0 sao, portanto, necessarias e importantes. — Por outro lado, minha querida colega, vou repetir enfadonha— mente a pergunta que Ric sempre me faz: Afina/ de que dor estamos fa/ando?. As dores fisiolégicas do trabalho de part0 e do part0 fazem parte do repertorio de sensagoes as quais a humanidade se adaptou.
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Entretanto, o que ha de novidade na recepgao de nossos filhos é a
solidao e o isolamento. Nada pode ser mais doloroso para uma mulher em suas dores do que a angustiosa separaoao dos seus na hora de parir. Criamos pela primeira vez na historia, através do modelo tecnocratico biomédico contemporaneo, um nascimento apartado do suporte social e afetivo que as mulheres sempre receberam. E, nao por coincidéncia, inauguramos a ideia da dor do part0 como uma questao obstrutiva ao processo. Até entao a dor era parte integrante indissociavel, entendendo-se ela como parte fundamental da construgao dessa nova mae. — De que dor mesmo estamos falando, minha charmosa colega? Da dor da passagem de um feto pelo canal vaginal ou da dor de, sendo trespassada por urn nascimento, tornar—se mulher, amadurecer e passar para outra fase da vida? — Estamos inseridps em uma_cultura de adolescentes. Em vez
de 05 jovens 'desejarem u'ma Vida madura, os adultos é que insistem em permanecer crianoas. Uma sociedade hedonista e individualista nao consegue perceber vantagem alguma em adquirir experiéncia e
sabedoria. Parece-nos inadmissivel que algo se interponha entre n65
e o acesso irrestrito ao prazer. Rejeitamos a dor, mas também o esforgo, a dedicagéo, o crescimento e o amadurecimento. Sonhamos com uma vida de liberdade irrestrita e aventuras ilimitadas. Meninos mimados, queremos sexo sem envolvimento algum, descartando pessoas sem rosto e sem histéria. Meninas “desvairadas”, sonhamos com o desejo despertado no outro, mas com total desapego aos sentimentos. Adolescentes cinquentenarios, ansiamos por uma vida
irresponsavel, mitificando a juventude. Compramos cremes, injetamos Botox e repuxamos a papada, pois a maturidade nada mais é que um prenL’incio da velhice, que por sua vez nos anuncia a morte. Parem tudo, congele-se o tempo que eu quero gozar! — Mas o nascimento humano, minha cara colega, “é uma bofetada no niilismo”. Fazer—se ultrapassar pela energia do nascimento
joga-nos, quase inexoravelmente, na dimensao do outro. Somos arrebatados pela sua energia transformadora, pois que marca no corpo
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uma passagem, uma mudanoa de fase, um salto. E é exatamente esse voo, essa descoberta que se quer evitar. Nao é a dor de parir que tanto evitamos; é a dor de crescer. Ina May Gaskin me dizia que
o prazer de parir é 0 segredo mais bem guardado, mas eu lhe devolvia a pergunta guardado por quem? Minha ideia é de que as mulheres de hoje, imersas no oceano tecnocratico contemporaneo, preferem continuar criangas, negando ate’ esse prazer de parir, pois, em sendo maduras, o mundo seria mais complexo. De que dor estamos falando? Da dor de parir ou de crescer? Qual.7 As palavras de Max fizeram surgir em minha mente a histéria de Margareth, a quem eu havia acompanhado brevemente durante o inicio do seu prenatal. Depois de alguns anos, ela me escreveu, explicando seu desaparecimento: Eu tinha um medo enorme da dor de parir. Desde menina, minha imagem do part0 era a da dilaceraga’o. Quando enfim prenha, meu corpo reagiu a isso. Enrijeci—me, contral’ minha alma. Meu fi/ho agarrou-se ao meu medo e, apavorado, enrolou-se nos meus temores. Juntinhos a/i, enroscados um no outro, aguardamos em muda quietude. Por f/m 0 metal, frio, Iibertador. E a luz bri/hante cheia de si/éncios. Nada mudou, estamos salvos. — O que significa para uma humanidade — continuou Max — o siléncio das salas tecnolégicas de nascimento? Que repercussao pode ter a mudez, a auséncia de gritos, as falas cortadas? O que significa para urn bebé a luz, o som metalico, o barulho da ma'quina de fazer P/m? Que sinais serao marcados no imprint de suas sensagoes mais primitivas? Quais mensagem pensamos deixar a ele, para que se repitam indefinidamente por toda sua existéncia? — Entao estamos condenadas, Max — prosseguiu Nadine. — Vocé reluta em aceitar que mulheres possam diminuir suas dores pelo
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recurso medicamentoso, acreditando piamente nas determinagoes biblicas. Ser mae, para vocé, é entregar-se a um sofrimento inquestionavel e sem possibilidade de abrandamento. E isso tudo pela culpa, pelo crime de parir, de carregar no ventre o fruto do pecado da came. Até quando precisaremos pagar pelos preconceitos de uma sociedade machista? Nadine colocou ambas as maos fechadas sobre a mesa. No seu anular direito, um anel refletia o azul de seus olhos, formando uma combinacao de beleza inquietante. Sabia que Nadine tinha o desejo de entender, mas algo em seu corpo a impedia do passo adiante. Quase podia ver minha colega, em uma vida passada, explicando as suas colegas religiosas a importéncia da castidade, e usando todos os argumentos possiveis para mostrar 0 quao danoso era 0 sexo para a
perfeita e adequada elevacao da alma. Na verdade, estavamos falando do mesmo assunto, algumas vidas além. A visao de uma mulher parindo em liberdade é tao perturbadora quanto a sintonia entre os azuis celestes do olhar e do anel de Nadine. Tal imagem nos remete ao amago da sexualidade imanente do nascimento e nos joga na
dimensao do gozo. O suor, os gemidos, os la'bios secos e entreabertos, o corpo que se contorce, o olhar perdido, o apagamento da consciéncia — tudo isso nos insinua o poder sexual que se esconde por tras das palavras nao ditas, dos olhares fugidios e da expansao poderosa do nascimento. lnfinitas mulheres descreveram esse momento poderoso e sexual com os detalhes que nao nos permitem fugir de sua pulsionalidade erética e renovadora. 0 escritor “maldito” LouisFerdinand Celine nos alertava: Esquegam 0 sexo; se querem ver a sexualidade, olhem para um part0. Nadine sabia do que estavamos tratando, mas tinha medo de entrar nesse mundo obscuro e enigmatico da sexualidade do nascimento. Seria demasiado para ela. — Pois eu gostaria de relatar algo que ocorreu conosco ha algumas semanas aqui na cidade — disse eu. — Nos atendemos aqui um caso bastante especial. Uma paciente primigesta com muita vontade de ter um part0 domiciliar comecou com contragoes na madrugada e
solicitou a nossa presenca em sua casa.
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Meus amigos voltaram o olhar para mim e escutaram com atencao minhas palavras. — Fomos la 03 trés: médico, enfermeira obstetra e doula. A dinamica era escassa e pouco consistente. Estava prodromando, mas resolvemos aguardar por la mesmo. Percebemos que nossa presenca, mesmo em periodo nao ativo do trabalho de part0, oferecia seguranca e proteoao. — Por volta das 11h, ela me chamou e pediu que Ihe fizesse uma nova avaliacao. Estava com muita dor e queria um exame para estabelecer um prognostico. O resultado foi: cabeca baixa, trés a quatro contracoes cada dez minutos, bolsa integra, quatro centimetros de dilatagao, colo apagado. Ela entao disse: — Nao aguento mais de dor. A dor é insuperavel. Ela esta me aniquilando. — A dor é um sentimento, portanto absolutamente subjetivo — respondi. — Somente vocé pode aquilatar a dor que possui, seja ela de ordem fisica ou moral. A L'Inica ferramenta de que disponho é o respeito a sua descricao. Se vocé me disser que esta no limite suportavel da sua dor, so me cabe passar ao passo seguinte, conforme combinado no pré-natal. ~ Eu sei o que isso significa — disse ela. — Vamos para 0 hospital. Eu quero fazer uma analgesia. — Tem certeza? — disse eu. — Absoluta — respondeu ela. — Assim fomos para 0 hospital. Chegamos por volta do meio-dia e o anestesista logo depois. Fizemos a analgesia e, no momento em que a droga tomava conta do seu corpo, eu senti literalmente o corpo dela todo afrouxar. Um sorriso apareceu em sua face. Pela primeira vez nas Ultimas horas, seu rosto ficou relaxado e solto. Ela disse alguma coisa como “Que coisa b0a"..., sorriu e deitou-se na cama. — Eu nao fiz novo exame no hospital porque o Ultimo havia sido feito menos de uma hora antes. Imaginei que devia estar, na melhor das hipéteses, entre cinco e seis centimetros. Passados 30 minutos
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da analgesia, Zeza escutou os batimentos. Estavam entre 90 e 100. Saltei da poltrona e pensei: somente duas coisas exp/icariam isso: um improva've/ sofr/‘mento fetal agudo, ou um nascimento iminente.
Levantei a bata e... surpresa! Estava praticamente coroando, bastava uma leve separagao dos labios vaginais e a cabega do pequenino aparecia. ~ Alguns puxos dirigidos — ela nao sentia o suficiente para empurrar por vontade prépria — e o bebé nasceu. Um menino, Apgar 8 e 9, uns trés quilos e meio. — Ok, mas que historia é essa? — retrucou Nadine. Parece uma descrigao banal de par’to hospitalar. Uma paciente que realiza analgesia e o bebé nasce logo depois. E dai? — Conto esta histéria por uma razao, minha flor ~ continuei eu. Depois de 30 anos de assisténcia ao part0, é a primeira vez que vejo uma distociahp‘or dor apare'ntenjenteverdadeira. Ou seja, pela primeira vez escutei de uma paciente um pedido de analgesia por dor insuperavel. E o resultado répido e positivo do processo me mostra que provavelmente era essa a questao:-a dor era 0 elemento deflagrador do clrculo vicioso de medo-tensa'o-dor. Quanto mais dor ela sentia, mais se “fechava” e mais se sentia tensa e amedrontada. A engrenagem do part0 emperrava claramente por uma disfungao de sua percepgao dolorosa, e a analgesia cortou o processo com resultados excelentes. E verdade que foi de forma artificial, drogal, medicamentosa. E verdade também que alienou a paciente do processo, mesmo que de forma parcial. Entretanto, nossa alternativa seria uma cesariana ou um part0 na marra e com muito sofrimento. — Avaliei essa ocorréncia como sendo uso adequado de tecno/og/a, em urn processo em que todas as formas nao medicamentosas de assisténcia jé haviam sido utilizadas, com resultados meramente parciais. Banhos, massagens, acupressure,
etc., nada disso foi suficiente. Sé entao partimos para o recurso da analgesia peridural. — Descrevo esse caso para dizer que, sim, existe espago para analgesias em trabalho de part0. Pela primeira vez, vi um caso em
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que ela foi determinante, pois a dor era seguramente o elemento obliterante. Uma distécia é/gica, no dizer empolado do Max. Bastou que agissemos pontualmente sobre esta questao para que o part0
se processasse em minutos. — Mas a pergunta incémoda continuava a me fustigar: de onde vem a semente que fez brotar essa dor? — Eu diria que passei anos na escola médica escutando 0 discurso biomédico banal que pregava a supremacia das variantes biologicas. Enquanto isso, minha alma discordava e dava as costas a essa visao limitada da realidade. Nao podia ser apenas isso o que nos constituia. O que eu via, no vinco de cada sorriso e nas légrimas que escorriam das faces daquelas mulheres, era que algo muito além do corpo e Isuas medidas estava implicado nas sensaooes subjetivas e L'Jnicas que governavam seus partos. Havia um mistério a ser revelado, mas que néo seria descoberto pela qux’mica, pela fi'sica e nem colocando o olho em um microscopic para descortinar um mundo diminutivo. — O part0 e’ a/go que acontece entre as ore/has, me repetia Max 0 velho adégio das parteiras. Nao o procure nas fibras uterinas, nas protuberéncias Osseas, nas contragoes ou nas variaqoes dos horménios. Ele se encerra nos pequenos graos de areia de nossos sonhos, na bruma de palavras dispersas de um passado distante. Ele se refugia nos sussurros de uma menina, na curiosidade infindavel que ela carrega e no seu olhar insaciavel. O part0 e seus mistérios se escondem a0 olhar superficial, a analise timida e ao investigador amedrontado. Para entender o que o comanda, é preciso penetrar nos abismos obscuros da alma de uma mulher, Ia onde se abrigam seus sonhos, seus desejos, suas fantasias e suas tristezas. Quanto
mais profundamente mergulharmos, mas nebulosa sera’ nossa jornada. Entretanto, apenas assim poderemos encontrar essa
semente. E provavel que, apenas uma suposioao, a chave para essa questao esteja mesmo ligada a essa fissura aberrante na ordem natural, a qual chamamos amor. E talvez, outra mera suposigéo, para entender o que acontece entre as orelhas de uma mulher, somente se soubermos como encontrar esta chave.
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Respirei profundamente e conclui: — Levei quase 30 anos para encontrar um caso como esse,
mas esse nascimento prova que — em algumas raras circunstancias ~ as analgesias podem ser 0 fator determinante e positivo para se conseguir o sucesso de um parto vaginal.
— Nao creio que qualquer atitude fechada possa ser toleravel em se tratando do nascimento — falou Max, meu colega descabelado. —
Acredito mesmo que possam existir mulheres para as quais as dores do parto sejam tao violentas que a utilizacao de uma analgesia seja algo de carater humanitario. Entretanto, o nomero de pacientes que se enquadram nessa estatistica é semelhante a0 de mulheres que
nao tém leite para amamentare que seriam as legitimas candidatas
a alimentacao artificial. Sabemos que, em ambos os casos, existe uma construgao social que em muito extrapola a realidade biolégica. lncapacidad‘e‘ge supogtar a dim fisiolégica do parto ou de produzir leite sao raridades da natureza, mas que o modelo de atencao ao parto acabou tratando como realidades corriqueiras, pela nossa vinculacao ideolégica com as estruturas econémicas que controlam a vida social. 0 parto pode ser diferente do que vocé vé todos os dias, minha amiga. Existe a possibilidade de criarmos um modelo de suporte as mulheres, para que elas, assim protegidas, possam ingressar no espaco de paz e tranquilidade que é necessario para que o parto venha a fluir em harmonia. Veja que, para discutirmos a dor do parto, precisamos entender a configuracao social em que ele se assenta, para so assim compreendermos as amarras que o dificultam. Nadine estava olhando para Max com a mac apoiada em seu queixo de boneca. Sabia que Max era convincente, mas também percebia a dificuldade de abrir mao dos moldes que delineavam nosso modelo de assisténcia ao parto. Como mudar algo construldo nos Ultimos trés séculos? Como transformar um paradigma que nutrira sua compreensao do evento nos Ultimos 20 anos? Eu entendia a dor de Nadine, pois era a dor de tantos outros que olhavam para Max com olhos de absoluta incompreensao. Max falava
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um dialeto estranho e dificilmente compreensivel. Para os ouvidos de nossos colegas, suas palavras eram estrangeiras, ja' que nunca haviam aprendido este “idioma” durante a escola médica. Afeto,
proximidade, suporte, atencéo continuada, evidéncias, modelos de cuidado, paradigmas, tecnocracia eram palavras ausentes do nosso vocabulario durante 05 anos da universidade. Como imaginar que, em uma simples conversa, pudéssemos mostrar uma rea/idade de ar para alguém imerso em um oceano de égua? Puxei uma cadeira para perto de mim e estiquei minhas pernas. Olhei para Nadine e perguntei se queria mais um café. Ela aquiesceu com a cabeca, mas a deusa Alea, a divindade das coisas inesperadas, fez com que, nesse gesto, um cacho de seus cabelos Ihe caisse _.sobre o rosto, colorindo-lhe de dourado o vermelho das bochechas.
Nada havia mais lindo do que isso, e Max bem o sabia, pois me olhou e, telepaticamente, sorriu.
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i, .
4 - Das Escolhas
A tarde corria solta, e na cafeteria do hospital os sons de ambulancias se misturavam com as gargalhadas de Max. Seu descontroie as vezes causava constrangimentos, e mais de uma vez vi Nadine me olhando como a dizer pega a e/e que se contra/e. Mas agora o assunto havia mudado de diregao. Nadine a minha frente reiatava para Max um caso complicado do centro obstétrico. As palavras um tanto distantes nao eram facilmente entendidas, mas * batimentos, sangramento, a eco, emergéncia despontavam entre os sons estridentes de talheres e xicaras misturados com o burburinho de clientes aguardando seus pedidos. Essas expressoes quase inevitavelmente percorrem as descrigoes de casos obstétricos, principalmente os mais draméticos. Entretanto, mais do que as circunstancias e as particularidades fisiopatolégicas do evento, meu querido amigo se fixava na miriade de emogoes que transitavam na descrigao que Nadine fazia. Max queria saber como havia suportado a carga de decisées e desviava a atengéo da imagem fulgurante das descrigoes puramente técnicas. Seu foco eram os aspectos humanos que se escondiam em cada urn dos procedimentos, por mais banais que pudessem parecer. E como vocé se sentiu? perguntava ele. A
atengao vivida de Max, e a descrigao meticulosa de Nadine, me abriram uma porta ha tempos fechada, e pude recordar 0 dia em que a dor de ambos colou um retrato indelével no album das minhas lembrangas. Retirei as rugas ao redor de seus olhos e transportei-os um quarto de sécuio para tras, no mesmo hospital em que estévamos agora, mas uma di’Jzia de andares acima. Em minhas lembrangas estava Max, com seus cabelos
desgrenhados e seu carisma invuigar. Entretanto, sua expressao era triste como a de um menino ao ver 0 pai saindo de casa. Uma dor pesada, turva. Via-o impotente e cabisbaixo. Seus passos cruzavam
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o estar médico do centro obstétrico e seus cabelos revoltos teimavam em escapar do gorro azul. Seus olhos se apequenavam e 56 desviaram
do chao quando eu lhe falei. — E entao, Max, o que era? — Eu nao sei — disse ele. — Eu nao sei. — Mas... o que... — Ele nao sobreviveu Ric. Era pequeno demais. Fragil demais. Eu nao consegui. — A culpa nao é sua, Max. Como saber? Ela chegou aqui e nos nem tivemos tempo... Max me interrompeu com a mao a frente. — Nao fale nada Ric. Nada disso importa. Ele se foi. Eu estava Ia e nada pude fazer. Eu nao consegui, apenas isso. Palavras de nada adiantariam. Preferi me calar e respeitar o adagio ancestral do siléncio dourado. Max, 0 todo poderoso, meu guru e mestre, havia falhado. Max a rocha méxima chorava. Minutos antes estavamos na mesma sala falando sobre as mulheres e seus infinitos subterngios; a inefavel delicadeza de suas mentiras. Divagavamos a respeito da sua inquestionavel capacidade de cuidar, a interminavel dogura de suas palavras a nos consolar e sobre a suprema crueldade, sim, sorrateira e dissimulada, que so elas eram capazes de cometer. Ah, 0 feminino que tanto nos encantava, seduzia e intrigava. — De tao distantes — falava Max — poderi’amos ser de espécies diferentes. Talvez fosse mais criativo por parte de Deus. Uma natureza em que para se criar e reproduzir proporcionaria o encontro de espécies diferentes. Imaginem o modelo: para que os macacos se reproduzissem eles teriam que cruzar com outra espécie qualquer, menos com os préprios macacos, dos quais teriam repulsas. O mesmo corn as zebras, passaros e bactérias. Com isso a diversidade seria infinita. Ora... isso acontece com a “espécie” masculina em relagao a “espécie” feminina. A diferenga é que reproduzimos ora de uma, ora de outra espécie. Nao produzimos hI'bridos, pois estes nao seriam geneticamente utilizaveis.
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- Quanta bobagem, Max. Pois eu afirmo que se um visitante distante... — Sei o que vocé vai dizer, Ric. “Se um visitante de um planeta distante alcangasse nossa pequena e timida esfera de agua, e aqui encontrasse o bicho homem em todas as suas variedades, muito mais se assombraria com as semeihanoas do que com as
diferengas”. Max me imitava corn perfeigao, mas a afetagao na voz era claramente injusta. Eu nao falava assim, com a voz tao fina. Falava? - Exato, continuei eu. Somos habitados peIos mesmos medos, pelas mesmas angustias. Somos tocados peias mesmas esperanoas e pela dor de saber que nossa caminhada um dia se acaba. Nossa .- angustia, e nao nossas pernas, braoos e coluna ereta, é que nos constitui como espécie. Somos deserdados, caminhantes livres de uma estrada tortuosa e sombria, mas ousamos imaginar o alvorecer num horizonte distante. — Clap, clap, clap— debochou Max, aproximando as palmas das
maos e repetindo um ruido surdo. — Lindo. Poético até. Mas isso nao explica a ligagao que acabei de receber. Max havia recebido um telefonema recheado de ciI'Imes e insegurangas de sua aflitissima esposa. Estava estarrecido com a fantasia infinita das mulheres e sua desconfianga corrosiva. — Max, eu tenho a explicaoao — emendei eu. Mas é um conceito que se baseia em Freud, em Lacan e em Coco Chanel. — Sou todo ouvidos — sorriu eie. Naquele instante a porta se abriu bruscamente e uma enfermeira de olhos arregalados nos interrompeu sem pedir licenga. — Um sangramento na sala de admissao. E nao parece ser pouco. Max ergueu-se do sofa deixando-me corn as palavras ainda ardendo na boca. Disparou para a sala de urgéncia criando atras de si urn rastro de ansiedade. Corri em seu encalgo e me deparei com a cena que ocorria na pequena sala de atendimento. A mesa de exames estava rubra na sua borda inferior, onde jazia uma jovem mulher corn as pernas abertas, expondo suas intimidades.
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Levantei o lencol para ver 0 ventre e percebi a timidez de uma pequena
bolinha a delinear o abdome, que sequer alcancava as costelas. Perguntei a palida mulher como se chamava e ela me disse um nome que se esvaneceu na bruma das lembrancas. Max preparava o
sonar para escutar os batimentos cardiacos fetais enquanto eu perguntava alguns dados essenciais. Idade, quantos filhos, pré-natal, desde quando estava sangrando. — Qual idade gestacional? Quanto tempo de gravidez? Ela me respondeu “mais de seis meses", mas a idade certa ela nao sabia. Nao havia pré-natal. Era seu primeiro filho, e havia agendado uma primeira consulta no posto de saUde para os préximos dias. O sangramento nao era volumoso, mas preocupante. Max escutou os
batimentos e olhou para mim quando constatou um valor adequado. — Cento e trinta esta bom para vocé, Ric? Eu disse 9H? sim. Tentei sorrir para a male e transferir—lhe confianca. Verificamos a pressao e ela estava aparentemente baixa. 90 x 60. Mas como saber se essa nao era sua pressao habitual? Pedi para a paciente subir um pouco na mesa, ja que suas nadegas ultrapassavam a borda da cama. Segurei-lhe os bracos e fiz um movimento brusco, mas gentil. Neste momento eu e Max vimos um coagulo lhe brotar da vagina. Era do tamanho de uma bolinha de gude, das grandes. A paciente disse “senti sair alguma coisa”. Exp|iquei que era um pedaco coagulado de sangue, mas que tentasse ficar tranquila. Max pediu a enfermeira que providenclasse a limpeza da paciente. Olhou para mim e me puxou pelo braco. — Quem é o doutorando que esta de plantao? Os alunos de sexto ano da escola médica, que estao passando pelos estagios obrigatérios, sao chamados de doutorandos. Diziamos
haver de trés tipos distintos: 0 “missing” 0 “lost" e o “disappearing”, pois que nunca eram encontrados quando deles precisavamos. Mas n50 era hora de repetir a piada batida. — Nao sei, mas minha colega Nadine esta aqui. Do que precisas? — Vou ter que operar Ric. O sangramento esta perigoso. Nao sei o que é. Pode serum descolamento, ou uma placenta prévia. Eu nao sei...
76 l Entre as orelhas
— Mas vocé viu aquela barriguinha? E muito pequena. E se... — E se? Ric eu sei que é um bebé pequeno. Talvez um quilo e
meio. Se tivermos sorte se aproxima de dois. N50 ha tempo. Vocé viu aquele coagulo? — Nao seria prudente esperar? Sei Ia, chamar um contratado? Transfundir? — Nao ha tempo Ric. Ela esta aparentemente hipotensa, sangrando. Esta eliminando coagulos. Estamos sem possibilidade de esperar e estamos correndo contra o tempo. Chame Nadine. Agora! Max disse “agora” com firmeza na voz. Ele era meu R2, meu chefe. Nao havia mais espaco para ponderacoes. Ele havia tornado a decisao. Chamei Nadine e ela o acompanhou para a sala cirljirgica. .- Pude ainda ver 05 dois entrando na a'rea restrita e discutindo o que aconteceria a seguir. Nao havia tempo, e 56 me restava aguardar. Dizer qualquer coisa era dificil, pois a face sombria de Max estampava apenas desencanto e desapontamento. Ele agora estava diante de mim sem dizer uma palavra, e sem mover um musculo sequer. Seus olhos miravam o infinito COSmico a sua frente. Os cabelos desgrenhados produziam estranhos desenhos, como um vulcao em erupcao, jogando sua lava capilar em todas as direcoes. Em sua expressao nao havia mais que apatia, impoténcia e desesperanca. Entretanto, diante de tanta dor, nao pude me conter. — Max, desculpe falar de novo. Nao quero ser piegas ou lhe trazer consolo fécil, mas pare de se culpar. Eu estava na sala de admissao com vocé. Eu vi 0 sangramento. Nao havia nada humano que se pudesse fazer. Poderi’amos estar aqui agora lamentando uma paciente que enfrentou um colapso, mas pelo menos a vida dela esté garantida. Nao somos deuses, nao podemos salvar a todos. Se fosse possivel eu giraria em torno da terra, como Super Homem, faria o tempo voltar atras e evitaria os atropelamentos, as brigas, os tiros, as guerras, a iniquidade, a dor e as placentas descoladas. Mas somos humanos, Max. Pare de se achar Deus! Max lentamente desviou o olhar da parede em minha direcao.
Das Escolhas I 77
— Deus? Acha mesmo que me sinto Deus? Ric, um bebé de pouco mais de um quilo nasceu e nao suportou este mundo de merda em que vivemos. Eu estava Ia e nao pude fazer nada. Talvez vocé estivesse certo e o melhor fosse esperar, aguardar mais um pouco. Quem sabe o sangramento pudesse melhorar. Talvez se a gente...
— Pare Max, nao seja estL'indo! Vocé nao é Deus, mas também néo é uma crianqa. Vocé bem sabe que nao temos 0 dom da premonigao. Lidamos com fatos concretos e temos de fazer escolhas. E 56 o que fazemos aqui: escolhas. Vocé apostou em uma alternativa que lhe pareceu sensata, e a mim também. — Mas vocé me alertou... — Eu nao o alertei de nada seu pateta! Eu estava ponderando com vocé. Estava jogando as cartas na mesa para que pudéssemos escolher as melhores, para descobrir a melhor “mac" com as combinagoesgxistentes. Sua escoiha era uma delas, e me pareceu coerente. Nao podemos ter sempre os resultados perfeitos. — Ric, eu so acho que...
— Vocé nao acha nada. Vocé nao passa-de urn bosta, de um arrogante, de um pretensioso e pedante. Vocé se acha uma divindade, um infalivel. Vocé nao se da ao direito de errar nunca, e acha que as suas escolhas serao sempre as que salvarao o mundo das suas inevitaveis mazelas. Vocé é chato. Um grande bosta. Sai da sala. Nem podia acreditar que havia dito aquilo para Max. Nadine estava ao nosso lado e preferiu calar-se. Fui avaliar pacientes nas saias de pré-parto para fazer o tempo passar e eu ter condigoes de terminar o plantao. Eu também me sentia culpado pelo desfecho
desfavoravel que haviamos presenciado, mas muito mais peias palavras duras ditas ao meu parceiro. Que grande amigo eu sou! Max estava destruido pelos acontecimentos e eu consegui joga—Io mais para baixo ainda. Putz, odeio isso, mas precisava pedir-lhe desculpas. Voitei para a sale e encontrei Max conversando corn Nadine. Nunca vou entender a Iigagao desses dois. Falam como se fossem dois irmaos, mas os olhos de Nadine brilham a cada vez que Max
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fala alguma coisa espirituosa. Suas macs delicadas e suaves algumas vezes batem no ombro de Max quando este diz uma bobagem, mas eu sempre achei que esse contato era apenas uma liberalidade afetiva, algo que fazemos por ser socialmente aceito, mas que tem o mesmo sentido e diregao de um afago. Eu nao conseguia entendé-Ios, e por isso me caiava. — Max, é o seguinte. Vocé nao é um bosta. Vocé é no maximo um cocozinho, mas definitivamente néo é um bosta. Um bosta de verdade tem qualidades inconfundiveis, as quais lhe faltam de maneira evidente. Nadine sorriu. Ela sabia que no nosso idioma particular as ofensas ocupam o lugar dos abragos. Ela sabia da admiragao extremada que feu tinha por Max. Ela também entendia minha tristeza, tanto quanto a dor de Max. — Um médico tem que passar por isso, Ric. Somente a dor pode moldar o espirito de quem lida com o sofrimento. Tal qual urn idioma que aprendemos, a dor nada mais é do que aigo que precisamos em n63 para entender nos outros. Nao ha um profissional que nao carregue uma ferida. uma chaga, ou o pior dos machucados: a dovida. Nao ha um médico que nao tenha a sua coleqao privada de cruzes. Somos isso mesmo: uns humanos de merda, uns pobres coitados a tentar consertar as coisas. Coxos que ajudam mutilados. Zarolhos a guiar cegos. Temos esse mini'Jscqu e fantasioso conhecimento sobre a doenga, suas causas aparentes e consequéncias provaveis, e com ele tentamos instrumentalizar a nossa timida fraternidade. Mas somos apenas isso: humanos que cuidam da dor de outros humanos. Nada mais do que isso... Era Nadine a faiar, mas ela podia chorar sem pudores. Suas Iagrimas nao recebiam o interdito que a nés afligia. Afinal, a elas é permitido. Nos, machos testosterénicos, escondemos a lagrima e calamos no peito a tristeza. Max olhava para Nadine com ternura indizi’vel. Ele lhe segurou a mic enquanto ela chorava, e subitamente, vi seus corpos se aproximando. Max ajeitou a cabega da amiga no seu ombro enquanto
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ela solugava. A sala encheu-se de siléncio e apenas os cartazes dos plantoes nos vigiavam do alto das paredes. Tirei uma foto mental dos meus colegas abracados e determinei a minha alma que jamais apagasse aquela cena de minha memoria. Eram meus amigos e irmaos, médicos sofrendo a dor de uma perda. A dor de serem apenas humanos, de serem limitados, e nao poder fazer tudo o que deles se espera. Duas décadas haviam passado, mas meus amigos ainda pareciam meninos embevecidos diante da imensidao da Vida. Talvez apenas agora conseguissem entender que a (mica certeza que podemos ter é de que nao ha certeza alguma, e que nossa existéncia é feita de dL'ividas e escolhas.
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5- Almas Apressadas
— Nadine, escute a historia que tenho para contar. Imagino que vocé tenha passado por coisas parecidas na Vida. E uma historia de
luta e renovacao e, acima de tudo, esperanca. Nadine e Max interromperam a conversa que estavam tendo a respeito do cheiro de café que nos invadia. Max dizia que o café é uma bebida de gosto “oito”, mas de cheiro “dez”. Nadine, surpreendentemente, adorava cafe, o que n50 combinava muito com
sua delicadeza. Max, um inveterado, compulsivo e confesso bebedor de café, nos comunicou que, depois de sua morte, seria visto vagando em cafeterias para sorver o odor de café que elas exalavam, a exemplo
do mendigo do filme Ghost, que sorvia no metro a fumaca de cigarro dos passantes. Minha colega desviou o olhar de Max e voltou-se para mim. ajeitando-se graciosamente na cadeira. Max apenas esticou despudoradamente a perna sobre a cadeira a0 lado, como era seu costume fazer. — Faz alguns anos, recebi uma ligagéo de uma senhora la no consultorio, me dizendo: vocé n50 vai se Iembrar de mim. Eu me chamo Karla. Vocé assist/u meu part0 ha muitos anos. Minha fi/ha que nasceu chamou-se Isadora. Em um instante, a historia toda veio a minha mente. Como esquecer? Karla, paciente do hospital militar onde eu atendia no inicio dos anos 90. Estava internada no hospital com trabalho de part0 prematuro. Uma gravidez de seis meses e muitas contracoes. Ficou Ia sob minha supervisao durante quatro dias, e foi liberada para ir para casa quando as contracoes jé haviam sumido. Recebeu
orientacoes sobre 0 uso de algumas medicacoes, além do necessario repouso absolute.
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No mesmo dia da alta hospitalar, ela ligou para o meu consultorio:
— Ric, voltaram as contracoes. Muito fortes agora. O que face? Volto para 0 hospital? — Em que bairro moras, Karla? ~ perguntei. — Em Petrepelis. — Entao venha direto para o meu consulterie, que fica no mesmo bairro em que vocé esta. E mais facil para nos dois. Em meus pensamentos, eu intula que, se meus temores estivessem corretos, de nada adiantaria estar no pequeno hospital militar na cidade contigua. Um hospital bem equipado seria essencial. E Ia veio ela, acompanhada de um marido tenso e preocupado.
Cansada, com contracoes fertes, e rosto empalidecido. Sua expressao era de mede e angustia. Ela sabia que as contracées ameacavam a continuidade de sua gravidez, e que um part0 naquela altura da gestagae $6”??? alto r'Lsco para o pebé. O exame 'me deixou estupefato. As contracoes firmes e intensas haviam modificado de maneira definitiva o colo uterine. Ela estava com oito centimetres de dilatagao. Um trabalho de parto premature; um bebé de algumas gramas apenas. E ela estava tendo contracoes violentas na recepcao do meu consultdrio! Que fazer? Uma “alma apressada". Inquieta no plano das ideias e sonhos, buscando chegar oncle a esperavam, mas forgando a barra do tempo. Per que a pressa?, pensei eu. De que vale essa chegada prematura, cercada de incertezas? De que adianta tal rapidez a custa da maturidade? Lembrei-me imediatamente das outras prematuridades com que cenvivemes, entre elas, a “prematuridade sexual” dos adolescentes. Para que apressar-se para uma Vida de desejos sem a conquista da necessaria madureza? Para que buscar a seducao e a exposicae quando o tempo ainda se prestava para brincadeiras
inocentes e risadas infantis? Tempo... o tempo. Naquele case, essa era a variavel mais cruel. Max sempre repetia, nos infindaveis debates de plantao, que nae ha por que cortar os tempos, pois eles retornam como amargura.
— Karla, vocé vai ganhar este bebé. Nae ha mais come segurar.
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Vocé esta com oito centimetres. Nae temos come interromper quando a dilatacao chega a esse nivel. O que precisamos agora e de um hospital que possa atender prematuros e que possua um respirader.
— Respirader? — disseram em unissone ela e o apavorado marido. — Per qué? — Porque ele é muito pequeno, Karla. Talvez nae tenha os pulmees
suficientemente desenvolvidos. Ela baixou o olhar e, girando a face para o lado, encareu o marido. Ambos estavam arrasados e em pénico. Levanteu a cabeca em minha direcao e disse: — Faca o que for necessario, Ric. Comecei entao a minha via crucis de ligar para os services de fneonatologia dos hospitais da cidade a procura de um respirader. Enquanto isso. minha propria respiracao se abalava a cada nova contragao que Karla experimentava. E 56 nascer aqui na minha frente, que farei? Per outro lado, de que adiantaria sair correndo para um
hospital sem a garantia deter um respirader? Nenhum hospital me assegurava isso. Contatei todos os grandes hospitals da cidade. Falei com dezenas de pediatras. Explicava que um bebé de menos de um quilo ia nascer no carpete de um consulterio, mas nada es demovia das recusas. “Nae ha vagas", “estames Iotados",
“so se eu tirar o respirader de eutra crianca grave". Que fazer? Entre uma ligagao e outra, eu sorria para Karla, sentada no sofa da recepgao e amparada pelo marido. Eu precisava transmitir confianca e, mais do que isso. esperanca. Lembrei—me, entao, de uma alternativa hereica. Naquela época, Zeza era enfermeira da pediatria da Santa Casa. Liguei e pedi a ela que imaginasse uma forma de me ajudar. Ela saiu de casa e veio até o consultério para me encontrar. La chegando, ligeu direto para o diretor do setor de pediatria da Santa Casa, dizendo que precisava de um respirader pediatrico emprestado, que ela poderia adaptar para um recém-nascido. lmploreu, ajoelheu-se, expliceu a dramaticidade do caso, mas finalmente conseguiu a liberacao do aparelho.
Almas Apressadas l 83
Essa etapa estava vencida. Entramos todos no meu carro e
fomos para a Santa Casa. Eu nunca havia trabalhado Ia, porque meu trelnamento todo fora no hospital da universidade. Era um local
estranho para mim. Eu havia saido da residéncia médica a nao mais do que dois anos, mas nenhum professor ou contratado desse hospital me conhecia. Eu era um menino/médico, cheio de ideals, esperancas. Também naquela época tinha cabelos, quanta saudade. Levei minha paciente para o centro obstétrico e expliquei o caso para os residentes e contratados do plantao. Disse que se tratava de um parto prematuro de 30 semanas, com um bebé de menos de um quilo, mas que o respirador havia sido requisitado ao setor de pediatria. Falei que eu poderia ficar a madrugada cuidando dela, se me permitissem. Eles aquiesceram e eu rne postei a0 seu Iado. Prematuridade é um pesado fardo para as sociedades ocidentais contemporaneas. Hoje em dia, as taxas de bebés prematuros continuam a crescer de ‘fo‘rma preocu'pante e entopem de “pequenos seres" as
unidades neonatologicas. Certamente, houve avancos na assisténcia aos muito pequenos, mas isso nao diminui nossa responsabilidade, enquanto médicos, na “producéo” desses prematuros. A displicéncia com que tratamos a crescente incidéncia de cesarianas sem justificativas clinicas esta provavelmente implicada na profusao de criancas prematuras que aparecem nos hospitais. Clinicas de
fertilizacéo, produzindo fetos mL'JItiplos a toda hora, parecem também
estar envolvidas. Uma crianca prematura é fardo extremamente pesado para a familia, mas igualmente o e' para a sociedade. O tratamento de bebés de menos de um quilo eleva-se a algumas centenas de milhares de délares em paises como os Estados Unidos, e a sociedade inteira se obriga a pagar essa conta. E necessario reverter essa tendéncia
macabra de trazer extemporaneamente bebés para o nosso convivio. Meu irmao Marcus, pneumopediatra e professor da PUC, estima que, para cada dia que mantemos um bebé no ventre da mae, 1% a mais de sua funcao respiratoria é garantida. E o inverso é, infelizmente, verdadeiro: para cada dia subtraido, perdemos consideravel qualidade respiratéria nesses bebés.
84 I Entre as orelhas
O caso de Karla nao era iatrogénico. Nao houve uma intencao de forcar o calenda’rio. Ela entrou em trabalho de parto de forma violenta e rapida, e nao havia mais o que fazer senao aguardar. A noite caminhou a passos de formiga. La se foram vérias horas de espera, porque a ansiedade, a mudanca de ambiente e outras circunstancias de ordem emocional a fizeram diminuir as contracoes a ponto de quase desaparecerem por completo. lnfelizmente, com o adiantado da dilatacao, e a protusao da bolsa amniética, nao seria mais L'Jtil que elas parassem, porque nao haveria como reverter essa
situacao por semanas, para assim melhorar a qualidade dos pulmoes. Agora era uma questao de esperar e rezar.
Por volta das oito horas da manha do outro dia, Isadora nasceu. ,Chegou a0 mundo, felizmente, de parto normal. Sua mae lhe deu esse nome em homenagem a uma famosa bailarina americana, Isadora Duncan, pois na juventude Karla havia sido bailarina também. Nasceu com 890 gramas e cabia na palma da minha mao. Sua vitalidade era boa, mas o peso era menor ainda do que eu imaginava. Era frégil como uma borboleta. O que aconteceria com a pobre menina? Eu olhava a pequena Isadora e via suas costelas arfando, sequiosa do ar que nos rodeia. N50 era ainda a hora, falei a ela em meus pensamentos. Tao pequena e tao fragil. Minha di’Jvida sempre foi: o que poderiamos ter feito? Como evitar esse parto prematuro? Nunca obtive uma resposta, pois usamos os cuidados que nos pareciam os mais adequados na época. Algumas vezes, parece que a pressa do espirito em chegar ao nosso convivio é mais forte do que qualquer tentativa de manté-los no mundo das “almas por nascer". Com sua volthla de Vida, tais anjos irrequietos embranquecem nossos cabelos. Ou faz com que eles caiam sem do. Nos dias seguintes, continuei visitando Karla no hospital, até que ela tivesse alta, trés dias depois do parto. Isadora ficou ainda dois meses internada, passando por inL'Jmeras complicagoes, como infecgoes respiratorias, problemas com o soro, etc. lnteressante foi o fato de que nao necessitou em nenhum momento utilizar o respirador, provavelmente em funcao das medicacées que prudentemente
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utilizamos durante a internacao no hospital militar. Tanta Iuta para conseguir tal aparelho e ele nunca foi necessario. Depois disso, houve um primelro lapso de tempo, de aproximadamente seis meses. Encontrei Karla com sua filha nos bracos transitando nos corredores do hospital. Estava saindo de uma consulta com o pediatra, que havia diagnosticado mais um processo infeccioso, dessa feita urinario. No colo de sua mae, Isadora era pequena e palida, branca como uma pétala de jasmim. — A saUde dela é muito fragil, Ric. E um milagre que esteja viva. Mas continuo com esperancas de que ela va se desenvolver. Acenei positivamente com a cabeca e abracei Karla ainda com o coracao apertado. Via em seus olhos a dor de uma mae que quer o melhor para a filha. mas que esbarrava nos designios sinuosos do.destin0. Por,outr_o Iado, se havia uma forma de fazer essa crianca se apegar a Vida, ela estava all. 0 abraco afetuoso e calido da mae era a forma mais poderosa para ajuda-Ia. Somente o amor pode criar essa energia; somente ete pode transferir essa
forca. Depois desse encontro rapido nos labirintos do hospital, nao as vi mais. Quantos anos haviam se passado? Perdi-me na poeira dos tempos nao contados. O telefonema de Karla havia despertado essas memérias, mas senti um tremor quando ela me falou de Isadora. O que teria acontecido
com ela? Por que o telefonema? — Claro que me lembro de cada detalhe do nascimento de Isadora, Karla. O seu part0 néo seria facil de esquecer, mesmo que quisesse. Nao é todo 0 dia que ajudamos a trazer ao mundo uma crianga com esse nome, Isadora, e corn aquele peso, 890 gramas. Falei mais alguns detalhes do nascimento, inclusive a origem do nome da menina. Karla ficou surpresa com a minha meméria sobre o part0, principalmente porque eu recordava o exato peso corn que ela nascera. — Mas por que vocé esta’ me ligando, Karla?
86 I Entre as orelhas
Minha pergunta era cheia de medo. Temia o pior. lmaginava que
a pequena Isadora nao havia sobrevivido a uma infancia cheia de transtornos, doencas e fragilidades. Receava que a informacao fosse a pior possivel e que Karla se sentia na obrigacao de “fechar um ciclo", informando aquele que a auxiliou no part0 a partida de sua filha. — Bem — comecou Karla. — Na verdade, estou ligando para saber se vocé pode... comparecer a festa de 15 anos de Isadora, na préxima semana! Ao meu alr’vio seguiu-se meu assombro. Eu nao imaginava que 15 anos ja haviam se passado! — Ricardo — continuou Karla. — Isadora teve uma infancia dificil, ,cheia de fragilidades na sua sai’Jde. Passou por muitos problemas e enfrentou varias outras internacoes hospitalares por causa dessas circunstancias. Entretanto, conseguiu suplantar todos esses desafios e hoje é uma linda adolescente. Ela me pediu uma festa de aniversario de 15 anos cheia de amigos e parentes. como que a celebrar sua vitoria diante das dificuldades da vida. Assim eu chamei os tios, os avos, os parentes distantes e 05 colegas da escola. Mas ela me fez um pedido especial: ela desejava que o “médico que a salvou" fosse convidado, porque, mesmo sem o conhecer, ela criou uma ligacao muito especial com vocé e com a Zeza. Quando era pequenina, pedia para me contar milhares de vezes a histéria do “tal médico" que “ficou do Iado da mamae e a ajudou a me trazer ao mundo". Ela produziu no seu imaginario, através das minhas palavras, a figura de um médico bom, generoso e carinhoso, e atribui a isso o fato de ter sobrevivido. Nao conseguia mais conter as la'grimas a0 telefone. A Vida de um médico, mormente a de um obstetra, é cheia de algumas trage'dias e de tristezas que marcam o espirito de uma forma muito dolorida. Minha histéria nos Ultimos anos havia sido de muita dor, muito pesar, mas nunca me permiti desistir dos ideais e da minha Iuta para oferecer mais dignidade as mulheres no mais incrivel ritual de passagem a que um ser humano se submete. O telefonema de Karla tinha esse
sentido para mim; mostrar que, de fato, vale a pena continuar.
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Karla encerrou, igualmente emocionada: — Ela quer ir ao seu consultério, Ric, e entregar pessoalmente o convite. Quer conhecer o ”seu" médico, aquele que lhe deu a Vida. Ainda secando as Iagrimas, agradeci a lembranga e disse que poderiam vir quando quisessem.
Dois dias se passaram e minha secreta’ria anunciou a chegada das duas. Sai de minha sala e vi primeiramente Karla. Mais madura, mas ainda uma mulher de rara beleza. Trazia nos labios um 'batom vermelho e um sorriso orgulhoso. Transpassei a porta da recepgao e pude entao ver Isadora. Era uma menina belissima. Tinha um sorriso que apenas as meninas de 15 anos possuem, que misturava um rosto infantil com uma sensualidade em estado bruto. Era pequenina e charmosa, e carregava os tragos delicados da mae. Meus olhos cruzaram com os dela. Caminhejfidois passos, adentrando a pequena recepgao, e ambas se ergueram para me cumprimentar. Isadora me abragou forte, claramente emocionada, e me disse apenas: “Muito obrigado, doutor". O resto da histéria é apenas o resto. -A festa de 15 anos, a familia agradecida, os parentes me cumprimentando. A alegria de Isadora com a sua conquista. A graga, a beleza e a felicidade de uma menina, por tantos adorada. Mas nada supera o momento em que ela me abraqou, e, assim fazendo, me deu a nitida sensagéo de que, apesar dos pesares, das tristezas e incompreensées, vale a pena trabalhar com as mulheres, seus sonhos, suas lutas, suas dores e suas vitérias. Minha colega estampava um sorriso que eu bem conhecia. Sabia
também seu significado. O coraoao daquela mulher nao era tao impenetravel quanto as vezes para mim parecia. Seu semblante delicado e suave ouvindo a histéria de Isadora denunciava uma dogura que a medicina nao havia encoberto de todo.
88 l Entre as orelhas
6- Da lntimidade
Max estivera nos escutando falar sobre a “lei do acompanhante" e sua aplicabilidade nos hospitais pL’Jblicos e privados. Até Nadine reconhecia que se trata de um direito fundamental das gestantes, mesmo que fizesse ressalvas em relagao a “qualidade” do acompanhante. — E 05 agressivos, alcoolizados, violentos e apavorados? — perguntou ela. — Se ja' temos um enorme trabalho em Iidar com as "dificuldades da mulher parindo, como podemos ainda sobrecarregar os profissionais com mais um figurante no cenario do part0? Além do mais, como podem vocés ao mesmo tempo determinar a presenga de um acompanhante e exigir que a paciente tenha privacidade para parir? Naquele instante, Max resolveu comentar. — Vocé tem razao, querida colega, sobre essa questéo delicada. Entretanto, gostaria de deixar claro que ninguém aqui deve “determinar” um acompanhante. Essa possibilidade deve ser oferecida a gestante, caso ela considere importante a presenga de uma pessoa de sua confianga. Uma mulher néo pode ser “obrigada” a ter alguém ao seu lado. Na verdade, nao é isso o que a humanizagao do nascimento preconiza. Nao podemos ser a “Gestapo" do parto humanizado, como ja' dizia a professora Robbie. Uma brisa fria esgueirou-se sorrateiramente pela porta quando um cliente adentrou a cafeteria. A gélida sensagéo nas costas me alertou de que o tempo estava mudando. Talvez a chuva viesse nos visitar mais tarde, “para lavar a meméria das calgadas da Vida", como diria o personagem Allan, de “Sonhos de um Sedutor", de Woody Allen. Nadine talvez tenha sentido o mesmo que eu, pois cruzou os bragos em frente ao peito, como que a abragar-se. Max continuou sua explanagao imune ao vento que nos atingiu.
Da lntimidade I 89
— A respeito desse tema ainda, conversei com uma amiga esta semana sobre uma questao que me parece cada vez mais urgente: o
dogmatismo dentro dos projetos de humanizaqao do nascimento. Na verdade, é uma ma'scara que a nés cabe desfazer. Algumas mulheres sentem-se inseguras em procurar uma atengao mais humanizada para seus partos por acharem que assim podem cair em um modelo fechado e dogmatlco, que nao aceita alternativas nem adaptagoes circunstanciais. Dentre os modelos que me parecem obliterantes,
na medida em que perdem a perspectiva social e cultural, esta o “dogma” da “privacidade” aplicado ao part0 e a0 nascimento. Max estava tangenciando o tema da privacidade e dos limites da subjetividade. Ha muito que eu conhecia sua posigao frente a estes temas. Sua proposta, sabia eu, se centrava no protagonismo da mulher e nas opgoes pessoais que ela faz sobre o seu part0, sem que “regras".,,_,,,“,modelos" ,ou técnieas” se sobreponham a lnfinita diversldade de suas escolhas. Nadine observava-o com atengao e curiosidade. Ele continuou sua explanagao. — Ha bastante tempo, eu escuto falar da‘rdeia de “intimidade no part0", que se prop6e a proteger o binomio mae/bebé através do oferecimento de um ambiente isento de interferéncias e agressoes do exterior. A fc'erula, tornada mundialmente famosa pelo Dr. Michel Odent, se baseia na ideia de que as fémeas humanas necessitam privacidade para parir seus filhos. Da mesma maneira com que os primatas buscam reft’Jgio através do isolamento, os humanos se refugiam através da modificagao do comportamento e da prépria percepgao da realidade. O processo de “apagamento neocortical” pressupoe um ambiente pobre em estimulos, para que, dessa
maneira, possa ocorrer a alteragao consciencial. Qualquer situagao de stress, ou em que a mulher se sinta “vigiada”, dispararia o sistema de defesa adrenalinico, produzindo as conhecidas reagoes circulares viciosas de “medo-tensao-dor”, conforme ja nos descrevia o britanico Grantly Dick-Read no inlcio do século passado. Interromper tais alteragoes durante o part0 signiflca trazer a paciente de volta para o mundo da consciéncia, prejudicando o automatismo de suas reagoes.
90 | Entre as orelhas
A paridade com a excitaoao sexual se faz quase automatica: assim come no transcurso da atividade sexual, no part0 necessitamos acessar os estratos mais inferiores da nossa individualidade para que, assim entregues, consigamos desfrutar de sua programagao milenarmente construfda. — Quanto a isso eu creio que Nadine esta de acordo — emendei
eu. — A interrupgao dos mecanismos psicolégicos de apagamento neocortical é deletéria, e nisso todos concordamos. Qual exatamente sua tese? Max continuou: — Sim, pouco ha o que discordar nesse terreno. Tudo isso é muito interessante, e dificilmente poden’amos divergir em teses que ,. se apoiam em estudos nas a’reas da etologia, fisiologla, antropologia e psicologia. Nada mais coerente e IOgico que oferecer as mulheres um ambiente em que elas se percebam seguras e confiantes, para que a sua entrega seja mais facll e tranquila. O mestre Odent foi muito feliz em reconhecer na nossa llnhagem mamifera e primata os signos fundamentais do processo evolutivo e as etapas adaptativas que tlvemos que vencer. — Entretanto — continuou Max — quando Adao e Eva comeram da fruta do conhecimento, provocando sua expulsao do paraiso, tudo
isso mudou de figure. 0 acesso a linguagem nos condenou a um afastamento quase absoluto da natureza. Onde éramos parte dela, agora nos tornariamos senhores. Controlamos o ambiente a nossa volta, tornando-nos sujeitos de nosso destino; nao somos mais marionetes dos designios naturais. — Criamos a linguagem e a capacidade de simbolizar. Criamos a cultura, que é o conjunto de historias contadas, e com isso
individualizamo-nos, tornando-nos Unicos, fagulhas divinas volitando eternamente na busca da liberdade. — Nesse ponto especifico eu reconhego uma discordancia das assertivas de Odent. Imaginar que é possivel que tenhamos um “part0 mamifero” é desconsiderar o fosso brutal e gigantesco que nos separa da animalidade. Por mais que queiramos entender nosso percurso
Da Intimidade l 91
como uma heranga de nossa ancestralidade mais primitiva, temos que considerar que, ultrapassado o limiar da consciéncia e da linguagem, estamos inexoravelmente separados das leis que controlam a natureza. Nossos partos também teriam que sofrer com essa expulsao: a0 adquirir o a autoconsciéncia acabamos criando a angflstia, a apreensao e o medo, que nos governa e nos define. Max olhou firmemente nos olhos de Nadine e arremessou seu petardo conceitual:
— O ser humano néo pode ter partos naturais. Consegui ver as sobrancelhas delicadamente delineadas de Nadine se erguerem ao ouvir essa declaragao de Max. Ela devia estar com seus conceitos urn pouco atordoados, pois sempre
acreditara que Max era um estridente defensor dos partos “naturais”.
— Se vocé desconsidera a possibilidade de partos naturals, querido amigofi interrompeu Nadine —, entao. por favor, nos oferega
algum tipo de classificagao que possa nos ajudar a diferenciar os modelos de assisténcia contemporaneos. Vocé ha de concordar que a confusao ainda é intensa no que diz respeito as opgoes de parir. Alia’s, néo estamos analisando de forma equivocada essa questao? Deveria ser a redescoberta do “part0 natural” nosso objetivo precipuo,
ou nosso foco deveria ser 0 combate as formas “néo-naturais" de atengao, que SEC 0 modelo predominante nos hospitals do ocidente? Nadine levantou suavemente a sobrancelha esquerda, e
perguntou com a firme dogura de sempre, sem desviar os olhos de Max. Posso imaginar o nivel de inquietude que ele sente quando aqueles dois fuzis azulados apontavam para o seu rosto, mesmo
quando emoldurados por um sorriso. Nosso capilar amigo continuou a sua explanagao, sem se deixar perturbar, pelo menos aparentemente, pela sensualidade inquestionavel daquele golpe de sobrancelhas. — Posso apenas oferecer o meu ponto de vista, absolutamente pessoal — continuou ele. — Para mim “part0 normal” significa parto vaginal, embora em nossa culture a maioria dos partos vaginais nao seja exatamente “normal" do ponto de vista fisiolégico. Prefiro manter
92 I Entre as orelhas
essa nomenclatura apesar da agressao que testemunhamos e da
disténcia entre o que é efetivamente praticado e a “fisiologia alargada do nascimento", que comporta aspectos psicolégicos, culturais,
emocionais e biolégicos. Por outro lado, “part0 natural" é aquele que ocorre com os animais, inseridos, envolvidos e submetidos a natureza. Este nao é o caso do “bicho homem", pois este nao é objeto da natureza, mas agente desta, capaz de fazer com que ela se adapte e se modifique de acordo com seus desejos. Portanto, de um ponto de vista antropolégico e psicolégico, o part0 “natural” é vedado a espécie humana, pois o acesso a linguagem, com o consequente mergulho na metafora e no simbdlico, fechou as portas da natureza para a expressao pura do nascimento. Max sorveu mais um gole de café e continuou. — Por fim, “part0 humanizado” é um modelo de atenqéo sustentado por trés pilares: a restitu/géo do protagonismo a mulher, a visao integrativa, ou “biopsicossocial”, do evento e a forte vinculagao com a med/cina baseada em evide‘ncias. Esta, evidentemente, é a minha definigao, mas esta sujeita as criticas e contestagées, principalmente no que diz respeito a questao dos “partos naturais", termo que ainda é muito utilizado mas que, na minha humilde opiniao, nao contempla o que desejamos definir e pode confundir a atengao humanizada com o ”naturalismo” da assisténcia a0 nascimento. Perguntei eu, entre provocativo e sarcastico: — A definigao me parece abrangente, mas abdicar da ideia de “partos naturais" nao lhe parece radical demais? Nao estariamos fechando as portas para muitos que se interessam por um “retorno a natureza" como forma de resgatar o que foi perdido nas aventuras biomédicas da obstetricia? — Ha muitos anos, abandonei o conceito de “part0 natural" ~ continuou Max — e nao utilizo mais esse termo. Nao acredito que possamos ter partos “mamiferos”, nem que tenhamos que “mama/izar” o nascimento, como apregoa o mestre Odent. Nao creio ser possivel, sequer desejavel, que sejamos novamente parte da natureza, impedidos de analisa-la ou modifica-la. O part0 "natural”
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seria aquele fora da racionalidade e da linguagem, o mesmo que ocorre com os mamiferos viviparos. O parto “natural" é o que ocorreria com a ablacao total da consciéncia, mas nao acredito que seja possivel desejar tal coisa. Aproximar o parto das leis que regulam nossa “fisiologia ampliada” (aquela que acrescenta emocoes as reacoes fisico-quimicas organicas) me parece ser 0 melhor caminho em direcao a humanizacao do nascimento, mas esse caminho jamais sera possivel sem considerar que somos seres dotados de linguagem, e que isso nos confere um lugar absolutamente especial na natureza. — Assim sendo, creio que, apesar de considerar as palavras de Michel Odent como sabias e corretas, a aplicacao desses conceitos
pode gerar confusoes e equivocos. Acredito na possibilidade de usarmos modelos biologicos como base para o entendimento do ser
humano afinal somos descendentes de um ancestral comum aos primatas modernos. Por outro Iado, desconsiderar a distancia gigantesca criada pela aquisigao da linguagem da racionalidade e da subjetividade é um erro que deve ser coibido. — Da mesma forma, reconhecer a necessidade de privacidade como necessidade humana basica esta' na linha do pensamento de Odent; trata-la como obrigatoriedade é solapar urn dos pressupostos
bésicos da hominalidade: a individualidade. Somos seres dotados de inconsciente, moldado a partir das necessidades bésicas da altricialidade. Nosso nascimento prematuro nos jogou em um processo de extremada dependéncia materna, tornando os cuidados parentais fundamentais para a nossa sobrevivéncia. Nossa estrutura edipiana é a fOrma sobre a qual se assenta a linguagem, e assim trazidos ao mundo da consciéncia construimos nossa individualidade e, posteriormente, nossa cultura.
— Seres impares, fémeas falantes. matrizes e fadas, as mulheres nao se sujeitam as generalizagoes. Mulheres sao Unicas em seus desejos. E é nesse ponto que devemos ser cuidadosos quando tratarmos dos modelos de atencao humanizada ao nascimento. — Se cada mulher é dotada de um mundo préprio, de significados e significantes, qualquer que seja a natureza das condutas a oferecer
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a ela durante o nascimento deve ser baseada em uma compreensao subjetiva e individual, posto que qualquer “regra” ou protocolo que nao contemple essa caracteristica especifica estara condenada a0 insucesso ou ao dogmatismo autoritario. — Entendo quando se tenta preservar esta palavra, “natural", mas mantenho minha posicéo, pois ela reforca a importéncia da humanizacao. Nao existe um parto em que 100% da fisiologia é respeitada, pois nossa fisiologia é regrada pelo mundo psicolégico inconsciente. Portanto, nao ha' volta. Se ha linguagem, imersao no mundo da metafora, nao ha como estar controlado pela natureza. Sei que isso significa uma “ferida narcisica” na ideia de retorno a0 para/’30 perdido do part0, mas é a realidade. Da mesma forma, como Nadine frequentemente comenta, também nao pode existir alimentagao natural, pois comemos de acordo corn nosso desejo, e assim por diante. Se nao existe “sexo natural" na nossa espécie, em que ele serviria para as determinacoes da natureza (replicacao do DNA, fortalecimento pelo processo de selegao, eliminacao dos menos aptos, etc.), entao também nao pode existir um “parto natural". Desculpem se eu nao me sinto bem dentro da natureza. A razao e a linguagem me impéem esse distanciamento, mas isso nao impede de me vincular as formas “mais fisiolégicas de atencao ao parto". — E vocé falou muito bem, Nadine, claramente concordando com minha tese. Nao é o parto que precisa ser mais “natural”, posto que é um fenémeno natural e fisiolégico em esséncia, mas sua necessaria e inexoravel expressao cultural. lsto é: o parto enquanto fenémeno natural nao pode mais se expressar naturalmente na nossa espécie de mamiferos falantes, desde que esta inserido na cultura, ou, como vocé mesma disse Nadine, na medicina. Esta L'iltima sim é que precisa aproximar-se da “fisiologia alargada" do nascimento. O que me parece inadequado é imaginar uma “volta” a naturalidade com que as parteiras atendiam o parto, o que nao passa de uma fantasia, ou a um ideal “puro, impoluto" do “parto natural". lsso nao existe. O parto humanizado pretende oferecer essa dualidade sem precisar estabelecer um ”falso dilema”: o parto como evento fisiolégico 6
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natural em esséncia, mas expressado na cultura. Dizer que o part0 é “natural" é o mesmo que dizer que estamos "todos nus embaixo de nossas roupas". Como a roupagem necessaria do parto humano é a cultura. ou “as culturas", ele so pode ser visto vest/d0. Com a linguagem,
a multiplicidade de histdrias contadas e o simbolismo no part0, acabamos de vez com a nudez do nascimento. Portanto, nao nos cabe criticar a roupa, mas a “moda”. A moda cultural do nascimento é quem sufoca os movimentos do corpo, tira sua graga e sua desenvoltura, impedindo-o de se expressar em plena potencialidade. — A luta pelos “partos naturais" mira um ideal tao fantasioso quanto ilusério. Nao somos mais “seres naturais”; somos produtos culturais sobre uma arquitetura natural. E essa arquitetura nao pode mais ser vista sem dizimar a criagao cultural que sobre ela se assenta.
Os corpos “naturais" estao no mundo animal ou nos necrotérios, reduzidos as fungoes biologicasL nos primeiros, ou as imersoes
formolizada‘éfil‘nos Ultimos.
'
— Onde ha pa/avra, destino mutante da altricialidade, ou amor, fissura bizarra e medonha na tessitura do_universo, nao ha espaoo para a expressao plena da natureza. Fomos expulsos desse paraiso pela ousadia de enxergar o que era proibido. Nessa estrada do homem solitario, nao ha retorno. Somos condenados a0 infinito, a desolagao e ao amor. — Mas Max — interpelou Nadine — vocé nao concorda que as parteiras ja promoviam desde tempos imemoriais o modelo de assisténcia “humanizado”? Essa batalha por humanizar partos nao é uma novidade, nao concorda? — E novidade, sim, Nadine — continuou Max. —Alia’s, recentissima.
O modelo das parteiras nunca foi humanizado. Muitas parteiras tradicionais que conheci tém praticas altamente intervencionistas. Soro com ocitocina, luvas esterilizadas, toques repetidos, intervengoes psicoldgicas e verbais, mascara, episiotomias, kristeller, etc. Realmente nao fazem cesarianas, mas sabe a razao? Porque nao controlam essa tecnologia, e sequer possuem recursos para fazé-lo. Caso contrario, teriamos parteiras cesaristas...
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— Eu acho muito perigosa e contraproducente a g/amorizagéo e
a idealizaga'o das parteiras tradicionais, ou mesmo as “p65modernas", a exemplo do que fazemos com os indigenas, como se estes possuissem uma esséncia diferente dos outros seres humanos. Tanto estes quanto as parteiras tém um acesso limitado a tecnologia e isso (e nao sua esséncia) é o limitante de sua intervengao: faltalhes a motosserra e o bisturi. Caso contrario, se tivessem tais recursos, fariam o mesmo que nos fazemos. E pela simples razao que sao seres humanos. com todas as potencialidades e defeitos dos ditos “civilizados”. As parteiras nao sao imunes a sedugao da intervengao desmedida, e a realidade nos mostra isso de uma maneira muito Clara e inequivoca em todos os lugares onde ela se
.expressa culturalmente. — Néo existe uma parteria “pura” e imaculada. Da mesma forma, nao existem indigenas puros; existem populagoes a mercé da natureza e sem ferramentas para subjugé-la. Os movimentos de preservagao vém depois desse acesso, e nao antes dele. so depois de podermos destruir a natureza ao nosso redor é que podemos criar a ecologia; so depois de intervir no processo fisiolégico do part0, com igual insensatez como destruimos o meio ambiente, é que podemos criar
movimentos como a humanizaoao do nascimento. — Privacidade e intimidade nao sao valores absolutos — continuou Max. — Séo sentimentos subjetivos e pessoais. lsso n50 tern necessariamente nada a ver com o numero de pessoas presentes ao part0. Podemos ter uma sala vazia e a paciente, mesmo assim, se sentir vigiada em fungao da expectativa criada nos outros pelo resultado desse part0. Pode se sentir tao observada quanto se sentir solitario um homem imerso em uma multidao. Podemos ter, ao contrario, uma sala repleta de pessoas e a paciente experimentar a sensagao de estar protegida, contrariamente ao que pensaria uma pessoa aferrada ao “dogma da privacidade”. — Quando tratamos da pessoa humana, nada pode ser tornado como definitivo e fechado. Criar uma atmosfera de privacidade e intimidade é uma arma poderosa para dotar uma mulher das
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condicoes ideais para um part0 adequado. Entretanto, esse conceito deve partir das expectativas dessa mulher, do seu mundo, sua visao, suas expectativas, suas esperancas e sua histéria de vida. Estabeiecer “part0 em casa”, “part0 com parteira", “part0 no escuro", “part0 em siléncio”, “part0 sem médico", “part0 em casa de part0”, “part0 vertical", etc. como condicoes sine qua non para a
humanizacao do nascimento é desreconhecer as infinitas particularidades humanas. E diminuir a subjetividade, homogeneizando—a. — As moltipias formas de atencao a0 part0 podem certamente dangar ao vento da subjetividade e da intimidade restituidas a0 ambiente sagrado do nascimento. Equipes podem ser treinadas para oferecer aquiio que cada mulher precisa e soiicita nos momentos de
apagamento neocortical. A intimidade pode ser uma construcao baseada na autonomia da mulher e nas condigoes oferecidas a ela. Muitas vezes, eu mesmo percebi que a intimidade e o isolamento
oferecido a u‘m‘a mulher eram contraproducentes, pois naquele exato
momento ela demandava contato e reafirmacéo. Ela solicitava o ”Outro", com seu oihar, sua atencao, sua.,presenca. O contrario também foi tantas vezes testemunhado: minha prépria presenca era fator de inquietude, e somente com o afastamento de todos, inclusive eu mesmo, a paciente conseguiu alcancar seus objetivos. — O mestre Michel Odent nao pode ser sacrificado como o criador de um modeio autoritério e fechado de atencéo. Da mesma forma que Frederick Leboyer vociferava quando falavam do “método Leboyer”, o professor Odent deve se sentir constrangido quando entendem equivocadamente sua ideia de “intimidade”. Odent nao desejava criar um “método”, mas uma atitude. Queria que 0 entendimento de nossa heranca mamifera fosse respeitado, mas nao copiado. Entendia o part0 como evento subjetivo e irreproduzivel, pois néo existem duas mulheres idénticas, nem a mesma mulher é capaz de ter dois partos iguais, pois, parafraseando Heraclito. “n50 seré a mesma mulher, nem o mesmo bebé". Da compreensao da maravilhosa diferenca que existe entre cada individuo é que depende o respeito as sutilezas do nascimento humano — concluiu Max.
98 I Entre as oreihas
Nadine me olhou com um olhar que eu conhecia. Parecia expressar uma mistura de admiracao e surpresa. As palavras de Max haviam ajeitado algumas concepcoes frageis que ela carregava, e seu sorriso timido para mim significava “0k, o que mais posso dizer?" Nadine nada mais acrescentou, mas debochadamente exclamou Patu Sa/eh!
Da Intimidade l 99
i, . .
7 - 0 Banquete da Nostalgia
San Cristébal de Ias Casas é uma simpa’tica cidade no sul do Me'xico, no estado de Chiapas, um dos mais pobres do pai’s. Em suas casas coloridas habitam mais de 150 mil pessoas, em sua maioria de ascendéncia maia, e nessa regiao é comum escutar o dialeto tzoz‘zi/ nas ruas, entre mercadores, passantes ou taxistas.
Nas avenidas principais, ainda encontramos posteres, cartazes, tshirts e cartoes-postais com a foto do comandante Marcos estampada, heroi da revolugao zapatista que em 1994 tomou a cidade sob controle. Sua proximidade com a Guatemala produz uma mistura interessante de tipos fisicos, vestuario, cultura e sonoridades linguisticas, ao mesmo tempo em que desnuda um problema de mobilidade social e imigracao, que mesmo aos mexicanos é um assunto desconfortavel. Os mexicanos estao acostumados a ser a ponta “pobre” e discriminada nos embates de fronteira com 0 “Big Brother” do norte, mas na sua divisa mais a0 sul ocorre o inverso: $50 05 guatemaltecos que se queixam de arbitrariedades ao serem considerados “invasores” em busca de oportunidades para alimentar suas familias. Disputam com os chiapatecos os poucos empregos e cada centimetro das pracas apinhadas de artesaos. ”Infe/izmente em nosso ’zocalo' (praca central e centre de encontro social das cidades mexicanas), estamos cheios de guatema/tecos vendendo as suas artesanias. Na”o é justo para nos. Eles que vendam na sua terra, e deixem 0 Mexico para no’s!", disse-me o motorista de taxi, mal escondendo o seu preconceito. Pois esta bela cidade, com suas casas coloridas e suas igreias, albergou o l Congresso lnternacional de Parteria e Humanizacao do Nascimento, que contou com mais de 350 participantes e palestrantes de varios paises, como Mexico, Estados Unidos, Brasil, Uruguai, Espanha e Guatemala, entre outros.
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Sendo esta a quinta vez que visitava o México para participar de
encontros sobre humanizacao do nascimento, os palestrantes ja eram meus velhos conhecidos. Alguns participantes mexicanos eu também recon heci de outros encontros, assim como fiquei feliz ao reencontrar as parteiras da Guatemala, corn seus lindos vestidos coloridos, tao timidas quanto tagarelas. Tudo parecia demonstrar que mais uma vez iamos participar de um encontro transcultural de aprendizado e troca de experiéncias, assim como tantos de que eu ja havia tornado parte em anos anteriores. Nesses encontros, o que me interessa é a aventura da troca de saberes. que estabelece uma via dupla na corrente do conhecimento: de um lado, os saberes tradicionais construidos por
milhares de anos de experiéncia e hands on; do outro, o saber técnico
e cientifico que, com sua visao analitica. desvenda o camuflado nos confins das celulas e tecidos. Entretanto, além da alegrla do convivio e do renovar dos conhecimentos, esse encontro reservara urn claro
divisor de aguas, uma mudanca de entendimento que eu preferiria nao ter encontrado. -Logo no primeiro dia, ela se apresentou e segurou fortemente minha mao. Olhou-me nos olhos como que a procurar uma lembranca e me disse: Vocé nao se lembra de m/m, mas eu assisti a uma au/a
sua na Case (Case Western Reserve University — Cleveland) ha alguns anos. Eu era aluna de Robbie (Davis-Floyd) em uma cadeira de antropologia e cursava 0 “college Depois disso, fui fazer medicina em Berkley, California. Estou aqui porque vou cursar a residéncia de obstetricia quando me formar dentro de um ano, e estou conduzindo
um estudo sobre as parteiras tradicionais do Mexico. Olhou para o lado para encontrar o sorriso de Robbie e arrematou: Uma fruta nunca cai Ionge do pé, certo? Marcela Smid é seu nome. Nascida na extinta Tchecoslovaquia e radicada desde cedo nos Estados Unidos. filha de um matematico e de uma dentista, ela passou o Ultimo ano entrevistando parteiras tradicionais e conversando com autoridades médicas para compreender o que pode ser feito para auxiliar o mundo da parteria
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mexicana. Infelizmente o que ela encontrou nao parece ser muito estimulante. Mais do que isso, sua pesquisa demonstrou que a parteria mexicana esta em crise, e que apenas uma tomada de
posicao corajosa podera devolver a esperanca para um barco que se aproxlma do iceberg. Depois de algumas horas de conversa, fui convidado por ela a assistir sua exposigao. Nela Marcela expoe a ferida aberta da realidade da parteria mexicana. Demonstrando preocupacao, falou-nos que, apesar das parteiras tradicionais ainda atenderem 10% dos partos no pals, esse mimero vem decrescendo de forma consistente desde o ano 2000. Em algumas regioes, os partos atendidos pelas parteiras tradicionais chegam a 25-50% do total, mas, no estado de Morelos, ,perto do DF (Cidade do México), o numero de atendimentos por comadronas caiu de forma drama’tica. Quando da primeira vez que la estive em 2002, esse numero era de 28%, e hoje nao chega a 10% das assisténcias ao part0. As razoes sao complexas, diversas e interagem entre si, mas o programa mexicano de atencéo ao part0 gratuito no sistema de sadde — que oferece partos gratuitos para gestantes que realizem cinco consultas de pré-natal — é um dos fatores mais implicados. Além disso, a parteria mexicana carece de renovacao: poucas $60 as novas alunas que se inscrevem nos cursos da CASA (curso de treinamento de parteiras profissionais de San Miguel de
Allende) ou que fazem a formagao de LEOS (Licenciadas em Obstetricia), pols essas carreiras parecem nao ser mais atrativas em um mercado que nitidamente se encolhe. A entrada governamental na questao do part0, apesar de ser um ato digno de elogios a0 trazer para o sistema pL’Jblico mulheres que antes eram alijadas dele, pode estar desterindo um golpe muito forte para a parteria mexicana, assim como para os saberes tradicionais resguardados por ela. O famoso artigo de Robbie Davis-Floyd sobre o transporte de gestantes para hospitais pdblicos foi naturalmente trazido a tona. Em uma publicacao de 2003, “Home Birth Emergencies in the USA and Mexico: The Trouble with Transport” (Social Science & Medicine Volume 56 Issue 9, May 2003, Pages 1911-1931), Robbie descreve
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os problemas relativos a0 transporte de pacientes para centros
hospitalares de maior complexidade, tanto nos centros urbanos americanos quanto nas regioes remotas do México. Nesse artigo, Robbie demonstra que, sem um sistema agile eficiente de transporte, é impossivel as parteiras conseguirem uma atengao que possa
oferecer seguranqa ‘as suas pacientes. Segundo Robbie,
i,..:.
“Quando uma parteria transporta uma cliente para 0 hospital, ela traz conhecimentos especificos prévios que podem ser vitais para o sucesso do tratamento dessa muiher pelo sistema médico. Entretanto, a cultura da biomedicina em geral tende a desreconhecer ou nao entender como validos os conhecimentos da parteria. As tensoes e disfungoos que as vezes ocorrem sao representadas nas histérias de transporte contadas pelas parteiras, as quais identifico como um género de narrativa e analiso para -mostrar como a reprodugao pode se tornar desnecessariamente torta e disfuncional quando dominios de conhecimento entram em conflito e estruturas de poder existentes asseguram que apenas uma forma de saber vai contar.”
Nesse artigo, ela fala das desarticulagoes e fraturas existentes nos encontros entre médicos e parteiras quando o choque de suas experiéncias especificas se faz presente em um caso de transferéncia
hospitalar. E nesse ponto que Marcela Smid, reconhecendo a importancia da manutenqao do continuum of care, estabelece seu ponto e oferece sua aiternativa. Em seu trabalho, ela ressalta que existe uma vinculagéo “quebrada” pelo rechago do sistema médico a presenga das parteiras nos hospitais, e completa peia auséncia de reconhecimento pelos médicos de um saber ancestral resguardado por estas. E 0 conceito
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de conhecimento autoritativo de Brigitte Jordan, que nos afirma que, para que urn conhecimento se torne dominante, precisa desmerecer ou aniquiiar os outros conhecimentos. As barreiras apontadas por Marcela, baseadas no trabalho de Robbie, sao econémicas, culturais, linguisticas e geogréficas, impedindo que o fluxo de assisténcia possa se manter sem uma quebra de continuidade. Sua proposta vai se assentar na possibilidade de que a parteira, ao ingressar no sistema médico na eventualidade de um transporte, muito mais do que ser recebida possa ser congregada na equipe de atengao. Jos Van Roosmaien, em um artigo de 2005, propos que as parteiras pudessem ser incorporadas como doulas nos hospitais pilbiicos, mantendo o suporte as suas pacientes sem ferir as ,-suscetibilidades e responsabilidades da equipe médica assistente. Com esta medida — transformar as parteiras em doulas quando da ocorréncia de um transporte —, Marcela pretende uma melhor/a d0 acesso a atenga‘ro qualificada, dim/nuigéo de custos e me/hor/a da experiénc/a para a mile 6 seu bebé. Surge, entretanto, um problema: poderao as parteiras abrir mao de uma autoridade milenar, calcada sobre um saber tradicional, para assistir — em siléncio e sem interferir — o trabalho de profissionais em um hospital? Serao elas capazes de engolir em seco o desmerecimento de suas capacidades e o seu rebaixamento a auxiliares de mulheres (doulas) sem qualquer responsabilidade sobre a assisténcia ao nascimento? Estas $50 as perguntas que deixaram a todos inquietos. Muitas das manifestagoes foram no sentido de dizer que esse tipo de proposta colocaria fim a parteria, pois cortaria fundo no orgulho e na autonomia dessas assistentes de part0. Tal atitude seria vista pelas parteiras como uma afronta, e algumas talvez se negassem a entrar nos hospitais porque la seriam, sim, recebidas, mas consideradas incompetentes para realizar as tarefas que realizam ha décadas. O que se percebeu nas manifestagoes foi certa indignagéo pela ideia de fazer com que o modelo das parteiras, que repousa na independéncia e na autonomia, fosse “domesticado” pelo sistema,
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impedindo-o de se manifestar, abafado e amordagado pelo avassalador dominio biomédico contemporaneo. Podem-se facilmente entender as razoes pelas quais muitas parteiras rejeitaram energicamente essa alternativa. Entretanto, existe outra forma de ver esse problema e essa proposta. O indice de cesarianas no México é alarmante; os nL’imeros oficiais falam de uma taxa national de 46%, com resultados semelhantes aos que se encontram no Brasil, relativos a0 setor privado e de seguro saL’lde. A cidade de Monterrey é citada como exemplo internacional do descalabro e da falta de critério na realizagao de cesarianas. O indice dessa cirurgia no setor privado da cidade atinge os mesmos vergonhosos 90% que podemos encontrar em muitos hospitals privados no nosso pais. Ao mesmo tempo, as parteiras mais velhas estao morrendo, sem que consigamos uma reposigao. Aks'imulherw estao entrando pelo programa “Seguro Popular" (aquele que oferece partos gratuitos se cinco consultas forem realizadas no pré-natal) dentro do sistema hospitalar, no qual a qualidade de atengao é considerada muito baixa, especialmente para as populagoes mais pobres do Mexico. 0 decréscimo nos partos atendidos por parteiras representa claramente uma “homogeneizagao", a perda de diversidade cultural e o lento desaparecimento de um “idioma”, de uma forma especifica de compreender a mulher e seus ciclos. Assim como os dialetos do México tendem a0 lento desaparecimento pelo dominio do espanhol, a parteria também parece seguir o mesmo caminho pelo dominio de um modelo biomédico e tecnocratico. A ideia de oferecer um papel acessério para as parteiras tradicionais na assisténcia hospitalar pode servir como posslvel integragao a elas dentro do sistema, e nao mais fora dele. Mesmo que isso possa significar um desmerecimento as suas habilidades de cuidar autonomamente do nascimento humano, a evidéncia desse muro separando os saberes é tao Clara que acredito nao haver alternativa que nao passe pelo coléquio entre esses pontos distantes do espectro de assisténcia. A entrada das parteiras no
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ambiente hospitalar, assumindo a fungao de doulas, pode oferecer o dialogo entre a experiéncia e a tecnologla, que beneficiaria a ambos, parteiras tradicionais e médicos. Mesmo que nao seja o mundo ideal de valorizagao do modelo de parteria, esta pode se tornar uma estratégia valida para manter vivo e atuante esse paradigma de atenoao a mulher. lnfelizmente, como ja afirmei antes, a ideia de oferecer esse contato recebeu algumas resisténcias importantes por parte de parteiras. Mesmo diante da evidéncia do rapido desaparecimento do trabalho das comadronas mexicanas, ainda sobrevive um discurso orgulhoso e despregado da realidade. lmpor’tantes lideres das parteiras ainda mantém uma postura de soberba, em um essencia/ismo que |. n50 tern mais sentido diante dos problemas enfrentados para a prépria sobrevivéncia da parteria tradicional. Muitas parteiras exibem seus curriculos corn nitida altivez. Seus partos sao contabilizados em mi’Jltiplos de mil (da mesma forma como alguns médicos fazem), para falar de uma experiéncia quase nunca comprovada objetivamente, mas sempre assumida como verdadeira. Falam de uma parteria pouco profissional (no sentido econémico) e cheia de glérias. Arrancam Iagrimas de nossos olhos a0 contar de sua dedicagao ao trabalho e do amor que nutrem pelas mulheres, mas nao falam das Obvias falhas que existem em um sistema baseado no aprendizado direto. absorvendo os conhecimentos de outra parteira. Seus discursos sao cheios de palavras de ordem e nostalgia, mas carecem de propostas viéveis para salvar um modelo que esta nitidamente desaparecendo. Algumas vozes importantes da parteria insistem no modelo de aprendizado direto. Esse é uma caracteristica muito clara de algumas liderangas, e me parece carecer de uma profundidade ideolégica que vise a preservagao do modelo, ao preocupar-se apenas em valorizar a experiéncia individual de algumas profissionais. Por mais que possamos admitir a importancia do aprendizado direto e informal, ele esta fadado a desaparecer, da mesma maneira como ocorreu com todas as outras profissoes que foram sugadas pelo sistema
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educacional formal. Nao me parece possivel imaginar que a parteria possa fugir dessa regra e apresentar uma alternativa diferente. As mesmas forgas que desembocaram na reprodugao sexual para a manutengao da vida operam na formagao dos profissionais das diferentes especialidades humanas. Essa estratégia facilita a produgao de novas variabilidades em organismos que se encontram com freq uentes desafios do meio ambiente (Wenda Trevathan, Human Birth — Foundations of Human Behavior, Aldine de Gruitier, N. York, 1897). Por essa razao, ela se sobrepés a cissiparidade (divisao celular simples) no curso do processo de evolugéo. As parteiras tradicionais resultam de um processo de clonagem das suas mestras, o que Ihes oferece um treinamento por contiguidade por vezes intenso, mas carente de variabilidade. As parteiras assim formadas aprendem as virtudes, mas tendem a manter os defeitos de suas mentoras. A universalidadega aprendiaagem, mesmo com o custo da especiaIizagao e fragmentagao do saber, produz uma maior disseminagao do conhecimento entre varios atores, da mesma forma que a reprodugao sexuada oferece a mistura adequada para a diversificagao genética, que protege as espécies das desgragas e tragédias que o meio ambiente nos expée. Inserir a parteria no ensino formal é um destino inquestionével, pols, além das virtudes apontadas acima, pode oferecer um sistema de controle social sobre o trabalho dessas profissionais, através de conselhos e sindicatos. O fim da parteria por aprendizado direto, como ainda é 0 padrao em muitos lugares pobres do mundo, é inevitavel. Ocorreu o mesmo com os médicos, os engenheiros, os advogados e 05 marceneiros. Temos, entretanto, o dever de resguardar as parteiras tradicionais existentes e protegelas, ao mesmo tempo em que investimos em uma formagao profissional consistente, forte e centrada em principios humanlstas. Infelizmente, nao foi esta a tonica que assisti no congresso. Ainda preocupadas com a glorificagao essencialista da parteria, em contraposigao a “frieza e insensibilidade" dos médicos, as parteiras podem estar perdendo o trem da histéria. Ao negar a necessidade de entrar no “mundo de verdade" através da profissionalizagao, entregam-
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se aos rituais de nostalgia e busca do “passado perfeito", procurando resgatar um reconhecimento que nao tem mais espago em um mundo
de complexidade crescente. Para combater a barbarie da obstetricia intervencionista, acenam com a pureza e o romantismo ingénuo, sem perceber que a realidade ao seu redor mudou e nao oferece mais lugar para visoes distantes do mundo de verdade. Marcela rne olhava com olhos de compaixao. Também ela aprendeu a amar as parteiras e entender-lhes 0 drama. No palco, as parteiras e antropologas se perfilavam para falar do "futuro do part0". Olha’vamos para tbsseis vivos de um mundo em que o nascimento ainda era tratado como algo préximo, carinhoso, caloroso e inserido nos designios da natureza. Esperei em vao que alguém cortasse sfundo na came, que colocasse 0 dedo na ferida, que fizesse doer, para que dessa dor surgisse uma esperanga. Nao foi dessa vez. Preferiram continuar a exaltagao da parteria e das profissionais dedicadas, amorosas e desveladas. Cantamos mais uma vez a mL'isica nostalgica do mundo maravi/hoso que se perdeu, sem nos darmos conta de que esta é a rotina da natureza: aqueles que nao se adaptam fenecem e morrem, dando lugar a uma espécie mais adaptada e, portanto, mais forte. Naquele congresso, estavam presentes parteiras profissionais americanas, enfermeiras obstetras e até médicas. As parteiras profissionais sao mulheres que realizaram cursos de parteria e 550 admitidas no sistema oficial dos Estados Unidos, capacitadas para atengao ao part0, e o realizam no hospital (no caso das nursemidwives, parteiras obstetras e das médicas) e no domicilio (no caso das CPMs — Certified Professional Midwives, parteiras de entrada direta, que fazem um curso de “parteria" e nao passam pela escola de enfermagem). Séo mulheres que moram em Cidades, dirigem carros e participam de uma sociedade moderna e tecnolégica. Ao lado dessas mulheres, durante todo o congresso, havia centenas de parteiras tradicionais do México e da Guatemala (San Cristébal fica a alguns poucos quilémetros da fronteira), que vivem em pequenas comunidades rurais, afastadas dos grandes centros urbanos,
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sendo muitas delas analfabetas. Havia um claro fosso cultural entre as parteiras urbanas do primeiro mundo com as parteiras rurais e terceiro-mundistas. No Ultimo dia do congresso, foi realizado um evento: uma festa de confraternizagéo, para que todas as participantes pudessem se divertir e se conhecer um pouco mais. 0 local escolhido foi uma “danceteria” moderna no centro da cidade. Para la fomos, eu e Robbie, para participar do encontro e conversar com amigos de “outros carnavais”. Quando nos dirigiamos para o encontro festivo, avistamos pela rua um pequeno grupo de alegres parteiras tradicionais da Guatemala. Com seus cabelos compridos e suas indefectiveis roupas coloridas, dirigiam-se para a mesma festa. Estavam entusiasmadas e excitadas, pois San Cristébal, com seus 150 mil habitantes, era muito maior que os vilarejos onde vivem na Guatemala. Reconheceram-nos e perguntaram a melhor maneira de encontrar o
enderego da danceteria; lndicamos;lhes o caminho e la se foram elas, felizes e\"ri‘sonhas. A mais'velha entre elas tinha entre 60 e 70 anos e parecia assustada com a cidade. Caminhava atras de suas colegas e tinha um olhar timido e desconfiado. Trajava uma saia comprida e colorida, e tinha os cabelos brancos e compridos, adornado com trangas compridas amarradas com uma fita vermelha. Quando elas se afastaram, e pude vé-Ias de longe, eu cutuquei Robbie e apontei em diregao a velha parteira de longas trangas. Robbie sorriu, e de seu sorriso surgiu uma Ia'grima de compaixao: a parteira guatemalteca estava descaloa. A velha parteira rumava para a moderna danceteria sem sapatos, para la escutar sons de outros paises, testemunhar dangas estranhas e tentar entender como podiam essas pessoas téo distintas e diversas estar pensando nos bebés que precisam nascer através de tantas e diferentes maos. A nudez daqueles pés trouxe para mim a mais vivida imagem do choque entre o velho e o novo, a tecnologia e a tradigao, mas pariu em mim a necessidade de honrar os pés descalgos daquela mulher, que tanto caminharam para dignificar o nascimento de suas irmas.
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Enquanto as lindas parteiras enchiam nossos coragoes com histérias de vida e dedicaoao a mulher, eu olhava para Robbie com tristeza e uma dor surda no coragao. Quem vai avisar a elas que a cidade esta’ sendo bombardeada enquanto se deliciam no banquete da nostalgia?
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8 - Genitélias Anacrfinicas
“Ela lutou, no limite de suas forges, mas nao foi possivel..." Assim Nadine explicou o que aconteceu. Deixou claro que, apesar de todos os esforgos, a mulher acabara sucumbindo a necessidade de extrair seu bebé pela via cirurgica. "Nada mais havia a fazer",
exclamou minha bela colega. “Como poden’amos agir diferente? Ela havia chegado ao seu limite, sua barreira definitiva. Manter—se atrelado ao intento de um parto normal seria arriscado, perigoso e .provavelmente injustificavel." Ainda mexendo meu expresso, respondi a Nadine. Havia no seu relato um desdobramento instigante, que nos obrigaria a refletir sobre a infinidade de oportunidades em que esse tipo de resultado aparece em nossas descrigoes de part0. Havia um mistério sobre essa questao, que se ocultava atras do na'o foi possivel ser normal... ~ Esse tipo de explicagao sobre um insucesso de part0 é sempre intrigante, apesar de doloroso. Se, por um lado, ficamos felizes pelo nascimento de uma crianga com saL'Jde, e pelo fato de uma mulher ter se empoderado a ponto de lutar pelo part0 que desejava, por outro lado nos entristecemos pelo resultado “pratico” do projeto: uma cesariana. Fosse esta uma mulher que escolheu ser operada e nada haveria a reclamar: ela apenas chamou para si 0 protagonismo e fez sua escolha. Mesmo que consideremos a decisao lamentavel, ainda assim é o exercr'cio benéfico da autonomia. Max abriu os bragos e fez uma careta, ao mesmo tempo em que exclamava: “Ha controvérsias, gafanhoto!" — Sei disso — continuei. — Mas vamos nos ater as questoes relativas as cesarianas, segundo as quais houve uma “falha” no processo de parir, e deixar para mais tarde o debate sobre os “limites do protagonismo". 0 case, que nos assombra com sua triste repetigao, é de alguém que Iuta pelo direito de parir de forma humana,
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digna e o mais natural posslvel, mas que esbarra em algum empecilho que a impede de conseguir tal intento. Mesmo que tenhamos muito claro o valor da tentativa, ainda nos sobra na boca o gosto amargo
de um processo que frustrou as expectativas e os desejos de tantos de nos. A pergunta que se repete indefinidamente é: por qué? Sera que o empoderamento, por si 36, e ineficaz? A informagao, a desmistificagao, o aclaramento das ideias, a posture de vanguarda em relagao aos seus direitos reprodutivos e sexuais serao mesmo inflteis ou insuficientes? Se a resposta for afirmativa, o que é Util entao? Nada? - Os casos como o que foi citado por Nadine se multiplicam até o ponto da banalizagao. Estaremos diante de uma clara degenerescéncia da raga? Ou apenas do género? Estarao as mulheres em franca desaparigao enquanto seres da biologia? Por que tantos casos de “falha de progressaoy, de “falta de dilatagao" ou de “sofrimento
fetal"?
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— Costumo dizer que, na condigao de homem, nada ha que o meu tataravo fizesse que eu também nao possa, com igual ou maior capacidade. Diga-me la: nao posso engravidar uma mulher? Nao posso correr, saltar, pescar, fugir, varar terras, Iangar-me no espago, invadir o escuro breu dos oceanos, cagar, até mesmo agredir e matar? Sim,
a tudo posso sem barreiras. Minha testosterona me permite tudo em
esséncia; a ela nada é sonegado. Nap consigo vislumbrar no macho qualquer trago de decadéncla, incompeténcia ou fragilidade. — Entretanto, a mulher, enquanto ser biolégico, parece estar em uma espiral descendente de atrofia. Suas mamas ja sao incapazes de produzir e fazer jorrar o leite da vida, o alimento essencial. De tao despropositadas, as mamas agora so servem de adornos a0 olhar masculino, diminuindo paulatinamente a fungao fisiolégica de nutrir e proteger os bebés. Uteros, outrora “matrizes” e “maes da vida", hoje em dia sao vistos como pegas antiquadas de uma maquinaria velha e retrégrada. Partos nao funcionam mais, pois dependem de Orgaos defectivos. Bebés enrolam-se perigosamente nos cordoes que, ironicamente, Ihes sustentam a vida. Os ossos da bacia apri-
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sionam bebés, que, por sua vez, séo grandes demais para cumprir o curto e sinuoso trajeto, ou téo pequenos que parecem frageis para suportar um part0. As contragées sao incompetentes, defectivas, erraticas e fracas ou, por outro Iado, 550 time fortes que ameagam o suprlmento de oxigénio ao pequenino prisioneiro, refém no escuro claustro materno. Mulheres atrofiam, decaem em lenta agonia; perdem sua esséncia, o diferencial feminino. Entretanto, por mais que isso possa parecer estranho, regozijam-se por nao mais precisarem sofrer a pena de serem simplesmente fémeas. Outrora acorrentadas aos grilhoes impostos pela natureza, agora brindam a desobrigagao de parir e nutrir. Quando gestantes, saUdam a tecnologia que as resgata da crueza inéspita de seus corpos defeituosos. Olham o corpo masculine e, mais do que desejarem, o invejam. Todos os artificios valem para que se igualem ao modelo da perfeigao, do qual guardam parecenga apenas pela costela que os une no mito. Quando nutrizes, agradecem pela tecnologia benfazeja que as liberta da prisao da amamentagao. Afastam-se dos seus filhos pequenos para cuidar da vida de mulher moderna, terceirizando a outros a tarefa milenar de dizer a0 bebé as primeiras silabas que este vai repetir. — llusao. Fogo-fa’tuo. Miragem... — A atrofia do feminino nao se esconde nas reconditas e saborosas dobras de sua carne tenra — continuei eu. — Esta na prépria imagem que projetam de si mesmas na tela da cultura. Magras, esqualidas, falicas e arrogantes; escondem o quanto podem o seio que, a0 brotar, denuncia um corpo de mulher. Depois o vendem a um olhar masculino pleno de avidez. lmploram que se rasguem seus ventres, para que o feto nao se obrigue a sair pela vagina selvagem e traigoelra. Suportam as piores dores nessa tarefa, mas tudo compensa: podem se dizer “Civilizadas", afastadas da incerteza de seus corpos fracos e de sua natureza inconfiavel.
— Quando recebo a noticia de uma cesariana em que a mulher lutou o quanto podia por um resultado diferente, penso o quanto de fracasso a prépria cultura determinou para esse caso. Nao seria um jogo de cartas marcadas, no qual apenas inconscientemente
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participamos? O quanto essa sociedade misogina cria uma psicosfera que impossibilita ao méximo o arrebatamento, a entrega, a liberacao, o soltar de rédeas. Penso também o quanto cada um de nés é responsavel, direta ou indiretamente, por um part0 que “poderia ter sido diferente”. Sera que tomamos partido diante de uma postura francamente depreciativa do feminino? Sera que Iangamos nossa voz com vigor adequado para gritar contra um modelo médico que considera as mulheres “contéineres defeituosos” de um produto social — o feto — delas ha muito tempo expropriado? Sera que acreditamos de verdade nas mulheres, ou apenas nos apiedamos das pobres vitimas que sofrem pela incompeténcia de flteros, ovérios e genita’lias anacronicas? Max resolveu se manifestar e interrompeu o fluxo de minhas palavras.
— Cada vez que ouco essas _noticias, me assoma a sflbita . l,“ . . . . rmpressao de éstarmos escutando, ainda a0 longe — mas de forma consistente — os estertores de uma civilizagao. — retrucou meu colega descabelado.
_,
— Pois entao eu pergunto a vocé, Max, se nossa luta nao é inl'Jtil e ingléria. Seriamos nos 05 soldados de Leénidas, massacrados pela avalanche das flechas de Xerxes a encobrir a luz de nossas ideias? Alias, havera luz ainda, depois que todos os petardos forem lancados? Havera futuro para a mulher e o feminino? Max sorriu e me disse: — Enquanto houver ainda uma mulher apenas que acredite em si mesma e nas suas capacidades, haveré a necessidade de pessoas que apoiem seus sonhos, seus direitos e seus anseios. — Uma Unica mulher, Max, e a Iuta tera valido a pena - concordei. — Existem ini'Jmeras evidéncias, respaldadas por observacoes e pesquisas, de que existe uma diminuicao clara de nossa vitalidade, mesmo que tenhamos progredido em longevidade — continuou Max em seu discurso inflamado. A virilidade e a fertilidade masculinas estao caindo vertiginosamente. O tipo de sociedade tecnocratica, patriarcal e baseada no consumo em que nos embrenhamos cobra
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um prego demasiado alto para quem dela obtém sustento e abrigo. O
pedagio pago esta cada vez mais difr’cil de esconder. As doencas cardiacas, por exemplo, sao fruto de dois fatores primordiais: o sedentarismo e 05 hébitos alimentares absurdos. No inr’cio do século passado, um caso de infarto agudo do miocardio era algo tao raro que merecia ser publicado em periodicos médicos como “caso interessante". Nos anos 1930, era rarissimo encontrar uma pessoa obesa trafegando na rua. Nessa época, as pessoas comiam em casa, entre os membros de uma familia ainda alargada, que continha avos, cunhados, tias, etc. Hoje, homens de 40 anos morrem de doengas cardiacas. Rapazes antes dos 40 anos de idade sofrem de Parkinson, como Michael J. Fox. Homens de 30 anos consultam por impoténcia; mulheres por anorgasmia. Nos anos iniciais do século XX, a solidao e o desamparo nao produziam as depressoes e 05 suicidios tipicos da nossa sociedade contemporénea. Tinhamos menos armamento para as doencas raras, como antibiéticos e cirurgias salvadoras; por outro lado, as pessoas comuns tinham muito mais capacidade de se recuperar de problemas banais. O mesmo acontecia com o part0. — A verdade é que se criou a ideia de um part0 problematico e mortal para que se justificasse a intervencao médica e drogal sobre o corpo da mulher, — emendei eu. E é sobre essa questao que quero debater. O que significa dizermos que as mulheres degeneraram seus corpos fisicos? A quem serve esse tipo de argumento? Max jogou seu corpo para trés, equilibrando-se nas pernas traseiras da cadeira, e continuou sua explanacéo. — As mulheres do século XIX, por certo, eram muito mais sedentarias quando comparadas com uma cacadora e coletora do paleoll’tico superior. Nao coletavam por horas carregando seus filhos as costas, nem comiam as rar’zes cruas que nossos antepassados utilizavam na dieta. Por outro lado, ainda guardavam uma semelhanga com nossas ancestrais no que concerne a sua insergao social. Pariam um “bom” nL'Jmero de filhos, amamentavam no seio, realizavam tarefas em que tinham que utilizar o corpo — e nao apenas apertar botées —, tinham muito menos ciclos menstruais e, consequentemente, menor
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ativagao estrogénica. Mesmo assim, elas serviram como exemplo de mulheres incapazes, frageis, incompetentes e que mereciam ter seus corpos e partos controlados pela nascente ciéncia obstétrica. Foi logo apos a aurora do século XX que os partos foram paulatinamente sendo jogados para os hospitais. Essa gigantesca migragao se acentuou nos anos 1940 no mundo ocidental, chegando aos quase 100% dos dias de hoje. Colocar as mulheres para ter seus filhos em um local construido especificamente para auxiliar as pessoas extremamente doentes nao é um sinal claro de como consideramos e entendemos o corpo feminino? — Entretanto, falar da degradagéo fisica da nossa espécie pode ser perigoso. Tenho um conhecido amigo obstetra que explica as (suas) cesarianas exatamente com esse argumento. Diz que as mulheres “degeneraram”, enfraqueceram, decairam e, por essa razao, tornaram—
se incapazesgesuportar as agruras de um trabalho de part0. As dores e angflstias, outrora aceitaveis, hoje sao insuportaveis. Ele diz que essas mulheres necessitam ser operadas em fungéo da clara “atrofia” de seus corpos. Dessa forma, a prépria incapacitagao crescente de nossa espécie, causada por um estilo de vida apartado do “ambiente de adaptagao evolutiva”, é a justificativa para a intervengao também crescente, nutrindo o circulo vicioso de incapacitagéo-intervengta'oatrofia, que se retroalimenta indefinidamente. — Minha ideia ao demonstrar que o homem parece nao ter sofrido a mesma degenerescéncia que a mulher se baseia na sua aqao social mais evidente. Ainda nao fomos proibidos de exercer qualquer atividade em fungéo de uma pretensa falta de capacidade. Ainda nao
fomos impedidos de cagar. arar a terra, amar uma mulher. Subimos montanhas e varamos rios, sem que ninguém nos impega. As mulheres, por seu turno, estao “proibidas” de parir seus filhos através de suas préprias forgas e capacidades. A elas sonegamos esse direito, por considerarmos que seus corpos n50 sao competentes para fazer isso com seguranga. Nossa intervengao é tardia porque somente agora temos a capacidade técnica de intervir sobre os mistérios do nascimento.
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— Nao consigo encontrar nenhuma discordancia entre minhas ideias e as previsoes funestas sobre o destino que nosso estilo de vida nos reserva. Acredito piamente que temos uma grave decisao a tomar em um futuro préximo e que esté relacionada com nossa prépria sobrevivéncia como espécie. Ou mudamos radicalmente nossa atitude em direoao a ecologia ampla e a relagao com a natureza ou teremos uma humanidade tao doente que nem as cirurgias, vacinas e todas as drogas serao capazes de oferecer algum alivio. — A extingao sera a consequéncia Obvia, pelo completo distanciamento da nossa natureza intima. Ou talvez a L'mica saida seja mesmo a “ciborguificagao total". Despregados de nossos corpos talvez habitemos ma'quinas, que de n6s guardarao apenas o cerne .-das ideias. Despojados de nossas antigas ferramentas fisicas, volitaremos pelo espago, visitaremos constelagoes e penetraremos o Sol. A noite, antes de dormir, levaremos nossos pequenos filhosmaquina para o repouso dos transistores, e lhes contaremos histérias épicas, de guerreiros e dragoes, fadas, cavaleiros e princesas. Antes que o pequenino feche seus olhos, verteremos uma lagrima cibernética, quimicamente preparada, lembrando do tempo em que ainda sentiamos um coragéo de crianga bater no peito, quando a doce sensagao de sua pele nos enchia de amor e felicidade. Olhando o metalico corpo que se coloca em standby diante de nossos olhos, uma gota de resina azulada escapa por entre as palpebras mecanicas. — Amor? Como sera’ que era? Felicidade? Que palavra tosca...
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9 - Dos Merecimentos
Nadine agora estava claramente indignada com as palavras que estavam sendo ditas, e 05 conceitos que elas carregavam. — Ficar dizendo que a mulher merece o part0 que tem me soa desumano — disse Nadine. — Como afirmar isso se ela vem buscando ter um part0 humanizado, se ela n50 é uma alienada? Vocé parece estar coiocando mais um fardo de culpa sobre as costas sofridas de uma mulher.
Max aproveitou a deixa e arrematou as minhas palavras. — Nao se trata de ser desumano, minha linda colega, mas ser realista. Dizer isso é uma tentativa de tratar as mulheres como genie grande. Alias, o Ric nao disse a mulher merece 0 part0 que tem. E
um pouco diferente, mas essa “singela” diferenga é exatamente 0 ponto que ele queria destacar. O que o Ric falou, e que eu concordo plenamente, é que as mulheres tém o part0 que merecem. Ele disse mais ainda: faiou que os médicos — que recebem até 200 reais para atender um parto por convénio — recebem um pagamento merecido. Disse também que temos a policia e 05 politicos que merecemos. Temos também a criminaiidade a que fazemos jus. Essas coisas nao acontecem por acaso. Elas acontecem porque assim o permit/mos. Séo construgées que emanam da dinamica, consciente ou inconsciente, da sociedade. Pagamos um milhao de reais por més para um jogador de futebol porque assim determina a nossa neurose, e pagamos uma miséria para professores porque achamos que podemos pagar pouco, pois eles nao farao muito alarde. E eu, pessoalmente, nao acho aceitavel quando alguém diz: Mas eu pago meus impostos, eu sou honesto, nao fago dividas que n50 possa pagar. Eu nao merego a po/itica-medicina-p0/icia-saljde-aposentad0ria que esta’ ai. Merece sim, seja por inagao, por conivéncia ou conveniéncia, pois sabemos que em uma sociedade fazer a sua parte é insuficiente.
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Se 0 modelo precisa ser mudado, é importante que parcelas significativas da populacao entendam e aceitem lutar por uma proposta, na sadde, na economia ou na administragao. — As mulheres, enquanto género, recebem, sim, o parto que
merecem — disse eu, mirando a curvatura sensual das sobrancelhas de Nadine. — Nao se esquegam de que as mulheres sempre esperaram por esse um cavaleiro andante. Esta na nossa cultura, no sonho do “bom casamento", nos “enxovais” que sao feitos antes da adolescéncia, nas bonecas Barbie e nas historias infantis que povoam
o imaginério feminino. Esta’ la, em todas as culturas em que o patriarcado triunfou. Enquanto as mulheres se mantiverem aguardando o principe encantado, nada vai se modificar. — Ora, limitar—se a reclamar dos obstetras, ou do mundo todo em volta, é manobra escapista — continuou Max. — Nada vai cair no
colo de ningyfim! N50. existe obstetra salvador. Existem apenas obstetras que reconhecem o poder das mulheres e aceitam as determinaooes que emanam delas. O que eu acredito como verdadeiro progresso nas relaooes sociais é a abolioao do modelo alienante, e a criacao de um paradigma novo, onde prepondere a horizontalidade, e no qual as mulheres tenham forca enquanto grupo para reivindicar um tratamento minimamente humano. Eu nao aceito o vitimismo, minha linda doutora. Estou velho demais para acreditar nessas histérias. Nadine resolveu se manifestar, aproveitando o instante em que Max sorveu as Ultimas gotas do seu cappuccino. — Por favor, meus queridos colegas — disse ela — nao me parece razoével responsabilizar as mulheres, oferecendo a elas a culpa pelos fracassos. Nao é disso que se trata. Nao é admissivel jogar sobre suas costas mais esse peso, quando por razoes mUItiplas e complexas nao conseguem vencer os desafios de mae e nutriz, por mais que tenham se esforoado para alcanoar este objetivo. 0 verdadeiro drama para nés reside em aceitar que algumas mulheres fraquejem diante dessas provas, apesar de nosso empenho e do seu esforgo pessoal. E isso nos vemos todos os dias. Nao se trata de
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negligencia. trata—se de um limite pessoal do qual nds nao temos condigoes de avaliar. — Para quem quiser entender o que digo com relagao a isso, eu recorro ao cinema. Ah, 0 cinema sempre! Depois da poesia e da literatura, minha maior fonte de inspiragao. Tenho certeza de que vocé lembra este filme, Ric: “O Resgate do Soldado Ryan". Acenei positivamente com a cabega. Um filme do Spielberg, com Tom Hanks e Matt Damon. Ainda tinha viva na meméria a cena inicial do filme e a ferocidade bestial do desembarque aliado no norte da Franca. Nadine continuou sua explanacao. — Nesse filme — continuou Nadine — existe uma cena tocante, que vocés devem se lembrar. O cenario é de total desolagao. Ruinas .-se misturam corn corpos despedagados, mutilados e calcinados. No aposento de cima de uma casa abandonada, urn soldado americano esta em luta mortal contra um inimigo alemao. Esgotadas as balas nos fuzis, o confronto se estabelece no corpo a corpo. Lentamente um colega seu se aproxima da oasa onde se trava a luta, e com ele carregamos a esperanga de que seu parceiro sera salvo. Entre eies apenas uma escada. O soldado salvador da 05 primeiros passos em diregao ao andar superior, onde a luta feroz esta chegando ao seu final, e todos pensamos que ali esta’ a salvacao. — Entretanto, ele para. Paralisado de medo, nao consegue mover as pernas. Transpira profusamente, treme, chora e por fim cai ao chao abatido. A plateia sofre junto, mas acima de tudo se indigna. Como vocé pode parar quando seu amigo, seu irma'o, seu parceiro esta" morrendo nas maos do inimigo? — O soldado, que na verdade era um telegrafista, sem preparo para esse tipo de selvageria, parece entender a nossa indignacao e chora, caido ao solo, envolto em sua vergonha. Esse soldado representa a fragilidade que existe em cada um de n65. Assim como em 1984, de Orwell, onde os ratos eram o limite possivel da resisténcia do herdi, em ”0 Resgate do Soldado Ryan" 0 limite do personagem era a violéncia explicita de uma guerra absurda.
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— Mas eu Ihe pergunto, meu amado colega, Ric, quem sao esses
heréis decaidos? Seres bizarros e extravagantes, habitantes da cabeca alienada de um ficcionista imaginativo? Cu 0 retrato claro daquilo que existe escondido em nos? Somos todos um pouco como esses personagens, mas com a sutil diferenca de ainda nao termos encontrado o nosso limite. Muitas mulheres, amigas, vizinhas, companheiras e parceiras encontram tais limitacoes na hora de gestar, parir e amamentar. Caem ao solo chorando, paralisadas, e per mais que tentemos ergué-las mantém-se iméveis junto a0 chao. Sera justo julga-las apenas porque seus limites ficaram Obvios para n65? Ou sera mais L'itil acolhé-las e entendé-las? Olhei com ternura minha querida colega e respondi: — Nao estou criticando as mulheres que, por uma razao ou outra, se frustraram no intento deter um part0 humanizado. Sei exatamente do sofrimentqpelo qualelas passam, pois lido corn isso ha 30 anos. Posso entender claramente a dor e a indignacao diante da dificuldade de conseguirem um part0 respeitoso e digno. Entretanto, minha intervencao apenas se prende a necessidade de ultrapassarmos a
fase de lamentacao e partir para o ataque. Sim, atacar 0s pontos que consideramos errados na atencao as gravidas. Todos nés conhecemos dezenas de mulheres que pararam de reclamar e arregacaram as mangas para transformar a realidade dos nascimentos em suas cidades. Acoes na prefeitura, nos hospitais, entre os politicos, na
sua comunidade, etc. Precisamos que essa indignacao se transforme em acao. Max sorriu para mim e surpreendentemente me piscou o olho. O
que havia por detras desse sorriso? O que estava querendo me dizer? A resposta, mal sabia eu, viria ainda no final daquele dia.
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10 - Part0 Humanizado
Minha conversa rolava solta corn Max e Nadine na cafeteria. O sistema de som agora insistia no “sertanejo universitario", o que deixava Max enlouquecido. Ele aproveitava para se divertir inventando as letras e cantando junto com a dupla, e comemorava todas as vezes que acertava a estrofe ébvia. Nadine aproveitou o momento cultural para me cutucar a respeito do termo que usavamos havia alguns instantes. — Ric, meu caro... Por que vocé insiste em falar de “humanizar o nascimento"? Por acaso o part0 que nos fazemos nos hospitais n50 é em seres “humanos”? Por acaso nossa visao de sal'Jde e doenca e' sobre algum outro primata ou sobre algum réptil ou anelideo? Nao esta na hora de trocarmos essa expressao por algo mais sutil, menos agressivo, mais amplo, mais abrangente e que tenha mais a ver com sua proposta de “suavizar” o atendimento? Eu acredito que essa denominagao de “humanizado” aos partos realizados por alguns obstetras acaba construindo uma oensura muito cruel sobre toda a pratica contemporénea tradicional, que fica sendo conhecida como “desumanizada” em oontraponto a esse modelo novo. Nao me parece justo. Eu ja havia escutado esse questionamento centenas de vezes, mas nunca de uma boca tao linda e formosa. Muitas vezes, vi colegas ficarem magoados com a expressao “humanizacao” do nascimento, dizendo que um projeto assim nominado acaba por ofendé-los, a0 conceituar o seu trabalho como “desumano”. Nao se trata de discutir o que é “humano” ou nao, mesmo que eu me lembre de tantas historias terriveis de violéncia contra a dignidade das mulheres que eu presenciei nesses anos todos. A maioria dessas violéncias é sutil e dificilmente perceptivel aos olhos e aos coragées desarmados. Mas sao histérias de brutalidade para as quais os conselhos das
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corporagées néo oferecem nenhuma reparagao, nem mesmo censura, porque as agoes néo sao reconhecidas como violentas pela cultura. Esse é o modelo; esse é o padrao. Nascer em paz é verdadeiramente para muito poucos. Respondi a minha bela colega sem tirar os olhos das mechas douradas de cabelo que insistiam em refletir a luz que vinha da rua. — Nadine, a discussao sobre “cesariana versus part0 normal" é muito antiga entre aqueles que se interessam pelas repercussdes da vida contemporanea nas questoes relacionadas com o nascimento. Quem milita em algum movimento em prol da humanizagao sabe que esse debate vai e volta, sistematicamente, como um ioio ideolégico. Essa ética especffica da humanizagao, como algo relativo a0 “humano”, ja foi amplamente debatida e retorna sistematicamente de tempos em tempos. Eu tenho um ponto de vista bem claro sobre o assunto. Em minha visao, a “Hu_maniza