Economia do desejo: A farsa da tese neoliberal [1 ed.] 9788520014158, 8520014151

Por que o neoliberalismo não nos levará a uma sociedade mais justa Depois dos bestsellers Desigualdade e O que os donos

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Portuguese Pages 96 [85] Year 2020

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Sumário
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Préfácio
Introdução
Notas
1. A lógica capitalista
Notas
2. A economia do desejo
Notas
3. O Estado e a economia da necessidade
Notas
4. A economia do ódio
Nota
5. Conclusão — paz e guerra
Notas
Colofão
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Economia do desejo: A farsa da tese neoliberal [1 ed.]
 9788520014158, 8520014151

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1ª edição

Rio de Janeiro 2020

Copyright © Eduardo Moreira, 2020

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ

M837e

Moreira, Eduardo Economia do desejo [recurso eletrônico]: a farsa da tese neoliberal / Eduardo Moreira; [texto de orelha Betto]; [prefácio Luiz Gonzaga Belluzzo]. – 1. ed. – Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2020. recurso digital Formato: ePub Requisitos do sistema: Adobe Digital Editions Modo de acesso: World Wide Web ISBN 9788520014158 (recurso eletrônico) 1. Economia. 2. Consumo (Economia) – Aspectos sociais. 3. Capitalismo. 4. Neoliberalismo. 5. Livros eletrônicos. I. Betto. II. Belluzzo, Luiz Gonzaga. III. Título.

20-63994

CDD: 330.122 CDU: 330.142.1

Leandra Felix da Cruz Candido – Bibliotecária – CRB-7/6135 Todos os direitos reservados. Proibida a reprodução, o armazenamento ou a transmissão de partes deste livro, através de quaisquer meios, sem prévia autorização por escrito. Texto revisado segundo o novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa. Direitos desta edição adquiridos pela EDITORA CIVILIZAÇÃO BRASILEIRA Um selo da EDITORA JOSÉ OLYMPIO LTDA. Rua Argentina, 171 – Rio de Janeiro, RJ – 20921-380 – Tel.: (21) 2585-2000. Seja um leitor preferencial Record. Cadastre-se e receba informações sobre nossos lançamentos e nossas promoções. Atendimento e venda direta ao leitor: [email protected] Produzido no Brasil 2020

SUMÁRIO

Prefácio Introdução 1. A lógica capitalista 2. A economia do desejo 3. O Estado e a economia da necessidade 4. A economia do ódio 5. Conclusão — paz e guerra

Dedico este livro a Juliana, Francisco, Catarina e Maria Eduarda, onde busco força e serenidade para seguir adiante.

PREFÁCIO

Luiz Gonzaga Belluzzo

Abrigado nas trincheiras domésticas para escapar da mortal artilharia do Coronavírus, recebi um gentil telefonema de Eduardo. Sempre descontraído em seu sotaque carioca que me desperta agradáveis lembranças dos anos de Colégio Santo Inácio, Eduardo sugeriu que eu assumisse o encargo de escrever o prefácio de seu novo livro. O título Economia do desejo suscitou a esperança de encontrar uma narrativa que escapa aos espartilhos que aprisionam a “razão econômica” nos calabouços de teorias ignorantes da complexidade da ação humana na sociedade dos indivíduos. Foi, de fato, o que encontrei. O espartilho é a fábula do indivíduo racional e maximizador da utilidade. Nas versões eruditas ou nas traduções vulgares, a hipótese da racionalidade individual é um pressuposto metafísico da ideologia dominante, necessária para apoiar a “construção” do mercado como um servomecanismo capaz de conciliar os planos individuais e egoístas dos agentes. Para esse paradigma, a sociedade onde se desenvolve a ação econômica é constituída mediante a agregação dos indivíduos, articulados entre si por nexos externos e não necessários, tais como os que atavam Robinson Crusoé a SextaFeira. Ainda no alvorecer do século XVIII, A fábula das abelhas , de Bernard de Mandeville, buscou a sociedade ideal trafegando na faixa da moral individualista, racionalista e utilitarista. Vícios privados, virtudes públicas. Mandeville conta a história de uma colmeia próspera e progressista, ambiente em que prevaleciam os vícios egoístas de todos as habitantes, incluído o roubo do produto alheio. Esse comportamento foi interceptado, em certo momento, pela nostalgia da moral cristã, a nostalgia da virtude. As abelhas resolveram

retroceder, voltar à prática da virtude. A prosperidade se converteu na decadência. Voltaire acolheu ironicamente as peregrinações de Leibniz e Mandeville. No Cândido, ou O otimismo , o ilustre iluminista encarregou o professor Pangloss de justificar as múltiplas formas do mal: “Tudo isso era indispensável [...]; infortúnios particulares fazem o bem geral.” Isso permitiu que Cândido formulasse uma definição da filosofia de Pangloss: é preciso dizer que está tudo bem quando as coisas andam mal. Já no primeiro capítulo do livro, Eduardo oferece aos leitores a narrativa de um episódio revelador das insidiosas práticas pseudocientíficas que abarrotam o mundo contemporâneo. Ao ministrar uma aula na Casa do Saber, foi interpelado por um cavalheiro de fino trato a respeito das críticas do palestrante ao neoliberalismo. O gentil cavalheiro manifestou sua discordância de forma cortês. Seu argumento foi ilustrado com o sucesso inequívoco das economias da Holanda, Dinamarca, Suécia, Noruega, Finlândia, Canadá. Nos debates corriqueiros com amigos e colegas neoliberais, Eduardo era frequentemente contraditado com a exibição do ranking dos países mais bemsucedidos. Esse ranking era construído a partir de um índice elaborado pela Heritage Foundation, conhecida e reconhecida por sua filiação aos princípios do liberalismo econômico. Cito Eduardo: “O índice mais utilizado para definir o grau de ‘liberdade econômica’ de um país e embasar as teses neoliberais leva este mesmo nome: Index of Economic Freedom . Um índice elaborado e calculado por uma fundação americana chamada Heritage, que na primeira página de seu site define sua missão como ‘formular e promover políticas públicas conservadoras baseadas nos princípios do livre mercado, Estado mínimo, liberdades individuais, valores tradicionais estadunidenses e fortalecimento da defesa estadunidense’.” Surpreso com a afirmação peremptória do cavalheiro elegante, Eduardo empenhou-se em examinar de forma mais acurada a construção do índice de liberdade econômica e descobriu que nos bastidores da precisão estatística abrigava-se uma fraude conceitual. “Percebe-se, ao final da análise, que o índice funciona como uma ‘conta de chegada’, criada para atribuir aos países mais ricos e desenvolvidos o rótulo de ‘livres’ ou ‘majoritariamente livres’ economicamente, e gerar uma relação enviesada e equivocada nas pessoas de relação de causa e efeito, num típico

exemplo da falácia cum hoc ergo propter hoc (se ambos acontecem juntos, um causa o outro).” Ao ler as considerações mencionadas, a respeito da construção do índice, recorri à psicanalista francesa Élisabeth Roudinesco, autora, entre outras obras, de uma imperdível biografia de Sigmund Freud. Exímia em percorrer os caminhos perigosos da filosofia e da psicanálise, Roudinesco ausculta, na aurora do século XXI, rumores cochichados nos bastidores da sociedade contemporânea. Descobre que a sociabilidade competitiva de nossos tempos entrega razão a Mandeville. Diz Roudinesco que estamos sempre nos indagando o que preferimos: as figuras mais puras, as maiores, as mais medíocres, as mais charlatãs, as mais criminosas? Classificar, ranquear, calcular, medir, colocar um preço, homogeneizar: esse é o nada absoluto das investigações contemporâneas, impondo-se sem limites em nome de uma modernidade falsa que solapa todas as formas de inteligência, como a crítica fundamentada na análise da complexidade das coisas e das pessoas. Roudinesco desvela os desencantos da sexualidade pós-moderna. “Nunca a sexualidade foi tão desenfreada, e nunca a ciência avançou tanto na exploração do corpo e do cérebro. No entanto, nunca o sofrimento psicológico foi tão intenso: solidão, uso de drogas que alteram a mente, tédio, fadiga, dieta, obesidade, medicalização de cada segundo da existência. A liberdade do eu, tão necessária, e conquistada à custa de tanta luta durante o século XX, parece ter se transformado em uma demanda por contenção puritana.” Quanto ao sofrimento social, diz Roudinesco, é cada vez mais difícil de suportar, porque parece estar constantemente em ascensão, num contexto de desemprego juvenil e trágicos fechamentos de fábricas. O sexo não é experimentado como o companheiro do desejo, mas como um desempenho, uma ginástica, como a higiene para os órgãos, o que só pode levar à confusão afetiva. “Qual é o tamanho ideal da vagina, o comprimento correto do pênis? Com que frequência? Quantos parceiros em uma vida, em uma semana, em um único dia, minuto a minuto?” O avanço exasperado da “quantidade” encolhe o espaço de fruição da experiência amorosa. Não por acaso, estamos assistindo a um aumento nas queixas de todos os tipos. Ainda no primeiro capítulo, Eduardo recorre a Facebook, Google e demais gigantes da Internet para nos proporcionar uma análise excelente a respeito do processo de concorrência no capitalismo de todos os tempos. No capitalismo

de ontem, hoje e sempre, a concorrência é o caminho mais curto para o monopólio. Ele escreve: “Mesmo nos países tidos como praticantes de políticas neoliberais, o ‘livre mercado’ passa longe de existir. E isso é decorrência de dois motivos. O primeiro, o fato de que todo mercado sem regulação alguma tende no longo prazo ao monopólio ou ao oligopólio. O segundo vem da ideia de que, ao concentrar poder econômico, concentra-se também poder político, e é esse poder político que é utilizado para fazer do Estado um agente protetor das barreiras que impedem a competição tão defendida pelos discursos dos mesmos grupos que se beneficiam da sua falta.” O processo de concorrência é, ao mesmo tempo, um processo que envolve a alteração do tamanho da firma, a diversificação da estrutura produtiva e a existência de formas financeiras aptas a “descongelar” o capital já empregado e mobilizá-lo na direção de novos empreendimentos. Em outras palavras, o crucial na concorrência generalizada é a maior ou menor capacidade que as diversas unidades de capital apresentam para superar barreiras à sua expansão. Aqui, peço licença para a reprodução de um trecho do meu livro O capital e suas metamorfoses . Lá eu dizia que a modalidade de organização da empresa capitalista que torna possível a fusão de interesses entre os gestores capitaldinheiro e os administradores do capital produtivo é a sociedade anônima, cujo caráter “coletivista” se sobrepõe aos capitais dispersos e, ao mesmo tempo, reforça sua rivalidade. Essa forma desenvolvida de existência do capital dá origem ao monopólio, às formas mais escandalosas de controle político e à submissão do Estado aos ditames da finança. O desenvolvimento do capital financeiro depende da constituição dos mercados secundários de negociação dos títulos de dívida e ações que “regulam” a transferência da propriedade entre os capitalistas. Isso supõe o desenvolvimento dos mercados financeiros e de capitais incumbidos da avaliação dos títulos de dívida e dos direitos de propriedade sobre a riqueza e a renda. Esse “sistema” garante a reprodução do regime de apropriação privada da riqueza e, ao mesmo tempo, ameaça continuamente de aniquilação os proprietários individuais que não conseguem acompanhar a corrida imposta pelas “normas” técnicas, econômicas, políticas e financeiras que caracterizam o processo de concorrência. Os direitos de propriedade são também direitos à expropriação.

O coração do livro bate mais acelerado quando Eduardo trata das relações entre utilidade, desejo, dinheiro e ódio. Começo com o dinheiro. Georg Simmel, em seu livro A filosofia do dinheiro , mostra que o sujeito atacado pelo amor “doentio” ao dinheiro não é uma aberração moral, mas o representante autêntico do indivíduo criado pela sociedade argentária. As qualidades dos bens e o gozo de suas utilidades tornam-se absolutamente indiferentes para ele. Suas preferências, seus sentimentos e desejos são totalmente absorvidos pelo impulso de acumular riqueza monetária. É curioso observar como a sociedade argentária, ao transformar violentamente os indivíduos e sua subjetividade em simples coágulos monetários, pretenda ao mesmo tempo colocar barreiras, ensinando-lhes as virtudes da moderação, da frugalidade, da solidariedade. Então, como podemos falar de sentimentos como honradez, dignidade, autorrespeito, numa sociedade em que todos os critérios de sucesso ou insucesso são determinados pela quantidade de riqueza monetária que cada um consegue acumular? Volto a Roudinesco. Ela registra o descompasso entre as promessas e as realizações da sociedade competitiva utilitarista. Quanto mais se promete aos indivíduos felicidade e segurança, mais a infelicidade persiste, mais as vítimas das promessas não cumpridas se revoltam contra “aqueles que os traíram”. Parece impossível não detectar, nessa curiosa psicologização da existência que tomou conta da sociedade e que está contribuindo para o surgimento da despolitização e do ódio à política, a expressão mais insidiosa do que Michel Foucault e Gilles Deleuze chamaram de pequeno fascismo cotidiano, íntimo, desejado, admitido e celebrado pelo próprio indivíduo, que é seu protagonista e sua vítima. Um pouco de fascismo, que naturalmente não tem nada a ver com os grandes sistemas fascistas, uma vez que desliza dentro de cada indivíduo sem que ele perceba, sem nunca pôr em causa os princípios sacrossantos dos direitos do homem, do humanismo, da democracia. As normas sociais da concorrência utilitarista que guiam o sujeito pósmoderno levam à morte o indivíduo iluminista de Adam Smith, aquele consciente de sua liberdade e empenhado na preservação de sua autonomia. Ele foi substituído por um indivíduo depressivo em seus insucessos e frustrações, sempre preocupado em retirar de si, com doses maciças de Prozac, a essência de todo o conflito.

Diante das misérias da vida e de uma vida de misérias, as vítimas dos deuses mundanos buscam refúgio no Incompreensível. No livro As ruínas do neoliberalismo , Wendy Brown ultrapassa as banalidades dos diagnósticos que gritam, em debandada, “Polarização!!! Populismo!!!”. Brown vai mais fundo: os valores e instituições ocidentais — progresso, iluminismo e democracia liberal — batem em retirada diante da ofensiva das milícias que reúnem, no mesmo pelotão, mercenários e buchas de canhão na defesa do liberalismo econômico, do moralismo, do autoritarismo, do nacionalismo, do ódio ao Estado, do conservadorismo cristão e do racismo. Essa turba combina o discurso moralista com a conduta amoral, brutalizada e incivilizada.

INTRODUÇÃO

“Agora, finalmente, estamos nos colocando seriamente a perguntar se de fato é necessário existir as chamadas ‘classes baixas’ na sociedade: ou seja, se é preciso existir um grande número de pessoas condenadas desde seu nascimento a um trabalho duro, para prover a outros os requisitos de uma vida refinada e privilegiada; enquanto eles próprios são proibidos, por sua pobreza, de ter qualquer fatia dessa vida. A esperança de que a pobreza e a ignorância possam ser gradualmente extintas tem, na verdade, bastante fundamento no progresso contínuo da classe trabalhadora ao longo do último século. As novas tecnologias os têm aliviado da maior parte dos trabalhos exaustivos e degradantes. Os salários têm crescido. A educação tem melhorado e se tornado disponível a um maior número de pessoas; os sistemas de transporte e de comunicação têm permitido que negócios em diferentes partes do país possam se comunicar facilmente uns com os outros e desenvolver metodologias e políticas amplas e transparentes; ao mesmo tempo, a crescente demanda por tarefas intelectuais exige tantos trabalhadores, que esses agora superam os que são totalmente despreparados. Uma boa parte dos que fazem trabalhos braçais deixou de fazer parte das ‘classes baixas’, no sentido original em que o termo usualmente é utilizado; e alguns deles já levam hoje uma vida mais refinada e nobre do que a maioria dos membros das ‘classes altas’ tinham há um século. Esse progresso tem feito mais do que qualquer outra coisa para trazer atenção ao questionamento de se é realmente impossível que todos possam começar a vida no mundo com uma chance justa de ter uma vida com cultura, livre das dores da pobreza e das influências nocivas dos trabalhos braçais; e essa questão tem sido chave pelo aumento da responsabilidade de nossa era.” 1

O texto acima poderia ter sido escrito por qualquer um dos renomados economistas neoliberais dos dias de hoje. Vários desses argumentos são, com muita frequência, repetidos incansavelmente por muitos daqueles que defendem o modelo capitalista — que prepondera na maior parte do mundo — para rebater as críticas que recaem sobre um sistema que acumula tanta riqueza nas mãos de poucos e tão pouca riqueza oferece para ser distribuída pela maioria. “Uma pessoa pobre vive hoje com mais qualidade e por mais tempo do que um rei costumava viver na Idade Média”, dizem uns. “A extrema pobreza tem sido brutalmente diminuída ao longo das últimas décadas, graças ao avanço do capitalismo”, dizem outros. E assim, alimentados pela esperança de que “as coisas têm melhorado” nas últimas décadas, e renovando a confiança no sistema que os condenou a uma vida cheia de restrições e sofrimento, muitos seguem defendendo seus cruéis algozes e fortalecendo um sistema que ganha cada vez mais força e deixa um rastro de destruição cada vez maior. O fato curioso a respeito do texto inicial deste capítulo, porém, não é o modo como resume bem os argumentos utilizados por boa parte dos economistas liberais para defender o modelo capitalista vigente no mundo. O intrigante é o fato desse texto ter sido escrito por um economista no final do século XIX, há quase 150 anos. É um trecho do livro Principle of Economics (Princípio da Economia), de Alfred Marshall, um dos maiores economistas de sua época e ainda um pensador extremamente influente, graças à capacidade que seus trabalhos têm de organizar e integrar os conceitos de demanda, oferta, utilidade marginal e custos de produção. Infelizmente, existe uma enorme distância entre o discurso esperançoso dos economistas neoliberais e a realidade vivida pela maior parte da população mundial. Apesar de, realmente, ter havido uma diminuição relevante do número de pessoas que vivem na extrema pobreza (as que recebem menos de US$ 1,90 por dia) ao longo das últimas décadas — fato celebrado também por instituições como o Fundo Monetário Internacional, Banco Mundial e outros notórios defensores das políticas de livre mercado e Estado mínimo —, a parcela da população mundial que vive em situação de pobreza (a que recebe menos de US$ 5,50 por dia) é ainda assustadora, 2 pois representa quase 50% da população mundial, ou quase 4 bilhões de pessoas. Mesmo os avanços registrados no caso da diminuição das taxas de extrema pobreza não deveriam ser comemorados ou associados ao “sucesso” do modelo capitalista. E são vários os motivos que levam a essa conclusão. Primeiro

porque aconteceram em um ritmo absolutamente desproporcional ao aumento da produção da riqueza mundial (e em muitos casos sem correlação com ele). Um simples cálculo pode demonstrar que o mundo não suportaria a geração de riqueza necessária para, com o modelo capitalista de distribuição de riqueza, acabar com a pobreza. Basta observar que da década de 1960 à década de 2010 a quantidade de riqueza gerada no mundo (PIB Global), já descontada a inflação do período, multiplicou-se por mais de 8 vezes (800%). Se, mesmo multiplicando a quantidade de riqueza gerada no mundo por tantas vezes (o que levou a vários recursos naturais darem sinais claros de esgotamento), temos ainda metade da população vivendo em situação de pobreza, como imaginar um mundo capaz de oferecer os recursos naturais necessários para tirar toda a população dessa situação?

PIB Global (Produto Mundial Bruto) 1960-2017

Fonte: https://www.worldometers.info/gdp/

Fonte: www.researchgate.net/figure/Global-poverty-pyramid-Prahalad-2009_fig3_325704218

Pirâmide global de riqueza Uma visão geral da distribuição de renda (US$)

Fonte: www.statista.com/chart/11857/the-global-pyramid-of-wealth/

Em segundo lugar, é importante destacar que boa parte das pessoas que têm saído da situação de extrema pobreza ao longo das últimas décadas é de chineses; são de um país com um modelo econômico diferente do defendido pelos economistas neoliberais, que creditam ao sucesso do capitalismo a diminuição dessas estatísticas. Aliás, quando observamos os indicadores relativos ao ganho de qualidade de vida utilizados pelos defensores do regime neoliberal, encontramos também pouca correlação com o sucesso do capitalismo. Percebam que da década de 1960, logo após a revolução cubana, até 2016, a expectativa de vida dos moradores da ilha do Caribe subiu de 63/83 anos para 79/74 anos. Enquanto isso, a expectativa de vida nos Estados Unidos, que em 1960 era de 69/77 anos, quase 6 anos a mais do que a dos cubanos, em 2016 era de 78/69 anos, inferior à de seus “vizinhos comunistas”. Por fim, devemos voltar novamente ao texto inicial deste capítulo e nos perguntar qual deve ser o objetivo de uma sociedade justa e solidária. Elevar a parcela pobre da população a um nível logo acima da linha que define estatisticamente “pobreza” e deixá-los vivendo ainda em condições de escassez e

sofrimento, ou realmente permitir que “todos possam começar a vida no mundo com uma chance justa de ter uma vida com cultura, livre das dores da pobreza e das influências nocivas dos trabalhos braçais”, como sonhava Alfred Marshall?

Notas 1. A. Marshall, Principles of Economics (Palgrave Classics in Economics) , Kindle Edition, Londres, Palgrave Macmillan UK, 2013. p. 9. Tradução livre do autor. 2. www.worldbank.org/en/topic/poverty/overview

1. A LÓGICA CAPITALISTA

A lógica defendida pelo sistema capitalista é sedutora e, no papel, aparentemente inquestionável. O sistema deveria funcionar, pelo menos em tese, gerando e distribuindo riqueza entre todos seus participantes da maneira mais rápida e meritocrática possível. É tão bem estruturada e simples que, em poucas linhas, qualquer um pode entendê-la. Funciona assim: o objetivo final de toda empresa e pessoa em suas atividades comerciais é o lucro. O lucro, por sua vez, é definido pela diferença entre o preço pago pelos insumos necessários para a confecção de um produto (ou elaboração de um serviço) e o preço pelo qual ele é oferecido e vendido no mercado. Já esse preço pelo qual o produto é vendido no mercado varia em função, principalmente, do quanto as pessoas estão dispostas a pagar por aquilo que o produto pode lhes oferecer. Na teoria econômica, chama-se isto de utilidade marginal . Ou seja, qual é a utilidade adicional que uma pessoa passa a ter ao adquirir aquilo que está sendo oferecido. Quanto maior essa utilidade, maior será sua disposição para trocar uma fatia mais gorda de sua riqueza pelo objeto. Em outras palavras, maior será o preço que aceitará pagar. Ao estimular o lucro, o sistema fará com que as empresas foquem suas atividades nos produtos e serviços que oferecem maior utilidade para as pessoas e que, portanto, podem ser vendidos pelos maiores preços. Isso fará com que, ao concentrar seus esforços em atender a essa utilidade buscada pelos compradores, o mercado concentre também seus esforços em atividades que são úteis para a vida das pessoas (e em tese a melhoram). Ao oferecer um lucro cada vez maior para aqueles que se dedicam a ofertar, com a própria empresa, esses produtos e serviços, essas atividades irão atrair uma competição de novos interessados em participar desses grandes lucros. E é essa competição que fará com que a demanda pelos insumos, entre eles a mão de obra utilizada para

confeccionar esses produtos, também cresça. Com maior demanda, o preço desses insumos crescerá, consumindo parte do lucro que antes ficava concentrado nos donos das empresas e o distribuindo para toda a cadeia. Esse “transbordamento” do lucro que inicialmente concentra-se no dono do capital, mas que depois, ao longo do tempo e por meio da competição pelas atividades de maior lucro, é distribuído por toda a cadeia, é o que a teoria econômica chama de trickle-down economics . E é através desse mecanismo que o capitalismo consegue maximizar a utilidade oferecida com seus bens e serviços à sociedade e ao mesmo tempo distribuir riquezas de maneira justa e meritocrática (de acordo com os méritos de cada um ao longo do processo). É inegável que é uma bela e bem-construída história. Para que isso aconteça, defendem aqueles que acreditam no modelo, é preciso que a competição aconteça da maneira mais livre possível. E é essa competição livre, sem interferências, que permite que a “mágica” aconteça e os recursos sejam distribuídos de maneira ótima e justa. Como numa daquelas experiências que alguns de nós fizemos no colégio, em que uma série de tubos verticais tem pequenos vasos intercomunicantes em sua base. Enchemos então os tubos com quantidades de água diferentes e abrimos esses pequenos vasos que os ligam. A água então flui daqueles que tem mais para os que tem menos, fazendo com que a distribuição fique igual entre todos. Quanto menos livre for a comunicação entre os vasos (menos aberta estiver a passagem), mais demorado será o processo para se chegar até a condição final de igualdade. Apesar de não defender que todos os “tubos” da sociedade tenham a mesma quantidade de água ao final do processo, o discurso capitalista diz que indivíduos que se “esforcem” de maneira igual e tenham a mesma “competência” chegarão ao final do processo com a mesma quantidade de água em seus tubos, a tão anunciada meritocracia . A preocupação deve ser então a de garantir que o mercado tenha as condições de existir da maneira mais “livre” possível e com a menor (idealmente sem nenhuma) interferência nos processos de negociação e formação de preços. Isso, na prática, significa um ambiente com menos leis protegendo os trabalhadores, menos gastos sociais, menos impostos, menos subsídios a qualquer atividade e, principalmente, menos estrutura de Estado. Dele, o Estado, deve sobrar somente o mínimo. Daí a expressão “Estado mínimo” defendida pelos defensores dessa tese. E o “mínimo” que sobra deve ser somente o suficiente para garantir as condições para que o “livre mercado”

exista, ou seja, para que exista um Estado que garanta os direitos à propriedade e tenha o monopólio do uso da força para impedir qualquer tentativa de sabotar o funcionamento do sistema. O sistema capitalista, portanto, baseia-se na afirmação, quase dogmática, de que só o livre mercado é capaz de gerar riqueza, distribuí-la de forma justa e maximizar a utilidade das pessoas. Por que será então que isso não acontece, e o mundo ainda sofre com a pobreza e a degradação da condição humana? Será porque, como defendem os economistas neoliberais, temos de fazer o mercado ainda mais livre do que é hoje? Diminuir a carga tributária, acabar com as leis do trabalho, reduzir o tamanho dos Estados e incentivar ainda mais o lucro? Ou será que existe algo além? A verdade é existem dois fatores-chave que, curiosamente, parecem passar despercebidos para boa parte dos economistas e desmontam essa lógica neoliberal, que promete um mundo melhor, baseado na incessante busca pelo lucro. O primeiro deles é o fato de que o livre mercado, da forma como é descrito pela teoria, em um dado momento acaba se sabotando no mundo real. E o segundo está relacionado à definição de “utilidade”, variável que se promete maximizar com o modelo. Sobre o primeiro assunto, discorrerei nos parágrafos a seguir. Sobre o segundo, é o tema principal desta obra. O fato de que um mercado mais livre gera uma sociedade mais rica e justa é tido como uma verdade absoluta pelos defensores da tese neoliberal. O curioso, porém, é notar a carência de evidências que demonstrem esse fato, quando observamos a realidade dos diversos países do mundo e os modelos econômicos que adotam. Talvez, em relação a serem os mais ricos, ou seja, os que mais produzem riquezas por habitante — o que é medido pelo valor de seu Produto Interno Bruto (PIB)/ per capita —, haja sim alguma correlação, apesar de não tão clara como alardeiam. Mas, certamente, não há correlação alguma entre aqueles que são os mais justos, ou os que têm melhor qualidade de vida de seus habitantes, e a adoção de políticas neoliberais. O índice mais utilizado para definir o grau de “liberdade econômica” de um país e embasar as teses neoliberais leva este mesmo nome: Index of Economic Freedom . Um índice elaborado e calculado por uma fundação americana chamada Heritage, que, na primeira página de seu site, define sua missão como “formular e promover políticas públicas conservadoras baseadas

nos princípios do livre mercado, Estado mínimo, liberdades individuais, valores tradicionais estadunidenses e fortalecimento da defesa estadunidense”. 3 Navegando um pouco mais no site, encontra-se a descrição dos membros da direção e do conselho de administração (board of trustees) da instituição com uma foto em que aparecem dezenove pessoas, das quais quinze são homens brancos, quatro são mulheres e somente uma pessoa é negra (o tal livre mercado parece não estar funcionando na própria instituição que o defende com tanto afinco, oferecendo oportunidade a todos de maneira igual). Acessando o nome dos integrantes para analisar seu currículo, nota-se que são todos ex-executivos de grandes grupos empresariais ou de grupos políticos conservadores e ultraconservadores estadunidenses. Mas voltemos ao índice em si, divulgado pela fundação Heritage, o Index of Economic Freedom . Sempre ouvi em minhas discussões com colegas defensores das teses neoliberais o argumento de que os países pior ranqueados no índice eram em sua maioria países muito pobres, a maior parte deles africanos, o que seria uma demonstração clara e inequívoca de que quanto menor a liberdade econômica de um país, menor a prosperidade experimentada por seu povo. O mesmo índice também é utilizado insistentemente para justificar a urgência de reformas no Brasil que tornem nossa economia mais “livre”, permitindo assim que alcancemos a prosperidade como nação. Somos um dos últimos colocados na lista, ocupando em 2019 a posição 150 entre os 180 países ranqueados. 4 O curioso é notar que eu nunca havia parado para compreender como era calculado o tal índice de liberdade econômica. Eu simplesmente ouvia os argumentos dos colegas e, ao atribuir ao índice um significado sinônimo de liberdade econômica, imaginava que tinham certa razão em seus comentários. Afinal de contas a relação apresentada era direta e inequívoca. Mas como será que essa fundação fazia para quantificar um conceito qualitativo como liberdade econômica? Essa era a pergunta que eu deveria ter feito desde o começo, mas que nunca havia me vindo à cabeça. Até o dia em que fui realizar uma palestra na Casa do Saber, em São Paulo, e fui questionado de uma maneira nova, por um dos participantes, sobre o tal índice. Era um senhor, na casa de seus 50 anos, vestindo roupas sociais, e com uma postura firme, mas serena, quase profissional. Levantou a mão sinalizando que tinha uma dúvida sobre o que eu tinha falado e, ao receber a palavra, começou: “Olá, Eduardo, como vai? Eu percebo que a maior parte dos que lhe assistem hoje compartilham de suas ideias e visões de mundo. Eu, porém, não

compartilho. Talvez seja o único nesta sala.” Houve certa surpresa nos presentes, mas nenhum constrangimento, dada a educação e o cuidado com os quais o senhor colocava suas palavras. Ele continuou: “Eu sou um adepto do liberalismo econômico. E os países que você citou em sua palestra como sendo os países que mais distribuem renda e que têm melhores indicadores de qualidade de vida adotam todos políticas liberais na economia. Holanda, Dinamarca, Suécia, Noruega, Finlândia, Canadá... Todos têm um grau de liberdade econômica muito grande, o que pode ser visto pela posição que ocupam no ranking de liberdade econômica. É por isso que eu sou contra a interferência do Estado na economia, sou a favor de uma legislação trabalhista menos rigorosa e também a favor de uma menor carga tributária pesando sobre a população.” E me passou de volta a palavra. Uau! E agora, o que dizer? Eu havia estudado a economia de quase todos esses países, a maior parte deles, sociais-democracias, e jamais achei que um dia iria ouvir que eram exemplos do sucesso da tese neoliberal. Era óbvio para mim que não eram. Em quase todos os citados eu sabia que o Estado exercia um papel fundamental na oferta de serviços públicos, redistribuição de riqueza e proteção dos trabalhadores. Mas eis que o ranking, sinônimo de liberdade econômica, os trazia bem colocados! A prova de que eram neoliberais! Havia algo de errado no reino da Dinamarca... Literalmente. Resolvi chegar em casa e estudar o índice na internet. Algo tão simples (e certamente tão fácil hoje em dia, dada a facilidade de acesso às informações), que me surpreende que eu nunca houvesse feito. E, ao descobrir como era calculado o índice, tive uma enorme surpresa. O índice era absolutamente enganoso em relação à correlação entre o quão “neoliberais” eram as economias dos países e o lugar que ocupavam no ranking. Uma farsa! Mas uma farsa tão bem elaborada e propagandeada que, ao que parece, nunca nenhum de meus colegas havia feito aquilo que eu decidira fazer: pesquisado sobre como o índice era calculado. Simplesmente o tinham como uma medida do grau que um país adotava da tese do Estado mínimo e do livre mercado. O índice é calculado de uma maneira incrivelmente simplória. Elegem-se doze temas para avaliar o grau de liberdade econômica de um país, divididos em quatro categorias: Estado de Direito, Tamanho do Governo, Eficiência Regulatória e Abertura dos Mercados. Faz-se, então, uma média simples, sem qualquer definição de pesos, com os resultados dos doze temas. Curiosamente, vários dos temas parecem ter muito pouco a ver com o conceito de liberdade

econômica que imaginamos. Ou pelo menos não com o peso que daríamos. Por exemplo, o tema Integridade do Governo ( Government Integrity , uma medida da percepção da corrupção no país), tem o mesmo peso do tema Liberdade do Comércio ( Trade Freedom ). Vários dos temas têm conceitos qualitativos, difíceis de se mensurar, e acabam por gerar relações de proporcionalidade absolutamente absurdas. Percebe-se, ao final da análise, que o índice funciona como uma “conta de chegada”, criada para atribuir aos países mais ricos e desenvolvidos o rótulo de “livres” ou “majoritariamente livres” economicamente, e gerar uma relação enviesada e equivocada nas pessoas de relação de causa e efeito, num típico exemplo da falácia cum hoc ergo propter hoc (se ambos acontecem juntos, um causa o outro). Países como a Dinamarca, Suécia e Noruega, que lideram os rankings que medem a qualidade de vida da população (como por exemplo o Índice de Desenvolvimento Humano, IDH), são todos “majoritariamente livres” no ranking de liberdade econômica. Ao acessar, porém, a memória de cálculo de suas notas, podemos observar que têm uma combinação de notas altas em itens como Integridade do Governo, Saúde Fiscal e Eficiência do Judiciário, e notas baixas (às vezes muito baixas) em Gastos Governamentais, Liberdade das Leis Trabalhistas e Carga Tributária. Ou seja, esses países — indicados levianamente por muitos como exemplo do sucesso das políticas neoliberais —, praticam, nos temas-chave — foco das reformas propostas como solução dos problemas de países como o Brasil — o contrário do receituário neoliberal, a saber, relevantes gastos sociais, alta carga tributária (concentrada nos indivíduos mais ricos da população) e legislação trabalhista rigorosa, defendendo os direitos dos que não têm acesso ao capital. Por outro lado, se o Brasil passasse a ter uma nota boa no quesito Integridade do Governo e passasse a ter um resultado fiscal melhor (passando por exemplo de déficit para superávit primário), mesmo sem alterar em nada a burocracia existente para as empresas no país, sem alterar os impostos cobrados, sem mexer nas regras de importação e sem melhorar seu sistema legal de proteção à propriedade, ou seja, sem alterar na prática nada relativo àquilo que é tido como um ambiente de liberdade econômica, subiria mais de cinquenta posições no ranking... Mesmo nos países tidos como praticantes de políticas neoliberais, o livre mercado passa longe de existir. E isso é decorrência de dois motivos. O primeiro, o fato de que todo mercado sem regulação alguma tende no longo

prazo ao monopólio ou oligopólio. O segundo vem do fato de que, ao concentrar poder econômico, concentra-se também poder político, e é esse poder político que é utilizado para fazer do Estado um agente protetor das barreiras que impedem a competição tão defendida pelos discursos dos mesmos grupos que se beneficiam da falta dela. Analisemos o primeiro motivo, o dos mercados não regulados tenderem no longo prazo ao monopólio, ou, usando linguagem econômica, à consolidação. Vejamos um exemplo incrivelmente didático ocorrido ao longo das últimas décadas: as empresas pontocom. A internet, que tem suas raízes em tecnologias desenvolvidas pelo sistema de defesa americano nas décadas de 1960 e 1970, transformou-se rapidamente, a partir da segunda metade da década de 1990, em uma plataforma de negócios que desafiava as fronteiras do mundo físico. Criou-se, rapidamente, um ambiente de negócios muito pouco regulado e com pouquíssimas barreiras de entrada, o sonho da tese neoliberal. Nesse ambiente, jovens universitários em suas garagens podiam competir em pé de igualdade com as maiores empresas do mundo, criando um ambiente competitivo meritocrático e quase utópico. O resultado, depois de poucas décadas, foi um território dominado quase que totalmente por monopólios. Com uma taxa de mortalidade e consolidação sem precedentes na história, se as empresas que se lançaram na “livre competição” da internet fossem pessoas numa guerra, não haveria cemitérios suficientes para enterrá-las. Facebook tornou-se um monopólio, Google, Instagram, Linkedin, Amazon, WhatsApp, Twitter e tantos outros também. Todas as outras que tentaram competir morreram ou foram absorvidas, fazendo com que o grau de dependência do mercado a essas empresas que se transformaram em monopólios explodisse ao longo dos anos. Isso permitiu que o preço dos serviços oferecidos por elas pudesse ser aumentado também exponencialmente, quebrando várias empresas e capturando boa parte da lucratividade das que resistiram. E fazendo de alguns jovens de 20 ou 30 anos algumas das pessoas mais ricas do mundo, acumulando dezenas e dezenas de bilhões de dólares. Mas como esse processo de consolidação acontece? Um simples exemplo pode explicar ao leitor e à leitora. Imagine que existam duas empresas que realizam uma mesma atividade, por exemplo, a venda de roupas esportivas. Imagine ainda que essas duas empresas tiveram ao longo do último ano um mesmo resultado, R$ 1 milhão de lucro. Agora imagine que as duas empresas

têm também algumas características distintas. A primeira vinha de um lucro de somente R$ 200 mil no ano anterior, quando foi inaugurada, e a segunda vem há vários anos tendo um lucro parecido. A primeira desenvolveu uma marca que caiu no gosto da parcela jovem da população, grande usuária de artigos esportivos, sendo inclusive usada por vários atletas de ponta, formadores de opinião. A segunda é uma marca antiga, já com menos apelo nos formadores de opinião. A primeira tem sistemas de gerenciamento de estoque modernos e é mais eficiente do que a segunda. Tudo isso vai fazer com que a primeira seja percebida pelo mercado como tendo um valor maior do que a segunda. Na linguagem de mercado, dizemos que a primeira empresa tem um “múltiplo” maior do que a segunda. Isso porque o valor dela será um múltiplo maior do seu resultado do que o da segunda. Digamos que a primeira tenha um múltiplo de 10 e a segunda um múltiplo de 5. Isso fará a primeira ter um valor de mercado de R$ 10 milhões enquanto a segunda terá um valor de mercado de R$ 5 milhões. Imagine então que o dono da primeira empresa tem uma ideia genial. Ele liga para o dono da segunda empresa e pergunta se ele não quer juntar as duas operações. Assim, a segunda empresa poderá utilizar os sistemas de gerenciamento da primeira e poderá reformular e modernizar sua marca com a equipe de marketing da primeira, aumentando assim seu crescimento. A primeira, com a união das duas, poderá ampliar sua capacidade produtiva e acabar com um de seus competidores. Mas o melhor ainda está por vir. Ao absorver a segunda empresa, a primeira passa a consolidar os dois resultados, e o seu múltiplo passa a valer para a operação conjunta. Se antes as duas empresas somadas valiam R$ 15 milhões, agora, juntas, terão um lucro de R$ 2 milhões com um múltiplo de 10, ou seja, um valor de R$ 20 milhões. Esse ganho imediato, de R$ 5 milhões, resultante da consolidação das empresas é dividido entre os dois donos e todos saem ganhando. A história parece linda dentro da lógica capitalista. E por algum tempo pode até ser. O fato de o mercado ter perdido um competidor e ficado concentrado na primeira empresa é, a princípio, visto pelos defensores da tese neoliberal até com bons olhos. Afinal, ao consolidar as empresas debaixo daquela que tem maior eficiência operacional, maior crescimento, melhor reputação e melhores práticas, o que se está fazendo, na verdade, defendem eles, é concentrar os recursos disponíveis onde eles são mais bem utilizados, gerando ganho para todos.

O tempo então decorre, e a consolidação das empresas faz com que os empregados da nova empresa consolidada tenham menos lugares para trabalhar. Passam a ser, então, mais dependentes das condições de emprego oferecidas pelo dono da empresa. Os consumidores têm agora menos poder de barganha (e, portanto, menor influência sobre os preços), dado que possuem menos opções para comparar, na hora de comprar. Com uma estrutura de ativos maior e com um maior resultado, a nova empresa passa a ter acesso a crédito mais farto e barato, e passa a comprar de seus fornecedores quantidades maiores, conseguindo melhores preços na negociação e criando uma importante barreira de entrada a eventuais novos competidores que tentem participar do mercado. Mas o pior efeito, e aquele que mais trará resultados contrários aos apregoados pela teoria do livre mercado, será o resultante daquilo que passa a ser acumulado junto com o lucro resultante da nova operação pela nova empresa. Estamos falando do poder, principalmente político, que passará também a estar acumulado nessa nova empresa. É exatamente esse poder político, fruto do poder econômico acumulado e da capacidade de influenciar os mercados de trabalho, de insumos e de consumo, que essa empresa usará para manipular o Estado, controlando as decisões políticas que serão tomadas a partir daquele momento e transformando-o no seu maior aliado, para impedir que o livre mercado exista e barreiras de entrada ainda mais fortes sejam criadas para novos potenciais competidores. Estão formados o monopólio e o pior cenário possível para trabalhadores, consumidores e empresas menores. E o melhor possível para a lucratividade da empresa que largou na frente das demais no processo de consolidação. Todos os ganhos iniciais vão sendo perdidos ao longo do tempo, e o resultado final é um desastre. Este é, talvez, o principal problema decorrente do acúmulo extremo de riqueza dentro do modelo capitalista. Não é somente, como pensam muitos, o fato de algumas dezenas de ricos terem mais riquezas do que algumas centenas de milhões de pobres. Isso, claro, não é algo saudável para o sistema, pelo fato de a riqueza existente a ser distribuída ser de natureza finita, como descrito em meu livro Desigualdade & caminhos para uma sociedade mais justa . Lá, demonstro como a abundância excessiva de poucos necessariamente significa a escassez de muitos. O pior problema da concentração extrema de riqueza é o fato de que, junto com essa riqueza, é também acumulado poder. E é esse poder que toma posse do Estado, destruindo completamente a

representatividade do poder público e a possibilidade de uma sociedade que distribua oportunidades de maneira justa. Engana-se quem pensa que a reforma da Previdência a ser aprovada em um país extremamente desigual será a melhor para a maior parcela da população. Que os impostos existentes no país serão aqueles que melhor distribuírem a riqueza e as oportunidades entre seus habitantes. Que as leis e punições aprovadas pelos legisladores limitarão de maneira equivalente diferentes grupos econômicos e classes sociais. A verdade é que as decisões de governo num país onde a riqueza é muito concentrada passam a ser sempre aquelas que mais beneficiarem aqueles já privilegiados por concentrarem a maior parte da riqueza daquele grupo. Vejamos um exemplo incrivelmente didático, o do poder político do agronegócio no Brasil. Segundo dados do Censo Agropecuário de 2017, realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o número de estabelecimentos (propriedades) no campo com mais de 1 mil hectares era de 51.203, cerca de 1% do número total. Se considerarmos a população de proprietários desses latifúndios sendo igual ao número de estabelecimentos (é, na verdade, menor, dado que a mesma pessoa pode ter mais de um estabelecimento), estamos falando de um número que representa 0,02% da população brasileira. Num parlamento com 513 deputados federais divididos proporcionalmente entre os interesses da população, esses proprietários de latifúndios deveriam ter no máximo um representante. Seus trabalhadores, alguns. E os pequenos e médios agricultores, também alguns. A realidade, porém, passa longe disso, fazendo com que a chamada Bancada do Agronegócio tenha mais de duzentos deputados representando o interesse dos grandes produtores, 5 enquanto os pequenos agricultores não tenham quase representante algum no Congresso Nacional para defender seus interesses. As condições de competição, já desiguais, ficam ainda mais prejudicadas pelas leis, incentivos e subsídios aprovados por esses deputados, favorecendo sempre os grandes agricultores, em detrimento dos pequenos. E o discurso político de todos, inclusive o desses grandes latifundiários, segue sendo o de que o problema do Brasil é a pouca liberdade econômica e a falta de competição entre as empresas.

Notas 3. www.heritage.org/about-heritage/mission 4. https://www.heritage.org/index/ranking 5. especiais.estadao.com.br/canal-agro/agrocenarios/agronegocio-tem-a-bancada-mais-bem-organizada/

2. A ECONOMIA DO DESEJO

Existe uma simpática anedota na qual um menino pergunta ao outro: “Você já percebeu que todas as vezes que procuramos alguma coisa encontramos no último lugar em que fomos procurar?” “É verdade. Comigo sempre acontece isso mesmo”, responde o amigo. “Sabe o porquê?”, insiste o primeiro “Não tenho ideia.” “Porque depois que você encontra não precisa mais procurar, bobo!” Sempre fiquei intrigado com a explicação oferecida pelos defensores do capitalismo, mais especificamente das políticas neoliberais. Por um simples, mas forte, motivo: elas fazem sentido! São de uma coerência sedutora e de uma lógica matemática quase inconteste. Como vimos no capítulo anterior, o estímulo ao lucro deveria fazer as empresas oferecerem serviços e produtos que proporcionassem maior lucratividade. Essa maior lucratividade viria, em boa parte, da capacidade de vendê-los por preços altos para os compradores. Esses preços altos seriam função da utilidade que ofereceriam para as pessoas que os adquirissem. E, assim, todo o sistema ficaria voltado para oferecer, distribuindo seus recursos e capacidade em ordem de prioridade, aquilo que fosse mais útil para as pessoas. A competição para participar dos mercados mais lucrativos aumentaria a demanda pelos insumos desse mercado (como mão de obra e matéria-prima), elevando assim os seus preços, consumindo parte dos lucros dos donos das empresas e distribuindo a riqueza gerada pelo sistema. Nessa lógica realmente fica difícil encontrar um erro. E tudo estaria bem se não fosse por um pequeno detalhe: o resultado dá errado! É intrigante ver uma máquina toda montada para produzir hambúrgueres, com todas as peças conhecidas, a engrenagem bem encaixada, e ao olhar o resultado na esteira final

ver sair... salsicha! O resultado final nos diz que alguma coisa está errada! Mas o que? Afinal, um sistema que promete maximizar a utilidade das pessoas não poderia gerar um mundo com tanta pobreza, sofrimento e individualismo. No que diz respeito à capacidade demonstrada de geração de riqueza do modelo, pode-se até argumentar que existe, sim, uma história de sucesso. Apesar dos economistas neoliberais serem enfáticos em dizer que o mundo ainda está longe do modelo ideal defendido por eles, é inquestionável que é nessa direção que o capitalismo tem caminhado. Cada vez menos riqueza acumulada pelo Estado e mais nas mãos da iniciativa privada, 6 maior comércio entre os países, bancos centrais com maior autonomia, cargas tributárias menores e uma competição cada vez maior e menos regulada entre as empresas. A direção é inequívoca. E é possível, talvez até muito provável, que esses fatores expliquem boa parte do crescimento exponencial na capacidade de geração de riqueza no mundo. Como já foi mencionado, da década de 1960 até a década de 2010, o mundo multiplicou sua capacidade de gerar riqueza mais de oito vezes em termos reais. Em apenas duas gerações, uma mudança brutal no tamanho do bolo a ser distribuído. Mas é esse mesmo bolo que segue não alimentando boa parte da população mundial, deixando metade dos quase 8 bilhões de habitantes do planeta na condição de pobreza. Por que será que a segunda parte da promessa, a de maximizar a utilidade das pessoas, não está sendo cumprida? O que não estaria funcionando na equação? Essa passou a ser minha busca. Até que um dia... encontrei! No último lugar que resolvi procurar. Na verdade, a solução foi fruto de dois fatores. E o primeiro deles um tanto quanto inusitado. Já faz três anos que minha vida deu uma enorme guinada. Uma cirurgia malsucedida me fez flertar com a morte e conhecer os limites da dor. Fiquei internado algumas semanas no hospital e alguns acontecimentos durante essa semana me fizeram repensar minha vida e enxergar o sistema capitalista de uma forma como nunca havia enxergado antes. A história de como o processo aconteceu está em meu livro O que os donos do poder não querem que você saiba , não faria sentido repeti-la aqui. O que não está naquele livro, nem no seguinte, Desigualdade & caminhos para uma sociedade mais justa , é o que eu atravessei em minha vida pessoal depois de tomar essa decisão de mergulhar

nos estudos sobre a desigualdade, convivendo com os mais pobres e oferecendo a eles minha voz na luta por um sistema mais justo e humano. Foram anos difíceis. Não são fáceis ainda, acho que nunca serão. Mas já foram muito mais difíceis do que são hoje. A primeira fase foi talvez a mais difícil. Aquela onde foi preciso atravessar o vale da solidão e incompreensão das pessoas próximas. Sim, porque tomar a decisão de lutar junto aos que sofriam com os efeitos da pobreza e da desigualdade automaticamente me colocava como adversário daqueles que se beneficiavam dela. Esses, todo o meu ciclo de amizades até então. E aí, o que aconteceu no começo da caminhada foi que perdi os amigos e amigas que tinha, e demorei um tempo até fazer os novos. E exatamente nesse período, o de maior solidão, que vieram os maiores ataques. Na verdade contra-ataques, reconheço, dado que quem estava atacando o sistema com discursos e livros era eu. A diferença, porém, entre os ataques e os contra-ataques era a forma. Enquanto eu atacava os donos do poder com firmeza, mas dentro das regras, eu era atacado de volta com um número absolutamente assustador de ameaças incrivelmente agressivas. Para se ter ideia, houve um episódio quando em somente um dia recebi mais de 1.500 ameaças. Algumas delas ameaçando a minha vida, explicitamente. Minha família, o único porto seguro que eu ainda tinha, sentiu o golpe. Não foram poucos os dias em que eu chegava em casa e minha esposa, Juliana, estava chorando no quarto com medo de que algo me acontecesse. Meu filho mais velho, com 8 anos à época, já usava a internet e assistia naturalmente a alguns de meus vídeos. Como lia os comentários aos vídeos, passou a ter uma enorme dificuldade de dormir e medo de que alguém entrasse em nossa casa e nos fizesse algum mal. E eu, além dos ataques, sentia o peso de ter sido o responsável, talvez mesmo culpado, por ter trazido esse desequilíbrio e medo para dentro de casa. Resolvi então diversificar meus estudos. As leituras, que antes eram todas sobre o tema da desigualdade econômica, passaram a ser divididas entre os textos econômicos e os textos espirituais. Eu me inscrevi num curso de formação e aprofundamento em meditação e ioga e convidei minha esposa a fazê-lo comigo. Tudo numa tentativa de fortalecer o espírito para a jornada que havia escolhido e enfrentar as dificuldades que haviam surgido (e que eu imaginava que seguiriam surgindo). Ao longo dos meses seguintes fui me interessando cada vez mais pelos textos religiosos. Comecei meus estudos pelos livros sagrados das grandes

religiões. Li o Antigo e o Novo Testamento da Bíblia Sagrada. Depois o Alcorão. O Mahabharata, um dos grandes épicos do hinduísmo, e, separadamente a Bhagavad Gita (a Canção do Senhor), seu trecho mais famoso. Os Yogas Sutras de Patanjali. E, então, entrei no estudo dos trabalhos e biografias dos mais famosos santos, figuras religiosas, teólogos e filósofos de nossa era. Santo Agostinho, Santo Tomás de Aquino, São Francisco de Assis, São João Crisóstomo, Santa Teresa D’Ávila, San Juan de la Cruz, Santo Inácio de Loyola, Santo Antônio de Pádua, Søren Kierkegaard, omas More, Ashoka... Foram dezenas de livros, lidos compulsivamente durante as viagens de avião e as noites em que passava fora de casa. E apesar de terem sido escritos em épocas diferentes, alguns deles separados por milhares de anos, todos traziam uma mensagem em comum. A de que o caminho do crescimento espiritual é o caminho da humildade e do desapego. Uma vida cada vez mais limitada às verdadeiras necessidades e cada vez menos dependente (e identificada) com os desejos. E foi durante uma dessas leituras, logo após ter lido o trecho de um outro livro que discorria sobre os conceitos de utilidade marginal, que me veio o estalo! E se eu estivesse fazendo durante esse tempo todo a pergunta errada? Este, aliás, um alerta de Voltaire: as perguntas são mais importantes do que as respostas. Aconteceu então o segundo fator que me fez chegar à solução do problema que não me abandonava, sobre onde estava o erro da tese neoliberal do capitalismo. E a solução para o problema foi ver que não havia erro na lógica defendida. Ela estava absolutamente correta. E funcionando, melhor do que todos poderiam imaginar. O mundo realmente estava, cada vez mais, maximizando a utilidade disponível para seus habitantes. A questão era, o que queria dizer essa tal “utilidade”? Esse, o lampejo! A pergunta correta! Alfred Marshall, um dos pais da teoria moderna de oferta, demanda e utilidade marginal, já dera a dica em seu livro citado nesta obra, Principle of Economics , de 1890. Diz o autor no texto original: “ Utility is taken to be correlative to Desire or Want. It has been already argued that desires cannot be measured directly, but only indirectly by the outward phenomena to which they give rise: and that in those cases with which economics is chiefly concerned the measure is found in the price which a person is willing to pay for the fulfillment or satisfaction of his desire. ” Ou, em tradução livre: “A Utilidade é tida como relacionada ao desejo ou necessidade . Já foi argumentado que desejos não podem ser medidos diretamente, mas somente indiretamente pelo fenômeno

externo a que eles dão origem: esse com o qual a economia está principalmente preocupada em medir e é encontrado no preço que uma pessoa está disposta a pagar para preencher ou satisfazer seu desejo.” Era isso! Era tudo uma questão de nomes. Era óbvio e estava na minha frente esse tempo todo! O que é maximizado no sistema capitalista não é “utilidade”, esse conceito abstrato, difícil de ser definido, mas relacionado sempre a algo positivo. Aliás, essa correlação justifica o uso do termo e sua capacidade de convencimento de que, quanto maior a utilidade, melhor para todos, chancelando assim toda a lógica do sistema. O que é maximizado no sistema capitalista é o desejo! Não a necessidade! E existe um motivo claro para que assim seja. Tão claro que vem há milhares de anos sendo repetido por todos aqueles que se aventuraram na caminhada espiritual. Mas que parece ter passado despercebido por Marshall, dado que em seu texto comete um deslize enorme bem no final do parágrafo, quando diz “para preencher ou satisfazer seu desejo”. Isso porque, por definição, desejos não podem ser satisfeitos. Necessidades podem. E como o preço será sempre função da vontade de ter mais de alguma coisa para poder adquirir a tal “utilidade marginal”, uma economia que incentiva lucros focará exclusivamente em desejos, esse pote sem fundo, impossível de ser preenchido, ao passo que, se focasse nas necessidades, jamais maximizaria seus lucros. São vários os trechos e passagens dos livros religiosos que nos falam sobre essa natureza dos desejos. Como a passagem da Bhagavad Gita, em que Krishna diz ao guerreiro Arjuna: “Aquele que não se perturba com o incessante fluxo dos desejos — que entram como os rios no oceano, o qual está sempre sendo enchido mas sempre permanece calmo — pode alcançar a paz, e não o homem que se esforça para satisfazer tais desejos. Aquele que abandonou todos os desejos para o prazer dos sentidos, que vive livre de desejos, que abandonou todo o sentimento de propriedade e não tem falso ego — só ele pode conseguir a verdadeira paz.” O texto deixa claro: quem é movido pelo desejo não encontrará jamais a paz. Não terá nunca o suficiente. Viverá uma vida inteira se esforçando para satisfazer tais desejos que são como os rios entrando no oceano, nunca cessam, e jamais são capazes de enchê-lo. Há também este interessante trecho do Alcorão Sagrado sobre o tema: “Ao contrário, quem tiver temido o comparecimento ante o seu Senhor e coibiu a alma dos desejos terá o Paraíso por morada.” 7 Sem a capacidade de coibir a

alma dos desejos, impossível encontrar a morada da paz. Em outras palavras, o caminho do desejo não tem chegada, destino, é infinito e sempre incompleto. Temos então um novo problema, que é o de encontrar a linha que separa estes dois conceitos, desejo e necessidade. Essa tarefa não é tão simples como parece. Isso porque há o argumento de que os desejos surgem de uma prévia necessidade humana. O sexo, por exemplo, deveria ser considerado como necessidade ou desejo? Certamente até certo ponto uma necessidade, dado que sem ele não seria possível ao homem perpetuar-se como espécie. Mas, claramente, a partir de certo ponto, um puro desejo, já livre de qualquer necessidade, dado que existe toda uma indústria focada somente no aspecto de prazer do sexo. Alguns diriam que o prazer, porém, é também uma necessidade, e é um argumento a ser levado em consideração. Daí a dificuldade de traçar essa linha de argumentação. Dada minha formação em engenharia, tenho a tendência de levar as situações aos seus limites, para buscar uma visão mais clara sobre elas. Levando ao limite, fica fácil compreender os conceitos de desejo e necessidade, e também os efeitos de cada um dos dois que têm orientado a economia. Imagine o mundo inteiro, por exemplo, vivendo uma vida de renúncia aos desejos, como foi a vida de São Francisco de Assis. Ou como a de vários ascetas, que já passaram pelo mundo se abstendo dos desejos. Certamente não experimentaríamos guerra alguma. Os recursos naturais seriam utilizados num ritmo centenas de vezes menor do que hoje. O ar estaria mais limpo. E, muitos dirão, a vida seria mais chata. Mas, acalmem-se, o exercício de levar uma variável ao limite não busca defender um cenário, mas somente entender a função e a sensibilidade das variáveis numa equação. Imaginemos agora um mundo inteiro formado de indivíduos como Donald Trump, talvez um dos ícones no mundo daquilo que resolvi batizar neste livro como economia do desejo . Provavelmente não duraríamos muito. Explodiríamos em guerras, nos destruiríamos através de uma louca competição e acabaríamos com os recursos naturais do mundo para fazer mansões, iates, carros luxuosos e festas em uma questão de meses. Fica claro, ao utilizar esses dois exemplos extremos, o que é uma economia da necessidade e uma economia do desejo. Um outro texto religioso que traz uma boa visão sobre os conceitos de necessidade e desejo é a Bíblia Sagrada. Já em seu primeiro livro, o de Gênesis, É

lemos a história de Adão e sua companheira, Eva, no jardim do Éden. Ambos viviam uma vida de paz e fartura. Tinham comida à vontade: “O Senhor Deus fez nascer então do solo todo tipo de árvores agradáveis aos olhos e boas para alimento” (Gênesis 2:9). Tinham riqueza em abundância: “O ouro daquela terra é excelente; lá também existem o bdélio e a pedra de ônix” (Gênesis 2:12). Tinham liberdade: “Coma livremente de qualquer árvore do jardim” (Gênesis 2:16). Tinham companhia: “Com a costela que havia tirado do homem, o Senhor Deus fez uma mulher e a trouxe a ele” (Gênesis 2:22). E viviam em harmonia com o meio ambiente e com todos os animais. Até que um dia surge uma serpente, “o mais astuto de todos os animais” (Gênesis 3:1), a mãe do capitalismo selvagem moderno (ironia minha), e desperta no homem e na mulher algo novo. Algo que ia além de toda a necessidade que lhes era suprida por tudo aquilo que Deus, pacientemente, durante seis dias de trabalho, havia criado. O desejo! Disse a serpente sobre o fruto da árvore do conhecimento: “no dia em que dele comerem, seus olhos se abrirão, e vocês serão como Deus, conhecedores do bem e do mal” (Gênesis 3:5). Uau! Não era um desejo qualquer que estava sendo gerado. Era o desejo de, literalmente, ser como Deus! Não resistindo ao convite, Eva prova do fruto. E ali surge, simbolicamente, a economia do desejo. A Bíblia traz ainda diversas passagens que, assim como outros textos sagrados, discorrem sobre a natureza insaciável do desejo e saciável (e, portanto, capaz de trazer a paz de espírito) da necessidade. A mais clara de todas, escrita por aquele tido pela tradição judaico-cristã como o mais sábio homem que já pisou sobre a Terra, nos diz que “Quem ama o dinheiro jamais terá o suficiente; quem ama as riquezas jamais ficará satisfeito com os seus rendimentos” (Eclesiastes 5:10). Por fim, nos mostra que temos de fazer uma escolha. São Mateus diz que não é possível ter um modelo que maximize ambos, desejo e necessidade, um conceito que é também matemático. Afinal, num sistema de equações com mais variáveis do que equações, em que se busca maximizar uma variável, deve-se se escolher uma, e somente uma, variável a ser maximizada. São Mateus escreve no capítulo 6, versículo 24 de seu Evangelho: “Ninguém pode servir a dois senhores; pois odiará a um e amará o outro, ou se dedicará a um e desprezará o outro. Vocês não podem servir a Deus e ao Dinheiro.” Escolhemos servir ao dinheiro (desejo), e não a Deus (necessidade). Esse, um fato inequívoco. Mais do que isso, criamos um sistema econômico que a

todo instante alimenta esse desejo, fazendo com que não só ele siga existindo, mas siga existindo cada vez maior. De modo que alguém que mantenha determinado padrão de vida vá ao longo do tempo se sentindo mais pobre. Porque a distância entre aquilo que ela tem e o que deseja não se mantém constante, ela aumenta, dado que o que possui se mantém igual, mas a lista do que falta não para de crescer. Daí, outro conceito milenar, este do budismo, diz que o mais rico não é aquele que mais tem, e sim o que menos precisa. Ao precisar cada vez de mais, ficamos cada vez mais pobres. E desejamos, assim, cada vez mais. Há ainda um motivo fundamental para que o desejo, e não a necessidade, seja a base econômica do capitalismo. E esse motivo é o fato de o desejo inspirar aquela que é assumidamente a mola mestra do sistema: a competição! Caso fosse focado nas necessidades, o sistema rapidamente “encheria o pote” das pessoas, como simbolicamente no exemplo do Jardim de Éden. Ao “encher o pote”, eliminaria a necessidade do “adicional”. Ao diminuir (ou zerar) a utilidade marginal das coisas, causaria um impacto enorme (zerando no limite) o preço disposto a ser pago por elas. E afetaria assim a lucratividade dos negócios. Percebam que estamos percorrendo a mesma espiral defendida pela lógica do neoliberalismo, só que agora no sentido contrário. Sem a possibilidade do lucro, sobraria somente como mola mestra a solidariedade. Animais seguem vivendo um mundo parecido com esse baseado na economia das necessidades. Em algumas regiões, as poucas onde o homem ainda não chegou, vivem em total equilíbrio entre si e com a natureza que os envolve. Talvez seja porque nenhum dos animais na história bíblica do Jardim do Éden tenha comido a maçã e se entregado aos desejos como o homem. Animais vivem uma vida em que o único objetivo é “preencher o pote” das necessidades. Um mundo onde existe, sim, competição para atender as necessidades, que, quando saciadas, permitem que eles possam fazer algo imensamente estranho ao homem moderno: viver.

Notas 6. wir2018.wid.world/files/download/wir2018-full-report-english.pdf (p. 14) 7. Alcorão Sagrado (79:40-41).

3. O ESTADO E A ECONOMIA DA NECESSIDADE

Se levarmos em conta o papel simbólico, mitológico, da história de Adão e Eva no Jardim do Éden (respeitando, claro, aqueles que a tem como verdade histórica), ficará a questão: quando então a economia do desejo surge como o modelo econômico dominante para o homem? Jean-Jacques Rousseau oferece uma resposta em seu livro Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens . O filósofo suíço começa a segunda parte de seu discurso assim: “O primeiro que, ao cercar um terreno, teve a audácia de dizer isto é meu e encontrou gente bastante simples para acreditar nele foi o verdadeiro fundador da sociedade civil. Quantos crimes, guerras e assassinatos, quantas misérias e horrores teria poupado ao gênero humano aquele que, arrancando as estacas e cobrindo o fosso, tivesse gritado a seus semelhantes: ‘Não escutem esse impostor! Estarão perdidos se esquecerem que os frutos são de todos e a terra, de ninguém!’ Mas é muito provável que as coisas já houvessem chegado então ao ponto de não poderem mais durar como eram.” A semelhança com a história do Jardim de Éden é enorme. Ao final da primeira frase, se trocarmos o termo “sociedade civil” por “economia do desejo” veremos que a origem da economia do desejo coincide com a da propriedade privada. Ideia corroborada por John Locke, outro importante filósofo liberal contemporâneo a Rousseau que, em seu Ensaio sobre o entendimento humano , escreve “não poderia haver injúria onde não há propriedade”. Em meu livro Desigualdade & caminhos para uma sociedade mais justa , discorro sobre esse caminho que nos trouxe de uma sociedade solidária para uma egoísta e individualista, baseada no poder que é diretamente relacionado ao acúmulo de posses dos indivíduos.

Nesta obra, gostaria de voltar a abordar o papel do Estado e discorrer sobre como ele pode se inserir num mundo onde prepondera a economia do desejo, contrapondo-a e praticando a economia da necessidade. Deveria ser quase pleonástico falar sobre o Estado praticar a economia da necessidade. Isso porque o Estado nada mais é do que uma figura institucional, jurídica e fictícia (criada pelo homem) para coordenar e representar um grupo. Não existe um ser vivente chamado Estado, daqueles que podemos ver na rua andando com uma camiseta amarela ou vermelha. O que existe é uma organização, uma estrutura, que tem o poder de coordenar as decisões que serão tomadas para fortalecer e proteger um grupo. Pelo menos, em tese, deveria ser assim. E tudo indica que antes de existir a propriedade privada era. Existe um petróglifo em Utah, Estados Unidos, datado de alguns milhares de anos antes dos dias atuais, que sempre me comove. Foi batizado de “Circle of Friends”. Nele, um grupo de membros da tribo é retratado em um círculo perfeito. São indivíduos claramente diferentes, uns maiores que outros, com características diferentes, mas todos ocupam exatamente a mesma posição em relação ao círculo. Era assim que viviam nossos antepassados antes de surgir a propriedade privada. Gosto muito de ver o Estado como sendo a invenção do homem para substituir o círculo que ocupa o centro desse pictograma. Aquele diante de qual todos têm a mesma importância, e que nos une e fortalece. Na verdade, depois da invenção da propriedade privada, passou a ser somente pelo Estado que continuamos a ter o sentido de grupo. Pense bem, não faz sentido algum o conceito de “nosso território” hoje em dia, como existia nos tempos do pictógrafo. Os tais “frutos [que] são de todos, e a terra, de ninguém”, narrados por Rousseau, estão perdidos em algum lugar num longínquo passado. Cada um hoje tem o seu território. E muitos nem isso têm. Se ainda tem alguma dúvida sobre isso, entre num prédio e invada um apartamento onde mora uma família e veja se será bem-vindo ou bem-vinda. Pule a cerca de uma fazenda e colha alguns vegetais e frutas para se alimentar e perceba a reação do dono da fazenda. Provavelmente não será nada amigável. E o motivo é o fato de não existir mais nosso território, nossa religião (o número de religiões do mundo é estimado em milhares 8 ), nosso time de futebol... Na prática não existe, praticamente, “nosso” nada. A não ser o nosso Estado. É nele, e somente nele, que, nas sociedades democráticas, cada pessoa tem direito, em tese, a exercer a mesma influência (com seu voto) e pode viver

sob as mesmas regras dos demais. Fora dele, o que existe é uma guerra. A guerra inerente à economia do desejo. Fora do Estado, os objetivos são somente dois, conquistar e se defender, numa guerra que, longe de ser metafórica, é absolutamente real. omas Hobbes, em seu clássico Leviatã , coloca o Estado como aquele que, através do “contrato social” acordado pelo grupo, garante a paz entre as pessoas que vivem sob suas regras. Mas sabemos que o Estado não garante a paz. Basta olhar ao redor e notar as pessoas vivendo nas ruas, os assassinatos, as brigas, as fraudes, a competição entre as empresas, os ataques verbais... O que existe é uma clara e evidente guerra. Que é sim, regulada pelo Estado através das leis que constam do “contrato social” descrito por Hobbes. Nessa guerra, a maior de todas as armas é o dinheiro. É através dele que se pode, entre outras coisas, estabelecer as leis que regulam a guerra. Como os que ganham mais dinheiro podem definir quais serão as leis da guerra, de onde tiram sua riqueza, entra-se em um círculo vicioso de busca por mais lucro, mais poder e, pasmem, mais guerra. Como pano de fundo, cumprindo o papel de alimentar a característica mais típica e importante de uma guerra, a saber, a competição, está o desejo. Aqueles que detêm o poder passam então a concentrar o uso de todos os seus recursos em atividades que possam atiçar o desejo das pessoas, dando falsamente a sensação de saciá-los e criando novos desejos no lugar em que antes não havia, principalmente através da propaganda. Como o lucro é diretamente função do desejo não saciado, atividades que atendem as necessidades das pessoas passam a ter uma procura e atenção infinitamente menor, por não terem a mesma lucratividade. Percebam que 1 litro de água pura, talvez a maior necessidade fisiológica do ser humano para sobreviver, custa pouco mais de R$ 1. Enquanto isso, a mesma quantidade (1 quilo) de cocaína, um produto criado exclusivamente para atender a um dos maiores desejos que o homem é capaz de sentir, advindo do vício pelas drogas, pode chegar ao inimaginável valor de US$ 500 mil em alguns lugares do mundo. Com uma lucratividade em relação ao preço de produção que pode chegar a mais de 30.000%. 9 Um valor literalmente milhões de vezes maior para um produto que atende muito menos (ou nada) a necessidades das pessoas, mas que, na equação capitalista que rebatiza desejo como “utilidade”, faz com que se gere uma quantidade estratosférica de “utilidade” adicional ao sistema.

Preço de compra no atacado (US$/kg) Bolívia

2.500,00

Colômbia

1.504,00

Equador

1.800,00

Paraguai

2.200,00

Peru

Preço de venda no varejo (US$/kg)

643,00

China

370.000,00

Arábia Saudita

507.000,00

Emirados Árabes

476.000,00

Nova Zelândia

496.000,00

Fonte: https://dataunodc.un.org/drugs/prices-2017

É por isso que, mesmo proibido, o mercado de drogas ilegais é tão grande, estimado em quase US$ 0,5 trilhão, 10 mesmo sendo combatido por todos os países e governos. Curiosamente, um mercado de tamanho similar a esse, que cria e estimula nas pessoas o desejo, o da propaganda, é estimado também em pouco mais de US$ 0,5 trilhão por ano. 11 Um gerando desejos e o outro prometendo saciá-los por alguns instantes. A verdade é que o mercado de drogas não é combatido pelo mundo. Ele é, a todo instante, incentivado pela economia do desejo. De fato, não existe jamais, na prática, o conceito de proibição na economia do desejo. O que existe é somente uma definição de quantos recursos serão necessários para participar desse ou daquele mercado. Quanto mais proibido e lucrativo um mercado, mais recursos serão destinados a ele e menos sobrarão para atender as necessidades. É por isso que, enquanto a água limpa e potável que temos disponível no mundo é cada vez mais escassa, a quantidade de drogas que existe para consumo é cada vez mais farta. Ainda como exemplo de como o mercado, dentro da lógica neoliberal, maximiza a variável desejo , concentrando recursos nos negócios dessa natureza, e não naqueles que contribuiriam para uma garantia de acesso para todos às necessidades básicas, temos o fato de o homem mais rico do nosso país ser o dono de uma empresa que fabrica cervejas. Quando perguntado o motivo de

ter se envolvido com esse mercado (dado que seu passado profissional é ligado ao mercado de investimentos), ele disse que resolveu pesquisar em vários outros países e notou que os homens mais ricos de todos eles eram donos de empresas de cerveja. É a tal “utilidade” das equações neoliberais sendo maximizada mundo afora. Voltemos agora ao Estado. Além de definir as regras da guerra que os homens travarão entre si na busca por poder e por satisfazer seus insaciáveis desejos, o Estado tem outra função importante, que é a de realocar recursos. Em termos de execução, ou seja, através de seu poder executivo, é só isso que faz o Estado. Pensando bem, talvez “só” não seja um bom advérbio para esse papel do Estado. Isso porque é exatamente esse papel que pode ser “tudo” numa sociedade. É por meio dessa realocação de recursos que uma parcela do sistema poderá viver verdadeiramente em paz. Então pessoas cuidam uma das outras, se protegem e vivem na prática o sentido de grupo. É com parte dos impostos que você paga ao Estado, por exemplo, que uma criança que você nunca viu nem verá na vida será educada. É através de uma taxa que você paga ao Estado que um senhor de idade que mora a milhares de quilômetros poderá ser poupado da dor, sem jamais ter a possibilidade de lhe agradecer. Simplesmente porque vocês fazem parte de um mesmo grupo! E é exatamente exercendo adequadamente esse papel de realocador de riquezas que o Estado pode, se bem organizado, cumprir o papel de mantenedor da economia da necessidade. O papel do Estado como realocador reside em escolher de quem irá tirar riquezas, para quem irá entregar e qual legado deixará como resultado. E, em cada um desses passos, existe a possibilidade de promover a economia da necessidade, ou de abdicar a ela, e de frear ou estimular a economia do desejo. Vejamos um exemplo bem simples. Imaginemos que um Estado resolva recolher compulsoriamente R$ 1 bilhão das pessoas que vivem sob sua tutela, através de impostos (que tem esse nome exatamente por não serem uma opção, serem uma imposição). Começa aí o processo de escolha: atender as necessidades ou estimular o desejo das pessoas? Isso porque o Estado pode, por exemplo, tirar essa riqueza das pessoas que têm riqueza acumulada em quantidade muito acima daquilo que teriam a necessidade de ter (ricos) e redistribuí-la àqueles que estão com as necessidades mais básicas não atendidas (pobres), ou pode, mesmo parecendo cruel e desumano, tirar daqueles que sequer têm essas necessidades atendidas, para

entregar essas riquezas manchadas com sangue e sofrimento aos que não farão qualquer uso dela, senão acumular ainda mais poder e saciar momentaneamente ainda mais desejos supérfluos. Poderia também tirar dos ricos e entregar de volta para os ricos, ou tirar dos pobres e entregar de volta para os pobres, mas como esses casos não resultariam em mudança significativa alguma na condição geral do grupo, vamos nos ater às duas primeiras possibilidades. Esse processo de redistribuição feito pelo Estado pode, porém, ser mais do que simplesmente tirar riquezas de uns para dar a outros. Ele pode também resultar em um legado. Sigamos ainda no exemplo que acabamos de ver. Podemos imaginar que esse R$ 1 bilhão seja recolhido ao longo do ano, cobrando-se impostos de um milhão de pobres, cabendo a cada um o pagamento de R$ 1 mil, para ser distribuído a mil ricos, recebendo cada um deles a quantia de R$ 1 milhão. Ou podemos imaginar uma segunda opção diametralmente oposta, em que mil ricos pagam, ao longo do ano, R$ 1 milhão cada um em impostos, que serão redistribuídos para um milhão de pobres, que receberão cada um a quantia de R$ 1 mil. Esses R$ 1 mil podem ser recebidos como um depósito em conta no banco, em troca de nada, como por exemplo acontece em programas sociais de transferência de renda. Terão certamente um efeito prático de permitir que essas pessoas possam adquirir produtos e serviços que atendam parte (ou o todo) de suas necessidades e aliviem, assim, uma boa parcela de seu sofrimento. Como a parcela tirada dos mais ricos não afetará sua capacidade de adquirir aquilo que atende as suas necessidades básicas e ao mesmo tempo atenderá a necessidade básica dos mais pobres, o sistema como um todo ganhou em necessidade atendida (ou, em “utilidade”, no sentido que muitos imaginam ter a palavra na equação neoliberal). O curioso é notar que, em termos de percentual de desejos atendidos, nada muda no sistema, dado que por causa de sua natureza infinita, ilimitada, qualquer numerador que coloquemos sobre ele dará um resultado nulo de saciedade no longo prazo. Existe ainda uma outra possibilidade. Em vez de simplesmente dar esse dinheiro aos mais pobres, distribuindo R$ 1 mil para cada um em troca de nada, eles são contratados para construir escolas, hospitais, cuidar de doentes, transmitir conhecimento e atender a outras necessidades básicas do grupo. Veja que esses R$ 1 mil continuarão chegando ao mesmo grupo de pessoas, permitindo que elas possam usá-los para adquirir aquilo que lhes falta em

termos de necessidades básicas. Mas nesse caso fica um legado que também ajuda a suprir necessidades das quais o grupo carece. O processo ganha eficiência e mais pessoas são poupadas do sofrimento e podem seguir sua jornada com as necessidades atendidas. Tudo isso parece óbvio e incrivelmente simples. Mas não é. As pessoas tendem a imaginar o Estado realmente como um ser vivente. E, ao personificarem o Estado, atribuem a ele características impossíveis, simplesmente por ser somente uma figura fictícia. O Estado não pode ser “perdulário” como dizem uns. Não pode ser “corrupto” como dizem outros. Nem mesmo estar “enriquecendo” ou “empobrecendo” como alardeiam as notícias. Quem se corrompe, enriquece ou empobrece são as pessoas. E são elas que deveriam ser cobradas ou julgadas por fortalecerem ou enfraquecerem o grupo. Mas, ao darem vida ao ente “Estado”, escondem-se atrás deles e transferem a culpa para um ser que não existe. Costumo usar como exemplo um caso polêmico que aconteceu no Brasil não muito tempo atrás, para explicar como funciona o papel redistribuidor de renda do Estado e como as pessoas costumam lhe atribuir características que não são dele. Em abril de 2019, o Supremo Tribunal Federal brasileiro abriu uma licitação para a compra de refeições institucionais que incluíam lagosta e bons vinhos. O valor da compra superava R$ 1 milhão. O fato, em meio a uma das maiores crises econômicas do país, que vivia à época números recordes de desemprego e estatísticas de pobreza extrema voltando a crescer, ganhou as páginas de jornais e sites e causou enorme revolta. É óbvio que não concordo com homens públicos, aqueles mesmos que deveriam representar e cuidar do grupo, entregando-se a luxos (desejos) como esses enquanto a maior parte da população não tem sequer suas necessidades básicas atendidas. Mas gosto de usar esse exemplo para mostrar para as pessoas que o valor de mais de R$ 1 milhão, não foi “gasto” pelo Estado. Ele simplesmente foi redistribuído para as empresas que forneceram os alimentos e bebidas requisitados pela licitação, e o legado que ficou foram almoços luxuosos para os ministros da suprema corte. Suponhamos que as lagostas tivessem sido compradas de cooperativas de pescadores que vivem em situação de miséria no nordeste do país. A tal compra criticada por todos como um “desperdício” do Estado, teria na verdade se revertido em necessidades básicas de pessoas pobres e cumprido um papel melhor para a sociedade, por exemplo, do que o pagamento de juros da dívida pública, que não deixa legado algum e

vai majoritariamente para as pessoas mais ricas (as detentoras da dívida pública). O ponto desse exemplo é observar que o dinheiro nunca some nem aparece, ele simplesmente flui. Provavelmente as lagostas foram compradas de alguma grande empresa que explora pescadores pagando péssimos salários e deixando todo o lucro na mão de um ou poucos donos, ou seja, não houve sequer o processo redistributivo teorizado no exemplo; mas ele ajuda a olhar de outra maneira para os chamados “gastos” do Estado. É exatamente esse o estudo que precisaria ser feito, mas nunca foi. Saber onde, no final da linha, o dinheiro que é gasto pelo Estado está parando e qual legado está deixando (essa última parte, mais conhecida). Só assim poderíamos ver o verdadeiro papel que o Estado está fazendo de redistribuir ou concentrar riquezas. Percebam que quando você passa a enxergar o governo como um realocador de riquezas entre membros do grupo que ele representa e entender que as “realizações” do governo são o legado dessa realocação de riquezas, todo o processo fica mais claro e simples de entender. É muito diferente daquilo que é mostrado pela mídia e compreendido pelo cidadão comum. Por exemplo, quando um governo diz que gastou R$ 100 milhões com saúde ou R$ 10 bilhões com programas de educação, para construir escolas e creches, ele na verdade não “gastou” dinheiro nenhum com uma criança, estudante ou doente. Nenhum deles recebeu um cheque e foi para casa mais rico. Todo o dinheiro gasto foi parar nas mãos de médicos, enfermeiras, donos e empregados de laboratórios e empresas farmacêuticas, trabalhadores e empresários de construtoras e empresas ligadas à construção civil e por aí vai. O que ficou para as crianças e doentes foi o legado! E esse legado é o tratamento que receberam, os remédios que tomaram, a escola que foi construída e as aulas que receberam. Um bom governo acerta nas duas fases desse processo, distribuindo renda de maneira justa ao contratar os serviços que podem atender às carências básicas da população e entregando um legado que também possa contribuir com essas necessidades. Vejam que o efeito pode ser nenhum (quando não há redistribuição alguma de renda), simples (quando redistribui a renda sem deixar legado) ou máximo (quando distribui renda e gera o maior legado possível para a população mais pobre)! Infelizmente os governantes têm dificuldade de entender que as ações e os investimentos do governo são um enorme instrumento de redistribuição de renda. Talvez porque seja muito mais fácil propagandear o legado de um

governo do que o seu “gasto”, este visto pela população, a mesma que personifica o Estado, como desperdício de dinheiro, recursos que somem em algum ralo rumo ao desconhecido. Uma medida prática, e que teria um impacto gigantesco na capacidade do governo atender com maior velocidade e eficiência as necessidades da população pobre, seria criar regras para somente contratar empresas que seguissem condições mínimas de redistribuição de renda. Por exemplo, empresas em que os donos tivessem de distribuir um percentual grande de seus lucros entre seus empregados, talvez 50% ou mais. Ou empresas em que a diferença entre os maiores e menores salários não ultrapassassem um valor determinado, por exemplo 30x. Empresas que tivessem políticas de remuneração e de contratação auditadas e que garantissem diversidade e iguais oportunidades para todos os grupos da sociedade. Imediatamente, contratando somente as empresas que cumprissem esses pré-requisitos, centenas de bilhões de reais “gastos” pelo governo, passariam a ser distribuídos de maneira muito mais eficiente para maximizar o acesso às necessidades básicas de uma parcela muito maior da população. E o legado continuaria existindo. A população mais pobre ganharia dos dois lados. O que acontece hoje, infelizmente, é que fica o legado, mas o dinheiro que sai do Estado para contratar os serviços e comprar os produtos que serão utilizados vai quase todo para os donos das empresas que os fornecem. Construir uma escola pode fazer com que R$ 1 milhão vá parar nas mãos de um dono de construtora e R$ 500 mil nas mãos de cinquenta funcionários, ou pode fazer com que R$ 1 milhão vá parar nas mãos de cinquenta funcionários e R$ 500 mil nas mãos de um dono. O legado é o mesmo, a escola. A distribuição de renda e o impacto social, completamente diferente. É assim que o Estado pode exercer a economia da necessidade, focando no legado e no direcionamento (e distribuição final) de seus gastos. Imediatamente, os adeptos a economia do desejo, aquela que acredita que o lucro é a variável a ser maximizada na equação, dirão: “Mas isso vai diminuir o interesse dos donos de construtora, diminuir a competição e aumentar o preço das obras.” Veja que, mesmo que o preço da obra realmente aumente um pouco (o que é possível que aconteça quando você impõe condições que impedem a exploração da mão de obra e a superconcentração de renda nas mãos dos donos do capital), não há problema algum nisso. Porque o dinheiro a

mais não está sendo gasto, está sendo distribuído de forma a atender a parcela mais pobre da população e maximizando o seu acesso às necessidades básicas. Em uma de minhas viagens para morar nas comunidades pobres do país, pude presenciar um exemplo incrivelmente didático de como muitas vezes contratar um serviço mais barato para o governo pode representar uma economia numa planilha de Excel e um desastre em termo de condições de vida para a população. Era um quilombo no interior de país. Uma pequena comunidade, com quase 400 anos de história de resistência, onde a principal atividade econômica era o plantio de bananas. Durante vários anos consecutivos, na segunda metade da década de 2000, a comunidade viveu uma melhora constante na condição de vida de seus moradores. Tudo resultado de novos programas de governo que haviam sido implementados para a aquisição e distribuição, em todo o país, de alimentos da agricultura familiar e de pequenas comunidades que vivem dessa atividade. Através dos programas, o governo garantia que compraria desses pequenos agricultores uma quantidade definida de sua produção, a um preço também definido. Os alimentos eram distribuídos para pessoas em situação de miserabilidade, para merenda escolar, para hospitais e outros usos condizentes com a lógica da economia da necessidade. Como tinham previsibilidade sobre os recursos que receberiam ao longo do ano, essas comunidades passaram a planejar seu desenvolvimento, construindo por conta própria creches, escolas, postos de saúde e melhorando gradativamente sua infraestrutura. Sabendo que poderiam contar com os recursos das vendas garantidas pelo governo, as comunidades vizinhas passaram a se reunir em feiras para trocas de sementes e passaram a fazer intercâmbio de seus moradores com o de outros grupos para aprender as técnicas de produção que mais deram certo. Passaram também a não precisar mais caçar animais nem degradar o meio ambiente para dele extrair recursos para sua sobrevivência. Até que assumiram novos governantes, adeptos da tese neoliberal. Aqueles que acreditam que a competição e o lucro são os maximizadores da utilidade de um grupo. Os mesmos que olhavam para uma planilha e viam milhões de reais sendo gastos com alimentos! Veja bem, com os alimentos não era gasto nada. Nenhum pé de alface, cacho de banana ou folha de couve recebeu um real sequer. Parece piada, mas não é, é assim mesmo que as pessoas imaginam os gastos do Estado. Quem recebia o dinheiro todo “gasto” pelo Estado eram as

pessoas dessas pequenas comunidades, todas elas pobres e com carências em suas necessidades básicas. E eis que os novos governantes tiveram uma ideia “brilhante”. Para que garantir um preço de compra para esses agricultores, isso é estúpido! , provavelmente pensaram. Podemos gastar muito menos em alimentos se colocarmos esse pessoal para competir! Vamos passar a comprar esses alimentos por um processo competitivo de licitação. Pronto! Com essa ideia estúpida foram capazes de destruir tudo o que foi construído ao longo de quase uma década. Imediatamente após a medida, todas as comunidades vizinhas, que eram parceiras e amigas, passaram a ser adversárias, disputando os mesmos contratos. As feiras de trocas de sementes acabaram. Os intercâmbios entre os moradores também. Os fazendeiros da região, com maior patrimônio, acesso a linhas de financiamento muito mais baratas, mais terras (e consequente possibilidade de escalar a produção) e maquinário mais avançado, passaram a ganhar os contratos. Os moradores das pequenas comunidades passaram a deixar a comunidade — onde trabalhavam e podiam estar próximos de seus filhos e da família — para trabalhar em regimes muitas vezes de semiescravidão para esses fazendeiros. Em situação de miséria, os moradores voltaram a ter de caçar os animais e a degradar o meio ambiente para conseguir sobreviver. O caos voltou a reinar nas comunidades. Mas as planilhas de Excel mostravam que milhões de reais haviam sido economizados com os alimentos! Um desastre total, e um prejuízo incalculável para a sociedade. Esse exemplo real mostra perfeitamente a dificuldade de as pessoas de verem os gastos do Estado como uma redistribuição de recursos. Provavelmente os governos justificarão que conseguem agora comprar mais alface e couve com as verbas públicas. Só não sabem que existem milhares de pessoas que agora não podem mais comer alface e couve porque o dinheiro passou a ir todo parar nas mãos de fazendeiros que já tinham todas as suas necessidades básicas atendidas. Outro fato conhecido, dito como real e utilizado como anedota pelos que defendem o modelo neoliberal, fala sobre uma visita do economista Milton Friedman na década de 1960 a um país asiático que estava vivendo um período de enorme crescimento. Visitando uma obra pública do país com representantes do governo, ficou surpreso ao notar que muitos trabalhadores estavam usando pás para cavar, e a obra contava com pouquíssimos equipamentos pesados, como tratores, que poderiam fazer o mesmo trabalho

com muito mais eficiência e rapidez. Resolveu então perguntar o motivo pelo qual não utilizavam os equipamentos pesados para fazer a obra. A reposta foi que daquela maneira eles geravam muito mais empregos. Friedman então os provocou com ironia: “Deveriam então usar colheres para cavar, assim gerariam muito mais empregos.” 12 Se realmente existiu, a piada do economista ganhador do Prêmio Nobel mostra o completo desconhecimento do que acabamos de demonstrar com o exemplo real do corte do programa de alimentos das comunidades ligadas à agricultura no Brasil. Existe, por parte dos defensores da tese neoliberal, a capacidade de olhar somente o legado e jamais a distribuição da renda gerada pelo Estado. O fato é que, se usassem somente tratores, eles construiriam estradas onde ninguém poderia passar, por não ter dinheiro para comprar um carro ou uma passagem de ônibus. O dinheiro iria parar todo nas mãos de poucas pessoas. Por outro lado, é bom ressaltar, se usassem somente colheres, a estrada não ficaria pronta nunca, e haveria distribuição de renda sem legado algum. As pessoas poderiam comprar carros, mas não teriam onde andar com eles. O ponto ideal está na pá! É com ela que o Estado pode promover a economia da necessidade de forma mais eficiente. Cabe, porém, calcular o “tamanho da pá”. Um que otimize a entrega de acesso às necessidades básicas para a maior parte da população, que seja fruto da combinação dos fatores distribuição de renda e legado resultante .

Notas 8. https://www.theregister.co.uk/2006/10/06/the_odd_body_religion/ 9. https://dataunodc.un.org/drugs/prices-2017 10. https://www.talkingdrugs.org/report-global-illegal-drug-trade-valued-at-around-half-a-trillion-dollars 11. https://www.statista.com/statistics/236943/global-advertising-spending/ 12. Martin Ford, Os robôs e o futuro do emprego , Rio de Janeiro, Best Business, 2019.

4. A ECONOMIA DO ÓDIO

Mesmo após ter tido o estalo sobre a economia do desejo e conseguido compreender com clareza, pela primeira vez, os fluxos e as forças que movem os recursos à disposição da sociedade no mundo capitalista, concentrando-os quase totalmente nas mãos de poucos e fazendo com que a maior parte da população não tenha acesso sequer às suas necessidades básicas, uma coisa ainda me intrigava. O fato de a história recente ser cheia de exemplos de grupos extremamente violentos que concentraram poder tendo sido não os que defendiam o livre mercado, mas os que, ao contrário, defendiam um Estado forte e que interviesse na economia. Grupos que conquistaram um enorme apoio popular e sustentaram modelos econômicos cruéis que, assim como no livre mercado, concentravam riqueza nas mãos de poucos e deixavam a maior parte da população sem ter suas necessidades básicas atendidas. Como foi possível que o fizessem sem ter como elemento-chave de seu modelo a componente do desejo que tanto falamos ao longo dos capítulos anteriores? E a resposta me veio numa peça de teatro. Estávamos eu e minha esposa assistindo à peça O ovo de ouro , protagonizada pelo grande ator Sérgio Mamberti. A peça conta a história de um dos sobreviventes do campo de concentração de Auschwitz durante a Segunda Guerra Mundial. Ao longo das cenas, meu estômago ia embrulhando ao ver a forma como eram tratados os prisioneiros e prisioneiras daquele campo de concentração. Uma total ausência de humanidade. Uma maldade que parece impossível de acreditar que um dia tenha existido. O ódio na sua mais pura essência. Ódio que rapidamente pulou da história que estava sendo contada no palco para dentro de mim e me tomou por completo. E foi aí, no auge desse sentimento, que outro estalo me veio à cabeça. “O ódio é também um desejo”, pensei. A economia do ódio é tão

somente uma manifestação, talvez a mais perigosa e cruel, da economia do desejo. Para compreender isso, precisamos entender que economia não é somente o estudo do dinheiro em uma sociedade. É o estudo da gestão, coordenação e direcionamento desta sociedade. A etimologia da palavra economia deriva do grego oikonomía , oikos , “casa”, e nomein , “gerenciar”. É ela a ciência que trata do gerenciamento do lar. Seja o lar nossa residência, um município, Estado, país ou planeta. A economia do desejo é aquela em que a lógica que orienta esse gerenciamento é a de maximizar a quantidade de desejo presente no grupo, enquanto a economia da necessidade é aquela que orienta essa gestão para atender ao máximo as necessidades das pessoas. O ódio é sem dúvida uma das mais fortes expressões do desejo. Tão forte, que é capaz de se colocar acima de todas as outras e unir personagens opostos de um mesmo lado do campo de batalha. “Nada une tão fortemente como o ódio” diria o escritor russo Anton Tchekhov. Pude experimentar o poder do ódio como elemento de coesão quando saí do mercado financeiro e resolvi me dedicar à tarefa de levar educação financeira para as pessoas, denunciando a covardia que era feita pelos bancos e corretoras. Comecei a gravar vídeos e a escrever textos que ensinavam às pessoas a forma de agir para escapar das armadilhas e ciladas do mercado financeiro. Até que um dia fui chamado para dar uma entrevista sobre o tema numa das rádios de maior audiência no país. Nessa entrevista eu resolvi subir o tom. Trouxe dados, que nunca havia mencionado em minhas entrevistas anteriores, a respeito da atuação covarde e dos lucros gigantescos dos bancos e corretoras. Mostrei, por exemplo, que somente os cinco maiores bancos do país recebiam de seus clientes, em taxas e tarifas por ano, mais de R$ 100 bilhões. Um valor maior do que todo o orçamento federal para a área de saúde naquele ano. Ou de todas as verbas federais destinadas à educação. À medida que fui exibindo os dados, fui me envolvendo com eles. E fui falando com mais raiva. O rosto ficava cada vez mais vermelho, uma veia do pescoço nitidamente saltava e o volume de minha voz foi ficando cada vez mais alto. O entrevistador não conseguia sequer me interromper para fazer colocações. Eu havia entrado naquilo que é chamado por alguns psicólogos de “ flow ”. Só que naquela situação não era qualquer flow . Era um flow de ódio. Assim que a entrevista foi divulgada eu selecionei os momentos de maior ênfase de meu discurso e criei um vídeo curto, que continha o filé-mignon do

ódio destilado contra os bancos e corretoras naquela entrevista. O resultado foi absolutamente inesperado. Rapidamente as pessoas começaram a se identificar com aquele ódio aos bancos e corretoras. Num momento em que o desemprego batia recorde no país, mais de 60 milhões de pessoas tinham o nome sujo por não estar em dia com o pagamento de suas dívidas, a economia não conseguia reagir, as pequenas empresas fechavam e mesmo assim os bancos seguiam divulgando os maiores lucros de toda sua história; o solo era o mais fértil possível para aquele discurso. Os compartilhamentos do vídeo começaram a crescer exponencialmente. Logo eram centenas. Ainda antes do final do dia, milhares, pela primeira vez em qualquer post que eu já tivesse feito. Então candidatos à Presidência da República compartilharam o post. Artistas famosos compartilharam. Intelectuais também o fizeram. Em menos de uma semana os compartilhamentos tinham passado de dezenas de milhares. Atingiram então centenas de milhares. E no final da onda haviam atingido um número próximo (é difícil calcular o número final, dado que várias outras versões foram criadas e compartilhadas também) de uma dezena de milhões de compartilhamentos! O curioso era ver que entre as pessoas que compartilharam estavam alguns dos maiores representantes da extrema direita do país e outros que eram ícones das forças progressistas. Todos tecendo comentários elogiosos sobre o conteúdo do vídeo e dizendo que só tinham ouvido verdades. O ódio como elemento de coesão da sociedade. Incrivelmente forte e impensavelmente perigoso. Uma economia baseada no ódio jamais será capaz de concentrar recursos e esforços para suprir as necessidades das pessoas. Isso porque o ódio, assim como os outros desejos, tem uma capacidade infinita de absorver recursos sem jamais ser resolvido. “Só os que, libertos dos ódios e paixões [...] se aproximam da verdadeira paz”, ensina a Bhagavad Gita em seu quinto capítulo. E é por isso, que a parcela da economia que fica fora do controle do Estado está fadada a sempre flertar com a possibilidade da economia do ódio. Porque vive sempre em estado de guerra. Todos com a sensação de que não têm o suficiente. Os pobres carentes de necessidades assistidas. Os ricos carentes de desejos atendidos e alimentando sua corrida a um destino inexistente, com o pouco dinheiro dos pobres. Fazendo com que o sentimento de “falta” em relação ao atendimento de necessidades e desejos do grupo seja cada vez maior, independentemente da quantidade de riqueza disponível.

A economia do ódio, portanto, é parte da economia do desejo. E no mundo das redes sociais ela tende a se tornar cada vez mais forte como força motriz do sistema capitalista. Isso porque as redes sociais são o maior estimulador de ódio e de competição já criado pelo ser humano em toda a sua história. Nascida com a promessa de criar pontes, as redes sociais criaram grupos hermeticamente fechados de pessoas que se isolam e odeiam cada vez mais aqueles que não fazem parte do seu grupo. A lógica parte de um princípio econômico. Quanto mais parecidas são as pessoas que você consegue reunir num grupo, maior sua chance de vender com assertividade algo para elas. A estratégia das redes sociais é confinar pessoas em currais, cada vez menores, exatamente como é feito com o gado, para facilitar a lida do fazendeiro. O discurso é o de que estão reunindo pessoas que gostam de coisas parecidas. E aí essas pessoas podem, com mais eficiência, receber notícias, ler artigos e comprar produtos cuja preferência compartilham. Outra maneira de ver, porém, é a de que as redes sociais reúnem pessoas que não gostam das mesmas coisas. E é exatamente aí, como no caso do meu vídeo, em que reuni milhões de pessoas que não se sentiam confortáveis com a exploração dos bancos e corretoras e queriam dar voz à sua revolta, que reside o verdadeiro poder das redes. Afinal de contas, elas vivem do engajamento de seus usuários, e é sabido que repercutimos muito mais algo de que não gostamos do que algo de que gostamos. O ódio se espalha muito mais rápido do que a solidariedade nas redes sociais. Principalmente porque ele tem como alvo os que estão fora dos currais, que são em número muito maior do que os que estão dentro dos currais. Então, o que é positivo acaba sendo postado só para os amigos. E o que é negativo é postado para o mundo. Na verdade, a tendência de as redes sociais focarem seu conteúdo no ódio e competição é somente uma versão mais moderna e sofisticada do que a televisão já havia percebido. Elliot Aronson, um dos maiores psicólogos sociais dos Estados Unidos, destaca em seu livro e Social Animal (O animal social) como os canais de televisão tendem a focar sua programação em temas relacionados à violência. “Os canais tendem a focar no comportamento violento dos indivíduos — terroristas, assassinos, grevistas, arruaceiros, policiais — porque essa ação torna muito mais excitante assistir à televisão do que mostrar pessoas agindo de uma maneira pacífica e ordenada.” 13 Elliot Aronson mostra ainda estudos que indicam que impressionantes 80% dos programas

jornalísticos locais transmitidos pela televisão americana são destinados a crimes violentos. E a resposta para todo esse foco ficou evidente após os atentados às Torres Gêmeas, em 11 de setembro. Nas duas semanas seguintes ao ataque, o número de pessoas que sintonizou a televisão na rede de notícias CNN aumentou 667%, e o jornal e New York Times vendeu 250 mil exemplares a mais no dia 12 de setembro do que havia vendido no dia 10. A violência gera desejo, o desejo gera lucro e o lucro canaliza o foco e a distribuição de recursos. Afinal, é necessário lembrar que o ódio tem a mesma natureza de todos os outros desejos. É insaciável! Porém, nos é vendido pelo sistema que não. Vendem a ideia de que, como o ódio é fruto da injustiça, basta “fazer justiça” que seremos capazes de amainá-lo. “Fazer justiça” vira, então, mais um dos produtos (um dos principais) da economia do desejo. E aí, sem perceber, esse insaciável desejo transforma aqueles que odeiam naquilo que sempre odiaram. As pessoas que odeiam assassinos, por exemplo, passam a defender que eles sejam mortos. E o desejo se torna tão grande, que muitos acabam mesmo sendo mortos. Só que todas as mortes juntas não são capazes de saciar o desejo de matá-los. Pelo contrário, estimula o desejo de que mais deles morram. A guerra então ganha força e vira uma bola de neve. Ódio, violência e morte. Num ciclo em que uma infinidade de outros desejos é estimulada, a competição segue a todo vapor, a desigualdade entre ricos e pobres só aumenta e a carência do básico do sistema cresce exponencialmente. Vivemos uma época em que muitos políticos têm percebido o terreno fértil para praticar a economia do ódio e a têm utilizado para assumir o poder. Aproveitando-se de um ambiente de sensacionalismo, medo e ódio gerado pelos meios de comunicação (agora turbinados pelas redes sociais), esses grupos percebem que é muito mais eficiente e fácil atacar grupos do que ideologias políticas. Edward L. Glaeser, em seu trabalho “e Political Economy of Hatred” (A economia política do ódio), cita o exemplo do final do século XIX, quando Alemanha, Rússia, Áustria e França, monarquias de direita que dependiam do apoio da Igreja católica, batalhavam com grupos de esquerda, que variavam de liberais a comunistas. Entre esses grupos, os judeus estavam quase sempre na esquerda, e “de Stoecker a Hitler, os grupos de direita raramente tentavam refutar as ideias do socialismo, preferindo citar o alto percentual de intelectuais

de origem judaica entre os defensores do socialismo como uma prova de sua subversão [WEISS 1996].” Aliás, essa é uma técnica muito utilizada pela economia do ódio (e pela do desejo, de um modo geral). Escolhem-se exemplos vividos e reais para gerar nas pessoas uma sensação que os fatos olhados friamente, através das estatísticas, jamais dariam. Elliot Aronson, o psicólogo social, aborda também esse tema em seu livro e Social Animal , a preponderância dos exemplos reais sobre os casos estatísticos. Dessa maneira, basta pegar um crime bárbaro em uma cidade de milhões de habitantes e veiculá-lo no principal canal de televisão do país para gerar um medo generalizado em toda a população da cidade, algo que resultará em mais vendas de equipamentos de segurança para as casas, contratação de serviços de proteção, pressão para a liberação do porte de armas e lucro para as empresas. Ou então veicular um caso de morte de um paciente por um vírus novo, para provocar a procura por remédios e equipamentos de prevenção da doença. Pude, ao longo do ano de 2019 participar ativamente da discussão política sobre a reforma da Previdência no Brasil. Foram muitas horas dedicadas aos estudos da situação da seguridade social brasileira — dos números às leis, algo que nunca havia parado para estudar — e outras tantas a palestras e debates por todo o país. Entre esses debates, fiz várias participações em plenário no Congresso Nacional, tanto na Câmara dos Deputados quanto no Senado Federal. Uma reforma que inicialmente foi apresentada com uma quantidade enorme de crueldades. Algumas impensáveis, como reduzir o benefício recebido por pessoas com mais de 65 anos de idade, em condição de miserabilidade. Ou como aquelas que alteravam as regras de aposentadoria dos trabalhadores rurais, parcela da população extremamente pobre, com expectativa de vida muito menor do que a dos trabalhadores da cidade e com vida laboral iniciada muito mais cedo e sem qualquer proteção. Ou ainda a que retirava de mais de 10 milhões de trabalhadores pobres brasileiros o direito de receber um abono salarial de cerca de R$ 100 a mais por mês trabalhado. E muitas outras. Algumas delas foram derrubadas, certamente fruto da incansável luta de todos que compreenderam o fato de que milhões de vidas de pessoas pobres estavam em jogo na reforma. Mas a maior parte foi aprovada. Em parte, porque todo o discurso do governo e da mídia é o de que a Previdência é um “gasto” do governo. Um dinheiro que é desperdiçado, que some, como vimos

no capítulo anterior. Mas boa parte do sucesso do governo se deveu à capacidade de gerar na população mais pobre um ódio enorme por um grupo muito pequeno de pessoas que recebem aposentadorias grandes e injustas, entre eles os políticos. Os partidos que defendiam a reforma, assim como o governo, faziam peças publicitárias que mostravam como a reforma da Previdência ia fazer com que os deputados e senadores passassem a se aposentar com as mesmos regras que qualquer outro brasileiro. E não falavam que estavam mudando as regras para esses mesmos brasileiros. E que, nas novas regras, boa parte da população negra e pobre do Brasil, a mais exposta ao trabalho informal e com menos expectativa de vida, provavelmente jamais conseguiria se aposentar. Que nas novas regras as pessoas que trabalhavam em condições de altíssimo risco provavelmente também não conseguiriam mais se aposentar. Que os tais servidores públicos, demonizados na reforma, não eram somente os juízes que ganhavam aposentadorias milionárias, mas também enfermeiras e professoras que ganhavam salários baixíssimos para atender a população mais pobre do Brasil. Que os servidores da esfera federal já estavam sob as mesmas regras do resto dos trabalhadores do país desde 2013 e que os estaduais e municipais não estavam contemplados na reforma, ou seja, não seriam atingidos. No final, mesmo tentando divulgar essas informações, elas já não surtiam mais efeito algum. O ódio aos senadores, políticos e juízes e suas alardeadas aposentadorias polpudas era tão grande que qualquer coisa justificava apoiar a reforma para boa parte da população, mesmo entre os mais pobres. E mesmo isso significando a possibilidade de perder a própria aposentadoria. Enquanto isso os canais de televisão lucravam, vendendo propaganda para o governo, para os bancos e para as corretoras — que controlavam assim a narrativa oferecida pelos canais à população. Durante todo o processo, só foram chamados para opinar nos principais programas de televisão e rádio economistas favoráveis à reforma. Em todo o processo, não me lembro de qualquer economista negro ter sido convidado a dar sua opinião. Num país que tem mais da metade da sua população de negros.

Nota 13. Elliot Aronson, e Social Animal , Nova York, Worth Publishers, 2011.

5. CONCLUSÃO — PAZ E GUERRA

Provavelmente os tempos em que os frutos eram de todos e a terra, de ninguém jamais voltarão. Depois de criada a propriedade privada, a verdadeira maçã da árvore do bem e do mal, o ser humano embarcou em um caminho sem volta. E, além de não ter volta, não tem também destino. Seduzidos por uma montanha crescente de desejos, embarcamos numa fábula que nos promete, exatamente como naquela bíblica, que um dia seremos também Deus. Venceremos a fome, o cansaço, as doenças, a morte e a tristeza. É nisso que acreditamos e em torno disso que gira toda uma economia. Tão hipnotizados estamos por essa crença que somos incapazes de ver que, quanto mais caminhamos nessa direção, mais longe parecemos estar de nosso destino. Aquilo que nos sacia — as necessidades — é cada vez mais escasso, e aquilo que nos enfeitiça e destrói — os desejos —, cada vez mais farto. Um morador de Londres nos anos 1800 vivia em média 40 anos 14 e trabalhava em média 70 horas por semana. Nos dias atuais, a expectativa de vida dobrou e o número médio de horas trabalhadas por semana veio à metade. E é exatamente neste novo mundo, que parece ter alcançado importantes vitórias nessa épica batalha entre o homem e Deus, que quase 300 milhões de pessoas sofrem de depressão. Quase 1 milhão delas se suicidam todo ano. Viver mais anos claramente não tem servido para aliviar necessidades, e sim para alimentar o sofrimento. O capitalismo terá sempre, acredito eu, uma parcela do sistema vivendo em paz e outra em guerra. A única escolha que resta é decidir o tamanho e a influência, na vida das pessoas, de cada uma dessas parcelas. A guerra será sempre capitaneada pela iniciativa privada. A paz, sempre uma possibilidade (e não uma garantia), fruto da presença e participação do Estado na economia. Sou capaz de afirmar, ciente da responsabilidade de uma afirmação como esta, que é impossível haver um mundo de paz baseado na competição e no

lucro. Um mundo onde, por exemplo, o mercado das drogas não só continuará existindo como seguirá sempre crescente e absorvendo mais e mais esforços e recursos da sociedade. Num mundo que tem como principal objetivo o lucro, em vez de combater as drogas, os que detêm o poder farão sempre o que estiver ao seu alcance para participar do mercado. Não é à toa que a todo momento surgem notícias que mostram o envolvimento de importantes políticos e grandes empresários com o tráfico e a comercialização de drogas. E isso não deveria ser surpresa alguma. Se o principal objetivo estimulado é o lucro, uma das atividades mais lucrativas que existem é aquela ligada ao tráfico e à comercialização de drogas; um dos principais motivos para o desejo de drogas e seu alto valor é a proibição legal. E se o fato de ter poder dá a possibilidade de transpor os obstáculos legais existentes numa sociedade, quem você imaginaria que comandaria esse mercado? A resposta é tão óbvia que não precisaria sequer ser dada: os ricos capazes de manipular o poder e comandar as atividades mais lucrativas. Para compreender essa lógica, usemos somente como hipótese teórica (importante frisar, para que não digam depois que é uma sugestão) um cenário em que o Estado passasse a produzir todas as drogas, em grandes quantidades, e definisse um preço extremamente baixo por elas, acabando com a proibição. O que aconteceria com toda a lucratividade do mercado no dia seguinte? Desmoronaria! E, assim, todo ele deixaria de existir. É exatamente por isso que a proibição é tão importante para alimentar o desejo dos usuários, maximizar o preço do produto e garantir a enorme lucratividade dos poderosos envolvidos nesse mercado. Não acho que o Estado deveria ter como uma de suas atividades a produção de entorpecentes em grande escala, é claro. Mas sei que a proibição, da forma como existe hoje (em vez do controle e regulação, inclusive de preços), é certamente o modelo econômico mais lucrativo para os que estão envolvidos nesse mercado. A iniciativa privada não deixará de existir. A guerra, portanto, será parte de nossa vida para sempre. Cabe a nós então administrar essa guerra. E a administração da guerra é função do Estado, como disse omas Hobbes em outras palavras, quando se referia ao contrato social. Infelizmente o que vemos, porém, é um Estado que estimula a guerra. Um Estado com enorme comprometimento com a economia do desejo e seu impulsionador, que joga lenha para alimentar a fogueira dessa guerra. É isso

que faz um Estado cuja função, como defendem os pensadores neoliberais, é estimular a iniciativa privada. Sua função deveria ser a de regular e controlar a iniciativa privada. Na verdade, e muitos me crucificarão por dizer isso, sua função deveria ser também a de frear a iniciativa privada. Isso porque a iniciativa privada não precisa jamais ser estimulada. Sua natureza já é a de querer crescer sem limites. Se nada for feito pelo Estado, será em rumo ao maior crescimento e competição possíveis que ela marchará. E é exatamente direcionando, colocando limites e, quando necessário, freando, que o Estado deve atuar. E o Estado pode exercer essa função de duas maneiras. A primeira delas, com um contrato social, um conjunto de leis, que cumpra essas funções. Algo bem distinto do que vemos hoje em boa parte dos países capitalistas, incluindo o Brasil, onde o Estado define leis para estimular a guerra e beneficiar aqueles que mais lucram com a economia dos desejos. Um resultado previsível ao observar que aqueles que foram eleitos para definir as regras dessa guerra são, em boa parte (normalmente em maioria), financiados e ligados aos grandes grupos econômicos. A importância de ter o comando dessas regras que moldarão a guerra (controlando-a ou estimulando-a) é tão grande, que hoje os grandes empresários passaram a financiar escolas de formação de políticos. Uma fábrica de representantes que cumpram o papel desejado de estimular a guerra que tanto lhes traz lucro. A segunda maneira que o Estado tem para diminuir os efeitos da guerra é estimular a paz. E isso não pode ser feito através das leis. As leis servem somente para controlar a guerra. A paz só pode ser alcançada através da função de redistribuidor de riquezas e gerador de legados que o Estado tem o dever de cumprir. E é cumprindo essa função, 100% focado em suprir as necessidades daqueles que não as tem atendidas, que pode dar sua maior contribuição para uma sociedade mais justa, humana, forte e saudável. Costumo dizer que um governo que tem como foco de suas políticas os ricos (estimulando a iniciativa privada e a economia do desejo) acaba com uma nação. Um governo que tenta governar para todos (estimulando a iniciativa privada, mas também com alguma vocação social) governa para os ricos. E um governo que governa para os pobres (permitindo a iniciativa privada, controlando seus impulsos e focando suas atividades e políticas na economia da necessidade) governa para todos.

Os exemplos no mundo são fartos. Países que têm o Estado cumprindo a função de redistribuir riqueza dos indivíduos mais ricos para os mais pobres e têm seus “gastos” focados em programas sociais, criados para atender as necessidades da população, vivem uma guerra muito mais amena. Nesses países, todos os efeitos da guerra são menores. Edward Glaeser, autor já citado neste livro, nos mostra, em seu trabalho, como países que estimulam a economia do ódio são mais corruptos e têm pior qualidade de governo. A fórmula de governar para os pobres e permitir, de maneira controlada e com limites, as atividades dos ricos, para maximizar a paz presente em uma sociedade, não é nova. Podemos olhar todos os outros rankings que trazem indicadores de “paz” de uma sociedade e verificar os países que as lideram. São sempre aqueles que conseguem atender às necessidades básicas de seus habitantes através de um processo impositivo (através de impostos que redistribuem a riqueza, e não da competição) e que tem regras claras para a iniciativa privada atuar. São os líderes nos rankings de educação, alfabetização, saúde, saneamento, menor corrupção, menores índices de violência e qualquer outro indicativo que traga informações sobre necessidades básicas atendidas e convívio pacífico dos cidadãos. Não são os mais ricos ou os que têm maior crescimento de seu PIB. Mas esses, os que focam na economia do desejo e no crescimento máximo de sua economia, raramente ocupam os primeiros lugares nesses rankings. Os Estados Unidos são um ótimo exemplo, já citado em meus dois últimos livros. Apesar de gerar mais riqueza do que qualquer outro país no mundo, apresenta péssimos indicadores de saúde, educação, corrupção e violência, quando comparado, por exemplo, à maior parte dos países europeus. Lá nos Estados Unidos, reina a economia do desejo. O Estado é um fomentador de guerras, sejam elas entre as empresas de sua economia, sejam elas contra outros países. Os recursos, apesar de absurdamente altos, são consumidos pelo pote sem fundo dos desejos e faltam em quantidades assustadoras para as necessidades de boa parte da população. Muitos se assustam ao saber que os EUA são o país com maior taxa de pobreza entre todos os 35 membros da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). 15 No país da guerra, não é surpresa não haver paz. Em uma de minhas recentes experiências convivendo em comunidades no interior do país, tive uma das maiores lições de como a economia da necessidade pode conviver com a economia do desejo de forma saudável e estável. Foi numa cooperativa do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem

Terra (MST) no interior do estado do Paraná, onde funciona uma belíssima operação de uma agroindústria de leite e derivados. As pessoas que hoje integram a comunidade em nada lembram aquelas que lá chegaram há pouco mais de dez anos. Eram muito pobres, sem qualquer riqueza acumulada e com um destino incerto. O local, que hoje abriga uma moderníssima planta industrial, capaz de processar em alguns dias volumes próximos a 100 mil litros de leite, era também muito diferente. Um deserto improdutivo. Tão desértico que, para fazer as primeiras construções, os moradores precisavam colocar tábuas apoiadas em escadas, para que tivessem sombra e pudessem trabalhar debaixo do sol. Onde não há arvores, não há também sombra. As primeiras casas eram frágeis cabanas de plástico e lona. Os que tinham melhores condições compravam lonas pretas. Os mais pobres, plástico transparente. Conheci uma moradora que me contou, com lágrimas nos olhos, que precisava se trocar com uma toalha dentro de sua cabana, porque como não tinha dinheiro para comprar uma lona preta, todos podiam ver através do plástico. Essa mesma moradora mora hoje numa casa linda, com três quartos e uma bela varanda de frente para um jardim florido. As árvores, agora, são abundantes no terreno. Há uma escola, um posto de saúde e um centro de recreação e lazer, todos funcionando de maneira a dar inveja a muitos existentes nas grandes cidades do país. No centro do terreno, fica a agroindústria onde o leite é processado. As instalações são de ponta. Dezenas de pessoas se revezam em três turnos para trabalhar dentro das mais rígidas condições de higiene e segurança. Os trabalhos são acompanhados por especialistas da comunidade, mas também por consultores internacionais contratados para tornar o processo cada vez mais eficiente. E o mais curioso disso tudo é que o que moveu essa comunidade nunca foi o lucro. Qual terá sido então a mágica, se não foi o lucro a mola mestra do desenvolvimento dessa comunidade? Pelo contrário, muitas das atividades efetuadas na comunidade dão prejuízo, como, por exemplo, ir buscar pequenas quantidades de leite, que são compradas de outras comunidades do MST a dezenas de quilômetros de distância, para processar na agroindústria. Como podem, sem ter tido como foco a competição entre seus colaboradores e sem ter como objetivo final vencer ou destruir as empresas concorrentes, ter sobrevivido àquele que foi considerado o maior ciclo de crise da produção láctea global ocorrido na década, 16 ocorrido logo depois de montada a

agroindústria? Enquanto os concorrentes que seguiam a cartilha neoliberal de busca por lucros e “eficiência” quebravam, eles não paravam de crescer. O segredo foi fazer exatamente o que descrevemos há pouco: não se descuidar da economia da necessidade e impor limites para a economia do desejo dentro do grupo. Desde o começo existia uma preocupação de que todos dentro do grupo tivessem assistidas todas as suas necessidades básicas, dentro das possibilidades da comunidade naquele estágio de desenvolvimento. A todos foi oferecido um pedaço de terra do mesmo tamanho para desenvolver suas atividades. Como alguns começaram a ter sucesso antes dos outros, aqueles que conseguiam atender às suas necessidades antes dos outros ajudavam os que ainda não tinham, com sementes, trabalho em sua roça, empréstimos de suas máquinas e até com dinheiro. Em troca de nada. Na verdade, em troca de morar num grupo mais forte, com menos guerra e mais paz. Hoje a comunidade passa longe de ser uma comunidade de ascetas franciscanos morando isolados do resto do mundo, como imaginariam alguns ser o resultado de uma comunidade que tem a economia da necessidade como foco. Muitos moram em casas bonitas, têm carro novo na garagem, celular e computador de ponta e participam ativamente da economia do desejo. Eles também fazem parte da guerra. Aliás, é impossível isolar-se da guerra num mundo que vive dela. Mas, dentro da comunidade, essa guerra tem limites. Não seria permitido que um dos membros da comunidade morasse numa mansão com piscinas, móveis luxuosos e carros importados e outros estivessem morando ainda em cabanas de plástico, sem conseguir atender as suas necessidades básicas. E quem garante isso é a estrutura, correspondente ao “Estado”, criada dentro do grupo. É ela que garante que os recursos recolhidos serão todos canalizados para as necessidades dos que ficaram para trás e também que freia e impõe limites para aqueles que largaram na frente. É lindo perceber ainda que toda a riqueza presente naquela comunidade surgiu onde antes não havia nada senão um deserto verde. A comunidade enriqueceu criando e distribuindo de maneira saudável sua riqueza. E, o mais importante, enriqueceu sem empobrecer ninguém. Toda vez que observava um dos moradores numa bela casa com um carro na garagem eu podia ter a certeza de que ele havia trazido ao mundo muito mais riqueza do que aquela que tinha acumulado. Isso porque tinha largado do zero, sem nada. E não recebera incentivo ou ajuda de ninguém. Ao comprar tudo o que viera a possuir, tinha

usado para isso parte da riqueza que tinha gerado, entregando-a para aquele que recebia seu dinheiro e lucrava com suas compras. Com isso, ia enriquecendo com a riqueza que ia gerando, enriquecia os membros necessitados da comunidade com o compartilhamento de parte dessa mesma riqueza e enriquecia ainda outros que viviam fora da comunidade, ao fazer suas compras. É por isso que, mesmo focando somente na economia da necessidade, um Estado acaba alimentando também a economia do desejo, gerando lucros para os grupos que exercem atividades comerciais com esse objetivo. A única coisa que muda é que se maximiza (idealmente atendendo integralmente) as necessidades, e não o lucro do sistema. Uma boa metáfora seria imaginar que o sistema precisa regar uma planta. Pode-se escolher regar a planta jogando água em suas folhas, canalizando seus recursos para os mais ricos (economia do desejo). Pouca água será absorvida pela planta e ela ficará fraca, provavelmente morrendo num futuro próximo. Ou pode-se jogar a água na raiz, canalizando os recursos para os mais pobres (economia da necessidade). A planta irá absorver toda a água, ficará forte e saudável, e um pedaço dessa água seguirá chegando nas folhas (gerando lucro para as empresas). Existe um conceito econômico que vem ganhando força na Europa, chamado de Community Wealth Building . A tradução literal seria “Construção de Riqueza na Comunidade”. A ideia é fazer com que a riqueza gerada pelos mais pobres não escape e vá parar nas mãos dos mais ricos. Digo repetidamente em minhas palestras que os mais pobres no Brasil não foram malsucedidos em sua missão de gerar riqueza. Foram bem-sucedidos! A prova disso é que existe muita riqueza. O problema é que a que eles produziram foi parar toda nas mãos dos ricos. Esses sim os fracassados, que com as canetas que decidem o futuro do país foram incapazes de criar uma comunidade saudável e em paz. São João Crisóstomo, santo e doutor da Igreja católica, tinha discursos poderosos sobre essa relação de transferência de riqueza dos miseráveis para os ricos. Foi considerado um dos maiores oradores de todos os tempos da Igreja e era conhecido como o Boca de Ouro. Mesmo separado de nosso tempo por mais de mil anos (viveu no século IV), seus discursos são ainda incrivelmente atuais, principalmente os que falam sobre riqueza e pobreza. Em uma de suas obras mais conhecidas, On Wealth and Poverty (Sobre riqueza e pobreza), o santo reflete sobre uma das passagens bíblicas mais populares, a de Lázaro e do homem rico. É um livro incrível, que merece a leitura nos dias de hoje. Num trecho o santo é claro: “É certo que, caso não dê sua contribuição, você estará

roubando os pobres. Isso é dito para mostrar aos ricos que eles possuem coisas que pertencem aos pobres, mesmo que as tenha recebido por herança.” Um pouco adiante, deixa claro então um conceito repetido várias vezes neste livro, relativo à economia da necessidade: “Se alguém gastar com ele mesmo mais do que realmente precisa, pagará uma grande punição. Porque as coisas que ele tem não são dele, mas sim de seus companheiros trabalhadores.” A economia do desejo sujeita à economia da necessidade, essa é a mensagem de São João Crisóstomo! Sem atender às necessidades, existe a impossibilidade moral de buscar atender aos desejos. No conceito de Community Wealth Building , a riqueza gerada numa comunidade fica lá. Lembro-me de ter estado em uma outra comunidade do MST, muito mais pobre, onde um dos moradores foi me mostrar sua plantação de mandioca. Quando estávamos andando pela plantação, ele recebeu uma chamada no celular. Percebi então que era um celular de última geração. Fiz uma brincadeira então elogiando o celular do companheiro. Ele me disse que havia comprado o aparelho financiando em várias prestações em um banco. Os juros eram altíssimos. Eu olhei para a plantação de mandioca então e disse para ele: “Está vendo as mandiocas todas plantadas, daqui onde estamos até aquele ponto ali na frente?”, mostrando parte da plantação. “Sim”, respondeu ele. “Pois bem”, disse, “essas todas você plantou para o dono do banco que vai ganhar os juros do seu celular. Ele vai ganhar isso tudo sem fazer nada, com o seu trabalho.” Ele na hora entendeu como a riqueza produzida lá escapava e ia parar no bolso dos mais ricos a centenas de quilômetros de distância nas grandes cidades. Se, em vez de pegar o dinheiro emprestado do banco para comprar o celular, ele tivesse pegado com um vizinho seu que tivesse algum dinheiro sobrando, as mandiocas ficariam dentro da comunidade. O mesmo acontece com qualquer outro serviço de fora, contratado pela comunidade, que pode ser substituído por um serviço feito por alguém da própria comunidade. Quanto menos “furos” no pote por onde escorre a riqueza gerada na comunidade, mais rápido ela conseguirá enchê-lo de riqueza. É semelhante ao que pude observar na comunidade da agroindústria do leite. Os cinco pilares que norteiam o conceito de Community Wealth Building são:

Acesso a todos da comunidade às riquezas geradas pela comunidade. Atendimento das necessidades básicas de todos (crédito, equipamentos etc.), para que possam contribuir com o processo de geração de riqueza do grupo. Condições de emprego justas, e não aquelas que gerem maior lucro para as empresas. Impacto ambiental, social e condições de trabalho como o direcionamento dos negócios. Justiça social no uso e na divisão das terras e dos equipamentos.

Parece um mundo distante e utópico. Mas é muito próximo daquilo que vi acontecendo e funcionando no Paraná, e que foi capaz de transformar em muito pouco tempo, menos de uma geração, a vida de centenas de pessoas. Pessoalmente, tenho total noção de que todo esse esforço por um mundo que viva mais em paz e menos em guerra pode ser insuficiente para mudar nossa triste realidade. A economia do desejo pode somente ser controlada. Talvez freada. Jamais contida. Depois de comida a maçã do Jardim do Éden e cercadas as terras dos jardins dos homens, o mundo parece ter sido condenado para sempre. Textos como este: “Voltei-me para outras coisas e vi as opressões que ocorrem debaixo do sol, e o resultado: as lágrimas dos oprimidos, sem que ninguém os console, e a violência dos opressores, sem que ninguém se importe. E felicitei antes os mortos, que já faleceram, do que os vivos, que ainda estão em vida; e mais feliz do que ambos considerei aquele que ainda nem nasceu, porque não viu as maldades que se fazem debaixo do sol”, poderiam bem ter sido escritos há um mês por alguém visitando as regiões pobres de países como a Índia ou o Brasil. Mas foram escritos há milhares de anos. Esse, especificamente, é um trecho do quarto capítulo do livro Eclesiastes, do Antigo Testamento. O mundo parece ter mudado muito pouco nesse tempo. Respondendo a uma pergunta outro dia, em uma de minhas palestras, disse que não acreditava que morreria num mundo melhor do que este em que vivo hoje. Provavelmente será ainda mais cruel e injusto do que é. Com mais desigualdade, sofrimento e dor. E me perguntaram então por que eu não desistia. Contei a eles então a história do peregrino que todos os anos passava por uma pequena cidade, famosa por seus governantes e empresários corruptos, e via um homem em pé no banco da praça, discursando sobre aquelas

injustiças para quase ninguém. Numa dessas viagens, o peregrino não aguentou a curiosidade e foi falar com o homem. Perguntou-lhe: “Eu passo aqui todos os anos e vejo você discursando contra os corruptos e cruéis governantes da cidade. Será que não percebeu que jamais irá mudá-los?” Eis que o homem então lhe responde: “Eu sei disso. Mas no dia em que eu parar de falar é sinal de que eles terão me mudado.” Abandonar a luta é deixar-se dominar pela guerra. Não desistir é fazer a derrota impossível. A vida é caminho, passagem, páscoa. Todas as religiões parecem concordar nisso. Dela, levamos somente (se é que levamos algo) a transformação pessoal que pudemos experimentar. É esse o motivo de jamais abandonar a luta. Mesmo sabendo que, estando em uma guerra, e contra o lado que tem as armas mais fortes, esta é uma opção pelo sofrimento. São João Crisóstomo, há pouco citado, dizia que, quando resolvemos lutar por uma vida mais justa, causamos três possíveis reações nos outros. A alguns inspiramos com nosso brilho dos olhos e entrega à jornada. Esses passarão também a lutar conosco. Essa é a reação que mais buscamos causar. Por outros, não seremos sequer notados, tamanho seu envolvimento em seu mundo egoico e egoísta. Existe um terceiro grupo, ainda, que irá nos atacar violentamente. É o grupo que lucra e se beneficia com as injustiças do mundo. Essa última reação, a que menos queremos ter. São João Crisóstomo, porém, nos diz que apesar de não desejada, é exatamente ao sofrer esse tipo de reação que podemos ter a certeza de estarmos acertando o alvo. E a vida é feita para acertarmos o alvo. A palavra “pecar” significa errar o alvo. Por fim, podemos estar errados em tudo aquilo que acreditamos e defendemos. Todo este livro pode ser falho, com teses que não resistirão nem ao tempo e nem às críticas. Talvez seja até este seu destino mais provável. Foi o destino de quase tudo que foi produzido pelo homem até hoje. Mas, com o amigo Frei Betto, que muito me ajudou com uma conversa num momento de muito sofrimento nesta jornada que escolhi trilhar, aprendi algo que passei a sempre lembrar nos momentos difíceis. Disse-me ele: “Querido Eduardo. Espero que Deus lhe conceda na vida a graça que me concedeu. E que você perceba que é melhor estar errado ao lado dos oprimidos do que ter a pretensão de estar certo ao lado dos opressores.”

Notas 14. https://www.theguardian.com/society/2011/mar/06/ lifespan-mortality-health-diabetes 15. https://www.oecd-ilibrary.org/sites/8483c82f-en/index.html?itemId=/content/component/8483c82fen 16. https://www.embrapa.br/busca-de-noticias/-/noticia/25883950/preco-do-leite-se-recupera-nomercado-internacional-e-ciclo-de-crise-chega-ao-fim

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Desigualdade & caminhos para uma sociedade mais justa Moreira, Eduardo 9788520013946 144 páginas Compre agora e leia

Por que a distribuição de riqueza é a saída para o Brasil retomar o crescimento? "Após passar vinte anos no mercado financeiro, Eduardo Moreira percebeu que estava "olhando para o lado errado"; e, mais grave, "era um dos responsáveis pelo maior problema que o mundo vive há séculos": a desigualdade. O livro apresenta os circuitos que conectam essa formidável fábrica de desigualdades na qual vivemos. Com linguagem acessível, são explicados os conceitos de redistribuição de renda, impostos sobre renda e patrimônio, o papel do crescimento na geração de riquezas, a questão da propriedade privada, o papel dos bancos privados e a "crueldade" do mecanismo de endividamento do poder público, que gera dinheiros para um "grupo seleto" de membros da comunidade, mas não gera riqueza para as nações. O livro analisa o real significado de "riqueza", seu processo de criação e distribuição e suas consequências na vida das pessoas. A riqueza sem dinheiro não é capaz de manter uma comunidade viva e forte; e o dinheiro sem riqueza não tem valor algum, afirma o autor. Com base em Karl Polanyi (A grande transformação), o autor aponta que existem mecanismos que atuam para amortecer os efeitos de concentração de riqueza. Numa sociedade democrática, na qual o sistema político representa os interesses do conjunto da sociedade, o Estado pode atuar para redistribuir renda pela implantação de políticas sociais e pela adoção de sistema tributário que incida proporcionalmente mais sobre a renda, os lucros, o patrimônio e a herança dos mais ricos (como fazem os países do países no norte na Europa). Esse livro é imprescindível no Brasil. Somos a nação mais desigual do mundo; temos logo passado escravocrata; e ainda não enfrentamos, sequer, as desigualdades do Século 19." Eduardo Fagnani - Professor do Instituto de Economia da Unicamp, pesquisador do Centro de Estudos Sindicais e do Trabalho (CESIT) e coordenador da rede Plataforma Política Social. Compre agora e leia

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encruzilhadas. Do Centro ao subúrbio, as tramas das ruas cariocas confundem-se com sua escrita. Se João do Rio foi o cronista da alma encantada carioca do início do século XX, Luiz Antonio Simas aparece, cem anos depois, como o historiador do corpo do Rio de Janeiro atravessado pelas flechas do capital cultural e financeiro global. Por isso, contra a barbárie civilizatória, surgem suspiros e mariolas nas sacolinhas de São Cosme e Damião, a simpatia de São Brás para não engasgar, as conversas na feira, o cotidiano da quitanda e o boteco da esquina. O corpo encantado das ruas reivindica a riqueza dos saberes, práticas, modos de vida, visões de mundo das culturas que não podem ser domados pelo padrão canônico. Dá um olê na historiografia oficial. Aqui, tambor e livro são tecnologias contíguas. O Parque Shanghai é tão importante quanto o Cristo Redentor. Bach é um gênio como Pixinguinha. O Museu Nacional, um território sagrado, que acumulava o axé proporcionado pelos ancestrais à comunidade. Não é um livro sobre resistir. É sobre reexistir. Reinventar afetos, aprender a gramática dos tambores, sacudir a vida para que surjam frestas. Para que corpos amorosos, corpos de festa e de luta se lancem ao movimento e jamais deixem de ocupar a rua. Compre agora e leia

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trata exclusivamente do caso Bolsonaro, porque não há sequer amores sarcásticos e porque as preocupações continuam justificadíssimas. No entanto, é indiscutível que o sucesso de Trump, Farage e Bolsonaro hegemonizou o catastrofismo no debate público, e que esse fenômeno incomoda Marfim, que o atribui a uma impotência da imaginação liberal. Porque os intelectuais, que se mantêm tranquilos antevendo apenas ameaças que compreendam, veem-se por vezes destronados pelos povos, do mesmo modo que um lúcido estivador pode decidir substituir-se a um inábil timoneiro. A sublevação destes últimos anos teve como alvos filosóficos as ideias abstratas e a tirania dos especialistas, mas também pôs em causa o quietismo político, a ilusão tecnocrática e a "política da ceticismo". E assim ressuscitou uma "politica da fé", ainda que em versão caótica e plebeia. Torna-se então decisivo investigar e questionar as teses dos ideólogos "reacionários", sem que isso atenue as graves responsabilidades das elites de esquerda. Em ensaios curtos, densos e engenhosos, nos quais tão depressa se discute a estupidez em Musil como a vitimização em O.J. Simpson, A tirania dos especialistas lembra-nos que isto anda tudo ligado. Que há que manter a cabeça fria. E que nenhum tweet abolirá jamais a filosofia política. Texto de Pedro Mexia Compre agora e leia