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Portuguese Pages 319 [344] Year 2019
DIREITO E FEMINISMOS
F
COORDENADORA
| Grazielly Alessandra Baggenstoss
DIREITO E FEMINISMOS Rompendo Grades Culturais Limitantes
ORGA N IZA DORA S
Grazielly Alessandra Baggenstoss Amanda Muniz Oliveira Beatriz de Almeida Coelho Juliana Alice Fernandes Gonçalves Poliana Ribeiro dos Santos
Editora Lumen Juris Rio de Janeiro 2019
Copyright © 2019 by Grazielly Alessandra Baggenstoss Categoria: Direitos Humanos Produção Editorial Livraria e Editora Lumen Juris Ltda. Diagramação: Rômulo Lentini A LIVRARIA E EDITORA LUMEN JURIS LTDA. não se responsabiliza pelas opiniões emitidas nesta obra por seu Autor. É proibida a reprodução total ou parcial, por qualquer meio ou processo, inclusive quanto às características gráficas e/ou editoriais. A violação de direitos autorais constitui crime (Código Penal, art. 184 e §§, e Lei nº 6.895, de 17/12/1980), sujeitando-se a busca e apreensão e indenizações diversas (Lei nº 9.610/98). Todos os direitos desta edição reservados à Livraria e Editora Lumen Juris Ltda. Impresso no Brasil Printed in Brazil CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE D598d
Direito e feminismos : rompendo grades culturais limitantes / coordenadora: Grazielly Alessandra Baggenstoss ; organizadoras: Grazielly Alessandra Baggenstoss... [et. al]. – Rio de Janeiro : Lumen Juris, 2019. 344 p. ; 23 cm. Inclui bibliografia. ISBN 978-85-519-1566-0 1. Direitos humanos. 2. Direito das mulheres - Brasil. 3. Direitos fundamentais. 4. Feminismo. 5. Direito – estudo e ensino - Brasil. I. Baggenstoss, Grazielly Alessandra. II. Oliveira, Amanda Muniz. III. Coelho, Beatriz de Almeida. IV. Gonçalves, Juliana Alice Fernandes. V. Santos, Poliana Ribeiro dos. VI. Título. CDD 340 Ficha catalográfica elaborada por Ellen Tuzi CRB-7: 6927
Ao fortalecimento das despertas
Ao despertar das adormecidas
Ô, mulher, deixa eu te perguntar: cê sabe do poder que tem? Do poder que tem? Ô, mulher, deixa eu te perguntar: cê sabe do poder que tem? Do poder que tem? [...] Eu sou filha desse chão [...] E não é questão de opinião: É sobre o que eu sou, é sobre o que eu sei Thai Flow, Nabrisa, Lourena, Azzy & Gabz , in “1910”
Apresentação “Direito das Mulheres” foi o nosso primeiro livro. Destacando discursos normativos e sociais, ensaiava ultrapassar o pensamento do feminismo liberal, do discurso universal e já observava, engatinhando pela força descolonizadora, algumas estruturas que nos organizam em sociedade e legitimam hierarquias injustificadas nas relações sociais. No “Direito e Feminismos: materialidades que confrontam discursos”, nosso segundo livro, acompanhamos um refinamento das nossas reflexões com epistemologias feministas, que questionam a epistemologia funcionalista do Direito, e examinamos politicamente corpos que são atingidos pelo discurso jurídico. Trazemos a importância das narrativas diversas e necessárias a fim de uma construção coletiva de organização de sociabilidade que respeite subjetividades e favoreça intersubjetividades saudáveis. Apresentamos, na continuidade de nossas pesquisas, “Direito e Feminismos: rompendo grades culturais limitantes”, com aperfeiçoamento de pesquisas já iniciadas sobre epistemologias, com abordagem de novos temas consectários – como masculinidades e interface com psicologia –, e com reflexões urgentes, como epistemologias negras, corpos trans e ecofeminismos. Examinar nossos estudos a partir de um olhar generificado é um processo constante de revisitação da própria formação profissional. Mais que isso, é um questionamento sobre nossos processos de subjetivação e socialização, em que percebemos o quanto somos dessubjetivadas de nossa corporalidade e de nossa territorialidade. Por um discurso universal que perpassa um modelo educacional, formal e informal, enxergamo-nos em relações sociais naturalizadas que até nos causam desconforto, mas que não questionamos porque sofremos sanções sociais por isso ou porque “as coisas são desse jeito mesmo”. Esse desconforto, pela perspectiva neoliberal, é assumido como responsabilidade única das mulheres, as quais não enxergam a estrutura que as rodeia e que as constitui. De tal cegueira contextual, o nefasto acontece: não conhecendo a estrutura que as constitui, mulheres constituem a estrutura. A proposta a partir de então é rasgar constantemente com a lógica feminismo liberal e enxergarmos a estrutura que molda as limitações das grades
culturais a que estamos submetidas. Como latino-americanas, brasileiras, a localização no contexto geopolítico generificado, enquanto mulheres de países heterodenominados subdesenvolvidos e colonizados, evidencia-nos uma série de arranjos ideológicos, naturalizados e limitantes, que confronta nosso bem-estar, nossa saúde, nossas vidas. Compreender, portanto, a estrutura – as estruturas – permite-nos avançarmos em possibilidades de decisões que nos representem mais – maior – liberdade; isso a partir do conhecimento e das opções de escolha de agir. O conhecimento, assim, permite-nos reagir diante da dessubjetivação e caminhar para uma ressubjetivação de ação e potência, em que enxergamos que, enquanto houver vida padecendo violências, não estaremos libertas, porque a coluna da grade cultural que violenta determinada vida é a mesma que nos limita - ou pior, é a mesma que reforçamos quando em situação de inconsciência de si e do seu redor.
Prólogo1 Dependência e Morte Grazielly Alessandra Baggenstoss Betina Fontana Piovesan2
No dia 06 de julho de 2019, o presidente Jair Bolsonaro declarou, na saída do Palácio da Alvorada, que “o Brasil é uma virgem que todo tarado de fora quer”, quando questionado sobre o processo de demarcação de terras indígenas e sobre o desmatamento na Amazônia. Ainda mencionou que falta aos jornalistas “uma visão de Brasil”, relacionando Brasil e Israel, este como uma grande potência, mesmo sem recursos naturais como os daquele3. Ainda na semana passada, em uma transmissão semanal via Facebook, o presidente teria declarado, em lembrança de criança, do tempo em que teria trabalhado em fazendas do interior de São Paulo, que o “trabalho dignifica o homem e a mulher, não interessa a idade”4, o que gerou muitas discussões na internet em torno do trabalho infantil. As declarações carregam, em si, um encadeamento de ideias que confronta os direitos humanos, a justiça social, a defesa do meio ambiente e - por mais que não pareça, em virtude do discurso nacionalista - e a nossa autonomia coletiva. Diante disso, a proposta das reflexões que seguem parte da consideração de como tal comparação evidencia violências contra as mulheres, e também como 1
Texto publicado na Carta Capital, em julho de 2019, com alterações.
2
Mestranda em Teoria e História do Direito pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina e pesquisadora do Lilith: Núcleo de Pesquisas em Direito e Feminismos (CNPq/UFSC).
3 Cf. http://g1.globo.com/globo-news/jornal-das-dez/videos/t/todos-os-videos/v/ao-falar-sobreamazonia-bolsonaro-diz-brasil-e-virgem-que-todo-tarado-de-fora-quer/7746416/?utm_ source=facebook&utm_medium=social&utm_campaign=gnews&utm_content=post&fbclid=Iw AR2gTEriLF71TF8waJY-yE6Dw0HY-cKer9RmIhm0CA6OTnhjFc0Oi2voIT0
A problemática da declaração se localiza tanto no sentido de enunciação (pois carece de alguns conectores para uma compreensão adequada da referência a Israel), quando no sentido simbólico, relacionando a figura da mulher virgem à natureza, que será tratada adiante.
4 Cf. https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2019/07/06/fala-de-bolsonaro-sobretrabalho-infantil-e-tudo-o-que-combatemos-diz-mpt.htm?cmpid=copiaecola
está inserida em uma lógica de dependência e exploração da vida, individual e coletiva, humanas e não humanas. Essa trama temática, portanto, leva-nos à atenção sobre a vida, as instituições de sua proteção e de seu despojamento, e sobre a lógica operante na organização individual e social - para que possamos praticar o pensamento em sua plena função, como suleia Rolnik. Para tanto, é necessário nos localizarmos, no tempo e no espaço, e examinarmos alguns processos históricos e simbólicos que nos atravessam. Destacamos que não pretendemos, aqui, exaurir a temática, mas trazer à luz alguns pontos de conexões necessários para pensarmos alguns impactos, discursivos e materiais, que vivemos no Brasil. E começamos nos localizando geopoliticamente, na Abya Yala5. O cenário atual da América Latina começa a ser configurado a partir do pós-guerra, com a inserção de capital estrangeiro nos países latinos na segunda metade do século passado, desde o setor primário-exportador e direcionado ao setor manufatureiro através de investimentos diretos de maquinaria de capital. Como decorrência lógica, as burguesias industriais locais não tiveram “outra opção para sobreviver como uma classe que se associa, no status de sócio júnior, com capital estrangeiro” (Bambirra, 1978, p. 5). Promoveram-se, assim, alianças entre classes exploradas e classes não-exploradas, em diversos níveis organizacionais, assumindo-se a teoria desenvolvimentista da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL), que se refere a um modelo de desenvolvimento traçado a partir dos países autodenominados desenvolvidos e que a América Latina deveria almejar para si. Por tal teoria, dever-se-iam eliminar os obstáculos sociopolíticos e culturais ao desenvolvimento que foram incorporados nas chamadas sociedades tradicionais - ou povos originários - , por meio, dentre outros, da apropriação dos recursos nacionais (Bambirra, 1979, p. 4-5). 5
"Abya Yala vem sendo usado como uma autodesignação dos povos originários do continente como contraponto a América expressão que, embora usada pela primeira vez em 1507 pelo cosmólogo Martin Wakdseemüller, só se consagra a partir de finais do século XVIII e inícios do século XIX por meio das elites crioulas para se afirmarem em contraponto aos conquistadores europeus no bojo do processo de independência. Muito embora os diferentes povos originários que habitam o continente atribuíssem nomes próprios às regiões que ocupavam – Tawantinsuyu, Anauhuac, Pindorama – a expressão Abya Yala vem sendo cada vez mais usada pelos povos originários do continente objetivando construir um sentimento de unidade e pertencimento". Cf. Verbete Abya Yala, por Carlos Walter POrto-Gonçalves. Disponível em http://latinoamericana.wiki.br/verbetes/a/abya-yala
A eliminação de tais obstáculos pressupõe a ideia de “evolução de sociedade”, em que as sociedades dos países do Norte Global6, de maneira genérica, representariam um grau superior de organização civilizacional. Por consequência, os povos originários, bem como as sociedades heterodenominadas subdesenvolvidas, deveriam alcançar tal patamar, seguindo o modelo externo. Isso significa, por conseguinte, abandonar suas formas de organização, de convivência, de existência - e não necessariamente de uma forma passiva, mas de forma impositiva, pela adequação dos ditames do capital. Com a incorporação da teoria do desenvolvimento pelas pautas estatais latino-americanas, especialmente do Brasil, houve a mobilização e organização da vontade nacional para a política de desenvolvimento, em que se supõe o desenvolvimento é do interesse de todos (“sem perguntar, claro, que tipo de interesses de desenvolvimento de cada classe”) deu a premissa chave para uma ideologia de desenvolvimento, por meio do nacionalismo populista (Bambirra, 1979, p. 5). Contudo, as consequências de tal dependência provocaram uma crise generalizada - econômica, política, social e cultural - e questionaram os pressupostos estrangeiros que se condensaram na ilusão da possibilidade de um desenvolvimento nacional autônomo. Ainda, revelou esquemas que se demonstram aparentemente muito lógicos, mas que desnudam o caráter de dependência na América Latina, afrontando a possibilidade de um desenvolvimento capitalista nacional autônomo no continente (Bambirra, 1979, p. 5). Os condicionamentos estruturais da dependência da Abya Yala se aprofundaram com as reformas neoliberais, ocorridos sob o discurso da globalização - o que ocorreu e acontece no Brasil desde a década de 90. Percebe-se, então, que a produção da América Latina não é destinada à sua manutenção e consumo, mas é voltada para as economias centrais a partir de planejamento externo, e não interno, autônomo, local. Aí, vê-se nitidamente a subordina6
Balestrin explica que, nos estudos sobre colonialidade, considera-se o contexto geopolítico marcado pela atual divisão Norte Global e Sul Global. O Norte Global seria caracterizado, em suma, pelos países autodenominados desenvolvidos, envolvendo países da Europa e os EUA. Já a "expressão Sul Global, na qual a América Latina está inserida, representa em grande parte a categoria “Terceiro Mundo” criada nos meados dos anos 1950. Chama-se atenção para o fato de que, naquele contexto, o continente atravessava um processo muito diverso dos países que naquele momento e posteriormente protagonizaram os movimentos de libertação, revolução e independência na África, Ásia, Pacífico e Caribe". Cf. Ballestrin, Luciana Maria de Aragão. (2017). Modernidade/ Colonialidade sem “Imperialidade”? O Elo Perdido do Giro Decolonial. Dados, 60(2), 505-540. https://dx.doi.org/10.1590/001152582017127
ção das comunidades e das economias periféricas a centros decisórios outros, estabelecidos em locais autodenominados desenvolvidos (Lorscheider, 2017). É em tal espectro que se compreende o que Bambirra (1978) traz como corolário da desnacionalização da propriedade privada nos processos de produção: a ilusão da realidade dos projetos de desenvolvimento nacional autônomo pela lógica capitalista. Os que se atentam à realidade brasileira e acreditavam na expansão desenvolvimentista nacional, abandonam a ideologia do nacionalismo populista. Outros, que não se atentaram à lógica do capital, ainda acreditam e defendem a quimera de desenvolvimento nacional autônomo com pactos “urgentes e necessários” com o exterior do Norte Global, como acredita o presidente do Brasil. Aqui, relembra-se o discurso de Bolsonaro em Davos: “Nossa missão agora é avançar na compatibilização entre a preservação do meio ambiente e da biodiversidade com o necessário desenvolvimento econômico, lembrando que são interdependentes e indissociáveis”. Por definição, de fato, o desenvolvimento sustentável deve se pautar na compatibilização entre meio-ambiente e desenvolvimento econômico. Ocorre que este modelo é inviável numa sociedade cujo objetivo primordial é a acumulação de lucro, sob a dependência de outros Estados. Assim, se tais negociações são imprescindíveis, não se fala mais em autonomia, mas em ausência de opções e, assim, sobrevivência em um cenário de dependência e em violência. Um exemplo disso é como, em 1964, o Brasil “inaugurou o novo modelo de regime repressivo política e economicamente: as forças armadas assumiram a gestão do governo para implementar, cotovelo a cotovelo, as melhores expressões do pensamento capitalista nacional associada à grande corporações imperialistas” - o que inspiraria todos o cone sul do continente (Bambirra, 1979, p. 6). É destacado, no período, um determinado (sub)desenvolvimento econômico - mas a custo de quê? A custo de vidas. Mais do que se olhar para o fluxo do capital, em seu regime de classes, faz-se necessário, ainda, observar outras divisões que atravessam a sectarização da vida, tais como as divisões por gênero, espécie, por raça, por idade (Federici, 2018, p. 8). A busca por uma essencialidade da vida, da natureza e das pessoas acopla uma noção de funcionalidade utilitarista a este sistema de produção mantido pelo capital. É o que pode se denominar determinismo de recursos e de tecnologia de vida em função de.
Em tal pensamento, a vida não-humana, também denominada de recursos, deve servir como utilidade altamente explorável e capitalizável. Para alcançar o “modelo civilizacional” do Norte Global, o eufemismo nos dá a expressão abandono dos saberes tradicionais. No entanto, Sueli Carneiro traz a expressão epistemicídio, denunciando o aspecto discursivo e material da colonialidade sobre os corpos, especialmente sobre os corpos negros. Do epistemicídio enquanto morte do conhecimento, das epistemes, dos saberes, tem-se a desontologização dos sujeitos dessas comunidades, produzindo uma ausência de identidade-identificação com sua própria história. Para si, devem seguir um modelo porque não possuem um valor em si; para os outros, os não explorados, não têm valor enquanto não os alcançarem. Até lá, justifica-se o genocídio. O genocídio, então, é um sintoma do epistemicídio, em uma lógica que atinge corpos negros e corpos dos povos originários sem a mesma comoção de quando acomete corpos brancos. Conectando essa perspectiva à maneira de se relacionar com a natureza, imposta pelo capitalismo, Vandana Shiva (2003) chamou os processos de uniformização do saber, em que só o pensamento eurocêntrico é valorizado, de monoculturas da mente, que, em sua analogia, são como os processos de uniformização da agricultura e da silvicultura. Trata-se da desvalorização e do desprezo às visões diversas e às existências plurais (para além da humana) do mundo, apagadas em nome da lógica monocultural que visa à produtividade e ao lucro. Nessa linha de raciocínio, as mulheres, por meio do trabalho doméstico, da sexualidade, da procriação, também são condicionadas a uma percepção de existência em função de - em função da maternidade “que lhes seria inata”, dos trabalhos privados não remunerados “para os quais teriam mais aptidão natural”, da heterossexualidade, por meio do qual a mulher se legitimaria com um homem ao lado, que lhe seria o centro decisório de sua vida, “como algo natural”. Pela reforma da previdência, encontramos o espectro funesto de tal lógica: pessoas idosas devem reassumir o seu “local no mundo” como produtivos, demorando mais para se aposentar. E, ainda, vemos reacender a mazela da defesa do trabalho infantil ventiladas por políticos brasileiros (inclusive o presidente): as crianças seriam, aí, o alvo da lógica capitalista, como uma nova massa de pessoas produtivas - bom para o capital, bom para a arrecadação estatal. Como sempre, na mira do capital estão as vidas mais vulneráveis: pessoas idosas, mulheres e crianças.
Em uma busca por reposicionamento temporal contemporâneo, caminhamos com Jason Moore (2015), que propõe reflexões sobre como o capitalismo cria verdades e produz efeitos como sistema econômico e de vida para pensar a atual Era Planetária. Assim, examinando fatores antropogênicos na formação social capitalista, a reflexão oferta a observação do “quadro imperialista e colonial em que uma parte da humanidade [...] a partir do eurocentrismo e que continua a usufruir do estatuto de centro de uma história assente em determinismo tecnológico e no uso de recursos” (Oliveira, 2017, p. 3). A Era do Capitaloceno constitui-se, assim, por um novo olhar do espaço geológico para que seja pensado historicamente, especificamente a partir dos “processos de expansão colonial e invasão, genocídio e dominação da África, da Ásia e das Américas”, ou seja, a partir do Atlântico, no século XVI. Agregam-se, em um mesmo panorama, esses processos promoveram e ainda promovem a acumulação de capital em detrimento de vidas, humanas e não-humanas, e saberes. Ainda, propõe-se analisar “as consequências planetárias de um projeto capitalista apostado na exploração da natureza como um recurso barato, resultando daí as alterações climáticas e a luta para extrair o máximo de combustíveis fosseis da Terra” (Oliveira, 2017, p. 3). Extrai-se o máximo da vida por uma regime acumulacionista. Aí padecem mulheres e natureza. Aqui, com o epistemicídio e a monoculturas da mente, agregamos a expressão ecocídio, que representa a morte de ecossistemas em larga escala. Observa-se, então, que as atuações sociais e políticas, sob a justificativa de desenvolvimento baseado na crença cega na tecnologia (que é voltada para o agronegócio) e guiada exclusivamente pelas leis de mercado, têm afetado profundamente as vidas humanas e não humanas. A crise ecológica está diretamente ligada ao capitalismo, mas ela (como produto deste) reproduz e agrava a vulnerabilidade das mulheres, porque são as mais atingidas com os impactos climáticos e porque são a principal força de trabalho rural no Sul global7 e, assim, constituem-se nas protagonistas dos movimentos de defesa da natureza, pois os problemas ecológicos são indissociáveis daqueles relativos à reprodução social. Aqui, rejeita-se aptidões naturalizadas ou essencializantes:
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ARRUZZA; BHATTACHARYA; FRASER. Feminismo para os 99%. Um manifesto. 2019, p. 84.
as mulheres estão no front da luta pela natureza, biodiversidade e ecossistemas porque são, reconhecidamente, igualmente exploradas. Aí se consolida o que Quijano (1992) denomina de colonialidade do poder: já se tem o controle da economia e o controle da autoridade, e passa-se ao controle do meio ambiente, ao controle dos corpos generificados (e da sexualidade) e ao controle da subjetividade e do conhecimento. Aqui na a América Latina, as mulheres se destacam por sua militância em defesa do meio ambiente numa época em que as grandes mineradoras e a monocultura de alimentos transgênicos constituem uma nova e mais profunda forma de colonização extrativista. Nisso, analisamos mulheres e natureza sob a mesma lente é a lógica pela qual suas existências são violadas: a da dominação. Para as feministas Vandana Shiva e Maria Mies “a subordinação das mulheres e a exploração da natureza são faces de uma mesma moeda: a ilusão de que não fazemos parte da natureza e de que podemos viver à sua margem, o exercício do poder patriarcal e a submissão da vida à exigência da acumulação” (1997, p. 7). E vejam-se as interconexões entre mulheres e natureza: 1) histórica, em que a dominação machista, manifestada por meio de instituições, comportamentos e formas de pensar, que confere mais valor, poder e privilégio ao que tem sido historicamente considerado masculino, é a causa da destruição ambiental; 2) conceitual, manifestada nas estruturas de dominação dos dualismos de valor hierarquicamente organizados, focados na razão e na racionalidade, em contraposição à esfera do corpo, da natureza e do físico (homem/mulher, razão/emoção; público/privado…); 3) empírica, cujos dados registram interconexões reais, sentidas pelos grupos marginalizados, especialmente mulheres, que vivem de forma mais intensa a destruição ambiental; 4) socioeconômico, de modo que as mulheres pobres que vivem nos países de capitalismo dependente, tal qual a natureza, têm seu corpo e trabalho colonizados pelo machismo capitalista; 5) linguística, quando através da linguagem, mulheres são descritas muitas vezes com termos animais pejorativos, ao passo que a natureza é feminizada (Mãe Natureza); 6) espiritual e religiosa, em que espiritualidades e símbolos feministas são atribuídos à Terra (Gaia e deusas); 7) epistemológica, no qual, na tradição ocidental, o conhecedor do conhecimento é um observador imparcial, objetivo e racional, onde natureza e mulheres são objetos passivos deste conhecimento; entre outros (Rosendo, 2012).
Assim, retoma-se o mencionado anteriormente: um dos mecanismos de sustentação da dominação sobre determinados corpos é justamente a naturalização das mulheres em uma lógica de exploração. Sua inferiorização e a colocação de seus corpos e vidas ao desfrute exploratório de homens é o mesmo que ocorre à natureza, em sentido amplo e, dessa forma,, mulheres e natureza são dignas de violação. Parece ser exatamente o que Jair Bolsonaro propõe em sua fala. Daqui, então, oportuna a referência sobre a roupagem sexualizada utilizada pelo presidente para se comparar o Brasil, e a natureza relativa, à uma mulher. E não qualquer mulher: é uma mulher virgem, que não tenha sido havido relações sexuais anteriormente. Uma mulher, que, pela lógica contra a qual nos posicionamos, não foi ainda explorada ou “descoberta” sexualmente por um homem, em uma racionalidade de dominação. Ao dizer que “o Brasil (referindo-se à Amazônia) é a virgem que todo tarado quer”, Bolsonaro justamente evidencia os acertos do diagnóstico ecofeminista, pois este propõe que a dominação do resto da natureza está diretamente ligada à dominação às mulheres. A fala, então, é problemática porque 1) apologiza a violência sexual; 2) hierarquiza e dicotomiza mulheres, ao afirmar que as virgens seriam as mais desejadas - e aqui se relembra a fala dirigida à deputada Maria do Rosário, em que ao afirmar que ela não merecia ser estuprada, ele implicitamente evidenciou que há mulheres que mereceriam o estupro - 3) coloca a biodiversidade brasileira à disposição da exploração capital-imperialista. Como consequência, tem-se que a entrega dos recursos naturais, cuja proteção é pauta urgente a noções internacionalistas de paz e justiça social, pois mantém à margem as populações vulneráveis, já que se pretende legitimar a exploração desenfreada, que invariavelmente leva a impactos ambientais desastrosos, dos quais as mulheres, as pessoas idosas e as crianças (com as devidas transversalidades de raça e classe) são as mais atingidas. Na trama apresentada no início, em que se enlaçam a vida, as instituições de sua proteção e de seu despojamento, a lógica operante na organização individual e social, os marcadores sociais de classe, de nacionalidade e de etnia, bem como o peso dos impactos das mudanças climáticas, é desigual sobre os gêneros e sobre a raça pela lógica de dominação das vidas em função de. Nessa mesma lógica, Sarah Schulman traz o termo pinkwashing (lavagem rosa), que significa “um conjunto de discursos que utiliza a suposta liberdade LGBTTI para limpar, esconder os crimes contra a humanidade co-
metidos pelo Estado de Israel”8. Assim, pela lógica de exploração, apesar das práticas atentatórias aos direitos humanos cometidas pelo Estado de Israel, este é utilizado como exemplo pelo presidente do Brasil. Pois bem. O pensamento em sua plena função, na reflexão de tais questões, nos exige uma postura indissociavelmente ética, estética, política, crítica e clínica, conforme nos direciona Suely Rolnik. Isso significa “reimaginar o mundo em cada gesto, palavra, relação, modo de existir – toda vez que a vida assim o exigir” (Rolnik, 2018), a partir desse contexto que estamos vivendo. É um questionamento de si mesmo, de sua organização ética, política, coletiva. Disso, como nos inquieta Lorscheider: teremos coragem para tal façanha?
Referências OLIVEIRA, J. M.. Genealogias excêntricas: os mil nomes do queer. Apresentação de Dossiê. Periódicus: Revista de estudos indisciplinares em gêneros e sexualidades, Salvador, n. 6, v. 1, nov.2016.-abr.2017. BAMBIRRA, V.. Teoría de la dependência: una anticrítica. 1978. MOORE, J. Capitalism in the Web of Life: Ecology and the Accumulation of Capital. London: Verso, 2015. FEDERICI, S. El patriarcado del salario: críticas feministas al marxismo. Ciudad Autónoma de Buenos Aires: Tinta Limón, 2018. LORSCHEIDER, Y. Esboço aos estudos de Dependência da América Latina. Disponível em https://historiacriticablog.wordpress.com/2017/03/02/esboco-aos-estudos-de-dependencia-da-america-latina-2/
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"No artigo “A Documentary Guide to Pinkwashing”, publicado em 2016, a mesma Sarah Schulman historiciza o pinkwashing e aponta seus desdobramentos" (Berenice, 2019).
SHIVA, Vandana. Monoculturas da mente: perspectivas da biodiversidade e da biotecnologia. Tradução: Dinah de Abreu Azevedo. São Paulo: Editora Gaia, 2003. MIES, Maria; SHIVA, Vandana. Ecofeminismo: teoría, crítica y perspectivas. Icaria: Barcelona, 1997. ARRUZZA, Cinzia; BHATTACHARYA, Tithi; FRASER, Nancy. Feminismo para os 99%: um manifesto. São Paulo: Boitempo, 2019. 128 p. (Tradução de Heci Regina Candiani). BENTO, Berenice. Israel, a terra prometida do pinkwashing. 2018. Disponível em http://berenicebento.blogspot.com/2018/10/israel-terra-prometida-do-pinkwashing.html ROSENDO, Daniela. Ética sensível ao cuidado: Alcances e limites da filosofia ecofeminista de Warren. 2012. 153 f. Dissertação (Mestrado) - Curso de Filosofia, Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Santa Catarina. QUIJANO, Aníbal. Colonialidade e Modernidade-racionalidade - 1992. Disponível em . ROLNIK, Sueli. Esferas da insurreção: notas para uma vida não cafetinada. N-1 edições, 2018.
Sumário Fala, Vivência e Conhecimento das Mulheres Negras: para Pensar Epistemologias..................................................................................... 1 Caroline Rodrigues Menezes Ecofeminismo para a Decolonização e Despatriarcalização do Direito: Caminhando para o Bem Viver........................................................ 13 Betina Fontana Piovesan Sinhô Doutô, sou a Elisângela, me Chame por este Nome, por favô: Relato sobre o Tratamento de Transexuais e Travestis nos Processos Criminais e no Sistema Prisional de Santa Catarina......................................... 31 Grazielly Alessandra Baggenstoss Leonardo Evaristo Teixeira Luz no Quarto de Despejo: sobre a visibilidade às desigualdades de Gênero, Classe, Raça e Sexualidade no Brasil diante da Estrutura Jurídica...... 59 Juliana Alice Fernandes Gonçalves Masculinidade como Critério Comportamental de Avaliação nas Instituições Militares...............................................................79 Clara Lucia Claudino dos Santos Fantini Gabriela Pinheiro Direito Brasileiro: Discurso, Método e Violências Institucionalizadas..........95 Grazielly Alessandra Baggenstoss João Manuel de Oliveira O Direito é um Homem, Branco e Europeu: uma Análise do Ensino Jurídico na Universidade Federal de Santa Catarina sob o Viés de uma Teoria Epistemológica Feminista Decolonial........................................... 121 Grazielly Alessandra Baggenstoss Beatriz de Almeida Coelho
Movimentos Feministas na Constituinte de 1987-1988 e suas Influências no Texto Constitucional....................................................... 145 Mariella Kraus O Programa de Compliance sob a Perspectiva de Gênero como Ferramenta de Promoção da Igualdade de Condições e Oportunidades para Homens e Mulheres no Poder Judiciário................... 163 Michelle de Souza Gomes Hugill Feministas, Democracia e a Construção de um Inimigo Comum................ 179 Isabela Fernandes da Silva Lívia Fontanella Claumann Da Moral à Liberdade Sexual: Análise do Novo Paradigma da Liberdade Sexual sob uma Perspectiva de Gênero......................................199 Luciele Mariel Franco A Mídia, o Imaginário Feminino e o Martelo dos Juízes: Algumas Considerações sobre Moralidade e Decisões Judiciais a Partir do Marketing das Propagandas de Cerveja........................ 217 Amanda Muniz Oliveira Rodolpho Alexandre Santos Melo Bastos Interfaces Sistêmico-Psicológicas sobre a Violência Familiar contra as Mulheres e o Direito Brasileiro Contemporâneo............................233 Grazielly Alessandra Baggenstoss Carmen Leontina Ojeda Ocampo Moré Violência Doméstica e Familiar: Interdisciplinaridade entre Direito e Psicologia............................................... 251 Poliana Ribeiro dos Santos Medidas Protetivas de Urgência Concedidas as Mulheres em Situação de Violência Doméstica e Familiar: Revisão Integrativa......................................271 Poliana Ribeiro dos Santos
Parto, Dor e Religião: Controle sobre o Corpo da Mulher através das Violências Simbólicas do Texto Bíblico......................................... 291 Gisele Witte O Espaço Vazio da Anulação da Representação Feminina na Literatura Bíblica e a Supressão de Direitos das Mulheres.............................305 Athena de Oliveira Nogueira Bastos
Fala, Vivência e Conhecimento das Mulheres Negras: para Pensar Epistemologias Caroline Rodrigues Menezes1
Introdução Os estudos desenvolvidos pelas feministas negras provocam a epistemologia dominante ao situar academicamente “saberes localizados” (HARAWAY, 1995) utilizando a realidade vivenciada como fonte válida de conhecimento. Partindo da metáfora da máscara do silenciamento (KILOMBA, 2010) às noções de epistemologias feministas (SATTLER, 2017), teoria da perspectiva e pensamento feminista negro (COLLINS, 1986), pretende-se apontar algumas reflexões sobre o produzir conhecimento cientificamente válido e o ponto de vista das mulheres negras, como alternativa viável à real escuta/consideração do que diz quem nunca pôde falar. Trata-se de um ensaio para pensar o silenciamento histórico das mulheres negras e a discussão epistemológica trazida por autoras feministas, num momento em que temas como empoderamento (BERTH, 2018) e lugar de fala (RIBEIRO, 2017) ganham destaque fora do ambiente acadêmico brasileiro e, a despeito das proposições originais, numa perspectiva individualista e essencialista, respectivamente. Em singela colaboração à discussão, aparenta ser relevante trazer apontamentos sobre a fala, enquanto possibilidade de manifestar a própria existência, vivência enquanto experiência acumulada dos diversos lugares de marginalidade ocupados, e conhecimento, mesmo na perspectiva acadêmica tradicional-hegemônica, e a situação das mulheres negras. Estabelecer paralelos, para, a partir daí construir novas possibilidades epistemológicas e inclusive traçar os benefícios que essa novas formas - aparentemente mais inclusivas e críticas - poderiam trazer aos grupos envolvidos, parece desafio para um momento futuro. Se o texto alcançar o debate, já terá cumprido seu objetivo. 1
Mestranda no Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina – PPGD/UFSC. Advogada.
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2. Máscara do silenciamento e fala Na sala de estar da casa da minha avó, havia uma imagem da Escrava Anastácia, pregada acima do sofá, no lado esquerdo da parede. Toda sexta-feira, colocávamos uma vela, uma flor branca, um copo de água limpa e uma tigela de café fresquinho – sem açúcar. A minha avó costumava me contar como Escrava Anastácia havia sido encarcerada numa máscara – como isso era comum e se passava com todos aqueles/as que falavam palavras de emancipação durante a escravidão – e eu, dizia minha avó, deveria sempre me lembrar dela. Claro que me lembro, porque esta história foi memorizada. Não posso esquecê-la. O passado colonial está memorizado de tal maneira, que se torna impossível esquecê-lo. Às vezes, preferiria não me lembrar, mas, na verdade, é algo que não se pode esquecer. A teoria da memória é, na realidade, uma teoria do esquecimento. Não se pode simplesmente esquecer e não se consegue evitar lembrar (KILOMBA, 2016, p.1).
O excerto acima, selecionado para iniciar o presente texto, foi extraído da palestra-performace Descolonizando o conhecimento, da psicóloga, escritora, teórica e artista interdisciplinar portuguesa Grada KILOMBA, por representar a abordagem sobre epistemologia que aqui se pretende adotar. Nesse e em outros trabalhos de KILOMBA, como no primeiro capítulo do livro Plantation Memories: Episodes of Everyday Racism (Memórias do Plantation: Episódios do Racismo Cotidiano), a autora realiza uma analogia com a máscara - instrumento de tortura composto por um pedaço de metal colocado no interior da boca do sujeito, instalado entre a língua e a mandíbula e fixado por detrás da cabeça por duas cordas, uma em torno do queixo e a outra em torno do nariz e da testa - com o silenciamento imposto aos sujeitos negros escravizados pela Europa. Numa análise psicanalítica, a autora constrói que, além de uma metáfora para a posse, no sentido de que o sujeito negro escravizado quer comer/ possuir frutos que pertencem ao senhor branco, a boca simboliza a fala e a enunciação. No âmbito do racismo a boca torna-se o órgão da opressão por excelência, ela representa o órgão que os brancos querem – e precisam – controlar e, consequentemente o órgão que, historicamente, tem sido severamente repreendido (KILOMBA, 2010).
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Assim, a máscara representaria o colonialismo como um todo, além de simbolizar políticas de conquista e dominação e seus regimes de silenciamento dos chamados Outros 2. Haveria certo medo por parte do branco, self, em ouvir o que o sujeito negro poderia eventualmente revelar, o que para KILOMBA (2010) pode ser articulado com a noção freudiana de repressão, no sentido de afastar algo e mantê-lo à distância da consciência. Assim, ideias e verdades desagradáveis seriam mantidas fora da consciência por conta da extrema ansiedade, culpa e vergonha que elas causam. Mais além: o medo branco ou manter-se “inconsciente” diante dessas verdades e realidades o protegeria de ter que lidar com os conhecimentos dos Outros. Da análise, a autora suscita-se questões como “Quem pode falar?” Questiona ainda e essencialmente, “Sobre o que se pode falar? Por que a boca do sujeito Negro tem que ser calada? O que o sujeito Negro poderia dizer se a sua boca não estivesse tampada? E o que é que o sujeito branco teria que ouvir?” (KILOMBA, 2016, p.2). Partindo dos questionamentos levantados por KILOMBA, rememora-se Frantz FANON (1952), para quem o ato de falar não se restringe à capacidade de empregar certa sintaxe ou dominar a morfologia de alguma língua, mas de assumir uma cultura, suportar o peso de uma civilização. Assim entendido, o ato de falar não se afasta o ato de emitir/produzir conhecimento academicamente reconhecido. Djamila RIBEIRO (2017) trabalha o conceito de “lugar de fala”, sustentando, nesse mesmo sentido, que o falar não se restringe ao ato de emitir palavras, mas de poder existir. A autora pensa lugar de fala como refutar a historiografia tradicional e a hierarquização de saberes consequente da hierarquia social. Para ela, “quando falamos de direito à existência digna, à voz, estamos falando de locus social, de como esse lugar imposto dificulta a possibilidade de transcendência”. Dessa forma, o silenciamento representado pela máscara reverba pelos diversos espaços e manejos comunicativos em que se situem ou de que se utilizem os sujeitos negros. A desconsideração do conhecimento de quem deve ser silenciado remete às discussões sobre epistemologia que representam o cerne deste esboço. 2
Parece relevante apontar com KILOMBA (2010) que, se o sujeito negro, leia-se homem negro, é o Outro em relação ao branco, a mulher negra é ainda o Outro do Outro, possuindo status ainda mais oscilante, posto que perpassado pelos marcadores de raça e gênero.
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Figura 1: Jacques Arago. Escrava Anastácia, 1817-18.
Fonte: KILOMBA, Grada. A Máscara. Tradução de Jéssica Oliveira de Jesus. In: Cadernos de Literatura em Tradução, n. 16, p. 173.
3. O que é epistemologia? Para Margareth RAGO (1998), epistemologia define um campo e uma forma de produção do conhecimento; o campo conceitual a partir do qual operamos ao produzir o conhecimento científico, a maneira pela qual estabelecemos a relação sujeito-objeto do conhecimento e a própria representação de conhecimento como verdade. KILOMBA (2016) rememora a origem do termo, que seria composto pela palavra grega para conhecimento – episteme, e logos, que significa ciência. Conclui que epistemologia é, portanto, “a ciência da aquisição de conhecimento”. Mais do que isso, para a autora, a epistemologia acabaria por determinar: i) quais temas ou tópicos merecem atenção e quais questões são dignas de serem levantadas com o intuito de produzir conhecimento verdadeiro, ii) quais narrativas e interpretações podem ser utilizadas para explicar um fenômeno, isto é, a partir de qual perspectiva o verdadeiro conhecimento pode ser produzido, e ainda iii) quais maneiras e formatos podem ser usados para a produção de conhecimento confiável e verdadeiro (2016, p.5).
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Assim, epistemologia define não somente como, mas também quem produz conhecimento verdadeiro e em quem devemos acreditar. O caráter autoritário de tal enunciação se torna ainda mais evidente quando se passa a analisar que tipo de conhecimento é tradicionalmente considerado válido, qual abordagem é “científica” e qual não é, e por quem são produzidos. Questionador dessa autoridade, como de tantas outras, adere-se à asserção de Janyne SATTLER (2017), a respeito da significativa contribuição do feminismo e, no caso, das epistemologias feministas como desestabilizadoras da linguagem teórica tomada em sua acepção canônica. Para a autora, ao questionar as bases daquilo que se considera como um dos núcleos fundamentais para a atividade filosófica “propriamente dita”, a epistemologia feminista (SATTLER emprega a expressão no plural) rebate a acusação de que “fazer feminismo” não é “fazer filosofia”, tanto por tratar de questões tradicionais da teoria do conhecimento e da filosofia da ciência, como também por mostrar que tais questões não estão elas mesmas isentas de um viés social e político, mesmo que invisível porque institucionalizado.
4. Epistemologias feministas e teorias da perspectiva Numa crítica às doutrinas ideológicas da “objetividade científica descorporificada”, Donna HARAWAY (1995) utiliza a metáfora do sistema sensorial da visão, sustentando que lutas a respeito do que terá vigência como explicações racionais do mundo são lutas a respeito de como ver. Assim, a autora descreve como “truques de deus” as habilidades de distanciar, no campo da ciência, o sujeito cognoscente de todos e de tudo, através do relativismo e da totalização como maneiras de não estar em lugar nenhum, mas alegando-se possuir igualmente e inteiramente visão de toda parte. Trata-se de um olhar conquistador que não vem de lugar nenhum e, por esta razão, inscreve miticamente todos os corpos marcados, o que “possibilita à categoria não marcada alegar ter o poder de ver sem ser vista, de representar, escapando à representação” (HARAWAY, 1995, p. 18). Para a autora, este olhar significa as posições não marcadas de Homem e Branco.
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Assim, HARAWAY situa que a questão da ciência para o feminismo diz respeito à “objetividade como racionalidade posicionada, o que denomina saberes localizados” (1995, p.33). Há diversas correntes quando se trata de epistemologias feministas. Em seu texto, a professora Janyne SATTLER (2017), discorre sobre três correntes que considera mais expressivas: a teoria feminista da perspectiva, o pós-modernismo feminista e o empirismo feminista. Das correntes mencionadas, a que ganha posição de destaque no presente trabalho é a teoria feminista da perspectiva ou feminist standpoint theory. Segundo SATLER, trata-se de “conferir autoridade epistêmica sobre a representação da realidade aos indivíduos ou grupos socialmente subordinados aos distintos, mas interligados, sistemas de opressão”, a partir dos quais se esclarecem as principais características das desigualdades e injustiças aí experienciadas: o seu conhecimento do funcionamento da sociedade e das relações de gênero que a permeiam seria mais profundo, mais específico, preciso e fidedigno relativamente ao caráter contingente de sua condição. Para a autora, a teoria feminista da perspectiva sugere ainda que os interesses por justiça social de tais indivíduos ou grupos coincidiriam verdadeiramente com interesses humanos universais contrariamente à alegação de universalidade da classe branca, masculina, privilegiada, da epistemologia canônica (SATTLER, 2017). De acordo com Sandra AZEREDO, as teorias da perspectiva consideram que o lugar de onde se vê (e se fala) - a perspectiva - determina nossa visão (e nossa fala) do mundo. Tais teorias tendem a sugerir, portanto, que a perspectiva dos subjugados representa uma visão privilegiada da realidade3. Para HARAWAY (1995), a visão é melhor abaixo das brilhantes plataformas espaciais dos poderosos. A autora sustenta as vantagens do conhecimento situado e corporificado e contra várias formas de postulados de conhecimento não localizáveis e, portanto, irresponsáveis, vez que estes últimos nunca são chamados a prestar contas. Irresponsável significaria, nesse sentido, incapaz de ser chamado a prestar contas. Apesar de ver grande valor em definir a possibilidade de ver a partir da periferia e dos abismos, HARAWAY alerta ainda para duas questões. Primeira 3
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Trata-se de nota de rodapé extraída da página 14 do texto de Donna HARAWAY, “Saberes localizados: a questão da ciência para o feminismo e o privilégio da perspectiva parcial.”
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delas o perigo em se romantizar e/ou apropriar a visão dos menos poderosos alegando possuir sua visão. Reconhece assim que ter uma visão de baixo não é algo não problemático ou que se aprenda facilmente; mesmo que nós mulheres naturalmente habitemos o grande terreno subterrâneo dos saberes subjugados. Em segundo, alerta ainda que os posicionamentos dos subjugados não estão isentos de uma reavaliação crítica, de decodificação, desconstrução e interpretação, “seja do modo semiológico, seja do modo hermenêutico da avaliação crítica” (1995, p.23). Para a autora, as perspectivas dos subjugados não são posições “inocentes” (idem). Pelo contrário - o que parece mais uma vantagem - as visões subalternas são preferidas porque, em princípio, são as que tem menor probabilidade de permitir a negação do núcleo crítico e interpretativo de todo conhecimento. Os subjugados, nos dizeres de HARAWAY, teriam assim melhores possibilidades de reconhecer o truque de deus, e suas perspectivas seriam, portanto, preferidas por prometer explicações mais adequadas, firmes, objetivas, transformadoras do mundo. Ao considerar o lugar social em que se encontra o sujeito que está a falar/ produzir conhecimento, a teoria da perspectiva e a consideração de grupos marginalizados parece encontrar maior eco no feminismo negro pela própria associação de sistemas múltiplos de subordinação ou interseccionalidade4 a que são naturalmente submetidas as mulheres negras. 4
Adotando uma conceituação metafórica, Kimberlé CRENSHAW trata da interseccionalidade como um conceito que busca capturar as consequências estruturais e dinâmicas da interação entre dois ou mais eixos da subordinação. Segundo a autora estadunidense, é como se vários eixos de poder, como raça, etnia, gênero e classe constituíssem as avenidas que estruturam os terrenos sociais, econômicos e políticos e através delas que as dinâmicas do desempoderamento se movessem. Essas vias são por vezes definidas como eixos de poder distintos e mutuamente excludentes; o racismo, por exemplo, é distinto do patriarcalismo, que por sua vez é diferente da opressão de classe. No entanto, CRENSHAW defende que, na verdade, tais sistemas, frequentemente, se sobrepõem e se cruzam, criando intersecções complexas nas quais dois, três ou quatro eixos se entrecruzam. Assim, as mulheres racializadas frequentemente estão posicionadas em um espaço onde o racismo ou a xenofobia, a classe e o gênero se encontram. Por consequência, estão sujeitas a serem atingidas pelo intenso fluxo de tráfego em todas essas vias. As mulheres racializadas e outros grupos marcados por múltiplas opressões, posicionados nessas intersecções em virtude de suas identidades específicas, devem negociar o tráfego que flui através dos cruzamentos, o que se tornaria uma tarefa bastante perigosa quando o fluxo vem simultaneamente de várias direções. Por vezes, os danos são causados quando o impacto vindo de uma direção lança vítimas no caminho de outro fluxo contrário, em outras situações os danos resultam de colisões simultâneas. Esses são os contextos em que os danos interseccionais ocorrem - as desvantagens interagem com vulnerabilidades preexistentes,
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5. Lugar de fala, empoderamento e as outsiders within Reconhece-se, com Djamila RIBEIRO, que lugar social não determina uma consciência discursiva sobre esse lugar. Todavia, “o lugar que ocupamos socialmente nos faz ter experiências distintas e outras perspectivas” (2017, p. 40). Partindo de uma análise estrutural, a autora formula a hipótese de que, a partir da teoria do ponto de vista feminista, é possível tratar de lugar de fala. Isso porque, “ao reivindicar os diferentes pontos de análises e a afirmação de que um dos objetivos do feminismo negro é marcar o lugar de fala e quem as propõem” (RIBEIRO, 2017, p. 34), essa marcação se torna necessária para entender realidades que foram consideradas implícitas dentro da normatização hegemônica. No entanto, para RIBEIRO, “reduzir a teoria do ponto de vista feminista e lugar de fala somente às vivências seria um grande erro”, posto que se trata de um estudo sobre “como as opressões estruturais impedem que indivíduos de certos grupos tenham direito à fala, à humanidade” (ibid, p. 38)5. Trata-se, portanto, de uma questão estrutural e não apenas individual, assim como o empoderamento. Partindo da teoria da conscientização de Paulo FREIRE, em sua obra “O que é empoderamento”, Joice BERTH (2018) traz uma ressignificação do conceito, a partir do pensamento feminista negro. Para a autora, não se trata de uma questão apenas estética e afetiva mas de conscientização gradual e coletiva para a resistência e superação das mais diversas opressões não apenas por indivíduos, mas por grupos. Para BERTH, o empoderamento é um processo gradual, uma vez que o fato de um sujeito pertencente a um grupo oprimido desenvolver pensamento crítico acerca de sua realidade, não retira a dimensão estrutural que lhe coloca sob situações degradantes. Assim, essa dimensão estrutural da questão
produzindo uma dimensão diferente do desempoderamento. In: CRENSHAW, Kimberlé. Documento para o encontro de especialistas em aspectos da discriminação racial relativos ao gênero. Tradução autorizada pela autora e publicada na Revista Estudos Feministas, 171, 1/2002. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/ref/v10n1/11636.pdf. Acesso em 29.jun.19. 5
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Pelo contexto em que se insere a afirmação citada, entende-se que a autora pretendeu situar os conceitos como operantes de uma lógica estrutural/coletiva, e não apenas individual. No entanto, parece-nos que contrapor vivências à estudo utilizando ainda o verbo reduzir, vai de encontro a outro aspecto da epistemologia tradicional que parte das feministas questiona: a hierarquização do saber proveniente da experiência vivida e o saber acadêmico.
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implica na necessidade de empoderar não apenas os indivíduos, mas toda sua comunidade, num processo para a erradicação das estruturas que a oprimem. Situadas tais apontamentos estruturais, há de se destacar contribuição de Patricia Hill COLLINS (1986, trad. 2016) no que tange à produção de conhecimento acadêmico por mulheres negras. Sistematizando o que denomina “pensamento feminista negro” a partir de três temas que considera fundamentais - a autodefinição e a autoavaliação das mulheres negras, a natureza interligada da opressão e a importância da cultura das mulheres afro-americanas - COLLINS cunhou o termo outsider within para caracterizar como intelectuais negras podem fazer uso criativo de sua posição de marginalidade nos ambientes acadêmicos. Partindo da situação de mulheres afro-americanas que desempenhavam tarefas domésticas, criavam os filhos e se tornavam “quase da família” das elites brancas, a autora situa que essa posição de forasteiras dentro lhe proporcionariam um ponto de vista único, assim como acontece com as intelectuais negras na academia. Nessa posição de estar dentro mas ser de fora, apesar dos obstáculos que podem confrontar as outsiders within, tais sujeitos poderiam beneficiar-se desse status. Alguns dos benefícios incluiriam uma peculiar composição de objetividade como proximidade e distância, preocupação e indiferença, além da habilidade do estrangeiro em ver padrões que dificilmente poderiam ser notados por aqueles que estão imersos nas situações (COLLINS, 2016). Assim, segundo COLLINS, enquanto mulheres negras que estão fora da academia podem estar familiarizadas com omissões e distorções da experiência das mulheres negras, como outsiders da academia, falta-lhes autoridade profissional legítima para desafiar as anomalias sociológicas. De forma parecida e, por outro lado, os insiders sociológicos tradicionais, homens brancos ou seus discípulos ou discípulas segundo a autora, certamente não estariam em posição de perceber as anomalias especificas que são nítidas para as mulheres afro-americanas, mesmo porque esses mesmos insiders sociológicos produziram essas anomalias. Por outro lado, as mulheres negras que permanecem “enraizadas” em suas próprias experiências enquanto mulheres negras – que seriam aquelas que dominam os paradigmas sociológicos e ao mesmo tempo mantêm uma postura 9
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crítica em relação a estes – estão em posição melhor para trazer uma perspectiva especial, não apenas para o estudo de mulheres negras, mas também para algumas das questões fundamentais que a própria ciência (a autora trata mais especificamente em se texto, da sociologia) enfrenta (COLIINS, 2016, p. 122).
6. Realidade vivenciada como ciência Do silenciamento nas lavouras à produção de conhecimento a partir de locais e corpos estruturalmente marcados, o que se pretendeu com este esboço foi costurar algumas reflexões sobre epistemologias e as peculiaridades do sujeito negro. A partir da epistemologia feminista, contestadora por natureza de relações de poder e autoridade tradicionalmente concentrada em sujeitos homens e brancos, a teoria da perspectiva e o pensamento feminista negro, ao considerar o olhar diferenciado de mulheres negras na ciência, parecem uma alternativa viável à escuta de quem nunca pôde falar. Se o poder falar em si já foi obstáculo às mulheres negras, imortalizado na máscara usada por Anastácia, falar em termos acadêmicos, produzir conhecimento e obter o reconhecimento de sua produção como academicamente válida é ainda uma barreira a ser superada. Nesse ponto, não se discorda que o conhecimento técnico-acadêmico possa ser útil tanto na luta por reparações históricas quanto para novas interpretações da realidade vivenciada. Todavia, parece interessante caminhar para um futuro onde a vivência, a experiência vivida, possa ser de fato reconhecida como conhecimento, não numa visão hierarquizada com relação ao saber acadêmico. Não que não possamos manejar o que se denomina Ciência ou imiscuir-se na lógica acadêmica hegemônica. Mas do lugar de subalternidade que a mulher negra ainda ocupa, experiências jamais vivenciadas por homens e mesmo mulheres brancas podem ser úteis a uma visão mais ampla dos fenômenos da sociedade pela academia. As perguntas de KILOMBA permanecem, aqui adaptadas: O que as mulheres negras poderiam dizer se suas bocas não estivesse tampadas? E o que é que os sujeitos brancos teriam que ouvir?
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7. Referências BERTH, Joice. O que é empoderamento? Belo Horizonte: Letramento, 2018. CRENSHAW, Kimberlé. Documento para o encontro de especialistas em aspectos da discriminação racial relativos ao gênero. Tradução autorizada pela autora e publicada na Revista Estudos Feministas, 171, 1/2002. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/ref/ v10n1/11636.pdf. Acesso em 29.jun.19. COLLINS, Patricia Hill. Aprendendo com a outsider within: a significação sociológica do pensamento feminista negro. Tradução: Juliana de Castro Galvão. Revisão: Joaze Bernardino- Costa. Revista Sociedade e Estado – Volume 31 Número 1 Janeiro/Abril 2016. HARAWAY, Donna. Saberes localizados: a questão da ciência para o feminismo e o privilégio da perspectiva parcial. Cadernos Pagu, n. 5, 1995. Disponível em: https://goo.gl/CV71ra. Acesso em: 18 mar. 2019. KILOMBA, Grada. Descolonizando o conhecimento: uma palestra-performance de grada Kilomba. Disponível em: http://www.goethe.de/mmo/ priv/15259710-STANDARD.pdf. Acesso em 07.mai.19. RAGO, Margareth. Epistemologia Feminista, Gênero e História. In: Masculino, feminino, plural. Pedro, J.M. e Grossi, M. (orgs.). Florianópolis: Ed. Mulheres, 1998. Disponível em http://projcnpq.mpbnet.com.br/textos/epistemologia _feminista.pdf. Acesso em 07.mai.2019. RIBEIRO, Djamila. O que é: lugar de fala? Belo Horizonte: Letramento, 2017. SATTLER, Janyne. Epistemologia feminista. Disponível em http://twixar. me/14q3. Acesso em 07.mai.2019.
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Ecofeminismo para a Decolonização e Despatriarcalização do Direito: Caminhando para o Bem Viver Betina Fontana Piovesan1 “A utopia está lá no horizonte. Me aproximo dois passos, ela se afasta dois passos. Caminho dez passos e o horizonte corre dez passos. Por mais que eu caminhe, jamais alcançarei. Para que serve a utopia? Serve para isso: para que eu não deixe de caminhar. ” (Fernando Birri, citado por Eduardo Galeano, 1994)
Introdução O Direito, hoje concebido como uma manifestação de poder do Estado, é um fenômeno complexo e que por si só não se basta. Para uma melhor compreensão e aplicação de tal fenômeno, é preciso que nos socorramos a outras áreas de conhecimento. Se por um lado o fenômeno jurídico apresenta um caráter patriarcal e colonial, o que impede a expressão e as possibilidades de existências e manifestações de diversas formas de vida, especialmente das mulheres e da vida não humana (a Natureza em sentido amplo), por outro, ele pode servir como espaço e instrumento de efetivação de justiça social, auxiliando (e não encerrando) a luta no combate às diversas formas de opressão e dominação. Sendo assim, através de uma revisão bibliográfica narrativa, pretendo demonstrar a permanência da colonialidade e do patriarcado sobre o Direito brasileiro. Sem a pretensão de apresentar soluções finais através de medidas institucionais legislativas, especialmente porque parto da ideia de que a perspectiva reformista confirma e legitima o sistema jurídico patriarcal e colonial. Ou 1
Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina (PPGD/UFSC), área de concentração: teoria e história do direito; linha de pesquisa: historicismo, conhecimento crítico e subjetividades. Pesquisadora de direito e feminismos vinculada ao Grupo de Pesquisa/CNPq Lilith: Núcleo de Pesquisa em Direito e Feminismos.
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melhor, como ressalta Janyne Sattler (2019) “qualquer tentativa de conciliação está fadada ao fracasso, já que a orientação para a acumulação e para o mercado exigem e pressupõem a exploração de mão-de-obra humana e a exploração dos animais não humanos e da terra em prol da utilidade, da eficácia e do lucro”. Ainda, lembro Silvia Federicci (2017, p. 125), que foi enfática ao nos alertar que desde a Idade Média, a concessão de apenas parcialidade reivindicações dos movimentos de resistência, tal como feminismo, é uma estratégia da classe dominante para justamente vencer a resistência2. Trata-se de analisar criticamente o Direito, para construção de ideias e caminhos alternativos. Sem atribuir ao Estado uma compreensão maniqueísta, parto da noção complexa e contraditória do Direito como instrumento e impedimento3, para demonstrar a urgência de construirmos novos horizontes emancipatórios às vítimas deste mesmo projeto Moderno que o funda; novas bases normativas, novos discursos e novos modos de se fazer, pensar e falar o Direito. Isso porque, da maneira em que se encontra estruturado, o fenômeno jurídico constrói e reforça padrões de dominação às mulheres e à natureza. Mas, a partir de uma crítica ecofeminista e decolonial, o Direito como processo histórico pode servir como um instrumento aliado aos processos de luta por emancipação. Essas mudanças, conforme buscarei demonstrar não podem prescindir das contribuições da epistemologia feminista e da práxis ecofeminista, que aponta para noções complexas do Bem Viver.
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Para explicar como a instituição do capitalismo dependeu de um ataque sistemático à vida e às liberdades das mulheres, Silvia Federici propõe uma análise histórica. Ao falar da acumulação do trabalho e da degradação das mulheres nesse período de “transição”, a autora aponta que a acumulação capitalista e a acumulação de trabalho na Europa dependeram da adoção de uma série de medidas, como por exemplo, a privatização das terras que antes eram comunais, com a consequente exploração dos trabalhadores, que resistiram. Ou seja, aos trabalhadores que não aceitavam a condição de servidão e escravidão, foi introduzido o trabalho assalariado forçado. Com o disfarce de conquista e sob a alegação de que o trabalho era remunerado, o salário era irrisório e perpetuava a miséria. Além disso, era aplicado a apenas alguns grupos de homens. Mesmo “remunerado”, o trabalho não era livre. Tratava-se, pois, daquilo que a autora nomeou de escravidão do salário
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“O Estado como instrumento, o Estado como impedimento” é o título do trabalho fruto de uma pesquisa de quatro autoras latino-americanas (Alexandra Martínez, Sandra Rátiva, Belén Cevallos e Dunia Mokrani Chávez), que instigadas sobre o papel do Estado na transformação social, realizaram entrevistas e grupos focais com mulheres e homens na Bolívia, na Colômbia, no Equador e na Venezuela. As/os entrevistadas/os eram oriundas de países que iniciaram processos de refundação a partir de Assembleias Constituintes e atuaram no Estado, cuja motivação de vinculação a ele era a transformação social a partir de distintos processos de luta, a nível Executivo, Legislativo e Judiciário.
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2. Despatriarcalizar e decolonizar o direito Com certo consenso, as teóricas feministas que se dedicam a examinar o fenômeno jurídico já abandonaram a ideia do Direito como mito salvador (à exceção das liberais)4. Isso significa dizer que a busca de uma teoria jurídica feminista, essencialmente crítica, não é encarada como a finalidade exclusiva das lutas antiopressão ou, em termos mais simples, que as demandas dos movimentos feministas (plurais) não se esgotam e nem se resolvem com mais direitos, mais leis, mais punições e mais regulações do Estado; na verdade, atuam de maneira conjunta com diversas outras intervenções (sociais, políticas, filosóficas, práticas...), buscando eliminar todas as formas de opressão e de castração de vidas (humana e não humana). O mesmo ocorre com os movimentos ambientalistas de defesa da natureza e dos animais não humanos: a preservação e a valorização dessas formas de vida não dependem apenas de regulações estatais ou de um estatuto jurídico próprio, mas sim da ruptura do sistema extrativista capitalista neoliberal que visa exclusivamente ao lucro (DILGER; LANG; PEREIRA FILHO, 2016)5. 4
Por feminismo liberal (ou feminismo de Estado) compreendem-se aquelas posições que se propõem a reformar as situações de discriminação contra as mulheres através do aumento de representatividade em diversas esferas da sociedade, valorizando a importância da igualdade na esfera pública. Opta-se por uma linha formal e legalista que é responsável pela introdução de legislações para igualdade formal e de adoção de medidas resolutivas consideradas pouco democráticas. Atua junto com os Estados na reivindicação de direitos básicos, por conta de suas reivindicações legais. Entretanto, justamente por assumir um viés liberal e não fazer a crítica ao Estado capitalista, assume propostas elitistas (OLIVEIRA, 2017). Na recente obra “Feminismo para os 99%: um manifesto” (2019), as autoras defendem que a vertente liberal do feminismo busca nada além do que “oportunidades iguais de dominação”. Ou seja, quando mulheres ascendem aos cargos de poder de grandes corporações, estão apenas reproduzindo padrões de dominação através da terceirização da opressão. Por isso, sustentam que o feminismo liberal está falido e que é preciso superá-lo. Assim como busco fazer neste artigo, Cinzia Arruzza, Tithi Bhattacharya e Nancy Fraser propõem um feminismo anticapitalista, antirracista, internacionalista, ecoambientalista.
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No Manifesto Feminista para os 99%, as autoras Aruzza, Bhattacharya e Fraser (2019, p. 84-87), afirmam que “a atual crise do capitalismo é também uma crise ecológica. O capitalismo sempre buscou fortalecer seus lucros se apossando de recursos naturais, aos quais ele trata como gratuitos e infinitos e os quais quase sempre rouba diretamente. [...] o capitalismo desestabiliza periodicamente a própria condição ecológica que o viabiliza [...]. Se a crise ecológica hoje está diretamente vinculada ao capitalismo, ela também reproduz e agrava a opressão das mulheres, [que] ocupam as linhas de frente da atual crise ecológica, constituindo 80% das pessoas refugiadas em função do clima. No Sul global, elas constituem a vasta maioria da força de trabalho rural, ao mesmo tempo que carregam a responsabilidade pela maior parte do trabalho de reprodução social”.
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A problemática que surge ao transferir para o Direito a responsabilidade pela superação das violências, é que sua constituição se dá em bases fortemente patriarcais e coloniais, o que nos permite dizer que precisamos, primeiro, analisá-lo criticamente, visando à despatriarcalização e à decolonização, o que busco fazer através das contribuições teóricas e práticas do ecofeminismo. De antemão, decolonizar implica a construção de caminhos alternativos por meio de lutas sociais, significa imaginar outros modos de viver que possibilitem uma qualidade de vida harmônica com a natureza e que respeite a biodiversidade (WALSH, 2009). Do mesmo modo implica, invariavelmente, à eliminação de qualquer forma de dominação de gênero, motivo pelo qual também proponho a despatriarcalização. A afirmação de que o direito brasileiro é patriarcal e colonial fica mais evidente se o analisarmos a partir de sua historicidade. Ponto fundamental na agenda da Modernidade, a colonialidade (que colonizou o ser, o saber, o poder e o gênero) que ora persiste, inicia-se justamente com o processo de colonização do continente até então chamado pelos povos originários de Abya Yala. É importante lembrar que nestes territórios, até 1492 havia uma pluralidade de existências, organizações e saberes. Como nos lembra María Lugones (2014), o homem branco, ao chegar na região que passou a chamar de América, não se deparou com [...]um mundo a ser estabelecido, um mundo de mentes vazias e animais em evolução. Ao contrário, encontrou-se com seres culturais, política, econômica e religiosamente complexos: entes em relações complexas com o cosmo, com outros entes, com a geração, com a terra, com os seres vivos, com o inorgânico, em produção; entes cuja expressividade erótica, estética e linguística, cujos saberes, noções de espaço, expectativas, práticas, instituições e formas de governo não eram para ser simplesmente substituídas, mas sim encontradas, entendidas e adentradas em entrecruzamentos, diálogos e negociações tensos, violentos e arriscados que nunca aconteceram (LUGONES, 2014, p. 941).
Assim, com a chegada do colonizador, os saberes potentes e complexos aqui existentes foram minados, em detrimento de um projeto de dominação patriarcal e colonial que visava à expansão territorial. Com a colonização, a Europa foi construindo a si mesma epistemologicamente como “um novo padrão global de produção, estruturado a partir da escravidão, da servidão, da produção mercantil
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– formas históricas e sociologicamente novas, estabelecidas e organizadas para suprir as necessidades do mercado mundial” (CAOVILLA, 2015, p. 47). O que Enrique Dussel (1993) nos informa em sua obra intitulada 1492: O encobrimento do outro, em síntese, é que a colonização, além de servir a propósitos expansionistas territoriais, à dominação patriarcal, à mão de obra escrava, à domesticação, à exploração de matéria prima, à implementação do mercantilismo e do capitalismo, serviu também como projeto inaugural da Modernidade: um fenômeno europeu, construído sobre uma lógica discursiva de progresso, racionalidade científica, de dominação sobre o indômito que, portanto, inferiorizava, subalternizava e explorava as colônias na América Latina, violando seus modos culturais. Dessa forma, a Modernidade está intrinsicamente ligada à colonialidade e assim se constrói a partir de dicotomias hierarquizantes (LUGONES, 2014). Nessa esteira, tudo aquilo associado à natureza “caótica, selvagem, insubmissa, [representada] pela mulher, pela emotividade, pelas populações não-brancas – e pela lentidão ineficaz do tempo de cada coisa” (SATTLER, 2019), é enxergado como inferior em detrimento de seu correspondente masculino, racional, branco. Como dito anteriormente, até a chegada dos europeus, o que existia era um direito vivo, plural, comunitário e descentralizado, em que todas as experiências, relações e saberes eram valorizados (WOLKMER, 2002). Entretanto, com a colonização, essas formas de saber foram julgadas como atrasadas e inferiores e por isso precisavam ser minadas. Como aponta Enrique Dussel (1993), este processo não se tratou do descobrimento da América, mas sim de seu encobrimento. Nesse sentido, implantou-se o Direito Moderno, importado da metrópole, com a predominância de padrões universais, burocráticos, hierárquicos, centralizadores, segregadores, excludentes, normativos, individualistas, modelo que perdura até a atualidade. O Direito foi universalizado através do novo projeto, o paradigma da Modernidade, que também se pautava pelo antropocentrismo6, isto é, o homem no centro de tudo. Mas não qualquer ho6
Ao impor o antropocentrismo, quero evidenciar que também se impõe a dicotomia entre o homem e a Natureza, aquele, evidentemente, superior no binômio. Portanto, a Modernidade inaugurada pela colonização é diretamente responsável pela forma em que lidamos, também juridicamente, com o meio-ambiente e os animais, os quais encaramos como sujeitos passivos, cujos poucos direitos que possuem focam prioritariamente numa abordagem privada e econômico-financeira, como mercadorias que servem basicamente a propósitos de exploração que visam ao lucro.
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mem: somente o branco, europeu, “civilizado” e proprietário. Portanto, fica evidente que o direito se estabelecia em seu próprio interesse e favorecia apenas à elite, além de desconsiderar as pluralidades e diversidades de formas de vida humana e não humana (CAOVILLA, 2015). O longo período de colonização foi um movimento tão perverso – Silvia Federici (2017, p. 126, nota de rodapé 61) compara seus efeitos a um holocausto americano – que mesmo tendo sido formalmente superado, com a Independência do Brasil (que vale lembrar, foi uma negociata forjada entre a elite local e a elite da metrópole e não uma vitória dos inúmeros movimentos de resistência existentes) e a posterior Proclamação da República, o ranço colonial nunca mais abandonou as práticas, as instituições, a cultura dos países colonizados, especialmente o Brasil. Ou seja, o colonialismo na forma de um regime institucional de dominação de um Estado Nação em detrimento de outro foi superado, mas permaneceu e permanece uma narrativa histórica hegemônica que inviabiliza não só a violência a que foram submetidos os povos originários, indígenas e quilombolas, mas também suas formas de existência e resistência. Isso porque, como bem analisaram Aníbal Quijano (1992) e Maria Lugones (2014) em seus respectivos ensaios Colonialidad y modernidad/racionalidad e Rumo a um feminismo descolonial, se impôs a colonialidade, uma “estrutura complexa de níveis entrelaçados” (MINGOLO, 2010, p. 12), que atua sobre o saber, o poder, o ser e o gênero; todas elas imbrincadas umas nas outras e constituintes da estrutura do Estado Moderno (FONSECA, 2016). Assim, a colonização assume uma nova roupagem, agora nomeada de colonialidade, e que opera ainda na lógica de favorecimento das elites em detrimento do reconhecimento e da valorização das experiências, produções, modos de organização e relação dos países colonizados. Novamente, o Direito não escapa a essa regra7. Por colonialidade do saber, compreende-se uma perspectiva que prioriza um pensamento único, uma produção de conhecimento única, uma educação-padrão, com uma finalidade política e espistemicamente disciplinar: só é válida a forma de conhecimento eurocêntrica, o que implica naquilo que Vandana 7
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Para mais informações sobre as implicações da colonialidade do saber, do poder, do ser e de gênero sobre o direito brasileiro, ver a tese de doutorado de Lívia Gimenes Dias da Fonseca (2016), cuja refinada análise é feita a partir da (não) inclusão de pautas de mulheres indígenas na adoção de políticas públicas pelo Estado brasileiro.
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Shiva (2003) chamou de monoculturas da mente: os processos de uniformização do saber que, na analogia da autora, são como os processos de uniformização da agricultura e da silvicultura. Trata-se da desvalorização e do desprezo às visões diversas e plurais do mundo, apagadas em nome da lógica monocultural que visa à produtividade e ao lucro. Assim, a colonialidade do saber funda-se, [...] por um lado, no modelo newtoniano, na perspectiva de que o mundo está regido por leis provadas empiricamente, as quais permitem alcançar certas certezas, e, por outro, no dualismo cartesiano enraizado no determinismo e na distinção entre natureza e seres humanos, corpo e mente, mundo físico e mundo espiritual. Ambas as perspectivas contribuíram para fundar “a ciência”, entendida como a busca de leis naturais e universais que se mantêm no tempo e no espaço (WALSH, 2009, p. 188).
Como visto anteriormente, a colonização impôs exatamente a supressão dos saberes tradicionais em detrimento da racionalidade científica moderna, pretensamente neutra e universal. Um exemplo é desconsideração da cosmovisão do “Bem-Viver” (conceito que tratarei adiante) dos povos indígenas, perspectiva que foi sistematicamente ignorada na formação do Estado Brasileiro. Outra forma de colonialidade é a do poder, que segundo Aníbal Quijano reflete a desigual distribuição de poder entre as pessoas na sociedade, a partir da colonização, impondo as diferenças entre o “civilizado” (europeu) e os “selvagens” (indígenas) e os países do norte global (Europa e Estados Unidos, mais especificadamente) como modelo de desenvolvimentismo neoliberal globalizado a ser seguido (FONSECA, 2016). Ou seja, é um processo social, político e econômico em que as estruturas de poder coloniais são reproduzidas através dos mecanismos do sistema capitalista. Aníbal Quijano compreende por colonialidade do poder, [...] a forma específica que a dominação e a exploração adquirem na constituição do sistema de poder mundial capitalista. “Colonialidade” refere-se: à classificação das populações do mundo em termos de raças – a racialização das relações entre colonizadores e colonizados/as; à configuração de um novo sistema de exploração que articula em uma estrutura todas as formas de controle do trabalho em torno da hegemonia do capital, onde o trabalho está racializado (tanto o trabalho assalariado como a escravidão, o sistema de servos, e a pequena produção de bens tornaram-se formas racializadas de produção; todas eram formas novas na medida em que se constituíram a serviço do capitalismo); ao eurocen19
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trismo como o novo modo de produção e controle da subjetividade; a um novo sistema de controle da autoridade coletiva em torno da hegemonia do Estado- nação que exclui as populações racializadas como inferiores do controle da autoridade coletiva (LUGONES, 2014, p. 939).
Por isso, a colonialidade do poder assume características interseccionais ao impor “múltiplas e heterogêneas hierarquias globais (‘heterarquias’) de formas de dominação e exploração sexual, política, epistémica, econômica, espiritual, linguística e racial, em que a hierarquia [...] entre o europeu e o não-europeu reconfigura transversalmente todas as restantes estruturas globais de poder” (GROSFOGUEL, 2010, p. 464). Em outras palavras, significa dizer que a colonialidade do poder controla a economia, a autoridade, a natureza e os recursos naturais, o gênero e a sexualidade, a subjetividade e o conhecimento A colonialidade do ser, por sua vez, é a interiorização da condição de inferioridade dos povos subalternizados e a aceitação da condição de superioridade dos povos colonizadores, impactando não somente o imaginário, mas também as práticas e experiências cotidianas. Dessa forma, ela retira a possibilidade do “ser colonizado” ser sujeito histórico e sujeito de direitos, para tão somente ser objeto de ação e vontade de quem domina e tem poder. “A colonialidade do ser se refere, assim, à não existência e à desumanização, uma negação do status do ser humano, iniciada dentro dos sistemas de cumplicidade do colonialismo e escravidão” (WALSH, 2007, p.29). Por fim, María Lugones (2014) complexifica as análises de colonialidade do poder e do ser, apresentando a colonialidade de gênero, umas constituindo às outras simultaneamente. Inicialmente, a autora sustenta que até a invasão dos colonizadores, as relações de gênero existentes entre os povos tradicionais não eram dicotômicas nem hierarquizadas, de modo que o gênero não era um princípio organizador da sociedade. Entretanto, como estratégia para colonizar, foram instituídas práticas discursivas que recorreram ao gênero, disciplinando homens e mulheres da América Latina de acordo com a perspectiva eurocêntrica. Trata-se do que a autora nomeou como “sistema moderno-colonial de gênero”. Esse sistema, de acordo com Lugones (2014, p. 935), “é uma lente através da qual [podemos] aprofundar a teorização da lógica opressiva da modernidade colonial, seu uso de dicotomias hierárquicas e de lógica categorial”. Ou seja, de acordo com a autora, gênero e raça foram criações categoriais da colonização, que 20
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tinham como objetivo racializar e engendrar as sociedades colonizadas. A colonização pautou-se pela dicotomia entre o humano e o não humano, este associado aos colonizados, que foram transformados em homem e mulher através dos códigos de gênero e raça ocidentais e europeus. Nas palavras da autora Tornar os/as colonizados/as em seres humanos não era uma meta colonial. A dificuldade de imaginar isso como meta pode ser vista nitidamente quando percebemos que a transformação dos/as colonizados/as em homens e mulheres teria sido uma transformação não em identidade, mas em natureza. E colocar os/as colonizados/ascontra si próprios/ as estava incluído nesse repertório de justificações dos abusos da missão civilizatória. A confissão cristã, o pecado e a divisão maniqueísta entre o bem e o mal serviam para marcar a sexualidade feminina como maligna, uma vez que as mulheres colonizadas eram figuradas em relação a Satanás, às vezes como possuídas por Satanás (LUGONES, 2014, p. 938).
Portanto, o gênero é tão central e indispensável quanto a raça para a manutenção dos padrões de colonialidade, especialmente do poder. Além disso, o Direito e suas formas jurídicas estão diretamente imbrincados com a colonialidade porque se constituem e se fundamentam nas hierarquias dicotômicas fundantes da modernidade ocidental, recorrendo aos princípios de universalidade e neutralidade, que por sua vez, são mitos ocidentais que justificam a dominação da “norma epistemológica universalizante” europeia aos grupos e conhecimentos não-europeus e não-ocidentais (GROSFOGUEL, 2010). Ao incorporar a lógica universal, abstrata, central, o paradigma jurídico exclui as diversidades em detrimento de uma universalização totalizante, “resultando na incompreensão das complexidades sociais e ilegitimidade no delineamento dos sujeitos de direito” (BRUZACA; QUEIROZ, 2016, p. 309).
3. Ecofeminismo decolonial: o bem viver como projeto à complexidade da vida O que busquei evidenciar até o momento foi a permanência dos padrões coloniais no imaginário e nas práticas de homens e mulheres nos países colonizados. Isso significa dizer que as interações, a cultura, as práticas, os saberes, as relações com a Natureza, em regra, permanecem pautadas por essa perspectiva colonialista e patriarcal. E o Direito não escapa a ela. 21
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Como mencionei anteriormente, seja no próprio texto legal, quando perspectivas interseccionais que considerem especificidades geográfica, racial, social, ambiental e sexualmente localizadas são ignoradas, ou seja de forma mais subjetiva, através de um discurso jurídico hegemônico, no modo em que se ensina o Direito nas Universidades, na maneira em que se decide o Direito nos Tribunais, na forma em que se postula o Direito na sociedade, essas práticas estão invariavelmente aliançadas com o projeto de colonialidade, o que implica na perpetuação de violências, através da inobservância da materialidade das vidas daqui8. Além da evidente constatação de que o Direito afeta de forma mais violenta grupos mais vulneráveis, como as mulheres (afetação que se intensifica à medida em que outros marcadores sociais vão sendo cumulados)9, é preciso reconhecer que o fenômeno jurídico também contribui para a destruição das outras formas de vida não humanas. Daí porque afirmei no começo deste texto que a despatriarcalização e a decolonização do Direito são medidas urgentes a serem efetivadas. Isso significa dizer que podemos analisar as mulheres, os animais e o meio ambiente, todos eles associados à natureza, sob o mesmo olhar, através da mesma lente.
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As análises acerca da influência da colonialidade sobre o Direito podem ser feitas através de diversas perspectivas. Por exemplo, sob o viés de gênero, tem-se o recente trabalho da pesquisadora Juliana Alice Fernandes Gonçalves (2019) que, em síntese, analisou as legislações brasileiras referentes às mulheres após a Constituição de 1988 para verificar sua conformidade com a perspectiva feminista decolonial. Como resultado, a autora identificou que tais legislações sofrem com a colonialidade de gênero, porque não abordam as perspectivas interseccionais, limitando-se, em geral, a descrever uma mulher universal, desprovida de orientação sexual, raça, classe e localização geográfica. Outro trabalho, publicado em capítulo deste livro, que aponta a permanência da colonialidade é o das pesquisadoras Grazielly Alessandra Baggensstoss e Beatriz Almeida Coelho. Intitulada de “O Direito é um homem, branco, europeu: uma análise do ensino jurídico na Universidade Federal de Santa Catarina sob o viés de uma teoria epistemológica feminista decolonial”, a pesquisa verificou a ementa do curso de Direito na Universidade Federal de Santa Catarina e concluiu que, na esmagadora maioria dos casos, as fontes das diversas disciplinas durante a graduação são de autores homens, brancos e europeus, de modo que a Teoria do Direito no curso é apresentada ignorando o viés de mulheres negras e pensadoras latinoamericanas. Ainda, tem-se a já mencionada (nota de rodapé 5) tese de doutorado de Lívia Gimenes Dias da Fonseca (2016), cuja verificação do patriarcado e da colonialidade incidentes sobre o Estado Brasileiro se dá através análise das políticas públicas para as mulheres indígenas.
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Para as intersecções entre diversos marcadores sociais, ver DAVIS, Angela. Mulheres, raça e classe. Tradução: Heci Regina Candiani. São Paulo: Boitempo, 2016.
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E neste momento que insiro as contribuições de uma práxis ecofeminista como projeto à complexidade da vida10, ou pelo menos, como proposição alternativa a um sistema fracassado. Aqui, práxis assume a conotação freireana de unidade dialética entre teoria e prática, de modo que teoria e prática se fazem juntas e de forma interdependente. Longe de pretender universalizar o conceito, compreendemos o ecofeminismo como o projeto que tem “como ponto de partida a diversidade e a potencialidade da vida, mas com um olhar holístico, sobre sua totalidade” (BARRAGÓN et al. 2016, p. 89). O ecofeminismo coloca a preservação da vida como objetivo central, não só porque as mulheres são as mais afetadas com as catástrofes “naturais”, nem porque comumente são as protagonistas nos movimentos de defesa da natureza, mas especialmente porque as discriminações que sofrem as mulheres e a natureza seguem a mesma lógica injustificada (a da dominação). Para Vandana Shiva e Maria Mies (1997, p. 7) “a subordinação das mulheres e a exploração da natureza são faces de uma mesma moeda: a ilusão de que não fazemos parte da natureza e de que podemos viver à sua margem, o exercício do poder patriarcal e a submissão da vida à exigência da acumulação”. Segundo Daniela Rosendo (2012, p. 21), o ecofeminismo “é uma posição que leva em consideração a perspectiva feminista e as teorias ambientais, com o objetivo de conjugar ambas e superar o sistema de opressão caracterizado pela relação de subordinação às quais as mulheres e a natureza são submetidas pelos homens”. Sendo assim, a partir de suas diferentes abordagens, o ecofeminismo apresenta um potencial para pensar criticamente as relações humanas com outros animais e com a natureza. Permite também realizar um diagnóstico e propor saídas para o não-lugar ocupado pelas minorias políticas ainda assentadas em toda sorte de dominações e exclusões. Por isso, a construção de uma práxis ecofeminista implica num movimento contrário a todas as formas de discriminação e opressão. Ou seja, trata-se de propor uma sociedade, com um Direito decolonizado e despatriarcalizado, em que mulheres não sejam oprimidas e a natureza não seja
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A ideia de uma práxis ecofeminista como projeto à complexidade da vida foi proposta originalmente pela professora Janyne Sattler (2019), em artigo publicado na obra “Ecofeminismos: fundamentos teóricos e práxis interseccionais”, organizada por Daniela Rosendo, Fábio A.G de Oliveira, Tânia Kuhnen e Priscila Carvalho.
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explorada. Mas não há uma receita, “tampouco um caminho traçado, nem uma alternativa definida. Há que construí-los” (FLORES GALINDO, 1989). Em que pese algumas diferenças de abordagem entre o(s) ecofeminismo(s) e o feminismo decolonial, que ao nosso ver são facilmente superadas, propomos aqui uma intersecção, um ecofeminismo decolonial. Ou seja, um movimento prático e teórico interseccional, que ofereça contribuições para superar a exploração patriarcal e colonial, dos animais não humanos, da terra, do solo, das águas e do ar, para emancipar as mulheres, considerando sua territorialidade, sua sexualidade, sua raça e sua classe social. Assim, colocamos em perspectiva a construção de uma “alternativa à ideia de desenvolvimento capitalista antropocêntrico constituído a partir da arbitrária divisão entre humanidade e natureza” (COSTA, 2017, p. 5). Essa construção alternativa aponta para uma sociedade (com um Direito) horizontal e plural, com equilíbrio e harmonia entre a convivência de todos os seres. Harmonia do indivíduo com ele mesmo, do indivíduo com a sociedade e do indivíduo com a Natureza. Trata-se, nada mais, do que o Bem Viver (ACOSTA, 2016, p. 14). O Bem Viver é um conceito advindo da expressão quéchua (ou kíchwa) Suma Kawsay e “parte da cosmologia e do modo de vida ameríndio, mas que está presente em diversas culturas” (ibidem). A melhor forma de compreender esta filosofia universal em permanente construção, é nos socorrer à obra de Alberto Acosta (2016): [O Bem Viver] está entre nós, no Brasil, com o teko porã dos guaranis. Também está na ética e na filosofia africana do ubuntu – “eu sou porque nós somos”. Está no ecossocialismo, [...]. Está no fazer solidário do povo, nos mutirões em vilas, favelas ou comunidades rurais e na minga ou mika andina. Está presente na roda de samba, na roda de capoeira, no jongo, nas cirandas e no candomblé. [...] Seu significado é viver em aprendizado e convivência com a natureza, fazendo-nos reconhecer que somos “parte” dela e que não podemos continuar vivendo “à parte” dos demais seres do planeta. A natureza não está aqui para nos servir, até porque nós, humanos, também somos natureza e, sendo natureza, quando nos desligamos dela e lhe fazemos mal, estamos fazendo mal a nós mesmos. O Bem Viver recupera esta sabedoria ancestral, rompendo com o alienante processo de acumulação capitalista que transforma tudo e todos em coisa [...]. O Bem Viver, assim, se traduz em uma tarefa descolonizadora. Além disso, também deveria ser despatriarcalizado24
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ra. Para cumpri-la, será particularmente necessário um processo de descolonização intelectual nos âmbitos político, social, econômico e, claro, cultural [...]. Em conclusão, o Bem Viver é eminentemente subversivo. Propõe saídas descolonizadoras em todos os âmbitos da vida humana. O Bem Viver não é um simples conceito. É uma vivência.
Longe de encarar o Estado de Direito como único agente de atuação estratégica para a construção de uma sociedade do Bem Viver, é indispensável reconhecer que a sua visibilidade decorre, fundamentalmente, do novo constitucionalismo latino-americano. Com a incorporação da expressão nas constituições do Equador em 2008, e da Bolívia em 2009, o Bem Viver propõe repensar o Estado em termos plurinacionais e interculturais. Aparece como um direito, um princípio ético e uma alternativa crítica ao modelo de desenvolvimento (COSTA, 2017, p. 5). Mas, para além disso, o fim almejado do Bem Viver ultrapassa a constituição do Estado plurinacional, porque necessita [...] substituir o modelo até então vigente de convivência social estabelecido pelo Estado-nação, para incluir um novo padrão pautado na solidariedade, na cooperação entre todos/todas, reconhecendo as diversidades étnicas como parte de uma comunidade política e social, compondo a aliança militante com todas as formas de vida – eis uma mudança que ultrapassa a constitucionalização do Estado plurinacional (CAOVILLA, 2015, p. 139)
Nesse sentido, a partir de uma epistemologia (eco)feminista, a inclusão do Bem Viver no texto constitucional não se apresenta como a única estratégia para a efetivação de suas propostas, porque a transferência da ação estratégica para o Direito raramente altera a realidade material pretendida. O Estado não é o instrumento político de transformação revolucionária. É um dos campos onde a transformação se dá, um dos campos de disputa. Aliás, o ecofeminismo decolonial é a própria materialização do Bem Viver, ao considerar uma cosmovisão holística, horizontal, diversa, interseccional, com valorização a todas as formas de vida e de oposição e resistência a todas as formas de exploração, dominação, colonialidade e violência. Assim, ecofeminismo e Bem Viver caminham em sintonia. Os exemplos de uma prática (eco)feminista decolonial são diversos, fluidos, constantes, plurais. São práticas diárias de mulheres, de ativistas am25
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bientais, de agricultoras, professoras, mães, trabalhadoras, indígenas. Essas formas de resistência sequer podem ser dimensionadas pela autora. Ainda assim, aponto a agroecologia como um dos movimentos que conseguem conjugar uma prática decolonizada e despatriarcalizada, porque é comunitária, anticapitalista, coletiva, complexa por natureza. A agroecologia (idealmente) respeita o tempo de cada coisa, a biodiversidade e a própria complexidade inerente: sua sazonalidade, sua dinamicidade, sua interdependência ecológica. A agroecologia depende dos saberes ancestrais das mulheres sobre alimentação, plantação, terra, sementes, porque “o saber e a memória da agrofloresta é também o saber e a memória das mulheres” (SATTLER, 2018). Outra possibilidade de atuação decolonizada e despatriarcalizada é a ocupação curricular, novamente aliançada com a perspectiva freireana de educação libertadora. Trata-se de incluir autoras feministas, especialmente decoloniais, nas bibliografias dos diversos níveis de ensino. A própria inclusão da disciplina de Direito e Feminismos nos cursos de graduação e pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina é uma forma de se insurgir às diversas formas de colonialidade11. Esse projeto, de fato, tem abrangência mais limitada, mas também planta a semente da insurgência e do inconformismo com a dependência social e epistêmica. Entretanto, a agroecologia e a ocupação curricular, apenas a título exemplificativo, passam ao largo da atuação do Estado. De fato, para as defensoras de uma teoria jurídica feminista, que pretendem um Direito plural, diverso, horizontal, interseccional, decolonial, que não mais perpetue violências, esse é o maior desafio colocado: como construir um Estado ecofeminista, portanto despatriarcalizado e decolonizado, orientado pelo Bem Viver? O que posso afirmar, até agora, é que a radical transformação que se faz necessária vai muito além dos horizontes aqui explorados, mas depende, necessariamente,
11 Idealizada pela professora Grazielly Alessandra Baggenstoss (UFSC), a disciplina de Direito e Feminismos surgiu pela primeira vez na grade curricular do curso de graduação em Direito na UFSC no ano de 2017, já tendo sido ofertada em 04 semestres consecutivos, com previsão de oferta para o segundo semestre do ano de 2019. Além disso, a disciplina também foi oficializada no currículo do Programa de Pós-Graduação em Direito, também da UFSC, tendo sido ofertada pela primeira vez no ano de 2019, no primeiro trimestre. De modo geral, as aulas da disciplina conferem um espaço para reflexões críticas, a partir de uma perspectiva decolonial, considerando em que medida a(s) teoria(s) feminista(s) podem contribuir para análise do Direito e das estruturas e discursos jurídicos. (http://lilith.paginas.ufsc.br/atuacao-semestral/)
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da constante reflexão dialética, de olhar para o passado para pensar essa nova organização social, política e econômica para o presente e o futuro. Sem a pretensão de apresentar propostas reformistas, há menos respostas que inquietações. A partir dessas, debruçando-se sobre as subjetividades complexas, o Direito que hoje se apresenta como um aparato Estatal de controle e de reprodução de violências, pode ser materialmente construído de outra forma, subversivo, contra-hegemônico. E isso invariavelmente remete aos versos do poeta Antonio Machado: “O caminho se faz caminhando”.
4. Referências ACOSTA, Alberto. O bem viver: Uma oportunidade para imaginar outros mundos. São Paulo: Autonomia Literária, Elefante, 2016. 264 p. Tradução de Tadeu Breda. ADAMS, Carol J. A política sexual da carne: A relação entre o carnivorismo e a dominação masculina. São Paulo: Alaúde Editorial, 2012. ARRUZZA, Cinzia; BHATTACHARYA, Tithi; FRASER, Nancy. Feminismo para os 99%: um manifesto. São Paulo: Boitempo, 2019. 128 p. (Tradução de Heci Regina Candiani). BARRAGÓN, Margarita Aguinaga et al. Pensar a partir do feminismo: Críticas e alternativas ao desenvolvimento. In: DILGER, Gerhard; LANG, Miriam; PEREIRA FILHO, Jorge (Org.). Descolonizar o imaginário: Debates sobre pós-extrativismo e alternativas ao desenvolvimento. São Paulo: Fundação Rosa Luxemburgo, 2016. Cap. 02. p. 89-120. Tradução de Igor Ojeda. Bruzaca, R. D., & Queiroz, S. V. (2018). Sobre a colonialidade no direito e as perspectivas de descolonização no contexto dos países latino-americanos. Revista Paradigma, 27(1). Recuperado de http://revistas.unaerp.br/paradigma/ article/view/760
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CAOVILLA, Maria Aparecida Lucca. A descolonização do ensino jurídico na América Latina sob a perspectiva do Bem Viver: a construção de uma nova educação fundada no constitucionalismo e na interculturalidade plural. 2015. 309 f. Tese (Doutorado) - Curso de Direito, Programa de Pós-graduação em Direito, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2015. Disponível em: . Acesso em: 19 abr. 2019. DAVIS, Angela. Mulheres, raça e classe. Tradução: Heci Regina Candiani. São Paulo: Boitempo, 2016. DILGER, Gerhard; LANG, Miriam; PEREIRA FILHO, Jorge (Org.). Descolonizar o imaginário: Debates sobre pós-extrativismo e alternativas ao desenvolvimento. São Paulo: Fundação Rosa Luxemburgo, 2016. 472 p. Tradução de Igor Ojeda. DUSSEL, Enrique. 1492: o encobrimento do outro. Petrópolis: Vozes, 1993. FEDERICI, Silvia. Calibã e a bruxa: Mulheres, corpo e acumulação primitiva. Tradução: Coletivo Sycorax. São Paulo: Elefante, 2017. FLORES GALINDO, Alberto. Reencontremos la dimensión utópica. Instituto de Apoyo Agrario y El Caballo Rojo. Lima, 1989. FONSECA, Lívia Gimenes Dias da. Despatriarcalizar e decolonizar o Estado brasileiro: um olhar pelas políticas públicas para mulheres indígenas. 2017. 209 f. Tese (Doutorado) - Curso de Direito, Programa de Pós-graduação em Direito, Universidade Federal de Brasília, Brasília, 2016. Disponível em: . Acesso em: 15 abr. 2019. FREIRE, Paulo. Educação como prática da liberdade. 30. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2007. FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 2006.
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Sinhô Doutô, sou a Elisângela, me Chame por este Nome, por favô: Relato sobre o Tratamento de Transexuais e Travestis nos Processos Criminais e no Sistema Prisional de Santa Catarina1 Grazielly Alessandra Baggenstoss2 Leonardo Evaristo Teixeira3
Introdução: gênero, normas e subversões A partir dos Estudos de Gênero, é possível reconhecer a existência de normas sociais e jurídicas que orientam a leitura e o reconhecimento dos corpos e expressões em um grupo social. Para a compreensão de Oliveira (2017), o gênero neste cenário, é entendido “na sua acepção de performatividade” de 1
O título remete-se a todas as insurgências das mulheres transexuais ou travestis constatadas durante a análise dos dados dos processos criminais e de execuções criminais os quais intervinham afim de demonstrar como deveriam ser vistas. Não se trata de uma mera metáfora em que se pede o direito de serem chamadas por seus próprios nomes, mas de uma práxis real daquilo que ocorreu e que a nós não há outro meio senão transcrever em palavras. “Elisangêla” aqui representa um nome dentre vários “nomes de guerra” de uma detenta, enquanto que o “Sinhô Douto” a figura do(a) magistrado(a), mas não só, pois deve ser lido num sentido amplo, em relação àqueles que se fazem partes nos processos: entre a defesa, a acusação e o Estado-Juiz. Àqueles que se hierarquizam junto aos discursos, às instrumentalidade e formas jurídicas. Pesquisa publicada nos Anais do XIII Congresso de Direito da UFSC, 2019, ISBN 978-85-67995-113.
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Doutora em Direito, Política e Sociedade (UFSC), Mestra em Direito, Estado e Sociedade (UFSC), Doutoranda em Psicologia, com ênfase em Desenvolvimento Humano. Professora da Universidade Federal de Santa Catarina, atuante em Graduação e em Pós-Graduação em Direito, nas disciplinas de Direito e Feminismos, Hermenêutica Jurídica, Prática Jurídica e Metodologias do Ensino Jurídico e da Pesquisa. Pesquisadora Líder do Grupo de Pesquisa/CNPq Lilith: Núcleo de Pesquisas em Direito e Feminismos e integrante do Instituto de Estudos de Gênero – IEG/UFSC. E-mail: [email protected]. Lattes: http://lattes.cnpq.br/5153671954706971.
3 Graduando em Direito pela Universidade Federal de Goiás/Regional Jataí e pesquisador do Grupo de Pesquisa/CNPq Lilith: Núcleo de Pesquisas em Direito e Feminismos. E-mail: [email protected]. Lattes: http://lattes.cnpq.br/4166943820339789.
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Butler, na medida em que “o gênero é uma construção social que é produzida pela repetição de determinadas maneiras de fazer o gênero que criam uma série de efeitos que são tomados como essenciais” (OLIVEIRA, 2017, p. 13-14). Nessa repetição estética e sensível, os gêneros são constantemente construídos e referenciados na performatividade como “[...] se houvesse neles uma originalidade do qual o gênero seria cópia, de dois modelos distintos: o masculino e o feminino. Pelo contrário, são citações, as cópias que criam a ideia de que existe um original a ser copiado” (OLIVEIRA, 2017, p. 14). Na reprodução performática do gênero, acarreta, igualmente, “a ilusão de que existe uma essência de gênero e de que ele existe como matéria, expressa no sexo e no discurso biológico da natureza” (OLIVEIRA, 2017, p. 14). Em tal perspectiva, não há uma negativa acerca da dimensão biológica, mas sim ao necessário reconhecimento de que, “[...] apesar das dimensões biológicas que possam eventualmente introduzir diferenciação sexual, serão os sistemas sociais de representação e produção do gênero que darão significado a essa potencia da biologia” (OLIVEIRA, 2017, p. 14)4. À ilustração, têm-se os estudos da pesquisadora bióloga Anne Fausto-Sterling (2013), que, na identificação de, no mínimo, cinco sexos humanos (na concepção biológica), deve-se refletir sobre a relação do sexo, do gênero e da sexualidade enquanto sistemas dinâmicos complexos, que acontecem no corpo em virtude de construções sociais e como inscrição havida anteriormente no campo social. Para tanto, Oliveira (2017) alerta que tal constatação não significa negar os efeitos, as materialidades do gênero e suas consequências na vida humana; mas que é preciso verificar que “[...] as expressões de gênero, as masculinidades e feminilidades e o desejo por outros corpos são lidos e reconhecidos através destas normas” (OLIVEIRA 2017, p. 14). Neste compasso, o gênero, em sua forma normativo-social, promove a formação de um binarismo dos sexos, os quais são percebidos apenas masculino ou feminino – excluindo-se, assim, qualquer outra possibilidade considerada saudá4
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Para Butler (1993), o sexo é uma produção do gênero, no sentido em que o significado social atribuído ao sexo é todo ele gênero. Isto quer dizer que não há dimensão biológica? Não, pelo contrário. É afirmar que a dimensão biológica é qualificada a partir de compreensões culturais, questionando o essencialismo conceitual da vida. Assim, na lição de Bento (2006, p. 19-20): “(...) corpos préoperados, pós-operados, hormonizados, depilados, retocados, siliconizados, maquiados. Corpos inconclusos, desfeitos e refeitos, arquivos vivos de histórias de exclusão. Corpos que embaralham as fronteiras entre o natural e o artificial, entre o real e o fictício, e que denunciam, implícita ou explicitamente, que as normas de gênero não conseguem um consenso absoluto na vida social”.
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vel (OLIVEIRA, 2017, p. 15). Além disso, destaca-se que a relação entre as figuras representativas desse binômio não é horizontal: em virtude de pensamento patriarcal, há a subordinação dos corpos femininos em homenagem aos corpos masculinos, aos quais são relegadas as esferas de poder e de exemplo de sucesso. Feitas tais articulações iniciais, segue-se à explanação sobre alguns efeitos das normas de gênero no meio social, no modo hipotético-dinâmico, considerando a apuração de tais normas “enquanto regulações sociais que dão legibilidade ao gênero e que regem o reconhecimento deste” (OLIVEIRA, 2017, p. 14). As normas de gênero promovem a formação de uma ordem social que é marcada pela heteronormatividade e pela normatividade de gênero. Aqui, portanto, pode-se entender a heteronormatividade como “[...] a norma que regula, justifica e legitima a heterossexualidade como uma forma de sexualidade mais natural, mais válida e mais normal em detrimento das outras, vistas como negativas e inferiores”. Analisar, por conseguinte, a normatividade de gênero refere-se à observação dos dinamismos sociais havidos em sua razão, bem como à forma com que são identificadas em sua expressão concreta, ainda intercaladas “por outras matrizes de opressão e privilégio, como é o caso da raça, sexualidade, posição de classe, entre outras” (OLIVEIRA, 2017, p. 15). Tanto a heteronormatividade como a normatividade de gênero constituem, em outras palavras, uma organização social e também jurídica, visto que promovem a estruturação de como as pessoas devem existir e viver, o que, segundo Oliveira (2017, p. 14), pode expô-las como vulneráveis e precárias e que as deixa sujeitas a determinadas formas de violência consoante as suas (i)legibilidades/reconhecimento e posicionamento. Por consequência, as normas de gênero propiciam centralidade à constância do gênero e privilégios às pessoas que a obedecem e performatizam expressões de gênero consideradas adequadas – garantindo-lhes, ainda, uma aparente sensação de imutabilidade (OLIVEIRA, 2017, p. 15). Em tal panorama, a transgeneridade surge como qualificação da transição de gêneros, aí pautada no binômio mulher-homem. As pessoas identificadas pela transgeneridade, para este estudo, englobam as pessoas transexuais e pessoas travestis, aqui entendidas como pessoas trans. Se se observa, de um lado, a ocorrência de trânsitos de gênero, de outro lado, é possível examinar uma suposta permanência de gênero. Para as pessoas cujas performatividades enquadram-se em tais permanências, igualmente 33
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binária, tem-se a qualificação cisgeneridade. É essencial mencionar que a existência cisgênera foi denominada exatamente por pessoas trans por motivos discursivos: aquela pessoa que recebe uma denominação específica, para ser identificado como “diverso” ou “diferente” de uma materialidade que é entendida como padrão, acaba por ser colocado como exceção, em local marginal ou de invisibilidade. Para o equilíbrio das narrativas, foi preciso um deslocamento linguístico, a fim de que existisse aquele que seria o diverso da existência trans, qual seja, a existência cis. Diante da centralidade e ordem determinada pelas normas de gênero, as pessoas trans encontram-se em local de transgressão de tais normas. Como sequela, “[...] os corpos das pessoas trans ainda sofrem de uma colonização por parte das normas de gênero e do modelo biomédico que recorrer constantemente às normas como forma de exercício de biopoder e da necropolítica sobre estes corpos (OLIVEIRA, 2014b), um transfeminicídio (BENTO, 2016) sem fim à vista” (OLIVEIRA, 2017, p. 16) Diante disso, “as dissidências sexuais e de gênero, bem como as novas políticas de gênero (BUTLER, 2005), começam a ser cada vez mais patentes e a reclamar um espaço de reconhecimento e de representação (COLLING, 2015)” (OLIVEIRA, 2017, p. 16), especialmente perante as normativas jurídicas estatais e internacionais.
2. Normativas jurídicas sobre pessoas trans Contemporaneamente, é assegurado, pelas normativas internacionais, o princípio de não-discriminação, contido em inúmeros instrumentos internacionais, que estabelece que os direitos humanos sejam aplicados por igual a todos as pessoas, independentemente de sua orientação sexual ou identidade de gênero. O Direito Internacional dos Direitos Humanos, desde a segunda metade do séc. XXI, reconhece a identidade de gênero como vetor da dignidade humana com a proteção expressa pelo Sistema Internacional da Organização das Nações Unidas (ONU) e por sistemas regionais ocidentais.
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Tal reconhecimento foi assente pelos Princípios de Yogyakarta, dentre os quais, destacam-se: Princípio 1. Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos. Os seres humanos de todas as orientações sexuais e identidades de gênero têm o direito de desfrutar plenamente de todos os direitos humanos. Os Estados deverão: a) Incorporar os princípios da universalidade, interrelacionalidade, interdependência e indivisibilidade de todos os direitos humanos nas suas constituições nacionais ou em outras legislações apropriadas e assegurar o gozo universal de todos os direitos humanos; b) Emendar qualquer legislação, inclusive a criminal, para garantir sua coerência com o gozo universal de todos os direitos humanos; c) Implementar programas de educação e conscientização para promover e aprimorar o gozo pleno de todos os direitos humanos por todas as pessoas, não importando sua orientação sexual ou identidade de gênero; d) Integrar às políticas de Estado e ao processo decisório uma abordagem pluralista que reconheça e afirme a interrelacionalidade e indivisibilidade de todos os aspectos da identidade humana, inclusive aqueles relativos à orientação sexual e identidade de gênero.
Apesar de não possuírem força normativa, os princípios foram recepcionados pela comunidade internacional e funcionam como diretrizes para as políticas internas relativas aos temas de sexualidade e identidade de gênero. Ainda, na ONU, houve a construção da Declaração Conjunta n° A/63/635, 2008, destaca-se que todas as pessoas têm direito ao gozo de seus direitos humanos sem qualquer distinção de raça, cor, sexo, idioma, religião, opinião política ou de qualquer outra índole, origem nacional ou social, posição econômica, nascimento ou qualquer outra condição – assim como prescreve o artigo 2º da Declaração Universal dos Direitos Humanos e o artigo 2º dos Pactos Internacionais de Direitos Civis e Políticos e de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, e o artigo 26 do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos. Em 2011, pela ONU, houve, ainda, a aprovação da “Declaração conjunta para fazer cessar os atos de violência e as violações de direitos humanos a eles relacionadas, dirigidos contra as pessoas por conta de sua orientação sexual ou identidade de gênero”, com a assinatura de oitenta e cinco países – destes, todos os países Ibero-americanos, à exceção do Peru, subscreveram a referida declaração. No mesmo ano, o Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas aprovou a Resolução A/HCD/17/L.9/Ver.1, sobre direitos humanos, identi35
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dade de gênero e sexualidade. Por tal resolução, foi demonstrada uma forte preocupação com a violência e com a discriminação sofrida pela comunidade LGBTI, denunciadas perante a ONU por meio do sistema de recebimento de demandas internacionais. No Sistema Interamericano de proteção dos direitos humanos, por sua vez, tem-se a Resolução nº 2435/2008 - Direitos Humanos, Orientação Sexual e Identidade de Gênero, aprovada pela Assembleia Geral da OEA em 03 de junho de 2008. Capitaneado pelo Brasil, tal normativa, com base nas disposições dos Princípios de Yogyakarta, na Declaração Universal dos Direitos Humanos, da Declaração Americana dos Direitos do Homem, na Carta da Organizações dos Estados Americanos (OEA), nos princípios de universalidade, indivisibilidade e interdependência dos direitos humanos, demonstrou preocupação com os “atos de violência e das violações aos Direitos Humanos correlatas, perpetradas contra indivíduos e motivados pela orientação sexual e pela identidade de gênero”. Ano depois, aprovou-se, na OEA, a Resolução nº 2504638, com o reconhecimento da preocupação desse órgão em relação “às violações de direitos humanos motivadas pela orientação sexual e pela identidade de gênero, passando então a condenar a violência perpetrada contra pessoas LGBTI, ao tempo em que insta os Estados-membros a investigarem e responsabilizarem os autores de condutas ilícitas com base na orientação sexual e identidade de gênero da vítima. A normativa contida na resolução em comento também solicita aos Estados-membros assegurar proteção adequada aos defensores de direitos humanos que militam contra a violência e as violações de direitos cometidos contra indivíduos em virtude de sua orientação sexual e identidade gênero, assim como requer à Comissão Interamericana de Direitos Humanos e demais órgãos do Sistema Interamericano atenção a essa temática” (SÁ NETO, 2017, p. 236). A Resolução nº 2600/2010, ainda, promoveu o comprometimento de os Estados-membros considerem adotar medidas de enfrentamento ao tratamento discriminatório motivado por orientação sexual e identidade de gênero e considerou a sugestão à Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) para realizar um estudo temático sobre discriminação e violência contra o coletivo LGBTI, no âmbito das Américas (SÁ NETO, 2017, p. 236). Finalmente, a “Convenção Interamericana Contra Toda Forma de Discriminação e Intolerância reconhece o dever de se adotarem medidas nacio36
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nais e regionais para a promoção e o incentivo do respeito e da observância dos direitos humanos e das liberdades fundamentais de todos os grupos e indivíduos sujeitos à jurisdição da OEA, sem distinção por motivo de gênero, idade, orientação sexual, idioma, religião, opinião pública ou de outra natureza, origem social, posição econômica, condição de migrante, refugiado ou deslocado, nascimento, condição infectocontagiosa estigmatizada, característica genética, deficiência, sofrimento psíquico incapacitante ou qualquer outra condição social” (SÁ NETO, 2017, p. 236). No Direito Brasileiro, contudo, verifica-se o predomínio das normas de gênero, ao passo em que apenas o Decreto no. 8.727, de 28 de abril de 2016, que dispõe sobre o uso do nome social e o reconhecimento da identidade de gênero de pessoas travestis e transexuais no âmbito da administração pública federal direta, autárquica e fundacional, faz menção, em território federal, sobre alguma referência expressa às pessoas trans5. No Decreto, define-se nome social como “designação pela qual a pessoa travesti ou transexual se identifica e é socialmente reconhecida” (art. 1º, parágrafo único, I). Ainda, a identidade de gênero é considerada “dimensão da identidade de uma pessoa que diz respeito à forma como se relaciona com as representações de masculinidade e feminilidade e como isso se traduz em sua prática social, sem guardar relação necessária com o sexo atribuído no nascimento” (art. 1º, parágrafo único, II). Em tais considerações, é importante pensar sobre como o aparato estatal estrutura-se para tratar de corpos que não condizem com as normas de gênero e transitam por tais. Mais do que pensar na concessão e garantia de direitos, questiona-se sobre o tratamento na esfera em que as pessoas trans estão sob a responsabilidade do Estado quando no cometimento de algum crime.
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É possível, certamente, promover-se a leitura dos textos normativos que determinam a não discriminação dos sexos (no binarismo mulher-homem), em uma interpretação analógica e pelo princípio da igualdade, e ter-se a aplicação da questão trans (veja-se que, igualmente, o ordenamento jurídico menciona sexo, e não gênero). No entanto, pretende-se, neste trabalho, ainda, apontar para o silêncio textual-normativo à transição de gênero. Da leitura de Segato (2012), cria-se “uma lei que defende as mulheres da violência à qual estão expostas porque esse mesmo Estado já destruiu as instituições e o tecido comunitário que as protegia”.
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3. Delineamento da pesquisa Na dualidade de gênero, a inquietude surge: o encaminhamento será para uma prisão feminina ou masculina e qual é o condicionante? Diante disso, questiona-se, por meio de uma pesquisa empírica no Estado de Santa Catarina, a forma pela qual as pessoas transexuais e travestis recebem(ram) tratamento nos processos criminais, bem como, quando presas, se recebem(ram), e desde quando, tratamento prisional conforme suas identidades de gênero exigem(iam) – em conformidade com a Carta de Yogyakarta e em respeito ao direito da personalidade. A hipótese a ser trabalhada é a de que os tratamentos de acordo com a personalidade de gênero, nos processos criminais, não são respeitados. Aqui, incluem-se tratamentos pela estrutura do Poder Judiciário. Isso porque, quando presas, o tratamento permaneceria – e permanece – o mesmo no que tange aos autos, embora, em respeito a Carta de Yogyakarta o Estado de Santa Catarina destinaria às populações transexuais e travestis celas especiais, exclusivas para pessoas LGBT*s. No delineamento metodológico da pesquisa, tem-se, como marco teórico, os estudos de gênero pautados na temática trans, com enfoque em Berenice Bento, Rita Segato e João Manuel de Oliveira. Assim, com abordagem dedutiva, realizar-se-á pesquisa de fonte escrita, bibliográfica e documental. Assim, como objetivo geral, buscar-se-á verificar se, no tempo presente e no Estado de Santa Catarina, são respeitadas as normativas atinentes às pessoas trans quando identificadas como supostas autoras de crimes. Por conseguinte, em objetivos específicos relacionados à estrutura da pesquisa, o artigo se propõe em sua estrutura em apresentar o plano teórico sobre as pessoas trans, bem como pesquisas afetas às suas existências e vivências, a partir de estudos de gênero. Em seguida, pretende-se apresentar dados relacionados aos tratamentos conferidos às pessoas transexuais e travestis, quando caracterizadas como praticantes de um ato penal e encarceradas. Finalmente, explanar-se-á sobre a situação das apenadas trans como manutenção do status quo da heteronormatividade e patriarcado.
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4. Dados dos processos criminais e de execução criminal das pessoas trans do estado de Santa Catarina: coleta e discussão Antes de apresentar os dados coletados, é necessário expor a forma pela qual estes foram obtidos e da metodologia aplicada. Lembrando-se que a abordagem nesta parte empírica da pesquisa se deu a partir de análises dedutivas, comprovando de tal forma a hipótese sustentada. À explicação. Os dados foram solicitados ao Departamento Administrativo Penitenciário do Estado de Santa Catarina (DEAP), com a devida explicação da pesquisa. A resposta foi procedida por meio do Ofício n. 0132/2018/GAB/DEAP encaminhado pelo Departamento Administrativo Penitenciário do Estado de Santa Catarina (DEAP), o qual constava, em especial, uma lista com onze pessoas trans6. No entanto, após o exame dos processos criminais informados, desde a fase administrativa, passando pelo processo criminal, até o processo de execução criminal, logo, ao desenrolar da pesquisa, constatou-se mais duas pessoas trans, que inicialmente não constavam no referido Ofício de resposta. Além disso, é importante destacar que há a possibilidade de que haja mais pessoas trans encarceradas, as quais não tenham sido identificadas como tais pelo sistema carcerário. Assim, embora a pesquisa tivesse essa pretensão para abarcar a realidade carcerária das mulheres trans do Estado de Santa Catarina, no que envolve os processos criminais7 e os de execução criminal, tem-se sua margem de falha
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O referido ofício foi solicitado via e-mail ao DEAP em duas datas, sendo que na segunda foi exclusivamente para reforçar o pedido da primeira solicitação: 28.11.2017 e 24.01.2018. Contudo, a solicitação somente foi atendida em 12.04.2018, sendo o Ofício datado de 06.03.2018. Neste consta que os dados foram retirados do Sistema de Identificação e Administração Penal (i-Pen), cujo tópico relatório consta “reeducandos alocados e com orientação sexual selecionada como Travesti e Transexual”. Os dados mais importantes que constam no documento trazem a Unidade Prisional em que as detentas estavam alocadas; o nome – o civil; o nome social; a orientação sexual – preenchido com as identidades de gênero Travesti e Transexual; os números dos processos criminais, tal como dos processos de execução criminal (PEC), quando constavam; a comarca onde o processo estava sendo ou foi julgado; dentre outros. Mesmo que tenha sido divulgado o nome civil e o social das acusadas e das apenadas, aqui não serão em razão de se preservar as suas identidades e privacidades.
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Para melhor compreensão, ao se referir “processos criminais” estar-se-á abarcando as fases administrativa (pré-processual), mesmo que o Código de Processo Penal afirme que o processo
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em detrimento das constantes falhas no sistema carcerário no que tange ao tratamento dessas pessoas, em virtude da própria não-classificação das pessoas trans nesse sistema. Além disso, a pesquisa também se limita em uma lista de pessoas encarceradas que assim se encontravam (privadas de suas liberdades) e não a partir de pessoas que estavam sendo processadas criminalmente – isso porque inexiste este controle por parte do judiciário (e do “Sistema de Justiça”) nesse sentido, corroborando a hipótese defendida, como veremos a seguir. Num segundo plano, nota-se que o Sistema de Identificação e Administração Penal (i-Pen) utiliza o termo orientação sexual para categorizar aquilo que é entendido enquanto dissidência de gênero - ou identidade de gênero. Logo, não se trataria de uma orientação sexual (como ser homossexual, heterossexual, bissexual e etc.), mas sim de como estas mulheres se identificam em seu gênero. Nesse sentido, em razão do desconhecimento por parte do DEAP sobre tais critérios de intelegibilidade, não se poderia realizar um efetivo levantamento de pessoas trans que adentrassem no sistema carcerário, por se tratar de pessoas que possuíam certa identidade de gênero: travesti, mulher trans, homem trans, etc.; e por não se confundir com orientação sexual: homossexual, heterossexual, bissexual, etc. Ante o desconhecimento do DEAP em lidar com as populações trans, decidiu-se encaminhar solicitações para todas as Unidades Prisionais Administrativas (UPAs) do Estado de Santa Catarina a fim de desenvolver uma pesquisa mais ampla8. Entretanto, poucas UPAs atenderam aos pedidos, muitos dos quais negando a inexistência de população carcerária trans nos recintos, ou afirmando a inexistência de autorização para o repasse das informações9. criminal apenas se inicia com o recebimento da denúncia. Contudo, ao detalhar os dados, far-se-á a diferenciação entre as fases administrativa e processual. 8
Antes mesmo de recorrer a solicitações individuais para cada UPA, foi encaminhado por duas vezes um requerimento ao Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN) por meio do Portal do Ministério da Justiça, no Sistema Eletrônico do Serviço de Informação ao Cidadão (e-SIC), sob os números de protocolo “08850001559201895” e “08850000536201863”. Sendo que todos os pedidos restaram indeferidos, inclusive os recursos interpostos. No tópico “c.2) As condicionantes objetivas das Unidades Prisionais Avançadas (UPAs)” conterá maiores informações.
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A cada Regional do Estado de Santa Catarina foi encaminhado um e-mail a todas as UPAs, totalizando 50 (cinquenta) Unidades. Somente 14 (quatorze) UPAs responderam as solicitações, sendo que 3 (três) negaram acesso ao dizerem que não tinham autorização para o repasse das informações; enquanto as demais afirmaram a inexistência de pessoas trans ou de registro, ou que realmente nunca houveram pessoas trans nos referidos estabelecimentos. Para mais informações
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Em virtude do tempo para o término desta pesquisa, portanto, decidimos em prosseguir com os dados já coletados, e analisá-los a partir de então. Superando esses pontos, a pesquisa, de forma inicial, estabeleceu alguns critérios a serem respondidos de acordo com a análise dos processos, constando 1) os dados dos processos: datas dos fatos, do recebimento da denúncia, da prisão (se tivesse ocorrido) e da sentença, número do processo criminal e do processo de execução criminal (PEC), nome social e civil, identidade de gênero, crime (o qual estava sendo acusada ou que fora condenada), etnia, comarca e local da prisão. Quanto ao 2) andamento do processo, constavam a situação das detentas/apenadas (se soltas ou presas), regime da pena e a situação do processo. Quanto aos 3) tratamentos realizados desde a fase administrativa até a execução analisou-se: o tratamento pela defesa – advogados(as) e Defensoria Pública –, pelo Ministério Público, na fase administrativa – ou seja, no inquérito –, na fase processual, com especial, atuação dos(as) magistrados(as), e, por fim, na execução criminal. Contudo, no decorrer da pesquisa surgiram várias questões que inicialmente não estavam presentes para a análise, como os Incidentes de Falta Disciplinar10 cometido pelas apenadas dentro das UPAs e os diversos números de PECs que surgiam e eram arquivados por serem apensados a um PEC principal, o qual acabou por prejudicar, ao menos neste critério, a linearidade que se pretendia. Inclusive, diante dos inúmeros processos que uma só apenada respondia, salvo raras exceções de estarem respondendo apenas um processo criminal, assim não foi possível estabelecer critérios para a pesquisa quanto ao regime da pena e se estavam privadas de suas liberdades em cada processo. Compreendendo o meio pelo qual a pesquisa traçou e as dificuldades de se obterem os dados, quiçá dados confiáveis quanto a metodologia, passa-se, por ora, aos dados.
sobre todas as UPAs vide UNIDADES Prisionais. Secretaria de Estado da Justiça e Cidadania DEAP – Departamento de Administração Prisional. Disponível em: < http://www.deap.sc.gov.br/index. php/unidades-prisionais >. Acessado em: jun./2018. 10 Conforme a Lei de Execução Penal, estes incidentes são processos administrativos abertos em virtude do mau comportamento dos detentos, a fim de averiguar o cometimento ou não de falta disciplinar por parte deles, sendo apreciado por um Conselho Disciplinar. Após o trâmite administrativo o processo é analisado pelo Ministério Público o qual, por meio de um parecer, pede homologação ou não ao magistrado, cujo resultado comina ou não numa regressão de regime, bem como perda de certos benefícios, tais como os dias remidos, por exemplo.
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a) Informações iniciais colhidas nos processos A lista que fornecia os onze nomes apenas possuía um número de dez processos criminais, representando uma quantidade ínfima de processos a se analisar. Ao analisa-los foi possível perceber que uma das onze pessoas não era uma pessoa trans, até porque o histórico carcerário/prontuário do detento não demonstrava informações contrárias para que assim o pudesse identificar como tal. Por outro lado, ao analisar os demais processos criminais e os de execução encontrou-se mais duas pessoas trans, fazendo com que tivéssemos uma lista de doze nomes; demonstrando, desse modo, a ausência de controle que possui o DEAP, bem como a desatualização do i-Pen. Todos os processos criminais tinham como investigadas/acusadas/apenadas mulheres trans e pelo fato de serem, em sua maioria, reincidentes foi possível analisar um total de 50 (cinquenta) processos. Neste número, contudo, não se inclui a análise de duas mulheres, pois ao pesquisar por dados referentes aos seus nomes civis e os números de processos, quando existentes, não possibilitaram que fossem encontrados nenhuma informação. Embora, com acesso aos seus históricos carcerários/prontuários11, informações obtidas pelo i-Pen, percebeu-se que ambas as prisões foram provisórias e sendo posteriormente arquivados12, mas que para fins de análise do tratamento no sistema carcerário há dados a serem considerados. Ademais, quanto aos processos que possuíam senhas para o seu acesso, num total de sete, em três foi possível ter um mínimo de acesso em algumas informações como cópia da denúncia e da sentença nos autos dos processos de execução; e em quatro, não foram possíveis nenhum acesso. Dessa forma, ante a impossibilidade, excluiu-se do cômputo dos 50 (cinquenta) processos, aqueles quatro. Diante de tais considerações a análise se centrou, portanto, em 11 Todos os históricos carcerários/prontuários extraídos do i-Pen foram solicitados via e-mail ao DEAP o qual este tanto nos forneceu os dados quanto autorizou a utilização destes para publicação desde que fosse assegurado a privacidade das pessoas citadas nos documentos, o que representaria a não utilização de seus nomes – civis e sociais – bem como qualquer outra informação que pudessem identifica-las(os). Aqui inclui o masculino uma vez que foi solicitado o histórico do detento que o DEAP o identificou como trans embora não fosse. Por fim, os históricos carcerários foram extraídos nos dias 30.07.2018 e 31.07.2018. 12 Em seus históricos carcerários constavam somente os Autos de Prisão em Flagrante (APF), inexistindo, portanto, processos criminais.
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cinquenta processos nos quais os períodos de supostos cometimento dos fatos delituosos compreenderam de 2004 a 201713, o que representa que há processos em andamento que, em sua grande maioria, não foi possível um acesso integral por serem físicos14, embora com acesso às movimentações processuais, e, por fim, processos em que a punibilidade foi extinta, seja pelo cumprimento da pena seja por indulto. Quanto aos nomes, tanto os sociais quanto os civis, aqueles adotados para fins dessa pesquisa foram aqueles que mais se repetiam na análise dos autos. Isso porque algumas mulheres, a depender do processo e do marco temporal, apresentam mais de um nome ou até mesmo apelido, além de utilizarem nomes falsos para o cometimento da ação delituosa. Recorrente era na denúncia utilizar o nome social das acusadas como alcunhas, ou utilizarem o termo “vulgo”, mas nunca o uso do nome social como o principal a fim de realizá-la15. Aqui, já se entende que, desde a fase administrativa à execução penal, são desrespeitados os direitos à personalidade, especificamente, o direito ao nome e ao gênero por meio da auto declaração. No que se refere aos delitos praticados16, compreendendo os casos que estão em andamento, cuja tipificação é realizada pelo Ministério Público, ou aqueles que já houve condenação ao menos em primeira instância, tem-se um total de crimes de: 36% referente ao tipo penal de furto (art. 155 do Código Penal); 27%, estelionato (art. 171, CP); 9%, roubo (art. 157, CP); 6%, tráfico de
13 De forma específica foi supostamente cometido tanto em 2004 e em 2007, uma ação delituosa; em 2008, oito; em 2009, duas; em 2010, dez; em 2011, duas; em 2013, duas; em 2014, três; em 2015, três; em 2016, oito; em 2017, sete; e, por fim, as datas inclusas foram mais três supostas ações delituosas. 14 Dos processos físicos foram possíveis a realização de analises a partir de suas movimentações no “Portal e-saj” – Sistema de Automação da Justiça –, em que se teve minimamente acesso à denúncia e à sentença. Sendo que nesta, em razão do relatório e da fundamentação realizados pelo(a) magistrado(a), possibilitou em colher informações úteis à análise, tais como pedidos realizados pela defesa, além das transcrições dos depoimentos sejam no interrogatório (fase administrativa) ou em juízo (fase processual). 15 Os nomes não serão aqui divulgados em observância ao sigilo da pesquisa, e, igualmente, não violando assim o direito à intimidade e privacidade das pessoas mencionadas nos dados. 16 Quanto da análise dos crimes (supostamente) cometidos, não há uma rigorosidade no que se refere a tipificação na denúncia e em relação ao que foi condenado.
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drogas (art. 33 da Lei 11.343/06); 4%, homicídio (art. 121, CP); 4%, falsa identidade (art. 307, CP)17; 2%, receptação (art. 180, CP); e 4% foram indefinidos. Já quanto ao andamento destes processos, em 34 (trinta e quatro) processos houve condenação; 6 (seis), absolvição; 9 (nove) estão em andamento; e 1 (um) está indefinido. Percebe-se, portanto, que os crimes aqui expostos estão ligados aos crimes realizado contra o patrimônio. Por fim, quanto a cor ou raça, 6 (seis) mulheres são brancas; 2 (duas), negras; e 2 (duas), pardas. Já a cor das duas mulheres que foram presas apenas provisoriamente, tendo em vista que seus APFs foram arquivados, são de cor/raça branca.
b) Dados quanto ao tratamento realizado nos autos dos processos criminais Apesar de se ter realizado o diagnóstico do tratamento das pessoas trans tanto nos processos criminais quanto nos de execução criminal, neste ponto apenas discutir-se-á o tratamento nos processos criminais em si e dos seus delineamentos. Para tanto, dividiu-se em tratamento realizado na fase administrativa, pela defesa, pelo Ministério Público e pelo Judiciário. A presente divisão se fez necessária tendo em vista que tais partes possuem atuações dispares. O Ministério Público acusa, embora possua o que a própria Lei Orgânica Nacional do Ministério Pública incumbirá de afirmar sobre “defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis” (art. 1º da Lei n. 8.625/1993, itálico nosso), o que demonstrará um dever a mais do que o de acusar, mas de promover os axiomas jurídicos democráticos, e que tenha interesse social e individual, qual seja o direito da personalidade e da identidade. A defesa enquanto representados por advogados(as), integrantes da Ordem de Advogados do Brasil (OAB), e pela Defensoria Pública não apenas promove a defesa dos(as) acusados(as), fazendo com que suas garantias penais e processuais, além de constitucionais sejam respeitadas. E, ao primeiro, tem como dever ético o de “pugnar pela solução dos problemas da cidadania e pela efetivação dos seus direitos individuais, coletivos e difusos, no âmbito da comu17
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É deduzido que a falsa identidade pode ser capitulada com o uso de nome social não reconhecido em determinada localidade.
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nidade” (art. 2º, parágrafo único, inciso IX, do Código de Ética e Disciplina da OAB, itálico nosso). Ao segundo, tem como funções: atuar junto aos estabelecimentos policiais e penitenciários, visando a assegurar à pessoa, sob quaisquer circunstâncias, o exercício dos direitos e garantias individuais” e “assegurar aos seus assistidos, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral, o contraditório e a ampla defesa, com recursos e meios a ela inerentes (art. 4º, incisos VIII e IX, da Lei Complementar n. 80/1994, itálico nosso).
Por último, aos(às) magistrados(as) o dever de tratar as partes com urbanidade (art. 35, inciso IV, da Lei Complementar n. 35/1979), o que representaria o respeito independentemente da condição dos sujeitos. Feita as considerações de atuação das partes no processo, vamos resultados colhidos.
b.1) Tratamento realizado durante a fase administrativa A fase administrativa é considerada a parte inicial em que ocorre a produção de provas afim de avaliar a existência da materialidade delitiva, a autoria e a culpabilidade. Nessa fase de formação do inquérito, foi constatado que dos cinquenta casos 28 (vinte e oito) não realizam o tratamento de gênero, 21 (vinte um) casos estiveram prejudicados em relação a análise e em apenas 1 (um) é que ocorreu de forma parcial o tratamento adequado, embora também de forma eventual. Foi constatado ainda que, em 19 (dezenove) casos, os agentes atuantes na fase administrativa (inquérito), sobretudo o delegado de polícia, sabiam que essas pessoas eram trans; em 9 (nove) possivelmente haveria a possibilidade de saber, mas sem dados concretos para afirmar que realmente sabiam; e nos demais, 22 (vinte e dois) casos, estiveram com a análise prejudicada.
b.2) Tratamento realizado pela defesa nos autos dos processos criminais Dos 50 (cinquenta) processos, 37 (trinta e sete) tiveram a atuação de advogados(as), e 10 (dez) tiveram a atuação da Defensoria Pública, ambas as atuações de forma integral – ou seja, a defesa foi ampla. Em 2 (dois) casos teve-se a atuação inicial de advogados(as), sendo que um foi realizado até a apresentação da resposta à acusação e outro até a audiência de instrução e 45
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julgamento, posteriormente a Defensoria Pública passaria a atuar. Em apenas um caso não havia qualquer ato de defesa. Em detrimento de grande parte dos processos não terem ocorrido a análise integral dos autos por serem físicos, somente pode-se contabilizar os seguintes dados: em 2 (dois) processos foram realizados tratamentos nominais e de pronome de acordo com a identidade de gênero e em outros 2 (dois) os tratamentos são realizados de forma parcial – em todos esses casos foi de atuação da Defensoria. Em 18 (dezoito) processos não ocorreu o tratamento pela defesa. Quanto aos pedidos da defesa por tratamento de gênero, houve 2 (dois) pedidos, sendo ambos realizados pela Defensoria. Em 20 (vinte) processos não houve o referido pedido. Por fim, 28 (vinte e oito) foram o número de processos pelos quais as análises restaram prejudicadas. E em nenhum caso ocorreu pedido para que o recolhimento fosse feito em cela LGBT ou especial, embora em ambos os casos de atuação da Defensoria – em que esta realizou tanto o tratamento quanto o pedido de tratamento de acordo com a identidade de gênero – estão em andamento durante a realização desta pesquisa. Ambos os casos merecem maiores considerações por serem pertinentes as informações. Em um caso a Defensoria afirmou na resposta à acusação o direito ao uso do nome social como princípio da dignidade da pessoa humana, alegando a expressão da acusada como tipicamente feminina. Ainda manifestou no sentido de que o uso do nome social no processo não inviabilizaria a consecução da instrução criminal e a consequente punição, até porque referir-se-ia a um direito à identidade pessoal enquanto direito de personalidade, além de que utilizar nome diverso representaria discriminação de sua identidade de gênero. De forma contraditória, o juiz acatou o direito da acusada de ser reconhecida por seu nome social, sendo inclusive pedido que nas futuras intimações contivessem este nome (o social). Ocorre que, ao acatar o referido pedido e determinar futuros atos com o seu nome social, o magistrado utilizou sempre o tratamento sempre no sexo masculino. Em outros termos, o reconhecimento não passaria de uma mera declaração pois, na práxis, o reconhecimento não ocorreria. No outro caso, a atuação da Defensoria se mostrou mais enfática. Isso porque, apesar de na resposta à acusação a defesa requerer o tratamento por meio do uso do nome social, sob o fundamento do art. 2º do Decreto n. 8.727 46
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de 2018, que prevê que as pessoas travestis e transexuais sejam chamadas por seu nome social no âmbito da Administração Pública Federal Direta, pleiteando a retificação do registro da acusada no processo, a Defensoria foi além quando não teve seu pedido devidamente acolhido, uma vez o juiz determinou que no local em que constasse o nome civil fosse colocado o nome social acompanhado com o civil. Ante tal impasse, a Defensoria impetrou um habeas corpus ao Tribunal de Justiça de Santa Catarina – que apesar de ser um remédio constitucional cujo objeto tutela o cerceamento da liberdade do indivíduo – realizou profundamente uma reflexão sobre o modo pelo qual a acusada foi tratada no processo, pontuando, sobretudo, [...] que a inclusão sempre do nome civil entre parênteses após o nome social [...]. Embora pareça reconhecer e tutelar o direito da Paciente, tal decisão mantém e reproduz a violação diária de sua dignidade, uma vez que reiteradamente vincula seu nome social ao nome civil, quando não há tal necessidade (negrito nosso).
Tais casos emblemáticos, quiçá, porque são marcos para a presente pesquisa, quando a própria regra é tratar tais pessoas somente e exclusivamente de acordo com o seu sexo biológico, negando a prática da alteridade, demonstra assim o caminho possível de uma práxis enquanto reconhecimento do direito para o além da mera declaração, mas sim para a mudança da própria estrutura. O que a Defensoria fez no referido habeas corpus foi questionar os padrões adotados pelo judiciário e pelo imobilismo que este forja ao se prender e se pretender para tal, por exemplo, ao e-Saj18.
b.3) Tratamento realizado pela acusação nos autos dos processos criminais Tratando-se da atuação dos representantes do Ministério Público, no total de 50 (cinquenta) processos criminais em 46 (quarenta e seis) não foram realizados o tratamento de acordo com a identidade de gênero, em apenas 1 (um) é realizado parcialmente, e em 3 (três) as análises estiveram preju18
Sistema Automotivo de Justiça, conhecida pela sigla e-Saj, é um software desenvolvido pela Softplan em que possibilitou a tramitação dos processos no Judiciário de forma eletrônica, sendo o referido sistema utilizado pelo Tribunal de Justiça de Santa Catarina.
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dicadas. No único caso em que o Ministério Público realiza parcialmente o tratamento se dá em razão de a Defensoria ter se manifestando previamente.
b.4) Tratamento realizado pelo magistrado nos autos dos processos criminais Ao tratamento realizado pelo(a) magistrado(a), em 45 (quarenta e cinco) casos não foram realizados devidamente o tratamento de identidade de gênero. Apenas em 4 (quatro) casos é que o tratamento foi realizado de forma parcial, ou seja, que durante todo o processo nem sempre o(a) magistrado(a) tratavam-nas adequadamente. Em 1 (um) caso a análise esteve prejudicada. Para mais informações, em 30 (trinta) processos os(as) magistrados(as) sabiam da identidade de gênero das acusadas, enquanto que apenas 1 (um) não sabia – ao menos não havia dados nos autos que evidenciasse o contrário. Em 10 (dez) casos possivelmente haveria a possibilidade de saber mas sem dados concretos para afirmar que realmente sabiam. Por fim, em 9 (nove) casos as análises restaram prejudicadas.
c) Dados quanto ao tratamento realizado nos autos dos processos de execução criminal No caso da execução, a análise incialmente havia se dado a partir dos PECs existentes e dos processos que ocorreram sua execução até a absolvição em segunda instância, não compreendendo, por outro lado, aqueles que mesmo julgados, ainda não tiveram as respectivas aberturas dos PECs. Portanto, não fez parte desta análise as presas que tiveram prisão preventiva. Ao prosseguir com a coleta de dados, diante dos imprevistos dos inúmeros arquivamentos e somas dos PECs, não seria possível realizar uma pesquisa com rigor metodológico previsto. Em outros termos, na análise dos processos de uma detenta/apenada, por exemplo, num total de 20 (vinte) processos criminais existentes, haviam 16 (dezesseis) processos de execução. A Lei de Execução Penal expressa que a competência para julgar os processos que se encontram na fase de execução é o do juízo da execução – local onde o(a) condenado(a) se encontra cumprindo a sua respectiva pena –, o qual 48
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julgará inclusive os possíveis incidentes da execução, entendimento este extraído do art. 65 da Lei de Execução Penal19. O próprio Superior Tribunal de Justiça firmou como entendimento que Em havendo transferência do condenado do juízo da condenação para outra jurisdição, há imediato reflexo na competência. A administração da execução da pena e a solução dos respectivos incidentes, inclusive mudança do regime, compete ao juízo de onde se encontra o transferido (STJ – CC 8.397/BA, Rel. Ministro Luiz Vicente Cernicchiaro, Terceira Seção, julgado em 01/12/1994, DJ 03/04/1995, p. 8111).
Desse modo, apesar de em alguns processos haver a possibilidade de realizar a análise em determinados PECs, de forma quantitativa, em outros já não ocorreria tal possibilidade por estarem apensos ao processo de execução principal em detrimento das somas dos referidos PECs. O que inviabilizou totalmente as análises metodológicas na presente fase desta pesquisa. Retomando o caso da detenta/apenada acima, em apenas 4 (quatro) processos poder-se-iam realizar a análise; os demais processos, dentre os 16 (dezesseis) de execução, 12 (doze) estavam apensos aos principais, que no caso específico desta eram 2 (dois) principais, e os outros 5 (cinco) tiveram a análise prejudicada. Ante tais impasses, a análise do tratamento dos casos na execução se dará aqui de duas formas: na primeira trará as principais observações das análises e, em segundo, um breve comentário empírico sobre os Incidentes de Falta Disciplinar.
c.1) Relatos e vivências dirimidas Se por um lado o tratamento não foi realizado quantitativamente de forma satisfatória na fase administrativa e processual criminal às pessoas trans, o diverso não ocorreria na fase da execução. O contato aqui é constante; mais que nos casos sistematizados anteriormente. É direto o contato das apenadas com as UPAs e mais constantes nos PECs que nos criminais. De forma reduzida, são 7 (sete) as apenadas que estão (ou estiveram) com os PECs abertos, cujas análises estão divididas abaixo nestas 7 (setes) “ausên-
19 O art. 65 da Lei de Execução Penal possui a seguinte redação: “Art. 65. A execução penal competirá ao Juiz indicado na lei local de organização judiciária e, na sua ausência, ao da sentença”.
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cias fabricadas e (re)existências construídas”20; todavia, cada caso pode possuir mais de um PEC e abaixo serão elencados as situações mais significativas. No caso um, a apenada afirmou ser homossexual e que sofria agressões verbais, mas não mencionou nada quanto possíveis agressões físicas. O juiz da execução, o Ministério Público e a Defensoria Pública não se pronunciaram sobre sua identidade de gênero. No caso dois, há relatos de abusos psicológicos e físicos em vários momentos. Um é demonstrado por um advogado, em sede instrução criminal, quando requer a transferência da apenada por estar sofrendo bullying por aquilo que seu defensor chamou de “opção sexual”, além de afirmar que o local onde se requer a sua transferência seria onde residiria sua família. O juiz ao encaminhar o pedido da transferência ao juiz competente da execução alega que é onde residiria a família da apenada, deixando de mencionar o principal fundamento: as violências psicológicas. Outro relato demonstra que a apenada estava sendo descriminada por ser negra e homossexual, e ainda que havia sido estuprada na Unidade Prisional de São Pedro de Alcântara. Mesmo a Unidade sabendo do referido fato, nada fez. Sua transferência foi designada com urgência em detrimento de sua condição de pessoal enquanto “homossexual (travesti assumido)”21. Ao realizar Boletim de Ocorrência (B.O.) pelo suposto estupro, a apenada afirma que foi ameaçada para que mantivesse relações sexuais com outro apenado, sendo que houve uma demora de 7 (sete) dias para que realizassem o seu exame. Quanto a atuação das partes no processo, dependeria de onde a apenada se encontrava cumprindo sua pena, sendo que, foi constatado que era a partir dos requerimentos da Defensoria que o tratamento de acordo com a identidade gênero era realizado pelo(a) magistrado(a). De forma específica, 20 Termo este utilizado como proposta de atividade a ser desenvolvida na disciplina de “Direito das Minorias Étnicos-Raciais” do Curso de Direito da Universidade Federal de Goiás/Regional Jataí pelos professores Helga Maria Martins de Paula e Daniel Vitor Castro no semestre 2018.1, cujo sentido de “(re) existências construídas” é tida enquanto contraste às “ausências fabricadas”: uma forma de visibilizar aquilo que foi apagado pela colonialidade, pelo patriarcado, pela heteronormatividade, ou qualquer outra forma de opressão que venha a “apagar” sujeitos. As existências reexistem a partir de suas próprias construções em quanto sujeitos detentores de sua própria história (PAULA; CASTRO; 2018). 21 Durante as análises foram constatados de forma constante a referência da identidade de gênero como opção sexual. Dessa forma, mantem-se os termos usados erroneamente, inclusive por parte das apenadas/detentas, embora sempre entre aspas para designar este erro/desconhecimento em seu uso.
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tal caso ocorrera na comarca da Capital (Florianópolis), solicitando inclusive o uso do nome social pela UPA. Contudo, o tratamento da Defensoria não se demonstraria em outros atos processuais de forma adequada, contrariando o que inicialmente pleiteava ao juízo da execução. Em nenhuma situação o(s) representante(s) do Ministério Publico realizaram o tratamento adequado. No caso três, a apenada relata a inexistência de estrutura da UPA em que se encontrava para recolher pessoas transexuais, fato este que tornava o convívio mais dramático (insuportável). O tratamento realizado pela defesa dependeria das situações, principalmente por parte da Defensoria e do(a) magistrado(a). Ora realizavam, pediam tratamento de gênero, mas deixavam de realizar posteriormente. A atuação dos(as) representantes do Ministério Público e dos(as) advogados(as), quando havia, nunca era realizados adequadamente. No caso quatro, foi alocada junto a apenada e outro apenado (homossexual), ambos por cometeram crimes contra o patrimônio, um detento acusado por prática de estupro. Por temor de ocorrência de alguma situação de violência aqueles tentaram impedir o ingresso do referido detento, o que ocasionou a instauração de um Incidente de Falta Disciplinar. Em sua defesa, pouco é a atuação da Defensoria quanto ao temor da violência, esta por sempre presar argumentos jurídicos, pouco importando, no caso, os fatos e a condição objetiva da apenada. Em outra situação a apenada realizou B.O. em detrimento de ameaças que vinham sofrendo por parte dos próprios internos que com ela estavam alocados na mesma cela. Em seus relatos a “homofobia” consistia nas ameaças de cortar o seu cabelo e até de morte. No caso cinco, a apenada relata que o diretor do Presídio Regional de Mafra não aceita “viado” e não a chamará pelo nome social, sendo que, por tentar se suicidar, acabou sendo isolada por, aproximadamente, 90 (noventa) dias. Ademais, um dos internos com quem dividia cela não gostava de “homossexual” e “travesti”, uma vez que a organização criminosa em que participava – o Primeiro Comando da Capital (PCC) – não aceitavam tais “tipos” de pessoas. Inclusive há relatos de os próprios agentes carcerários praticarem agressões verbais, tal como referir a ela como “gayzão”. Não há relatos de que as partes do processo tenham-na tratada de forma adequada. Por fim, nos casos seis e sete, as partes não as tratam de acordo com suas identidades de gênero. 51
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c.2) As condicionantes objetivas das Unidades Prisionais Avançadas (UPAs) Realizar análise sobre o tratamento das pessoas trans no sistema carcerário pressupõe entender a realidade dos locais onde são/estão segregadas. Se a elas são oferecidas condições dignas em detrimento das condições objetivas a que estão condicionadas – em relação as suas identidades de gênero enquanto mulheres trans na presente pesquisa. Ao solicitar os dados iniciais para a coleta das informações, como já dito inicialmente, o qual foi encaminhado ao Portal do Ministério da Justiça, por meio do e-SIC, como destinatário o DEPEN, em decisão em grau de recurso que também restou indeferido, continha as seguintes alegações: (1) a não disponibilização de dados pessoas mesmo de pessoas privadas de liberdade; (2) da inexistência de dados quantitativos por parte do DEPEN, e acrescentaram que: [...] relembra-se o parágrafo 6 da INFORMAÇÃO Nº 51/2018/CGPC/ DIRPP/DEPEN (5857535), através do qual é informado que a política de diversidades no sistema penal está em fase de construção, com previsão de conclusão e lançamento em 2018, e que irá permitir ao Depen o incentivo para que os órgãos estaduais de administração prisional visibilizem as populações de diversidades (dentre elas a população LGBT), bem como atuem diretamente na produção de banco de dados com detalhamento de especificidades inerentes às pessoas privadas de liberdade.
Ainda que (3) encontra-se “em fase de implementação o Sistema de Informações do Departamento Penitenciário Nacional - Sisdepen, que em breve permitirá o levantamento de dados com diversos recortes sobre as diversidades, auxiliando e embasando a produção de políticas públicas mais específicas”; por fim, que (4) na última “versão do Levantamento de Informações Penitenciárias - Infopen 2016 (o qual foi substituído pelo Sisdepen), há 101 unidades prisionais com alas ou celas exclusivas para a população lgbt no sistema prisional do Brasil, sendo 06 em Santa Catarina, quais sejam” o: Complexo Penitenciário do Estado – COPE; Presídio Feminino de Florianópolis; Presídio Regional de Blumenau; Presídio Regional de Criciúma; Presídio Regional de Mafra; e Unidade Prisional Avançada de Porto União.
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Tendo estabelecido essas informações, a princípio, iniciais, não se sabe desde que período as referidas 06 (seis) celas – exclusivas para a destinação LGBT – existem, bem como, se até o presente ano (2018), estão em pleno “funcionamento”. Acontece que, em contato realizado com as UPAs, de acordo com as respectivas regiões, via e-mail para as Unidades de forma individual, a gerente responsável pelo Presídio Feminino de Florianópolis informou que nunca possuíram pessoas trans; por não possuir, também não teria a necessidade da referida cela especial LGBT desde janeiro de 2018, diverso do que consta ao Despacho nº 712/2018/GABDEPEN/DEPEN. Acrescentou ainda que houve um tempo, antes de sua gestão, pelo qual foi destinado o alojamento especial para as mulheres lésbicas, embora tenha sido rejeitado por elas próprias, em razão de se sentirem descriminadas com a referida separação. E que o Presídio Feminino de Florianópolis caso venha a receber pessoas trans, deverá destinar cela especial, mesmo que não haja obrigatoriedade de celas especiais para as presas femininas (com feminina a legislação vem expressar o sexo biológico). A Resolução Conjunta n. 1, de 15 de abril de 2014, CNPCP, garante o direito de as mulheres trans e gays privados de liberdade terem espaço de convivência específica, ficando sob a condição de expressa manifestação de suas vontades (art. 3º, caput, c./c. o art. 3º, §2º), uma vez que o encarceramento dessa população não deve ser destinado como medida disciplinar ou de qualquer método coercitivo (art. 3º, §1º). Diverso ocorre para os homens transexuais e lésbicas uma vez que a Resolução apenas afirma que serão encaminhadas para as unidades prisionais femininas, não afirmando a obrigatoriedade da cela especial (art. 4º), portanto. Ressalta-se que uma portaria restrita ao Estado de Santa Catarina, Portaria n. 0879/GABS/SJC/2017 de 05 de setembro de 2017, em seu art. 3º, dispõe que “as pessoas que passarem por procedimento cirúrgico de transgenelitalização deverão ser incluídas em unidades prisionais do sexo correspondente”. Portanto, subentende-se que as pessoas que não passaram por cirurgia de redesignação de sexo estarão excluídas desta possibilidade, também em desrespeito ao direito ao gênero e a um tratamento condizente com sua identificação.
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A própria Resolução afirma que transexuais são as “pessoas que são psicologicamente de um sexo e anatomicamente de outro, rejeitando o próprio órgão sexual biológico” (art. 1º, V, itálico nosso), enquanto que as travestis são as “pessoas que pertencem ao sexo masculino na dimensão fisiológica, mas que socialmente se apresentam no gênero feminino, sem rejeitar o sexo biológico” (art. 1º, IV, itálico nosso). Uma conceituação que destoa dos parâmetros das discussões de gênero e, principalmente, da realidade em que estas mulheres trans estão inseridas. A relação/diferenciação entre travestilidade e transexualidade é tênue, não necessitando rigorosamente de haver a mudança de sexo. Aliás, a própria mudança de sexo não é um processo acessível a todas, o que demonstraria uma discriminação por parte da Resolução e da Portaria aqui mencionadas. Feitas tais considerações, mostra-se o quadro abaixo em que consta um resumo dos históricos carcerários do i-Pen de cada uma das doze apenadas, sabendo que várias mulheres são reincidentes, o que tornam extenso e longo os seus respectivos históricos. Em outros termos, as datas representam o período em que foram feitas as leituras das Unidades Prisionais em que estiveram segregadas. Ante a inexistência da dimensão, em termos temporais, das celas especiais em Santa Catarina, apenas restou saber em quais presídios estiveram recolhidas e quais hoje pressupõem a existência das celas especiais acima referidas (que aparece em negrito e sublinhado no “Quadro I”).
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Quadro I Apenadas
Período do Histórico
UPAs
1
03/10/2010 a 25/07/2018
Unidade Prisional Avançada de Videira; Penitenciária Agrícola de Chapecó; Penitenciária Industrial de Chapecó
2
30/12/2017 a 23/07/2018
Presídio Regional de Concórdia
3
17/02/2008 a 27/07/2018
Complexo Penitenciário do Estado – COPE; Presídio Regional de Blumenau; Penitenciária da Região de Curitibanos; Penitenciária Industrial de São Cristóvão do Sul; Presídio Regional de Itajaí; Presídio Regional de Criciúma; Presídio Regional de Tijucas; Unidade Prisional Avançada de Campos Novos; Penitenciária de Florianópolis; Penitenciária - Complexo Penitenciário do Vale do Itajaí; Unidade Prisional Avançada de Barra Velha
4
12/04/2004 a 23/07/2018
Presídio de Balneário Camboriú; Presídio Masculino de Florianópolis; Presídio Regional de Joinville; Penitenciária de Florianópolis; Penitenciária de Florianópolis
5
05/09/2017 a 23/07/2018
Penitenciária de Florianópolis
6
01/02/2018 a 02/04/2018
Penitenciária Industrial de Joinville; Presídio Regional de Joinville
7
27/01/2005 a 02/04/2018
Penitenciária Industrial de Joinville; Presídio Regional de Joinville
10/07/2013 a 19/07/2018
Presídio Regional de Lages; Presídio Masculino de Lages; Penitenciária Industrial de São Cristóvão do Sul
8
9
19/08/2011 a 29/07/2018
Presídio de Balneário Camboriú; Unidade Prisional Avançada de Brusque; Unidade Prisional Avançada São Francisco do Sul; Presídio Masculino de Florianópolis; Penitenciária de Florianópolis; Presídio Regional de Jaraguá do Sul; Presídio - Complexo Penitenciário do Vale do Itajaí; Presídio Regional de Mafra; Penitenciária Industrial de Joinville
10
22/05/2011 a 23/05/2018
Presídio Regional de Joinville; Unidade Prisional Avançada São Francisco do Sul
11
18/09/2016 a 06/04/2017
Unidade Prisional Avançada São Francisco do Sul
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17/08/2016 a 02/05/2017
Presídio Regional de Jaraguá do Sul
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Por fim, cabe pontuar que, em grande parte das análises dos PECs, foram constatados que os Incidentes de Falta Disciplinar, instaurados contra as apenadas trans nesta análise, estão estritamente relacionados com as violências em que são submetidas. O ato de resistir e rebelar contra as opressões que as violenta constantemente faz com que sejam punidas e silenciadas.
5. Considerações finais Para esta pesquisa, partindo-se da restrição binária do Direito no que se refere ao gênero e da heteronormatividade, que permeia o ordenamento jurídico, questionou-se sobre como o sistema carcerário do Estado de Santa Catarina identifica e como promove o encarceramento das pessoas trans, especificamente as mulheres. Ao longo da exposição da coleta de dados, foram apontadas ocorrências gerais que demonstram o tratamento dispensado às mulheres trans. Desses dados coletados, ainda, aponta-se o desconhecimento básico acerca das características da população, o que acarreta em tratamentos desumanos e violentos. Exemplo disso é (a) a qualificação, pelo Sistema de Identificação e Administração Penal (i-Pen), das mulheres trans na ordem de “orientação sexual” (e não dissidência de gênero - ou mesmo identidade de tal) e (b) a indicação, em todo o processo, de que o nome da mulher trans seria “alcunha” ou apelido, ou não o nome social. Esse desconhecimento, bem como a violência que o tange, vincula-se ao cenário brasileiro que promove a invisibilidade da população trans. Há, assim, uma intrínseca relação daquilo que Michel Foucault (2002) tenha definido como docilização dos corpos e os atos de resistências por elas manifestados. Se as existências trans são invisibilizadas, quando não apagadas, como comprovado nos dados apresentados anteriormente, por meio do discurso jurídico no qual naturaliza o “assimilacionismo” da identidade de gênero à orientação sexual das apenadas. Nessa linha de pensamento, tem-se o que Boaventura de Souza Santos (2002) entende por ausências fabricadas, que são produto da sociologia das ausências: o inexistente assim o é porque é produzido dessa forma. Contudo, a fabricação dessas ausências, nos termos desta pesquisa, também é exercida de forma contundente, sobretudo, por parte do Estado, melhor dizendo, da figura do Estado-Juiz, que a ele se soma o Ministério Público, enquanto órgão acusatório; e, enquanto defesa, os(as) advogados(as) e a Defensoria Pública. 56
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Nesse sentido, ao reprimir uma violação viola-se outros bens pelos quais também são tutelados. Isto é, ao reprimir a atividade delituosa das pessoas trans, acabam por violar a integridade, personalidade e identidade destas; logo, pouca expressão apresenta por ser uma ausência fabricada mas que não deixa de possuir suas (re)existências construídas (PAULA; CASTRO; 2018). Enquanto que as (re)existências se dão de acordo com resiliências de serem chamadas pelos nomes sociais, como ocorre nas audiências em que elas se tratam por meio de pronomes femininos, quando não pedem ao(à) juiz(a) que as chamem pelo nome o qual se identificam. O que não garante aliás a sua não violação novamente, mas apenas eximirá eventuais violações em determinados atos ou situações. Pelas bases teóricas, portanto, diante do que foi coletado e analisado, compreende-se que, no tratamento carcerário dispensado às mulheres trans apenas, mantêm-se a centralidade e ordem determinada pelas normas de gênero, em que as pessoas trans encontram-se em local de transgressão e sofrem, por não se enquadrarem no modelo colonizado e biomédico dessas normas, violência institucional – a violência legitimada, injusta e indevidamente, pelo Estado.
6. Referências BENTO, Berenice Alves de Melo. A (re)invenção do corpo: sexualidade e gênero na experiência transexual. Rio de Janeiro: Garamond/Clam, 2006. BUTLER, Judith. Bodies that matter: on the discursive limits of sex. New York/London: Routledge, 1993. CASTRO, Daniel Vitor; PAULA, Helga Maria Martins de. Ausências fabricadas e (re)existências construídas. In: DIREITO DAS MINORIAS ÉTNICOS-RACIAIS. Universidade Federal de Goiás/Regional Jataí. Jataí, 2018. FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: Nascimento da Prisão. 42 ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2014. OLIVEIRA, João Manuel de. Desobediências de gênero. Salvador: Devires, 2017.
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ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS. Asamblea general. Resolución n. 2435/2008 de 03 de jun. de 2008. Derechos humanos, orientación sexual e identidad y expresión de gênero. ______. Asamblea general. Resolución n. 2504, de 04 de jun. de 2009. Derechos humanos, orientación sexual e identidad y expresión de gênero. ______. Asamblea general. Resolución 2600, de 08 de jun. de 2010. Derechos humanos, orientación sexual e identidad y expresión de gênero ______. Asamblea general. Resolución n. 2653, de 07 de jun. de 2011. Derechos humanos, orientación sexual e identidad y expresión de género. Asamblea general. Resolución n. 2721, de 04 de jun. de 2012. Derechos humanos, orientación sexual e identidad y expresión de gênero. ______. Asamblea general. Resolución n. 2807, de 06 de jun. de 2013. Derechos humanos, orientación sexual e identidad y expresión de género. SÁ NETO, Clarindo Epaminondas de. A personalidade jurídica individual e as identidades de gênero: a contribuição do princípio da fraternidade para a promoção do trânsito entre os gêneros. Tese de Doutorado, Universidade Federal de Santa Catarina, Centro de Ciências Jurídicas, Programa de Pós-Graduação em Direito, Florianópolis, 2017. SANTOS, Boaventura de Souza. Para uma sociologia das ausências e uma sociologia das emergências. Revista Critica de Ciências Sociais, 63, Outubro de 2002. SEGATO, Rita Laura. Gênero e colonialidade: em busca de chaves de leitura e de um vocabulário estratégico descolonial. 18 | 2012 : Epistemologias feministas: ao encontro da crítica radical, E-Cadernos CES, 18, 2012. Disponível em Acesso em 14 junho 2018. UNIDADES Prisionais. Secretaria de Estado da Justiça e Cidadania DEAP – Departamento de Administração Prisional. Disponível em: < http://www. deap.sc.gov.br/index.php/unidades-prisionais >. Acessado em: jun./2018. 58
Luz no Quarto de Despejo: sobre a visibilidade às desigualdades de Gênero, Classe, Raça e Sexualidade no Brasil diante da Estrutura Jurídica Juliana Alice Fernandes Gonçalves1
Introdução “5 de dezembro. A Leila contou-me que a filha da Dona D. está presa, porque o seu esposo lhe pegou em adultério com um baiano que tem dois dentes de ouro” (JESUS, 2014, p. 141). Este é um dos relatos de Carolina Maria de Jesus em sua obra Quarto de Despejo: Diário de uma favelada, escrita no contexto da década de 1950 no Brasil. Em nosso país, adultério foi considerado crime até recentemente; 2005. Para analisar o direito é preciso refletir a respeito da gigante estrutura que ele comporta e, especialmente, da que ele não comporta. Por trás da letra da lei há uma contextualização que deve ser levada em consideração, para além da letra da lei, outra. Para algo se tornar crime, precisa, primeiramente, tornar-se lei2. Para algo se tornar lei, é necessária uma discussão sobre a temática. Promovendo essa discussão estão pessoas imersas em aspectos ideológicos, políticos, econômicos, culturais etc. A letra da lei em sua elaboração não é neutra, nem em sua aplicação, pois este cenário comporta pessoas que vem (de) e seguem sistemas e subsistemas. Desse modo, o direito é a letra da lei, mas não somente. Portanto, há que ser reconhecida a estrutura afetada, bem como as classificações sociais
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Mestra em Teoria e História do Direito pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC): Bolsista CAPES. Graduada em Direito pela Universidade do Extremo Sul Catarinense (UNESC). Pesquisadora do Grupo de Pesquisa Lilith: Núcleo de Pesquisa em Direito e Feminismos. E-mail: [email protected]
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Art. 1º - Não há crime sem lei anterior que o defina. Não há pena sem prévia cominação legal. Código Penal Brasileiro.
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dos sujeitos que lidam com questões que interessam a outros sujeitos, sendo que estes igualmente carregam seus marcadores sociais específicos. A realidade brasileira é bastante complexa, sendo que forças imperantes tem desconsiderado ou negligenciado essa complexidade, fazendo com que haja um desconhecimento de nossas próprias especificidades ou apagamento da nossa história. A discussão proposta neste trabalho não é a de discorrer sobrem quem proporciona isto, mas, sim, sobre quem revela essa complexidade. Na oportunidade desta pesquisa, através dos estudos feministas e realidade fática narrada por Carolina de Jesus. O objeto do trabalho se delimita pela reflexão acerca dos marcadores sociais apontados pela teoria feminista decolonial, tendo em vista a realidade brasileira e os reflexos decorrentes para o campo do direito. Reconhecendo a contribuição das feministas negras norte-americanas quando da categoria da interseccionalidade, que aponta para o entrelaçamento ou não entre as formas de opressão no tecido social para com os sujeitos. Tudo isto, com base na citada obra de Carolina Maria de Jesus, em que é possível identificar em seus relatos como o direito age estrategicamente conforme a classe e/ou grupo social. O problema que a pesquisa visa responder é: a luz no quarto de despejo contribui positiva ou negativamente para a compreensão das realidades brasileiras? Considerando que a academia não é a chave para absolutamente todos os problemas do país e, que nem deve assumir esta postura, mas que pode servir de ponte ao diálogo e ao esclarecimento à sociedade sobre ela própria, os objetivos neste momento giram em torno de: (a) vislumbrar as especificidades que o Brasil apresenta enquanto país construído e dito periférico no cenário global; (b) apresentar as ponderações da autora em evidência nesta pesquisa de forma a oferecer uma troca entre a materialidade demonstrada por ela e as teorias propostas e; (c) estudar as possibilidades de entrelaçamento dos estudos feministas decoloniais com a realidade apontada. A metodologia utilizada se reveste de método de abordagem dedutivo, ou seja, partindo-se de teorias e leis para a análise e explicação de fenômenos particulares, do geral para o particular. Utilizando-se de tipo de pesquisa bibliográfico, baseando-se primordialmente na teoria feminista decolonial, vislumbrando uma teoria crítica do direito por meio de contribuições de autoras e autores latino-americanos que (re)pensem o cenário brasileiro enquanto
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país que sofre consequências decorrentes do colonialismo e colonialidade e, os reflexos disto para a conjuntura do direito. A justificativa da pesquisa se dá pela fundamental necessidade de construção deste tipo de conhecimento para a área do direito, que, no Brasil, ainda se apresenta como um campo endurecido e conservador. Falar sobre corpos, suas significâncias e especificidades, quando colocados num grande coletivo, é essencial para compreender a própria estrutura jurídica que é formada, inclusive por estes corpos, para interagir com todos os demais. O “quarto de despejo” aqui representa o nosso país que foi desenhado à margem do sistema global, (des)construído enquanto território, numa tentativa de descaracterizá-lo de fora para dentro e vice e versa em ciclos que não findam. A luz sobre este quarto de despejo se dá quando ousamos olhar para nós mesmas, uma vez que quanto maior a quantidade de luz, sim, maior é o número de problemas identificados, contudo, essa é uma maneira possível de solucioná-los. A contribuição do trabalho está em sua tentativa de diálogo desde as margens para as margens, ou seja, desde uma voz da periferia – Carolina Maria de Jesus – para um país construído como periferia – Brasil – por teorias pensadas desde e para as periferias do mundo – feminismo decolonial.
2. O quarto de despejo: o ranço colonial deixado no Brasil O Brasil conta com 26 estados federados, 5.570 municípios e o Distrito Federal. Tudo isto dividido em 5 regiões: Centro-Oeste, Norte, Nordeste, Sul e Sudeste. Sendo que, até o presente momento e, observada a última pesquisa do gênero, a população brasileira foi estimada em 208,5 milhões de habitantes. Sua área territorial é de 8.516.000 km², possuindo uma grande extensão com amplas fronteiras terrestres e marítimas. Considerado, assim, um país com dimensões continentais. Além disto; possui uma história. Diante deste enorme quadro, indiscutível é a presença das pluralidades das mais diversas. Trata-se de um país gigante em sua proporção e divisão territoriais, mas não somente, pois em cada ponta e canto desse território existem diversos aspectos culturais, sociais, políticos, econômicos, históricos e etc. O Brasil é um país heterogêneo, por mais que tenha se negado tal fato durante tanto tempo. Existem particularidades muito nossas enquanto país, e, dentro disto, particularidades conforme seus estados federados, municípios e o próprio distrito 61
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federal. Há uma complexidade exposta e lacerante que se insiste em asfixiar dentro de um quarto de despejo escuro e longínquo. Se aplicada luz sobre ele, os problemas aparecem, sobretudo, as soluções. Nosso país foi uma das colônias da expansão nitidamente imperialista europeia. A partir deste fato, nossa localidade sofreu com grandes mudanças e influências. Os povos originários sofreram com perseguição, doutrinação religiosa e morte. Foram dizimados e até os dias atuais sofrem com as consequências de séculos atrás. Além da colonização, a escravidão, que deixou sangrentas marcas em nosso território e povo. Além da escravidão, a ditadura militar que durou 21 anos, de 1964 até 1985. De ciclos infindáveis nosso país não teve tempo de se recuperar de seus traumas; é uma realidade. Esta afirmação vem da observação referente à parte da população brasileira que se nega a admitir os adventos da escravidão e suas repercussões para a população negra, bem como sobre a violência e jogos políticos perpetrados durante a ditadura no Brasil. Possuímos um histórico de violência e negação, por isto estamos imersas num contexto violento. Essas circunstâncias não vieram do nada. Os estudos de(s)coloniais3 desde os anos de 1990 na América Latina vem propondo reflexões sobre todos estes aspectos que restaram apagados e estrategicamente preteridos durante longo tempo. Estudiosas e estudiosos desta corrente de pensamento apontam para categorias tais como “colonialismo” e “colonialidade”. A primeira diz respeito à administração colonial que sofremos quando fomos invadidos pelo Europa, no caso do Brasil, por Portugal. A segunda, refere-se ao momento pós administração, quando não mais colônia em aspectos formais, mas com as consequências e violências simbólicas ainda presentes, tendo em vista as interferências de modelos políticos, econômicos, sociais e culturais empregados. O Direito brasileiro por consequência também sofreu influências, principalmente quando considerado o fato de que os privilegiados cruzavam o Atlântico para ingressarem no curso na Universidade de Coimbra. Séculos se passaram, entretanto as grades curriculares dos cursos 3
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Essa forma de redação da categoria – de(s)colonial – é uma proposta da autora que sugere a modificação gradual dos estudos descoloniais para decolonialidade. Sendo que o primeiro reflete ao grupo de autores como Anibal Quijano, Walter Mignolo, Ramon Grosfoguel, Rita Segato etc. O segundo, autores e autoras mais recentes como, por exemplo, María Lugones e Yuderkys Espinosa. Em termos gerais, os primeiros elaboraram os estudos numa perspectiva de demonstrar a realidade dos objetos estudados, países da América Latina. As segundas, num viés de insurgência diante do sistema posto; para além de reconhecer a materialidade em análise, voltar-se contra ela e modificá-la.
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de Direito do país estão repletas de autores europeus. Trata-se de uma longa discussão. Como o curso jurídico passou por um determinado caminho, os estudos de(s)coloniais também: Dos estudos descoloniais, passa-se aos estudos decoloniais. Pois se entende que não basta mais apenas nos desconectarmos das amarras coloniais ainda presentes em nossos cotidianos, mas insurgirmo-nos diante delas, contra o sistema posto. É a partir deste prisma que surge o feminismo decolonial. Trata-se de algo recente, mas que vem ganhando corpo, pois os grupos emergentes vêm se solidificando no sentido de se fazerem ouvidos. [...] As teorias decoloniais vêm demonstrar que a nossa subjetividade foi formatada/construída no processo de colonização (e o que resta ainda hoje por meio da colonialidade). O projeto ocidentalizador surge com o discurso das liberdades, porém apresenta hostilidades por meio da padronização dos corpos e comportamentos. O que é liberdade antes e depois da colonização? [...] O papel da classificação social, de acordo com Grosfoguel (2008), surge neste processo de colonização. (GONÇALVES, 2019, p. 47-48).
Em recente entrevista, o sociólogo porto-riquenho Ramon Grosfoguel, destaca as nuances entre o que se diz ser crise financeira e/ou crise civilizatória. Para o autor, o que ocorre no momento, corresponde à segunda lógica. De acordo com Grosfoguel, o fazer decolonial representa uma luta externa, mas também interna, no sentido de que é necessária uma desconstrução a nível interno para que estejamos preparadas e preparados para o enfrentamento com o sistema vigente. Descolonizar o interior para que seja possível combater a colonização exterior. Há toda uma internacionalização das formas de dominação global e local. O autor alerta que estratégias são indispensáveis para traçarmos caminhos para o projeto político que a própria construção de pensamento almeja. Isto é, onde estamos hoje e onde queremos chegar? Sugere cautela para desviarmos do moralismo e construirmos alianças políticas (GROSFOGUEL, 2019). Neste sentido, é possível propor reflexão sobre algo como a “periferia da periferia”. Em outras palavras, o Brasil é um país desenhado como periférico que comporta outros tipos de periferias em seu seio; formas específicas de exclusão tendo em vista o sistema-mundo, a modernidade ocidental, o capitalismo mundial, haja a vista a particularidade proporcionada pelo colonialismo/colonialidade, considerando também o advento do neoliberalismo. Para mudar a lógica civilizatória deve-se mudar o sistema capitalista histórico que 63
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está imbricado com todas as demais complexidades anteriormente citadas, combatendo o racismo epistêmico. O sistema econômico, para Grosfoguel, por exemplo, é uma parte da modernidade ocidental (GROSFOGUEL, 2019). O quarto de despejo não deve ser considerado como um ambiente inferior, pois há todo um universo de possibilidades, particularidades e acontecimentos neste local, apesar de que geralmente dentro dele está o que ninguém quer ver: tal como o Brasil. Esse é o ponto. O que é necessário para a sobrevivência de todo o restante habitualmente lá se encontra. Num lugar apertado, soturno, sem receber a devida atenção. Somente quando aplicada luz sobre ele é possível observar sua capacidade como também sua confusão.
3. O diário – a fala – de uma favelada como diretriz para o Direito O cenário em que Carolina de Jesus relata a amarga realidade dos favelados na década de 1950 já não é o mesmo, nem por isto tão distante do atual. Apenas uma pessoa que vive a favela tem a competência para descrever sobre ela, assim, vamos nos reportar à autora e suas preciosas contribuições para traçarmos um possível diálogo. Este tópico da pesquisa contará com diversas transcrições, de forma a esparramar a realidade das linhas escritas por Carolina. Quanto à referência à autora e sua obra significativo salientar que: Não se trata de utilizar a sua realidade para meras explanações teóricas, mas considerar a sua materialidade por meio de seu sofrimento e provocar a urgente reflexão sobre o que nos rodeia. Como historicamente existem grupos de pessoas que sofrem opressões variadas a depender de seus marcadores sociais e de como estão localizados, enquanto que certas instituições não conseguem corresponder de acordo com os seus pretensos objetivos diante das estruturas sociais (GONÇALVES, 2019, p. 64).
Em cada relato da presente obra é possível descortinar a relação da materialidade apresentada pela autora com as esferas jurídica e política. Em 1958, no dia 6 de maio, escreve: “[...] O que eu aviso aos pretendentes a politica, é que
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o povo não tolera a fome. E preciso conhecer a fome para saber descrevê-la4” (2014, p. 29)5. Durante toda sobra obra a questão da fome é numerosamente citada, é de se imaginar o motivo. No dia 10 de maio no mesmo ano aponta: “[...] O Brasil precisa ser dirigido por uma pessoa que já passou fome. A fome também é professora. Quem passa fome aprende a pensar no próximo, e nas crianças” (p. 29). No dia 13 de maio coloca: Hoje amanheceu chovendo. É um dia simpático para mim. É o dia da Abolição. Dia que comemoramos a libertação dos escravos. ... Nas prisões os negros eram os bodes espiatorios. Mas os brancos agora são mais cultos. E não nos trata com despreso. Que Deus ilumine os brancos para que os pretos sejam feliz (p. 30, grifo nosso).
O feminismo decolonial trabalha com algumas principais categorias para realizar análises diante do contexto social. Essas categorias correspondem, principalmente, às questões de: gênero, raça, classe e sexualidade. Salientando que as feministas decoloniais reconhecidamente apoiaram-se na categoria da interseccionalidade elaborada e trabalhada pelas feministas negras norte-americanas6, onde num primeiro momento se trabalhava com a intersecção entre raça e gênero, e, posteriormente, agregou-se a questão da classe. Nesta passagem de Carolina de Jesus fica evidenciada o conflito de raça. Várias são as passagens neste sentido. No dia 15 de maio escreve a autora: “Eu classifico São Paulo assim: O Palacio, é a sala de visita. A Prefeitura é a sala de jantar e a cidade é o jardim. E a favela é o quintal onde jogam os lixos” (p. 32). Numa esfera global, quem ocupa o lugar de sala de visita, sala de jantar, jardim e quintal? Onde ficam os quintais no desenho do sistema-mundo? Qual a contextualização política? Quais as consequências das colonizações e imperialismos dentro desta tela?
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As citações serão fiéis ao texto encontrado no livro em análise, portanto, este é o motivo para situações de desacordo gramatical ou ortográfico.
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Deste ponto em diante serão utilizadas inúmeras citações da Carolina de Jesus e da obra: Quarto de despejo: diário de uma favelada. Editora Átira. 1º Edição, 2014, inspiração para esta discussão. Desse modo, para dar fluidez ao texto e evitar a repetição da mesma referência, optamos por seguir mencionando apenas a página em que a citação se refere, já que se trata da mesma obra.
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A primeira vez que a categoria da interseccionalidade foi apresentada nestes termos foi pela autora Kimberlé Crenshaw em uma conferência que discorria sobre as questões de raça e gênero.
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No dia 16 de maio: “[...] Eu quando estou com fome quero matar o Janio, quero enforcar o Adhemar e queimar o Juscelino. As dificuldades corta o afeto do povo pelos políticos” (p. 33). Em tempos difíceis como preservar algo como o afeto? Para quem é concedida a oportunidade do afeto? Quem tem tempo para tal singularidade? Isto nos reporta para a discussão vigente acerca do neoliberalismo como racionalidade política. Este neoliberalismo que não mais representa apenas um sistema econômico, mas também político. Que atravessa as relações sociais, cortando os laços e consequentemente os afetos. Como sentir afeto ou agir por afeto quando o sistema é brutal e transforma os seres humanos em indivíduos concorrentes uns com os outros onde impera o mito da meritocracia? Em recente obra sobre o tema, discorrem Dardot e Laval: O neoliberalismo não destrói apenas regras, instituições, direitos. Ele também produz certos tipos de relações sociais, certas maneiras de viver, certas subjetividades. Em outras palavras, com o neoliberalismo, o que está em jogo é nada mais nada menos que a forma de nossa existência, isto é, a forma como somos levados a nos comportar, a nos relacionar com os outros e com nós mesmos. O neoliberalismo define certa norma de vida nas sociedades ocidentais e, para além dela, em todas as sociedades que as seguem no caminho da modernidade. Essa norma se impõe a cada um de nós que vivamos num universo de competição generalizada, intima os assalariados e as populações a entrar em luta econômica uns contra os outros, ordena as relações sociais segundo o modelo do mercado, obriga a justificar desigualdades cada vez mais profundas, muda até o indivíduo, que é instado a conceber a si mesmo e a comportar-se como uma empresa (2016, p. 16).
Importante destacar que se trata de contextos diferentes e que este neoliberalismo apontado não reflete a realidade demonstrada por Carolina de Jesus. Contudo, cabe realizarmos algumas reflexões. A gestação da obra da autora ocorre no final da década de 1950, sendo que na década seguinte o Brasil adentrou na época truculenta da Ditadura Militar. Qual foi o contexto que propiciou a escalada do autoritarismo no Brasil? É sabido que parte da população brasileira apoiou a subida dos militares ao poder. A obra de Dardot e Laval foi escrita na gestação da crise de 2008, que abalou as estruturas mundiais, não afetando diretamente no Brasil, considerando a especificidade política do país à época. Apesar disso, com o passar dos anos, a nível mundial, ocorre novamente a escala de governos autoritários e/ou de extrema-direita, 66
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não sendo diferente no Brasil atual. A observância dos contextos e das especificidades das localidades é importante para compreendermos essas situações. Continuando com as análises referentes à obra Quarto de Despejo conectando com o fato de ter sido escrita às vésperas da Ditadura Militar, transcreve-se o que pontuou a autora no dia 20 de maio: [...] ... Quando cheguei do palacio que é a cidade os meus filhos vieram dizer-me que havia encontrado macarrão no lixo. E a comida era pouca, eu fiz um pouco de macarrão com feijão. E o meu filho João José disse-me: - Pois é. A senhora disse-me que não ia mais comer as coisas do lixo. Foi a primeira vez que vi minha palavra falhar. Eu disse: - É que eu tinha fé no Kubstchek. - A senhora tinha fé e agora não tem mais? - Não, meu filho. A democracia está perdendo seus adeptos. No nossos paiz tudo está enfraquecendo. O dinheiro é fraco. A democracia é fraca e os politicos fraquissimos. E tudo que está fraco, morre um dia. ... Os politicos sabem que sou poetisa. E que o poeta enfrenta a morte quando vê o seu povo oprimido (p. 38-39, grifo nosso).
Na sua compreensão de mulher negra e favelada, que vivia o dia-a-dia no corpo de uma pessoa que sofre com as más decisões políticas, a democracia estava morrendo. A descrença na representação política e enfraquecimento das instituições perante o olhar social. De fato a autora estava correta, já que poucos anos mais tarde o autoritarismo se instalara. Sua visão política é de quem vive na pele com as contradições da (falta de) representatividade nos poderes da República. Ainda sobre a questão política, a fala da autora do dia 21 de maio: [...] Quem deve dirigir é quem tem capacidade. Quem tem dó e amisade ao povo. Quem governa o nosso país é quem tem dinheiro, quem não sabe o que é fome, a dor, e a aflição do pobre. Se a maioria revoltar-se, o que pode fazer a maioria? Eu estou ao lado do pobre, que é o braço. Braço desnutrido. Precisamos livrar a paiz dos politicos açambarcadores (p. 39, grifo nosso).
Percebe-se a questão de classe levantada pela autora, mais ainda, a questão da consciência de classe. No primeiro momento, fazendo a distinção entre quem governa e quem é governado e, posteriormente, sobre o apoio da autora 67
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destinado a parte oprimida da relação. Conforme argumentado pelo sociólogo porto-riquenho Ramon Grofoguel em recente entrevista, a decolonialidade é longeva. Para o autor, o pensamento decolonial é antigo, não pertence exclusivamente a determinados grupos de autoras ou autores, apenas passou a ser nomeado ou categorizado a partir de determinadas construções teóricas (GROSFOGUEL, 2019). No relato do mesmo dia 21 de maio, continua a autora: “[...] De quatro em quatro anos muda-se os politicos e não soluciona a fome, que tem sua matriz nas favelas e as sucursaes nos lares dos operarios” (p. 40). Evidente novamente a questão de classe. Voltando-nos para a estrutura jurídica, há várias passagens em que fica manifesta as contradições que essa conjuntura representa diante dos marcadores sociais dos sujeitos que com ela se atravessam. No dia 22 de maio Carolina de Jesus conta que precisou recorrer ao auxílio do Estado pois estava doente e retrata a forma com que foi recebida: [...] – Eu vim aqui pedir um auxilio porque estou doente. O senhor mandou me ir na Avenida Brigadeiro Luis Antonio, eu fui. Avenida Brigadeiro mandou-me ir na Santa Casa. E eu gastei o unico dinheiro que eu tinha com as conduções. - Prende ela! Não me deixaram sair. E um soldado pois a baioneta no meu peito. Olhei o soldado nos olhos e percebi que ele estava com dó de mim. Disse-lhe: - Eu sou pobre, porisso é que vim aqui. Surgiu o Dr. Osvaldo de Barros, o falso filantropico de São Paulo que está fantasiado de São Vicente de Paula. E disse: - Chama um carro de preso! (p. 42, grifo nosso).
Em seu relato revela de forma ostensiva a forma com que uma mulher negra e periférica é tratada pelo Estado com auxílio da estrutura jurídica. Em outra circunstância, sopesando a questão de gênero, evidencia, já na década de 1950, o que nos tempos atuais ainda se discute: “[...] E depois, um homem que não há de gostar de uma mulher que não pode passar sem ler. E que levanta para escrever. E que deita com lapis e papel debaixo do travesseiro. Por isso é que eu prefiro viver só para o meu ideal” (p. 49, grifo nosso). O pulsante debate sobre as escolhas das mulheres entre homens/família e carreira que se estende 68
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por décadas em nosso país. Ainda sobre a questão de gênero, evidencia Carolina de Jesus, no dia 7 de junho: “[...] Quando eu era menina o meu sonho era ser homem para defender o Brasil porque eu lia a Historia do Brasil e ficava sabendo que existia guerra. Só lia os nomes masculinos como defensor da patria. Então eu dizia para a minha mãe: Porque a senhora não faz eu virar homem?” (p. 5354, grifo nosso). A luz no quarto de despejo aqui é representada pelo recontar da história de forma descolonizadora, sendo que numa perspectiva feminista, configura-se no recontar a história negando o apagamento das mulheres, trazendo seus feitos e vivências, através das próprias mulheres. Novamente fazendo relação com à área do Direito, é possível verificar outra passagem da autora que a ela faz referência, quando se reporta ao Juizado de Menores na época, relato do dia 9 de junho. Segue: [...] Os meninos perguntaram o meu nome e sairam sorrindo para mim. Penso: porque será que os meninos que fogem do Juizado vem difamando a organisação? Percebi que no Juizado as crianças degrada a moral. Os Juizes não tem capacidade para formar o carater das crianças. O que é que lhes falta? Interesse pelos infelizes ou verba do Estado? [...] ... Quando existia a saudosa Rua Itaboca, eu digo saudosa porque vejo tantos homens lamentando a extinção da zona do meretricio. Quando eu ia lá e via as mulheres mais nogentas e perguntava: - Onde vocês foram criadas? - No Abrigo de Menores. - Vocês sabem ler? - Não! Porque? Você é padre? Eu parava a interrogação. Elas não sabiam ler, nem cuidar de uma casa. A única coisa que elas conhecem minuciosamente e pode lecionar e dar diplomas é pornografia. Pobres orfãs do Juiz! (p. 88, grifo nosso).
À época destes escritos, haviam estabelecimentos criados para o internamento de “menores7”, dos quais eram motivos de séries críticas. De todo modo, perduraram até 1941, quando foi criado o Serviço de Assistência a Me7
Tal expressão não mais se utiliza, desde o advento da Constituição Federal de 1988 e, posteriormente com o Estatuto da Criança e do Adolescente sob à luz da Doutrina da Proteção Integral.
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nores (SAM), com o discurso prestacional de proteção social aos institucionalizados. Durante um longo período o Estado se mostrou incapaz de prover política pública mesmo que mínima e, ainda, não deixava de exercer a repressão - o que só aumentava. Até 1964, o modelo jurídico do Direito do “Menor” subsistiu às diversas transformações do Estado brasileiro (CUSTÓDIO, 2009, p. 17). Axiomático o que demonstra Carolina de Jesus quando expõe a complexa relação entre Estado e sistema de justiça para com os marginalizados. Possível é a verificação da intersecção de classe e gênero. No dia 9 de agosto a autora exprime interessante diálogo com um trabalhador. Diz o seguinte: “[...] Um sapateiro perguntou-me se meu livro é comunista. Respondi que é realista. Ele disse-me que não é aconselhavel escrever a realidade” (p. 108). Ao que nos remete tal afirmação? Na contínua leitura de sua obra aparece novamente a questão do direito como instrumento repressivo do Estado: 11 de agosto. Eu estava pagando o sapateiro e conversando com um preto que estava lendo um jornal. Ele estava revoltado com um guarda civil que espancou um preto e amarrou numa arvore. O guarda civil é branco. E há certos brancos que transforma preto em bode expiatorio. Quem sabe se guarda civil ignora que já foi extinta a escravidão e ainda estamos no regime da chibata? (p. 108, grifo nosso).
Não há palavras suficientes que comportem a materialidade. Como repetidamente salientado nessa pesquisa, a obra de Carolina de Jesus foi gestada na década de 1950 e, infelizmente, seus relatos, não estão distantes do que se observa no hodierno contexto social brasileiro. O feminismo decolonial enquanto teoria e projeto civilizatório busca construir com o sensível olhar para as especificidades dos sujeitos que conjuntamente formam grupos e classes. Dentro deste cenário não existem hierarquias de opressões, mas sim, formas variadas de opressão conforme os marcadores sociais dos sujeitos. A fala da autora está familiarizada com o que lhe rodeia, com a sua realidade e com as pessoas ali presentes. Atrelar teoria e realidade, numa troca proporcional, reconhecendo dimensão e contribuição de ambos, é a luz no quarto do despejo. Seguem os relatos, no dia 16 de agosto: “[...] Antigamente era os operarios que queria o comunismo. Agora, são os patrões. O custo de vida faz o operario perder a simpatia pela democracia” (p. 112), nesta fala encontramos os ciclos infindáveis do Brasil. No dia 21 de agosto: “[...] O Brasil é predomina-
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do pelos brancos. Em muitas coisas eles precisam dos pretos e os pretos deles” (p. 115), grupos políticos que resultam em coletividade. No dia 5 de dezembro, o relato que introduz esse trabalho, onde conta a autora: “A Leila contou-me que a filha da Dona D. está presa, porque o seu esposo lhe pegou em adulterio com um baiano que tem dois dentes de outro” (p. 141). No Brasil, o adultério8 somente deixou de ser crime no tardio ano de 2005. Anteriormente, o Código Penal estabelecia pena de 15 (quinze) dias a 6 (seis) meses pra quem cometesse o crime de adultério. Considerando a lógica colonial e machista brasileira, há que se questionar para quem e para que este tipo penal servia. É possível verificar a questão moral rondando o Direito Penal. No dia 8 de dezembro a autora traz em evidência o fator da religião. Relata o seguinte: “[...] Quando o carro da capela vem na favela surge varios debates sobre a religião. As mulheres dizia que o padre disse-lhes que podem ter filhos e quando precisar de pão podem ir buscar a igreja” (p. 142). Num primeiro momento tal afirmação pode não causar incômodo, entretanto, com a devida atenção, é possível verificar um discurso violento para com as mulheres e, até para com as crianças, tendo em vista que a prática discursiva do líder religioso incentiva às mulheres engravidarem pois, teoricamente, a igreja forneceria alimento (o pão). A Análise Crítica do Discurso9 fornece esse tipo de cautela diante das práticas discursivas. Adentrando no ano de 1959, o relato do dia 18 de julho, quando a autora encontra em um dia de trabalho uma pessoa em situação de rua e, os dois travam uma conversa. O sujeito lhe diz: “[...] Porque falamos disso? O nosso mundo é a margem. Sabe onde estou dormindo? Debaixo das pontes. Eu estou doido. Eu quero morrer!” (p. 184). No dia 26 de julho Carolina de Jesus retrata típica situação de violência doméstica e de gênero. Era 19 horas quando o senhor Alexandre começou a brigar com a sua esposa. Dizia que ela havia deixado seu relogio cair no chão e quebrar-se. Foi alterando a voz e começou a espancá-la. Ela pedia socorro. Eu 8
Art. 240 do Código Penal. Revogado pela Lei nº 11.106, de 28 de março de 2005.
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Um dos objetivos centrais da Análise Crítica do Discurso é investigar quais as relações de poder e estruturas nos discursos. De acordo com Figueiredo, “os processos linguísticos são produto de estruturas de dominação, nas quais o poder é distribuído assimetricamente. Essas desigualdades de poder afetam a produção de textos, e, consequentemente, afetam, também, a produção de sujeitos sociais” (1997, p. 44), podendo afetar, do mesmo modo, as próprias relações sociais, entre sujeitos, e entre sujeitos e instituições (GONÇALVES, 2019, p. 151-152).
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não imprecionei, porque já estou acostumada com os espetaculos que ele representa. A Dona Rosa correu para socorrer. Em um minuto, a noticia circulou que um homem estava matando a mulher. Ele deu-lhe com um ferro na cabeça. O sangue jorrava. Fiquei nervosa. O meu coração parecia a mola de um trem um movimento. Deu-me dor de cabeça. Os homens pularam a cerca para impedi-lo de bater na pobre mulher. Abriram a porta da frente e as mulheres e as crianças invadiram. O Alexandre sal lá de dentro enfurecido e disse: - Vão embora, cambada! Estão pensando que isso aqui é a casa da sogra? Todos correram. Era uns 20 querendo passar na porta. As crianças, ele chutou. A Vera recebeu um chute e caiu de quatro. Os filhos da Joana foram chutados. Os favelados começaram a rir. A cena não era para rir. Não era comedia. Era drama (p. 184-185, grifo nosso).
Para finalizar esta parte da pesquisa, o relato do dia 13 de agosto, em que a autora conta sobre o dia em que a Companhia Cinematográfica Vera Cruz foi fazer um trabalho na favela e, então, fica evidente o desgosto da camada média assistindo a atenção voltada para os marginalizados. “[...] A favela superlotou-se. E os visinhos de alvenaria ficaram comentando que os intelectuais dão preferência aos favelados” (p. 190, grifo nosso), dentro desta afirmação, cabem diversos significados e interpretações.
4. O quarto de despejo como luz: visibilidade às desigualdades de gênero, classe, raça e sexualidade pela teoria feminista decolonial Quando analisada de forma minuciosa a obra de Carolina Maria de Jesus, percebe-se destacadamente a oportunidade de utilizar-se da mesma como instrumento de estudos em todas as disciplinas oferecidas nos cursos de Direito, tendo em vista a complexidade presente diante da materialidade pela autora apresentada. A construção de conhecimento jurídico por longo período e, atualmente, trabalha as perspectivas da universalidade e neutralidade, quando se percebe, por exemplo, por meio da obra Quarto de Despejo, que existem hie-
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rarquias sociais, especificidades de grupos sociais e que Estado e corpo jurídico lidam de foram distinta para com distintos grupos e classes sociais. Neste sentido, cabe o que vêm construindo as teóricas feministas decoloniais, que apontam para especificidades no tecido social que por vezes seguem ignoradas em razão do pretenso sujeito universal. As particularidades são ignoradas, para que assim não recebam a atenção e sejam tratadas de forma responsável pelas instituições e poderes. De acordo com Yuderkys Espinosa, “o feminismo decolonial se trata de um movimento em pleno crescimento e amadurecimento que se proclama revisor da teoria e da proposta política do feminismo dado que considera seu viés ocidental branco e burguês10” (p. 150). A autora, que se baseia nos ensinamentos preliminares e precursores de María Lugones – quem categorizou primeiramente o feminismo decolonial – fala em revisão da teoria e prática feministas, pra dar espaço e voz às mulheres e feministas afrodescentes e indígenas, que durante muito tempo sofreram com invisibilidade e inferiorização. Pontua ainda Espinosa que, o feminismo decolonial é um herdeiro direito do feminismo negro norte-americano, tendo em vista sua crítica à teorização feminista “clássica”, e sua proposta conceitual de um tratamento interseccional das opressões (ESPINOSA, 2016). Ochy Curiel, teórica feminista dominicana, em um de seus textos, busca responder à inquietante e emocionada pergunta: Qual é o feminismo que queremos impulsionar, viver, experimentar, como proposta transformadora e radical nos países pós-coloniais como os nossos, que surja desde nossas experiências, que nos permita questioná-las e ao mesmo tempo modificá-las e mudar este mundo por outro que não seja patriarcal, nem racista, nem heterossexista, nem classista?11 (2014, p. 325).
Responder tal questionamento tem sido um processo que vem sendo trabalhado coletivamente numa perspectiva de descolonização do feminismo. 10 Tradução livre da autora. Original: “El feminismo descolonial se trata de um movimiento en pleno crecimiento y maduración que se proclama revisionista de la teoría y la propuesta política del feminismo dado lo que considera su sesgo occidental, blanco y burguês” (ESPINOSA, 2016, p. 150). 11
Tradução livre da autora. Original: “¿cuál es el feminismo que queremos impulsar, vivir, experimentar, como propuesta transformadora y radical em países postcoloniales como los nuestros, que surja desde nuestras experiencias, que nos permita cuestionarlas y a la vez modificarlas y cambiar este mundo por otro que no sea patriarcal, ni racista, ni heterosexista, ni clasista?” (CURIEL, 2014, p. 325).
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Para tanto, como bem coloca Ramon Grosfoguel, é necessária cautela para que não transformemos no meio do caminho uma construção teórica e luta política em uma olímpiada das opressões, portanto, desviar de uma leitura individualista da interseccionalidade em detrimento da comunidade, para que não resulte numa divisão dos grupos oprimidos em vários subgrupos (GROSFOGUEL, 2019). O ideal seria desmontar essas categorias, entretanto a materialidade nos empurra para o muro das opressões, que existem, e mantém relação com os marcadores sociais. “As categorias, neste momento histórico, nos servem como balizas para identificarmos e compreendermos como a estrutura social hierarquizante exclui mais ou menos determinados corpos, para assim combater essa dinâmica” (GONÇALVES, 2019, p. 181). Assim, afim de maior compreensão sobre as principais categorias pensadas pela teoria decolonial, segue breve apanhado: Dentro deste intento crítico que comporta a percepção sobre a interseccionalidade das opressões, cabe discorrer sobre as principais categorias que trabalhadas pela teoria feminista decolonial; (1) A partir das teorizações feministas das últimas décadas, “gênero” tem servido como uma categoria útil, já diria Joan Scott. Em termos gerais, tem atendido como sinônimo de “mulheres”. Como é de se esperar, existe um grande debate a respeito dessa conceituação, entretanto, para este momento, cabe a categoria, tendo em vista o que ela representa no contexto geral. “Gênero” nos serve para discorrer sobre as implicações na relação entre os sexos e como se dá a partir da estruturação social hierarquizante; (2) A questão da “raça” recuperada pelas feministas negras, em que a partir de suas contribuições teóricas demonstram a hierarquia racial profundamente enraizada nos contextos, considerando a história de cada localidade e as consequências da ocorrência (ou não) da escravidão em cada território. Trazem como o apagamento daquilo que foi construído como “raça” tem servido à esta hierarquização racial e, assim, negado a exploração das contradições presentes nas conjunturas; (3) A questão da “classe” debatida há um tempo considerável, inicialmente pelos marxistas, e mais recentemente tem ganhado espaço nas discussões feministas. Há uma revisão nesse sentido, por exemplo, a reflexão sobre a questão do que foi configurado como espaço público e como espaço privado, além disso, o questionamento sobre a produção e reprodução do trabalho, aquilo que é ou não é considerado trabalho quando da contrapartida da remuneração ou não etc.; (4) O ponto da “sexualidade” que mais recentemente vem sendo aludido como marcador social quando da opressão vivida por determinados corpos. Há países extremamente perigosos para pessoas com orientação sexual 74
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distinta da imposta, como é o caso do Brasil. Por isso tal fator, para a nossa realidade, deve ser considerado. Existem vários outros fatores que localizam o ser humano no tecido social e que o farão sofrer mais ou menos opressão, entretanto, estes são os quatro norteadores para trabalharmos concepções aproximadas da teoria feminista decolonial (GONÇALVES, 2019, p. 62-63).
Aqui no Brasil a discussão acerca do feminismo decolonial é fresca, o debate no campo do Direito é ainda sensível (e urgente). Portanto, olhar verdadeiramente para a realidade brasileira é aplicar a luz no quarto de despejo e perceber os detalhes presentes que por longo período foram ignorados. A teoria decolonial, as teorias feministas, a teoria decolonial etc., podem, desta forma, servir como instrumentos. Nosso país, numa escala de 84 países analisados, é o 5º que mais mata mulheres no mundo em razão do gênero12. Mais da metade da nossa população é composta por pessoas negras13, e quais são os papéis a elas atribuídos na nossa sociedade? Um outro fator que deve ser levado em consideração e levantado em toda oportunidade é o de que quando os colonizadores chegaram neste território já havia habitantes nele; os povos originários, as populações indígenas, que foram dizimadas. Nós, feministas, nos planos teórico e prático, buscamos contribuir apontando e reparando desigualdades entre homens e mulheres, bem como as consequências dessa hierarquia de gênero imposta diante dos aspectos sociais, políticos, econômicos, culturais e etc. Para além do gênero, as questões de raça, classe e sexualidade, que por vezes se atravessam e caracterizam diversos tipos de opressões dentro deste enorme tela representada pelo sistema político e econômico vigente, representado pelo neoliberalismo como racionalidade, que individualiza as relações sociais e enfraquece os laços. Quando uma mulher negra e periférica nos apresenta a partir da sua perspectiva questões como a fome, a desatenção do Estado para com os marginalizados, a violência perpetrada pelo direito como instrumento deste sistema, tornando visível em sua fala o atravessamento de formas de opressão, nós todas e todos temos que ouvir. Atualmente fala-se em local de fala, que também se fale em local de 12 Fonte: Mapa da Violência 2015. Homicídio de mulheres no Brasil. Disponível em: < https://www. mapadaviolencia.org.br/pdf2015/MapaViolencia_2015_mulheres.pdf > Acesso em 24 abr. 2018. 13 Disponível em: < http://www.brasil.gov.br/noticias/cidadania-einclusao/2017/11/mais-da-metadeda-populacao-brasileira-se-autodeclaracomo-preta-e-parda > Acesso em 02 dez. 2018.
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escuta. De luta! Os relatos de Carolina de Jesus são a própria luz no quarto de despejo e é a partir da escuta sensível diante da vivência corajosa que se faz, também, o feminismo decolonial, e, assim, pensam-se estratégias políticas que combatam essas formas de discriminação.
5. Considerações finais O objeto do presente trabalho se configurou pela proposta de reflexão sobre os marcadores sociais apontados pela construção teórica do feminismo decolonial, considerando a realidade brasileira com a devida atenção e a gigante estrutura que representa a esfera do direito. Para tanto, foi colocada em análise, a obra Quarto de Despejo: Dário de uma Favelada, de Carolina Maria de Jesus. Tal obra que foi gestada na década de 1950 no Brasil e que demonstra as profundas especificidades da vida dos marginalizados no país, tornando visível em detalhes narrativos, as conexões das relações entre Estado, estrutura jurídica e seres humanos, tendo em vista suas particularidades, tais como gênero, classe, raça etc. A problemática da pesquisa visava responder se quando aplicada a luz no quarto de despejo os aspectos resultariam em negativos ou positivos para a sociedade em questão. Salientando novamente que a academia não apresenta resoluções para todas as questões e nem deve se propor para tanto, o intuito é o de, como anteriormente afirmado, sugerir reflexões que desencadeiem em propostas de lutas políticas. Assim, no primeiro momento se discorreu sobre a qualidade do Brasil enquanto país construído e dito periférico no cenário global, no segundo momento do trabalho foram apresentados trechos da obra da autora em evidência, numa tentativa de expor a materialidade demonstrada por ela própria, para que, desse modo, no terceiro momento, fosse empreendida a possibilidade de entrelaçamento entre os estudos feministas decoloniais e a realidade apontada. Verificou-se que a “luz no quarto do despejo” se dá por pessoas como Carolina de Jesus que através de suas vivências despertam todo um contexto social para a realidade, que, por vezes, insiste em renegar. Existem múltiplas realidades no Brasil e o Quarto do Despejo da autora constata isso. Considerando que o feminismo decolonial insiste no reconhecimento da construção do conhecimento comunitário, trabalhar com obras como essa, é fazer o feminismo decolonial. Discorrer as desigualdades de gênero, raça, classe e sexualidade através de alguém que viveu com grande parte destes marcadores sociais num país que ainda sofre 76
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com o ranço colonial, é fazer o feminismo decolonial. É repensar as estruturas, e, por consequência, repensar a estrutura que é o direito. É rever e apontar como determinados grupos são atingidos por essa máquina disciplinadora. Durante muito tempo o problema não foi enxergar, mas fechar a porta do quarto de despejo sem lhe prestar a devida atenção. Desse modo, aplicar a luz e observar em seu entorno os infortúnios ali presentes, não deve ser encarado como algo negativo, pelo contrário. Para apontar soluções, as adversidades precisam ser identificadas. E por mais que tais adversidades pareçam transbordar e a situação aparente insustentabilidade, tal circunstância pode representar um período de transição e, aí entramos todas e todos, num campo de disputa. Se somos um quarto de despejo, se somos a periferia, vamos lidar com a situação como periferia, ou seja, travar diálogos e lutas políticas desde as margens para as margens; desde uma voz da periferia – Carolina Maria de Jesus – para um país construído como periferia – Brasil – por teorias pensadas desde e para as periferias do mundo – feminismo decolonial.
6. Referências BRASIL. Decreto-lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Institui o Código Penal. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848compilado.htm > Acesso em: 06 de jun. 2019. ______. Lei nº 11.106, de 28 de março de 2005. Altera os arts. 148, 215, 216, 226, 227, 231 e acrescenta o art. 231-A ao Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 – Código Penal e dá outras providências. Disponível em: < http:// www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2004-2006/2005/Lei/L11106.htm#art5 > Acesso em: 06 de jun. 2019. CURIEL, Ochy P. Hacia la construcción de un feminismo descolonizado. In: Tejiendo de otro modo: Feminismo, epistemologia y apuestas escoloniales en Abya Yala / Editoras: Yuderkys Espinosa Miñoso, Diana Gómez Correal, Karina Ochoa Muñoz – Popayán: Editorial Universidad del Cauca, 2014. CUSTÓDIO, André Viana. Direito da criança e do adolescente. Criciúma, SC: UNESC, 2009. 77
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ESPINOSA, Yuderkys. De por qué es necesario un feminismo descolonial: diferenciación, dominación co-constitutiva de la modernidad occidental y el fin de la política de identidade. Solar |Año 12, Volumen 12, Número 1, Lima, pp.171. DOI.10.20939/solar.2016.12.0109. FIGUEIREDO, Débora de Carvalho. Gênero e poder no discurso jurídico. Revista de Ciências Humanas, Florianópolis, v. 15, n. 21, p. 37-52, jan. 1997. ISSN 2178-4582. Disponível em: . Acesso em: 12 de ago. 2018. GONÇALVES, Juliana Alice Fernandes. As legislações referentes às mulheres pós-Constituição Federal de 1988: da crítica feminista decolonial diante da nova racionalidade neoliberal. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina, 2019. No prelo. GOVERNO DO BRASIL. Mais da metade da população brasileira se autodeclara como preta e parda. Assuntos. Cidadania & Inclusão. 2017. 11. Fonte: Governo do Brasil, com informações do IBGE, da EBC, da Fundação Cultural Palmares, do Governo de Alagoas. Publicado: 10/01/2018. Disponível em: < http://www.brasil.gov.br/noticias/cidadania-e-inclusao/2017/11/mais-dametade-da-populacao-brasileira-se-autodeclara-como-preta-e-parda > Acesso em 02 dez. 2018. GROSFOGUEL, Ramon. ¿Qué es la teoría decolonial? | Con Ramón Grosfoguel. Itacat Ràdio. Disponível em: < https://www.youtube.com/watch?v=1d6Mn8plgX 8&fbclid=IwAR2XtxAcxrVGXYdSyl0j7dA8Pk-eVkuD8YMfv-dWPxR0Pc3x5RjSbem2xLw > Acesso em: 06 de jun. 2019. JESUS, Carolina de. Quarto de despejo: diário de uma favelada. Editora Átira. 1º Edição, 2014. WAISELFISZ, Julio Jacobo. Mapa da Violência 2015. Homicídio de mulheres no Brasil. Disponível em: < https://www.mapadaviolencia.org.br/pdf2015/ MapaViolencia_2015_mulheres.pdf > Acesso em 24 abr. 2018.
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Masculinidade como Critério Comportamental de Avaliação nas Instituições Militares Clara Lucia Claudino dos Santos Fantini1 Gabriela Pinheiro2
Introdução Este artigo questiona como a masculinidade, enquanto projeto de gênero, se insere como referencial comportamental masculino nas instituições militares. A partir de estudos teóricos e históricos, analisa-se um fato recente que ocorreu em um concurso militar brasileiro, no qual um conceito de masculinidade como coibição emocional e romântica é utilizado como critério de avaliação para a vaga de cadete, e como tal fato se relaciona com perspectivas já concretizadas no meio social. Para tanto, traz-se a construção da masculinidade dentro de um contexto binário de gênero, em que o seu conceito é somente existente em contraste com a feminilidade. Ademais, apesar de a masculinidade como termo utilizado neste artigo se basear na visão estereotipada dominante do masculino, reconhece-se que a masculinidade não é só uma, mas várias, em meio a um contexto interseccional de interações sociais. Ainda, coloca-se a percepção da masculinidade pela teoria feminista e da sua relação com homens pró-feministas e teorias masculinas. Ademais, a estereotipação das características masculinas e femininas é tratado neste artigo como forma de cristalizar a construção social de moldes de gênero que regem a sociedade e, consequentemente, o Direito. Desse modo, tem-se uma ideia da compatibilidade entre a estrutura social e as instituições, 1
Graduanda em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina. E-mail: clarafantini@gmail. com. Telefone (48) 99653-4475.
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Graduanda em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina. E-mail: gabriela.pinheiro19@ hotmail.com. Telefone (55) 99947-9946.
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incluindo a instituição militar, que historicamente compactua na disseminação de um estereótipo de masculinidade.
2. Masculinidades e binarismo de gênero O estudo das masculinidades, entendidas pela Teoria dos Papéis (role theory) como a internalização do papel de gênero masculino (CONNELL, 2005), perpassa necessariamente pela análise da construção de gênero em sua forma binária. Isso porque conceito “masculinidade” é inerentemente relacional e só existe em contraste com a feminilidade (CONNELL, 2005). Para Lígia Amâncio, o que dá sentido ao ser homem ou mulher é justamente a distinção binária atribuída aos sexos, que conforma uma diversidade de crenças e comportamentos na teia social (AMÂNCIO, 2017). Essa distinção binária, por sua vez, está fortemente atrelada à expectativa de comportamento do sexo (CONNELL, 2005). A diferença biológica entre os sexos, especificamente a dos órgãos sexuais, é tida como justificativa naturalizante das diferenças entre os gêneros. Com efeito, a construção da diferença anatômica dos sexos, fundamento da visão natural distintiva, é também construção de uma visão social, o que nos leva a uma relação circular de pensamento (BOURDIEU, 2002). Isso significa dizer que o gênero não é fixado anteriormente à interação social, mas no seu núcleo. Assim, não se trata de normas existente que são passivamente internalizadas, mas de um complexo processo de monte, desmonte e remonte das próprias convenções através da prática social (CONNELL, 2005). A ideia de um papel de gênero efetivamente masculino remonta aos debates do século XIX, com o florescimento de uma doutrina científica da distinção inata entre os sexos, em resistência à emancipação feminina (CONNELL, 2005). O homem, para Simone de Beauvoir, não precisa recorrer ao sexo para se definir como indivíduo, enquanto a mulher tem sua individualidade sempre atrelada à coletividade da categoria “mulher” (AMÂNCIO, 2017). Dessa forma, a evidência da força de ordem masculina é a dispensa de sua justificação e de se enunciar em discursos legitimantes (BOURDIEU, 2002). Leva-se em conta que a divisão dos sexos é algo tão normalizado, que encontra-se operante em estado objetivado nas coisas e em toda a esfera social, funcionando inclusive como esquemas de percepção, pensamento e ação (BOURDIEU,
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2002). Se a ideia de papel de gênero é conectar uma norma cultural à uma posição na estrutura social (CONNELL, 2005), papel de gênero masculino o conecta à sua posição dominante e hegemônica. A ordem social, então, tende a autenticar a dominação masculina sobre a qual se alicerça, inclusive através da distribuição de atribuição de atividades entre os sexos (BOURDIEU, 2002).
3. Teoria feminista e teoria masculina Dos movimentos de libertação das mulheres e de defesa dos direitos dos anos 60 e 70, nas instituições ideológicas materializou-se um universo das diferenças de sexo, no qual aos homens incumbiria o favoritismo e a supremacia e às mulheres a subalternidade e a realidade da injustiça (MARQUES, 2017). As primeiras teorias feministas, segundo Gardiner, eram defensivas, no sentido de atribuir aos homens responsabilidade pela desapropriação e manutenção das desigualdades. Dessa forma, a misoginia faz parte da base sobre a qual se desenvolveu a teoria feminista, que por sua vez ajudou a definir a masculinidade (MARQUES, 2017). A masculinidade como tema-questão tem fundamento em desdobramentos de pautas feministas e estudos de gênero, com focos na problemática da igualdade entre homem e mulher (MATOS, 2001). Ou seja, há o foco na posição estrutural do homem na sociedade, a partir de estudos sobre o controle de homens sobre governos, corporações, melhores empregos, e meios da violência, entre outras circunstâncias que levaram as demandas femininas a serem rejeitadas (CONNELL, 2005). Na sua origem, o feminismo funde as noções de homem e patriarcado, equivalendo-os como sinônimos (NOLASCO, 1993). Dessa forma, a Teoria Gay e a Teoria Feminista compartilham a ideia de que a masculinidade é fundamentalmente ligada ao poder, organizada para a dominância e, por isso, resistente à mudança. Em variadas formulações teóricas, a masculinidade é virtualmente equivalente ao exercício do poder (CONNELL, 2005). Por outra perspectiva, há uma concordância de homens pró-feministas de que a organização rígida do gênero é prejudicial tanto para homens quanto para mulheres, visto que afeta também os homens subordinados (AMÂNCIO, 2017).
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Isso decorre do fato de que há um dinamismo de relações sobre as quais o gênero é construído, ou seja, há também relações entre os diferentes tipos de masculinidades, que são ilustrados dentro das relações de aliança, domínio e subordinação (CONNELL, 2005). Destarte, a colaboração entre teoria feminista e estudos da masculinidade é desejável, dado a hegemonia e dominância de certas masculinidades, que insistem em defender sua naturalidade e manutenção (AMÂNCIO, 2017).
4. Estereotipação A partir das décadas de 70 e 80 se vê um aumento considerável do número de publicações nos EUA, Canadá, Inglaterra e França que envolvem a problemática da condição masculina, baseadas análises fenomenológicas e psicológicas da condição em que se encontram os homens (NOLASCO, 1993). Em uma acepção moderna, masculinidade significa os resultados comportamentais de um tipo de pessoa (CONNELL, 2005) a partir de representações categoriais do sexo, fortemente ligada a estereótipos que não só resultam dos valores do sistema social, como são também adaptativos, e por isso resistentes à mudança (AMÂNCIO, 2017). O conceito, porém, não pode ser compreendido senão na sua forma relacional: a masculinidade só existe quando em contraste com a feminilidade. Isso significa dizer também que o objeto “masculinidade” não se apreende isoladamente, mas como um aspecto de uma estrutura maior. A partir de uma visão dinamizada, visualiza-se masculinidade e feminilidade como projetos de gênero (CONNELL, 2005). O ser homem, nesse âmbito, é aquele que é diferente da mulher, aquele que não se associa às suas “características”. Então, o feminino torna-se pólo central de rejeição, que caso não seja combatido, oferece o risco de tratamento igual ao que a elas é oferecido (WELTZER-LANG, 2001). De um lado, há um esforço aplicado aos meninos que pretende os virilizar, retirando-lhes qualquer traço de feminilidade. De outro, um trabalho aplicado às meninas de constituição por uma via negativa, a partir da qual se define suas faltas, e não suas virtudes, que só podem se afirmar através de um processo de dupla negação (BOURDIEU, 2002). Desde cedo, á instigado aos homens valorizar o sexo como meio de reprodução do modelo de comportamento masculino e não como uma possibilidade de expressão pessoal. Adicio82
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nado a isso, também se aprende a caracterizar as mulheres e sua sensibilidade como caótica, difusa, instável e indigna de crédito (NOLASCO, 1993). Esse cenário pode ser representado por uma das ideias centrais da Teoria dos Papéis, no seu formato de instrumental e expressiva dicotomia, que tem por tem da ideologia patriarcal os homens como racionais e as mulheres como emocionais (CONNELL, 2005). Dos valores que se agregam aos meninos na sua construção, se vê a crença na sua superioridade como gênero, a disciplina, a autoridade moral e familiar, a valentia, a coragem e a identificação com a hierarquia (NOLASCO, 1993). Já dizia Angela Davis que o homem do século XIX, ao ter sua virilidade contestada, teria se levantado em defesa de sua masculinidade (DAVIS, 2016).
5. Masculinidade no âmbito legal Quase todos fenômenos que permeiam o interior de nossa sociedade apresentam certa generalidade e interesse social, mas nem todos acontecimentos humanos podem ser chamados de social. É fato que leis como as do direito agem no sentido de impedir um ato, mas máximas puramente morais também coagem, de forma menos violenta, através da consciência pública. Logo, em uma perspectiva durkheimiana os fatos sociais são as maneiras de agir suscetíveis de exercerem sobre o indivíduo uma coerção exterior (DURKHEIM, 2007). Nesse contexto, de acordo com Durkheim, é através do direito público que se torna possível estudar a maioria de tendências que não são elaboradas pelos indivíduos, mas que penetram neles através de uma imposição social (DURKHEIM, 2007). Desse modo, percebe-se pela lei positivada uma forma de buscar entender o comportamento social, por meio de uma relação em que as máximas morais buscam formar o direito ao mesmo tempo em que esse cristaliza a moralidade, sendo o direito também um fato social. No Código Napoleônico de 1804, é explícito no artigo 213, a enunciação do regime de assimetria do binarismo de gênero. O artigo, que prescreve que o homem deve dar à sua mulher proteção enquanto ela lhe deve respeito e obediência, atribui legalmente ao homem a função de proteger enquanto relega à mulher a ordenação de obediência (OLIVEIRA, 2004). Trata-se, assim, de um vínculo claro entre as normas morais da masculinidade e da ordem legal, em que a lei formulada dentro da cultura chamada por Derrida de falocêntrica seria um dos momentos da imposição masculina que regeria a condição feminina (SILVA, 2004). 83
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Desse modo, as leis apoiam e estimulam a valorização social do lugar simbólico representado pela masculinidade, consolidando o poder masculino ao expressar a condição legal desse. Sanções punitivas inscritas em diversas leis, destinadas àqueles que não se enquadrem dentro dos moldes desenhados para comportamentos masculinos legitimados socialmente, e outros instrumentos jurídicos, visando intimidar os que não se comportam com preceitos de uma masculinidade hegemônica, são sinais de uma estreita ligação da esfera jurídica com uma máxima moral. Historicamente a letra da lei forneceu possibilidades para que a vigilância de um comportamento masculino ideal funcionasse, exemplo disso é a margem para a arbitrariedade dada ainda hoje em algumas nações contra a homo-orientação, na sua condição de contratipo ao ideal masculino, sem contar nações em que é efetivamente declarada crime. Tais noções baseiam-se na valorização da adequação moral ao ideal masculino heterossexual socialmente legitimado (OLIVEIRA, 2004). Contudo, presencia-se em diversas partes do ocidente uma série de mudanças nas leis que favoreciam de modo explícito o exercício do ideal masculino, dando indícios de que esse ideal passa a ter menos legitimidade do que em séculos passados e que as mudanças no regime de poder social concretizam alterações no domínio jurídico. Para atestar tal fato há o Código Civil Brasileiro de 2002, que retira do homem uma série de prerrogativas de seu poder no âmbito familiar. Ainda assim, em vários espaços da vida social o poder masculino se mantém e provavelmente se manterá por algum tempo, tendo reflexo no que se espera da ação masculina (OLIVEIRA, 2004). A desconstrução, como oferecida por Derrida, pode ser pensada como uma operação em se dizer o que não se espera, traduzindo o medo que é ter o falo colocado em questão (SILVA, 2004).
6. Masculinidade e militarização Um dos motivos pela masculinidade hegemônica se manter também se dá pela normalização de comportamentos socialmente caracterizados como masculinos. Na constituição do patriarcado ocidental, apesar de variações em espaços e culturas, percebe-se a cristalização de identidades de gênero; um dos mais claros estereótipos encontra-se nos senhores feudais, vassalos do rei e detentores de extensões territoriais e populações, incluindo mercenários. 84
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Continuadamente na lógica bélica, já que é através da instituição patriarcal que se exercia o poder (LUGARINHO, 2013), percebe-se que a formação dos Estados modernos teve um papel chave para configurar tais comportamentos, tendo em vista que para a constituição e manutenção da soberania e da autonomia de uma nação foi necessária a criação de exércitos nacionais. Os Estados europeus reconheceram de pronto essa necessidade e a atenderam por meio de legiões de mercenários (OLIVEIRA, 2004). Além disso, aprovações de alistamento militar compulsório, como no caso da França, fez com que soldados se sentissem em ação por uma causa nobre; ou seja, pela defesa de sua pátria, algo que só seria possível ao mostrarem devoção ao seu país através de sua virilidade e de atos de coragem. Relacionava-se, então, cada vez mais, as noções de militarização, nacionalismo e masculinidade (OLIVEIRA, 2004). Desse modo, não era apenas a defesa da pátria que constituía as identidades masculinas, mas também a defesa da sua honra, que apensar de um conceito abstrato, pode ser compreendida pelo grau de comprometimento ao seu soberano. A honra, segundo Joane Nagel, regia uma relação imediata entre masculinidade e nacionalismo concomitantemente ao desenvolvimento do estado nação (LUGARINHO, 2013). Reitera-se, ainda, que os soldados franceses vinham de todas as classes sociais e, desse modo, a imposição de ideais masculinos ultrapassava as distinções de classe e valia para toda a nação (OLIVEIRA, 2004). O doutrinamento militar é um poderoso agente de socialização, já que além de alcançar toda a nação, ocorre em um sistema relativamente fechado, em que o meio de controle é utilizado em conjunto com uma valorização de comportamentos que reforçam a imagem masculina (ARKIN; DOBROFSKY, 1978). Assim, a luta em torno da defesa da nação permitia o papel do “guerreiro” e disseminava uniformemente pela população masculina a ampla valorização dos ideais de masculinidade (OLIVEIRA, 2004), de modo que: A construção da masculinidade moderna tem lugar não somente dentro de um panorama de sociedade da classe média, mas também em consonância com o surgimento de uma nova consciência nacional. A nação adotou o ideal de masculinidade como seu próprio: os heróis revolucionários franceses lutavam para defender La Patrie [...] os mais nobres ideais da virtude masculina são percebidos na guerra, da mesma forma que se dizia que as nações alcançavam a sua capacidade de grandeza apenas após um longo e sangrento conflito. […] Porém, sempre foi o naciona85
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lismo que exaltou o estereótipo masculino como um de seus meios de autorrepresentação (MOSSE, 1996, p. 52-53, tradução nossa).
O estímulo da formação militar, impulsionado pelos projetos expansionistas e climas belicosos entre os países e com ênfase no heroísmo e destemor diante a morte, fez com que lidar com a dor e o perigo ultrapassasse a preparação para a guerra, mas também fosse um exercício da autêntica masculinidade (OLIVEIRA, 2004). Desse modo, ao construir o herói nacional como um estereótipo, seus valores de honra, bravura, domínio das paixões e obstinação tornam-se explicitamente masculinos (LUGARINHO, 2013). O Exército e as Forças Armadas são historicamente vistos como mantedores das masculinidades militares, que abarcam os estereótipos do bravo e forte. A instituição militar é permeada pelo paradigma androcêntrico como mantedor do patriarcalismo e da ordem de gênero superior masculina (GONÇALVES, 2018). Não é um choque que dos valores que se agregam aos meninos na sua construção, se vê a crença na disciplina, na autoridade moral e familiar, na valentia, e na coragem (NOLASCO, 1993). Como diz Welzer-Lang: O pequeno homem deve aprender a aceitar o sofrimento - sem dizer uma palavra e sem “amaldiçoar” - para integrar o círculo restrito dos homens. Nesses grupos monossexuado se incorporam gestos, movimentos, reações masculinas, todo o capital de atitudes que contribuirão para se tornar um homem (WELZER-LANG, 2001, p. 463).
Nas décadas de 1940 e 1950, a masculinidade hegemônica representava homens com atributos de força, capacidade e com deveres de envolvimento com o trabalho (MATOS, 2001). Bourdieu já dizia que a moral da honra masculina pode ser definida como o olhar de frente e a postura ereta, a que corresponde a um militar. Além disso caberia aos homens realizar os atos breves, perigosos e espetaculares, além de praticar o homicídio e a guerra (BOURDIEU, 2002). Tem-se demonstrado para homens que ocupam posições de comando em instituições militares que as relações de poder têm servido para benefício de um pequeno grupo, em detrimento das necessidades individuais geral. Se formula premiações, castigos e outros instrumentos institucionais que submetem o indivíduo face à ambição do prestígio (NOLASCO, 1993).
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Observando agora o espaço português e, mais precisamente, o Brasil colônia, percebe-se que é através da instituição do patriarcado colonial brasileiro que a metrópole pôde exercer poder sobre a população e o território, garantindo a submissão das terras coloniais (FREYRE, 1986). A partir disso, garantiu-se a superioridade do homem sobre a mulher e do homem europeu sobre os homens não europeus, institucionalizando as oposições a partir de que o que não se coloca em função do padrão masculino, europeu e branco deveria ser subordinado, feminilizado e/ou marginalizado (LUGARINHO, 2013). Assim, por meio de guerras e da luta pela independência, houve a manutenção do ideal de masculinidade na busca do herói nacional refletido no homem branco e europeu. Historicamente percebe-se a influência que a doutrina militar exerce na identidade de gênero masculina e a influência que a masculinidade pode exercer na militarização. No Brasil, a masculinidade é incorporada ao treinamento dos soldados das Polícias Militares ao aspirarem a imagem idealizada do guerreiro. Desse modo, são forçados a se submeter a duros treinamentos, forjando policiais sob uma violência militar e androcêntrica, que reflete um contato com a sociedade civil também violento e sexista (GONÇALVES, 2018). Para as forças armadas, há uma importância cultural da manutenção de uma definição particular de masculinidade. Dentro das instituições, portanto, há uma configuração de gênero de recrutamento, promoção e divisão laboral. A hegemonia - masculina - só se estabelece, então, quando há uma correspondência entre culturais ideias e o poder institucional. Os homens, nessa configuração, ganham um dividendo do patriarcado em terno de honra, prestígio e direito de comandar. As instituições são substancialmente, e não apenas metaforicamente, genderizadas (CONNELL, 2005). É fato que as Polícias Militares brasileiras são algumas das mais violentas do mundo. A política de formação dos soldados se baseia no herói nacional, do ideal militar clássico de total aniquilação e destruição do inimigo, ideal que se perpetua pelas mãos dos policiais militares brasileiros (GONÇALVES, 2018). Isso pode ser percebido quando até mesmo em um concurso para cadete, em que concorrem homens e mulheres, masculinidade é um critério para avaliação psicológica, como será tratado a seguir.
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6.1. Masculinidade como critério de avaliação A masculinidade como abordada neste artigo, enquanto estereótipo de gênero, visualiza-se nas avaliações militares, tanto implícita, quanto explicitamente. Especificamente, pode ser vista no fato de um concurso para cadetes da Polícia Militar do Paraná de 2018, que teve a masculinidade como um dos 72 critérios da avaliação psicológica (PAVANELI; BARRETO, 2018). O critério foi descrito como “capacidade de o indivíduo em não se impressionar com cenas violentas, suportar vulgaridades, não emocionar-se facilmente, tampouco demonstrar interesse em histórias românticas e de amor”. Tabela 1 – Critério de masculinidade
C29
Conformidade
Capacidade de o indivíduo aceitar a sociedade como ela é, respeitando e acreditando no cumprimento das leis, buscando a aprovação da sociedade e ressentindo-se com o não conformismo dos outros.
C30
Extroversão
Habilidade do indivíduo em descrever-se como expansivo, sociável, acessível, de facilidade de contato com desconhecidos e grupos
>=Regular
C31
Masculinidade
Capacidade de o indivíduo em não se impressionar com cenas violentas, suportar vulgaridades, não emocionar-se facilmente, tampouco demonstrar interesse em histórias românticas e de amor
>=Regular
C32
Empatia
Habilidade do indivíduo em ser empático, prestativo, generoso e altruísta
>=Regular
Dominância
Capacidade de o indivíduo apresentar sentimentos de autoconfiança e o desejo de controlar os outros, influenciar ou dirigir o comportamento deles através de sugestão, sedução, persuasão ou comando
>=Médio
Afago
Capacidade de o indivíduo buscar apoio e proteção; o quanto um indivíduo espera ter seus desejos satisfeitos por alguma pessoa querida e amiga, deseja ser afagado, protegido, amado, orientado, perdoado e consolado, além da necessidade de constantemente ser protegido de sentimentos de abandono e ansiedade, insegurança e desespero.
=Médio
Fonte: G1 PR. Disponível em: . Acesso em 20 nov. 2018.
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Tendo em vista que o concurso era aberto tanto para homens quanto para mulheres, a própria titulação do critério já perpassa por uma discriminação de gênero. A Polícia Militar, em nota, reiterou que teria o objetivo de “avaliar a estabilidade emocional e a capacidade de enfrentamento” (PAVANELI; BARRETO, 2018). “Não emocionar-se facilmente, tampouco demonstrar interesse em histórias românticas e de amor” mostra-se como evidência da atribuição estereotipada de gostos e atividades, não de estabilidade emocional, como foi afirmado. Ademais, outro detalhe do edital é o critério da Amabilidade, o qual é exigido um baixo nível, descrito como “a capacidade de expressar-se com atenção, compreensão e empatia às demais pessoas, buscando ser agradável, observando as opiniões alheias, agindo com educação e importando-se com suas necessidades”. Tabela 2 – Critério de amabilidade
C12
Amabilidade
Capacidade de expressar-se com atenção, compreensão e empatia às demais pessoas, buscando ser agradável, observando as opiniões alheias, agindo com educação e importando=se com suas necessidades
>=Baixo
Fonte: EDITAL nº 01-CADETE PMPR-2019. Disponível em: . Acesso em 20 nov. 2018.
Em nota, a Polícia Militar ainda afirma que “envida esforços, juntamente com toda a sociedade civil, para combater qualquer atentado aos direitos civis dos cidadãos” (ROSSINI, 2018). Exigir pouca “capacidade de expressar-se com [...] compreensão [...] buscando ser agradável” parece evocar costumes bárbaros ao invés de combater atentado aos direitos civis dos cidadãos, indo ao contrário das mudanças de poder social que vem acontecendo e refletindo no sistema legal. Nesse sentido, é demonstrado no edital a concretização dos estereótipos de gênero e da relação entre masculinidade e militarização. No momento em que se dá mais relevância a um critério baseado em uma construção social de que o cadete não deve ser uma pessoa romântica em detrimento de outro que exige educação e empatia às demais pessoas, há uma intenção de ter pessoas com um perfil mais violento na polícia. Além disso, a linguagem utilizada no edital pode afastar mulheres de tentarem concorrer a vaga, gerando uma discriminação sexista. 89
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Pressionados pela Aliança Nacional LGBTI+ (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transexuais, Travestis e Intersexuais), pelo Grupo Dignidade, por membros do Conselho Regional de Psicologia do Paraná, pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) Paraná e pela comunidade em geral, a Polícia Militar do Paraná publicou a retificação do edital com a troca do termo “masculinidade” para “enfrentamento” (ROSSINI, 2018). Também houve a alteração na descrição do termo, em que foi retirado o trecho “tampouco demonstrar interesse em histórias românticas e de amor”. Tabela 3 – Critério de enfrentamento C31
Enfrentamento
Capacidade de o indivíduo em não se impressionar com cenas violentas, suportar vulgaridades e de não emocionar-se facilmente.
>=Regular
Fonte: EDITAL nº 01-CADETE PMPR-2019. Disponível em: . Acesso em 20 nov. 2018.
O Ministério Público do Paraná também encaminhou um ofício pedindo explicações acerca do critério de “amabilidade”. Apesar disso, não houve mais modificações no edital (AZEVEDO, 2018).
7. Conclusão Por meio deste artigo procurou-se explanar que, em meio à uma sociedade construída sob formas binárias de gênero, as instituições e as interações sociais participam como criadoras e como criadas do ciclo de imposição das normas culturais. O papel de gênero masculino, portanto, cria-se e recria-se em conexão com a sua posição socialmente dominante, legitimado pela ordem cultural-social. A masculinidade, nesse contexto, é organizada para a dominância e em sua base, ligada ao poder. Também buscou-se demonstrar que é possível fazer uma análise de como as instituições positivas de direito, assim como as máximas morais, conformam e se formam a partir das normas de comportamento sociais. Assim, o direito possui claramente um vínculo com as normas da masculinidade, de 90
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forma a formular-se em meio a uma cultura falocêntrica, que legitima a imposição masculina. Isso dito, a masculinidade e o poder social masculino se perpetuam através das instituições, inclusive da instituição militar. De uma forma geral, o doutrinamento militar participa como agente socializador e se instaura em meio a uma cultura de valoração dos estereótipos masculinos de bravura, força e restrição sentimental. Não é por acaso que o herói nacional é o soldado clássico. Isso fica claro no exemplo analisado em que a masculinidade como supressão emocional e desinteresse em romantismo torna-se critério de avaliação em um concurso para cadete, no qual concorrem tanto homens quanto mulheres. As estruturas sociais tendem a se manter, principalmente por quem nelas se encontra em posição de privilégio. Não só os movimentos feministas, a partir de seus estudos e desdobramentos, como toda a comunidade que se impôs frente ao acontecimento do edital mencionado são evidência de que há um enfrentamento das normas sociais dominantes. A desconstrução é um processo de negação da vigência.
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Direito Brasileiro: Discurso, Método e Violências Institucionalizadas Grazielly Alessandra Baggenstoss1 João Manuel de Oliveira2
Direito e discurso Na ótica feminista, o direito é analisado pela categoria de gênero, enquanto um discurso que, pela autoridade, pretende-se legítimo para construir o sujeito político mulher, atestar as desigualdades sociais e, assim, promover a manutenção do binômio mulher-homem. O direito, enquanto um discurso uníssono, pretende-se à verdade na medida em que silencia e desqualifica a experiência e a pluralidade das mulheres e o conhecimento de feministas (Smart, 1999). E isso é feito em um convencimento científico, em que apresenta um próprio método, uma determinada linguagem e em sistema de resultados específicos (Smart, 1999). Na consideração de que o direito perfaz-se enquanto ciência, a qual se filia Smart, esta se afasta da concepção de Foucault, o qual considera o direito como um instrumento regulatório da era pré-moderna, pois se encontraria atado ao “regime de poder que antecede o crescimento da epistéme moderna” (Casaleiro, 2014). Assim, não se adequaria à concepção de discussão de ciência, conhecimento e verdade. No entanto, para este estudo, o Direito será considerado um discurso equivalente tanto a uma técnica de governo, quanto a 1
Doutora e Mestra em Direito pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC; Doutoranda em Psicologia no Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UFSC; Professora lotada no Departamento de Direito da Universidade Federal de Santa Catarina atuando na Graduação e Pós-graduação em Direito; Coordenadora Líder do Lilith: Núcleo de Pesquisas em Direito e Feminismos – CNPq/UFSC.
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Pós-Doutor na área da Psicologia Social do Gênero e Sexualidade no ISCTE-IUL; Doutor em Psicologia Social e Organizacional - Inst. Sup. de Ciências do Trabalho e da Empresa (2009), Mestra em Psicologia Social e Organizacional - Inst. Sup. de Ciências do Trabalho e da Empresa (2003). Atualmente é investigador auxiliar, integrado do CIS-IUL, Instituto Universitário de Lisboa. Professor Visitante do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC.
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uma esfera científica (tal como é apresentada na academia). Aqui, discurso jurídico encontra um lastro procedimental supostamente autêntico pela ciência – o que o promove a uma esfera de definição da verdade, de conhecimento e de um modelo a ser seguido3. Esse método “científico” confere uma prevalência do modelo indicado pelo direito como o mais legítimo e, ainda, o verdadeiro ou o correto. Desse modo, “poder, conhecimento e verdade estão intimamente ligados: eles produzem-se mutuamente” (Casaleiro, 2014). E, mais que isso: além da pretensão de verdade, o discurso jurídico também avoca para si o arquétipo da salvação, apresentando-se como o legítimo para corrigir erros e para promover o ideal de justiça (Smart, 1995). Assim, articulam-se as acepções do direito enquanto ciência e técnica de governo, em que o modelo de sujeito determinado positivamente é aquele o alvo da biopolítica, o sujeito das suas margens, é o que remanesce com a necropolítica, enquanto todos estão internamente controlados a partir dos significantes disciplinadores da contemporaneidade. No viés feminista, a partir de um discurso neutro da igualdade, escondem-se as desigualdades estruturais da cultura e da sociedade havidas na pluralidade de mulheres, visto que o sujeito político mulheres, contempladas no ordenamento jurídico, não alcança as que resistem no racismo estrutural e institucional, nem na discriminação de classe ou de orientação sexual. O silêncio do ordenamento jurídico brasileiro quanto a mulheres em suas marcações (e cicatrizes) de raça, classe e orientação sexual invisibiliza a suas existências. Aí
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Em tal viés, tem-se o discurso jurídico como atrasado com relação a outras ciências humanas. No direito, ainda perdura a ideia de verdade, enquanto outras áreas permeiam seus estudos por probabilidades, narrativas, racionalidades de consensos e opiniões. Contudo, o atraso não é desidioso: faz-se necessário, para o seu próprio discurso, o recurso ao argumento de autoridade, de onde emanaria o poder de solução de conflitos. Na configuração do Estado brasileiro, assim, o argumento de autoridade adviria do embasamento à lei, em razão do sistema representativo, o qual, por sua vez, conferiria legitimidade à atuação estatal por ser resultado de um processo de discussão política do povo (mesmo que por meio de representantes). Além da falibilidade do sistema representativo, vê-se que os atores estatais (sejam judiciais, policiais ou políticos) utilizam-se do argumento de autoridade em seu nome pessoal, como se à pessoa em exercício do poder tivesse, intrinsecamente, os poderes ditos estatais.
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se tem o modelo determinado da branquidade4 e da heteronormatividade5. Tal invisibilidade já é uma violência, a qual possui a função de disfarçar as violências havidas na materialidade do meio social. A estas mulheres, resta a necropolítica. E, a todas, o controle imposto pelo modelo de mulher neoliberal6. Na pretensão da universalidade e de legitimidade do direito, o próprio ordenamento jurídico brasileiro é fundado em conceitos modernos ocidentais (como estado, democracia, direitos humanos, entre outros) que representam a universalização de uma determinada forma de organização e interação sociais – o que, de um prisma sistêmico, observa-se que eventualmente pode produzir o silenciamento de saberes, práticas, convivências e modos de existir que não se enquadrem com o discurso universal. Isso porque, na compreensão de Foucault, uma das consequências do discurso universal/universalizante é a imposição de uma verdade como universal, ao passo em que encobre e invisibiliza existências e saberes (Foucault, 2002).
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Branquitude caracteriza-se “como um estágio de conscientização e negação do privilégio vívido pelo indivíduo branco que reconhece a inexistência de direito a vantagem estrutural em relação aos negros. Já a nomenclatura branquidade, toma o lugar que até então dizia respeito a branquitude, para definir as práticas daqueles indivíduos brancos que assumem e reafirmam a condição ideal e única de ser humano, portanto, o direito pela manutenção do privilégio perpetuado socialmente”. Cf. Jesus, 2018; Edith Piza, 2005.
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O padrão característico desses critérios identitários, veiculado pelo sistema mainstream, é a heteronormatividade, a qual se consubstancia em um conjunto de agências, informais e institucionalizadas, por meio de discursos, valores, práticas e procedimentos, por meio das quais a heterossexualidade e suas consequências são impostas e vivenciadas como a única opção natural e legítima de expressão, assim como aquilo que entendemos como algo de mulher ou algo de homem – feminino/ masculino. Cf. Junqueira, 2010.
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Uma proposta neoliberal de mulher é aquela que - performatizando a feminilidade em um grau representativo de sensualidade (sem vulgaridade) a partir do uso de tecnologias médicas, cosméticas, vestuárias, cibernéticas, etc. – performatiza a ideia de capacitismo, principalmente pelo sucesso profissional; independência, por tomar decisões por si ou por sua família (é a super-heroína, em sobrecarga abusiva de demandas); competitiva nas esferas profissionais e pessoal, em concorrência com outras mulheres, especialmente em razão do padrão estético. Se tiver prole, logo deve retornar ao formato de corpo de antes da gravidez ou melhor; se envelhecer, deve-se se pautar pela ideia de beleza da juventude infinita, com produtos e procedimentos anti-aging (Sobre a temática, cf. WOLF, 1992). A proposta releva, ainda, que o padrão estético, apesar da aceitação da diversidade pela cooptação do mercado, ainda mantém-se na figura branca europeia.
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Tal forma ampla de organização, embasada no discurso jurídico, estabelece o molde de um sujeito universal, revestido pelo manto da verdade, como se tempo e espaço fossem fatores inexistentes e não necessários para a própria concretização do ser. Em função disso, há o que se denomina de ponto zero, que representa uma conjecturada observação neutra sobre o mundo – sem o devido questionamento de quem a realiza. No âmbito jurídico, trata-se da mesma observação a partir de padrões que se entendam pretensamente neutros também. Esse hipotético início epistêmico das formas jurídicas confere o poder de construção de ordens que é considerada legítima pelo Estado. No entanto, as planificações jurídicas acerca de existências e formas de existir não são neutras, pois se tratam de prescrições devidamente localizadas em tempo e espaço, dirigidas a um determinado grupo social que se funda em peculiaridades culturais, morais, econômicas, etc. E outorgar um caráter neutro a normas impregnadas de concepções valorativas, além de silenciar outras formas de existência e interação, é ocultar casuais interesses e objetivos da formatação jurídica tida como universal. Nisso, o discurso tido como verdade é resultado da construção da articulação das regras poder e da fluidez das práticas discursivas, encampando o seu aspecto linguístico e jogos estratégicos de ação e de reação e de insurgências (Foucault, 2002). É nesse ponto que os modos de existir e co-existir silenciados, denominados por Foucault (1999) como “saberes sujeitados”, são tidos por conhecimentos folclóricos, ou locais, quiçá até risíveis, pois não são legitimados pelo discurso padronizador – ainda com o reforço coercitivo do aparelho estatal. Assim, por via de consequência, nasce a hierarquização dos saberes, em que o discurso universal, enquanto legitimado, é mais valorado; e os demais, que não estejam de acordo com as exigências da verdade, são desconsiderados – pela exclusão do seu conhecimento, pela forma jocosa (e desrespeitosa) ao serem mencionados ou pelo repúdio violento (Foucault, 1999).
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2. Delineamento para uma teoria feminista do Direito Desde a década de 70, especialmente nos Estados Unidos, o Direito, pelo cenário mencionado, passa a ser questionado, por diversas frentes feministas, enquanto pretensa ciência e saber acadêmico. Naquele país, então, conjugam-se, de forma inominada, construções teóricas produzidas por autora para tal fim. Na pluralidade, Catharine MacKinnon e Patrícia Smith denominam seu pensamento enquanto feminist jurisprudence; Carol Smart, Frances Olsen, Katherine Barlett, Nancy Levi, por sua vez, adotam, para suas críticas, a feminist legal theory (Campos, 2011) – uma expressão adotada por algumas autoras brasileiras também. Essas críticas pretendem perquirir sobre epistemologias jurídicas e os fundamentos filosóficos do pensamento jurídico ocidental moderno. O resultado desse exame infere que a comparação jurídica de tratamento igual (igualdade entre mulheres e homens) e de equivalência da desigualdade natural (mulheres e homens não são biologicamente ou culturalmente iguais) erra ao pontuar que tais sujeitos, construídos simbolicamente, apresentem peculiaridades essenciais que os identifique ou os diferencie, mesmo que de modo formal. Tal crítica fundamenta-se na concepção de que o binarismo conceitual mulher-homem são resultado e fator de retroalimentação de relações de poder (McCorker et al., 2000). Desse modo, o gênero, na teorização feminista, e seu reconhecimento enquanto categoria de análise elucidou a compreensão acerca dos sistemas sociais em geral. Nisso, passou-se ao exame de tais estruturas científicas, pretensamente neutras; nelas, verificou-se, portanto que as áreas de conhecimento, as formas de pesquisa e as disciplinas acadêmicas estavam engendradas e eram, por conseguinte, falaciosas na pretensão de objetividade. É em tal cenário que se verifica o engodo do discurso moderno cientificista, bem como a recrudescência da binariedade simbólica entre os gêneros. A compreensão de gênero aqui abordada, então, parte da concepção de De Lauretis (1989;2007), em que não se caracteriza como elemento essencial dos corpos, ou pertencente ou determinável, inexoravelmente, pela biologia. Gênero é compreendido, portanto, como um conjunto de efeitos produzidos nos corpos, comportamentos e relações sociais. Assim, o gênero é um elemento constitutivo das relações sociais, bem como uma forma basilar para conferir significações às relações de poder, a qual se constitui por meio de interações de legitimação e re99
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forços simbólicos recíprocos (Scott, 1990). Pelo gênero, a vida social é categorizada, conferindo representação a dimensões de poder e de politica, estruturação na divisão sexual do trabalho (Campos, 2011) e modelagem acerca das relações sociais, especialmente as pautadas pelo afeto. O gênero no prisma dicotômico, por sua vez, já denunciada pelo pensamento foucaultiano, também forma binômios que são sexualizados e hierarquizados: natureza-cultura, sexo-gênero, racional-irracional, ativo-passivo, pensamento-sentimento. Em tal concepção, o polo masculino é valorado de modo superior ao feminino, que remanesce (ou deve remanescer) submisso. Nesse sentido, enquanto racional e cultural, prioritariamente, o Direito enquadrar-se-ia no extremo masculino (OLSEN, 1995). Aqui, importante alertar que a configuração do direito enquanto na polaridade masculina – enquanto “masculino” – receberá críticas de algumas teóricas feministas, como Carol Smart. Para Smart, a compreensão de que o direito é masculino terá vinculação com o entendimento do feminismo radical, apontado como defensor de um essencialismo, que é criticado pelo pensamento feminista pós-moderno. E esse essencialismo refere-se não só ao enquadramento do direito como algo instrinsecamente masculino, mas também pela generalização e universalização conferida ao sujeito político mulher, em ocultação aos recortes de etnia, raça, classe, etc. (Smart, 1999)7. Como proposta de correição, Smart oferta a visão de que o “direito tem gênero” (Smart, 1999). Esse alerta serve, igualmente, para notar que o Direito propõe discursos que fomentam polaridades e hierarquizações entre os sujeitos a partir do gênero, por meio do simbólico. Assim, tem-se, pelo discurso jurídico, “inúmeras metáforas dualistas sobre o feminino e masculino” (Campos, 2011). No direito brasileiro, tal constatação pode ser percebida com (a) a inexistência de menção constitucional do termo “gênero”8 (somente com o termo “sexo”) (art. 5º, caput, CF); (b) a expressão constitucional de reconhecimento de entidade familiar9 e de união estável
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No mesmo sentido, a rotulação de o direito enquanto discurso sexista, será vinculado ao feminismo liberal e receberá crítica pela mesma razão.
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Apesar disso, há o Decreto nº 8.727/ 2016, que dispõe sobre o uso do nome social e o reconhecimento da identidade de gênero de pessoas travestis e transexuais no âmbito da administração pública federal direta, autárquica e fundacional.
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No art. 226, da Constituição Federal Brasileira: “§ 3º Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua
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entre homem e mulher; a distinção temporal e teleológicas entre as licenças maternidade e licenças paternidade. Pode-se, ainda, fazer-se referência a outras normas que não induzem a polarização diretamente entre mulheres e homens, mas promovem a subjugação do corpo da mulher, como a normatização da laqueadura10 e a proibição do aborto; bem como as normas que tratam de igualdade, visto que desconsideram as estruturas culturais e sociais que orientam as relações intersubjetivas. Percebe-se que o direito atua no reforço do simbolismo de gênero e, também, como estrutura fortalecedora da binariedade de gênero e silenciadora de uma possível identidade de gênero. E mais: o reforço e a estrutura são lidas como legítimas para promover as distinções e omissões mencionadas, visto que o discurso jurídico advém da esfera do Estado. A operacionalização do direito, em tal raciocínio, é reconhecida como uma produtora de sentidos que formam elementos inteligíveis de interação no meio social. Assim, esse mecanismo estatal produtor de sentidos, formata a definição de homens e mulheres e, assim, é qualificado como uma tecnologia de gênero (Lauretis, 199411; Smart, 2000). Por esse prisma, o discurso jurídico constrói e indica quem é o sujeito político, bem como, especificadamente, identifica quem são as mulheres. Tudo isso pelo poder da autoridade estatal, como mencionado, a qual, pela explicação da dogmática brasileira, é explicada por teorias contratualistas modernas, como a de Hobbes: que confere ao ser humano um caráter essencialista maléfico, que deve ser controlado por um ente exterior à sociedade (o Estado, denominado Leviatã). Daqui advém variados adágios que conformam o direito e a prática jurídica: o Estado é um mal necessário e é a ele que compete o monopólio da violência. Nisso, o discurso jurídico pode ser compreendido como um elemento comunicativo redutor “[...] da complexidade das práticas sociais e das lutas a uma lógica unitária que trabalha principalmente através do direito para reconversão em casamento. § 4º Entende-se, também, como entidade familiar a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes”. 10 No art. 10 da Lei n 9.263/1996, que trata do Planejamento Familiar:“§ 5º Na vigência de sociedade conjugal, a esterilização depende do consentimento expresso de ambos os cônjuges”. 11 De Lauretis (1993) explana que a arte cinematográfica promove a modelagem e posicionamento de homens e mulheres dentro da matriz heterossexual, pois suas imagens se transformam em modelos prontos ao olhar da pessoa expectadora.
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produzir um corpo social unificado” (Lacombe, 1998: 158). Além disso, não só enquanto determinante do sujeito mulher, mas também como um complexo de significados de gênero, classe, raça e orientação sexual. Enquanto conhecimento científico, o direito apresenta-se com um método próprio de validar e aplicar seu conhecimento, a partir de métodos específicos e dentro de uma esfera de discursividade pautada no argumento de autoridade. Seus resultados invocam a justiça, a segurança jurídica, a eficácia das normas, a ordem e o progresso – categorizações advindas do pensamento moderno. É um campo de conhecimento que, frente a outras áreas científicas, pode ser classificado como não-ciência (Smart, 1995). Contudo, isso não obsta o discurso científico, que invoca o conhecimento-modelo a partir da neutralidade da verdade, da sobriedade e da autoridade. Esse é o seu discurso. De seu método jurídico, portanto, invoca-se a objetividade e a imparcialidade (esta, categoria presente na legislação brasileira12) para legitimar a aplicação dos textos legislativos (elaborados pelos supostos representantes do povo) pelos magistrados. Estes, por sua vez, analisam os casos concretos colocados ao seu exame a partir dos fatos (relevantes para o direito) que forem provados, ao prisma de regras e princípios e pela escolha de precedentes e por exercício hermenêutico (Smart, 1995). Tal esforço não é objetivo: depende da própria subjetividade e historicidade do magistrado, bem como de seu próprio conhecimento jurídico. Mas tal método de alcançar a verdade dos fatos (mesmo com o reconhecimento de que os fatos, por parte das matrizes históricas, não podem ser reconstituídos e sua narração se perfaz, justamente, em articulações retóricas inócuas), juntamente com a estrutura e discurso de autoridade, alicia o local de estabelecimento da verdade, enquanto universal. É nesse palco que outros conhecimentos (não jurídicos) são subalternizados e o reconhecimento de tais, bem como de outras experiências, deve ser alcançado pela via jurídica. Nisso, o direito (reproduzido, nesse pensamento, por aqueles que o reproduzem acriticamente) desqualifica narrativas que não sejam jurídicas, tais como a do feminismo e as experiências das minorias/movimentos sociais, e também constrói autoritariamente o significado da realidade social (Smart, 1995).
12 Com a parcialidade, os atores judiciais podem ser classificados em suspeição ou impedimento e afastados do caso, por conta própria ou determinação superior.
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O direito, em seu formato científico, reveste-se ainda como discurso autoritário e com o monopólio da violência, elaborado e retroalimentado por um sistema social de marcadores de gênero, raça, classe, fomenta o processo de fixação de gênero (binário), produzindo e fortalecendo a hierarquização entre os sujeitos (Smart, 1994:65).
2.1. Teoria feminista para reforma jurídica O direito é estratégia de produção de gênero e se retroalimenta com ele, em quanto sistema comunicativo. Sua pauta generificada está assente no binarismo mulher-homem, bem como pela heteronormatividade e pela branquidade13. Em tal compasso, o direito produz, reproduz e se fortalece com o o significado de masculino e feminino, masculinidade e feminilidade. Aí, em contato com outras formas de conhecimento, contribui para a formação de um “senso-comum da diferença”, que sustenta sectarismos enfraquecedores de coletivos e sexualidades estanques da subjetividade que o feminismo busca questionar (Smart, 1999). Essas relações discriminatórias e limitantes da existência humana são promovidas pelo caráter patriarcal, racista, homofóbico e classista de tal ordem universal. Segundo Carol Smart, para fins estratégicos de alteração do simbólico mencionado, o direito deve ser pensado como um lugar para se discutir os significados de gênero em âmbitos de análise de discurso e de linguagem (Smart, 1994). Desse modo, ter-se-ia uma tentativa de cooptação do direito à temática feminista. Desse prisma, essa tarefa é desafiada pelo contexto político e social, que também fomentam a produção e são retroalimentados pelas concepções generificadas de mundo; bem como pelo próprio sistema de práticas jurídicas e judiciais, que incita críticas em razão do modo hierarquizado com que é conduzido pelos pensamentos tecnicistas burocráticos. Além disso, é questionada em sua efetividade, considerando as concretudes do meio social, que se encontram fortalecidos na estruturação binária por muito tempo. Nesse desafio, até agora, Smart assevera, também, que o direito mais promove mais prejuízos do que benefícios às mulheres (Smart, 1995). Ao não considerem tal inferência, afirma que os movimentos feministas estão buscando 13 O silêncio sobre a questão de raça denuncia a sua omissão.
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exatamente uma salvação no direito, reivindicando normatizações sobre suas questões fáticas e formas de garantia (Smart, 1995). No entanto, não se pode confiar que o direito fornecerá uma solução para a violência que o próprio discurso legitima (Smart, 1995). Nessa análise, a autora forma a categoria juridogenic, que representa a forma de “conceptualizar o mal que o direito pode gerar como consequência das suas operações” (Smart, 1995: 12). Para tanto, defende que a história do feminismo na sua pretensão de reforma do direito escancara em fracassos. Casaleiro (2014) sugere, como fonte empírica de exemplos: [...] veja-se, por exemplo, os esforços sucessivos de Catharine MacKinnon para rever a lei da violação ou os decretos anti-pornografia. Porém, se considerarmos outras áreas ou outros países, as reformas não foram necessariamente um fracasso, como é o caso, em Portugal, da revisão do Código Civil, concretamente do Direito da Família, entre 1976-77 (Decreto-Lei nº 496/77, de 25 de novembro), a institucionalização da Comissão da Condição Feminina (Decreto-Lei nº 485/77, de 17 de novembro) e da atual Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género, ou a Lei da igualdade no trabalho e no emprego (Decreto-Lei nº 392/79, de 20 de setembro), no período após a revolução democrática de 1974 (Monteiro e Ferreira, 2012). E, embora a capacidade efetiva de influência destes movimentos tenha vindo a reduzir-se em Portugal (Monteiro e Ferreira, 2012), a despenalização do aborto, pela Lei nº 16/2007, de 17 de abril, e autonomização do tipo legal de crime intitulado violência doméstica, aprovada pela Lei nº 59/2007, de 4 de setembro, mais recentemente, provam que os esforços dos movimentos não foram em vão (Duarte, 2007, 2012; Santos e Alves 2009)14.
14 Casaleiro (2014) argumenta, fundamentadamente, que “[...] o fracasso do direito em legitimar as reivindicações das mulheres não significa que os esforços feministas não sejam úteis noutros campos (não-jurídicos), podendo, inclusivamente, abrir caminho a reformas futuras do direito. Em Portugal, por exemplo, por um lado, na revisão do Código Penal que deu lugar à Lei nº 59/2007, de 4 de Setembro, a reivindicação das organizações de cariz feminista para a Lei adotar o conceito de violência de género, em vez de violência doméstica, não teve sucesso [...]. Porém, a alteração legal e as sucessivas campanhas têm contribuído para uma maior sensibiliza-ção da opinião pública em relação à violência de género e um aumento das denúncias. Por outro lado, a luta pela despenalização do aborto demorou mais de três décadas e só culminou após o referendo de 2007 [...]Neste sentido, acompanho Sandland (1995) que sugere a necessidade de resistir a uma leitura excessivamente pessimista das reformas legais. Ele argumenta que não há ninguém que não reconheça, por exemplo, que uma reforma tem valor simbólico, independentemente do seu “sucesso” em alcançar mudança material [...]”.
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Além de não considerar a reforma do direito como uma solução à questão feminista, Smart sugere que se evite “(...) o canto da sereia da lei” (Smart, 1995: 160). Isso porque as pretensões feministas, pelas suas peculiaridades, são inconcebíveis às construções jurídicas existentes, quais sejam as produzidas pelo método jurídico atual. No afã da pauta jurídica e pelo reconhecimento da verdade, a inclusão da agenda feminista no direito questionado demanda uma adaptação sistêmica, o que, definitivamente, limita e distorce os pleitos do movimento. Aí, diante da omissão frente às questões das mulheres, Smart (1995) afirma que a linguagem e o tecnicismo jurídicos são fundamentalmente antifeministas (1995) e, portanto, devem ser utilizados a partir das atenções mencionadas. Na estratégia de utilização do direito, ainda, Smart (1995) propõe que sejam reconhecidos e adotados as experiências e o conhecimento da esfera feminista, no lugar do uso de termos jurídicos, o que preservaria o direito como um discurso hegemônico. Os projetos de teoria jurídica que assim o fossem são cunhados de cumplices e de irrelevantes por Smart, pois há a fetichização do discurso no lugar de sua desconstrução. Neste ponto, em uma oferta de meta-análise, o feminismo deve investigar o discurso jurídico pretensamente feminista a fim de localizar o discurso patriarcal e promover um discurso feminista alternativo, para a constituição de um feminino de uma forma mais positiva. Essa postura de Smart, no entanto, é criticada por outras teóricas feministas. Para Hunter (2012), a compreensão do fundamentalismo antifemista é absolutista porque o método jurídico seria propenso às causas feministas e não tão nefasto quanto a que propõe a leitura de Smart. Na leitura de Casaleiro, ainda, Smart teria cedido “ao lado opressor do direito”, “menosprezando o lado libertador, emancipatório e de mudança social do direito”. Todavia, contrapõe-se, aqui, a tal posicionamento: a postura de Smart parece ser mais de visão estratégica e sabotagem do direito do que, necessariamente, desconsideração de sua importância ou aplicação.
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2.2. Uma forma de sabotar o discurso jurídico Na sequência de propositura da estratégia, a utilização do direito deve servir para a desconstrução do direito (em sua matriz universal). Para tanto, deve-se inicialmente questionar a definição do sujeito político mulheres, encampado pelo discurso jurídico (Smart, 1995). Além disso, deve-se pensar no feminismo como fonte de conhecimento para a compreensão jurídica (Smart, 1995). E não somente uma fonte de conhecimento, mas a fonte principal de experiências, a fim de promover a descentralização do direito enquanto ordenador da vida cotidiana (Smart, 1995). A isso, questiona-se o direito enquanto potencia em tudo, e não só para a concretização da justiça. Assim, suas consequências podem ser vistas sem a ilusão da justiça vingativa e dos mitos do monopólio da violência. Diante disso, o feminismo poderia “construir uma realidade alternativa à versão que se manifesta no discurso jurídico” (Smart, 1995), considerando que esse conhecimento é legítimo “[...] para redefinir os problemas das mulheres, que o direito muitas vezes vota à insignificância” (Smart, 1995). A descentralização do direito, ainda, ocorreria, na percepção de Smart, quando da adoção de estratégias não-jurídicas para investigação de fenômenos, para a formação de contradiscursos feministas. Em sua visão, o discurso jurídico “deve ser combatido a nível conceitual” (Smart, 1995). Aqui, Smart também é criticada em questões de práxis e teóricas. Casaleiro (2014) questiona “o que fazer com as mulheres que, diariamente, são colocadas perante o direito como rés ou vítimas, em processos criminais e, como testemunhas, em casos de direito de família?”. Citando Hunter (2012)”, ressalva que “em alguns casos a ação legal constitui a única via possível de escapar de uma situação extrema (por exemplo, o julgamento ou a expulsão) ou a única via de reparação de uma lesão (por exemplo, a discriminação)”. E questiona: “deve a estratégia feminista ignorá-las? E terá o combate a nível conceitual do direito efeitos pragmáticos por si só?” (Casaleiro, 2014). Na esteira de Hunter (2012), há a ressalva de que Smart critica o posicionamento universal do discurso jurídico, mas não assume a mesma postura em referência ao feminismo, como se somente o movimento pudesse extrair a verdade sobre as mulheres. Ainda, de Drakopolou (1997), veio a inquietação acerca de qual narrativa das mulheres, disponível fora do direito, que sirva de com106
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paração às construções construções jurídica. Finalmente, Sandland, afirmando ser inconcebível escolher entre a reforma do direito e a sua desconstrução – visto que esta poderia ser consequência daquela (Sandland, 1995) - aponta também para o fato de que é necessário o envolvimento com o discurso jurídico a fim de que outros códigos valorativos não minem o caminho já percorrido.
3. Direito brasileiro: violências institucionalizadas e reconhecimento de direitos Da leitura de Casaleiro (2014), a partir de Kapur (2006) e Smart (1999), deve ser reconhecido que o direito é um discurso complexo e contraditório, que não apresenta muita previsibilidade absoluta na sua operação, nem na produção de resultados, por funcionar de forma diversa e intrincada. Assim, deve-se reconhecer que o direito não apresenta uma verdade em si, bem como os feminismos também não. Apesar disso, defende que “o direito deve ser pensado como um local de luta sobre os significados de gênero”, conforme proposta estratégica já apresenta de Smart. Casaleiro (2014), ainda, alerta que se incorre em falsas generalizações, universalismos e até erros naturalistas ao se conceber o “[...] direito como um discurso poderoso, que desqualifica a experiência das mulheres e o conhecimento feminista e que produz e reproduz as identidades genderizadas e sexuais das mulheres”. Assim, com (Gavigan, 2000; Lacombe, 1998), avisa que a “a abordagem de Smart cai, igualmente, num determinismo, ao reduzir a complexidade das práticas sociais e das lutas a uma lógica unitária que trabalha, principalmente, através do direito para reproduzir um corpo social unificado, a mulher do discurso jurídico”. Defende, assim, que “[...] a estratégia feminista não deve correr o risco de fetichizar o direito”, bem como assevera que “as lutas feministas não devem ser travadas exclusivamente ou mesmo principalmente na arena jurídica”. Assim, Casaleiro compreende que o direito não é tão poderoso assim e que seria “apenas um local onde a hegemonia, ou nos seus próprios termos [...] deve ser desafiada” (Casaleiro, 2014). Aqui, no entanto, discorda-se de Casaleiro no que se refere ao questionamento sobre o poder da discursividade do direito, bem como acerca da pos107
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sibilidade de discussões acerca do significado de gênero no direito, a partir de recortes histórico-legislativos do direito brasileiro e do contexto político atual. Assim, verificar-se-á a potencialidade violenta do direito na produção de materialidades nefastas às mulheres. No que se refere ao Direito Civil, na perspectiva da mulher na família, os juízos axiológicos constantes na Constituição Federal de 1988 representam uma superação dos costumes e convenções sociais que fundaram o Direito Civil, especialmente o Direito de Famílias, que regulamentava a formação do núcleo familiar com o viés patrimonial. Conjugado ao caráter patrimonial, havia, igualmente, a predominância da necessidade de formação de prole, em que “as famílias formavam-se para fins exclusivos de procriação, considerada a necessidade do maior número possível de pessoas para trabalhar” (...) (Dias, 2010: 28). O controle desse modelo familiar firmava-se na figura do homem, enquanto marido e pai, o qual denominava-se como modelo patriarcal, normatizado pelo Código Civil de 1916, por inspiração legislativa europeia, especialmente francesa. Tal configuração familiar estava fundada na hierarquia, tendo o homem como figura de comando, e no patrimônio, transmitido hereditariamente em razão do vínculo paterno – assim como se ressaltava a importância do patromínico no nome das filhas e filhos, em detrimento ou mesmo exclusão do sobrenome matronímico15. Assim, ainda, exigia-se da família (e, consequentemente, de seus integrantes), a tríplice identidade: família-sexo-procriação (Dias, 2009: 178).
15 No campo religioso, particularmente, há um modelo normativo de mulher, advindo do século XIX, que traça a representação simbólica da mulher como uma pessoa que deveria nutrir as características de castidade e abnegação, a fim de se evitar o fomento da sexualidade feminina, que era considerado um perigo na época. O pensamento de sexo para a mulher considerada honrada está ligada à dessexualização do corpo: sob tal ideologia, a mulher não precisaria sentir prazer nas relações sexuais. Além disso, deveria manter a castidade, mesmo no casamento, de modo que deveria se relacionar sexualmente apenas para a procriação (PERROT, 2013). Ainda, “o desejo e o prazer eram reservados ao homem, o qual, segundo o discurso médico, era biologicamente voltado para a essência carnal por conta da virilidade”. Cf. PERROT, 2013, p. 75.
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Acerca da família, o Código Civil de 1916 atribuía efeitos jurídicos somente à família atualmente denominada como tradicional, consumada pelo casamento (formação formal) entre homem e mulher, em vínculo indissolúvel16. Como consequência, os relacionamentos situados fora dessa esfera, bem como os filhos e filhas havidos fora de tal configuração, eram invisíveis juridicamente - quando não considerados ilícitos, “rotulados com expressões pouco elogiosas – lembrem-se dos filhos adulterinos, bastardos, amásias e concubinas” (STF, ADI 4.277). Especificadamente à situação da mulher, conforme citado, a mulher era juridicamente categorizada como relativamente incapaz, para os atos da vida civil. Essa situação jurídica da mulher sofreu mudanças legislativas graduais, em virtude dos dinamismos sociais e necessidade de reconhecimento de igualdade nos contextos fáticos (destacados pela ocupação da mulher nos espaços públicos, como pelo direito ao voto, participação essencial no mercado de trabalho). Em 1962, a Lei nº 4.121, denominada como Estatuto da Mulher Casada, atribuiu capacidade de fato à mulher e administração de bens que lhes forem reservados. Ainda, pela Emenda Constitucional nº 9/77 e pela Lei nº 6.515/77, o casamento, antes considerado indissolúvel pela lei civil – exceto pela morte –, passa a ser considerado dissolúvel por meio do divórcio. Finalmente, em 1988, a Constituição Federal, passa a viger com o destaque à igualdade entre homem e mulher, pretendendo a quebra da hierarquização entre homem e mulher, em que esta remanescia em posição de subserviência e obediência. No intuito de quebra de valores ultrapassados, invisibilizadores e opressores, a Constituição Federal apresenta, expressamente, que “os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal são exercidos igualmente pelo homem e pela mulher” (§4º do art. 22617), o que se conflui com o inciso I do art. 5º da Constituição (“homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações”), na 16 Os dogmas religiosos sempre decidiram a definição e padrões comportamentais femininos. No caso do Brasil, vê-se o Catolicismo influenciando a representação simbólica feminina ao impor às mulheres a imagem da Virgem e Mãe. Para tanto, a adoção de uma linguagem mística para delinear o papel feminino como santo, anjo de bondade e pureza – todas características que as mulheres deveriam apresentar para serem dignas de coabitar com os homens e com eles gerar e criar filhos. Cf. BAGGENSTOSS, Grazielly A.; RAMOS, Gabriela Neckel, 2017. 17
Importante destacar que, assim, não se pretende excluir as relações homoafetivas do reconhecimento jurídico, mas que se pretende conferir posição de horizontalidade entre homens e mulheres dos relacionamentos heteroafetivos.
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estratégia de “reforço normativo a um mais eficiente combate àquela renitência patriarcal dos nossos costumes” (STF, ADI 4.277). Além disso, o § 5º do artigo mencionado também prescreve a equiparão entre homens e mulheres nos direitos e deveres conjugais, determinando a mais igualdade no interior da família18. Conforme compreensão do STF (ADI 4.277), Revela-se, então, a modificação paradigmática no direito de família. Este passa a ser o direito “das famílias”, isto é, das famílias plurais, e não somente da família matrimonial, resultante do casamento. Em detrimento do patrimônio, elegeram-se o amor, o carinho e a afetividade entre os membros como elementos centrais de caracterização da entidade familiar. Alterou-se a visão tradicional sobre a família, que deixa de servir a fins meramente patrimoniais e passa a existir para que os respectivos membros possam ter uma vida plena comum.
A constituição familiar, assim, não é mais uma instituição-fim em si mesmo, mas, sim, um ambiente que deve oferecer e garantir a dignidade de cada integrante. A inteligibilidade produzida pelo direito brasileiro, com tais normas, afetou os comportamentos de identificação do que seria uma mulher, no contexto brasileiro, bem como legitimou graves práticas sociais e jurídicas, tais como o estupro marital (ou débito conjugal) e a extinção de punibilidade, no caso de estupro seguido de casamento entre vítima e homem – o que não seria raro em virtude da pressão familiar e social, em virtude da “desonra”. Na esfera penal, então, remonta-se às Ordenações Filipinas, em que se tutelava a honra da mulher virgem e da viúva honesta. Em 1930, pelo Código Imperial, foram tipificados os crimes “contra a segurança e a honra”, observando a adequação da mulher aos bons costumes e colocando-a como único sujeito passivo desses delitos. A tipificação condizia à proteção à castidade e à expectativa de matrimônio, em que o casamento do agressor com a vítima constituía causa de extinção da culpabilidade (Zanatta, 2016). Na sequência, o Código de 1890 trouxe a primeira previsão de homens e mulheres como possíveis sujeitos passivos dos crimes sexuais, apesar do ainda distinto tratamento entre mulheres “honestas” e mulheres “públicas” e do 18 O § 4º do mencionado dispositivo admitiu os efeitos jurídicos das denominadas famílias monoparentais, formadas por apenas um dos genitores e os filhos. Por fim, o § 3º desse artigo expressamente impôs ao Estado a obrigatoriedade de reconhecer os efeitos jurídicos às uniões estáveis, dando fim à ideia de que somente no casamento é possível a instituição de família.
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crime de adultério como possível conduta a ser pratica apenas pelas mulheres (Zanatta, 2016). Sobre a qualificação, mulher honesta era: [...] não somente aquela cuja conduta, sob o ponto de vista da moral sexual, é irrepreensível, senão também aquela que ainda não rompeu com o minimum de decência exigido pelos bons costumes. Só deixa de ser honesta (sob o prisma jurídico penal) a mulher francamente desregrada, aquela que, inescrupulosamente, multorum libidini patet, ainda que não tenha descido à condição de autêntica prostituta. Desonesta é a mulher fácil, que se entrega a uns e outros, por interêsse ou mera depravação (cum vel sine pecunia accepta). Não perde a qualidade de honesta nem mesmo a amásia, a concubina, a adúltera, a atriz de cabaré, desde que não se despeça dos banais preconceitos ou elementares reservas de pudor (Hungria, 1956)19.
Em meados do século passado, pelo ainda Código Penal vigente, o crime de estupro foi tipificado com a indicação da vítima enquanto “mulher honesta”20 – em que pese a sua tipificação, em 1994 pela Lei n. 8.930, como crime hediondo. Somente em 2001, a Lei n. 10.224 (a qual também tipificou o delito de assédio sexual) eliminou o termo “mulher honesta” e, dentre outros, descriminalizou determinadas condutas (como os delitos de adultério e de sedução); retirou a extinção de punibilidade em caso de matrimônio entre a ofendida e o agressor (Zanatta, 2016). Em 2005, pela Lei 11.106, houve acréscimo ao art. 226, II, CP: instituiu o aumento de pena caso o cônjuge seja como um dos agentes do crime de estupro, confrontando e bloqueando a ignóbil concepção do estupro marital (Zanatta, 2016). Pela Lei Maria da Penha (Lei 11.340/06), a violência sexual passou a ser definida como “qualquer conduta que a constranja a presenciar, a manter ou a participar de relação sexual não desejada, mediante intimidação, ameaça, coação ou uso da força; que a induza a comercializar ou a utilizar, de qualquer modo, a sua sexualidade, que a impeça de usar qualquer método contracepti19 Assim, o julgamento e a determinação punitiva estiveram sempre vinculados a características subjetivas da mulher como vítima, analisando seu comportamento moral-sexual pregresso. 20 “Na exposição de motivos do Código de 1940, formulada por Francisco Campos, ele afirmou “Já foi dito, com acerto, que ‘nos crimes sexuais, nunca o homem é tão algoz que não possa ser, também, um pouco vítima, e a mulher nem sempre é a maior e a única vítima dos seus pretendidos infortúnios sexuais”. Disponível em: ” (Marília, 2016).
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vo ou que a force ao matrimônio, à gravidez, ao aborto ou à prostituição, mediante coação, chantagem, suborno ou manipulação; ou que limite ou anule o exercício de seus direitos sexuais e reprodutivos” (art. 7º, III) (Zanatta, 2016). A Lei n. 12.015/09, finalmente, alterou o nome do capítulo referente “aos costumes” por “dignidade sexual”, bem como reuniu o crime de atentado violento ao pudor e estupro em um único tipo penal e inseriu a concepção de estupro de vulnerável. Desse modo, tem-se um “novo paradigma de que a tutela penal deveria ter como objeto a liberdade e autodeterminação sexual do indivíduo, criminalizando condutas praticadas sem o consentimento de uma das partes e com danos a esta”(Marília, 2016), e não devendo ser questionadas condutas tidas por contrários a uma determinada moral social – o que não ocorre faticamente, ainda com a legitimidade de autoridades policiais e judiciais (Zanatta, 2016). No âmbito criminal, ainda, a regra geral é de criminalização do aborto, exceto na hipótese de risco de vida à mulher e de gravidez acarretada por estupro21. Em 2016, tal temática assumiu a discussão constitucional na Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal, em análise do Habeas Corpus 124306, em que se decidiu que aborto nos três primeiros meses da gestação não é crime (apenas para aquele caso), de modo a revogar a prisão de cinco funcionários de uma clínica clandestina, em voto do Ministro Luís Roberto Barroso, seguido pelos ministros Edson Fachin e Rosa Weber, alcançando a maioria da Turma. No item 25 da decisão, o relator apontou que há violação à autonomia da mulher pelo fato de que a criminalização censura a autodeterminação das pessoas, o que é assegurado a todos, homem ou mulher, e representa uma esfera que o Estado não deve interferir. Na linha desse raciocínio, “a autonomia do corpo da mulher representa o poder de controla-lo e tomar decisões relacionadas a ele, incluindo sobre uma gravidez, sua cessação ou não. Não cabe ao Estado tratar o corpo da mulher, nas semanas iniciais da gestação como um serviço à sociedade”. A discussão não está encerrada. Pela movimentação judicial, a constitucionalidade da criminalização do aborto será analisada de
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Foi decidido Pelo Supremo Tribunal Federal, na Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental n. 54, em 2008, sobre a possibilidade de interrupção de gravidez no caso de feto anencéfalo. Na oportunidade, entendeu-se que, não havendo a potencia de vida do feto, não haveria de se falar em aborto, compreendendo-se inconstitucional interpretação de a
interrupção da gravidez de feto anencéfalo ser conduta tipificada nos artigos 124, 126 e 128, incisos I e II, do Código Penal.
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modo amplo pelo Supremo Tribunal Federal, com efeitos a todos (erga omnes). Verifica-se, assim e ainda, que a criminalização do aborto no Brasil reflete o discurso da autoridade sobre o Estado ser legítimo para se derrogar no direito de seu corpo, tutelando-o como se território dele fosse. É a estatização do corpo das mulheres, subsidiado e reforçado pelo discurso jurídico. Quanto a decisão do Supremo Tribunal de Justiça acerca de temáticas generificadas (além do reconhecimento da união estável homoafetiva), tem-se, mais recentemente, o reconhecimento da identidade de gênero, esta de efeito erga omnes, pela Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) n. 4275. O caso, iniciado com a discussão sobre a possibilidade de retificação de nome e gênero de pessoas trans sem a necessidade de cirurgia de transgenitalização. Aqui, portanto, nota-se um cenário macabro, legitimado pelo discurso jurídico: o direito ao nome social e a consequente retificação nos documentos de identificação públicos (ou seja, produzidos e exigidos pelo Estado), quanto ao prenome e ao gênero22, somente ocorreria com submissão da pessoa à transgenitalização – sujeitando-a a intervenções sérias em seu corpo e, até lá, ao desrespeito quanto à sua própria identificação individual, familiar e social. Isso, ainda, em conjunto com a exigência de laudo ou parecer psiquiátrico ou psicológico atestando um “desvio de personalidade de gênero”. A decisão, considerada um avanço nesse sentido, em que houve o reconhecimento da identidade de gênero a partir da ideia de que sexo e gênero são compreensões da construção identitária da pessoa e que não contemplam vinculação com a sua genitália. Contudo, representa também os passos lentos do direito nas discussões de gênero, mantendo-se a posição, mesmo que tácita, da hegemonia da heteronormatividade, sem o enfrentamento de tal questão. Ainda na esfera de gênero, bem como de raça e classe, o direito brasileiro promove algumas ações afirmativas, intencionando o combate da desigualdade estrutural, especificamente a partir da legislação penal contra a violência de gênero (pela Lei Maria da Penha) e pelo sistemas de cotas, implantando no sistema representativo eleitoral e nos programas de ingresso ao curso superior. Em menção à raça, ainda, além da previsão, como crime, do racismo e injúria racial (cujo enquadramento depende da subjetividade da pessoa que está no poder decisório do direito, como magistrado e delegado), pouco ainda se dis22 Gênero este estratificado, pelo direito brasileiro, na binariedade.
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cute (ou, ao menos, se reconhece) acerca dos efeitos da própria escravidão e da branquidade subsequente. O silêncio (jurídico), aí, promove efeitos discursivos e materiais potentes na esfera social, que se encontra em luta de reconhecimento mínimo das violências até então também legitimadas pelo Estado. Também de forma profunda se observa a questão de classe, a qual, aparentemente, não existe no contexto jurídico brasileiro, de forma séria e elucidativa, sobre o local da classe trabalhadora no sistema político, econômico e ideológico. Quando mencionado, é termo expurgado discursivamente sob o argumento de que condiz com falas socialistas, comunistas, marxistas, esquerdistas, etc., as quais, desde plano, devem ser castradas – muitas vezes, pelo simples argumento de que sim, sem justificativa alguma (como se fosse justificado). O reforço dessa conduta castradora é legitimado em esferas políticas – estatais –, com a discussão sobre o Programa Escola Sem Partido23 (em esfera municipal, estadual e federal), em que, sob a justificativa de se pretender frear “a doutrinação marxista” havida nas escolas, estaria proibida a manifestação, em sala de aula, sobre temas políticos e relacionados a gênero, bem como se instituiria (a partir de tal lei) o direito dos pais a que seus filhos recebam a educação moral que esteja de acordo com suas próprias convicções. Frente ao exposto, concorda-se com Casaleiro que o contexto, tal como o direito, são âmbitos discursivos complexos. No entanto, pensar o direito como um discurso não tal poderoso e vislumbrá-lo como “apenas um local onde a hegemonia [...] deve ser desafiada” é um posicionamento que, aqui, se considera ingênuo.
4. Considerações finais O direito se pretende ciência, a partir de uma roupagem de imparcialidade, neutralidade, objetividade. O processo legislativo ajuda na obtenção de tal objetivo, visto que se configura como um expurgo de valores morais, políticos e ideológicos de determinadas normas, a fim de se tornem normas jurídicas, 23 Cf. BAGGENSTOSS, Grazielly Alessandra. Análise da pertinência jurídica do programa escola sem partido com base no critério da proporcionalidade e nos controles de evidência e justificabilidade aplicados pelo supremo tribunal federal. Revista de Argumentação e Hermenêutica Jurídica, v. 2, n. 2, 2016, Florianópolis, Index Law Journals. Disponível em Acesso em 30 maio de 2018.
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de autoridade estatal, com a legitimidade da violência. A análise dos casos concretos, para configurar um exame positivista, restringe-se à verificação de quem são as partes envolvidas, de modo limitado, sem considerar contextos familiares, comunitários, históricos, culturais. Os processos legislativos forma, então, um discurso incorporado na práxis jurídica: a pretensa neutralidade do ordenamento jurídico, com o fim de igualdade, liberdade, segurança, educação, vida. Contudo, esse metadiscurso esconde, do discurso jurídico, os valores ideológicos que não, não são expurgados pelo processo legislativo; bem como silencia questões estruturais do grupo social. Na sequência, a imparcialidade e a função de alcançar a justiça do magistrado também poderia torná-lo um Hércules. O magistrado, enquanto pessoa, obviamente também se forma por processos de subjetivação e, enquanto autoridade, performatizará tal condição, mas enovelado de concepções próprias e culturais. A pretensa neutralidade não ocorre. Nessa configuração de alta complexidade, o discurso do direito enquanto ciência é um articulado argumentativo que nos serve para o convencimento da verdade científica. Esse é o próprio discurso do direito, que, desse lado, torna-se técnica de governo com potencialidades biopolíticas e necropolíticas. Essa análise fica evidenciada a partir do exame do direito pela categoria gênero. Observando o discurso jurídico, seu método e pretensão científica, encontramos o entrelaçamento da heteronormatividade, da branquidade, do elitismo e do reforço da manutenção do status quo no modelo de sujeito proposto a um formato de vida neoliberal (em percepções individuais e concorrenciais) e quando do silêncio quanto a mulheres em suas marcações (e cicatrizes) de raça, classe e orientação sexual invisibiliza a suas existências. Assim, como mencionado anteriormente, a invisibilidade já é uma violência, que contém o condão de violências havidas na materialidade do meio social. Diante disso, mesmo que possível o desafio à hegemonia do direito, que é colonizada por ideologias políticas e econômicas que se vedam, massivamente, às materialidades produzidas do discurso, bem como à história que lhe é decorrente, por quanto tempo ainda teremos o método e o discurso jurídicos como legitimadores de violências contra os corpos que, pelas autoridades, não se enquadram no modelo ideal de racionalidade, verdade e justiça sugerido pelo pensamento moderno?
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O Direito é um Homem, Branco e Europeu: uma Análise do Ensino Jurídico na Universidade Federal de Santa Catarina sob o Viés de uma Teoria Epistemológica Feminista Decolonial Grazielly Alessandra Baggenstoss1 Beatriz de Almeida Coelho2
Introdução Nessa pesquisa, pretende-se analisar o currículo oficial do curso de graduação em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina, para verificar qual a epistemologia predominante no discurso jurídico local, partindo-se, para tanto, do exame das bibliografias básicas dos planos de ensino das disciplinas. Afinal, se considerarmos que a epistemologia define um campo e uma forma de produção de conhecimento, isto é, a maneira pela qual estabelece-se a relação sujeito-objeto de conhecimento e a própria representação de conhecimento como verdade com que operamos, deve-se prestar atenção ao movimento de constituição de uma epistemologia feminista (RAGO, 1998). Ciente da existência, ainda, dos currículos de ação e oculto, não se pretende lançar qualificações categóricas sobre o objeto de pesquisa, mas tão somente trazer o questionamento sobre tal e reflexão sobre seus efeitos. 1
Doutora em Direito, Política e Sociedade (UFSC), Mestra em Direito, Estado e Sociedade (UFSC), Doutoranda em Psicologia, com ênfase em Desenvolvimento Humano. Professora da Universidade Federal de Santa Catarina, atuante em Graduação e em Pós-Graduação em Direito, nas disciplinas de Direito e Feminismos, Hermenêutica Jurídica, Prática Jurídica e Metodologias do Ensino Jurídico e da Pesquisa. Pesquisadora Líder do Grupo de Pesquisa/CNPq “Lilith: Núcleo de Pesquisas em Direito e Feminismos pesquisa sobre sistemas sociais, epistemologias críticas e análise discursiva jurídica.
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Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina, na área de Historicismo, Conhecimento Crítico e Subjetividade. Graduada em Direito (CESUSC). Pesquisadora do Núcleo de Pesquisas em Direito e Feminismos Lilith.
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De plano, portanto, importa a explanação do que significa currículo para este trabalho. Currículo é um artefato político, de produção cultural e mediante prática discursiva, que comporta a organização do conhecimento oficial de determinada formação. De outro modo, pode ser reconhecido como o conjunto de conhecimentos teóricos, técnicos e práticos que serão ministrados no campo acadêmico para fins de formação educacional e profissional. Por esse prisma, alerta-se para o fato de que a formação educacional, especialmente no que se refere a uma profissão, não contempla somente os conhecimentos produzidos na área em específico, mas também os comportamentos e os sujeitos que manejam o instrumental profissional. O campo da educação formal, portanto, nunca é somente o aprendizado técnico, mas também, e especialmente, o aprendizado interacional entre pares. Nessa linha de pensamento, considera-se que a definição do currículo acima afirmada contempla o currículo oficial – o qual, como visto, não é integrado por toda a aprendizagem da formação acadêmica. Assim, surge a formação do que se chama de currículo oculto. O currículo oculto é formado pelas peculiaridades do campo acadêmico, as quais, extrapolando os aspectos daquele ambiente e do currículo oficial, contribuem e reforçam, implicitamente, aprendizagens sociais relevantes. Assim, aprende-se, do currículo oculto, atitudes, comportamentos, valores e orientações, especialmente o conformismo, a obediência, o individualismo (JUNQUEIRA, 2010, p. 209). Em uma perspectiva maior, há a interação dos currículos mencionados, a análise da trama do cotidiano acadêmico demonstra um complexo de situações e procedimentos pedagógicos e curriculares (ora mais explícitos, ora mais implícitos) intimamente atrelados a processos sociais reveladores de marcadores discriminatórios. O ambiente acadêmico, assim, pode formar e aprofundar “diferenças, distinções e clivagens sociais que interferem, direta e indiretamente, na formação, no desempenho escolar de cada um/a e na desigualdade da distribuição do “sucesso” e do “fracasso” escolar” (JUNQUEIRA, 2010, p. 210). É dessa percepção que surge a ideia de que, da interação entre os dois currículos, tem-se o que Junqueira chama de “currículo em ação”, tido como “a pluralidade de situações de aprendizagem (formais e informais, planejadas ou não, dentro e fora da sala de aula), no âmbito das quais constroem-se saberes, sujeitos, identidades, diferenças, desigualdades, hierarquias e aprofundam-se processos de marginalização e exclusão” (JUNQUEIRA, 2010, p. 209). É o que 122
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“ocorre de fato nas situações típicas e contraditórias vividas pelas escolas, com suas implicações e compreensões subjacentes, e não o que era desejável [...] e/ ou o que era institucionalmente prescrito” (GERALDI, 1994, p. 117). Na análise do presente escrito, portanto, a atenção será voltada ao currículo oficial, como forma parcial de se perceber a epistemologia produzida no local mencionado. Pelo viés epistemológico, atente-se que a epistemologia feminista, bem como o movimento feminista em si, têm produzido críticas contundentes ao modo dominante de produção de conhecimento científico e propõe um modo alternativo de operação neste âmbito. Se considerarmos que as mulheres trazem uma experiência histórica e cultural diferenciada da masculina é inegável que há alteração também na produção do conhecimento científico (RAGO, 1998). Partindo-se de tal panorama, faz-se apontamentos breves sobre as formas de interpretar e compreender as Ciências Humanas - diferindo-as das Ciências Naturais. As anotações são apoiadas especialmente nos ensinamentos trazidos por Gadamer e Dilthey. Segue-se à análise breve sobre os aspectos desse discurso universal e neutro do ensino jurídico no Brasil. Na sequência, expõe-se a metodologia utilizada na pesquisa, caracterizando-a e apresentando seu contexto, as disciplinas participantes e os procedimentos utilizados. Por fim, apresentam-se os resultados encontrados na bibliografia básica do curso e faz-se análise dos dados. Chega-se à conclusão de que a maior parte das disciplinas ofertadas no curso de Direito não indicam autoras mulheres em sua bibliografia. Também, são poucos os autores negros indicados. Nenhuma autora negra foi indicada no plano de ensino. Numa perspectiva decolonial, nota-se que as disciplinas dogmáticas – que pretendem fundar uma teoria do direito – são pautadas especialmente por autores alemães, italianos e portugueses. Quer dizer, é uma teoria importada da Europa.
2. As formas de interpretar e compreender as ciências humanas Uma aproximação da hermenêutica com a práxis científica já foi realizada por Wilhelm Dilthey, quando fez considerações acerca do procedimento científico nas diversas áreas do conhecimento. Dilthey entende que as ciências 123
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podem ser enquadradas em dois grupos distintos – no que diz respeito ao modo de se elaborar o conhecimento: as ciências da natureza e as ciências do espírito. O primeiro tipo contém as ciências formais e empíricas – matemática, física, química e biologia – que utilizam recursos fornecidos pela matemática e pela lógica. O segundo tipo é o das ciências que visam à análise da realidade humana (MARQUES, 2013). No âmbito das relações humanas, tem-se ações compostas por significados e um modo interpretativo é necessário para acessá-los. Esse modo interpretativo é, para Dilthey, o método hermenêutico (MARQUES, 2013). Na concepção desse autor, há nos seres humanos um sentido oculto, por trás de suas ações observáveis; algo interno que possibilita a compreensão das ações humanas em termos de pensamentos, sentimentos e desejos. Há a possibilidade de se conhecer não apenas o que um homem faz, mas as experiências, as memórias e, principalmente, os julgamentos de valor que o levaram a agir de tal ou qual forma (MARQUES, 2013). Neste sentido, o conhecimento no campo das relações humanas não é, como nas ciências naturais, meramente fenomenal e externo. Há um ciclo no qual as percepções levam aos pensamentos, que levam aos sentimentos, que levam aos desejos e às ações. Essas conexões são estruturas da personalidade individual e a união do entendimento de todas essas perspectivas individuais é a chave para entender profundamente os processos históricos. As experiências individuais podem despertar pensamentos e sentimentos e gerar ações de outras pessoas através da comunicação. Então, o padrão individual ramifica-se e torna-se o padrão de vida de grupos sociais, de nações e de civilizações. O processo histórico é um processo contínuo de interações desse tipo. Para entender um evento particular deve-se vê-la nesse tipo de contexto (SCOCUGLIA, 2003). É porque as pessoas vivem nessas condições que não podem ser formuladas leis gerais e universais, seja em relação ao indivíduo ou aos grupos sociais. As pessoas são inteligíveis em sua individualidade e é justamente essa singularidade que interessa ao pensador. A vida humana é mais complexa do que os fenômenos da natureza, especialmente porque todas as experiências são mediadas por escolhas, preferências, valores e julgamentos (SCOCUGLIA, 2003). Por essa razão, as Ciências Humanas devem constituir um corpo de disciplinas mais variado e mais dividido, o qual nenhum método ou princípio pode governar. As ciências humanas dependem da habilidade dos pesquisadores para 124
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entender o padrão estrutural da experiência e, a partir daí, ver o comportamento humano do interior. Deve-se levar em consideração os aspecto individualizado, particular e específico do comportamento (SCOCUGLIA, 2003). Gadamer, contudo, foi mais além: entendeu que “compreender” é de tal maneira constituído no ser humano como hermenêutica. Não há, pois, um método hermenêutico que constitua acesso à compreensão dos objetos próprios das Ciências Humanas. Há um acesso ao mundo mais fundamental que os acessos metodológicos das ciências, que é a interpretação originária do ser humano (MARQUES, 2013). E Gadamer (2012, p. 336) tem na analítica existencial heideggeriana sua inspiração inicial para construção desse pensamento. Ele apontava para o aspecto da finitude, presente em “Ser e o Tempo” de Heidegger, como elemento constitutivo do compreender. Porque o sujeito é finito e ocupa um lugar de múltiplas formas determinado pela história. Não pode fugir de sua historicidade e somente a partir desse lugar que o sujeito poderá desenvolver seu horizonte de compreensão. Não existe, pois, um lugar neutro e universal que o sujeito possa ocupar para partir sua atitude de compreender. E esse lugar de estar na história é relacionado com as diversas determinações sócio-culturais que o sujeito já recebe ao ingressar no mundo e que condicionam o modo como esse sujeito irá compreender o mundo. Esses condicionamentos são chamados de pré-juízos (vor-urteile), herdados da tradição, que viabilizam (e condicionam) a forma de compreender o mundo (GADAMER, 2012, p. 336). Dito de outra forma, aquilo que se pode chamar de hermenêutico é a maneira existencialmente constitutiva do ser humano, de como se dá seu compreender e estar-no-mundo (HEIDEGGER, 2009, p. 395). Contudo, a epistemologia tradicional das ciências – a forma como se produz e se compreende os conhecimentos - tem feito nossa relação prática com o mundo parecer derivada da relação teórica e ignora nosso acesso original à realidade, que se dá através da consciência reflexiva. Os caminhos apontados nos levam a concluir que a epistemologia das Ciências Humanas deve reclamar esse acesso. Deixando de ser meramente uma extensão da epistemologia das Ciências Naturais. A consciência reflexiva levará, inevitavelmente, à análise da realidade prática (SCOCUGLIA, 2003).
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Porque o pensador não pode perder de vista os reais problemas humanos. É dizer que o pensador científico não deveria perder o mundo da vida de seu horizonte na tarefa do pensar (MARQUES, 2013). Mas, qual seria a consequência de se aplicar a hermenêutica tal qual explica Gadamer, aliando-a a um caráter filosófico? Perder-se-ia o caráter ingênuo das concepções científicas – no que diz respeito à tomada ou coleta dos dados nas ciências, de que há uma verdade universal e pura. Não existem dados neutros, não existe interpretação fora da história e já sempre está a interpretar os “dados” (MARQUES, 2013, p.11). É que não deve se perder de vista que o pensamento científico não se desenvolve num vazio cultural, mas sempre dentro de um contexto histórico de ideias, princípios e concepções pertencentes a um domínio de ordem extracientífica. E mais: adentrando nas teorias de poder de Foucault, esse domínio também segue algum objetivo ligado ao poder.
3. Aspectos sobre o discurso pretensamente universal e neutro do ensino jurídico no Brasil Nas concepções de Baggenstoss (2018, p. 219), a educação traduz-se como um conjunto de processos por meio do qual os indivíduos se transformam em sujeitos de uma cultura. Muitos autores denominam esse processo que ocorre nas instituições de ensino de “civilizador”, que dita o que é civilizado e o que não é. O objetivo único do processo da educação seria disciplinar corpos. Daí porque é de extrema importância apresentar os aspectos históricos do ensino jurídico, especialmente quando se pretende entender a essência de seu discurso. Pode-se localizar, de antemão, a influência e dependência – que é histórica, mas também é estrutural – das pesquisas e dos conceitos trazidos da Europa ao cenário latino-americano, notadamente no Brasil (GONÇALVES; BAGGENSTOSS, 2018, p. 179). E não só o ensino jurídico. Tanto a cultura jurídica, quanto as instituições legais derivam da tradição europeia ocidental, representada pelas fontes do Direito Romano, Direito Germânico e Direito Canônico (BRAVO; WOLKMER, 2016). Os primeiros cursos de Direito no Brasil abriram em 1827 em Olinda e São Paulo, nos moldes da Universidade de Coimbra, em Portugal. De acordo 126
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com o período histórico, houve modificações nas diretrizes dos cursos jurídicos. Na República Velha abandonou-se o jusnaturalismo e passou-se a adotar o juspositivismo, o que possibilitou a abertura de novos cursos e o egresso de maior diversidade de alunos, inclusive integrantes de uma classe média. A partir da Era Vargas, apesar de pouca ou nenhuma reforma estrutural, abriram novos cursos pelo Brasil afora. As reformas estruturais dos cursos não surgiram do debate das instituições, mas foram impostas pelo Estado. A participação da Associação Brasileira de Ensino do Direito foi bastante discreta (BASTOS apud GONÇALVES; BAGGENSTOSS, 2018, p. 181-182). O que se vê é que, historicamente, toda a evolução do ensino jurídico brasileiro pautou-se no modelo liberal. A construção e a solidificação desse modelo se deram a partir da adoção de currículos privatistas e metodologias pedagógicas tradicionais (MARTÍNEZ, 2006). Pouca evolução ocorreu na história dos cursos de Direito no Brasil. Na década de 90, a influência de um modelo tardio de Estado Social intervencionista chocou-se com a expansão do mercado do ensino jurídico, transformando-se num paradoxo. De um lado, emergiu o dever do Estado de atuar em prol do bem-estar da sociedade e regular, de forma intensiva, a economia. Do outro lado, a emersão das “fábricas de bacharéis”, que é a perspectiva industrial da universidade, pautada no isolamento do conhecimento jurídico aliado a metodologias meramente de transmissão de conhecimento (MARTÍNEZ, 2006). Quer dizer, as mudanças qualitativas dos cursos jurídicos não enfrentaram o ponto principal da produção do ensino, que é a sala de aula. Omitiram-se, portanto, no enfrentamento do centro da crise histórica do país. A primeira crítica sobre o ensino jurídico surgiu, em 1941, no texto “Renovação do Direito” de Dantas (1978-1979, p. 44): “Só se consideraria, pois, em crise, no mundo de hoje, uma Faculdade em que o saber jurídico houvesse assumido a forma de um precipitado insolúvel, resistente a todas as reações. Seria ela um museu de princípios e praxes, não seria um centro de estudos. Para uma escola de Direito viva, o mundo de hoje oferece um panorama de cujo esplendor raras gerações de juristas se beneficiam”.
A crítica ecoa sobre um “museu de princípios e praxes”, distante da ebulição legislativa e social da época. A crise sobre a inadaptação da academia 127
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jurídica ao momento histórico repercutiu pela primeira vez e até hoje reflete a realidade. A consequência é um espaço acadêmico marcado historicamente por forças que reproduziram e mantiveram o afastamento da academia do contexto da realidade social do país (MARTÍNEZ, 2006). E o modelo reproduzido é aquele importado do direito europeu, com olhos fechados para a realidade social brasileira. Está, portanto, de olhos fechados aos recortes de classe, de gênero e de raça. Sob a influência estrangeira, impera nos cursos de Direito a lógica de um discurso universal e neutro. Como consequência, toda a estrutura jurídica é afetada, desde a concepção de teorias, que são passadas através de mecanismos de didática tradicional aos alunos nas salas de aula, até a posterior prática dos operadores do direito. A lógica é meramente formal, impossibilitando um pensamento reflexivo sobre novas ideologias e novos contextos (FARIAS, 1987). O padrão que vem da colonização europeia no contexto jurídico se apresenta como único caminho para a humanidade plena. Coloca-se como o único conhecimento válido, subalternizando todos os demais saberes. Trata-se da substituição da diversidade de saberes localizados pelo suposto conhecimento universal e neutro (COLAÇO; DAMÁZIO, 2012, p. 8). Assalta-se aqui o resultado: um pensamento científico tradicional que se pretende neutro e universal, mas que se consolida sob o olhar de um pesquisador masculino (branco, heterossexual e europeu), guarnecido de todos os privilégios que lhe favoreçam o trabalho da pesquisa. Essa pretensão transborda ao discurso jurídico – e ao político – que aliado a um projeto estatal legitima-se como discurso oficial de um grupo social, que detém o poder (BAGGENSTOSS, 2018, p. 200). E mais: uma das consequências desse discurso universalizante é a imposição de uma realidade de existir como universal, ao passo em que encobre e inviabiliza outras formas de existências. Essa é a leitura conferida por Foucault (2005) que explica que o discurso tido como verdade é resultado da construção da articulação das regras de poder e da fluidez das práticas discursivas. Também é a perspectiva trazida por Donna Haraway (1995, p. 8) ao defender que o que tradicionalmente tem vigência como saber é policiado por filósofos que codificam as leis canônicas do conhecimento, já que todas as fronteiras do conhecimento são teorizadas como movimentos de poder, não movimentos 128
Direito e Feminismos
em direção à verdade. Quer dizer, o conhecimento fabricado por alguém é um caminho para uma forma desejada de poder bem objetivo. É que a ciência sempre teve a ver com a busca de uma universalidade. Donna Haraway (1995, p. 10) denomina de reducionismo, quando uma linguagem “adivinha de quem” é imposta como parâmetro para todas as traduções e conversões. Nesse aspecto, Foucault tomou como partida um texto de Nietzsche (FOUCAULT, 2005, p. 13), que diz que: Em algum ponto perdido deste universo, cujo clarão se estende a inúmeros sistemas solares, houve, uma vez, um astro sobre o qual animais inteligentes inventaram o conhecimento. Foi o instante da maior mentira e da suprema arrogância da história universal.
Há também a passagem no final do primeiro discurso de “A genealogia da moral” em que Nietzsche se refere a essa espécie de grande fábrica, de grande usina, em que se produz o ideal. O ideal não tem origem. Ele foi inventado, fabricado, produzido por uma série de mecanismos (FOUCAULT, 2005, p. 15). Daí porque se encontra em Nietzsche a ideia de que o conhecimento é o que há de mais generalizante e de mais particular. O conhecimento esquematiza, ignora as diferenças, assimila as coisas entre si e isto sem nenhum fundamento em verdade (FOUCAULT, 2005, p. 26) Quer dizer, quando se conhece um discurso como verdade particularmente universal, sempre há também um desconhecimento por todas as especificidades de todos os outros indivíduos. Eis, portanto, como através dos textos de Nietzsche se restitui não uma teoria geral do conhecimento, mas um modelo que permite abordar o objeto destas determinações: o problema da formação de certo domínio de saber a partir de relações de forma e de relações políticas na sociedade (FOUCAULT, 2005, p. 26). Isto é, quando se passou a considerar um discurso como universal inventou-se um padrão que tem alguma finalidade. Criou-se (uma variação do verbo inventar) um modelo que determina quem são os indivíduos desejáveis e os que não são. Esse padrão serve para algo e para alguém. É um discurso que exprime um poder. O direito é um instrumento de poder. Não existe neutralidade. De uma forma ainda mais visceral, desnuda-se que o ordenamento jurídico é fundado em conceitos ocidentais – como estado, democracia, direitos 129
Direito e Feminismos
humanos, entre outros -, que representam a universalização de uma forma específica de organização e interação social. De um prisma sistêmico, pontua-se que essa perspectiva pode produzir o silenciamento de saberes, práticas, convivências e modos de existir que não se enquadrem no discurso universal (BAGGENSTOSS, 2018, p. 208). Quer dizer, ainda há no imaginário coletivo o que se denomina de “ponto zero”, que representa uma observação neutra sobre o mundo, sem o questionamento de quem a realiza. Esse início epistêmico das formas jurídicas confere o poder de construção de ordens que é legitimada pelo Estado (BAGGENSTOSS, 2018, p. 208). Contudo, as programações jurídicas sobre as existências e formas existir não são neutras, porque tratam de prescrições localizadas em tempo e espaço e dirigidas a um determinado grupo social. Além de ocultar outras formas de existência, essa concepção oculta interesses casuais da formatação jurídica que se diz universal (BAGGENSTOSS, 2018, p. 209). Adentra-se à crítica de Carol Smart (1999, p. 71), de que o direito é um discurso poderoso porque, pretensamente, dita uma verdade absoluta, o que lhe permite silenciar e desqualificar a experiência das mulheres e o conhecimento das feministas. Discute-se, pois, os conceitos de verdade, poder e conhecimento, inspirada nas teorias do poder e do conhecimento de Michel Foucault. A posição é de ceticismo em relação aos conceitos de verdade, ciência e objetividade. Foucault observa que todo conhecimento é meramente uma combinação de relações de poder e uma busca de informação. Não é simplesmente um “saber”, mas um “poder/saber”, visto que é resultado de um processo de seleção de informação que permite que algo seja rotulado como verdade, e não a procura por uma verdade pura (CASALEIRO, 2014). Embora o direito não faça afirmações expressas de verdade, aproxima-se bastante da ciência – tem seu próprio método, linguagem e sistema de resultados. O poder do direito se desenvolve de forma semelhante ao poder da ciência, visto que o conhecimento que pode afirmar o que é verdade ocupa um lugar superior da hierarquia dos conhecimentos. Quer dizer, poder, conhecimento e verdade estão relacionados: eles produzem-se e reproduzem-se mutuamente (SMART, 1999, p. 76).
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Direito e Feminismos
A reivindicação do conhecimento jurídico como única verdade subalterniza os conhecimentos não-jurídicos e implica que todas as experiências tenham que ser traduzidas na forma jurídica para obterem algum reconhecimento. Se o direito pode fazer afirmações de cientificidade, então o direito posiciona-se numa hierarquia superior de conhecimentos, que pode desqualificar os conhecimentos subjugados (CASALEIRO, 2014). Adentrando as questões das mulheres – sem esquecer, contudo, dos recortes de raça, colonialidade, capacitismo, orientação sexual – vê-se evidenciadas as diversas maneiras pelas quais as mulheres – e os outros grupos marginalizados – são excluídas dos interesses da reflexão filosófica e científica dos pesquisadores (Janyne SATTLER). O ponto central dessa exclusão das mulheres da prática investigativa, a partir da exclusão de sua condição de sujeito epistêmico legítimo, é a produção de teorias que desconsideram os interesses e o problemas próprios das mulheres. Oculta-se, também, a problemática das relações de poder baseadas em gênero, visto que a suposta universalidade e neutralidade serve à manutenção de uma reiterada hierarquia que se pretende válida e incontestável epistemicamente (SATTLER). Do sentimento de exclusão da experiência das mulheres nas abordagens epistemológicas tradicionais, nasce o questionamento radical da posição de justificação epistêmica, a partir das teorias epistemológicas feministas. Entende-se que a suposta generalidade e neutralidade é contextual e informada pelo local do sujeito epistêmico, que é um sujeito masculino, branco, heterossexual, em geral americano ou europeu, em detrimento de todos os outros (SATTLER). Os principais pontos da crítica feminista à ciência incidem na denúncia de seu caráter particularista, ideológico, racista e sexista: o saber ocidental opera no interior da lógica da identidade, sendo incapaz de pensar nas diferentes formas de existência. Pensa-se a partir de um conceito universal de homem-branco-heterossexual-civilizado-do-Primeiro-Mundo, deixando de fora todos aqueles que se escapam dessa referência (RAGO, 1998). Então, as noções de objetividade e de neutralidade - que se espera da ciência, garantindo-lhe a veracidade do conhecimento – caem por terra, no mesmo movimento em que se denuncia o quanto os padrões de normatividade científica são impregnados por valores masculinos (RAGO, 1998).
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Direito e Feminismos
Mais do que nunca, a crítica feminista evidencia as relações de poder constitutiva da produção dos saberes. É o que apontou, por outro lado, Michel Foucault, que questionou radicalmente as representações que orientavam a produção do conhecimento científico, tida como o ato de revelação da essência inerente à coisa, a partir do desvendamento do que se considerava a aparência enganosa e ideológica do fenômeno. Especialmente nas Ciências Humanas, chegar à verdade do acontecimento significa retirar a máscara que o envolvia na superfície e chegar às suas profundezas (RAGO, 1998). Daí que surge a cirúrgica crítica: O direito não deve mais ser (apenas) praticado, mas sim estudado. Não temos uma tradição própria de teoria e/ou filosofia do direito. Temos dificuldade de olhar pra nós mesmos. Preferimos importar. Importar teorias que ocultam o nosso próprio direito, nossa própria existência. Não temos um ciclo fechado da nossa teoria do direito. Urgente pensar a teoria do direito, que passa pela compreensão da expansão indiscriminada dos cursos e currículos, da desconstituição da pesquisa, dos privilégios das corporações jurídicas no país. Quais são as teorias importadas? Qual o papel do Direito nos contextos? Como se dá o império e o domínio através das instituições postas? (GONÇALVES; BAGGENSTOSS, 2018, p. 186).
É que o discurso dos direitos intrínsecos à pessoa humana é fecundo apenas enquanto, resguardados os limites culturais, se é viável a sua concretização aos mais diversos espectros da personalidade e do exercício de existir e co-existir do sujeito. Também numa perspectiva feminista, o plano fático da observação do pensamento deve ser a vida social, de onde a pessoa pesquisadora poderá extrair, a partir de seu conhecimento prévio, as categorias analíticas mencionadas, formulando-as teoricamente e testando-as na realidade fática (BAGGENSTOSS, 2018, p. 208). Quer dizer, a partir da teoria feminista, propõe-se que o sujeito deixasse de ser tomado como ponto de partida, mas que fosse considerado dinamicamente como efeito das determinações culturais, inserido em um campo de complexas relações sociais, sexuais e étnicas. Questiona-se, portanto, a produção do conhecimento entendida como um processo racional e objetivo – em que se busca uma verdade pura e universal (RAGO, 1998).
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Direito e Feminismos
E a educação (e a formação do pensamento científico) deve seguir essa lógica: acompanhando modelos e regras próprias de acordo com cada sociedade, cada cultura e cada forma de existir. O contexto, o global, a realidade complexa deve ser evidente no processo de ensino para que o conhecimento construído seja pertinente. O conhecimento especializado e direcionado contribui para uma abstração, pois se a educação ensina a separar e isolar – em contraponto à união de conhecimentos -, o conjunto resulta num quebra-cabeça ininteligível (MORIN, 2000). O projeto de epistemologia feminista começa pela revisão crítica de conceitos como “conhecimento”, “sujeito cognoscente”, “objetividade”, “metodologia científica”, como sendo conceitos falhos e tendenciosos, em vista de uma reconstrução que evidencie a parcialidade e contextualidade dos processos de conhecimento. Algumas dessas questões “são velhas questões epistemológicas remodeladas pela perspectiva de gênero, como deveriam ser feitas também pela perspectiva de classe, raça, de pertença cultural e geográfica” (SATTLER). Para começar a responder essas perguntas, a autora nos remete às abordagens de sujeito situado e de conhecimento situado. Situação é a marca característica do tipo de saber resultante de todas as determinações dadas sobre um sujeito – Donna Haraway nomeia de “saber localizado”: “determinações contextuais, históricas, localizadas, culturais, linguísticas, políticas, éticas, sexuais, étnicas, relacionais, interacionais, subjetivas, intuitivas, emocionais” (SATTLER). Começa-se querendo um instrumento afiado para a desconstrução das alegações de verdade de uma ciência hostil, através da demonstração da especificada histórica radical e, portanto, passa-se a contestar todas as “camadas da cebola das construções científicas e tecnológicas”. As feministas têm interesse num projeto de ciência que ofereça uma explicação mais adequada, mais rica, melhor do mundo, de modo a viver bem nele, e na relação crítica, em relação às nossas próprias e às práticas de dominação de outros e nas partes desiguais de privilégios e opressão que todas as posições têm (HARAWAY, 1995, p. 7). As feministas não precisam de uma estória que perca o rastro quando alguém deva ser responsabilizado por algo ou de um poder instrumental ilimitado. Precisa-se de uma rede de conexões, incluída a capacidade parcial de traduzir conhecimentos entre comunidades que possuem características diferentes, principalmente em termos de poder. Precisa-se “do poder das teorias críticas sobre como significados e corpos são construídos, não para negar 133
Direito e Feminismos
significados e corpos, mas para viver em significados e corpos que tenham a possibilidade de um futuro” (HARAWAY, 1995, p. 10). Na concepção de Haraway (1995, p. 12), o olhar conquistador não vem de lugar nenhum. É o olhar que inscreve todos os corpos marcados. É o olhar de quem alega ter o poder de ver, sem ser visto. Este tipo de olhar – que vem do nada - significa uma posição marcada de homem e branco. Os olhos têm sido utilizados para distanciar o sujeito cognoscente de tudo e de todos, em nome de um interesse por poder desmensurado. Ela também utiliza termos como olhar des-corporificante ou truque mítico de deus de ver tudo de lugar nenhum. É o olhar que é incapaz de perceber como as coisas realmente são e como alguns fatos são acessados de forma privilegiada. Surgem-nos algumas questões: qual é o olhar do direito? Por que o direito se esquiva de olhar para específicos casos? Todos os infinitos e ilimitados artifícios tecnológicos de visão – imagens de ressonância magnética, sistemas de manipulação gráfica vinculados à inteligência artificial, microscópios eletrônicos com scanners, sistemas de tomografias ajustados por computador, técnicas de avivar cores, sistemas de vigilância via satélite, vídeos domésticos, câmeras por todos os lados, mostraram à Haraway (1995, p. 16) que todos os olhos, incluídos os nossos orgânicos, são sistemas de percepção ativos que constroem traduções e modos específicos de ver. Não há nenhuma fotografia que não é mediada. Há apenas possibilidades visuais altamente específicas, cada uma com um modo ativo e parcial de organizar mundos. Seguindo, Donna Haraway (1995, p. 12) sugere que utilizemos corretamente a visão, não apenas metaforicamente, que “pode ser útil para evitar oposições binárias”. Precisa-se aprender em nossos corpos, que são dotados de visão e de cores, como vincular o objetivo aos nossos instrumentos teóricos e políticos, de modo que possamos perceber e nomear onde estamos e onde não estamos, nas dimensões do espaço mental e físico, que mal sabemos como nomear. “Como ver? De onde ver? Quais os limites da visão? Ver para quê? Ver com quem? Quem deve ter mais do que um ponto de vista? Nos olhos de quem se joga areia? ” Olhar para o mundo. Olhar ao redor. Precisa-se buscar a perspectiva de pontos de vista que não podem ser conhecidos de antemão. Quer dizer, que se construa um conhecimento menos organizado por eixos de dominação. Argumenta-se, pois, a favor de políticas e epistemologias de alocação, posicionalmente e situação nas quais a parcialidade (ao contrário da univer134
Direito e Feminismos
salidade) é a condição de ser ouvido nas propostas a fazer de conhecimento racional. De saberes localizados (HARAWAY, 1995, p. 25). É o olhar que, há muito tempo, sugere Paulo Freire: o olhar para a realidade, para as especificidades da realidade política e social (e também jurídica). Daí porque diz que a pedagogia libertadora só é viável na e pela superação da contradição opressores-oprimidos, que é a libertação de todos. O desafio que Freire nos antecipa é que a manutenção do modelo que é reproduzido provoca a vontade do oprimido de se tornar opressor, ao invés de libertar-se e a libertar todos. A pedagogia libertadora advém dos oprimidos (na perspectiva de que somente o sujeito pode falar pela realidade que vive e na insistência pela fé no homem) e para eles: Há algo, porém, a considerar nesta descoberta, que está diretamente ligado à pedagogia libertadora. E que, quase sempre, num primeiro momento desse descobrimento, os oprimidos, em vez de buscar a libertação na luta e por ela, tendem a ser opressores também, os subopressores. A estrutura de seu pensar se encontra condicionada pela contradição vivida na situação concreta, existencial, em que se “formam” (FREIRE, Paulo, 2011, p. 44).
O conhecimento situado, ou saber localizado, é aquele que reflete a perspectiva específica do indivíduo, contra a pretensão de isenção e imparcialidade e é construído por sua complexidade de pessoa entranhada. Os traços que singularizam o modo como algo pode ser apreendido dependem da própria localização corporal do indivíduo (SATTLER). Assim, o saber localizado diz respeito à vulnerabilidade; posição resistente à política de simplificação. Não há um ponto de vista feminista único porque nossos mapas requerem dimensões em demasia para que a metáfora sirva para fixar a visão em apenas um lugar. É construir um olhar compromissado: que não pertença a todos os lugares e, portanto, a nenhum. “O único modo de encontrar uma visão mais ampla é estando em algum lugar em particular” (HARAWAY, 1995, p. 26). Verifica-se que o paradigma que se assume é o de modificação de pressupostos epistemológicos – também de ensino e de método de aprendizagem – construído a partir dos dinamismos políticos, culturais, jurídicos, econômicos, havidos nas últimas quatro décadas no Brasil (BAGGENSTOSS, 2018, p. 200).
135
Direito e Feminismos
Numa perspectiva feminista dessa concepção, Baggenstoss (2018, p. 200), guiada pelo pensamento de Sandra Harding, sugere o questionamento da ciência nos moldes que hoje é construída – a partir de um discurso universal, pretensamente neutro, objetivo e linear. Além do que, confessa que as categorias analíticas devem ser instáveis, porque pautar-se em teorias absolutamente coerentes e estáveis em um mundo instável e complexo é obstaculizar o conhecimento baseado nas práticas sociais. A sugestão para o planejamento de categorias analíticas de uma construção feminista é compreender e aceitar a instabilidade e a incoerência formal e permanente de construções das explicações (BAGGENSTOSS, 2018, p. 203). Mesmo porque, numa perspectiva sistêmica, a incoerência faz parte do sistema. A questão da ciência para o feminismo não é produto de uma imagem que transcenda limites. Isto é, visões de cima. Mas a junção de visões parciais e de vozes oscilantes numa posição coletiva de sujeito que promete uma visão de meios de corporificação finita e continuada. Quer dizer, de viver desde algum lugar (HARAWAY, 1995, p. 28). É que uma teoria que se pretenda feminista deve articular a função de demonstrar que não existe (nem nunca existiu) um homem ou uma mulher genérica, que seja modelo de exemplo para todas as demais pessoas, para fins de legitimação de sua existência. Perante o questionamento da figura genérica de homem, deve-se questionar a mulher genérica, levando em consideração a infinidade de mulheres que existem dentro dos complexos históricos de classe, raça e cultura (HARDING apud BAGGENSTOSS, 2018, p. 202). Daí surge o alerta de que a construção feminista deve atentar para que não se reproduza, sob a justificativa de teorização, “uma associação patriarcal entre saber e poder, em detrimento de mulheres cujas experiências ainda não foram inteiramente expressas na teoria feminista” (HARDING, 1993, p. 26-27). Não se trata de reduzir a epistemologia à política. Mas de realizar um objetivo emancipatório, inclusivo e feminista (SATTLER), que permita “a expansão da democracia na produção do conhecimento” (HARAWAY, 1995, p. 15), e que nos permita uma melhor compreensão do mundo em sua pluralidade de vivências (SATTLER): Deve-se sobretudo mostrar que o fazer epistemológico esteve desde sempre comprometido com uma certa agenda de valores morais e políticos arrai136
Direito e Feminismos
gados por seus próprios ideais de neutralidade. Negar a intervenção política sobre a produção do conhecimento é endossar o lugar social, ético e político a partir do qual se afirma (SATTLER). Além do que, a realidade do Brasil é diferente da realidade europeia e, por tal motivo, deve ser tratada em sua particularidade, para que seja possível consolidar uma teoria forte do nosso próprio Direito, que dê conta da realidade social (GONÇALVES; BAGGENSTOSS, 2018, p. 183).
3. Método 3.1. Caracterização da pesquisa Diferenciando-se da maior parte das pesquisas no campo jurídico, este estudo pretende analisar a realidade da epistemologia do currículo do curso de Direito da Universidade Federal de Santa Catarina. O que se propõe para aproximar os estudos da academia à realidade empírica. Dada a função estruturante que o método tem sobre a articulação entre a teoria e a realidade empírica – o que, muitas vezes, é esquecido pelo direito – definiu-se o estudo como exploratório, descritivo e de abordagem quantitativa. Não existem estudos sobre os currículos e os planos de ensino propostos no curso de Direito da Universidade Federal de Santa Catarina – documentos aos quais se limitou esta investigação – o que qualifica essa pesquisa como exploratória. A pesquisa também é classificada como descritiva, visto que se propõe a uma descrição desse fenômeno, tanto de suas características, quanto de suas formas de manifestação. O caráter qualitativo da pesquisa reside na proposta deste estudo de aprofundar a investigação sobre o fenômeno e de examiná-lo em sua complexidade. O que, posteriormente, pode possibilitar a elaboração de ações que modifiquem os problemas observados na realidade.
3.2. Contexto e disciplinas participantes Para que os objetivos propostos nesta pesquisa fossem alcançados, foi analisada a bibliografia básica indicada no plano de ensinos da maior parte das disciplinas ofertadas no semestre 2018.2 no curso de Direito da Univer137
Direito e Feminismos
sidade Federal de Santa Catarina. Foram incluídas na pesquisa as seguintes disciplinas: Criminologia, Direito Administrativo I, Direito Administrativo II, Direito Aquaviário II, Direito Civil I, Direito Civil III, Direito do Consumidor, Direito do Trabalho I, Direito do Trabalho II, Direito dos Animais, Direito e Feminismos, Direito Eleitoral, Direito Internacional, Direito Tributário I, Direito Tributário II, Direito Penal II, Empresarial I, Estatuto da Criança e do Adolescente, Ética Profissional, Filosofia do Direito, Hermenêutica, História do Direito, Medicina Legal, Metodologia da Pesquisa em Direito, Processo Administrativo, Processo Civil I, Processo Civil II, Processo Civil III, Processo Constitucional, Processo do Trabalho, Processo Penal I,Processo Penal II, Processo Penal III, Teoria Constitucional, Teoria do Direito, Teoria do Processo e Urbanístico. No total, foram analisadas 37 disciplinas. Para definir as disciplinas analisadas, procurou-se incluir distintos tipos de disciplinas, abrangendo as dogmáticas e as pragmáticas. Também, levaram-se em consideração os professores responsáveis, compreendendo disciplinas ofertadas por professores e professoras. Por fim, foram incluídas o máximo de disciplinas possíveis de analisar no tempo disponível, considerando o prazo limite de entrega da pesquisa. Respeitando, contudo, um limite desejável de 75% do total de disciplinas ofertadas, para legitimar os resultados encontrados. Permanece o objetivo de completar a pesquisa com os dados das disciplinas não incluídas.
3.3. Procedimentos A coleta de dados foi feita através dos planos de ensino incluídos pelos professores responsáveis de cada disciplina, no semestre 2018.2, no site do curso de graduação em Direito da UFSC (http://ccj.ufsc.br/planos-de-ensino/). O procedimento iniciou-se com a coleta dos nomes de todos os autores e autoras incluídos na bibliografia básica nos planos de ensino disponibilizados pelas professoras e professores. Os autores e autoras foram classificados conforme seu gênero, sua raça e sua nacionalidade. A análise foi quantitativa. Ao final da etapa de coleta de dados, foi realizada a análise de conteúdo, técnica que procura analisar os significados trazidos pelos números encontrados.
138
Direito e Feminismos
4. Apresentação de resultados Da análise dos dados coletados, chegou-se a conclusões que confirmam a hipótese inicial. É que há, de fato, o silenciamento de vozes de determinados grupos específicos, quais sejam: de mulheres e de negros. Vê-se que o discurso do ensino jurídico pretende-se neutro e universal, mas apresenta-se e constrói-se apenas pelo olhar do homem branco. Tabela 1 – Planilha das disciplinas do curso de Direito HOMENS
BRANCOS
NORTE GLOBAL – EUA E EUROPA
DISCIPLINA
TOTAL
Criminologia
3
3
100%
3
100%
2
67%
Direito Administrativo I
3
2
67%
3
100%
0
0%
Direito Administrativo II
4
3
75%
4
100%
0
0%
Direito Aquaviário II
1
0
0%
1
100%
0
0%
Direito Civil I
2
2
100%
2
100%
0
0%
Direito Civil III
3
3
100%
3
100%
0
0%
Direito do Consumidor
2
1
50%
2
100%
0
0%
Direito do Trabalho I
8
4
50%
8
100%
0
0%
Direito do Trabalho II
5
5
100%
5
100%
0
0%
Direito dos Animais
5
4
80%
5
100%
0
0%
Direito e Feminismos
4
0
0%
3
75%
0
0%
Direito Eleitoral
1
1
100%
1
100%
0
0%
Direito Internacional
26
25
96%
26
100%
14
54%
Direito Tributário I
4
4
100%
4
100%
0
0%
Direito Tributário II
4
4
100%
4
100%
0
0%
Direto Penal II
11
11
100%
11
100%
2
18%
Empresarial I
3
3
100%
3
100%
0
0%
Estatuto da Criança e do Adolescente
2
0
0%
2
100%
0
0%
Ética Profissional
13
12
92%
12
92%
4
31%
139
Direito e Feminismos
HOMENS
BRANCOS
NORTE GLOBAL – EUA E EUROPA
DISCIPLINA
TOTAL
Filosofia do Direito
4
4
100%
4
100%
3
75%
Hermenêutica
5
0
0%
5
100%
1
20%
História do Direito
3
3
100%
3
100%
1
33%
Medicina Legal
3
3
100%
3
100%
0
0%
Metodologia da Pesquisa em Direito
5
5
100%
5
100%
0
0%
Processo Administrativo
4
2
50%
4
100%
0
0%
Processo Civil I
20
20
100%
19
95%
0
0%
Processo Civil II
2
2
100%
2
100%
0
0%
Processo Civil III
22
22
100%
21
95%
0
0%
Processo Constitucional
6
6
100%
6
100%
0
0%
Processo do Trabalho
5
5
100%
5
100%
0
0%
Processo Penal I
4
4
100%
4
100%
0
0%
Processo Penal II
4
4
100%
4
100%
0
0%
Processo Penal III
4
6
150%
4
100%
0
0%
Teoria Constitucional
15
15
100%
16
107%
7
47%
Teoria do Direito
2
2
100%
2
100%
2
100%
Teoria do Processo
3
3
100%
3
100%
0
0%
Urbanístico
7
6
86%
6
86%
1
14%
Fonte: Elaborado pelas autoras.
Por consequência, a mesma imparcialidade atinge outros âmbitos do discurso jurídico que, com o objetivo de um determinado projeto estatal de poder, legitimam-se como discursos oficiais de determinado grupo social. A partir dos dados, tem-se que apenas 10,4% das bibliografias indicadas são mulheres, contrapondo-se a 89,6% de homens. Na perspectiva de raça, 98,2% são brancos e 1,8% negros. No recorte de nacionalidade, 83,3% são americanos e 16,7% são europeus.
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Quer dizer, poucas mulheres são indicadas para a leitura numa bibliografia básica. Acrescenta-se ao fato de que as disciplinas em que há maioria ou totalidade de autoras mulheres indicadas são ofertadas por professoras mulheres. No recorte racial, vê-se que poucos homens negros são indicados à leitura. Com maior aprofundamento, seria possível explorar o argumento de que esse fato não se dá em razão de não existir autores negros que tratam sobre o assunto. O dado se acentua com a informação de que nenhuma mulher negra foi indicada na bibliografia básica da totalidade dos planos de ensino analisados. Por fim, nota-se que, apesar da porcentagem baixa de europeus – 16,7%, estes autores foram indicados justamente para as disciplinas dogmáticas, que pretendem fundar a teorização do direito. Então, toda a teoria do direito do ensino jurídico é pautada em alicerces europeus. É o que se pode aferir das disciplinas de Filosofia do Direito e Teoria do Direito, por exemplo, em que 75% e 100% dos autores indicados são europeus respectivamente.
5. Considerações finais Seja a partir da perspectiva feminista ou através da teoria foucaultiana, compreende-se que o discurso pretensamente universal e neutro do direito legitima uma determinada forma de existir e saber, promovendo a exclusão de outros modos de vida, tornando-os excluídos e silenciados. O ensino jurídico do Brasil e especialmente o curso de graduação em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina contribui para a manutenção desse sistema, haja vista que, epistemologicamente, apresenta e constrói o conhecimento a partir do olhar do homem, branco, heterossexual e europeu. A perspectiva desse específico grupo privilegiado é mantida como o discurso oficial do direito, como parte do objetivo estatal de poder. Neste sentido foram apresentados os resultados da pesquisa concernente à grade curricular do curso, mormente quanto à bibliografia básica da graduação, em que poucas autoras mulheres são indicadas à leitura. Poucos homens negros são indicados. Nenhuma mulher negra é indicada. Por fim, embora a realidade brasileira seja bastante distinta da europeia, mostra-se que a teoria do direito nesta universidade é construída com base em alicerces importados da Europa. Não é apresentado o olhar teórico latino-americano. 141
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Quer dizer, calam-se as vozes de mulheres, de negros e não se atentam à realidade social latino-americana. Se há um projeto político com esse objetivo ou se trata-se apenas de inconsciência política, pouco importa. O que importa é que se mantém a existência de uma biopolítica, para onde se perfazem os discursos em vida e uma necropolítica, para onde se vão os corpos em morte (BAGGENSTOSS, 2018, p. 216).
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Movimentos Feministas na Constituinte de 1987-1988 e suas Influências no Texto Constitucional Mariella Kraus1
Introdução Os movimentos feministas aparecem em momentos históricos onde outros movimentos de liberdade denunciam os regimes de opressão, contribuindo também para romper o silêncio de movimentos negros, de minorias étnicas, homossexuais e de classe que se organizaram em torno da sua especificidade e se completam na busca da superação das desigualdades sociais (ALVES; PITANGUY, 1985). Necessário, portanto, analisar a participação dos movimentos feministas na última Constituinte brasileira, afinal a Constituição de 1988 foi promulgada em um contexto que inaugurava o regime democrático no Brasil instalando uma nova ordem jurídico-constitucional (CHUEIRI; GODOY, 2010), fazendo com que os pilares de uma democracia devessem se fazer presentes para manutenção do novo regime, o que significou um marco legislativo no tocante aos direitos das mulheres e à ampliação de sua cidadania no plano jurídico nacional (SILVA; WRIGHT, 2015). No entanto, para esta conquista, foi imprescindível a mobilização dos movimentos feministas na Constituinte de 1987-1988 para que constasse no texto da Constituição Federal os direitos das mulheres, na busca pela igualdade aos homens, pois até a promulgação da Constituição de 1988, as leis no Brasil apresentavam um caráter masculino e androcêntrico, reforçando discriminações (SILVA; WRIGHT, 2015).
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Mestranda em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC. Pós-graduanda em Direito Constitucional pela Academia Brasileira de Direito Constitucional – ABDConst. Graduada em Direito pela Universidade Regional de Blumenau – FURB. Advogada.
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No contexto histórico da representatividade das mulheres no legislativo, por exemplo, uma das primeiras lutas foi o direito ao voto. Na elaboração da Constituição de 1891, por mais que tivessem debates sobre o direito ao voto pelas mulheres, nenhum projeto de lei foi aprovado, e alguns sequer foram discutidos, por mais que no artigo 70 constasse que os eleitores são os cidadãos maiores de 21 anos, alistados na forma da lei, foi vetado o direito ao voto das mulheres; em 1919, Leolinda Daltro apresentou o Projeto de Lei Chermont, dispondo sobre a capacidade eleitoral das mulheres, contudo a discussão foi adiada em razão da resistência política da proposta apresentada e, sendo adiada a discussão para 1921, não foi convertido em lei devido à falta da segunda votação; na Constituição de 1927, cujo texto não previa qualquer vedação eleitoral às mulheres, o Estado do Rio Grande do Norte, por seu governador Juvenal Lamartine e demais deputados estaduais, elaborou a Lei Ordinária Estadual n.° 660/1927, garantindo o direito ao voto pelas mulheres, ocasião na qual Celina Guimarães Viana foi a primeira mulher eleitora registrada neste Estado; em 1928, Luísa Alzira Teixeira Soriano foi eleita a primeira mulher a ocupar um cargo político como prefeita da cidade de Lajes, também no Estado do Rio Grande do Norte, ainda antes do direito das mulheres ao voto em 1932; em 1934, em Santa Catarina, a primeira deputada negra eleita foi Antonieta de Barros, filha de escrava liberta. Nesta trajetória história, apenas 79 anos depois desde a conquista ao voto das mulheres, o Brasil teve uma mulher no cargo de presidência da República, ocupado por Dilma Rousseff pelas eleições de 2010 (SILVA; ZIMMERMANN; PAULA, 2016). Com este cenário histórico, observa-se que, sem os direitos de igualdade formal trazidos pela Constituição de 1988, a possibilidade de haver representatividade das mulheres nos cargos públicos e, ainda, eletivos, seria ainda menor nos dias atuais. Esta conquista, infelizmente, estava longe de ser um pacífico avanço democrático do Parlamento brasileiro. Pelo contrário, foi resultado da pressão das mulheres e dos movimentos feministas daquele período histórico com a articulação política das poucas parlamentares da Constituinte que conseguiram mobilizar o país de norte a sul, de leste a oeste, para “sensibilizar parlamentares e pressionar outros tantos a fim de que elas mesmas pudessem apresentar emendas populares capazes de eliminar séculos de subordinação legal
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das mulheres e colocar em discussão sua exclusão das instâncias de poder” (SILVA; WRIGHT, 2015, p. 178). Para estudar a participação dos movimentos feministas na última Constituinte brasileira e suas influências no texto da Constituição Federal será utilizado o método de procedimento de revisão bibliográfica das pesquisas já produzidas sobre o tema para, assim, (re)conhecer a importância dos feminismos como instrumento essencial na conquista de igualdade, refletido, sobretudo, no Direito brasileiro e na sua construção.
2. Mobilização dos movimentos feministas na Assembleia Nacional Constituinte A Assembleia Nacional Constituinte de 1987-1988 foi composta por apenas 26 parlamentares mulheres (sendo uma delas licenciada para atuar como Secretária da Cultura do Estado de São Paulo), de um total de 559 parlamentares constituintes (SARMENTO, 2009). Proporção com visível baixa representatividade do segmento feminino e na preocupação com política de igualdade das mulheres que, inclusive, refletia nas longas falas dos parlamentares homens que tomavam mais tempo nas discussões sobre uma falsa igualdade, como por exemplo, na Comissão da Soberania e dos Direitos e Garantias do Homem e da Mulher, onde havia somente 4 mulheres dos 59 assentos (CORREIA; ALBUQUERQUE; ASSUNÇÃO, 2017). Com isso, é possível observar como as legislações foram historicamente escritas por uma classe que não enxergava (ou não queria enxergar) as mulheres como sujeitos de direito, evidenciando que as decisões relativas às mulheres eram tomadas pelos homens (MILLETT, 1969), e denunciando a importância dos movimentos feministas se articularem para garantirem a igualdade entre mulheres e homens no texto constitucional. Percebendo a importância da interlocução com o Estado, as teóricas, militantes e juristas feministas, passaram a intervir na construção de políticas e textos constitucionais para pleitear direitos das mulheres e, assim, ampliar a cidadania feminina (BARBOZA; TOMAZONI, 2018). Neste cenário, buscando o reconhecimento dos direitos das mulheres na Constituição e, com isso, consolidar a ordem democrática do país, foi criado 147
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um movimento que atuou na Assembleia Nacional Constituinte de 1987-1988, conhecido como “Lobby do batom”, articulando aspectos de democracia participativa e representativa, com atuação firme para que fossem asseguradas as garantias de direitos das mulheres na Constituição, visando suprir o déficit de representação feminina (SILVA; WRIGHT, 2015). Esta atuação foi inicialmente denominada como “Lobby do batom” de maneira pejorativa e depreciativa pelos demais parlamentares, para inferiorizar e enfraquecer o movimento, porém tomou tal proporção que afigurou como uma importante estratégia política para reivindicar, propor, pressionar e garantir direitos pela igualdade das mulheres no Brasil (SILVA, 2008). Ademais, se mostrou um importante grupo de pressão política identificado como o instrumento utilizado para garantir às mulheres status constitucional que lhes conferisse direitos e as reconhecesse como cidadãs (SILVA, 2008). Além de, no início, o movimento ser menosprezado pelos parlamentares (PIMENTA, 2010), as mulheres ainda tinham que lidar com as entrevistas dos jornalistas que, enquanto questionavam aos parlamentares homens sobre os direitos a serem assegurados na nova Constituição, o futuro das relações trabalhistas e outros tópicos relacionados à lei, indagavam às parlamentares mulheres sobre suas roupas e perfumes, elegiam uma musa, também em desrespeito da atuação feminina (LIMA, 2007). Contudo, sem se deixar intimidar pelas (o)pressões sociais daquela época, a atuação das mulheres e dos movimentos feministas, em conjunto com o Conselho Nacional dos Direitos da Mulher (CNDM) lançaram, em 1985, a campanha “Mulher e Constituinte”, permitindo que discussões e debates acontecessem durante meses, por todo o país, resultando na elaboração da “Carta da Mulher Brasileira aos Constituintes” entregue ao Congresso Nacional, onde nasceu chamado “Lobby do batom” (LIMA, 2007). Consta em trecho introdutório desta Carta: (...) o CNDM percorreu o país, ouviu as mulheres brasileiras e ampliou os canais de comunicação entre o movimento social e os mecanismos de decisão política, buscando fontes de inspiração para a nova legalidade que se quer agora. (...) Nós, mulheres, estamos conscientes que este país só será verdadeiramente democrático e seus cidadãos e cidadãs verdadeiramente livres 148
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quando, sem prejuízo de sexo, raça, cor, classe, orientação sexual, credo político ou religioso, condição física ou idade, for garantido igual tratamento e igual oportunidade de acesso às ruas, palanques, oficinas, fábricas, escritórios, assembleias e palácios. (BRASIL, 1987)
Com o crescimento desta nova organização política e dos movimentos feministas, o espaço para o debate foi sendo conquistado e, diante disso, houve o reconhecimento dos direitos das mulheres, refletido, por exemplo, no artigo 5º da Constituição, alcançando a igualdade formal no texto constitucional e, consequentemente, na releitura das outras normas jurídicas. A Constituinte de 1987-1988 pode ser considerada uma da etapa percorrida e vencida na busca por igualdade, pois foi um momento político do país que marcou de forma inédita a participação de mulheres na elaboração de um texto constitucional através de um movimento civil de mulheres organizadas que reivindicaram uma série de mudanças no ordenamento jurídico brasileiro, como forma de rompimento com uma cultura legislativa discriminatória e machista, fazendo com que as mulheres usufruíssem de status jurídico formal de igualdade com os homens – o que foi uma grande evolução, considerando que até 1962 o status legal da mulher casada era de pessoa relativamente incapaz, implicando em limitações para diversos atos da vida civil (LOIS; CASTRO, 2018). Deste modo, sem as mobilizações destes movimentos na Constituinte, a Constituição e até o próprio Direito se confirmariam como um sistema que propulsiona desigualdades em vez de combatê-las, sem qualquer pluralidade nos centros de teoria crítica e nos espaços de poder (NUNES; VIANNA, 2017). Algumas das reivindicações previstas na “Carta da Mulher Brasileira aos Constituintes” foram incorporadas ao ordenamento jurídico brasileiro somente décadas depois, como a incorporação do crime sexual enquanto crime contra a pessoa e não contra o costume, que só foi alterado por legislação infraconstitucional em 2009, e as reivindicações quanto à retirada do termo “mulher honesta” do Código Penal e abolição do crime de adultério, que vieram a se concretizar 17 anos depois da Assembleia Constituinte, em 2005. (LOIS; CASTRO, 2018) A mobilização das mulheres e dos movimentos feministas demostram que a influência das relações de sexo na organização política e ordenamento jurídico traz uma normatização que confirma a desigualdade, e através do 149
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próprio direito que se torna sexista, acaba se ordenando uma sociedade com base na marginalização das mulheres, o que implica na dificuldade em compreender a condição de cidadania das mulheres e, portanto, tal normatização as exclui do poder e deslegitima ações e teorias que reivindicam um igualitário empoderamento, seja social, político ou econômico (MONTAÑEZ, 2014). Do ponto de vista da representatividade na Assembleia Nacional Constituinte, além da sub-representação das mulheres em 4,6% do total de congressistas, este fenômeno também ocorria com afrodescendentes e indígenas, porquanto apenas 11 constituintes eram negros, o que corresponde a 2% dos constituintes, e nenhum indígena (SARMENTO, 2009). Neste sentido, diante do período de transição democrática, de mudança nas leis fundamentais, a atuação das mulheres e dos movimentos feministas se mostraram de grande relevância na busca por conquistas de direitos e no desenho do modelo de Estado, pois a Constituição Federal, em termos de direito, se mostra como o instrumento fundante do Estado democrático, uma Carta Política escrita a diversas mãos que inaugurou, no território brasileiro, um estado de expectativa e busca por melhores condições de vida para toda a população (SILVA, 2008). A redação do atual texto constitucional que explicita um Estado Democrático de Direito garantindo igualdade, ressaltando que todos são iguais perante a lei sem distinção de qualquer natureza e refletindo nos termos de direitos e obrigações (URTADO; PAMPLONA, 2018), teve influência direta da atuação das mulheres e dos movimentos feministas na Constituinte de 19871988, afinal as principais disposições de igualdade das mulheres na Constituição Federal foi resultado das reivindicações desta atuação.
3. Conquista da igualdade das mulheres no texto constitucional A Constituição Federal de 1988 significou um marco legislativo no plano jurídico nacional no que diz respeito aos direitos das mulheres e à ampliação de sua cidadania, mobilizando o país inteiro a apresentar emendas populares capazes de eliminar o período anterior de subordinação legal das mulheres e sua exclusão das instâncias de poder (SILVA, 2008). 150
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Esta atuação feminista trouxe grandes reflexos inclusive na interpretação de leis infraconstitucionais, através da demanda pela garantia do princípio da igualdade jurídica acolhida pela Constituição Federal que se estendeu para crianças, adolescentes, população negra, pessoas com deficiência, idosos e presidiários, influenciados pelo “Lobby do batom” (SILVA, 2008, p. 8). A mobilização e articulação feminista foi um instrumento de participação jurídico-política de extrema importância, pois contribuiu também para que o próprio Estado pudesse observar que a igualdade de gênero é direito de todos e todas como também dever e obrigação das instituições estatais (SILVA, 2008). O princípio constitucional da igualdade também foi contemplado no âmbito das relações domésticas e familiares, influenciado no plano da legislação infraconstitucional, notadamente nos campos do Direito de Família e Direito Penal através da garantia prevista no artigo 226, § 5º, da Constituição e, com a inclusão do § 8º neste mesmo artigo, que também se estabeleceu grande avanço no desvelamento da violência doméstica, reconhecendo que o Estado deveria coibir a violência nas relações familiares, cuja repercussão fora aprimorada diante da Lei Maria da Penha, criminalizando os atos de violência nas relações familiares (SILVA, 2008). Com a aprovação de vários dos direitos que reivindicaram em primeiro turno, o Conselho Nacional dos Direitos da Mulher atuou firmemente a fim de que fossem minimamente mantidas no texto constitucional algumas disposições a respeito de: (I) licença maternidade de 120 dias; (II) licença paternidade de 8 dias; (III) a proibição de diferença salarial entre homens e mulheres; (IV) a criação de creches em empresas; (V) educação gratuita para crianças de 0 a 6 anos; (VI) igualdade de direitos e deveres inclusive na sociedade conjugal; (VII) reconhecimento da união estável como entidade familiar; (VIII) direito de posse à terra; (IX) direitos trabalhistas e previdenciários das empregadas domésticas; e (X) garantia de instituição de mecanismos que coibissem a violência doméstica (URTADO; PAMPLONA, 2018). Até a aprovação destes direitos, observa-se um atraso nas discussões sociais, políticas e jurídicas, na perspectiva brasileira. Notadamente, percebe-se no Código Civil de 1916, anterior à mentalidade da Constituição de 1988, que o casamento, categorizado como base da sociedade, era indissolúvel e se consumava no exercício da sexualidade e voltado à reprodução, implicando em
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uma norma jurídica que instrumentalizada o corpo da mulher à reprodução e propriedade do marido (BAGGENSTOSS, 2017). Tanto que, após a promulgação da Constituição com a consequente mudança na leitura nas demais normas jurídicas, houve a criação de outras leis para respaldar os ditames constitucionais, como as Leis nºs 9.029/95 e 9.799/99 que vedam toda e qualquer forma de discriminação referente ao trabalho da mulher; Lei nº 10.886/04 que criou o tipo especial denominado violência doméstica no Código Penal; Lei nº 11.340/06 conhecida como Lei Maria da Penha; Lei nº 9.504/97 que dispõe sobre candidaturas nas eleições de pelo menos 30% e no máximo 70% para cada sexo; Lei nº 13.104/15 que incluiu o feminicídio no rol dos crimes hediondos (BONATTO; KOZICKI, 2018), entre outras. Legislações estas que podem ser interpretadas como avanço ou, também, como uma problemática efetivação dos direitos conquistados pelas mulheres, pois foi necessária a criação de outras normas para perfectibilizar as disposições constitucionais de igualdade entre mulheres e homens, considerando a tradição brasileira do direito positivado como sistema de civil law. De qualquer modo, o constitucionalismo inaugurado com a Constituição de 1988 se mostrou favorável às práticas de equiparação entre mulheres e homens no ordenamento jurídico-constitucional, apontando para a incorporação de regras e princípios de igualdade de gênero, na busca de uma sociedade livre, justa e solidária (SILVA; GUINDANI, 2018). No processo político da Constituinte, a participação das 26 deputadas democraticamente eleitas que impulsionou um movimento civil de mulheres organizadas e reivindicou uma série de mudanças no ordenamento jurídico brasileiro, possui uma representatividade de 4,65% (LOIS; CASTRO, 2018). Por este motivo é importante ressaltar a atuação das mulheres e dos movimentos feminista neste contexto, afinal a Constituição brasileira vigente não seria da forma como é hoje se não fosse pela atuação destes movimentos. Apesar de que, historicamente, depois da conquista do direito ao voto, os movimentos feministas no Brasil recuaram e, com a instauração do regime autoritário no país, a mobilização conjunta das mulheres retomou sua força na década de 1970, sendo que, por volta de 1980 e 1981, vários grupos foram formados por todo o Brasil, propondo reflexões mais amplas sobre os direitos da mulheres, como sexualidade, saúde, estudos, violência, entre outros temas (ALVES; PITANGUY, 1985). 152
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Por isso, no Brasil, os movimentos feministas contemporâneos conquistaram mais espaço e maior proporção no contexto das lutas democráticas e resistência contra o regime militar, pois as reivindicações das mulheres eram diluídas com os outros movimentos sociais contra o Estado, materializado no inimigo em comum o próprio regime ditatorial. Não obstante, também se empenharam no debate sobre a desigualdade entre mulheres e homens, trazendo novas questões para o debate público, como violência doméstica, direito ao prazer, a discriminação sofrida por mulheres na força de trabalho e sua exclusão das esferas de tomada de decisões (SARDENBERG; COSTA, 2012). A representatividade das mulheres nos espaços sociais também deve ser questionada, e por isso é importante a atuação de movimentos feministas para promover a visibilidade política das mulheres, considerando que não há uma representação adequada e isso reflete nos espaços de poder (BUTLER, 2003). A esfera pública, como espaço em que se dá a discussão entre iguais, depende da solução dos problemas relativos à desigualdade na esfera privada, com a exclusão das mulheres (MIGUEL; BIROLI, 2014). A própria construção da democracia corresponde ao enfrentamento dos problemas de redução da subordinação e a criação de uma sociedade mais democrática, assegurando uma igualdade robusta como sua base (MIGUEL; BIROLI, 2014). Com a atuação das mulheres e dos movimentos feministas na Constituinte brasileira, percebe-se que a Constituição de 1988, além de representar um marco para a democracia do Brasil rompendo com um passado antidemocrático e autoritário, também se mostra como um novo caminho para a igualdade entre cidadãos e cidadãs, consolidando uma democracia constitucional que representa não só a soberania popular como vontade da maioria, mas também garantia dos direitos da minoria (BARROSO; OSÓRIO, 2014). É importante ressaltar a participação das mulheres no debate constituinte como forma de respeitar a democracia, afinal uma Constituição apenas se mostra efetivamente democrática quando traduz os interesses e necessidades de diversos segmentos da população para, assim, garantir os respectivos direitos, e isto ocorre apenas se houver espaço para participação ativa da sociedade (PIMENTEL, 1985), para que a Constituinte – e consequentemente a Constituição – respeite a ordem democrática (PIMENTEL, 1985). Por isso, vê-se que a atuação das mulheres e dos movimentos feministas teve inigualável influência para o texto constitucional ter sido construído da for153
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ma como o temos até hoje e, ainda, seus reflexos na democracia e organização do Estado brasileiro, afinal com a Constituição de 1988 “o constitucionalismo brasileiro, pela primeira vez, registra a igualdade entre os sexos, a não discriminação e a proteção da dignidade das mulheres” (SALDANHA, 2018, p. 110). Entretanto, apesar da revolucionária garantia dos direitos das mulheres na Constituição, em termos de igualdade formal, por prever igualdade de gênero em direitos e obrigações, assim como na sociedade conjugal, no salário, no exercício de funções, planejamento familiar, entre outros, ao mesmo tempo, é preciso reconhecer que, no plano da igualdade material, ainda há muito a ser alcançado, como participação da mulher no mercado de trabalho, o exercício de direitos sexuais e reprodutivo, bem como o combate à violência doméstica (BARROSO; OSÓRIO, 2014). Por conta disso, é necessário o estudo da Constituição a partir de uma perspectiva feminista, como resultado de um pensamento crítico feminista que vem modificando o mundo político-jurídico e construindo novos conceitos a partir das noções de poder, justiça, liberdade e recontextualizando a igualdade diante do Estado a fim de formular propostas concretas e corrigir as injustiças baseadas na dinâmica de dominação/subordinação entre homens e mulheres, masculino e feminino, que acarretam prejuízos ao acesso das mulheres ao espaço público e, por consequência, de poder (BARBOZA; TOMAZONI, 2017). Por estes notáveis avanços legislativos, possível reconhecer a repercussão disso na democracia e organização do Estado brasileiro, ante da igualdade jurídica alcançada pelas mulheres, e também nos demais níveis de igualdade, como também de etnia, idade, classe social e outros seguimentos sociais.
4. Considerações finais A atuação dos movimentos feministas na Constituinte brasileira de 1987-1988 representou mais do que a garantia dos direitos de igualdade entre mulheres e homens expressamente descrito no corpo da Constituição Federal. Esta atuação trouxe, sobretudo, condições de igualdade de sexo, etnia, idade, classe social, como demonstrado, o que representa forte influência na democracia e organização do Estado brasileiro.
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Portanto, os resultados obtidos confirmam que a atuação das mulheres teve influência para a garantia de igualdade formal no texto constitucional. O que não significa dizer, infelizmente, que a igualdade material também tenha sido alcançada. Diante do contexto histórico em que foi instituída a Assembleia Nacional Constituinte, pelo grave histórico de abusos e violências ocorridas no regime da ditadura, percebe-se que a Constituição de 1988 resultou em um texto prolixo, justamente para garantir direitos que, na época, inexistiam ou, caso existissem, eram desrespeitados sem qualquer constrangimento ou punibilidade ao agente coator. Como exemplo, o caput do artigo 5.º, onde dispõe que “todos são iguais perante a lei”, ainda complementa “sem distinção de qualquer natureza” e, no inciso I, frisa que “homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações”. Contudo, ainda 30 anos depois, mesmo expressamente descrita esta igualdade, a sociedade brasileira parece que ainda não se adaptou completamente. No contexto do Brasil, apesar do constitucionalismo nascer em 1824, e a atual Constituição de 1988 ser a que mais reconheceu direitos, a ideia de igualdade ainda não é uma concepção partilhada entre todos e todas. Neste cenário, a atuação dos movimentos feministas na incansável busca por igualdade é fundamental, eis que construídos a partir das resistências, derrotas e conquistas que compõe a história das mulheres, se apresentam como movimentos vivos, onde lutas e estratégias estão em permanente processo de recriação, e na busca se superar as relações hierárquicas entre homens e mulheres, alinha-se a outros movimentos que lutam contra a discriminação em suas diferentes formas (ALVES; PITANGUY, 1985). A crítica feminista sugere mudanças fundamentais na maneira como devemos perceber o próprio Direito (RABENHORST, 2010), e os movimentos feministas se mostram como protagonistas e agentes de mudanças do status quo da desigualdade, em especial na Constituinte brasileira de 1987-1988. Momento histórico no qual aparecem outros movimentos que buscam liberdade e acusam opressões para romper desigualdades. Em 30 anos de redemocratização do Brasil e de vigência da Constituição de 1988, poderia se imaginar que a igualdade plena entre mulheres e homens afirmadas pela Assembleia Constituinte no texto constitucional já seriam cumpridas na sociedade, entretanto a realidade que se apresenta é substancialmente diferente, a igualdade entre mulheres e homens é apenas formal, e
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há muito a que avançar para que todos sejam materialmente iguais perante a lei e a sociedade (SANTOS, 2017). O Brasil ocupa a 133ª posição no Ranking de Representatividade das Mulheres no Legislativo2, mesmo havendo o reconhecimento de igualdade formal e dos direitos políticos das mulheres, a representatividade ainda é assustadoramente baixa: nas últimas eleições de 07 de outubro de 2018, de um total de 513 vagas, apenas 77 cadeiras foram ocupadas por mulheres na Câmara dos Deputados, representando 15% do total de parlamentares; e no Senado Federal, de 81 senadores, somente 12 mulheres foram eleitas, representando 14.8% do Senado. É possível perceber, com isso, que a atuação dos movimentos feministas na Constituinte brasileira foi essencial e imprescindível para o reconhecimento dos direitos das mulheres e de igualdade na Constituição de 1988, afinal não teríamos um texto constitucional tão combativo às desigualdades se não fosse por esta árdua e intensa luta vivida na Constituinte. Mesmo assim, a igualdade material não se mostra conquistada ainda, como facilmente se observa por uma série de fatores: As mulheres ainda recebem menores salários, apesar de possuírem qualificações profissionais superiores aos homens. Apesar de serem maioria no país e representarem a maior parte do eleitorado brasileiro, elas não têm representatividade significativa no parlamento, que continua sendo ocupado por homens, brancos, e burgueses. O índice de feminicídio no Brasil é considerado o mais alto do mundo. Além disso, a mulher é considerada objeto sexual pela mídia o que causa transtornos físicos e psíquicos nas meninas que buscam a ‘beleza perfeita’. Até mesmo nas penitenciárias brasileiras, há resquícios de desigualdade de gênero, pois em muitos estabelecimentos prisionais as detentas não têm direito à visita íntima, o que é notoriamente conferido universalmente aos detentos. Ademais, as meninas de baixa renda têm menos chances de ascender na vida que meninos da mesma classe social, pois com o alto índice de gravidez precoce, são obrigadas a abandonar a escola para cuidar de seus filhos e exercer atividades domésticas. (SILVA; GUINDANI, 2018, p. 324)
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Inter-Parliamentary Union. Women in national parliaments: http://archive.ipu.org/wmn-e/classif.htm.
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Não se pode subestimar o caminho de luta até hoje percorrido, “porém, ainda estamos longe dos padrões mínimos de igualdade exigíveis em uma sociedade que se pretenda democrática, justa para todos e fundada na dignidade da pessoa humana” (BARROSO; OSÓRIO, 2014). Por esta razão, importante promover o estudo de uma perspectiva feminista sobre as desigualdades dentro do Direito, contribuindo para a (re)construção de uma sociedade mais justa e igualitária.
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O Programa de Compliance sob a Perspectiva de Gênero como Ferramenta de Promoção da Igualdade de Condições e Oportunidades para Homens e Mulheres no Poder Judiciário Michelle de Souza Gomes Hugill1
Introdução O tema compliance sob a perspectiva de gênero decorre da necessidade de se estudar acerca da efetiva participação das mulheres – em pé de igualdade com os homens –, no mercado de trabalho e espaços públicos e privados, nos termos dos direitos fundamentais positivados na Constituição da República Federativa do Brasil (CRFB), em seu art. 5º, caput, e inc. I2. Ocorre que essa igualdade garantida constitucionalmente não se observa devidamente replicada na vida real, seja quanto aos direitos – quando se observa a histórica desigualdade de oportunidades e de salários, por exemplo –, seja quanto às obrigações – considerando as jornadas duplas ou triplas atribuídas às mulheres, que trabalham, estudam e são as principais responsáveis pelas tarefas do lar e dos cuidados com os familiares. Isso porque, os processos das relações constituídas no dia-a-dia, ainda que de forma inconsciente, estão inseridas ao longo contexto histórico do patriarcado e do domínio do masculino sobre o feminino, atribuindo-lhes diferentes papéis sociais, os quais afastam as mulheres dos espaços públicos, ofe1
Mestranda em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Especialista em Gestão Pública (UFSC, 2017). Especialista em Direito Público (FURB, 2017). Bacharel em Administração Pública (UFSC, 2014) e em Direito (UNISUL, 2013). Servidora do Tribunal de Justiça de Santa Catarina (desde 2002), atualmente lotada na Coordenadoria Estadual da Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher (CEVID/TJSC).
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Extrai-se do texto constitucional: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualde, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: I – homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição” (CRFB, 2018, art. 5º, caput, I)
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recendo-lhes menos oportunidades e rótulos de “rainhas do lar”, superficiais e sentimentais. Tudo isso em detrimento dos valores atribuídos ao masculino, estes tidos como desejáveis (NICKNICH, 2016 pp. 182-183). Assim, a escolha do tema decorre justamente da oportunidade de realizar uma pesquisa mais aprofundada sobre os institutos do compliance e da igualdade de gênero, ambos contemporâneos, inseridos na seara do Direito e com grande potencial de aplicação prática, além do debate acadêmico ainda em construção. Diante do frescor do tema no meio jurídico, o raciocínio desenvolveu-se tomando por base a experiência vivenciada em outros segmentos privados, dentro das limitações inerentes ao volume de material disponível, a despeito da ampla pesquisa desenvolvida. Realizada esta breve contextualização, que antecipa a amplitude do tema, importante se faz delimitar o recorte utilizado. Este artigo busca levar à reflexão acerca de possíveis estratégias capazes de influenciar as relações sociais internas no sentido de mitigar a violência de gênero e oportunizar igualdade de condições às mulheres no mercado de trabalho, em especial no setor público, inclusive no tocante ao acesso aos cargos de decisão, por exemplo. Nesse ínterim, a ideia de criação de um programa de compliance se justifica exatamente pela necessidade de imprimir maior segurança às questões de gênero. Segundo Freitas (2008, p. 34), “existe falta comprometimento da liderança com a diversidade de gênero e, muitas vezes, se aplica o foco errado ao adotar políticas internas”. Diante desse contexto, as empresas têm investido recursos significativos em compliance, embora não se tenha muita clareza sobre a funcionalidade do programa. Algumas orientações podem ser extraídas das cartilhas fornecidas pelos órgãos de controle, em contexto mais genérico. De forma geral, no entanto, as empresas acabam ‘trabalhando às cegas’ em busca da definição dos pormenores práticos. Poucas são aquelas que ultrapassam a elaboração de repetitivos e inócuos códigos de ética. No âmbito público a situação não é diferente, pois a pequena igualdade existente no ingresso da carreira – que se dá por concurso público – diminui quando a mulher tentar alçar níveis superiores – quando os cargos são comissionados ou por indicação. Enquanto no setor privado, as mulheres estão em 37% dos cargos de chefia nas empresas, no setor público são 21,7% (ALMEIDA, 2017). 164
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Na esfera pública, ao passo que nas carreiras iniciais há 44,95% de mulheres, nos cargos mais altos, há apenas 21,7%. No Poder Judiciário, entre os ministros do STF, há apenas 2 mulheres para 9 homens e no STJ, há apenas 6 mulheres para 27 homens, de modo que 18,2% dos cargos mais altos do Poder Judiciário são ocupados por mulheres (ALMEIDA, 2017). Em Santa Catarina, a proporção é de 15%, considerando haver 14 mulheres dentre os 92 cargos de desembargador atualmente existentes. Aliás, cabe lembrar que em toda a história do Poder Judiciário catarinense, apenas uma mulher – Thereza Grisólia Tang – alcançou o posto de presidente e duas mulheres – Thereza Grisólia Tang e Salete Silva Sommariva – ocuparam o cargo máximo na Corregedoria-Geral da Justiça. Porém, ambas exerceram “mandatos-tampão”, que são aqueles que assumidos para substituir o titular por curto período (TJSC, 2019). Cabe destacar que em 2018, no âmbito do Poder Judiciário, o CNJ editou duas resoluções importantes sobre o enfrentamento à violência contra a mulher. A Resolução CNJ n. 254/2018 que instituiu a Política Judiciária Nacional de enfrentamento à violência contra as Mulheres pelo Poder Judiciário e conceitua violência institucional e a Resolução CNJ n. 255/218 que instituiu a Política Nacional de Incentivo à Participação Institucional Feminina no Poder Judiciário. Além disso, importa ressaltar que o Superior Tribunal de Justiça (STJ) firmou um termo de cooperação técnica com a ONU Mulheres Brasil no dia 28-22019 visando o “desenvolvimento da equidade de gênero, promoção de ações para a redução das desigualdades de gênero, raça e etnia e colaboração para o cumprimento dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável” (ONU Mulheres, 2019). O acordo trata-se de um exemplo de que “como o Judiciário pode desenvolver uma agenda de igualdade de gênero norteada para o empoderamento das mulheres” e inclui a adesão do STJ ao movimento ElesPorElas e estudos sobre a participação feminina no STJ, bem como da promoção de “ações de prevenção ao assédio sexual, identificação de decisões emblemáticas do Tribunal nos temas de gênero, raça e etnia e ações internas para o empoderamento das mulheres e igualdade de gênero” (ONU Mulheres, 2019). Oportuno mencionar que em 2018, o Poder Judiciário Catarinense desmembrou a competência da violência contra a mulher do Grupo de Monitoramento e Fiscalização e criou a Coordenadoria Estadual de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher (Cevid), o que demonstra a intenção de alinha165
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mento da alta administração com a temática. Contudo, embora a Cevid venha desenvolvendo ações e formando parcerias para minimizar a violência contra as mulheres catarinenses, não há uma política institucional explícita e voltada para as mulheres que integram o corpo do Poder Judiciário catarinense. Diante disso, questiona-se se a implementação de um programa de compliance sob a perspectiva da igualdade de gênero seria uma ferramenta capaz de promover a igualdade de condições e oportunidades para homens e mulheres no Poder Judiciário. A criação de um programa de compliance sob a ótica da equidade de gênero poderá ser auxiliar o Poder Judiciário a ser alinhar às diretrizes mundiais de desenvolvimento sustentável encampada pela ONU, aos tratados internacionais e às Resoluções n. 254/2018 e 255/2018 do Conselho Nacional de Justiça, de forma a promover não apenas igualdade de oportunidades, mas também igualdade de condições às mulheres no acesso aos cargos de gestão e decisão. Sabe-se que se trata de uma tarefa árdua, não apenas por se tratar de um tema não muito debatido no âmbito acadêmico e muito menos nas instituições públicas, cujas relações de poder e de predominância do modelo vigente – valorização dos atributos masculinos – ainda é bastante forte. Por outro lado, não é menos sabido que “os gêneros não são opostos, mas criações históricas, sociais, políticas e culturais em que os comportamentos são aprendidos através de um processo de socialização que condiciona o que vem a ser o diferente” (NICKNICH, 2016 p. 183). Desse modo, a implementação de um programa de compliance sob a luz da equidade de gênero pode ser uma ferramenta de transformação cultural nas relações dentro do Poder Judiciário, por meio de campanhas de informação, da instrução e capacitação de magistrados e servidores e poderá minimizar as violências contra a mulher – seja ela doméstica, social ou institucional – e possibilitar um ambiente mais igualitário e harmonioso.
2. Compliance: conceito e importância no setor público A Constituição de 1988 proclama que a Administração Pública se funda nos princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência (CF, art. 37), direcionando o país à efetivação da democracia, por meio 166
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de ferramentas de controle e garantias de direitos aos seus cidadãos, inclusive de viver em uma sociedade igualitária, justa e solicitaria. Além disso, o Brasil é signatário da Convenção Interamericana contra a Corrupção (1996)3, documento este que determina a adoção de normas de conduta aos servidores públicos, com o estabelecimento de metas, exigência de condutas íntegras, como de programas de prevenção, detecção e punição da corrupção no exercício da função pública, dando ensejo à implementação dos programas de integridade (compliance). Quanto à definição de compliance – cuja origem advém do verbo inglês “to comply” –, tem-se que “significa obedecer a uma regra, um comando, um regulamento, ou seja, estar em conformidade com determinadas leis, normas e regras” (MIRANDA, p. 30). Compliance é conceituado pelo Decreto nº. 8.420/2015 como um: [...] conjunto de mecanismos e procedimentos internos de integridade, auditoria e incentivo à denúncia de irregularidades e na aplicação efetiva de códigos de ética e de conduta, políticas e diretrizes com objetivo de detectar e sanar desvios, fraudes, irregularidades e atos ilícitos praticados contra a administração pública, nacional ou estrangeira.
No âmbito das organizações públicas, o compliance vem ao encontro da governança, uma vez que se preocupa com a integridade e compromissos éticos dos agentes públicos, relacionando-se com “a probidade, a objetividade nas práticas organizacionais, no uso de recursos públicos e no desempenho das atividades da organização” (NOHARA, 2018, p. 334). Acerca do tema, Nohara (2018, p. 340) destaca: A gestão pública é instada normativamente, pelas novas regras de governança pública, a introjetar nas práticas administrativas a gestão de riscos. Tal orientação é derivada sobretudo de duas vertentes normativas: (a) a Instrução Normativa (IN) MP/CGU n. 1/2016, que dispõe sobre controles internos, gestão de riscos e governança no âmbito do Poder Executivo Federal, inspirada na ISSO 31000; e (b) o Decreto n. 9.230, de 22.11.2017, que regula a política de governança da Administração Pública Federal direta, autárquica e fundacional (NOHARA, 2018, p. 340).
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Ratificada pelo Brasil por meio do Decreto 4.410/02.
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Como se vê, compliance e governança caminham lado a lado. Ao passo em que o compliance foca basicamente no agir em conformidade com as regras e com a reputação da instituição, a governança é mais ampla, uma vez que trabalha aspectos mais subjetivos de seus agentes. Procura mudar seu mindset, influenciar de forma positiva na construção de valores éticos e profissionais para uma atuação mais responsável (BoardPlace, 2018). Observa-se que há uma tendência mundial para a adequação das instituições – privadas ou públicas – às diretrizes básicas de compliance e governança, levando-as a incorporar padrões éticos exigidos assumidos por meio dos Tratados Internacionais. Silverman (2008)4 esclarece que, nas duas últimas décadas, o conceito de compliance tornou-se cada vez mais entrelaçado com a governança do nosso modelo complexo de organizações. De fato, responsabilidade, transparência, adesão a leis e regulamentos, conduta ética e os padrões de conduta e comportamento se transformaram em uma grande parte de como as organizações gerenciam seus parceiros e suas missões primárias e operações. A criação de regras de conduta é o pilar que norteia os deveres e obrigações. Nas empresas estão traduzidas principalmente por meio de Códigos de Ética (ou Códigos de Conduta), que são um dos mais importantes instrumentos na inauguração de um programa de compliance. Dessa forma, o Código de Ética deve ser um documento vivo que promova a cultura organizacional e encoraje um agir alinhado e ético, comprometido com as diversas regulamentações e leis (BATISTI, p. 135). O compliance público também é previsto na Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção, adotada pela ONU em 20135, a qual dispõe acerca da necessidade de institucionalização de programas de gestão dos bens públicos, de integridade, transparência e controle das contas, bem como a criação de códigos de conduta para os servidores públicos, objetivando a prevenção de 4
“In the last two decades, Ge concept of compliance has become increasingly intertwined with Me governance of our modern complex organizations [...] Indeed, accountability, transparency, adherence to laws and regulations, ethical conduct, and standards of conduct and behavior hax e become as much a part of how organizations manage their aKairs as Meir primacy mission and operations. This sinaple fact applies to organizations in the public, private, and nonprofit sectors of our economy” (Silverman, p. 27).
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Ratificada pelo Brasil por meio do Decreto n. 5.687/06.
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atos de corrupção e conflitos de interesses, além da valorização da integridade, honestidade e responsabilidade, aliados à criação de mecanismos de denúncia e adequada punição em seu Capítulo II. Apesar da importância da prevenção para evitar o desfalque das contas públicas – causado pelos desvios e abusos de gestores e servidores – a legislação brasileira parece focar na punição dos transgressores conforme se extrai na Lei de Ação Popular, de Ação Civil Pública, de Improbidade Administrativa, de Licitações, de Responsabilidade Fiscal, dos Crimes de Responsabilidade, de Acesso à Informação, dos Códigos Penal e Eleitoral, entre tantas outras. No entanto, investir nas punições não se mostra muito eficaz, considerando a dificuldade de recuperação dos ativos, principalmente na mensuração dos prejuízos, aliadas à lentidão dos julgamentos seja pelo excesso de demanda do Poder Judiciário, notadamente devido ao grande número de possibilidade de recursos. Em relação à implementação de compliance não existe um modelo rígido, contudo é necessário que haja [...] articulação estruturada, consistente e perene de diferentes iniciativas, como a definição e comunicação de valores éticos e competitivos pela alta direção, a criação de um código de conduta com regras claras e o desenvolvimento de estruturas para detecção e correção de falhas e infrações (MENDES, Locais do Kindle 1651-1655).
Além disso, a aplicação do compliance na seara pública pode se basear em exemplos oriundos de outros países tais como os Estados Unidos da América que, já na década de 70 possuíam legislação visando à prevenção de atos ilícitos na esfera pública, tais como a Foreing Corrupt Pratique Act e a Ethic in Government Act. Ou, ainda, da Itália, cuja lei anticorrupção (Lei n. 190/2012), prevê a autorregulação da Administração Pública, por meio de código de conduta específicos para cada setor (BREIER, 2015). Assim, ciente de que integridade é sinônimo de um Estado de Justiça, de democracia (e não com moralismo), é que a sociedade deve se manter firme na busca pela probidade na Administração Pública. Da mesma forma, a Alta Administração dos órgãos públicos precisa estar ciente da sua importância na construção de um país - ou de um Judiciário, no caso desta pesquisa –, reconhecido pela sua ética e responsabilidade com a coisa pública, conforme destaca Cunha Serpa: 169
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O Suporte da Alta Administração pode ser entendido como um dos pilares mais importantes, senão o mais importante, de um programa de compliance, pois, não somente estamos falando de uma questão de alocação de recursos para o programa, mas também das ações e exemplos dos gestores da empresa – em todos os níveis de gestão e não apenas no primeiro escalão ((Locais do Kindle 581-585).
No tocante ao Poder Judiciário, o compliance poderá ser fundamentado na própria Constituição Federal (art. 37) e na Lei de Improbidade Administrativa, conforme sugere Cajango (2017): Em relação ao Poder Judiciário, o programa de compliance poderá ter como ponto de partida os princípios que regem a Administração Pública, previstos no artigo 37, da Constituição Federal, bem como o disposto na Lei n. 8.429/92 (Lei de Improbidade Administrativa). O magistrado poderá criar um estatuto básico, um programa específico e pormenorizado, que não apenas identifique as potenciais atividades que atentam a moralidade administrativa, mas que também introduza maneiras de se gerir tais riscos, de forma a mitigá-los. Para que o programa possa ser implementado, o responsável, no caso o magistrado, deverá ter conhecimento dos riscos que afetam sua equipe e como esses riscos influenciam a produtividade e o bom desempenho das funções, para a partir daí confeccionar o código de conduta, o qual deverá conter regras claras acerca do que fazer e do que não fazer. Quanto à fiscalização, poderão ser criados canais de denúncias, por meio de e-mail, telefone ou até mesmo presencialmente. Sobretudo, é importante que a população tenha conhecimento do regramento de compliance da Vara para que possa auxiliar no controle e zelo pela coisa pública. A comunicação e o treinamento dos servidores poderão ocorrer por meio de reuniões periódicas para discutir a respeito da produtividade e dos desafios encontrados, bem como reforçar as políticas de boa-conduta. Encontrados desvios de conformidade, os mesmos deverão ser registrados e deverão ser apresentados novos planos de ação que estabeleçam prazos para a correção e o monitoramento deve ser constante. Por fim, em caso de reiteradas faltas que comprometam o programa de conduta e a finalidade do serviço público, cabe ao magistrado aplicar a punição ou encaminhar ao setor responsável para fazê-lo. Em síntese, o compliance permite que o magistrado conheça melhor sua equipe e coloque em prática as medidas e normas necessárias para otimizar o serviço. (CAJANGO, 2017, P. 50) 170
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Atuar como organização ética é muito mais do que cumprir as regras: significa erradicar a cultura de tolerância. Assim, programas de compliance possuem estrutura organizacional interna que atendem a princípios éticos e com respeito à legislação pátria, de modo a que a função social da instituição seja cumprida e venha a ensejar a reabilitação, mesmo que haja sido declarada culposa (XAVIER PY, 2009).
3. Programas de integridade: a efetividade do compliance A Lei n. 12.846/13, instrumento legislativo que estabelece que as pessoas jurídicas poderão ser responsabilizadas objetivamente por práticas ilegais lesivas a administração pública, está associada a diversas outras normas regulamentadoras, como por exemplo, o Decreto Federal n. 8.420/15, as portarias n. 909/15 e 910/15 da Controladoria Geral da União, que em conjunto, alteraram o cenário ético relacional das empresas no Brasil. Os programas de integridade baseiam-se na ideia da preservação da instituição e é “com base nas premissas de preservação da imagem e mitigação dos riscos de sanções administrativas, civis e criminais, que se reforça o interesse legislativo na importância do chamado Programa de Integridade” (MANZI, 2008, p. 109-110). Nesse sentido, o que importa efetivamente analisar neste contexto é que todo esse complexo cenário normativo possui duas premissas fundamentais, quais sejam, uma premissa imediata de prevenção e outra, mediata, de responsabilização pelos atos desrespeito ao gênero feminino (PEREIRA JUNIOR, MARÇAL 2017). Pereira Junior e Marçal (2017) destacam que 42% das instituições pesquisadas não possuem um profissional dedicado à função de compliance ou de integridade. Some-se a isso o dado estatístico de que uma instituição pode perder 50% do seu valor de mercado por conta do dano de reputação, afastados os demais danos econômicos diretos. Assim, o programa de compliance (ou de integridade) deve ser pensado e estruturado, e não somente com a finalidade de conduzir à elaboração de códigos de ética e de conduta, mas para também beneficiar as boas práticas institucionais. Esta é a diferença entre a implantação de um efetivo programa 171
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de integridade e a criação de meros órgãos internos para juízos de conformidade sem efetividade protetiva (OSÓRIO, 2011).
4. Igualdade de gênero e compliance no setor público Existe um novo cenário, em que a preocupação das instituições é maximizada tendo em conta as desigualdades e grandes assimetrias que persistem na promoção da igualdade. Isso passa pelo empoderamento das mulheres e pelo acesso à planejamento familiar efetivo. Noutro nível de decisão, a introdução da perspectiva de gênero nas políticas é uma das ferramentas fundamentais de combate às desigualdades. O empoderamento equilibra o poder entre homens e mulheres e cria condições para que a mulher seja autônoma nas suas decisões e na forma de gerir a sua vida (ABBI, 2009). As mulheres são maioria da população brasileira – 52% (IBGE, 2013) e, como visto, o tema da igualdade de gênero está na pauta de quase todas as discussões na atualidade. Assim, torna-se fundamental discutir sobre o papel da mulher em sociedade. A preocupação com a igualdade de gênero a nível mundial fica explícito por meio das intervenções da ONU, que inclui o tema como um dos objetivos serem alcançados para o desenvolvimento sustentável na Agenda 2030: Esta Agenda é um plano de ação para as pessoas, o planeta e a prosperidade. Também busca fortalecer a paz universal com mais liberdade. Reconhecemos que a erradicação da pobreza em todas as suas formas e dimensões, incluindo a pobreza extrema, é o maior desafio global e um requisito indispensável para o desenvolvimento sustentável [...] Os 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável e as 169 metas que estamos anunciando hoje demonstram a escala e a ambição desta nova Agenda universal. Levam em conta o legado dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio e procuram obter avanços nas metas não alcançadas. Buscam assegurar os direitos humanos de todos e alcançar a igualdade de gênero e o empoderamento de mulheres e meninas. São integrados e indivisíveis, e mesclam, de forma equilibrada, as três dimensões do desenvolvimento sustentável: a econômica, a social e a ambiental (AGENDA 2030, 2015).
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Nesse passo, emerge a questão sobre a “diversidade de gênero e seu impacto na geração de dividendos” e o movimento mundial – nacional e internacional – que exige o movimento das empresas no sentido da igualdade de gênero, explicitado pelas intervenções da ONU, a exemplo da Agenda 2030 que insere esta questão entre os objetivos para o desenvolvimento sustentável (SANTOS, 2017). Rosa (2017) alerta que “os números que mapeiam a desigualdade de gênero no Judiciário são apenas alguns dos obstáculos que as mulheres do setor têm de enfrentar”. Destacou o episódio envolvendo a ministra Carmem Lúcia, presidente do STF – que chamou a atenção do ministro Luiz Fux devido à interrupção em uma fala da ministra Rosa Weber – e citou dados de uma pesquisa realizada nos Estados Unidos no sentido de que “mulheres são interrompidas, em média, três vezes mais do que os homens”6. No ponto, o Censo do Poder Judiciário (2014), apontou que 31,2% das magistradas da justiça estadual relataram ter identificado reações negativas por partes de outros profissionais do sistema de justiça devido ao fato de serem mulheres – a média foi de 30,2% entre todos os ramos da justiça, sendo o menor índice na justiça do trabalho (27,5%) e o maior na justiça militar (50%). Tais percentuais – embora as estatísticas devam ser sempre vistas com muita cautela – revelam a perseverança de obstáculos, muitas vezes imperceptíveis, para a ascensão das mulheres na carreira da magistraturas, representam os chamados tetos de vidro7, dificultando que ocupem posições de prestígio ou poder, mas não são os únicas razões para a defesa da paridade de gênero no Poder Judiciário (SEVERI, 2016).
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A pesquisa de autoria de Tonja Jacobi e Dylan Schweers, da Escola de Direito Northwestern Pritzker School of Law, de Illinois, em Chicago, nos Estados Unidos, “que descobriu o efeito do gênero, do posicionamento político e da idade nos debates dentro da Suprema Corte americana” À época, a ministra Carmen Lucia discursou: “Foi feita agora uma pesquisa, já dei ciência à ministra Rosa, em todos os tribunais constitucionais onde há mulheres, o número de vezes em que as mulheres são aparteadas é 18 vezes maior do que entre os ministros… E a ministra Sotomayor [da Suprema Corte americana] me perguntou: como é lá? Lá, em geral, eu e a ministra Rosa, não nos deixam falar, então nós não somos interrompidas.” (Rosa, 2017). Maiores detalhes sobre a pesquisa: https://papers.ssrn. com/sol3/Papers.cfm?abstract_id=2933016.
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“Conhecido na literatura como teto de vidro, este fenômeno caracteriza-se pela menor velocidade com que as mulheres ascendem na carreira, o que resulta em sua sub-representação nos cargos de comando das organizações e, consequentemente, nas altas esferas do poder, do prestígio e das remunerações. É observado mesmo quando as mulheres são dotadas de características produtivas idênticas ou superiores às de seus congêneres do sexo masculino” (VAZ, 2013).
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A autora ressalta que a igualdade de acesso e participação na vida pública se trata da efetivação de direitos humanos: Uma das primeiras razões para se defender a paridade é que estamos diante da realização de direitos humanos: o direito à igualdade de acesso e de participação na vida pública. Vários tratados internacionais reconhecem o direito das mulheres a participarem de uma vida pública sem discriminação baseadas em sexo, raça, grupo étnico ou outros motivos. O artigo 7º da Convenção para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres (CEDAW) determina que os Estados-partes devem tomar todas as medidas apropriadas para eliminar a discriminação contra a mulher na vida política e pública do país e, em particular, garantir, em igualdade de condições com os homens, o direito de participar na formulação de políticas governamentais e na execução destas, ocupar cargos públicos e exercer todas as funções públicas em todos os planos governamentais (SEVERI, 2016).
Diante disso, Santos (2017) chama a atenção para a relevância do olhar para a igualdade de gênero em programas de compliance: Não é possível, portanto, ignorar a importância de inserir, nos elementos dos programas de integridade e na interpretação dos princípios de compliance, a questão da igualdade de gênero. Uma forma de realizar essa correlação é preparar a empresa para alinharem-se aos Princípios para o Empoderamento da Mulher (WEP), definidos pela ONU Mulheres e a Cúpula das Nações Unidas, e aos Objetivos para o Desenvolvimento sustentável definidos na Assembleia da ONU com participação dos Estados-membros e sociedade civil (ODS 5).
Por fim, vale destacar que uma composição plural, ainda que por si só não seja suficiente para a construção de um judiciário mais democrático, uma vez que não se pode garantir que as mulheres defenderão melhor os direitos das mulheres8, “a diversificação das vozes na Justiça torna-se essencial no contexto de uma visão democrática e participativa da sociedade, mesmo naquelas situações em que essas vozes não consigam se impor”, pois demonstra um reflexo
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A autora traz relatos de que, nas suas pesquisas, há homens que tomam decisões mais sensíveis às questões de gênero e casos emblemáticos de mulheres que reproduzem práticas discriminatórias, a exemplo de uma magistrada que manteve uma adolescente apreendida em uma cela com homens.
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mais real da sociedade e sensível às dificuldades encontradas pelas mulheres – especialmente as negras – ao acessar o sistema de justiça (SEVERI, 2016). Pode-se afirmar, portanto, que o compliance tem se tornado um imperativo para as instituições, assim como sua aplicação sob a ótica da igualdade de gênero, como meio de se alinhar as tendências internacionais e nacional acerca do tema (SANTOS, 2017). E, com isso, transformar a cultura institucional hoje dominante, minimizar os desequilíbrios apontados nas relações de poder, por meio da representatividade, e, quiçá, servir de ferramenta para uma transformação da cultura social, em que a diferença de gêneros não seja tão desigual em detrimento das mulheres.
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Feministas, Democracia e a Construção de um Inimigo Comum Isabela Fernandes da Silva1 Lívia Fontanella Claumann2 “Mulheres que voam. Mulheres de fogo. Bruxas. Vadias. Mudam a nomenclatura, mas O medo ainda é o mesmo: Mulheres livres.” Desconhecida
Introdução O presente artigo, iniciado no contexto político-social das eleições presidenciais de 2018, conjuntura de crescentes discursos contra as minorias sociais, visa compreender se há um processo de construção da mulher feminista como (um dos) inimigo do Estado contemporâneo, buscando, ainda, entender se a criação de inimigos pode ser compatível com o Estado Democrático. O estudo é realizado a partir de leitura bibliográfica com perfil de análise crítica da história e utiliza-se da concepção de Chantal Mouffe sobre democracia. Debutamos das hipóteses de que a mulher feminista está sendo constituída enquanto inimigo do Estado contemporâneo e que essa relação amigo / inimigo, por sua vez, não é compatível com o Estado Democrático.
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Acadêmica da 7ª fase do Bacharelado em Direito da UFSC, ex-bolsista CNPq do Núcleo de Estudos e Pesquisas Emancipatórias (NEPE) e integrante do Grupo de Criminologia Crítica - Vera Andrade (GCCrit - Vera Andrade)
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Acadêmica da 2ª fase da graduação em Antropologia da UFSC, ex-graduanda do Bacharelado em Direito da UFSC.
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Realizamos, inicialmente, um estudo histórico da influência do medo na sociedade, dando enfoque especial para a demonização da mulher e sua consequente transformação em inimigo no contexto de caça às bruxas. Em seguida, a partir da análise de Chantal Mouffe sobre a democracia contemporânea, refletimos sobre a sociedade brasileira. Examinamos, ulteriormente, o tratamento nos últimos tempos empregado às feministas por alguns grupos sociais. Alfin, elucidamos as conclusões obtidas pela pesquisa e desenvolvimento do presente trabalho.
2. Estudo histórico – o medo, a sociedade e a mulher como inimigo 2.1.O medo e seu papel na sociedade Medo, do latim metus, é a angustiosa perturbação ante uma ameaça ou um risco, real ou imaginário; emoção primária, é um dos principais recursos para a sobrevivência e um crucial instrumento de defesa3. Difícil, talvez, hoje imaginar que emoção tão forte possa ser desconsiderada na análise do comportamento humano e social. Contudo, conforme demonstra Jean Delumeau (2009) em sua obra História do medo no Ocidente: 1300-1800, uma cidade sitiada, foi somente a partir do século XX, com pensadores como Marc Oraison e Sartre, que o medo passou a ser entendido como característica natural e inerente a todos os seres humanos. Roger Caillois (apud DELUMEAU, 2009), por sua vez, atribuiu ao medo a mutabilidade como característica - o medo é tão mutável quanto a imaginação humana que o cria. A partir das mudanças de paradigmas do século XX, a análise dos efeitos e consequências do medo nas sociedades, isto é, no aglomerado de indivíduos, ganharam nova roupagem, estudando-se o processo de nomeação dos medos: O espírito humano fabrica permanentemente o medo para evitar uma angústia mórbida que resultaria na abolição do eu. (...) Em uma sequência longa de traumatismo coletivo, o Ocidente venceu a angústia ‘no-
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CONCEITO de medo. Conceito de, 2012. Disponível em: . Acesso em: 26 nov. 2018
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meando’, isto é, identificando, ou até ‘fabricando’ medos particulares. (DELUMEAU, 2009, p. 26).
Esse processo de identificação de algo ou alguém como o outro a ser temido, contribui para a formação das identidades individuais e nacionais, na medida que, ao criar a identidade do Outro, cria-se a própria identidade. Não se pode olvidar, também, que o medo possui papel decisivo na definição das “bases” da sociedade, uma vez que termina por estipular os objetos que serão foco de proteção, a exemplo da propriedade, da tradição e da família (TENFEN, 2008). A característica de mutabilidade do medo, consoante elucidação de Caillois, também é detectada na relação medo e sociedade. Haja vista a tendência de nomear medos a fim de afastar-se da paralisia causada pela angústia, as constantes disputas pelo poder e a própria transformação dos agentes que já o detém, a mutabilidade dos medos sociais decorre, em grande parte, da pluralidade de inimigos do poder vigente ou das classes ascendentes (TENFEN, 2008). Esta variabilidade do medo, e a consequente forma como a sociedade se estrutura em virtude dele, é facilmente identificável no decorrer da história ocidental: Esparta, com sua divisão por “castas de iguais” e as sucessivas medidas que a transformaram em um forte; a Inquisição e os hereges; fascismo; nazismo; as perturbações sociais e os “comunistas”; as tensões raciais nos Estados Unidos e na África do Sul; etc (DELUMEAU, 2009). Necessário é destacar, como já o fez Delumeau (2009), a potencialidade das sociedades (multidões) em ampliar os efeitos e as consequências do medo - alta influenciabilidade, caráter absoluto de seus julgamentos e rapidez do contágio são alguns exemplos. O processo de invenção dos inimigos tem como pano de fundo conflitos sociais latentes, estando um grupo social em uma posição de vulnerabilidade, no sentido de possuir um potencial para preconceitos e sentimentos negativos coletivos (VIANA, 2007). A criação do inimigo - que, muitas vezes, é imaginário - é uma forma, segundo Nildo Viana (2007), de deslocar o foco do conflito de classes para um outro qualquer, transformando a contradição interna em externa. Lefort (apud VIANA, 2007) identifica que, nesse inimigo, sua própria existência afronta a integridade do corpo social. Com a criação desses inimigos, cria-se um bode expiatório para a culpa de toda a sociedade, funcionando como mecanismo de manutenção da coesão social (VIANA, 2007). 181
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Não há exemplos mais emblemáticos de como o medo pode ser usado para o estabelecimento e a manutenção de um Estado que o Autoritarismo e o Totalitarismo. Na ideologia nazista, em específico, o antissemitismo possuía papel central; antes da ascensão do Terceiro Reich, já se fazia presente na nação alemã - era visto nas artes, na filosofia, etc (ARENDT, 2012; VIANA, 2007). O antissemitismo alcançou, com a ideologia nazista, um aspecto maniqueísta de luta entre o bem e o mal (VIANA, 2007). Em suma, conclui-se que o medo acompanha a sociedade ocidental assim como acompanha o ser humano - caminham lado a lado, sempre nomeando novos medos e, dessa forma, identificando existências e comportamentos como novos inimigos. Na história da luta do Ocidente contra seus inimigos, a demonização desses foi - é - uma prática recorrente (TENFEN, 2008). Ora, a fim de justificar o embate e a morte, o inimigo não pode possuir os mesmos direitos de quem o enfrenta - ele deve ser passível de abominação. Nada é mais eficiente que relacionar o inimigo ao imaginário coletivo do diabo, imputando àquela característica essencialmente más e execráveis.
2.2. Caça às bruxas e construção da mulher como inimigo As mulheres historicamente foram grandes vítimas das tentativas do Ocidente de construir inimigos comuns, sendo postas como tais por meio da demonização. Isso foi feito desde a Idade Média com a equiparação do feminino à bruxaria, servindo de escopo para justificar esforços para mantê-las submissas, e assim prevalecer as hegemonias estatais europeias junto ao poder masculino. O Malleus Maleficarum, manual inquisitório de bruxaria, foi imprescindível para fixar a ideia negativa e difundir o pânico da mulher ao descrever as características da bruxa, e isso serviu de base posteriormente para a construção da imagem de mulher como inimiga na caça às bruxas na Idade Moderna, transformando a mulher no ser que introduz o mal no mundo e corrompe o homem. E mesmo após o término, a mulher não conseguiu se desfazer dessa imagem, já que durante séculos isso foi reforçado dos mais diversos modos, seja por discursos de intelectuais com respaldo na ciência ou até mesmo pela instituição do casamento. Silvia Liebel (2004), na sua dissertação Demonização da mulher, fala que o preconceito contra o feminino se institucionalizou de um modo que 182
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a mulher projeta sobre ela mesma uma imagem que foi criada pelo homem, internalizando essas ideias discriminatórias. Assim, ocorre a submissão feminina levando ao reconhecimento do poder dominante, que seria o masculino. Nesse sentido, pode-se fazer relação com o conceito de incorporação de dominação de Bourdieu (2012), quando os dominantes, com um trabalho intenso de reprodução, introduzem uma visão de mundo que normatiza a construção social da mulher como ser inferior, de tal modo que ela passa a aderir essas categorias construídas do ponto de vista masculino como se fossem naturais, e portanto se submetem. Portanto, é a partir do momento em que essa visão é ameaçada, junto à dominância masculina, que se leva à necessidade de criar historicamente a imagem feminina demonizada, utilizando justificativas de cunho religioso para não perderem sua posição de poder. Rose Marie Muraro (2015), que faz a introdução do Malleus Maleficarum publicado no Brasil, disserta sobre como a ameaça feminina culminou no Malleus e na caça às bruxas. Segundo ela, a mulher detinha o poder sobre a reprodução e saberes próprios que se transmitiam por gerações, principalmente na Idade Média, quando elas tinham maior acesso à arte, à ciência e à literatura. Havia uma preocupação em torno da organização delas, seja devido às revoltas camponesas que lideravam ou pelo simples fato de possuírem conhecimentos de curas, ameaçando o poder médico. Assim, a classe dominante precisava de recursos para manter a sua centralização e o seu poder, e a figura feminina era um empecilho para isso. Desse modo, iniciaram esforços para retomar o controle comportamental e deturparam a imagem da mulher para atingir tal objetivo, transformando-a em pecadora e adoradora do diabo, podendo ser justificada uma guerra sob este pretexto. A perseguição às mulheres foi legitimada por diversos intelectuais, sendo um deles o jurista Jean Bodin, que retoma várias ideias do Malleus em seu livro On the demon-mania of witches de 1580. Delumeau (2009) explica como Bodin justificou a caça às bruxas. O jurista não coloca a mulher como frágil, mas sim como indomável, de maldade maior e vingativa. Era por essa natureza má e outras características pejorativas que colocavam o homem em risco e tinham que ser condenadas. Daniel Aldair da Rosa (2013), em sua dissertação A Demonomania Harmônica: Jean Bodin, a Bruxaria e a República, fala que Bodin considerava a bruxaria um crime tão grave que a única pena plausível seria a de morte, a própria lei de Deus, e isso demonstraria o respeito dos homens peran183
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te suas leis. Assim, o seu livro tinha como objetivo demonstrar aos magistrados que os inimigos mais perniciosos das repúblicas eram os que praticavam a bruxaria, a verdadeira heresia, e portanto deviam ser caçados e condenados necessariamente com a morte. Esses discursos oficiais com respaldo nas leis divinas serviram de justificativa inquestionável para a violação contra a mulher, possibilitando uma adesão mais fácil das autoridades e da própria população. Sobre o porquê do início da caça às bruxas, Silvia Federici (2017), no Calibã e a Bruxa, afirma que teria sido uma forma de contribuir no processo de formação do capitalismo. Em prol da implementação do sistema, as mulheres tiveram seu poder destituído, por meio de uma acumulação de diferença hierárquica de gênero, e foram submetidas ao trabalho de reprodução da força de trabalho, sendo altamente exploradas. A acumulação capitalista foi impulsionada pela divisão sexual do trabalho, sendo que a mulher foi marginalizada do trabalho assalariado, competindo a ela apenas reproduzir. Mesmo quando tinham trabalhos, eram considerados como tarefas domésticas. Toda essa degradação do trabalho feminino, disfarçado por justificativas de “inferioridade natural”, serviu para alavancar o capitalismo. Para Federici (2017), a caça às bruxas serviu para dar coesão social por meio do medo instalado nos homens em relação ao poder das mulheres. Desse modo, qualquer tipo de prática que fosse de encontro à disciplina de trabalho capitalista era destruída sob a premissa de que era algo maligno, sendo um instrumento eficiente de controle estatal. Não só foi uma tentativa de demonizá-las, mas também acabar com seu poder social, que já não era tão significante, e introduzir a figura doméstica da mulher, contribuindo para regular as famílias e o modelo de propriedade. Com o declínio da população europeia nos séculos XVI e XVII, segundo Federici (2017), um dos outros pretextos da caça às bruxas foi ter o domínio da reprodução, tendo o controle total sobre a mulher, já que uma das poucas coisas que ainda pertencia a ela era seu corpo. Então, a figura da bruxa foi utilizada para justificar a condenação de qualquer forma de controle de reprodução, de modo a satisfazer o objetivo de aumento da população. Ou seja, qualquer mulher que fosse um empecilho para a restauração da população da Europa era considerada como inimiga, já que isso visava ao crescimento da mão de obra para satisfazer a acumulação capitalista.
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De acordo com Federici (2017), um modo de contribuir para isso foi desvalorizar a prostituição relacionando-a com a bruxaria, e mais tarde proibir a prática, na tentativa de fazer aparecer a dona de casa, a mulher que vive para produzir força de trabalho e realizar atividades domésticas. Isso gera uma desvalorização do trabalho da mulher, sendo classificado no máximo como trabalho artesanal doméstico, podendo justificar salários insignificantes e muito abaixo dos masculinos, mesmo que prestassem o mesmo serviço. Federici (2017) ainda teoriza que a perseguição feminina serviu para dar uma certa unificação à Europa. Em nome do combate a um inimigo comum, os novos Estados-Nação ganharam uma certa unidade política, mesmo possuindo religiões diversas e muitos estando em guerra uns com os outros. Quando se tratou de destituir o poder das mulheres, a Europa se uniu sob os mesmos argumentos, ficando em evidência o cunho político da caça às bruxas. No século XVII, quando as elites europeias haviam conseguido acabar com qualquer ameaça ao seu poder político ou econômico, os julgamentos de bruxa cessaram, ou seja, a perseguição só chegou ao fim quando a classe dominante já havia firmado o seu poder. Porém, após o século XVII, mesmo com a cessão das acusações de bruxaria, a mulher não teve reconstruído seu lugar na sociedade, por sua discriminação já estar demasiado institucionalizada. Ela continuou sendo estigmatizada sob outras justificativas, como diz Liebel (2004, p. 65-66): Contudo, mesmo com o abandono das acusações de feitiçaria em fins do século XVII, o status cultural da mulher não foi reabilitado. A feiticeira, que destacara a mulher na sociedade ao causar temor, passa do campo da heresia para a doença, tendo o pacto com Satã cedido lugar à alucinação, à histeria. Agripa, Lavatier e Wier, médicos reconhecidos cujas opiniões em longo prazo sobressairiam o juízo maledicente de Bodin, dirão que essas pobres mulheres devem ser curadas e não queimadas, porque na maioria não passavam de doentes sob o efeito de uma ilusão.
No Brasil, pode-se dizer que o capitalismo também influenciou no rebaixamento das mulheres. Maria Ângela D’Incao (2004) fala da mulher brasileira no século XIX, período de consolidação do capitalismo e de crescimento da burguesia. Para atender ao objetivo de difundir o ideal de família burguesa, a vivência doméstica foi reorganizada e a mulher passou a representar a esposa dedicada e materna, uma imagem para ajudar a manter a posição social do 185
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homem. Para garantir isso e manter o sistema de casamento, que significava uma aliança política e econômica, as mulheres foram submetidas a uma vigilância constante, sendo tratadas meramente como objeto de troca. O processo foi tão intenso que elas mesmas passaram a se vigiar, internalizando os comportamentos ditados pelos valores burgueses. Essa forma de tratamento das mulheres visava mantê-las sob o controle dos homens e novamente impulsionar o capitalismo por meio das alianças entre famílias. Tendo esses pontos em vista, a mulher não foi sempre posta como inimiga necessariamente por um Estado, mas também por todo um sistema, seja econômico ou de valores vigentes em determinadas sociedades. Ela foi considerada inimiga dos homens que detinham o poder, sendo rebaixadas historicamente para permanecerem submissas a eles, perpetuando o status de dominação e riqueza masculina na sociedade patriarcal até os dias atuais, apenas mudando o modo de como é feito o controle das mulheres.
3. Contemporaneidade 3.1. Democracia em Chantal Mouffe e sociedade brasileira A pensadora contemporânea Chantal Mouffe (2015, p. 29) entende a democracia enquanto um campo de “choque entre posições políticas democráticas legítimas”. O conflito, na democracia moderna, é parte estruturante, devendo ele ser acomodado para que a democracia possa se desenvolver em sua plenitude. É preciso, de acordo com a autora, superar a utopia (neo)liberal que enxerga a democracia a partir de sua particular visão pluralista - no mundo existem vários pontos de vista e valores, que, apesar de nunca poderem ser adotados concomitantemente, constituem um conjunto harmonioso e não conflitante (MOUFFE, 2015). A teoria da democracia formulada por Mouffe (2015, p. 120-121) reconhece, em primeiro plano, a existência de diferentes grupos sociais, cada qual possuidor de identidade própria, sendo essas identidades demasiadas importantes para serem menosprezadas nas análises político-sociais. Indo mais além, constata a legitimidade democrática de suas reivindicações, haja vista convergirem nas concepções de igualdade e liberdade para todos, divergindo
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apenas na interpretação desses conceitos. Com os fundamentos estabelecidos, Mouffe defende que os grupos devem, dentro das estruturas proporcionadas pelo Estado, se confrontar não como inimigos, e sim adversários. Tendo como objeto de estudo a sociedade contemporânea, Mouffe (2015, p.5) denuncia a tendência de forçar o político para a esfera moral, causando o reaparecimento do antigo conflito entre certo e errado e, por consequência, da dicotomia nós/eles. A partir desse momento, no qual os grupos passam a se entender como inimigos, desejosos da destruição do outro, as reivindicações dos grupos opostos passam a ser compreendidas como notadamente ilegítimas. A conjuntura político-social é agravada quando as instituições democráticas, assim como os partidos políticos, passam a ser fonte de insatisfação social, o que leva à propagação de identidades coletivas fundadas em ideais nacionalistas, étnicos ou religiosos (MOUFFE, 2015 p. 29). Visando evitar essas consequências – a deterioração da Democracia – Mouffe (2015) propõe uma abordagem agonística na política, qual seja, num contexto de reconhecimento e legitimação da existência e das reivindicações dos diversos grupos presentes na sociedade, devendo os mesmos entenderem seus oponentes como portadores dessas mesmas características, sem deixar de reconhecer, contudo, a impossibilidade de solução racional dos conflitos, reorienta os embates travados para o modelo de adversários, rejeitando a nomeação de inimigos. Para além disso, Mouffe (2015) demonstra que o antagonismo amigo / inimigo é (apenas) uma das formas de antagonismo do político, sendo o maior desafio da política democrática evitar tal dicotomia radical, haja vista que entende o antagonismo como um dos maiores inimigos da democracia e um alarmante sintoma da saúde do corpo social. Isto posto, partimos para uma análise do contexto brasileiro. Nos últimos anos, o discurso moralistas dos políticos brasileiros se intensificou. A defesa da (sic) família, moral e bons costumes (sic), isto é, da família cisgênero e heterossexual composta por marido, esposa e filhos, da moral burguesa-cristã e do comportamento esperado segundo esta hipócrita moralidade, vem ganhando destaque nas falas das figuras público-políticas. Ora, a defesa dessa quase santíssima trindade brasileira foi um dos mais mencionados (CÂMARA, 2016) motivos para o Golpe de 2016 - também chamado de Impeachment da Presidenta Dilma Rousseff - pela Câmara de Deputados.
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O aspecto moralista da política também se identifica pelas pautas contrárias aos movimentos LGBT e feminista, frequentes alvos das mais absurdas fake news, comumente envolvendo aspectos sexuais e/ou religiosos. Não é incomum circularem pelas redes sociais notícias, fotos ou vídeos conectando o movimentos feminista com ofensas à religião - como no vídeo de um suposto protesto feminista no qual as participantes teriam invadido uma igreja e, em frente ao altar, feito sexo e defecarem; posteriormente, diversos sites desmascararam a farsa, revelando que o vídeo era uma junção de dois fatos separados, nenhum deles ligados à causa feminista (LOPES, 2018). O movimento LGBT, assim como as figuras públicas que o representam, não ficam atrás na disputa de fake news estapafúrdia - Jean Wyllys, conhecido deputado defensor e integrante da comunidade LGBT, já foi acusado de (CAMPOS, 2017) propor alterações na Bíblia (como se o Legislativo brasileiro possuísse tal prerrogativa), de afirmar que não há pedofilia nos casamentos infantis, de apoiar o casamento entre pessoas e animais, de dirigir o revolucionário filme “Jesus, a diva da mentira”, o qual Jesus e seus discípulos seriam retratados como homossexuais, entre outras tantas notícias, todas com o mesmo perfil. Dessa forma, a população passou a se mobilizar de maneira a se auto identificar com esses grupos, os indivíduos passaram a se entender enquanto integrantes de certos grupos sociais, possuindo, também, as identidades deles características. Para além disso, é fato notório que a população brasileira tende a acreditar que o meio político é, em sua essência, corrupto. Contudo, mesmo com essa crença enraizada, ainda existia confiança no sistema político nacional. Porém, após sucessivos escândalos de corrupção, tais como o Mensalão e a Lava a Jato, o que se nota na população é uma profunda descrença no poder público. Frases como “só consegue fazer alguma coisa quem se vende”, “são todos farinha do mesmo saco” são ouvidas corriqueiramente e, com a ajuda da internet e das redes sociais (Facebook, Whatsapp, Twitter, etc), são ainda mais difundidas. Uma rápida pesquisa no Google com as palavras chaves “descrença+política+brasil” (GOOGLE, 2019a) e “descrença+no+sistema+político” (GOOGLE, 2019b) mostra expressiva quantidade de matérias jornalísticas e produções acadêmicas acerca do tema. A Diretoria de Análise de Políticas Públicas da Fundação Getúlio Vargas (FGV/DAPP) realizou uma pesquisa em agosto de 2017 (FGV/ DAPP, 2017), na qual constatou que os brasileiros, de todas as regiões, faixas etárias e de renda, apresentam em média 78% de insatisfação generalizada 188
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com os políticos e os partidos políticos. É inegável, portanto, que a sociedade brasileira possui sérias dúvidas quanto a efetividade da política tradicional em efetivamente representar seus interesses. A análise conjuntural não pode olvidar de recente, porém fundamental, característica social: as identidades nacionalistas, religiosas e étnicas. Ingenuidade é presumir que tais identidades surgiram apenas agora, na atual conjuntura política, visto que a religião e os marcadores étnicos, por exemplo, sempre estiveram presentes na formação de identidades individuais e coletivas do brasileiro. O que se observa, portanto, é a propagação de tais identidades e discursos. Ora, é de fácil averiguação a proliferação desses ideais identitários. O grupo social conhecido como Evangélicos exerce tamanha influência e possui tanta organização que compõe uma das mais fortes e expressivas bancadas no legislativo: a Bancada da Bíblia. (BANCADA, 2018). O slogan da campanha presidencial de Jair Bolsonaro - (sic) Brasil acima de tudo, Deus acima de todos (sic) -, assim como toda a campanha em si, não poderia deixar mais escancarada a disseminação dessas identidades. Analisando conjuntamente a teoria de Mouffe com algumas das características da sociedade brasileira, o que se nota é a correspondência de fatos e consequências no âmbito político-social. Ou seja, é possível identificar na contemporaneidade brasileira pontos fundamentais da teoria agonística de Mouffe - moralização da política, descrédito nas instituições e partidos políticos, crescimento das identidades nacionalistas/religiosas/étnicas. Deste modo, apesar de compreendermos as limitações dos estudos realizados, a sensação que permanece é que há sérios sinais de que nossa frágil e jovem Democracia está em perigo.
3.2. A imagem da mulher feminista na atualidade A atuação das feministas na política, seja por movimentações nas ruas e nos meios eletrônicos, seja por representantes eleitas pleiteando mudanças, é cada dia mais difícil de ser negada. Segundo pesquisa realizada pelo Estado, divulgada pelo Estadão, onde foram analisados dados de 2015 a 30 de novembro de 2018, ocorreu significativo aumento da procura pelo termo “feminismo” no Google - a popularidade (interesse) saiu de 30 (escala de 0 a 100) em 189
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2015 para 100 nas vésperas da eleição de 2018. Com o crescimento da participação da mulher nos espaços públicos e do conhecimento da sociedade sobre o movimento feminista, mesmo talvez sendo a mera ciência da existência do movimento, as violências sofridas pela população feminina e as subsequentes reivindicações tornaram-se corriqueira pauta na sociedade; e, por consequência, as violências em si também ganharam palanque. Conforme exposto no tópico 2.2, durante a terrível Caça às Bruxas, a imagem da mulher foi demonizada, desumanizada e criada como inimigo do Estado, de Deus, da saúde social, do homem. Após o período, devido ao enraizamento profundo da imagem criada no imaginário social e mesmo o discurso se apresentando mais moderadamente, a mulher continuou estigmatizada. Para mais, a industrialização e o fortalecimento do sistema capitalista, exigiram, novamente, a contenção da mulher, tendo em conta que, fortalecidas pela entrada no mercado de trabalho assalariado e possuindo novas reivindicações, o ser feminino ainda era visto como ameaça à hegemonia masculina. Contudo, mesmo com a participação extensiva da mulher no meio público, a ela ainda era (é) delegado o cumprimento das obrigações familiares tradicionais, isto é, as tarefas domésticas e a criação dos filhos, permanecendo subordinada ao homem (DELPHY, 2015). A mulher continuava (continua) sendo compreendida como máquina reprodutora. A respeito disso, afirma Maria Bernardete Ramos Flores (2004, p. 228): Na primeira metade do século XX, tanto nos regimes totalitários, antifeministas por excelência, como nas democracias, a mobilização dos sexos numa estrita e tradicional subordinação, instituiu a mulher como a mãe geradora da prole perfeita para a nação.
Dessa forma, vê-se que a arraigada imagem estabelecida da mulher é fonte da construção e do trabalho empregado por diversas forças ao longo dos séculos. Observamos, nos últimos tempos, alguns aspectos dos tratamentos empregados às mulheres, em especial às feministas - uma vez que são elas que abertamente lutam contra o status quo -, semelhantes aos que levaram à demonização inicial das mulheres, seguida de desmedida violência física. A questão do controle dos corpos femininos, das máquinas reprodutoras, é de interessante análise. O crescimento de grupos pró-vida Brasil (LIMA, 2015) foi acompanhado da propagação de discursos envolvendo aborto, con190
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siderado como assassinato de inocentes; métodos contraceptivos, vistos como abortivos; e educação sexual, concebida como incentivo à vida sexual precoce. Ou seja, à mulher é proibido o conhecimento sobre o próprio corpo, sobre como controlá-lo para melhor adaptá-lo aos seus projetos de vida e é negado o acesso ao aborto seguro. Tudo isso cercado por religiosidade. A valorização do aspecto doméstico, em contraposição à atuação pública feminina também possui vez no Brasil do século XXI. Não é fácil esquecer quando uma das revistas com maior circulação no país (LINHARES, 2016) fez uma matéria sobre Marcela Temer, então quase primeira-dama, intitulada Marcela Temer: bela, recatada e “do lar”. A revista continua com sua descrição de Marcela “aparece pouco, gosta de vestidos na altura dos joelhos e sonha em ter mais um filho com o vice”. Enquanto isso, poucos meses antes, outra revista (REVISTA ISTO É, 2016) com expressiva circulação nacional, portava como capa uma foto da então Presidenta Dilma Rousseff gritando com os seguintes dizeres: As explosões nervosas da presidente. De um lado, a representação doce da mulher jovem no ambiente doméstico; de outro, a histeria da mulher em posição de poder. A política, espaço de grande importância para reformas sociais, construída predominantemente por homens, perdura sua visão de mundo, inclusive sobre as mulheres. A mídia tem um grande papel para afastar as mulheres desta área, sendo que exerce considerável influência sobre a opinião pública; sua importância vai além da construção de um discurso, também possui força de reconhecimento para conquistar o capital político (CARVALHO, 2006); possui o poder de construir a identidade do candidato, passando uma imagem de político competente ou não, por meio de relações com traços que podem ser desde ideias, aparência e inclusive gênero. De mais a mais, há a construção de um discurso nas mídias e nas redes sociais, com a popularização de páginas como Moça, você é vitimista 2, que rebaixa a condição de mulher, principalmente a da feminista. Uma pesquisa sobre movimento feminista e repressão em meios digitais traz o caso ocorrido com o grupo “Mulheres Coletivo Geni” quando denunciou estupros ocorridos na USP. As denunciantes foram perseguidas tanto no ambiente universitário quanto nas redes sociais, sendo chamadas de “prostitutas” e sugerindo que fossem expulsas da faculdade. (OLIVEIRA, 2014, apud, LANGLER; MENDONÇA; ZULIANE, 2017). Tal fato elucida o quanto termos pejorativos são associados às feministas 191
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do mesmo modo como eram acusadas as “bruxas” da Idade Moderna, ainda hoje se transformando em alvos de punições e perseguições. Na história mais recente do Brasil, nas eleições de 2018, o discurso contra as mulheres repercutiu dia após dia, gerando uma espécie de perseguição contra as feministas, com ataques generalizados, tais como uma música de funk que comparava feministas a cadelas, divulgada pelo Deputado Estadual Flávio Bolsonaro, filho do atual Presidente da República, o então candidato Jair Bolsonaro (MOLICA, 2018). O feminismo, historicamente depreciado em tentativas de marginalizar o movimento que busca a igualdade de gênero, é associado com desordem, misandria, desestruturação do modelo familiar, entre outros medos da sociedade tradicional. Dado que a luta feminista é de impossível desassociação com o ente mulher, aquela sofre, também, das mesmas marginalizações e violências que esta, passando, então, a figura da mulher a ameaçar as bases da sociedade ocidental tradicional, se reforçando enquanto geradora de medo.
4. Considerações finais A criação de um inimigo comum não é novidade na política e na sociedade ocidental, pelo o contrário, é prática adotada há séculos que, entre outras coisas, visa manter/criar a coesão social. Sentimento tão forte como o medo possui um papel elementar na forma como os grupos sociais se organizam, nutrindo a capacidade de justificar da mera exclusão até as mais severas barbáries contra determinado(s) grupos(s). Não é recente, como visto, a protagonização da mulher como inimigo da sociedade. A construção desse imaginário social vinculador a mulher à figura das bruxas (e, em última instâncias, ao mal e imoral), por ser tão antiga e estabelecida, não é facilmente derrotada. Consoante as explanações realizadas, os esforços para barrarem o acesso ao conhecimento e ao poder pelo gênero feminino não foram poucos e nem fracos no decorrer dos séculos. Uma empreitada como esta repercute, sem grandes mistérios, até os dias de hoje. No tocante ao pensamento de Chantal Mouffe, a identificação na esfera política (ou seria esfera moral?) nacional da política como antagonismo amigo / inimigo, e das circunstâncias que levam o corpo social à esse ponto, não é muito 192
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trabalhosa. Nos últimos, o crescimento generalizado do descontentamento com os partidos políticos (tradicionais formas de representação democrática, que reúnem pessoas ao redor de uma identidade em comum), com significante aumento de frases no sentido de “são todos iguais”. Além disso, nota-se a (não tão recente) dicotomização das “agendas” políticas brasileiras: enquanto um lado defendo o bom, o moral, o outro defende o mau, o errado. Essencial destacar que cada grupo social enxerga a si mesmo como o lado “correto”, ficando a posição de inimigo imoral guardada para todo o restante da sociedade. Com base na forma generalizada com que a sociedade brasileira vem se separando antagonicamente entre amigos / inimigos, a identificação da mulher, em especial a feminista, como um desses inimigos no corpo social não é inesperada ou surpreendente. O que não se pode desprezar, entretanto, é que elas não possuem o poder estatal ao seu lado, fato que não contribui, pelo contrário, com a diminuição de seu status social historicamente vulnerável. Haja vista o desenvolvimento do presente trabalho, compreendemos que há elementos tradicionais de nomeação de inimigos, em especial do período da caça às bruxas, no tratamento empregado por alguns grupos sociais, quiçá pelo grupo que compõe o Governo Federal, cujo chefe do executivo é Jair Bolsonaro, à mulher feminista. Seguindo a teoria de Chantal Mouffe, o momento da criação de inimigos ocorre dentro do Estado Democrático. É inegável que esta é uma construção perigosa de identidade política, uma vez que rejeita qualquer legitimidade referente ao grupo oposto. Através do estudo de Mouffe é possível depreender que, apesar da relação amigo / inimigo ser gerada dentro do Estado Democrático, aquela não é uma representação saudável deste, longe disso. Contudo, resta saber se a mera presença desse antagonismo é indicativo suficiente para confirmar a passagem do Estado Democrático para um Estado Autoritário. Ressalta-se, porém, que se a relação é tão prejudicial a ponto do maior desafio da democracia moderna é evitar que ela ocorra, não pode-se dizer que a Democracia realmente comporta o antagonismo amigo / inimigo. Conforme a pesquisa desenvolveu-se, notamos que a presença de Inimigos Comuns é uma característica de regimes autoritários. Porém, como nos restringimos a analisar apenas a criação da mulher feminista como Inimigo, não podemos, exclusivamente a partir da análise aqui explanada, concluir que a democracia brasileira está em perigo. Salientamos, ainda, para o fato da concepção de estado autoritário ser, normalmente, criada como contraponto 193
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ao Estado Democrático, muitos sinais do autoritarismo podem ser erroneamente interpretados (“ora, como é possível que estejamos em um, ou nos encaminhando para um Estado Autoritário se as instituições democráticas ainda funcionam? Há eleições, a oposição está presente…”). Por fim, podemos apenas expressar nossa preocupação com a conjuntura político-social brasileira, que, para olhos mais atentos, possui mais de uma “bandeira vermelha” alertando sobre autoritarismo.
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Da Moral à Liberdade Sexual: Análise do Novo Paradigma da Liberdade Sexual sob uma Perspectiva de Gênero Luciele Mariel Franco1
Introdução A liberdade sexual é considerada um bem jurídico essencial na nossa sociedade, ensejando e recebendo, portanto, proteção pelo Direito Penal. Muito embora tenha passado a constar explicitamente no Capítulo I do Título VI do Código Penal desde sua promulgação em 1940, verifica-se pelas próprias estruturas normativas que a compreensão dada a esse bem sofreu transformações ao longo dos anos, uma vez que inicialmente estava atrelado a uma tutela moral e, a partir de 2009, passou a ter outro direcionamento legal. Nesse passo, ao enfocar nessas transformações, é possível perceber o desenvolvimento de um novo paradigma de leitura liberdade sexual, que vem sendo provocado pela mobilização de alguns atores sociais, como os movimentos feministas. Pondera-se que, por as violações da liberdade sexual atingirem mais incisivamente as mulheres, os rumos de leitura desse bem jurídico precisam contemplar tanto o seu “novo” fundamento na dignidade da pessoa humana quanto uma perspectiva de gênero2. E, ainda, mais que a consolida1
Mestranda em Teoria e História do Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina. Pósgraduanda em Ciências Penais pela Universidade Estadual de Maringá. Pós-graduanda em Direito Penal e Processual Penal pela Universidade Estácio de Sá. Graduada em Direito pela Universidade Estadual de Maringá (2017). Bolsista de mestrado pelo CNPq. E-mail: [email protected]
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O conceito de gênero “traz como base o entendimento de que as posturas hegemônicas do que é ser masculino e feminino nas diversas sociedades não proveem de características anatômicas ou biológicas, mas das representações social e culturalmente construídas, que atribuem modelos e papeis ligados a ideias dominantes do que é ser homem e do que é ser mulher. Por conseguinte, é possível refletir como em cada sociedade foram sendo atribuídos valores e níveis hierárquicos na montagem dessas representações dominantes do masculino e feminino, de modo a constituir um conjunto de relações assimétricas entre pessoas, permeadas, ainda, por outras categorias sociais que se interseccionam e demarcam as vivências dos indivíduos, ainda que identificados pelo mesmo
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ção desse novo paradigma no Direito Penal, é necessária sua aplicação conglobante3 em todo o ordenamento jurídico. Esta pesquisa é norteada, portanto, pelo esforço de compreensão dos direcionamentos que guiaram as mudanças ocorridas até o momento e avança na tentativa de propor caminhos que considerem a dimensão da violência de gênero e que tornem a proteção da liberdade sexual das mulheres mais efetiva. Por conseguinte, em um primeiro momento pretende-se demonstrar através das alterações legislativas as evidências de uma mudança de perspectiva no que tange à liberdade sexual, avaliando se essas transformações foram suficientes para a sua consolidação na prática jurídica. Na sequência, busca-se responder quais os rumos para a compreensão desse bem jurídico, tendo por base esse novo paradigma e ainda uma ótica que contempla as especificidades de gênero. É preciso considerar que as violações sexuais em nossa sociedade são marcadas por um contexto de constantes interpretações preconceituosas e moralizantes do comportamento social feminino, bem como por uma normalização do comportamento sexual violento dos homens. Isso se reflete nas taxas alarmes de estupros, cujas vítimas em sua maioria são mulheres, e também nos altos índices de subnotificação4. Deste modo, é imperioso o aprofun-
gênero. Deste modo, pondera-se como na sociedade ocidental o papel dominante foi histórica e majoritariamente atribuído a um modelo de masculinidade hegemônico, considerado superior, e o de dominado a um de feminilidade hegemônico, dito inferior, mesmo que estes não sejam os únicos modelos disponíveis e experienciados por todos os sujeitos. Nesse contexto, as violências de gênero se configuram pelos abusos dentro das relações entre os indivíduos socialmente construídos, quando reflexos das assimetrias geradas pela forma como se estruturam as referidas categorias na sociedade, em especial as de gênero” [Cf. CARVALHO; MACHADO; FRANCO, 2019, p.3, no prelo). 3
O termo “conglobante” é utilizado neste artigo ao se fazer um paralelo com o seu significado perante a teoria da tipicidade conglobante de Eugenio Raúl Zaffaroni (2015). Nesta, o autor propõe que para a verificação da tipicidade penal é preciso que o fato analisado seja materialmente típico e, ao mesmo tempo, não seja antinormativo. Em termos gerais, a tipicidade material se caracterizaria quando houvesse a efetiva ofensa ao bem jurídico tutelado, enquanto que a antinormatividade ocorreria quando a conduta típica fosse permitida ou ordenada por outro ramo do Direito, gerando sua atipicidade penal. Nesse sentido, a tipicidade conglobante pressupõe que uma conduta receba o mesmo tratamento jurídico em todo o ordenamento jurídico, não podendo ser proibida por um ramo e permitida por outro. Isto posto, o paralelo que se faz é quanto a esse tratamento uniforme do Estado, mas, no caso em análise, com relação ao bem jurídico liberdade sexual. Sendo assim, entende-se que a leitura dada ao referido bem pelo Direito Penal deve ser dada igualmente nos demais ramos do Direito, sob pena de se violar sua efetiva proteção.
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Para conferência de alguns números estatísticos, ver: CERQUEIRA; COELHO, 2014, p. 6-7.
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damento da proteção da liberdade sexual pelo Direito, avançando-se a partir das mudanças já feitas. Para a construção deste artigo foi utilizado o método de abordagem lógico-dedutivo, em uma pesquisa exploratória e descritiva de modo transversal, conduzindo-a através da análise legislativa e, principalmente, de bibliografias do Direito, da Teoria Política Feminista e dos Estudos de Gênero, compondo, portanto, um trabalho interdisciplinar.
2. A mudança no paradigma de proteção da liberdade sexual Ao considerar que há certa unanimidade na doutrina em atribuir como função do Direito Penal a proteção de bens jurídicos essenciais, é possível verificar que as nomenclaturas atribuídas aos títulos e capítulos das legislações penais, por princípio, devem identificar e retratar os bens jurídicos que são “caros” à sociedade, delineando um sentido de análise e interpretação das normas e condutas a serem subsumidas. A partir disso, reflete-se que a troca de nomenclatura do Título VI do Código Penal, ao alterar “Dos Crimes contra os Costumes” para “Dos Crimes contra a Dignidade Sexual”, representou expressamente uma “nova” concepção legal a nortear a proteção jurídico-penal da liberdade sexual, enquanto bem protegido nos crimes de seu Capítulo I. Assim, além de adequar a referida colocação tópica a um objetivo de tutela constitucional, essa mudança reflete na compreensão dos bens que passam a ser entendidos como seus derivados. O reconhecimento jurídico da liberdade e autodeterminação sexual enquanto bens oriundos da dignidade sexual apresenta-se como um marco na busca pela superação da tutela moral patriarcal no que tange à vivência sexual dos indivíduos, possibilitando o avanço nas discussões da temática e a problematização de questões antes invisibilizadas. Essa mudança de concepção legal decorreu de um processo ainda em expansão de consolidação de um novo paradigma no que se refere à proteção dos direitos sexuais, em especial os das mulheres. Sobre esse aspecto, pontua-se que a crescente inclusão dos debates de gênero no âmbito da justiça, como as questões relacionadas às violações e aos direitos sexuais, decorre de um longo processo anterior de busca pelo reconhecimento dos direitos humanos das mulheres, articulado pela participação 201
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ativa destas na política mundial e nacional (ALMEIDA, 2017), que se desdobrou inclusive nos direitos assegurados na Constituição de 19885. O desenvolvimento desse novo paradigma de proteção se torna mais perceptível quando são contrastadas as concepções de violação sexual aplicadas ao longo do tempo no sistema de justiça criminal brasileiro. Posto isso, em conformidade com o recorte desta pesquisa, a análise que se segue se restringe às mudanças legislativas que refletem no âmbito do que se considera como crimes contra a liberdade sexual. Sopese-se, entretanto, que os delitos que ofendem a dignidade sexual no âmbito do Código Penal brasileiro vigente também abrangem os crimes descritos entre os Capítulos I-A6 e VI de Título VI. De início, tem-se que as primeiras tipificações intituladas por “estupro” ocorreram com a promulgação do Código Imperial de 1830 (BRASIL, art. 219-225), que enquadrou as condutas sob sua rubrica no Capítulo dos crimes “contra a segurança da honra”, juntamente com as Seções que tratavam do rapto e da calúnia e injúria. Com relação a essas tipificações, percebe-se que o bem jurídico que a lei visava proteger era a castidade e a expectativa de matrimônio da mulher (ZANATTA; SCHNEIDER, 2017). Ademais, destaca-se que, em adequação aos bons costumes, o casamento do agressor com a vítima extinguia a culpabilidade daquele. Na sequência, o Código Penal de 1890 (Brasil, art. 266-269) estabeleceu tipificações designadas por “violência carnal”, consideradas como “crimes contra a segurança da honra e honestidade das famílias e do ultraje público ao pudor”. Dentre essas tipificações, a prática de estupro foi delimitada como o ato de abuso com violência do homem contra a mulher, em razão de um forte fundamento moralista7 (CUNHA BUENO, 2011). Ainda, a quantificação da pena do agressor era diferenciada pela adjetivação da mulher como “honesta” ou “pública”. 5
Sobre a participação das mulheres na constituinte de 1988, ver: SILVA, Salete M. da; WRIGHT, Sonia J. As Mulheres e o Novo Constitucionalismo: uma narrativa feminista sobre a experiência brasileira. Revista Brasileira de História do Direito, v.1, n.2, pp.170-190, jul/dez. 2015. Disponível em: https:// www.indexlaw.org/index.php/historiadireito/article/view/666/0. Acesso em: 26 abr. 2019.
6
Recentemente inserido pela Lei 13.772/2018, que abarca o recém-criado artigo 216-B, tipificando o delito de “registro não autorizado da intimidade sexual”.
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“Esse tratamento diferenciado da conjunção carnal respondia, antes, a um forte componente moralista, que importava na compreensão da mulher como um ser inferior, cuja violação representava, mais do que uma agressão à sua autodeterminação sexual, uma ofensa ao direito de propriedade do homem, dono daquela mulher, fosse seu pai ou seu marido. Por isso o estupro, na
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Em 1940, foi promulgado o Código Penal em vigor, que manteve a referência à moral na nomenclatura de seu Título VI, originalmente indicado como “crimes contra os costumes”, muito embora tenha inovado ao nomear seu Capítulo I como “crimes contra a liberdade sexual”. Sua correlação com a moral também era observável no emprego das expressões “mulher honesta” e “mulher virgem” em algumas tipificações, bem como na manutenção da extinção da punibilidade dos crimes sexuais pelo casamento entre o agente e a ofendida. Por sua vez, a primeira modificação no referido Capítulo I a se destacar ocorreu com a Lei nº 10.224/2001, que tipificou o delito de “assédio sexual” (art. 216-A). Destaca-se que a escolha do legislador da época pelo tratamento penal da questão visou refletir as tendências do Direito Internacional que vinham buscando dar visibilidade as diversas formas de violência de gênero, provenientes de uma cultura de desigualdade. Além disso, partiu do entendimento de que as condutas do assédio sexual desrespeitam os direitos inerentes à dignidade da pessoa humana e à igualdade entre os sexos.8 Alguns anos depois, a Lei nº 11.106/2005 promoveu alterações legislativas de relevo, cujo o eixo comum foi o afastamento de aspectos eminentemente morais do Código Penal. Entre outras mudanças, eliminou o termo “mulher honesta” de suas tipificações e retirou a possibilidade de extinção da punibilidade dos crimes “contra os costumes” pelo casamento. Ainda, destaca-se a descriminalização das condutas de “sedução”, “rapto violento ou mediante fraude”, “rapto consensual” e “adultério”. As modificações mais significativas no que se refere a constituição de um novo paradigma, entretanto, ocorreram com a Lei nº 12.015/2009. Sobressaltam-se as alterações nas redações dos crimes contra a liberdade sexual, ao unificar os tipos de “estupro” e “atentado violento ao pudor”, bem como os de “posse sexual mediante fraude” e “atentado ao pudor mediante fraude”. Com as novas tipificações, esses delitos passaram a ser delitos comuns, em que tanto o sujeito ativo quanto o passivo podem ser qualquer pessoa, do gênero masculino ou feminino, transexual ou intersexual9, pessoa que se submeteu a cirurgia plástica, sua origem, era punido mais gravosamente, por isso restava isolado em um tipo penal específico”. [Cf. CUNHA BUENO, 2011. p. 158] 8
Conforme justificativa do projeto de lei que deu origem à Lei nº 10.224/01. [Cf. BRASIL, 1999]
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O autor referenciado utilizou a expressão “portadora de ‘anomalias’ sexuais anatômicas ou constitucionais”, fazendo oposição ao que é tradicionalmente atribuído como “normal” de um
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portadora de próteses, prostituta, devassa, etc (FAYET, 2011). Ainda, destacam-se a inserção da concepção de “estupro de vulnerável” enquanto delito autônomo (art. 217-A) e a já referida troca nominal do Título VI de “Crimes contra os Costumes” para “Crimes contra a Dignidade Sexual”. Sobre esta, pontua-se que a nova rubrica tornou expressamente os bens jurídicos protegidos em seu Título como corolários de um aspecto da dignidade humana dos indivíduos. A última Lei a provocar alterações dentro do recorte proposto, foi a Lei 13.718 de 24 de setembro de 2018, da qual se destacam três pontos. O primeiro diz respeito à inclusão do delito de “importunação sexual” (art. 215-A), ao mesmo tempo que revogou a contravenção penal de “importunação ofensiva ao pudor” (art. 61 do Decreto-lei 3.688/41). O segundo trata das alterações na ação penal dos crimes do Capítulo I e II, que tiveram sua natureza uniformizada como pública incondicionada. E o terceiro refere-se à inserção de uma majoração específica para as novas rubricas de “estupro coletivo” e “estupro corretivo”. Conforme o exposto, houve uma mudança de paradigma na proteção da liberdade sexual dos indivíduos no âmbito jurídico, que resta evidenciada pelas mudanças no tratamento legal dos crimes sexuais. Verifica-se a passagem de uma tutela eminentemente moral, que permaneceu em inúmeros aspectos até o início deste século e que ainda se refletem no cotidiano, para outra que busca a valorização e respeito da autonomia dos sujeitos em suas vivências sexuais. No entanto, pondera-se que este novo paradigma ainda precisa ser ampliado, tanto na interpretação jurídica e aplicação concreta das normas penais, quanto nos demais aspectos de proteção que envolvem a liberdade sexual dos indivíduos. Nesse sentido, em que pese as adequadas reparações já feitas, é preciso considerar que a compreensão majoritária de algumas terminologias ainda presentes na legislação dos crimes sexuais, como “constrangimento”, “violência” ou “ameaça”, é fruto de formulações estabelecidas nos anos 40 e 60 do século passado, criminológica ou dogmaticamente. Percebe-se que é essa a compreensão que “subliminarmente permeia a forma como o núcleo do tipo do estupro e suas elementares ainda são pensados nos dias atuais” (MENDES, 2017). No mesmo sentido, Camila Prando (2017) afirma que a dimensão da violência de gênero não pode ser explicada por categorias produzidas a partir dos ponto de vista biológico, no que se refere aos espectros sexuais dos sujeitos. No entanto, optou-se por exemplificar tais situações com as duas referidas categorias.
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grupos de casos tradicional e historicamente utilizados, como os casos de violência de rua e de violência entre homens. Não obstante, destaca que são exatamente esses os que vêm informando o sentido hegemônico das elementares típicas dos delitos sexuais, como a “grave ameaça”. A autora ainda completa: O que este viés não é capaz de enquadrar na interpretação da “grave ameaça”, e que só pode ser acessado se compreendermos a dimensão da violência de gênero – absolutamente ignorada por uma ignorância (estruturalmente constituída) do campo penal – é que o ato de um homem se masturbando em pé na frente de uma mulher sentada durante sua viagem de ônibus tem a possibilidade de ser constituído como um constrangimento com grave ameaça. [...] O pau deste homem é a faca no pescoço da mulher. E isto só se pode ver se há um mínimo de compreensão de como se estruturam as dinâmicas de violência fundadas nas hierarquias de gênero (PRANDO, 2017, s/p).
Não é demais ressaltar que as violações sexuais dos indivíduos ocorridas em nossa sociedade tratam-se de um fenômeno estrutural e sistêmico, representando práticas relacionadas ao gênero, o que se torna evidente quanto verificado que a maioria de suas vítimas são mulheres e que homens quase sempre são os autores, independentemente do gênero da vítima.10 A esse respeito, Sônia Felipe (1997, p.120) analisa que a violência nesses casos, mais do que apenas o emprego da força física contra alguém, é pautada no “poder de construção da própria autoafirmação as custas da integridade do outro”. Por conseguinte, a autora descreve as agressões sexuais como atos de “confirmação e de afirmação do poder máximo do homem sobre a mulher”, ao derivarem de uma cultura na qual há certa liberdade para que os homens se construam com base na diminuição ou exclusão das mulheres dos espaços de poder. Desta forma, além das mudanças que já forma feitas, a efetivação de um novo paradigma da liberdade sexual requer uma análise mais aprofundada das especificidades que envolvem os delitos sexuais e as estruturas que demarcam os indivíduos, para que a superação de uma tutela moral não permaneça apenas na letra da Lei.
10 Estima-se que aproximadamente 89% das vítimas de estupro no Brasil sejam mulheres, enquanto que 94,1% de todas as agressões tenham sido realizadas por homens. [Cf. CERQUEIRA; COELHO, 2014, p.7]
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Em continuação, o próximo tópico busca delinear alguns rumos para a compreensão da liberdade sexual, a partir desse novo paradigma de proteção e da inclusão de uma perspectiva de gênero, por entender a necessidade de sua consolidação e ampliação para todo o ordenamento jurídico.
3. Liberdade sexual: referenciais para sua “nova” compreensão A liberdade sexual representa um aspecto importante da liberdade e autonomia individual, sendo capaz de influir no desenvolvimento e autorrealização de cada ser humano. No entanto, conforme já apontado, as vivências sexuais das mulheres são permeadas por fatores que determinam um alto índice de transgressões desse aspecto de sua liberdade, atravessando-se indicadores como idade, classe, raça e sexualidade11. Se por um lado os homens comumente são sociabilizados através de certas expectativas sexuais que acabam por normalizar seus comportamentos violentos, por outro as mulheres são permeadas por expectativas opostas, que muitas vezes desencadeiam um cenário de culpabilização pelas violações sofridas e, por consequência, seu silenciamento. Nesse contexto, entende-se que, para efetivar o seu propósito de proteção da liberdade sexual de forma equânime, o Direito não pode ficar inerte perante esses fatores. Conforme apontado no tópico anterior, é possível verificar uma mudança de paradigma nessa proteção nos últimos tempos, grande parte em decorrência da mobilização de alguns setores da sociedade que vêm chamando atenção não só para o grande volume de violações, mas também para a existência de práticas jurídicas permeadas por preconceitos morais. Assim, considerando a necessidade de que essa mudança se consolide e se expanda para todo o ordenamento jurídico, é preciso delimitar qual o sentido de interpretação que deve ser dado à liberdade sexual quando pensada como um bem jurídico essencial à sociedade, resguardado constitucionalmente.
11 Pontua-se, aliás, que a intersecção de determinados marcadores, como o de escolaridade e idade, apresenta-se como um fator agravante na vitimização. Nesse sentido, estima-se que aproximadamente metade das vítimas possuem menos de 13 anos e que 46% não possuem o ensino fundamental completo. [Cf. CERQUEIRA; COELHO, 2014, p.7]
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Com isso, verifica-se que com a troca da nomenclatura do Título VI de “Crimes contra os Costumes” para “Crimes contra a Dignidade Sexual”, ocorrida em 2009, o legislador adequou a descrição de tutela do bem jurídico afetado por todas as condutas que lesam mais gravemente a sexualidade individual com os princípios norteadores do Estado Democrático de Direito, ao observar os valores constitucionalmente relevantes enquanto paradigma de escolha. Nesse sentido, os crimes contra a liberdade sexual passaram a ser tratados expressamente como condutas que atingem a dignidade sexual, enquanto bem jurídico maior, e a liberdade sexual, enquanto bem jurídico derivado do primeiro. Por conseguinte, esse novo entendimento demarca a visão que deve ser dada à liberdade sexual pelo Direito como um todo. A abrangência do conteúdo semântico da opção terminológica “dignidade sexual” permite que dela se extraia o significado de outros bens jurídicos, como a liberdade, a intimidade sexual, a honra individual, entre outros (GRECO; RASSI, 2010). Assim, além da conciliação com o princípio basilar de proteção à dignidade da pessoa humana, a indicação legal de sua tutela delimita e determina a área de atuação do Estado. A esse respeito, pondera-se a existência de dois planos distintos a serem considerados: o primeiro diz respeito à dignidade individual, pautada no exercício da autodeterminação de vontade do indivíduo sobre a vivência de sua própria sexualidade, e o segundo trata da dignidade social (sexual), correspondente ao direito ao exercício de coexistência, que implica no consenso social existente de que as relações sexuais devem ser realizadas em local privado, considerando que a autonomia individual também pressupõe a não obrigação do indivíduo em presenciar certas exibições da sexualidade alheia sem o seu consentimento (GRECO; RASSI, 2010). A leitura dos bens jurídicos derivados da dignidade sexual, portanto, deve partir desses dois planos. Por conseguinte, o conceito de liberdade sexual pode ser descrito a partir de uma tríplice perspectiva, conforme a sintetização de Natscheradetz12. A primeira, “positiva” ou dinâmica, “é definida como a livre disposição do sexo ou do próprio corpo de acordo com seus desejos e opções, tanto no que diz respeito à forma de manifestação sexual quanto ao destinatário da mesma”. A segunda, “negativa” ou estática, pressupõe que a liberdade 12
Obra: NATSCHERADETZ, Karl. O direito penal sexual: conteúdo e limites. Coimbra: Almedina, 1985.
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“se concretiza na faculdade que o indivíduo tem de não suportar de outrem a realização de atos de natureza sexual contra a sua vontade, qualquer que seja a forma que eles revistam”. Por fim, utilizando-se da definição de Polaino Navarrete13, o mencionado autor sincretiza as duas anteriores em uma “concepção integradora”14, descrevendo a liberdade sexual como a faculdade que assiste a cada pessoa de fazer ou não o uso do próprio corpo, bem como a liberdade de acionar os meios protetores da esfera sexual pessoal contra as condutas alheias da mesma natureza (1985 apud GRECO; RASSI, 2010, p. 54-55). A partir dessas definições e pensando na necessidade de que a compreensão da liberdade sexual contemple uma perspectiva de gênero, destaca-se uma proposta de leitura conjunta dos conceitos acima apresentados com a “chave de leitura”15 da “liberdade como não opressão”, formulada pela cientista política Maria Lígia Elias, conforme formulado em trabalho anterior (CARVALHO; MACHADO; FRANCO, 2019, no prelo). A tese da referida autora utiliza como “bússula” uma leitura agregada dos conceitos de liberdade positiva e negativa de Isaiah Berlin16, de liberdade como não dominação de Philip Pettit17 e da liberdade construtivista de Nancy Hirschmann18, para a construção de sua ideia de liberdade como não opressão (ELIAS, 2014). Assim, a autora mantém o entendimento de que ser livre é ser livre para escolher, mas acrescenta a necessidade de se atentar para as condições em que
13 Obra: POLAINO NAVARRETE, M. Introcucción a los delitos contra la honestidade. Publicaciones de la Universidad de Sevilla, 1975. p.46. 14 Tal denominação é atribuída a José M. Sanchez Tomas, por considerar que os aspectos anteriores não são opostos, mas complementares. 15 Maria Lígia Elias coloca sua proposta como uma “chave” de leitura, indicando que sua intenção não é trazer uma lista de condições para dizer que em dada situação há ou não liberdade, mas oferecer “um referencial para pensar as diferentes situações em que nos deparamos com escolhas e liberdade e, dessa forma, pode nos servir de guia, parâmetro para análise, ponderação e proposição”. [Cf. ELIAS, 2014, p.129] 16 Uma de suas obras: BERLIN, Isaiah. Dois conceitos de liberdade [1959]. In: HARDY, H.; HAUSHEER, R. (orgs.). Isaiah Berlin: Estudos sobre a humanidade. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. 17
Uma de suas obras: PETTIT, Philip. Freedom as antipower. Ethics, Chicago, v. 106, n. 3, p. 576-604, 1996.
18 Uma de suas obras: HIRSCHMANN, Nancy J. Freedom, recognition, and obligation: a feminist approach to political theory. The American Political Science Review, v. 83, n. 4, p. 1227-1244, 1989.
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essas escolhas são construídas, percebidas e entendidas pelas pessoas. Deste modo, pela perspectiva da “não opressão”, essas escolhas devem ser feitas em um contexto de não dominação (ELIAS, 2014). Correlacionando essa última proposta com as primeiras perspectivas apresentadas sobre a liberdade sexual, concluiu-se que: ao se pensar nas possibilidades de escolha das diversas mulheres em fazer ou não fazer o uso de seu corpo para a efetivação de sua vivência sexual, ou, ainda, as possibilidades das mesmas em acionar os meios protetores estatais para sua tutela contra as condutas alheias, faz-se importante considerar os contextos e estruturas sociais em que elas se encontram e, principalmente, os contextos em que as violências sexuais ocorrem, uma vez que estes são fatores determinantes para os modos de vivenciar a sexualidade, bem como para a obtenção da proteção estatal (CARVALHO; MACHADO; FRANCO, 2019, p.17, no prelo).
Nesse sentido, no momento de subsumir a norma ao caso concreto, pretende-se que a verificação da violação de algum aspecto da liberdade sexual da vítima observe esses contextos e as particularidades dos sujeitos envolvidos. O fato desse bem jurídico ser transpassado socialmente pelo gênero e este, por sua vez, ser atravessado por outros indicadores sociais, faz com que certas condutas caracterizem, por exemplo, “violência”, “grave ameaça”, “fraude” ou “contrangimento” para algumas(ns), enquanto que para outros(as) não. Essa é uma dimensão que não pode ser alcançada por meio da tradicional visão universalizante e, principalmente, por meio de concepções impregnadas de preconceitos morais e androcêntricos. Por esta razão, a ampliação da compreensão da liberdade sexual nos termos propostos “também pode contribuir para a concretização da mudança da tutela moral para a tutela da liberdade sexual, não só na teoria, mas efetivamente na prática cotidiana, ao se exigir uma leitura mais dinâmica das estruturas sociais e dos atores envolvidos nas práticas violentas” (CARVALHO; MACHADO; FRANCO, 2019, p.18, no prelo). Ademais, essa ampliação traria uma maior correspondência entre a realidade social e a atuação do Estado, especificamente no âmbito jurídico, ao se considerar que as relações em sociedade se transformam de uma forma muito mais dinâmica do que as instituições têm acompanhado. Sobre isso, Flávia Biroli aponta que, muito embora as vivências concretas tenham sofrido diversas 209
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transformações na moral sexual de modo geral, os espaços de representação política e institucional ainda são largamente ocupados por grupos conservadores, que, inclusive, vêm estabelecendo como uma parte importante de suas atuações e imagens públicas uma reação aos movimentos feministas, LGBTs e também a essas transformações nas relações de gênero e na vivência da sexualidade (2018). Nesse sentido, pensar a liberdade sexual de forma ampla implica incorporar essas diretrizes de leitura em outros âmbitos além do dos crimes sexuais, como na construção legislativa e de políticas públicas que visem à proteção desse bem de modo geral e particularmente que se voltam à prevenção e à reparação das violações que afligem as diversas mulheres de formas específicas. Assim, esse “deslocamento” de leitura representa uma compreensão conglobante da liberdade sexual, ao visar atingir o ordenamento jurídico como um todo, evitando-se que hajam incoerências em sua proteção. Deste modo, serve de guia para todas as “ações”19 estatais que se voltem para os direitos sexuais, inclusive os reprodutivos.
4. Considerações finais A análise das alterações legislativas relativas aos crimes contra a liberdade sexual demonstra um processo de substituição de uma tutela puramente moral para a construção de uma nova concepção da violação sexual no sistema de justiça criminal brasileiro, consolidando o desenvolvimento do que é apresentado como um novo paradigma de proteção dos direitos sexuais dos indivíduos. No entanto, em que pese o respaldo legal que a nova concepção de liberdade sexual apresenta, verifica-se problemas em sua aplicabilidade quando em conjunto com as normas que regula. Nesse sentido, o primeiro tópico apresentou uma síntese das mudanças ocorridas na lei penal relativas aos crimes contra a liberdade sexual, percebendo-se a extirpação de conceitos que refletiam regulações eminentemente morais e a construção de tipificações mais coerentes com as vivências sexuais da sociedade. Não obstante, avaliou-se que a mudança de paradigma na tutela sexual dos indivíduos carece muitas vezes de aplicação em alguns aspectos, 19 O termo foi empregado com um sentido amplo, para representar diversos atos ligados ao exercício estatal, nos âmbitos jurídicos, legislativos, executivos e institucionais.
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como na interpretação dos dispositivos normativos e na subsunção da norma ao caso concreto. Isso ocorre, conforme apontado, em grande parte pela desconsideração da dimensão da violência de gênero que permeia as condutas em questão e das estruturas que demarcam as pessoas envolvidos. Posto isso, o aprofundamento na compreensão da liberdade sexual demonstrou-se ainda mais necessário, uma vez que a interpretação e aplicação apropriada de dispositivos jurídicos relacionados a esse bem depende de sua adequação a esse entendimento. Por conseguinte, esse aprofundamento deve corresponder às bases do novo paradigma apontado e, ainda, entende-se que deve contemplar as especificidades estruturais e sistêmicas existentes em nossa sociedade. Nessa perspectiva, a segunda parte deste artigo dedicou-se à apresentação das bases que fundamentam o novo entendimento vigente da liberdade sexual enquanto bem jurídico essencial e constitucionalmente assegurado. A partir desse alicerce, aprofundou-se nas dimensões que a liberdade sexual envolve e se apresentou uma proposta de leitura que contempla uma perspectiva de gênero, indicando a necessidade de se considerar os contextos e estruturas sociais que demarcam as violências sexuais ocorridas. Por fim, alertou-se para a necessidade de se ampliar o novo paradigma de proteção em desenvolvimento para outros âmbitos do Direito que apresentam relação com a liberdade sexual, de modo a se efetivar uma aplicação conglobante em todo o ordenamento jurídico. É importante salientar, ainda, que as vivências e violações sexuais apresentam particularizações em relação a outras dimensões da vida em sociedade e, por sua vez, os indicadores sociais que atravessam e identificam as pessoas também refletem de modos diferentes nessa dimensão sexual. Deste modo, a compreensão da liberdade sexual nos moldes propostos visa alcançar essa dimensão, de uma forma que a visão universalizante e a tradicional leitura moral da sexualidade ainda impregnada no âmbito jurídico não conseguem. Pelo exposto, confirma-se que ao menos no plano legislativo existe um novo paradigma sendo delineado, estabelecendo parâmetros para a tutela estatal da dignidade e liberdade sexual, mas que ainda encontra dificuldades em sua aplicação, mormente diante de uma perspectiva de gênero. Nesse aspecto, é preciso considerar que as mulheres são permeadas por fatores que determinam um alto índice de violações nessa dimensão de sua liberdade, de modo que a efetivação do propósito estatal de proteção da liberdade sexual de forma equânime depende da atenção a esses fatores. 211
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A Mídia, o Imaginário Feminino e o Martelo dos Juízes: Algumas Considerações sobre Moralidade e Decisões Judiciais a Partir do Marketing das Propagandas de Cerveja Amanda Muniz Oliveira1 Rodolpho Alexandre Santos Melo Bastos2
Introdução Conforme Jeremy Waldron (WALDRON, 2009, p. 2–24), um interessante dogma paira sobre a sociedade: o de que os juízes teriam habilidades superiores para tratar de questões relativas ao direito e à moralidade. Segundo tal dogma, o raciocínio moral dos juízes em questões controvertidas seriam melhores que os do legislativo, de forma que o poder judiciário estaria apto a portar-se como autoridade final no que se refere a temas polêmicos. Adotando o referido dogma como ponto de partida, este trabalho busca analisar e tecer algumas considerações em um interessante caso, julgado pelo judiciário brasileiro no ano de 2016 no qual a liberdade de expressão e a dignidade humana foram polarizados e debatidos: a condenação da Companhia de Bebidas das Américas – Ambev em razão de uma propaganda veiculada pela cerveja Skol. O caso em questão suscita dois pontos principais: o primeiro, refere-se ao papel das mídias em nosso cotiado; o segundo, trata da utilização do Direito para vetar certos discursos, compreendidos como moralmente inadequados. 1
Professora Adjunta na Universidade Federal do Pampa – Campus Santana do Livramento, nos cursos de Direito e Administração. Doutora em Direito pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina – PPGD/UFSC. Pesquisadora do Núcleo de Estudos em Direito e Feminismos (Cnpq/UFSC) e do Núcleo de Estudos Conhecer Direito – NECODI (UFSC/ CNPq) E-mail: [email protected].
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Doutorando em História na Universidade Federal de Santa Catarina (PPGH - UFSC) e Bolsista CAPES. Integrante do Núcleo Interdisciplinar de Estudos Medievais (MERIDIANUM - UFSC) e do Grupo de Estudo entre o Masculino e o Feminino (GEFEM - UFSC). E-mail: [email protected]
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Desta forma, o objetivo principal é demonstrar os problemas oriundos do dogma do que Waldron irá chamar de JGM – judges are good at morality. Ainda que determinados movimentos sociais (como por exemplo o movimento feminista) celebrem decisões como esta, é preciso estar atento às consequências de se entregar na mão dos magistrados o poder absoluto de dizer o que é ou não moralmente aceitável. Em um primeiro momento, faremos algumas considerações a respeito da mídia, no intuito de demonstrar a complexidade deste tipo de linguagem, para, logo em seguida, questionarmos a ideia segundo a qual os juízes são os indivíduos mais indicados a deliberarem moralmente sobre questões controversas, utilizando, como contraponto, outro comercial de cerveja veiculado pela Schincariol. Desta forma, procuraremos demonstrar a relevância das observações de Waldron e a necessidade de se repensar o papel dos magistrados como guardiões da moralidade.
2. Mídia, direito e sociedade A cena é corriqueira: geralmente há um bar, sorrisos, moças “bonitas” e sexualmente atraentes, e homens empolgados. Quando ela é servida, algo cômico ocorre, atrelando-se o produto à felicidade de quem o consome. Com algumas poucas exceções, os comerciais de cerveja recorrem a este clichê genérico, ora enfatizando o humor, ora evidenciando os atributos femininos. Pois justamente por focar na beleza das mulheres e a objetificação de seus corpos, a Companhia de Bebidas das Américas - Ambev, foi condenada pela 7ª Câmara de Direito Público de São Paulo ao pagamento de multa no valor de R$ 305 mil reais, pela divulgação da peça publicitária Musa do Verão, veiculada em rede nacional no ano de 2006. Resumidamente, eis do que se trata: em um concurso de miss feito à beira mar, um consumidor de cerveja afirma que se o criador da cerveja Skol também tivesse criado a Musa do Verão, ela seria acessível a todos os homens. Logo, em um devaneio, ele imagina uma fábrica de clones replicando a bela musa e vendendo estes clones para diversos homens, de diversas idades. Importante destacar que mais que a era das imagens, vivemos na era das mídias. A seleção de músicas no celular, os quadrinhos expostos na banca de re218
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vista, os aguardados lançamentos hollywoodianos no cinema mais próximo, as últimas notícias no jornal televisivo - toda esta gama de aparatos comunicativos pode ser agrupada por uma simples palavra de cinco letras: mídia. Endemonizada quando parcial, sacralizada quando imbuída de representatividade, a mídia, mais do que nunca, divide opiniões e gera acirrados debates. Theodor Adorno, um dos primeiros pesquisadores a apontar seus malefícios, criou até mesmo um termo próprio para caracterizá-la: Indústria Cultural (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 99-138). Marcada pela massificação das obras de arte, com o objetivo único de auferir lucro das diversas audiências, é o pensador da chamada Escola de Frankfurt3 que irá teorizar e problematizar os discursos midiáticos, desde a desvalorização de obras de arte clássicas, à alienação e bestialização das audiências por parte desta indústria. Timidamente contrariado pelo seu então bolsista4, Walter Benjamin, para quem a perda da aura da obra de arte5 com o advento das mídias seria algo positivo uma vez que tornava os conteúdos mais acessíveis, Adorno irá rever suas atitudes já ao fim da vida, quando empiricamente descobrirá que o público não é tão alienado como ele próprio pensava, chegando por vezes a duvidar das informações veiculadas pela mídia6. 3 O Instituto de Pesquisa Social, vinculado à Universidade de Frankfurt, mais tarde conhecido como Escola de Frankfurt, era um espaço no qual diversos autores, como Theodor Adorno, Max Horkheimer, Erich Fromm, Herbert Marcuse e Walter Benjamin, dentre muitos outros, procuravam compreender o desenvolvimento das sociedades capitalistas no século XX, a partir de um paradigma marxista. Em razão de sua abordagem interdisciplinar, assuntos diversos foram abordados como política, movimentos sociais, economia, direito e manifestações culturais. 4
Conforme Marcos Napolitano (2005, p.24), Walter Benjamin era bolsista no Instituto de Pesquisas Sociais de Frankfurt e dependia dos pareceres de Adorno para continuar a receber o benefício. NAPOLITANO, Marcos. História e Música: história cultural da música popular. Belo Horizonte: Autêntica, 2005.
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A aura seria o caráter sacro responsável pela atitude reverencial do público em relação a obra de arte até então. A perca dessa característica teria auxiliado no maior acesso a tais bens. BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. In: Magia e técnica, arte e política: Ensaios sobre literatura e história da cultura. Obras Escolhidas – Volume I. São Paulo: Brasiliense, 1987, p. 165-196.
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Em síntese, a mídia estava veiculando incessantemente o casamento de monarcas holandeses como o acontecimento político do século. Adorno realiza um questionário com telespectadores diversos, perguntando-lhes sobre a importância política do evento e é surpreendido quando o resultado da pesquisa mostra que a maioria dos entrevistados não encarava o ocorrido como tal, mas como mera trivialidade.. ADORNO, Theodor W. Tempo Livre. In: ALMEIDA, Jorge M. B. de (org). Indústria Cultural e Sociedade: Theodor Adorno. São Paulo: Paz e Terra, 2002, p. 103-116.
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Mas será o filósofo americano Douglas Kellner que irá propor uma outra abordagem do produto midiático, desmistificando preconceitos e levantando novas questões: Há uma cultura veiculada pela mídia cujas imagens, sons e espetáculos ajudam a urdir o tecido da vida cotidiana, dominando o tempo de lazer, modelando opiniões políticas e comportamentos sociais, e fornecendo o material com que as pessoas forjam sua identidade. O rádio, a televisão, o cinema e os outros produtos da indústria cultural fornecem os modelos daquilo que significa ser homem ou mulher, bem sucedido ou fracassado, poderoso ou impotente (KELLNER, 2001, p. 09).
Neste sentido, são os diversos pontos de vista sociais que circulam na sociedade que sofrerão influência direta dessas veiculações midiáticas, seja para ratifica-los ou retificá-los. A típica donzela em perigo, o herói disposto a enfrentar o mundo, o intelectual reservado que fracassa no amor, o advogado corrupto e a miss como modelo ideal de mulher, que pode inclusive ser comprada, mais do que personagens inocentes e despretensiosos, aparecem como estereótipos, naturalizando e reforçando comportamentos padrões desejáveis, sobretudo no que se refere às mulheres e ao seu imaginário social no Brasil. Um imaginário que atua como espécie de maquinaria escondida sob a superfície das coisas, capaz de revelar algo de mais profundo e antigo, poderosamente ativo, porque cria sistemas de explicação e motiva igualmente ações individuais e coletivas. É um conjunto e relação das imagens, realizações e produções do pensamento humano, o que inclui a própria razão e a racionalidade, como pontuou Gilbert Durand (2012). O imaginário é um denominador comum que abarca os procedimentos desse pensamento e da realidade historicamente produzida (DURAND, 2001). Para Sandra Jatahy Pesavento “[...] o imaginário faz parte de um campo de representação e, como expressão do pensamento, se manifesta por imagens e discursos que pretendem dar uma definição da realidade” (PESAVENTO, 1995, p.15). Esse imaginário produz e é, ao mesmo tempo, produtor de imagens (comportamentos, discursos, representações, atitudes, etc.) que podem ser associadas com aquilo que o historiador Elias Thomé Saliba chamou de imagens canônicas. Tais imagens estão ligadas a conceitos chaves da vida social e intelectual, pois se constituem em pontos de referência inconscientes e, portanto, decisivas em seus efeitos subliminares de identificação coletiva, pois 220
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“São imagens de tal forma incorporadas em nosso imaginário coletivo, que as identificamos rapidamente” (SALIBA, 2007, p. 88). Assim, ao veicular uma propaganda na qual a mulher ideal pode ser comprada, reforça-se a ideia da mulher que segue os padrões de beleza vigentes como um produto a ser consumido. Esta foi a impressão que teve o juiz Luiz Sérgio Fernandes de Souza, relator do processo: O argumento da peça publicitária é mais do que infeliz, pois “coisifica” a mulher, servindo-a, mediante entrega, para desfrute do consumidor. Em outras palavras, nela, o gênero feminino transforma-se em objeto de consumo. Alguém poderia dizer que se trata apenas de um “clone” de mulher, e não de uma mulher de carne e osso. Mas as propagandas nunca são feitas de pessoas de carne e osso, pelo que o argumento cede diante do poder de sugestão que o marketing exerce. Tampouco se venha dizer, como afirma a autora, que apenas grupos feministas se mostraram escandalizados com a campanha “Musa do Verão”. O que importa é que nela há discriminação do sexo feminino, a justificar a lavratura do auto de infração e a imposição de multa, com fundamento na regra do artigo 37, § 2º, do Código de Defesa do Consumidor. A luta pelo espaço igualitário da mulher na sociedade é tema que ganha cada vez mais força no mundo. No momento em que a sociedade busca proscrever a ideia de que o gênero feminino é mero objeto de prazer, não se pode legitimamente sustentar que a valorização da mulher seja vista apenas como uma bandeira de determinado setor (radical) da sociedade. Todos estão envolvidos com a superação de estereótipos grosseiros, lugar comum sempre presente quando o assunto é publicidade (Souza, 2016).
O juiz relembra ainda que propagandas nas quais mulheres casadas apanhavam dos maridos eram comuns ainda na segunda metade do século XX – o que naturalizava a questão da violência doméstica. Compartilha desta opinião o juiz Moacir Peres, revisor do processo. Para ele: No caso dos autos, a propaganda de cerveja utiliza-se da figura de uma mulher para enaltecer a qualidade do seu produto. Para tanto, afirma que, se a fabricante da cerveja “fabricasse” a “Musa do Verão”, uma moça atraente vestindo um biquíni, essa seria distribuída a qualquer homem que se interessasse. Com isso, cria a ideia de que a mulher em questão é um bem a ser produzido em série e livremente consumido pelos homens. Coisificando a mulher, a peça discrimina, separa, aparta os gêneros, tratando o sexo masculino como o consumidor e o feminino como o bem a ser consumido, que deve ser perfeito (a propaganda 221
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faz alusão a um exemplar da “Musa” que teria “vindo com defeito”) para satisfazer aos desejos dos consumidores (PERES, 2016)
De acordo com o historiador Rodolpho Bastos, que analisa as construções referentes ao imaginário social feminino no Brasil e as diversas formas de violência cometidas contra o feminino legitimado em razão desse imaginário, as mulheres estão inseridas um contexto social que partilha de uma cultura patriarcal, centrada na figura masculina do pai. Em outras palavras, esta cultura tende a afastar as mulheres de quaisquer posições de liderança ou decisões, forjando mecanismos e estratégias para silenciá-las ou submetê-las, tendo em vista que esse imaginário adquire valor de verdade, justificativa e legitimação para todo tipo de ordenamento de controle político e jurídico, como acontece na maioria das sociedades dessa tradição. Muitos discursos não só legitimam, mas produzem ressonâncias que perpetuam esse imaginário em relação ao feminino, criando uma atmosfera misógina na sociedade, como o discurso da era medieval-cristã, racionalista do Iluminismo e o discurso médico e cientificista do século XIX e início do século XX (BASTOS, 2016, p. 72).
Em relação ao processo contra a Ambev, o juiz salienta ainda as mudanças sociais pelas quais perpassamos, citando como exemplo as campanhas feministas realizadas em redes sociais, como #meuprimeiroassedio e #meuamigosecreto7. Ademais, argumenta que a liberdade de expressão nos casos relativos ao direito consumerista é menos ampla, pois o consumidor aparece como sujeito vulnerável, já que não escolhe onde ou quando irá assistir propagandas, sendo assim, mais influenciável. Neste ponto, é preciso fazer uma observação: é certo que a publicidade pode influenciar no desejo final do consumidor, mas é preciso, também, desconstruir o mito de que o espectador é um sujeito passivo, que tal qual uma esponja absorve e internaliza toda e qualquer mensagem que lhe é transmitida. Como mencionado anteriormente, ao realizar experimento de natureza
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As duas hashtags, #meuprimeiroassedio e #meuamigosecreto, foram utilizadas em redes sociais para denunciar casos de assédio contra mulheres. Maiores informações em: e . Acesso em 27 set. 2016.
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empírica, Adorno, um dos grandes críticos da Indústria Cultural conclui que a audiência não era tão passiva quanto ele próprio supunha. Posição similar tem Kellner, para quem o público é nada mais nada menos do que uma esfinge (KELLNER, 2001, p. 90): é impossível prever, a priori, os impactos que determinados discursos midiáticos causarão no telespectador, justamente porque este é um indivíduo dotado de subjetividade e vivência singular. É possível que as mensagens sejam absorvidas de maneira distinta da qual pretendia o emissor, ou que sejam ressignificadas. Não por acaso, um dos maiores desafios dos pesquisadores que se propõe a utilizar mídias como fontes (músicas, filmes, seriados, revistas, dentre muitos outros) está justamente na recepção e impacto da obra perante o público. Compreendidos estes aspectos no que se refere a mídia, apresentamos o voto divergente do juiz Coimbra Schmit, que permaneceu como voto vencido. Para ele, a peça publicitária apareceu como mero entretenimento cômico, divertido, sem maiores ofensas à dignidade da mulher: Nem por isso, data venia, seu julgamento deve dissociar-se da realidade: é fato que, nas praias, os trajes femininos são cada vez mais sumários. É fato ser o ideal da musa componente do imaginário masculino e isso desde tempos bem antigos. O que fez o comercial sob julgamento? Transpôs ao mundo da publicidade essa realidade de nossos balneários ao onírico do público destinatário da mensagem, em filme de grande impacto por sua originalidade, irradiada da intensa dose de criatividade com que se houveram seus autores. Publicitários que bem souberam sintetizar esses fatores em peça recheada pelo BOM humor característico da picardia do brasileiro associado à alegria imanente a reuniões em cervejarias: in vino veritas.., in cerivisia felicitas! E o que se faz ao punir o anunciante com pesada multa é, justamente, cercear essa criatividade, inerente à liberdade de expressão garantia fundamental consagrada na Constituição – mediante ato de censura econômica, apenas porque alguns viram a ousadia como ofensa à condição feminina. Definitivamente, não foi essa minha leitura. [...]E vou além: acatar a tese defendida pela apelante significa ferir de morte a publicidade brasileira, instigando seus agentes a ousar apenas em cenários neutros, com locutores trajados formalmente e textos cuidadosamente revistos a fim de que suscetibilidade alguma possa vir a ser ferida, sob pena de pesadas sanções. Claro cenário de materialização da pior das censuras: a autocensura! (SCHMIT, 2016).
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As considerações do referido juiz diverge do seu colega juiz Luiz Sérgio Fernandes de Souza, ao apresentar um discurso que naturaliza as mulheres como parte dos privilégios masculinos e, por isso, pode e deve ser representado pelas empresas de publicidade de tal maneira, ignorando que esse discurso é fruto de construções sociais que perpassa inúmeras formas de agrupamentos humanos. A naturalização sobre esse imaginário em relação as mulheres dialoga diretamente com os discursos clericais sobre elas, em especial, na Idade Média, repletos de referências negativas, sendo seres mais próximos da carne e dos sentidos, culpadas pela queda do gênero humano8. Tais discursos produziram no imaginário das sociedades ocidentais - tributária, sobretudo, das tradições judaica e cristã - inúmeras representações que tendem a marcar o corpo, o sexo e a sexualidade das mulheres como regalias que os homens devem, naturalmente, usufruir. É preciso ter em mente que as veiculações midiáticas nunca são inocentes ou neutras: como fruto da ação humana, as obras carregam tanto parte da subjetividade de seu autor, como elementos representativos do contexto social e histórico nos quais foi produzido. A subjetividade é inerente a estes trabalhos. Porém, também não se pode incorrer na falácia de que os textos midiáticos são intrinsicamente positivos ou negativos, opressores ou libertadores. Para Kellner, [...] os textos culturais não são intrinsecamente ‘conservadores’ ou ‘liberais’. Ao contrário, muitos textos tentam enveredar por ambas as vias para cativar o maior público possível, enquanto outros difundem posições ideológicas, estratégias narrativas, construção de imagens e efeitos (por exemplo, cinematográficos, televisivos, musicais) que raramente se integram numa posição ideológica pura e coerente. Tentam oferecer algo a todos, atrair o maior público possível e, por isso, muitas vezes incorporam um amplo espectro de posições ideológicas. Além disso [...], certos textos dessa cultura propõe pontos de vista ideológicos específicos que podemos verificar estabelecendo uma relação deles 8
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Sobre esses discursos clericais construídos na Idade Média, consultar: BASTOS, Rodolpho Alexandre Santos Melo. Ressonâncias medievais no feminino contemporâneo: Os modelos de feminilidades do medievo e sua relação com a violência contra as mulheres. Mandrágora, v.22. n. 2, 2016. P. 72. Disponível em: https://www.metodista.br/revistas/revistas-ims/index.php/MA/ article/view/6902/5525. Acessado em 22/02/2018 e DALARUM, Jacques. Olhares de Clérigos. In: DUBY, Georges; PERROT, Michelle.(org). História das mulheres: A Idade Média. Porto: edições afrontamento, 1990.
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com os discursos e debates políticos de sua época, com outras produções culturais referentes a temas semelhantes e com motivos ideológicos que, presentes na cultura, estejam em ação em determinado texto (KELLNER, 2001, p. 123).
Para o filósofo, a cultura da mídia influencia e regula o cotidiano, comportamento e formas de pensar das pessoas e suas identidades, mas não ocorre de forma homogênea, existindo um equilíbrio, no qual é capaz de oferecer elementos, através dos recursos audiovisuais, que o público pode optar em recusar a ideologia dominante e fazer sua própria leitura crítica e se apropriar, a sua maneira, da cultura de massa e dos recursos que ela oferece. Nesse sentido, para Kellner, a cultura da mídia pode tanto induzir as pessoas a aceitarem o que está estabelecido, quanto possibilitar ideias contrárias que rompem com a ideologia dominante (KELLNER,2001). De toda forma, a cultura da mídia com suas imagens e efeitos (cinema, televisão, propaganda e musicais) e que está em sintonia com a de consumo, ainda é alimentada pelo lucro. Assim sendo, se a propaganda da cerveja Skol foi veiculada em rede nacional com todas essas características depreciativas ao feminino, não se trata da ação isolada de um publicitário, mas de um contexto social no qual propagandas deste tipo fazem sucesso e geram algum retorno. A reação negativa por parte de alguns setores sociais que permitiram o questionamento da propaganda em juízo é um sintoma promissor de que existem mudanças e rupturas em andamento, que não mais aceitarão ou consumirão este tipo de discurso. Mas outra questão se insurge: diante de casos como estes, nos quais há uma ofensa concreta à dignidade humana, qual seria o papel do judiciário?
3. Juízes e moralidade Como questionado pelo juiz Schmit em seu voto divergente, a vedação de determinados discursos por parte do judiciário não poderia acabar incorrendo em censura? Afinal, o que seria exatamente, uma propaganda abusiva? Quem determinaria tais parâmetros? Para Waldron (WALDRON, 2009), existe uma crença compartilhada segundo a qual o raciocínio moral dos juízes em relação a questões controversas 225
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seria melhor do que o raciocínio do poder legislativo. Assim, este seria o motivo pelo qual os juízes deveriam ser a autoridade final no que se refere à questão de direitos individuais e de minorias. Essa afirmação baseia-se no dogma já cristalizado segundo o qual os juízes não sofrem pressões internas quando atuam na seara decisória, enquanto o legislativo sofre pressões de forma que tratem as questões delicadas de uma forma não confiável. Por outro lado, segundo Waldron (WALDRON, 2009) a Suprema Corte, e mesmo o judiciário em geral, convence quando apresenta seus raciocínios - sabem utilizar argumentação. Assim, aparentemente, tratam questões de princípios como questões de princípios e não como questões de ordem financeira, ou de forma populista para angariar votos, como o parlamento. Conforme Waldron (WALDRON, 2009), quando um magistrado emite sua decisão, ele evoca a letra da lei, mas ele não abdica de um raciocínio moral quando assim faz. Todavia, a crença de que os juízes são mais aptos à decidirem moralmente, utiliza apenas padrões morais para avaliar a qualidade dos raciocínios judiciais, motivo pelo qual suas conclusões não são confiáveis. Essa crença ignora que o juiz também precisa buscar a norma. Neste sentido é preciso ter em mente que os juízes precisam obedecer uma série de doutrinas, precedentes, textos e interpretações com os quais a justificativa legal necessariamente se preocupa e que inevitavelmente compromete as justificativas morais das cortes (WALDRON, 2009). Ainda assim, Waldron afirma (WALDRON, 2009) que alguns autores defendem que seria melhor que o juiz fundamentasse sua decisão conforme sua própria moral individual, no intuito de evitar absurdos como em um caso relativo à fuga de um escravo, no qual o juiz admitiu que como cidadão considerava a lei injusta, mas como jurista era necessário aplicá-la. Esse pensamento, porém, parte do falso princípio de que a moral é una; pelo contrário. Ao escrever sua Teoria Pura do Direito, Kelsen já alertava para o grande problema em se confundir direito e moral: Em vista [...] da grande diversidade daquilo que os homens efetivamente consideram como bom e mau, justo e injusto, em diferentes épocas e nos diferentes lugares, não se pode determinar qualquer elemento comum aos conteúdos das diferentes ordens morais. Tem-se afirmado que uma exigência comum a todos os sistemas de Moral seria: conservar a paz, não exercer violência sobre ninguém. Mas já Heráclito
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ensinou que a guerra não só é o “pai”, isto é, a origem de tudo, mas também o “rei”, isto é, a mais alta autoridade normativa, o mais alto valor, sendo, portanto, boa, que o Direito é luta e que a luta, por isso, é justa. E até Jesus diz: “Eu não vim para trazer a paz à terra, mas a discórdia” e, portanto, não proclama de forma alguma, pelo menos para a ordem moral deste mundo, a paz como o valor mais alto. Poderá negar-se que também hoje, segundo a convicção de muitos, a guerra tem valor moral porque possibilita a comprovação das virtudes, a realização de idéias que se colocam em plano mais alçado que os valores da paz? Ou é porventura a moral do pacifismo uma moral indiscutida? Corresponde a filosofia da vida do liberalismo segundo a qual a competição, a luta da concorrência, garantem a melhor situação possível da sociedade, ao ideal da paz? Este não representa de forma alguma para todos os sistemas de Moral o valor mais elevado, e para muitos nem sequer representa qualquer valor. [...] O que é comum a todos os sistemas morais possíveis é a sua forma, o dever-ser, o caráter de norma. É moralmente bom o que corresponde a uma norma social que estatui uma determinada conduta humana; é moralmente mau o que contraria uma tal norma. O valor moral relativo é constituído por uma norma social que estabelece um determinado comportamento humano como devido (devendo-ser) (KELSEN, 1999, p. 46).
Percebe-se, portanto, que os valores morais são elementos diversos e subjetivos, de forma que diversos parâmetros morais coexistem em âmbito social e, por consequência, jurídico. Se por um lado a condenação da Ambev pelo Tribunal de São Paulo aparentemente representa um discurso progressista e emancipador no que se refere à dignidade feminina, é importante mencionar outro caso, também envolvendo a questão feminina, mas julgado por um juiz de primeira instância em Vitória/ES. Em resumo, três mulheres ajuizaram ação contra a Cervejaria Devassa, a Schincariol, o jornal A Gazeta, uma empresa de logística e uma agência de comunicação. O motivo, foi a propaganda reproduzida abaixo:
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Figura 01 – Propaganda da Cerveja Devassa
Fonte: < http://migre.me/v5tfW>. Acesso em 27 set. 2016.
As alegações das autoras, segundo o relatório da sentença, são as seguintes: A primeira Autora foi ao Procon Municipal de Vitória, onde fez uma reclamação administrativa e também à delegacia de defesa do consumidor. O Procon notificou e autuou a Cervejaria Devassa, originando infração administrativa. Que a segunda Autora foi submetida à discriminação negativa, uma vez que é professora e leitora do jornal A Gazeta, se deparando com a publicidade da Cervejaria Devassa, cujo teor da propaganda é racista e prejudicial à imagem não só da mulher negra como objeto sexual, imagem esta construída ao longo da história do Brasil. Que foi a Delegacia de Defesa do Consumidor, ao Ministério Público e à Ordem dos Advogados do Brasil. Que a terceira Requerida igualmente teve seu direito a diferença atingido devido à discriminação negativa, sentindo-se ofendida, constrangida, uma vez que também é mulher e negra. Que anda pela rua e fica ouvindo transeuntes do sexo masculino que dizem: “ESSA É A VERDADEIRA DEVASSA”, “QUE DÁ VONTADE DE BEBER”. Que desta maneira está sendo reforçada a ideia de que as mulheres negras são consideradas um objeto sexual, devido a propaganda racista e machista de cunho sexual. Que as autoras estão sofrendo constrangimento e humilhação (GUTMANN, 2013). 228
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Em sede de contestação, alguns argumentos merecem ser destacados: A primeira Requerida, PRIMO SCHINCARIOL IND DE CERVEJAS E REFRIGERANTES S/A, apresentou contestação às fls. 166/182, alegando [...] que a propaganda atacada não tem mínimo potencial ofensivo e, ainda que entendam o contrário, os anúncios não causam à média da população qualquer desconforto ou desequilíbrio emocional e espiritual. Registra que as três Autoras estão diretamente envolvidas com políticas de promoção de igualdade racial e causas voltadas a defesa da população afro-descendentes, o que explica a suscetibilidade exacerbada que transmitem diante da propaganda. Que não discrimina qualquer cor ou raça, ao contrário, rende homenagens a todos os fenótipos através de suas cervejas. Que o anúncio atacado pelas Autoras apenas dá sequencia a esta mesma linha irreverente da campanha publicitária da marca Devassa, o que explica a roupa da mulher nele inserida, não se tratando, portanto, de criação destinada a atingir a mulher negra. (GUTMANN, 2013). A quarta Requerida, AGENCIA MOOD DE COMUNICAÇÃO INTEGRADA LTDA., em contestação de fls. 327/342, [...] alegou [...] que não agiu com culpa muito menos com dolo, na medida em que jamais tencionou agredir ou depreciar a figura da mulher negra. Que não houve qualquer tipo de discriminação racial na publicidade da cerveja Devassa e que sempre se utilizou da publicidade comparativa com a figura feminina com o objetivo de divulgar a marca, ressaltando as características mais marcantes da mulheres brasileiras, para associa-las às suas diversas cervejas. (GUTMANN, 2013).
Cabe aqui resgatar a ideia de Kellner de que o público midiático possui reações distintas a mensagens e discursos diferenciados. O fato das autoras da ação estarem engajadas com políticas de promoção de igualdade racial certamente interfere na sua interpretação da propaganda veiculada; mas o fato do tipo de comercial ser corriqueiro e socialmente aceito não o torna imune a críticas a problematizações, pois a sua produção e veiculação também contém a subjetividade, os valores e a vivência de quem o idealizou. O debate é mais profundo e complexo do que os autos deixam transparecer. O que nos interessa, entretanto, é o argumento moral utilizado pelo juiz para decidir a causa em questão: Analisando os autos, e a propaganda juntada às fls. 45, o que se percebe é a utilização da propaganda de uma forma criativa, associando a beleza, as vestes reduzidas, o bom humor, a alegria ao consumo da 229
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cerveja, o que é muito comum no nosso país. É notório que no Brasil as propagandas de cerveja são conhecidas pela sua originalidade e criatividade, ainda que possam ser consideradas jocosas. No caso em análise não se percebe nenhuma mácula na imagem da mulher negra. Pelo contrário, a propaganda realmente é irreverente e a ideia é causar um impacto com humor com o objetivo, certamente, de provocar comentário, chamar a atenção do consumidor. Se alguma conclusão pode ser tirada a respeito, é exatamente o elogio ao corpo da mulher. Ora, conforme bem apontado pela primeira Requerida, muitas vezes que se tem a pele negra figurando em publicidade, surgem questionamentos associando a mídia à vulgaridade, a inferioridade, discriminação racial. É preciso muita cautela nesses questionamentos para não banalizar as verdadeiras reinvindicações. [...]a propaganda não é abusiva ou discriminatória. Não há qualquer mensagem racista, sendo o anúncio original, irreverente, refletindo uma essencialidade, autenticidade e alegria (GUTMANN, 2013).
Percebe-se assim que, em casos similares (propagandas de cerveja que teriam ofendido a dignidade feminina) o judiciário oferece respostas diferentes. Se por um lado a Ambev não pode veicular propagandas nas quais a mulher é vista como mercadoria, a Schincariol pode utilizar a figura da mulher negra de forma irreverente e criativa, pois trata-se de um elogio e não uma ofensa. Neste sentido, pode-se questionar o papel dos juízes em questões polêmicas relacionadas à moralidade: eles realmente seriam as melhores escolhas para cuidar de casos tão delicados e complexos?
4. Considerações finais A crença de que os juízes teriam habilidades superiores para tratar de questões relativas à moralidade raramente é questionada. Exemplo disso é o fato de que os jurisdicionados não medem esforços para invocar a atuação estatal nos mais diversos casos, como nos exemplos relativos as propagandas de cerveja. O principal problema neste tipo de caso é o comportamento do magistrado, que tende a decidir as demandas não com base em um contexto político e jurídico possível, procurando adequar-se as alternativas viáveis, mas sim levando em consideração a sua própria moral subjetiva. Neste ponto, Waldron afirma ser necessário não levar em consideração apenas a moral individual do julgador, 230
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mas buscar todo o aparato de precedentes para dentro dos limites da legislação encontrar a decisão e fundamentação mais adequada ao problema a ser resolvido, não como Eu faria isso se fosse o dono do mundo mas sim como Eu acredito que dentre as opções disponíveis isso é o melhor a fazer (WALDRON, 2009. p. 17). Por outro lado, se pensarmos a mídia como um cenário de disputas por lucro, pode-se questionar até que ponto o judiciário seria a via mais adequada para se impedir a veiculação de determinados discursos. Em casos envolvendo ofensas a partir de meios de comunicação, boicotes, manifestações e cartas de repúdio contra as empresas, a partir do próprio público consumidor, não seriam formas mais eficazes de demonstrar o descontentamento e a necessidade de novas propagandas, novas músicas, novos filmes, nos quais a mulher finalmente se libertaria de atributos impostos desde tempos antigos? Não há – e nem deveria haver – uma resposta fácil. Mas o que urge para o momento é repensar o dogma muitas vezes sustentado pelos próprios jurisdicionados de que os juízes são os melhores guardiões da moral.
5. Referências ADORNO, Theodor W. Tempo Livre. In: ALMEIDA, Jorge M. B. de (org). Indústria Cultural e Sociedade: Theodor Adorno. São Paulo: Paz e Terra, 2002. ADORNO, Theodor W.; HORKHEIMER, Max. A Indústria Cultural: O Esclarecimento como mistificação das massas. In: ADORNO, Theodor; Max. Dialética do Esclarecimento: fragmentos filosóficos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985. BASTOS, Rodolpho Alexandre Santos Melo. Ressonâncias medievais no feminino contemporâneo: Os modelos de feminilidades do medievo e sua relação com a violência contra as mulheres. Mandrágora, v. 22. n. 2, 2016. Disponível em: https://www.metodista.br/revistas/revistas-ims/index.php/MA/article/ view/6902/5525. Acessado em 22/02/2018. BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. In: Magia e técnica, arte e política: Ensaios sobre literatura e história da cultura. Obras Escolhidas – Volume I. São Paulo: Brasiliense, 1987. 231
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Interfaces Sistêmico-Psicológicas sobre a Violência Familiar contra as Mulheres e o Direito Brasileiro Contemporâneo Grazielly Alessandra Baggenstoss1 Carmen Leontina Ojeda Ocampo Moré2
Considerações introdutórias O presente estudo é apresentado na formulação de revisão narrativa, em que se dispõe uma revisão da literatura de forma ampla e discussão de temas correlacionados à temática Violência contra as Mulheres e Violência Familiar contra as Mulheres. Assim, como problemática, indica-se o exame do local do Direito (protetivo ou de risco) na verificação da Violência Familiar contra as Mulheres. Justifica-se o enfoque no fato de que o Direito, enquanto norma jurídica, pertence discursiva e coercitivamente ao nível social ou ao exossistema do modelo ecológico de violência familiar e pode colaborar para a proteção ou para o risco da saúde da mulher. O trabalho, então, delineia uma proposta qualitativa, com a exposição de dados contextuais sobre o tema e a explanação sobre a Política Nacional de Enfrentamento à Violências contra as Mulheres. Considerando a complexidade do fenômeno cerne do estudo, apresenta-se modelo sistêmico para sua análise, conforme debruçado pela Organização Mundial da Saúde. Posterior-
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Doutora e Mestra em Direito pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC; Doutoranda em Psicologia no Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UFSC; Professora lotada no Departamento de Direito da Universidade Federal de Santa Catarina atuando na Graduação e Pós-graduação em Direito; Coordenadora Líder do Lilith: Núcleo de Pesquisas em Direito e Feminismos – CNPq/UFSC.
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Pós-Doutora em Psicologia Social na Universidad Autonôma de Barcelona – Espanha (2010-2011); Doutora em Psicologia (Psicologia Clínica) pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Mestra em Psicologia (Psicologia Clínica, Especialista em Psicodrama Terapeutico – Instituto Sedes Sapentiae de São Paulo. Professora junto o Departamento de Psicologia da Universidade Federal de Santa Catarina atuando na Graduação e Pós-graduação em Psicologia.
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mente, apresentam-se algumas considerações sobre o ordenamento jurídico brasileiro, enquanto discurso presente no sistema social, o que promove a legitimação de determinados atos a partir da padronização de comportamentos – uma das ocorrências legitimadas, historicamente, pelo direito, assim, é a violência contra as mulheres. Para esta revisão narrativa, ainda, adota-se o termo mulheres, no plural de mulher, para indicar a pluralidade de existências humanas que podem ser lidas, pelo critério de inteligibilidade, de quem é o sujeito mulher. Mulher, nessa acepção, é uma forma de leitura individual e social do que é gênero e, por isso, não se entende adequada, para esse trabalho, se utilizar da expressão “violência de gênero”, pois também, a partir de tal perspectiva, contempla o gênero masculino, bem como as dissidências de gênero (pessoas identificadas como não binárias, por exemplo). Em sequência, pelo art. 5º da Lei Maria da Penha (Lei n. 11.340/2006), configura violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial: no âmbito da unidade doméstica, compreendida como o espaço de convívio permanente de pessoas, com ou sem vínculo familiar, inclusive as esporadicamente agregadas (inciso I); ou no âmbito da família, compreendida como a comunidade formada por indivíduos que são ou se consideram aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou por vontade expressa (inciso II); ou em qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha convivido com a ofendida, independentemente de coabitação (inciso III). Para o presente trabalho, o enfoque será da delimitação da violência contra mulheres quando praticadas por parceiros ou ex-parceiros, consubstanciando violência havida em relacionamentos heterossexuais3.
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Quando do recorte da presente pesquisa na questão heteroafetiva, buscou-se, igualmente, pesquisas sobre violências contra mulheres em relacionamentos homoafetivos. Contudo, não se encontraram estudos de campo significativos. Menciona-se, pela especificidade do tema, o artigo “A Violência Doméstica Nas Relações Lésbicas: Realidades E Mitos”, de Daniella Tebar Avena, em que indica que a violência é uma dinâmica de poder e não de gênero. Assim, a ocorrência de violência entre mulheres, em relacionamento afetivo, dar-se-á quando houver abusividade na relação e a reprodução de comportamentos destrutivos que, pelos Estudos de Gênero, são pautados como masculinidade doentia (Avena, 2010).
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2. Dados contextuais sobre a violência contra as mulheres A violência tornou-se oficialmente, em âmbito mundial, um problema de saúde pública e violação dos direitos humanos somente na década de 1990, quando a Organização Mundial da Saúde (OMS) a Organização Pan Americana (OPAS/OMS) a reconheceram como tal a partir de definições e pesquisas. Assim, violência, nos termos da OMS (2002), é uma questão social ligada à saúde (a) com vinculação à qualidade de vida; (b) que acarreta e pelas exigências de atenção e cuidados dos serviços médico-hospitalares e (c) que necessita de uma decisão estatal (Políticas Públicas). Nesse prisma binomial, a saúde refere-se ao bem-estar físico, mental, social e espiritual dos indivíduos, enquanto a violência é fator que degrada a saúde, se consubstanciando no “uso intencional da força ou poder em uma forma de ameaça ou efetivamente, contra si mesmo, outra pessoa ou grupo ou comunidade, que ocasiona ou tem grandes probabilidades de ocasionar lesão, morte, dano psíquico, alterações do desenvolvimento ou privações” (OMS, 2002). Suas espécies também foram conceituadas, sendo (a) a violência auto-infligida como aquela caracterizada por auto-abusos, autoagressões, automutilações ou comportamentos suicidas; a (b) violência interpessoal, subdividida nas categorias violência familiar (que acontece entre parceiros íntimos e membros da família, dentro ou fora de suas casas) e violência comunitária (presente no ambiente social, seja entre conhecidos ou desconhecidos, com ou sem laços sanguíneos, geralmente ocorre fora de casa, tendo como exemplo os estupros, as agressões físicas, além da violência institucional ocorrida em escolas, empresas e hospitais); (c) violência coletiva, existente no âmbito social (como atentados terroristas; no âmbito político, como no caso das guerras e dominação de grupos e Estados) e no âmbito econômico (como interromper atividade econômica, impedir acesso a serviços essenciais visando ganho econômico). Ainda, pode-se acrescentar, neste último, a violência estrutural, relacionada aos processos sociais, políticos e econômicos presentes no sistema atual como balizas estruturantes, como a fome, a miséria, as hierarquizações de grupos sociais, como mulheres, negros, por questão étnica e religiosa, dentre outros (OMS, 2002; Krenkel, 2014).
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Para este trabalho, cumpre-se a abordagem panorâmica sobre as violências perpetradas contra as mulheres, especificamente por seus parceiros e/ou ex-parceiros, caracterizando-se com violência familiar contra mulheres. Sobre a delimitação do tema, consoante os registros no Sistema de Informação de Agravos de Notificação (SINAN), a violência física liderou com 44,2%, seguida pela violência psicológica, com 20% (DATASUS, 2012). Na Central de Atendimento à Mulher, no primeiro semestre de 2012, aproximadamente 47 mil ligações foram de relatos sobre casos de violência, em que 56% (cinquenta e seis por cento) tratavam-se de violência física, e 27% (cinte e sete por cento), de violência psicológica. Aí, em 89,17% dos casos, parceiros e ex-parceiros foram indicados como os autores. Dessas ligações, 52% (cinquenta e dois por cento) denunciavam risco percebido de morte (Brasil, 2012; Waiselfisz, 2012; Krenkel, 2014). De acordo com a pesquisa feita pelo Instituto Avon (2011), a violência contra a mulher, no universo de 943 (novecentas e quarenta e três) mulheres pesquisadas, foi levantado que 27% (vinte e sete por cento) delas sofreram alguma agressão grave, sendo que, dessas a violência física representava 47% (quarenta e sete por cento). Ainda, segundo uma pesquisa feita por Waiselfisz (2012) sobre homicídio de mulheres no Brasil, entre os anos de 1996 e 2010, verificou-se um índice de 4,6 (quatro vírgula seis) para cada cem mil mulheres. Ainda, inferiu-se que os feminicídios são praticados, geralmente, por a arma de fogo e dentro da residência do casal (41% dos casos) (Krenkel, 2014). Na perspectiva da saúde pública, a violência equipara-se às doenças crônicas e degenerativas, visto que, a cada cinco anos vivendo em situação de violência, a mulher diminui em um ano a sua vida saudável (Adeodato, et. al., 2005; Minayo, 2006; OMS, 2002; Prates e Alvarenga, 2008; Krenkel, 2014). Assim, estima-se que as mortes de mulheres por violência, entre 15 a 44 anos, somam dados acima das estatísticas de morte por malária, câncer e acidentes de trânsito (Fonseca, Ribeiro & Leal, 2012; Minayo, 2006; Krenkel, 2014). Krenkel (2014) aponta que “as implicações sociais e danos para a saúde integral da mulher, isto é, para a saúde física, mental e reprodutiva”, considerando, ainda, que, “entre as consequências, pode-se destacar a perda da confiança em si e de suas capacidades, perda da autonomia, dos valores e medo de controlar sua própria vida”(p. 46).
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Dessa compreensão, estudos apontam que mulheres que sofreram violência apresentavam sintomas de ansiedade e insônia, depressão, ideação suicida, tendência ao isolamento, impotência, vergonha, dificuldades de promover mudanças, como alteração de residência e emprego, sentimento de inferioridade, baixa autoestima e falta de confiança em si mesma (Adeodato, et.al., 2005; Lettiere & Nakano, 2011; Minayo, 2006; Rocha, 2007; Wilhelm & Tonet, 2007; Krenkel, 2014). Apresentam perda de emprego com maior frequência, com diminuição da renda mensal, o que é agravado exponencialmente em razão de ausência de uma rede de apoio (Brasil, 2002; Prates & Alvarenga, 2008; Krenkel, 2014). Ainda, demonstram abusividade no uso de drogadição (lícita e ilícita), em formatação de um comportamento autodestrutivo, além de comportamentos não intencionais de igual caráter, como distúrbios do sono, medo, dores crônicas, sedentarismo, insegurança, problemas gastrointestinais, falta de concentração, irritabilidade e culpa. Ademais, pode-se mencionar, o comprometimento da saúde sexual e reprodutiva, nos casos violência sexual, incluída quando são obrigadas a manter relações sexuais com o seu parceiro. A situação de violência contribui, ainda, para o sentimento de inferioridade, decorrente da baixa autoestima e da falta de confiança em si (Adeodato, et.al., 2005; Lettiere & Nakano, 2011; Minayo, 2006; Rocha, 2007; Wilhelm & Tonet, 2007; Krenkel, 2014). É diante da gravidade desses dados, que houve um posicionamento do Estado brasileiro, acerca da violência contra as mulheres, com a formulação de política pública direcionada. Contudo, como sua instalação, concretização e sucesso dependem de escolhas políticas (até mesmo a identificação o problema como público), verifica-se como houve demora na formulação de ações nesse sentido. Assim, o que pode ser compreendido como omissão estatal, também pode ser observado enquanto escolha política4.
4
Sobre a temática, importante destacar o artigo de Achille Mbembe intitulado Necropolítica, que trata da expressão máxima da soberania do Estado, qual seja o poder e a capacidade de ditar quem pode viver e quem deve morrer, sentido em que entende que matar ou deixar viver constituem, como atributos fundamentais, os limites da soberania.
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3. Violência contra as mulheres enquanto problema público: a política pública de enfrentamento violência contra as mulheres Política Pública refere-se a um conjunto de ações público-governamentais, que ocorrem por meio de por meio de programas públicos, projetos, leis, campanhas publicitárias, esclarecimentos públicos, inovações tecnológicas e organizacionais, subsídios governamentais, rotinas administrativas, decisões judiciais, coordenação em rede atores, gasto público direto, contratos com stakeholders dentre outros, visando a resolução de um problema coletivo que afete a sociedade. Para tanto, apresenta dois elementos fundamentais: (a) a existência de um problema público, constatado pela discrepância entre a situação vivida publicamente e a situação ideal à coletividade; (b) a intencionalidade pública, que é a decisão política motivada para o estabelecimento de ações para tratamento ou para resolução de um problema (Brancaleon et al, 2015). Até 2003, as ações relacionadas ao enfrentamento à violência contra as mulheres, no Brasil, eram pulverizadas e não se apresentavam em rede. Tais ações referiam-se basicamente a duas estratégias: a capacitação de profissionais da rede de atendimento às mulheres em situação de violência e a criação de serviços especializados, mais especificamente Casas-Abrigo e Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher (Brasil, 2010). Olhada tal cena pelo prisma de escolha pública, compreende-se que, até 2003, a violência contra as mulheres, no Brasil, não caracterizavam ocorrências que preocupavam o Estado brasileiro – não porque não aconteciam, mas por diversos fatores culturais, sociais e, inclusive, jurídicos, que, como se verá adiante, legitimavam os atos violentos e a privatização da violência contra a mulher. A partir de 2003, foi, então, implantada a Secretaria de Políticas para as Mulheres, em âmbito nacional, a qual incentivou o fomento de outras ações, mas ainda isoladas, de iniciativas para o combate ao problema (Brasil, 2010). A concretização de ações integradas ocorreu com criação de normas e padrões de atendimento, aperfeiçoamento da legislação, incentivo à constituição de redes de serviços, o apoio a projetos educativos e culturais de prevenção à violência e ampliação do acesso das mulheres à justiça e aos serviços de segurança pública. Assim, citam-se os Planos Nacionais de Políticas para as Mulheres, a 238
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Lei Maria da Penha, a Política e o Pacto Nacional pelo Enfrentamento à Violência contra as Mulheres, as Diretrizes de Abrigamento das Mulheres em situação de Violência, as Diretrizes Nacionais de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres do Campo e da Floresta, Norma Técnica do Centro de Atendimento à Mulher em situação de Violência, Norma Técnica das Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher, entre outros (Brasil, 2010). Em 2011, então, foi publicada a Política Nacional de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres, que é uma política pública não regulamentada em legislação específica, que traz conceitos, princípios, diretrizes e ações de prevenção e combate à violência contra as mulheres, de assistência e garantia de direitos às mulheres em situação de violência (Brasil, 2010). A Política Nacional de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres promoveu a implementação de políticas amplas e articuladas, que procurem dar conta da complexidade da violência contra as mulheres em todas as suas expressões: (a) ação conjunta dos diversos setores envolvidos com a questão (saúde, segurança pública, justiça, educação, assistência social, entre outros); (b) ações que desconstruam as desigualdades e combatam as discriminações de gênero e a violência contra as mulheres; interfiram nos padrões sexistas/ machistas ainda presentes na sociedade brasileira; promovam o empoderamento das mulheres; e garantam um atendimento qualificado e humanizado àquelas em situação de violência. Assim, não se restringe à questão do combate, mas compreende também as dimensões da prevenção, da assistência e da garantia de direitos das mulheres (Brasil, 2010). Como eixos estruturantes da Política Nacional de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres, há: a. Âmbito preventivo: desenvolvimento de ações que desconstruam os mitos e estereótipos de gênero e que modifiquem os padrões sexistas, perpetuadores das desigualdades de poder entre homens e mulheres e da violência contra as mulheres; ações educativas, culturais que disseminem atitudes igualitárias e valores éticos de irrestrito respeito às diversidades de gênero, raça/etnia, geracionais e de valorização da paz; campanhas que visibilizem as diferentes expressões de violência de gênero sofridas pelas mulheres e que rompam com a tolerância da sociedade frente ao fenômeno; no tocante à violência doméstica, a prevenção deverá focar a mudança de valores, em especial no que tange à cultura do silêncio quanto à violência contra as mulheres no espaço doméstico e à banalização do problema pela sociedade. O combate à 239
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violência contra as mulheres compreende o estabelecimento e cumprimento de normas penais que garantam a punição e a responsabilização dos agressores/autores de violência contra as mulheres (Brasil, 2010). b. Âmbito do combate: implementação da Lei Maria da Penha: aspectos processuais/penais e no que tange à criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher. A Política também busca fortalecer ações de combate ao tráfico de mulheres e à exploração comercial de mulheres adolescentes/jovens (Brasil, 2010).
Fonte: Brasil, 2010.
No entanto, o que ia avançando, mesmo que lentamente, paralisou quando houve o processo de impeachment da Presidenta Dilma Rousseff e assunção do governo federal por Michel Temer. Desde 2016, então, houve o enfraquecimento da estrutura das Políticas Públicas de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres, com a extinção do Ministério das Mulheres, da Igualdade Racial e dos Direitos Humanos e vinculação de setor referente ao tema, como Secretaria vinculada ao Ministério da Justiça, o que, dentre outros fatores, dilui a importância, os recursos e a força de atuação da e para a temática (Brasil, 2018). Do exposto, visualiza-se a conjuntura de diversos fatores que representam proteção e desproteção às mulheres no tocante à violência, desde a ocorrência dos próprios atos contrários à sua saúde, até o entendimento de tais fenômenos como problema público. É diante disso que se faz imprescindível uma abordagem sistêmica sobre a temática.
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4. Modelo para análise dos fatores de risco e possibilidades de intervenção para enfrentamento da violência contra as mulheres A abordagem da saúde pública constitui-se como “um processo sistemático e baseado em evidências” que se concretize em quatro etapas: (a) definição do problema; (b) investigação da razão da ocorrência do problema; (c) questionamentos sobre as maneiras de prevenção do problema; (d) disseminação de informações (OPAS/OMS, 2012). A definição do problema (a) implica conceituar o fenômeno de forma teórica e numérica, “utilizando estatísticas que descrevam com precisão a natureza e a escala da violência, as características dos mais afetados, a distribuição geográfica dos episódios e as consequências da exposição a tais violências” (OPAS/OMS, 2012). A investigações sobre fatores de ocorrência do problema (b) implica na verificação de “causas e correlatos, os fatores que aumentam ou diminuem o risco de sua ocorrência (fatores de risco e de proteção) e os fatores que poderiam ser modificáveis através da intervenção” (OPAS/OMS, 2012). A perquirição sobre maneiras de prevenir o problema (c), por sua vez, prescinde do manejo das informações colhidas interiormente e da elaboração, monitoramento e avaliação da “[...] eficácia dos programas por meio de avaliações de resultados” (OPAS/OMS, 2012). A disseminação de informações (d), finalmente, consubstancia-se pela divulgação de dados sobre a “[...] eficácia dos programas e ampliar a escala de programas com eficácia comprovada” (OPAS/OMS, 2012). Nesse compasso, a Organização Mundial da Saúde, especificamente a Organização Pan-americana de Saúde (OPAS/ OMS, 2012), pelo Plano de Prevenção da violência sexual e da violência pelo parceiro íntimo contra a mulher (ação e produção de evidência), utilizou, dentre as formas de modelagem de sistemas, o modelo ecológico teorizado por Dahlberg e Krug (2002) para compreender o fenômeno violência contra as mulheres dentre do meio familiar. No modelo proposto, há quatro níveis de influência interdependentes: a. Individual: inclui fatores biológicos e de histórico pessoal que podem aumentar a probabilidade de um indivíduo se tornar uma vítima ou um perpetrador de violência. b. Relacional: inclui fatores que aumentam o risco resultantes de relacionamentos com pares, parceiros íntimos e membros familiares. Esses 241
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são o círculo social mais próximo à pessoa e podem moldar seu comportamento e os tipos de experiências. c. Comunitário: refere-se a contextos comunitários, nos quais estão contidas relações sociais – como as escolas, os locais de trabalho e as vizinhanças – e busca identificar as características desses ambientes que são associadas a pessoas que se tornam vítimas ou perpetradores de violência sexual e violência pelo parceiro íntimo. d. Social: inclui os fatores mais amplos e em nível macrossocial que influenciam a violência sexual e a praticada pelo parceiro íntimo, tais como desigualdade de gênero, sistemas de crenças religiosas ou culturais, normas sociais e políticas econômicas ou sociais que criam ou sustentam lacunas e tensões entre grupos de pessoas (OPAS/ OMS, 2012).
Por tal perspectiva sistêmica, portanto, o cerne da pesquisa não se restringe aos sujeitos, mas nas suas relações reconhecidamente em um determinado contexto cultura, em um dado tempo e espaço. O fenômeno da violência não é considerado como o produto de um fator único, mas como o reflexo de diversos fatores de risco e causas múltiplas, os quais interagem em quatro de níveis interdependentes da vinculação social da pessoa: individual, relação estreita (família), comunidade e sociedade (OPAS/OMS, 2012). Esses quatro níveis de interação são salutares para se localizar os fatores de risco. Evidencia-se a importância de se analisar o nível cultural/social ou externo do modelo para reduzir o fenômeno da violência em determinada população estudada. Assim, como também compreendido pela PAS/OMS (2012), as pesquisas e estratégias que objetivem a prevenção da violência deve refletir sobre “[...] fatores socioculturais e econômicos por meio de mudanças legislativas e políticas e da implementação de programas conexos”, bem como sobre os fatores localizados de estruturação das relações sociais do contexto em estudo. Nesse modelo, assim, são identificados fatores de risco, que são fatores que “aumentam a probabilidade de alguém se tornar a vítima ou o perpetrador de violência sexual e da praticada pelo parceiro íntimo”. A inibição de tais fatores deve “ser um objetivo-chave dos esforços de prevenção, bem como um conceito integral nos esforços de monitoramento e avaliação de programas”, bem como “fatores de proteção, que são uma margem de segurança contra o risco de alguém se tornar uma vítima e/ou perpetrador” – tudo isso com o objetivo de se realizarem “intervenções estruturais ou de outra natureza para alcançar a igualdade de gênero e o empoderamento da mulher” (OPAS/ OMS, 2012). 242
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A análise sistêmica em nível macro cultural e institucional direciona-se ao exame da legislação e das políticas públicas (bem como sua eficácia de divulgação e implementação), que visam o combate das desigualdades socioeconômicas relativas às mulheres. O Estado, em tal prisma, possui contribuição vital para a construção do discurso sobre a mulher e a melhora de sua posição no grupo social. Isso porque, pelo discurso jurídico, incentivam-se mudanças culturais e relacionais, especialmente por se fomentar a posição de não-tolerância de violência (OPAS/OMS, 2012). O modelo ecológico, portanto, contempla os níveis de influência e interação entre as pessoas: social, comunitário, relacional e individual. Os dois primeiros níveis condizem com círculo social mais próximo do indivíduo e interfere, de forma relativamente acentuada, em seu comportamento e experiências. Importa destacar que a OMS contempla um posicionamento acerca das normas de gênero e de desigualdade que são imprescindíveis para este estudo. Há um reconhecimento de que as crenças de hierarquização entre os gêneros contemplam temas subpesquisados em associação com a violência contra as mulheres. Apesar disso, aponta que dois fatores de risco delineiam-se nessa associação: “a posição desigual das mulheres em certas relações e na sociedade (que está regida por ideologias da superioridade masculina); e o uso normativo da violência para a resolução de conflitos (e durante as lutas políticas)” (OPAS/OMS, 2012). Em tal compreensão, segundo Jewkes (2002): Esses fatores se expressam por meio de papéis de gênero distintos e hierárquicos, de noções de direito masculino ao sexo, do baixo valor social e poder da mulher e de ideias de masculinidade vinculadas ao controle ou ao exercício de “disciplinar” a mulher. Eles, por sua vez, são vinculados a fatores tais como baixos níveis de escolaridade entre as mulheres, poucos papéis públicos para as mulheres, falta de apoio familiar, social e legal às mulheres e falta de poder econômico para as mulheres.
Na literatura brasileira sobre a temática, Maciel e Cruz (2009) teorizam o Modelo Bioecológico aplicado à Violência Familiar5 (Figura 1), em que de5
O modelo proposto de Maciel e Cruz (2009) foi estruturado a partir da Teoria Bioecológica, de Bronfenbrenner (1994), a qual promove a compreensão sistêmica das dinâmicas entre pessoa e ambiente, a partir de elementos pessoais, processuais, contextuais e temporais, que se articulam no dinamismo sistêmico.
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monstram que os níveis macro-, exo- e microssistema são essências para a compreensão do fenômeno violência contra mulheres, haja vista que há modelos de convivência e interação entre homens e mulheres, considerados tradicionais, que representam situações de violência contra as mulheres como algo que ocorre porque deveria inexoravelmente acontecer. Nesse sentido, a violência contra as mulheres seria considerado algo natural de tal modelo e de tal convivência (como se não houvesse outras formas relacionas, pautadas pela não-violência), em que as mulheres seriam consideradas merecedoras de estarem em tal contexto violência e como se não promovessem nenhuma ação para extirpar a violência (Krenkel, 2014).
O local das normas jurídicas, nos modelos apresentados, é no nível social ou exossistema, em que se verificam normas de gênero e sociais tradicionais que toleram a violência. Pelas pesquisas realizadas, uma das hipóteses mais comuns para explicar a perpetração e a experiência de violência praticada pelo 244
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parceiro é a manutenção do patriarcado ou domínio masculino no âmbito da sociedade (Taft, 2009), o qual, por muito tempo, foi subsidiado pelo Direito e, há menos de cinquenta anos, apresenta alterações legislativas. Além disso, “as normas patriarcais e de domínio masculino refletem a desigualdade e iniquidade de gênero em nível social e legitimam a violência praticada pelo parceiro íntimo e a violência sexual perpetradas pelos homens” (OPAS/ OMS, 2012). E, embora estejam situadas em nível social, esses valores que formam normas sociais atuam nos níveis comunitário, relacional e individual (OPAS/ OMS, 2012). E, para a compreensão do lugar do direito para famílias e mulheres, então, é necessário o entendimento acerca da contextualização e organização de estruturas discursivas, organizacionais e materiais na contemporaneidade. O Direito, enquanto prática discursiva, opera no nível de formação de conhecimento e educação informal e formal que disciplina formas de relacionamentos intersubjetivos. Além disso, o Direito não maneja materialidades senão pela livre escolha das pessoas ou pela coerção. A livre escolha deve se concretizar após a promoção de educação e capacitação acerca da temática, tanto com incentivos de ações educacionais amplas, bem como por ações de capacitação dos próprios agentes do Estado – magistrados, promotores, delegados, técnicos, etc. No entanto, mesmo que a escolha seja pela prática de atos violentos, o Direito, então, atua por meio de sanção, a fim de que a prática violenta não se repita, de modo individual ou coletivo, e que seja entronizada a compreensão da ilicitude do ato, nos vários níveis sistêmicos de vida. Atualmente, existem fatores de proteção às mulheres e de prevenção contra a violência, tais como a Política Nacional de Enfrentamento à Violência contra Mulheres, a Lei Maria da Penha, a regulamentação do divórcio, Lei protetora do casamento. Contudo, ainda, de modo sistêmico, há muito a avançar no imaginário social, pelo viés do tempo, nas crenças sobre relacionamentos heteroafetivos a fim de que as pessoas compreendam que a violência contra as mulheres, especialmente no seio familiar, que deveria ser o local de potencialidades para sua evolução e concretização primária de sua dignidade, como comportamento intolerável, tanto no grupo social, quanto nas práticas judiciárias.
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6. Considerações finais Há pouco mais de uma década – em tempo recente – o próprio Direito normatizavam condutas de cunho violento contra as mulheres, especialmente dentro do meio familiar, considerando a incapacidade da mulher, o poder familiar sob a decisão do homem, a configuração legítima de estupro marital ou, mesmo, de estupro de mulheres que não fossem “honestas”, cuja definição seria conferida por um homem. Assim, a legitimação de violências acontecia com o respaldo estatal, na compreensão de que o privado não é político ou público ou que a própria violência é tolerada em determinadas circunstâncias. Dada a panorâmica sistêmica das relações humanas em comento, que se perfazem no meio íntimo, da família, e no meio social e cultural, vê-se o desafio de se verificarem as práxis que são legitimadas pelo Direito vigente, o que somente terá efetividade quando forem observadas as contribuições de outras esferas do conhecimento, especialmente da psicologia. Assim, poderá se vislumbrar o Direito no fim a que se pretende: um discurso de emancipação e de proteção das pessoas, especialmente das mulheres, e fomentador de espaços que primem pelo desenvolvimento humano. Assim, o desafio maior é que deixe de representar um fator de risco e desproteção às mulheres, e passe a significar um fator de proteção às mulheres no sistema social.
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O Espaço Vazio da Anulação da Representação Feminina na Literatura Bíblica e a Supressão de Direitos das Mulheres Athena de Oliveira Nogueira Bastos1
Introdução A história do mundo, na percepção de Beauvoir (2016), é masculina. Isto decorre da percepção de que a mulher pertenceria a uma classe intitulada de o “Outro”, ou seja, considerada em uma individualidade à parte do padrão masculino, com base no qual, então, operam as normas sociais. Sendo o “Outro”, a mulher pertenceria ao que está fora de um sistema padrão, dentro do qual é vista por olhares masculinos. E por esses olhares, então, é descrita culturalmente, historicamente, socialmente, politicamente e juridicamente. Esse imaginário, contudo, não pode ser ignorado, na medida em que a própria sociedade não se constrói de comunicação originária, mas das memórias produzidas anteriormente2. O Direito, enquanto assume como uma de suas funções a normatização dessa sociedade, baseia-se também nesse imaginário para a prescrição de condutas – em uma consequente construção de modelos de individuação e expectativas de comportamento (SOUZA, 2018) – e aplicação das normas,
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Mestra pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina – PPGD/UFSC (2019).
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Souza (2018), ao traçar a analogia do Direito como um palimpsesto, explica-o a partir de sua conexão com a memória. É através de sua relação com a memória, portanto, que o Direito interfere no tempo social e trabalha com as memórias coletivas. Como François Ost (2005) melhor explica, o Direito trabalha com o tempo na medida em que institui prognósticos para o futuro e regulamenta condutas conforme o que foi passado. E na medida em que o passado lhe confere base e fundamento, a memória e o imaginário coletivo – enquanto formas de explicação recriadas para dar sentido a elementos da coletividade – também interferem na produção comunicativa jurídica.
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ainda que sob um processo de racionalismo3. Estudar os direitos das mulheres hoje, portanto, pressupõe também uma análise da imagem feminina assumida na contemporaneidade, mas que carrega em si a herança da imagem perseguida em gerações anteriores, em uma reprodução de códigos e concepções invisíveis, cuja influência material se verifica nas condutas individuais e coletivas. Pressupõe também, desse modo, uma compreensão do papel atribuído às mulheres em um passado que se constitui como fonte de um presente, embora não seja dele a única condicionante. Diante disso, é preciso delimitar o fundo através do qual se desenvolve a pesquisa. Em uma análise histórica do Direito ocidental, a religião cristã, sobretudo, assumiu papel relevante na fixação dos comportamentos padrões ou normatizados das mulheres, de modo que, ainda hoje, a imagem recriada por seus dogmas interfere na forma como as mulheres são vislumbradas na sociedade. Isto revela, dessa maneira, não apenas que um dia houve uma indiferenciação dos sistemas jurídico e religioso4, mas também que ainda hoje se verificam conexões e interferências. Por essa razão, buscou-se, nesta revisão bibliográfica, entender como a construção e anulação da figura feminina na literatura bíblica, durante a construção do cânone no Cristianismo Primitivo5, promoveu a submissão da mulher e a supressão de direitos, para o que se faz uma revisão bibliográfica de literatura acerca da construção imagética das mulheres e da construção do cânone cristão. E objetiva-se, através deste breve estudo, compreender as razões pelas quais a literatura cristã primitiva, no que concerne à representação 3
O racionalismo aqui trabalha segue no sentido concedido por Castoriadis (1982) quando em sua análise do simbolismo na sociedade. E remete, assim, a uma hierarquização entre os elementos essenciais e os elementos secundários. Ademais, acerca da racionalidade moderna afirma que é simplesmente formal. E, assim, sem conteúdo.
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A diferenciação funcional dos sistemas refere-se à separação dos códigos comunicativos e das funções exercidas entre as diferentes esferas da sociedade. A separação entre Direito e Religião, então, dá-se através do que se conhece por secularização, processo cujo marco no âmbito jurídico é a expropriação dos bens eclesiásticos em favor dos Estados-Nação recém-formados. Em seguida, o processo de diferenciação do sistema religioso, pelo que se conheceu semanticamente através do termo secularização, expandiu-se para as demais esferas sociais: em seguida ao Direito, ao campo histórico-político; posteriormente, ao campo ético e sociológico. Nessa etapa, a secularização assume “o significado de categoria genealógica capaz de conter em si o sentido unitário da evolução histórica da sociedade ocidental moderna” (MARRAMAO, 1995, p. 30).
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Entende-se por Cristianismo Primitivo aquele construído até o século IV d. C., culminando com a canonização dos textos bíblicos por Constantino, em 325, no Concilio de Niceia.
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feminina, poderia constituir uma ameaça a poderes políticos conservadores; como esta ameaça justifica, alterações nos textos; e quais os impactos que essa mudança na representação simbólica pode ocasionar aos direitos das mulheres e à dualidade silenciamento/direito de fala.
2. Mulheres sem fala O recurso de modificação do papel feminino é uma questão histórica que encontra consequências nos dias contemporâneos. Como já ressaltado, não é possível imaginar que o presente surja do acaso ou que, no caso do Direito, por exemplo, a constituinte seja, de fato, a fonte de um poder originário. Se, por um lado, o Direito legitima poderes – legitima as competências dos poderes legislativo, executivo e judiciário, por exemplo, na adoção da tripartição dos poderes de Montesquieu, ou competências de julgamento – também é legitimado por uma força política, sem qual não teria aspecto coercitivo. Então, as estruturas do Direito vigente são mais antigas do que sua proposta aparenta: são formadas por códigos imaginários anteriores a ele. E nesse sentido, é preciso compreender os recursos e estratégias utilizadas para a construção de uma imagem da mulher que satisfizesse aos interesses dos poderes vigentes. Souza (2018, p. 15/16), por exemplo, escreve sobre o papel de Lilith na história do cristianismo: O esquecimento – ou apagamento de Lilith da história do cristianismo – já que se especula que os momentos da bíblia em que seu nome era mencionado em Gênesis teriam sido eliminados durante o Concílio de Trento – refletem uma edição que vem sendo feita até a contemporaneidade na história da humanidade, trazendo invisibilidades e mantendo, através de normatizações, processo de violência contra as mulheres que, inicialmente, surgiram como traços ocasionais de mudança de sentido e que, repassados transgeracionalmente, ganharam força, e por meio da familiaridade, foram mantidos.
O mesmo ocorre em relação a figuras menos polêmicas que Litlith, algumas das quais, talvez herdeiras da opressão representada pela figura de Eva, criada a partir da figura de Adão e subjugada a ele conforme Souza (2018). No entanto, permanece a pergunta do porquê de essas mulheres serem esquecidas ou modificadas. As razões para a submissão histórica feminina e a supressão 307
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de direitos são objeto de teorias diversas, algumas das quais, como explica Beauvoir (2016) parte das sociedades primitivas. Não se pretende, contudo, descobrir qual a origem dessas diferenciações neste breve estudo, mas pode-se entender algumas das motivações políticas por trás dessas alterações através da análise do papel das mulheres na sociedade em que foram representadas. A consolidação de um cânon que reunisse os principais textos de uma religião incipiente foi um dos elementos fundamentais para a ascensão do cristianismo e a construção de uma cultura que, apesar das modificações decorrentes do tempo, ainda hoje exerce influência no campo do Direito. A construção desse cânone, contudo, não resumiu a uma reunião aleatória de textos que dialogassem entre si6. Pelo contrário, decorreu de escolhas políticas no que concerne à própria seleção, mas também à alteração e supressão de alguns elementos, principalmente diante dos conflitos decorrentes de um registro embasados em fontes orais. O que se questiona, porém, são as motivações que conduziram a essas escolhas. Por que, por exemplo, a escolha pela proibição de fala das mulheres, mesmo diante de uma pretensa mensagem de igualdade entre gêneros, ou a omissão acerca do histórico de participação feminina em lideranças religiosas? E, mais do que isso, que intenções poderiam existir por trás dessas decisões de cunho político, de modo a evidenciar a influência política na definição de normas de conduta para corpos femininos – algo que se discute em teorias como a de Pateman (1993), pela perspectiva de que o público e o privado partem de uma raiz idêntica político, histórica e social? As mulheres, nos primeiros séculos da Era Cristã, integravam uma camada da população cujos direitos eram suprimidos. As cidades helênicas figuravam como centros culturais e de conhecimento, onde se estabeleciam a maioria rica da população. Abaixo dela, todavia, havia camadas intermediárias, formadas por trabalhadores autônomos, e camadas gradualmente infe6
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“A primeira produção de um cânone das Escrituras é atribuída à Marcião, cristão que defendia enfaticamente a separação entre a Lei mosaica e a fé em Jesus Cristo. Marcião apoiava o pensamento paulino de que a salvação somente seria alcançada através do evangelho – crença em Jesus –, e não obrigatoriamente da Lei mosaica, fornecida aos homens pelo Deus judaico. Reuniu, então, 11 livros que transmitissem a sua compreensão da mensagem de Jesus Cristo. Todavia, encontrava nas cópias vestígios do que acreditava ser interferência de “falsos crentes”, motivo pelo qual acreditou ser imprescindível editar passagens que estivessem em desacordo com a sua interpretação” (cf., OLIVO, BASTOS, 2017, p. 80).
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riores, dentro das quais se encontravam as mulheres, equiparadas, em direitos, aos escravos e aos menores. De fato, não é a primeira vez que as mulheres ocupam posição equiparável à da escravidão, embora as relações de violência que se estabeleçam sejam distintas, como explicam Beauvoir (2016) e Pateman (1993). Beauvoir (2016, p. 201), assim, escreve que: [...] não houve, a princípio, mulheres livres que os homens teriam escravizado e que nunca a divisão dos sexos criou uma divisão em castas. Assimilar a mulher ao escravo é um erro. Houve mulheres entre os escravos, mas sempre existiram mulheres livres, isto é, revestidas de dignidade religiosa e social; elas aceitavam a soberania do homem e este não se sentia ameaçado por uma revolta que o pudesse transformar, por sua vez, em objeto. A mulher apresentava-se assim como o inessencial que nunca retorna ao essencial como o Outro absoluto, sem reciprocidade.
Beauvoir, contudo, não quer dizer que não houve resistência feminina à pretensa soberania masculina, mas que a imagem construída sobre elas lhes concedia a sensação de uma liberdade inexistente, enquanto não era vista como Sujeito essencial, mas o Outro. Não obstante, apesar das diferenças contextuais entre a opressão sobre as mulheres e a forma de escravidão, a equiparação revela que a posição das mulheres, mesmo daquelas pertencentes a camadas mais abastadas da população, era caracterizada pela desconsideração de sua individualidade e pelas parcas garantias em relação ao seu corpo e sua liberdade, em uma ilusão de verdadeiro poder. No contexto do Império Romano, deviam elas, legalmente, obediência aos chefes de família romanos. Paul Johnson (2014, p. 90), ao analisar a cultura romana no período do Cristianismo Primitivo, escreve que as mulheres “tinham pouco ou nenhum status a não ser que se casassem com governantes, e mesmo então sua posição era precária. Podiam ser descartadas – ‘afastadas’ era o termo empregado em documentos legais – segundo o capricho dos maridos”. Isto, todavia, não era exclusividade da cultura judaica. O Código Penal Babilônico, por exemplo, sujeitava as mulheres ao afogamento na hipótese de repúdio aos seus maridos. Diante, portanto, desse cenário, a propagação de uma cultura que autorizasse a maior participação das mulheres em posições de poder e maiores garantias – ainda que não nos moldes hoje vislumbrados – seria vista como uma possibilidade a ser perseguida em detrimento da invisibilidade experimentada. E não é de espantar que uma literatura que pro309
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movesse a insurgência contra costumes de submissão e figuras de relevância também fosse vislumbrada com receio pelas camadas conservadoras. No trecho retirado do Evangelho de Lucas (21, 1-4), por exemplo, escreve-se que: Erguendo os olhos, Jesus viu pessoas ricas que depositavam ofertas no Tesouro do Templo. Viu também uma viúva pobre que depositou duas pequenas moedas. Então disse: ‘Eu garanto a vocês: essa viúva pobre depositou mais do que todos. Pois todos os outros depositaram do que estava sobrando para eles. Mas a viúva, na sua pobreza, depositou tudo o que possuía para viver (LUCAS, 1990, p. 1344).
Elementos como estes revelavam que a insignificância ou invisibilidade social não excluiriam os indivíduos de uma “salvação” final, atraindo-os. Os Evangelhos, por exemplo, dão indícios de que mulheres acompanhavam Jesus em sua trajetória. E o auxiliavam financeiramente, “agindo como patronas de seu ministério de pregação itinerante” (EHRMAN, 2015, p. 189). No Evangelho de Lucas (8, 1-3), por exemplo, consta a seguinte passagem: [...] Jesus andava por cidades e povoados, pregando e anunciando a Boa Notícia do Reino de Deus. Os Doze iam com ele, e também algumas mulheres [...]: Maria, chamada Madalena, [...] Joana, mulher de Cuza, alto funcionário de Herodes; Susana, e várias outras mulheres, que ajudavam a Jesus e aos discípulos com os bens que possuíam (LUCAS, 1990, p. 1322).
Embora o cristianismo não pretendesse em um momento inicial uma revolução política, questões referentes às mudanças propostas, para além da que se refere ao papel da mulher, ensejaram uma perseguição aos primeiros cristãos. Como Mary Beard (2017) coloca, “qualquer que fosse a letra da lei, e as circunstâncias específicas de qualquer julgamento em particular, havia um conflito irreconciliável entre os valores romanos tradicionais e o cristianismo”. Esse conflito se estendia do monoteísmo a pressupostos fundamentais do mundo. O cenário que se modificou a partir da perspectiva de que essas propostas também poderiam ser utilizadas politicamente para legitimação de poderes e controle social. No que concerne à capacidade de fala da mulher, o que justificaria as modificações na representação feminina pode ser explicado com uma analogia ao seguinte argumento de Souza (2018, p. 36/37) acerca da modificação no mito de Lilith: 310
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A exclusão da mulher é uma decisão, a retomada da comunicação entre as ambiguidades e diferenças, uma decisão reiterada na comunicação dos sistemas. [...] A mulher é ameaça ao poder de fala e do falo do pai, por isso, é inscrita como parasitária no mito do sexo. Por não ter essência, a memória, que a escritura protege e guarda, é engolida pelo esquecimento; ela é memória que serve ao esquecimento, assim como Lilith foi apagada em sua própria história e reinscrita no mito do Éden a partir da distorção dos editores bíblicos, que adequaram o texto e expurgaram a memória da tradição judaica, amoldando-a aos valores e discursos culturais do patriarcalismo.
3. Mulheres em esquecimento Um dos trechos mais conhecidos da literatura paulina refere-se à passagem acerca da igualdade para Deus. Em Gálatas, Paulo (1990b) escreve que não existirão diferenciações, entre gregos, judeus, mulheres, homens, escravos e libertos diante do juízo divino. Contudo, o autor escreveu na crença de que o fim dos tempos estava próximo e, dessa maneira, não haveria por que implementar essa igualdade no plano terreno. Conforme Olivo e Bastos (2017, p. 86) Paulo acreditava que a vinda do Reino de Deus se daria em breve. Assim, a transmissão da mensagem na terra era intermediária e temporária, motivo pelo qual ele não via razão em modificar os relacionamentos terrenos, embora pregasse que todos devessem ser tratados com dignidade. Em sua concepção – ainda que, Jesus não favorecesse homem ou mulher, escravo ou liberto –, cada um deveria exercer o papel que lhe fora atribuído. Embora Paulo não faça referência direta à situação da mulher, a passagem “cada um permaneça na condição em que se encontrava quando foi chamado” (1Cor 7, 20) pode ser estendida à sua concepção do sexo feminino.
Algumas passagens da literatura paulina, inclusive, refletem uma contradição ao propósito de igualdade, ao promoverem um silenciamento das mulheres. É o caso, por exemplo, de sua carta a Timóteo (1Tm, 2, 9-15), segundo a qual: Quanto às mulheres, que elas tenham roupas decentes e se enfeitem com pudor e modéstia. Não usem tranças, nem objetos de ouro, pérolas ou vestuário suntuoso; pelo contrário, enfeitem-se como boas obras, como convém a mulheres que dizem ser piedosas. Durante a instrução, 311
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a mulher deve ficar em silêncio, com toda a submissão. Eu não permito que a mulher ensine ou domine o homem. Portanto, que ela conserve o silêncio. Porque primeiro foi formado Adão, depois Eva. E não foi Adão que foi seduzido, mas a mulher que, seduzida, pecou. Entretanto, ela será salva pela sua maternidade, desde que permaneça com modéstia na fé, no amor e na santidade (PAULO, 1990c, p. 1531)
Como, então, interpretar qual deveria ser o papel da mulher na sociedade e na literatura bíblica de modo geral foi uma discussão enfrentada pelas igrejas do Cristianismo Primitivo, na busca pela homogeneização de seus dogmas. Afinal, Paulo falava da igualdade vindoura, mas restrita ao juízo de Deus. Não promovia, portanto, questionamentos profundos na realidade material das mulheres e no seu posicionamento diante das relações diferenciadas de gênero. Contudo, não previa que o adiamento do juízo final implicaria em uma discussão acerca das interpretações de seus textos. Diante do impasse, a maior parte das igrejas optaram por negar às mulheres o exercício de lideranças, relegando-as a papéis menores dentro da instituição e geralmente conexos aos papéis de subserviência estabelecidos (EHRMAN, 2013). No que concerne à contribuição fornecida nos primeiros anos do Cristianismo, apesar dos indícios deixados pelos evangelhos, outros registros foram ocultados, de modo a cair no esquecimento abordado por Souza (2018). Houve um esforço, então, de tradutores e copistas, que entendiam, muitas vezes, que a manutenção das tradições deveria ser base para a interpretação dos textos bíblicos e, portanto, justificavam modificações no que concerne ao papel feminino (EHRMAN, 2015). E assim, é possível que não apenas se tenham alterado passagens sobre o poder de fala da mulher, mas também omitido a participação na missão cristã, inclusive em papéis de apóstolos, segundo algumas interpretações. De acordo com Perrot (apud Nunes, 2008, p.73), as escolhas na construção do Cânone bíblico foram direcionadas no sentido de que: [...] predomina a representação da mulher como fonte de pecado, da sexualidade como eterna tentação, assim como do casamento como um estado inferior. Em que medida estes dados fundamentais mudaram? É o que se pergunta muitas vezes, diante do rigor das posições atuais da Igreja. [...] Por que esta obsessão, e mesmo este ódio da carne, da sexualidade, e esta profunda desconfiança da mulher no cristianismo? Desconfiança que informou toda a cultura ocidental judaico-cristã.
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Entre as modificações mais profundas conhecidas, constam algumas das cartas paulinas, a que se atribui grande papel no processo de consolidação do Cristianismo Primitivo. Em face das discussões levantadas sobre a interpretação dos textos paulinos, como Ehrman (2013) descreve, o mais provável é que alguns textos tenham sido atribuídos à sua autoridade, embora produzidos por outras mãos para dar resposta legítima ao impasse deixado. Segundo o autor: As igrejas de Paulo estavam divididas de muitas formas [...]. Uma das divisões envolvia questões de sexo, sexualidade e gênero. Alguns cristãos paulinos achavam que as mulheres deveriam ser tratadas como iguais, tendo status e autoridade iguais aos homens, já que Paulo dissera que não ‘há homem nem mulher, pois todos vós sois um em Cristo Jesus’ (Gl 3,28). Outros cristãos paulinos pensavam que as mulheres eram iguais aos homens apenas ‘em Cristo’, com o que queria dizer ‘em teoria’, não em realidade social. Esses cristãos estavam ansiosos para reduzir a ênfase de Paulo nas mulheres, e um deles decidiu escrever um conjunto de cartas, as pastorais, que autorizava seu ponto de vista em nome de Paulo (EHRMAN, 2013, p. 108/109).
Em relação ao trecho anteriormente citado da carta de Paulo a Timóteo, Ehrman (2013) considera que é contraditória a vedação, sobretudo, do ensino pelas mulheres, uma vez que, em outros textos, Paulo não apenas reconhece, mas também saúda o trabalho missionário. Diante dessas divergências e de outros elementos incoerentes observados, levanta-se a hipótese de que as duas cartas a Timóteo tenham sido objeto de falsificações para fins de diminuição da representação feminina. Ehrman (2013, p. 100) cita, por exemplo, a publicação, em 1807, de uma carta do filósofo Friedrich Scheleiermacher, em que defende que, as cartas a Timóteo utilizam palavras e ideias em contradição com as demais cartas paulinas. Não obstante, as cartas se revelam anacrônicas, ao apresentar críticas típicas do século II d. C. Ehrman traz, ainda, outro contraponto, embora menos aceito academicamente. Segundo ele, há estudos que revelam que, além da minimização da representação feminina na literatura bíblica e a consequente supressão de seus direitos, as falsificações poderiam se opor, especificamente a uma personagem feminina em posição de poder: Tecla. Tecla é uma personagem do livro apócrifo intitulado Atos de Paulo e teria se convertido ao cristianismo após conhecer o apóstolo, tornando-se, então, sua seguidora. Contudo, ela ensinava sobre a religião e exercia papel de autoridade, o que poderia representar uma ameaça à tradição. 313
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Na carta aos Coríntios, encontram-se mais discussões. A posição de Corinto como uma cidade portuária permitia o intercâmbio de diversas culturas. Ali, por exemplo, cultuavam-se tanto deuses do panteão greco-romano, como a deusa egípcia Isis, embora Mary Beard (2017) ressalte que, em alguns momentos do Império Romano isto tenha sido visto com maus olhos. E o culto a Ísis, principalmente, teria importante papel na discussão sobre a imagem feminina reproduzida nos textos canônicos. Isto porque, segundo Heyer (2009, p. 95) afirma: “de Ísis dizia-se que ‘outorgou o mesmo poder às mulheres que aos homens’”. Portanto, havia na cidade uma mitologia com figuras femininas fortes e que defendiam, de certo modo e dadas as condições contextuais, a paridade de poder entre homens e mulheres. Diante desse fator, foram colocados elementos nas duas cartas aos Coríntios que penalizassem a conduta, em certa medida, libertadora dos limites atribuídos ao papel da mulher. Embora as cartas sejam consideradas autênticas, a hipótese é que de que alguns trechos tenham sido alterados, uma vez que são contraditórios a outras passagens, quando Paulo (1990a, p. 1471), por exemplo, fala que: [...] quero que vocês saibam que a cabeça de todo homem é Cristo, que a cabeça de toda mulher é o homem, e que a cabeça de Cristo é deus. [...] toda mulher que reza ou profetiza de cabeça descoberta, desonra a sua cabeça; é como se estivesse com a cabeça raspada. Se a mulher não se cobre com o véu, mande cortar os cabelos. Mas, se é vergonhoso para uma mulher ter os cabelos cortados ou raspados, então cubra a cabeça. [...] o homem não foi criado para a mulher, mas a mulher foi criada para o homem. Sendo assim, a mulher deve trazer sobre a sua cabeça o sinal de dependência, por causa dos anjos.
No trecho, então, ele parece se contradizer em face ao trecho de Gálatas em que dispõe sobre a igualdade perante Deus. E em 1Coríntios reforça o dever de silêncio presente na carta a Timóteo. Assim, ele coloca que as mulheres devem permanecer caladas nas assembleias, como em todas as igrejas dos cristãos, não lhes sendo permitido tomar a palavra. A instrução sobre aquilo que lhe cause dúvida deve ser limitada às respostas de seus maridos. No entanto, é preciso considerar que a carta a Timóteo é considerada de autoria diversa conforme Ehrman (2015). E as semelhanças entre as duas cartas fortalece a hipótese de que tenham sido escritas notas marginais. Supõe-se, dessa maneira que: 314
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A origem dessa incoerente passagem esteja em uma nota marginal baseada nos textos de 1Timóteo, inserida em lugares diferentes da primeira carta aos Coríntios e incorporada ao texto com o passar dos anos. A hipótese é reforçada pela não coadunação com o contexto imediato da passagem, que se propõe, nos versículos anteriores e posteriores, a discutir o papel dos profetas, tema que é interrompido para abordar o silenciamento das mulheres. Ainda, na mesma carta, quando da controversa passagem acerca da utilização do véu, Paulo permite que as mulheres rezem ou profetizem, desde que com a cabeça coberta (OLIVO, BASTOS, 2017, p. 94).
As modificações aqui mencionadas evidenciam que as bases para a submissão feminina não constam necessariamente da origem dos textos e das tradições, mas também de um esforço motivado politicamente para que a representação feminina coadunasse com concepções e interpretações conservadoras. E desse modo, que a submissão se reproduzisse também no imaginário. Enquanto os textos canônicos foram moldados de modo a reproduzir a imagem de obediência e subserviência feminina, essas imagens reforçaram estereótipos e percepções que também tiveram influência no estabelecimento das normas ou dos padrões de comportamento esperados e, consequente no Direito. O direito à fala em locais públicos, por exemplo, parece simbólico, mas quando se considera que há espaços, ainda, cujo acesso é dificultado às mulheres, é preciso questionar a interferência de fatores como este. No Brasil, apenas em 1988 a igualdade entre homens e mulheres foi objeto da Constituição Federal, o que exigiu uma readequação de diversas normas do ordenamento jurídico. O Código Civil, por exemplo, até 2002 comportava uma redação que atribuía ao homem poder sobre sua esposa, sendo elas consideradas incapazes. Desse modo, o Código Civil de 1916 dispunha em seu artigo 6º, inciso II, que “são incapazes, relativamente a certos atos [...], ou à maneira de os exercer [...] as mulheres casadas, enquanto subsistir a sociedade conjugal” (BRASIL, 1916). Em um conjunto, portanto, as estratégias de recriação da imagem consolidada por esses textos reforçam a submissão das mulheres em esferas religiosas, políticas, culturais e sociais, mas também a supressão de direitos em aspectos jurídicos. Há, porém, um argumento ressaltado por Souza (2018) que merece destaque. A memória é, sim, uma forma de transmissão de imagens, de maneira que a análise dessas transmissões é necessária para o rompimento com uma 315
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herança que se deseja modificar. No entanto, a memória também é viva. A memória pode ser construída e reconstruída, na medida em que novas narrativas são contadas ou recontadas. Assim, o que foi esquecido, um dia, pode ser relembrado e utilizado na proposta de modificação de um imaginário consolidado. “A liberdade dos corpos é a memória viva, enquanto a verdade é aquilo que é instituído em uma tradição especificada” (SOUZA, 2018, p. 152). Se a memória também opera a partir do presente e não apenas do passado, e o presente se tornará o passado de uma geração futura, é possível que esforços do presente repercutam na modificação da imagem padrão perpetuada em uma mesma lógica aplicada através das modificações que optaram por apagar o poder feminino. Enfim, é papel, então, da sociedade contemporânea ressuscitar as diferentes imagens de mulheres antes apagadas, na tentativa de conceder a elas o poder de sua autodeterminação.
4. Conclusão Embora seja possível perguntar-se se modificações aparentemente tão pequenas em relação ao todo seriam capazes de provocar tantos impactos, é imprescindível que se compreenda que o todo é composto de elementos menores. Uma única forma de representação talvez não fosse suficiente ao estabelecimento de uma norma padrão, mas não se trata disso. Trata-se de um movimento histórico no sentido de apagar da história fatos e feitos de mulheres que poderiam incentivar ou promover a ruptura com uma cultura de submissão. Do mesmo modo, não é possível saber o que teria sido feito da história se o papel feminino não tivesse sido objeto de manipulações que suprimiram seus direitos e poderes políticos. Contudo, é possível compreender que houve esforço nesse sentido e que, ainda que não se possa mudar o que houve, é possível mudar o futuro e a imagem consolidada. Ainda que Souza (2018) enfoque mais na alteração da história da personagem Lilith, presente nos textos do Antigo Testamento, a lógica por trás dessa manipulação é a mesma verificada na manipulação dos textos do Novo Testamento, ambas ocorridas nos primeiros séculos da Era Cristão. Isto apenas corrobora para a concepção de que houve um movimento político com o intuito de minimizar o papel das mulheres e enfatizar seu dever de submissão, obediência e silêncio. E uma vez que se analisa a história do Direito ocidental, percebe-se 316
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que essas modificações não se limitaram aos seus tempos e contextos, mas implicaram em consequências também para os séculos seguintes. Como Nunes (2001) aborda, a construção histórica foi seletiva no que concerne às mulheres, construídas historicamente sob um véu de invisibilidade. E estudar, então, as fontes históricas e os processos a que elas foram submetidas é uma forma de escrever uma história consciente de seu passado definido pelas relações de gênero. Como Beauvoir (2016, p. 202) escreve, “todo mito implica um Sujeito que projeta suas esperanças e seus temores num céu transcendente”. Contudo, na medida em que as mulheres foram silenciadas ao ponto de não serem reconhecidas como Sujeito, mas como Outro de uma versão da história construída por indivíduos masculinos, a elas também não pertence a norma padrão criada com base nessa perspectiva história parcial. E, portanto, o próprio Direito não lhes pertenceria integralmente, nem lhes consideraria como verdadeiros sujeitos, enquanto produzido sob um imaginário que ainda é contaminado pela imagem silenciosa das mulheres. Mas como, então, inserir-se nesse sistema construído em cima de uma imagem vazia, da imagem de mulheres apagadas, corpos e memórias que deveriam estar nos espaços em que não estão? Souza (2018) propõe a utilização dos espaços de silêncio como resistência. Afinal, se a lei não considera as mulheres, que o silêncio seja utilizado como espaços de preenchimento, em uma proposta, então, de desconstrução da própria binariedade (a separação entre o feminino e o masculino). No entanto, em se tratando de segurança jurídica, esta é uma ideia que somente se efetivaria a longo prazo, na medida em que abre margens interpretativas de ambos os lados: dos que querem deixar que as vozes femininas sejam ouvidas e dos que, como aqueles que apagaram Lilith ou Tecla, desejam ainda anular os poderes femininos. A margem aberta do silencio, de fato, abre possibilidades, mas é incerta – ainda que a luta feminista não seja também segura em face do conservadorismo. Ademais, a utilização do silêncio no sentido da autora, qual seja de ocupação do espaço em branco de forma ilimitada, não supre um problema de produção ativa. Isto porque os espaços vazios do silenciamento e da anulação da representação feminina não estão fora de um sistema, mas dentro dele. As personagens bíblicas ocultadas estavam ali presentes, mas foram realocadas e alteradas de modo a se encaixar nas operações do sistema vigente. Então, embora haja concordância com a análise de Souza (2018) sobre a ocultação dessas mulheres em um silenciamento que abre margem para o cerceamento de direito, talvez esta análise a confronte na solução oferecida. 317
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O silêncio é político. E isto é perceptível na medida em que houve uma conduta de ação, e não de omissão, para silenciar as mulheres, pois o silêncio é conivente. O silêncio também comunica. Apagar mulheres da história e da literatura significa intensificar uma ideia de que as mulheres nunca falaram e de que devem silenciar-se por conta própria. Então, talvez o ponto não seja instalar o silêncio nas legislações, mas preencher os espaços vazios da memória e reordenar as engrenagens com vozes próprias até que se atinja um ponto de libertação. Metaforicamente, seria como preencher o sistema de ruídos, com as imagens e vozes femininas que um dia foram apagadas, até que as barreiras que as limitam se expandissem. E, desse modo, as vozes um dia aprisionadas ao vazio dos registros alterados pudessem ser ouvidas, repercutindo em representação e direitos.
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