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Portuguese Pages 189 Year 2021
ENSINO RELIGIOSO
DESAFIOS E
PERSPECTIVAS
Organização
EDUARDO MEINBERG DE ALBUQUERQUE MARANHÃO Fº
simpósio internacional amar e mudar as coisas
Eduardo Meinberg de Albuquerque Maranhão Fº
(Organização)
ensino
Religioso desafios e perspectivas
Coleção ENSINO RELIGIOSO
1º Simpósio Internacional Amar e Mudar as Coisas
Af(é)tos, Direitos Humanos e Sensibilidades Religiões, Resistências e Diversidades
Textos Completos do 1º Simpósio Internacional Amar e Mudar as Coisas: A(fé)tos, Direitos Humanos e Sensibilidades; Religiões, Resistências e Diversidades. UFPB, 08 a 13 de dezembro de 2019. João Pessoa, Paraíba, Brasil. O conteúdo dos textos e a adequação aos pareceres é de inteira responsabilidade das/es/os autoras/es, não refletindo necessariamente a opinião de quem organizou a obra, da FOGO Editorial e da AMAR (Associação Internacional de Estudos de Afetos e Religiões). Realização; FOGO Editorial / AMAR (Associação Internacional de Estudos de Afetos e Religiões) / EDUCAR (Núcleo de Estudos de Educação, Afeto e Religião / AMAR). Apoios: Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes da Universidade Federal da Paraíba (CCHLA/UFPB). Organização da Coletânea Ensino Religioso: Eduardo Meinberg de Albuquerque Maranhão Fº. Projeto Gráfico: FOGO Editorial. Coordenação de Revisão: Patricia Leonor Martins. Produção Editorial: Fábio L. Stern e Eduardo Meinberg de Albuquerque Maranhão Fº. Capa: Claudia Intatilo Esta obra foi produzida na Casa do Amor, situada na Praia do Amor (Conde, litoral sul paraibano, Brasil); e na “Ilha da Magia” (Florianópolis, litoral catarinense, Brasil).
E59 Ensino Religioso : desafios e perspectivas / Eduardo Meinberg de Albuquerque Maranhão Fº. (Organização). Florianópolis : FOGO / AMAR, 2021. 199 p. – (Ensino Religioso) Inclui referências ISBN: 978-65-994425-5-1 1. Ciência das Religiões. 2. Ciências das Religiões. 3. Laicidade. 4. Educação. 5. Ensino Religioso. 6. Diversidades. 7. Direitos humanos. I. Maranhão Filho, Eduardo Meinberg de Albuquerque. II. Série. CDU: 291
Catalogação na publicação por: Onélia Silva Guimarães CRB-14/071 Todos os direitos reservados e protegidos pela Lei 9.610 de 19/02/1998. Proibida a reprodução parcial ou integral desta obra, por quaisquer meios de difusão, inclusive internet, sem a prévia autorização da FOGO Editorial, detentora de todos os direitos da obra. ID do Direito Autoral: DA-2021-012416
CNPJ da FOGO: 41.360.800 / 0001-09
Uma Associação com partido
Livros feitos com AMOR
A FOGO gerou a AMAR sob a lua cheia de uma sexta feira 13, durante o primeiro Simpósio Internacional Amar e Mudar as Coisas (UFPB, 2019), organizado pela editora. De lá para cá, a AMAR foi se constituindo uma Associação com o coração partido (com tanta falta de responsabilidade e educação por parte do atual governo federal), e que toma partido dos a(fé)tos, sensibilidades e diversidades, atuando em prol de uma Educação emancipatória, crítica, acolhedora e amorosa.
O AMOR trouxe a FOGO ao mundo. Nascida de uma fogueira realizada em uma lua cheia de agosto, os trabalhos da FOGO são delicadamente selecionados e produzidos com o respeito e a(fé)to que você merece, refletindo ações (cri)ativas e uma Educação respeitosa a todas as sensibilidades e diversidades.
Juntas, a FOGO e a AMAR realizam uma série de atividades, com ênfase em eventos internacionais de participação gratuita e em premiações internacionais. E em breve acolheremos outras coisas que você também vai amar. Que tal participar deste movimento com a gente? Vem conosco à AMAR
A FOGO edita trabalhos acadêmicos relacionados: a) a uma miríade de conexões entre as religiões e religiosidades e suas interfaces / b) à educação / c) aos a(fé)tos, emoções e sensibilidades / d) a gêneros, sexualidades e diversidades. Nossos trabalhos também estão abertos para obras infantojuvenis a partir do selo Chaminha e para obras não acadêmicas como romances e poesias. Você já se encantou com a FOGO? Vem amar com a FOGO
A FOGO e a AMAR são, respectivamente, uma Editora e uma Associação Internacionais com enfoque nas relações entre a(fé)to e religião, política e educação. Nossos trabalhos encontram-se em nosso Portal de Fogo Amoroso e são sintetizados na frase que o inicia: “Sabe o que nos interessa mais? Amar e Mudar as Coisas”, inspirada na canção Alucinação, de Belchior. E você, o que está esperando para vir com a gente?
Como referenciar este livro: MARANHÃO, Fº. Eduardo Meinberg de Albuquerque (Org.). Ensino Religioso: desafios e perspectivas. Florianópolis: AMAR; FOGO, 2021.
AMAR
ASSOCIAÇÃO INTERNACIONAL DE ESTUDOS DE AFETOS E RELIGIÕES Uma Associação Com Partido Conselho Diretor Eduardo Meinberg A. Maranhão Fº (Flor), Brasil (Presidência) Patrícia Fogelman, Argentina (Vice-Presidência) Claudia Touris, Argentina (Secretaria Geral)
Clarissa de Franco, Argentina/Brasil (Secretaria Geral) Fernanda Marina Feitosa Coelho, Brasil (Tesouraria)
Coordenações Nacionais AMAR Angola – Elvira Moisés AMAR Argentina – Patricia Fogelman AMAR Brasil – Du Meinberg Maranhão (Flor) AMAR Camarões – Elias K. Bongmba AMAR Colômbia – Maricel Mena López AMAR Costa Rica – Silvia Regina de Lima Silva AMAR Estados Unidos - Keila Pinezi
AMAR Honduras - Reinaldo Reyes AMAR Itália – Tiziana Tonon AMAR México – Renee de la Torre AMAR Polônia – Renata Siuda-Ambroziak AMAR Portugal – Paulo Mendes Pinto AMAR Suécia – David Thurfjell AMAR Venezuela – Cantaura La Cruz
Comissões Especiais • Comissão Infanto Juvenil (CHAMINHA) • Comissão de Acessibilidade e Anticapacitismo • Comissão de Artes e Afetos • Comissão de Mulheres Negras e Indígenas / Antirracismo
• Comissão de Combate à Intolerância Religiosa • Comissão de Ética • Comissão Queer, Transgênera e Não Binária • Conselho Fiscal
Núcleos e Grupos de Pesquisa e Extensão criados na AMAR ALEGRAR – Núcleo de Estudos de Gênero, Afeto e Religião / AMAR AMADURECER – Núcleo de Estudos em Religiosidades, Educação, Meio Ambiente e Políticas Públicas / AMAR - IFPR - FAMA EDUCAR – Núcleo de Estudos de Educação, Afeto e Religião / AMAR RELIGMI – Grupo de Estudos e Pesquisas de Religião e Migração / AMAR TRANSAR – Grupo de Estudos Queer, Não Binários e Transgêneros / AMAR
Núcleos e Grupos de Pesquisa e Extensão filiados à AMAR CEPRES – Centro de Estudos Religiões, Religiosidades e Politicas Públicas / PPGH-UFAP FIDELID – Grupo de Pesquisa Formação, Identidade, Desenvolvimento e Liderança / PPGCR-UFPB MANDRÁGORA NETMAL – Grupo de Estudos de Gênero e Religião /PPGCR-UMESP OCRE – Observatório de Cultura, Religiosidades e Emoções / PPGA-UFPE VIDELICET Religiões – Grupo de Estudos em Intolerância, Diversidade e Imaginário / PPGCR-UFPB
Instituições filiadas Mestrado em Ciência das Religiões – Universidade Lusófona, Portugal Frente da Diversidade Religiosa da Paraíba – Paraíba, Brasil
VEM CONOSCO À AMAR
Saiba mais em: www.amarfogo.com
FOGO EDITORIAL Livros feitos com AMOR Coordenação científica Eduardo Meinberg de Albuquerque Maranhão Fº (Flor), Brasil
Conselho científico internacional Alejandra Oberti, Universidad de Buenos Aires, Argentina. Alejandro Frigerio, Universidad Católica Argentina / CONICET, Argentina. Cecilia Delgado-Molina, Universidad Nacional Autónoma de México, México. Cecilia Maria Bacellar Sardenberg, Universidade Federal da Bahia, Brasil / Boston University, Estados Unidos / University of Sussex, Inglaterra. Claudia Touris, Universidad de Buenos Aires, Argentina. Cristina Pompa, Universidade Federal de S. Paulo, Brasil / Universidade de Udine, Itália. Dario Paulo Barrera Rivera, Universidade Metodista de São Paulo, Brasil / École d’Hautes Etudes en Sciences Sociales, França.
Laila Rosa, Universidade Federal da Bahia, Brasil / New York University, Estados Unidos / Universidad Autónoma de la Ciudad de México, México. Luis Bahamondes González, Universidad de Chile, Chile. Margarita Zires, Universidad Nacional Autónoma de México, México. Maricel Mena López, Universidad Santo Tomás, Colombia. Marie Hélène / Sam Bourcier - École des Hautes Études en Sciences Sociales, França. Mari-Sol García Somoza, Universidad de Buenos Aires, Argentina / Canthel / Université Paris Descartes, França. Mary Lucy Murray Del Priori, Universidade de São Paulo, Brasil / Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales, França. Néstor da Costa, Universidad Católica del Uruguay, Uruguai.
David Thurfjell, Södertörn University, Suécia.
Nicolás Panotto, FLACSO, Argentina.
Donizetti Tuga Rodrigues, Universidade da Beira Interior, Portugal.
Oscar Calávia Sáez, Universidade Federal de Santa Catarina, Brasil / Universidad Complutense de Madrid, Espanha.
Einar Thomassen, European Association for the Study of Religions (EASR) / University of Bergen, Noruega.
Pablo Pozzi, Universidad de Buenos Aires, Argentina.
Elias Bongmba, Rice University, Estados Unidos / African Association for the Study of Religions (AASR), África.
Pablo Wright, Universidad de Buenos Aires, Argentina.
Florence Marie Dravet, Universidade Católica de Brasília, Brasil / Universidade de Paris III - Sorbonne-Nouvelle, França. Francisco Díez de Velasco, Universidad de La Laguna, Espanha. Francirosy Campos Barbosa, Universidade de São Paulo, Brasil / University of Oxford, Inglaterra. Gabriela Scartascini, Universidad de Guadalajara, México. Giuseppe Tosi, Universidade Federal da Paraíba, Brasil / Università degli Studi di Firenze, Itália. Giovanni Casadio, European Association for the Study of Religions (EASR) / Università degli Studi di Salerno, Itália. Javier Romero Ocampo, Universidad de Chile, Chile. João Eduardo Pinto Basto Lupi, Universidade Federal de Santa Catarina, Brasil / Universidade Católica de Portugal, Portugal / Boston College, Estados Unidos. Joana D’Arc do Valle Bahia, Universidade Estadual do Rio de Janeiro, Brasil / Universidade de Lisboa, Portugal. Jorge Botelho Moniz, Universidade Nova de Lisboa, Portugal. Juan Esquivel, Associación de Cientistas Sociales del Mercosul (ACSRM) / Consejo Nacional de Investigaciones Científicas y Técnicas (CONICET), Argentina.
Pablo Semán, Universidad Nacional de San Martin, Argentina.
Paulo Mendes Pinto, Universidade Lusófona, Portugal. Patricia Fogelman, Universidad de Buenos Aires, Argentina. Rita Laura Segato, Universidade de Brasília, Brasil / Universidad Nacional de San Martin, Argentina. Roberta Bivar Carneiro Campos, Universidade Federal do Pernambuco, Brasil / University of St. Andrews, Escócia. Rodrigo Ferreira Toniol, Universidade de Campinas, Brasil / Utrecht University, Holanda / University of California San Diego, Estados Unidos / Ciesas/Guadalajara, México. Rudolf Eduard von Sinner, Pontifícia Universidade Católica do Paraná, Brasil / Center for Theological Inquiry (CTI), Estados Unidos / Lichtenberg-Kolleg em Göttingen, Alemanha / Universidade de Basiléia e Universidade de Berna, Suíça. Stefania Capone, Ecole d’Hautes Etudes en Sciences Sociales, França. Steven Joseph Engler, Mount Royal University, Canadá. Stewart Hoover, University of Colorado, Estados Unidos. Tim Jensen, International Association for the History of the Religions (IAHR) / University of Southern Denmark, Dinamarca. Veronique Claire Gauthier De Lecaros De Cossio, Pontificia Universidad Católica del Peru, Peru.
Conselho científico brasileiro Alexandre Brasil Fonseca, UFRJ.
Leyla Thays Brito da Silva, UFPB.
Ana Maria Clocet, UNICAMP.
Magali do Nascimento Cunha, MIRE/INTERCOM.
André Chevitarese, UFRJ.
Marcelo Ayres Camurça, UFJF.
André Sidnei Musskopf, UFJF.
Marcelo Tavares Natividade, UFC.
Aramis Silva, UNIFESP.
Maria Lúcia Abaurre Gnerre, UFPB.
Ari Pedro Oro, UFRJ.
Maria Luiza Tucci Carneiro, USP.
Artur Cesar Isaia, UNILASALLE.
Melvina Afra Mendes de Araujo, UNIFESP.
Carlos André Cavalcanti, UFPB.
Mundicarmo Maria Rocha Ferretti, UEMA.
Cecilia Loreto Mariz, UERJ.
Nadia Maria Guariza, UNICENTRO.
Clarissa de Franco, UMESP.
Paula Montero, USP.
Claudio de Oliveira Ribeiro, UFJF.
Patricio Carneiro, UNILAB.
Christina Vital da Cunha, UFF.
Raymundo Heraldo Maués, UFPR.
Durval Muniz de Albuquerque Jr., UFRN.
Regina Novaes, UFRJ.
Edlaine de Campos Gomes, UFRJ.
Ricardo Mariano, USP.
Elcio Cecchetti, UNOCHAPECÓ.
Ricardo Mário Gonçalves, USP.
Emerson Giumbelli, UFRGS.
Rosa Maria de Aquino, UFPE.
Etienne Higuet, UFJF.
Rosane Cristina de Oliveira, UNIGRANRIO.
Frank Antonio Mezzomo, UNESPAR.
Rosangela Wosiack Zulian, UEPG.
Georgiane Garabely Heil Vásquez, UEPG.
Sandra Duarte de Souza, UMESP.
Gilbraz Aragão, UNICAP.
Sergio Junqueira, UFPR.
Gizele Zanotto, UPF.
Solange Ramos de Andrade, UEM.
Gustavo Soldati Reis, UEPA.
Sônia Weidner Maluf, UFSC.
Ivanir dos Santos, UFRJ.
Stela Guedes Caputo, UERJ.
Jacqueline Moraes Teixeira, USP.
Tânia Mara Campos de Almeida, UnB.
Jérri Roberto Marin, UFMS.
Uipirangi Câmara, Faculdades OPET.
Joana Célia dos Passos, UFSC.
Vanda Fortuna Serafim, UEM.
Joana Maria Pedro, UFSC.
Zuleica Dantas, UNICAP.
Joanildo Albuquerque Burity, Fundação Joaquim Nabuco.
Zwinglio Mota Dias, UFJF.
Leila Marrach Basto de Albuquerque, UNESP.
VEM COM A FOGO
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“Educar é um ato de amor e um ato de coragem” Paulo Freire
Esta obra é dedicada A Paulo Freire, Patrono da Educação Brasileira, que em 19 de setembro de 2021 completaria 100 anos. A Airton Luiz Jungblut, autor da FOGO Editorial, que faleceu durante a pandemia de COVID-19 em 2020. À Dávila Andrade, Coordenadora de Grupo de Trabalho do Simpósio Internacional Amar e Mudar as Coisas, falecida por COVID-19 em 2020. Às milhares de vidas perdidas pela pandemia de COVID-19 no Brasil, ocasionadas em grande parte por conta da negligência e irresponsabilidade de um governo federal negacionista, autoritário, mau educado(r) e anticientífico. Pedimos AMOR e #ForaBolsonaro
SUMÁRIO
Prefácio Dos magistérios eclesiásticos para os magistérios acadêmicos
11
Gilbraz Aragão
Prefácio Ensino religioso: de volta para o futuro
19
Paulo Agostinho N. Baptista
Carta da AMAR e da FOGO a Paulo Freire: AMAR e impeachment já!
25
Eduardo Meinberg de Albuquerque Maranhão Fº
Simpósio Internacional AMAR e Mudar as Coisas: Apresentando desafios e novos olhares do Ensino Religioso em sala de aula
31
Eduardo Meinberg de Albuquerque Maranhão Fº
Campo dos estudos de religião no Brasil: desafios e perspectivas
45
Gilbraz Aragão
Ensino Religioso: desafios e perspectivas
59
Danielle Ventura de Lima Pinheiro
Ensino Religioso: desafios em diferentes espaços
77
Edile Maria Fracaro Rodrigues Sérgio Rogério Azevedo Junqueira
Formação de docentes para o Ensino Religioso: desafios e perspectivas
95
Josiane Crusaro Simoni Elcio Cecchetti
Ensino Religioso nas escolas públicas: um desafio à laicidade do Estado
113
Tália de Azevedo Santos Giuseppe Tosi
Desafios em tempo de polarização político-religiosa nos espaços escolares
129
Marinilson Barbosa da Silva
Ensino Religioso e Epistemologia do A(fé)to: Perspectivas e desafios entre a Educação de Paulo Freire e a falta de educação de Jair Bolsonaro
139
Eduardo Meinberg de Albuquerque Maranhão Fº.
Ressignificando a prática docente em tempos de pandemia: o uso dos jogos, brinquedos e brincadeiras nas aulas de Ensino Religioso como desafio e perspectiva
163
Daniel Ribeiro Ferreira Junior Marcos Vinicius de Freitas Reis
Ensino Religioso e literatura: veredas, travessias e desafios
179
Juliana Rabaioli Elcio Cecchetti
Posfácio Ensino Religioso, o carro-chefe da Ciência da Religião aplicada brasileira Rodrigo Oliveira dos Santos Fábio L. Stern
195
DOS MAGISTÉRIOS ECLESIÁSTICOS PARA OS MAGISTÉRIOS ACADÊMICOS Prefácio
Gilbraz de Souza Aragão Trabalha na Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP) desde 1991, sendo hoje Professor Titular e Pesquisador nos Programas de Pós-graduação em Ciências da Religião e em Teologia. É também Colaborador no Programa de Pós em Ciências das Religiões da UFPB. É Coordenador do Grupo de Pesquisa Interuniversitário sobre Espiritualidades, Pluralidade e Diálogo (CNPQ), desde 2009, e do Observatório Transdisciplinar das Religiões no Recife, a partir de 2005. Mantém pesquisa sobre teologia cristã e diálogo inter-religioso, transdisciplinaridade e estudos de religião.
[email protected]
Como referenciar este capítulo: ARAGÃO, Gilbraz de Souza. Dos magistérios eclesiásticos para os magistérios acadêmicos. In: MARANHÃO, Fº. Eduardo Meinberg de Albuquerque (Org.). Ensino religioso: desafios e perspectivas. Florianópolis: AMAR; FOGO, 2021, pp. 11-17.
ENSINO RELIGIOSO: DESAFIOS E PERSPECTIVAS
Quero saudar a Coleção Ensino Religioso que a FOGO Editorial e a Associação Internacional de Estudos de Afetos e Religiões (AMAR) estão lançando. Com certeza, a compreensão do fator religioso é hoje um campo importante de conhecimento para o avanço ou retrocesso da civilização e o discernimento do modo como a escola tematiza a religiosidade pode ajudar ou atrapalhar os processos humanistas de emancipação. O chamado Ensino Religioso não deveria mais ser entendido como doutrinação de uma religião ou ensinamento das religiões, e sim como aprendizagem cidadã (e não religiosa) sobre os fatos espirituais. Por que, então, não avançamos? Cada vez mais temos escutado em ambientes de educação que “se você não tiver contato com Deus, você está perdido”. Essa atitude pedagógica vem do tradicionalismo1, filosofia que inspira os gurus bolsonaristas Olavo de Carvalho e Steve Bannon (e que tem vínculos históricos com o nazifascismo) e acredita que a religião deve estar no centro da sociedade ao invés da democracia secular, que o cristianismo é a religião verdadeira que deve suplantar toda diversidade cultural. Acredita que a competição capitalista e a hierarquia (encabeçada por empresários brancos e machos) deve superar as lutas modernas por liberdade de expressão e igualdade econômica, que a racionalidade científica e a solidariedade ecológica devem retroagir à submissão e metafísica medievais (este mundo está condenado e nossa meta é o céu), que o nacionalismo populista deve derrubar a utopia dos “direitos humanos”, o “globalismo socialista da ONU e da sua OMS”, que a tradição judaico-cristã dos EUA deve vencer o materialismo “comunista” da China. Essa é a lógica rasteira e perversa que a máfia no poder usa para justificar a exploração econômica e a dominação política do nosso povo. Contrariando a laicidade da Constituição brasileira, o bolsonarismo prega a religião (uma versão fundamentalista e fascista da religião cristã) como política de Estado: foi o que defendeu na Hungria o secretário de Assuntos de Soberania Nacional e Cidadania de Bolsonaro, embaixador Fabio Marzano, em conferência sobre perseguição aos cristãos, promovida por governos de extrema direita (para justificar sua política anti-imigrantes)2. Conforme essa gente, a liberdade religiosa precisa dar relevo à defesa dos cristãos, “que são os mais perseguidos no mundo”, incluir a possibilidade de converter aqueles que não têm religião, além 1 Ver a esse respeito o livro Guerra pela eternidade, de Benjamin Teitelbaum, traduzido no Brasil pela Editora da UNICAMP, e resenhado em https://www.unicamp.br/unicamp/ju/noticias/2020/12/10/guerra-pela-eternidade-desvenda-base-ideologica-que-funda-nova-direita; acesso em 8/ago./2021. Ver também, sobre o tradicionalismo aplicado ao cristianismo, o livro A força do passado na fraqueza do presente, de João Décio Passos, publicado pelas Paulinas em 2020. Há também versão infantil para divulgação do tradicionalismo no movimento QAnon, conforme comentado em https://saidapeladireita.blogfolha.uol.com.br/2020/08/27/ teoria-da-conspiracao-da-direita-americana-qanon-chega-ao-brasil/; acesso em 8/ago./2021. 2 Conforme analisado em https://noticias.uol.com.br/colunas/jamil-chade/2019/11/28/governo-bolsonaro-cristaos-hungria-diplomacia-itamaraty.html; acesso em 8/ago./2021. Gilbraz de Souza Aragão
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ENSINO RELIGIOSO: DESAFIOS E PERSPECTIVAS
do direito de criar os filhos com valores cristãos, “contra a ideologia globalista, o comunismo e a liberdade sexual”. Outro dia um menino foi condenado a dez anos de prisão por blasfêmia (disse heresia sobre Deus na discussão com amigo) e levantou solidariedade internacional3. Isso foi em um tribunal islâmico fundamentalista, mas se os “talibãs de Cristo” continuarem crescendo por aqui, logo chegaremos lá igualzinho: o ministro reverendo da educação já prega castigos físicos4 e a bancada da bíblia proibiu cenas de nudez e símbolos religiosos em exposições artísticas5 e quer proibir símbolos cristãos no carnaval6 e sátiras das crenças cristãs7. O drama hodierno das religiões, mormente em contextos tradicionalistas, é a (falta de) atualização frente ao desenvolvimento das liberdades modernas – e como os políticos populistas tiram partido dessa dificuldade, para deixarem as pessoas amedrontadas e submissas. As bancadas da bíblia (igrejas-empresas “evangélicas” e carismáticas), do boi (agronegócio) e da bala (indústria do armamento) confraternizam-se não só nas assembleias: esse povo tá junto agora em campanha para botar a bíblia nas escolas e para vender armas pros ricos e metidos, justificando uma coisa pela outra nos púlpitos. Aí o destino do povo é virar gado mesmo (ou nem isso, porque os bois eles vacinam). Então, o problema do Ensino Religioso é esse fundamentalismo (anti) moderno, que se espraiou pelo Brasil mas despontou entre protestantes norte-americanos, os quais no começo do século XX criaram um movimento político-teológico para combater os cristãos liberais, que praticam uma interpretação científica da bíblia e aceitam as causas modernas do socialismo e do feminismo ou de gênero. Atualmente, a religiosidade vem sendo manipulada por grupos poderosos, que se aproveitam do medo de transições culturais para manter dominação política e exploração econômica, reforçando o comunitarismo da “civilização cristã tradicional” e práticas identitárias contra a alteridade e o diálogo8. 3 Ver https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2020/09/diretor-do-memorial-de-auschwitz-pede-para-cumprir-parte-de-pena-de-nigeriano-de-13-anos.shtml, acesso em 8/ago./2021. 4 Ver https://revistaforum.com.br/politica/forum-faz-lista-de-todos-os-absurdos-ditos-pelo-novo-ministro-da-educacao; acesso em 8/ago./2021. 5 Ver https://www.correiobraziliense.com.br/diversao-e-arte/2020/08/4869437-cldf-aprova-projeto-que-proibe-nudez-e-simbolos-religiosos-em-exposicoes.html; acesso em 8/ago./2021. 6 Ver https://overbo.news/deputado-quer-proibir-uso-de-simbolos-cristaos-nos-blocos-de-carnaval-do-rj; acesso em 8/ago./2021. 7 Ver https://omunicipio.com.br/raul-sartori-projeto-em-tramitacao-na-alesc-proibe-satira-crencas-da-religiao-crista; acesso em 8/ago./2021. 8 Para aprofundar essa questão, ver o livro Os desafios dos fundamentalismos, apresentado e disponível em https://www1.unicap.br/observatorio2/?p=5720; acesso em 8/ago./2021.
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PREFÁCIO
ENSINO RELIGIOSO: DESAFIOS E PERSPECTIVAS
E assim vários grupos religiosos opõem um “deus” sério e sacrificial a uma divindade amorosa de justiça e compaixão; uma igreja exclusivista, rígida e hierárquica, a movimentos inter-religiosos em favor da terra como Casa Comum; manifestam um apego teológico ao pecado original, contra uma espiritualidade da Criação e sua compreensão de bênção original; pregam a intolerância ao estrangeiro e ao “estranho” moral, contra o abraço ao feminino e aos outros gêneros; o medo da ciência, enfim, ao invés do incentivo à sapiência. Então, evangélicos e católicos fundamentalistas, entre outros grupos conservadores, que são concorrentes no mercado religioso, unem-se “ecumenicamente” contra o ecumenismo e o diálogo entre as religiões e sobretudo com as tradições afro-indígenas, contra imigrantes e especialmente muçulmanos, unem-se pela catequese cristã nas escolas e contra o “ensino religioso” laico e republicano, pela “liberdade religiosa” entendida como direito ao proselitismo intolerante e à ocupação do espaço público pela “bíblia”. Imaginamos que os estudos de religião, frente a essa onda religiosa reacionária, precisam realçar marcadores epistemológicos e demarcar político-pedagogicamente sua área acadêmica, assolada por magistérios eclesiásticos e treinadores “espirituais” a serviço das ideologias neofascistas. Em fins do ano passado detectamos e denunciamos que, ao arrepio da lei, contrariando as diretrizes da Base Nacional Curricular do MEC para o Ensino Religioso e as determinações do Conselho Nacional de Educação para a formação dos seus professores em Ciências da Religião, a bancada da bíblia está pulando os muros e invadindo os espaços de educação, fazendo aprovar em várias prefeituras o serviço de Capelania Escolar9 para “realizar celebrações religiosas e oferecer assistência espiritual nas escolas”. Segundo essa invenção, o Capelão Escolar será selecionado entre sacerdotes, padres e pastores e, ainda, entre ministros e ministras ordenados que possuam habilitação comprovada para o exercício da função, deverá possuir certificação a ser obtida mediante aprovação em curso de formação em Capelania Escolar com duração de, no mínimo, cento e oitenta horas de aula. Enrolada pedagógica e política! Então, como deve ser o Ensino Religioso? Para o campo dos estudos de religião 9 Exemplos de projetos de lei a respeito da Capelania Escolar, que são vergonhosos perante o espírito laico republicano: em Vila Velha: https://sapl.vilavelha.es.leg.br/media/ sapl/public/materialegislativa/2019/6266/prot._1974_19_-__cria_o_servico_de_capelania_escolar_para_atuacao_nas_unidades_escolares_da_rede_municipal_de_ensino_-_maturano.pdf; em Taubaté: http://camarasempapel.camarataubate.sp.gov.br/Sistema/Protocolo/Processo2/Digital. aspx?id=27874&arquivo=Arquivo/Documents/PLO/27874-105922802117092019-assinado.pdf#P27874; em Vitória: http://camarasempapel.cmv.es.gov.br/Sistema/Protocolo/Processo2/Digital. aspx?id=184325&arquivo=Arquivo/Documents/PL/PL18052018-25092018163218.pdf#P184325; em São José dos Campos: http://camarasempapel.camarasjc.sp.gov.br/Arquivo/Documents/PL/ 239900-173110456918022019-assinado.pdf; em São Luiz: https://www.camara.slz.br/pavao-filho-aprova-projeto-sobre-criacao-do-servico-voluntario; acessos em 21/set./2020. Gilbraz de Souza Aragão
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ENSINO RELIGIOSO: DESAFIOS E PERSPECTIVAS
no Brasil, deve ser uma aprendizagem crítica e transdisciplinar sobre as experiências espirituais da humanidade. Todas as tradições espirituais e filosóficas fazem parte do patrimônio cultural da humanidade e merecem respeito e liberdade. Mas, para promover a convivência em nossas sociedades democráticas e pluralistas, os Estados devem controlar o proselitismo e regrar o uso de símbolos religiosos em espaços públicos, além de não submeter questões legais, como a educação dos fatos espirituais, a interesses de algum grupo privilegiado10. No Brasil, por exemplo, o direito de criticar dogmas e crenças, de quaisquer tradições, é assegurado como liberdade de expressão pela nossa República; mas atitudes agressivas, ofensas e tratamento diferenciado a alguém em função de sua crença ou de não ter religião são crimes (discriminação ou intolerância religiosa ferem a dignidade e constituem crime de ódio: inafiançável e imprescritível, passível de prisão por um a três anos e multa). Na prática, contudo, às vezes a teoria é outra e a liberdade religiosa é invocada para o abuso proselitista e discriminatório do espaço público e dos meios de comunicação social, para se ferir a laicidade do Estado e fazer promoção religiosa em seus órgãos ou às suas custas. Em sociedades democráticas as religiões devem se articular por baixo, na sociedade civil, para colaborarem no debate sobre os valores comuns da sociedade e combinarem atitudes em defesa do bem comum, e não se associar por cima em mútuo apadrinhamento com o poder estatal para defesa das suas igrejas. Em sociedades livres uma religião não deve formar partido político (nem ter concessão de meios de comunicação social), mas sim educar os seus membros para traduzirem os valores de sua fé em uma práxis ética para todos os partidos (e quaisquer programas de TV). Todas as pessoas, sobretudo as novas gerações, têm direito ao esclarecimento das crenças e descrenças da humanidade e para isso o Ensino Religioso deve avaliar as notícias religiosas e fenômenos espirituais em seus contextos, estudando as religiões como questão e não como dado. O Ensino Religioso, compreendido como campo de aplicação da área de conhecimento das Ciências da Religião, em uma visão transdisciplinar, não objetiva transpor conteúdos enciclopédicos e muito menos doutrinais para um ensino catequético, mas o desenvolvimento de processos de aprendizagem participativos, de construção de conhecimentos significativos através de projetos de pesquisa, em conexão com as pautas de estudo e engajamento dos cientistas da religião. A Base Curricular Nacional está 10 A Base Nacional Curricular incluiu o Ensino Religioso para o ensino fundamental em todas as escolas, como um desenvolvimento pedagógico dos estudos sobre as várias espiritualidades e religiões: http://basenacionalcomum.mec.gov.br/images/BNCC_EI_EF_110518_versaofinal_site.pdf; acesso em 8/ago./2021. O Conselho Nacional de Educação determinou que os professores do Ensino Religioso devem ser formados em Ciências da Religião: http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_docman&view=download&alias=99971-pcp012-18&category_slug=outubro-2018-pdf-1&Itemid=30192; acesso em 8/ago./2010.
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apontando esse horizonte para o Ensino Religioso e é por aí que a intolerância religiosa pode ser enfrentada. Lembrando que o contrário da intolerância não é a tolerância: o diálogo e a coexistência assinalariam melhor o caminho das relações interculturais e transreligiosas. As questões religiosas acabam entrando nas escolas de todo jeito e o melhor a fazer é compreendermos o Ensino Religioso11 como educação sobre a religiosidade humana, devendo tratar pedagogicamente do conhecimento espiritual que existe entre e para além de todas as tradições místicas, religiosas e não ou pós-religiosas, tematizando os seus conteúdos simbólicos nos espaços e tempos sagrados, bem como os valores – e antivalores – que as espiritualidades, na prática, desenvolvem através da história. Trata-se, então, de comparar criticamente e interpretar os fatos – que sempre são, também, espirituais – nos seus contextos históricos, em busca de significados mais profundos para esse patrimônio cultural da humanidade que são as atitudes e os imaginários filosóficos e religiosos. Produzir conhecimentos nas Ciências da Religião e traduzi-los para o Ensino Religioso, transdisciplinarmente, significa romper com o conteudismo abstrato e fragmentado e gerar processos de aprendizagem colaborativos e compromissados, através de projetos de pesquisa das vivências espirituais – e de engajamento no seu esclarecimento e terapeutização. O professor, nessa perspectiva, precisa compreender a situação social e religiosa dos educandos a fim de construir com eles conteúdos programáticos contextuais, precisa interagir criticamente com o contexto concreto das religiões na vida dos educandos em seus aspectos desumanizadores e opressivos, promovendo uma tomada de consciência desmistificadora das religiões. Mas o Ensino Religioso deve promover também uma ação educativa esperançosa, com base em metodologias focadas na experiência, em que a utopia desempenha um papel reconstrutivo e transformador das religiões. Trata-se, minha gente, de uma mudança cultural, dos magistérios eclesiásticos para os magistérios acadêmicos: uma história difícil de se fazer, mas a gente deve ter orgulho em participar dela. E gratidão a Du Meinberg Maranhão pelo fogo que a Coleção Ensino Religioso vai trazer, para que possamos nos amar mais que nem gente.
11 Para um aprofundamento dos estudos sobre o Ensino Religioso, ver SILVEIRA, Emerson e JUNQUEIRA, Sérgio (Orgs.). O ensino religioso na BNCC. Petrópolis: Vozes, 2020; CECCHETTI, Elcio e SIMONI, Josiane (Orgs.). Ensino religioso não confessional. São Leopoldo: Oikos, 2019; JUNQUEIRA, Sérgio; BRANDENBURG, Laude e KLEIN, Remi (Orgs.). Compêndio do ensino religioso. São Leopoldo: Sinodal; Petrópolis: Vozes, 2017; RISKE-KOCH, Simone; BLANCK, Lílian e POZZER, Adecir (Orgs.). Formação inicial em ensino religioso. Florianópolis: Saberes em Diálogo, 2017. Gilbraz de Souza Aragão
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ENSINO RELIGIOSO: DE VOLTA PARA O FUTURO Prefácio
Paulo Agostinho N. Baptista Doutor e mestre em Ciência da Religião (UFJF), Especialista em Filosofia da Religião (PUC Minas), Licenciado em Filosofia (UFJF) e Bacharel em Teologia (PUC Minas). Foi aluno e cursou todas das disciplinas da primeiro curso de Ciências da Religião (UFJF, 1977-1980), mas que foi encerrado prematuramente por ingerência religiosa. É Pós-doutore em Demografia pelo CEDEPLAR/UFMG. É pesquisador e professor no Programa de Pós-graduação em Ciênicas da Religão da PUC Minas, na Linha Religião, Política e Educação e líder do Grupo de Pesquisa “Religião, Educação, Ecologia, Diálogo e Libertação” – REDECLID, Tem experiência na área de Educação como professor do componente curricular Ensino Religioso na Educação Básica de 1985 a 2010 e, no Ensino Superior desde 1985, como Diretor Acadêmico, editor e Diretor da Editora PUC Minas. Pesquisa temas como ensino religioso, educação e religião; teologia do pluralismo religioso, teologia(s) da libertação, paradigma ecológico, pensamento decolonial e a obra de Leonardo Boff (mestrado e doutorado). A partir de 2012 (pós-doutorado) retoma pesquisas sobre geração universitária e perfil das juventudes, com o apoio do CNPq, anteriormente realizadas na PUC Minas e no Brasil sob sua coordenação em 1990 e 1991.
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Como referenciar este capítulo: BAPTISTA, Paulo Agostinho N. Ensino Religioso: de volta para o futuro. In: MARANHÃO, Fº. Eduardo Meinberg de Albuquerque (Org.). Ensino religioso: desafios e perspectivas. Florianópolis: AMAR; FOGO, 2021, pp. 19-23.
ENSINO RELIGIOSO: DESAFIOS E PERSPECTIVAS
Introdução Uma Coletânea sobre o Ensino Religioso é sempre bem-vinda. Ainda mais três, frutos de Simpósios e de seus Grupos de Trabalhos – GTs, que foram produzidos a partir de debates e reflexões da AMAR – Associação Internacional de Estudos de Afetos e Religiões e da FOGO Editorial, no 1º Simpósio Internacional AMAR e Mudar as Coisas. Como a AMAR e a FOGO afirmam, essas coletâneas expressam “a-fe-to”, fé e ato, fé e ação de amar. E não é outra coisa que o Ensino Religioso quer, pois ele tem sido praticado em quase todo o país como ato educativo de amor, de fé e de esperança na educação laica para todas e todos. Parabéns a essas entidades que promoveram e patrocinam as publicações. Por sua história de controvérsia, refletir criticamente sobre o Ensino Religioso é necessário e urgente, pois é preciso ressignificar esse espaço escolar, que durante muito tempo foi proselitista, para reconsiderá-lo fundamental para a educação de crianças, adolescentes e jovens. Aliás, quem mostra essa importância é o próprio art. 33 da Lei n. 9.394/1996, nossa Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, ao dizer que o Ensino Religioso é “parte integrante da formação básica do cidadão”. Mas porque esse Ensino é importante e parte integrante para a formação básica de todo cidadão? Porque não se pode reduzir a escola e à educação só à perspectiva de preparação para o trabalho. Primeiramente, deve-se pensar uma educação inclusiva e integral. Todas as habilidades cognitivas são importantes, das diversas linguagens – das línguas, do lúdico na arte e do corpo –, da matemática, das ciências da natureza, das ciências humanas do espaço-tempo, através da história e da geografia, enfim tudo isso é muito significativo. Mas incompleto sem o Ensino Religioso, que desde 2018 está incluído nessas humanidades, nas ciências humanas. Sem a educação da dimensão religiosa ou espiritual o processo educativo fica precário – e aqui não podemos pensar nada que seja confessional, pois lugar de confessionalidade é na religião e não na escola para todas e todos.
O que “ensina” o Ensino Religioso - ER? Fruto de uma luta de décadas, que envolveu inúmeras e inúmeros educadoras e educadores, finalmente o ER ganhou cidadania ao ser integrado pelo Conselho Nacional de Educação - CNE à BNCC e aos Currículos Referências estaduais, bem como por terem sido criadas, por esse mesmo CNE, as Diretrizes Curriculares Paulo Agostinho N. Baptista
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ENSINO RELIGIOSO: DESAFIOS E PERSPECTIVAS
Nacionais da graduação em Ciências da Religião, curso que oficialmente forma os docentes desse Ensino. E todas e todos que lutaram há anos por isso estão de parabéns, de modo especial o Fórum Nacional Permanente do Ensino Religioso – FONAPER. Com mostra a BNCC, o Ensino Religioso é tempo e espaço de reflexões críticas sobre os conhecimentos religiosos e as filosofias de vida da humanidade, da brasilidade e da regionalidade. Preocupa-se com as atitudes de reconhecimento e respeito às alteridades e todo tipo de diversidade. Deve ser espaço de aprendizagem e partilha de experiências pedagógicas, de trocas e intercâmbios permanentes. De convivência da diversidade, de acolhimento das identidades, sejam elas culturais, espirituais, religiosas ou não religiosas, de gênero, enfim, da riqueza biodiversa. E, tudo isso, sob o horizonte da interculturalidade, dos direitos humanos, que precisam ser ampliados, e da cultura da paz. Nesse processo de formação, o ER tem um enorme papel: “Contribuir para que os educandos construam seus sentidos pessoais de vida a partir de valores, princípios éticos e da cidadania” (BNCC, 2017, p. 434). E, nisso, os aspectos emocionais e afetivos não podem faltar. Por isso, como todo ato de educar, o Ensino Religioso é lugar da educação do afeto, é um ato de amor, como lembrava nosso mestre centenário, Paulo Freire: “educação é um ato de amor [...] um ato de coragem” (Educação como Prática da Liberdade, 1967, p. 97). Educar, amar e a-fe-tar o outro é criar uma comunicação autêntica, onde construímos nossa autonomia, nossa liberdade, contra toda forma de educação opressora, colonizadora, de toda educação bancária. E a atitude amorosa, presente no ato de educar, não existe sem diálogo. Mais uma vez nosso mestre Paulo Freire nos ensina: “Não há diálogo, porém, se não há um profundo amor ao mundo e aos homens. (Pedagogia do Oprimido, 1981, p. 93-94). E nosso grande poeta e cantor também dizia e cantava isso: “o amor só dura em liberdade” (Raul Seixas). Educar é um ato de liberdade amorosa, quando educador e educando aprendem e ensinam mutuamente. As três Coletâneas estão apresentadas no início de cada obra. Não é preciso reapresentá-las. Trazem reflexões importantes para os / as que pesquisam e estudam o tema, para quem está na lida da sala de aula e para interessados / as em conhecer essa fantástica área das ciências humanas. Colocam questões importantes “na prática” e na “sala de aula”, sem deixar de provocar discussões sobre “desafios”, como também apontar para o futuro, as “perspectivas”. São discussões muito relevantes sobre a área de Ciências da Religião, formação docente, laicidade, direitos humanos, racismo, gênero, diversidade religiosa, epistemologia do a(fé)to, sobre a afetação política, inclusive na pandemia, dentre outros temas muito ricos. 22
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ENSINO RELIGIOSO: DESAFIOS E PERSPECTIVAS
Parabéns mais uma vez aos / às organizadores /as e membros da Coordenação e dos Conselhos Científicos da AMAR e da FOGO Editorial, e especialmente às autoras e autores que tornaram possíveis essas obras, verdadeiros atos de amor e a-fe-to.
Paulo Agostinho N. Baptista
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CARTA DA AMAR E DA FOGO A PAULO FREIRE AMAR e impeachment já!
Eduardo Meinberg de Albuquerque Maranhão Fº. Du (ou Flor) é uma pessoa transgênera não-binária. Realizou Doutorado em História Social pela Universidade de São Paulo (USP), Mestrado em História do Tempo Presente pela Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC) e Graduação em História pela USP. É Pós-doutore em Ciências das Religiões (UFPB); em História (Universidade Federal de Santa Catarina, UFSC); e em Interdisciplinaridade em Ciências Humanas (UFSC). Atuou como Professore Visitante no Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos (PPGDH) e no Centro de Ciências Jurídicas (CCJ) da Universidade Federal da Paraíba (UFPB).
No Mestrado pesquisou as re(l)ações entre mídia, gênero e religião na igreja Bola de Neve Church, gerando o livro A Grande Onda Vai Te Pegar: Marketing, Espetáculo e Ciberespaço na Bola de Neve Church (2013), que esta agência religiosa procurou censurar na Justiça por duas vezes. Cantar é um de seus passatempos prediletos, e atualmente têm composto paródias de classic rock com o tema impeachment de Bolsonaro.
[email protected]
Atua na Coordenação Científica da FOGO Editorial e na Presidência da Associação Internacional de Estudos de Afetos e Religiões (AMAR). Presidenciou a Associação Brasileira de História das Religiões (ABHR) em duas gestões. No Doutorado pesquisou o que as pessoas transgêneras faziam com o que determinados discursos religiosos procuravam fazer delas (ou com elas), tendo como campos de pesquisa principais as igrejas inclusivas e os ministérios de “cura, restauração e libertação” de pessoas transgêneras e não hétero. Como referenciar este capítulo: MARANHÃO Fº, Eduardo Meinberg de Albuquerque. Carta da AMAR e da FOGO a Paulo Freire: AMAR e impeachment já! In: MARANHÃO, Fº. Eduardo Meinberg de Albuquerque (Org.). Ensino religioso: desafios e perspectivas. Florianópolis: AMAR; FOGO, 2021, pp. 25-30.
ENSINO RELIGIOSO: DESAFIOS E PERSPECTIVAS
Sensível amigo Paulinho1, Antes de tudo, gostaríamos de te louvar, honrar, saudar e agradecer por seus luminosos escritos. Neste ano de seu centenário, relembramos a canção Alucinação, de Belchior, especialmente o trecho alusivo ao nosso sentimento atual de que ““amar e mudar as coisas nos interessam mais”, e mais especificamente, que ““amar e impeachment” é o que o Brasil mais necessita no momento2. Não sabemos se você tem acompanhado todos os acontecimentos recentes aqui no país desde que Jair Messias Bolsonaro foi eleito à Presidência da República em 2018. Foram ataques sistemáticos à educação – ele até sugere que você não deva mais ser considerado o patrono da Educação brasileira, acredita? Foram dezenas de informações falsas (as famosas “fake news”), distribuídas desde a campanha à presidência, houve escândalos diversos, uma política econômica desastrosa que levou ao desemprego em massa e retorno de altíssima inflação… E enfim, até a data em que encaminhamos esta carta a você (junho de 2021), mais de meio milhão de vidas foram perdidas pela pandemia de COVID-19 no Brasil, graças à condução negligente e irresponsável do atual governo. Um verdadeiro genocídio. Em outras cartas que a Associação Internacional de Estudos de Afetos e Religiões (AMAR) e a FOGO Editorial assinaram – as Cartas da AMAR (publicadas em nosso sítio) –, pedimos o impeachment de Bolsonaro, crendo que “somente com o definitivo afastamento da chapa eleita à Presidência (Capitão Bolsonaro/General Mourão) avistaremos um horizonte mais alvissareiro. Uma solução é eleger uma junta governativa com a tarefa de organizar as próximas eleições com a celeridade necessária e elegermos uma nova chapa, realmente representativa e com a sensibilidade, empatia e firmeza condizentes com o momento que atravessamos”. Comentamos ainda que “caso isso não aconteça, o número de mortes, o desemprego, a inflação, a fome e o sofrimento só aumentarão – e nosso país não pode continuar sendo vitimado pelo descaso, falta de planejamento e organização, negligência, negacionismo e obscurantismo reinantes”. Pois é, amado irmão Paulo. Como teria sido melhor se nas últimas eleições tivesse sido eleito um professor. Mas, infelizmente, foi escolhido – democraticamente – um ex-deputado federal que, em 27 anos de mandato, não aprovou mais de 2 projetos de lei. 1 Versão ligeiramente modificada desta carta foi encaminhada para o livro “Cartas para Paulo Freire”, a ser publicado em 2021 pela EDUEPB. 2 Algumas destas reflexões encontram-se em capítulo da coletânea Ensino Religioso: Desafios e Perspectivas, intitulado: Ensino Religioso e Epistemologia do A(fé)to: Perspectivas e desafios entre a Educação de Paulo Freire e a falta de educação de Jair Bolsonaro (MARANHÃO Fº., 2021). Eduardo Meinberg de Albuquerque Maranhão Fº.
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ENSINO RELIGIOSO: DESAFIOS E PERSPECTIVAS
Menino, dá vontade de perguntar se a gente vai conseguir caminhar da teoria à prática de uma educação democrática, libertadora, laica, emancipatória neste atual contexto brasileiro. Estamos, infelizmente, sob a égide de tempos “terrivelmente bolsonaristas”, mas ainda mantemos a esperança e o amor. Precisamos, né, Paulo? Precisamos continuar crendo e atuando em prol de uma educação revolucionariamente amorosa e emancipatória; em outros termos, procurando amar e mudar as coisas. Ai, ai, Paulo… mas será possível imaginar que o governo federal valorize uma educação voltada às diversidades e que ensine as pessoas discentes a refletirem e questionarem acerca de seus contextos, quando um dos alvos ideológicos do governo foi justamente você, nosso patrono da Educação brasileira? O atual presidente interpelou nosso patrono (você) de “energúmeno”, foi crítico do seu método de alfabetização – que é tão bonito, sensível e amoroso! –, se posicionou contra sua influência pedagógica nas escolas públicas brasileiras… Mas sabemos que o título que lhe foi conferido em 2012, após aprovação de Projeto de Lei, é justíssimo. Bolsonaro está rodeado de gente chata, Paulo (para não dizer outras coisas, né?). Por exemplo, a deputada federal catarinense Caroline de Toni (PSL), que protocolou em 29 de abril de 2019 um PL que retiraria seu título. E, pasme, justificou no projeto que você “preocupou-se tão somente em discutir formação política e relegou a segundo plano os verdadeiros desafios da educação”. Menino, ela não sabe é NADA. Sabemos que, para ti, a educação não se dissocia de sua dimensão cultural e política; e a justificativa da deputada demonstra a valorização que alguns segmentos da sociedade dão a uma educação que “deposite conteúdos” na mente de discentes ao invés de lhes ensinar a aprender, a questionarem e se posicionarem criticamente no mundo, encontrando ressonância no movimento ideológico denominado Escola Sem Partido (ESP). E não vale nem a pena comentar agora sobre este movimento doutrinário tacanho e desamoroso. Perdoe o desabafo, amor! Sei que o que importa é que “eles passarão e nós passarinho”, e que “apesar deles, amanhã há de ser outro dia”. E temos em mente suas lições de sensível amorosidade. Não esqueceremos de sua atuação tão apaixonada e apaixonante no processo de emancipação crítica de docentes do Brasil e do exterior a partir de um método participante, dialogal, crítico e ativo. Você sempre explicava que a educação se encontrava na encruzilhada entre domesticar (instigar a obedecer), e emancipar (libertar o pensamento, preparando-o para a ação criativa). O atual governo prega a primeira alternativa, mas a gente escolhe a segunda… mudando as coisas para amar, amando para mudar as coisas, e acreditando que a educação emancipatória é o que permite estes movimentos! Por aqui ainda acreditamos em uma Economia do Cuidado e em uma Educa-ação fundamentada no que podemos chamar de Epistemologia do A(fé)to. Quem acompanha a FOGO Editorial e a AMAR sabe que costumamos grafar a palavra 28
CARTA DA AMAR E DA FOGO A PAULO FREIRE
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afeto da seguinte forma: com o termo “fé” entre o “a” e o “to”, ou seja, ao redor da palavra “fé” está a palavra “ato”, indicando a mistura de “crença” e de “ação”. Amor, A(fé)to, fé, ato, ato de fé, ação de crer, ação de acreditar, crença na ação, na eficiência e eficácia da ação. A(fé)to, então, denota afetividade e também ação, ou afetividade em ação. Fé+ato: afeto / Ato+fé: afeto… e vamos sintonizando questões cognitivas e afetivas. Vamos pensando uma ação educativamente amorosa e amorosamente educativa, relacionada à inclusão. E você sabe tão bem, , querido, que esse processo educativo e amoroso de ensino-aprendizagem (troca) vai acontecendo quando abdicamos de bagagens que não nos servem mais, nos abrindo à novidade, à empatia, à sensibilidade. E digo sobre AFETO no sentido da afetividade mesmo. Poderíamos pensar em uma miríade de sentidos relacionados a contribuições da Antropologia, da Sociologia, da História, da Psicologia e de tantas áreas, mas nesta cartinha vamos pensar no sentido da afetividade mesmo, tá bom? Porque sim, poderíamos pensar o termo afeto como afecção, impacto, e também sob a ótica de pesquisadoras como Jeanne Favret-Saada, mas conversamos sobre isso em outra doce oportunidade. Mas o afeto, enquanto afetividade, vai passando pela importância de se pensar as emoções e sentimentos na construção das relações humanas democráticas, na construção de uma educação verdadeiramente inclusiva e emancipatória, no desenvolvimento das capacidades cognitivas e sensíveis (nossas e de todo mundo). E saber da importância do afeto nos lembra da urgência de educar (e nos educar) ao amor. As re(l)ações entre conhecimento e a(fé)to são indissociáveis. Não é possível separar inteligência e afeto na experiência concreta das pessoas. Então, de algum modo, é necessário pensarmos em uma inteligência afetiva e afetuosa e em uma afetividade inteligente, na imbricação entre o que é considerado pedagogicamente “cognitivo” e “afetivo”, como se estas coisas não fossem realmente separadas, e não o são necessariamente (ou pelo menos não em relação ao presente texto). É pensar epistemologicamente e concretamente o afeto. E patroninho! Sua educa-ação emancipatória é tão a Epistemologia do A(fé)to, né? E temos fé na sua Educação. Por isso, te saudamos. E louvamos a fé no ato (de amar)! Isso é amar e mudar as coisas. Mudar as coisas para amar. Amar para mudar as coisas, pois amar e mudar as coisas É amar, e amar É mudar as coisas. E neste movimento, é necessário governos nada bancários e nada autoritários, mas, sim, inclusivos e que estimulem uma poética Educação acolhedora. Amorosamente, 19 de junho de 2021.
Eduardo Meinberg de Albuquerque Maranhão Fº.
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Referências Carta da AMAR pelo impeachment do presidente Jair Bolsonaro (11 de fevereiro de 2021). Cartas da AMAR. Disponível em: www. amarfogo.com/amar/cartas. Acesso em: 19 jun. 2021. FRANCO, Clarissa de; MARANHÃO Fº, Eduardo Meinberg de Albuquerque. Não metam gênero na nossa religião! Educação em disputa nos movimentos "Escola Sem Partido" e "Con Mis Hijos No Te Metas". REVER. São Paulo, v. 20, n. 2, 2020. FRANCO, Clarissa de; MARANHÃO Fº, Eduardo Meinberg de Albuquerque. Um Estado "terrivelmente cristão" e privatizador: A opressão à Educação em Direitos Humanos no Governo Bolsonaro. Revista de Estudos Teológicos - EST, 60, 1, p. 134-155, 2020. FRANCO, Clarissa de; MARANHÃO Fº, Eduardo Meinberg de Albuquerque.A teocratização, privatização e militarização no Governo Bolsonaro: Perspectivas antidemocráticas e contrárias à educação. Mandrágora, v.26, n. 1, 2020, p. 203-224. FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. 17ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. FREIRE, Paulo. Professora sim, tia não: cartas a quem ousa ensinar. 25ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2015. Lembrar para não repetir: Ditadura nunca mais! (Primeiro de abril de 2021). Cartas da AMAR. Disponível em: www.amarfogo.com/ amar/cartas. Acesso em: 19 jun. 2021. MARANHÃO Fº, Eduardo Meinberg de Albuquerque. Amar e Mudar as Coisas no Arco Íris de Euá: A(fé)to, Sagrado Não Binário e Teologia Queer de Orixá. Texto no prelo. MARANHÃO Fº, Eduardo Meinberg de Albuquerque. Ensino Religioso e Epistemologia do A(fé)to: Perspectivas e desafios entre a
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Educação de Paulo Freire e a falta de educação de Jair Bolsonaro. In: Ensino Religioso: Desafios e Perspectivas. Florianópolis: FOGO / AMAR, 2021. MARANHÃO Fº, Eduardo Meinberg de Albuquerque; COELHO, Fernanda Marina Feitosa; DIAS, Tainah Biela. “Fake news acima de tudo, fake news acima de todos”: Bolsonaro e o “kit gay”, “ideologia de gênero” e fim da “família tradicional”. Correlatio, v. 17, n. 2, p. 65-90, 2018. MARANHÃO Fº, Eduardo Meinberg de Albuquerque; FRANCO, Clarissa de. “Menino veste azul e menina, rosa”: Educação Domiciliar e as ideologias de gênero e gênesis de Damares Alves, a “ministra terrivelmente cristã” dos Direitos Humanos. RBHR, n. 35, 2019, p. 297-337. MARANHÃO Fº, Eduardo Meinberg de Albuquerque. O navio negreiro do racismo religioso "reverso" e a escola como porto inseguro. Semina, v. 17, N.º 1, 2017, p. 10-30. Muito mais de 300 mil pessoas mortas – Impeachment já! (24 de março de 2021). Cartas da AMAR. Disponível em: www. amarfogo.com/amar/cartas. Acesso em: 19 jun. 2021. Simpósio Internacional Amar e Mudar as Coisas. Disponível em: www.amarfogo.com. Acesso em: 19 jun. 2021. SOUSA, Cidoval Morais de. Cartas a Paulo Freire. Vol. 3. Campina Grande: Editora Universitária (EDUEPB), 2021 (no prelo). SOUZA, Odair; MARANHÃO Fº, Eduardo Meinberg de Albuquerque. Gênero e Diversidade na Escola ou Ideologia de Gênero? Reações religiosas a um Plano Municipal de Educação de Santa Catarina. Poder e Cultura, v.5, n.9, p. 330-349, 2018.
CARTA DA AMAR E DA FOGO A PAULO FREIRE
SIMPÓSIO INTERNACIONAL AMAR E MUDAR AS COISAS Apresentando desafios e novos olhares do Ensino Religioso em sala de aula
Eduardo Meinberg de Albuquerque Maranhão Fº. Du (ou Flor) é uma pessoa transgênera não-binária. Realizou Doutorado em História Social pela Universidade de São Paulo (USP), Mestrado em História do Tempo Presente pela Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC) e Graduação em História pela USP. É Pós-doutore em Ciências das Religiões (UFPB); em História (Universidade Federal de Santa Catarina, UFSC); e em Interdisciplinaridade em Ciências Humanas (UFSC). Atuou como Professore Visitante no Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos (PPGDH) e no Centro de Ciências Jurídicas (CCJ) da Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Atua na Coordenação Científica da FOGO Editorial e na Presidência da Associação Internacional de Estudos de Afetos e Religiões (AMAR). Presidenciou a Associação Brasileira de História das Religiões (ABHR) em duas gestões.
de “cura, restauração e libertação” de pessoas transgêneras e não hétero. No Mestrado pesquisou as re(l)ações entre mídia, gênero e religião na igreja Bola de Neve Church, gerando o livro A Grande Onda Vai Te Pegar: Marketing, Espetáculo e Ciberespaço na Bola de Neve Church (2013), que esta agência religiosa procurou censurar na Justiça por duas vezes. Cantar é um de seus passatempos prediletos, e atualmente têm composto paródias de classic rock com o tema impeachment de Bolsonaro.
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No Doutorado pesquisou o que as pessoas transgêneras faziam com o que determinados discursos religiosos procuravam fazer delas (ou com elas), tendo como campos de pesquisa principais as igrejas inclusivas e os ministérios
Como referenciar este capítulo: MARANHÃO Fº, Eduardo Meinberg de Albuquerque. Simpósio Internacional AMAR e Mudar as Coisas: Apresentando desafios e novos olhares do Ensino Religioso em sala de aula In: MARANHÃO, Fº. Eduardo Meinberg de Albuquerque (Org.). Ensino religioso: desafios e perspectivas. Florianópolis: AMAR; FOGO, 2021, pp. 31-44.
ENSINO RELIGIOSO: DESAFIOS E PERSPECTIVAS
Amando e mudando as coisas AMAR e Mudar as Coisas é o título dos Simpósios Internacionais organizados pela FOGO Editorial e pela Associação Internacional de Estudos de Afetos e Religiões (AMAR), realizados aos fins de ano, em dezembro. O 1º Simpósio Internacional AMAR e Mudar as Coisas aconteceu na Universidade Federal da Paraíba (UFPB) entre 08 e 13 de dezembro de 2019 e teve como tema: A(fé)tos, Direitos Humanos e Sensibilidades; Religiões, Resistências e Diversidades. Durante o evento realizamos o primeiro Prêmio AMAR / FOGO Editorial de Teses, Dissertações e Monografias; e o primeiro Prêmio AMAR / FOGO Editorial de Fotografias; lançamentos de livros; Mesas Redondas (chamadas no evento de Rodas de Fogo Amoroso), além de diversas outras atividades aprovadas após chamada pública, democrática e aberta, como Grupos de Trabalho (GTs), Minicursos, Vivências Amorosas, Atividades Artísticas e Oficinas. A AMAR, aliás, nasceu no nosso primeiro AMAR e Mudar as Coisas (amorosamente gestado pela FOGO), em plena sexta-feira 13 de lua cheia. De lá para cá, como definido em Assembleia, FOGO e AMAR realizam suas atividades de forma conjunta, com todas as publicações a cargo da FOGO. O AMAR e Mudar as Coisas é um Simpósio Internacional de participação 100% gratuita e aberto a toda a comunidade, não apenas acadêmica. Tanto nesta primeira edição do evento como nas seguintes, só houve valor de contribuição financeira para quem quis publicar em livros digitais e impressos do Simpósio (referentes às Rodas Amorosas e aos Grupos de Trabalho), delicadamente produzidos pela FOGO, cujo lema é livros feitos com AMOR. Por conta da pandemia de COVID-19, a segunda edição do AMAR e Mudar as Coisas foi realizada em 2020 de forma remota. O mote foi A(fé)tos e Religiões, Sensibilidades e Emoções, e além de todas as atividades relacionadas ao primeiro evento, tivemos as segundas edições de nossos Prêmios Internacionais de Teses, Dissertações e Monografias e de Fotografias, com dezenas de trabalhos inscritos nestas modalidades. Nosso terceiro AMAR e Mudar as Coisas será realizado em 2021 também de maneira on-line. Esse ano, nosso evento tem como temas geradores AMAR e Impeachment Já! e Gênero e Religião, A(fé)to e Educação. Cabe destacar que a AMAR e a FOGO tem pedido o impeachment do atual presidente da República Jair Messias Bolsonaro desde o ano passado. Temos publicado cartas a respeito e também participado de todos os atos públicos pedindo a derrubada da presidência. Estimulamos, inclusive, que todes que puderem participar, que participem, sempre seguindo todas as medidas de distanciamento social, cuidado e prevenção recomendadas pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e pelo bom senso. Eduardo Meinberg de Albuquerque Maranhão Fº.
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Neste sentido, a FOGO está organizando uma Coletânea que terá como tema as relações entre fé, política e pandemia durante o “desgoverno” de Bolsonaro, a ser publicada neste segundo semestre de 2021. Convidamos você: vem conhecer a FOGO e vem com a gente à AMAR, por muito mais AMOR e por impeachment já! Além do AMAR e Mudar as Coisas, a FOGO e a AMAR realizaram, em sua recente trajetória (2019-2021), eventos como o Simpósio Internacional Gênero e Religiões Afro-Indígenas, em duas edições (05 e 08 de agosto de 2020 e de 2021), celebrando o aniversário da FOGO (08 de agosto); o Simpósio A(fé)to como Alternativa à Transfobia Religiosa (28 de maio de 2021); o Simpósio Nas Águas de Iemanjá: A(fé)to e Emoção, Sensibilidade e Educação (2 e 3 de fevereiro de 2021), e o Simpósio A(fé)to como Alternativa à Intolerância Religiosa (21 de janeiro de 2021). O objetivo é que alem destes eventos temáticos, a partir de 2022 sejam realizados simpósios da AMAR e da FOGO em países diversos, bem como em todas as regiões do Brasil, no intuito de concomitantemente atuarmos na internacionalização e na regionalização da Associação e da Editora. Além disto, está prevista a realização de eventos organizados por Núcleos e Grupos de Pesquisa e Estudos criados dentro da própria AMAR, ou já existentes e filiados à mesma. Para quem tiver interesse em fomentar a criação de grupos específicos ou de filiar coletivos que já existem, convidamos a acessarem nosso Portal de Fogo Amoroso em www.amarfogo.com. E você que está lendo este texto pode ter se perguntado: Como surgiu o nome do nosso Simpósio Internacional de fim de ano? A (ins)piração veio dos versos de Alucinação, de Belchior, que canta: “Mas eu não estou interessado / Em nenhuma teoria / Em nenhuma fantasia / Nem no algo mais / Longe o profeta do terror / Que a laranja mecânica anuncia / Amar e mudar as coisas / Me interessa mais / Amar e mudar as coisas / Amar e mudar as coisas me interessa mais”. Podemos perguntar: seria uma alucinação de nossa parte realizar um evento como este em uma academia muitas vezes engessada e tóxica, inserida em um contexto sociopolítico marcado por um governo federal autoritário, xenófobo, teocrata, racista, misógino e fóbico, capitaneado por um autêntico “profeta do terror que a laranja mecânica anuncia”? Não é de hoje que a FOGO Editorial e a AMAR, representadas por pesquisadoras/es que tem como preocupação as re(l)ações entre a(fé)to, política e religião, têm alertado aos perigos representados por aquele que veio a se tornar presidente da República, historicamente famigerado por apologia à ditadura, tortura e torturadores, e por discursos racistas, masculinistas, intolerantes religiosos, xenófobos, LGBTQIA+fóbicos, etc. E como alternativa ao nada distópico – bem realístico, por sinal – atual governo anticientífico, negacionista e intolerante, a FOGO e a AMAR recorrem à alucinação belchiorana de amar e mudar as coisas. 34
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Cabe perguntar: A quem interessa amar e mudar as coisas? A quem interessa dialogar e exercitar a(fé)tos, emoções e sensibilidades? Pensar estratégias de estímulo a uma educação crítica, respeitosa e emancipatória que tome partido das liberdades e diversidades de ser e de estar no mundo? Com certeza, interessa a nós todes, que queremos ser movimentades por estes (e)ventos calorosos. O AMAR e Mudar as Coisas (assim como todas as atividades realizadas pela FOGO e pela AMAR), tem como ambição aprofundar assuntos relacionados às sensibilidades, emoções e a(fé)tos – este último termo – a(fé) to –, aliás, é compreendido pela gente como o ato de crer ser possível amar e mudar as coisas. Não é por acaso que a maioria dos nossos Grupos de Trabalho e Rodas de Fogo Amoroso se relaciona justamente à educação, pois cremos ser a partir dela que podemos modificar as coisas de forma amorosa. É através de uma educação (ou educa+ação) respeitosa à pluralidade que podemos aceitar, acolher e respeitar quem é diferente de nós, e amar (n)a diferença. E foi no sentido de propiciarmos uma educação afetiva, laica, emancipatória, crítica, democrática, inclusiva e que ensine a pensar e a se posicionar sociopoliticamente que surgiu a presente publicação: quando os Anais da primeira edição do AMAR e Mudar as Coisas (2019) estavam sendo organizados, percebemos que grande parte dos textos (relacionados a diferentes Grupos de Trabalho) tratavam de um marcador comum, as questões relativas às conexões entre educação e religião e acerca do Ensino Religioso laico. Deste modo, foram reunidos textos referentes a este assunto (e aprovados pelas respectivas Coordenações de GTs) em forma de duas coletâneas, intituladas O Ensino Religioso na Prática e O Ensino Religioso e a Sala de Aula. É importante mencionar que os capítulos que compõem estas compilações são referentes a pesquisas em andamento em diferentes níveis de profundidade (não representando necessariamente as opiniões de quem organizou a obra e nem tampouco do Simpósio AMAR e Mudar as Coisas ou de suas principais promotoras, a FOGO e a AMAR), e foram aconchegados textos tanto de pessoas comunicadoras como de coordenadoras de Grupos de Trabalho do evento. Vale ressaltar também que, mesmo tendo a participação de quase duas dezenas de pessoas internacionais no evento (tanto em forma presencial como remota), todas as pessoas que compõem as coletâneas O Ensino Religioso e a Sala de Aula, e O Ensino Religioso na Prática, são vinculadas a universidades públicas do formoso Nordeste brasileiro, célebre por sua proeminência no Brasil como centro gerador de excelência intelectual. Enquanto estávamos organizando estas duas compilações, algumas pessoas que fazem parte de nossos Conselhos Científicos manifestaram interesse em participar deste projeto, e assim, uma nova compilação foi organizada com estas pessoas e outras que também se mostraram entusiasmadas em participar. De Eduardo Meinberg de Albuquerque Maranhão Fº.
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modo estritamente relacionado com os dois temas anteriores, geramos assim a Coletânea Ensino Religioso: Desafios e Perspectivas. E mais que isto, estas três obras compõem a nova Coleção Ensino Religioso, singelamente produzida pela FOGO Editorial e pela AMAR. Esta compilação de textos de refinada carpintaria traz contribuições de elevada importância ao Ensino Religioso que, frisamos, deve constituir-se laico, democrático, acolhedor e sempre aberto a tomar partido das sensibilidades e das diferenças. Como os assuntos destas coletâneas são bastante intervencionados, logo abaixo seguem apresentações sucintas das três. Estimulamos fortemente que você, que lê este texto, usufrua de todos os volumes da melhor forma possível.
Ensino Religioso: Desafios e Perspectivas Os textos que compõem a Compilação Ensino Religioso: Desafios e Perspectivas apresentam, de maneiras diversas, a necessidade de um Ensino Religioso laico, democrático, diverso e criativo, e que prepare as pessoas a uma sociedade mais que tolerante, respeitosa às diversidades. Nossa coletânea é aberta com o texto Campo dos Estudos de Religião no Brasil: Desafios e Perspectivas, de Gilbraz Aragão. O autor (des)envolve instigantes questões: Como tem se dado as relações referentes à laicidade e à confessionalidade do Ensino Religioso a partir do Supremo Tribunal Federal (STF)? Como os parâmetros curriculares desta disciplina têm sido fomentados pela área de Ciências da Religião e Conselhos de Educação? Como a famigerada “Bancada da Bíblia” tem ameaçado este campo de estudos? De que formas o estabelecimento e atualização pelo CNE/MEC dos referenciais curriculares nacionais para as graduações de Teologia e de Ciência(s) da(s) Religião(ões) têm se demonstrado complicadores às pesquisas de religião? Danielle Ventura de Lima Pinheiro contribuiu com o texto Ensino Religioso: Desafios e Perspectivas, em que demonstrou como esta disciplina é arquitetada a partir de um caleidoscópio de tensões marcado por debates que vão desde a defesa do ensino catequético até a integral exclusão na grade curricular da educação básica. Com base em Pierre Bourdieu, a autora reflete: como se dá a autonomia relativa deste campo de conhecimento? A autora ainda sinalizou os principais desafios da área de Ciência(s) da(s) Religião(ões) na viabilização de uma formação inicial e continuada capaz de levar o respeito à diversidade religiosa para discentes e docentes, observando a carência de materiais didáticos que subsidiem o aprendizado daquilo que é almejado para a educação básica. No capítulo intitulado Ensino religioso: desafios em diferentes espaços, Edile Maria Fracaro Rodrigues e Sérgio Rogério Azevedo Junqueira demonstram como 36
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a diversidade cultural e religiosa podem constituir-se em espaços de fomento à cidadania. Dialogando acerca das re(l)ações entre igreja, Ensino Religioso e escola, a autora e o autor procuram contribuir para a disseminação de espaços em que o respeito às diversas expressões religiosas se constitua concreta e densamente. Sergio e Edile observam que este componente curricular foi introduzido originariamente nos currículos como estratégia de dominação cultural, e que a partir da revisão do Artigo 33 da LDB e da consolidação da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) vai sendo demandada a conexão com os métodos da(s) Ciência(s) da(s) Religião(ões) afim de proporcionar estudos empíricos e sistemáticos sobre as tradições religiosas que estimulem uma educação cidadã e de respeito à diversidade. Em Formação de docentes para o Ensino Religioso: desafios e perspectivas, Josiane Crusaro Simoni e Elcio Cecchetti notam como a escola brasileira não eliminou sua face prosélita, difundindo valores e crenças de dadas confissões religiosas, veiculadas através de relações sociais, currículos e práticas pedagógicas. Para Elcio e Josiane, tal proselitismo se constitui em entrave ao acolhimento da diversidade religiosa de quem é participe do cotidiano escolar, e faz-se mister uma proposta de Ensino Religioso alicerçada na perspectiva da formação integral e cidadã em que todas as crenças, expressões religiosas, convicções e filosofias de vida sejam respeitadas, o que demanda a promoção de políticas públicas voltadas para a habilitação específica de profissionais que ministrem esta disciplina nos contextos escolares. No texto Laicidade do Estado e Ensino Religioso no Brasil: trajetórias, desafios e perspectivas, Tália de Azevedo Santos e Giuseppe Tosi identificam a complexa problemática que envolve as relações entre o caráter laico do Estado e as tradições históricas da escola no que se refere ao ensino confessional, e analisam algumas das formas como o Ensino Religioso demonstra-se campo ameaçado e ameaçador de disputas ideológicas em um contexto sócio histórico que expressa as ambiguidades nas relações Estado, igreja e Direitos Humanos. Para a autora e o autor, é de suma importância salientar e investir no papel que as instituições e a sociedade civil, inclusive a escola pública, têm na garantia dos direitos de valorização da liberdade e pluralidade religiosa. Desafios em tempo de polarização político-religiosa nos espaços escolares, escrito por Marinilson Barbosa da Silva, busca analisar algumas das binariedades políticas, econômicas e sociais refletidas no campo religioso do Brasil contemporâneo, com especial ênfase no Ensino Religioso e em suas re(l)ações com a diversidade religiosa, confessionalidade e direitos humanos. Para Marinilson, um dos primeiros pontos de conflitos de polarizações respinga no objeto de estudo acerca desta disciplina: qual é o objeto do Ensino Religioso de direito e de fato? O autor ainda questiona: Deve-se trazer à tona o fenômeno religioso a partir do viés da confessionalidade ou da perspectiva da pluralidade religiosa? Outra Eduardo Meinberg de Albuquerque Maranhão Fº.
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das questões içadas pelo autor é que a polarização entre confessionalidade e diversidade não deixa de refletir um conflito entre tendências político-religiosas partidárias contemporâneas tanto de esquerda como de direita. Já o texto Ensino Religioso e Epistemologia do A(fé)to: Perspectivas e desafios entre a Educação de Paulo Freire e a falta de educação de Jair Bolsonaro, escrito por mim (Eduardo Meinberg de Albuquerque Maranhão Fº), comenta sobre dois elementos relacionados ao “desgoverno” do atual presidente da República Jair Bolsonaro, a falta de aportes e investimentos na área de Educação e a sua falta de respeito e polidez em discursos e entrevistas. Como contraponto a um governo especialista em fake news, “terrivelmente evangélico” e mal educado(r), o legado de Paulo Freire, nosso patrono da Educação, inspirará a pensar em formas de condução prática de um Ensino Religioso amorosamente inclusivo, laico, democrático e emancipatório, e relacionado à proposta de uma Epistemologia do A(fé) to ou Epistemologia do Amar e Mudar as Coisas. Em Ressignificando a prática docente em tempos de pandemia: O uso dos jogos, brinquedos e brincadeiras nas aulas de Ensino Religioso como desafio e perspectiva, Daniel Ribeiro Ferreira Junior e Marcos Vinicius de Freitas Reis trazem outras perspectivas contemporâneas sobre as relações entre o Ensino Religioso e o contexto sócio político atravessado não só pelo Brasil como o mundo. Os autores perguntam: quais os desafios enfrentados por quem leciona esta disciplina em um planeta aterrorizado pela pandemia de COVID-19? Para além disso, indaga-se se dentre as alternativas pedagógicas a serem adotadas, poderiam estar incluídos jogos, brinquedos e brincadeiras. É possível lecionar e ensinar com leveza e ludicidade em um contexto emocionalmente tão pesado? Outra delicada contribuição à consolidação de um Ensino Religioso que agrega linguagens culturais diversas está na literatura, como demonstram Juliana Rabaioli e Elcio Cecchetti, em Ensino Religioso e literatura: veredas, travessias e desafios. Com base nas contribuições da obra Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa, a autora e o autor apresentam alguns dos desafios e possibilidades da literatura como recurso pedagógico para as aulas de Ensino Religioso, em uma perspectiva intercultural e interreligiosa, exercício que pode ser feito com um sem número de obras literárias, justamente pela necessidade imanente deste componente curricular em dialogar com todas as ciências e saberes que circulam pelo ambiente escolar.
O Ensino Religioso na prática A Coletânea O Ensino Religioso na Prática é iniciada pelo capítulo O Ensino Religioso nas Graduações em Ciência(s) da(s) Religião(ões): Inserções e repre38
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sentações no currículo, de Mirinalda Alves Rodrigues dos Santos. Adotando perspectivas curriculares pós-críticas que podem inspirar o Ensino Religioso à óptica da diversidade, subjetividade e multiculturalidade, a autora demonstra a importância dos Departamentos de Ciência(s) da(s) Religião(ões) brasileiros em estimular uma formação inicial de docentes de Ensino Religioso não confessional que reforce a necessidade de uma educação laica e inclusiva em todos os ambientes escolares. Para a mesma, a pretensão desta área deve ser a de demonstrar, através desta disciplina, que não há apenas uma religião a ser considerada como única e verdadeira, mas sim, toda uma miríade religiosa a ser considerada de modo respeitoso e acolhedor, promovendo uma educação que leve em conta a diversidade em todas as práticas pedagógicas1. A discussão da autora é complementada pelo texto seguinte, Teoria e prática na construção do currículo do ensino religioso em Belém, de Rodrigo Oliveira dos Santos, que lembra que enquanto componente curricular, o Ensino Religioso deve desempenhar (em conjunto com as demais disciplinas), imprescindível papel na formação cidadã e para o mundo do trabalho, como previsto no Art. 2 da LDB (Brasil, 1996). Falando a partir das suas vivências junto à ACREPA (Associação de Cientistas de Religião do Pará), que é a única sociedade profissional dedicada exclusivamente à esta área no país - e sediada em um estado em que apenas pessoas licenciadas na(s) Ciência(s) da(s) Religião(ões) podem ministrar este componente curricular -, o autor apresenta documentos curriculares da rede municipal de Belém que demonstram esforços pela adoção dos parâmetros da BNCC para o Ensino Religioso, o que é estruturado a partir não somente de unidades temáticas, objetos de conhecimento e habilidades, como também a habilidades e objetivos da aprendizagem. Tal documento, alicerçado na(s) Ciência(s) da(s) Religião(ões) que o baliza(m), também fundamenta-se em uma estrutura interna que se organiza a partir de dois campos de estudo, o sistemático/comparativo e o empírico/histórico das religiões, visando dotar a disciplina da necessária cientificidade e laicidade. Outro capítulo do livro que elabora profícuos diálogos acerca de questões curriculares envolvendo este componente é Ensino Religioso: Estudo sobre proposta curricular com base no FONAPER e BNCC, escrito por Aldenir Teotônio Claudio, que apresenta algumas das múltiplas maneiras como a disciplina supramencionada pode funcionar como marco estruturado de leitura e de interpretação da realidade, algo fundamental para assegurar uma participação cidadã 1 Agradecemos à Mirinalda dos Santos, que participou da Comissão Organizadora do AMAR e Mudar as Coisas 1 (e extensivamente agradecemos à toda comissão), além de ser uma das Coordenadoras de Grupos de Trabalho do evento – assim como Danielle Ventura e Maria José Torres Holmes, que também integram amorosamente esta Coletânea. Eduardo Meinberg de Albuquerque Maranhão Fº.
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e autônoma que leve em conta, nas salas de aula, a valorização da diversidade não só religiosa como cultural, de modo mais amplificado possível. De modo convergente, um aspecto de fundamental relevância em relação a este componente curricular está nos estágios supervisionados, e dois capítulos contribuem com esta conversa. Em O papel do estágio supervisionado nos cursos de licenciatura em Ciências das Religiões, Danielle Ventura de Lima Pinheiro e Renata Tatianne de Lima Silva destacam como o mesmo é instrumento indispensável no preparo de um Ensino Religioso que se fundamente na laicidade e no respeito à diversidade. Pinheiro e Silva analisam em seu capítulo algumas das características do processo de consolidação do Ensino Religioso no Brasil, até chegar à questão do estágio como imprescindível no currículo e na formação de quem se licencia em Ciência(s) da(s) Religião(ões). Para as autoras, a partir da implantação do Ensino Religioso na Base Nacional Comum Curricular (BNCC), enfatiza-se a relevância do estágio supervisionado, já que é este componente curricular do curso de licenciatura em Ciência(s) da(s) Religião(ões) que vai preparar o caminho para a futura docência. Semelhantemente, Thiago Rafael Soares de Souza Guedes indaga, em O Estágio como prática reflexiva e demonstrativa na construção de saberes pelo professor de Ensino Religioso: “quais saberes o futuro educador constrói no Estágio Supervisionado, em um panorama de associação entre universidade e escola? Como o estágio, compreendido numa perspectiva argumentativo-reflexiva, colabora para a construção de habilidades educacionais?” Tais perguntas salientam conexões entre pesquisa e processo de construção de docentes e ajudam a refletir, por exemplo, sobre como o convívio com a escola pública durante estágios supervisionados pode capacitar discentes a elaborarem concepções que colaborem com seu próprio desenvolvimento formativo e humano, em prol de uma sociedade inclusiva e democrática. Levando em conta o que é proposto pela Lei nº 9.475/1997, que visa garantir que as práticas pedagógicas do Ensino Religioso protagonizem a abordagem das distintas tradições religiosas, o capítulo Ensino Religioso, identidade e consciência negra, de Thalisson Pinto Trindade de Lacerda e José Rodrigo Gomes de Sousa, apresenta reflexão acerca do racismo estrutural e como ele molda a maneira como as pessoas pensam, ao ponto de uma parcela de estudantes demonstrarem preconceito e intolerância quando a temática das religiões afro-brasileiras é levada para a sala de aula. Para os autores, faz-se mister que as concepções de identidade e de consciência negra sirvam como mecanismos de combate à discriminação nos ambientes escolares e fora dos mesmos. Complementando o assunto, Lambesujos x Caboclinhos: interfaces entre Ensino Religioso e a Lei 11.645/08 em Laranjeiras/SE, de autoria de Ramon Diego Fonseca Costa, apresenta, em seu cerne, a ludicidade: o autor, imbricando suas vivências como brincante e candomblecista, tece algumas relações entre a manifestação 40
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cultural denominada Lambesujo X Caboclinho e as Leis 10.639/03 e 11.645/08, relativas à ministração das disciplinas de História e Cultura Afro-brasileira e Indígena em ambiente escolar, bem como ao componente curricular de Ensino Religioso, tendo como objetivo discutir a inserção das manifestações culturais e folclóricas afro-indígenas em uma perspectiva pedagógica que assegure um ensino pluriétnico. E nem só de respeito à liberdade e diversidade religiosa vive o Ensino Religioso. Para muito além, este componente curricular deve se constituir como centro gerador de respeito a todas as formas de ser e estar no mundo, não somente se preocupando com o estudo das diversas religiões e manifestações religiosas, outro aspecto de interesse fundamental desta disciplina. É o que nos apresentam Alana Carla Lucena e Isabelle Saraiva Tavares no capítulo As duas faces da educação: do proselitismo cristão ao Ensino Religioso como promotor dos Direitos Humanos das mulheres. As autoras explicam que o Ensino Religioso, que em boa parte de sua História foi se constituindo como proselitista e hierarquizador de gêneros binários, serviu a um status quo em que as mulheres eram delegadas a um plano inferior ao homens, inclusive direcionando as primeiras à serventia doméstica e os segundos à esfera pública, política e decisória. Todavia, no mundo hodierno, o Ensino Religioso pode se constituir como mecanismo de dissipação dos reflexos desta cultura masculinista e misógina, tornando-se propulsor da dignidade, emancipação e protagonismo feminino em todos os ambientes sociais.
O Ensino Religioso e a Sala de Aula A Coletânea O Ensino Religioso e a Sala de Aula traz sensíveis interlocuções com as compilações descritas acima. Aliás, não seria nada injusto dizer que todos os textos das três obras lançadas concomitantemente na Coleção Ensino Religioso da FOGO e da AMAR se relacionam aos títulos das coletâneas: estamos tratando dos desafios e perspectivas de um Ensino Religioso que, dentro e fora de sala de aula, tem titubeado entre o que teoriza e o que pratica. O texto que abre os trabalhos deste volume se conecta diretamente com a questão dos desafios e das práticas desta disciplina. Trata-se do capítulo redigido por Maria José Torres Holmes, chamado Ensino Religioso e diversidade religiosa: desafios e perspectivas em sala de aula. Em seu trabalho, a autora comenta sobre a trajetória deste componente, de um contexto de catequização de pessoas indígenas e escravas, passando pela Instrução Religiosa da doutrina confessional católica, que era reforçada pela Constituição de 1824, o que ocasionou bastantes danos à Educação; observando a declaração de Estado laico através da Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil, de 1891, em Eduardo Meinberg de Albuquerque Maranhão Fº.
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que se instaurava certo distanciamento nas relações entre as religiões com o Estado; e contemplando uma reviravolta ocasionada através da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, que assegurava o Ensino Religioso nas escolas públicas desde que se respeitasse a diversidade cultural religiosa do país – um país que, à propósito, ainda reverbera intenso preconceito religioso. No capítulo A perspectiva da disciplina de Ensino Religioso na construção de uma cultura de paz no Ensino Regular, José Carlos Cezar da Silva e Maria da Penha Lima da Silva observam que o Ensino Religioso pode contribuir de modo delicado e potente na formação cidadã de estudantes, auxiliando na promoção de uma sociedade solidária e fraternal. Valores comuns às religiões e religiosidades, como amor, bondade e solidariedade, analisados sob esta perspectiva, podem estimular a assimilação desde cedo de conceitos relacionados à inclusão da pluralidade e diversidade. Como metodologia, foi utilizada pesquisa bibliográfica em fontes de consulta impressa e digital, tendo como principal resultado a percepção de que uma educa-ação enraizada em valores morais, espirituais e pacíficos recupera seu objetivo primordial, ligado à cidadania em seu sentido mais holístico. E é em sala de aula que se desenvolvem majoritariamente os trabalhos de profissionais do Ensino Religioso na promoção da cidadania e do respeito às diversidades e aos direitos constitucionais e humanos. Neste sentido, o texto O professor frente à tarefa de mediar o ensino religioso: sua postura diante da diversidade religiosa em sala de aula, de Edilson da Silva, Jéssica da Silva, Monica Fonseca e Karina Ceci de Sousa Holmes, reflete a necessidade de uma educação transformadora, nos moldes dos ensinamentos do patrono da Educação brasileira, Paulo Freire, pensando como o Ensino Religioso deve ajudar as pessoas discentes em como percebem, problematizam e combatem proficientemente situações de discriminação e intolerância religiosa, instigando diálogos sempre respeitosos e acolhedores às subjetividades e diferenças que estejam “de olho” no respeito à laicidade e diversidade, que, à propósito, constituem o leitmotiv que deve nortear este componente curricular. Aliás, como indaga Maria Dalva de Oliveira Araujo, em Diversidade religiosa no ensino religioso: desafios à prática docente, “Ensino Religioso” é uma disciplina que tem como objetivo ensinar as pessoas a terem uma religião? Seria sinônimo de “aulas de religião”? Certamente que não, como sinaliza a autora. Em seu texto, Araujo aborda alguns dos desafios de docentes desta disciplina, refletindo sobre elementos sinalizadores do respeito à diversidade e laicidade em sala de aula. Para a mesma, a prática pedagógica do Ensino Religioso pressupõe a elaboração de novas perspectivas relacionadas à infinitude que é a diversidade humana, e como este componente curricular tem em seu “DNA” a possibilidade de adentrar em questões profundas da subjetividade, urge ao Ensino Religioso a prática da responsabilidade social e o respeito a todas as formas de existência. 42
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De modo similar, o capítulo escrito por Maria José Torres Holmes e Mônica da Mota Fonseca, intitulado Ensino Religioso na Educação de Jovens e Adultos nas Escolas Públicas: religião, cultura, religiosidade e espiritualidade, pergunta provocativamente se seria o Ensino Religioso “aula de catequese”, e como essa disciplina costuma ser ministrada no “chão da escola”. Apresentando um estudo sobre a diversidade cultural religiosa com especial mirada à comunidade estudantil da Educação de Jovens e Adultes (EJA), as autoras demonstram o quanto a coletividade escolar muitas vezes confunde equivocadamente “estudos sobre religiões” com a confessionalidade inerente às mesmas. E é justamente por conta da confusão recorrente entre Ensino Religioso e “aulas de cristianismo” que é urgente se desfazer tais equívocos. Fundamentado em narrativas biográficas de vivências em sala de aula, como vários dos textos desta compilação, Maria José Torres Holmes e Eliane Barbosa de Carvalho também procuram identificar, em Ensino Religioso na Diversidade Cultural Religiosa: Relatos de experiências, este componente como propiciador de trocas inclusivas e respeitosas entre escola, família e comunidade, observando o quanto faz parte da tarefa escolar contribuir para o desenvolvimento da coletividade escolar no tocante à cidadania e aos aspectos afetivo, intelectual e antropológico de modo interseccionado. Como percebemos, uma das questões que percorrem esta coletânea de Grupos de Trabalho do Simpósio é referente ao como ministrar este componente curricular. É o que infere Simone Simões da Cruz em seu texto Ensino Religioso: da teoria à prática na sala de aula, em que a autora procura demonstrar como a educação para os Direitos Humanos e cidadania é um processo de constante busca, que necessita o investimento paulatino da convivência afetuosa através do diálogo sempre respeitoso às diferenças. Fechando a coletânea – novamente salientando que os textos dos nossos Grupos de Trabalho tem este caráter de trabalho progressivo em grupo (daí convidarmos a todes a participarem (cri)ativamente de nossos eventos e de outros eventos importantes da área, afim de aprofundarem seus estudos) –, o capítulo intitulado Laicidade e Ensino Religioso: desafio aos docentes e à formação humana, redigido por Maria Dalva de Oliveira Araujo, analisa que para respeitar o princípio da laicidade, o primeiro passo a ser dado é conhecer, da melhor forma possível, as cosmovisões das pessoas educandas. A partir de diálogos com base nas diferenças de opiniões e experiências, e através de uma educação crítica e emancipatória, possibilitar que cada discente se torne protagonista de sua própria história de vida, em constante transformação e no respeito à pluralidade. O texto da autora, mais que fechar os trabalhos desta compilação, contribui na abertura de importante frente de estudos relacionados ao Ensino Religioso, referente às perspectivas e desafios que constituem este componente curricular. Eduardo Meinberg de Albuquerque Maranhão Fº.
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E é neste sentido que sugerimos a leitura da obra Ensino Religioso: Desafios e Perspectivas, que como já salientado, faz parte da Coleção Ensino Religioso, da FOGO e da AMAR. Como é possível perceber, os textos apresentados (referentes a Comunicações Orais em Grupos de Trabalho sobre Ensino Religioso do Simpósio Internacional AMAR e Mudar as Coisas) continuem um mosaico multicolorido de instigantes contribuições a uma pedagogia do respeito à cidadania, aos Direitos Humanos, à laicidade, à multiplicidade e ao a(fé)to. Outra coisa que devemos salientar novamente é que podemos considerar as coletâneas O Ensino Religioso e a Sala de Aula e O Ensino Religioso na Prática como produções genuinamente nordestinas. Ainda que inseridas no contexto de um evento internacional, que contou com diversas pessoas estrangeiras, as mesmas se caracterizam por sua marcante regionalidade. O evento foi realizado de forma híbrida, com algumas participações on-line, mas predominantemente presenciais, em uma Instituição de Ensino Superior nordestina, a Universidade Federal da Paraíba (UFPB), conhecida como centro de excelência intelectual (e berço onde nasceu a AMAR, durante o Simpósio). As pessoas que colaboraram com os Grupos de Trabalho relacionados ao Ensino Religioso e que nos encaminharam generosamente seus textos são vinculadas a universidades do Nordeste brasileiro, bem como os professores que gentilmente prefaciaram e posfaciaram a obra, e as principais promotoras do Simpósio Internacional AMAR e Mudar as Coisas, a FOGO Editorial e a AMAR, mesmo que compostas por pessoas de todas as regiões do Brasil e também do exterior, têm atualmente sede nesta região, mais precisamente na Praia do Amor, situada no litoral sul paraibano. E foi com muito respeito, delicadeza, carinho e amor que esta compilação foi coletivamente produzida. Agradecendo a você que está lendo este trabalho, fica nosso estímulo a que continuemos atuando em prol de uma educa-ação que, mais que simplesmente “tolerante”, seja respeitosa, libertadora e acolhedora não somente da diversidade religiosa, como de todas as demais formas de diversidade.
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SIMPÓSIO INTERNACIONAL AMAR E MUDAR AS COISAS
CAMPO DOS ESTUDOS DE RELIGIÃO NO BRASIL Desafios e perspectivas
Gilbraz de Souza Aragão Trabalha na Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP) desde 1991, sendo hoje Professor Titular e Pesquisador nos Programas de Pós-graduação em Ciências da Religião e em Teologia. É também Colaborador no Programa de Pós em Ciências das Religiões da UFPB. É Coordenador do Grupo de Pesquisa Interuniversitário sobre Espiritualidades, Pluralidade e Diálogo (CNPQ), desde 2009, e do Observatório Transdisciplinar das Religiões no Recife, a partir de 2005. Mantém pesquisa sobre teologia cristã e diálogo inter-religioso, transdisciplinaridade e estudos de religião.
[email protected]
Como referenciar este capítulo: ARAGÃO, Gilbraz de Souza. Campo dos estudos de religião no Brasil: desafios e perspectivas. In: MARANHÃO, Fº. Eduardo Meinberg de Albuquerque (Org.). Ensino religioso: desafios e perspectivas. Florianópolis: AMAR; FOGO, 2021, pp. 45-57.
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O nosso campo brasileiro dos estudos de religião tem história recente. O fortalecimento de instituições de ensino superior comunitárias, muitas delas de origem religiosa, levou ao nascimento, na década de 1970, dos primeiros Programas de pós-graduação em Ciências da Religião do país, que, posteriormente, foram credenciados pela Coordenadoria de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). Outros Programas foram criados nas décadas seguintes, alguns deles também em universidades públicas, como a pioneira UFJF. Esses Programas, em grande parte formados por “teólogos emancipados” por meio da Teologia da Libertação no mundo universitário, enfatizam uma leitura “mais de baixo” e “mais de fora” sobre as religiões e religiosidades1. No mesmo período, várias pós-graduações em Teologia cristã, tomadas de invídia (afinal, as universidades começaram na soleira das catedrais medievais) em suas leituras “mais de dentro” das igrejas, também passaram pelo mesmo processo e, hoje, temos 21 Programas2 nessa área fronteiriça, em que as Teologias (com 9 Programas) podem oferecer interpretações internas das experiências do divino nas religiões, as quais devem criticar, e se deixar criticar, pelas interpretações externas que o campo interdisciplinar da Ciência ou Ciências da Religião (com 12 Programas) oferecem sobre o religioso. Desde 2008, a então subárea da filosofia é articulada pela ANPTECRE (a Associação dos Programas de Pós-graduação em Teologia e Ciências da Religião)3 que, em 2017, conseguiu na CAPES autonomia como área de Ciências da Religião e Teologia, inclusive propondo ao CNPQ uma revisão da “árvore do conhecimento”4, para incluir a classificação amadurecida das disciplinas fundamentais e fundamentar epistemologicamente a listagem. Em 1999, o Ministério da Educação (MEC) também reconheceu o primeiro bacharelado em Teologia no Brasil, que se seguiu do reconhecimento de muitos outros nos anos seguintes. Hoje, em atividade, há 208 cursos de Teologia (45 dos quais, EaD), a maioria seguindo como bacharelado; e, também, 29 cursos de graduação em Ciências da Religião (9 EaD), a maioria como licenciatura, segundo 1 Conferência apresentada no IV Congresso Nordestino de Ciências da Religião e Teologia, realizado na UFAL em 2018. 2 Cf. CAPES, Cursos Reconhecidos. Disponível em: http://www.capes.gov.br. Acesso em: 10 fev. 2018. 3
Site da Associação: http://www.anptecre.org.br
4 A proposição da ANPTECRE, aprovada no CNPQ, é de que a nova área de “Ciências da Religião e Teologia” tenha a seguinte nomenclatura para as especialidades da Árvore do Conhecimento: Epistemologia das Ciências da Religião, Ciências da Linguagem Religiosa, Ciências Empíricas da Religião, Ciência da Religião Aplicada, Teologia Fundamental-Sistemática, Tradições e Escrituras Sagradas, História das Teologias e Religiões, e Teologia Prática. Gilbraz de Souza Aragão
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os cadastros do e-MEC5. Além disso, atualmente no Brasil existem mais de duas dezenas de cursos de Licenciatura em Ensino Religioso (ER), vinculados a Universidades Estaduais ou Fundações similares, que estão se articulando na Rede Nacional das Licenciaturas em Ensino Religioso, vinculada ao Fórum Nacional Permanente do Ensino Religioso (FONAPER)6. E aqui as coisas começam a se complicar. Essa história, de estudos de religião no sistema público de educação e de complementariedade entre abordagens mais internas e mais externas da religiosidade, não tem transcorrido sem problemas. Há desafios metodológicos e epistemológicos para aceitação do campo na academia, mas também questões políticas em jogo na cultura. Convivemos agora com uma tensão7 nessa interface entre Teologia e Ciências da Religião. Ela provém de três lados: um é o Acordo Bilateral entre a Santa Sé e o Brasil, costurado pelos diplomatas do papa Bento XVI, que se buscou ampliar para as outras tradições pela Lei Geral das Religiões8, que identificam o Ensino Religioso como o ensino de uma confissão religiosa, quando ele vinha sendo ressignificado como componente curricular do ensino fundamental da escola pública, tendo a finalidade de estudar os fenômenos de experiências da transcendência numa perspectiva intercultural e transreligiosa, por meio de eixos pedagógicos, como elementos da formação cidadã das nossas crianças e subsídios para o diálogo pluralista e humanizante dos cidadãos. Em decorrência dos questionamentos àquele Acordo, o Supremo Tribunal Federal (STF) julgou uma ação de inconstitucionalidade que questionou o modelo de educação religiosa nas escolas públicas brasileiras e aí perdemos uma batalha no desenvolvimento da educação republicana, pelo ensino religioso laico, como aprendizagem crítica e transdisciplinar sobre os conhecimentos espirituais da humanidade. Por seis votos a cinco, o STF decidiu liberar também o ensino religioso confessional ou interconfessional (catequético ou teológico) nas escolas públicas. Não mudou a lei do ensino religioso, mas, por não restringi-lo à 5 Cf. Ministério da Educação:. E-MEC - Instituições de Educação Superior e Cursos Cadastrados. Disponível em: http://emec.mec.gov.br/. Acesso em: 10 fev. 2018. 6
Site do Fórum: http://www.fonaper.com.br/
7 Desenvolvemos aqui uma sugestão de OLIVEIRA, Pedro R. Ciências da Religião e Teologia: evolução e situação desde a perspectiva brasileira. In: ARAGÃO, Gilbraz, CABRAL, Newton e VALLE, Edênio (Orgs.). Para onde vão os estudos da religião no Brasil? São Paulo: Anptecre, 2014, pg. 47-64. 8 A Comissão de Assuntos Sociais (CAS) do Senado aprovou, em 12/06/2013, o projeto que estabelece a Lei Geral das Religiões (veja http://agenciabrasil.ebc.com.br/ noticia/2013-06-12/comissao-do-senado-aprova-projeto-da-lei-geral-das-religioes), proposta apresentada pelo deputado George Hilton (da Igreja Universal). 48
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versão não-confessional (com base nos estudos científicos de religião), permitiu interpretações mais atrasadas e proselitistas, mais favoráveis à intolerância (e defendidas por bancadas legislativas fundamentalistas), que agora precisamos enfrentar estado a estado, município a município, em cujos sistemas escolares se decide a modalidade desse ensino. Na maioria dos lugares, os parâmetros curriculares do ensino religioso estão em bom caminho, como desenvolvimento pedagógico das Ciências da Religião, e as resoluções dos Conselhos de Educação dizem que, para ser habilitado para o ensino religioso, o professor deve ter licenciatura em Ciências da Religião (ou possuir ao menos especialização nessa área, caso licenciado nas ciências humanas). Mas cada lugar precisa ver, então, como atualizar seus conteúdos e métodos, cobrando o que já é e continua lei sobre a matéria9. A próxima frente de luta é para que o ensino religioso se firme em conformidade com a Base Nacional Curricular Comum (BNCC)10, por meio de eixos pedagógicos problematizadores das experiências humanas de religiosidade, dos fenômenos espirituais religiosos e não-religiosos no tempo-espaço sociocultural, das ideias místicas e práticas éticas das tradições espirituais. Afinal, a guerra contra o atraso e o obscurantismo continua, pois o ensino religioso dividido entre confissões religiosas sacraliza distinções hierárquicas que são, ao mesmo tempo, religiosas e de classe, raça e gênero, gerando desrespeito e violência entre os brasileiros, a partir da escola. O Ensino Religioso está na BNCC não como catequese, mas como aplicação pedagógica de um campo de conhecimento: O conhecimento religioso, objeto da área de Ensino Religioso, é produzido no âmbito das diferentes áreas do conhecimento científico das Ciências Humanas e Sociais, notadamente da(s) Ciência(s) da(s) Religião(ões). Essas Ciências investigam a manifestação dos fenômenos religiosos em diferentes culturas e sociedades enquanto um dos bens simbólicos resultantes da busca humana por respostas aos enigmas do mundo, da vida e da morte (BRASIL, 2017).
Então, ainda que o STF diga que o ensino religioso pode até ser confessional, as diretrizes do MEC vão na direção da aprendizagem não confessional, como tradução pedagógica dos conhecimentos produzidos “notadamente pela(s) Ciência(s) da(s) Religião(ões)”. 9 Ver o Roteiro de Atuação do Ministério Público: Estado Laico e ensino religioso nas escolas públicas. Disponível em: http://www.cnmp.mp.br/portal/images/Publicacoes/ documentos/roteiro_atuacao_ensino_religioso_nas_escolas_publicas.pdf. Acesso em: 18 set. 2018. 10 Cf. BRASIL. Base Nacional Comum Curricular. Brasília: Ministério da Educação, dezembro de 2017. Gilbraz de Souza Aragão
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Verdade que, na véspera da aprovação da Base, religiosos bem retrógrados andaram por Brasília pressionando para que o MEC retirasse o Ensino Religioso da BNCC. Eles distribuíram um panfleto fantasioso, dizendo que o Ensino Religioso aí tem por base o “marxismo cultural da Escola Crítica de Frankfurt e os dados científicos da Sociologia da qual fazem parte as Ciências da Religião” e tem por finalidade a doutrinação ideológica da sociedade brasileira desde a primeira infância: [...]a finalidade do ensino religioso é a aprendizagem da democracia e da cidadania em um contexto onde a religião é relativizada e destituída de caráter objetivo, que por sua vez é o pressuposto lógico para a sua completa extinção e o estabelecimento de uma cultura integralmente materialista11.
O texto não é assinado, mas tem a retórica partidária do “Escola Sem Partido”. Pela militância de muitos educadores Brasil afora, vai se consolidando a compreensão de que a religião deve ser tratada na escola como objeto de estudo que contribui com a formação geral do cidadão, em um exercício de ciência a ser feito com os estudantes sobre as religiosidades e espiritualidades em suas expressões simbólicas e valorativas. Trata-se de uma educação “sobre” a religião e “da” espiritualidade, que difere da educação “para” a prática religiosa - que compete às confissões religiosas e vivências familiares. As diferentes crenças e expressões religiosas, bem como a ausência delas por convicções filosóficas, são aspectos da realidade que devem ser socializados e abordados como questões socioculturais, que contribuem na fundamentação das nossas ações. Vamos passando, então, de uma cosmovisão unirreligiosa e plurirreligiosa para a transreligiosa que se deve cultivar na escola hoje, desafiada a ajudar a comunidade a pensar sempre mais globalmente e a agir cada vez mais localmente, em vista de favorecer vivências mais terapeutizadas e emancipatórias de espiritualidade. Não se trata mais de transmissão de doutrinas ou mesmo de reflexões de uma antropologia teológica interconfessional, tecida por acordos eclesiais, mas do desenvolvimento de processos republicanos de aprendizagem crítica sobre espiritualidades religiosas e não religiosas da humanidade, da tradução pedagógica dos conteúdos desenvolvidos pelas Ciências da Religião. A outra ameaça ao nascente e crescente campo de estudos da religião vem da “bancada evangélica” no Congresso Nacional, ao propor o reconhecimento da profissão de teólogo12, nela confundindo o ministro religioso com estudos de 11 https://www.facebook.com/gilbraz.aragao/posts/10213065397023001. Acesso em: 10 fev. 2018. 12 Cf. http://crunicap.blogspot.com.br/2010/01/profissao-de-teologo.html. Acesso em: 10 fev. 2018. 50
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terceiro grau. Claro que há de se pensar sobre a profissionalização dos estudiosos da religião, mas não com critérios de práticas devocionais das tradições religiosas, e sim com base em formação acadêmica. Tanto os teólogos das diversas religiões quanto os cientistas da religião devem ser entendidos como profissionais com formação universitária, a serviço da animação de igrejas ou enquanto professores de escolas, mas sempre com critérios do magistério acadêmico e em vista de conscientizar a dimensão pública das religiosidades. Ambas as propostas, de profissionalização do teólogo ministerial e de ensino religioso confessional, teriam, se implementadas como defendidas pelas igrejas cristãs, o efeito de substituir a exigência do rigor metodológico, que hoje norteia a área, pela exigência de obediência às normas eclesiásticas. Ainda corre na Assembleia Nacional o Projeto de Lei 309/11 apresentado pela bancada evangélica, para que os sistemas de ensino consultem associações de pais junto às associações de religiões para formular conteúdos (mas se o ER trabalha com conhecimento e não faz catequese, não tem de consultar cada vez nem a uns nem a outros) e tipificando critérios para o exercício da docência (coloca os licenciados de Ciências da Religião, mas junto a uma série de alternativas que permitem a entrada de pessoas com cursos religiosos/pastorais). O PL foi arquivado devido à pressão da SBPC, também por apensar imposições do ensino de Bíblia e de Criacionismo, mas voltou à pauta ainda pelas mãos de Eduardo Cunha e depois, contudo, a Comissão de Educação apresentou substitutivo que manda o MEC oferecer diretrizes curriculares nacionais para o ER e o Conselho Nacional de Educação (CNE) regular os cursos para formação dos seus professores. A Bancada da Bíblia avançou por outro flanco: para reconquistar o privilégio de aproveitamento dos estudos de teologia e filosofia, feitos nos seminários religiosos (muitas vezes com teor catequético e proselitista), em cursos superiores reconhecidos pelo MEC, “mediante avaliação de banca examinadora especial”. É uma forma legal (e imoral) de burlar a lei e conseguir diploma civil sem submeter-se às diretrizes curriculares nem fiscalizações pedagógicas, mantendo magistérios eclesiásticos (e não os magistérios acadêmicos) na direção dos estudos: cria-se, assim, uma fábrica de diplomas para as igrejas, teologia (e filosofia) viram carta de apresentação (fake) para religioso no espaço público e caminhamos a passos largos pra uma teocracia cristã (posto que outras religiões não possuem muitos cursos assim). O Senado está aprovando13 um texto nessa direção, retomando o Projeto de Lei 1153/03. E ligado a esses desafios, deve-se acrescentar um terceiro complicador para os estudos da religião entre nós, que atinge também os Programas de Pós-Graduação 13 Cf. https://www.camara.leg.br/noticias/597767-ccj-aprova-aproveitamento-de-teologia-e-filosofia-em-cursos-de-graduacao. Acesso em: 10 out. 2019 Gilbraz de Souza Aragão
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(responsáveis não somente por receber egressos das graduações para aprofundamento criativo e produtivo de conteúdos, mas também por induzir epistemologicamente a organização político-pedagógica das iniciações universitárias): é o estabelecimento e atualização pelo CNE/MEC dos referenciais curriculares nacionais para as graduações de Teologia e, também, de Ciências da Religião. A proposta das diretrizes para a teologia demorou a se abrir para a inclusão dos desenvolvimentos teologais de todas as religiões e para os critérios de conhecimento aceitáveis na Universidade. O Parecer CNE/CES 51/201014, aperfeiçoou uma série de intervenções que vinham tentando coibir os abusos de entidades eclesiásticas sobre a vida acadêmica republicana, manteve a exigência de que os Projetos dos Cursos de Teologia não sejam proselitistas e se proponham a formar teólogos críticos, com acesso à complexidade das teologias nas diferentes culturas. Retirou-se, do Parecer 118/2009, a expressão “exclusão da transcendência”, interpretada como um reducionismo positivista que se queria impingir aos estudos teológicos. O Parecer CNE/CES 60/201415 avançou na formulação de Diretrizes Curriculares Nacionais para graduações em Teologia, que foram homologadas pelo Ministro da Educação. Essas Diretrizes indicam que a estruturação curricular dos cursos, como Bacharelados, devem contemplar quatro eixos. O eixo de formação fundamental deverá incluir conteúdos de formação básica que caracterizam o curso de Teologia. Neste eixo deverão ser ministradas disciplinas relacionadas ao estudo das narrativas e textos sagrados ou oficiais, que podem ser tidos como fontes da Teologia, segundo a Tradição própria; das línguas destas fontes da Teologia; das normas ou regras de interpretação das referidas fontes; do desenvolvimento da Tradição; do método, dos temas e das correntes teológicas construídas ao longo da história e contemporaneamente. O eixo de formação interdisciplinar deverá contemplar conteúdos de cultura geral e de formação ética e humanística. O eixo de formação teórico-prática deverá contemplar conteúdos de domínios conexos que são importantes para a construção do perfil e das competências pretendidas de acordo com o projeto de formação definido pela Instituição e o eixo de formação complementar terá como objetivo possibilitar ao aluno reconhecer e testar habilidades, conhecimentos e competências, inclusive fora do ambiente acadêmico. As diretrizes preconizam, dentre outras características, o seguinte perfil do egresso do bacharelado em Teologia: pessoas que tenham a capacidade de 14 Cf. http://crunicap.blogspot.com.br/2010/09/curriculo-de-teologia-agora-tem-lei.html. Acesso em: 10 fev. 2018 15 Cf. http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_content&id=20279:pareceres-cne-2014. Acesso em: 10 fev. 2018. 52
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compreender os conceitos pertinentes ao campo específico do saber teológico, segundo sua Tradição, e ser capazes de estabelecer as devidas correlações entre estes e as situações práticas da vida; integrar várias áreas do conhecimento teológico, para elaborar modelos, analisar questões e interpretar dados em harmonia com o objeto teológico de seu estudo; compreender a construção do fenômeno humano e religioso sob a ótica da contribuição teológica, considerando o ser humano em todas as suas dimensões, e refletir criticamente sobre a questão do sentido da vida; analisar, refletir, compreender e descrever criticamente os fenômenos religiosos, articulando a religião e outras manifestações culturais, apontando a diversidade dos fenômenos religiosos em relação ao processo histórico-social; compreender a dimensão da transcendência como capacidade humana de ir além dos limites que se experimentam na existência; exercer presença pública, interferindo construtivamente na sociedade, na perspectiva da transformação da realidade e na valorização e promoção do ser humano. Caminhamos aos poucos para a compreensão de que a Teologia, academicamente, deve buscar uma ressignificação enquanto ciência que desenvolve a interpretação de mitos, ritos e interditos de tradições de fé - o que implica tanto a caracterização dos objetos teológicos como símbolos humanos quanto a redescoberta de conteúdos racionais em narrativas míticas. A teologia precisa se redefinir epistemologicamente na Universidade, como reflexão a partir de uma experiência (humana) de revelação religiosa - e não como “Ciência da Revelação”, que pudesse partir ou atingir o divino em-si, para além da sua experimentação (como mistério da realidade) em-relação (por via das místicas religiosas - e até “não” ou “pós”-religiosas). Sobre as diretrizes para as licenciaturas em Ciências da Religião, pesaram questões quanto à definição destas como simples disciplina científica ou como um campo interdisciplinar (incluindo inclusive as teologias) de estudo sobre os fatos religiosos e espirituais, bem como questões políticas sobre quem tem o direito no Brasil de socializar interpretações educativas sobre o fator religioso: os magistérios eclesiásticos, representados por seus teólogos, ou os magistérios acadêmicos, formados pelos cientistas das religiões. O projeto discutido e aprovado no CNE, consubstanciado no Parecer CNE/CP 12/201816, homologado pelo MEC em fins de 2018, determina que Ciências da Religião constitui-se como habilitação para o exercício da docência do Ensino Religioso e diz que o curso de Graduação em Ciência(s) da(s) Religião(ões), como Licenciatura, deve se estruturar nos seguintes núcleos: o Núcleo de Formação 16 Cf. http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_docman&view=download&alias=99971-pcp012-18&category_slug=outubro-2018-pdf-1&Itemid=30192. Acesso em: 31 dez. 2018. Gilbraz de Souza Aragão
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Geral, que articulará a Formação Acadêmica, assegurada por meio da apropriação de conhecimentos estruturantes do Campo das Humanidades, incluindo as relações entre pesquisa e metodologia científica, leitura e produção de textos, ciências e fenômenos religiosos; a Formação Pedagógica, assegurada pelo estudo e pesquisa dos fundamentos da Educação, dos seus dispositivos legais, princípios didáticos, processos de organização da Educação Básica, saberes da profissão e da identidade docente; e a Formação Inclusiva, assegurada pelo estudo das relações entre educação e diversidade, direitos humanos e cidadania, educação ambiental, educação especial, relações étnicas e raciais, de gênero, de geração e de classes sociais, língua brasileira de sinais. O Núcleo de Formação Específica, que articulará: a Formação Específica em Ciências da Religião, assegurada por meio de Fundamentação Histórica e Epistemológica da área de Ciências da Religião; Apropriação dos aspectos estruturantes das matrizes, tradições e movimentos religiosos de origens africanas, indígenas, asiáticas, orientais e ocidentais, considerados em sua multiplicidade de elementos (linguagem religiosa, símbolos, ritos, espaços, territórios, mitos, divindade(s), crenças, doutrinas, textos orais e escritos, ideias sobre existência e imortalidade, princípios e valores éticos); Estudo e pesquisa de correntes filosóficas e movimentos socioculturais não religiosos; Estudo sistemático das religiões, o que inclui abordagens comparativas, classificatórias e reflexivas, as quais visam a interface com temáticas transversais à sociedade e à cultura, tais como: religião e sociedade, religião e política, religião e economia, religião e mídia, religião e ciência, religião e arte, religião e violência, religião e sexualidade, religião e natureza, dentre outros; Desenvolvimento e aplicação dos conhecimentos específicos das Ciências da Religião em espaços formais e não formais de ensino, na construção de processos de aprendizagem crítica e transdisciplinar sobre os fenômenos religiosos, a fim de subsidiar o diálogo inter-religioso, a interculturalidade, os direitos humanos e da cultura da paz; além da Formação Específica em Ensino Religioso, assegurada por meio da Apropriação dos fundamentos históricos, epistemológicos e metodológicos do Ensino Religioso de natureza não confessional e não proselitista, necessários à sua docência em diferentes etapas e modalidades da Educação Básica; Análise, criação e uso de materiais didáticos, textos, tecnologias digitais e metodologias significativas de aprendizagens para o Ensino Religioso. Por fim, o Núcleo de estudos integradores, que proporcionará enriquecimento curricular por meio de atividades de caráter científico e cultural, atividades práticas que propiciem vivências nas mais diferentes áreas do campo educacional, mobilidade estudantil e intercâmbio, atividades de comunicação e expressão. O egresso da licenciatura em Ciências da Religião deve estar apto, entre outras coisas, a atuar com ética e compromisso com vistas à construção de uma sociedade justa, equânime e igualitária; trabalhar na promoção da aprendizagem 54
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e do desenvolvimento de sujeitos nas diferentes etapas e modalidades de educação básica; relacionar os conteúdos específicos da Ciência da Religião e as abordagens teórico-metodológicas do Ensino Religioso de forma interdisciplinar e contextualizada; demonstrar consciência da diversidade, respeitando as diferenças de natureza ambiental-ecológica, étnico-racial, das deficiências e dos diversos modos de ser e viver; mediar debates, pesquisar e assessorar espaços não formais de ensino, instituições públicas e privadas, organizações não governamentais e entidades confessionais. Assim sendo, a Teologia tende a se tornar plural (como auto interpretação de cada tradição espiritual, que tem direito de refletir sobre as razões da sua fé, desenvolver as suas teologias e formar os seus quadros de animadores religiosos em Programas de pós e graduações, como bacharelados) e a ser mais uma das perspectivas interpretativas em Ciências da Religião, que como área transdisciplinar de estudos da religião deve ter os seus cursos de pós-graduação mas também de graduação - os quais são, aliás, os mais adequados para formarem, mais como licenciaturas, os profissionais do Ensino Religioso e os mediadores de questões religiosas no espaço público, em vista da cidadania plenamente participativa; enquanto as graduações de Teologia, mais como bacharelado, prestam-se à formação de agentes especializados, como ministros, catequistas e liturgistas, dentro de cada tradição religiosa. Postos esses desafios ao campo dos estudos de religião, restamos cheios de boas perspectivas para a área. Será que estamos conseguindo acertar com os estudos de teologias e ciências da religião em nosso país, trazendo-os para a arena acadêmica mais laica, para o espaço acadêmico de construção do conhecimento por meio dos jogos de controvérsias? Apesar das dificuldades internas e tensões com o meio político e cultural, a entrada dos estudos da religião nas universidades brasileiras colabora para questionar o positivismo (e outras fés e igrejinhas) das suas ciências e tornar mais complexa e inclusiva a sua compreensão da realidade, na qual a dimensão espiritual é fonte de nomificação, como também para refundar epistemologicamente os métodos das ciências da religião e das teologias, tornando-os mais razoáveis e abertos à crítica interdisciplinar. O que estudam o cientista e o teólogo é, definitivamente, o humano, em suas relações com a natureza e a “sobrenatureza”, o “mais-que-natural”. E as conclusões a que podem chegar ciências e teologias, no fim de contas, situam o teólogo muito próximo do cientista autêntico e com um mínimo de sensibilidade humana. O teólogo precisa reinterpretar sempre as suas escrituras, mas partindo da, e visando a realidade sócio natural – que é interpretada pela ciência. Quanto mais a ciência progride, mais ela deixa entrever uma ligação íntima entre o material e o espiritual. O “como” da ciência e o “por quê” da teologia são intimamente ligados, numa perspectiva humanista. A teologia tem necessidade da ciência Gilbraz de Souza Aragão
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para progredir e está convocada para a grande unificação do saber a que todos aspiram hoje. As religiões podem falar do divino somente apoiando-se no que se descobriu sobre o universo. Não se trata apenas de uma questão de linguagem, mas problema de lógica igualmente17. Quer dizer, o encontro e o confronto entre o saber científico e o religioso poderão, por meio de métodos transdisciplinares, produzir novos conhecimentos e até novas formas de conhecer. E ainda mais, ciência e fé podem se reencontrar na medida em que recuperem a sua destinação ética, o seu comum “terceiro excluído”. Inclusive, internamente, a tensão entre as ciências da religião e as teologias mostra-se academicamente salutar no Brasil, pois os teólogos reconhecem que, sem as ciências da religião, sua reflexão encerra-se muitas vezes em mundos eclesiásticos herméticos e fundamentalistas ou ideológicos; enquanto os cientistas da religião, sem o acesso à fé que busca se compreender nas teologias de cada tradição religiosa ou espiritual, entendem que podem resvalar em exercícios arrogantes e desumanos das ciências modernas sobre a área humana, por sua objetivação asséptica que busca apenas explicar fenômenos – ao invés de também salvá-los, de vez que deles somos parte envolvida e interessada. Fica aqui a nossa confissão de esperança na riqueza cultural da diversidade, nas possibilidades político-pedagógicas da complementaridade dos saberes.
17 Cf. NICOLESCU, B. et al. Levels of representattion and levels of reality: towards an ontology of science. In: The concept of nature in science and theology. Genève: Labor et Fides, 1998, p. 94-103. 56
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Referências ARAGÃO, Gilbraz. Do transdisciplinar ao trans-religioso. In: TEPEDINO, Ana e ROCHA, Alessandro (Orgs.). A teia do conhecimento. São Paulo: Paulinas, 2009. ARAGÃO, Gilbraz. Sobre epistemologias e diálogos: fenomenologia, diálogo interreligioso e hermenêutica. In: CRUZ, Eduardo; DE MORI, Geraldo (Orgs.). Teologia e Ciências da Religião. São Paulo: Paulinas; Belo Horizonte: PUCMinas, 2011.
ARAGÃO, Gilbraz e SOUZA, Mailson. Transdisciplinaridade, o campo das Ciências da Religião e sua aplicação ao Ensino Religioso. Estudos Teológicos. São Leopoldo, v. 58, n. 1, p. 42-56, jan./jun. 2018. BRASIL. Base Nacional Comum Curricular. Brasília: Ministério da Educação, dezembro de 2017.
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Danielle Ventura de Lima Pinheiro Mãe, esposa, filha e estudiosa das práticas holísticas. Doutora em Educação pela UFPB, Doutora em Ciências das Religiões pela PUC-GO e Mestre em Ciências das Religiões pela UFPB. Vice líder do FIDELID (UFPB), filiado à Associação Internacional de Estudos de Afetos e Religiões (AMAR) e vinculado ao PPGCR/UFPB.
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Como referenciar este capítulo: VENTURA, Danielle. Ensino religioso: desafios e perspectivas. In: MARANHÃO, Fº. Eduardo Meinberg de Albuquerque (Org.). Ensino religioso: desafios e perspectivas. Florianópolis: AMAR; FOGO, 2021, pp. 59-75.
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Introdução Refletir sobre o tipo de Ensino Religioso que se busca nas escolas públicas, tem sido uma temática recorrente em trabalhos acadêmicos1. Tais estudos inspiram-se, geralmente, em propor modificações de práticas pedagógicas locais que estão limitadas a conteúdos prosélitos e/ou focados exclusivamente na história do cristianismo2. Todavia, para se conhecer melhor os diversos olhares sobre o Ensino Religioso, é urgente que se sobressaia às pesquisas empíricas pautadas nas dificuldades da área3, e que se faça um estudo aprofundado da história do Ensino Religioso no Brasil, identificando-se desde o seu caráter proselitista às perspectivas plurais da atualidade. Para tanto, a análise criteriosa dos agentes dominantes, que consolidam as práticas pedagógicas específicas do Ensino Religioso no decorrer dos anos, permitirá que se identifique o lugar social dos autores das principais propostas para este componente curricular, e de instituições como a Igreja Católica e o Fórum Nacional Permanente do Ensino Religioso-FONAPER. Concomitantemente, se abrirá espaço para refletir sobre os desafios dessa área na atualidade, ao se pensar sobre as Diretrizes e a BNCC, bem como sobre o papel das graduações na formação inicial e continuada dos docentes acrescentando ainda sobre o que precisa ser ampliado e revisto para garantir um Ensino Religioso laico e pautado no respeito a todas as crenças.
O Catolicismo no Ensino Religioso Entre 1500 e 1800, a Igreja Católica teve a incumbência de evangelizar os índios e os negros por meio dos jesuítas e, consequentemente, foi a responsável pelo Ensino Religioso (COELHO, 2009, p. 42). Tal evangelização se dava de maneira superficial, de modo que se restringia ao batismo e a exteriorização da fé. Assim, os colonizados uniam a exterioridade católica às suas crenças pessoais (SOUZA, 2009, p. 372). 1 Dentre os trabalhos destacam-se: Cândido (2004); Brasileiro (2010); Abreu (2009); Silva (2009). 2 Artigo revisado e ampliado. A versão anterior está na Revista Paralellus, Recife, v. 5, n. 9, p. 137-150, jan./jun. 2014. 3 Como tem sido difundido entre dissertações e teses: Abreu (2009); Brasileiro (2010); Rezende Neto (2008). Danielle Ventura de Lima Pinheiro
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A predominância do catolicismo é perceptível ainda a partir da Constituição Política do Império do Brasil, outorgada em 1824, pois tornou o Brasil oficialmente católico. É, por isso que nas escolas foram usados “os manuais de catecismo da doutrina cristã” (COELHO, 2009, p. 42). Diante disso, observa-se que tais manuais consistem em importantes instrumentos de legitimação4 religiosa, tendo em vista que a legitimação ocorre em distintos níveis: [...] Ao nível pré-teórico encontram-se afirmações tradicionais simples cujo paradigma “É assim que se faz”. Segue-se um nível incipientemente teórico [...] em que a legitimação assume a forma de provérbios, máximas morais e sabedoria popular (BERGER, 1985, p. 44).
A utilização do catecismo nas escolas no Brasil Império confere a legitimação religiosa de práticas ensinadas no universo escolar. Cada ‘fala’ ali contida foi determinante para as práticas sociais de muitos indivíduos que pautavam seus princípios éticos nas determinações do catecismo, trazendo com isso uma pedagogia tradicional5. “A característica das aulas era a de evangelização, aula de religião, catequese, ensino bíblico” (LEMOS, 2004, p. 122). Essa situação exemplifica como a Igreja Católica legitimou, por meio de seu poder simbólico, pois detendo o poder da ‘fala’ no universo escolar, foi capaz de ‘fazer ver ou fazer crer’ (BOURDIEU, 2002). Dessa forma, a Igreja era reconhecida por muitos indivíduos como ‘voz autorizada’. Bourdieu (1998) descreve a relevância do poder detido pelos agentes dominantes, ou seja, por instituições sociais dentre as quais se destaca a Igreja Católica. Segundo este autor, a igreja é capaz de: [...] constituir o dado pela enunciação, de fazer ver e fazer crer, de confirmar ou de transformar a visão do mundo; poder quase mágico que permite obter o equivalente daquilo que é obtido pela força – física ou econômica – graças ao efeito específico de mobilização, só se for reconhecido, quer dizer, ignorado como arbitrário (BOURDIEU,1998, p.14).
No entanto, mesmo reconhecendo o poder ‘quase mágico’ da Igreja Católica de fazer ver e crer, é relevante considerar que a sua autonomia é relativa, uma vez que ela interage com outros poderes e detém uma parcela daquilo que pode ser considerado como elemento estruturante constituinte da sociedade (BOURDIEU, 2002). 4 “Por legitimação se entende o “saber” socialmente objetivado, que serve para explicar e justificar a ordem social. Em outras palavras, as legitimações são as respostas a quaisquer perguntas sobre o “porquê” dos dispositivos institucionais “(BERGER, 1985, p. 42). 5 “A característica principal da concepção da pedagogia tradicional é a de que o professor é aquele que sabe, vigia e ensina. Ao aluno cabe a função de estudar e aprender o que o professor ensinou” (LEMOS, 2004, p.120-121). 62
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É a partir do estudo das interações e das disputas comuns das instituições em um mesmo espaço que se pode observar o poder simbólico. Igreja e Estado são lugares por excelência da eficácia simbólica (BOURDIEU, 2002). Esse campo de tensões entre os diversos agentes dominantes da sociedade é perceptível nas determinações contidas na Cata Magna de 1891, pois ela enfatiza a liberdade religiosa no Brasil. Logo, a partir dela, não se pode ter mais o pensamento focado no catolicismo enquanto religião exclusiva. Assim, a autonomia da Igreja Católica é relativizada perante o pensamento contido neste documento (COELHO, 2009, p. 43). A interação entre Igreja e Estado é tão notória nesse período que, mesmo a Carta Magna de 1891 endossando a importância de se respeitar a liberdade religiosa e proibindo qualquer tipo de ensino ou manifestação religiosa em estabelecimentos públicos, inclusive na escola, não isentou a responsabilidade da Igreja Católica, que deveria ter “o empenho em estabelecer esta disciplina ora no âmbito estatal, ora no âmbito nacional” (COELHO, 2009, p.43). As oscilações das tensões entre Igreja Católica e Estado, envolvendo, em especial, a questão do Ensino Religioso, podem ser observadas ainda na Constituição de 1937, pois se perdeu a obrigatoriedade do Ensino Religioso. Conforme o artigo 133: “Não poderá, porém, constituir objeto de obrigação dos mestres ou professores, nem freqüência de compulsória por parte dos alunos”. É válido ressaltar que “no Estado Novo, a educação é norteada pela ideologia nazi-facista, onde são valorizadas: a formação profissional, a formação militar e, em especial, a acentuada atenção à formação de “individualidades condutoras”” (FIGUEIREDO, 1996, p.11-12). Observa-se, conforme Figueiredo (1996), que entre 1946 a 1964, tinha-se o Ensino Religioso como dever do Estado, considerando-se “a liberdade religiosa do cidadão”. Porém, entre os anos de 1964 e 1984, tal ensino tornou-se obrigatório para a escola, podendo o aluno escolher no ato da matrícula se cursaria, ou não, a disciplina. Figueiredo (1996, p.12) afirma: “Fruto de uma outorga, o dispositivo constitucional garante o Ensino Religioso no sistema escolar”. Mas, na prática, esse Ensino Religioso permaneceu recebendo um tratamento discriminatório, e trazendo consigo “muitos desafios de natureza pedagógica e administrativa” (FIGUEIREDO, 1996, p. 12). Nesse mesmo período se iniciou a busca da sua identidade, porém, “não há clareza quanto ao seu papel específico no ambiente escolar”. Observa-se também a existência de “um grande esforço de renovação da prática pedagógica em relação a esse conteúdo na escola” (FIGUEIREDO, 1996, p. 12). Todas as mudanças no Ensino Religioso, ocorridas nas últimas décadas no Brasil, podem ser entendidas a partir da interatividade dos sujeitos e porque o Ensino Religioso tem um caráter dinâmico que ora esteve em evidência, ora Danielle Ventura de Lima Pinheiro
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esteve oculto no Brasil. Assim, o caráter ativo dos sujeitos na sociedade permite a existência de uma visão crítica do Ensino Religioso. A partir de 1985, buscou-se redefinir o papel do Ensino Religioso na escola. Neste período, segundo Figueiredo (1996, p.12), “a conjugação de esforços dos vários segmentos da sociedade, representados por grupos interessados, entidades religiosas, entidades educacionais e parlamentares”, estavam todos interessados na busca por “superar as inúmeras dificuldades presentes no processo de legalização e prática do Ensino Religioso”(FIGUEIREDO, 1996, p.12) Pode-se considerar que, sob um olhar bourdiano, vários setores encontram-se reunidos em torno do Ensino Religioso porque cada um tem uma autonomia relativa na sociedade. Contudo, conforme Silva (2009, p.47) A história nos aponta que a introdução do Ensino Religioso nas escolas, em suas diversas fases, não pôde contar, com nenhum fundamento epistemológico que garantisse autonomia à abordagem da religião, de forma a estabelecer uma dialética recíproca com as demais áreas de conhecimento que compõem os currículos escolares (SILVA, 2009, p.47).
Essas dificuldades existentes no Ensino Religioso e a busca da Igreja Católica em manter seu domínio nesta área do conhecimento fizeram com que no ano de 1987, a CNBB (Conferência Nacional dos Bispos Brasileiros6) criasse o GREREGrupo de Reflexão para o Ensino Religioso. O GRERE teve como função inicial a realização de um levantamento do Ensino Religioso nas Constituições do Brasil, nas legislações de ensino e nas orientações da Igreja. Sua criação certamente se deu de forma estratégica, mediante as novas visões sobre o Ensino Religioso que adquiriam força neste período. Assim, reconhecendo que a sua autonomia é relativa e que o seu modelo catequético já não atendia as necessidades do Ensino Religioso, a Igreja Católica buscou repensar o Ensino Religioso e fazer com que o seu papel estabelecesse novas práticas pedagógicas, pensando a diferença e a pluralidade religiosa (CÂNDIDO, 2004). Observa-se, portanto, que a própria Igreja Católica readequou suas práticas na busca por manter autonomia no Ensino Religioso. Contudo, mesmo conseguindo readequar seu pensamento à nova realidade pluralista, pensada por outras entidades, novos grupos passaram a refletir diferenciadamente o Ensino Religioso e todos eles, ao seu modo, requereram para si ‘voz ativa’ na sociedade frente a este debate. Na busca por compreender estas tensões sociais serão tratados adiante os novos posicionamentos da CNBB, a fundação do FONAPER e do chamado ‘Grupo do Não’. 6 Há uma heterogeneidade entre os bispos que não pode deixar de ser explicitada, a fim de compreendermos como a CNBB não é um bloco monolítico, mas dotada de posturas diversas que se contrapõe entre si. 64
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O Ensino Religioso na atualidade: alguns apontamentos No discurso da CNBB, em relação ao Ensino Religioso, verifica-se explicitamente um caráter oscilante, pois ora há uma busca por sair da dimensão bíblica catequética, ora se restringe aos ensinamentos de cunho cristão. Conforme Cândido (2004, p.144), a igreja se esforça em deixar esse ensino na escola pública mais como “[...] um exercício político para a consolidação de um estado que rompa com o laicismo do que a busca de um ensino religioso compreendido definitivamente como Disciplina”. Observa-se que a CNBB busca por não perder espaço na sociedade, a partir de um discurso que ‘satisfaz’ o posicionamento plural do país voltado para diferença, responsabilizando as autoridades eclesiásticas pela formação de profissionais do Ensino Religioso. Além disso, segundo Cândido (2004), existem algumas ações pautadas nesta tentativa de manter o Ensino Religioso sob sua responsabilidade: [...] o II Seminário, realizado pela CNBB e AEC do Brasil, no ano de 2001, aconteceu próximo à publicação da Deliberação 16/2001, que tornava o ensino religioso na escola pública uma realidade para o Estado de São Paulo” e “no ano de 2003, a CNBB entrega à Associação de Educação Católica do Brasil a promoção do III Seminário que, basicamente, mantém o posicionamento do segundo (CÂNDIDO, 2004, p. 143).
Em 25 e 26 de setembro de 1995, na cidade de Florianópolis, realizou-se uma assembleia em comemoração aos 25 anos do CIER - Conselho das Igrejas para o Ensino Religioso, sendo nesse momento organizado o Fórum Nacional do Ensino Religioso. Assim, ele foi instalado “em 26 de setembro de 1995 e transformado em FONAPER - Fórum Nacional Permanente do Ensino Religioso” (CÂNDIDO, 2004, p. 36). Entretanto, após a criação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, aprovada em 19967, grupos de educadores ligados às escolas, entidades religiosas, universidades e secretarias da educação se reuniram no intuito de “avaliar e pensar um conteúdo que abrangesse a realidade cultural religiosa brasileira” (CÂNDIDO, 2004, p. 36). Pode-se observar, portanto, que outros agentes 7 O Art. 33 da Lei 9.394/96 afirmava que: O ensino religioso, de matrícula facultativa, constitui disciplina dos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental, sendo oferecido, sem ônus para os cofres públicos, de acordo com as preferências manifestadas pelos alunos ou por seus responsáveis, em caráter: I - confessional, de acordo com a opção religiosa do aluno ou do seu responsável, ministrado por professores ou orientadores religiosos preparados e credenciados pelas respectivas igrejas ou entidades religiosas; ou II - interconfessional, resultante de acordo entre as diversas entidades religiosas, que se responsabilizarão pela elaboração do respectivo programa. Danielle Ventura de Lima Pinheiro
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na sociedade passaram a interagir com a CNBB e a pensar o Ensino Religioso de uma forma ampla e organizada a partir da estrutura curricular. Registrado e arquivado em 05 de abril de 2000 em Brasília, o Estatuto do FONAPER mostra que ele se constitui numa sociedade civil de âmbito nacional, sem vínculo político partidário, confessional e sindical, sem fins lucrativos, sem prazo determinado de duração, que congrega pessoas jurídicas e pessoas físicas identificadas com o Ensino Religioso Escolar. E se constitui ainda de um organismo que trata questões pertinentes ao Ensino Religioso, sem discriminação de qualquer natureza (FONAPER, 2000). Para os membros do FONAPER, o Ensino Religioso deve ter o mesmo tratamento dispensado às demais disciplinas, precisando ser assegurada a inclusão de sua proposta curricular nos Parâmetros Curriculares Nacionais do MEC e ser reconhecida a qualificação para o exercício de docente em Ensino Religioso (CÂNDIDO, 2004, p. 39). Segundo esses membros, cabe ao Estado o investimento para pagar os professores, de modo a salvaguardar o direito do cidadão a uma educação integral para o exercício da cidadania. A crítica feita pelos membros do FONAPER ao Ensino Religioso se baseia no fato de que a educação está envolvida por uma “tendência tradicional de escola.” Ou seja, nela predominam aspectos como “visão cumulativa de conteúdos, concepção bancária de aprendizagem e função reprodutiva de professor (propostas pré-elaborados por especialistas).” (FONAPER, 2000, p. 11). Como encaminhamentos das discussões do FONAPER, em junho de 1996 aconteceu uma reunião discutindo a lei que afirma que o ensino religioso deve ser realizado “sem ônus para os cofres públicos”. Outros fatos ocorreram para organizar o Ensino Religioso no Brasil: como, por exemplo: • • •
Outubro de 1996 - elaboração dos Parâmetros Curriculares Nacional do Ensino Religioso (PCN’s); Novembro de 1996 - entrega dos PCN’S em Brasília; Março de 1997 - aprovação do PCN e encaminhado o texto substitutivo do art. 338.
8 A Lei 9.475/97 passou a abordar sobre o Ensino religioso no Art. 33 da seguinte forma: “O ensino religioso, de matrícula facultativa, é parte integrante da formação básica do cidadão e constitui disciplina dos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental, assegurado o respeito à diversidade cultural religiosa do Brasil, vedadas quaisquer formas de proselitismo. § 1º Os sistemas de ensino regulamentarão os procedimentos para a definição dos conteúdos do ensino religioso e estabelecerão as normas para a habilitação e admissão dos professores. § 2º Os sistemas de ensino ouvirão entidade civil, constituída pelas diferentes denominações religiosas, para a definição dos conteúdos do ensino religioso”. 66
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Isso ocorreu porque se pensava que “no Ensino Religioso esse saber é expresso pelo currículo organizado na perspectiva das relações do ser humano consigo mesmo com o mundo e com o transcendente” (LEMOS, 2004, p. 128). Nos anos seguintes, as sessões do Fórum Nacional Permanente para o Ensino Religioso se dedicaram à explicitação dos Parâmetros Curriculares Nacionais, à preparação dos seminários de capacitação profissional, bem como ao acompanhamento e posicionamento da estruturação legal do ensino religioso (CÂNDIDO, 2004, p.21). Assim, nos PCN’s, propõe-se que o Ensino Religioso detenha um espírito de reverência às crenças alheias e um profundo respeito mútuo que poderá conduzir a paz. Pensa-se também que é a partir do conhecimento que há uma compreensão do ser humano como finito, pois é na finitude que se busca fundamentar o fenômeno religioso e que torna o ser humano capaz de construir-se na liberdade. Por questões éticas e religiosas, o FONAPER considera que, pela própria natureza da Escola, não é função dela propor aos educandos a adesão e vivência desses conhecimentos, enquanto princípios de conduta religiosa e confessional, já que esses são sempre propriedade de uma determinada religião. Observação, reflexão e informação são elementos integrados que devem existir no Ensino Religioso na ótica do FONAPER (LEMOS, 2004, p. 134). Contrapondo-se ao FONAPER, pode-se destacar o grupo da Sociedade da Terra Redonda (Organização não governamental), fundada em 04 de maio de 1999 que tem três objetivos: • • •
Defender os direitos dos Ateístas na sociedade; advogar pela total e completa separação entre religião e governo; Divulgar e promover o método científico e o pensamento crítico, as realizações e os avanços da ciência; Quando se promove a religião e seus valores, sejam quais forem, o que se faz na verdade é privilegiar os indivíduos religiosos e suas concepções e discriminar todos os demais9.
Para este grupo “ao favorecer a religião sobre o secularismo, ele (o ensino religioso) ainda infringe o art. 5º da Constituição, privando os secularistas, em função de suas convicções filosóficas, dos mesmos direitos que os religiosos” (SOTTOMAIOR apud CÂNDIDO, 2004, p. 64). Ao criticar a busca do FONAPER em igualar ética e religião, este grupo afirma que: “é uma atitude preconceituosa, pois significa afirmar que os não-religiosos são imorais e antiéticos. Segundo ele, associar esses temas às aulas de religião, como se só aí fossem cabíveis, é uma atitude, no mínimo, arrogante”. Algumas ações deste grupo são ressaltadas por Almeida (2006, p. 23): 9
Veja-se : http://strbrasil.multiply.com/. Acesso: 10/11/2012. Danielle Ventura de Lima Pinheiro
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O grupo contrário ao Ensino Religioso fez um abaixo-assinado para protestar contra o E. R. obrigatório na escola pública na época da aprovação do projeto de lei para implantação do E. R. nas escolas públicas estaduais do Estado de São Paulo, elaborado pelo Deputado Estadual José Carlos Stangarlini. O “Grupo do Não” se posicionou contrário porque sua posição se baseia na secularização da sociedade, ou seja, na separação total entre Estado e Igreja, no reconhecimento da ciência como única forma de explicar a realidade e na concepção de Estado laico.
Este grupo observa “a complexidade da questão do ensino religioso e da impossibilidade de realizá-lo de maneira justa, equilibrada, democrática e não proselitista” (CÂNDIDO, 2004, p.67). Observa-se que o FONAPER e a CNBB não pensam sobre a ausência de crença em uma divindade, havendo uma interiorização desta ideia. Ou seja, a crença em Deus é naturalizada a partir de uma “reabsorção na consciência do mundo objetivado de tal maneira que as estruturas deste mundo veem a determinar as estruturas subjetivas da própria consciência” (BERGER, 1985, p. 28). Verifica-se, portanto, que o Ensino Religioso foi pensado por diferentes grupos. O Grupo do Não, por exemplo, consegue exercer um papel ativo na sociedade, fazendo uma crítica em que é capaz de gerar uma reflexão sobre a importância do Ensino Religioso para os que não são crentes, de maneira pluralista e dinâmica. Essa ideia generalizada de que todos têm fé também pode ser considerada a partir da capacidade que a religião tem de “negar que existam acontecimentos inexplicáveis, que a vida é insuportável e que a justiça é uma miragem” (GEERTZ, 1989, p. 79). Assim, essas respostas que a religião traz para os indivíduos fazem dela fundamento ético, tido como ‘inquestionável’, uma vez que: Na crença e na prática religiosa, o ethos de um grupo torna-se intelectualmente razoável porque demonstra representar um tipo de vida idealmente adaptado ao estado de coisas atual que a visão de mundo descreve, enquanto essa visão de mundo torna-se emocionalmente convincente por ser apresentada como uma imagem de um estado de coisas verdadeiro, especialmente bem-arrumado para acomodar tal tipo de vida. Essa confrontação e essa confirmação mútuas têm dois efeitos fundamentais. De um lado, objetivam preferências morais e estéticas, retratando-as como condições de vida impostas, implícitas num mundo com uma estrutura particular, como simples senso comum dada a forma inalterável da realidade. De outro lado, apoiam essas crenças recebidas sobre o corpo do mundo invocando sentimentos morais e estéticos sentidos profundamente como provas experimentais da sua verdade (GEERTZ, 1989, p. 66-67).
Afirma Berger (1985, p.31) que “o mundo social (com suas instituições, papéis e identidades apropriados) não é passivamente absorvido pelo individuo, e sim apropriado ativamente por ele”. Como a sociedade “dirige, sanciona e controla a 68
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vida do individuo” (BERGER,1985, p. 24), é inserido nela que o indivíduo forma sua personalidade, construindo projetos para sua vida. Desta forma, deve-se ter a preocupação com a implantação da diversidade na sociedade, pensando no Ensino Religioso de forma diferenciada e plural. Neste contexto, destacam-se alguns estudiosos considerados sujeitos ativos na sociedade, no sentido bergniano, que atuam criticamente e dinamicamente em determinados lugares do país como São Paulo, Rio Grande do Sul, Goiás e Paraíba.
As graduações em Ciência(s) da(s) Religião(ões) e o Ensino Religioso A formação docente é certamente uma das principais preocupações demonstradas pelas pesquisas sobre o Ensino Religioso. Para Rezende Neto (2008), apenas a habilitação docente que terá a capacidade de qualificar o Ensino Religioso. Rezende Neto, tal como outros estudiosos da área, revela a presença de novos agentes dominantes da sociedade que tem como primazia um ensino religioso plural e que vê na academia o ponto de partida para tal realização. É entre os intelectuais da área de Ciências da Religião que se identificam como as dificuldades desta disciplina, no sentido de sua consolidação, partem da ausência de bons profissionais capazes de transmitir conceitos gerais sobre todas as religiões, sem deixar prevalecer suas ideias pessoais ou da religião que representam. Assim, na perspectiva de tais agentes dominantes “um docente formado em uma Licenciatura em Ciências da Religião estaria qualificado para um ensino religioso numa perspectiva plurirreligiosa, enfocando o fenômeno religioso como construção sociocultural construtor de valores éticos” (COELHO, 2009, p.51). O argumento de tais estudiosos é justificado ao se considerar que “as Ciências das Religiões valorizam todas as religiões, respeitando as características passíveis de serem estudadas e pesquisadas, constantes em cada uma delas” (BRASILEIRO, 2010, p. 114). Além disso, “As Ciências das Religiões dispõem das ferramentas necessárias para uma compreensão eficaz da complexidade dos mundos externo e interno em que o indivíduo vive” (op. cit., p. 114-115). Contudo, entre tais agentes dominantes, há também uma perspectiva crítica em relação às abordagens do meio acadêmico. Exemplo disso está no estudo de caso com profissionais graduados em Ciências da Religião da Universidade Estadual do Pará, onde se identifica as dificuldades demonstradas no que tange ao estudo que deverá estar presente no Ensino Religioso, mesmo entre os Danielle Ventura de Lima Pinheiro
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profissionais graduados nesta área de ensino. Tal perspectiva pode ser identificada no seguinte discurso: [...] considero que a grade curricular dá uma grande ênfase as Ciências da Religião e esquece-se de falar do Ensino Religioso. O que é uma omissão grave, pois o curso forma professores de Ensino Religioso (NASCIMENTO, 2009, p.38).
A observação do autor, na qualidade de discente recém-formado, é bastante pertinente e leva a sensibilização dos próprios agentes dominantes o meio acadêmico sobre a importância de se adentrar ao universo das práticas escolares. Nesta perspectiva, as graduações precisam tomar para si o papel de trazerem conteúdos dotados de sentidos para o Ensino Religioso, uma vez que o objetivo de cada uma delas também é o de capacitar profissionais para atuar nesta área. Da mesma forma, ao passo que se incentiva a preparação por parte das graduações de tais profissionais, discute-se também sobre a visão relativa à importância do espaço escolar se conectar à dinâmica de fatos conflitantes e de se apropriar de movimentos que ultrapassem as relações interpessoais nos quais a tolerância, o respeito e a experiência sejam valorizados e compreendidos como capazes de superar os preconceitos em relação ao outro e ao desconhecido. (COELHO, 2009, p. 51). Dentre estes fatos conflitantes destacáveis, podem-se enumerar como possíveis de se analisar as ideias naturalizadas dos papéis sociais de homens e mulheres a partir de uma desconstrução de ideias estereotipadas (REIMER, 2004). Assim, torna-se possível o debate sobre como homens e mulheres precisam ser tratados igualmente e com respeito mútuo. Nestas perspectivas recentes, destaca-se ainda sobre a necessidade de se pensar em sala de aula sobre as múltiplas formas de crer e as diferentes maneiras de lidar com o sagrado. Mais que isso, questiona-se sobre formas de se contemplar aos estudantes ateus no Ensino Religioso, pois se considera necessário que se pense além das diferentes crenças no país, o lugar enquanto estudante que tem a liberdade de “não crer”, mas que precisa respeitar e ser respeitado diante do pensamento plural da sociedade brasileira (CÂNDIDO, 2004). Ao pensar a sociedade de forma múltipla, tais reflexões que parte do meio acadêmico permite que se perca, gradativamente, a ideia de naturalização de uma determinada prática religiosa. O cuidado em fazer com que o Ensino Religioso repense a diferença existente em sala de aula está na forma como: “Cada linguagem desenha um círculo mágico em torno do povo a que pertence, um circulo de que não se pode sair sem saltar para dentro de outro” (BOURDIEU, 2007, p. 27). É válido ressaltar que é a partir da linguagem que os agentes e as instituições têm a capacidade de acumular poder simbólico. Cada agente e instituição que 70
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dela se utiliza geralmente tende a legitimar a dominação e assegurar que uma classe se sobressaia à outra. É na qualidade de agentes dominantes e profissionais do saber que se busca espaço neste debate tão amplo e dotado de significados. É na primazia pelo respeito e pela dignidade humana que serão feitas reflexões para as escolas de forma que se consiga fazer com que o discente reconheça as diferentes formas de crer e a possibilidade da não crença. O Brasil terá a oportunidade de trabalhar a diversidade cultural e religiosa no Ensino Religioso com a base epistemológica dos cursos de graduações em Ciência(s) da(s) Religião (ões), que já são realidades em alguns poucos locais, mas que precisam ser ampliados, garantindo aos discentes um pensamento que vise a igualdade de direitos e a tolerância entre crentes e não crentes. Vale destacar que a Resolução CNE/CP 5/2018 institui as diretrizes nacionais do curso de licenciatura em Ciências da Religião e na modalidade presencial, semipresencial e a distância e definem concepções, estrutura e princípios de projetos pedagógicos que devem ser observados pelas instituições de ensino superior e órgão dos sistemas de ensino. Nela se considera que a licenciatura em Ciências da Religião é a formação inicial para a atuação no Ensino Religioso na educação básica. Prevê-se que a docência do ensino religioso precisa reconhecer a diversidade religiosa brasileira e mundial sem nenhum viés confessional e proselitista. A observação, a análise, a apropriação e a ressignificação dos conhecimentos religiosos devem estar presentes nos cursos de licenciatura, adotando a pesquisa e o diálogo como princípios mediadores e norteadores. Tudo isso visando ao desenvolvimento das competências e habilidades previstas pela BNCC. Sendo assim, as diretrizes complementam todo o aparato legal do ensino religioso, trazendo a graduação em ciências das religiões como o caminho para se buscar a formação inicial do profissional dessa área. Dessa forma, mais do que a formação inicial em Ciências das Religiões, o professor de Ensino Religioso precisa ainda de formação continuada voltada para o respeito à diversidade com práticas dinâmicas que pensem a realidade da sala de aula, de acordo com cada etapa do conhecimento. A ausência de um material de apoio para os professores e de um livro didático que contemple aquilo que está transcrito na Base Nacional Comum Curricular (2018) é uma realidade de muitos estados e municípios e isso é um desafio para o professor e para a área de Ciências das Religiões, pois sem esse suporte, abre-se espaço para que o professor sem formação se baseie na sua própria crença como subsidio para realizar suas aulas, sem se importar com o respeito à diversidade e às questões contempladas no aparato legal brasileiro. Os grupos de pesquisa que se voltam para Educação e Religião precisam se mobilizar e tomar como desafio a construção de materiais didáticos para o Ensino Danielle Ventura de Lima Pinheiro
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Religioso, o oferecimento de formações continuadas que auxiliem os docentes a promover discussões sobre o respeito a diversidade religiosa em sala de aula. Mais que isso, é preciso dialogar com as famílias e com os gestores escolares para que mais pessoas conheçam o papel deste componente curricular para a sociedade e que não se limitem a vê-lo como meramente confessional. O Programa de Pós Graduação em Ciências das Religiões da Universidade Federal da Paraíba tem dado suporte à rede municipal de João Pessoa desde 2016. Particularmente, o Grupo de Pesquisa Formação, Identidade, Desenvolvimento e Liderança, da Universidade Federal da Paraíba (FIDELID / UFPB) e filiado à Associação Internacional de Estudos de Afetos e Religiões (AMAR), tem contribuído com Seminários voltados para as práticas pedagógicas no Ensino Religioso dando a oportunidade dos professores apresentarem trabalhos e convidando estudiosos para debater com os docentes. Mais que isso, nos últimos três anos, o FIDELID assumiu a formação continuada da rede municipal de João Pessoa convidando pessoas para falar sobre diversas crenças e dando a oportunidade de aprofundamento para os docentes em temas como candomblé, umbanda, budismo e judaísmo. Na pandemia, as lives foram reforçadas por este grupo de pesquisa em seu Instagram, bem como as formações quinzenais pelo aplicativo Google meet, destinadas com exclusividade aos professores da rede municipal de João Pessoa. Contudo, ainda cabe a construção de materiais didáticos de primeiro ao nono ano a serem utilizados por toda a rede municipal, servindo de apoio para discentes e docentes e trazendo o respeito à diversidade e à liberdade de crenças, com linguagem acessível ao público. Esse é um desafio urgente e necessário a ser assumido para garantir que o Ensino Religioso tenha um direcionamento similar aos demais componentes curriculares, não dando espaço para práticas proselitistas.
Considerações finais A partir da análise em questão percebe-se, resumidamente, como o Ensino Religioso tem passado por transformações e ocupado o seu espaço na sociedade brasileira. Essas mudanças se dão a partir de um campo de tensões que fazem com que o ensino católico, paulatinamente, tenha a sua autonomia relativizada neste campo do saber. Contudo, notoriamente, algumas experiências aqui demonstradas revelam que ainda há ensino catequético em algumas instituições brasileiras. Os estudiosos que tratam as propostas pedagógicas trazem o papel da graduação em Ciência(s) da(s) Religião (ões) como sendo capaz de respaldar os profissionais que irão ministrar tais disciplinas. No entanto, lembramos que estes 72
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também precisam pensar cautelosamente em novas propostas curriculares para o Ensino Religioso. Por fim, é preciso que as graduações estejam preparadas para sugerir aos futuros docentes práticas pedagógicas que acolham as diferenças e que tornem a sala de aula um lugar de respeito mútuo de forma interativa e dinâmica.
Danielle Ventura de Lima Pinheiro
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ENSINO RELIGIOSO: DESAFIOS E PERSPECTIVAS
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ENSINO RELIGIOSO Desafios em diferentes espaços
Edile Maria Fracaro Rodrigues Doutora em Teologia (2018) e Mestre em Educação (2008) pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Professora assistente da Pontifícia Universidade Católica do Paraná do Eixo Humanístico, na disciplina de Cultura Religiosa/Teologia e Sociedade. Vinculada ao Grupo de Pesquisa Educação e Religião (GPER)
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Sérgio Rogério Azevedo Junqueira Doutorado em Ciências da Educação, realizado na Universidade Salesiana de Roma. Mestrado em Ciências da Educação, realizado na Universidade Salesiana de Roma Pós-Doutorado em Ciência da Religião realizado na PUCSP/ Pós-Doutorado em Geografia da Religião realizado na UFPR; PósDoutorado em Ciências da Religião realizado na UEPA Instituto de Pesquisa e Formação Educação e Religião (IPFER)/ Curitiba - PR Vinculado ao Grupo de Pesquisa Educação e Religião (GPER)
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Como referenciar este capítulo: RODRIGUES, Edile Maria Fracaro; JUNQUEIRA, Sérgio Rogério Azevedo. Ensino religioso: desafios em diferentes espaços. In: MARANHÃO, Fº. Eduardo Meinberg de Albuquerque (Org.). Ensino religioso: desafios e perspectivas. Florianópolis: AMAR; FOGO, 2021, pp. 77-93.
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Introdução Reconhecer, valorizar e acolher o caráter singular e diverso do ser humano, “por meio da identificação e do respeito às semelhanças e diferenças entre o eu (subjetividade) e os outros (alteridades)” (BRASIL, 2017, p. 438), são ações e práticas a serem abordadas ao longo de todo o Ensino Fundamental, segundo a Base Nacional Comum Curricular – BNCC. São construções que vão se arquitetando pelos processos de seleção de informação que se recebe, observação do que se constata e de reflexão do que se observa. O acesso facilitado à rede mundial de computadores disponibiliza informação como em nenhum momento histórico. Contudo, tal facilidade é realmente o caminho para o conhecimento? É com o tratamento de informações, observando o contexto e refletindo sobre os atores sociais informação que se garante a educação. Morin (2000) aponta para um conhecimento pertinente, que nesse caso seria a informação significada por operações de pensamento. É nesse sentido que Edgar Morin afirma que é melhor ter uma cabeça bem-feita do que cheia de informações. Nessa lógica, pode-se dispor de informações e não construir conhecimento algum, pois conhecimento é tratamento de informações, estabelecendo relações entre os diversos conhecimentos e o cotidiano da sociedade. Assim, há que se perguntar: Como saber pensar bem para enfrentar e conviver com os problemas e desafíos contemporâneos, em níveis local e global? Informação-observação-reflexão compõe um percurso metodológico que, como estratégia, encaminha e propõe o convívio social e as relações com as culturas e tradições religiosas no cotidiano do Ensino Religioso? O que é efetivado pelo tratamento metodológico no Ensino Religioso? Que outros desafios ao Ensino Religioso se impõem a apartir do que é estabelecido na BNCC (BRASIL, 2017) como objeto de estudo, conhecimento religioso? Por meio de pesquisa bibliográfica, buscou-se discutir a Diversidade Cultural e Religiosa, a partir do(s) conhecimento(s) religioso(s), e o tratamento dado a essa diversidade enquanto exercício da cidadania. Discute-se assim, a escola, as tradições religiosas e o Ensino Religioso, visando contribuir para o desenvolvimento de espaços onde o conhecimento religioso e o respeito das diferentes expressões religiosas possam se concretizar.
O exercício da cidadania Em 1500, no primeiro texto sobre o território brasileiro, o escrivão da frota afirmou, ao Rei de Portugal, que o melhor fruto que nela se pode fazer é salvar Edile Maria Fracaro Rodrigues & Sérgio Rogério Azevedo Junqueira
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“essa gente”, sendo essa, a principal semente a ser lançada em terras brasileiras. Após a vinda dos franciscanos, mercedários, jesuítas e tantas outras congregações religiosas entre os séculos XVI ao XX, foram implantadas escolas católicas estabelecendo uma longa tradição cristã no âmbito social e educacional. Durante 322 anos a condição do Brasil era de colônia europeia (1500-1822) e contou com o incentivo da mão de obra escrava de negros e, posteriormente, de novos grupos europeus e asiáticos que compuseram não apenas a pluralidade étnico e racial, mas a diversidade religiosa do povo brasileiro. Em 1822, “a liberdade religiosa passou a ser garantida pelo mesmo Estado, por ser laico. Portanto, com a implantação do regime republicano, em seu primeiro momento – 1889 a 1930 – dá-se origem ao primeiro e mais um acirrado debate sobre o Ensino Religioso no Brasil” (RODRIGUES et al., 2015, p. 93). De lá para cá, são 198 anos de regime republicano. Com a Nova Constituição, assumiu-se a característica de um país laico (BUENO, 2003, p. 33-34), em que o ensino passa a ser laico, público, gratuito e obrigatório. A origem do termo “laico” remete a leigo, o que não é clerical. Domingos (2008, p. 156), ressalta a dificuldade em “situar e datar com precisão o aparecimento do Estado laico”. Também é importante ressaltar que no século XIX, o substantivo laico não existia. Era sempre utilizado como adjetivo ligado ao substantivo, por exemplo: estado laico, escola laica, e moral laica. Ao longo do século XX, o Brasil deixou de ser um país eminentemente rural e sua população ocupou grandes cidades. Outra característica dessa época foi a passagem de uma educação exclusivamente das congregações de religiosas e religiosos para um processo de organização escolar de responsabilidade do Estado com o sistema público de ensino.
Laicidade e cidadania “Foi na França que as discussões sobre separação de Estado e Igreja chegaram a um nível de aprofundamento notável” Para a autora, o princípio da laicidade é atrelado ao princípio da tolerância como apontado pelo Art. 4 da Declaração dos Direitos do Homem e do cidadão, de 1789, “A liberdade consiste em poder fazer tudo que não prejudique o próximo” (FRANÇA, 1789). Essa tolerância passa pelo respeito ao culto dos outros, à aceitação de sua opinião, como assinala o artigo 10 da referida declaração: “Ninguém pode ser perseguido por suas opiniões, mesmo religiosas, contanto que sua manifestação não perturbe a ordem pública”. Ou ainda, o artigo 18 da Declaração Universal dos Direitos do Homem: “Toda pessoa tem 80
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direito à liberdade de pensamento, consciência e religião”. (DOMINGOS, 2008 p. 158).
Domingos descreve o período compreendido entre 1880 e 1886 como o período que marca a origem das Ciências das Religiões na França. Ao falar em laicização do saber, a autora aponta o ano de 1880 como o ano que marca a criação da cadeira de História das Religiões, no Colégio de França (DOMINGOS, 2008, p.159). No Brasil, como direito de todos, a proposta de ensino fundamental obrigatório, na qual está o desenvolvimento integral de crianças e adolescentes, é garantido pela Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, em seu artigo 205: A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho (BRASIL, 1988).
O conceito de cidadania está vinculado à origem da palavra, do latim civitas, que quer dizer cidade. Ao retornar à história, vê-se que cidadão era aquele que fazia parte da cidade, tendo direitos e deveres por habitar nela. Compreende-se, dessa maneira, que a prática da cidadania é caracterizada por uma série de atitudes e, devem atuar em benefício da sociedade na qual está inserido, garantindo os direitos básicos à vida, como: moradia, alimentação, saúde, trabalho, educação, lazer e liberdades pessoais, entre outros. Toma-se, portanto, para este trabalho, o conceito de cidadania a partir desse desenvolvimento integral. A cidadania passa a significar o relacionamento entre uma sociedade e seus integrantes e assim, ser cidadão é ser responsável por si mesmo e pelos outros, é ter consciência de seus direitos e deveres. Ser cidadão é ter espírito de solidariedade e de partilha, é saber viver em comunidade, participar, indignar-se diante da injustiça e do errado, é ter vontade de melhorar, de servir ao próximo, é o agir, portanto, é pensar a vida de forma plural e não singular (SAWAIA, 1994, p. 153). O estabelecido no Art. 32 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional–LDBEN 9394 (BRASIL, 1996) constitui-se na formação básica de cidadania. I - o desenvolvimento da capacidade de aprender, tendo como meios básicos o pleno domínio da leitura, da escrita e do cálculo; II - a compreensão do ambiente natural e social, do sistema político, da tecnologia, das artes e dos valores em que se fundamenta a sociedade; III - o desenvolvimento da capacidade de aprendizagem, tendo em vista a aquisição de conhecimentos e habilidades e a formação de atitudes e valores; Edile Maria Fracaro Rodrigues & Sérgio Rogério Azevedo Junqueira
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IV - o fortalecimento dos vínculos de família, dos laços de solidariedade humana e de tolerância recíproca em que se assenta a vida social.
A partir de 1997 com a revisão do artigo 33 da LDB e com a consolidação da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) verifica-se a possibilidade de colaborar na formação das gerações como este elemento da cultura. Esse é um exercício de cidadania que expressa um conjunto de direitos que dá à pessoa a possibilidade de participar ativamente da vida e do governo de seu povo. Quem não tem cidadania está marginalizado ou excluído da vida social e da tomada de decisões, ficando numa posição de inferioridade dentro do grupo social. (DALLARI, 1998, p.14). Especificamente em uma sociedade como a brasileira plural e diversa, exige-se aprender a compreender e a valorizar sua história, identidade e compromisso com responsabilidade na e da sociedade. De fato, o Estado oferece a todos os seus cidadãos essa máxima de autonomia, para que possam exercer seu direito humano à liberdade, entre outros, da religião. No entanto, trata-se de reconhecer, de que, é preciso iniciar um processo educativo que sirva de instrumento para a plena realização desses direitos; uma vez que o respeito pelas minorias é uma questão de educação, de conhecer, por exemplo, a religião do outro. Cabe ressaltar que a falta de informação sobre os grupos que compõem a sociedade, facilita a manipulação das pessoas para obter vantagens, o preconceito e o ódio, bem como difundir informações imprecisas e incorretas, abrindo espaço para a discriminação e perseguição de grupos minoritários. As pessoas aprendem a ver as culturas, diferentes das suas e as julgam do seu ponto de vista, como expressa Nelson Mandela de que “ninguém nasce odiando outra pessoa pela cor da sua pele, por sua origem ou, ainda, por sua religião. Para odiar, as pessoas precisam aprender, e, se pode aprender a odiar, podem ser ensinadas a amar” (MANDELA apud BRASIL, 2004, p. 1). A “compreensão dos símbolos e significados e da relação entre imanência e transcendência” é o ponto de partida, segundo a BNCC (BRASIL, 2017, p. 438), para “que os humanos se relacionem entre si, com a natureza e com a(s) divindade(s), percebendo-se como iguais e diferentes”. É por isso que atualmente busca-se discutir o Ensino Religioso a partir da Ciência da Religião, como ciência de referência para formação de professores e aplicação do Ensino Religioso. Há consenso entre estudiosos e pesquisadores no Brasil, conforme apontam Santos e Junqueira (2019, p. 100), que esse componente curricular depende diretamente das pesquisas e resultados da Ciência da Religião como área científica e autônoma. A abordagem do conhecimento religioso exige o entendimento e a reflexão do espaço escolar diante do reconhecimento da justiça e dos direitos de igualdades civil, social, cultural e econômico, bem como valorização da diversidade, 82
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conforme apontam Rodrigues et al. (2015, p. 97), e assim é uma abordagem pedagógica. Enquanto patrimônio da humanidade, o conhecimento religioso pode proporcionar ao estudante do Ensino Religioso oportunidades de aprendizagem que compreendam os movimentos específicos das diversas culturas, cujo substantivo religioso colabora no aprofundamento para o autêntico cidadão multiculturalista (RODRIGUES et al., 2015, p. 97).
Assim, uma abordagem pedagógica do(s) conhecimento(s) religioso(s) exige o entendimento e a reflexão dos diferentes espaços onde serão desenvolvidos.
A escola: espaço da diversidade cultural e religiosa Qual o espaço onde o indivíduo possa apreender e praticar a responsabilidade e o respeito à diversidade em função das lentes culturais? Partindo do pressuposto que nenhuma cultura, ser humano ou religião, olha o outro sem ter construído previamente uma imagem, incorporar nas reflexões educacionais a variedade cultural presente na sociedade, entre esses, a diversidade religiosa, que provêm da pluralidade cultural, a escola pode e deve ser esse espaço democrático e inclusivo. Por isso, se faz necessário ao universo educativo escolar abrir-se para a convivência com as diferentes expressões culturais e, estimular movimentos de afirmação da identidade cultural dos diferentes grupos existentes no Brasil, para, assim, construir um convívio harmonioso entre essa multiplicidade cultural. E nesse espaço é desejável que quando organizado de forma a permitir a compreensão dos fatos culturais que interferem na formação da sociedade, o espaço da educação, “contribui para prevenir a intolerância e instiga os estudantes a buscar seus direitos e liberdades, a fim de assegurar seu respeito e incentivar a vontade de proteger os direitos e liberdades dos outros” JUNQUEIRA e RODRIGUES, 2010, p. 105). Diante da diversidade cultural, o Ensino Religioso, por meio do estudo do conhecimento religioso, desencadeia o respeito à tolerância para com o diferente. Constitui-se em instrumento fundamental para a construção do direito à diferença de religião em nossa sociedade, podendo promover a convivência harmoniosa entre a diversidade existente no contexto brasileiro, o respeito à diversidade cultural, étnica, religiosa e política que constituem a multiplicidade de valores dentro da sociedade, num processo de construção da cidadania. Vê-se no texto da BNCC a expressão “conhecimentos religiosos”, o que supõe o convívio interdisciplinar, não só das diferentes áreas do conhecimento, mas os Edile Maria Fracaro Rodrigues & Sérgio Rogério Azevedo Junqueira
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conhecimentos dentro da própria área do Ensino Religioso, a partir da Ciência da Religião aplicada, e reforça-se que “os fenômenos religiosos em suas múltiplas manifestações são parte integrante do substrato cultural da humanidade” (BRASIL, 2017, 434). Em meio a conteúdos formais, o espaço escolar pode ser um espaço de superação de preconceito e de um processo de ensino e aprendizagem homogeneizado. A diversidade humana está posta desde os primórdios da humanidade, mas somente a partir do final do século XX é que a sociedade se dá conta desta especificidade. Como espaço de desenvolvimento de um sistema de ensino interconectado com os problemas da sociedade atual, desenvolve, ou deveria desenvolver a valorização de diferentes grupos sociais, políticos, econômicos, étnicos, religiosos etc., possibilitando a reflexão de questões que contemplem as diferenças, ou seja, a diversidade na e da sociedade que compõe o espaço escolar. Necessita-se, assim, valorizar todo o conhecimento que os/a estudantes trazem para a sala de aula, enriquecendo muito mais o ensino e a aprendizagem, para o desenvolvimento de cidadãos com postura crítica diante dos problemas sociais e engajamento na resolução desses problemas. A reflexão pedagógica sobre um ser humano dotado de razão, afetividade, inteligência, corpo e desejo possibilita a criação de um espaço educativo aberto para o diverso, pois há pensamentos, desejos, crenças e sentimentos diversos, pois cada ser humano é único na sua diversidade. As tradições religiões são confissões de fé e de crença, mas para o Ensino Religioso, são objeto de conhecimento. Por meio do estudo das manifestações religiosas que delas decorrem e as constituem, as diferenças culturais são abordadas com o objetivo de ampliar a compreensão da diversidade religiosa como expressão da cultura, construída historicamente e marcadas por aspectos econômicos, políticos e sociais. Assim, a identidade religiosa ou da não crença do/a estudante é marca de sua cultura. E a renúncia dessas marcas pode levar a uma desvalorização das novas culturas que lhe apresentadas. O relacionamento com o mundo é uma longa aprendizagem que implica na descoberta do outro, de outras realidades, das marcas de outras linguagens e de outros gestos. “Se as marcas culturais são bem tratadas, mas não as absolutizas, então se é marcado pela nova cultura” (FREIRE e FAUNDEZ, 1985, p. 17). Ao relacionar o que aprende na escola com a realidade, o/a educando/a pode superar o senso comum que domina seu cotidiano. Longe de quaisquer formas de proselitismo, o espaço escolar pode dar a todo indivíduo a oportunidade de refletir sobre as questões fundamentais de sua existência, favorecendo sua inserção no dia a dia, nas questões sociais marcantes e em um universo cultural maior. 84
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A discussão efetiva sobre o Ensino Religioso ocorre visando estabelecer parâmetros, para orientar o trabalho nas escolas de Educação Básica, especialmente porque o Ensino Religioso é explicitado como distinto da catequese ou da evangelização, que é ministrada em uma comunidade que vive a fé. Na mesma proporção, o Ensino Religioso ocorre, no limite da escola, frente ao pluralismo de crenças de estudantes, professores e professoras, corpo administrativo e familiares. Passos (2006, p. 24), considera que o Ensino Religioso, como ensino da religião na escola, deve ser entendido “sem o pressuposto da fé (que resulta na catequese), sem o pressuposto da religiosidade (que resulta na educação religiosa), mas com o pressuposto pedagógico (que resulta no estudo das religiões)”. Por isso é preciso considerar o espaço das tradições religiosas, como espaço de identidade da fé. Como a compreensão do Ensino Religioso precisa ocorrer a partir da organização da educação escolar e da relação da religião na sociedade, a valorização da diversidade cultural e religiosa presente na sociedade brasileira traz novos desafios e olhares para a complexidade desse componente curricular.
Tradições religiosas: espaço da identidade da fé Ao longo da história a escola passou e passa por mudanças em sua função social para promover não apenas o saber, mas a relação entre os indivíduos para que possam ter responsabilidade consigo mesmo e para com o outro. Portanto, esta instituição assume a tarefa do desenvolvimento da capacidade de aprender, tendo como meios básicos o pleno domínio da leitura, da escrita e do cálculo; assim como a compreensão do ambiente natural e social, do sistema político, da tecnologia, das artes e dos valores em que se fundamenta a sociedade; propõe o desenvolvimento da capacidade de aprendizagem, tendo em vista a aquisição de conhecimentos e habilidades e a formação de atitudes e valores; contribua para o fortalecimento dos vínculos de família, dos laços de solidariedade humana e de tolerância recíproca em que se assenta a vida social (BRASIL, 1996, p. 32). É importante lembrar que é possível abordar o fenômeno religioso a partir de dentro — teologia — e a outra, a partir de fora — ciência da religião. Como ciência normativa, a teologia é um discurso do ser humano sobre Deus, a essência de uma religião, e elabora racionalmente a fé. Já a Ciência da Religião tem como interesse tudo quanto os seres humanos creem e quer chegar a uma compreensão do ser humano religioso. Porém, o campo da educação no Brasil não foi sempre isento de tensões e conflitos sociais e religiosos, assim como, suas opções se caracterizam por contradições, sobretudo, quando assumiu explicitamente em favor da educação das Edile Maria Fracaro Rodrigues & Sérgio Rogério Azevedo Junqueira
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elites; na realidade, na implantação das escolas católicas no cenário brasileiro no final do século XIX e, nas primeiras décadas do século XX, onde a intenção era a educação da alta sociedade brasileira, visando influenciar a gestão do país (JUNQUEIRA e ROCHA, 2014, p. 53-56). Nesse enquadramento, a presença das tradições religiosas no campo da Educação, no contexto brasileiro, assumiu contornos que os distintos momentos conjunturais históricos lhe imprimiram, concomitantemente aos momentos de dificuldades superados, os modelos de seu perfil jurídico adaptados às transformações de regime, às formas de governo e às constituições. Efetivamente, o Ensino Religioso é uma disciplina. Assim, está, ou precisaria estar, integrada aos programas escolares, de modo explícito, sistemático, com qualidade e rigor que requerem as demais disciplinas, com a peculiar característica de dialogar com a cultura e, relacionar-se com as outras formas de saber. Do mesmo modo, reconhece o pluralismo da sociedade moderna, assim como, a liberdade religiosa e o direito de as famílias definirem seus princípios morais e religiosos (CARON, 2016, 147-152). Com o entendimento de que a religiosidade é vivida em contextos sociais e individuais, que influenciam a vida em sociedade, a cultura, a história e a economia, é que se propõe o entendimento do ser humano como ser religioso. Como fenômeno universal, a diversidade religiosa traz a combinação de práticas religiosas provenientes das diferentes religiões, buscando formas não institucionais de vivenciar as questões profundas do ser.
Ensino religioso: espaço do diálogo As interfaces entre o saber acadêmico e o religioso, a devida valorização dos processos de transformação e transposição dos resultados de pesquisa mais acurada, “principalmente a transposição didática do ‘saber ensinar’ para os ‘objetos de ensino’” (FIGUEIRA e JUNQUEIRA, 2012, p. 7) é o que se espera dos estudos desenvolvidos a partir desse recorte. Ao propor conteúdos que contemplem as diversidades culturais e religiosas brasileiras, promove-se a construção do conhecimento, de forma que favoreça o respeito à inegável característica de diversidade (étnica, racial, religiosa etc.) do nosso país, também, por conta de ser, a religiosidade, um aspecto que “se constitui num dos fios que se tece o acontecer do nosso cotidiano” (CORRÊA, 2008, 17-18). Assim, o que é efetivado pelo tratamento metodológico no Ensino Religioso? A proposta para o Ensino Religioso a ser desenvolvida no cotidiano da sala é de efetivamente contribuir para a leitura do mundo em todas as suas linguagens, 86
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inclusive das palavras, dos números, dos fatos, do espaço, da arte e da tecnologia. É a informação-observação-reflexão compondo um percurso metodológico que, como estratégia, encaminha e propõe o convívio social e as relações com as culturas e tradições religiosas. O/a educando/a constrói saberes a partir das manifestações da realidade e da alteridade, sendo a sala de aula, o local onde é possível a expressão de sua individualidade. Define-se, assim, para a compreensão deste texto que ALTERIDADE é a concepção que parte do pressuposto básico de que todo o ser humano interage e interdepende de outros. A IDENTIDADE é definida pela relação do indivíduo com outros indivíduos, isto é, cada indivíduo se completa e se efetiva no relacionamento com os que estão à sua volta, em seu convívio. Isso requer, do educador, um aprofundamento mais apurado, pois é, nas relações do conhecimento religioso próprio, com o do outro, que é possível sensibilizar os/as estudantes para o mistério e, compreende o sentido da vida, o sentido do além vida, elaborado pelas Tradições Religiosas. Este processo, se realizará, pela releitura e compreensão do religioso na sociedade, apropriando-se de uma metodologia que possibilita realizar a partir dos conteúdos programáticos: •
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a informação, enquanto aproximação de um aspecto do conhecimento religioso, a partir do qual, se torna possível ao educando/a ampliar seu conhecimento, para construir instrumentos que possibilitem referenciais de interpretação ou análise, efetivando-se a ressignificação de conceitos; a observação do fenômeno religioso em suas múltiplas dimensões, destacando-se desta observação à análise da ação, falta ou parte dela em seu contexto, e em suas relações para explorar e trabalhar os conceitos básicos do Ensino Religioso; a reflexão, como aspecto que oportuniza o confronto pedagógico do conhecimento teórico com a prática. É a partir da reflexão que se exercitam e, gerenciam as observações e informações mensurando os elementos, os aspectos, os fatos e outros elementos necessários à construção do conhecimento.
Isso mobiliza o educando a dominar linguagens, a compreender os fenômenos, a construir argumentações, para enfrentar situações e a elaborar propostas para uma convivência fraterna e de respeito. Cada elemento abordado favorece a relação com os valores sociais, os laços de solidariedade e a superação do preconceito em todas as suas formas. Tomando como exemplo, o ethos de uma determinada tradição religiosa, faz-se a pesquisa (informação) sobre especialmente, a questão da alteridade por exemplo, tema Edile Maria Fracaro Rodrigues & Sérgio Rogério Azevedo Junqueira
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próprio deste componente curricular. Ao ser instigado/a sobre o tema, o/a estudante confronta a informação com os conhecimentos, saberes e valores produzidos culturalmente, expressos nas políticas públicas e gerados nas instituições produtoras do conhecimento científico e tecnológico (observação). Mas não só essas instituições. Pode-se estender essa observação para a comunidade de fé, a família, o mundo do trabalho, o desenvolvimento das linguagens, as atividades desportivas e corporais, a produção artística, os movimentos sociais. E então refletir sobre as formas diversas de exercício da cidadania sobre a contribuição do conhecimento religioso como um dos elementos que favorece a leitura das culturas que interfere nas ações do ser humano. O fazer pedagógico se efetiva na escola a partir de conhecimentos produzidos, acumulados e sistematizados historicamente, de forma a possibilitar aos educandos conhecer o passado e o presente numa perspectiva de criar novos conhecimentos e, propiciar no serviço ao educando, uma nova forma de diálogo inter-religioso para oportunizar a informação, a interpretação do conhecimento acumulado, a ressignificação de conteúdos e conceitos, dos quais, decorre o processo de ensino-aprendizagem, sobre as diferenças, as diversidades e a pluralidade, numa ênfase histórica, que permite o entendimento de si e do outro, viabilizando a formação do cidadão. Portanto, dar-se-á em nível de análise e conhecimento da diversidade cultural e religiosa, respeitando-se as diferentes expressões religiosas dos educandos. Pensar num ensino que contemple essa diversidade é reconhecer que os saberes das religiões podem colaborar para formar uma herança social e cultural de preço incalculável, pois, possibilitam o exercício do diálogo inter-religioso, em uma perspectiva de conhecimento cultural e ainda de acolhida e de aprendizagem com aquilo ou aquele que é diferente. Enquanto uma das atividades em que o ser humano pode se conhecer, a religiosidade colabora na construção e interpretação da sociedade. Segundo Alves (1999), a religiosidade se torna religião quando se exprime num sistema lógico de sinais, símbolos, ritos e palavras, que no tempo e no espaço interligam ideias do sagrado à experiência humana. “E talvez seja esta a marca de todas as religiões, por mais longínquas que estejam uma das outras: o esforço para pensar a realidade toda a partir da exigência que a vida faça sentido” (ALVES, 1999, p. 9). Dessa forma, propor atividades que promovam a leitura do cenário local, colabora para fomentar o diálogo inter-religioso e a tolerância a toda e qualquer religião, procurando formar cidadãos abertos para a diversidade cultural e religiosa. Bonafé (2015, p. 111) aponta: A escola do futuro deverá se reencontrar com uma leitura crítica da cidade; não a cidade como excursão escolar, ou seja, como saída pontual, estudo 88
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ou exploração, para voltar às quatro paredes da sala de aula, onde o currículo ficou encerrado e imóvel. [...] é a reivindicação de um novo modelo escolar que há de contemplar, necessariamente, a experiência da cidade como prática de significação e subjetivação, selecionando e ordenando formas de conhecer cruzadas por relações de poder.
Bonafé aponta ainda que a “cidade produz saberes nos quais se mostram as tensões e os conflitos por darem significado às experiências da vida”. Para o autor, pelas ruas da cidade “circulam modos de comportamento, valores cívicos e morais, estilos e modos de vida, práticas culturais elaboradas, em relação aos quais construímos significados sobre o sentido de ser cidadão” (2015, p. 111). A ideia de posse coletiva como parte do exercício da cidadania inspirou a utilização do termo patrimônio para designar o conjunto de bens de valor cultural que passaram a ser propriedade da nação, ou seja, do conjunto de todos os cidadãos. Considerar a dimensão da cultura e do trabalho como parte da leitura do religioso nas aulas de Ensino Religioso, implica abordar a pluralidade cultural e oportunizar uma formação que promova os direitos humanos, a cidadania, a cultura da paz e o acolhimento. Pode-se falar contra o preconceito e, mostrar ao mesmo tempo, o quanto se é preconceituoso, por meio das expressões utilizadas. É possível alguém pensar que está fazendo um discurso para defender o pobre, o negro, a mulher, o índio e, perceber, o quanto sua linguagem mostra que sua postura não se efetiva ao lado das minorias discriminadas. O mesmo acontece com a questão do respeito à liberdade do outro, à educação para a prática da justiça, à valorização da verdade e ou ao compromisso com uma educação que considere os diferentes e as diferenças. Tais procedimentos permitem que os/as estudantes, aos poucos, atualizem os seus conhecimentos, reflitam sobre as diversas experiências religiosas a sua volta, percebam o florescer do seu questionamento existencial, formulem respostas com base de argumentação. E ainda analisem o papel das tradições religiosas na estruturação e na manutenção das diferentes culturas, compreendendo o significado das diferentes afirmações e verdades de fé e, com isso, refletem as atitudes morais diferenciadas, como consequência do fenômeno religioso, que se dá na pluralidade cultural religiosa. Assim, como já contemplado anteriormente, reforça-se que a ciência de referência desta disciplina é a Ciência da Religião, pois fornece meios acadêmicos necessários para a construção do conhecimento da religiosidade em sala de aula (PASSOS e USARSKI, 2013, p, 12). No que concerne à sua aplicabilidade na educação básica, dois princípios devem nortear o trabalho docente, o princípio da interdisciplinaridade (interação que ocorre tanto pela complementação, via Edile Maria Fracaro Rodrigues & Sérgio Rogério Azevedo Junqueira
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outras formas de conhecimento, quanto pelo intercâmbio ativo de professores e educandos com outros profissionais; e o princípio do estudo não normativo das religiões (evitando qualquer juízo de valor pessoal, hierarquizações das religiões ou opiniões de “verdades” religiosas). Essa orientação foi assumida pelas autoridades educacionais brasileiras com a homologação da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) que orienta os currículos de todas as escolas públicas e privadas (BRASIL, 2017), assim como a publicação das Diretrizes da Licenciatura para formação de professores de Ensino Religioso, que é a Ciência da Religião (BRASIL, 2018). Com essa perspectiva, a interatividade e a ludicidade irão permear as relações de aprendizagens nos mais diferentes campos e, em especial, no afetivo, promovendo amadurecimento pessoal, nas esferas biopsicossociais e espirituais, contribuindo para a ampliação de suas potencialidades, inclusive emocionais e relacionais, além de, promover o empoderamento em sua trajetória pessoal e comunitária, para a compreensão dos conceitos religiosos, a partir das tradições religiosas. As informações articuladas, considerando o estágio e os aspectos do desenvolvimento do sujeito, o informativo e a possibilidade de diálogo com interação, será permeada com oportunidades de ludicidade.
Considerações finais Todos os períodos históricos brasileiros mantiveram a regulamentação do Ensino Religioso, segundo a visão da época, o que contribuiu para que esse componente curricular passasse por diferentes formas de viabilização e de expressão. Ao focalizar os fundamentos humanos da questão religiosa evidencia-se a linguagem utilizada por seus interlocutores. Os instrumentos para acompanhar a aprendizagem comum do processo de ensino, desde que, correspondam à forma de fazer do Ensino Religioso, evidenciando a informação, a observação, a reflexão para assim elaborar o posicionamento pessoal a respeito da diversidade cultural e religiosa. Portanto, diante desse quadro, explicita-se que a metodologia própria do Ensino Religioso precisa ter como base, também, os métodos da Ciência da Religião, para favorecer o desenvolvimento de aspectos cognitivos do educando, como em todas as outras disciplinas escolares, por meio de estudos empíricos e sistemáticos sobre as religiões, em sala de aula. Qualquer consequência, desse processo, no sentido da construção de posturas, atitudes pautadas por “valores” de tolerância, respeito e promoção da igualdade, por parte de educandos e docentes é esperada e vista como muito positiva. 90
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Contudo, isso seriam consequências e não habilidades ou competências a serem avaliadas durante as aulas. Ao Ensino Religioso não cabe “ensinar valores”, tal como, um proselitismo sútil, mas proporcionar o desenvolvimento de habilidades e competências dos educandos, por intermédio de estudos com bases científicas, incentivando a boa convivência entre pessoas que praticam, ou não, uma religião. Além das dimensões antropológica, sociopolítica e cultural, pilares dessa disciplina, a religiosidade pode ser considerada uma das dimensões constitutivas do ser humano. Afinal, os seres humanos buscam pelo sentido da vida, individual e coletivamente, encontrando e expressando respostas, também, por meio da religiosidade e ou do transcendente, como meio de superação dos próprios limites (corporais, sociais, culturais, espirituais etc.). Este componente curricular, assim como os demais, promove o respeito à diversidade visando contribuir para o conhecimento e o respeito das diferentes expressões religiosas, advindas da elaboração cultural que compõe a sociedade brasileira, para fomentar o diálogo inter-religioso e a tolerância a toda e qualquer religião, formando cidadãos multiculturalistas. Para viver democraticamente em uma sociedade multicultural, como a brasileira, é preciso conhecer e respeitar as diferentes culturas e os grupos que constituem essa sociedade. Em sua perspectiva cultural, o Ensino Religioso, em sala de aula, coloca em pauta a leitura e a compreensão das formas do existir humano, analisando em cada grupo social os modos de agir, de conviver e de relacionar-se com os demais e com os aspectos transcendentes. Aspectos importantes para o exercício da cidadania. É difícil chegar às opções de vida, quando se pretende ignorar a religião que tem tanto a dizer, ou então, quando se quer restringi-la a um ensino vago, inútil, por ser destituído da relação entre os modelos históricos, coerentes com a tradição e a cultura dos povos. O pressuposto é que os estudantes têm o direito a uma educação que promova o encontro com o outro, que promova o diálogo entre os diferentes saberes e crenças. O pressuposto é que os estudantes têm o direito de conhecer todas as dimensões da cultura; entre essas, encontra-se a possibilidade de discutir os problemas fundamentais da existência. É um direito e um dever consequente do exercício pleno de cidadania e um desafio constante nos diferentes espaços, nos quais a sistematização do conhecimento religioso e, simultaneamente, a sensibilização para uma leitura social das manifestações religiosas, integrem o cotidiano da sociedade brasileira.
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ENSINO RELIGIOSO: DESAFIOS E PERSPECTIVAS
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Edile Maria Fracaro Rodrigues & Sérgio Rogério Azevedo Junqueira
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FORMAÇÃO DE DOCENTES PARA O ENSINO RELIGIOSO Desafios e perspectivas
Josiane Crusaro Simoni
Elcio Cecchetti
Mestre em Educação (Unochapecó).
Doutor e Mestre em Educação (UFSC).
Professora de Ensino Religioso na Secretaria de Estado da Educação de Santa Catarina (SED/SC).
Docente do Mestrado em Educação e coordenador da Licenciatura em Ciências da Religião na Unochapecó.
[email protected]
Coordenador Geral do Fórum Nacional Permanente do Ensino Religioso (FONAPERgestão 2020-2022).
[email protected]
Como referenciar este capítulo: SIMONI, Josiane Crusaro Simoni; CECCHETTI, Elcio. Formação de docentes para o Ensino Religioso: desafios e perspectivas. In: MARANHÃO, Fº. Eduardo Meinberg de Albuquerque (Org.). Ensino religioso: desafios e perspectivas. Florianópolis: AMAR; FOGO, 2021, pp. 95-111.
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Introdução As sociedades contemporâneas caracterizam-se por uma vasta diversidade cultural e religiosa, que se expressa na multiplicidade de crenças, movimentos e expressões de cunho religioso e sob a forma de distintas concepções e convicções seculares de vida e de mundo. Essa diversidade cultural e religiosa manifesta-se em todos os espaços socioculturais, incluindo os territórios educativos, por meio de uma rica variedade de sentidos, significados, princípios, valores e outros referenciais simbólicos utilizados pelos sujeitos para lidar com os acontecimentos da vida cotidiana. No entanto, essa diversidade religiosa, historicamente constituída por interações, imposições e hibridismos, exige atenção e esforços no sentido de combater preconceitos, discriminações, indiferenças, intolerâncias e violências praticadas contra alguns credos religiosos e grupos não religiosos, que acabam por afrontar a dignidade humana. Por isso, espaços formais de ensino, tais como as escolas e universidades, necessitam integrar, discutir e estudar os fenômenos religiosos de modo científico e respeitoso, com a finalidade de contribuir para a desnaturalização de estereótipos, preconceitos e silenciamentos, auxiliando no enfrentamento a toda forma de violência e intolerância. Contudo, constatamos frequentemente que territórios escolares e acadêmicos apresentam dificuldades para reconhecer e valorizar a diversidade cultural e religiosa, cerceando, muitas vezes, o direito de liberdade de pensamento, consciência e religião, incluindo a liberdade de mudar de religião ou de não seguir qualquer crença. Historicamente, a universidade e a escola brasileira foram instituídos sob a aliança entre Estado e Igreja. Por respaldar o poder da coroa, o catolicismo, na condição de religião oficial da nação (BRAZIL, 1824), assegurou o controle de vários campos sociais, entre eles, a educação, por meio da atuação dos missionários e ordens religiosas. Neste contexto, os princípios da moral cristã e da doutrina católica entranharam-se ao ensino elementar, cabendo aos professores ensinar tanto os conteúdos “sagrados” quanto os “profanos” (Cf. BRASIL, 1827). Assim, os termos “ensino da religião” ou “instrução religiosa” correspondiam à prática da evangelização, catequização e doutrinação em espaços formais, como nas escolas, e não formais, como nas missões, pastorais e campanhas diversas. Durante todo o Brasil-Império (1822-1889), o ensino da doutrina católica era parte integrante do currículo clássico humanístico o qual, paulatinamente, foi cedendo espaço diante da incorporação dos estudos modernos ou científicos nas escolas e faculdades, tendência dominante na Europa do século XIX, que foi expurgando a religião dos programas de ensino (LORENZ; VECHIA, 2011). Josiane Crusaro Simoni & Elcio Cecchetti
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Foi somente a partir de 1860 que maçons, liberais e positivistas difundiram os ideais republicanos e passaram a defender a separação entre Estado e Igreja. Estes ideais foram paulatinamente incorporados nas sucessivas reformas de ensino, resultando na progressiva ampliação dos estudos científicos nas escolas e faculdades, em detrimento do “ensino da religião”, que foi condensado em “uma” dentre um conjunto de “disciplinas”. Com isso, foi possível, “liberar” os estudantes acatólicos da obrigatoriedade de assistirem as aulas de instrução religiosa, que passaram a ser oferecidas em dias determinados da semana e sempre antes ou depois dos horários destinados às disciplinas científicas (Cf. BRASIL, 1879). A efervescência dos debates em prol do “ensino leigo”, que demarcaram as últimas décadas do regime imperial, encontrou lugar no arcabouço jurídico com a implantação da República. O Governo Provisório instituiu, logo em seus primeiros Decretos, a separação Estado-Igreja, a plena liberdade de cultos, a instituição do casamento civil e a secularização dos cemitérios. Sob a égide do Estado laico, a primeira Constituição da República (1891, Art. 72) declarou que seria “leigo” o ensino ministrado nos estabelecimentos públicos. Contudo, a laicização do Estado avançou mais em nível jurídico do que propriamente no âmbito das mentalidades e o amálgama político-religioso continuou a existir a despeito dos decretos e dispositivos constitucionais. Por outra parte, a Igreja Católica questionou o caráter laicizante impresso ao Estado e logo tratou de reformar suas estruturas. No conjunto de ações capitaneadas pelo Episcopado brasileiro, a questão da reintrodução do Ensino Religioso passou a integrar a lista das prioridades. Na década de 1930, a Igreja Católica conseguiu a retirada do dispositivo que instituiu o ensino leigo e reintroduziu o Ensino Religioso confessional, embora de matrícula facultativa (Cf. BRASIL, 1934). Neste período, portanto, cunhou-se o termo “Ensino Religioso”, para designar a prática sistemática do ensino confessional nos estabelecimentos de ensino com caráter de “disciplina” (CECCHETTI, 2016). Tal formulação foi mantida em todas as demais Constituições (Cf. BRASIL, 1937, 1946, 1967 e 1988) e nas duas primeiras Leis de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN) (Cf. BRASIL, 1961 e 1971). Como é possível deduzir, ao longo do tempo, o Ensino Religioso confessional produziu mais negação do que reconhecimento da diversidade religiosa, justamente por subalternizar tanto as crenças dos grupos não cristãos, quanto às pessoas ateias, agnósticas ou sem religião. Por consequência, até o início da década de 1990, era praticamente inexistente a preocupação pela formação de docentes de Ensino Religioso em uma perspectiva inter-religiosa. Ancorados em argumentos confessionais ou interconfessionais, os processos formativos mantinham-se diretamente atrelados à dinâmica de preparação de agentes pastorais, segundo as diretrizes de cada 98
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igreja cristã, desenvolvido, às vezes, em parceria com as próprias secretarias de educação. Assim, a única modalidade de formação existente era aquela própria do campo religioso, obtida através de cursos de Teologia, Ciências Religiosas, Catequese, Educação Cristã e outros similares (Cf. OLIVEIRA; CECCHETTI, 2010). Esse trabalho objetiva analisar o elementos históricos e documentais relacionadas à formação de professores para o Ensino Religioso no Brasil. A partir de uma abordagem bibliográfica e documental, o trabalho inicialmente identifica a presença do Ensino Religioso confessional nos sistemas de ensino como uma das estratégias de homogeneização e negação da diversidade religiosa. Em seguida, aborda as transformações legais e pedagógicas que converteram o Ensino Religioso em um dos responsáveis por assegurar o respeito à diversidade religiosa na escola, vedadas quaisquer formas de proselitismo. Em um segundo momento, tomando como exemplo a Licenciatura em Ciências da Religião oferecida pela Universidade Comunitária da Religião de Chapecó (Unochapecó), analisa as contribuições desta formação para consecução dos objetivos do Ensino Religioso previstos pela Base Nacional Comum Curricular (BNCC). Por fim, sinaliza alguns desafios e perspectivas que envolvem o campo da formação de professores para o Ensino Religioso na atualidade brasileira.
Transformações epistemológicas e pedagógicas do ensino religioso A parti da década de 1970, coletivos de educadores e líderes religiosos, cientes de que o enfoque confessional não atendia as demandas de uma sociedade cada vez mais diversificada, deram início à gestação de outras concepções e propostas pedagógicas para o Ensino Religioso. Em vários Estados foram criadas organizações de caráter ecumênico1, que buscaram superar o modelo catequético das “aulas de religião”, tomando como referencial o movimento ecumênico internacional. Foi justamente nesse período de transição que localizamos as primeiras preocupações para a oferta de formação de docentes em nível superior para esta área de ensino2. 1 Como exemplo indicamos o Conselho de Igrejas para o Ensino Religioso (CIER), em Santa Catarina, a Associação Inter-Religiosa de Educação (ASSINTEC), no Paraná, e o Instituto Regional de Pastoral do Mato Grosso (IRPAMAT). 2 Caron (1995) indica que nos anos de 1972, 1985 e 1990, o CIER encaminhou projetos ao Conselho Federal de Educação para viabilizar um curso de licenciatura para habilitar os professores de Educação Religiosa Escolar, mas não obteve sucesso. Josiane Crusaro Simoni & Elcio Cecchetti
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Após duas décadas de experiências ecumênicas, os agentes e instituições envolvidas no processo sentiram a necessidade repensar a natureza do Ensino Religioso, no intuito de acolher a diversidade cultural religiosa brasileira. Um dos resultados desse movimento resultou na instalação, em 1995, do Fórum Nacional Permanente de Ensino Religioso (FONAPER)3. Esta instituição, com o passar do tempo, tornou-se um espaço de discussão e ponto aglutinador de ideias e propostas de operacionalização de um Ensino Religioso que superasse seu histórico enfoque confessional e prosélito4. No entanto, a despeito dos esforços empreendidos, a LDB nº 9.394/1996) apresentou (novamente!) o Ensino Religioso como disciplina de caráter confessional e interconfessional. Insatisfeitos com essa medida, no início de 1997, uma forte mobilização de educadores e representantes de instituições civis, religiosas e educacionais reivindicou a superação do proselitismo e a adoção de uma proposta educativa inter-religiosa. A ação coletiva resultou na aprovação da Lei nº 9.475/1997, que alterou a concepção e a metodologia da disciplina: Art. 33 - O ensino religioso, de matrícula facultativa, é parte integrante da formação básica do cidadão, constitui disciplina dos horários normais das escolas públicas do ensino fundamental, assegurando o respeito à diversidade cultural religiosa do Brasil, vedadas quaisquer formas de proselitismo (BRASIL, 1997) (grifos nossos).
Com essa alteração legal, criaram-se pela primeira vez condições de sistematizar o Ensino Religioso como componente curricular responsável por acolher e respeitar a diversidade religiosa na escola. Portanto, se até meados da década de 1990, em decorrência da linha confessional e/ou interconfessional adotada, a formação dos docentes ocorria mediante cursos organizados pelas próprias instituições religiosas, tornava-se urgente superar este quadro e oferecer uma habilitação específica com este novo enfoque. Foi no período de transição de uma abordagem ecumênica para a inter-religiosa que foram criados os primeiros cursos de licenciatura para formar docentes para o adequado tratamento da diversidade religiosa. Universidades de Santa Catarina foram as primeiras a ofertar o curso de graduação em Ciências da Religião-Licenciatura em Ensino Religioso, em 1996. Posteriormente, universidades 3 O FONAPER é uma associação civil de direito privado, de âmbito nacional, sem vínculo político-partidário, confessional e sindical, sem fins econômicos, que congrega, conforme seu Estatuto, pessoas jurídicas e pessoas naturais identificadas com o Ensino Religioso, constituindo-se num organismo que trata de questões pertinentes a esta área de conhecimento, sem discriminação de qualquer natureza. 4 Sobre o legado do FONAPER na proposição de um Ensino Religioso não confessional consultar Pozzer et al (2010) e Pozzer et al (2015). 100
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do Pará, Maranhão, Paraíba, Rio Grande do Norte, Sergipe, Minas Gerais, Amazonas, Rio Grande do Sul e Paraná também criaram cursos desta natureza. Nestas localidades, a formação de docentes para o Ensino Religioso começou a seguir os mesmos procedimentos empregados pelos demais componente curriculares, assegurando aos egressos os conhecimentos e habilidades necessários para o estudo da diversidade cultural religiosa no cotidiano escolar. Uma sólida formação no campo da Educação e das Ciências da Religião passou a ser considerada entre os educadores e investigadores da área, como condição para o tratamento pedagógico da diversidade religiosa na escola, em uma perspectiva inter-religiosa e intercultural. Isso porque, a efetivação de um Ensino Religioso não confessional, que assegure o respeito à diversidade religiosa, depende da atuação de um profissional devidamente habilitado. Nos estados supracitados, onde egressos dos cursos de licenciatura já atuam junto às escolas, percebe-se uma mudança significativa no tratamento dado a esta temática. Os esforços empreendidos em prol da superação da natureza confessional do Ensino Religioso foram reconhecidos recentemente com a sua inclusão na Base Nacional Comum Curricular (BNCC). Trata-se de um marco histórico, pois é a primeira vez que o Estado reconhece a função social e pedagógica do Ensino Religioso na formação integral dos estudantes, cuja natureza e finalidades pedagógicas “são distintas da confessionalidade” (BRASIL, 2018a, p. 435). Isso requer uma verdadeira reinvenção das práticas pedagógicas historicamente postas. Considerando os marcos normativos em vigor, a BNCC fixou que Ensino Religioso deve atender aos seguintes objetivos: a) Proporcionar a aprendizagem dos conhecimentos religiosos, a partir das manifestações religiosas percebidas na realidade dos educandos; b) Propiciar conhecimentos sobre o direito à liberdade de consciência e de crença, no constante propósito de promoção dos direitos humanos; c) Desenvolver competências e habilidades que contribuam para o diálogo entre perspectivas religiosas e seculares de vida, exercitando o respeito à liberdade de concepções e o pluralismo de ideias, de acordo com a Constituição Federal de 1988; d) Contribuir para que os educandos construam seus sentidos pessoais de vida a partir de valores, princípios éticos e da cidadania. (BRASIL, 2018a, p. 436).
O documento explicitou que o “conhecimento religioso” é o objeto da área de Ensino Religioso, entendido como um bem simbólico produzido no âmbito de diferentes culturas e sociedades. A BNCC adverte que cabe ao Ensino Religioso tratar dos conhecimentos religiosos a partir de pressupostos éticos e científicos, Josiane Crusaro Simoni & Elcio Cecchetti
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sem privilégio de nenhuma crença ou convicção. Por isso, a Ética da Alteridade e a Interculturalidade foram apontadas como fundamentos teóricos e pedagógicos do Ensino Religioso, porque favorecem o reconhecimento e respeito às histórias, memórias, crenças, convicções e valores de diferentes culturas, tradições religiosas e filosofias de vida. Tais perspectivas ajudam a superar assimetrias de poder entre culturas e religiões, concedendo voz e vez a saberes e conhecimentos tradicionalmente menosprezados e sistematicamente inferiorizados pela cultura escolar. Com essa abordagem, a BNCC, enquanto documento de Estado, posiciona-se explicitamente contra o proselitismo religioso na escola laica, ao mesmo tempo em que procura definir o objeto, objetivos, unidades temáticas do Ensino Religioso, bem como aponta um conjunto de competências e habilidades a serem desenvolvias pelos estudantes ao longo dos nove anos do Ensino Fundamental. Deste modo, supera-se, em parte, a histórica ausência de diretrizes curriculares para o tratamento didático pertinente sobre a diversidade religiosa na escola. Tal carência, somada a outros fatores socioculturais, propiciou a criação de um terreno fértil para o plantio e difusão de pré-conceitos, discriminações, suposições, rotulações e violências de cunho religioso, praticados geralmente às religiões submetidas à colonialidade do saber, como as de origem indígena e africana. Com essa abordagem, a BNCC posicionou-se explicitamente contra o proselitismo religioso na escola corroborando com a perspectiva de um Ensino Religioso não confessional, concebendo-o como um espaço e lugar para o exercício de diálogo e reconhecimento das múltiplas formas de ser, pensar, crer e viver do humano. Para que os objetivos contidos na BNCC se efetivem, é fundamental que ocorra a “[...] formação de docentes abertos à diversidade cultural e religiosa, conhecedores da complexa dinâmica dos fenômenos religiosos e didaticamente preparados para o tratamento das culturas e religiosidades [...]” (CECCHETTI, 2018, p. 129). Logo, esta formação necessita ser feita em cursos de licenciatura de graduação plena, de modo a atender às especificidades do exercício de suas atividades.
A importância das licenciaturas em ciências da religião A superação do caráter confessional do Ensino Religioso depende de vários fatores, dentre os quais, formar um quadro de docentes devidamente habilitados, suprir a demanda por materiais didáticos adequados, fomentar pesquisas e difundir conhecimentos específicos à área, entre outros. A LDB nº 9.394/1996, em Art. 62, determinou que “a formação de docentes para atuar na educação básica far-se-á em nível superior, em curso de licenciatura, de graduação plena”. Foi 102
FORMAÇÃO DE DOCENTES PARA O ENSINO RELIGIOSO: DESAFIOS E PERSPECTIVAS
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com base nisso que universidades de Santa Catarina (FURB, UNIVILLE e UNISUL) criaram os primeiros cursos de graduação em Ciências da Religião-Licenciatura em Ensino Religioso, ao final de 1996. De acordo com Riske-Koch, Wickert e Oliveira (2017), os pressupostos e a organização curricular destes primeiros cursos foram construídos em consonância com os Parâmetros Curriculares Nacionais do Ensino Religioso (PCNER) e a partir das orientações do FONAPER e da LDB de 1996. O termo “Ciências da Religião” foi escolhido por razões históricas e epistemológicas. Do ponto de vista histórico, a expressão já constava nas obras clássicas de Marx Müller e Émile Durkheim. De ordem epistemológica, o estudo dos fenômenos religiosos era realizado por diversas disciplinas científicas, cada qual fazendo uso de um conjunto de procedimentos metodológicos peculiares. Daí adveio o emprego de “ciências” (método) da “religião” (objeto), onde os fenômenos religiosos são tratados a partir de diferentes enfoques metodológicos. Assim, na organização curricular destes cursos de licenciaturas foram mobilizadas distintas perspectivas científicas, no intento de fornecer uma compreensão global e local dos fenômenos religiosos em suas diferentes facetas e manifestações. Desde então, muitas licenciaturas de Ciências da Religião foram criadas por Instituições de Educação Superior (IES) em várias regiões do país. Em comum buscam assegurar uma sólida formação no campo das Ciências da Religião e da Educação, visando o adequado tratamento pedagógico da diversidade religiosa nas instituições de educação básica. Nas localidades em que há egressos dos cursos de Licenciatura em Ciências da Religião, os critérios para contratação de docentes são similares aos utilizados para os demais componentes curriculares. Porém, onde não há profissionais habilitados existem grandes dificuldades para implementar os objetivos do Ensino Religioso previstos na BNCC. Uma importante conquista que muito contribui para o enfrentamento dessa problemática foi a homologação, em 2018, pelo Conselho Nacional de Educação (CNE), do Parecer n° 12 (BRASIL, 2018b) e da Resolução nº 05 (BRASIL, 2018c), que instituíram as Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN) para os cursos de Licenciatura em Ciências da Religião, reconhecendo-a como habilitação oficial ao exercício da docência do Ensino Religioso na Educação Básica. De acordo com a Resolução, esta Licenciatura deverá propiciar: Art. 3º [...] I - Sólida formação teórico, metodológica e pedagógica no campo das Ciências da Religião e da Educação, promovendo a compreensão crítica e interativa do contexto, a estrutura e a diversidade dos fenômenos religiosos e o desenvolvimento de competências e habilidades adequadas ao exercício da docência do Ensino Religioso na Educação Básica; Josiane Crusaro Simoni & Elcio Cecchetti
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II - Sólida formação acadêmico-científica, com vistas à investigação e à análise dos fenômenos religiosos em suas diversas manifestações no tempo, no espaço e nas culturas; III - O desenvolvimento da ética profissional nas relações com a diversidade cultural e religiosa; IV - O aprendizado do diálogo inter-religioso e intercultural, visando o reconhecimento das identidades, religiosas ou não, na perspectiva dos direitos humanos e da cultura da paz (BRASIL, 2018c, p. 1).
As DCN, como podemos perceber, justificam a importância da formação inicial específica para os docentes de Ensino Religioso, haja vista a histórica demanda por territórios formativos inter-religiosos e interculturais neste campo, que fomentem territorialidades reconhecedoras da diversidade cultural e religiosa. De modo geral, as licenciaturas em Ciências da Religião foram criadas com o objetivo de preparar profissionais tanto para a investigação dos fenômenos religiosos a partir de uma abordagem interdisciplinar, quanto para a docência de Ensino Religioso na Educação Básica desde uma perspectiva não confessional5. Tomemos como exemplo o curso de Licenciatura em Ciências da Religião oferecido pela Universidade Comunitária da Região de Chapecó (Unochapecó), situada no estado de Santa Catarina. A proposta do Curso se fundamentou em preceitos legais e normativos que incidiam aos demais cursos de licenciatura, já que a publicação das DCN para as licenciaturas em Ciências da Religião somente veio a ocorrer em 2018. Segundo o Projeto Pedagógico do Curso (PPC), a Licenciatura foi criada com o objetivo de “Habilitar profissionais com competências para compreender a estrutura, a conjuntura, a diversidade dos fenômenos religiosos por meio de instrumentos teórico/metodológico do exercício da docência no campo do Ensino Religioso” (UNOCHAPECÓ, 2007, p. 38). O Curso foi implantado no segundo semestre de 2008, contendo uma estrutura curricular focada “na perspectiva da ciência, numa dimensão mais pedagógica, tendo como objeto de estudo os fenômenos religiosos, com vistas à docência do ER” (2007, p. 40). A primeira oferta ocorreu em regime especial “[...] com aulas às sextas-feiras nos turnos vespertino e noturno, aos sábados nos turnos matutino e vespertino e períodos concentrados no recesso escolar” (2007, p. 31). Os componentes da matriz curricular foram organizados em núcleos, a saber: Fundamentos ontológicos e histórico-sociais; Fundamentos ético-epistemológicos; Fundamentos e conteúdos básicos para a formação profissional; Fundamentos e 5 Para aprofundamento, consultar as obras organizadas por Oliveira, Riske-Koch e Wickert (2008) e Riske-Koch, Oliveira e Pozzer (2017), que apresentam e analisam várias experiências de formação inicial e continuada de docentes para o Ensino Religioso em diferentes estados brasileiros. 104
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conteúdos técnicos específicos do trabalho profissional; Saberes complementares ao exercício profissional (UNOCHAPECÓ, 2007). Permeado por uma visão sócio-histórico crítica, o PPC foi sendo atualizado com o passar do tempo, ajustando-se à normatização em vigor e acompanhando o desenvolvimento das Ciências da Religião e do próprio ER, com o objetivo de: Fornecer aos estudantes subsídios que garantem a construção de um professor capaz de interagir no ambiente escolar, estabelecendo quotidianamente, a relação entre conhecimentos formais com o contexto escolar e comunitário. Um professor capaz de mudar sua estrutura de pensamento frente às questões cotidianas. (UNOCHAPECÓ, 2014, p. 11).
De maneira articulada, os processos formativos promovidos pelo Curso por meio das disciplinas, estágios supervisionados, participação em eventos, pesquisa e atividades de extensão desafiaram os licenciandos à desenvolver uma postura ético-política diante dos territórios contestados que caracterizam a região Oeste catarinense. (PIOVEZANA; BERNARTT, 2018). Ainda em relação aos acadêmicos, a segunda versão do PPC apresenta a expectativa de que estes possam “[...] apropriar-se e produzir conhecimentos relacionados aos fenômenos religiosos, por meio de associações com a antropologia, filosofia, sociologia e psicologia” (UNOCHAPECÓ, 2014, p. 23). Nesse sentido, o PPC espera que, ao concluírem o Curso, os egressos possam desenvolver práticas pedagógicas permeadas pela (re)construção de conhecimentos acerca dos fenômenos religiosos considerando, especialmente, as necessidades territoriais (regionais, locais) e simbólico-culturais. Por conseguinte, o PPC almeja que os egressos desenvolvam o seguinte perfil: — Domínio das dimensões específicas dos conhecimentos relacionados ao fenômeno religioso enquanto objeto de estudo do Ensino Religioso; — Atitude investigativa, reflexiva e propositiva; — Domínio teórico, metodológico e pedagógico das temáticas que permeiam o conhecimentos no campo do Ensino Religioso; — Capacidade de diálogo e interação com a comunidade escolar; — Compromisso de difundir o conhecimento academicamente produzido ao longo da graduação; — Compreensão sobre a função social da escola e do Ensino Religioso (UNOCHAPECÓ, 2014, p. 24).
Como podemos constatar, o Curso deseja oferecer um processo formativo significativo, para que os licenciandos, ao longo de sua formação, desenvolvam o compromisso profissional de bem atuar nas escolas de educação básica, relacionando os fundamentos epistemológicos das Ciências da Religião com as práticas pedagógicas a serem desenvolvidas enquanto profissionais do ER. Josiane Crusaro Simoni & Elcio Cecchetti
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Entre 2008 e 2018, o Curso de Ciências da Religião da Unochapecó formou quatro turmas de egressos, contabilizando trinta e nove profissionais habilitados no total. Duas destas turmas foram subsidiadas pela Programa Nacional de Formação de Professores da Educação Básica (PARFOR), um ação do MEC que fomentou a oferta de cursos de licenciatura para profissionais do magistério em exercício nas redes públicas de ensino. A partir de 2018, um novo PPC foi estruturado e o Curso passou a ser oferecido exclusivamente na modalidade a distância (EaD). Essa mudança foi motivada em razão da dificuldade de compor novas turmas presenciais, o que levaria ao encerramento das atividades do Curso. Frente a isso, a EaD despontou como uma possibilidade de captar estudantes para além da cidade de Chapecó. O novo projeto foi construído já com base no Parecer CNE/CP n. 12/2018, que deu origem a Resolução CNE/CP n. 5/2018, que instituiu as DCN para as Licenciaturas em Ciências da Religião no Brasil. Segundo o primeiro documento, a docência do Ensino Religioso pressupõe que a licenciatura em Ciências da Religião assuma o reconhecimento, o diálogo intercultural e a cidadania enquanto princípios orientadores do percurso formativo de caráter interdisciplinar, crítico e criativo oferecido a seus egressos (BRASIL, 2018b). Por isso, a Licenciatura em Ciências da Religião dedica-se ao estudo dos fenômenos religiosos a partir de epistemologias e metodologias específicas, o que a diferencia de outras áreas de saber. Busca formar docentes para uma abordagem dos fenômenos religiosos na contemporaneidade, especificamente, de suas narrativas, práticas, manifestações, princípios e valores, contribuindo para a formação de cidadãos em perspectiva crítica. (BRASIL, 2018b). Em vista disso, o curso de Ciências da Religião da Unochapecó objetiva: I- Assegurar sólida formação teórico, metodológica e pedagógica no campo das Ciências da Religião e da Educação, promovendo a compreensão crítica e interativa do contexto, a estrutura e a diversidade dos fenômenos religiosos e o desenvolvimento de competências e habilidades adequadas ao exercício da docência do Ensino Religioso na Educação Básica; (UNOCHAPECÓ, 2018, p. 15).
A matriz curricular está dividida em dezesseis módulos, totalizando 3.200 horas de formação. Estrutura-se a partir de um conjunto de competências e habilidades decorrentes da apropriação de conhecimentos teórico-práticos interdisciplinares, para que o licenciando possa [...] trabalhar pedagogicamente numa perspectiva inter-religiosa e intercultural, com competência para interagir qualitativamente nos processos educacionais de forma interdisciplinar, com habilidades exigidas pela complexidade sociocultural da questão religiosa e pelas especificidades pedagógicas deste componente curricular. (UNOCHAPECÓ, 2018, p. 14). 106
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Ao priorizar o enfoque inter-religioso e intercultural, inferimos que o Curso busca contribuir para superação concepções e práticas que negam, inferiorizam e subalternizam o(a) outro(a) em singularidade. Notadamente, assume o compromisso de analisar os fenômenos religiosos a partir de pressupostos científicos, visando a formação de cidadãos críticos e responsáveis, capazes de conviver com a diversidade religiosa. A licenciatura em Ciências da Religião está estruturada em quatro núcleos, a saber: Núcleo de formação geral que integra as formações acadêmica, pedagógica e inclusiva; Núcleo de formação específica, que trata da especificidade das Ciências da Religião e do Ensino Religioso enquanto área do conhecimento; Núcleo de estudos integradores, que envolve atividades acadêmicas, práticas, científicas e culturais; e Núcleo de práticas de ensino, que oferta disciplinas que assegurem a dimensão da prática como componente curricular (UNOCHAPECÓ, 2018). Dessa forma, ao proporcionar o estudo científico dos conhecimentos religiosos produzidos historicamente pela humanidade, o Curso discute e fomenta o direito à diferença, valorizando a diversidade cultural presente na sociedade, auxiliando na constituição de relações alteritárias entre culturas e religiões distintas, identidades e diferenças, no constante propósito de promoção dos direitos humanos. Portanto, inferimos que o Curso de Ciências da Religião mobiliza um conjunto de componentes curriculares e de práticas de ensino fundamentadas no reconhecimento da diversidade religiosa, o que abre possibilidades para convivências alteritárias na diversidade, além de fomentar a ressignificação de concepções e práticas monoculturais e proselitistas.
Formação de docentes para o ensino religioso: desafios e perspectivas Como vimos, muitas iniciativas para habilitação inicial de docentes para o Ensino Religioso foram desenvolvidas ao longo das duas últimas décadas, suscitadas, sobretudo, pela mudança de paradigma em termos epistemológicos e pedagógicos do Ensino Religioso. Tais ações são resultados de esforços contextuais de coletivos de professores, pesquisadores e instituições engajadas e comprometidas em assegurar o respeito à diversidade religiosa em âmbito social e escolar. Contudo, diante da amplitude territorial e populacional do Brasil, e do crescimento das hostilidades, discursos de ódio, práticas discriminatórias e intolerantes no campo religioso, faz-se necessário a consolidação de uma política pública Josiane Crusaro Simoni & Elcio Cecchetti
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capaz de gerar ações sistêmicas de longo alcance e duração, que abarque a totalidade das instituições escolares de norte a sul do país. Os esforços empreendidos por coletividades e instituições em busca de uma educação comprometida com a diversidade cultural religiosa, resultou na configuração de um movimento em prol da decolonização religiosa da escola. A árdua tarefa de superação da natureza confessional do Ensino Religioso transformou este componente curricular em um dos responsáveis por assegurar o respeito à diversidade religiosa no cotidiano escolar, através do estudo dos conhecimentos religiosos e da constituição de relações interculturais, inter-religiosas e interpessoais, no constante propósito de promoção dos direitos humanos. O aumento de oferta de Licenciaturas em Ciências da Religião contribuem para consolidar outra perspectiva de trabalho educativo na escola pública, não mais pautado em colonizar os imaginários e nem difundir uma única verdade, mas em contribuir na formação do respeito, reciprocidade e convivência democrática entre pessoas e grupos que assumem convicções religiosas diferentes. Apesar dos avanços obtidos, persistem inúmeros desafios ao devido tratamento da diversidade religiosa na escola. Na atualidade, de forma crescente, a influência religiosa na esfera do ensino público é parte de um conjunto de estratégias empreendida por algumas confissões religiosas que disputam hegemonia na sociedade. O resultado desta “cruzada” tem sido altamente danoso à comunidade escolar, já que a disseminação do preconceito, as práticas de intolerância religiosa e a difusão de imagens negativas e discriminatórias tem afrontando os direitos humanos. Diferentes estudos e matérias indicam o crescimento do bullying religioso nas escolas brasileiras, a manutenção da discriminação e invisibilização das histórias e culturas indígenas nos currículos escolares e a sobreposição de uma moral religiosa conservadora sobre as temáticas de educação sexual e igualdade de gênero. Isso denota que a escola brasileira não eliminou a sua face prosélita porque continua a difundir crenças e valores de determinadas confissões religiosas, veiculadas por meio de currículos, práticas pedagógicas e relações sociais. Este proselitismo implícito e explícito é um real obstáculo ao acolhimento da diversidade religiosa dos sujeitos que transitam e constituem o cotidiano escolar. A consolidação de uma proposta de Ensino Religioso alicerçada na perspectiva da formação integral e cidadã, no contexto de uma sociedade cultural e religiosamente diversa, na qual todas as crenças, expressões religiosas, convicções e filosofias de vida devem ser respeitadas, exige, necessariamente, a promoção de políticas públicas voltadas para a habilitação específica de profissionais para ministrarem o Ensino Religioso nos contextos escolares. Entretanto, salvo iniciativas pontuais existentes em alguns Estados da federação, em grande parte do território nacional não se encontram licenciaturas 108
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destinadas a atender esta demanda. Em vista disso, é oportuno que os organismos responsáveis pela criação de políticas de formação docente atuem rapidamente na definição políticas públicas que incentivem a oferta de licenciaturas em Ciências da Religião em todo o território nacional.
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ENSINO RELIGIOSO NAS ESCOLAS PÚBLICAS Um desafio à laicidade do Estado
Tália de Azevedo Souto Santos
Giuseppe Tosi
Mestre em Direitos Humanos, Cidadania e Políticas Públicas (2019). Atuou como professora do ensino básico, técnico e tecnológico IFPECampus Pesqueira. Atuou como consultora e palestrante do SEBRAE na área educacional.
Doutor em filosofia pela Universidade de Pádua (1999), e pós-doutorado em Teoria e História dos Direitos Humanos pela Universidade de Florença (2006) e de Camerino (2012). Professor Titular aposentado do Departamento de Filosofia da UFPB. Ex-Coordenador do Núcleo de Cidadania e Direitos Humanos e do PPG em Direitos Humanos, Cidadania e Políticas Públicas. Professor do PPG em Filosofia da UFPB. Líder do Grupo de Pesquisa “Teoria e História dos Direitos Humanos e da Democracia”. Membro do Grupo de Pesquisa sobre “Escola Ibérica da Paz” coordenado pelo prof. Pedro Calafate da Universidade de Lisboa. Áreas de interesse: Filosofia Política, Teoria e História dos Direitos Humanos e da Democracia, Edu cação em Direitos Humanos.
Participa do grupo de pesquisa da UFPB “ Teoria e História dos Direitos Humanos” e da Comissão de Estudos de Evasão da UFRPE, onde atua como Pedagoga na função de Procuradora Educacional Institucional. Tem experiência na área de Educação, com ênfase em prática docente, legislação e educação empreendedora. Consultora Pedagógica na área de Legislação educacional.
[email protected] [email protected]
Como referenciar este capítulo: SOUTO, Tália de Azevedo; TOSI, Giuseppe. Ensino Religioso: Ensino Religioso nas escolas públicas: um desafio à laicidade do Estado. In: MARANHÃO, Fº. Eduardo Meinberg de Albuquerque (Org.). Ensino religioso: desafios e perspectivas. Florianópolis: AMAR; FOGO, 2021, pp. 113-127.
ENSINO RELIGIOSO: DESAFIOS E PERSPECTIVAS
Introdução Alvo de muitos debates, o ensino religioso nas escolas públicas é complexo, dado especialmente o caráter laico do Estado. O ideal de liberdade, o pluralismo religioso, a forma como é concebido pela legislação e como é realizado em sala de aula podem revelar antigas relações de poder e interesse entre Estado e Igreja no Brasil. De fato, os valores religiosos e as realidades políticas acham-se tão interligados em sua origem que não se pode perder de vista a influência da religião na vida pública sem ameaçar seriamente nossas liberdades. Nesse sentido, é indispensável uma reflexão sobre o ensino religioso, que se configura como um território de disputas ideológicas, pois existe um conflito entre a laicidade do Estado e o Ensino Religioso. Sobre essa questão foi realizada uma investigação, a partir de uma discussão teórica sobre a relação estado/igreja com os princípios democráticos, também da religião a favor dos princípios democráticos. Os resultados desse estudo teórico apontaram entraves para efetivação do Ensino Religioso nas escolas públicas de ordem ideológica e prática, no entanto também apontou possibilidades sobre esse componente curricular na efetivação de sua proposta à luz dos ideais dos direitos humanos. A possibilidade, do ensino religioso nas escolas pública se dá a partir de algumas condições, sendo a principal que ele não seja confessional e esteja aberto ao pluralismo de visões sobre a religião.
Laicidade: relação estado/igreja e os princípios democráticos Uma característica do Estado laico é a garantia das liberdades individuais, incluindo a liberdade religiosa. A proteção a esse direito é um desafio para um país que viveu por um longo período o monopólio de uma religião e é um tema que gera conflitos em seu tratamento jurídico, o que revela o desequilíbrio entre Estado, Igreja e Sociedade. Com suas peculiaridades, a liberdade religiosa é reconhecida tanto nos documentos internacionais garantidores de direitos fundamentais e formalmente nas Constituições dos Estados Democráticos de Direito, como na Carta Constitucional brasileira de 1988. Vale ressaltar a dupla dimensão dos direitos fundamentais, dentre os quais está a liberdade de religião: a primeira é negativa, o Estado se abstém de interferências Tália de Azevedo Santos & Giuseppe Tosi
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por ser um direito individual; e a dimensão positiva, na perspectiva de garantir a efetivação do próprio direito. A dimensão positiva do Estado requer uma ação ou prestação capaz de desobstruir e propiciar condições e meios para o pleno gozo das convicções religiosas, mas em nenhum caso poderá definir ou controlar a vida religiosa de seus cidadãos e cidadãs. Para Silva (2015, p.276), “ninguém poderá ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, perseguido, privado de qualquer direito ou isento de algum dever por causa das suas convicções ou práticas religiosas”. Sendo assim, o Estado não poderá privilegiar qualquer ideologia religiosa em detrimento de outra, mas o governo, com o objetivo de preservar a segurança de seus cidadãos, tem o direito de garantir que todas as organizações, inclusive as religiosas, abstenham-se de ensinar o ódio e de refrear ações que promovam violência ou atos criminosos. Torna-se necessária uma reflexão sobre a laicidade do Estado e o que isto significa do ponto de vista prático/político. O Estado laico é aquele religiosamente neutral, isto não significa que deva desconsiderar o fenômeno religioso, mas que não poderá assumir nenhuma função espiritual e se identificar com qualquer confissão religiosa. Significa também que as igrejas e em geral as confissões religiosas não poderão exercer nenhum papel político, restringindo-se apenas aos assuntos espirituais. No contexto atual, observamos ainda crescentes resistências para que esta separação aconteça de fato. Antes de se compreender esse aglomerado de interesses, é necessário conceituar a diferença entre Laicidade e Laicismo. Para isso, faremos uso das palavras de Cecchetti (2016), quanto à independência do poder civil da hierarquia eclesiástica. Este autor explica que o termo laico, a partir do século XIX, indica algo que está fora do controle religioso. Também foi usado o termo secularismo para indicar a mesma ideia. Nos países onde predominavam o domínio da igreja católica, a resistência para a separação foi resultado de um ataque à igreja católica, como por exemplo, nos países latinos, incluindo o Brasil. No Brasil o termo laicidade, foi usado pela primeira vez em 1871 no contexto da defesa de um ensino laico, uma concepção de que o Estado se abstém de interferir nos assuntos religiosos. Na verdade, era a tradução de um ensino livre da tutela religiosa com atuação separada entre Estado e Igreja, assegurando as garantias individuais. Esse percurso de separação entre poder político e religioso é complexo e longo. No entanto, o autor afirma que a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789 da Revolução Francesa foi determinante para que ocorresse a separação, que de fato somente será efetivada nos séculos seguintes. Além disso, vale salientar que “[...] a laicidade é um termo político, vinculado ao esforço de separação entre Igreja-Estado e na defesa da neutralidade das instituições 116
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estatais, de modo a assegurar o tratamento igualitário a todos os cidadãos” (CECCHETTI, 2016, p. 58). Laicidade não é um conceito fácil de conceber, pois pode refletir ideologias diversas construídas historicamente. Também não diz respeito à restrição de que as confissões religiosas atuem somente nos espaços privados, pois essas também podem participar da sociedade, expressando suas atividades variadas, inclusive manifestando em público suas posições. Nesse sentido,
A laicidade-separação possibilita que as instituições religiosas gozem de liberdade para consecução de suas respectivas finalidades, desde que respeitem as normas constitucionais estabelecidas, dentre elas, o respeito aos direitos humanos. Dessa forma, institui-se uma autonomia recíproca entre poder político e religioso. (CECCHETTI, 2016, p. 60). No Brasil, os privilégios que o Estado oferecia à Igreja Católica foram extintos pelo Decreto nº 119-A de 1890, que vetou o Estado de interferir nas instituições religiosas. Nesta perspectiva, uma definição de laicidade é a própria neutralidade, isto significa que o Estado não professa nem mantém vínculos com nenhuma confissão religiosa. No entanto, isso também não significa que o Estado deva atuar com ausência de valores, mas que “[...] o Estado laico necessita assumir princípios públicos comuns, tais como o respeito aos direitos individuais e coletivos, o acolhimento da diversidade, a promoção da dignidade humana e da convivência social.” (CECCHETTI, 2016, p. 62). Esta ideia do autor é bem explícita. Diante da persistência da incompreensão e hostilidade que marcam as relações humanas, e das práticas discriminatórias e preconceituosas, a que indivíduos religiosos e não religiosos são submetidos na atualidade, a laicidade assume uma importância capital na promoção de sociabilidades que aprendam, acolham, colaborem e respeitem as diferenças. Daí decorre a importância do Estado laico contribuir na construção de uma cidadania que habilite as pessoas a conviverem com convicções de mundo distintas e a adotarem como legítimos alguns princípios básicos para vida coletiva. (CECCHETTI, 2016, p. 62).
Sendo assim, a laicidade é um princípio fundamental para a governabilidade democrática, pois um Estado que é de todos não pode favorecer algumas doutrinas em detrimento de outras. Dessa forma, é possível haver a igualdade no tratamento e o apreço à diversidade e à liberdade de pensamento. Desde que os princípios fundamentais comuns sejam respeitados na vida em sociedade, o Estado democraticamente laico permite que a própria sociedade civil expresse seus anseios e objetivos individuais com a maior liberdade. Segundo Cecchetti (2016), mesmo com a legitimidade do poder do Estado laico, que advém da soberania do povo e não de seu caráter religioso, o contexto de tudo isso não é isento de tensões, interesses e resistências. Tália de Azevedo Santos & Giuseppe Tosi
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Vale salientar que, de uma sociedade para outra, os regimes considerados laicos podem ter sentidos diversos, além do que, até mesmo no interior da sociedade, o seu significado pode ser concebido de maneira diferente, pois estão relacionados ao tempo e contexto histórico. Segundo a tese desse autor, há regimes mais rígidos que outros do ponto de vista da laicidade. Alguns Estados acabam se abstendo restritivamente das práticas religiosas, por causa da necessidade de sua neutralidade, ao ponto de deixarem em segundo plano a proteção à liberdade de consciência. É quando a tolerância religiosa e a liberdade de consciência dos indivíduos recebem menos importância. (CECCHETTI, 2016, p. 67). Existe uma complexidade na forma como essa laicidade é interpretada e oficializada do ponto de vista prático, pois [...] há Estados que formalizaram a separação entre o poder político e religioso em dispositivos constitucionais, mas continuam indiretamente atrelados e dependentes do apoio das confissões religiosas majoritárias, como ocorre em boa parte dos países latino-americanos e caribenhos, nos quais, por conta da histórica presença da Igreja Católica e, mais recentemente, do forte crescimento das Igrejas Evangélicas Pentecostais, há grande interferência religiosa na esfera estatal. (CECCHETTI, 2016, p. 68).
Também existe um posicionamento de forte oposição por parte de alguns Estados em relação ao poder religioso, que se assemelha ao ateísmo por atuarem numa perspectiva negativa da religião, que pode ser considerado como regime antirreligioso ou “laicidade autoritária”. Esse posicionamento também não é neutral pois apresenta dificuldades em tratar de maneira igualitária aqueles indivíduos que defendem alguma convicção ou valor religioso. A laicidade autoritária ressurge nas sociedades atuais, reivindicada por grupos que exigem uma regulamentação “aceitável” da influência religiosa no espaço público, limitando a liberdade de expressão de coletividades confessionais. Esta perspectiva é fomentada pelo “medo” de que a expressão religiosa do Outro, geralmente de matrizes não cristãs, atente contra os valores que se presumem comuns. (MILOT, 2009 apud CECCHETTI, 2016, p. 70).
É importante destacar que, em uma sociedade plural em suas opiniões, crenças e valores, qualquer tipo de intolerância, seja ela revestida de antirreligião ou de autoritarismo, fere ou ignora a dignidade dos seus cidadãos. Não existe emancipação social se os indivíduos de uma sociedade não puderem fazer uso de sua racionalidade simultaneamente com suas crenças espirituais. No momento em que um indivíduo é oprimido a rejeitar sua liberdade de consciência para exercer sua cidadania, esta anula a concepção de cidadania que isto justifica. 118
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O modelo ideal para as sociedades multiculturais é o liberal-pluralista, em que o governo age em favor da igualdade entre crentes e não crentes, como o adotado, por exemplo, em Quebec no Canadá. É algo que ultrapassa a legislação, pois diz respeito a um posicionamento político que favorece os contextos marcados pela diversidade religiosa e que tem como principal objetivo eliminar os conflitos éticos que envolvem a laicização em um Estado socialmente diverso. Segundo Cecchetti (2016), apesar de, em Quebec, o último setor a ser laicizado ter sido a educação, com a eliminação do Ensino Religioso (ER) nas escolas, o avanço se deu com a proposta da disciplina de “ética e cultura religiosa”, que contempla o fenômeno religioso e suas manifestações por meio do desenvolvimento de habilidades de convivência indispensáveis em uma sociedade diversa. Nesse contexto, a laicidade no espaço escolar não é a abstenção da religião na educação, mas a discussão de sua presença no contexto social como pressuposto para se adquirir habilidades que favoreçam a convivência em um ambiente plural. Isto também não significa que em uma sociedade plural não haja conflitos e visões diferentes, mas que, na tutela de gerenciar esses conflitos, o Estado não proíba as pessoas de expressarem seus simbolismos e crenças religiosas nos espaços públicos. Fica esclarecido que a laicidade não é a anulação da liberdade de consciência e religião, mas a sua afirmação em combate a qualquer tipo de perseguição, intolerância ou fundamentalismo que restrinja as liberdades individuais e coletivas na sociedade. Infelizmente, O atual crescimento da hostilidade e do fundamentalismo, fomentados muitas vezes por grupos político-religiosos de perspectivas notadamente exclusivistas, expõe as fragilidades do regime de laicidade adotado por muitos Estados. Não por acaso, muitos conflitos, revoltas armadas e lutas civis, são decorrentes de desigualdades instituídas e discriminações produzidas por políticas públicas que privilegiaram determina perspectiva particular, em detrimento do bem comum. (CECCHETTI, 2016, p. 74).
Daí a necessidade de o Estado se manter imparcial, já que precisa atuar como árbitro das disputas de interesses diferentes em favor do bem comum. Não há como atuar nesse sentido, sem que se ofereça o mesmo direito a todos de interferirem nas políticas públicas de um regime democrático. É preciso resguardar o interesse público, superando a visão individual de mundo na qual os agentes políticos se identificam. “Em sociedades de crescente diversificação e pluralidade, onde situações de violações e injustiça proliferam por conta de processos de exclusão e desigualdades, a laicidade do Estado adquire um valor ainda maior” (CECCHETTI, 2016, p. 74). Tália de Azevedo Santos & Giuseppe Tosi
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Sendo assim, não se pode ignorar a importância de se estabelecer estratégias políticas e judiciais capazes de primar pelo interesse público. Embora seja um grande desafio, é o único caminho para se reduzir as desigualdades e os privilégios que ignoram as minorias e os grupos excluídos por motivos religiosos no cotidiano da vida social em um Estado considerado democrático. Na sociedade brasileira muitas religiões ainda aspiram a esse direito como, por exemplo, as religiões de matriz africana. Perseguições e discriminações têm marcado a vida dos praticantes desse tipo de religião e são na maioria das vezes praticadas por outros grupos religiosos. O conflito é crescente no Brasil e demonstra que, do ponto de vista prático, o direito à liberdade religiosa em nossa sociedade ainda tem um longo caminho para ser conquistado. Ao que parece, afirmar uma verdade religiosa confunde-se com negar o direito de existir das outras. Na verdade, “[...] as religiões, por mais diferentes que sejam, são verdadeiras e boas, na medida em que são humanas, em que não oprimem e nem destroem o humanismo, mas o protegem e fomentam”. (ROCHA, 2001, p. 14). É necessário que as religiões se responsabilizem com a paz, renunciando ao fanatismo religioso, que promove toda sorte de conflito, e que busquem o diálogo. Isto não significa dizer que deve haver uma única ideologia, mas deve ser garantida a existência de valores básicos que permitam e promovam o contentamento e a dignidade dos sujeitos. Segundo Rocha (2001), isto reflete a necessidade de aprofundar a perspectiva de um diálogo interreligioso capaz de fomentar um entendimento religioso global sem ignorar que historicamente as relações entre as religiões nem sempre foram acertadas em defesa da dignidade humana, nem sempre respeitaram as diversidades, na verdade mais ignoraram as mesmas, anulando-as que a afirmando-as. “O entendimento entre todos requer uma autocrítica que cada religião possa fazer de si mesma diante da responsabilidade que elas têm de contribuir na construção da paz e da justiça social no mundo.” (ROCHA 2001, p. 25) O Brasil ratificou somente em 1992 o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos firmado em 1966, no qual garante a liberdade religiosa, proibindo a terceiros, inclusive ao Estado que criem situações em que liberdade religiosa seja diminuída. Isto inclui o direito de pessoas que se determinam sem religião. Para ampliar tal compreensão sobre a atuação do Estado frente às diferenças culturais religiosas, será apresentada, no próximo tópico, uma reflexão para evidenciar as limitações democráticas no que se referem aos direitos individuais, culturais e religiosos.
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A religião a favor dos princípios democráticos e o Ensino Religioso nas escolas públicas Para se falar de religião é preciso uma reflexão sobre a liberdade religiosa pois não existe religião se os sujeitos não obtiverem uma autonomia em relação ao Estado e à sociedade para praticar a sua religiosidade. Do ponto de vista prático, ainda é uma necessidade urgente e antiga a afirmação da liberdade religiosa. Essa é uma aspiração de um fenômeno universal, pois a religião está presente em todo o hemisfério. E nesse sentido vale salientar as palavras de Rocha (2001, p. 12) quando afirma que As religiões possuem meios de moldar a existência humana, de forma histórica, experimentada, culturalmente adequada e individualmente caracterizada. A religião não pode possibilitar tudo, mas ela pode abrir e proporcionar um “mais” em termos de vida humana. (ROCHA, 2001, p. 12).
Enquanto a religião pode ofertar os valores mais elevados sobre a existência humana, também poderá negá-los, quando é exercida de maneira arbitrária e intolerante. A Declaração Universal dos Direitos Humanos enfatiza esse pensamento, ao afirmar que o direito à liberdade religiosa inclui “[...] a liberdade de trocar de religião ou de fé e a liberdade de confessar a religião ou a fé, sozinho, numa comunidade junto com outras pessoas, ou então pública ou individualmente” (ONU, 1948, Resolução 217ª (III)). Em um Estado democrático, o direito à liberdade religiosa é garantia fundamental e, no Brasil, está garantido legalmente na Constituição de 1988, Artigo 5º, Inciso VI da seguinte maneira: “É inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias”. Portanto, segundo Reimer (2013), o Estado deve atuar positivamente no sentido de evitar que esse direito individual seja violado por particulares ou agentes públicos. Um país, cujas raízes históricas coexistem com o monopólio de uma religião, apresenta um percurso conflituoso, no que se refere à afirmação de um diálogo inter-religioso. Isto é perceptível ao se analisar que, somente em 1988, aparece no texto constitucional brasileiro o direito à liberdade religiosa, após um histórico de sete cartas magnas publicadas anteriormente. Embora o Brasil seja considerado atualmente como um mosaico religioso, o tema religião sempre gerou desconforto no tratamento político. Ao que parece, o Estado e a igreja não mantêm uma “separação estável”. É um cenário de privilégios e de restrições contraditórias que impede que, de fato, todas as religiões encontrem espaço para suas afirmações. Tália de Azevedo Santos & Giuseppe Tosi
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No entanto, a prática fanática e intolerante de uma determinada religião ocasiona um mal-estar generalizado capaz de desencadear os piores conflitos e atos de violência combatidos pela própria religião. A verdade é que a religião e a violência têm andado de mãos dadas; isto, segundo Noé (2004), revela o ser humano como autor do comportamento de guerra e violência, ou da paz e do entendimento. A contradição entre religião e violência é (ou deveria ser!) o fundamento da religião, como, por exemplo, nas religiões cristãs. Ele consiste na promoção de uma vida pacífica e não violenta, sem opressão, enquanto a violência é exatamente o contrário de tudo isso. Portanto, uma questão que não pode ser ignorada é sobre qual fundamento uma religião se manifesta em defesa de seu direito religioso, se essa utiliza da violência para reivindicá-lo. Vale salientar que essa separação sempre foi conflituosa e, em muitos casos, não ocorreu de fato, pois o Estado brasileiro sempre se preocupou com a religião, o seu envolvimento foi tão íntimo que a tomou para sua guarda. Posteriormente, sua preocupação foi de excluí-la do Estado, validando-a a outro espaço que não fosse o público. Giumbelli (2012, p.167) cita um duplo diagnóstico, no que se refere ao lugar da religião: De um lado, há posições que apontam a exigência de exclusão da religião do espaço público (sua deslegitimação como identidade e como argumento), limitada que deveria estar ao domínio privado. De outro, posições que apontam a garantia de isenção gozada pela religião, no sentido seja de sua lógica totalizante na condução de destinos pessoais. Longe de confirmar uma suposta autonomia do religioso na modernidade, o que esses diagnósticos captam são exatamente as virtualidades contidas em certo arranjo de relações entre Estado, sociedade e religião.
No Brasil, o conflito que envolve o debate sobre liberdade religiosa é decorrente de uma demanda antiga de “expansionismo” religioso. Para o autor, essa demanda ocorre pelo desequilíbrio existente na relação Estado, sociedade e religião. Independentemente da realidade social, não haverá uma autonomia real na relação de um para com o outro. Giumbelli (2012) defende a ideia de que se a liberdade religiosa surgiu a partir dos ideais democráticos e pluralistas e não se pode ignorar que esses ideais sofreram reformulações que impactam o tratamento da religião. Contudo, com suas peculiaridades, a liberdade religiosa é reconhecida nos documentos internacionais garantidores de direitos fundamentais e formalmente nas Constituições dos Estados Democráticos de Direito, como na Carta Constitucional brasileira. A dupla dimensão dos direitos fundamentais, dentre esses, a da liberdade de religião, constitui uma dimensão negativa na qual o Estado 122
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se abstém de interferências, por ser esse um direito individual, e a positiva na perspectiva de garantir a efetivação do próprio direito. A dimensão positiva do Estado requer uma ação ou prestação capaz de desobstruir e propiciar condições e meios para o pleno gozo das convicções religiosas, mas em nenhum caso poderá definir ou controlar a vida religiosa. Para Silva (2015, p. 276), “[...] ninguém poderá ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, perseguido privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever por causa das suas convicções ou práticas religiosas”. Sendo assim, o Estado não poderá destacar qualquer ideologia religiosa em detrimento de outra, mas o governo, com o objetivo de preservar a segurança de seus cidadãos, tem o direito de garantir que todas as organizações, inclusive as religiosas, abstenham-se de ensinar o ódio e de refrear ações que promovam violência ou atos criminosos. Dessa forma, podemos considerar que, a partir do exposto no artigo 18, da Declaração Universal dos Direitos Humanos, o oferecimento do ensino religioso constitui-se como liberdade fundamental. Contudo, nenhuma pessoa ou grupo poderão ser obrigados a receber instrução religiosa incompatível com suas convicções. A liberdade de recebimento de Ensino Religioso nas escolas públicas contempla tanto o ensino do fenômeno religioso quanto o confessional, ministrado de acordo com as convicções do aluno ou de seus pais, isto em virtude de uma compreensão limitada do que este componente curricular se propõe a fazer. A promoção do Ensino Religioso deve ser embasada nos ideais de oferecimento desse componente como um instrumento de acesso a saberes que são produzidos por culturas religiosas sem que haja viés proselitista. No caso das escolas públicas no Brasil, somente o estudo, enquanto fenômeno religioso com viés pluralista, não violaria tal liberdade. Ao deixar de atuar positivamente na liberdade de recebimento de Ensino Religioso pluralista, o Estado desempenha sua função educativa de maneira incompleta. Segundo Martinez Blanco (1989, p. 146), [...] se a escola pública deve ser a escola de todos, deverá ser plural e nela deve se abordar todas as visões de vida, dentre as quais a visão religiosa. O pluralismo que a escola de um país democrático deve inspirar pode exigir que a escola não ignore a dimensão religiosa e ética da vida social, na medida que é considerada de extrema importância para uma parte dos alunos e das famílias que encaminham seus filhos para as escolas. A incorporação do ensino religioso na escola enriquece e é parte importante da bagagem cultural do aluno.
Nesse sentido, a escola pública de um Estado Laico deve ser neutra e pluralista. Por ser um direito autônomo, deve ser reconhecido e respeitado até mesmo por um Estados que valore negativamente a religiosidade, como no caso Tália de Azevedo Santos & Giuseppe Tosi
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dos Estados ateus. Assim, qualquer Estado (laico, confessional ou ateu), deve reconhecer e garantir a liberdade religiosa oferecendo um ensino laico com as seguintes características: Deve ser o ensino de todas as religiões, de acordo com a demanda dos alunos, e não apenas o ensino de determinadas convicções religiosas, sob pena de ferir o princípio da neutralidade da escola laica; b) Deve ser ministrado sob a responsabilidade das diversas confissões religiosas, e não sob a responsabilidade do próprio Estado, pois aí ele estaria exercendo típica função religiosa, o que lhe é vedado pelo precitado princípio da separação; c) Deve ser garantido em condições iguais para todas as religiões, sob pena de violar a neutralidade estatal e a igualdade religiosa exigidas de um Estado Laico. (SILVA, 2015, p. 289).
O direito à liberdade de religião, da mesma forma que os demais direitos, não é ilimitado, pois está passível de restrições, conforme a Constituição, caso esteja em conflito com outro direito ou valor constitucional protegido. Um Estado que tem um compromisso com a democracia e a pluralidade deverá tratar os grupos religiosos como lidaria com qualquer outro tipo de coletividade. Sendo assim, o tema torna-se ainda mais complexo, visto que precisa contemplar uma reflexão sobre as violações por parte do Estado e também as cometidas por religiosos e não religiosos. É nesse sentido que a análise sobre o ensino religioso torna-se complexa.
Conclusões Ao longo dessa abordagem teórica foram vistas as limitações democráticas do Brasil nas quais o Ensino Religioso se depara. Isso diz respeito às raízes históricas do monopólio de uma religião no país que durante muito tempo, em suas relações estreitas com o Estado, foi instrumentalizada para garantir desigualdades e privilégios que ignoravam as minorias. É indispensável o afastamento das raízes históricas da confessionalidade que constituiu nossa sociedade, pois a laicidade é a garantia do direito sem um posicionamento religioso por instituições estatais, como é o caso da escola pública. Esse desafio é maior por conta da relação conflituosa com as igrejas que reivindicam do Estado a tutela do Ensino Religioso, o que desconfigura os avanços legislativos alcançados ao longo dos anos. No entanto, não é legitimo oferecer um ensino confessional nas escolas públicas pelo caráter laico do Estado. Ademais, é necessário refletir sobre a laicidade do Estado no contexto democrático quando interpretamos o oferecimento do Ensino Religioso nas escolas 124
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públicas; uma vez que o Estado laico deve se posicionar em favor da pluralidade e não da supressão ou favorecimento de uma ideologia religiosa. Daí a importância de o Estado laico atuar com iniciativas de gestão que contemplem a pluralidade cultural e religiosa, pois mesmo o Brasil sendo considerado um mosaico religioso, percebe-se ainda uma necessidade de promoção de um diálogo inter-religioso capaz de garantir, do ponto de vista prático, a afirmação da liberdade religiosa no espaço público. Outro fator de destaque é a atuação do Estado: evidencia-se que a positivação de um direito depende das políticas educacionais estruturadas para sua efetivação, nesse sentido, a sociedade civil tem papel fundamental na garantia dos direitos. Muitas vezes, os agentes responsáveis por essa efetivação não têm fundamento teórico necessário para a defesa ou refutação de um tema, e no que se refere às políticas públicas uma compreensão equivocada sobre a Laicidade também se configura como uma barreira à sua promoção. Isso revela fragilidade e ineficiência na sua promoção por parte dos agentes públicos. Não que isto diminua a sua efetividade ou sua validade, mas demonstra o quanto esse componente precisa ser fortalecido e o quanto, a atuação das instituições nacionais de defesa do Ensino Religioso não confessional, têm um papel decisivo nos encaminhamentos das propostas que envolvem esse componente no contexto da educação brasileira. Vale salientar que, os representantes que defendem o oferecimento do Ensino Religioso nas escolas públicas têm um posicionamento ideológico coerente com os direitos humanos visto que se ocupam em difundir o seu conteúdo pluralista. Portanto, caberá ao Estado, em sua ação positiva, criar condições ideológicas e materiais que permitam o gozo das práticas religiosas, isto inclui a sua afirmação, no espaço público sem que essa relação íntima entre Igreja e Estado instrumentalize privilégios a grupos distintos. Considerando todas as questões, é possível afirmar que o Ensino Religioso é um território de disputas ideológicas, ameaçado e ameaçador. É indispensável avaliar de que maneira os desafios impossibilitam que a proposta legalmente constituída seja implementada da forma como foi idealizada. Mas, para tal, são necessárias reflexões e ações de natureza ideológica e político-social daquilo que fundamenta a relação entre Estado e igrejas, entre religião e espaço público. Embora haja a constatação desses desafios a serem enfrentados, evidencia-se também a possibilidade de que esse componente curricular se configure como um espaço de diálogos coletivos e um instrumento de combate à intolerância, desde que esteja alinhado com os princípios dos direitos humanos. É nesse sentido que só é possível o ensino religioso nas escolas pública desde que não seja confessional e esteja aberto ao pluralismo de visões sobre a religião. Tália de Azevedo Santos & Giuseppe Tosi
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O desafio atual é estabelecer mecanismos capazes de impedir que a subjetividade humana religiosa seja violada. Nesse sentido, é preciso um olhar atento para que, em nome dos direitos humanos, não se fira os próprios direitos humanos. Isto significa dizer que, em nome da diversidade religiosa, não se oculte a religiosidade e que em nome da religiosidade não se ignore o conteúdo de sua própria diversidade. Se a escola é o espaço onde se constrói a cidadania, a cultura de paz, os valores universais, incluindo o direito às diferenças, de discutir o tema ou de não o discutir, se for a opção, não é coerente que esse lugar torne-se um espaço de supressão de direitos. Esse direito já está garantido legalmente, mas somente este fato não é suficiente para uma promoção coerente com as atribuições da laicidade. As lutas que fundamentam os direitos humanos se traduzem à proteção dessa dignidade.
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DESAFIOS EM TEMPO DE POLARIZAÇÃO POLÍTICO - RELIGIOSA NOS ESPAÇOS ESCOLARES
Marinilson Barbosa da Silva Doutorado em Educação (UFRGS). Mestrado em Educação (PUCRS). Professor Associado da UFPB. Pós-Doutorado em Teologia pela Faculdades EST. Docente do PPG em Ciências das Religiões da UFPB. Coordenação do FIDELID/UFPB, de professores que atuam no Ensino Religioso, filiado à Associação Internacional de Estudos de Afetos e Religiões (AMAR)
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Como referenciar este capítulo: SILVA, Marinilson Barbosa da. Desafios em tempo de polarização político-religiosa nos espaços escolares. In: MARANHÃO, Fº. Eduardo Meinberg de Albuquerque (Org.). Ensino religioso: desafios e perspectivas. Florianópolis: AMAR; FOGO, 2021, pp. 129-138.
ENSINO RELIGIOSO: DESAFIOS E PERSPECTIVAS
Introdução As reflexões e inquietações, frente ao tema aqui proposto, partem da minha própria experiência de vida enquanto ainda estudante de teologia e hoje pesquisador na área do Ensino Religioso. O complicado jogo hoje frente às polarizações políticas, econômicas e sociais também se refletem no campo religioso e em especial no Ensino Religioso (ER), quando pensamos acerca da diversidade religiosa, confessionalidade e os direitos humanos. No mundo da política, o termo “polarização” pode ser entendido como divergência de atitudes políticas entre extremos ideológicos. Essa divergência pode ser pública ou mesmo dentro de certos grupos. Um dos primeiros pontos de conflitos e polarização acaba respingando no objeto de estudo acerca do ensino religioso: qual é o objeto de ensino religioso de direito e de fato? Resgate do entendimento do fenômeno religioso a partir da ótica da confessionalidade ou da perspectiva da diversidade religiosa? A questão que foi debatida no STF (Supremo Tribunal Federal) acabou favorecendo que ambos podem fazer parte do objeto de estudo na área do ER. Nesse sentido, alguns estudiosos alegam que essa determinação fere o artigo 33 da LDB 9394/96, na qual diz que o ER: “deve assegurar o respeito à diversidade cultural religiosa do Brasil, vedadas quaisquer formas de proselitismo”. Portanto, o artigo não faz referência à confessionalidade como determinou o STF. A questão da polarização entre confessionalidade versus diversidade não deixa de ser também uma briga entre as tendências político-religiosas partidárias, tanto de esquerda quanto de direita, nos dias atuais, inclusive dentro dos próprios centros de teologia, como parte do universo de formação inicial na área. Lembro muito de um fato curioso na minha trajetória enquanto estudante de teologia nos anos 80 e 90. Cursei a licenciatura em Teologia em um seminário de tendência conservadora no Estado de São Paulo. Um amigo inventou um dia de vestir uma camiseta com o desenho do rosto de Che Guevara que tinha a seguinte frase: “É preciso ser duro, mas sem perder a ternura, jamais” e quase foi expulso do seminário e ridicularizado pelos colegas seminaristas. Depois acabei estudando o bacharelado em Teologia em outro Estado no Brasil, em um seminário tradicionalmente progressista, e lembro-me de um fato muito interessante: Eu ganhei de um amigo uma camiseta, que tinha o símbolo da emissora de TV Rede Globo de Comunicações. Eu, bem feliz e muito ingênuo, inventei de ir um dia para a biblioteca da faculdade com a respectiva camiseta!!! Resultado: também, como o meu colega seminarista de São Paulo, eu fui ridicularizado pelos alunos seminaristas, que ali se encontravam na biblioteca Marinilson Barbosa da Silva
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naquele momento. Fiquei tão constrangido e perplexo que tive que sair e voltar para a casa trocar de camiseta e nunca mais a vesti. Duas escolas de tradição e estudos teológicos altamente polarizados, divergentes entre si e de extremos ideológicos com viés político partidário explícito. E qual é a análise disso tudo? A polarização tem efeitos de fortalecer os extremos que não dialogam entre si. Eu lembro-me que falar o nome de uma dessas escolas, dentro do espaço institucional do outro, era quase que falar uma blasfêmia!!!! No entanto, pela situação vivida nos dois extremos, percebi o quanto essas instituições polarizantes eram semelhantes no sentido de que ambas eram extremamente intolerantes entre si. O que nós ganhamos com essas polarizações enquanto pesquisadores da área? Nada! O espírito da polarização reforça a intolerância, o desrespeito pelo outro, o ódio pelo diferente e coloca em xeque os direitos humanos que são princípios universais comuns a todos. A polarização política e ideológica da confessionalidade não consiste em preservar em si os princípios da universalidade dos Direitos Humanos, mas consiste em defender os seus valores doutrinários, denominacionais e próprios de suas crenças, muitas vezes de cunho fundamentalista. Na mesma proporção, qual a perspectiva do extremismo e da polarização político-ideológica muitas vezes dos que defendem a diversidade religiosa? Tornar o discurso acerca do fenômeno religioso, da diversidade e dos direitos humanos, um discurso exclusivamente de militância política partidária de esquerda, ou seja, de exclusividade e prerrogativa única desse partido.
Dilemas, desafios e polarizações no contexto do Ensino Religioso (ER) Para situar as discussões sobre o ensino religioso frente aos seus dilemas, desafios e polarizações, o autor Casseb traz resumidamente um balanço sobre o desenrolar deste no Brasil, Desde os tempos imperiais até hoje as discussões sobre o Ensino Religioso no Brasil perpassam por três pontos principais: a permanência ou não como disciplina regular do currículo; a identidade desta disciplina e dos seus conteúdos e a formação do professor de Ensino Religioso, fato que pode ser mensurado através das normatizações da disciplina ao longo de nossa história. Todas essas questões envolvem interesses debatidos na esfera política, onde de um lado há os defensores do Estado laico – que apregoam a retirada do Ensino Religioso das escolas -, e do outro, aqueles que defendem o Ensino Religioso como componente indispensável da 132
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formação cidadã e moral dos brasileiros, e ainda, os que buscam uma integração destas duas perspectivas (CASSEB, 2009, p.01).
Compreendendo que o ER é um componente indispensável para a formação cidadã e que precisamos avançar no processo educacional para que todos percebam a importância deste para a formação humana, tendo em vista que, mesmo nos dias atuais, no qual vivemos com constantes discussões sobre a alteridade religiosa e sobre a sua importância para a elevação do ser, encontramos pessoas, até mesmo no âmbito escolar, com a ideia de que o professor de ER deve ser o catequizador da instituição escolar. Então, para discutirmos essa questão, trazemos à tona as palavras de Passos (2006), que se faz necessário para percebermos a importância da religiosidade na escola, É hora de avançarmos na direção do novo e quebrar os dogmas cristalizados do passado, em nome dos mesmos princípios da autonomia religiosa e da laicidade do ensino. [...] A religião é um dado sociocultural fundamental que condiciona os modos de organização e de atuação social que afeta, tácita ou explicitamente, as opções individuais, como fonte incondicional de valores e, ao mesmo tempo, contribui de maneira decisiva na construção de configurações socioculturais mais amplas. A busca de uma ética civil com base nas religiões constitui, segundo Hans Kung, um caminho necessário para a civilização atual. Não se trata de reeditar para o conjunto da sociedade as éticas religiosas, como na fase pré-moderna da história ocidental, mas de haurir delas seu potencial valorativo e estabelecer consensos básicos para a sobrevivência da humanidade em seu conjunto mundialmente interconectado. Nessa direção, o estudo da religião se torna uma via indispensável na tarefa urgente de educar para a convivência planetária, e mais, para a sobrevivência humana e ecológica em tempos de crise planetária. O conhecimento das alteridades religiosas é um objetivo educacional sem o qual não se pode conhecer verdadeiramente as particularidades e a totalidade que compõe nossa vida sempre mais globalizada e, com maior razão, a lógica religiosa inerente a muitos conflitos mundiais em franco curso ou cinicamente, anunciados por certos blocos de poder (PASSOS, 2006, p.38-40).
O ensino religioso é um componente pedagógico importante na formação cidadã, portanto, um direito a ser conquistado tendo em vista que por meio do ER o educando poderá compreender a necessidade de respeitar o outro entendendo a sua diferença, pois com as múltiplas religiões abordadas nas salas de aula poderemos ter uma visão centrada e ampla das religiões. Assim, evitando o preconceito sobre algumas delas, pois ocorrem pela falta de conhecimento, no qual a escola deve ser este lugar de descoberta e redescoberta do ser humano, na sua origem, cultura e vivência. Na escola como um todo há uma grande diversidade. Na própria sala de aula, por exemplo, visualizamos essa diversidade, não só religiosa, mas étnica, cultural, social e de gênero. Sabemos que o professor de ER não é o salvador da Marinilson Barbosa da Silva
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sociedade, mudando a visão de todos a partir de uma aula, mas com as discussões é possível trabalhar na construção de uma visão melhor de mundo, sabendo ainda que vários elementos influenciam no convívio pacífico entre as pessoas, principalmente entre a diversidade de situações. Na sala de aula do ER, muito provavelmente encontraremos convergências e divergências, sendo o semelhante e o diferente interferindo nas relações. Ter espaço garantido para a particularidade dentro da diversidade, desenvolver um processo de “escuta” e “olhar” para o outro, para o diferente e acolhê-lo, não é uma tarefa simples e fácil para o professor de Ensino Religioso. Ter bem claro os seus contornos identitários são fatores fundamentais para o diálogo inter-religioso. A crítica para o ensino religioso consiste justamente nisso; se as pessoas não têm um bom conhecimento das características de sua própria religião ou confissão religiosa, como, então, poderão dialogar com o diferente? Além disso, a questão do convívio entre as diferenças, especialmente na dimensão religiosa, é mais complexa na prática do que formulações teóricas de lideranças religiosas sobre ecumenismo ou macroecumenismo. Estão em um jogo de diferentes tradições religiosas e uma possível concessão de espaço de uma tradição à outra. O receio, mesmo que inconsciente, às vezes, é o medo da perda da própria identidade em benefício dos preceitos alheios. Esse talvez possa ser o grande desafio para o professor de Ensino Religioso. É, justamente, no diálogo entre as diferenças que estão a culminância da participação e um grande desafio para a disciplina de Ensino Religioso. A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional prevê, no caput do artigo 33, como foi dito antes, resgata a garantia do respeito à diversidade cultural religiosa do Brasil, tendo a participação igualitária para todas as pessoas que frequentam a aula de Ensino Religioso, a começar pelo respeito à particularidade/identidade religiosa de cada pessoa. Da lei emanam, portanto, também os fundamentos básicos da participação: fazer parte, ter parte e tomar parte de forma igualitária do conhecimento religioso na sala de aula da disciplina de Ensino Religioso. É, justamente, o direito à particularidade religiosa que coloca o Ensino Religioso na berlinda de seus defensores e opositores da sociedade em geral. Os argumentos a favor destacam o desenvolvimento integral, a pertinência da dimensão religiosa ao substrato cultural. Já os opositores questionam a capacidade docente de tratar a questão religiosa com isonomia que se requer. Dito isso e compreendendo a necessidade de aprofundamentos de estudos na área, as reflexões a seguir tratam sobre uma pesquisa realizada no período de 2012 a 2015, que consistiu em analisar fenomenologicamente a trajetória de vida dos profissionais da educação, na área de ensino religioso, suscitando-se por meio de algumas perguntas que quando levantadas respondem as nossas perguntas norteadoras: O que significa ser professor de ER para estes? Como ocorre 134
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o processo de construção de identidades individuais e coletivas de professores que atuam no ensino religioso? Assim, trazendo à tona o objetivo principal da pesquisa que consistiu em compreender as vivências mais significativas na trajetória de vida de professores de ensino religioso, evidenciando como aconteceu a escolha profissional e a construção desse processo de ser professor. Como amostra para compor o quadro de professores, utilizando-se dos instrumentos como: as entrevistas semi-estruturadas e aplicação de questionários com questões abertas, participaram 12 (doze) professores que atuam no Ensino Religioso, sendo 08 (oito) do sexo feminino e 04 (quatro) do sexo masculino. A margem de experiência docente dos entrevistados no ensino religioso variou entre três a dez anos de experiência no magistério. Foram ao todo analisadas 73 Unidades de Significados emergentes das transcrições das entrevistas, conforme procedimentos de análise proposto por Giorgi (1985) e Comiotto (1992), no qual o texto foi dividido nas unidades a perspectiva do ser professor inserido em diferentes contextos sociais. A unidade de significado foi numerada em ordem crescente e discriminada no próprio texto com um travessão ( / ) logo que se percebe uma mudança no sentido da situação descrita pelo sujeito pesquisado. Nesta etapa, a linguagem do sujeito é mantida sem qualquer alteração.
Aspectos epistemológicos voltados ao foco em valores Nestas Unidades de Significados é possível verificar um dos pontos centrais desta pesquisa, ao qual evidenciou-se nas falas dos entrevistados, o que estes acham sobre o que significa ser professor de ER, como eles trabalham em suas aulas, podendo ser vistas nas Unidades a seguir: [...] nós trabalhamos as Religiões, nós trabalhamos a ética, valores também [...] (UniSig07). Por exemplo hoje eu fui falar sobre gravidez na adolescência e o alunos falaram professora isso não tem nada haver com ER, pelo contrário, isso tem tudo haver. Outra experiência que tive semana passada foi, que eu trabalhei sobre as deficiências, então levei um vídeo e percebi que meus alunos do 5º ao 9º ano precisam ser educados a questão da sensibilidade, então nós precisamos trabalhar a sensibilidade dos alunos (UniSig13). Mas nós utilizamos temas atuais como: droga, a sexualidade precoce, a violência dentro da escola, os temas cívicos e mais os projetos que aparece dentro da sala de aula – projeto de leitura, projeto de parte histórica, dia das mães essas datas importantes dentro do calendário sempre o ensino religioso esta participando inclusive no desfile (UniSig61). Marinilson Barbosa da Silva
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Tento afirmar os princípios e valores que infelizmente a nossa sociedade perdeu (UniSig70). Ser professor de ER é um desafio em relação as propostas de valores que a sociedade apresenta hoje (UniSig73).
Ao decorrer destas unidades, é possível visualizar sobre o tema “valores”, tão vistos no ER, principalmente no que diz respeito aos conteúdos programáticos. Quando os professores de ER falam que o objeto de estudos do ER consiste em trabalhar “valores”, que tipo de valores eles estão falando? Valores morais ministrados? Valores doutrinários? Valores confessionais? Conforme as categorias elencadas, percebemos que na grande maioria são valores travestidos de confessionalidades e não necessariamente sobre os valores e princípios oriundos dos direitos humanos.
Aspectos epistemológicos voltados ao foco catequético/confessional Ainda Somos vistos como o padre, como a freira que chegou, ainda é um desafio (Unisig26). Muitas vezes as pessoas pensam que nós somos psicólogos, que somos o paizão, que temos que dá resposta a todos os questionamentos em sala de aula, então veem o professor de ER como o salvador da pátria (Unisig20). Quando nós falamos sou professor de ensino religioso, é bastante interessante: as pessoas nos olham como catequizador, e isso é um grande desafio (UniSig49). Os pais, que chegam para falar conosco: Por que foi falado sobre a religião afro, candomblé, umbanda? Por que não fala só sobre Jesus, sobre Deus? (UniSig33).
Este ponto é um dos mais debatidos no âmbito do ensino religioso: o proselitismo ocorre ou não na sala de aula? O método catequético ainda ocorre ou não? O que realmente o professor de ensino religioso faz em suas aulas? Qual o seu pensamento, enquanto professor sobre o método catequético? Mesmo diante dos constantes estudos e qualificação desses profissionais no processo de formação inicial e continuada nos cursos de Teologia e Ciências da Religião, visualizamos nas falas dos entrevistados, que essa dúvida ainda paira em suas afirmações. 136
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Considerações Finais Ao voltarmos os nossos olhos para o ensino religioso, precisamos compreender os desafios/dificuldades/polarizações enfrentados pelos profissionais da Educação, que lutam a cada dia por melhorias na carreira docente e na própria vivência dos estudantes. A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB 9394/96) prevê o espaço garantido para lecionar tal disciplina, mas facultativamente para os alunos e obrigatoriamente para a instituição, muitas são as discussões já apontadas em várias pesquisas sobre o ER, neste foco, mas quando a lei prevê espaço, não detalha a linha curricular desta disciplina, deixando amplo demais sua proposta curricular, fazendo com que muitos se interroguem, o que deve ser aplicado em sala de aula, deixando as pessoas que não são da área acharem que ser professor de ER é ser o catequista da instituição, mas como mudar essa linha de pensamento? Necessita-se investir nas discussões da BNCC (Base Nacional Comum Curricular) e um dos principais passos é continuar investindo na formação inicial e continuada na área de Teologia e Ciências das Religiões. Muitos acreditam que ensinar sobre o fenômeno religioso consiste exclusivamente em trabalhar valores, mas diante das entrevistas e de vários estudos, podemos perceber que ser professor de ER não é apenas ensinar valores como um fim em si mesmo. Muitos professores, adeptos dessa possibilidade, têm como pano de fundo, não necessariamente uma discussão da perspectiva da ética em si, mas a promoção de valores ‘travestidos’ de confessionalidades - tidos como valores ‘morais’, ‘dogmáticos”, doutrinários e pessoais. O lugar do ensino religioso no projeto da escola e da formação de seus professores é um desafio que se apresenta na organização escolar como um todo. Em muitos contextos educacionais, o papel do professor de ensino religioso ainda é marginalizado e velado na organização geral da escola. No entanto, quando se olha para a realidade de sala de aula, para uma visão de sociedade sistêmica, holística e globalizada, o ensino religioso, apesar de suas limitações, é considerado de fundamental importância para a formação discente, na busca pelo sentido da vida, na busca pela espiritualidade e pela paz.
Marinilson Barbosa da Silva
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Referências BRASIL. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Lei 9.394/96. Brasília: MEC, 1996. BRASIL. Base Nacional Comum Curricular: Ensino Religioso. Brasília: MEC/Secretaria de Educação Básica, 2018. CASSEB, Samir Araújo. Ensino Religioso: Legislação e seus Desdobramentos nas Salas de Aula do Brasil. Anais do III Fórum Mundial de Teologia e Libertação, Belém, 2009. Disponível em: https://docplayer.com. br/20334161-Ensino-religioso-legislacao-eseus-desdobramentos-nas-salas-de-aula-dobrasil.html Acesso em: 13 abr. 2019. COMIOTTO, Miriam S. Adultos Médios: Sentimentos e Trajetórias de Vida _ Estudo Fenomenológico e Proposta de AutoEducação. Porto Alegre: UFRGS, 1992. (Tese de Doutorado).
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GIORGI, Amedeo. Phenomenology and Psychological research. Pittsburg, Duquesne University Press, 1985. HOLMES, Maria José Torres. Ensino Religioso: problemas e desafios. 2010. f. 187. Dissertação (Mestrado em Ciências das Religiões) – Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, 2010. OLIVEIRA, L.B. Formação e docência: passos, (com)passos e (des)com-passos. Anais do IV Simpósio de Ensino Religioso. São LeopoldoRS. Ed.: Sinodal, 2008. PASSOS, João Décio. Ensino Religioso: mediações epistemológicas e finalidades pedagógicas. São Paulo: Paulinas. 2006.
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ENSINO RELIGIOSO E EPISTEMOLOGIA DO A ( FÉ ) TO Perspectivas e desafios entre a Educação de Paulo Freire e a falta de educação de Jair Bolsonaro
Eduardo Meinberg de Albuquerque Maranhão Fº. Du (ou Flor) é uma pessoa transgênera não-binária. Realizou Doutorado em História Social pela Universidade de São Paulo (USP), Mestrado em História do Tempo Presente pela Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC) e Graduação em História pela USP. É Pós-doutore em Ciências das Religiões (UFPB); em História (Universidade Federal de Santa Catarina, UFSC); e em Interdisciplinaridade em Ciências Humanas (UFSC). Atuou como Professore Visitante no Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos (PPGDH) e no Centro de Ciências Jurídicas (CCJ) da Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Atua na Coordenação Científica da FOGO Editorial e na Presidência da Associação Internacional de Estudos de Afetos e Religiões (AMAR). Presidenciou a Associação Brasileira de História das Religiões (ABHR) em duas gestões.
de “cura, restauração e libertação” de pessoas transgêneras e não hétero. No Mestrado pesquisou as re(l)ações entre mídia, gênero e religião na igreja Bola de Neve Church, gerando o livro A Grande Onda Vai Te Pegar: Marketing, Espetáculo e Ciberespaço na Bola de Neve Church (2013), que esta agência religiosa procurou censurar na Justiça por duas vezes. Cantar é um de seus passatempos prediletos, e atualmente têm composto paródias de classic rock com o tema impeachment de Bolsonaro.
[email protected]
No Doutorado pesquisou o que as pessoas transgêneras faziam com o que determinados discursos religiosos procuravam fazer delas (ou com elas), tendo como campos de pesquisa principais as igrejas inclusivas e os ministérios
Como referenciar este capítulo: MARANHÃO Fº, Eduardo Meinberg de Albuquerque. Ensino Religioso e Epistemologia do A(fé)to: Perspectivas e desafios entre a Educação de Paulo Freire e a falta de educação de Jair Bolsonaro. In: MARANHÃO, Fº. Eduardo Meinberg de Albuquerque (Org.). Ensino religioso: desafios e perspectivas. Florianópolis: AMAR; FOGO, 2021, pp. 139-161.
ENSINO RELIGIOSO: DESAFIOS E PERSPECTIVAS
A educação é um ato de amor, por isso, um ato de coragem. Não pode temer o debate. A análise da realidade. Não pode fugir à discussão criadora, sob pena de ser uma farsa Paulo Freire
Introdução Foi em uma tarde de sábado de 2021 que, peregrinando pelas redes sociais e ingressando em um grupo dedicado à(s) Ciência(s) da(s) Religião(ões), li a mensagem: “professores de Ensino Religioso não devem se posicionar politicamente, nem fazer propaganda política”. Reparei, então, que a mensagem (curtida por algumas pessoas que, possivelmente, não sabiam exatamente ao que ela estava se referindo), comentava a postagem de alguém que pedia o impeachment do até então presidente da república Jair Messias Bolsonaro (eleito pelo PSL, atualmente sem partido). Não havia menção alguma a partidos políticos específicos (ou seja, não havia “propaganda política”), mas havia uma tomada de posição acompanhada de uma hashtag: #ForaBolsonaro. Confesso minha surpresa ao observar que para a pessoa que escreveu a mensagem, bem como a quem a curtiu, docentes de Ensino Religioso não devam se posicionar politicamente em uma rede social ou em qualquer outra parte – inclusive em sala de aula, especialmente em um contexto de desmonte da Educação, milhares de mortes por conta da pandemia de COVID-19, inflação e desemprego galopantes, doutrinações ideológicas1 e escândalos diversos envolvendo o governo, incluindo corrupção e prevaricação. Ora, qual seria o modelo de educação partilhado por esta pessoa? Sobre o que o Ensino Religioso e a(s) Ciência(s) da(s) Religião(ões) deveriam se debruçar, afinal? Somente sobre o fenômeno religioso (e, acaso, ele se dissocia da política?), e de que maneiras? Por que uma pessoa pedir o impeachment de um governante em um grupo de Ciência(s) da(s) Religião(ões) causaria revolta e horror? Vale ressaltar que todos os cursos desta área (e da maioria das áreas relacionadas às ciências humanas e sociais) perderam investimentos e bolsas de estudo durante o enfadonho (para não dizer tétrico, lúgubre e genocida) governo atual, resultado (da falta) de políticas públicas para educação, pesquisa e extensão do mesmo, que tem empenhado grandes esforços para que seja celebrizado como 1 Podemos agregar aqui a instrumentalização do Ministério da Educação e Cultura (MEC) por um certo “olavismo cultural” que sinaliza para uma mistura entre esoterismo, filosofia de qualidade bastante duvidosa e extrema direita, bem como os ataques sucessivos e sistemáticos ao que o atual governo entende como “marxismo cultural” e aos estudos de gênero e de sexualidade, especialmente neste caso a partir de uma certa ideologia de Gênesis que busca incessantemente acachapar tais estudos acusando-os falaciosa e desonestamente de propagadores da “ideologia de gênero”. Sobre as re(l)ações entre as ideologias de gênero e de gênesis, ler: MARANHÃO Fº, 2018 a e b, MARANHÃO Fº e FRANCO, 2019. Eduardo Meinberg de Albuquerque Maranhão Fº.
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anticientífico, propagador de fake news, negligente, irresponsável e negacionista, dentre outros epítetos que as pessoas que lêem este texto podem completar. Neste texto, procurarei trazer algumas provoca-ações a respeito. Este texto, dedicado a Paulo Freire em seu centenário, procura dialogar com referências bibliográficas e declarações de Jair Bolsonaro e integrantes do governo na mídia, e a partir disto, busca contemplar dois elementos relacionados ao “desgoverno” de Jair Bolsonaro: a falta de aportes e investimentos na área de Educação e a sua falta de respeito e polidez em discursos e entrevistas. Como contraponto a um governo especialista em fake news, “terrivelmente evangélico” e mal educado(r), o legado de Paulo Freire, patrono da Educação no Brasil, pode nos inspirar a pensar em formas de condução prática de um Ensino Religioso amorosamente inclusivo e emancipatório, e relacionado à proposta de uma Epistemologia do A(fé)to ou Epistemologia do Amar e Mudar as Coisas. Nesta proposta, o Ensino Religioso, bem como a(s) Ciência(s) da(s) Religião(ões), devem se posicionar politicamente e publicamente em prol de uma Educação libertadora, crítica, inclusiva e não alienada em relação às mazelas do país. E é nesse contexto que talvez possamos dizer que mudar as coisas pode ter como sinônimo o fim do atual governo federal, ou parafraseando trecho da canção Alucinação de Belchior, para quem o que mais interessa é amar e mudar as coisas, que amar e impeachment é o que nos interessa mais (ou a derrota da chapa de Bolsonaro nas próximas eleições). Este slogan, aliás, é o atual lema de duas instituições, a FOGO Editorial e a Associação Internacional de Estudos de Afetos e Religiões (AMAR), que publicam a coletânea Desafios do Ensino Religioso, em que este texto está inserido, e é também o mote do terceiro Simpósio Internacional que ambas organizam, o Amar e Mudar as Coisas: Amar e Impeachment Já! 2 Este texto deixará algumas perguntas ou provoca-ações: Para algumas pessoas que atuam no Ensino Religioso – e também na(s) Ciência(s) da(s) Religião(ões) – seria um desafio se posicionar politicamente? Ou o desafio é justamente não se posicionar, dado o contexto sócio político em que vivemos, de extremo descaso governamental com a população? Quais os “limites” de atu-ação de quem trabalha neste componente curricular e nesta área? Entre suas finalidades e objetivos, encontram-se “tomar partido” e estimular uma educação relacionada à cidadania e emancipação política (como a própria BNCC já sinaliza), ou esta área e esta disciplina devem se manter (supostamente) neutras politicamente, à la Escola Sem Partido? O quanto um “componente curricular sem partido” seria realmente neutro (e sabemos o quanto a narrativa de neutralidade é recorrente nos lábios de pessoas despolitizadas e facilmente manipuladas), e como isso afeta a própria área dos estudos de religião / Ciência(s) 2
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da(s) Religião(ões), e qual o (des) serviço que tal perspectiva presta à formação cidadã? Quais as perspectivas do Ensino Religioso durante e após um governo federal autoritário e que se declara “terrivelmente evangélico”? Pode o Ensino Religioso apresentar (re)ações a tal contexto, e em caso afirmativo, de que maneiras? Fica o alerta: este texto formula estas provoca-ações mas já tem um “partido” escolhido, o da Educa-ação sensível às diversidades e direcionada à mudança amorosa do estado das coisas.
A inadequação do termo Ensino Religioso e a redundância do termo Ensino Religioso laico Gostaria de sublinhar inicialmente o que considero uma espécie de “problema de origem”, que está justamente na inadequação do termo “Ensino Religioso”. Nem precisamos comentar o quanto esta expressão pode suscitar a impressão de ser sinônimo de ensinar as pessoas a adotarem uma determinada crença religiosa – justamente o que não deve fazer parte dos objetivos desta disciplina. Muito melhor – e não estou falando nenhuma novidade – se tratássemos de um componente curricular denominado, por exemplo, História e Cultura da Diversidade Religiosa e Espiritual ou História e Cultura das Religiões e Espiritualidades. Ou quem sabe o próprio termo Ciência(s) da(s) Religião(ões) pudesse ser utilizado no lugar de Ensino Religioso3. Há termo mais infeliz e perpetrador de (con)fusões que “Ensino Religioso”? Enquanto tal expressão for utilizada, suscitará enganos e esforços em se provar do que se trata ou não. Mas enfim, este é o nome que tem sido utilizado para algo que não pode e nem deve ter a ver com “ministrar aulas de religião”4. Outra expressão adjacente que deveria ser considerada redundante pleonasmo é “Ensino Religioso laico”, visto que os documentos oficiais, como a BNCC, por exemplo, já demonstram que este componente curricular deve sempre se balizar pelos princípios da laicidade. Em um país que não é “terrivelmente cristão” (como prega o atual presidente da República), mas, sim, laico de acordo com a Constituição Federativa, tal 3 Importantes pesquisadores como Fabio Stern e Matheus Oliva da Costa, p. ex., têm pensado em como é redundante dizer que o Ensino Religioso “deve se basear na(s) Ciência(s) da(s) Religião(ões)”, sendo que esta disciplina, em si, poderia ser considerada como Ciência(s) da(s) Religião(ões). 4 Importa observar também que este é o único componente curricular assegurado na nossa Constituição, o que equivale dizer que para retificar o nome da disciplina seria necessário fazer uma emenda constitucional para alteração da nomenclatura na Constituição. Eduardo Meinberg de Albuquerque Maranhão Fº.
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disciplina deve estimular, da forma a mais horizontalizada possível, o devido respeito a todas as formas de crença e descrença: pessoas religiosas, místicas, esotéricas, espiritualistas, não religiosas, antirreligiosas, adeptas de espiritualidades laicas, agnósticas, ateias, dentre outras, devem ser igualmente respeitadas socialmente. Isso deve ser largamente estimulado pelo Ensino Religioso em sentido estrito, e pela escola como um todo em sentido amplo. Quando discursos governamentais (re)forçam que o país é “terrivelmente cristão”, acionam e potencializam um determinado imaginário popular de que o Ensino Religioso também o é , algo que, lamentavelmente, (re)produz-se na prática por parte das pessoas que lecionam esta disciplina nas escolas públicas brasileiras . Ao invés de “terrivelmente cristão”, o Ensino Religioso precisa ser amorosamente laico e diverso.
O Ensino Religioso e a controversa BNCC É necessário realçar que, segundo a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) que descreve a área de Ensino Religioso (BRASIL, 2017, pp. 435-458)5, há seis competências específicas para esta disciplina6: 1. Conhecer os aspectos estruturantes das diferentes tradições/movimentos religiosos e filosofias de vida, a partir de pressupostos científicos, filosóficos, estéticos e éticos. 2. Compreender, valorizar e respeitar as manifestações religiosas e filosofias de vida, suas experiências e saberes, em diferentes tempos, espaços e territórios. 3. Reconhecer e cuidar de si, do outro, da coletividade e da natureza, enquanto expressão de valor da vida. 4. Conviver com a diversidade de crenças, pensamentos, convicções, modos de ser e viver. 5 Ensino Religioso é definido no artigo 210, parágrafo 1º da Constituição Federativa do Brasil (BRASIL, 2019. p. 168); na Lei de Diretrizes e Bases da Educação, em seu artigo 33, parágrafos 1º e 2º (BRASIL , 2018, p. 23 e 24), e ainda; a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) que descreve a área de Ensino Religioso (BRASIL, 2017, 435-458). 6 É preciso observar que há todo um diálogo teórico ao redor da classificação do Ensino Religioso na BNCC com área de conhecimento, e não só como componente curricular. Todavia, neste artigo preferi mencionar apenas alguns dos aspectos referentes ao ER enquanto disciplina. Sobre algumas das relações entre Ensino Religioso, BNCC e componentes/questões curriculares, sugiro: SANTOS, 2020.
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5. Analisar as relações entre as tradições religiosas e os campos da cultura, da política, da economia, da saúde, da ciência, da tecnologia e do meio ambiente. 6. Debater, problematizar e posicionar-se frente aos discursos e práticas de intolerância, discriminação e violência de cunho religioso, de modo a assegurar os direitos humanos no constante exercício da cidadania e da cultura de paz. (BRASIL, 2017, p. 433).
Segundo esta normativa, entre as funções do Ensino Religioso se encontra “posicionar-se frente aos discursos e práticas de intolerância, discriminação e violência de cunho religioso”. Isso significa, devemos acrescentar, que os professores de Ensino Religioso precisam se posicionar perante quaisquer práticas de intolerância, discriminação e violência, inclusive perpetradas por mecanismos governamentais. Importante notar que a própria BNCC não é neutra: ela mesma demonstra, ao menos em parte, a necessidade de se posicionar frente às situações de afronta aos Direitos Humanos e à cidadania. Esta parcialidade deve ser destacada, já que a BNCC sofre uma série de críticas em seu entorno: como a de esvaziar e precarizar o Ensino Médio; a de abandonar a estrutura do ensino nas disciplinas (conceito considerado fundamental por especialistas), o que não contemplaria os trajetos formativos, que passam a ser escolhidos pelas pessoas discentes; a de refletir os interesses mercadológicos de setores privados e grupos privatizantes; a de ameaçar a liberdade e autonomia de docentes; e a de ser conservadora em relação a diversos aspectos, como nota Maria do Carmo Martins: um olhar atento verificará que a Base é muito tímida em relação a direitos sociais, a ações de inclusão e a questões de gênero, posição que está em consonância, por exemplo, com a postura daqueles que defendem a Escola sem Partido. É interessante que a sociedade tenha conhecimento disso, até para que compreenda como esses movimentos influenciam na formulação de políticas públicas, principalmente as vinculadas à educação (MARTINS, 2017 apud ALVES FILHO, 2017, s/p).
A própria implementação da BNCC – que assumiria o papel de referência para a construção dos currículos, tendo acolhido o Ensino Religioso como componente curricular –, tida como consensual para algumas pessoas, tem recebido críticas que a associam a interesses privados e à Escola Sem Partido. Sobre os principais apoios à constituição da BNCC, Priscilla Pantaneira nota que Os grupos de apoio mais efusivo, que ganhou destaque no cenário midiático é aquele que nós no debate sobre educação pública, chamamos de empresários reformadores. Setores que representam os interesses privatistas do campo educacional, como o Todos pela Educação (TPE) (PANTANEIRA, 2019, s/p). Eduardo Meinberg de Albuquerque Maranhão Fº.
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Para a mesma, Uma das coisas nítidas no desenvolvimento da BNCC foi sempre dar preferência para as fundações privadas, nunca às universidades, pesquisadores e entidades da área da educação. Para esses, a BNCC não foi, nem de perto, consenso. A única concordância geral entre tais grupos no que concerne à Base foi que só foram ouvidas as fundações privadas (PANTANEIRA, 2019, s/p).
De acordo com Fernanda Moura, Existe uma relação muito estreita do Escola Sem Partido com a última versão da BNCC de ensino fundamental. Um grupo chamado professores contra a ideologia de gênero – que faz parte das redes do Escola Sem Partido e cujo líder é um dos intelectuais orgânicos do ESP – produziu uma BNCC alternativa e fez pressão sobre o ministro da Educação com o apoio da bancada evangélica e conseguiu fazer com que a terceira e, supostamente, última versão da BNCC fosse tão modificada que não pode nem ser considerada ainda a terceira versão, sendo na verdade uma quarta (MOURA, 2018 apud SANTOS, 2018, s/p).
Tais considerações servem para percebermos o quanto o movimento, programa e Projeto de Lei Escola Sem Partido (PL 7180/14) tem interferido, por vezes de modo sub-reptício, nas políticas educacionais brasileiras, com base no que Freire chamaria de “educação bancária”. Realizadas estas ressalvas em relação ao BNCC, é bom notar que, em relação ao Ensino Religioso, a Base realça que Ao longo da história da educação brasileira, o Ensino Religioso assumiu diferentes perspectivas teórico metodológicas, geralmente de viés confessional ou interconfessional. A partir da década de 1980, as transformações socioculturais que provocaram mudanças paradigmáticas no campo educacional também impactaram no Ensino Religioso (BRASIL, 2017, p. 435).
O texto demonstra que o Ensino Religioso foi se estruturando a partir da confessionalidade e interconfessionalidade, mas com o passar dos anos, recebendo em seu bojo alterações paradigmáticas. A BNCC exalta, posteriormente, que: A Constituição Federal de 1988 (artigo 210) e a LDB nº 9.394/1996 (artigo 33, alterado pela Lei nº 9.475/1997) estabeleceram os princípios e os fundamentos que devem alicerçar epistemologias e pedagogias do Ensino Religioso, cuja função educacional, enquanto parte integrante da formação básica do cidadão, é assegurar o respeito à diversidade cultural religiosa, sem proselitismos (BRASIL, 2017, p. 435).
O documento ressalta o caráter não proselitista do Ensino Religioso, o que garantiria mais que a simples tolerância, o respeito à liberdade, à diversidade e à convivência entre pessoas de diferentes crenças (e descrenças) religiosas, 146
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espiritualistas, místicas e esotéricas em sala de aula e fora dela. Além disso, a não confessionalidade é de suma importância para se procurar assegurar um Ensino Religioso pautado na laicidade.
Ensino Religioso e laicidade, capelania escolar e confessionalidade A laicidade do Estado brasileiro, uma das suas mais substanciais conquistas democráticas de direito, é definida pelo Artigo 19 da Constituição Federal de 1988, que afirma: É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: I – estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público (BRASIL, 1988, Art. 19).
O Estado laico assegura a liberdade religiosa a todas as pessoas e instituições, ao mesmo tempo em que não deve professar nenhum credo específico. No Estado laico, não pode haver nenhuma forma de mistura entre doutrinação religiosa e educação pública, e é aí que se encontra um dos desafios e possíveis problemas do Ensino Religioso, “visto que envolve o necessário distanciamento do Estado laico ante o particularismo próprio dos credos religiosos” (CURY, 2004, p. 183). Em outras palavras, quem exerce a docência deste componente curricular precisa ser (cons)ciente de que não deve induzir as pessoas discentes a aderirem às suas crenças. Pelo contrário, deve estimular o conhecimento amplo sobre as diversas crenças e descrenças do modo mais igualitário possível, possibilitando democraticamente que cada discente tenha suas próprias convicções. Entretanto, apesar da urgência de se assegurar que o Estado seja laico e o Ensino Religioso não proselitista, em 2017 houve um entendimento do Superior Tribunal Federal (STF) da possível compatibilidade entre o Estado laico e a ministração de aulas de Ensino Religioso confessional, ou seja, permitiu-se a promoção de crenças específicas nesta disciplina. Tal decisão (por 6 votos a 5), contrariou a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) da Procuradoria Geral da República (PGR), que regrava que o Ensino Religioso fosse sempre facultativo e sem predomínio de nenhuma religião, como estabelece a Constituição. Para a ADI, estava proibida a admissão de docentes que atuassem como representantes de confissões religiosas, prevalecendo a “exposição das doutrinas, das práticas, da história e de dimensões sociais das diferentes religiões – bem como de posições Eduardo Meinberg de Albuquerque Maranhão Fº.
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não-religiosas, como o ateísmo e o agnosticismo, sem qualquer tomada de partido por parte dos educadores”, o que, neste caso, é o correto a se fazer: ainda que a pessoa docente tenha suas próprias convicções e crenças (e eventualmente possa até comentar sobre as mesmas), nunca deve exaltá-las ou influenciar as pessoas discentes a segui-las. Vale realçar que a situação do Ensino Religioso no Brasil é deveras preocupante – aliás, da Educação brasileira como um todo, inserida em um contexto marcado por fundamentalismos não só religiosos como de gênero e sexual, dentre outros. Há uma onda conservadora em ascensão que é alarmante, impactando negativamente na construção de uma educação preocupada com a cidadania, a sensibilidade, a subjetividade, o afeto e o respeito às diferenças. Um possível sinal deste contexto reacionário que, mais do que se avizinhar, tem se presentificado com incômoda intensidade, está nos serviços de capelania escolar. Alguns Projetos de Lei (PLs) municipais têm buscado a aprovação de serviços de Capelania Escolar. Tais serviços, que oferecem a realização de celebrações religiosas e assistência espiritual em âmbito escolar, acabam por se contrapor aos princípios de laicidade estatal e contrariam as diretrizes da BNCC para o Ensino Religioso, bem como as normativas do Conselho Nacional de Educação (CNEE) para a formação de docentes em Ciência(s) da(s) Religião(ões). Tais atividades podem potencializar, de alguma forma, a propaganda e o proselitismo religioso, bem como a intolerância religiosa a pessoas não religiosas, ateias e agnósticas, a pessoas pertencentes a segmentos religiosos ou espirituais minoritários, e a pessoas costumeiramente vilipendiadas por setores religiosos intolerantes, como as pessoas transgêneras, as pessoas não heterossexuais e mulheres que não aceitam a submissão ao “machismo nosso de cada dia”. Pode, assim, vir a propiciar a continuidade e o avanço da generofobia religiosa, da transfobia religiosa, do masculinismo religioso, da homofobia religiosa, da violência a fiéis de matrizes afro-indígenas, e daí por diante. Ficam as indagações: Tal atividade deve mesmo ser propiciada por mecanismos governamentais, ou deveriam estar restritas aos espaços naturalmente de direito delas, ou seja, os ambientes religiosos específicos? Realmente a preocupação é com a saúde e bem estar espirituais das pessoas que voluntariamente procurarem tais serviços, ou o intento é bem outro... o de propagandear determinadas confissões de fé, doutrinas e prerrogativas que podem, de alguma forma, ser opressivas e nada emancipatórias? Seria esta uma forma de fazer marketing religioso7, já que por meio do Ensino Religioso tal coisa é atualmente interditada (pelo menos 7 Acerca do tema marketing religioso, tomo a liberdade de sugerir meu livro A grande onda vai te pegar: Marketing, espetáculo e ciberespaço na Bola de Neve Church, que sofreu tentativas de censura judicial quando lançado, em 2013, por parte da referida instituição religiosa.
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em teoria)? É possível que tal atividade se vincule, de alguma forma, a um Brasil que se pretenda “terrivelmente cristão” e, de modo contraditório, supostamente vítima de “cristofobia”?
A educação religiosa em um Brasil “terrivelmente cristão” supostamente alvo de “cristofobia” Em outubro de 2020 foi noticiado amplamente que a Bolívia apresentou na Organização dos Estados Americanos (OEA) uma proposta que daria autorização a pais e mães a outorgarem educação religiosa às suas crianças. A proposta foi apoiada oficialmente por Brasil, Estados Unidos e Chile, países que vivem atualmente sob a égide do conservadorismo e reacionarismo político imbricado com o fundamentalismo religioso de vertente cristã (recordando que há segmentos cristãos progressistas discordantes de tais governos). Segundo o texto discutido em 20 de outubro de 2020 na Assembleia Geral da OEA, propõe-se “o direito ou a liberdade dos pais de que seus filhos recebam educação moral e religiosa de acordo com suas crenças”. Tal normativa permitiria que pais e mães adotem o ensino domiciliar (homeschooling) e impeçam o aprendizado de conteúdos diversos, como, por exemplo, os relacionados à teoria da evolução. Além disso, possibilitaria que pais e mães interfiram na contratação de docentes nas escolas, com base em convicções religiosas contrárias ao que se imaginaria que estas/es professoras/es pudessem ministrar de conteúdo. Algumas delegações se opuseram à proposta, como as do Mexico, Peru, Costa Rica, Argentina e Canadá, o que fez com que a linguagem do texto fosse mais amenizada e destacasse a necessidade do respeito ao interesse individual da criança em relação à educação religiosa. No Brasil, uma das principais títeres do apoio à proposta boliviana foi Damares Alves, pastora e atual ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos, que tem estimulado a educação domiciliar desde o início de sua atuação nesse cargo e refere a si mesma como “uma ministra terrivelmente cristã” (MARANHÃO Fº, FRANCO, 2019). É bom realçar que as resoluções da OEA não possuem efeito pragmático , mas de todo modo o apoio brasileiro demonstra como a política externa se dobra favoravelmente ao ensino domiciliar e, de certo modo, à propaganda religiosa embutida na educação “cristã conservadora”. Os Direitos Humanos e a liberdade religiosa, no atual governo, servem como “maquiagem” para o proselitismo neocolonialista de cunho ultraconservador e retrógrado, em que as famílias possam impor sua identidade religiosa de modo Eduardo Meinberg de Albuquerque Maranhão Fº.
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a obstacularizar as crianças e adolescentes a conviverem com outras crianças e adolescentes com perspectivas socioculturais diversas e diferentes, algo pedagogicamente fundamental para o aprendizado e o exercício da cidadania, da liberdade, da democracia e do respeito às demais pessoas. O apoio brasileiro à proposta encaminhada à OEA se relaciona ainda com uma falácia propagada pelo governo. Em discurso proferido pelo presidente da República Jair Messias Bolsonaro em setembro de 2020 na Assembleia Geral da ONU, o mesmo apelou para a “liberdade religiosa” associada ao “combate à cristofobia”, sinalizando que o Brasil é um “país cristão e conservador, que tem na família sua base” , à reboque de diversas declarações anteriores que afrontam o sentido de laicidade do Estado. Tal menção foi arduamente criticada por setores da sociedade que percebem nela mais uma fake news perpetrada pelo governante (MARANHÃO Fº, COELHO, DIAS, 2018). Mas é importante nuançar que o termo “cristofobia” é um sofisma e tanto. Como mencionei há um tempo atrás, o termo “cristofobia” foi utilizado por evangélicos e católicos de maneira semelhante à expressão “ideologia de gênero” (...). Tem o sentido de apresentar um mundo dicotômico fundado no pretenso maniqueísmo entre o que é supostamente cristão e salvo e o que não é. O uso deste vocábulo está relacionado diretamente a um “combo teológico” que tem como bases as Teologias do Domínio, da Batalha Espiritual e da Prosperidade, caras especialmente no neopentecostalismo, mas também presentes no pentecostalismo e em outras vertentes do cristianismo. A Teologia do Domínio, exemplarmente, objetiva a conquista de espaços na mídia, na cultura e na política, inclusive através da eleição de parlamentares, como é o caso da bancada evangélica. Mas o que seria compreendido como “cristofobia”? Como apresentado nas concepções de líderes religiosos como Marcelo Crivella, Silas Malafaia e Marco Feliciano, a cristofobia é relacionada a uma suposta “mordaça gay”, que impediria que se dissesse que pessoas homossexuais são influenciadas pelo diabo ou o próprio diabo. Uma possível explicação seria a de que cristofobia é “quando a gente fica amordaçado e não pode dizer que macumbeiro e gay é aberração, que vai pro inferno, que é doença ficar se beijando na rua como hétero faz e que querem adotar nossas crianças. A verdade é que a Bíblia condena o homossexualismo, a bruxaria e a macumba, e diz que vão todos pro lago do enxofre onde tem dor e ranger de dentes”. Para pessoas que compreendem cristofobia desta forma, estas sofreriam intolerância por não poderem dizer, por exemplo, que outras pessoas, por serem homossexuais ou de outras religiões, estão endemoninhadas, traumatizadas, doentes, e serão queimadas no fogo do inferno (MARANHÃO Fº, 2016, p. 543).
Assim, a utilização de tal termo no Brasil contemporâneo tem o fito de aniquilar quaisquer críticas sociais (justíssimas, aliás) que se fazem à intolerante e violenta demonização de pessoas que não se encaixam nos padrões de alguns segmentos religiosos reacionários: mulheres insubmissas aos homens, pessoas transgêneras, pessoas não heterossexuais / heteroafetivas, pessoas de outras 150
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vertentes religiosas, e por aí vai. Em outras palavras, este sofisma representa mais uma entre um batalhão de fake news promovidas por Bolsonaro e seus asseclas, desde a campanha eleitoral que o içou ao maior cargo governamental da nação, sobretudo aquelas que o associam à defesa da “família tradicional brasileira” e ao combate ao “kit gay” e à “ideologia de gênero”. Se, por um lado as já comprovadas fake news encontraram lugar no pensamento hegemônico da sociedade brasileira e foram acolhidas durante a campanha de Jair Bolsonaro, a desconstrução e a evidenciação de seu caráter falacioso não foram suficientes para provocar oscilações na receptividade de sua candidatura frente à opinião pública, como demonstraram os resultados das urnas” (MARANHÃO Fº, COELHO, DIAS, 2018, p. 85).
Nem precisaríamos comentar o quanto é terrivelmente perigoso que o bolsonarismo pregue a instituição de um Estado religioso cristão em que imperem os setores regressistas católicos e evangélicos. Esta hibridização entre dimensão política e dimensão religiosa demonstra fronteiras tão borradas e embaralhadas entre uma coisa e a outra que já não temos mais certeza se estamos vivendo em um país terrivelmente evangélico ou evangelicamente terrível / terrivelmente cristão ou cristianamente terrível, com tudo de terrível que esta palavra pode suscitar, incluindo a aniquilação de tudo que é divergente ao status quo reificado pelo atual governo. E, certamente, um dos elementos que dá musculatura e tessitura ao Brasil “terrivelmente cristão” é um governo que se esmera em deixar um legado de má Educação concomitante a uma má educação. Declarando recentemente (julho de 2021) que “cagava” para a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) relacionada á pandemia de COVID-19, qual a mensagem que Bolsonaro deixa? A de parecer não se importar com os rumos da Justiça brasileira, nem tampouco com os pressupostos básicos de cortesia, elegância e diplomacia que deveriam revestir o cargo que ocupa. Mas é justamente como contraposto a um Brasil “terrivelmente cristão” e “terrivelmente ignorante e mau educado” que o Ensino Religioso pode se apresentar como uma alternativa amorosamente diversa e laica.
A falta de Educação e educação no governo Bolsonaro8 Para isso, não é possível que o Ensino Religioso esteja alienado dos acontecimentos recentes envolvendo a Educação brasileira. O governo Bolsonaro falhou 8 Escrevi recentemente sobre o Brasil “terrivelmente cristão” governado pelo “messias da má Educação / má educação”. O texto será publicado no segundo semestre de 2021. Eduardo Meinberg de Albuquerque Maranhão Fº.
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enormemente na garantia de educação para mais de 5 milhões de crianças e adolescentes no país, e de acordo com o Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF), esta é a pior situação do país em duas décadas. Referindo-se às medidas sanitárias indicadas pela Organização Mundial de Saúde (OMS), como distanciamento social e uso de máscaras, a diretora-adjunta da ONG Human Rights Watch (HRW) no Brasil, Anna Livia Arida, comentou que “se a pandemia tivesse sido mais bem controlada desde o começo, talvez as escolas pudessem ter ficado fechadas por menos tempo” (TOUEG, 2021, s/p). Além de uma resposta negligente, irresponsável e incompetente à pandemia, os cortes no orçamento da pasta foram responsáveis por deixar milhões de crianças e jovens fora do ambiente escola: o ano de 2020 foi encerrado como o ano com o menor gasto do MEC em Educação em toda a década. Além disso, na agenda do MEC se destacaram a expansão da educação domiciliar (MARANHÃO Fº, FRANCO, 2019), de escolas cívico-militares, e os pesados investimentos contra a autonomia das universidades federais na escolha das reitorias. A falta de Educação do governo se associa com a falta de educação do presidente, e é compartilhada por seus fãs e também por seus aliados políticos; e imbricam-se falta de educação e de Educação. Como exemplo, vejamos exemplos da falta de educação direcionada ao patrono da Educação brasileira, Paulo Freire. Durante sua gestão, o (mau educado) ex-Ministro da Educação Abraham Weintraub seguiu sua pauta ideológica demonizando as pessoas que são conhecidas por seus bons serviços à Educação do país. Acusou Paulo Freire de “vodu” e “fetiche da esquerda”, e também de “ser muito feio” e “feio de doer”. Em entrevista dada a Eduardo Bolsonaro, ambos comentam que “Paulo Freire é tão ruim, tão ruim, tão ruim que era bom como a Dilma. É feio, é fraco, não tem resultado positivo e o pessoal quer defender. É bater em morto”. Além de todos estes epítetos desrespeitosos, o próprio presidente interpelou Freire de “energúmeno”. Bolsonaro foi crítico do método de alfabetização desenvolvido pelo mesmo, posicionou-se contra sua influência pedagógica nas escolas públicas brasileiras, e em 2019 disse que mudaria o patrono da Educação Brasileira, título conferido a Freire em 2012, após a aprovação de um Projeto de Lei. Entretanto, uma possível alteração precisaria ser referendada pelo Congresso Nacional. A deputada federal catarinense Caroline de Toni (PSL) protocolou em 29 de abril de 2019 um PL que retiraria de Freire o título. A advogada e parlamentar justificou no projeto que o educador “preocupou-se tão somente em discutir formação política e relegou a segundo plano os verdadeiros desafios da educação”. Certamente, para Freire, a educação não se dissocia de sua dimensão cultural e política, e a justificativa da deputada demonstra a valorização que alguns segmentos da sociedade dão a uma educação que “deposite conteúdos” na mente de discentes ao invés de ensinar-lhes a aprender, a questionarem e se 152
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posicionarem criticamente no mundo, encontrando ressonância no movimento ideológico denominado Escola Sem Partido. É possível imaginar que o governo federal vá valorizar uma educação voltada às diversidades e que ensine as pessoas discentes a refletirem e questionarem acerca de seus contextos, quando um dos alvos ideológicos do governo foi justamente aquele que é considerado o patrono da Educação Brasileira por ter estimulado uma Educação reflexiva, crítica e emancipatória?
Da má (E/e)ducação de Bolsonaro à boa Educação de Paulo Freire Sensível educador e professor, Paulo Freire (1921-1997) atuou de modo apaixonado e apaixonante no processo de emancipação crítica de docentes brasileires e estrangeires a partir de um “método ativo, dialogal, crítico, criticizador e participante” (FREIRE, 1967, p. 107). Para Freire, a educação se situava na encruzilhada entre domesticar, instigar a obedecer, e emancipar, libertar criticamente o pensamento, preparando-o para a ação igualmente libertadora. Freire nos apresenta duas categorias importantes, a saber a educação bancária (aquela de caráter domesticador) e a educação libertadora, conectada à conscientização9, ação ativa da tomada de consciência, em que se identifica e analisa a realidade sociocultural e a transforma. Para o patrono da Educação Brasileira, O antagonismo entre as duas concepções, uma, a “bancária”, que serve à dominação; outra, a problematizadora, que serve à libertação, toma corpo exatamente aí. Enquanto a primeira, necessariamente, mantém a contradição educador-educando, a segunda realiza a superação (FREIRE, 2005, p. 78).
É através da aquisição de uma consciência emancipatória, democrática e crítica – tudo o que o atual governo federal e a maioria dos governos não querem e nem estimulam em relação à Educação – que as pessoas cidadãs podem atuar subjetivamente e coletivamente em prol de um cosmos sociocultural e econômico includentes a todes. Na mecanicista educação bancária, veiculada pelo movimento Escola Sem Partido e governo Bolsonaro, por exemplo, há a pessoa que educa e disciplina; e as que, escutando docilmente e submissamente, vão sendo disciplinadas 9 Acerca do processo de conscientização expresso na pedagogia de Paulo Freire como contributo ao Ensino Religioso, leia: BROTTO, STEPHANINI, 2020. Eduardo Meinberg de Albuquerque Maranhão Fº.
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(FREIRE, 2005, p. 68). Acontece de modo semelhante a uma agência bancária: o conhecimento é “depositado” nas mentes das pessoas educandas de modo a instaurar a obediência ao que se é ensinado. Entende-se que as pessoas discentes são tábulas rasas prontas a se tornarem receptáculos de conhecimentos, sem agência própria para desenvolver conhecimentos a partir do aprofundamento dos saberes, e não tendo a capacidade de avaliar e contestar criticamente o que docentes ensinam em classe. O que o governo atual e o Escola Sem Partido procuram promover é um modelo de “educação como prática da dominação”, em que se mantem “a ingenuidade dos educandos, o que pretende, em seu marco ideológico (nem sempre percebido por muitos dos que a realizam), é indoutriná-los no sentido de sua acomodação ao mundo da opressão” (FREIRE, 2005, p. 76), e certamente, o Ensino Religioso deve se afastar completamente deste tipo de coisa. As pessoas discentes são instadas a decorar assuntos, e não a pensarem criticamente sobre os mesmos, problematizando e questionando a autoridade de tais assuntos sobre a pertinência/fundamentação ou não de tais conteúdos. Nesta modalidade educacional opressiva, hierarquizante, autoritária e disciplinadora, não há a conscientização e emancipação crítica. Não se ensina estas pessoas a serem agentes de sua própria história pedagógica, não se ensina a aprender e a multiplicar conhecimentos. Já a educação libertadora, esta nunca poderá ser “o ato de depositar, ou de narrar, ou de transferir, ou de transmitir ‘conhecimentos’ e valores aos educandos, meros pacientes, à maneira da educação ‘bancária’, mas um ato cognoscente” (FREIRE, 2005, p. 78). Ao contrário, como observam Julio Cezar de Paula Brotto e Valdir Stephanini, O papel do/a docente na educação libertadora é criar, juntamente com os /as discentes, as condições sob as quais o conhecimento doxa possa ser substituído pelo conhecimento logos. Nessa perspectiva, o processo educacional torna-se a revelação da consciência crítica, pois a aprendizagem consiste em problematizar realidade. O/a docente já não é mais o detentor do conhecimento, pois o conhecimento é um processo e o processo educacional se torna um processo de transformação, em vez de transferência de conhecimento. A educação libertadora rompe com o padrão vertical da educação bancária e a substitui por uma relação horizontal entre discente e docente, caracterizada pelo diálogo (BROTTO, STEPHANINI, 2020, pp. 112-113).
Além de perceber que a educação bancária nunca será uma via de acesso à emancipação da consciência, é igualmente necessário que desde a formação de docentes para o Ensino Religioso até a formação de discentes, se entenda que não há educação neutra. Neste sentido, Brotto e Stephanini expressam que: 154
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Nenhuma forma de educar pode ser considerada neutra, como tampouco nenhuma instituição. Escolhas ideológicas institucionais são determinadas pela direção e são feitas em contextos específicos e quase sempre conflituosos, podendo ser mudadas em função de transformações conjunturais e, mais ainda, estruturais. Não há áreas cinzentas. Ou se educa para a libertação, autonomia do sujeito ou para a negação da libertação. Contudo, a escolha que devem fazer escolas públicas de ensino fundamental e docentes da disciplina Ensino Religioso é optarem por uma educação libertadora (BROTTO, STEPHANINI, 2020, pp. 112-113).
Freire instiga a pensar uma educação que defenda os princípios de justiça, ética e solidariedade, e lembra que nenhuma educação é neutra ideologicamente ou politicamente. Fica aqui a pergunta: É possível a quem atua na Educação, incluindo docentes do Ensino Religioso, que não se posicionem politicamente a partir do contexto político contemporâneos? Creio que não. O Ensino Religioso que vise adotar uma educação “neutra”, domesticadora, burocrática e bancária, ao invés de uma educação libertadora e que tome partido das sensibilidades e diversidades, não é e nunca será um bom Ensino Religioso - será mera e nada esmerada (re)produção de um ensino catequético (para não dizer caquético) que se afasta da real finalidade desta disciplina, a de atuar em prol de uma educa-ação transformadora, emancipatória, cidadã e acolhedora.
Um Ensino Religioso que tome partido e seja alternativa amorosamente diversa à uma educação “terrivelmente cristã” Em relação ao Ensino Religioso, é necessário lembrarmos algumas perspectivas que, para algumas pessoas que ministram esta disciplina, ainda podem se constituir desafiadoras: Considerando os saberes e as dimensões culturais e linguisticas das pessoas estudantes, bem como suas possíveis formações religiosas, o planejamento das aulas de Ensino Religioso devem levar em conta tanto os devidos Parâmetros Curriculares como as perspectivas educacionais criticas, emancipatórias e problematizadoras (como a de Freire). Este componente curricular não deve ser confundido de nenhuma forma com “aulas de religião” ou pretender fazer propaganda religiosa ou proselitismo; constituindo-se como não confessional, o Ensino Religioso deve sempre respeitar a laicidade do Estado; e sendo laico, precisa promover o amplo entendimento da História e Cultura de diversos povos, de épocas distintas, acerca de suas múltiplas Eduardo Meinberg de Albuquerque Maranhão Fº.
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crenças religiosas, espirituais, místicas e esotéricas, também enfatizando as suas formas e manifestações de descrenças, agnosticismos e ateísmos. Respeitando esta miríade de possibilidades, precisa se esmerar no combate a todas as formas de intolerância com fundo religioso (como por exemplo a misoginia religiosa, transfobia religiosa, capacitismo religioso, xenofobia religiosa e racismo religioso), místico, esotérico, espiritualista; e de igual forma, faz-se mister ao Ensino Religioso o combate a todas as demais formas de intolerância por quaisquer outros marcadores sociais, mesmo que não haja relação direta aparente com o fenômeno religioso. O Ensino Religioso deve se posicionar a favor da Justiça Social e igualdade de direitos, respeitando as diferenças entre todas as pessoas. Ele precisa formar as pessoas para a cidadania, dentro de uma educação que promova a conscientização, emancipação e pensamento crítico, de modo sensível, inclusivo e amoroso, contemplando a busca de soluções e alternativas à desigualdade, intolerância, injustiça e violência,, atentando ao que aconteceu no decorrer da História que nos precedeu e o que tem ocorrido na História do Tempo Presente. Conhecendo nossa História, vamos identificando causas, repercussões e efeitos, procurando não permitir que episódios relacionados à injustiça e violência social se repitam (certamente se as pessoas conhecessem e respeitassem a História do Brasil não teriam votado no atual presidente da República). Neste sentido, de olho na contemporaneidade do Brasil atual, um Ensino Religioso que se preze deve se mostrar contrário a um governo federal obscurantista eivado de preconceitos e fundamentalismos e que, através do negacionismo da ciência e da educação, precipitou milhares de mortes por conta da disseminação da pandemia de COVID-19. Não há como um Ensino Religioso não ser diametralmente contrário ao genocídio que se relaciona com a irresponsabilidade, descaso e fake news como a da suposta eficácia de tratamentos precoces que a ciência já provou por A + B ser ineficientes, de que a pandemia de COVID-19 é apenas “um resfriadinho ou uma gripezinha”, etc. (exemplificando a partir de discursos governamentais de nosso atual presidente). De idêntico modo, se não existe uma educação neutra e destituída de posicionamentos ideológicos, não deve haver um Ensino Religioso que se proponha “neutro” ideologicamente, visto que neutralidade não existe. Ora, perguntar como haver neutralidade em relação à intolerância e violência religiosa não é muito diferente de questionar como exercer neutralidade diante da discriminação, do holocausto nazista, pedofilia, escravidão, genocídios e outros horrores historicamente conhecidos. Não há como não se posicionar criticamente em relação a estes e os demais assuntos que envolvem o contexto sociopolítico. É indispensável que, em tempos de movimentos doutrinários/ideológicos reacionários como o Escola Sem Partido, potentemente relacionado ao “olavismo cultural”, esta disciplina tome partido de uma educação inclusiva, sensível, 156
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crítica, libertária, afetiva e respeitosa a todas as diversidades (tudo aquilo que o governo de Bolsonaro e o movimento Escola Sem Partido não querem, em suma). E tomar partido das causas socioeducacionais demanda, antes de tudo, convicção, no sentido dado por Paulo Freire: A convicção, por exemplo, de que a superação das injustiças que demanda a transformação das estruturas iníquas implica o exercício articulado da imaginação de um mundo menos feio, menos cruel. A imaginação de um mundo com que sonhamos, de um mundo que ainda não é, de um mundo diferente do que aí está e ao qual precisamos dar forma (FREIRE, 2000, p. 16).
Como alternativa ao “Ensino Religioso isentão”, Ensino Religioso com convicção. E uma das coisas que precisamos ter convicção é que uma sociedade bem educada pode vislumbrar uma cultura de paz ao invés do discurso de ódio promovido pelo governo atual. É neste sentido que Freire já dizia que “a educação é um ato de amor, por isso, um ato de coragem. Não pode temer o debate. A análise da realidade. Não pode fugir à discussão criadora, sob pena de ser uma farsa” (FREIRE, 1967, p. 97). É por esta razão que o Ensino Religioso – e a Educação, em geral – precisam pensar sempre (cri)ativamente em uma sociedade laica, democrática e includente. E uma das múltiplas formas possíveis de pensar e agir amando e mudando as coisas é a partir do que podemos convencionar como a Epistemologia do A(fé)to.
A Epistemologia do A(fé)to como ferramenta do Ensino Religioso A educação emancipatória proposta por Freire pode nos inspirar a pensar o afeto, a sensibilidade, o amor, a criatividade, a imaginação, o senso crítico e democrático e a renovação das ideias. De alguma forma, transforma a feiúra do discurso do ódio e da má educação (tão presentes no atual governo) na formosura do discurso inclusivo, justo, diverso e acolhedor a todas as pessoas. A partir de uma reflexão teórica com diálogos empíricos em torno da natureza, limites e desafios do conhecimento relativo ao afeto e suas condições pedagógicas de promover mudanças sociais, podemos aventar uma Epistemologia do A(fé)to, apelidando-a ainda de Epistemologia do Amar e Mudar as Coisas. Pensemos aqui no afeto grafado da seguinte forma: com o termo “fé”entre o “a” e o “to”, ou seja, ao redor da palavra “fé” está a palavra “ato”, indicando a mistura de “crença” e de “ação” (fé+ato / ato+fé). Uma tempestade de termos agregaria amor, fé, ato, ato de fé, ação de crer, crença na ação, na eficiência e na eficácia da ação, Eduardo Meinberg de Albuquerque Maranhão Fº.
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dentre outras possibilidades que você que lê este texto pode estar formulando neste momento. De todo modo, a(fé)to denota afetividade e também ação; ou afetividade10 em ação, sintonizando questões cognitivas e afetivas que devem procurar tornarem-se, sobretudo, efetivas. As re(l)ações entre conhecimento e a(fé)to são indissociáveis. Não é possível separar inteligência e afeto na experiência concreta das pessoas. Então, de algum modo, é necessário pensarmos em uma inteligência afetiva e afetuosa e em uma afetividade inteligente, na imbricação entre o que é considerado pedagogicamente “cognitivo” e “afetivo”, e não como se estas coisas fossem realmente separadas (ou pelo menos não em relação ao presente texto). É pensar epistemologicamente e concretamente o afeto. Essa Epistemologia do A(fe)to se relaciona diretamente aos esforços em se estimular uma Educação crítica, democrática, emancipatória e acolhedora em relação não tão somente à diversidade religiosa como a todas as diversidades, algo que o Ensino Religioso, especialmente no contexto atual, não pode deixar de fazer. Essa Epistemologia do Amor Criativo – podemos ainda chamá-la assim – pode servir como alternativa às formas de intolerância (racismo, xenofobia, masculinismo, capacitismo, etc.) sem deixarmos de notar que muitas destas formas de aniquilação da subjetividade alheia possuem fundo religioso/espiritualista/místico/ esotérico. Nesta óptica, todas as pessoas são igualmente valiosas e valorizadas, dignas do mesmo tratamento amoroso e agregador, independentemente de seus gêneros, condições biológicas ou anatômicas, filiações religiosas, procedências nacionais ou regionais, ou quaisquer outras coisas. Em resumo, sem distinção, pois a fé no ato de amar é o que nos faz querer amar e mudar as coisas. Aliás, mudar as coisas é uma forma de amar, e para amar é preciso mudar as coisas. A Epistemologia do A(fé)to procura inspirar uma outra lógica, totalmente oposta àquela demonstrada pelo atual governo federal. Ao invés do discurso do ódio, adotamos o discurso da inclusão e respeito radical às diferenças, com igualdade de direitos a todas as pessoas. Mas para isso, é necessário que não haja alienação e “neutralidade”, devemos nos educarmos para a emancipação e postura política crítica, inclusive a governos que vilipendiem os direitos constitucionais e os Direitos Humanos. A Epistemologia do A(fé)to, do firme ato de se posicionar em prol da justiça e da igualdade, busca amar e mudar as coisas, e no atual contexto, é a Epistemologia do Amar e do Impeachment (ou de outras formas de se contrapor a um governo negacionista, anticientífico e insensível à vida, inclusive protestando e se posicionando de forma contrária nas eleições presidenciais de 2022). 10 O afeto pode ser pensado em uma multiplicidade de formas. Além da relação com a afetividade, pode-se pensar o termo afeto como afecção, impacto, e também sob a ótica de pesquisadoras como Jeanne Favret-Saada, além das re(l)ações com o termo correlato desafeto. Esmiuçarei estas questões em outra oportunidade.
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As perguntas do início são trazidas para cá para que reflitamos novamente: Para algumas pessoas que atuam no Ensino Religioso – e também na(s) chamada(s) Ciência(s) da(s) Religião(ões) – seria um desafio se posicionar politicamente? Ou o desafio é justamente não se posicionar, dado o contexto sociopolítico em que vivemos? E, por fim, não encerrando a questão, seria a Epistemologia do A(fé) to um possível desafio do Ensino Religioso em tempos de Bolsonaro, e/ou uma perspectiva a ser considerada? Agradecendo amorosamente a você que lê este texto, convido para que pensemos a respeito de todas estas questões.
Eduardo Meinberg de Albuquerque Maranhão Fº.
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Eduardo Meinberg de Albuquerque Maranhão Fº.
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RESSIGNIFICANDO A PRÁTICA DOCENTE EM TEMPOS DE PANDEMIA O uso dos jogos, brinquedos e brincadeiras nas aulas de Ensino Religioso como desafio e perspectiva
Daniel Ribeiro Ferreira Junior Mestrando em História Social (PPGH/UFAP). Especialista em Ensino Religioso (FATECH). Membro pesquisador do CEPRES/UFAP, filiado à Associação Internacional de Estudos de Afetos e Religiões (AMAR).
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Marcos Vinícius de Freitas Reis Doutor em Sociologia pela Universidade Federal de São Carlos. Mestre em Ciências Politicas pela Universidade Federal de São Carlos. Graduado em História pela Universidade Federal de Uberlândia. Professor da UFAP / Departamento de Relações Internacionais. Líder do CEPRES/UFAP, filiado à Associação Internacional de Estudos de Afetos e Religiões (AMAR).
[email protected]
Como referenciar este capítulo: FERREIRA JR., Daniel Ribeiro; REIS, Marcos Vinícius de Freitas. Ressignificando a prática docente em tempos de pandemia: O uso dos jogos, brinquedos e brincadeiras nas aulas de Ensino Religioso como desafio e perspectiva. In: MARANHÃO, Fº. Eduardo Meinberg de Albuquerque (Org.). Ensino religioso: desafios e perspectivas. Florianópolis: AMAR; FOGO, 2021, pp. 163-177.
ENSINO RELIGIOSO: DESAFIOS E PERSPECTIVAS
Introdução O cenário de pandemia causado pelo vírus do Sars-Cov-2 na virada do ano de 2019 para 2020, primeiramente no país Chinês, logo em seguida se espalhando pelo restante do mundo, trouxe ao espaço educacional um enorme desafio, sobretudo aos profissionais docentes, no que tange a perspectiva de alterações em suas práticas. No caso do Brasil, mais do que isso, expôs um enorme abismo causado pelas contradições das mais diversas formas de desigualdade, tudo isto em função da necessidade da continuidade do processo de formação a partir do modelo chamado “remoto”, ou seja, por aulas ministradas on-line, com a utilização de ferramentas de chamada de vídeo. Logo, a relação tempo x espaço x currículo precisaram, de uma hora para outra, ser repensada. Entretanto, esse repensar, por diversos momentos – até mesmo antes da pandemia – faz parte das exigências por parte das gestões escolares. Diante disso, o ressignificar, o repensar, o redefinir se tornaram discussões latentes frente à possibilidade do desaprender por parte dos discentes. É certo que em sua prática, cada docente pode e deve buscar suas próprias alternativas metodológicas para gerar um ensino muito mais rico e que possua um conteúdo mais significativo para o educando. De certo que não há fórmulas, entretanto, práticas que se revelem positivas e, por esta maneira, merecem ser mais bem analisadas, conhecidas, propagadas e congregadas aos já conhecidos métodos de se ensinar para a aprendizagem. De acordo com Yus (2002, p. 91), o experimento foi a “base da aprendizagem desde o aparecimento do primeiro ser humano na Terra”. Após a materialização do pensamento cartesiano, “tudo que é racional, científico e tecnológico” passa a ter uma supervalorização em detrimento da experiência. A partir dessa quebra e mudança de paradigma, que refletiu diretamente na escola, levou-se a um ciclo de considerações sobre os processos de aprendizagem. Nosso conceito sobre os processos de aprendizagem foi desvirtuado, primeiro pelo racionalismo e, depois, pelo behaviorismo, orientações que agora começam a ser questionadas. Ao centramos no racional, perdemos de vista o papel da nossa experiência como fonte de aprendizagem e desenvolvimento pessoal e, nesse processo, perdemos também nossa capacidade de equilibrar a centralidade do “científico” em nossas vidas (YUS, 2002, p. 92).
Quando se altera a perspectiva de ensino e se passa a centralizá-la no aluno de maneira individual, com seus dotes, interesses, capacidades, qualidades, experiências e necessidades, até mesmo no processo de aprendizagem do mesmo, Daniel Ribeiro Ferreira Junior & Marcos Vinicius de Freitas Reis
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busca-se produzir práticas de ensino capazes de promover maiores níveis de motivação, rendimento e aprendizagem em todos os aspectos. No caso específico do Ensino Religioso, este, mesmo antes da pandemia de COVID-19, sempre apresentou uma enorme lacuna didática ao deixar de explorar recursos lúdicos, como brinquedos, brincadeiras e jogos. Desta maneira, pensar em um processo de ensino agregando a ludicidade, o jogo e o imaginário poderia dar espaço para que a criatividade seja requisitada e desenvolvida. A ludicidade é um elemento pouco vivenciado e internalizado nas práticas escolares dos alunos, sobretudo a partir do Ensino Fundamental II. Logo, tais práticas surgem no contexto pandêmico como um desafio ao docente ao permitir com que este fuja da tradicional maneira de ensinar, baseando-se tão somente na transmissão de conteúdos, assim como apresentamos estas ferramentas como uma perspectiva a ser adotada pelo professor desta disciplina. Portanto, face às discussões acerca da ludicidade em sala de aula, torna-se necessário conhecer que contribuições estas alternativas pedagógicas podem agregar para o processo de ensino-aprendizagem na disciplina de Ensino Religioso, que possibilitem aulas on-lines mais atrativas que, de fato, tornem-se facilitadoras no processo de ensino-aprendizagem, muito mais agregadoras e interessantes aos discentes em detrimento do momento em que o Brasil e o mundo atravessam.
O ensino religioso e as questões legais: O processo de formação docente. Historicamente a religião se fez presente em todas as sociedades, configurando-se como um importante sistema cultural e de crenças que faz parte da existência humana e sendo objeto de estudo em diferentes períodos da história. Encontra-se presente no cotidiano de um número variado de pessoas. A religião permeia também os ambientes escolares, subjetivamente e transversalmente por meio da disciplina de Ensino Religioso. Essa disciplina é o centro de uma problemática que segue a educação brasileira desde os primeiros anos da era republicana quando se constituiu a separação entre Estado e Igreja. A carta magna de nosso país constitui a obrigatoriedade do ensino religioso para a formação básica da criança e do adolescente no Ensino Fundamental, cabendo a escola garantir matrícula facultativa para os alunos de 6º ao 9º ano. A Lei de Diretrizes de Bases da Educação nacional alerta para a construção da disciplina de Ensino Religioso: 166
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O Ensino Religioso, que é parte integrante da formação básica do cidadão, constitui disciplina dos horários normais nas escolas públicas, Educação Fundamental, assegurando o respeito à diversidade cultural e religiosa do Brasil, vedadas quaisquer formas de proselitismo (BRASIL, 1996, Art. 33).
A partir dessa perspectiva, todas as religiões podem e devem ser trabalhadas como conteúdo nas aulas de Ensino Religioso, uma vez que o sagrado faz parte da natureza cultural humana, que por sua vez faz parte do modelo de organização de diferentes sociedades. Desta maneira, a matriz curricular desta disciplina visa subsidiar os alunos por meio dos seus conteúdos, a compreensão, comparação e análise das diferentes manifestações do sagrado, com vistas à interpretação dos seus múltiplos significados. A Base Nacional Comum Curricular (BNCC) como política social e educacional foi criada para atender exatamente o que está preconizado na LDB, ou seja, é uma exigência para que, de fato, a LDB pudesse ser executada, bem como das Diretrizes Curriculares Nacionais Gerais da Educação Básica (2013) e pelo Plano Nacional de Educação – PNE (2014). Esse documento normativo visa definir o conjunto de aprendizagens essenciais que todos os alunos devem desenvolver ao longo das etapas e modalidades da Educação Básica (GONÇALVES; ALMEIDA, 2019, p. 965). Pela forma como o Ensino Religioso é apresentado na BNCC, pode-se inferir que se trata de uma disciplina fundamental no processo de desenvolvimento humano, sobretudo da formação cidadã. Os educadores por sua vez têm a missão de dialogar, acolher, corrigir e orientar a turma através de uma educação libertadora que inclua todos, tais como: educandos, pais, funcionários, das escolas. Enfim toda comunidade escolar envolvida no processo de uma formação cidadã, que respeita as diferenças, que educa para viver e conviver com o outro (HOLMES; SILVA, 2018, p. 72).
Neste sentido, cabe aos educadores o encaminhamento para uma abordagem mais discursiva, levando os discentes ao crescimento de uma criticidade, muito embora, em outros determinados momentos, outras formas de aplicação podem aparecer, mas sempre no sentido da construção ética, da alteridade, da tolerância e do respeito ao diferente. Ressalta-se aqui o pensamento de Pozzer e colaboradores (2015): [...] o Ensino Religioso não confessional possibilita o mútuo reconhecimento do diferente e suas diferenças, salvaguardando a liberdade religiosa e não religiosa na educação laica. Não se restringe ao ensino da religião ou das religiões na escola. Mas subsidia a construção de significados e fundamentos para a leitura crítica da sociedade, das relações humanas, da política e da interação dos ser humano com o meio ambiente, através do Daniel Ribeiro Ferreira Junior & Marcos Vinicius de Freitas Reis
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estudo da diversidade cultural religiosa, como um direito de cada estudante (POZZER et al., 2015, p.315).
Desta feita, a presença do ensino das religiões e religiosidades no currículo formativo dos discentes é reforçada em sua relevância na medida em que essa perspectiva supera o ensino de doutrinas e dogmas específicos, adotada no passado e que perdurou por longos anos, passando a levar um ganho não somente cultural, mas, sobretudo, humano. Embora o ensino da pluralidade religiosa seja assegurado pela Carta Magna e o Brasil seja um país laico, diversos seguimentos da sociedade não conseguem respeitar a diversidade cultural e religiosa. Logo, Esse contexto pode se estender no campo educacional, especificamente na sala de aula, tendo em vista que esse espaço funciona como centro difusor de conhecimento e das ideologias que podem influenciar a forma de pensar do educando (HERINGER; HONORATO, 2015, p. 34). Esta problemática apresentada suscita o debate acerca dos conteúdos que devem ser ministrado, uma vez que a abordagem pode ser carregada de ideologias erguidas a partir das construções pessoais do professor, podendo, assim, influenciar no processo de formação pessoal do educando, além de descumprir a legislação vigente, caracterizando-se como uma prática proselitista. De maneira a contornar o risco de confessionalidade, a BNCC apresenta uma proposta de ensino não confessional, respeitando as normatizações presentes na legislação brasileira. Para isso, é prescrito como objetivos desta área: a.
Proporcionar a aprendizagem dos conhecimentos religiosos, culturais e estéticos, a partir das manifestações religiosas percebidas na realidade dos educandos; b. Propiciar conhecimentos sobre o direito à liberdade de consciência e de crença, no constante propósito de promoção dos direitos humanos; c. Desenvolver competências e habilidades que contribuam para o diálogo entre perspectivas religiosas e seculares de vida, exercitando o respeito à liberdade de concepções e o pluralismo de ideias, de acordo com a Constituição Federal; d. Contribuir para que os educandos construam seus sentidos pessoais de vida a partir de valores, princípios éticos e da cidadania (BRASIL, 2018, p. 436).
De acordo com o documento, as competências que devem ser desenvolvidas pelos discentes são: 1. Conhecer os aspectos estruturantes das diferentes tradições/movimentos religiosos e filosofias de vida, a partir de pressupostos científicos, filosóficos, estéticos e éticos. 168
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2. Compreender, valorizar e respeitar as manifestações religiosas e filosofias de vida, suas experiências e saberes, em diferentes tempos, espaços e territórios. 3. Reconhecer e cuidar de si, do outro, da coletividade e da natureza, enquanto expressão de valor da vida. 4. Conviver com a diversidade de crenças, pensamentos, convicções, modos de ser e viver. 5. Analisar as relações entre as tradições religiosas e os campos da cultura, da política, da economia, da saúde, da ciência, da tecnologia e do meio ambiente. 6. Debater, problematizar e posicionar-se frente aos discursos e práticas de intolerância, discriminação e violência de cunho religioso, de modo a assegurar os direitos humanos no constante exercício da cidadania e da cultura de paz (BRASIL, 2018, p. 437).
Esta normativa propõe como deve ser a aplicabilidade dos conteúdos desta disciplina, e se insere no currículo o ensino das identidades e alteridades, manifestações religiosas e crenças religiosas e filosofias de vida. Com isso, o documento permite ao docente que transforme o ambiente da sala de aula em um grande espaço de reflexões e discussões, admitindo ao aluno que tome conhecimento das mais variadas manifestações religiosas e filosofias de vida, para que, assim, possa criar um espaço de respeito e tolerância ao outro. No entanto, para que de fato isso ocorra, suscita-se outra discussão e diz respeito à formação necessária para que o docente possa atuar. Isto ocorre devido à forma como o Fenômeno Religioso se apresenta, pois da maneira expressa pela BNCC os conhecimentos devem ser produzidos dentro do âmbito da área de Ciências Humanas e Sociais, dando destaque a um Conhecimento das Ciências das Religiões. As vistas disso, os movimentos sociais que lutam pelo Ensino Religioso, bem como os especialistas da área e a própria academia brasileira através de seus pesquisadores defendem que, para efeitos de formação inicial desejada para o docente, seja a Licenciatura em Ciências da Religião, pois esta permite ao profissional formado a clara e perfeita compreensão do Fenômeno Religioso e conduz a melhor direcionar o discente a perceber e a estudar estes conteúdos, pois “dela que dê conta da responsabilidade social que tal ensino demanda, evitando-se o proselitismo e a doutrinação, garantindo-se a democracia e o multiculturalismo” (CORTELLA, 2007, p. 20). Reforça este pensamento o que relata Costa (2015): O objeto de estudo do Ensino Religioso é o fenômeno religioso, como cultura. Assim, o objetivo é estudar a produção cultural religiosa na perspectiva laica, escolarizada, e fundamental na Ciência da Religião e em outras áreas acadêmicas. Dois princípios devem nortear o trabalho docente na Educação Básica: a interdisciplinaridade e o estudo não normativo das religiões, evitando qualquer juízo de valor pessoal como opiniões sobre “verdades” religiosas (COSTA, 2015, p. 56). Daniel Ribeiro Ferreira Junior & Marcos Vinicius de Freitas Reis
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Consequentemente, o componente curricular deve primar, por parte do docente, a perfeita acepção do que é o fenômeno religioso para que o processo formativo do aluno possa ser o mais plural possível, respeitando as particularidades de cada manifestação religiosa. Assim, [...] é necessário proporcionar o conhecimento dos elementos básicos que compõem o fenômeno religioso, a partir das experiências religiosas percebidas no contexto do educando; assim como subsidiar o educando na formulação do questionamento existencial, em profundidade, para dar sua resposta devidamente informado; analisar o papel das tradições religiosas na estruturação e manutenção das diferentes culturas e manifestações socioculturais; facilitar a compreensão do significado das afirmações e verdades de fé das tradições religiosas; refletir o sentido da atitude moral como consequência do fenômeno religioso e expressão da consciência e da resposta pessoal e comunitária do ser humano; possibilitar esclarecimentos sobre o direito à diferença na construção de estruturas religiosas que têm na liberdade o seu valor inalienável (JUNQUEIRA, 2005, p. 17).
Pensar nesta disciplina pautada no ensino da pluralidade, da alteridade, do respeito ao outro e das diferenças torna primordial a formação inicial e continuada do docente. No entanto, as temáticas relacionadas à laicidade, à diversidade religiosa e ao respeito às diferentes religiões se encontram no cerne de discussões que são polêmicas, porém, ao mesmo tempo interessantes, uma vez que servem de fundo para o debate e análise de outras questões sociopolíticas e culturais de nossa sociedade, abrindo caminho, assim, para o aprofundamento do próprio objeto de estudo. Discutir esses conteúdos em sala de aula, onde se tem alunos com as mais diversas formações religiosas, torna-se um desafio muito grande na medida em que estas se chocam com as concepções filosóficas e religiosas destes indivíduos, causando, em muitos casos, barreiras e até mesmo rejeição tanto por parte dos alunos quanto por parte dos próprios pais que realizam o acompanhamento em seus conteúdos. Sendo assim, a formação docente do profissional do Ensino Religioso se mostra essencial, uma vez que este poderá, de maneira clara, analisar as contribuições e impactos que o lúdico pode trazer ao ser empregado como ferramenta pedagógica nas aulas de Ensino Religioso.
Desafios para professor de ensino religioso na pandemia: ressignificando práticas a partir uso dos jogos, brinquedos e brincadeiras A chegada da pandemia de COVID-19 marcou a transformação dos espaços escolares, marcada, sobretudo, pelo isolamento social e consequentemente pelo 170
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fechamento das instituições de ensino. A emergente necessidade de reorganização e adaptação dos docentes para este novo cenário expôs a deficiência do processo de formação continuada destes profissionais para as chamadas novas tecnologias de comunicação com finalidades pedagógicas (GOULART; COSTA; PEREIRA, 2018). É inegável que, apesar da existência destas novas tecnologias educacionais, dificilmente estas serão capazes de substituir as até então conhecidas e tradicionais maneiras de ensinar. Por outro lado, é perceptível que aquelas instituições que já tinham um mínimo de estrutura para o ensino remoto demonstraram maior adaptabilidade a esse campo desconhecido imposto. No caso específico da disciplina de Ensino Religioso, este desconhecido se revelou um enorme desafio para o docente. Não bastasse os problemas já enfrentados pelo professor deste campo de conhecimento, como o enfrentamento e defesa para um ensino laico e sem proselitismo, agora, em razão da pandemia, o mesmo se viu nesta necessidade de ressignificar suas praticas pedagógicas para tornar suas aulas ainda mais atrativas e dinâmicas e conseguir, assim, transpor da melhor maneira possível seus conteúdos. A religião é um fenômeno presente em todas as sociedades. Desde as antigas civilizações, percebe-se o culto ao sobrenatural como algo muito importante, mostrando que o espírito de religiosidade acompanha o homem desde os primórdios. Cada povo tem sua cultura própria, tem o culto ao sobrenatural como motivo de estabilidade social e de obediência às normas sociais. As religiões, as liturgias variam, mas o aspecto religioso é bem evidente. O homem procura algo sobrenatural que lhe transmita paz de espírito e segurança; A religião sempre desempenha função social indispensável. (OLIVEIRA, 1995, p. 117).
Por muito tempo o Brasil possuiu uma religião oficial, todo e qualquer indivíduo que aqui residia era obrigado a seguir esta religião sob a pena de ser perseguido e em muitos casos torturado e morto caso fosse descoberto cultuando outras divindades. No entanto, a partir da Constituição de 1891 e reafirmada na Constituição de 1988 (BRASIL, 1988), no seu Artigo 5º, consagrou aos cidadãos brasileiros a possibilidade de nosso país ser laico, ou seja, não mais possuir uma religião oficial aos moldes do que outrora ocorrera no Brasil colônia. Este aspecto da religião trazido pela Carta Magna é uma verdadeira vitória para as tradições religiosas não católicas, uma vez que permite a liberdade de culto por qualquer cidadão, sem que este seja reprimido por isso. Bastos (1989) explica de maneira bem clara do que se trata essa liberdade religiosa, conforme segue abaixo: A liberdade religiosa consiste na livre escolha pelo indivíduo da sua religião. No entanto, ela não se esgota nesta fé ou crença. Ela demanda uma prática Daniel Ribeiro Ferreira Junior & Marcos Vinicius de Freitas Reis
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religiosa ou culto com um dos seus elementos fundamentais do que resulta também inclusa, na liberdade religiosa, a possibilidade de organização destes mesmos cultos. (BASTOS, 1989, p. 48)Todavia, mesmo com o Brasil tendo em sua Carta Magna assegurada essa liberdade, inúmeros são os casos em que este direito é violado, sobretudo quando se trata de tradições religiosas não ligadas ao Cristianismo. Toda essa carga de rejeição as diversas manifestações religiosas são possíveis de serem observadas nos ambientes escolares também e nas aulas de Ensino Religioso de uma maneira muito mais explícita, pois os alunos trazem consigo essa rejeição e preconceito. Logo, o docente desta disciplina possui um grande desafio ao procurar transpor essas barreiras impostas pelas concepções e fé cultuadas no seu particular. Por recorrentes vezes o professor se vê em meio a uma discussão que, em muitos casos, é levada pelos alunos para suas casas e depois retornam à escola através de seus responsáveis que questionam acerca do conteúdo trabalhado e, em muitos casos, os rejeitam, acentuando assim o fazer docente, pois, compreende-se que a função do Ensino Religioso não é de ser uma disciplina proselitista, muito menos doutrinária a partir de determinado dogma religioso. No entanto, é função, sim, compreender as implicações que os diversos sistemas filosóficos e religiosos causam nas sociedades em geral. Alternativas metodológicas podem ser empregadas para que questões como as citadas acima possam ser mais bem trabalhadas pelo docente. Uma dessas alternativas consiste exatamente no emprego de estratégias lúdicas, pois promovem um ambiente descontraído, colaborando com o processo de ensino (PINNA, 2012, p. 39). O lúdico inserido na educação vem se fazendo presente em diversos períodos e em diversas sociedades nos mais variados contextos. Compõe uma verdadeira rede de informações não reduzidas somente ao campo educacional, agregando também a outros campos de conhecimento, como o sociológico, o filosófico, o psicológico e o fisiológico. Wittgenstein (1984, p. 12) ressalta que há inúmeras maneiras de utilização da linguagem, uma vez que o que se apreende por signos, palavras e frases, podem se modificar de diversas maneiras, assim um mesmo termo pode ter inúmeros significados de acordo com a situação a qual está sendo empregado. Assim sendo, um mesmo termo pode alcançar vários sentidos na medida em que ele for empregado em determinado contexto. Logo, ao se consultar o significado da palavra “lúdico”, encontra-se em Costa (2005, p. 45) a definição de que a mesma vem do latim ludus e significa brincar. Este verbete se associa a outros vocábulos, como, por exemplo, brincadeira, brinquedo, divertimento. Esta ligação nos dá uma dimensão real da construção do significado desta expressão. No entanto, nestas pesquisas o termo que aparece de 172
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maneira mais recorrente nesta associação com a ludicidade é o vocábulo “jogo”. Neste sentido, buscando a etimologia da palavra jogo, chega-se a determinação de que ela representa uma atividade cuja natureza ou finalidade é a diversão, o entretenimento. De acordo com Brougère (1998, p. 14), Jogo é o que o vocabulário científico denomina “atividade lúdica”, quer essa denominação diga respeito a um reconhecimento objetivo por observação externa ou ao sentimento pessoal que cada um pode ter, em certas circunstâncias ao participar de um jogo. Situações bastante diversas são reconhecidas como jogo, de uma maneira direta ou mais ou menos metafórica (tais como os jogos políticos).
Já para Grassi (2008, p. 70), o termo jogo compreende uma atividade de ordem física ou mental, que mobiliza ações motrizes, pensamentos e sentimentos no alcance de um objetivo, com regras previamente determinadas, e pode servir como um passatempo, uma atividade de lazer, ter finalidade pedagógica ou ser uma atividade profissional. Sendo assim, as atividades lúdicas voltadas para a área educacional facilitam os processos de aprendizagem, são perfeitamente favoráveis aos processos de socialização, bem como de colaboração entre os alunos. O lúdico precisa ser trabalhado de maneira diferenciada, tornando-se uma atividade motivadora. Para que isso ocorra, o docente precisa também estar motivado, e mais ainda, precisa motivar os alunos para a construção de conhecimentos. Ao se motivarem, os alunos adquirem boas relações com o meio em que estão inseridos. Para tanto, Lopes (2000) afirma que “[...] o exercício de jogos competitivos, quando são trabalhadas as emoções dele decorrentes, faz com que a criança internalize conceitos e possa lidar com seus sentimentos dentro de um contexto grupal, o que prepara para a vida em sociedade”. Coadunam com o autor supracitado Luckesi e Santos: A prática educativa lúdica, por ter seu foco de atenção centrado na plenitude da experiência, propicia tanto ao educando quanto ao educador oportunidade ímpar de entrar em contato consigo mesmo e com o outro, aprendendo a ser, tendo em vista viver melhor consigo mesmo e junto com outro. Para uma prática educativa lúdica é necessária uma teoria que leve em consideração o ser humano na sua totalidade biopsicoespiritual, na medida em que assenta-se no corpo, organizando a personalidade e estabelecendo crenças orientadoras da vida (LUCKESI, 2011, p. 53). O desenvolvimento do aspecto lúdico facilita a aprendizagem, o desenvolvimento pessoal, social e cultural, colabora para a saúde mental, prepara para um estado interior fértil, facilita os processos de socialização, comunicação, expressão e construção do conhecimento (SANTOS, 2007, p. 12). Daniel Ribeiro Ferreira Junior & Marcos Vinicius de Freitas Reis
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Ao se trazer as atividades lúdicas para o campo do Ensino Religioso em meio à pandemia que presenciamos, é permitido traçar uma verdadeira discussão acerca das abordagens dos conteúdos realizadas por esta disciplina e de como a ludicidade pode contribuir para, sobretudo, a quebra de determinadas barreiras que já se apresentavam anteriores ao momento e que foram acentuadas. Portanto, ante ao exposto, evidencia-se os paradigmas enfrentados pelo professor de Ensino Religioso e que foram acentuados em função do surto mundial de COVID-19, uma vez que este é colocado à prova em muitas situações que envolvem e se chocam com o que a educação familiar transmite ao aluno. Dessa maneira, a ludicidade, através dos jogos, brinquedos e brincadeiras, além de tornar as aulas mais atrativas, contribuem muito mais para o aprendizado do aluno, bem como permitem uma melhor abordagem dos conteúdos propostos pelo currículo desta disciplina. Além disso, tornam o ambiente da sala de aula (agora virtual) muito mais harmônico, sem negar a individualidade de cada aluno.
Considerações finais A pandemia causada pelo novo coronavírus gerou profundas mudanças no mundo do trabalho educacional e, consequentemente, no fazer docente, mudanças estas emergenciais e que possibilitaram a reflexão acerca dos vários atores envolvidos no processo de educação, quer sejam eles professores, alunos, bem como das responsabilidades por parte dos governos. Buscar avaliar e repensar as metodologias adotadas em sala de aula por parte do professor é e sempre foi uma constante, bem como se faz necessário para o processo de ensino-aprendizagem. Quando alteramos o foco para o docente do Ensino Religioso, essa prática se torna mais latente, pois, como visto, no cotidiano deste profissional o mesmo se depara com situações de enfrentamento às diversas concepções religiosas e culturais que são individuais a cada aluno. Ao se trazer a discussão da utilização dos jogos, brinquedos e brincadeiras como metodologia de abordagem e como ferramentas pedagógicas a serem aplicadas pelo professor desta disciplina durante a pandemia, acreditamos que as mesmas demonstram alcançar grande êxito, ao facilitarem a ministração dos conteúdos. Muito embora Ausubel, Novak e Hanesian (1980), tenha postulado que o procedimento de aprendizagem seja dado por meio da interiorização, assimilação ou simplesmente por intermédio da instrução, o processo de ensino não poder ser assegurado com base tão somente nestes aspectos, pois existem outras variáveis que podem interferir na aprendizagem do aluno. A maneira tradicional como os conhecimentos são repassados aos alunos, informações estas padronizados, sem 174
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levar em conta as especificidades de cada indivíduo, leva-nos a crer que não conduzem o discente a construir de maneira sólida as ideias e conhecimentos sobre aquilo que lhes são repassados. Por outro lado, a criação de conceitos por intermédio de conhecimentos prévios dos alunos e a utilização das ferramentas metodológicas aqui discutidas lhes permitem uma maior e melhor compreensão, assim como a formulação de ideias dos conteúdos abordados pelo professor de Ensino Religioso. Logo, o uso da ludicidade nas aulas desta disciplina no cenário em que o Brasil e o mundo se encontram se mostra promissora e facilitadora de todo o processo de ensino-aprendizagem.
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ENSINO RELIGIOSO E LITERATURA Veredas, travessias e desafios
Juliana Gorczveski Rabaioli Mestre em Educação, especialista em Educação e Segurança Humana e licenciada em Letras/ Português e em Ciências da Religião pela Unochapecó. Docente efetiva da rede estadual de ensino de Santa Catarina.
Elcio Cecchetti Doutor e Mestre em Educação (UFSC). Docente do Mestrado em Educação e coordenador da Licenciatura em Ciências da Religião na Unochapecó. Coordenador Geral do Fórum Nacional Permanente do Ensino Religioso (FONAPERgestão 2020-2022).
[email protected] [email protected]
Como referenciar este capítulo: RABAIOLI, Juliana Gorczveski; CECCHETTI, Elcio. Ensino religioso e literatura: veredas, travessias e desafios. In: MARANHÃO, Fº. Eduardo Meinberg de Albuquerque (Org.). Ensino religioso: desafios e perspectivas. Florianópolis: AMAR; FOGO, 2021, pp. 179-193.
ENSINO RELIGIOSO: DESAFIOS E PERSPECTIVAS
Travessias iniciais Em sua autobiografia, Longa caminhada até a liberdade, Nelson Mandela escreveu: “Ninguém nasce odiando outra pessoa pela cor de sua pele, ou por sua origem, ou sua religião. Para odiar, as pessoas precisam aprender, e se elas aprendem a odiar, podem ser ensinadas a amar” (2020, p. 89). Com isso, lembramos que nossos jovens passam um longo período de suas vidas nas escolas. É nelas que devemos exercitar o aprendizado científico, o exercício da vida cidadã, a preparação para o mundo do trabalho, mas, também, aprender a ser mais humanos. A escola deixou de ser um lugar para se praticar apenas o currículo oficial, aquele em que ensinamos a matemática, a química e o português. Com isso queremos dizer que a escola também é espaço de socializações, vivências, conflitos e de experiências. Isso porque os saberes não estão mais restritos às escolas e nem tão pouco aos professores e às bibliotecas. Os saberes se democratizaram, assumiram diferentes formas e espaços e, diante disso, faz-se necessário uma mudança no jeito de ser educador. Não basta dominar os saberes para transmiti-los aos estudantes, é necessário envolvê-los no processo de aprendizagem, torná-los protagonistas e engados com seu percurso formativo. A escola e os processos educativos são, como dizia Paulo Freire, “empapados” daquilo que os estudantes vivem em sua vida cotidiana e nos diferentes espaços da sociedade. Partindo disso, este trabalho tem como objetivo abordar travessias1, desafios e possibilidades entre o Ensino Religioso (ER) e a Literatura, especialmente com base nas contribuições da obra de Guimarães Rosa – Grande Sertão: Veredas. Concebemos ER como componente curricular do Ensino Fundamental, integrante da base nacional comum, cujo objetivo é oportunizar aos estudantes o acesso aos conhecimentos religiosos produzidos historicamente pelas distintas culturas e tradições religiosas, a partir de um viés científico e pedagógico, com respeito à diversidade religiosa, vedado qualquer forma de proselitismo. Deste modo, o ER contribui para a formação integral e cidadã, no contexto de uma sociedade cultural e religiosamente diversa, na qual todas as crenças, expressões religiosas, convicções e filosofias de vida devem ser respeitadas (CECCHETTI, 2018). Neste trabalho, para explorar a interface entre ER e Literatura, faremos uso de dois exemplares da obra Grande Sertão: Veredas. A primeira é uma versão da editora Nova Fronteira, do ano 2001, com 624 páginas escritas em prosa. A 1 Conforme Martins (2008, p. 500-501), a palavra travessia, diz respeito a longo trecho de caminho ermo. Palavra muito empregada no romance Grande Sertão: Veredas, com o sentido simbólico de vida, transposição de etapas. Juliana Gorczveski Rabaioli & Elcio Cecchetti
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segunda é uma versão da Editora Globo Livros Graphics, em formato graphic novel2, de 2016, com 179 páginas. Ainda adotamos como elemento de pesquisa uma coletânea produzida pela TV Globo, no ano de 1985, com quatro DVDs contando a saga de Grande Sertão: Veredas. A referida obra tornou o seu autor, Guimarães Rosa, uma figura singular no cenário da literatura moderna, premiado nacionalmente, por várias vezes. A obra roseana é carregada de um realismo mágico, de regionalismos, invenções linguísticas e neologismos3. A trama de Grande Sertão: Veredas é imbuída de um ambiente e de gente rude do sertão mineiro, retratando uma história de amor proibida entre Riobaldo (narrador) e Diadorim (centro da narrativa). Temas como a religiosidade perpassam todo o romance. A crença no deus e no diabo, os amuletos, as promessas, as rezas, as cantorias, o oráculo, os benzimentos, os remédios, os causos e histórias populares, as crendices, a bruxaria, a cigana, as adivinhações, tudo isso pode servir de estudo nas aulas de ER. Portanto, a obra roseana e, de maneira especial, Grande Sertão: Veredas, é um cadinho de profusão de signos, um território semiótico por excelência. O propósito deste artigo é explorar esse emaranhado de questões relacionadas à religiosidade e a linguagem, refletindo as veredas da Literatura em suas travessias com o ER. A produção literária é um fenômeno social que carrega consigo ações e reações humanas capazes de influenciar gerações. A Literatura se constitui em um constante diálogo entre textos e não é tão somente um produto do meio, mas sim resultado de imaginação e criação humana. A partir disso, propomos a aproximação entre a Literatura e ER, demonstrando que a leitura de Grande Sertão: Veredas pode ser utilizada como recurso pedagógico para as aulas de ER, numa perspectiva intercultural e inter-religiosa.
Travessias entre Ensino Religioso e Literatura: nas veredas de Guimarães Rosa Sertão. O senhor sabe: sertão é onde manda quem é forte, com as astúcias. Deus mesmo, quando vier, que venha armado! E bala é um pedacinhozinho de metal... (ROSA, 2001, p. 35). 2 Traduzindo para o português seria um Romance gráfico. A história do livro Grande Sertão: Veredas de Guimarães Rosa foi adaptada para a versão histórias em quadrinhos, em que os detalhes dos personagens são destacados e acentuados através dos desenhos. 3 Foram tantos os neologismos criados que acabaram dando origem ao Léxico de Guimarães Rosa, produzido por Nilce Sant’Anna Martins. Um verdadeiro glossário de Guimarães Rosa. É nele que encontramos argumentos para nos aventurarmos no roseano reino mágico das palavras.
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É a partir da terceira vereda que discutiremos sobre as travessias da Literatura e do ER no currículo da escola. Como, através de Grande Sertão: Veredas, podemos desenvolver o protagonismo juvenil, o senso crítico e a criatividade? As andanças de Riobaldo, o personagem principal de Grande Sertão: Veredas, nos leva a conhecer os Gerais, Goiás e o sul da Bahia, de uma maneira peculiar, sinalizando a todo instante, no rememorar de lembranças, elementos do religioso, do miraculoso, do maravilhoso. Suas histórias de vingança, perseguição, de luta pelo sertão, sempre se apresentam cercadas de reflexões a respeito de problemas inerentes a vida humana: A gente viemos do inferno – nós todos – compadre meu Quelemém instrui. Duns lugares inferiores, tão monstro-medonhos, que Cristo mesmo lá só conseguiu aprofundar por um relance a graça de sua sustância alumiável, em as trevas de véspera para o Terceiro Dia. Que lá o prazer trivial de cada um é judiar dos outros, bom atormentar; e o calor e o frio mais perseguem; e, para digerir o que se come, é preciso de esforçar no meio, com fortes dores; e até respirar custa dor; e nenhum sossego não se tem. Se creio? Acho proseável. (ROSA, 2001, p. 64-65).
Com base na proposta de currículo de ER apresentado pela Base Nacional Comum Curricular (BNCC), passagens literárias como esta, que expressam o imaginário popular, podem se constituir em objetos de conhecimento a serem aprendidos em sala de aula. Isso porque, no documento, o ER tem o papel de desenvolver competências específicas, tais como: 1. Conhecer os aspectos estruturantes das diferentes tradições/movimentos religiosos e filosofias de vida, a partir de pressupostos científicos, filosóficos, estéticos e éticos. 4. Conviver com a diversidade de crenças, pensamentos, convicções, modos de ser e viver. 6. Debater, problematizar e posicionar-se frente aos discursos e práticas de intolerância, discriminação e violência de cunho religioso, de modo a assegurar os direitos humanos no constante exercício da cidadania e da cultura de paz. (BRASIL, 2018, p. 437).
A Literatura, como se sabe, muitas vezes expressa o imaginário popular, os credos, anseios e desejos de pessoas com “carne e osso” que habitam determinado território em dado tempo e lugar. Deste modo, por meio dela, é possível conhecer aspectos estruturantes de diversas tradições e movimentos religiosos, com vistas a conhecer, respeitar e conviver com a diversidade de pensamentos, convicções, modos de ser e viver. Enquanto educadores, objetivamos que nossos estudantes, ao finalizarem o percurso da Educação Básica, encarem a vida social com responsabilidade, Juliana Gorczveski Rabaioli & Elcio Cecchetti
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abertura ao novo e ao diferente, sabendo se portar diante da realidade das coisas, das pessoas e do complexo mundo da cultura. Para isso precisamos assumir posições pedagógicas que promovam o desenvolvimento dos sujeitos, admitindo por princípio, que somos seres multifacetados, complexos e relacionais. Como afirma Alarcão (2015, p. 22), Um grande desafio hoje se coloca às nossas escolas, aos nossos professores, aos nossos políticos: educar todos (e isso implica educar cada um) para uma cidadania ativa numa escola imensamente heterogênea, numa sociedade muito exigente, num mundo em permanente mudança, mas também repleto de possibilidades a que os nossos antepassados não tiveram acesso. E é nessa abertura entre o que temos, o que gostaríamos de ter e o que poderemos ter que se deve concentrar o pensamento sobre a escola, a educação e a sociedade, uma vez que a educação não se confina à escola, embora tenha nela e nas famílias as suas bases fundacionais.
É nesta escola heterogênea, diversa e plural que temos o dever de ensinar a todos, onde o ER e a Literatura estão inseridos, conjuntamente com outros campos de saberes. E por que não exercitar a alteridade, o respeito a todas às identidades, sejam elas religiosas ou não? Com isso advogamos a importância de dar sentido àquilo que trabalhamos em sala de aula, pensando na realidade do educando e na função social dos conhecimentos e habilidades desenvolvidas. Assim, ressaltamos a importância de trabalhar com a leitura literária em sala de aula, fazendo com que a escola alargue seus horizontes e torne seu cotidiano mais encantador ao mergulhar nas veredas e travessias que a Literatura proporciona. Como fazemos parte de uma sociedade letrada, a leitura e a escrita estão presentes em todos os níveis educacionais e sociais. Para tanto, cabe à escola a nobre tarefa de ensinar a ler, escrever e interpretar, despertando o gosto pela Literatura. É tão grandiosa a sabedoria de Guimarães Rosa que, no romance Grande Sertão: Veredas, podemos identificar uma miniatura de conto. Nele, o autor recupera traços importantes da narrativa maior, na qual está inserido. Isto acontece quando Jõe Bixiguento, jagunço, relata um “causo” que se passou no sertão, entre Maria Mutema e o padre Ponte. Naquele lugar existia uma mulher, por nome de Maria Mutema, pessoa igual às outras, sem nenhuma diversidade. Uma noite, o marido dela morreu, amanheceu morto de madrugada. Maria Mutema chamou por socorro, reuniu todos os mais vizinhos. O arraial era pequeno, todos vieram certificar. Sinal nenhum não se viu, e ele tinha estado de saúde apreciável, por isso disse que só de acesso do coração era que podia ter morrido. (ROSA, 2001, p. 238).
O narrador conta o que ouviu de outro, e através da escrita vai recontando a tradição oral. A oralidade, a representação da existência pela palavra falada, 184
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é um dos aspectos essenciais de Grande Sertão: Veredas. Ao narrar o caso de Maria Mutema, Jõe Bexiguento acaba por levar Riobaldo a refletir uma vez mais acerca do misturado que as coisas são, como a inconstância do homem entre a dicotomia do bem e do mal. Já no “causo” que é contado a Riobaldo, Maria Mutema mata seu cônjuge, colocando chumbo derretido dentro de seu ouvido, enquanto este dormia. Após o ocorrido, a viúva torna-se frequentadora assídua da igreja e passa a fazer confissões diárias ao Padre Ponte. Este, de tanta tristeza ao ouvir repetidas vezes o ocorrido, acaba morrendo: E daí mais, que, passando o tempo, como se diz: no decorrido, Padre Ponte foi adoecido ficando, de doença para morrer, se viu logo. De dia em dia, ele emagrecia, amofinava o modo, tinha dôres, e em fim encaveirou, duma cor amarela de palha de milho velho; dava pena. Morreu triste. E desde por diante, mesmo quando veio outro padre para São João Leão, aquela mulher Maria Mutema nunca mais voltou na igreja, nem pra rezar nem por entrar (ROSA, 2001, p. 239-240).
Conforme se percebe nesta passagem, Maria Mutema é a representação do mal, matando seu marido, e consequentemente, causando a morte do Padre Ponte. Ela é a mistura do bem e do mal que, em Rosa, são apresentados como elementos que se alternam e se contrapõem. Matou – enquanto ele estava dormindo – assim despejou no buraquinho do ouvido dele, por um funil, um terrível escorredor de chumbo derretido. O marido passou, lá o que se diz – do oco para o ocão – do sono para a morte, e lesão no buraco do ouvido dele ninguém não foi ver, não se notou (ROSA, 2001, p. 242).
Podemos pensar numa certa intertextualidade semiótica de beleza estética, poética e mítica, que revela o imaginário no qual o bem e o mal se tencionam, como na existência humana mesma, no mundo sempre em tensão, vereda de travessias necessárias e perigosas. A leitura da passagem em que Maria Mutema derrama chumbo no ouvido do esposo, nos remete ao texto de Hamlet, obra escrita por Willian Shakespeare entre os anos de 1599 e 1601, no qual o próprio irmão, Cláudio, derrama veneno no ouvido do rei da Dinamarca, assassinando-o para ficar com o trono e com a rainha Gertrudes. Todos esses aspectos de dualidade, intertextualidade e inconstância do ser humano, podem e devem estar presentes nos debates e nas reflexões em sala de aula. O currículo do ER abre e desafia o trabalho analítico da própria experiência humana, a partir do que o estudante já sabe, ampliando seus horizontes através de novos conhecimentos, novas leituras e as mais diversificadas metodologias. Juliana Gorczveski Rabaioli & Elcio Cecchetti
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Neste sentido, o currículo do ER pode ser compreendido como uma “vereda” de intertextualidades que abriga “travessias” nos diálogos interculturais e inter-religiosos. Isso porque a BNCC (BRASIL, 2018) reconhece que o ser humano se constrói a partir de um conjunto de relações tecidas em determinado contexto histórico-social, em um movimento ininterrupto de apropriação e produção cultural, enquanto ser de imanência e transcendência. A unidade temática “Identidades e alteridades”, por exemplo, pretende que os estudantes reconheçam, valorizem e acolham o caráter singular e diverso do ser humano, por meio da identificação e do respeito às semelhanças e diferenças, e da compreensão dos símbolos e significados que povoam e sustenta as culturas e religiosidades. Com isso, os saberes aportados pelo ER são imprescindíveis para responder aos desafios de uma escola que promova a formação humana, ampliando a experiência humana. Conforme afirma Lima (2005, p. 19): Um currículo para a formação humana é aquele orientado para a inclusão de todos ao acesso dos bens culturais e ao conhecimento, está, assim, a serviço da diversidade. Entendemos diversidade na concepção de que ela é a norma da espécie humana: seres humanos são diversos em suas experiências culturais, são únicos em suas personalidades e são diversos em suas formas de perceber o mundo [...] Como a diversidade é hoje recebida na escola, há a demanda, obvia, por um currículo que atenda a todo o tipo de diversidade.
A Literatura é um dos meios que podemos utilizar para que os estudantes aprendam a perceber o mundo de diferentes formas, aguçando sua imaginação, seu senso crítico, sua fantasia, além de possibilitar o desenvolvimento de atitudes e valores necessários à convivência com as mais variadas pessoas, situações e realidades. Como destaca Zilberman (2008, p.17), [...] a literatura provoca no leitor um efeito duplo: aciona sua fantasia, colocando frente a frente dois imaginários e dois tipos de vivência interior; mas suscita um posicionamento intelectual, uma vez que o mundo representado no texto, mesmo afastado no tempo ou diferenciado enquanto invenção, produz uma modalidade de reconhecimento em quem lê.
A Literatura em sala de aula, na maioria das vezes, é usada de uma forma muito utilitária, principalmente para se atender aos exames e vestibulares, distanciando o estudante do aprendizado da beleza, da poesia. Com isso, queremos destacar o devido cuidado com o texto literário, no sentido de não o instrumentalizar, mas sim, de mostrá-lo aos educandos como um meio de expressão pessoal e artística. Neste pressuposto, a Literatura pode vir a auxiliar o próprio jovem a entender sua existência como ser humano e como cidadão do mundo. 186
ENSINO RELIGIOSO E LITERATURA: VEREDAS, TRAVESSIAS E DESAFIOS
ENSINO RELIGIOSO: DESAFIOS E PERSPECTIVAS
Grande Sertão: Veredas é um texto literário que tem várias perspectivas e, se abordadas na perspectiva aqui proposta, pode servir de apoio pedagógico em sala de aula, tanto nas aulas de Literatura, quanto nas aulas de ER, inaugurando no próprio espaço escolar, outras possibilidades dialógicas entre essas áreas de conhecimento. Quando Riobaldo recebe o amuleto da filha da feiticeira, podemos relacionar com a abordagem dos símbolos religiosos; quando novamente Riobaldo, decide ser um pactário, temos o trato com o rito; quando ao longo da obra os personagens contam com a ajuda de algo sobrenatural, divino, transcendente, podemos dizer que isso se relaciona com os ensinamentos das narrativas sagradas. É possível relacionar cada uma das unidades temáticas que estruturam o currículo do ER na BNCC (BRASIL, 2018) com passagens específicas da obra Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa. Para discutir “identidades e alteridades”, unidade temática que objetiva promover o reconhecimento e valorização do caráter singular e diverso do ser humano, podemos indicar o momento em que o grupo de jagunços liderados por Medeiro Vaz tentam atravessar o Liso do Sussuarão. Após dias e dias de estrada, com muita fome, decidem caçar algo para matar a fome e acabaram por assassinar José dos Alves, confundindo-o com um macaco. A jagunçagem então começou a passar mal, pois havia comido carne humana: Com outros nossos padecimentos, os homens tramavam zuretados de fome – caça não achávamos... Até que tombaram à bala um macaco vultuoso. Enquanto estavam ainda mais assando... se soube... o corpudo não era bugio não, não achavam o rabo. [...] Agora que está bem falecido, se come o que alma não é, modo de não morrermos todos... (ROSA, 2016, p. 113-114).
A referida unidade temática também busca promover a compreensão dos símbolos e significados e da relação entre imanência e transcendência. Isso é encontrado em Guimarães, quando os personagens temem a existência de algo que os persegue, como é o caso a seguir: “Explico ao senhor: o diabo vige dentro do homem, os crespos do homem – ou é o homem arruinado, ou o homem dos avessos” (ROSA 2016, p. 12). No que tange a unidade temática “Manifestações religiosas”, que objetiva proporcionar o conhecimento, a valorização e o respeito às distintas experiências e manifestações religiosas, na obra em tela se sobressaem a descrição das práticas rituais, carregadas de sentido e muitas vezes de emoções. Em Grande Sertão: Veredas vemos isso na passagem em que a personagem Diadorim morre em combate contra o grupo de jagunços de Hermógenes. “Carecia de lavar e vestir o corpo [...] Enterrem separado dos outros, num aliso de vereda, adonde ninguém ache, nunca se saiba ...” (ROSA, 2016, p.159-165). Juliana Gorczveski Rabaioli & Elcio Cecchetti
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Em relação a terceira unidade temática, “Crenças religiosas e filosofias de vida”, que trata de aspectos estruturantes das diferentes tradições/movimentos religiosos e filosofias de vida, particularmente sobre os mitos, ideia(s) de divindade(s), crenças e doutrinas religiosas, tradições orais e escritas, ideias de imortalidade, princípios e valores éticos, podemos destacar a personagem de Riobaldo, quando conta da promessa que sua mãe havia feito para que ele se curasse de uma doença na juventude. Eu estava com uns treze ou quatorze anos... Pois tinha sido que eu acabava de sarar duma doença, e minha mãe feito promessa para eu cumprir quando ficasse bom; eu carecia de tirar esmola, até perfazer um tanto – metade para se pagar uma missa, em alguma igreja, metade para se pôr dentro duma cabaça bem tapada e breada, que se jogava no São Francisco, a fim de ir, Bahia abaixo, até esbarrar no santuário do Santo Bom – Jesus da Lapa. (ROSA, 2016, p. 15).
Também podemos identificar o papel das crenças religiosas na passagem de morte da mãe de Riobaldo, no início da obra ainda, em que ele pega seus pertences, dentre eles uma imagem de santo e fica sozinho no mundo, sem ter para onde ir, até um bondoso vizinho levá-lo à fazenda de seu padrinho Selorico Mendes, que mais tarde descobre ser seu próprio pai. Minha mãe morreu – apenas a Bigrí, era como ela se chamava. Ela morreu, como a minha vida mudou para uma segunda parte, amanheci mais. Até hoje em dia, a lembrança de minha mãe às vezes me exporta. De herdado, peguei minha rede, uma imagem de santo de pau, um caneco-de-asa, uma fivela grande, um cobertor e minha muda de roupa (ROSA, 2016, p. 22).
Portanto, temos vários exemplos de que a Literatura, no caso, Grande Sertão: Veredas, nos mergulha no emaranhado mundo da imaginação, da ambiguidade, do maravilhoso, do desejo de desvendar os mistérios que até hoje a humanidade tenta elucidar, como por exemplo, os dualismos deus e diabo, bem e mal, sagrado e profano, religioso e mundano. Promover a comunicação entre ER e Literatura é trabalhar com diferentes linguagens considerando que elas potencializam a produção de conhecimento e a expressividade humana. Assim, o trabalho com o texto literário que aborda elementos da cultura religiosa, possibilita que o ER interprete o dado religioso sob diferentes lentes e olhares. Grande Sertão: Veredas desenvolve a imaginação do leitor. Consequentemente, a imaginação cria condições de aprendizagem, já que a “imaginação motiva. E motivar implica em mobilização para interesse em envolvimento com o objeto de aprendizagem” (LIMA, 2008, p. 32). Trabalhar com Literatura, em especial com Guimarães Rosa, é ter nas mãos linguagens que se articulam entre si, e que juntas podem encantar aquele jovem que até então rejeita a literatura brasileira. 188
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O destaque aqui dado à obra Grande Sertão: Veredas, diz respeito à importância desse texto para a Literatura brasileira e, por que não dizer, para a Literatura universal. Cândido (2007, p. 121), assim se referiu a Guimarães Rosa, O seu livro mais importante, Grande Sertão: Veredas, é um longo monólogo de um velho bandido, contando a sua vida e o estranho amor por um companheiro de armas, na verdade mulher travestida, como fica evidente depois da morte. Para realizar uma vingança do grupo ele invoca o demônio e, a partir de então, consegue tudo, mas ganha por toda a vida o tormento de indagar se fez ou não fez o pacto, se o demônio existe ou não. Em torno dessa dúvida ordena-se uma narrativa fascinante, onde passa o sertão brasileiro com as suas figuras e a sua natureza áspera, por meio de uma linguagem artificial e perfeita, onde diversas camadas da língua se combinam segundo um critério rigoroso da invenção, de maneira a produzir um texto onde não se sabe se a realidade suscita o discurso, ou se o discurso institui a realidade.
A literatura, especialmente em Rosa, possui um encantamento no trato com as palavras. Grande Sertão: Veredas sabe envolver o leitor nesta narrativa fascinante como diz Cândido, onde os neologismos dão vida ao sertão brasileiro, à imaginação e à curiosidade do leitor em desvendar os mistérios dos “Gerais”. [...] a literatura aparece claramente como manifestação universal de todos os homens em todos os tempos. Não há povo e não há homem que possa viver sem ela, isto é, sem a possibilidade de entrar em contacto com alguma espécie de fabulação. Assim como todos sonham todas as noites, ninguém é capaz de passar as vinte e quatro horas do dia sem alguns momentos de entrega ao universo fabuloso. O sonho assegura durante o sono a presença indispensável deste universo, independente da nossa vontade. (CÂNDIDO, 1999, p. 242).
A linguagem roseana recria aqui, por meio de Riobaldo, a complexidade do mundo e das questões primeiras da existência humana. Quantos de nós já não perdemos o sono buscando respostas aos dilemas da vida? Quando Riobaldo diz “Bebo água de todo rio...” está fazendo uso de metáforas para nos dizer que a experiência religiosa que nele habita, está imbuída de várias e diferentes crenças e experiências com o sagrado. Na perspectivas de Barthes (2007, p.17), a literatura assume muitos saberes: Num romance como Robinson Crusoé, há um saber histórico, geográfico, social (colonial), técnico, botânico, antropológico (Robinson passa da natureza à cultura). Se, por não sei que excesso de socialismo ou de barbárie, todas as nossas disciplinas devessem ser expulsas do ensino, exceto numa, é a disciplina literária que devia ser salva, pois todas as ciências estão presentes no monumento literário. Juliana Gorczveski Rabaioli & Elcio Cecchetti
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Se o autor (2007) entende que a Literatura assume muitos saberes e que todas as ciências estão presentes no monumento literário, é certo que a Literatura possibilita o diálogo com outros componentes curriculares da escola, especialmente, com o ER. Através do texto literário, estamos possibilitando a comunicação com outras áreas do conhecimento, fazendo com que os saberes circulem por todos os espaços e lugares. Antônio Cândido (1995, p. 245) novamente nos chama a atenção dizendo que “toda obra literária é antes de mais nada uma espécie de objeto, de objeto construído; e é grande o poder humanizador desta construção, enquanto construção”. Se a Literatura exerce um papel humanizador, o ER também desempenha esse papel, já que reconhece a diversidade religiosa como um elemento sociocultural e um dos patrimônios imateriais da humanidade. Não por acaso, nos Parâmetros Curriculares Nacionais do Ensino Religioso, o FONAPER (2009, p. 35) assim se posicionou: A Escola, por sua natureza histórica, tem uma dupla função: trabalhar com os conhecimentos humanos sistematizados, historicamente produzidos e acumulados, e criar novos conhecimentos. Todo o conhecimento humano torna-se patrimônio da humanidade. A sua utilização, porém, depende de condições sociais e econômicas bem como das finalidades para as quais são utilizados. Nem todo o conhecimento é de interesse de todos. Um conhecimento político ou religioso pode não interessar a um grupo, mas, uma vez produzido, é patrimônio humano e como tal deve estar disponível. O conhecimento religioso é um conhecimento disponível, e por isso, a Escola não pode recusar-se a socializá-lo.
Fazer a travessia entre o ER e Literatura não é tarefa fácil, mas é necessária, tanto para visualizar como estão interligados por meio das diferentes linguagens, verbais e não-verbais, como para assegurar a importância que o espaço escolar deve dar a esse componente curricular, que por vezes passa despercebido ou até mesmo banalizado. É no chão da sala de aula, que podemos ousar, criar, (re)criar, imaginar, viajar, sem ao menos sair do lugar. Todos estes verbos são possíveis a partir da leitura de obras literárias, como por exemplo: Grande Sertão: Veredas, em que o ambiente ficcional fascina a cada página lida, onde o emaranhado dos “Gerais” vai nos “engolindo” para dentro de uma história, cheia de homens valentes, jagunços, bravos, armados... Segundo Cândido (2007, p. 120), [...] a escolha de Guimarães Rosa denota o profundo senso do real e é um repto perigoso, que poderia tê-lo enquadrado no pelotão dos regionalistas pitorescos, ou dos regionalistas críticos. Mas ele superou os perigos e elaborou a matéria regional com um senso transfigurador, que fez dos seus livros maduros experiências de vanguarda dentro de um temático tradicionalista. 190
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O jogo de palavras, a criação/fruição de expressões que só conseguimos decifrar através de um Dicionário próprio, indica a força e expressividade de cada vocábulo empregados ao longo da obra. Quando o personagem Diadorim fica sabendo da morte de Joca Ramiro “Arraso, cão! Cara-cães!” (ROSA, 2016, p. 92), ele se utiliza de expressões que somente buscando o Dicionário podemos vislumbrar uma interpretação. “Cara-cães!” “Cara-de-cão, diabo” (MARTINS, 2008, p. 100). Ao longo do monólogo, Riobaldo vai dando o tom da obra, mas sempre ao fazer referência de algo ruim, utiliza da figuração do mal – diabo, capiroto, cão, demo, cara-de-cão -, vocábulos sinônimos de representatividade da maldade, das coisas impiedosas e perversas. Talvez Riobaldo, seja aqui, uma manifestação do fenômeno religioso. Na BNCC (BRASIL, 2018), a dimensão da transcendência é apontada como matriz dos fenômenos e das experiências religiosas, uma vez que, em face da finitude, os sujeitos se veem desafiados a atribuir sentidos e significados à vida e à morte. Aí está a raiz do fenômeno religioso, nessa fronteira tênue entre a liberdade e a insegurança, entre a infinitude e a finitude.
Travessias finais Cerro. O senhor vê. Contei tudo. Agora estou aqui, quase barranqueiro. Para a velhice vou, com ordem e trabalho. Sei de mim? Cumpro. O Rio de São Francisco – que de tão grande se comparece – parece é um pau grosso, em pé, enorme... Amável o senhor me ouviu, minha ideia confirmou: que o Diabo não existe. Pois não? O senhor é um homem soberano, circunspecto. Amigos somos. Nonada. O diabo não há! É o que eu digo, se for... Existe é homem humano. Travessia. (ROSA, 2001, p. 623-624).
Desenvolvemos ao longo deste trabalho algo que nos é muito caro, as veredas e as travessias que envolvem o ER e a Literatura. São escritos que não pretendem esgotar a discussão sobre esta temática, mas promover o debate sobre estas duas áreas. Podemos dizer que essas aproximações são similares à metáfora que Veiga-Neto faz em É preciso ir aos Porões, no qual ressalta a importância da ida aos “porões da casa” que habitamos. Mostra-nos que este é o caminho mais seguro para compreendermos as origens, os desdobramentos e as consequências dos muitos fenômenos sociais e educacionais que vivemos até hoje. Veiga-Neto (2012) considera que a “casa” é a fonte primeira das nossas memórias, da nossa história e da nossa imaginação. Mesmo assim, muitas vezes corremos o risco de vivermos nas margens, nas veredas como Riobaldo, como os Juliana Gorczveski Rabaioli & Elcio Cecchetti
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jagunços de Grande Sertão: Veredas, pois nas travessias de nossa história, precisamos habitar outros espaços da casa, como o sótão e o porão. A reflexão de que talvez a maioria de nós, professores, não ultrapassou o piso intermediário da casa, ou talvez no máximo, chegou ao sótão, nos leva a crer na importância de se chegar até os porões. “O que falta para muitos de nós é descer aos porões” (VEIGA-NETO, 2012, p. 276). Segundo o autor, a maioria das pessoas somente pega emprestado as verdades ditas como naturais e nem sequer as problematiza. Ou seja, precisamos, efetivamente, voltar às raízes sobre as quais se sustentam nosso piso intermediário. Talvez seja essa uma saída para enfrentarmos processos de exclusão e desigualdades que assolam as sociedades atuais. É indo aos porões que melhor poderemos problematizar estereótipos e os preconceitos tão presentes nos fenômenos sociais, incluindo os que recaem sobre a diversidade religiosa. Com isso, justificamos a importância de discutirmos, trabalhamos e pesquisarmos sobre o conhecimento religioso nas aulas de ER por meio da Literatura. No caso em tela, a obra escolhida foi Grande Sertão: Veredas, mas o exercício pode ser feito com outras inúmeras obras ou até mesmo com outros componentes curriculares que circulam na escola. O ER está aberto ao diálogo com todas as ciências e saberes que circulam pela escola.
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Referências ALARCÃO, Isabel (Org.). Escola reflexiva e nova racionalidade. Porto Alegre: Artmed, 2001. BARTHES, Roland. Aula: Aula inaugural da cadeira de semiologia literária do colégio de França. São Paulo: Cultrix, 2007. BRASIL. Ministério da Educação. Base nacional comum curricular. A educação é a base. Brasília/DF, 2018. CÂNDIDO, Antônio. Vários escritos. 3 ed. São Paulo: Duas Cidades, 1995. CÂNDIDO, Antônio. Iniciação à literatura brasileira: resumo para principiantes. 3.ed. São Paulo: Humanitas/FFLCH/USP, 1999. CÂNDIDO, Antônio. Iniciação à literatura brasileira. 5 ed. Rio de Janeiro: Ouro sobre azul. 2007. CECCHETTI, Elcio. Ensino religioso: uma área de conhecimento. In: MARANHÃO F., Eduardo Meinberg de Albuquerque (Orgs.). Política, religião e diversidades: educação e espaço público (v. 1). Florianópolis: ABHR/Fogo, 2018.
LIMA, Elvira Souza. Currículo, cultura e conhecimento. São Paulo, Editora Sobradinho 107, 2005. LIMA, Elvira Souza. Indagações sobre o currículo: currículo e desenvolvimento humano. Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de Educação Básica, 2008. MARTINS, Nilce Sant’Anna. O léxico de Guimarães Rosa. 3. ed. Revista. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2008. MANDELA, Nelson. Longa caminhada até a liberdade. Rio de Janeiro: Alta Books, 2020. ROSA, João Guimarães. Grande Sertão: veredas. 19. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001. VEIGA-NETO. Alfredo. É preciso ir aos porões. Revista Brasileira de Educação, v.17, n.50, p.267-492, maio/ago., 2012. ZILBERMAN, Regina. O papel da literatura na escola. Via atlântica, n. 14, p. 11-22, dez/2008.
FONAPER. Fórum Nacional Permanente do Ensino Religioso. Parâmetros curriculares nacionais de ensino religioso. São Paulo, Mundo Mirim, 2009.
Juliana Gorczveski Rabaioli & Elcio Cecchetti
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ENSINO RELIGIOSO, O CARRO-CHEFE DA CIÊNCIA DA RELIGIÃO APLICADA BRASILEIRA Posfácio
Rodrigo Oliveira dos Santos
Fábio L. Stern
Doutorando em Ciência da Religião (PUC-SP).
Licenciado em Ciências da Religião (UFSM).
Professor de Ensino Religioso e redator do currículo de Ensino Religioso da rede estadual (Pará) e municipal (Belém).
Especialista em Ciência da Religião (PUC-SP).
Membro do LAB-CR.
Doutor em Ciência da Religião (PUC-SP).
[email protected]
Mestre em Ciência da Religião (PUC-SP).
Bolsista PNPD/CAPES pelo PPG em Ciência da Religião da PUC-SP. Membro do LAB-CR.
[email protected]
Como referenciar este capítulo: DOS SANTOS, Rodrigo Oliveira; STERN, Fábio L. Ensino Religioso, o carro-chefe da Ciência da Religião aplicada brasileira. In: MARANHÃO, Fº. Eduardo Meinberg de Albuquerque (Org.). Ensino religioso: desafios e perspectivas. Florianópolis: AMAR; FOGO, 2021, pp. 195-198.
ENSINO RELIGIOSO: DESAFIOS E PERSPECTIVAS
Recentemente, apesar de tantos ataques à ciência, a Ciência da Religião conseguiu (de)marcar espaços mais significativos na sociedade brasileira, em termos de pesquisa e aplicação, sendo o último tão expressivo e fundamental para a formação humana cidadã, aspecto esse central à discussão desta Coleção da FOGO Editorial e da AMAR. Em âmbito mundial, a Ciência da Religião aplicada tem se destacado no Brasil, especialmente na educação, tendo o Ensino Religioso como seu carro chefe, onde viabiliza iniciativas de adequação dos resultados produzidos nessa disciplina acadêmica ao nível cognitivo dos alunos na educação básica. O fato de o Brasil ser o único país do mundo a ter uma graduação de licenciatura em Ciência da Religião, focada exclusivamente na formação docente, mas com peso de lei igual ao do bacharelado, colocou-nos na dianteira das discussões mundiais sobre um Ensino Religioso laico pautado em ciência, com poucos países em situação melhor que a nossa (p. ex. Suécia). Os resultados do trabalho de formados em Ciência da Religião não só possibilitam um aspecto básico comum a todo componente do currículo escolar – o conhecimento científico sobre algo –, como também oferta, esse conhecimento como algo capaz de ser localizado, estudado e verificado em sua natureza própria, a natureza humana. E por mais que esse conhecimento assuma tantas versões, cada versão não deixa de ser uma versão humana. Aí está toda grandeza deste ramo da Ciência da Religião que, nesse caso, ao adotar o conhecimento sobre religiões e outras visões de mundo numa perspectiva empírica, própria de todo e quaisquer estudo científico, possibilita um ambiente na escola propício ao respeito às diferenças e às diversidades humanas, sejam elas religiosas, culturais, étnicas ou sexuais, além do reconhecimento e apreço às versões de vida, sejam religiosas ou não. Num Ensino Religioso pautado em Ciência da Religião, elas tem a oportunidade para se (re)conhecerem. Conforme Clemens Cavallin1 comenta, a Ciência da Religião Aplicada tem grande potencial em promover o empoderamento de minorias, os Direitos Humanos, e estimular a vida cidadã. Essas considerações apontam e, de certa forma, ratificam todo esforço empreendido nesta Coleção por todos os colaboradores, assentada na proposta que a Ciência da Religião tem algo a contribuir com a sociedade brasileira e com a produção do conhecimento científico sobre religiões no país, diante de seu vasto e imenso universo religioso e outras visões de mundo. A FOGO Editorial oferece-nos tais obras num momento mais que oportuno, consolidando um esforço conjunto de afirmação de um Ensino Religioso com 1
Disponível em https://revistas.pucsp.br/rever/article/view/54400 Rodrigo Oliveira dos Santos & Fábio L. Stern
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ENSINO RELIGIOSO: DESAFIOS E PERSPECTIVAS
base na ciência, desempenhado uma função vital no currículo escolar, tão atacado por ideias e visões da realidade empírica assentadas em posturas equivocadas e, muitas vezes, até fundamentalistas, com incentivos discriminatórios e discursos de ódios direcionados a determinadas pessoas, grupos e versões que, na realidade, não deixam de ser igualmente humanos e, por isso, merecedores de respeito. Nesse bojo, o Ensino Religioso é mais que um acesso para a humanização dos estudantes, ele amplia a cidadania em todos os aspectos inerentes a palavra, pois é grande conciliador de tais versões – religiosas ou não –, ensinando que cada uma não deixa de ter origem e desenvolvimento em uma das múltiplas formas de se ser humano. Como tal, une a todos nós, construíndo uma sociedade mais acolhedora e igualitária. Mas o trabalho para os formados em Ciência da Religião não termina com esta Coleção. No momento atual, tanto precisamos garantir esse espaço de cidadania no país, como também precisamos garantir maior protagonismo de cientistas da religião na educação básica e nas escolas. Ainda que o Brasil esteja na dianteira mundial nas discussões sobre um Ensino Religioso não catequético, pautado em Ciência da Religião, estamos muito longe do ideal. O trabalho é árduo, mas reconheçamos também nossas conquistas. Concluímos este posfácio convidando todos os licenciados em Ciência da Religião para que atuem mais ativamente pelas políticas públicas em prol da educação cidadã, e assumam o protagonismo necessário para consolidarmos nosso espaço na sociedade. Apoiem seus cursos. Participem das reuniões dos conselhos locais e associações profissionais. Frequentem os congressos e simpósios da área. Valorizem os seus colegas de profissão. Leiam nossos periódicos e citem os autores da área. E, mais do que tudo, continuem amando e mudando as coisas.
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POSFÁCIO
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