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Portuguese Pages 228 [244] Year 2018
Direito e Feminismos: Materialidades que Confrontam Discursos
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Direito e Feminismos: Materialidades que Confrontam Discursos
Editora Lumen Juris Rio de Janeiro 2018
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Às Mulheres.
Agradecimentos À Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC, pelas oportunidades de questionamento sobre verdades apresentadas como absolutas, seja de modo formal ou informal; Ao Centro de Ciências Jurídicas da UFSC, pela abertura e pelo respeito ao nosso trabalho, mesmo que isso represente movimentação de estruturas predeterminadas pelo Direito; À Editora Lumen Juris, que acredita na nossa pesquisa e no desenvolvimento dos estudos científicos no Brasil, possibilitando a publicação de nossos produtos e incentivando ao aperfeiçoamento de nossas pesquisas; Às acadêmicas e aos acadêmicos que, participantes da matéria de Direito e Feminismos, contribuíram e contribuem com o enriquecimento teórico e fático de nossas existências, fortalecendo-nos; Às estudantes e aos estudantes ouvintes, que acreditam no nosso trabalho e que separam seu tempo para nos ajudar a crescer e melhorar; Às pesquisadoras do Programa de Extensão Lilith, por incorporarem o significado da insurgência e da voz; Às mulheres que nos antecederam, trilhando este caminho de quebra de ciclos; às mulheres que nos acompanham, pela força, exemplo e resistência, estejam em qualquer patamar deste(s) sistema(s) ou tenham titulação ou não; às mulheres que virão, que nos mantêm em esperança.
Prólogo O art. 3º da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional propõe, como finalidade para a educação superior, a participação no processo de desenvolvimento a partir da criação e difusão cultural, incentivo à pesquisa, colaboração na formação contínua de profissionais e divulgação dos conhecimentos culturais, científicos e técnicos produzidos por meio do ensino e das publicações, mantendo uma relação de serviço e reciprocidade com a sociedade. Ainda, segundo o Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos1, a partir desses marcos legais, as universidades brasileiras, especialmente as públicas, em seu papel de instituições sociais irradiadoras de conhecimentos e práticas novas, assumiram o compromisso com a formação crítica, a criação de um pensamento autônomo, a descoberta do novo e a mudança histórica. De acordo com o que estabelece o texto constitucional e a LDB, portanto, a educação está fundamentada na liberdade, a qual deve ser garantida à prática docente, diante dos delineamentos constitucionais e legais. Além disso, deve refletir- nas práticas de gestão e convivência no ensino, pesquisa e extensão, os quais devem se voltar à autonomia de pensamento, na reflexão crítica e na construção de humanos como sujeito de suas próprias referências. Diante de tal contexto, há, para as Instituições de Ensino Superior (IES), a urgência em participar da construção de uma cultura de promoção, proteção, defesa e reparação dos direitos humanos, por meio de ações interdisciplinares, com maneiras diversas de relação de múltiplas áreas do conhecimento humano com seus saberes e práticas. Para tanto, enumeram-se variadas iniciativas no território brasileiro, introduzindo a temática dos direitos humanos nas atividades do ensino de graduação e pós-graduação, pesquisa e extensão, além de iniciativas de caráter cultural. A importância de se realizarem ações voltadas aos direitos humanos destaca-se ainda mais se for observado o atual panorama de desigualdade de várias ordens, exclusão social, agravamento da violência. Para isso, as instituições de ensino superior precisam apresentar respostas a fim de que contribua com a 1
Disponívelemhttp://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_docman&view=download&alias=2191plano-nacional-pdf&category_slug=dezembro-2009-pdf&Itemid=30192.
capacidade crítica dos acadêmicos, por meio de um postura democratizante e emancipadora que sirva de parâmetro para o grupo social. Frente às atribuições constitucionais da universidade no ensino, na pesquisa e na extensão, infere-se que a produção do conhecimento em seu âmbito é o motor do desenvolvimento científico e tecnológico e de um compromisso com o futuro da sociedade pátria, com a promoção do desenvolvimento, da justiça social, da democracia, da cidadania e da paz. A par disso, o Programa Mundial de Educação em Direitos Humanos (ONU, 2005) propõe construir uma cultura universal de direitos humanos por meio da difusão do conhecimento, de habilidades e atitudes. Assim, indica o caminho para as instituições de ensino superior, as quais devem formar cidadãos(ãs) hábeis para participar de uma sociedade livre, democrática e tolerante com as diferenças étnico-racial, religiosa, cultural, territorial, físico-individual, geracional, de gênero, de orientação sexual, de opção política, de nacionalidade, dentre tantas. Em tal aspecto, a educação voltada às diferenças, com o objetivo de eliminar as desigualdades, pode ser incluída por meio de diferentes modalidades, tais como, disciplinas obrigatórias e optativas, linhas de pesquisa e áreas de concentração, transversalização no projeto político-pedagógico, entre outros. Aqui, destaca-se que as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Ambiental2 listam, entre seus objetivos, “promover o cuidado com a comunidade de vida, a integridade dos ecossistemas, a justiça econômica, a equidade social, étnica, racial e de gênero, e o diálogo para a convivência e a paz”. Em seu art. 14, aponta que a abordagem curricular deve relacionar “a dimensão ambiental à justiça social, aos direitos humanos, à saúde, ao trabalho, ao consumo, à pluralidade étnica, racial, de gênero, de diversidade sexual, e à superação do racismo e de toda s as formas de discriminação e injustiça social”. Vê-se que a legislação brasileira e o conjunto de normativas que orientam o ensino estabelecem, como diretriz, a imprescindibilidade de se trabalhar temas relativos a gênero, em uma perspectiva que aposte na autonomia, no
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Além disso, as Diretrizes Nacionais para a Educação em Direitos Humanos, que se aplicam a todos os sistemas e instituições de ensino, definem como seus fundamentos, entre outros, a dignidade humana; a igualdade de direitos; o reconhecimento e valorização das diferenças e das diversidades; a laicidade do Estado e a democracia na educação.
reconhecimento das diferenças, na promoção de direitos e no enfrentamento do preconceito, da discriminação, da violência e da desigualdade. No âmbito da Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC, dentre diversas ações já desenvolvidas sobre a temática gênero, criou-se a Secretaria de Ações Afirmativas e Diversidades (Saad), visando a novas ações de inclusão e de apoio à comunidade universitária, planejadas em parceria com outros setores da Universidade ligados a questões de gênero, e fobias relacionadas à mulher e ao público LGBT. Sabe-se, conforme afirmado pela secretária da Saad, Francis Tourinho, que é preciso investir em uma série de atividades, desde conscientização, a pesquisas e criação de serviços de apoio para quem sofre discriminação no campus3. Diante desse cenário, iniciou-se, em março de 2016, o Projeto de Pesquisa e de Extensão “Direito das Mulheres”, cujo enfoque é analisar a tensão existente entre o dever ser de nosso ordenamento jurídico e a realidade social. O direito preza claramente pela liberdade, igualdade e fraternidade como direitos inatos às mulheres. No entanto, tais direitos não se realizam em sua completude. Pretende-se, então, apresentar extratos de nossa percepção dessa tensão. As temáticas trabalhadas no ano de 2016 são condizentes com os Grupos de Trabalho da pesquisa, quais sejam Direitos Fundamentais, Violências, Direito de Família e Direito do Trabalho. Com a realização do Projeto de Pesquisa e Extensão Direito das Mulheres, no ano de 2016, propôs-se a criação da disciplina optativa Direito e Feminismos, a qual, de proposta deferida, passou a ser ministrada a partir do primeiro semestre de 2017. Em tal espaço de discussão sobre o recorte de gênero, verificou-se, empiricamente e por meio de relatos dos estudantes, o quanto tal temática não é abordada de modo suficiente (às vezes, nem mencionado) em determinadas disciplinas. Em composição ao ensino, iniciou-se, a partir de 2017, o Programa de Extensão Lilith, contemplando pesquisas e extensão na temática Feminismos. Entende-se que o direito, especialmente ao consagrar a liberdade e igualdade, pode ser um instrumento para impedir ou reduzir opressões e, com isso, contribuir para a redução da desigualdade entre os gêneros.
3 Cf. http://noticias.ufsc.br/2016/06/secretaria-de-acoes-afirmativas-e-diversidades-planeja-a-implantacaode-uma-delegacia-da-mulher-no-campus/
Assim, diante do imprescindível enfrentamento acerca da temática “gênero”, com o objetivo de conscientização e, consequentemente, de prevenir violências e de eliminar as desigualdades relativas à temática, os estudos aqui apresentados consolidam-se pelas perspectivas abordadas na matéria de Direito e Feminismos do Curso de Graduação em Direito nos semestres de 2017-1 e 20172, a qual contou com o apoio forte e gracioso das Pesquisadoras Cristiane Mare da Silva, Daniela Rosendo, Raíssa Nothaft, Claudia Nichnig, Mariana Franco, para o sucesso dos objetivos dos estudos, bem como para a explanação acerca de vivências mulheris, tanto de forma teórica quanto de forma contextualizada. Os escritos a seguir, construídos sob bases teóricas feministas e pelas inquietudes das acadêmicas, demonstram a qualidade da voz das mulheres sobre suas existências, a postura crítica acerca das contingências de critérios identitários, e, especialmente, denunciam o quanto, até agora, essas vozes foram silenciadas.
Sumário Mulheres e Materialidade: Confrontos Brasileiros Representatividade das Mulheres no Movimento Sindical e os Prejuízos da Reforma Trabalhista............................................................... 3 Keline Bronner Lopes Livres Marias: Trabalho Digno, Gênero e Cárcere.......................................... 19 Amanda Marina Lima Batista Licença Parental e Corresponsabilidade Familiar: um Estudo das Propostas no Congresso Nacional........................................... 43 Juliana de Alano Scheffer Cotas Para Mulheres: Adequação ao Sistema Jurídico Brasileiro.................... 57 Maria Rosa Müller Lohn O Relato da Mídia no Caso Eloá Pimentel...................................................... 69 Isadora Siqueira Mesquita Julia Siqueira Mesquita Breve Análise da Violência Doméstica em Face de Mulheres com Deficiência............................................................ 81 Débora Gerardi Thaís Becker Henriques Silveira Valéria Magalhães Schneider
Direitos dos Animais: uma Questão Feminista?............................................. 99 Isabella Onzi Flores Para ser Ouvida o Grito tem que ser Potente: Música Luta por Direitos e Feminismos a Partir das Funkeiras Brasileiras.........................113 Tamara Camila Freitas Os Graus Negativos da Humanidade: os Direitos Humanos das Mulheres Refugiadas no Brasil e a Ética da Alteridade...........................127 Thais Silveira Pertille
Mulheres e Discursos: Delineamentos sobre os Ensinos Formal e Informal Como Educamos as Mulheres: uma Reflexão sobre Liberdade de Identidade e de Comportamento..............................................145 Beatriz de Almeida Coelho A Violência Midiática de Gênero e Suas Interfaces como os Direitos Humanos das Mulheres......................................................161 Amanda Muniz Oliveira Rodolpho Alexandre Santos Melo Bastos Traços para uma Metodologia Feminista do Ensino no Direito: Recorte Decolonial para o Brasil.................................................179 Juliana Alice Fernandes Gonçalves Grazielly Alessandra Baggenstoss
O Discurso Universal e a Construção de Categorias Teóricas de Gênero: uma Análise Elementar do Direito Brasileiro sob o Viés da Epistemologia Feminista.......................................... 199 Grazielly Alessandra Baggenstoss Epílogo Por uma Educação Crítica, Confrontando Discursos, Práticas e Corpos.......219 Grazielly Alessandra Baggenstoss
Mulheres e Materialidade: Confrontos Brasileiros
Representatividade das Mulheres no Movimento Sindical e os Prejuízos da Reforma Trabalhista Keline Bronner Lopes1 RESUMO: Este artigo pretende analisar se a representatividade das mulheres nos sindicatos brasileiros se dá de maneira efetiva e suficiente a evitar prejuízos causados pela reforma trabalhista (Projeto de Lei n. 6.787/2016). Para tanto, analisou-se o histórico da participação feminina na luta sindical, com ênfase no período da década de 80, pós abertura política, bem como se investigou as condições de trabalho propostas pelo projeto de lei, principalmente em relação à atuação dos sindicatos e sua relevância no regime a ser implementado por ele. Concluiu-se que a representatividade feminina nas organizações de trabalhadores ainda é reduzida, de modo que a negociação coletiva nos termos da reforma – recebendo o poder de derrogar direitos postos em lei – prejudicará com especial gravidade as mulheres, que não possuem qualquer garantia de que suas pautas serão priorizadas ou sequer defendidas, já que o sistema sindical carece de sindicalistas mulheres em condições de se fazerem ouvidas. Defende-se, portanto, a aproximação entre o movimento sindical e o feminista, para que sejam pensadas estratégias para tomadas dos espaços de poder pelas mulheres. Palavras-chave: Mulher; Representatividade; Sindicatos; Reforma trabalhista.
Introdução O presente trabalho intenta avaliar a realidade da representatividade das mulheres no movimento sindical, considerando não apenas sua simples filiação ou participação, mas a efetividade com que suas pautas são ouvidas e encampadas por estas entidades. A relevância desta representatividade será analisada junto ao 1
Acadêmica do Curso de Graduação em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC e estudante da matéria Direito e Feminismos.
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fator da reforma trabalhista atualmente em movimento, na forma do Projeto de Lei n. 6.787/2016, que pretende conferir especial relevância à negociação coletiva. Objetiva-se verificar se a representatividade feminina no movimento sindical se dá de maneira suficiente a proteger as trabalhadoras dos prejuízos da reforma, analisando para tanto a ocupação, pelas mulheres, de cargos de direção nos sindicatos e a relevância atribuída às pautas femininas nas negociações conduzidas.
1. Representatividade das Mulheres no Movimento Sindical A história do movimento sindical brasileiro, embora em sua maioria fartamente documentada, faz poucas menções diretas à participação feminina em suas entidades, em que pese haja registros de que isso já ocorria desde o final do século XIX. O protagonismo das mulheres trabalhadoras é verificado inclusive em momentos-chave do sindicalismo brasileiro, como no caso da greve geral de 1917, que se iniciou com os protestos de tecelãs contra os abusos sexuais sofridos e as más condições de trabalho (LIMA, 2010, p. 7). Reina (2014) pondera que a classe operária sempre foi avaliada a partir de um caráter homogêneo, sem recortes de gênero, raça ou geração, o que acabou relegando as mulheres às margens da história das organizações trabalhadoras. A autora aponta que, embora sempre presentes, as mulheres foram roubadas de seu protagonismo e viram consolidado o entendimento de que a luta da classe operária teria sido orquestrada exclusivamente pelos homens em prol dessa coletividade trabalhadora inidentificável. A história deste combate, em sendo escrita pelas próprias instituições – por suas lideranças –, padeceu de androcentrismo e sexismo, já que buscavam criar narrativas que legitimassem suas respectivas correntes ideológicas na condução do movimento (REINA, 2014, p. 6). Inobstante registros prévios da participação da mulher no embate sindical, é apenas com a proximidade da abertura política da década de 1980 que o movimento feminista brasileiro tem condições de se colocar, autonomamente, como Movimento Social; já nessa época o movimento já encampara a luta “o pessoal é político”, na tentativa de desconstruir a segregação entre público/privado que afastava as mulheres dos espaços políticos e de poder (COSTA, 2005, p. 10). A abertura política de 80 é precedida, na década de 1970, de uma ascensão do sindicalismo no Brasil; o denominado “Novo Sindicalismo” tencionava 4
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cortar as amarras das entidades organizativas com o Estado e representava uma oposição ao sindicalismo que se originou com Vargas, incorporado ao aparato estatal e criado para reduzir a fricção entre o poder público e a classe trabalhadora (ROWLAND, 1974, p. 36-37). Bertolin e Kamada (2015) apontam que os movimentos sociais da época, inclusive os das mulheres, foram espontâneos e se preocupavam com questões autênticas e concretas, a exemplo da luta contra o custo de vida ou a anistia dos presos políticos. Estes movimentos se formam a partir da consciência dos direitos que haviam sido tomados no âmbito da ditadura; especificamente em relação aos sindicatos. As autoras defendem uma evidente relação entre a abertura política, o “Novo Sindicalismo” e a ampliação do debate sobre as condições de trabalho da mulher e a igualdade de gênero. Leone e Teixeira (2010) advertem, contudo, que esta aproximação entre o movimento sindical e o feminista significou uma inclusão das pautas das mulheres, mas sofreu a influência da clássica dinâmica de poder das relações entre homens e mulheres – em termos práticos, ainda que os sindicatos tivessem incorporado algumas das reinvindicações feministas, ainda era reduzido o número de mulheres no papel de dirigentes sindicais. Após esse primeiro momento de incorporação – de reconhecimento – pelos sindicatos, trazendo à baila a questão do confinamento das mulheres às condições mais precárias de trabalho, tornou-se necessário a tomada de ações efetivas para retirá-las do isolamento. Este se tornou o grande desafio do movimento feminista, uma vez que para ser superado exigia a aceitação da autodeterminação das mulheres e suas pautas dentro da estrutura sindical. Souza-Lobo, em fala realizada no 1º Congresso das Operárias da Metalurgia de São Bernardo do Campo, em janeiro de 1978, tratou da dificuldade de integração entre o movimento sindical e o feminista, causada pela concepção de “unidade da classe operária”; como já visto, o sindicalismo brasileiro se funda em uma noção de unidade de classe que, conforme referido pela autora, se opõe ao conceito de identidade que caracteriza o feminismo. Bertolin e Kamada (2015) ressaltam que a ideia de homogeneidade da classe trabalhadora rechaça as reinvindicações específicas das mulheres, que são consideradas marginais e secundárias porque entendidas como elementos de fragmentação do movimento, o que o enfraqueceria.
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Souza-Lobo (1978) contrapõe essa ameaça hipotética com a perspectiva de que a heterogeneidade é fundamental para o fortalecimento das associações sindicais, já que se traduz em práticas reivindicatórias autônomas e capazes de desfazer a centralização de poder que torna invisíveis as demandas femininas. Em outras palavras, é essencial ao movimento sindical que ultrapasse a mera assimilação das demandas femininas, sendo necessário viabilizar que as titulares dessas reivindicações assumam postos de poder dentro da organização e pleiteiem em nome próprio e nos seus próprios termos os direitos perseguidos. A resistência pelos sindicatos à ocupação dos locais de poder por mulheres, visualizada ainda hoje, está relacionada à divisão sexual do trabalho e aos encargos das atividades reprodutivas, sempre impostos às mulheres (BERTOLIN; KAMADA, 2015, p. 10). Estes fatores limitam a cidadania e a participação destas nos espaços públicos, uma vez que lhes concede uma cidadania de “segunda categoria”: enquanto o homem é visto como o cidadão autônomo em todas as frentes, livre de expectativas sociais, à mulher se confere uma cidadania de trabalhadora e de mãe – não é tida por seu valor humano, mas pelos papeis que a sociedade lhe impõe (CAPPELIN, 20, p. 283). A participação da mulher nos espaços públicos, especificamente no movimento sindical, teve como grande iniciativa a seu favor a criação, pela Central Única dos Trabalhadores e pela Força Sindical, de um sistema de cotas de participação feminina nas direções das organizações sindicais – respectivamente, em 1993 e 1991, cujo preenchimento obrigatório, porém, não se estende aos sindicatos filiados à central. Maria Berenice Godinho Delgado (1998) entende que a medida se deu tanto para reconhecer a participação das trabalhadoras como também para admitir e tratar das desigualdades de gênero no interior da entidade. Contudo, Castro (1995, p. 36) alerta para a insuficiência de uma simples política de cotas para promoção de uma representatividade feminina efetiva. Para a autora, a ocupação de cargos de diretoria em sindicatos deve ser acompanhada de um juízo de responsabilidade (“accountability”) das mulheres no poder – é necessária a reflexão sobre a habilidade destas mulheres em serem agentes efetivos de defesa dos interesses de gênero, prevenindo que, uma vez alçadas esta condição, sejam assimiladas pelas estruturas e não atuem na tutela dos direitos das representadas.
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Ademais, ainda que se reconheça a importância de políticas institucionais dentro dos órgãos de classe que promovam a integração da mulher nestes espaços, é de se ressaltar que as mulheres ainda estão confinadas a setores “tipicamente femininos”, conforme dados como os do Anuário dos Trabalhadores de 2009, confeccionado pelo Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese) – tratando do percentual de trabalhadores sindicalizados por setor da economia e gênero, vê-se que os homens são maioria em setores como a indústria (73,9%), construção (93,7%), comércio e reparação (58,6%) e mesmo na Administração Pública (60,6%). Destaque-se que o percentual se refere aos trabalhadores filiados, de modo que se pode concluir que setores tipicamente associados à inovação tecnológica e à produção direta de riqueza têm sua representatividade monopolizada pelos homens. Por seu turno, os dados relativos às mulheres demonstram a prevalência delas em setores mais relacionados à ideia de “cuidado”, como a educação, saúde e serviços sociais (77,6%) e os serviços domésticos (86,7%). A política de cotas é discutida mais seriamente no âmbito das centrais sindicais, tendo sido implantada pelas duas titulares de maior representatividade entre os trabalhadores, a CUT e a Força Sindical. Bertolin e Kamada (2015) ressalvam que o caráter não vinculante destas políticas em relação aos sindicatos filiados às centrais retira muito de sua força, dificultando a reversão do quadro de desigualdade nas organizações. A esse fator soma-se o fato de que a lei que instituiu as centrais sindicais (Lei n. 11.648/2008) não conferiu a estas poder normativo – ou seja, não podem realizar negociações coletivas. Assim, os sujeitos ativos das convenções e acordos coletivos permanecem sendo apenas os sindicatos, que por sua vez não são obrigados por qualquer meio a manter uma cota mínima de mulheres em seus cargos diretivos. É questionável, neste panorama, a efetividade prática do sistema de cotas, entendendo-se que este seria muito mais relevante se de observância mandatória pelos entes associados à central. As dificuldades de sindicalização das mulheres foram analisadas por Souza-Lobo (1991) já nos anos 80, tendo a autora constatado quatro impedimentos principais. O primeiro e mais conhecido é a dupla jornada, promovida pelo ideário da sociedade que relega a mulher a função de “cuidar da casa”, tornando socialmente reprovável que assuma cargos incompatíveis com esse duplo fardo. O segundo obstáculo se relaciona à visão tradicional de que a liderança é uma 7
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característica tipicamente masculina, enquanto a mulher teria “outros talentos” mais relacionados à docilidade. Há ainda o fator da desvalorização social do trabalho atribuído à mulher – as já abordadas funções de cuidado –, tido como irrelevante ou secundário em relação ao do homem, que teria o condão de sustentar o lar e a economia nacional. Por fim, também influencia a exigência social de que a mulher gere e crie – sozinha – os filhos; as reuniões sindicais se dão fora da jornada de trabalho, o que dificulta a participação das mulheres já oneradas com as responsabilidades familiares. Reflexo disso são os dados do 9º Congresso da CUT, de 2006, cujos participantes homens eram em sua maioria casados (73,4%), enquanto 61,1% das mulheres eram solteiras, separadas ou viúvas (BERTOLIN; KAMADA, 2015, p. 17). Além dos fatores acima pontuados, acrescenta-se a questão das “tecnologias de poder”, que relaciona as posições de liderança à ocupação de ferramentas como os palanques e os microfones. Há afirmações no sentido de que em muitos sindicatos as mulheres são bem aceitas, mas poucas são as dirigentes que avocam para si a função de inflamar o público a partir da oratória, sendo o aparato envolvido de monopólio de alguns poucos homens (CASTRO, 1995, p. 134). Brito (1985 apud BERTOLIN; KAMADA, 2015), ao analisar a categoria dos metalúrgicos do ABC Paulista, narra que na prática o comportamento feminino desmente a docilidade que lhe é imposta, mas apenas quando situações limites justificam que abandone esse papel: Coloca-se assim, que as militantes sindicais não se constituem em casos raros, em exemplos únicos de conscientização, mas são as que conseguiram vencer as impossibilidades socialmente definidas através de suas trajetórias de vida (...) A opressão na fábrica leva algumas mulheres ao sindicato e destas, poucas reúnem as condições necessárias de disponibilidade para participação. Estas poucas, na vivência sindical, desenvolvem uma percepção de seu papel representativo, buscando estender sua posição crítica às outras operárias.
Essa constatação permite a conclusão de que os espaços sindicais reproduzem os processos de exclusão e marginalização operados sobre as mulheres no próprio mercado de trabalho. As trabalhadoras seguem como minoria no sindicato e são mantidas longe de cargos de destaque, como a direção, secretaria
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geral e tesouraria – o movimento sindical replica a divisão sexual do trabalho (LEONE; TEIXEIRA, 2010, p. 5). Essa réplica das dinâmicas de poder no trabalho, aliada ao reduzido número de mulheres entre os trabalhadores sindicalizados, aponta para a necessidade de ainda mais políticas voltadas para a tomada feminina dos espaços públicos, notadamente aqueles capazes de auxiliar na emancipação política do gênero como um todo. Se de um lado a recepção pelo movimento sindical dos pleitos feministas foi fundamental, faz-se essencial que o próximo passo seja concretizado e passe-se a permitir que as pautas das mulheres sejam construídas e defendidas por elas, sem que sejam silenciadas pela entidade ou tenham suas demandas julgadas secundárias. Em um contexto de negociação coletiva, as cláusulas de grande preocupação geralmente são as relacionadas ao salário ou outras compensações pecuniárias. Sem mulheres participando efetivamente destes processos, a tendência é que as nossas pautas sejam os primeiros descartes; sem mulheres nos sindicatos, as questões afeitas não só à mulher-mãe (como creche e licença-maternidade), mas à mulher-humana – que é assediada, explorada, violentada rotineiramente no local de trabalho – serão ofuscadas e decretadas irrelevantes pelos atores sociais da negociação. Nesta perspectiva, a reforma trabalhista em curso, que tramita perante o Senado Federal na forma do Projeto de Lei n. 6.787/2016 se torna especialmente nociva, dada a relevância que se pretende conferir ao instituto da negociação.
2. Os Direitos da Mulher Trabalhadora e a Negociação Coletiva na Reforma Trabalhista A reforma trabalhista atualmente em trâmite se origina de um projeto de lei que, inicialmente, afetaria sete artigos da Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT). Contudo, o projeto foi reformulado a partir de uma contrarreforma e implica hoje em alterações a cerca de cem dispositivos legais vigentes. A nova proposta surgiu da iniciativa dos parlamentares da Câmara, que suscitaram e aprovaram centenas de alterações ao projeto original. Exemplificativamente, pontua-se que a última emenda aceita integralmente era de n. 848 e a última de aceitação parcial foi a de n. 850.
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Em que pesem as críticas cabíveis em face da proposição de uma reforma tão ampla no sistema trabalhista sem a participação ou mesmo a demanda direta e ativa pela sociedade, bem como ao fato de ter sido encaminhada para votação em um momento de grave instabilidade política e pelas mãos de um governo cuja legitimação é precária, o formato do presente trabalho requer que se atenha ao seu objeto principal. Por essa razão, este estudo limitou-se aos dispositivos que incidirão diretamente sobre os direitos das trabalhadoras e àqueles relativos aos sindicatos e seus poderes de representação de classe. Inobstante, cabe a ressalva de que o projeto como um todo tem uma conotação de defesa de interesses patronais e uma propensão a fragilizar ainda mais um sistema sindical que na situação atual já tem dificuldades para se impor de maneira efetiva ante o poder econômico. Inicialmente, quanto aos direitos das mulheres trabalhadoras, tem-se que as principais alterações diretas serão em relação ao trabalho das gestantes e lactantes. Inicialmente, o projeto alteraria a redação do art. 394-A da CLT, que determina de maneira categórica o afastamento da mulher gestante ou lactante dos ambientes de trabalho insalubre. A primeira alteração visava a exigir um atestado médico para que houvesse o afastamento; como a alteração se provou polêmica, gerando grande repercussão na mídia, o dispositivo foi abrandado e agora o afastamento é imediato no caso da insalubridade de grau máximo e mediante solicitação médica nos graus médio e baixo (TRAMONTE, 2017). Tramonte (2017) também aponta alteração no art. 396 da CLT, que hoje prevê o direito da mulher a dois descansos especiais, de meia hora cada, para amamentar os filhos até que completem seis meses de idade. Trata-se de direito que será sujeitado à negociação coletiva nos termos da reforma, junto a uma série de outros que serão analisados a seguir. A autora ressalta ainda a previsão de “dano moral tarifado”, já que o projeto estipula que, ao avaliar as indenizações por danos extrapatrimoniais, o juiz deverá enquadrar o caso concreto em leve, médio ou grave e se basear no salário do empregado para fixação do quantum. Esse dispositivo afeta uma demanda frequente do gênero feminino nos litígios trabalhistas – o assédio moral e sexual. Com o novo regime, a compensação do dano ficará muito aquém do devido, se não inviabilizada. Braga e Ruzzi (2017) entendem que a bancada feminina no Congresso conseguiu, entretanto, que a reforma beneficiasse as mulheres ao regulamentar a multa por discriminação relativa à diferença salarial entre homens e mulheres na mesma função. Ainda, argumentam que a proteção à licença-maternidade – que 10
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foi retirada do rol dos direitos transacionáveis – é outro exemplo de como o prejuízo teria sido atenuado. Quanto a estes pontos, é de ressaltar que a regulamentação de multa pode ter também sua faceta prejudicial, considerando que pode implicar em um engessamento do Judiciário – com a normatização, haverá critérios específicos para configuração da discriminação, bem como um teto para a compensação. A longo prazo e considerando litigantes de grande poder econômico, pode “compensar” para as empresas praticar a discriminação e pagar a multa, já que a alteração (a ser incluída no art. 361 da CLT atual) fixa o valor na metade do teto da Previdência Social¸ o que representaria hoje R$ 2.765,66. Mesmo considerando estes pontos específicos, que incidem de maneira direta sobre o trabalho feminino, entende-se que o grande prejuízo virá da tônica geral do projeto de lei. Da análise do texto, fica evidente que se pretende que as relações de trabalho sejam regidas majoritariamente pela hegemonia das normas coletivas sobre a lei – o que se tem apelidado de negociado sobre o legislado. A principal prova é o art. 611-A, que foi incluído pela reforma e prevê que “a convenção coletiva e o acordo coletivo têm prevalência sobre a lei” quando versarem sobre qualquer direito incluso no rol dos incisos: jornada de trabalho, desde que dentro dos limites constitucionais; banco de horas individual; intervalo intrajornada, resguardado apenas o limite de trinta minutos para jornadas acima de seis horas; adesão ao seguro-desemprego; plano de cargos, salários e funções e enquadramento de funções de confiança; regulamento empresarial; representante dos trabalhadores no local de trabalho; teletraballho, sobreaviso e trabalho intermitente; remuneração por produtividade, incluindo gorjetas; registro de jornada; troca do dia do feriado; identificação dos cargos que demandam cota de aprendiz; enquadramento de grau de insalubridade; prorrogação de jornada em ambiente insalubre, dispensada a licença prévia das autoridades do Ministério do Trabalho; prêmios de incentivo; e participação nos lucros da empresa. Por outro lado, o art. 611-B da reforma estabelece um rol de direitos não negociáveis, sendo, pelo que se depreende da redação, um rol taxativo: “constituem objeto ilícito (...), exclusivamente”; notadamente, a inclusão do advérbio – que não está presente no artigo dos direitos derrogáveis via convenção – indica que qualquer garantia fora dessa relação pode ser presumida como negociável. A positivação da derrogabilidade de normas legais pelas derivadas de pactos coletivos evidentemente atinge a classe trabalhadora inteira; mas incide com mais força sobre as minorias, de gênero, classe ou raça/etnia. Bertolin (apud BERTO11
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LIN; KAMADA, 2015) revela que os novos processos produtivos do sistema capitalista causaram um desemprego tecnológico, derivado da incorporação de novas tecnologias ao mundo do trabalho, que permitem a utilização em larga escala do trabalho parcial, temporário ou terceirizado, o que a autora entende ter gerado uma nova proletarização que atinge mais fortemente as trabalhadoras mulheres. Tal se dá em função da já discutida divisão sexual do trabalho, que aloca as mulheres nas chamadas funções reprodutoras, amparando os homens no desempenho das atividades produtoras. Essas restrições originaram o conceito de “inserção excluída”, que incorpora a concepção de que a maior concentração de mulheres está em setores produtivos ou postos de trabalho em condições mais precárias e com menores remunerações (POSTHUMA; LOMBARDI, 1997, p. 126). Para Bertolin e Kamada (2015), um fator que contribui para tanto seria a dupla jornada, bem como o fato de que as relações de trabalho, tanto quanto as sindicais, replicam as dinâmicas de poder e exploração entre os gêneros. Nesta perspectiva, inegável que os prejuízos da reforma vão muito além dos ataques diretos – se consolidam muito mais pelo aperfeiçoamento da estrutura de exploração, com a previsão legal de derrogação de direitos históricos via simples negociação coletiva. Os apoiadores da reforma levantam a bandeira da autonomia coletiva privada para justificar a prevalência das normas coletivas sobre a lei, sendo instituto sobre o qual se tratará mais extensamente a seguir.
3. A Crise Representativa Sindical à Luz da Questão de Gênero A noção de autonomia privada coletiva expressa o poder normativo conferido aos sindicatos para estipular disposições vinculantes a toda uma categoria. É a partir deste viés que Santos conceitua o instituto: (...) A autonomia privada coletiva consiste, assim, no poder reconhecido aos grupos sociais de criar normas jurídicas para a tutela de interesses de uma coletividade, comunidade ou classe de pessoas globalmente consideradas, revelando-se como um instrumento de tutela de interesses coletivos pertinentes ao grupo globalmente considerado, que não se confundem com a mera soma de interesses individuais dos membros da coletividade nem com os interesses pertinentes a toda a sociedade.
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Os defensores da reforma argumentam que a positivação da supremacia das convenções coletivas sobre a lei vem para fortalecer os sindicatos e prestigiar a autonomia dos trabalhadores que, por meio das entidades, poderão fazer valer sua vontade e deixar as amarras do Estado. Entretanto, a doutrina tece críticas ferrenhas ao sistema sindical como um todo, fundadas principalmente na hibridez da estrutura sindical brasileira, que guarda tanto elementos de liberdade sindical quanto de sua origem corporativista: a livre filiação e o resguardo da intervenção estatal direta se contrapõem à unicidade sindical (impossibilidade de representação, na mesma base territorial, de uma mesma categoria por mais de um sindicato) e à permanência do imposto sindical, que vincula as organizações a uma receita estatal, sujeitando-as aos interesses políticos dos governantes (MASCARO NASCIMENTO, 1998, p. 125). Ao tratar da discussão entre liberdade sindical efetiva e representatividade plena, Siqueira Neto (2001, p. 90) já advertia que eventuais propostas de negociação coletiva, flexibilização das condições de trabalho e composição de conflitos não tinham como prosperar no contexto sindical atual. Em seu entendimento, qualquer alteração substancial do sistema juslaboral brasileiro baseada nas negociações coletivas não prescindiam de uma discussão prévia sobre liberdade e representatividade, já que ainda não consolidadas no Brasil. As raízes corporativistas do sistema brasileiro, que permitiram por anos que os sindicatos fossem um fantoche do Estado criam hoje uma desconexão entre as categorias de trabalhadores e seus entes representativos. À luz dos argumentos trazidos aqui, quanto à representatividade da voz feminina dentro destes sindicatos, vê-se que as trabalhadoras são duplamente afetadas: primeiro porque não têm lugar nas mesas de negociação, têm suas pautas vistas como secundárias; segundo, porque as entidades como um todo padecem de uma fragilização que é estrutural e impede que a vontade coletiva da classe operária seja transmitida de forma cristalina por seus atos. Considerando a importância das mulheres já no surgimento do Novo Sindicalismo – que ainda hoje é a oposição a estes sindicatos pulverizados e pouco representativos – entende-se que a participação feminina é essencial para a recuperação da autonomia privada coletiva no Brasil, já que tem condições de assegurar os direitos de gênero, mas, ao mesmo tempo, integrar as lutas e contribuir para a retomada dos sindicatos por indivíduos verdadeiramente comprometidos com a classe trabalhadora que representam. 13
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Em entrevista à Revista do Observatório Brasil da Igualdade de Gênero, Rosane Silva, Secretária Nacional da Mulher Trabalhadora da CUT, indagada sobre como são abordadas as questões relativas ao direito a creches e educação em período integral dos filhos das operárias, declarou: As centrais não negociam com os patrões diretamente, quem negocia são os sindicatos, os sindicatos filiados à nossa central. Nós, da CUT, temos uma pauta padrão, uma minuta padrão que trata desses temas e que a gente orienta nossos sindicatos a fazer constar na pauta de negociação que é entregue para o empregador. E, depois, o processo de negociação é com o empregador. Então, a negociação é direto entre sindicato patronal e sindicato de trabalhadores. Agora, a gente só consegue avançar nesses temas, inclusive nos sindicatos, quando nós temos mulheres na mesa de negociação. Se as mulheres não estão na mesa de negociação, é o primeiro tema que sai da pauta. É considerado menos importante. Na visão dos homens, o mais importante é: garantir participação nos lucros, garantir aumento salarial... e as questões de condições de trabalho e até mesmo de cláusulas sociais são consideradas menos importantes. No máximo, tratam da saúde do trabalhador, somente isso. Exemplificando nossos avanços quando há presença de mulheres na mesa de negociação, temos a experiência dos bancários, porque essa categoria é uma das poucas que tem negociação nacional. Com a presença das mulheres na mesa de negociação foi garantido um processo exclusivo para discutir as questões de gênero.
É interessante, até essencial, que as pautas das trabalhadoras fossem discutidas e negociadas pelas próprias mulheres. As sindicalistas pioneiras asseguraram o direito de associação e de composição dos quadros diretivos, mas, como acontece também na política, o monopólio da representação continua com os homens. Nesse panorama, ainda que não se negue a importância de políticas como as das cotas nas centrais sindicais, fica claro que são insuficientes para uma representação efetiva das mulheres dentro do movimento. É preciso pensar estratégias para que essas trabalhadoras ocupem esses espaços e é certo que esta ausência perpassa uma série de outras estruturas de poder, evoca inúmeros outros impedimentos para a ocupação pela mulher dos espaços públicos. A solução, entende-se, não é fácil e nem imediata. A exemplo dos tempos de abertura política em 80, defende-se uma aproximação do movimento feminista com o movimento sindical. A problematização das questões relativas
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ao trabalho não pode se dar só a partir de ataques imediatos (resumidos na supressão de direitos tradicionalmente vistos como femininos, como os relativos à maternidade), mas deve pensar também nessas dinâmicas coletivas de poder. A “inserção excluída” da mulher nas relações de trabalho, o seu confinamento a determinados postos ou atividades, retira o seu sentimento de pertencimento e identificação com a classe trabalhadora. Como visto, esta sempre foi pensada a partir de um ideal homogêneo, sem cor, classe social ou gênero, o que se demonstrou excludente e opressivo. Neste contexto, o conceito de gênero como identidade, como instrumento de autoafirmação, é o que dá condições a estas trabalhadoras de se verem como parte de um coletivo, como componentes de uma vontade uníssona a ser defendida e pela qual lutar.
Considerações Finais Este artigo tratou da questão da representatividade feminina nos sindicatos brasileiros, com maior ênfase ao período pós abertura política, em 1980, quando verificou-se uma maior recepção por estas entidades das pautas feministas. Demonstrou-se que, embora não reconhecidas, as mulheres participam da luta da classe trabalhadora desde seus primórdios, mas têm suas experiências frequentemente apagadas em função da história deste fenômeno ter sido sempre escrita sob um viés androcêntrico. A adoção de políticas como as de cotas pelas centrais sindicais demonstrou um aumento nos esforços para viabilizar a ocupação dos cargos diretivos pelas sindicalistas; inobstante, verificou-se que há obstáculos práticos à participação das mulheres nestes espaços, em muito relacionados com a expectativa social de que a mulher realize a dupla jornada e carregue sozinha as atribuições familiares. Relegada à condição de “cuidadora” da família e desencorajada por uma percepção social que confere ao homem uma teórica “propensão” ao exercício da liderança, a trabalhadora feminina por vezes vê inviabilizada sua participação no movimento sindical. A constatação da reduzida representatividade feminina dentro dos sindicatos se torna ainda mais prejudicial frente à reforma trabalhista atualmente em movimento. Tal se dá porque, além de retirar direitos como o afastamento das gestantes e lactantes nos ambientes de trabalho insalubre, a reforma tem por tônica o prestígio da negociação coletiva. 15
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Considerando que o ordenamento brasileiro confere aos sindicatos, exclusivamente, o poder para pactuar normas coletivas, bem como que é possível que a reforma autorize a derrogação de leis pelas convenções e acordos coletivos, a baixa representação de mulheres nestes entes amplifica a possibilidade de que os direitos femininos sejam os primeiros sujeitos à transação. O estudo conduzido demonstrou que já na situação atual as pautas das mulheres são vistas como secundárias ou menos relevantes, justamente em função da ausência da trabalhadora da mesa de negociações. Os pactos coletivos servem hoje para implementar condições mais benéficas de trabalho; a exclusão das mulheres, portanto, representa uma inviabilização da consolidação de melhores condições. Sob o regime da reforma, o prejuízo é agravado, dada a possibilidade de supressão até mesmo dos poucos direitos já conquistados. A isso se soma a crise representativa do próprio sistema sindical que, como apontado pela doutrina, mantém características de sua origem corporativista e experimenta uma desconexão em relação à classe trabalhadora. A obrigatoriedade do imposto sindical, que mantém as entidades submissas aos interesses governamentais por meio de uma receita estatal, e a unicidade sindical, que impede que a trabalhadora ou trabalhador escolham a qual sindicato se filiar, são fatores que tornaram frágil nossa estrutura e contribuíram para a proliferação de entes não comprometidos com os interesses da classe operária. Assim, entende-se necessária uma aproximação entre o movimento sindical e feminista, para recuperação do vínculo representativo entre a base e os sindicatos e, ao mesmo tempo, para que se garanta que os direitos das trabalhadoras possam ser defendidos por quem os conhece melhor – as próprias trabalhadoras. Em um momento político que exige cada vez mais expressões de cidadania para preservação das instituições democráticas, as conquistas femininas no sentido de ocupação dos espaços públicos se veem ameaças por uma onda conservadora que intenta fragmentar os movimentos sociais para se fortalecer. Os sindicatos, como a política, representam espaços de poder e se consolidam como atores sociais relevantes, essenciais para expressão da vontade da coletividade. É essencial a tomada destes postos pelas mulheres, vez que significarão a transcendência da cidadania limitada e instrumentalizada que tais forças conservadoras pretendem impor.
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Livres Marias: Trabalho Digno, Gênero e Cárcere Amanda Marina Lima Batista1 RESUMO: Há um grande silêncio sobre o gênero feminino no cárcere. Há uma dúvida profunda a respeito da ressocialização como algo possível diante do aumento da criminalidade e da reincidência nos últimos quinze anos. Há uma demanda social por respostas do Direito e do Estado em relação a isso. A presente proposta surge levando em conta este momento e se apresenta, não para trazer uma resposta propriamente, mas sim uma possibilidade, um passo adiante em uma caminhada que se iniciou em raízes tão profundas que só a História pode explicar. Essa possibilidade passa pelo trabalho cooperativo como um instrumento de ressocialização de mulheres presas diante do quadro social de violência de gênero e exclusão enfrentados por elas dentro e fora das grades. A iniciativa já se mostra com bons resultados na experiência consolidada no Centro de Reeducação Feminina em Ananindeua, no Pará e na iniciativa iniciada em agosto de 2017 no Presídio Feminino de Florianópolis. Palavras-chave: Cooperativismo; Economia solidária; sistema prisional; mulheres.
Considerações Iniciais Não diferente das principais estruturas sociais no Brasil e no mundo, o sistema penal e carcerário foi criado sob uma ótica masculina e para um público masculino. As penas privativas de liberdade foram instituídas no país pela primeira Constituição brasileira de 1824 e foram regulamentadas em 1830 pelo Código Criminal do Império. Nessa época não havia qualquer diretriz legal que exigisse ou regulamentasse a prática de manter encarcerado quem quer que fosse, principalmente mulheres, muito menos uma instituição para tal fim especificamente.
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Bacharela em Direito pela PUC Minas, pesquisadora do Proheto de Extensão Lilith – UFSC.
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A partir 1920 estudiosos como Lemos Brito e Cândido Mendes, passaram a defender mais fortemente a criação de presídios femininos. No entanto, somente em 1935, passou a vigorar o Código Penitenciário da República, que dispunha sobre todas as circunstâncias que envolviam a vida dos indivíduos condenados pela Justiça (SANTOS, 2015). Conforme já mencionado, o primeiro presídio feminino do Brasil, a Penitenciária Madre Pelletier (QUEIROZ, p. 73, 2015), surgiu em 1937 na cidade de Porto Alegre, no Rio Grande do Sul em um casarão adaptado. Segundo a professora Bruna Angotti, os crimes cometidos pelas mulheres à época eram poucos e majoritariamente contravenções como desordem, alcoolismo, escândalo e ofensas. Em relação aos crimes, destacam-se lesões corporais leves, pequenos furtos e roubos e, curiosamente ou não, as profissões que constam nos registros variam entre meretrizes, criadas e tecelãs. Finalmente, em 1940 foi sancionado o Código Penal Brasileiro que permanece em vigor até hoje, com algumas alterações. Por fim, em 1981 foi apresentado um anteprojeto da Lei de Execução Penal (LEP), sendo aprovado somente em 1984 (Lei nº 7.210/84), e assegurava às mulheres estabelecimentos próprios e adequados à sua condição pessoal, dentre outros direitos, independente do gênero, como o direito ao alojamento em celas individuais e salubres. A partir da década de 60 a criminalidade feminina passa a aumentar, impulsionando a criação de mais presídios femininos (QUEIROZ, p. 73, 2015). Desde então, mesmo que vagarosamente e à custa do sofrimento de inúmeras detentas, houve avanços com relação às mulheres no cárcere, especialmente no âmbito legal, graças a uma intensa movimentação feminina e feminista pela causa. Em 2009, as Leis nº 11.942/09 e nº 12.121/09, trouxeram significativas conquistas em nome da humanização do sistema carcerário feminino (FREITAS, 2012). Dentre essas conquistas está a determinação que os estabelecimentos penais destinados a mulheres tenham um berçário, no qual as condenadas possam amamentar e cuidar de seus filhos até, no mínimo, seis meses de idade, e ainda, há a garantia de que tais estabelecimentos deverão possuir exclusivamente agentes penitenciárias mulheres. No mesmo ano o artigo 89 da LEP foi alterado e passou a garantir que os presídios femininos deverão conter uma ala para gestantes e parturientes com creches que abriguem crianças de seis meses até sete anos.
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É tempo de efetivar tais garantias por meio da criação de instrumentos no campo prático já que a realidade ainda é muito aquém das garantias legais. Parte disso é devido ao grande silêncio que paira sobre o tema, faltando dados estatísticos e pesquisas. Contribui também o isolamento em que boa parte dessas mulheres cumpre pena: apenas 8% recebem visitas de namorados ou maridos e 11% são visitadas pelo menos uma vez por mês por suas mães, filhos, irmãos e irmãs (FIDELIS, 2012). Tal silêncio e abandono acabam por gerar um quadro de descaso e violações em que as mulheres encarceradas não possuem sequer sua vida sexual, autoestima, maternidade e nem mesmo suas especificidades biológicas respeitadas pelo Estado. Os presídios femininos são iguais aos masculinos em estrutura, rotina e políticas de ressocialização. O Estado parece não levar em conta que são gêneros com necessidades, oportunidades e vivências diametralmente diferentes desde o nascimento até o encarceramento passando até pela própria conduta delituosa e suas motivações. As mulheres brasileiras presas são em sua maioria, jovens, entre 18 e 34 anos, presas em regime fechado (68%), negras (68%), com o ensino fundamental incompleto (50%), cumprindo pena por tráfico de drogas (68%). Temos, portanto, um encarceramento massivo de mulheres negras, jovens e periféricas encarceradas por tráfico de drogas em um percentual consideravelmente maior que o dos homens pelo mesmo crime (26%) (Depen, 2014). Chama atenção o elevado índice de criminalização feminina em função do tráfico de drogas, segundo estudos, essa mudança começa a partir da década de 70 (JACINTO, 2011). Se tradicionalmente as mulheres eram presas por contravenções ou crimes relacionados à sua condição de gênero, conforme já demonstrado, a partir desta época, crimes considerados “masculinos”, principalmente o tráfico de drogas, passaram a ser atribuídos a elas. De acordo com Queiroz (2015), a maioria das mulheres presas por tráfico no Brasil ou foram presas no mesmo flagrante que o namorado traficante, ou traficavam para eles, ou mesmo foram detidas levando drogas para os companheiros dentro da prisão. A população carcerária feminina brasileira, segundo o Relatório Infopen Mulheres (Depen, 2014), chega a 37.380 detentas e registrou um crescimento de 567% em 15 anos (FERNANDES, 2015). É a quinta maior população carcerária feminina do mundo. Quanto ao índice de reincidência da população
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carcerária em geral e das mulheres especificamente, segundo pesquisa, 70% da população carcerária brasileira volta a delinquir e desse percentual, apenas 8,1% correspondem a reincidência feminina (Ipea, 2015). Tais dados demonstram que o ideal de ressocialização ainda está distante da realidade geral do Brasil. No entanto, em relação às mulheres, a baixa reincidência aliada ao perfil já demonstrado no presente projeto demonstra como o encarceramento feminino está mais ligado à falta de oportunidades extramuros do que a uma predisposição ao cometimento de delitos propriamente. Tais fatos levam a crer que políticas de ressocialização que proporcionem profissionalização e recuperação da autoestima podem ser eficazes. Diante disso, apresentamos no presente artigo uma reflexão a respeito do trabalho na vida do ser humano, em especial no contexto do sistema prisional, discorrendo sobre a possibilidade trabalho autônomo aliado ao cooperativismo e à economia solidária comprometido de fato com a ressocialização e apresentando iniciativas já em desenvolvimento no país e, por fim, refletindo sobre quais os efeitos de tais questionamentos e iniciativas no mundo jurídico.
1. A Economia Solidária: um Recriar A economia solidária é um sistema econômico tal qual o capitalismo, no entanto possui outra lógica e outros pilares, como o próprio nome sugere. Tal sistema já foi bem pesquisado e colocado em prática em várias partes do mundo, inclusive no Brasil, como veremos a seguir. Um dos autores mais notáveis sobre o assunto é Paul Singer, um economista e professor brasileiro nascido na Áustria autor do livro Introdução à Economia Solidária. Segundo Singer, a economia solidária nasceu pouco depois do capitalismo industrial em função do empobrecimento radical dos artesãos após a chegada da era industrial, inicialmente, na Grã-Bretanha em 1780. O professor faz uma comparação muito sintética e pertinente com o sistema capitalista, que se desenvolveu vertiginosamente após a Revolução Industrial e a alternativa que nasceu com ele, a economia solidária: O capitalismo é um modo de produção cujos princípios são o direito de propriedade individual aplicado ao capital e o direito á liberdade individual. A aplicação desses princípios divide a sociedade em duas classes bási22
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cas: a classe proprietária ou possuidora do capital e a classe que (por não dispor de capital) ganha a vida mediante a venda de sua força de trabalho à outra classe. O resultado natural é a competição e a desigualdade. A economia solidária é outro modo de produção, cujos princípios básicos são a propriedade coletiva ou associada do capital e do direito à liberdade individual. A aplicação desses princípios une todos os que produzem numa única classe de trabalhadores que são possuidores de capital por igual em cada cooperativa ou sociedade econômica. O resultado natural é a solidariedade e a igualdade, cuja reprodução, no entanto, exige mecanismos estatais de redistribuição solidária de renda. (SINGER, 2002, p. 10)
O cooperativismo começa como forma de organização social de trabalho, economia e produção antes de ser um instituto jurídico. No Brasil, conforme aponta Ana Beatriz Melo (2012), o cooperativismo popular é apontado por alguns autores como as missões dos jesuítas, não obstante as controvérsias de tal fato por tratar-se do período de colonização e as missões jesuíticas terem servido ambiguamente à dominação enquanto estimulavam e repassavam valores cooperativos. Também são apontadas como experiências cooperativas as associações organizadas pelos colonos estrangeiros, principalmente os alemães, e as colônias Saí e Palmital desenvolvidas no Sul do país com apoio do governo imperial: As duas colônias, Saí e Palmital – logo se viram confrontadas com uma realidade rica em adversidades naturais – convém lembrar que, em sua totalidade, os colonos franceses eram provenientes de localidades predominantemente urbanas – e conflitos políticos e sociais – documentos da época registram a escassez de condições materiais e organizacionais para sobrevivência das iniciativas. Diante do agravamento desse cenário, desencadeou-se um progressivo processo de degeneração estrutural e funcional dessas experiências, que se estendeu até o ponto de sua completa extinção. (MELO, 2012, p. 85).
No entanto, a experiência que melhor demonstra o cooperativismo popular brasileiro em todo o seu significado foi o povoado de Canudos que existiu na Bahia de 1893 a 1897. Fundada por Antônio Conselheiro junto ao povo pobre da Bahia, chegou a abrigar cerca de 25.000 habitantes e exportando produtos agrícolas até para os Estados Unidos tendo um fim trágico de destruição pelo exército: A derrocada de Canudos anunciava o advento de uma nova fase na história do cooperativismo brasileiro. Com a abolição do escravismo e a pro-
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clamação da República, as esparsas experiências de “pré-cooperativismo” instauradas em regiões bem específicas do Brasil, cediam espaço de forma progressiva a sociedades cooperativas efetivamente institucionalizadas em âmbito nacional. (MELO, 2012, p.88)
A partir daí outras iniciativas se seguem, como a Colônia Cecília constituída pelo “anarquista italiano Giovanni Rossi, em conjunto com cerca de 300 colonos compatriotas” (MELO, 2012, p.90) em 1890 e durando até 1893. Após quase cinquenta anos, houve a “consolidação parcial do cooperativismo nacional” (MELO, 2012, p.90) de 1931 a 1964 com determinações legais e consolidação de cooperativas, especialmente de crédito e de consumo. Com a ditadura militar tal consolidação foi frustrada, renascendo apenas após a redemocratização do país e promulgação da Constituição de 1988. A partir de 1988 a economia solidária e o cooperativismo renasceram no Brasil com a ajuda das ações e movimentos sociais principalmente da Igreja Católica com o setor da Teologia da Libertação e as organizações sindicais. Ademais, do ponto de vista educacional, a educação popular por meio da pedagogia do oprimido, também conhecida como “pedagogia libertária”, retomou especialmente no Nordeste do país conceitos e valores como a autonomia e a solidariedade por meio de trabalho coletivo e não explorador. Dando, propositalmente, um salto histórico, abordaremos já especificamente a economia solidária e o cooperativismo contemporâneos. Nele, trabalhadores se associam com base nos “princípios que garantem a democracia e a igualdade da cooperativa” (SINGER, 2002, p. 90). Paul Singer, no primeiro capítulo de seu livro Introdução à Economia Solidária (2002), apresenta tais princípios, são eles: Igualdade, respeito à liberdade individual, autogestão, propriedade coletiva (ou associada) do capital e foco na geração de trabalho e renda e não no lucro. A igualdade é o princípio primordial do cooperativismo e da economia solidária e consiste em organizar a economia e a gestão da empresa de forma não hierárquica, ou seja, independente de cargo ou função todos os associados têm a mesma parcela de capital (economia) e, consequentemente, o mesmo direito de voto (gestão). Essa igualdade remete a outro princípio, o da liberdade individual: sendo todos iguais, suas opiniões são igualmente relevantes para as decisões a respeito da empresa solidária e cada indivíduo tem a oportunidade e o direito-dever de manifestar-se a respeito do que desejar. 24
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Outro princípio indissociável dos dois anteriores é o da autogestão com orientação no sentido de que cada membro tem direito ao mesmo nível de participação e informação nos negócios. Entretanto, como o próprio nome diz, ela exige um esforço pessoal dos sócios, é necessário que eles se envolvam na administração e superem a recusa pelo esforço adicional de se informar em nome de uma cooperação inteligente dos sócios para encontrar soluções para os eventuais problemas e desafios. Para que a autogestão se realize, é preciso que todos os sócios se informem do que ocorre na empresa e das alternativas disponíveis para a resolução de cada problema. [...] Pelo visto, a autogestão exige um esforço adicional dos trabalhadores na empresa solidária: além de cumprir as tarefas de seu cargo, cada um deles tem de se preocupar com os problemas gerais da empresa. (SINGER, 2002, p. 19).
Preliminarmente, parece que o retorno financeiro do cooperativismo é desproporcional ao que a autogestão exige. Entretanto, o que a economia solidária proporciona é uma forma de organização da economia apoiada em novos pilares, como o trabalho não alienante, é a compreensão e o respeito ao trabalhador independente de lucro e a preservação dos empregos e direitos de cada um, o que nos leva ao princípio do foco na geração de trabalho e renda e não do lucro e na modernidade esse conceito de não exploração se estende também aos recursos ambientais e ao desenvolvimento sustentável. Cabe salientar que esse princípio não quer dizer que uma cooperativa de economia solidária não possa lucrar, mas sim que ela não lucre à custa de demissões de trabalhadores, aumentos de jornada e qualquer outro tipo de exploração dos seus membros. A geração de trabalho e renda deixa de ser um ônus e passa a ser um objetivo. Por fim, além de ser um caminho para o trabalho enquanto labor e para o aprimoramento humano, apenas em um sistema assim é possível concretizar o último princípio apontado por Paul Singer, qual seja, a propriedade coletiva do capital, capaz de eliminar a desigualdade, a exploração dos seres humanos e da natureza em que o capitalismo tem se baseado para se desenvolver enquanto sistema.
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1.1 O cooperativismo e a economia solidária entre as mulheres como instrumentos da emancipação social e da ressocialização pelo trabalho no sistema prisional A vivência do cooperativismo e da economia solidária entre as mulheres tem sido frutífera, para elas e para o próprio cooperativismo. Em face da delicada conciliação entre o trabalho e os compromissos com os filhos e a família aliada a um mercado de trabalho excludente, as mulheres se mobilizam e a se auto-organizam com mais facilidade para gerar renda de maneira autônoma. Tanto é verdade que, desde 1986, os empreendimentos de economia solidária nos quais participam somente mulheres são maioria em relação aos formados apenas por homens no Brasil (SCHNEIDER, p. 07, 2009). Ademais, o próprio amadurecimento do cooperativismo e da economia solidária deve muito à organização feminina, que também acontece com mais intensidade que a masculina em fóruns, ações sociais e redes de cooperação. Pesquisas indicam 73% dos empreendimentos formados exclusivamente por mulheres desenvolvem iniciativas que visam qualidade de vida das pessoas consumidoras dos seus produtos (SCHNEIDER, p. 08, 2009). Ou seja, o cooperativismo e a economia solidária já têm mudado a vida de mulheres fora das grades. No âmbito prisional, por sua vez, a Lei de Execução Penal (Lei n° 7.210/84) garante a ressocialização por meio do trabalho em seu artigo 28. No entanto, nos presídios femininos a proposta é tímida: o percentual geral de mulheres trabalhando em 26 Estados é de apenas 31% segundo o Relatório Infopen Mulheres (Depen, 2014). Ademais, as atividades geralmente são de cunho majoritariamente mecânico e simplório (como laços usados em Pet Shops para enfeite de animais), que capacita de forma insuficiente ou até nula, além de não serem capazes de proporcionar oportunidades para todas. No sentido oposto temos o trabalho enquanto labor desenvolvido de forma autônoma por meio do artesanato. Quando reconhecido como trabalho ressocializador pelo judiciário e pelo sistema penitenciário, o trabalho artesanal é capaz de proporcionar capacitações efetivas e incluir um grande número de pessoas em suas propostas podendo então ser desenvolvido de forma organizada envolvendo as detentas, suas famílias e a própria sociedade.
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A expressão “trabalho enquanto labor” utilizada anteriormente faz sentido no presente contexto visto que o trabalho pode ser entendido de duas formas: trabalho (tripalium) e labor. A palavra trabalho tem como origem etimológica a palavra tripalium, denominação de um instrumento de tortura formado por três (tri) paus (palium). Desse modo, originalmente, “trabalhar” está associado a uma atividade penosa. Um dos cientistas do comportamento humano nas organizações, Herzberg (1966), com sua Teoria dos Dois Fatores, expõe que, antigamente, o trabalho era visto como um castigo necessário, por isso a administração incentivava as pessoas a trabalhar por meio de prêmios, punições ou coações. O referido autor define como fatores higiênicos a supervisão, as relações interpessoais, as condições físicas no trabalho, salário, política organizacional, processos administrativos, sistema gerencial, benefícios e segurança no trabalho. Como fatores motivacionais são indicados pelo autor a liberdade, a responsabilidade, a criatividade e a inovação no trabalho. Os fatores higiênicos são necessários, mas não suficientes para promover a motivação e a produtividade dos membros da organização. Quando houver deterioração de qualquer dos fatores higiênicos abaixo do nível aceitável pelo membro da organização, surgirá a insatisfação no trabalho, levando a formação de atitudes negativas (COSTA, Alexandre Marino, p. 03, 2001). O mundo contemporâneo parece valorizar socialmente o status do trabalhador, mas não dignifica o trabalho a ponto de eliminar seu caráter de penoso e exploratório, o que na atual conjuntura política tem ainda se agravado com reformas em favor de interesses sombrios de uma elite e a contragosto do povo. Marx é um dos pensadores mais marcantes a denunciar a divisão do trabalho no sistema capitalista, como forma de exploração e alienação onde o trabalho se torna um “habitus social”, sendo o trabalho habitual e sem significado, acaba por sua vez tornando-se uma fonte de stress. Esse stress ou tortura advém da perda de sentido da atividade executada. uma parte da sociedade possui o monopólio dos meios de produção, o trabalhador, livre ou não, é forçado a acrescentar ao tempo de trabalho necessário para a sua própria subsistência um mais-valor destinado a sustentar o possuidor dos meios de produção. (Marx, 1967, p. 55).
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Marx então conclui que: O trabalho transforma o sujeito em uma máquina que não desempenha uma atividade física e intelectual livre, mas mortifica seu corpo e arruína seu espírito. O sujeito trabalhador não se sente mais livremente ativo senão em suas funções animais, tornando-se bestial, desta forma o trabalho alienado termina por alienar do indivíduo sua própria essência. O trabalho não cria apenas objetos; ele também se produz a si mesmo e ao trabalhador como uma mercadoria, e, deveras, na mesma proporção em que produz bens. Esse fato simplesmente subentende que o objeto produzido pelo trabalho, o seu produto, agora se lhe opõe como um ser estranho, como uma força independente do produtor. O produto do trabalho humano é trabalho incorporado em um objeto e convertido em coisa física; esse produto é uma objetivação do trabalho. A execução do trabalho é simultaneamente sua objetivação. A execução do trabalho aparece na esfera da Economia Política como uma perversão do trabalhador, a objetivação como uma perda e uma servidão ante o objeto, e a apropriação como alienação. (MARX, 1932, p. 05)
Entretanto, essa não é a única forma de viver o trabalho, é possível que ele assuma o significado de labor, distanciando-se da imagem de sacrifício e tortura. Labor, em sua origem latina, associa o trabalho ao cultivo. Datamos da Baixa Idade Média e do fortalecimento das línguas geradas do casamento entre os dialetos bárbaros e os resquícios romanos o surgimento de expressões como trabalho (em português), travail (francês), trebajo (catalão), trabajo (espanhol), e travaglio (em italiano, sendo associado ao trabalho de parto). A palavra labor (inglês) e lavoro (em italiano) são também um resquício da antigüidade, onde se diferenciava o trabalho do labor. Hoje são considerados sinônimos. (VIEGAS, 1989, p.01)
O labor como o cultivo é um trabalho cujo produto carrega uma parte de dentro do seu autor e uma parte do que ele vê do mundo a seu redor. Toda atividade deveria aproximar-se o máximo possível do labor e não do trabalho porque a vida necessita da atividade laboriosa para ser vivida da melhor forma e vencer o mal-estar que se instaura na sociedade contemporânea. existe uma outra palavra que nos ajuda a pensar a questão do trabalho no sentido positivo, ou seja, não no sentido de exaustão de forças, mas no sentido de construção, do ser, que é a palavra labor. A palavra labor está ligada, exatamente na sua origem latina, às raízes agrícolas, à lavra, à laboração no campo. 28
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Quer dizer, trabalhar significa cultivar. Então, trabalhar, enquanto cultivar é uma palavra que nos remete diretamente ao sentido da palavra cultura. Cultivar é fazer cultura. A cultura é cultivada, é fruto de um processo de enriquecimento, de um processo de transformação. (VIEGAS, 1989, p.01)
A ideia de labor ressignifica trabalho como um componente da dignidade humana a partir do momento em que passa a servir como meio de construção dos valores de cada indivíduo diante de si mesmo e da coletividade. Conforme muito bem desenvolve a teórica Gabriela Neves Delgado (2015), a dignidade não consiste em um direito, pois não pode ser concedida ou suprimida por ser inerente e irrenunciável. No entanto, pode sofrer violações e por isso é reconhecida e protegida. Em consonância com o raciocínio da estudiosa, entendermos ser a própria existência do Direito do Trabalho um claro exemplo de proteção à dignidade, sendo necessária apenas uma ampliação radical a essa proteção a todas as formas de trabalho existentes por ser o trabalho - formal ou não - um instrumento para a edificação da dignidade dentro de cada indivíduo. Em outras palavras “o trabalho deve revelar o homem em sua dimensão maior de ser humano” (DELGADO, p. 178, 2015). O cooperativismo e a economia solidária com seus princípios voltados para a autonomia, a horizontalidade e a liberdade se tornam aliados da ideia de trabalho apresentada e da própria ressocialização. É sob a luz de tais ideias que se constrói a proposta de artesanal trabalho autônomo ligado à economia solidária, que busca fazer diferença na vida de milhares de mulheres levando até elas um instrumento para se fazerem mais livres, dentro e fora das grades, por meio de outra forma de se viver o trabalho. Por fim, buscamos contribuir academicamente com a busca por um sistema carcerário digno, com a ressocialização movida pela crença na capacidade humana de reinventar-se e, especialmente, com a luta pela igualdade de gênero em seus aspectos mais invisíveis.
1.2 O instituto da cooperativa como meio de proporcionar a ressocialização pelo trabalho O instituto da cooperativa é uma forma de pessoas com interesses comuns, se auto-organizarem de forma democrática com base nos princípios da economia solidária contando com a adesão e participação livre de seus membros e respeitando 29
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direitos e deveres de cada um. Tais deveres são estabelecidos no estatuto da própria cooperativa e tal documento é construído por meio de consenso entre os cooperados. Os princípios da cooperativa, conforme ensina Ana Beatriz Melo (2012), são adesão livre de seus membros, gestão democrática, participação econômica, autonomia e independência, educação, treinamento e informação, cooperação entre cooperativas e preocupação com a comunidade. No Brasil, o amparo legal ao cooperativismo está previsto na Constituição da República (art. 5°, XVII a XXI e art. 174) sendo garantida por ela a livre cooperativa e legitimidade da cooperativa para representar os interesses de seus membros: Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: [...] XVII - é plena a liberdade de associação para fins lícitos, vedada a de caráter paramilitar; XVIII - a criação de associações e, na forma da lei, a de cooperativas independem de autorização, sendo vedada a interferência estatal em seu funcionamento; XIX - as associações só poderão ser compulsoriamente dissolvidas ou ter suas atividades suspensas por decisão judicial, exigindo-se, no primeiro caso, o trânsito em julgado; XX - ninguém poderá ser compelido a associar-se ou a permanecer associado; XXI - as entidades associativas, quando expressamente autorizadas, têm legitimidade para representar seus filiados judicial ou extrajudicialmente; [...] Art. 174. Como agente normativo e regulador da atividade econômica, o Estado exercerá, na forma da lei, as funções de fiscalização, incentivo e planejamento, sendo este determinante para o setor público e indicativo para o setor privado. 25 § 1º A lei estabelecerá as diretrizes e bases do planejamento do desenvolvimento nacional equilibrado, o qual incorporará e compatibilizará os planos nacionais e regionais de desenvolvimento. § 2º A lei apoiará e estimulará o cooperativismo e outras formas de associativismo. (BRASIL, 1988).
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Também no Código Civil (arts. 1093 a 1096) estão definidas as suas características e a responsabilidade dos sócios: Art. 1.093. A sociedade cooperativa reger-se-á pelo disposto no presente Capítulo, ressalvada a legislação especial. Art. 1.094. São características da sociedade cooperativa: I - variabilidade, ou dispensa do capital social; II - concurso de sócios em número mínimo necessário a compor a administração da sociedade, sem limitação de número máximo; III - limitação do valor da soma de quotas do capital social que cada sócio poderá tomar; IV - intransferibilidade das quotas do capital a terceiros estranhos à sociedade, ainda que por herança; V - quorum, para a assembléia geral funcionar e deliberar, fundado no número de sócios presentes à reunião, e não no capital social representado; VI - direito de cada sócio a um só voto nas deliberações, tenha ou não capital a sociedade, e qualquer que seja o valor de sua participação; VII - distribuição dos resultados, proporcionalmente ao valor das operações efetuadas pelo sócio com a sociedade, podendo ser atribuído juro fixo ao capital realizado; VIII - indivisibilidade do fundo de reserva entre os sócios, ainda que em caso de dissolução da sociedade. Art. 1.095. Na sociedade cooperativa, a responsabilidade dos sócios pode ser limitada ou ilimitada. § 1° É limitada a responsabilidade na cooperativa em que o sócio responde somente pelo valor de suas quotas e pelo prejuízo verificado nas operações sociais, guardada a proporção de sua participação nas mesmas operações. § 2° É ilimitada a responsabilidade na cooperativa em que o sócio responde solidária e ilimitadamente pelas obrigações sociais. Art. 1.096. No que a lei for omissa, aplicam-se as disposições referentes à sociedade simples, resguardadas as características estabelecidas no art. 1.094. (BRASIL, 2001).
Por fim, há a Lei n° 5.764/71, que define a Política Nacional de Cooperativismo, institui o regime jurídico das sociedades cooperativas entre outras definições. Primeiramente, o dispositivo legal, em seu artigo 4°, define coopera31
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tiva como uma sociedade de pessoas, “com forma e natureza jurídica próprias, de natureza civil, não sujeitas a falência, constituídas para prestar serviços aos associados”. Além disso, a lei estabelece que as associações podem ser de três tipos: singulares, centrais e confederadas: Art. 6º As sociedades cooperativas são consideradas: I - singulares, as constituídas pelo número mínimo de 20 (vinte) pessoas físicas, sendo excepcionalmente permitida a admissão de pessoas jurídicas que tenham por objeto as mesmas ou correlatas atividades econômicas das pessoas físicas ou, ainda, aquelas sem fins lucrativos; II - cooperativas centrais ou federações de cooperativas, as constituídas de, no mínimo, 3 (três) singulares, podendo, excepcionalmente, admitir associados individuais; III - confederações de cooperativas, as constituídas, pelo menos, de 3 (três) federações de cooperativas ou cooperativas centrais, da mesma ou de diferentes modalidades. (BRASIL, 1971)
Há ainda a classificação por natureza da atividade desenvolvida pela cooperativa, conforme menciona o artigo 10, “as cooperativas se classificam também de acordo com o objeto ou pela natureza das atividades desenvolvidas por elas ou por seus associados”. Tal classificação pela natureza da atividade é bem desenvolvida por Paul Singer em sua obra Introdução à Economia Solidária, na qual Singer discrimina o cooperativismo de consumo, o cooperativismo de crédito, as cooperativas de compras e vendas e as cooperativas de produção. O cooperativismo de consumo é aquele voltado à satisfação das necessidades de consumo dos cooperados, buscando proporcionar a eles maior custo-benefício. O cooperativismo de crédito, por sua vez, tem como objetivo oferecer assistência creditícia e prestação de serviços de natureza bancária a seus cooperados com condições mais favoráveis. As cooperativas de compra e venda são compostas em geral por pequenos e médios produtores por meio da unificação de suas compras e vendas objetivando descontos e ganhos. Tal modelo é capaz de igualar os pequenos produtores e varejistas, principalmente do setor agrícola, aos grandes. Por fim, há as cooperativas de produção, modalidade que melhor representa o instituto da economia solidária. Nelas, os cooperados contribuem com o seu trabalho para a produção de bens e produtos em comum. Há na legislação brasileira uma classificação mais genérica do que a do respeitável teórico em 32
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relação às cooperativas, levando em conta a finalidade de mercado, podendo ser a produção de bens ou a prestação de serviços: Art. 4° A Cooperativa de Trabalho pode ser: I - de produção, quando constituída por sócios que contribuem com trabalho para a produção em comum de bens e a cooperativa detém, a qualquer título, os meios de produção; e II - de serviço, quando constituída por sócios para a prestação de serviços especializados a terceiros, sem a presença dos pressupostos da relação de emprego.
Além do cunho mercadológico, podemos ainda ressaltar outro viés da cooperativa, que seria a sua natureza social, a Lei n° 9.867/99 institui o gênero de Cooperativas Sociais, que se dedicam à inclusão social de pessoas em desvantagem por meio do trabalho. Em relação ao conceito de pessoas em desvantagem, o dispositivo legal é taxativo: Art. 3° Consideram-se pessoas em desvantagem, para os efeitos desta Lei: I - os deficientes físicos e sensoriais; II - os deficientes psíquicos e mentais, as pessoas dependentes de acompanhamento psiquiátrico permanente, e os egressos de hospitais psiquiátricos; IV - os egressos de prisões; V - (VETADO) VI - os condenados a penas alternativas à detenção; VII - os adolescentes em idade adequada ao trabalho e situação familiar difícil do ponto de vista econômico, social ou afetivo. § 1° (VETADO) § 2° As Cooperativas Sociais organizarão seu trabalho, especialmente no que diz respeito a instalações, horários e jornadas, de maneira a levar em conta e minimizar as dificuldades gerais e individuais das pessoas em desvantagem que nelas trabalharem, e desenvolverão e executarão programas especiais de treinamento com o objetivo de aumentar-lhes a produtividade e a independência econômica e social. (BRASIL, 1999)
Nos incisos IV e VI estão os sujeitos a que se dedica este estudo, dando fundamento jurídico para o que se pretende instituir como meio para a ressocialização pelo trabalho. Além dessa determinação legal, há o Decreto n° 33
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8.163/2013 que “institui o Programa Nacional de Apoio ao Associativismo e Cooperativismo Social - Pronacoop Social” (BRASIL, 2013) demonstrando com mais evidência que se trata de uma política pública nacional em construção que busca proporcionar a ressocialização e a inclusão social utilizando para isso o cooperativismo e reafirmando o cabimento desta pesquisa. Voltando ao dispositivo legal, a cooperativa no Brasil caracteriza-se juridicamente como uma sociedade simples (Lei n° 10.406/02, art. 982) cujo Estatuto (Lei n° 5.764/71, art. 15), documento de fundação, deve ser registrado na Junta Comercial (Lei n° 5.764/71, art. 18). Em termos de gestão, a cooperativa deve ser formada pelos seguintes órgãos deliberativos e executores: Assembleia Geral, Conselho de Administração e Conselho Fiscal. Assembleia Geral é órgão supremo de decisões a respeito do desenvolvimento da cooperativa podendo ser ordinária ou extraordinária cujas finalidades são definidas nos artigos 44 e 46, respectivamente da Lei n° 5.764/71: Art. 44. A Assembléia Geral Ordinária, que se realizará anualmente nos 3 (três) primeiros meses após o término do exercício social, deliberará sobre os seguintes assuntos que deverão constar da ordem do dia: I - prestação de contas dos órgãos de administração acompanhada de parecer do Conselho Fiscal, compreendendo: a) relatório da gestão; b) balanço; c) demonstrativo das sobras apuradas ou das perdas decorrentes da insuficiência das contribuições para cobertura das despesas da sociedade e o parecer do Conselho Fiscal. II - destinação das sobras apuradas ou rateio das perdas decorrentes da insuficiência das contribuições para cobertura das despesas da sociedade, deduzindo-se, no primeiro caso as parcelas para os Fundos Obrigatórios; III - eleição dos componentes dos órgãos de administração, do Conselho Fiscal e de outros, quando for o caso; IV - quando previsto, a fixação do valor dos honorários, gratificações e cédula de presença dos membros do Conselho de Administração ou da Diretoria e do Conselho Fiscal; V - quaisquer assuntos de interesse social, excluídos os enumerados no artigo 46.
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[...] Art. 46. É da competência exclusiva da Assembléia Geral Extraordinária deliberar sobre os seguintes assuntos: I - reforma do estatuto; II - fusão, incorporação ou desmembramento; III - mudança do objeto da sociedade; IV - dissolução voluntária da sociedade e nomeação de liquidantes; V - contas do liquidante. Parágrafo único. São necessários os votos de 2/3 (dois terços) dos associados presentes, para tornar válidas as deliberações de que trata este artigo. (BRASIL, 1971).
O Conselho de Administração, por sua vez, conforme prevê o artigo 47, é “composto exclusivamente de associados eleitos pela Assembleia Geral, com mandato nunca superior a 4 (quatro) anos, sendo obrigatória a renovação de, no mínimo, 1/3 (um terço) do Conselho de Administração”. Por fim, há o Conselho Fiscal, que tem por finalidade a fiscalização, fixação de honorários e prestação de contas do Conselho da Administração: Art. 56. A administração da sociedade será fiscalizada, assídua e minuciosamente, por um Conselho Fiscal, constituído de 3 (três) membros efetivos e 3 (três) suplentes, todos associados eleitos anualmente pela Assembléia Geral, sendo permitida apenas a reeleição de 1/3 (um terço) dos seus componentes. § 1º Não podem fazer parte do Conselho Fiscal, além dos inelegíveis enumerados no artigo 51, os parentes dos diretores até o 2° (segundo) grau, em linha reta ou colateral, bem como os parentes entre si até esse grau. § 2º O associado não pode exercer cumulativamente cargos nos órgãos de administração e de fiscalização. (Lei n° 5.764/71, art. 56)
Explicitado tal panorama em relação à gestão, passamos à análise da dinâmica econômica do instituto. Na cooperativa, o capital social é composto de cotas partes, que não terão um limite máximo, mas a lei estabelece que em suas cotas unitárias essa deva respeitar como salário mínimo vigente, conforme determinado no artigo 24 da Lei n° 5.764/71. Quanto ao capital social este deverá ser composto de cotas partes, que não terão um limite máximo, mas a lei estabelece que em suas cotas unitárias essa deverá ter como limite o salário mínimo vigente.
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Por outro lado, a Lei n° 12.690/12 que “dispõe sobre a organização e o funcionamento das Cooperativas de Trabalho e institui o Programa Nacional de Fomento às Cooperativas de Trabalho – PRONACOOPA” determina em seu artigo 7° que as cooperativas de trabalho devem garantir aos sócios o direito de “retiradas não inferiores ao piso da categoria profissional e, na ausência deste, não inferiores ao salário mínimo, calculadas de forma proporcional às horas trabalhadas ou às atividades desenvolvidas”. Em se tratando de uma cooperativa de artesãs, cabe a segunda parte da disposição normativa, sendo as retiradas calculadas com base no salário mínimo vigente proporcional às horas trabalhadas. Ora, se a cooperativa que se pretende criar neste trabalho tem cunho social e por isso pretende atender ao máximo possível de pessoas em desvantagem, como é possível gerar renda para todas conforme determina a lei, com base no salário mínimo, se o valor da quota parte tem como valor máximo também o salário mínimo? É economicamente arriscado e inviável estabelecer um valor de quota parte que não possa ultrapassar o mesmo valor que própria retirada dos cooperados. Por essa razão, a interpretação deste artigo a princípio pode deixar dúvidas quanto à fixação de valores. Porém o dispositivo legal faz referência a “valor unitário” sem explicitar se o valor em questão se refere ao valor nominal ou de referência da quota parte. Neste sentido, do ponto de vista financeiro, segundo a Fundação Itaipu Brasil de Educação financeira e Previdenciária, entende-se por valor nominal aquele que é explicitamente informado no estatuto ou contrato social e que não corresponde, necessariamente, valor integralizado pelos cooperados. Esse último, por sua vez, correspondente numericamente ao valor de referência, o qual é obtido dividindo-se o valor do capital social efetivamente integralizado pela quantidade de quotas representativas de tal capital.
1.3 Experiências existentes Com base em tais fundamentos foi possível se instituir a primeira cooperativa social de trabalho no sistema carcerário brasileiro: a Cooperativa Social de Trabalho, Arte Feminina Empreendedora – COOSTAFE, criada em 2014 no Centro de Reeducação Feminina, localizado na cidade de Ananindeua no Pará com o apoio da Diretora da unidade. De acordo com o Relatório Infopen Mulheres (Depen, 36
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2014), o Pará, que possui um presídio feminino para todo o Estado, tem 75% das mulheres presas trabalhando. Segundo foi publicado no portal virtual Brasil Cooperativo, já existem egressas que desenvolvem atividades autônomas, a exemplo da Dona Edinelma que tem uma barraca que vende artesanatos e variedades em São Miguel do Guamá, no Espírito Santo. Em depoimento, Dona Edinelma diz: Para passar o tempo, eu e minhas colegas de cela fazíamos tricô, jogos de tapete em crochê, toalhas bordadas, bonecas de pano. Quando a diretora da unidade penal viu a qualidade dos nossos produtos, ela se encantou. Então eu e mais seis mulheres formamos a Cooperativa Social de Trabalho Arte Feminina Empreendedora (Coostafe).
A produção artesanal da COOSTAFE é vendida aos domingos em feiras de artesanato em Ananindeua, na Praça da Bíblia e em Belém, na Praça da República. A renda obtida é dividida em três partes: renda para as cooperadas, aquisição de material e remuneração compartilhada. Importante ressaltar que, além de gerar renda e proporcionar o aprendizado tanto pela troca de saberes entre as detentas e por meio dos cursos pelo SENAC, por exemplo, a atividade ainda garante o direito à remição de pena. Outra experiência de economia solidária no sistema prisional está em desenvolvimento no Presídio de Florianópolis pela ONG Trama Ética com o apoio do Conselho da Comunidade. Na iniciativa local, alia-se a proposta de trabalho artesanal autônomo no sistema prisional o conceito de ecomoda e sustentabilidade, reaproveitando materiais que seriam descartados, como vidro e retalhos de tecido, para a confecção de suas peças. A ONG se encarrega de oferecer o suporte técnico e jurídico (parte em que a autora atua) para a consolidação do empreendimento de economia solidária, as capacitações profissionais em correspondência com os interesses e habilidades das detentas envolvidas na proposta. Por fim, a entidade auxiliará também na comercialização das peças produzidas, as quais já possuem consumidores em potencial, sendo eles primordialmente pessoas jurídicas interessadas em adquirir produtos desenvolvidos com a proposta de um consumo consciente aliando a uma causa e outros negócios de impacto social voltados para a confecção de produtos ecologicamente corretos ou com material reaproveitado. As peças também serão comercializadas por virtualmente e a renda será dividida igualmente entre as artesãs. Por exemplos como esses é
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que o instituto do cooperativismo aliado à economia solidária se apresenta como uma alternativa e uma esperança, para essa e para tantas outras causas sociais.
2. Conclusão A proposta do trabalho artesanal autônomo no sistema prisional claramente representa uma gota diante do complexo oceano caótico que é o encarceramento no Brasil. No entanto, tal iniciativa representa um passo em direção a uma proposta de ressocialização eficiente com oportunidades concretas contando com o protagonismo das próprias pessoas encarceradas em parceria com a sociedade. Tal participação ativa oxigena o sistema carcerário diminuindo a tensão com o diálogo aberto e as atividades laborais, acalmando as inseguranças com a geração de renda, nutrindo as esperanças com o contato humanizado. Ademais, ações sociais em geral funcionam como uma rede de prevenção de violência e outras violações de direitos, além de trazer contribuir com o debate a respeito do encarceramento massivo - em especial o feminino já que a maioria das mulheres presas são mães – em detrimento do uso de penas alternativas. A economia solidária atua como pilar de uma ressocialização eficiente por meio do trabalho uma vez que busca transformar de dentro para fora essas pessoas reconhecendo a autonomia de cada uma para desenvolver uma atividade com a qual se identifique e dessa forma gerar renda para si e para suas famílias. Ao mesmo tempo, proporciona uma experiência - dentro do próprio sistema carcerário tradicional – de uma proposta efetivamente humanizada de cumprimento de pena, que inclui, respeita e apresenta oportunidades de trabalho ligadas aos parâmetros de uma sociedade melhor, como o trabalho justo e o cuidado com o meio ambiente. Subjetivamente, o que se percebe ao desenvolver propostas com a população carcerária é que se trata de pessoas com grande potencial que foram presas - as mulheres muitas vezes com os companheiros – pelo envolvimento com o tráfico de drogas a proposta mais promissora diante de uma vida sem grandes alternativas de crescimento e desejaram mais do que uma baixa remuneração com uma jornada exaustiva e ainda a mercê da violência policial. O que se percebe são mentes rebeldes que tomaram caminhos errados, mas que com um novo olhar e novas possibilidades, têm total condição de ser agentes transformadores de suas próprias vidas e comunidades, especialmente as mulheres. 38
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Se outro mundo ainda é de fato possível, ele parece surgir primeiro nos lugares e nas pessoas que o mundo existente excluiu porque se alimenta de sua força e sofrimento. Que o presente artigo possa servir como fundamento e relato capaz de inspirar mais experiências transformadoras que efetivem direitos subjetivos e deem vida a um sistema jurídico que busque e reverencie a dignidade de todos e todas desde a legislação até os tribunais.
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Licença Parental e Corresponsabilidade Familiar: um Estudo das Propostas no Congresso Nacional Juliana de Alano Scheffer1 RESUMO: O presente artigo busca questionar como os projetos de lei em andamento no Congresso Nacional (Câmara dos Deputados e Senado Federal) manifestam-se acerca do instituto da licença parental e do incremento substancial da licença-paternidade – enquanto ferramentas de busca da igualdade de tratamento entre homens e mulheres no mercado de trabalho. Utilizou-se método de abordagem dedutivo e método procedimental estatístico, analisando-se qualitativamente e quantitativamente os resultados. Encontrou-se 52 projetos de lei em andamento, referentes à “licença parental” e “licença-paternidade”, de 1988 até maio de 2017. Dos projetos 52 analisados: 22 não incentivam a corresponsabilidade familiar de nenhuma forma (42%); 13 incentivam parcialmente (25%); e 17 incentivam de modo mais efetivo a partilha de responsabilidades entre os progenitores (33%). Quanto à licença parental, 08 previam algum tipo de licença parental (15%), enquanto 44 outros projetos sobre licença-paternidade não abordavam esta temática (85%). A respeito da licença parental, identificou-se uma participação das mulheres congressistas superior a sua proporção no Congresso. Ainda, entende-se que as propostas de licença parental compartilhada apareceram de modo mais frequente nos últimos três anos (2015-2017), podendo indicar alguma mudança na consciência de parte dos (as) integrantes Câmara dos Deputados e do Senado quanto à parentalidade compartilhada. Palavras-chave: Licença Parental; Licença-paternidade; corresponsabilidade familiar; projetos de lei.
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Bacharela em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC, servidora pública da UFSC, pesquisadora do Programa de Extensão Lilith.
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Introdução O presente artigo busca questionar como os projetos de lei em andamento no Congresso Nacional Brasileiro (Câmara dos Deputados e Senado Federal) manifestam-se acerca do instituto da licença parental e do incremento substancial da licença-paternidade – enquanto ferramentas de busca da igualdade de tratamento entre homens e mulheres no mercado de trabalho. Conforme conceituação da Organização Internacional do Trabalho, a licença parental trata-se de: [...] uma licença relativamente longa concedida ao pai ou à mãe para cuidar de um bebê ou de uma criança pequena após o período da licença-maternidade ou licença-paternidade. As disposições relativas à licença parental variam consideravelmente de país a país, pois refletem preocupações mais amplas dentro da sociedade, como preocupações relativas ao desenvolvimento infantil, à taxa de fecundidade, à oferta de mão-de-obra, à igualdade de gênero e à distribuição da renda. Há um debate em andamento sobre a duração ideal da licença parental para que a ausência do mercado de trabalho não afete o desenvolvimento profissional. Nesse sentido, é importante que a licença seja compartilhada entre pais e mães (grifo nosso). (OIT, 2016)
Desde 1974, a Suécia aplica medidas em prol da licença parental, de modo pioneiro (FARIA, 2002, p. 173). A partir de 1981, a Organização Internacional do Trabalho também reconheceu a licença parental como medida favorável à igualdade de trabalhadores e trabalhadoras com responsabilidades familiares (através da e Recomendação nº 165, associada à Convenção nº 156). Ainda, desde 1996, a União Europeia adota normativas que preveem essa espécie de licença a pais e mães. No Brasil, medidas legais de conciliação entre trabalho e família não alcançam a licença parental – que se mostrou como ferramenta útil a colaborar com a igualdade entre homens e mulheres tanto no mercado de trabalho quanto no ambiente familiar, de acordo com experiências internacionais, quando aplicada com parcela mínima obrigatória ao pai (PATNAIK, 2016, p. 32). Ainda, as licenças-maternidade e paternidade recebem tratamento jurídico notadamente diferenciado (120 dias v. 05 dias pela CLT, ou 180 v. 20 dias quando aplicada a Lei da Empresa Cidadã, custeio pela previdência social v. custeio pelo empregador; estabilidade no emprego, etc.).
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O Estado Brasileiro assume o compromisso a favor da igualdade de seus cidadãos e cidadãs, constitucionalmente (artigo 5º, caput), e através de tratados internacionais. Como exemplos, O Brasil ratificou as Convenções nº100 e nº 111 OIT, que tratam da promoção da “igualdade de remuneração de homens e mulheres trabalhadores por trabalho de igual valor” e combate à “discriminação em matéria de emprego e ocupação” (BRASIL, 1968), respectivamente. Logo, há compatibilidade entre o instituto da licença parental e o ordenamento jurídico brasileiro. Ao se falar em licença parental, além da garantia do direito constitucional de igualdade, está se analisando alterações legislativas no campo do direito do trabalho e do direito previdenciário. Portanto, importante destacar que a competência legislativa sobre tais matérias é da União (art. 22, I, CRFB e art. 195, combinado com art. 149, da CRFB). Assim, foi elaborada pesquisa sobre os projetos de lei da Câmara dos Deputados e no Senado Federal do Brasil concernentes à licença-paternidade e licença parental de 1988 a maio de 2017, avaliando-se: (1) se há incentivo a corresponsabilidade familiar; (2) se há previsão de licença parental. Adotou-se o método de abordagem dedutivo, e método procedimental estatístico, analisando-se qualitativamente e quantitativamente os resultados.
1. Recorte Ao todo, foram encontrados 52 projetos de lei em andamento no Congresso Nacional, relacionados à licença parental e licença-paternidade, de 1988 até maio de 2017. Dentre as espécies normativas, foram pesquisadas: Projetos de Emenda à Constituição, Projetos de Lei Complementar, e Projetos de Lei de modo geral, relacionados aos termos “licença parental” e/ou “licença-paternidade”. Considerou-se como arquivados projetos da Câmara que se encontravam sob nova numeração na apreciação do Senado, assim como projetos de origem desta foram considerados arquivados quando tramitando naquela casa do Congresso Nacional. A partir dos 52 projetos de lei que estavam em andamento, avaliou-se cada projeto de modo geral, e se verificou se este incentivava à corresponsabilidade familiar e se havia previsão de licença parental ou não na referida normativa.
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Quanto à previsão de licença parental no projeto de norma, trabalhou-se com duas respostas possíveis: sim ou não. Considerou-se a licença parental como licença relativamente longa concedida aos progenitores, de modo flexível, para cuidado com filhos e filhas. Medidas de redução de jornada oferecidas a ambos os progenitores foram consideradas licenças parentais. Entende-se que a corresponsabilidade familiar pode se dar por outros meios além da licença parental (como um incremento considerável na licença-paternidade, por exemplo), e todas estas iniciativas colaboram com a igualdade de gênero no ambiente familiar e laboral. Assim, também se avaliou nos projetos se eles incentivam a divisão das responsabilidades entre os progenitores, com três possíveis classificações: sim, parcialmente, e não. A medida mais recorrente de partilha de responsabilidades familiares encontrada nas propostas legislativas nacionais foi a licença-paternidade - a partir do recorte decorrente do uso dos filtros de pesquisa nos bancos de dados da Câmara dos Deputados e do Senado Federal. Desse modo, para que a proposta legislativa que tratasse de licença-paternidade fosse considerada como incentivadora plena da corresponsabilidade familiar, esta deveria conter período de 21 dias ou mais de licença ao pai. Esse critério foi estabelecido a partir de resultados canadenses, que relataram um incremento na participação paterna ao longo da vida das crianças associado a três semanas de licença, além de um maior retorno das mulheres ao mercado de trabalho (PATNAIK, 2014, p.1). Projetos de lei acerca de licença-paternidade foram considerados parcialmente incentivadores da corresponsabilidade familiar quando variavam entre 12 e 20 dias de licença-paternidade. Tal critério foi definido a partir da pesquisa apresentada pela OCDE (Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico), a qual afirma já ser possível verificar benefícios da licença-paternidade a partir de duas semanas de licença. Como a primeira pesquisa canadense relatou mais aspectos positivos a partir de uma licença de três semanas, o estudo publicado pela OCDE auxiliou na definição deste critério intermediário. Por fim, todas as propostas de licença-paternidade inferiores a 12 dias foram consideradas como não incentivadoras da corresponsabilidade familiar. Definiu-se este critério por exclusão (por ausência de pesquisa encontrada que relate benefícios de longo prazo para a família e a mulher no mercado de trabalho, a partir de licenças paternas exíguas). Definidos os recortes da pesquisa realizada, passa-se a verificação dos resultados. 46
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2. Resultados Dos 52 projetos analisados: 22 deles não incentivam a corresponsabilidade familiar de nenhuma forma (42%); 13 incentivam parcialmente (25%); e 17 incentivam de modo mais efetivo a partilha de responsabilidades entre os progenitores (33%).
Gráfico 3 - Projetos de lei em andamento no Congresso Nacional, que incentivam à corresponsabilidade familiar (1988-maio/2017). Fonte: autoral. Há onze projetos que incentivam a corresponsabilidade, mas não preveem licença parental. Dentre eles, nove tratam sobre ampliação do período de licença-paternidade por um intervalo de 21 dias ou mais. Um dos poucos projetos normativos no grupo acima (corresponsabilidade sem licença parental) que não mencionava acréscimo da licença ao pai era o Projeto de Lei (PL) da Câmara dos Deputados nº 2864/2015. Tal projeto faculta ao trabalhador, em caso de nascimento ou adoção, a antecipação das férias após o término da licença-paternidade. Outros dois projetos (PL 5440/2016 e PL 3039/2015, ambos da Câmara) incentivam a corresponsabilidade familiar de outras formas. O PL 5440/2016 pretende aumentar os prazos de licença-maternidade e paternidade da Lei Empresa 47
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Cidadã (Lei nº 11.770) pelo tempo de internação de criança prematura. Já o PL 3039/2015 almeja a suspensão dos prazos processuais em 60 dias em caso de única advogada no caso tornar-se mãe, ou em 30 dias em caso do advogado tornar-se pai. A previsão do mencionado projeto é mais benéfica a pais e mães do que a Lei nº 13.363/2016 (que altera o Código de Processo Civil de 2015, suspendendo os processos por 30 dias para a mãe advogada única, e em 08 dias para o pai). Não houve projeto de lei com previsão de licença parental que não tenha sido classificado como incentivador da partilha de responsabilidades familiares. Assim, considerou-se que as melhores formas de incentivo a corresponsabilidade familiar foram as licenças-paternidade prolongadas e as licenças parentais. Houve projeto de lei que, apesar de constar com 30 dias de licença-paternidade, foi classificado como incentivador parcial da corresponsabilidade familiar. Trata-se de Projeto de Lei da Câmara dos Deputados nº 7601/2017. De acordo com seu texto, aliada a licença de 30 dias paterna, haveria uma licença de 240 dias exclusivos da mãe. Entendeu-se que não haveria como classificar esta licença como incentivadora da corresponsabilidade familiar plena, visto que ela aumenta a diferença de tratamento entre pais e mães. Apesar do maior benefício ao pai, o PL 7601/2017 mantém a mãe (ou o outro progenitor) por oito meses afastada do mercado de trabalho. Entende-se que tal previsão reforça a diferenciação entre homens e mulheres, mantendo a mãe longe das atividades laborais por um longo período, sem direito de escolha entre os progenitores. Entende-se que a proposta seria mais equitativa se, após a licença-maternidade de 120 ou 180 dias, houvesse um período de licença parental, compartilhado entre os pais. O PL 6753/2010, da Câmara, propõe alterar a CLT para prever certa flexibilidade de jornada para pais e mães que possuem criança de até três anos com necessidades especiais, em empresas que possuam mais de cinquenta funcionários. Por mais que flexibilidade seja um direito importante, a falta de direcionamento objetivo ao pai é fator relevante para que as mulheres permaneçam no papel de cuidadoras exclusivas, conforme os relatos de experiências internacionais já mencionadas nesta pesquisa. Ainda, no mesmo projeto de lei, consta previsão de que o pai usufruirá a licença-maternidade em caso de ausência materna – o que já está legalmente previsto pelo art. 392-B, da CLT, mas que demonstra a diferenciação de gêneros constante na referida proposta.
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O projeto de lei que incentiva a corresponsabilidade e não foi classificado como licença parental é o PL 3831/2012, que prevê 180 dias de licença-maternidade e 90 dias de licença-paternidade. Entretanto, o referido projeto de lei não se manifesta sobre modificações na forma do custeio da licença-paternidade, ponto negativo da proposta. Quanto à licença parental, dos 52 projetos de lei em andamento analisados, 08 previam algum tipo de licença parental (15%), enquanto 44 outros projetos sobre licença-paternidade não abordavam esta temática (85%).
Gráfico 4 - Projetos de lei em andamento no Congresso Nacional que preveem licença parental (1988-maio 2017). Fonte: autoral. O PL 7153/2017, que tramita na Câmara, prevê 30 dias de licença-paternidade para os trabalhadores regidos pela CLT. Ainda, indica que esta poderá ser estendida até o limite da licença-maternidade, mas com redução de 50% dos rendimentos. A proposta abrange também os casos de adoção. Este projeto de lei se encontra dentre os mais avançados sobre corresponsabilidade familiar encontradas no Brasil. Também da Câmara dos Deputados, o PL 5939/2016 prevê a possibilidade de conversão do 13º salário em dias de licença-maternidade e paternidade – 49
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aumentando assim, em 30 dias as licenças. Esta licença seria facultativa - dificultando a corresponsabilidade familiar. Ainda, esta possibilidade de previsão legal exige que o trabalhador escolha entre o direito ao 13º salário e o direito à extensão da licença-maternidade e paternidade. O terceiro projeto oriundo da Câmara que trata de licença parental é o PL 7666/2017. O PL pretende alterar a CLT, para dispor sobre o período da licença-maternidade, inclusive nos casos de doenças congênitas, e regulamenta o disposto no inciso XIX do art. 7º da Constituição Federal. Prevê 180 dias de licença à mãe, sendo esse período aumentado em 60 dias em caso de criança com doenças congênitas. Ao pai, prevê 30 dias de licença-paternidade ou de 60 dias (neste caso recebendo 80% da média de sua remuneração). Ainda, ao pai, prevê 180 dias em caso de gravidez gemelar. O PL 6753/2010 (que tramita na Câmara, mas tem origem no Senado), como já mencionado, também foi considerado como iniciativa de licença parental, por prever flexibilidade de jornada para pessoas responsáveis por crianças até 03 anos de idade com alguma necessidade especial. Como projetos que tramitam sobre o tema no Senado, há o Projeto de Emenda a Constituição (PEC) 110/2011. O projeto busca alterar o art. 7º do texto constitucional, transformando a “licença à gestante” em “licença-natalidade”, que pode ser usufruída por qualquer progenitor, além de ampliar a licença-paternidade para 15 dias. A transformação da nomenclatura da licença gestante, previsto no art. 7º, XVIII, da CRFB, em licença-natalidade é bem-vinda para abarcar novos conceitos de família - casos de adoção, famílias homoafetivas e monoparentais com progenitor homem. Na mesma linha da legislação catarinense de 2009, há uma incipiente licença parental proposta neste caso. Contudo, ela é insuficiente, por continuar a distribuir de modo pouco igualitário as licenças (o outro progenitor, conforme a ideia de norma, gozaria apenas de 15 dias de licença). Por essa razão, o PEC 110/2011 foi considerado apenas como incentivador parcial da corresponsabilidade familiar. Também no Senado, encontra-se o Projeto de Emenda a Constituição (PEC) 16/2017. O PEC propõe-se a alterar o § 1º art. 10 do Ato das Disposições Constitucionais e Transitórias para estabelecer que o prazo da licença-paternidade poderá ser correspondente ao da licença-maternidade, “quando a 50
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fruição desta licença for exercida em conjunto, pela mãe e pelo pai, em períodos alternados, na forma por eles decidida”. Ainda, encontra-se no Senado o Projeto de Lei nº 652/2015, que prevê licença-maternidade e licença-paternidade com mesmo período de duração (120 dias), ambas custeadas pela previdência social. O último projeto encontrado que trata de licença parental é o Projeto de Lei do Senado (PLS) 151/2017. Tal iniciativa de legislação visa alterar os artigos 392, 392-A e 473, III da CLT, para estabelecer o compartilhamento da licença-maternidade - tanto em razão de adoção quanto nascimento de filho (a). O projeto normativo amplia a licença-maternidade para 180 dias, sendo que 60 dias podem ser partilhados com o outro progenitor. Ademais, o PLS 151/2017 prevê que em caso de criança com necessidades especiais, a licença-maternidade terá tempo dobrado, e poderá ser dividida até a metade com o outro progenitor. Trata-se de projeto de legislação avançada para os padrões brasileiros. Todavia, deixa a critério da mãe compartilhar a licença, o que pode ser impeditivo para a adesão paterna, conforme as experiências internacionais.
Considerações Finais Percebe-se que ainda são poucos os projetos de lei que tratam sobre licença parental no Congresso Nacional brasileiro. Os oito projetos de lei em andamento encontrados no Congresso que tratavam da temática são recentes, sendo o mais antigo de 2011. Dentre eles, cinco surgiram primeiramente no Senado; enquanto três são originários da Câmara dos Deputados. Interessante notar que a Câmara costuma ser identificada como a Casa em que mais iniciam as proposições legislativas. Percebe-se que, referente à licença parental, as propostas em tramitação oriundas do Senado são mais recorrentes do que as da Câmara. A partir das oito proposições sobre licença parental em andamento no Congresso, fez-se uma ponderação sobre o gênero - binário - dos (as) parlamentares que as propuseram. Das oito propostas, duas foram realizadas por mulheres (PLS 652/2015 e PLS 151/2007); quatro por homens (PL 7153/2017, 51
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PL 5239/2016, PL 7666/2017 e PLS 165/2006); e duas por diversas e diversos senadores (PEC 110/2011 e PEC 16/2017). Assim, do total de proposições, quatro (50%) contam com a liderança de mulheres. Este percentual é elevado, se comparado com a porcentagem de mulheres na atual legislatura, no Senado (13 de 81 senadores, ou 16%) e na Câmara (55 de 513 parlamentares, ou 10,7%). Apesar da amostragem reduzida de projetos existentes voltados à licença parental, essa comparação com o total de congressistas mulheres transparece um maior envolvimento destas com proposições legislativas que almejam o equilíbrio familiar e a igualdade na família e no trabalho. Também é possível que haja uma correlação entre o percentual relativo mais elevado de senadoras em relação às deputadas, que influencie na maior quantidade de proposições sobre licença parental advindas do Senado. Conclui-se que, como as propostas de licença parental compartilhada apareceram de modo mais frequente nos últimos três anos (2015-2017), compreende-se certa mudança na consciência de parte dos (as) integrantes da Câmara dos Deputados e do Senado quanto à parentalidade compartilhada.
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Cotas Para Mulheres: Adequação ao Sistema Jurídico Brasileiro Maria Rosa Müller Lohn1 RESUMO: O presente artigo, fomentado pelo contexto social de (não) inserção das mulheres em algumas categorias de trabalho, especialmente em postos de comando, analisa a possibilidade jurídica da inserção de cotas para as mulheres dentro do sistema jurídico brasileiro, ponderando os pontos necessários a um sistema coeso. O possível conflito maior seria com o princípio da isonomia, porém, superadas definições anteriores, considerando que a interpretação corrente é de igualdade no sentido material, não há conflito com tal princípio e que, ao contrário, seria mais um motivante para a criação de tais leis. Para realização de tal análise, fundamentada no método dedutivo, inicialmente pautar-se-á por uma contextualização da justificativa da pesquisa, a ser realizada no item 1 do ensaio, seguindo-se ao item 2, para uma apresentação das leis existentes e em discussão que determinam a criação de cotas para mulheres, e, a seguir, no item 3, seu cotejo com as demais codificações existentes que permitam ou não sua concatenação ao sistema jurídico. Palavras-chave: Cotas para Mulheres. Isonomia. Igualdade. Discriminação.
Introdução O contexto político e social tem motivado crescente debate sobre inclusão feminina no mercado de trabalho bem como na carreira política. Se por um lado há a alegação que as mulheres já possuem seu direito ao trabalho e, portanto, não haveria qualquer direito a ser conquistado nesse sentido, por outro percebe-se que há uma menor inclusão dessas em postos de comando e decisão, estimando-se que mais de
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Acadêmica do Curso de Graduação em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC e estudante da matéria Direito e Feminismos.
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50% das empresas não possuam qualquer mulher em cargos de liderança, de forma que apesar do direito formalmente adquirido, sua prática aparenta estar mitigada. Nesse sentido, a política de cotas surge como uma das formas possíveis de estimular a inclusão feminina no mercado, obrigando as empresas e partidos políticos a possuírem um número mínimo delas ocupando seus cargos. Mas, considerando que a organização jurídica é sistemática, é necessária a análise da adequação de tais leis a esse sistema. A Carta Magna impõe a todo sistema jurídico nacional o Princípio da Isonomia, que na hermenêutica contemporânea entende-se como tratamento isonômico aquele que considera as desigualdades sociais, ou seja, “tratar desigualmente os desiguais”. Assim, busca-se neste trabalho analisar se as cotas para mulheres são adequadas ao sistema jurídico brasileiro. Através do método dedutivo, analisa-se as leis propostas e em vigor especificamente sobre cotas para mulheres, em comparativo com demais normas - em especial a Constituição - para que se possa verificar sua conformidade ou não com as codificações já existentes e os princípios que as regem. Inicialmente pautar-se-á por uma contextualização da justificativa da pesquisa, a ser realizada no capítulo 1 do ensaio, seguindo-se ao capítulo 2, para uma apresentação das leis existentes e em discussão que determinam a criação de cotas para mulheres, e, a seguir, no capítulo 3, seu cotejo com as demais codificações existentes que permitam ou não sua concatenação ao sistema jurídico.
1. Mulheres e Inclusão Social Não é recente a percepção das mulheres sobre sua exclusão de alguns setores da sociedade, bem como a imposição de funções como se estas lhes fossem “naturais” - cita-se, por exemplo, cuidar dos filhos e da limpeza. Ainda que não haja qualquer problema em exercer essas carreiras, o que se questiona é porque essas só poderiam ser feitas por mulheres e porque outras não lhes seriam adequadas, como, por outro lado, cargos ditos “naturais” para homens - como trabalhos braçais e de comando. Como bem explanado por Garcia, “sempre que as mulheres [...] reivindicaram seus direitos por uma vida mais justa estamos diante de uma ação feminista”, e, por-
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tanto, ainda que não com essa denominação, as mulheres vêm buscando sua inserção social dentro do contexto que vivencia - ou que é impedida de vivenciar. Desde da Querelle des femmes, em que, devido ao culto Renascentista à inteligência, foram realizados vários tratados e debates sobre a natureza e os deveres dos sexos, até a situação contemporânea, que, embora não uniforme em todos os países, e havendo algumas situações particularmente opressoras, cada vez mais tem-se demonstrado que as diferenças entre os sexos são mais relacionadas à construção social que a diferenças físicas e psicológicas imanentes a cada sexo. Dentro do contexto brasileiro, apenas em 1932, através do decreto 21.076 do Código Eleitoral Provisório, ainda que restrito somente às mulheres casadas (com autorização dos maridos) e às viúvas e solteiras que tivessem renda própria, removidas tais restrições dois anos após, porém, apenas em 1946 passa a ser obrigatório às mulheres votar. Apesar da conquista recente - menos de um século - o Brasil foi pioneiro na questão do voto feminino. Países conhecidos por suas políticas em favor dos Direitos Humanos, como França e Argentina, só foram adotar tal medida em meados dos anos 40, enquanto Portugal e Suíça apenas na década de 70. Ainda em 1928, porém, o estado do Rio Grande do Norte instituiu lei própria determinando que poderia votar e ser votado sem distinção de sexos, todos os cidadãos que reunissem as condições exigidas pela lei, de forma que em 1929 é eleita no município de Lages, Alzira Soriano, primeira prefeita eleita no Brasil, embora atualmente o estado do Rio Grande do Norte ocupe a 15ª posição no índice de feminicídio, segundo dados do IPEA. A possibilidade de inclusão material da mulher na vida política lhe permitiu participar ativamente das decisões ocorridas no país, em especial no processo de redemocratização, culminado com a Constituição de 1988 em que, novamente, com a expressão da força feminina, houveram novas conquistas legislativas, como bem explica Gislene de Almeida Vaz: Feministas e grupos de mulheres exerceram pressão constante, através de uma ação direta de convencimento dos constituintes, que a imprensa identificou como o ‘lobby do batom’. Dessa forma, praticamente 80% de suas reivindicações foram atendidas, como por exemplo, a igualdade de direitos entre homens e mulheres, licença à gestante de 120 dias, entre outras. A bancada feminina atuou como um verdadeiro ‘bloco de gênero’, atuou independentemente de filiação partidária, superando divergências 59
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ideológicas. Elas apresentaram, em bloco suprapartidário, a maioria das propostas, garantido a aprovação das demandas do movimento.
O último censo do IBGE, realizado em 2010, apresentou que mais de 50% da população brasileira é composta por mulheres (aproximadamente 93 milhões de homens contra 97 milhões de mulheres). Entretanto, sua representatividade nos quadros dos Poderes Públicos não corresponde a essa proporção.
Visando a inclusão das mulheres nesse contexto algumas leis de ações afirmativas foram editadas. Na seara pública, cita-se as vigentes Lei de Cotas (em conformidade com as Leis 9.100/95, 9.504/97 e 12.034/09), enquanto outras, principalmente para o setor privado, estão em discussão nas câmaras legislativas.
2. Proposições de Inclusão Feminina Há, no âmbito político, duas formas principais de cotas. As cotas para candidatos determinam porcentagem mínima dos candidatos que devem ser do sexo feminino na lista eleitoral dos partidos políticos, enquanto o segundo, a reserva de assentos no parlamento, como seu nome sugere, implica em vagas pré-determinadas no parlamento para serem ocupadas por mulheres em uma legislatura. Note-
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-se que nem sempre a reserva de vagas na lista garante que as mulheres ocuparão as posições de elegibilidade, sendo esse, atualmente, o sistema adotado no Brasil. A Lei 9.100/95, que dispõe sobre a realização de eleições municipais em outubro de 1996, no art. 11, §3° impõe aos partidos que “vinte por cento, no mínimo, das vagas de cada partido ou coligação deverão ser preenchidas por candidaturas de mulheres”, expandido posteriormente para a eleição de todas as câmaras através da Lei 9.504/97, que no texto do art. 10, §3°, à época dispunha que “do número de vagas resultante das regras previstas neste artigo, cada partido ou coligação deverá reservar o mínimo de trinta por cento e o máximo de setenta por cento para candidaturas de cada sexo”, redação que veio a ser modificada pela Lei 12.034/09, já que a expressão “reservar” gerou interpretação contrária: passou-se a praticar a obrigatoriedade de 70% das vagas para homens. Na mesma lei (12.034/09), alterou-se a redação do artigo 44, inciso V, da Lei 9.096, de 1995, que impõe a aplicação de, no mínimo, 5% dos recursos do Fundo Partidário na criação e manutenção de programas de promoção e difusão da participação política das mulheres, bem como modificou artigo 45, inciso IV, determinando que, no mínimo, 10% do tempo de propaganda partidária gratuita no rádio e na televisão seja destinado à promoção e à difusão da participação política feminina, com objetivo de fomentar mais preparo e divulgação das mulheres no meio político, assegurando não apenas que estejam nesse meio, mas que participem dele também. No entanto, conforme relatório Mulheres na Política, “o percentual de mulheres eleitas tem sido consistentemente inferior aos 30% de candidatas. Na Câmara dos Deputados, o percentual feminino tem-se mantido em torno dos 9% do total de cadeiras”, conforme tabela que expressa a baixa ocupação pelas mulheres no Legislativo.
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Há de se destacar também que muitas das candidaturas de mulheres visam apenas cumprir a cota definida, não havendo interesse ou mesmo investimento para que aquela mulher se eleja. Crítica necessária se faz também das baixas multas impostas aos partidos bem como a falha na fiscalização dos valores investidos nos 5% a serem destinados a criação e manutenção de programas de promoção e participação política das mulheres, bem como ineficiente a fiscalização do cumprimento dos 10% de propaganda partidária, sendo que, consultado o TSE, sua manifestação foi de que: Analisou-se somente o cumprimento do inciso V do artigo 44 da Lei 9.096/1995 — referente à aplicação dos recursos do Fundo Partidário na criação e manutenção de programas de promoção e difusão da participação política das mulheres —, em virtude de esta unidade técnica não efetuar controle sobre o percentual de tempo destinado à propaganda partidária gratuita na promoção e difusão da participação política feminina. [...] As informações de despesas foram obtidas exclusivamente dos demonstrativos publicados na página eletrônica do TSE, apresentados a este tribunal pelos próprios partidos. Uma vez que as contas ainda não foram julgadas, não foi objeto dessa análise a regularidade na aplicação dos recursos em programas da mulher, o que poderia impactar no percentual aplicado.
Atualmente, em tramitação nas casas legislativas, há alguns projetos que pretendem modificar esse sistema, cita-se os principais: PROJETO DE DECRETO LEGISLATIVO (SF) nº 150, de 2013: Convoca plebiscito sobre a reserva de, no mínimo, 30% (trinta por cento) dos cargos nas Câmaras Municipais, Assembleias Legislativas, na Câmara dos Deputados e no Senado Federal para mulheres. PROPOSTA DE EMENDA À CONSTITUIÇÃO nº 98, de 2015 - PEC DA MULHER: Acrescenta artigo ao Ato das Disposições Transitórias da Constituição para reservar vagas para cada gênero na Câmara dos Deputados, nas Assembleias Legislativas, na Câmara Legislativa do Distrito Federal e nas Câmaras Municipais, nas três legislaturas subsequentes.
Ambas as propostas propõem a reserva de assentos nos parlamentos, garantindo a participação feminina nas casas legislativas, porém, a de Emenda à Constituição demonstra-se diversa da anterior devido a prévia definição de sua duração. Considera-se a possibilidade de que as cotas, como um todo, sejam 62
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medidas excepcionais e de duração limitada a superação da desigualdade guerreada, mas a expectativa de que três legislaturas seriam suficientes demonstra-se demasiadamente positiva. Dadas as normas já postas bem como as possíveis modificações já em tramitação, bem como indicativos de suas falhas, resta analisar a viabilidade dessas dentro do sistema jurídico nacional.
3 Adequação ao Sistema Jurídico Brasileiro Prevê a Carta Magna, em seu artigo 5°, caput e Inciso I: Art. 5° Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: I - homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição.
Esculpido na norma constitucional o princípio da isonomia, poder-se-ia apontar que o estabelecimento de ações afirmativas, através de cotas, vai de encontro frontalmente com tal princípio, mas, essa seria uma interpretação pautada na igualdade objetiva, em que o tratamento igualitário ignoraria condições específicas de cada pessoa ou grupo, de forma que, na prática, tornaria-se desigual. A igualdade, que não tomava em conta a vida real das pessoas, era vista como simples projeção da garantia da liberdade, isto é, da não discriminação das posições sociais, pouco importando se entre elas existissem gritantes distinções concretas. O Estado liberal tinha preocupação com a defesa do cidadão contra eventuais agressões da autoridade estatal e não com as diferentes necessidades sociais. A impossibilidade de o Estado interferir na sociedade, de modo a proteger as posições sociais menos favorecidas, constituirá consequência natural da suposição de que para se conservar a liberdade de todos era necessário não discriminar ninguém, pois qualquer tratamento diferenciado era visto como violador da igualdade - logicamente formal.
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Atualmente a interpretação de “igualdade” busca tratar diferentemente os diferentes, e não apenas trata-se como princípio a ser respeitado, mas também um objetivo constitucional a ser alcançado pelo Estado e pela sociedade. Dessa forma, as ações afirmativas para mulheres não seriam contrárias ao princípio da igualdade, mas justamente se aplicaria ao sistema, já que a sociedade não trata igualmente os gêneros e cabe ao Estado providenciar que essa desigualdade no tratamento seja superada aplicando-se o Princípio da Proibição Deficiente, um mandato de otimização que impõe ao Poder Público não só a regulamentação das matérias que envolvem direitos fundamentais, mas também sua normatização com precisão necessária à efetiva concretização dessa prerrogativa constitucional. Isto é, cabe ao Estado não apenas a regulamentação dos direitos fundamentais, mas, ao mesmo tempo, a garantia de sua efetivação. Imposta a igualdade material como princípio da Carta Magna e com a imposição de ação imperativa do Estado de garantir sua efetivação, todo o restante do sistema jurídico deverá seguir essa premissa. Em 1979, a Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas em elaborou-se a “Convenção sobre a eliminação de todas as formas de discriminação contra as mulheres”, da qual o Brasil é signatário desde então o que, inclusive, motivou a criação da Lei de Cotas de 1995. Na Convenção sobre a eliminação de todas as formas de discriminação contra as mulheres, em especial na Parte I (artigos 1° ao 6°), o Brasil se compromete, entre outros, a: Artigo 3º Os Estados-parte tomarão em todas as esferas e, em particular, nas esferas política, social, econômica e cultural, todas as medidas apropriadas, inclusive de caráter legislativo, para assegurar o pleno desenvolvimento e progresso da mulher, com o objetivo de garantir-lhe o exercício e gozo dos direitos humanos e liberdades fundamentais em igualdade de condições com o homem. Artigo 4º 1. A adoção pelos Estados-parte de medidas especiais de caráter temporário destinadas a acelerar a igualdade de fato entre o homem e a mulher não se considerará discriminação na forma definida nesta Convenção, mas de nenhuma maneira implicará, como conseqüência, a manutenção de normas desiguais ou separadas: essas medidas cessarão
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quando os objetivos de igualdade de oportunidade e tratamento houverem sido alcançados. [...] Artigo 5º Os Estados-parte tomarão todas as medidas apropriadas para: a) Modificar os padrões socioculturais de conduta de homens e mulheres, com vista a alcançar a eliminação dos preconceitos e práticas consuetudinárias, e de qualquer outra índole, que estejam baseados na idéia de inferioridade ou superioridade de qualquer dos sexos ou em funções estereotipadas de homens e mulheres;
Quanto à eficácia dada aos tratados internacionais, no âmbito brasileiro: [...] o tratado passa por três etapas distintas: eficácia internacional, quando da assinatura do Chefe de Estado no órgão internacional; eficácia para o Estado, quando da ratificação do tratado pelo Congresso Nacional e promulgação do Decreto Legislativo, comprometendose, pois, internacionalmente; e eficácia dentro do Estado, quando o Decreto Legislativo é publicado por força de Decreto presidencial e passa a incorporar o corpus juris daquele Estado.
Através do Decreto Nº 4.377/02, o então presidente da república completou a eficácia dentro do corpus juris, logo, tal tratado internacional passou a fazer parte do sistema jurídico brasileiro, de forma que, como expresso no tratado, medidas em prol da modificação de padrões culturais com vista a alcançar a eliminação de preconceitos não serão consideradas discriminatórias.
Conclusão Passados quase 100 anos da legalização do voto das mulheres e quase 20 anos das ações afirmativas para sua inclusão como elegíveis no sistema Legislativo, a luz da hermenêutica material do princípio da igualdade, esculpido na Constituição de 1988, resta clara a adequada inclusão dentro do sistema jurídico de cotas que estabeleçam mínimos de participação das mulheres ou de financiamento dessa participação. A desproporcionalidade da participação dessas na política não se deve a qualquer situação imanente do sexo, mas de construção social que recentemente vem sendo superada. 65
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Investimentos e cotas para desestimular o equilíbrio entre os sexos não se mostra como uma política discriminatória, mas sim como forma inclusiva de parte que não é possibilitada do devido acesso a esse setor da sociedade. Se, por um lado, demonstra-se adequada a imposição das cotas, a análise da forma dessas possibilita a identificação de falhas na aplicação das leis de fomento à participação feminina na política. Percebe-se que a previsão do mínimo de 30% em listas abertas de candidaturas, ainda não é eficiente, em parte pela pouca fiscalização e possibilidades de “burlar” as imposições das medidas de investimento partidário e de tempo de campanha em TV aberta, possibilitando a competitividade, devido a “desigualdade de armas”. As três medidas deveriam agir conjuntamente para que se garantisse a alternância entre homens e mulheres. Percebe-se também que um sistema com cotas mais “seguras”, como as de reserva de vagas no parlamento, teriam mais garantias de efetividade, de forma que propostas como a do Projeto de Decreto Legislativo n° 150 de 2013 indicam o provável caminha ser seguido, havendo ainda a possibilidade de progressivamente aumentar o número de vagas até que se atinja os 50%, bem como seria ideal aumentar tanto tempo de participação nas campanhas eleitorais bem como os investimentos de fomento partidário para participação feminina.
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O Relato da Mídia no Caso Eloá Pimentel Isadora Siqueira Mesquita1 Julia Siqueira Mesquita2 RESUMO: O presente artigo apresenta uma reflexão sobre o relato do caso Eloá Pimentel feito pelos veículos midiáticos evidenciando o machismo e suas consequências. De início é feita uma breve conceituação do machismo e suas implicações na mídia, a qual possui uma certa responsabilidade social na manutenção de estereótipos. Após relatar o caso, foi discorrido sobre o crime passional, tendo em vista que este termo foi utilizado amplamente pelos veículos midiáticos para justificar o crime de cárcere privado e homicídio cometido por Lindemberg Alves. O conteúdo é construído com base em artigos, reportagens e entrevistas retirados da mídia digital, escolhida por possuir maior oferta de conteúdos sobre o caso. Diante dos veículos midiáticos terem função importante na influência no comportamento na sociedade, é verificada que com atuação em relação ao caso Eloá reforça o machismo. Ainda, ao reportar o crime em tempo real, e também após, é verificada a prioridade concedida ao agressor de forma em que as angústias de Eloá não são evidenciadas, buscando o aumento da audiência sem pensar nas possíveis consequências no desfecho do caso. Portanto, a interferência feita pelas mídias obteve um resultado não satisfatório visto que o desfecho se deu na morte da adolescente Eloá Pimentel. Palavras-chave: Machismo; mídia; crime passional; Eloá Pimentel.
Considerações Iniciais O artigo foi produzido com o intuito de identificar como os veículos midiáticos reportaram o caso Eloá e quais foram suas consequências. Para isso serão 1
Acadêmica do Curso de Graduação em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC e estudante da matéria Direito e Feminismos.
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Acadêmica do Curso de Graduação em Psicologia da Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC e estudante da matéria Direito e Feminismos.
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abordados temas como o machismo na mídia, o crime passional, conceito e regulamentação no ordenamento jurídico brasileiro, e o uso desta terminologia pela mídia para legitimar o crime. A escolha do caso específico se deu pela complexidade do mesmo, e por seu intercurso ter sido marcado por intervenções da mídia. O caso Eloá teve grande repercussão nos âmbitos nacional e internacional, não apenas pela intervenção da mídia, mas também por ser o crime de cárcere privado com maior duração que se tem registro no Brasil (FOLHA ONLINE, 2008b), o qual se estendeu do dia 13 ao dia 17 de outubro de 2008, que atingiu aproximadamente 100 horas, e resultou em um fim trágico. A repercussão na mídia em relação ao caso se deu de forma vasta, visto que desde o início as emissoras televisivas e os jornais, assim como outros meios de propagação de informação, cobriram ativa e amplamente o ocorrido ajustando suas programações para relatar e detalhar cada momento do cárcere. Desta forma, foi escolhida, para a criação e desenvolvimento da reflexão sobre o caso de Eloá Pimentel, a mídia digital, por possuir maior oferta de conteúdo sobre o tema escolhido. Apesar de o caso ter ocorrido em 2008, alguns sites e reportagens não se encontram mais disponíveis. Atualmente, considerada um dos meios mais utilizados para aquisição de conhecimento, a mídia digital possui um grande potencial de mudança no comportamento e pensamentos daqueles que a utilizam (CINTRA, 2010). Em 2016 foi criado um documentário chamado “Quem matou Eloá?”, de Lívia Perez, que trata justamente da atuação da mídia televisiva no período de cárcere de Eloá e discute a naturalização da violência contra a mulher, o qual foi utilizado para balizar as questões abordadas neste trabalho. O documentário participou de dezesseis festivais nacionais e internacionais e recebeu cinco prêmios (MATUOKA, 2016). Diante disto, pensando em como a mídia possui papel relevante na atualidade, verifica-se que exprime a cultura machista enraizada na sociedade civil. Tal enraizamento, demonstra o machismo que está presente na sociedade desde os primórdios, fazendo com que a mídia transmita esses padrões, formando um ciclo.
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1. Machismo E Mídia De início, faz-se necessária algumas considerações a fim de compreender como o caso de Eloá foi retratado pelos veículos midiáticos. Foram escolhidas três autoras que conceituam o machismo de acordo com diferentes perspectivas e a contextualização histórica de cada uma. De acordo com Garcia (2015) o machismo é um discurso da desigualdade. Consiste na discriminação baseada na crença de que os homens são superiores às mulheres. Na prática este conceito é utilizado para caracterizar palavras ou atos onde, de forma ofensiva ou vulgar, demonstram o sexismo à estrutura social. Mary Drumont (1980) diz que o machismo é um “sistema de representações simbólicas, que mistifica as relações de exploração, de dominação e de sujeição entre o homem e a mulher” (DRUMONT, 1980). Completando, Marina Castañeda (2006) afirma ser um conjunto de regras, crenças, atitudes e condutas que se manifestam na contraposição do feminino e masculino, onde o masculino é representado como superior. Em relacionamentos amorosos o machismo pode ser percebido em gestos sutis, como o xingamento, a violência psicológica, a chantagem, o que torna um relacionamento chamado abusivo, que se caracteriza, entre outras coisas, na crença de um estereótipo onde o vitimizador é quem possui a autoridade hierárquica da relação e considera o abuso legítimo (FALCKE; et al, 2009). Corroborando nesse viés, ANJOS et al. (2015) compreende a mídia como incentivadora e difusora do comportamento machista na sociedade, ainda contribuindo para a manutenção dos estereótipos sexuais. A mídia hoje, tanto televisiva quanto eletrônica, tem um papel importante na influência no comportamento da sociedade como um todo. Pensando nisso, a imagem retratada sobre a mulher nos veículos midiáticos repercute nas ações que as atingem, valorizando certos tipos de comportamento e se contrapondo a outros. Para Marilena Chauí (2006) grande parte da população brasileira é espectadora de um tipo de programa de televisão onde a intimidade das pessoas é objeto de espetáculo: programas de auditório, de entrevistas, no noticiário, no rádio e na televisão, a notícia é intercalada com a fala dos envolvidos no fato e com os repórteres indagando sobre os sentimentos de alguém, sendo os fatos, reduzidos ao sentimento,
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gosto e preferência das pessoas transformando acontecimentos políticos em tragédias isoladas, cotidianas, banais e com o intuito de aumentar a audiência. Nesse sentido Ribeiro (1996) afirma que: Ao selecionar, ordenar e enunciar os acontecimentos da história, os meios de comunicação apresentam-se como um lugar de tensão em que operam forças que levam tanto ao enfraquecimento da memória e ao esquecimento, quanto à sua estabilização (RIBEIRO, 1996).
2. Relato do Caso No dia 13 de outubro de 2008 no Município de Santo André (SP), Lindemberg Alves Fernandes de 22 anos, invadiu o apartamento de Eloá Pimentel que estava estudando com outros três amigos, Nayara Rodrigues da Silva, Iago Vilera e Victor Campos. A invasão se deu por volta das 13h daquela segunda-feira em razão do término do namoro, o qual durou cerca de três anos, e que não foi bem aceito por Lindemberg (GLOBO, 2012). Portando uma arma de fogo, Lindemberg entrou no apartamento e fez refém os quatro jovens que lá estavam. Após a invasão, chegou ao conhecimento da polícia local o ocorrido e policiais se deslocaram ao apartamento de Eloá. Assim que o reforço policial chegou, começaram as negociações na mesma tarde. No início da noite do dia treze, Lindemberg liberou os dois meninos (Iago e Victor) do apartamento, mantendo a ex-namorada e sua amiga ainda em cárcere (GLOBO, 2012). No dia 14 de outubro, o advogado de Lindemberg, Eduardo Lopes, passou a acompanhar as negociações entre o cliente e o GATE (Grupos de Ações Táticas Especiais). Eduardo Lopes abandonou o caso após quatro dias alegando a quebra de confiança (GLOBO G1, 2008a). Neste mesmo dia 14 foram ouvidos tiros no apartamento, e por volta das 23 horas Lindemberg liberou Nayara, que saiu do apartamento sem ferimentos e foi prontamente recebida pela equipe do GATE (GLOBO G1, 2008a). No dia 15 de outubro Nayara prestou depoimento no 6º Distrito Policial de Santo André. A partir de sua saída, passou a participar das negociações a pedido da equipe tática, ainda no dia 15 (DE SOUZA, 2009).
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No dia seguinte (16), a amiga de Eloá retorna ao apartamento numa tentativa de negociar, porém foi feita refém novamente por Lindemberg, que havia dito que se entregaria caso Nayara voltasse, mas não se entregou (DE SOUZA, 2009). No último dia de cárcere, 17 de outubro, a polícia explode a porta e invade o local alegando ter ouvido um disparo de arma de fogo no interior do apartamento. Após a invasão, houve luta corporal entre os policiais e Lindemberg, o qual teve tempo de atirar contra as reféns. Nayara levou um tiro no rosto e saiu consciente, caminhando, e Eloá Pimentel foi atingida com dois disparos, na cabeça e virilha, e foi levada ao Centro Hospitalar de Santo André inconsciente (GLOBO G1, 2008a). Lindemberg Alves saiu sem ferimentos após a invasão e foi encaminhado à delegacia e levado à cadeia pública da cidade, a seguir ao Centro de Detenção Provisória de Pinheiros, na cidade de São Paulo. Às 23:30h, Eloá veio a falecer por morte cerebral, no dia 18 de outubro (GLOBO G1, 2008a). O Juiz José Carlos de França Carvalho Neto, em 19 de outubro de 2009, determinou que Lindemberg fosse à júri popular, acusado pelos crimes de homicídio qualificado por motivo torpe e por uso de recurso que dificultou a defesa das vítimas, tentativa de homicídio contra Nayara, disparo de arma de fogo e cárcere privado (DE SOUZA, 2009). Em primeira instância, em 2012, Lindemberg foi condenado pelos crimes acima em 98 anos e dez meses de reclusão e pagamento de 1.320 dias-multa, no valor mínimo legal, negado o direito de recorrer em liberdade. Após interpolado recurso no ano de 2013, conforme decisão do relator Pedro Menin, foi parcialmente provido e concedida diminuição da pena para 39 anos e 3 meses de reclusão, com início em regime fechado e ao pagamento de 16 dias-multa, e no restante manteve a sentença de 1ª instância (MENIN, 2013).
3. Crime Passional Durante as 100 horas em que Eloá foi feita refém, foram repercutidas pela mídia televisiva as imagens em tempo real, com “ar de filme de ação” (MATUOKA, 2016).
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A partir desse modelo de repercussão, é possível pensar em como a sociedade, de certo modo, justifica o crime cometido como “crime de amor” ou “crime passional”. O crime passional, é o crime que envolve a expressão de uma paixão, em que é motivado por amor, ciúme, ou da impossibilidade da concretização e manutenção desse amor (BORGES, 2011), o qual é visto de uma forma menos grave e mais isolada e que levaria à compreensão em relação ao homicídio em si. De acordo com Borges (2011) este homicídio conjugal, se manifesta nos homens na “expressão de um sentimento de possessibilidade ou de rejeição da perda do controle de sua parceira”, como visto no caso de Lindemberg em relação ao término do namoro com Eloá. Na época do caso de Eloá, em 2008, o crime passional, no ponto de vista jurídico, era considerado como motivação ao homicídio. Os crimes praticados contra mulher eram enquadrados como homicídio simples (art. 121 do CP), mas dependendo das circunstâncias do caso concreto também era considerado qualificado por motivo torpe (inciso I do § 2º do art. 121) ou fútil (inciso II) (MENIN, 2013). Hoje, no ordenamento jurídico, existem mecanismos para a proteção da mulher em casos de violência e ameaça aos seus direitos. Em 2006 foi promulgada a Lei 11.340, mais conhecida como a Lei Maria da Penha, a qual possui a finalidade de coibir e prevenir a violência doméstica e familiar contra a mulher. Esta lei dispõe sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher e estabelece medidas de assistência e proteção às mulheres em situação de violência doméstica e familiar (BRASIL, 2006). Em 2015, foi inserido no Código Penal atual um dispositivo que tutela o homicídio cometido por homem contra a mulher em razão de ser do sexo feminino, o chamado feminicídio (art. 121, §2º, VI do CP). O feminicídio pode ser definido como o “homicídio doloso praticado contra a mulher por “razões da condição de sexo feminino”, ou seja, desprezando, menosprezando, desconsiderando a dignidade da vítima enquanto mulher, como se as pessoas do sexo feminino tivessem menos direitos do que as do sexo masculino” (ORTEGA, 2017). Assim, não basta a vítima ser mulher, ela deve ter sido violentada e morta pela justificativa de possuir o sexo feminino.
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3.1 A mídia justificando o crime passional Durante os quase 5 dias de cárcere em que Eloá e Nayara estavam submetidas, diversos meios de comunicação fizeram contato com Lindemberg Alves, por meio de ligações telefônicas, alguma transmitidas ao vivo, como no programa “A tarde é sua”, da RedeTV, apresentado pela jornalista Sônia Abrão (A TARDE É SUA, 2008). Em uma entrevista por telefone o repórter Luiz Guerra do mesmo programa, conversa com Lindemberg por telefone e afirma “a gente quer saber se está tudo bem com você, a nossa preocupação é com você” (A TARDE É SUA, 2008), em uma demonstração clara de que a motivação da entrevista era para dar voz e atenção ao homem agressor e aumentar a audiência do programa, tratando o drama de Eloá Pimentel como entretenimento (FOLHA ONLINE, 2008c). Diversas vezes tratado como trabalhador, jovem apaixonado, Lindemberg, feliz por aparecer na televisão e tornar-se celebridade, sentiu-se estimulado e apoiado, optando por estender o cárcere privado até o limite possível, obtendo um desfecho trágico (VIANNA, 2010). Por diversas vezes, em reportagens e vídeos Eloá é citada apenas com “a menina, a refém, a garota” enquanto o agressor, Lindemberg Alves é chamado pelo nome e tem seus dados como idade e profissão bastante divulgados (FOLHA ONLINE, 2008d). Com isso podemos perceber um interesse maior por parte da mídia em relação ao homem agressor do que em relação à vítima, mulher. Partindo disso podemos questionar: e se a vítima fosse um homem, a cobertura midiática teria se referido a ele da mesma forma em que se referiu a Eloá como “a menina”? O cárcere ter se estendido por tanto tempo foi considerado um erro para Marcos do Val (GLOBO G1, 2008b), o qual julga que desde início a polícia teve oportunidades de execução do sequestrador porém essa estratégia foi descartada pela polícia pela justificativa de “se tratar de um jovem, com uma decepção amorosa, a nossa opção era esgotar todas os meios de negociação e tentar cansá-lo” (GLOBO G1, 2008b), como explicou em uma entrevista o comandante do Gate, coronel Eduardo Félix.
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Considerações Finais As experiências adquiridas na pesquisa e na construção deste artigo, evidenciam que as mídias, rádio, televisão e jornais, cumprem um papel informativo ao revelar os acontecimentos ao público, porém deve-se questionar a intenção e a forma como os apresentam. Visto que diversas vezes apresentam fatos que dão prioridade aos pontos de menor relevância do que aos fatos em si (PRETI, 1996, p. 11-15). Tendo em vista que a mídia possui responsabilidade social, ela precisa ter cuidado ao transmitir idéias e informações, pois elas, influenciam no comportamento do receptor, contribuindo para a conservação do machismo. Evidenciada a intervenção de forma equivocada realizada pela mídia, ao falar com Lindemberg Alves ao vivo, fez com que ele se empoderasse, se sentindo como celebridade. Isto se mostra também ao fato de a mídia dar mais voz a ele do que à Eloá e tratá-lo como “trabalhador” e com bons antecedentes. Uma das justificativas usadas pela polícia, também evidencia o machismo. Ao declarar que “por se tratar de um jovem, com uma decepção amorosa” o tenente do GATE não autorizaria a execução de Lindemberg antes de esgotar todas as outras formas de negociação, deixando claro que a prioridade não era a vítima, mas sim o agressor (GLOBO G1, 2008b). De certo modo, o argumento de ser uma decepção amorosa, a mídia alimenta a crença em um crime motivado por amor, fazendo com que diminuísse a real gravidade da situação e transformando em espetáculo um crime que teve desfecho grave, e considerado inesperado pelos veículos midiáticos. Ainda que a equipe policial tivesse advertido que não estaria autorizado o diálogo com a partes integrantes do caso no ato, a mídia televisiva mostrou-se negligente ao entrar em contato com Lindemberg e Eloá. Diante o exposto, não é possível afirmar que se a mídia não tivesse interferido nas negociações, o resultado seria diferente, porém, há grande probabilidade que o desfecho poderia ter sido resolvido de forma mais satisfatória, evitando, talvez, as lesões de Nayara e a morte de Eloá.
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Breve Análise da Violência Doméstica em Face de Mulheres com Deficiência Débora Gerardi1 Thaís Becker Henriques Silveira2 Valéria Magalhães Schneider3 Resumo: O objetivo do presente artigo consiste em enfrentar o tema da violência doméstica contra a mulher com deficiência, a fim de verificar se há nessa, por questões que lhe são inerentes, uma maior vulnerabilidade. Nesta pesquisa, objetiva-se analisar em conjunto os aspectos relacionados ao gênero e à própria deficiência e como essa situação traz consequências na forma de abordagem de denúncias de violência. O problema será abordado à luz da Lei n. 11.340, conhecida como Lei Maria da Penha, utilizando-se, também, como base, os direitos fundamentais dispostos na Constituição Federal, especialmente àqueles do artigo 5º. O parâmetro de pesquisa utilizado foi a compreensão do termo violência, a sua análise como forma de dominação, o conceito de violência doméstica à luz da Lei Maria da Penha e, por fim, as especificidades da violência doméstica contra a mulher com deficiência. O propósito da análise é verificar as diversas percepções no que concerne à violência, problematizando as situações em que a violência, independente de qual seja, é direcionada a esse grupo específico da sociedade, qual seja as mulheres com deficiência. Palavras-chave: Dominação; Mulher; Mulher com deficiência; Violência; Violência doméstica; Vulnerabilidade.
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Acadêmica do Curso de Graduação em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC e estudante da matéria Direito e Feminismos.
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Acadêmica do Curso de Graduação em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC e estudante da matéria Direito e Feminismos.
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Acadêmica do Curso de Graduação em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC e estudante da matéria Direito e Feminismos.
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ABSTRACT: The objective of this article is to address the issue of domestic violence against women with disabilities, in order to verify if there is a greater vulnerability due to inherent issues. In this research, the objective is to analyze together aspects related to gender and disability itself and how this situation has consequences in the way of approaching complaints of violence. The problem will be addressed in light of Law no. 11.340, known as the Maria da Penha Law, also using as basis the fundamental rights set forth in the Federal Constitution, especially those of article 5. The research used was the understanding of the term violence, its analysis as a form of domination, the concept of domestic violence in light of the Maria da Penha Law, and, finally, the specifics of domestic violence against women with disabilities. The purpose of the analysis is to verify the different perceptions regarding violence, problematizing the situations in which violence, regardless of which one, is directed to this specific group of society, namely women with disabilities. Keywords: Domination; Woman; Woman with disability; Violence; Domestic violence; Vulnerability.
Introdução Não é novidade que, tanto nos dias de hoje como ao longo da história, as mulheres são tratadas como seres secundário, dependentes que se encontram sob a dominação masculina. Só quem é mulher sabe a consequência desse tratamento, que tem suas origens na organização social que se baseia na ideologia patriarcal e androcêntrica. A consequência de tal fato é que muitas vezes suas vozes são silenciadas, vontades negligenciadas, quando não ignoradas por serem desacreditadas. Além disso, são vítimas cotidianamente de violência em razão do gênero, que acontecem tanto no trabalho, em casa ou na rua. Entretanto, embora nos últimos anos o tema tenha começado a ser mais debatido, muito ainda falta ser feito, bem como discutido. Como acontece, por exemplo, no caso da violência doméstica. Embora o conhecimento acerca do assunto venha aumentando, tudo acontece de maneira geral, sem que sejam analisados casos peculiares e questões particulares, como ocorre nas situações de violência doméstica contra mulheres com deficiência. Embora se fale em 82
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casos particulares, são questões que atingem um grupo de mulheres, de número não pequeno, mas que por suas características, e necessidades peculiares, não podem ser tratadas numa coletividade só. Sendo assim, diante dessa constatação, buscou-se fazer uma identificação acerca dos casos de violência doméstica em que as mulheres com deficiência sejam as vítimas, tendo como problema a verificação se a mulher com deficiência se apresenta de forma mais vulnerável que as demais, partindo da hipótese de que existe, de fato, essa maior vulnerabilidade. Lembrando, contudo, que a vulnerabilidade nada tem relação com submissão ou inferioridade. Com o intuito de alcançar o objetivo que o trabalho se propõe, foi utilizado o método de abordagem indutivo e a técnica de documentação indireta, envolvendo pesquisa bibliográfica e documental. No mais, a fim de alcançar o objetivo que o trabalho se propõe, a pesquisa foi dividida em três pontos. Primeiro buscou-se fazer uma análise do que é violência, de forma geral e posteriormente caracterizar o que é violência doméstica e qual o mecanismo utilizado hoje para combatê-la. Em um segundo momento foi identificado os motivos que levam a prática da violência doméstica e o que está por trás dela, ou seja, a relação existente entre dominação e violência. Por fim, importante entender de quem estamos falando quando nos referimos a mulheres com deficiência, ou seja, é feita uma delimitação acerca do assunto e subsequentemente apontadas algumas das particularidades das mesmas quando se fala em violência doméstica.
2. A Violência Doméstica Contra Mulher com Deficiência 2.1 O que é Violência? Antes de iniciar o tema principal do presente artigo faz-se necessário uma conceituação do termo “violência” a fim caracterizá-lo, apontando os diversos contextos em que esse fenômeno pode ocorrer, bem como quais os tipos de influências existentes na sociedade que podem motivar o comportamento violento do indivíduo. As concepções em torno deste tema são diretamente influenciadas por questões pessoais, ambientais e históricas, tais como o panorama político, eco83
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nômico, social e cultural. Com efeito, conforme dados do Centro de Saúde de Liverpool, os níveis de violência têm grande relação com os fatores modificáveis, entre eles, gênero, renda, pobreza, álcool e relações instáveis no âmbito familiar. O termo “violência” tem sua origem no latim (violentia) sendo sua tradução mais próxima ‘impetuosidade’, contudo, nessa sua origem essa palavra está relacionada com o termo “violação” (violare). Ao procurar tal termo na maioria dos dicionários de língua portuguesa encontra-se que “violência” pode ser tanto a qualidade do que é violento como o cerceamento da justiça e do direito. Além disso, é possível constatá-lo ainda como ‘ação ou efeito de empregar força física ou intimidação moral contra alguém’ e ‘exercício injusto ou discricionário’. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), a violência é definida como o “uso intencional de força física ou poder, ameaçados ou reais, contra si mesmo, contra outra pessoa ou contra um grupo ou comunidade, que resulte ou tenha grande probabilidade de resultar em ferimento, morte, dano psicológico, mau desenvolvimento ou privação” (Krug et al., 2002). Neste contexto, é notório que não há apenas uma percepção do que seja violência, mas sim inúmeros conceitos que estão diretamente ligados ao local, ao contexto social e ao tempo histórico do agressor. A violência não atinge somente a integridade física, mas também afeta a saúde psíquica e emocional daqueles que estão sofrendo a agressão, seja num ambiente público seja dentro da própria residência do agredido. Dessa forma, vislumbra-se que violência tem um amplo significado e pode se manifestar de diversas maneiras, desde guerras até conflitos étnico-religiosos e preconceito. Ademais, consegue-se identificar várias modalidades de violência, como violência sexual, contra o idoso, contra mulher, contra pessoas com deficiência, entre outros. A violência, como apontado anteriormente, não é sempre física, ela pode ser verbal – uma intimidação moral, por exemplo –, causando a vítima abalos psíquicos por vezes, piores de serem esquecidos, que os danos físicos. A OMS identifica três grandes categorias em que a violência, independente de ser ela instrumental ou reativa, pode ser dividida: 1) violência autodirigida, 2) violência interpessoal e 3) violência coletiva. Outra divisão possível seria em relação aos atos violentos. Nesse quesito, as condutas violentas podem ser dividida em físicas, psicológicas, emocionais e sexuais.
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Vale destacar, ainda, que essa categorização é ligeiramente diversa das definições trazidas pela Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (Unesco) sobre os tipos de violência. Para essa organização a violência pode ser separada entre violência direta (física, sexual, negligência), que resultam em danos irreparáveis à vida do agredido; violência indireta, sendo condutas que implicam num abalo emocional e psíquico; violência econômica, representada por atos de criminalidade contra bens e causam danos ao patrimônio e; violência moral ou simbólica, abrangendo as relações de poder interpessoais ou institucionais, sendo uma violência pela autoridade. A primeira modalidade de violência, qual seja autodirigida é relacionada a um comportamento suicida, tanto em pensamentos como em tentativas de suicídio, ou um auto abuso, como atos de automutilação. É uma conduta exclusivamente direcionada contra si própria. A violência coletiva, por sua vez, quando subdividida pode apontar os possíveis motivos para a prática dos atos violentos. Assim, essa violência pode ser tanto estrutural como econômica. É praticado por grupos maiores como estados, grupos políticos organizados, grupos de milícias e organizações terroristas. Nesse caso se enquadram crimes de ódio, atos terroristas, políticas públicas rígidas causando mais desvantagem social, entre outros. Ademais, tem-se a violência interpessoal, aquela praticada por outro indivíduo ou por um pequeno grupo de indivíduos contra terceiro(s), sendo classificada entre violência familiar ou conjugal, quando os atos violentos são praticados dentro do lar, e violência comunitária, representada por condutas violentas que acontecem em lugares públicos. A violência familiar é aquela ocorrida dentro do próprio lar e inclui maus tratos de menores, de pessoas idosas e violência doméstica. Ademais, quando esse tipo de violência ocorre no meio familiar, as consequências psicológicas podem afetar os envolvidos a longo prazo, principalmente as vítimas. A violência comunitária, de forma similar, ocorre contra jovens, estranhos, em ambientes públicos (SCHECHTER et al., 2011)
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2.2 Violência Doméstica Contra Mulher e a Lei n. 11.340/2006 Como visto anteriormente, a violência doméstica se enquadra na segunda categoria de violência, qual seja, violência interpessoal. A visão mais comum associada a esse tipo de conduta é de um parceiro agredindo sua companheira de vida por motivos que variam desde sentimento de posse sobre a pessoa até pelas escolhas feitas pela companheira. Contudo, é necessário frisar que, apesar desse tipo de violência ser recorrente nas relações amorosas esse não é o único cenário em que ela ocorre. Assim, a violência doméstica e familiar pode ocorrer com pessoas que não possuem parentesco. Segundo a pesquisa “Mulheres Brasileiras nos Espaços Público e Privado”, estima-se que, no Brasil, a cada dois minutos, cinco mulheres são agredidas, sendo o parceiro responsável por mais de 80% dos casos reportados. Entretanto, mesmo havendo dados tão alarmantes, a gravidade dessa situação não é devidamente reconhecida. Esse não reconhecimento é devido aos mecanismos culturais e históricos que permeiam até hoje nossa sociedade, silenciando-a para esses casos de desigualdade de gênero. A violência doméstica contra a mulher pode ser entendida como qualquer ação ou até omissão baseado no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial, conforme disposto no artigo 5º da Lei n. 11.340/06. Art. 5º. Para os efeitos desta Lei, configura violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial:I - no âmbito da unidade doméstica, compreendida como o espaço de convívio permanente de pessoas, com ou sem vínculo familiar, inclusive as esporadicamente agregadas; II - no âmbito da família, compreendida como a comunidade formada por indivíduos que são ou se consideram aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou por vontade expressa; III - em qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha convivido com a ofendida, independentemente de coabitação. Parágrafo único. As relações pessoais enunciadas neste artigo independem de orientação sexual (BRASIL, 2006).
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Antes da Lei n. 11.340/06, conhecida também como Lei Maria da Penha, os casos de violência doméstica eram resolvidos nos Juizados Especiais, haja vista ser, à época, considerado um crime de menor potencial ofensivo. O que a lei tem feito, dessa forma, é tirar esse tipo de conduta da invisibilidade para que a mulher não seja mais sacrificada em detrimento da chamada “harmonia familiar” pretendida pelos operadores de direito antigamente. Com efeito, o que a Lei Maria da Penha faz é mostrar que o Estado brasileiro reconhece os papéis dados ao gênero feminino, bem como que as posições atribuídas aos homens geram vulnerabilidade às mulheres, sendo elas mais expostas aos tipos de violência apontados ao longo do trabalho. A violência doméstica não escolhe idade, classe social nem raça, ou seja, toda mulher pode sofrer violência, sendo ela branca/negra, jovem, com deficiência, vivendo no campo ou na cidade. Isso ocorre devido ao processo social, histórico e cultural naturalizado no Brasil, cujas definições de gênero masculino e feminino estão carregadas de desigualdades. No ano de 1994, o Brasil, assinou o documento nominado de “Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher”, também conhecido como Convenção de Belém do Pará. O dito documento tem a definição do que a violência contra a mulher, além de explicitar as formas como essa violência pode assumir na sociedade, bem como os locais em que esse fenômeno pode ocorrer. Foi baseada nessa Convenção que a definição descrita na Lei Maria da Penha sobre violência contra a mulher foi escrita. Como pode ser notado na Lei n. 11.340/2006 orienta para caminhos e formas para evitar e punir a agressão. Ademais, ela ainda indica a responsabilidade dos órgãos públicos competentes que tem o fim de ajudar a mulher que está sofrendo a violência. Essa lei introduziu a possibilidade de intervenção do Estado nessa situação de violência doméstica a fim de proteger a mulher das agressões. Segundo Marcia Teixeira, promotora de Justiça do Ministério Público da Bahia, as medidas protetivas são os principais recursos da Lei quando a situação se encontra num momento em que não há mais como adotar opções alternativas para a prevenção das futuras agressões. Ou seja, se torna uma ferramenta utilizada nos estágios em que há uma conjuntura irreversível a concretização da segurança da mulher e funciona como um freio ao ciclo de violência doméstica.
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2.3 Violência como Forma de Dominação Essencial ao trabalho explicar também aquilo que está por trás da violência doméstica, ou seja, além de caracterizá-la, como feito no item anterior, e entender quais são os tipos de violência e que nela estão presentes tanto os fatos que ocorrem dentro e fora do lar, desde que presente entre as partes envolvidas uma relação doméstica, familiar ou de afetividade, e estarem as mesmas em relação de poder e submissão (DIAS, 2007), é importante entender o que leva à prática dessa violência, bem como sua origem. Ressalta-se, primeiramente, que o presente trabalho se refere apenas aos casos em que a violência doméstica tenha como vítima, exclusivamente, as mulheres (DIAS, 2007), não importando, por outro lado, se é homem ou mulher o sujeito ativo, embora comumente parta-se do pressuposto, que o agressor é um homem. Superadas essas questões, passa-se a explicar os motivos pelos quais entende-se que a violência doméstica constitui em conflito de gênero, composta por dois polos de poder: o forte, representado, geralmente, pelo gênero masculino, e o fraco, correspondente ao gênero feminino (MONTENEGRO, 2015). Isso decorre da mentalidade patriarcal e androcêntrica que permeia a sociedade e se manifesta em uma supervalorização do homem – personagem protagonista em diversos âmbitos sociais – em detrimento da mulher – vista, quase sempre, como figura subsidiária, que tem direito a participar, apenas, como coadjuvante –. Sobre essa ordem social, explica Pierre Bourdieu: A força da ordem masculina se evidencia no fato de que ela dispensa justificação: a visão androcêntrica impõe-se como neutra e não tem necessidade de se enunciar em discursos que visem a legitimá-la. A ordem social funciona como uma imensa máquina simbólica que tende a ratificar a dominação masculina sobre a qual se alicerça: é a divisão social do trabalho, distribuição bastante estrita das atividades atribuídas a cada um dos dois sexos, de seu local, seu momento, seus instrumentos; é a estrutura do espaço, opondo o lugar de assembléia ou de mercado, reservados aos homens, e a casa, reservada às mulheres (BOURDIEU, 2010, p. 18).
Na sociedade brasileira, assim como em tantas outras, a dinâmica familiar estruturou-se em papéis distintos aos homens e às mulheres. Enquanto aos primeiros fica associada a imagem de virilidade, liberdade e autonomia, às segundas são
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depositados o papel de dever e reprodução da relação. Além disso, se para os homens existe um universo fora de casa, para as mulheres resta o espaço privado (TAVARES, 2017). Em outras palavras, pelas crenças tradicionalmente enraizadas na cultura brasileiras e que ainda ecoam nas relações sociais, o homem pode estudar, trabalhar e batalhar pela sua carreira, ao passo que a mulher deve se satisfazer com os serviços domésticos, cuidados da casa e do marido, ou seja, com o “papel de mãe”. É inegável que, na atualidade, cada vez mais mulheres buscam inverter esse quadro e batalham para estar presentes nas universidades e no mercado de trabalho, bem como ocupar papéis culturalmente preenchidos pelos homens. Mas não é possível refutar, também, a persistência dessa desigualdade, de forma sutil ou explícita, como por exemplo, verifica-se na disparidade salarial entre homens e mulheres que ocupam o mesmo cargo em uma mesma empresa. Ocorre que, quando o homem, apontado ao longo da história como detentor de poder e representante do sexo dominante, percebe que está perdendo essa posição na relação doméstica, acaba fazendo uso da violência com o objetivo de sentir-se, novamente, detentor desse “poder” (MONTENEGRO, 2015). Sobre o assunto, explica Marilia Montenegro: “esse, talvez, seja o maior significado da violência doméstica: sua utilização como último recurso do poder contra o chamado “sexo frágil” que se rebela, ou seja, a busca incessante do sexo masculino pelo poder perdido” (MONTENEGRO, 2015, p. 180). Ainda sobre o assunto, assevera Maria Lúcia Karam Os resquícios da ideologia patriarcal, da histórica desigualdade, da discriminatória posição de subordinação da mulher, naturalmente, se refletem nas relações individualizadas. Mesmo onde registrados os significativos avanços no campo das relações entre os gêneros, é ainda alto o número de agressões de homens contra mulheres no âmbito doméstico, a caracterizar a chamada ‘violência de gênero’, isto é, a violência motivada não apenas por questões estritamente pessoais, mas expressando a hierarquização estruturada em posições de dominação do homem e subordinação da mulher, por isso se constituindo em manifestações de discriminação (KARAM, 2016).
Talvez, num primeiro momento, seja difícil visualizar a questão de poder e superioridade inerente à violência doméstica, mas, isso fica mais evidente na reflexão trazida por Vera Regina Pereira de Andrade, quando, mencionando a obra
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de Jolande Uit Beijerse e Renée Kool, denuncia que, para o estuprador, muito mais relevante que a satisfação do prazer sexual, está a importância da agressão (ANDRADE, 2003). Evidente, portanto, que o que se busca com a mencionada atitude não é a satisfação pessoal, caso contrário o objetivo, o foco do ofensor estariam em satisfazer seu desejo sexual, ficando, assim, indiferente ao que o outro está passando. Mas ocorre que, na maior parte dos casos de violência doméstica o agressor se importa, justamente, com o sofrimento e com a situação de inferioridade e humilhação que a vítima, nesse caso a mulher, está vivenciando. Em que pese nos últimos anos tenham ocorrido algumas vitórias femininas no que tange à equiparação aos direitos dos homens, há um longo caminho, ainda, a ser percorrido para que se possa falar em igualdade de gênero. Embora teoricamente essa igualdade exista desde 1988 com a promulgação da Constituição Federal, que preceitua, no seu art. 5º, inciso I, serem iguais homens e mulheres em direitos e obrigações, na prática é uma realidade muito distante. Basta lembrar, por exemplo, que existe a Lei 11.340 (promulgada em 2006, muito depois da Constituição Federal) que precisa dar um tratamento diferenciado à violência doméstica praticada contra a mulher. Ressalta-se, entretanto, que é apenas um exemplo para ilustrar a desigualdade de gênero, mas não se faz qualquer análise acerca da sua necessidade, bem como da sua efetividade, neste trabalho. À parte esse julgamento de mérito, a mera existência de um tratamento diferenciado previsto legalmente como tentativa de minimizar a desigualdade que objetivamente existe na sociedade já é capaz de demonstrar essa realidade acima descrita. Se a mulher já enfrenta diariamente essa dificuldade, por ser vista sempre como sexo frágil, parte mais fraca e dependente da relação, a situação só se agrava quando trata-se de mulher com alguma deficiência.
2.4 Violência Doméstica Contra a Mulher com Deficiência Inicialmente, antes de se adentrar na discussão da violência doméstica perpetrada contra as mulheres com deficiência, faz-se necessário compreender alguns aspectos relacionados às pessoas com deficiência, bem como compreender
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a conjuntura em que se iniciou o processo de fortalecimento e empoderamento dessas mulheres, para então ser possível analisar o tema em sua totalidade. Segundo a Organização Mundial de Saúde (Programa de Ação Mundial para as Pessoas com Deficiência, 1982), deficiência é toda perda ou anomalia de uma estrutura ou função psicológica, fisiológica ou anatômica. Já sob a ótica dos direitos humanos, deve-se compreendê-la como um modo de vida diferente. Sua experiência não advém de lesões ou restrições funcionais, mas sim da inserção de pessoas com deficiência em contextos sociais marcados por atitudes e barreiras físicas e comunicacionais que obstaculizam sua integração social. Na área do estudo sobre a deficiência essas visões se materializam pelos diferentes modelos de entendimento acerca da deficiência e da pessoa com deficiência. O primeiro deles e mais antigo, pautado em princípios religiosos, entendia a deficiência enquanto um castigo divino, que possuía causa sobrenatural. Após, com o advento da medicina, a deficiência passou a ser vista a partir de valores essencialmente biomédicos, de modo a concentrar a discussão na lesão e no “corpo lesionado”, cuja consequência natural seria a deficiência. Assim, um corpo com “sequelas e limitações” apresenta uma desvantagem inerente, responsável por restringir a participação social daqueles sujeitos. Segundo este modelo, a segregação enfrentada pelas pessoas com deficiência seria fruto, unicamente, de suas restrições físicas, intelectuais ou sensoriais, de forma a indicar o problema na própria pessoa e as consequências em si e em sua família, isentando, assim, a sociedade de qualquer tipo de responsabilidade pela discriminação enfrentada. Com o decorrer do tempo e o fortalecimento de alguns movimentos sociais de luta pela defesa dos direitos das pessoas com deficiência, passou-se a uma nova compreensão sobre o tema: o modelo social. Este, ao contrário do modelo médico, compreende a deficiência como o resultado da participação da pessoa com deficiência em uma sociedade discriminatória, ou seja, é uma criação coletiva entre os indivíduos e a sociedade. Sobre o tema, a autora Debora Diniz escreveu: Se para modelo médico o problema estava na lesão, para o modelo social, a deficiência era o resultado do ordenamento político e econômico capitalista, que pressupunha um tipo ideal de sujeito produtivo. Houve, portanto, uma inversão na lógica da causalidade da deficiência entre o modelo 91
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médico e social; para o primeiro, a deficiência era resultado da lesão, ao passo que, para segundo, ela decorria dos arranjos sociais opressivos às pessoas com lesão. Para o modelo médico, lesão levava a deficiência; para o modelo social, sistemas sociais opressivos levavam pessoas com lesões experimentar a deficiência (DINIZ, 2007, p. 23).
No entanto, ainda sobre o modelo social da deficiência, importante consignar que este se deu em dois diferentes momentos, com abordagens bem distintas. O primeiro deles localizado historicamente no período de implementação do capitalismo enquanto sistema econômico majoritário, almejava romper a ideia de que a pessoa com deficiência não poderia estar no mercado de trabalho. Esse movimento liderado por homens com lesão medular pretendia retirar do “corpo deficiente” a impossibilidade produtiva, entendendo-a como responsabilidade dos meios de produção que não eram acessíveis, por não permitirem, devido à existência de barreiras arquitetônicas, que sujeitos chegassem até as indústrias e exercessem sua atividade laboral. Assim, o objetivo principal da primeira geração do modelo social era a busca por autonomia e independência. Com a segunda geração, essas premissas que por muito tempo mantiveram-se livres de críticas começaram a ser questionadas. As teóricas feministas foram as primeiras a indicar o paradoxo que tais valores representavam, visto que ao mesmo tempo em que se criticava o capitalismo e a tipificação do sujeito produtivo como aquele que não possui deficiência, não contemplavam discussões mais complexas sobre a própria organização social pautada no trabalho e na independência. Elas levantaram a bandeira da subjetividade e trouxeram para discussão temas como o cuidado, a dor, a dependência e a interdependência. Entendimento este que nas palavras da autora Debora Diniz, significa dizer que: […] foram as feministas que mostraram que, para além da experiência da opressão pelo corpo deficiente, havia uma convergência de outras variáveis de desigualdade, como raça, gênero, orientação sexual ou idade. Ser uma mulher deficiente ou ser uma mulher cuidadora de uma criança ou adulto deficiente era uma experiência muito diversa daquela descrita pelos homens com lesão medular que iniciaram o modelo social da deficiência. Para as teóricas feministas da segunda geração, aqueles primeiros teóricos eram membros da elite dos deficientes, e suas análises reproduziam sua inserção de gênero e classe na sociedade (DINIZ, 2007, p. 61-62).
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Assim, a partir dessa mudança paradigmática passou-se a entender que dentro do universo de pessoas com deficiência, ao mesmo tempo em existe uma identidade comum de luta das pessoas com deficiência, no sentido de reconhecer os direitos desses sujeitos, existem também outros fatores e características importantes próprios de cada indivíduo em sua singularidade, como, dentre outros, as questões de raça, gênero e condição econômica. Nesse sentido, feita essa análise inicial, entende-se que a pessoa com deficiência, como próprio nome já diz, antes de ser “deficiente” é uma pessoa e, por isso, por ela perpassam diversas outras questões que não só a “deficiência”. Dessa forma, ao se falar em violência doméstica contra a mulher e especificamente contra a mulher com deficiência, todos esses aspectos acima mencionados devem ser considerados. Como já dito, o conceito de violência doméstica aqui adotado entende que esta ocorre quando há entre as partes envolvidas uma relação doméstica, familiar ou de afetividade, bem como uma relação de poder e submissão, o que no caso das mulheres com deficiência acaba sendo agravado pelas características que lhe são peculiares, conforme se verá agora. Primeiramente quando se fala em violência doméstica contra mulheres com deficiência física mais severas e também com deficiência intelectual grave, um fator que potencializa a relação de poder existente entre esses sujeitos é que o agressor é, por vezes, também o cuidador, ou seja, é aquele que auxilia a mulher em tarefas do dia-a-dia como se vestir, se locomover de um cômodo para outro, comer e também em cuidados íntimos, como ir ao banheiro, tomar banho, entre outros. É difícil visualizar nessas situações como a mulher fará uma denúncia da violência que sofre se precisa da ajuda do agressor para pegar um telefone ou ir até uma delegacia? Ademais, não é incomum que a dependência não seja só física, mas também econômica, já que algumas dessas mulheres não conseguem trabalhar, seja por características próprias ou por impossibilidades advindas do meio ambiente e da sociedade, como as barreiras arquitetônicas e atitudinais. Nesses casos o afastamento do sujeito sem que haja uma complementação da renda ou algum outro suporte extrafamiliar inviabilizaria o seu sustento. Outro fator importante é que quando essas mulheres vítimas de violência doméstica são também pessoas com deficiência intelectual, além da perda de 93
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autonomia sobre o próprio corpo - o que por si só acarreta uma vulnerabilidade maior, como já visto - essas mulheres também acabam sendo subjugadas em suas manifestações e posicionamentos. Nesses casos as denúncias de violência quando exteriorizadas, por vezes, são silenciadas e ignoradas, sob a desculpa de que “ela não sabe do que está falando” ou “ela não entendeu exatamente o que aconteceu naquela situação, confundiu as coisas”. Por fim, deve-se ainda considerar que as pessoas com deficiência encontram tantas barreiras para sua inclusão na sociedade, que em alguns casos essas acabam vivendo em isolamento, presas dentro de casa, o que faz com que essas mulheres com deficiência sejam mais vulneráveis, já que acabam tendo pouco ou nenhum contato com outras pessoas que não àquelas do seu seio familiar, o que em casos de violência doméstica certamente agrava ainda mais a situação. Conclui-se então que o movimento de luta inaugurado com modelo social é extremamente importante enquanto pretende garantir o direito das pessoas com deficiência e sua autonomia, no entanto, faz-se necessário compreender que as pessoas com deficiência são diversas e singulares, devendo, nesse sentido, serem respeitadas em sua totalidade. No que concerne a violência doméstica cometida contra as mulheres com deficiência, além de fatores relacionados ao gênero existem fatores intrínsecos ao corpo que precisam ser consideradas quando se pensa no direito de todas as mulheres, ao corpo e a sua integridade física e psíquica.
Considerações Finais Em um primeiro momento importante consignar que o presente estudo entende que existem vários conceitos e percepções acerca do que é violência, bem como que esta se dá sob diversas formas e envolve diversos sujeitos. No entanto, não se pretende com este limitar o entendimento ou definir as situações em que e entre quem a violência ocorre, mas sim compreender e problematizar as peculiaridades inerentes a violência doméstica cometida contra as mulheres com deficiência. No que concerne à violência doméstica, a Lei n. 11.340 - Lei Maria da Penha - teve um importante papel ao mostrar que o ordenamento jurídico brasileiro reconhece a existência de uma cultura machista que atribui papéis diferentes ao gênero feminino e masculino e que as posições atribuídas aos homens geram maior vulnerabilidade às mulheres, sendo elas mais expostas aos tipos de 94
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violência apontados ao longo deste artigo. Sobre o assunto, é possível, por força do artigo 5º da referida lei, compreender a violência doméstica contra a mulher como qualquer ação ou omissão baseada no gênero que acarrete à mulher lesão, morte, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial. Nesse sentido, a violência doméstica se constitui enquanto conflito de gênero, pois entre as partes há dois polos de poder: o forte, representado geralmente pelo gênero masculino, e o fraco, correspondente ao gênero feminino. Isso decorre, como já mencionado, da mentalidade sexista e patriarcal da sociedade, que supervaloriza o homem – personagem protagonista em diversos âmbitos sociais – em detrimento da mulher – que é vista na maioria das vezes de modo subsidiário, que participa apenas enquanto coadjuvante. Logo, ao se constatar que os casos de violência doméstica contra a mulher precisam de uma tutela e de um olhar diferenciado porquanto representam uma agressão entre sujeitos que, pelo seu gênero, estão em situação de desigualdade, quando se fala em mulher com deficiência essa relação de poder é ainda mais acentuada. No decorrer do artigo foram apresentados os diferentes modos de percepção e compreensão acerca da deficiência e da pessoa com deficiência. Esses, no início, eram associados a questões religiosas sendo a deficiência considerada um castigo divino. Já no período pós revolução industrial passaram a ser vistos sob o olhar biomédico, momento em que se procurava “a cura”. Por fim, com o modelo social da deficiência, hoje compreende-se que são uma construção social, na medida em que devido a existência de diversas barreiras, sistemas sociais opressivos levam pessoas com lesões a experimentar a “deficiência”. Quanto à este ponto, importante esclarecer que os avanços obtidos na área dos estudos sobre a deficiência ainda encontram-se presos aos muros da academia, de modo que não foram incorporados pela sociedade em sua totalidade. Ademais, sobre a participação da mulher com deficiência nesse processo de organização e luta pelos direitos das pessoas com deficiência, conforme já dito, esta ficou mais evidente e representativa na segunda geração do modelo social da deficiência, momento em que se questionou a busca pela autonomia enquanto princípio único norteador do movimento, de modo a incorporar na discussão questões como a dor, a interdependência e, principalmente, outros pontos transversais à vida desses sujeitos, como raça, gênero, dentre outros.
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Dessa forma, as teóricas feministas que estudam deficiência e as mulheres que a vivenciam no seu dia-a-dia (seja por terem deficiência ou por cuidarem de outras pessoas com deficiência), defendem que as pessoas com deficiência, para além de um “corpo com lesão”, possuem diversas outras características que devem ser respeitadas e compreendidas em sua totalidade. Ao se fazer essa reflexão, permitiu-se que outras questões como, por exemplo, a violência doméstica contra as mulheres com deficiência, fossem analisadas considerando todas as peculiaridades inerentes à situação. Neste caso, abrange não só o gênero, mas também outros aspectos relacionados à própria deficiência como a diminuição da credibilidade de denúncias feitas por mulheres com deficiência intelectual, bem como o aumento da dependência com o agressor por mulheres com pouca mobilidade, e outros fatores ligados à mulher deficiente que agravam mais a situação de vulnerabilidade. Conclui-se então de acordo com todos pontos discutidos neste trabalho que sim, as mulheres com deficiência sofrem violência doméstica sob uma forma diferente das outras mulheres, e que, portanto, precisam ser vistas em sua totalidade e singularidade.
Referências ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Sistema Penal Máximo x Cidadania Mínima. 1ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003. BRASIL. Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006. Institui a Lei Maria da Penha. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/ l11340.htm. Acesso em: 04/07/2017. BOURDIEU, Pierre. A Dominação Masculina. Tradução: Kuhner, Maria Helena. 7ª ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2010. DAY, V. P.; TELLES, L. E. B.; ZORATTO, P. H. et al. Violência doméstica e suas diferentes manifestações. In: Revista de Psiquiatria. Rio Grande do Sul, Apr. 2003, vol.25 suppl.1.ISSN 0101-8108.
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DIAS, Maria Berenice. A Lei Maria da Penha na Justiça: a efetividade da Lei 11.340/2006 de combate à violência doméstica e familiar contra a mulher. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. DINIZ, Debora. O que é deficiência. São Paulo: Brasiliense, 2007. IZUMINO, Wânia Pasinato. Justiça e violência contra a mulher: o papel do sistema judiciário na solução dos conflitos de gênero. 2ª ed. São Paulo: Annablume: FAPESP, 2004. KARAM, Maria Lúcia.Os paradoxais desejos punitivos de ativistas e movimentos feministas. 2015. Disponível em: . Acesso em: 06/07/2017. Krug et al., World report on violence and health, Organização Mundial da Saúde, Genebra. 2002. ISBN 9241545615. MONTENEGRO, Marilia. Lei Maria da Penha: uma análise criminológico-crítica. 1ª ed. Rio de Janeiro: Revan, 2015 Schechter DS, Willheim E, McCaw J, Turner JB, Myers MM, Zeanah CH (2011). «The relationship of violent fathers, posttraumatically stressed mothers, and symptomatic children in a preschool-age inner-city pediatrics clinic sample». Journal of Interpersonal Violence. TAVARES, Márcia Santana. Com açúcar e sem afeto: a trajetória de vida amorosa de mulheres das classes populares em Aracaju/SE. In: Serviço Social & Sociedade, v. 101, p. 121-145, 2010. Disponível em: . Acesso em:06/07/2017 WHO / Liverpool JMU Centre for Public Health, “Violence Prevention: The evidence”, 2010.
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Direitos dos Animais: uma Questão Feminista? Isabella Onzi Flores1 RESUMO: A sociedade humana está organizada em um sistema patriarcal desde a pré-história. Essa estrutura é baseada na dominação de vários grupos sociais. O presente trabalho busca salientar a origem comum da opressão das mulheres e dos animais não humanos. Através de uma abordagem interseccional e de uma visão de justiça social holística e integrativa, mostra-se como os movimentos feministas e o de libertação animal devem trabalhar juntos para destituir o sistema que os oprime. Palavras-chave: Direitos dos Animais; Feminismo; Interseccionalidade; Justiça social.
Introdução O feminismo pode ser definido como “a tomada de consciência das mulheres, como coletivo humano, da opressão, dominação e exploração de que foram e são objeto por parte do coletivo dos homens no seio do patriarcado” (GARCIA, 2015, p. 15). Entende-se, portanto, que o ponto central de contestação é o fato de que as mulheres são sistematicamente e institucionalmente oprimidas. Dessa forma o objetivo central é o desmantelamento do patriarcado, o qual é a organização sistemática da supremacia masculina. Nessa hierarquia, o homem branco está no topo, todos os demais são considerados inferiores. O patriarcado cria falsos dualismos, que fornecem o framework para a dominação e a subordinação; sustenta a estrutura social na qual certos grupos detêm o poder a partir do dispêndio de outros (KEMMERER, 2011). Essa polarização é completa: homem/mulher, caucasianos/demais raças, humanos/animais, 1
Acadêmica do Curso de Graduação em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC e estudante da matéria Direito e Feminismos.
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civilização/natureza, razão/emoção velho/novo (LORDE, 2000), os primeiros são sujeitos de direito, são bons, merecedores e capazes -- o outros são suas antíteses. Historicamente, portanto, as mulheres e os animais têm sido considerados menos inteligentes, menos racionais e, portanto, mais primitivos do que os homens. A inferiorização das mulheres e dos não humanos têm permitido a exploração dos mesmos. Através dos anos de luta, no entanto, as mulheres obtiveram conquistas significativas: direito ao voto, direito a participação política, possibilidade de exercer a vida profissional fora do âmbito doméstico, proteção a suas integridades corporais, etc. Embora tais reivindicações não sejam o suficiente, já que várias delas continuam a ser diariamente violadas, sobre a situação dos animais não humanos não se observou avanços da mesma magnitude. A violência e a exploração dos animais não humanos não encontram comparação, em termos quantitativos e qualitativos, na esfera humana. São 60 a 70 bilhões de animais terrestres (COMPASSION IN WORLD FARMING, 2013) e 0,43 a 1,14 trilhões de animais marinhos para alimentação (MOOD; BROOKE, 2010, p. 14) 25 são executados a cada ano, somente destinados à alimentação humana; mais de 100 milhões de outros animais (sejam cães, gatos, primatas não humanos, ratos, coelhos, sapos, hamsters, pássaros, etc.) são torturados e assassinados em laboratórios públicos e privados todos os anos (PEOPLE FOR ETHICAL TREATMENT OF ANIMALS (PETA), 2016). Milhões de vacas, ovelhas, martas, coiotes e outros animais são explorados e mortos em fazendas e na natureza por sua pele todos os anos (SMITH, 2014, p. 269); o número de coelhos ultrapassa um bilhão (FOOD AND AGRICULTURE ORGANIZATION OF THE UNITED NATIONS, 1997, p. 165). Elefantes, tigres, ursos, cavalos, touros, golfinhos, orcas e outros são brutalmente espancados e obrigados a fazer truques para entretenimento humano (SMITH, 2014, p. 270). Animais de estimação “de raça” são confinados e forçados a reproduzir, tem as características de sua prole selecionadas artificialmente por interferência humana – os indesejados são descartados. Os animais não humanos “são sistematicamente marginalizados, objetificados, e explorados por seres humanos de ambos os sexos, de todas as cores, idade, habilidades e classe sociais1 (KEMMERER, 2011, p.16)”.
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Esse número não inclui animais capturados em pescas clandestinas ou aqueles que escapam da rede mas são mortos pelo estresse e machucados como consequência processo de pesca (MOOD; BROOKE, 2010, p. 14).
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Nesta pesquisa, mostrar-se-ão as relações entre os sistemas de opressão machistas e especistas. Através de uma abordagem interseccional e de uma visão de justiça social holística e integrativa, apontar-se-á que os movimentos feministas e o de libertação animal devem trabalhar juntos para destituir o sistema que os oprime. Utilizou-se o método o dedutivo e monográfico e a técnica bibliográfica e documental.
2. Sexismo e Especismo: Produtos do Patriarcado O patriarcado é um sistema social no qual homens detêm o poder primário: ocupam as posições de liderança política, autoridade moral, privilégio social e controle da propriedade (FERGUSON, 1999, p. 1048). É uma forma de organização política, econômica, religiosa, social baseada na ideia de autoridade e liderança do homem, no qual se dá o predomínio dos homens sobre as mulheres; do marido sobre as esposas, do pai sobre a mãe, dos velhos sobre os jovens, e da linhagem paterna sobre a materna. O patriarcado surgiu da tomada de poder histórico por parte dos homens que se apropriaram da sexualidade e reprodução das mulheres e seus produtos: os filhos, criando ao mesmo tempo uma ordem simbólica por meio dos mitos e da religião que o perpetuam como única estrutura possível (REGUANT, 1996, p. 20).
A origem dessa organização é simultânea a divisão do trabalho baseada no gênero: homens-caçadores e mulheres-coletoras. Em algum momento pré-histórico alguns homens compreenderam que poderiam reduzir o perigo e aumentar a segurança aparente de suas comunidades ao matar predadores que não os ameaçavam e que, ao fazê-lo, ascendiam socialmente em seu grupo. Assim, a classe construtora de armas autolegitimou-se como a responsável pela proteção. Tal consolidação de poder e status fez nascer à cultura do terror: os demais membros da comunidade passaram a repudiar os animais não humanos e a temer os humanos que os matavam (CANTOR, 2014). As primeiras sociedades humanas que se organizavam a partir da matriarca eram igualitárias, engajadas em atividades sociais e de lazer, suas dietas eram primordialmente baseadas em plantas. Acredita-se que a vida dos humanos originais girava em torno brincar, acasalar, forrar plantas para comer, meditar e 101
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andar a procura de novos lugares, sempre alertas aos perigos eminentes (através de um sistema coletivo e rotativo de guarda) – a caça de grandes animais foi uma inovação verdadeiramente radical (NIBERT, 2014), ela acabou com essa era caracteristicamente harmônica (CANTOR, 2014). A partir da sedentarização das populações humanas, processo denominado de Revolução Neolítica (CHILDE, 1936), essa divisão social acentuou-se e formalizou-se: instaurou-se uma dicotomização entre os homens de um lado e as mulheres,crianças, estrangeiros, animais não humanos e a natureza no outro extremo. O tratamento destinado aos animais não humanos tornou-se o padrão de como lidar com indivíduos recém-conquistados. A aceitação e a institucionalização dessa exploração abriram “a porta para formas semelhantes de se tratar outros seres humanos, assim iniciou-se o caminho que levou a humanidade a atrocidades como a escravidão humana e do Holocausto” (PATTERSON, 2009, p. 33)3. Com a evolução da civilização humana, o patriarcado foi rapidamente enraizando-se. O registro mais antigo de uma formalização de tal pensamento chama-se Scala Naturae ou Grande Cadeia dos Seres em latim (KRIKMANN, 2007). Essa teoria, extraída de diálogos platônicos em Aristóteles, apresenta uma hierarquização linear, contínua e progressiva dos seres: Deus ocupa o topo, seguido por anjos, homens (homens, mulheres, escravos, nessa ordem), animais não humanos, plantas e por fim minerais. Tal lógica foi revisitada por Agostinho de Hipona (popularmente conhecido como Santo Agostinho) e Tomás de Aquino, os quais reforçaram essa ideia no pensamento cristão o qual, por influência bíblica já compreendia as mulheres e os animais não humanos como seres inferiores: A Bíblia afirma que toda a natureza (incluindo a mulher) existe para o homem. O homem é convidado a subjugar a Terra e dominar todos os seres vivos que nela vivem, tudo o que existe é “para eles” “a carne”. A mulher é criada para ser a ajudante do homem. Isso responde a questão filosófica: qual é o lugar que o homem ocupa na natureza? Tudo o que é, é recurso para sua exploração. A partir desta visão de mundo, os homens vêem com olhos arrogantes que tudo se organiza para seus próprios interesses (FRYE, 1983, NÃO TEM PAGINAÇÃO)4. 3
Tradução elaborada pela autora; texto original: “[...] la puerta a similares modos de tratar a los otros seres humanos, iniciándose el camino que llevó a la humanidade a atrocidades tales como la esclavitud humana y el Holocausto”.
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Tradução elaborada pela autora; texto original: “The bible says that all of nature (including woman) exist for man. Man is invited to subdue the earth and have domination over every living thing on it,
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Essa hierarquização dos seres transcendeu tempo e espaço: obscureceu a Idade Média, foi timidamente refutada durante o Renascimento, somente com o iluminismo, observa-se a formação de um movimento social relativamente conciso. O livro “Uma Reivindicação pelos Direitos da Mulher5” escrito por Mary Wollstonecraft em 1792 é considerado o primeiro texto feminista (HAMAD, 2014), nele a autora contrariava a posição aceita na época de que as mulheres não deveriam receber educação formal. Wollstonecraft argumentava que as mulheres são seres humanos merecedoras dos mesmos direitos fundamentais concedidos aos homens. Replicando a obra, Thomas Paine escreveu “Uma Reivindicação pelos Direitos dos Brutos6”. Neste texto satírico Paine argumentava que a ideia de uma mulher ter direitos era tão ridícula, que, nessa lógica, deveria-se estender direitos aos “animais, vegetais, minerais e até mesmo o mais aparentemente desprezível torrão da terra (HAMAD, 2013). Historicamente, mulheres, animais e crianças foram legalmente definidos como propriedade dos homens. O patriarcado (onde os homens controlam as mulheres) e o pastoralismo (onde os homens controlam os animais não-humanos) “são justificados e perpetuados pelas mesmas Ideologias e práticas” (“Sexismo”). Por exemplo, tanto as mulheres como os animais historicamente foram considerados menos inteligentes, menos racionais e, portanto, mais primitivos e mais próximos da natureza do que os homens. Reduzir mulheres e não-humanos a algo inferior permitiu que os homens explorassem mulheres, animais não-humanos e a natureza. A objetivação, o ridicularização e o controle da reprodução estão todos ligados à denigração patriarcal e à exploração das mulheres - incluindo as fêmeas humanas - e a natureza. Os animais não-humanos são sistematicamente marginalizados, objetivados e explorados por seres humanos de ambos os sexos, de todas as cores, idade e habilidade, e de todos os contextos socioeconômicos (KEMMERER, 2011, p. 16)7.
all of which is said to exist “to you” “for meat”. Woman is created to be man’s helper. This captures in myth Western Civilization’s primary answer to the philosophical question of man’s place in nature: everything that is, is resource for man’s exploitation. With this worldview, men see with arrogant eyes which organize everything seen with reference to themselves and their own interests”. 5
Título original: “A Vindication of the Rights of Woman: with Strictures on Political and Moral Subjects”.
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Título original: “A Vindication of the Right of the Brutes”, 1792.
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Tradução elaborada pela autora; texto original: “ Historically, women, animals, and children have legally been defined as the property of males. Patriarchy (where men control women) and pastoralism (where men control nonhuman animals) “are justified and perpetuated by the same ideologies and practices” (“Sexism”). For example, both women and animals have historically been considered less
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3. Feminismo Interseccional e o Movimento de Libertação Animal Define-se interseccionalidade, como “a natureza interconectada das categorizações sociais, tais como raça, classe e gênero, que se aplicam a um dado indivíduo ou grupo, criam sistemas de discriminação ou desvantagem sobrepostos e interdependentes” (OED Online)8. O termo foi cunhado por Kimberlé Crenshaw em 1989, uma das principais acadêmicas no campo das Teorias Críticas de Raça e especialista em questões de gênero na área de direitos civis. Segundo a autora, interseccionalidade é uma visão associativista de múltiplos sistemas de subordinação. Busca-se “capturar as consequências estruturais e dinâmicas da interação entre dois ou mais eixos da subordinação (CRENSHAW, 2002, p. 177)”. Por exemplo, observa-se a forma pela qual “o racismo, o patriarcalismo, a opressão de classe e outros sistemas discriminatórios criam desigualdades básicas que estruturam as posições relativas de mulheres, raças, etnias, classes e outras (CRENSHAW, 2002, p. 177)”. A visão interseccional nasceu no bojo do movimento feminista, a fim de denunciar a lacuna vivenciada por mulheres de cor em julgamentos em cortes estadunidenses: “o termo parte do fato de que as mulheres negras de classe desfavorecida vivenciarão o sexismo de maneira distinta das mulheres brancas de classes superiores” (GALVEZ, 2016)9. Notáveis autoras feministas demonstraram raso entendimento sobre as opressões simultâneas vivenciadas por mulheres pobres, lésbicas, de minoria racial; durante muito tempo esse foi o tom do movimento feminista (HOOKS, 1999). Mas com o tempo, cada vez mais feministas passaram a aceitar a realidade das opressões interligadas (KEMMERER, 2011, p. 9). intelligent, less rational, and therefore more primitive and closer to nature than men. Reducing women and nonhumans to something less than civilized men of intellect has allowed men to exploit women, nonhuman animals, and nature. Objectification, ridicule, and control of reproduction are all linked to patriarchal denigration and exploitation of females—including human females—and nature. Nonhuman animals are systematically marginalized, objectified, and exploited by human beings of both sexes, of every color, age, and ability, and from every socioeconomic background ”. 8
Tradução elaborada pela autora; texto original: “ the interconnected nature of social categorizations such as race, class and gender as they apply to a given individual or group, regarded as creating overlapping and interdependent systems of discrimination or disadvantage”.
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Tradução elaborada pela autora; texto original: “ le terme partait du fait que les femmes noire de classe defavorisées vont vivre le sexisme différemment des femmes blanches de classes aisées ”
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Nos últimos anos, a interseccionalidade passou por um processo de spill over, adquiriu uma marca sociológica e passou a atuar em diversos movimentos por justiça social. A abordagem tem sido aplicada como método de análise e combate a estruturas e práticas opressivas diversas (ADAMS, 2014, p. 10) e.g. colonialismo, capitalismo, capacitismo, classicismo, etarismo, heterossexismo, transfobia, intolerância religiosa, imperialismo, nacionalidade, especismo, etc. A partir deste conceito, extrai-se uma noção holística de justiça social. Assim, uma sociedade verdadeiramente justa existirá quando “todas as pessoas compartilharem uma humanidade comum e, portanto, tiverem direito a um tratamento equitativo, garantia de direitos humanos e uma repartição justa dos recursos comunitários” (ROBINSON, 2006)10. Em condições de justiça social, ninguém deve ser “discriminado, nem o seu bem-estar e existência, limitados ou prejudicados com base em [...] características de identitárias ou de pertencimento a um grupo” (ROBINSON, 2006)11. O grande mérito dessa abordagem é demonstrar como as diversas discriminações estão interconectadas e se retroalimentam, induzindo a conclusão de a única maneira de extinguir uma delas é a destruição de todas. Martin Luther King Jr., quem dispensa apresentações, escreve que “injustiça em qualquer lugar é uma ameaça à justiça em todo lugar. Estamos presos em uma rede inescapável de mutualidade amarrando-nos em um único tecido do destino. O que quer que afeta um diretamente, afeta a todos indiretamente” (KING JUNIOR, 1963)12.
Considerações Finais Uma das características do movimento pelos direitos dos animais é que a maioria de suas ativistas são mulheres (GAARDER, 2011), estima-se que 68 a 80% (JASPER; POULSEN, 1995 e LOWE; GINSBERG, 2002). No entanto, ao
10 Tradução elaborada pela autora; texto original: “all people share a common humanity and therefore have a right to equitable treatment, support for their human rights, and a fair allocation of community resources”. 11 Tradução elaborada pela autora; texto original: “discriminated against, nor their welfare and wellbeing constrained or prejudiced on the basis of [...] characteristic of background or group membership”. 12 Tradução elaborada pela autora; texto original: ““injustice anywhere is a threat to justice everywhere. We are caught in an inescapable network of mutuality tied in a single garment of destiny. Whatever affects one directly, affects all indirectly”
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se analisar feminismo e o ativismo pró-animais não humanos observa-se uma negligência mútua: a causa dos animais não humanos raramente entre na pauta de reivindicações feministas e frequentemente mulheres são sexualizadas em campanhas de grandes organizações que advogam em prol dos animais (VEGAN FEMINIST NETWORK, 2017). Dos resultados, reitera-se as razões pelas quais a luta pelos direitos dos animais é uma questão feminista: 1) os animais também são objetificados: os corpos dos animais não humanos são reduzidos a objetos que podem ser consumidos, vestidos e usados em testes laboratoriais: são referentes ausentes13 (ADAMS, 2012). Através desse processo, suas habilidades de sentir dor, prazer, saudades, luto, de viver em sociedade, de desenvolver laços com membros de suas espécies são negadas. Por isso, assim como as mulheres são assediadas, os não humanos são forçados a participar de um sistema de violência que além de os anularem, está destruindo o planeta (COWSPIRACY, 2017), a saúde da população mundial (WHAT THE HEALTH, 2017) e reafirma a violência contra as mulheres14 (DILLARD, 2008, p. 9 e FITZGERALD; KALOF; DIETZ, 2009). 2) os corpos dos animais não humanos são utilizados para normalizar a cultura do estupro: os animais, assim como os humanos são sexualizado. O sexo biológico de um não humano determinará como esse será torturado no sistema - a capacidade de procriar dita como fêmeas serão controladas. A indústria da pecuária intensiva institucionaliza o sexo forçado; as vacas passam suas vidas
13 Através do carnivorismo, os animais se tornam referentes ausentes; isto é, antes vivos, eles são transformados em comida por meio de uma operação simbólica pela qual os animais se tornam ausentes e que renomeia os corpos mortos antes de chegarem aos/às consumidores/as. Vacas, depois da morte e então fragmentadas, se tornam bifes, rosbifes, hambúrgueres - referenciais, segundo a autora, menos inquietantes (CARMO, BONETTI 2013). 14 Tais estudos analisaram o impactos sofridos por moradores de bairros onde se localizam abatedouros. Os resultados mostraram que além de danos físicos, o trabalho exigido traz prejuízos à saúde mental e à saúde emocional dos funcionários. A intensa pressão para a manutenção ou aumento de produtividade faz com que os trabalhadores suprimam suas “empatias espontâneas” pelos animais – tal fenômeno faz com que os trabalhadores se tornem propensos a cometer crimes violentos (particularmente contra mulheres e crianças) e há evidência empírica de que em cidades com matadouros instalados, crimes como agressão sexual e estupro aumentam. Adicionalmente, os matadouros são normalmente instalados fora de vista, perto das comunidades marginalizadas e desfavorecidas, eles trazem consigo mau cheiro e poluem o ar.
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sendo constantemente estupradas nos “rape racks15”. No caso da indústria de laticínios, assim que a vaca dá a luz, os bezerros são forçadamente separados da mãe: seu leite é extraído para o consumo humano. Os filhotes são enjaulados e alimentados com um fluído substituto do leite e os machos virarão vitelo e as fêmeas serão engordadas para continuarem no ciclo. “Como feministas, consumir corpos de animais não humanos violados e torturados, enquanto lutamos contra a cultura de estupro, parece um tema digno de investigação”16 (KO, 2014). 3) violência doméstica afeta os animais não humanos: há uma correlação direta entre molestamento de animais e práticas criminosas. “Abuso animal é um dos quatro indicadores usados por perfiladores do FBI para identificar futuros comportamentos violentos” (URBONA, 2010). A American Humane Association afirma que em 88% das casas nas quais ocorria abuso infantil, o abuso de animais também acontecia. Para as mulheres que procuram abrigos, mais de metade dessas afirmou que seus parceiros ameaçaram machucar seus animais de estimação (KO, 2014). A correlação entre violência contra crianças, mulheres e animais não humanos demonstra como o patriarcado prejudica aqueles minorizados e impotentes. 4) muitas falácias sobre o uso dos animais não humanos são perpetuadas: sabe-se sobre os efeitos negativos que ideias estereotipadas (e.g. “homens são naturalmente mais violentos” ou “homens têm uma libido maior do que as mulheres”) para a propagação do sexismo. A perpetuação do carnivorismo é embasadas em afirmações tão verídicas quanto essas (e.g. “os seres humanos precisam de carne”, “os animais nasceram para ser comidos”, “o abate é feito de maneira humanitária”). Essas mentiras, repetidas inúmeras vezes, acabam por naturalizar horrendos sistemas de opressão. 5) a interseccionalidade deve incluir todos os grupos oprimidos: Todas as desigualdades estão ligadas. Mudanças sistêmicas abrangentes só acontecerão se estivermos conscientes dessas conexões e trabalharmos para acabar com todas as desigualdades - não apenas nossas causas favoritas ou 15 Um “ rape rack ” é um dispositivo estreito nos quais as fêmeas são reprimidas enquanto passam por um processo o qual indústria de laticínios se refere como “inseminação artificial”. Neste um trabalhador insere um de seus braços no reto do animal e, com o outro, insere um dispositivo parecido arma que contém o sêmen do macho. Esta é empurrada para dentro até atingir o colo do útero e o sêmen é então injetado no útero. 16 Tradução elaborada pela autora; texto original: “ As feminists, to consume raped and tortured nonhuman animal bodies, while fighting against rape culture, seems a topic worthy of investigation”.
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aquelas que mais diretamente nos afetam. Ninguém está à margem; por nossas ações ou ausência delas, pelo nosso cuidado ou nossa indiferença, somos parte do problema ou parte da solução17 (LOYDE-PAIGE, 2010, p. 2).
A carne é um símbolo da dominação masculina (ADAMS, 2012). Há uma urgente necessidade de incluir o veganismo18 no escopo de movimentos por justiça social. A negação dessa inclusão, não nega a opressão em si, somente quem está sendo oprimido. Enquanto movimentos por justiça social forem orientados por uma causa só, estará se resgatando vítimas individuais e não destruindo o sistema que os oprime.
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17 Tradução elaborada pela autora; texto original: “All social inequalities are linked. Comprehensive systemic change will happen only if we are aware of these connections and work to bring an end to all inequalities—not just our favorites or the ones that most directly affect our part of the universe. No one is on the sidelines; by our actions or inactions, by our caring or our indifference, we are either part of the problem or part of the solution”. 18 Faz-se necessário salientar que veganismo é “uma filosofia e um modo de vida que busca excluir - na medida do possível e praticável - todas as formas de exploração e crueldade para com os animais destinados à alimentação, vestuário ou qualquer outro propósito; E, por extensão, promove o desenvolvimento e uso de alternativas livres de animais para benefício dos seres humanos, animais e meio ambiente. Em termos dietéticos denota a prática de dispensar todos os produtos derivados, total ou parcialmente, de animais”.
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Para ser Ouvida o Grito tem que ser Potente: Música Luta por Direitos e Feminismos a Partir das Funkeiras Brasileiras Tamara Camila Freitas1 Resumo: O trabalho parte de uma abordagem entre o direito e o ritmo musical do funk carioca, a partir de uma perspectiva feminista. De modo geral, o direito positivado não expõe uma construção de certos discursos musicais como produto de uma mudança na lei e no direito no seu conceito amplo. Buscou-se, assim, avaliar o desenvolvimento do pensamento social através das letras de funk tendo como marco de referência a participação das mulheres enquanto protagonistas. O funk é a voz da favela, expondo os problemas e demandas sociais das pessoas que lá moram. Contudo, esse movimento era centrado em pautas sob uma ótica dos homens, até que houve uma reviravolta, quando as mulheres tomaram a frente dos palcos de funk, problematizando questões não só de classe social, mas de desigualdade de gênero. Apoiando-se, ainda, na revisão bibliográfica de alguns artigos, notou-se como crucial a presença de figuras femininas no funk que não mais se subordinam à violência física ou psicológica, mas que se tornam independentes e afirmam seus desejos e interesses. Ademais, questiona-se se o funk é, ou pode ser, feminista, principalmente quando cantando por mulheres, de que forma os direitos das mulheres são abordados no meio do funk, e como as letras impactam nas vidas delas. Esses questionamentos foram analisados através de letras de algumas funkeiras selecionadas com base em critérios objetivos, principalmente de representatividade, e subjetivos. As funkeiras estudadas foram Mc Carol, Valesca Popozuda, Tati Quebra Barraco, Mc Mayara e Mc Trans. Palavras-chave: Direito; Arte; Funk; Feminismos; Brasil.
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Acadêmica do Curso de Graduação em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC, estudante da matéria Direito e Feminismos, estagiária da Vara da Família Defensoria Pública do Estado de Santa Catarina. Contato: [email protected]
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1. Considerações Iniciais Do baile de favela as baladas mais caras, de festas internacionais as festas universitárias brasileiras, há um ponto de intersecção: o ritmo do funk é viralizado e faz muito sucesso. Odiado por alguns, amado por outros, porém, dançado por todos(as), as letras de funk estão na boca do povo e o ritmo brasileiro já integra a playlist das baladas do mundo inteiro. O funk carioca é o ritmo musical do qual as e os marginalizados(as) expõem seu cotidiano, seus problemas estruturais e suas demandas sociais, são, assim, mais que música e divertimento, um meio político social de denúncia e reivindicação de direitos. Nessa esfera surge o movimento das mulheres. Com o título “100% feminista”, a música da funkeira Mc Carol e da rapper Karol Conka, conta as experiências pessoais delas na condição de mulher negra dentro de uma sociedade patriarcal e racista e auferem “mulher oprimida, sem voz obediente, quando eu crescer eu vou ser diferente”, entrelaçando-se com uma perspectiva feminista do funk. A abordagem de um tema tão polêmico como o feminismo numa música voltada a um público predominantemente jovem, pautado na diversão, ilustra e exemplifica a importância das letras empoderadoras exauridas pelas MCs, que, por meio do funk brasileiro, buscam trazer à tona pautas em benefício das mulheres. Por conseguinte, o funk carioca tem sido interpretado, por muitas mulheres do Brasil, como um dos gritos de liberdade nos dias atuais - com um detalhe importante: quando cantado por elas próprias. Neste sentido, o presente trabalho busca compreender a importância da voz das mulheres dentro do funk e como este movimento pode auxiliar na luta pela ampliação de direitos das mulheres e no empoderamento feminino. Além disso, busca-se entender como as funkeiras brasileiras utilizam o funk para expressar, questionar e transformar seus status, modificar seus papéis na sociedade e, através de suas vozes, poderem fazer diferença para outras mulheres Por essas questões que emerge-se o presente trabalho, que questiona se o funk é ou não feminista através de uma análise histórica-social da vida e letra das mulheres funkeiras.
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2. A Voz da Favela: o Funk Como Instrumento Artístico de Reivindicação de Direitos Primeiramente, cabe elucidar que o direito positivado não cria soluções efetivas para as mais diversas problemáticas sociais. Como exemplo norteador, irá se utilizar a Lei no 11.340/200622, mais conhecida como Lei Maria da Penha, que regulamenta a medida protetiva, no art. 22, para mulheres em situação de violência doméstica, estipulando uma distância mínima do agressor em relação a ofendida, com o intuito de evitar que a violência continue sendo perpetrada. Para a concretização dessa distância mínima, a polícia faz tanto rondas ao redor da casa da ofendida, em horários e dias alternados, como também ao seu encontro caso ocorra denúncia do agressor estar violando a medida protetiva. Todavia, em muitos bairros marginalizados, a polícia não entra3, geralmente com o argumento de serem áreas de risco tomadas pelo tráfico, impossibilitando, então, a implementação de uma segurança mínima para a mulher em situação de violência nessas regiões. Esse exemplo não é um caso isolado, é bastante comum perceber situações em que o direito positivado não é capaz de atender as demandas sociais. Diante do exposto, é imprescindível transpassar o mundo das leis, descortinar a limitação das normas, e enxergar que o direito não é apenas um sistema jurídico, composto de normas jurídicas vigentes de um país, mas todo um conjunto político e social que cria, rege, e mantém essas leis e normas. Compactuando com esse sentido mais amplo do direito, e relacionando-o com a comercialização musical, Oliveira (2016, p. 54-55) coloca que: “Desta forma, compreende-se que as artes e as produções midiáticas caminham lado a lado com Direito em dois pontos principais: o primeiro deles, é relativo a disseminação de determinado conhecimento. Algumas produções artísticas-midiáticas são capazes de informar as pessoas de seus direitos, como a simples leitura de um código jamais faria. O segundo, refere-se à 2
BRASIL. Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006. Coíbe a violência doméstica e familiar contra a mulher. Presidência da República, 2006. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ ato2004-2006/2006/lei/l11340.htm. Acesso em 20/11/2017.
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FOLHA DE SÃO PAULO. Nem a Rota entra em favela de SP, afirma diretora da polícia de Alckmin. 2017. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2017/11/1934121-nem-a-rota-entra-emfavela-de-sp-afirma-diretora-da-policia-de-alckmin.shtml. Acesso em 15/11/2017.
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circulação de discursos. A arte/mídias podem ser utilizadas para dar voz a problemas, angústias, situações peculiares, de um jeito tal que uma conversa apressada entre juiz e advogado das partes (que por si só já é um intermediário, um tradutor dos problemas de outras pessoas) jamais transmitiria”.
Nessa linha adentra o ritmo musical do funk carioca, chamado assim por ter se originado no estado do Rio de Janeiro, também conhecido como funk de favela ou funk brasileiro, geralmente composto de melodias simples e letras curtas, que ganhou força a partir dos anos 70 no Brasil, com a promoção de bailes de black, soul, shaft e funk, bem como com a busca por novos estilos de música negra. Facina (2009) argumenta no seu artigo que ao mesmo tempo em que as e os profissionais do funk eram perseguidos(as) e criminalizados(as), começaram também a ocupar um espaço maior na mídia e a despertar o interesse da indústria fonográfica, principalmente na segunda metade da década de 1990. Programas de televisão e de rádio dedicados ao funk se multiplicavam, enquanto leis e regulamentações buscavam criar regras para silenciar a voz da favela. Ao conquistar espaço na classe média, o funk passou a perturbar os que preferiam que a realidade que seu canto divulgava permanecesse invisível, confinada nos guetos e destinados aos pobres. Essa criminalização, resultou na época no fechamento da maioria dos bailes dos clubes. Quanto maior a desigualdade social, mais perigo para a ordem essa humanidade supérflua representa. A criminalização da pobreza, seus modos de vida, seus valores, sua cultura, é uma das respostas a isso. O funk está no centro desse processo. A funkeira Mc Carol, em entrevista ao jornal Folha de São Paulo4, em julho desse ano, argumenta sobre a importância do funk e de seu papel como veículo de reivindicação de direitos: “O funk é uma libertação, uma forma do favelado se comunicar e mostrar o que acontece dentro da comunidade para as pessoas que não sabem.” Embalado, então, com músicas como a da letra “Eu só quero é ser feliz, andar tranquilamente na favela onde eu nasci”5, cantada por Mc Cidinho, o
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MOREIRA, M.C.; MC Carol denuncia violência policial e critica a Lava Jato em música; ouça. Folha de São Paulo; São Paulo, jul. de 2016.
5
VAGALUME. Rap da Felicidade. Disponível em: https://www.vagalume.com.br/mcs-cidinho-e-doca/ rap-da-felicidade.html. Acesso em 10/11/2017.
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funk, para além de mero divertimento, é um meio de denúncia de violação de direitos perpetrados pelo estado sobre as classes marginalizadas. As letras obscenas do funk, no entanto, ainda são vistas como uma afronta a moral e aos bons costumes, além de serem questionadas sobre seu incentivo a violência. O funk, evidentemente, reflete a rotina de uma determinada parcela da população, que vive um cotidiano socialmente vulnerável e violento. Não obstante, estes não são os mesmos valores da elite cultural, que faz cara feia para as rimas explicitamente pornográfica e para os movimentos de dança sensuais. Quando se trata do funk, é comum ouvir a reiterada alegação de que o ritmo propaga a cultura do estupro e o machismo; não se pretende aqui ignorar que algumas letras, de fato, o fazem. Contudo, em letras de diversos estilos musicais (samba, MPB, rock,...), também é possível observar essa atitude, vez que o machismo está umbilicado em todas as esferas da sociedade, soando a condenação apenas a um deles. Por outro lado, independente da visão da cultura hegemônica, o funk é a expressão da periferia, que lhe dá vez e voz, utilizando a linguagem do povo, e falando sobre suas dificuldades, as mazelas e possibilidades de ascensão. O funk inicia no rio, no início dos anos 90, e depois se expande para todo o país (e mundo), e hoje se tornou um forte ritmo cultural brasileiro. Ademais, o discurso do funk também é um discurso de poder, e quando a partir dos anos 2000 surgem as funkeiras, mulheres dessas mesmas favelas do Rio de Janeiro, que passam a compor e cantar funks a partir de suas experiências como mulheres pobres-faveladas, o funk se torna um espaço de fala e de luta para elas também. “Por mais que o discurso seja aparentemente bem pouca coisa, as interdições que o atingem revelam logo, rapidamente, sua ligação com o desejo e o poder”, assim, segundo Foucault (2014, p. 9-10), os discursos enraizados nas letras de funk demonstram as relações de poder intrínsecas e que incitam a continuação de práticas sociais, como a subjugação e invisibilização das mulheres dessas comunidades, colocando-as como dançarinas sensuais nos bailes e apresentações e/ou objeto de prazer sexual masculino nas letras. Por isso a importância da ocupação como protagonistas das mulheres no mundo do funk.
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3. O Funk é Feminista? A bunda feminina talvez seja um dos símbolos mais lembrados quando o assunto é funk. Com letras que chamam mulheres de “cachorras” e as convidam a “remexer o popozão” para deleite dos homens, pode parecer inconcebível, num primeiro momento, estabelecer ligações entre funk e feminismo. Porém, os movimentos sociais não são estáticos e refletem as mudanças de nosso tempo. No final dos anos 90, início dos anos 2000, era incomum encontrar mulheres funkeiras cantando. O protagonismo era dos homens, que formavam a maioria dos bondes famosos tocados nas rádios e bailes. As “thuthucas”, “potrancas” e “cachorras” eram, na maioria das vezes, dançarinas. Por conseguinte, é essencial evidenciar a mudança de posição, o momento em que as mulheres saem do fundo do palco e tomam conta do microfone para explicarem que podem ter esses títulos, mas quando e se quiserem: “Sou cachorra, sou gatinha/ Não adianta se esquivar/ Vou soltar a minha fera eu boto o bicho pra pegar”. (TATI QUEBRA BARRACO, 2004)6. Continuam sendo as “popozudas”,continuam dançando, mas agora dizem em alto e bom som: “Pode me chamar de puta, eu sou absoluta” (MC DANDARA, 2008)7. Com essa reviravolta no meio do funk, as mulheres começaram a ressignificar esses nomes antes ligados à dominação masculina. Cachorra, por exemplo, não equivale mais à mulher que serve apenas para satisfazer sexualmente o homem. Hodiernamente, o termo, principalmente quando utilizado pelas mulheres para se referirem a elas próprias, expressa uma mulher livre, que fica com quem quiser no baile, que, se quiser, dança sensualizando, faz sexo casual, exige prazer com o sexo. A ressignificação dos termos, por meio de sua apropriação, é uma tática que vem crescendo dentro do feminismo, especialmente em ações públicas recentes, a exemplo da Marcha das Vadias8, que tem como objetivo principal lu6
Tati Quebra Barraco. Boladona. Disponível em: http://www.vagalume.com.br/tati-quebra-barraco/ boladona.html. Acesso em 01/11/2017.
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Mc Dandara. Pode me chamar de puta. Disponível em:http://www.vagalume.com.br/mc-dandara/ pode-me-chamar-de-puta.html . Acesso em 01/11/2017.
8 Para mais informações, checar: http://marchadasvadiascwb.wordpress.com/conheca-a-marcha/ porquevadias/. Acesso em 10/10/2017.
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tar contra a culpabilização das vítimas de violência sexual. O termo “vadia” foi reconceituado de mulher sem valor, que não se dá ao respeito, para uma mulher livre, que não precisa se dar o valor pois esse é seu por direito. Sendo assim, partindo do pressuposto da criação e comercialização de letras empoderadoras, seria o funk, produzido e cantado por mulheres, feminista? Parte das militantes do movimento feminista prefere não reconhecer o funk e as manifestações culturais menos formais como parte do movimento feminista. Isso principalmente devido á crítica que as músicas apresentam mulheres como meros objetos sexuais. Não se deve, entretanto, invisibilizar a mobilização e a representação das mulheres funkeiras, que expõem na prática um discurso de igualdade, com linguagem simples e direta, de fácil acesso, que chega de forma instantânea nos ouvidos e corações das mulheres marginalizadas. Para responder o questionamento supracitado, por conseguinte, é imprescindível conceituar, primeiramente, o feminismo. A escritora nigeriana Adichie (2015) coloca em seu livro “Sejamos todos feministas” que uma pessoa feminista é aquela que “acredita na igualdade social, política e econômica dos sexos”. Partindo dessa conceituação, o artigo “O funk é feminista”, escrito por Carla Rodrigues, argumenta como diversas letras do funk reafirmam o direito ao prazer do corpo da mulher, principalmente para as mulheres negras e faveladas. E ela questiona como pode o movimento feminista não reivindicar este movimento. Quando o feminismo nega o funk, será que não está reforçando a criminalização? Quando cantam suas letras consideradas obscenas, as funkeiras reivindicam o direito ao prazer sexual, denunciam a opressão e ainda rompem padrões de beleza. Ano passado, a funkeira Mc Carol realizou uma entrevista a um site de notícias sobre o mundo da música, postado no dia 21 de março de 2016 pela página Arquivos Feministas, onde ela afirma na legenda da entrevista: “pouca gente sabe (ou lembra) que as discussões sobre feminismo e várias outras que muita gente posta aqui não chegam no morro! To aprendendo todo dia um pouco e ao invés de ficar brigando no Face por que vocês não conversam com um amigo ou parente sobre essas questões?”, sua fala expõe de forma objetiva e direta como à discussão sobre o feminismo ainda é “elitista”. Se por um lado, a cultura da favela é explícita, pornográfica; por outro, o empoderamento feminino está mais do que presente no discurso das músicas.
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Ao invés de se dizerem oprimidas, as cantoras cantam à liberdade e é nisso que aparece o errado, o sujo, o ofensivo: o desejo feminino. Do direito ao orgasmo ao questionamento do papel de donas de casa, a música das funkeiras brasileiras reivindica nada mais nada menos que equidade. Contudo, é espantoso como uma mulher dizer com todas as vogais e consoantes que gosta de sexo ainda é visto como algo perturbador. É nesse ponto que o Funk dribla a objetificação do corpo feminino. Por que ela não pode mostrar seu corpo, se ela o detém? Por que essa liberdade incomoda? O Jornal El País (2015)9 expõe sobre o funk e o feminismo e informa que: Afirmar que o funk é feminista causa estranheza à primeira vista. Afinal, como pode uma música que fala em “cachorras”, “vadias” e “popozudas” representar um movimento que defende, entre outras coisas, o respeito às mulheres? Mas é na temática sexual que está justamente a resposta para essa questão: ao levantar a bandeira de que as mulheres têm direito, tanto quanto os homens, a transar somente por prazer, o estilo musical passa a ser observado com mais atenção por quem não frequenta os bailes.”
Portanto, o funk é feminista? As funkeiras podem se intitular feministas, assim como podem se auto afirmar o que quiserem. O feminismo não tem dona(s) e nem artilha a ser seguida, existe para ser desmitificado, remixado e reelaborado como tantos outros pensamentos. Quanto ao funk, o que interessa, e muito, são as músicas feitas e cantadas por mulheres e como essas letras impactam na vida de outras mulheres, independentemente de serem consideradas ou não feministas.
3. Produções Músicais: a Resistência não se faz com Silêncio As Mcs de funk cantam seus orgasmos, reclamam de homens que falam demais e dizem, explicitamente, o que querem fazer na cama, quais suas táticas de conquista. Elas esculacham. O movimento das mulheres funkeiras iniciou nos anos 2000, com poucas mulheres, com ênfase em nomes como Tati Quebra Barraco e Deize Tigrona. Desde então, o movimento feminino cresceu e muito, sendo impossível, atualmente, nomear todas as funkeiras espalhadas no Brasil. 9
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NOVAES. M. Funk, o “bonde” da revolução sexual feminina. El País. São Paulo, agosto de 2015.
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Em razão do vasto material de áudio lançado por inúmeras funkeiras, foram selecionados alguns trechos das músicas vociferadas pelas garotas, no intuito de ilustrar o tipo de discurso por elas veiculado, realizando uma breve pincelada nas principais faixas musicais. Dentre tantas funkeiras maravilhosas e empoderadas, utilizou-se alguns critérios objetivos, tal como representatividade, diversidade e letras que impactem positivamente na vida das mulheres, e subjetivos, como o gosto pessoal da autora, para escolher as letras e cantoras.
3.1. Tati Quebra Barraco: “Na minha vida mando eu, vai mandar em outro lugar” Uma das primeiras mulheres a estourar como Mc nas rádios brasileiras, a rainha do funk, Tati Quebra Barraco, é carioca e começou a fazer sucesso nos anos 2000. Um dos seus primeiros sucessos “Sou feia mais tô na moda/ tô podendo pagar hotel pros homens e isso que é mais importante”10, desconstruía padrões de beleza e afirmava a independência financeira e sexual feminina. Nas produções musicais “Dako é bom”, “Me chama de cachorra”, “To pegando pai, to pegando filho”, entre tantas outras11, ela reivindica a liberdade sexual da mulher. Praticamente todas as músicas de Tati fornecem força às mulheres e emanam a mulher como “dona de si”. As letras de Tati são um exemplo de inspiração na vida de muitas mulheres. Afinal, rainha é rainha.
3.2. Valesca Popozuda: “Minha buceta é o poder” Ao lançar sua carreira solo, Valesca Popozuda disse numa entrevista: “A bunda é uma parte importante da minha carreira, não nego, mas não me considero só isso”12. Em suas músicas, a cantora deixava nítido que seu corpo não 10 Disponível em: . Acesso em: 26/11/2017. 11
Para mais informações, checar: . Acesso em 26/11/2017.
12 Disponível em: . Acesso em: 20/11/2017.
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era de ninguém a não ser dela mesma. Essa é a liberdade sexual e o direito sobre seu corpo que ela gostaria de transmitir em frases como: “My pussy é o poder”, “Agora eu sou piranha e ninguém vai me segurar”, ou na faixa gravada antes da entrada de Valesca, “A Porra da Buceta é Minha”13. Outras faixas musicais importantes são “Tá pra nascer homem que vai mandar em mim”, deixando claro quem manda em sua vida: ela mesma e mais ninguém. Negando qualquer tipo de submissão. “Só me dava porrada/ e partia pra farra/ Eu ficava sozinha esperando você /Eu gritava e chorava, que nem uma maluca/ Valeu, muito obrigada, mas agora eu virei puta!”. O discurso político e feminista cantado por Valesca remonta à história das mulheres que sofrem violência doméstica. A letra fala, inclusive, do assédio moral além das agressões físicas. A mulher retratada na canção era agredida, abandonada, sofria todo o tipo de humilhações. Esta mesma mulher busca sua libertação e a alcança, se nomeando e sendo tachada de “puta” por ter abandonado o marido que a agredia e ter terminado com o casamento fracassado.
3.3 Mc Mayara: “Teoria da branca de neve, porque só ter 1 se eu posso ter 7?” A Mc curitibana possui várias letras que contribuem para uma perspectiva feminista, mas com um diferencial: o videoclipe da música “Ai como eu tô bandida dois”14. O vídeo, que ficou muito famoso na internet, mostra a funkeira como uma super-heroína combatendo o machismo, através do vilão intitulado, Super Machista, e outros vilões preconceituosos.
3.4 Mc Trans: “Eu não sou obrigada a nada!”. Seu nome artístico é uma homenagem a todas as transexuais do Brasil. Através do funk, Mc Trans conseguiu sua subsistência e uma fonte de renda. O sucesso começou depois da cantora Anitta intitulá-la como sua cover oficial por dois anos.
13 Para mais informações, checar: . Acesso em: 30/11/2017. 14 Disponível em: . Acesso em: 24/10/2017.
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Sua própria história de vida já um grande marco de representatividade feminina, além disso, sua principal faixa carrega muito engajamento feminino de quebra de paradigmas patriarcais: “Vou te dar papo porque eu sou descontrolada/Você não manda em mim/ Eu não sou obrigada a nada/ A nada, a nada, eu não sou obrigada a nada”15.
3.5 Mc Carol: “100% Feminista” Por último, mas definitivamente não menos importante, MC Carol, também chamada de Carol Bandida, é carioca nascida na comunidade de Preventório, em Niterói, e faz sucesso pela sua irreverência e autenticidade de suas canções. Carol e considera feminista e ao cantar incentiva a autoestima elevada e a insubmissão das mulheres. Seus principais hits16 são “Meu namorado é mó ótario”, em que Mc inverte os papeis do patriarcado e manda seu namorado lavar suas calcinhas e a louça, em “Propaganda enganosa” denúncia a falta de importância que os homens dão ao prazer feminino e exige que forneçam prazer com o sexo. Recentemente Mc Carol lançou, juntamente com a rapper Karol Conka, a música “100% Feminista”17, que por si só já é um hino para qualquer garota que compactua minimamente com os ideais feministas. Ambas são duas fortes figuras femininas, no funk e no rap brasileiro, respectivamente. Enquanto Carol coloca a dureza da experiência pessoal (“Eu tinha uns cinco anos/ Mas já entendia que mulher apanha/ Se não fizer comida”), por outro lado, Karol expõe um olhar mais analítico (“Século XXI/ E ainda querem nos limitar/Com novas leis”) - uma alimentando e fortalecendo a contundência da outra. Encara-se, então, com as principais frases da música, que são um grito de empoderamento: “Presenciei tudo isso dentro da minha família/ Mulher com olho roxo espancada todo dia/ Eu tinha uns cinco anos, mas já entendia/ Que mulher apanha se não fizer comida/ Mulher oprimida, sem voz, obediente/ Quando eu crescer eu vou 15 Disponível em: . Acesso em: 26/11/2017. 16 Para mais informações, checar: . Acesso em: 27/11/2017. 17
Disponível em: . Acesso em: 21 nov. 2017.
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ser diferente/ Eu cresci, prazer Carol bandida /Represento as mulheres, 100 por cento feminista / Desde pequenas aprendemos/ Que silêncio não soluciona/ Que a revolta vem à tona/ Pois a justiça não funciona / Me ensinaram que éramos insuficientes/ Discordei, pra ser ouvida o grito/ Tem que ser potente”.
5. Considerações Finais O Direito, por si só, é incapaz de resolver determinados conflitos histórico-sociais, especialmente se mantém uma incógnita a quem deveria proteger. Neste sentido, manifestações artísticas podem apresentar-se como um instrumento poderoso ao conscientizar determinados públicos e, ao mesmo tempo, veicular exigências e demandas sociais, como bem preceitua Oliveira em seu estudo, que coloca as mídias como uma disseminação rápida e divertida do conhecimento, informando direitos as pessoas, assim como fornecem visibilidade aos problemas sociais marginalizados. Por conseguinte, o presente artigo procurou demonstrar se e como o movimento das funkeiras auxilia na promoção e efetivação dos direitos dasmulheres, relacionando o Direito, com o ritmo musical do funk e com o feminismo. O funk inicia no Rio de Janeiro nos anos 90 e expande-se no Brasil todo, assim como isso reflete também a ampliação das mulheres no movimento, dando voz aos seus problemas e reivindicações sociais. A partir de diversos elementos que compõe o movimento das mulheres mcs, é possível considerar que mais do que entretenimento, o funk, principalmente quando cantado por mulheres, contribui de forma significativa ao conscientizar mulheres e homens sobre questões de gênero, como violências e sexualidades. Diferentemente dos espaços institucionais, há uma troca mais íntima, mais próxima, mais direta, de linguagem fácil e informal, voltada a um público jovem, que muitas vezes desconhece sua própria situação de vítima como no caso de estupros, violência psicológica e violência patrimonial. Assim, pode-se afirmar que com a batida simples do funk, tem-se um tipo de resistência feminina que nada possui de passiva ou silenciosa. Ademais, diferente do que Carla Rodrigues afirma em seu artigo, de que o funk é feminista, o importante não é definir se o funk é feminista ou não,
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mas investigar como esse movimento empodera mulheres, especialmente as que vivem à margem da sociedade, nas periferias. O que interessa, e muito, são as músicas feitas e cantadas por mulheres e como essas letras abalam a vida de outras mulheres, independentemente de serem consideradas ou não feministas. Coadunando com o dito por Mc Carol, a discussão do feminismo não chega nas favelas, e isso reforça a essencialidade do movimento das mulheres estar inserido nas bases da periferia, e no centro desse processo está o funk carioca. A partir de alguns trechos selecionados das músicas vociferadas pelas garotas, no intuito de ilustrar o tipo de discurso por elas veiculado, foi possível verificar como as funkeiras ressignicam termos antes pejorativos, e tomam para si o protagonismo do funk, demonstrando como o funk pode contribuir de forma positiva e empoderada na vida das mulheres. Portanto, como bem preceitua a funkeira Mc Carol e a rapper Karol Conka, “Desde pequenas aprendemos que silêncio não soluciona”, o funk, por fim, é o grito das favelas, e, quando cantado por mulheres, é a voz da liberdade feminina.
Referências Bibliográficas ADICHIE, Chimamanda. Sejamos todos feministas. São Paulo: Companhia das Letras, 2015. 64 p. BONFIM, Letícia. Funk carioca, voz feminina e o caso Tati Quebra-Barraco. 2015. 140 f. Dissertação - Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, Santa Catarina, 2015. BONFIM, Letícia. Corpo e poder no funk carioca. In: FAZENDO GÊNERO 10 – DESAFIOS ATUAIS DOS FEMINISMOS, 10, 2013. Florianópolis. 9 p. Universidade Federal de Santa Catarina. Santa Catarina. 2013. BRAGANÇA, J. Sexualidade feminina: a mulher por ela mesma no movimento funk carioca. Fazendo Gênero 10: desafios atuais dos feminismos, Florianópolis, Santa Catarina, 2013.
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BRAUNER, Vera Lúcia. “Sou feia, mas tô na moda” ou o funk e as novas regulações sobre corpo e sexualidade na contemporaneidade. In: FAZENDO GÊNERO 8 – CORPO, VIOLÊNCIA E PODER, 8, 2008. Florianópolis. 6 p. Universidade Federal de Santa Catarina. Santa Catarina. 2008. CAETANO, M. My pussy é o poder: representação feminina através do funk – identidade, feminismo e indústria cultural. 2015. 181 f. Dissertação - Universidade Federal Fluminense, Niterói, Rio de Janeiro, 2015. CARDOSO, Bia. Funk e Feminismo. Revista Ocas. Ed. 94, março de 2014. FACINA, A.; “Não me bate doutor”: funk e criminalização da pobreza. V ENECULT - Encontro de Estudos Multidisciplinares em Cultura. Salvador. 2009. FOUCAULT, Michel. 1926-1984. A ordem do discurso: aula inaugural no Collége de France, pronunciada em 2 de dezembro de 1970. Tradução Laura Fraga de Almeida Sampaio. São Paulo: Edições Loyola, 2014. OLIVEIRA, A. M.; Nossa resistência não é o silêncio: música, feminismo e luta por direitos a partir do riot grrrl. Direito das Mulheres. Rio de Janeiro. Vol. II, n. 1, p. 223-242, 2017. OLIVEIRA, E. A identidade feminina no gênero textual música funk. Universidade do Sul de Santa Catarina, 2008. RODRIGUES, Carla. O funk é feminista. Superinteressante, São Paulo, no 304, maio de 2012. SANTOS, V. Sou Dessas – Valesca, pronta pro combate. 1a edição. Rio de Janeiro: Best Seller, 2016. 188 p. VIANNA, Hermano. 1988. O mundo funk carioca. Rio deJaneiro, Jorge Zahar.
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Os Graus Negativos da Humanidade: os Direitos Humanos das Mulheres Refugiadas no Brasil e a Ética da Alteridade Thais Silveira Pertille1 RESUMO: “O refugiado é o grau zero da humanidade” (DOUZINAS, 2009, p. 155). Se a máxima de Costas Douzinas define a condição humana em meio à crise migratória internacional, ser mulher e refugiada, então, é padecer em graus negativos de humanidade. Conforme Avaliação de Campo realizada pelo Alto Comissariado da ONU para Refugiados, em parceria com outras organizações internacionais, o gênero feminino representa o grupo mais vulnerável dentre os refugiados, corroborando a necessidade de especial atenção às vias de proteção às mulheres refugiadas. Destarte, o objetivo deste artigo é analisar a proteção prevista pela lei brasileira aos refugiados no Brasil e sua eficácia ante as necessidades específicas das mulheres refugiadas, tendo na ética da alteridade uma possibilidade de implementação de seus direitos humanos. Palavras chave: Refugiadas; Direitos Humanos; Ética da Alteridade
Introdução Sabe-se, a luz de fatos históricos recentes, que após o onze de setembro, com o ataque às Torres Gêmeas na cidade de Nova Iorque em 2001, e com a consequente intensificação da guerra ao terror, houve retrocesso na consideração legal da condição humana. Guerras e ocupações no Afeganistão e Iraque, assim como a guerra civil na Síria, colocaram-se como obstáculos políticos à efetivação dos direitos humanos, comprometendo conquistas importantes. Por consequência, a
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Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina, na área de Direito e Relações Internacionais, bolsista Capes. Especialista em Filosofia e Direitos Humanos (PUCPR) e graduada em Direito (UFSC). Currículo Lattes: http://buscatextual.cnpq.br/ buscatextual/visualizacv.do?id=K4049196E0
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violação dos Direitos Humanos daqueles que ficaram na linha de frente desses conflitos tem causado movimentos migratórios forçados. Para essas pessoas a busca por refúgio coloca-se como alternativa em socorro de sua dignidade. Com o intuito de ampliar a proteção aos refugiados, a ONU, em 1967, elaborou o Protocolo acerca do Estatuto do Refugiado, ampliando as disposições da Convenção das Nações Unidas sobre o Estatuto do Refugiado de 1951, oferecendo, a partir de então, proteção a todos os refugiados e não somente àqueles oriundos da Segunda Guerra Mundial. No Brasil, o Estatuto do Refugiado foi recepcionado por meio da Lei 9.474/1997, a qual estabeleceu procedimento especifico para o reconhecimento do status de refugiado e criou o Comitê Nacional para os Refugiados (CONARE), que é responsável pelas decisões acerca dos pedidos de refúgio e também pela elaboração e implementação de políticas de amparo social e de proteção ao refugiado. Como demonstram as últimas décadas, a positivação dos direitos humanos foi incapaz de conter as violações desses direitos e o fenômeno das migrações forçadas, que se esperava ver resolvido em um curto prazo, mostrou-se cada vez mais presentes nos tempos atuais. Delimitando mais especificamente o tema para a realidade brasileira é que se pretende focar este artigo nos mecanismos de proteção ao refugiado a partir da Lei 9.474/1997, tratando de sua eficácia prática e testando sua higidez ao ser confrontada com a especificidade das demandas das mulheres refugiadas. Além disso, propõe a ética da alteridade como uma possibilidade de complementariedade à proteção dessas mulheres. Com efeito, a problemática desse artigo será realizada em três etapas: No primeiro capítulo será abordada a proteção prevista pela lei brasileira aos refugiados no Brasil. Iniciar-se-á tal jornada a partir da Constituição Federal e suas disposições acerca da cooperação internacional e da solidariedade entre os Estados, tida como componente moral e indissociável das relações internacionais, passando-se a tratar da positivação da proteção específica ao refugiado trazida pela lei 9.474/1997. Na sequência, no segundo capítulo, pretende-se restringir o enfoque do artigo às demandas das mulheres refugiadas. Com esse objetivo, se dará atenção às causas que asseveram a vulnerabilidade pertinente ao gênero feminino quando em ocasião de deslocamento forçado.
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Por fim, o capítulo três busca confrontar a Lei 9.474/97 com as demandas de proteção apresentadas, apresentando a ética da alteridade como meio de sanar as falhas naturais que todo o processo de positivação apresenta.
1. Direitos dos Refugiados no Brasil O princípio da cooperação internacional e a solidariedade entre os Estados é que garantem ao direito internacional fundamento para dar efetividade aos seus intentos de caráter humanitário. Destarte, a proteção aos refugiados depende do auxílio por parte de um Estado à população de outro Estado que não se encontra em condições de assegurar a manutenção dos direitos básicos que compõe a dignidade humana aos seus. Nesse sentido, o Brasil, por conta da Constituição Federal de 1988, em seu artigo 4º, inciso IX, expressamente prevê a cooperação entre os povos para o progresso da humanidade dentre os princípios que regem suas relações internacionais. Além disso, a Constituição instituiu, em seu artigo 1º, III, o princípio da dignidade da pessoa humana, o qual fundamenta o aspecto legal e moral de todos os esforços que devem aplicados com objetivo de dar proteção aos refugiados. Não se nega que a devida importância aos direitos humanos só se deu no Brasil com o processo de redemocratização e com a consequente promulgação da Constituição de 1988. Faz-se, ainda, a observação de que o disposto na referida carta constitucional é indispensável para assegurar a aplicação dos direitos do refugiado. Todavia, a preocupação do país em colaborar com a questão internacional dos refugiados data de décadas antes, tendo o Brasil papel pioneiro na América Latina em assuntos envolvendo a questão. No Cone Sul o Brasil foi o primeiro país a ratificar a Convenção relativa aos refugiados de 1951, “que a promulgou internamente por meio do Dec. 50.215, de 28.01.1961” (RAMOS, 2010). Além disso, “foi ainda um dos primeiros países integrantes do Comitê Executivo do ACNUR, responsável pela aprovação dos programas e orçamentos anuais da agência” (ACNUR, 2016). O refúgio no Brasil ganhou regulamentação nacional em 1997, quando foi editada a Lei brasileira 9.474 de 1997, disciplinando o estatuto do refugiado no Brasil. A Lei brasileira, além de internalizar os critérios estabelecidos pela “Convenção de 1951 para a definição de refugiado (artigo 1º, parágrafo 1º “C”), amplia esse concei129
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to com fundamento na Declaração de Cartagena de 1984 conjugando, dessa forma, a definição clássica e a definição ampliada de refugiado” (SOARES, 2012, p. 64). Desde então o Brasil “já recebeu refugiados de Angola, Serra Leoa, Afeganistão e outros sob o abrigo desse dispositivo legal.” (RAMOS 2010, p. 17). A Lei 9.474/1997 é considerada pela Organização das Nações Unidas (ONU) como parâmetro para a adoção de uma legislação uniforme entre os países da América do Sul. Segundo Rosita Milesi e Flávia Carlet, “a aprovação da Lei 9.474/1997 representou um marco histórico na legislação de proteção aos direitos humanos e o compromisso do Brasil com o tema e a causa dos refugiados” (2012, p. 85). O estudo da lei 9.474/1997 compreende, além da já mencionada definição ampliada do conceito de refugiado, a análise dos três tipos de cláusulas contidas no dispositivo legal, quais sejam, as de inclusão, de cessação e as de exclusão. As cláusulas de inclusão definem os critérios necessários para que uma pessoa possa ser considerada refugiada, estão previstas no artigo 1º da Lei nº 9.474/1997 que dispõe: Art. 1o Será reconhecido como refugiado todo indivíduo que: I – devido a fundados temores de perseguição por motivos de raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas encontre-se fora de seu país de nacionalidade e não possa ou não queira acolher-se proteção de tal país; II – não tendo nacionalidade e estando fora do país onde antes teve sua residência habitual, não possa ou não queira regressar a ele, em função das circunstâncias descritas no inciso anterior; III – devido à grave e generalizada violação de direitos humanos, é obrigado a deixar seu país de nacionalidade para buscar refúgio em outro país. (BRASIL,1997).
O inciso I do artigo 1º da Lei 9.474/1997 apresenta quatro requisitos que devem estar preenchidos para a elegibilidade jurídica de uma pessoa na condição de refugiado. São eles: a) fundado temor de perseguição; b) perseguição por motivos de raça, religião, nacionalidade, pertencimento a um grupo social ou por opiniões políticas; c) extraterritorialidade; d) não pode ou não quer regressar ao seu país de origem, em virtude dos referidos temores de perseguição. (SOARES, 2012, p. 65)
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Como primeiro requisito tem-se o “fundado temor de perseguição”, o qual se entende como portador de dois elementos, um de ordem subjetiva e outro de ordem objetiva. O elemento subjetivo vem a ser “o temor que se apresenta como um estado de espírito da pessoa que solicita o reconhecimento do status de refugiado e varia de indivíduo para indivíduo” (SOARES, 2012, p. 66). Já o de ordem objetiva é a situação que provocou o temor, essa sim, precisa ser comprovada. Acerca do tema, Gustavo Oliveira de Lima Pereira utiliza as definições da dogmática jurídica que separa o requisito tratado em “bem fundado temor subjetivo” e “bem fundado temor objetivo”. Assim ensina que aquele é algo imaginável, ou seja, têm-se a presunção de que a pessoa “detém, em sua esfera de subjetividade, o medo de regressar ao seu Estado ou residência de origem, em virtude de sua cor, religião, nacionalidade, pertencimento a grupo social ou opinião política”. Já o bem fundado temor objetivo deveria ser comprovado pelo solicitante de refúgio. (2011, p. 38) A avaliação do elemento objetivo ocorre através da verificação da credibilidade das declarações prestadas comparada à situação objetiva do país de origem, já a do elemento subjetivo é realizada com base nas declarações prestadas pelo interessado. O teor probatório, no entanto, não obriga demasiado rigor, pois “muitas vezes o solicitante busca refúgio não possuindo nem sequer documento de identidade ou passaporte” (PEREIRA, 2011, p.38). O segundo requisito presente no inciso I, artigo 1º da lei em comento é que haja perseguição em virtude de raça, religião, nacionalidade, pertencimento a um grupo social ou opiniões políticas. Importante destacar que aqui está a referir tanto aos casos em que “a pessoa já sofreu ou está sofrendo perseguição, quanto aos que se deseja evitar uma situação futura em que poderia correr o risco de ser perseguida” (SOARES, 2012, p. 67). Quanto ao agente da perseguição, pode-se afirmar que “na maioria das vezes, ele está representado pelo próprio Estado, através das suas autoridades” (SOARES, 2012, p. 68). Entretanto, podem atuar como agentes da perseguição indivíduos que não representam o Estado, como exemplo, grupos paramilitares, etnias rivais, milícias e até mesmo a própria população. A despeito dos elogios destinados à Lei brasileira, o ACNUR entende que o Comitê brasileiro precisa melhorar sua atenção em relação aos grupos de maior vulnerabilidade, mostrando-se imprescindível a criação de procedi131
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mentos que se revelem aptos a atender determinadas peculiaridades. Buscando compreender em que pontos o ordenamento jurídico brasileiro pode ser desenvolvido como efetivo protetor dos direitos humanos das pessoas que recorrem ao refúgio, o próximo capítulo versará acerca das demandas específicas das mulheres sujeitas ao deslocamento forçado.
2. A Vulnerabilidade dos Vulneráveis: as Demandas Específicas dos Direitos Humanos das Refugiadas Salienta-se aqui a importância de oferecer proteção distinta diante de demandas naturalmente diferentes que certas pessoas apresentam, dando sustento à noção de universalização da dignidade humana a partir de contextos concretos. Conforme Luigi Ferrajoli, a lei cega ao gênero ignora e desvaloriza as diferenças em nome de uma abstrata afirmação de igualdade que se baseia em uma falsa universalização do sujeito masculino e na igualdade das mulheres por assimilação (1999, p. 173). Acerca da universalidade dos direitos humanos pensada sob uma perspectiva real de atuação, Joaquin Herrera Flores trabalha um universalismo de confluência, o qual vai de encontro à ideia tradicional dos direitos humanos que tem o universalismo como um ponto de partida. Na visão do autor, é possível que a humanidade desfrute desses direitos em todos os pontos do globo, no entanto, terá que partir de uma construção rumo à universalidade. A universalidade é, então, objetivo, não parâmetro para aplicação de categorias genéricas e abstratas. Sustenta ao autor que sua negativa está em “considerar o universal como um ponto de partida ou um campo de desencontros. Ao universal há que se chegar – universalismo de chegada ou de confluência – depois (não antes de) um processo conflitivo, discursivo de diálogo” (2009, p. 77). Nesse contexto, mesmo que o Brasil conte com a existência de uma lei específica para a proteção dos refugiados (sempre importante enfatizar que a Lei 9.474/97 é tida como referência internacional), a proteção específica que a necessidade feminina demanda pressupõe adaptações do sistema jurídico nacional para que se estabeleça o funcionamento deste diante das próprias questões que envolvem o tratamento de gêneros. Segundo a autora Carmem Miguel Juan, por muito tempo o “problema” de gênero foi tratado em termos de igualdade e diferença, como se fosse suficiente 132
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entender o que é diferente nas mulheres para conseguir igualdade material com os homens. Porém, nas últimas décadas, a questão tem sido transladada da concepção de domínio e subordinação, deixando-se de lado as diferenças, passando-se a compreender que as diferenças são criadas pelas diversas formas de se administrar o convívio social, sendo uma delas o próprio direito (2016, p. 104). Em outras palavras, o problema da discriminação de gênero pode ser visto como consequência do processo de positivação, concluindo-se, portanto, que o estado de exceção sobre o qual se debruça o humanismo jurídico talvez não seja, de fato, excepcional, mas sim consequência natural e, arrisca-se dizer, até mesmo prevista pelo Direito. Na contramão desse contexto de desigualdades despontaria os direitos humanos internacionais, aos quais não se reserva o conceito da completa ineficácia, mas, que têm, em muito, ficado no âmbito da retórica assim como a base da dignidade que os legítima e a universalidade de direitos que proclamam. De modo que parece ser um dever daqueles que se propõe a debater questões de afronta aos direitos humanos tomar caminhos num sentido que disponibilize aproximação entre o discurso e a realidade dos que necessitam para si da efetivação dessa espécie de direitos. Destarte, são muitas as demandas específicas que envolvem as mulheres no âmbito do refúgio, proporcionais à diversidade dos modos de violência que sofre o gênero, pois não bastasse o enfrentamento das questões naturais que envolvem a diáspora, a simples razão de pertencerem ao sexo feminino as fragiliza ainda mais. Conforme Dolores Juliano Corregido, mesmo o questionamento acerca da importância do gênero como variável fundamental quando da análise dos processos de imigração foi tardio. A autora baseia sua afirmação não só no peso quantitativo que as mulheres representam para a analise (são praticamente 50% dos imigrantes), como também são as mulheres o setor mais sensível nas políticas desenvolvidas a respeito do deslocamento forçado e tais conclusões obrigam os governos e entidades a mudarem seus modelos de analise e suas estratégias desenhadas para o assunto (2006, p.07.). Citando Meillasou (1978), Dolores Corregido afirma que somente na década de 80 as pesquisas sobre imigração começam a incluir aspectos sobre as mulheres, porém, “en los primeros estudios el interés se centra en las consecuencias de la migración masculina sobre ‘las mujeres que quedan detrás’” (2006, 133
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p. 07). A realidade é que ainda vige um sistema para atender aos interesses masculinos, visto que, as mulheres em grande parte do mundo não têm suporte para funções fundamentais de uma vida humana. Segundo Martha Nussbaum, elas são menos saudáveis do que os homens, “mais vulneráveis à violência física e abusos sexuais, com muito menor probabilidade do que os homens de serem alfabetizadas e menos propensas à educação profissional” (2013, p. 01). Forma de vida que tem se perpetuado, em muito, considerando que “foram os homens que inventaram o sistema jurídico e a política que dá origem a novas leis que regulamentam o uso das liberdades que viram direitos. A condição de mulher, em situação que logicamente não se limita ao ambiente das refugiadas, potencializa a exposição dessas pessoas àquilo que Marcia Tiburi (2015) classifica como “seres estupráveis”. Sustenta a autora que ser mulher em muitos contextos sociais é condição autorizadora do machismo. Aliás, parecer-se com uma já preenche requisito para ser estuprável, o que parece legitimar muitos homens a uma espécie de “direito” arcaico de estuprar, uma forma de punição imposta para aquelas que ultrapassam os limites estabelecidos pelo macho organizador das regras. A dimensão grotesca e subalternizadora do estupro infelizmente não é uma inovação social. Como instrumento de disseminação do terror e mesmo como tática de subjugação dos povos os estupros são relatos frequentes da segunda guerra mundial. Do livro “A guerra não tem rosto de mulher” de Svetlana Aleksiévitch extraem-se as palavras de um soldado que relata sua entrada em território alemão: “Capturamos umas moças alemãs e... Dez homens estupravam uma. Não havia mulheres o suficiente, a população havia fugido do Exército soviético, pegamos as jovens. Meninas...” (2016, p. 34). Segundo Simone Andrea Schwinn e Marli Marlene Moraes da Costa, no caso específico dos deslocamentos forçados, os conflitos armados são a causa mais frequente, sendo que “para as mulheres, estas situações representam um risco muito maior, uma vez que em muitos casos o estupro tem sido usado como arma de guerra” (2016, p. 224). Em entrevista realizada por representantes da ONU, refugiadas relatam “terem sido forçadas a manter relações sexuais como moeda de troca para “pagar” pelas documentações necessárias para viajar ou mesmo pela própria viagem” (ACNUR, 2016). Em muitos desses casos a urgência em deixar o local de origem era tão grande que mulheres nem sequer relataram os abusos, temendo arriscar suas vidas e as de seus familiares. É nessa perspectiva de medo que as 134
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refugiadas têm potencializadas as violações aos seus direitos, sofrendo, desde a decisão de deixar para trás o que lhes era de afeto, até os abusos praticados contra si durante o caminho. A cultura do estupro diz respeito às “maneiras em que a sociedade culpa as vítimas de assédio sexual e normaliza o comportamento sexual violento dos homens” (ONU, 2016), padrão no qual o consentimento da mulher não é valorizado, e em todo ato o que conta é a satisfação masculina, contexto no qual o homem atua “com o aval da falta de reconhecimento, de respeito e até de empatia para com o outro” (Tiburi, 2015, p. 101). Na sequência as demandas específicas das mulheres refugiadas são confrontadas com o Estatuto Brasileiro do Refugiado a fim de se realizar uma análise crítica sobre a Lei brasileira, tudo para que, na última parte da pesquisa, seja possível discorrer sobre a alteridade como fundamento ético na proteção das refugiadas.
3. Ética da Alteridade: a Construção do outro Refugiada e o Reconhecimento e Acolhimento da Diferença na Construção dos Direitos Humanos Com vistas à possível aplicação dos direitos humanos de forma universal, Costas Douzinas destaca a recepção desses direitos em cada nação como uma possível saída. Sustenta o autor que a lei é o local onde a abstratividade do caráter humano pode ganhar contornos individualizantes e concretos, pois o sistema normativo “como veículo de direitos legais medeia entre natureza humana abstrata e o ser humano concreto que vaga pela vida criando suas próprias narrativas únicas e desempenhando-as no mundo” (2009, p. 109). O mesmo autor faz a ressalva de que, no entanto, ao trazer para os Estados a tarefa de dar legitimidade aos direitos humanos por meio de suas internas construções legais, surge um “paradoxo adicional”, vez que, tais direitos “foram declarados inalienáveis porque eram independentes dos governos, de fatores temporais e locais e expressavam de forma legal os direitos do homem” (2009, p. 114). É possível compreender que a crítica aos direitos humanos se posta como alternativa a toda abstração que lhes afasta de atuarem na realidade, opondo-se a generalizações que ocultem as violações que se dão em contextos concretos. A 135
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crítica centra-se na insuficiência da teoria tradicional em corporificar os direitos humanos, dando a entender, na maior parte das vezes, que a abstratividade das normas não apresenta correspondência com os fatos, como se aquilo que se identifica como real não fizesse qualquer diferença diante de normas que tudo (ou quase tudo) abarcam. (AQUINO e GRUBBA, 2015, p. 13). Entretanto, em que pese a positivação generalizar direitos que necessitam ser aplicados de forma tão individual, sabe-se que os direitos humanos foram positivamente impactados no mundo ocidental quando passaram a compor as constituições, na forma de direitos individuais fundamentais, sobretudo no segundo pós-guerra. Portanto, é preciso destacar que a positivação não guarda sozinha todos os problemas da efetivação dos direitos humanos, mas, repisa-se, precisa se dar de modo proporcional às diversas realidades e humanidades existentes ao redor do planeta para que possa ter a chance de apresentar-se de modo concretizável. (GAUER, SAAVEDRA e GAUER, 2011, p. 110) Nesse contexto crítico as palavras de Gustavo Oliveira de Lima Pereira também ganham relevância quando sustenta que “longe da realidade do mundo da vida, existe uma gama de complexidades que a interpretação positivista, em todas as suas nuances, não apresenta condições de dialogar” (2011, p. 125). Ruth Gauer, Giovani Saavedra e Gabriel Gauer sustentam, portanto, que faz parte do futuro dos direitos humanos o desenvolvimento de um sistema que permita a positivação, mas que não perca a capacidade crítica (identificável em realidades concretas) e sua indispensável associação aos contextos democráticos. (2011, p. 110) Denota-se, nesse contexto, que os estrangeiros refugiados, quem muito necessitam da proteção do Estado, são justamente aqueles que ficam à sua margem. Conforme Gustavo Oliveira de Lima Pereira, apresentam-se os refugiados como “o resíduo do estado de direito” (2011, p. 79). Nas palavras do mesmo autor, os refugiados podem ser identificados como aqueles que “restaram após a afirmação histórica dos direitos humanos e sua ‘conquista’” (2011, p. 79). Destarte, é neste contexto que o Estatuto Brasileiro do Refugiado se apresenta como uma das legislações tendentes a equilibrar os direitos humanos dos refugiados com aqueles previstos pelas normas destinadas aos brasileiros. Tem-se, então, a Lei 9.474/1997 como instrumento de tutela que normatiza os direitos que permitem a chegada de pessoas que buscam em território brasileiro condições de dignidade humana abaladas em seus locais de origem. 136
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Entretanto, mesmo com o compromisso firmado na Lei 9.474/1997, ainda que diante das coerentes intenções das instituições envolvidas no procedimento que envolve o requerimento do refúgio, a prática demonstra que há falhas que vão além do que a Lei pode assegurar. Já nas fronteiras, os agentes de Polícia Federal que muitas vezes “não recebem capacitação técnica necessária para lidar com a questão dos refugiados e atuam muitas vezes como substitutos (ilegais) do CONARE, determinando eles próprios quem é e que não é ‘refugiado’” (SOARES, 2012, p. 151). Ainda pior é quando violam o princípio do “non refoulement”, “deportando os estrangeiros sem observar o procedimento previsto na Lei nacional, violando, consequentemente, o direito de solicitar refúgio” (SOARES, 2012, 151). Tais casos deixam evidente que se o atendimento geral é precário, as violações à dignidade da mulher em sua travessia, a possível condição de gestante e até mesmo as doenças adquiridas em razão de atentados a sua liberdade sexual ficam para um segundo, terceiro e até inexistente plano de justiça. A condição feminina é relegada por uma perspectiva androcentrica de direito, que toma “o homem como medida de todas as coisas” (GARCIA, 2015, p. 15), faz com que as refugiadas se encontrem em um cenário de duplicado machismo, uma vez que, trazem consigo a opressão do lugar que deixaram e no país de acolhida são recebidas com toda opressão de gênero local. De forma que, reconhecido o status do refúgio, passam as mulheres refugiadas assim reconhecidas a terem os direitos e deveres de qualquer nacional, e, então, nas mesmas condições – e falta delas – de vida oferecidas às cidadãs brasileiras. Conforme noticia o ACNUR, “A falta de moradia e o acesso ao mercado de trabalho são os principais desafios enfrentados atualmente pelos refugiados e solicitantes de refúgio que vivem no Brasil” (ACNUR, 2011). Além disso, o preconceito mostra-se como um fator nodal a justificar a dificuldade de adaptação e sobrevivência dos refugiados no Brasil. Muitas vezes perpetuado de maneira velada ele aparece e é sentido pelos refugiados que apontam o preconceito como a maior dificuldade enfrentada no país. Para as mulheres, essa dura realidade é mais uma das razões que faz com que as deslocadas incorram em graus negativos de humanidade por constituírem como refugiadas um total Outro para os nacionais e, mais grave, um Outro mulher em meio a uma sociedade em que a opressão ainda se mostra como característica da condição feminina.
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A construção imaginária da Outra refugiada é de uma carga ainda mais destrutiva, como explica Sandra Gil Araujo, por meio de práticas discursivas e legais se constroem um imaginário sobre a mulher refugiada que às identifica imutavelmente como: “Víctimas (de su cultura, de sus maridos, de la tradición, de la ignorancia, de ellas mismas), In-capacitadas, Dependientes, Sumisas, Tradicionales, Subdesarrolladas y Pobres, como sus países.” (2016, p. 21). Segundo a autora esse etiquetamento perpetrado contra as refugiadas às coloca em oposição ao imaginário do que se tem por mulher ocidental que seriam as “mujeres Capaces, In-dependiente, Modernas, Desarrolladas, Educadas, Dinámicas, Emancipadas, como la UE.” (2016, p. 21). No Brasil poderia se esperar um comportamento diferente, visto que trata-se de um povo cujas próprias raízes fundam-se em movimentos forçados, seja dos escravos que aqui foram obrigados a aportar, seja pelos migrantes em busca de melhores condições, ou mesmo por conta dos refugiados de zonas de conflito que refizeram suas vidas neste país. Todavia os refugiados que aqui tentam se estabelecer apontam como um dos maiores problemas o preconceito por parte dos nacionais. Para que o Brasil possa ter mais do que uma Lei exemplar para refugiados é preciso que seja trabalhada a relação do brasileiro para com a refugiada, para que o medo do nacional em relação à chegada do Outro não seja motivo de contribuição para comportamentos autoritários que denotam os machismos que ainda pairam numa espécie de senso comum. O Outro, esse ser que, conforme Emmanuel Levinas, está infinitamente distante do Eu, assim como infinita a responsabilidade que há entre eles, uma vez que, só no Outro o Eu tem capacidade de aprender, evoluir, de exercer humanidade. A tudo que o Eu for interpelado pelo Outro tem o dever de resposta, pois, essa responsabilidade tem ainda a característica de ser indelegável, vez que, Deus não está nas relações humanas e, portanto, não há a quem se transfira o dever do Eu para com o Outro (Levinas, 1997, p. 123). A ética de alteridade, por conseguinte, acarreta “consciência de uma responsabilidade infinita para com a alteridade do outro” (SIDEKUM, 2013,p. 06) e evidencia a “necessidade do ateísmo como referencial da ruptura da humanidade com seus mitos e da indelegabilidade da responsabilidade pelo outro” (PEREIRA, 2011, p. 165). Conforme Costas Douzinas, essa demanda do Outro pela responsabilidade do Eu “precede minha liberdade ontológica e a torna ética, a aceitação de
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uma vocação a qual somente eu posso responder quando conclamado. Ser livre é fazer o que ninguém mais pode fazer em meu lugar” (2009, p. 356). Se no Outro está a obrigação inerente do Eu, também nele está a possibilidade de evolução e de rompimento com o nacionalismo sedentário e com o machismo enraizado que preconceitua e oprime o impulso de vida da mulher refugiada.
Considerações Finais: Entende-se, portanto, que a questão da proteção das mulheres refugiadas não deve ser tratada exclusivamente sob a perspectiva legal, dado que a lei, apesar de fator essencial na efetividade dos direitos humanos, tem o condão paradigmático de criar os problemas aos quais se posta a combater. Este estudo procurou salientar a ideia de que mesmo que a lei muitas vezes possa encontrar sérias dificuldades de efetivação ou aplicabilidade diante de aspectos culturais, o reconhecimento pela norma instiga e provoca discussões a ponto de tentar afastar a ignorância e o comodismo de uma cultura que vem beneficiando o gênero masculino em todas as esferas sociais a despeito dos direitos e necessidades do gênero feminino. A condição de mulher e refugiada mostrou-se, portanto, como um dos tristes exemplos de como é o próprio direito com seus mecanismos de normatização que acaba por promover as exclusões que, num segundo momento, tenta tutelar sob a justificativa dos direitos humanos. E isso acontece porque a tão propagada universalização dos direitos humanos provém de ideal baseado no homem stricto sensu, o qual desfigura e subjuga a mulher fechando os olhos às suas necessidades particulares em uma tentativa profana de igualdade. Essa situação, no contexto das mulheres refugiadas, fica evidente quando da análise das leis destinadas à proteção dos refugiados, pois desconsideram as nuances específicas dos grupos de vulnerabilidade existentes, especialmente o da mulher que, tendo a sorte de chegar viva ao país de acolhida, talvez jamais recupere a dignidade que lhe foi tomada pelo simples fato de ser mulher, mulher refugiada. Por tais razões, se a lei não tem sido capaz de conceber a proteção necessária às mulheres refugiadas a pergunta que inevitavelmente se segue é a quem recorrer. Este artigo propôs a ética da alteridade como uma possibilidade de complemento aos institutos legais por meio de um chamado ético àquilo que 139
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dignifica a humanidade, a responsabilidade do Eu para com o Outro por meio da compreensão das diferenças e da superação de preconceitos. A implementação da alteridade se dá pela instrução, pelo diálogo e, como qualquer aprendizado, exige processo de conhecimento que, em regra, não se opera imediatamente. Vale, entretanto, o tempo que cobra pela expectativa de que se desenvolva um país de pessoas responsáveis pela sua condição humana.
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Mulheres e Discursos: Delineamentos sobre os Ensinos Formal e Informal
Como Educamos as Mulheres: uma Reflexão sobre Liberdade de Identidade e de Comportamento Beatriz de Almeida Coelho1 RESUMO: “As mulheres representam uma imensa multidão de seres que não puderam se tornar quem eram, ou quem desejavam ser, porque foram educadas para servir aos homens“ (TIBURI, Márcia, 2018). A presente pesquisa parte-se do questionamento de que em que medida as práticas reguladoras de formação e divisão de gêneros entre feminino e masculino constituem a identidade das mulheres; em que medida é a identidade das mulheres um ideal normativo, ao invés de uma característica descritiva da experiência pessoal. E mais: a quem e para que serve a predeterminação dessa identidade. Para tanto, com método de abordagem dedutivo e de procedimento bibliográfico, iniciou-se apresentando os modelos de predeterminação de comportamento e identidade das mulheres que resulta na dicotomia feminino-masculino, especialmente seguindo a teoria da comunicação da perspectiva sistêmica; chega-se à construção da educação religiosa e moral das mulheres. Por fim, verificou-se quais as finalidades da propagação desses ideais e qual seria o impacto de desconstruir a polarização homem-mulher. Palavras chave: feminilidade; dicotomia masculino-feminino; patriarcado; educação;
Considerações Gerais Impõe-se às mulheres a obrigação de lidar constantemente com a relação entre identidade, comportamento e feminilidade. Quando apresentado a partir de uma ideia singular, o conceito de feminilidade revela-se extremamente 1
Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina, na área de Historicismo, Conhecimento Crítico e Subjetividade. Graduada em Direito (CESUSC). Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/9599053140306671
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perigoso. É que pode-se acreditar em um único tipo de feminilidade que exista a priori, que afasta a ideia de processo e construção pessoal; porque pode-se propagar a ideia de uma feminilidade que faz sacrificar a individualidade e, até mesmo, faz questionar a integridade como ser humano; porque pode-se acreditar que na essência da mulher está em ser alguém que se esforça incessantemente para alcançar padrões impostos pelo patriarcado. A característica fundamentalmente social e relacional do conceito não deveria, no entanto, levar a pensá-lo como se referindo à construção de um único papel feminino e, por consequência e oposição, outro masculino. Os papeis são padrões ou regras arbitrárias que uma sociedade estabelece para definir comportamentos, roupas, modos de relacionamento de seus membros (LOURO, 1997). Através do aprendizado desses papeis predeterminados, as mulheres devem conhecer o que é considerado adequado – e inadequado – para uma mulher e responder a essas expectativas (LOURO, 1997). Em relação aos direitos das mulheres, o que se tem é que, desde a Constituição Federal de 1988, há a obrigação jurídica de tratamento igualitário, sem distinção de qualquer natureza, especialmente em razão do gênero, normatizada no inciso I do artigo 5º: Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: I – homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição; (BRASIL, 1988).
Ocorre que, conquanto haja o reconhecimento jurídico da igualdade das mulheres perante os homens e que esse pensamento esteja arraigado nos campos teóricos e na práxis brasileira, vê-se na concretude determinadas hierarquizações na sociedade brasileira (BAGGENSTOSS, 2017). As alterações introduzidas nos textos normativos que sucederam a Constituição Federal de 1988 não foram suficientes para evitar na prática as constantes desigualdades e discriminações sofridas pelas mulheres em razão do gênero. É o que, a título de exemplificação, ocorreu com o Código Civil de 2002:
Na ânsia de estabelecer a igualdade, olvidou-se o Código Civil [2002] de marcar a diferença. A mulher ainda está fora do mercado de trabalho mais qualificado, ganha menos no desempenho das mesmas funções, tem dupla jornada de trabalho, ou seja, ainda não dá pra falar de igualdade. Outra realidade que se impõe, em números quase absolutos, é que os filhos ficam sob a guarda da mãe. A essa realidade deveria estar atento o codificador, mas omissões não faltam. Não foram regulamentadas as novas estruturas familiares. Deixou a lei de atender que a Constituição Federal [1988] reconheceu as famílias monoparentais. Tal omissão prejudica o universo de 32% das famílias brasileiras que são chefiadas por mulheres (BRASIL, 2002).
Quer dizer, o aparato jurídico constitucional e infraconstitucional brasileiro não conseguiu resolver concretamente os problemas de discriminação direta e indireta que atingem as mulheres enquanto coletivo vulnerável que necessitam de ações positivas e políticas públicas que levem em consideração o princípio da fraternidade como elemento fundamental (OLIVEIRA, 2016). Parece que Simone de Beauvoir já tinha nos antecedido as circunstâncias que, de fato, aconteceriam e que, infelizmente, descrevem com extrema exatidão o que ainda ocorre nos dias de hoje: Aliás, a grande maioria dos homens não assume explicitamente essa pretensão. Eles não colocam a mulher como inferior; estão hoje demasiado compenetrados do ideal democrático para não reconhecer todos os seres humanos como iguais. No seio da família, a mulher apresenta-se à criança e ao jovem revestida da mesma dignidade social dos adultos masculinos; mais tarde ele sente no desejo e no amor a resistência, a independência, da mulher desejada e amada; casado, ele respeita na mulher a esposa, a mãe, e na experiência concreta da vida conjugal ela se afirma em face dele como uma liberdade. O homem pode, pois, persuadir-se de que não existe mais hierarquia social entre os sexos e de que, grosso modo, através das diferenças, a mulher é sua igual. Como observa, entretanto, algumas inferioridades – das quais a mais importante é a incapacidade profissional – ele as atribui à natureza. Quando tem para com a mulher uma atitude de colaboração e benevolência, ele tematiza o princípio da igualdade abstrata; a desigualdade concreta que verifica, não a põe. Mas, logo que entra em conflito com a mulher, a situação se inverte: ele tematiza a desigualdade concreta e dela tira autoridade para negar a igualdade abstrata. Assim é que muitos homens afirmam quase com boa-fé que as mulheres são iguais aos homens e nada têm a reivindicar e, ao mesmo tempo, que as mulheres nunca poderão ser iguais aos homens e que suas reivindicações são vãs. É que é difícil para o homem medir a extrema importância de discrimi147
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nações sociais que parecem insignificantes de fora e cujas repercussões morais e intelectuais são tão profundas na mulher que podem parecer ter suas raízes numa natureza original. Mesmo o homem mais simpático à mulher nunca lhe conhece bem a situação concreta. (BEAUVOIR, 2016).
É em tal panorama que se pretende analisar em que medida as práticas reguladoras de formação e divisão do gênero constituem a identidade das mulheres; e em que medida é a identidade um ideal normativo – que foi padronizada, ao invés de uma característica descritiva da experiência das mulheres. E mais: a quem e para quê serve esse tipo de identidade. O questionamento foi retirado com o devido respeito da obra de Judith Butler (2016) e se limita ao recorte desta pesquisa, o que por si só antecede excusas quanto à profundidade. Nesta pesquisa, parte-se da concepção de que feminino e masculino não são fatos naturais ou biológicos, mas construções culturais. Acrescenta-se a essa descrição que as diferenças biológicas homem-mulher são deterministas, são dadas pela natureza, mas como seres culturais, a biologia não determina nossos comportamentos. Compreende-se gênero como o conjunto de normas, obrigações, comportamentos e pensamentos determinados para homens e mulheres em razão do sexo biológico (GARCIA, 2015, p. 15). Partindo-se de tal objetivo, será brevemente abordado o teor social das teorias de comunicação. Segue-se apresentando os modelos de predeterminação de comportamento e identidade das mulheres, que culminam na dualidade tóxica feminino-masculino. Na sequência, restringe-se à construção moral e religiosa da educação das mulheres. Com este enfoque, busca-se reconhecer o histórico cultural, político e religioso que resultou nesses modelos. Ao final, faz-se a vinculação de tais modelos de predeterminação com a construção moral e religiosa da educação das mulheres e verifica-se para que e a quem servem a propagação desses ideais.
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1. A Dicotomia Feminino-Masculino como uma Predeterminação de Comportamentos A rigor, as formas com que as pessoas se comunicam modelam-se a partir de valores que identificam um determinado sistema ou programa de pensamento. Quer dizer, os sistemas são complexos de distintas variáveis em interação que são caracterizados pelos valores passados por operações de comunicação (BAGGENSTOSS, 2017). E a partir dos discursos manifestados por alguém, é possível constatar quais os princípios ou convicções adota. É o que resolve o paradoxo de certo e errado ou distingue o que se deve ou não fazer. Mas também é a partir dessas concepções que são transpassadas as relações de poder. As condições de comunicação possuem natureza social – não individual, e naturalmente se vinculam às estruturas sociais. É que um produto ideológico, assim como todo corpo físico, instrumento de produção ou produto de consumo, faz parte de uma realidade; e, mais do que isso, retrata outra realidade, que lhe é exterior. Todos os produtos ideológicos são signos que traduzem alguma representação: símbolo religioso, fórmula científica, forma jurídica (BAKHTIN, 2006). Os elementos culturais contemplam necessariamente as questões que envolvem as linguagens e os signos. Quer dizer, controlam a criação e reprodução das estruturas sociais: podem disseminar ideais violentos e padrões limitadores e excludentes como se fossem naturais, tal qual podem propagar ideais de liberdade e equidade. Se pensarmos nos signos usados para marcar corpos, concluiremos que a mulher é o ser marcado para servir ao mundo de privilégio patriarcal. Sob o signo do capitalismo, criou-se um devir-mulher, assim como foi criado um devir-negro no sentido de uma marcação com o objetivo da escravização (TIBURI, 2018). Para docilizar as pessoas marcadas como mulheres, inventou-se o “feminino”, como um termo para salvaguardar a negatividade que se deseja atribuir às mulheres no sistema patriarcal. Elogiado por poetas e filósofos, o feminino nada mais é do que a demarcação de um regime estético-moral; o pré-estabelecimento de um comportamento que se espera das mulheres. Entre o elogio do caráter feminino e o feminismo há um abismo estético, ético e político; um abismo antropológico que continua a reproduzir questões teológicas (TIBURI, 2018). A luz do senso comum, a ideia de feminilidade parte de um conjunto de atributos que torna alguém feminina; uma infinidade de características que são 149
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relacionadas ao gênero feminino. A feminilidade englobaria, portanto, um padrão de aparência física, de comportamentos e de vontades (NISENBAUM, 2017). Em termos físicos, a feminilidade coincide com o padrão de beleza vigente: atualmente, a mulher feminina é magra, tem cabelos compridos e “domados”, usa maquiagem, sapatos de salto e depila o corpo. Em termos comportamentais, ela quer casar e ter filhos, não é chefe de família, não confronta, nem levanta o tom de voz. Em outras palavras, é dócil e submissa. Ela também é altamente emotiva, carinhosa, cuidadosa, maternal, o que teoricamente a tornaria incapaz de tomar decisões de fundo racional, sendo frequentemente tomada pelos sentimentos (NISENBAUM, 2017). Alheio a isso, as mulheres são educadas para enlaces românticos. Não como uma possibilidade de vida, mas como um plano único de sucesso. Dizem, desde cedo, entre panelinhas, bonecas e vassouras cor-de-rosa, que o objetivo existencial das mulheres é encontrar a alma gêmea e ter o afeto correspondido – e, novamente, retorna-se aos padrões de que para ser “amada e respeitada” devem-se cumprir certos requisitos. Ao contrário do que ensinam para os meninos. Salvar o mundo, ser feliz, virar astronauta, descobrir-se cientista: são anseios que são permitidos com mais facilidade aos homens (ESTEVANS, 2017). Por entender que heróis são mais poderosos do que princesas e fadas, há uma facilidade muito menor em aceitar meninas que incorporem o primeiro papel. Em sua dissertação de mestrado, a pesquisadora canadense sobre gênero e mídia, Anita Sarkeesian, analisou a representação de mulheres consideradas poderosas na televisão, no cinema e nos jogos: “as personagens femininas vistas como fortes e empoderadas personificam muito dos traços considerados masculinos, mantendo uma divisão patriarcal dos papéis de gênero” (CAFÉ, 2017). As mulheres ouvem, desde a infância, que de sua aparência depende tudo. A mulher é um corpo lindo – disse o poeta. Ensinam-lhes que ela deve ser carne: ancas, pernas e seios. Convenceram-nas de que, se não forem as mais bonitas, não serão mais ninguém (STUDART, 2016). Quer dizer, ainda mora no imaginário coletivo brasileiro a tendência de se estabelecer o modo de ser e de existir da mulher: ela deve ser decente e honesta; deve agir de forma agradável, pacífica e discreta; deve permanecer, de preferência, no espaço privado de casa ou, se no espaço público, em local que não seja de muito destaque; deve aceitar as decisões que são tomadas para ela. É 150
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a ideologia do senso comum de que, para ser respeitada, a mulher deve manter um determinado comportamento (BAGGENSTOSS, 2017). De forma complementar, aprende-se que determinados comportamentos se referem a uma suposta “natureza masculina”: homens não conseguem se controlar ao ver uma mulher atraente; homens não choram e não demonstram sensibilidade ou vulnerabilidade; são naturalmente propensos a infidelidade; são agressivos; entre tantas outras mentiras (NISENBAUM, 2017). Perpetua-se então a dualidade feminino e masculino: em que o masculino é tudo aquilo que é primeiro e primordial. O mundo se definiu – e se define, em masculino e ao homem é atribuída a representação da humanidade, de tudo que é universal. Isso é o androcentrismo: considerar o homem como medida de todas as coisas (GARCIA, 2015). Márcia Tiburi (2018) ensina que “as mulheres representam uma imensa multidão de seres que não puderam se tornar quem eram, ou quem desejavam ser, porque foram educadas para servir aos homens”. Disso decorre que a mulher se conhece e se escolhe, não tal como existe para si, mas tal qual o homem a define. “O homem é o sujeito, o Absoluto; ela é o Outro” (BEAUVOIR, 2016). O dualismo feminino-masculino é constituído em cadeias de significações impregnadas por um simbolismo sexual que se mantém ao longo dos tempos, apesar das variáveis históricas e das diferenças temporais que incidem sobre o desenvolvimento da tradição ocidental. Mantém-se, por exemplo, a metáfora do corpo como pura matéria associada à natureza e os dualismos mente/corpo, razão/emoção, cabeça/coração, lidos invariavelmente pelo paradigma homem/ mulher (SCHMIDT, 2016). O feminino não é só considerado secundário, como também subalterno. Na medida em que a mulher foi o primeiro ser humano a sofrer a escravidão, antes mesmo que os escravos eram fundamentados em um modo de produção, a mulher carrega o pesado fardo da tradição da subalternidade (SAFFIOTI, 1976). Não à toa, termos como “mulherzinha” são considerados pejorativos. No documentário “The Mask We Live In”, o sociólogo Michael Kimmel constrói a ideia de que para começar uma briga em um parquinho, basta perguntar a um grupo de meninos quem, dentre eles, é a mulherzinha. Ao rotular o outro, os meninos tentam se livrar desses estigmas porque nada pode ser tão ruim quanto ser associado a algum estereótipo feminino. 151
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Esse discurso é difundido e reproduzido pelas mais diversas fontes de conhecimento, tal qual na filosofia e, paradoxalmente, no Direito. Mas principalmente traz relevantes influências na forma como as mulheres são ensinadas desde crianças, como parte de um ensinamento religioso ou presumidamente moral. São perpetuadas referências que ultrapassam os limites do ambiente privado (transmitidos dos pais para os filhos) e que justificam a manutenção de uma sociedade patriarcal.
2. A Construção da Educação das Mulheres Pautada em Ensinamentos Morais e Religiosos Desde a mais tenra infância, é possível notar uma segmentação de produtos oferecidos às meninas e aos meninos. Roupas, brinquedos e conteúdo midiático permeados de signos que perpetuam o maniqueísmo força/fragilidade. Contudo, a problemática é um pouco mais sensível do que a cozinha de plástico rosa e o carrinho azul, ou do que as fantasias de princesa e as fantasias de super-herói, principalmente porque ela não é solucionada ao inverter apenas as cores dos objetos, mas em entender os valores intrínsecos em cada um deles (CAFÉ, 2017). É que são a partir de discursos que são construídos e transformados limites em muros essencialistas, especialmente quando sugerem condições naturais e divinas para fazê-los imóveis às mãos humanas. Esses muros prendem a vida e a imobilizam em espaços de estagnação, produzindo exclusão, exploração, racismo, classicismo, sexismo. A partir do mesmo argumento, o suspeito discurso disfarça os limites e se funda em sentimentos amorosos românticos, como se não fossem o resultado de ideias que nos prendem em uma comodidade viscosa, nos desresponsabilizando do que vamos construindo como sociedade (PISANO, 2017). Quer dizer, a partir de ensinamentos pautados em argumentos religiosos ou presumidamente morais transpassam-se os ideais que visam manter a sociedade patriarcal. Neste aspecto, a religião reveste-se de uma conotação disciplinadora. Insere-se na cultura quando objetiva estabelecer valores e normas, ao ditar hábitos e costumes, estigmatizando corpos e padronizando mentes. A partir disso, dogmas religiosos alcançam e influenciam a compreensão das pessoas, mormente porque buscam estabelecer e regrar comportamentos.
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Há, portanto, um modelo normativo de mulher da mulher santificada como uma pessoa que deve nutrir as características de castidade e abnegação. É que, no século XIX, o fomento da sexualidade feminina era considerado como um perigo à época. O pensamento do sexo para a mulher considerada honrada está ligado à dessexualização do corpo: sob tal ideologia, a mulher não precisaria sentir prazer nas relações sexuais; deveria manter a castidade, mesmo no casamento; e deveria relacionar-se sexualmente apenas para a procriação (BAGGENSTOSS, 2017). Os dogmas religiosos sempre definiram padrões comportamentais femininos. No caso do Brasil, vê-se o catolicismo influenciando de maneira considerável a representação simbólica feminina ao impor às mulheres a imagem da Virgem Maria e Mãe. A partir dessa ideologia, a mulher, para ser respeitada, deveria manter um determinado comportamento, desenvolvendo a abnegação, a castidade, a submissão, especialmente aos homens; casar-se, mantendo-se casta; exercer a maternidade. Todos esses pensamentos propõem que seja natural a secundariedade das mulheres, quer dizer, buscam difundir a naturalização da submissão das mulheres (BAGGENSTOSS, 2017). Na mitologia, Deus criou Lilith, a primeira mulher, do mesmo modo que havia criado Adão. Adão e Lilith nunca encontraram a paz juntos. Ela discordava dele em muitos assuntos e recusava-se a deitar debaixo dele na relação sexual, fundamentando sua reinvindicação de igualdade no fato de que ambos haviam sido criados da terra. Quando Lilith percebeu que Adão a subjugaria, proferiu o inefável nome de Deus e pôs-se a voar pelo mundo. Finalmente, passou a viver numa caverna no deserto, às margens do Mar Vermelho. Por essa razão, Deus criou Eva, da costela de Adão (a costela representa a necessidade), para obedecê-lo e servi-lo (KOLTUV, 2017). O arquétipo de Lilith personifica os aspectos negligenciados e rejeitados da mulher, que não condizem com a manutenção da subalternidade da mulher que se espera. É que por impor suas vontades e não se sujeitar às imposições de Adão, Lilith foi considerada como o “demônio feminino noturno de longos cabelos” (KOLTUV, 2017). Para Schimidt (2016), a posição da Igreja Católica reflete dois objetivos primordiais que se completam: de um lado, difunde-se a doutrina religiosa na qual a mulher sempre figurou como ser secundário e suspeito; e, de outro, demonstra seus interesses na manutenção da ordem vigente nas sociedades de
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classes. O que se vê é que o comportamento da Igreja não se difere da atuação dos demais grupos empenhados na preservação do status quo capitalista. Assim como estes, a Igreja tem evidenciado um esforço de refinamento das técnicas sociais para manter, ainda que disfarçadamente, a mulher submissa ao homem. A educação, por sua vez, transita no grupo social com a função de transmitir e veicular a cultura geral de uma sociedade. Por meio da educação, são alicerçados os valores culturais e religiosos, em defesa de uma determinada ideologia e são configurados os parâmetros que pregam os ideais morais (BAGGENSTOSS, 2017). Existem teorias que se pretendem científicas que sustentam o essencialismo de gênero. Esse pensamento defende que uma convivência relacional homem-mulher deve ser pautada pela superioridade da razão masculina e, por consequência, os homens devem ocupar os espaços públicos. Complementa-se o pensamento de que as emoções das mulheres devem ser controladas conforme a vontade do homem e restrita aos espaços privados. Daí se reitera a compreensão de que o lugar da mulher é no lar (BAGGENSTOSS, 2017). O arquétipo do eterno feminino reduz a mulher à condição de trabalhadora doméstica sem remuneração, à socializadora dos filhos e da família e à garantidora da prosperidade da família, como se a economia doméstica fosse habilidade intrínseca transpassada na combinação dos dois cromossomos X. Evidentemente, a incompatibilidade da mulher com o trabalho fora do lar mantinha perfeita coerência com a hierarquia familiar. Mesmo porque a independência econômica constitui, potencialmente, um ascensor da posição da mulher na família. Além de ser uma ótima válvula da liberdade da mulher. É que para que a estrutura do grupo familiar se mantenha intacta, impõe-se a manutenção da mulher na condição de dependente economicamente do marido. Eis por que se invoca razões suficientes da permanência da mulher no lar, a preservação da honestidade do sexo e as obrigações domésticas (SCHMIDT, 2016). Deve-se alertar para o seguinte: a educação e a religião, por muito tempo, foram consideradas como porta-vozes de neutralidade, com vistas à manutenção pacífica do meio social. Sob tal justificativa, são disfarçados interesses através de um manto encantado de imparcialidade (BAGGENSTOSS, 2017).
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3. A Subjugação das Identidades das Mulheres Numa perspectiva relacional complexa em que se insere a questão de gênero, é possível frisar dois aspectos das relações envolvidas na desigualdade entre homens e mulheres: o primeiro é a perspectiva da pessoa que afirma sua superioridade frente à outra em virtude do seu gênero; o outro, é a perspectiva da pessoa que se conforma com essa suposta inferioridade (BAGGENSTOSS, 2017). A condição de subalternidade depende de um discurso, de uma espécie de texto que é dito diariamente ou de um subtexto que permanece secreto. O romantismo nas relações familiares, que são muitas vezes as mais cruéis, serve para propagar as funções do casamento e da maternidade. Essas funções são apresentadas como forma de ensinamentos morais. As virtudes cristãs das mulheres – a capacidade de cuidar; a compaixão; a compreensão; a feminilidade na forma de delicadeza; a sensualidade; a paciência -, servem para ocultar o subtexto do machismo que dita “para que serve” uma mulher. E elas servem (TIBURI, 2018). A identidade das mulheres não pode ser transformada em verdade absoluta, muito menos ditada por um padrão de feminilidade. É preciso saber que é a identidade absoluta do “homem branco” – do poder e da dominação do homem racista e machista -, que subjuga os outros à não identidade (TIBURI, 2018). A criação de uma identidade previamente estabelecida e a normalização de comportamentos indicados para um determinado padrão reflete-se no olhar dominante das relações de poder, em que se atribui defeitos e qualidades. À medida que determinada conduta é determinada como “normal e correta” ou, por outro lado, “errada e desviante”, há a repressão e sanção com a mesma força com a qual é criado esse esquema de simbologias. Então, ao mesmo tempo que esse discurso neutro confere normalidade a determinados comportamentos, também suprime a humanidade de outras ações. É nítido que são produzidas intencionalmente situações de anormalidades ou de pecado (BAGGENSTOSS, 2017). Ao se transpor essas ideias ao panorama social, político e jurídico em que se encontra os debates de gêneros é possível identificar os signos criados pelos discursos morais da religião e da educação, que objetivam manter esses padrões de comportamento. E pior: essa normatização de condutas transborda o plano dos discursos e se concretiza em ações discriminatórias que são difíceis de serem
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detectadas, porque estão disfarçadas do poder inerente ao protagonismo sexual, no qual as mulheres exercem a parcela dominada (BAGGENSTOSS, 2017). A exclusão daquilo que se diz feminino da razão nos discursos epistemológicos se alinha com a história literal da desvalorização e da exclusão milenar das mulheres dos campos da ciência e da cultura. Precisamente por essa razão que não existem muitas mulheres que são destacadas nos campos filosóficos e científicos. Não porque as mulheres não possuem capacidade racional. Esse panorama é apenas uma das metáforas possíveis de se fazer para moldar e descrever a expressão social como um todo (SCHMIDT, 2016). Na operação dessa metáfora, o dualismo homem-mulher produz uma assimetria de gênero que é expressão de uma estrutura de poder político que se legitima através de um sistema de oposição presumidamente naturais ou essenciais. Mas que se estudadas a fundo, é possível verificar que não são (SCHMIDT, 2016). Essa operação configura um processo de mascaramento ou acobertamento, através do qual o patriarcado esconde suas estratégias de poder para fabricar uma verdade única. É o que concluiu Judith Butler (2016) ao examinar a manipulação epistêmico-discursiva na construção do ser mulher como um “fato natural” que difunde o natural como se fosse o efeito de um real original e inevitável.
Considerações Finais Este estudo procurou salientar a ideia de que ainda há a tendência de se estabelecer o modo de ser e de existir da mulher, estabelecendo alguns padrões de comportamento, sob a construção de um argumento pautado na feminilidade. E esses signos são criados pelos discursos morais da religião e da educação, que refletem as relações de poder. E isso acontece porque a identidade absoluta do “homem branco”, que personifica o poder e a dominação do homem racista e machista, subjuga as mulheres à ausência de liberdade à identidade. E pior: essa normatização de condutas transborda o plano dos discursos e se concretiza em ações discriminatórias. É preciso desconstruir o caráter permanente da oposição binária e polarizada masculino-feminino, que concebe homem e mulher como polos opostos, que se relacionam dentro de uma lógica invariável de dominação-submissão. No jogo das dicotomias, os dois polos diferem e se opõe e, automaticamente, 156
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cada um é uno e idêntico a si mesmo. E isso supõe ignorar ou negar todos os sujeitos sociais que não se enquadram dentro dessas formas (LOURO, 1997). A proposição é de desconstrução das dicotomias – problematizando a constituição de cada polo, demonstrando que cada um na verdade supõe e contém o outro, evidenciando que cada polo não é uno, mas plural. E se aproximar da ideia de que os sujeitos como tendo identidades plurais, múltiplas; identidades que se transformam, que não são fixas ou permanentes, que podem até mesmo, ser contraditórias (LOURO, 1997). Desconstruir a polaridade rígida dos gêneros significa problematizar tanto a oposição entre eles, quanto a unidade interna de cada um. Implica em observar que o polo masculino contém o feminino de modo reprimido e postergado; enquanto o polo feminino foi engessado e programado para a dicotomia mulher submissa versus homem dominante (LOURO, 1997). Afastar essa dicotomia carrega a ideia de abrir as possibilidades para que se compreendam e incluam as diferentes formas de feminilidade e masculinidade que se constituem socialmente. Afinal, não existe a mulher, mas várias mulheres que não são idênticas entre si, que podem ou não carregar as características que se pressupõem femininas (LOURO, 1997). Para Butler (2016), não é possível que exista apenas uma identidade, de ordem metafísica; mas, identidades, pensadas no plural e não no singular. Para ela, não é possível que haja libertação da mulher, a menos que primeiro se subverta a identidade da mulher. Por certo, não há nada de errado em existirem mulheres que se identificam com os ideais estéticos e padrões de comportamentos dessa dita feminilidade. Não há nada de errado em desejar um casamento e filhos. Também não há nada de errado em não desejar um casamento e nem filhos. O grande problema do modelo de feminilidade é que ele é imposto para aprisionar mulheres dentro de um ideal que não compreende ninguém que se difere desses comportamentos predeterminados (NISENBAUM, 2017). É importante questionar por que as mulheres sentem necessidade de ter determinados comportamentos. Será que sem as pressões sociais, sem as padronizações morais e sem os dogmas religiosos, as mulheres ainda teriam as mesmas vontades? As mulheres querem o que querem por desejo próprio ou porque foram ensinadas que este é o padrão correto? (NISENBAUM, 2017). 157
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O corpo é um texto da cultura, na medida em que os discursos sobre ele o transformam em um símbolo que absorve os regulamentos, os valores, as hierarquias e as práticas sociais. A partir de uma visão histórica, a normalização do corpo feminino é a única forma de opressão que atravessa, mesmo que sob diferentes graus e formas, as questões de idade, de raça, de classe e de orientação sexual. Não há dúvidas que é uma estratégia duradoura e flexível de controle social. Não é necessário dizer que esse controle foi e é utilizado para impor uma ideologia de conhecimento, produzida dentro de sua própria estrutura patriarcal. Quer dizer, onde há o dualismo homem-mulher, há uma oposição binária pautada no privilégio de um sobre o outro, a partir de laços de hierarquia e controle.
Referências BAGGENSTOSS, Grazielly Alessandra (Org.). Direito das Mulheres. :Lumen Juris. Rio de Janeiro, 2017. BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem. 2006. Disponível em: http://hugoribeiro.com.br/biblioteca-digital/Bakhtin Marxismo_filosofia_ linguagem.pdf Acesso em 13/04/2018. BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo: fatos e mitos. Editora Nova Fronteira. Rio de Janeiro, 3ª Ed., 2016. BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Editora Civilização Brasileira. Rio de Janeiro, 11ª Ed., 2016. CAFÉ, Fernanda. A masculinidade tóxica e a rejeição do que é considerado “coisa de menina”. 2017. Disponível em: https://www.cientistaqueviroumae. com.br/blog/textos/A-MASCULINIDADE-TOXICA-E-A-REJEICAO-DO-QUE-E-CONSIDERADO-COISA-DE-MENINA- Acesso em: 18/04/2018. ESTEVANS, Gabrielle. Autonomia afetiva: como construir o próprio eixo dentro ou fora das relações? 2017. Disponível em: http://www.comum.vc/conteudo-aberto/autonomia-afetiva-como-cultivar-o-proprio-eixo>. Acesso em 13/04/2018. 158
Direitos e Feminismos
GARCIA, Carla Cristina. Breve história do feminismo. Editora Claridade. São Paulo, 3ª Ed., 2015. KOLTUV, Bárbara Black. O Livro de Lilith: o resgate do lado sombrio do feminino universal. Editora Cultrix. São Paulo, 2017. LOURO, Guacira Lopes. Gênero, sexualidade e educação: uma perspectiva pós-estruturalista. Editora Vozes. Rio de Janeiro, 1997. NISENBAUM, Débora. Como educamos mulheres para sofrer – uma reflexão sobre feminilidade e amor. 2017. Disponível em: http://www.comum.vc/ conteudo-aberto/2017/10/4/como-educamos-mulheres-para-sofrer-uma-reflexo-sobre-feminilidade-e-amor. Acesso em 23/04/2018. OLIVEIRA, Olga Maria Boschi Aguiar de. Mulheres e trabalho: desigualdades e discriminações em razão de gênero: o resgate do princípio da fraternidade como expressão da dignidade humana. Editora Lumen Juris, Rio de Janeiro, 2016. PISANO, Margarita Pisano. O triunfo da masculinidade. São Paulo, 2017. SAFFIOTI, Heleieth. A mulher na sociedade de classes. Editora Vozes. Rio de Janeiro, 1979. SCHMIDT, Rita Terezinha. Para além do dualismo natureza/cultura: ficções do corpo feminino. In: BORGES, Luciana; RAMOS, Tânia R. O.; RODRIGUES, Carla (Org.) Problemas de Gênero. Editora Funarte. Rio de Janeiro, 2016. STUDART, Heloneida. A lógica da feiúra e a feiura da lógica. In: BORGES, Luciana; RAMOS, Tânia R. O.; RODRIGUES, Carla (Org.) Problemas de Gênero. Editora Funarte. Rio de Janeiro, 2016. TIBURI, Márcia. Feminismo em comum: para todas, todes e todos. Editora Rosa dos Tempos. Rio de Janeiro, 2018.
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A Violência Midiática de Gênero e Suas Interfaces como os Direitos Humanos das Mulheres1 Amanda Muniz Oliveira2 Rodolpho Alexandre Santos Melo Bastos3 Resumo: O presente artigo tem por objetivo analisar como certos discursos propagados pela mídia, segundo o qual a mulher é apresentada de forma depreciativa, sexualizada, objetificada e responsável pela satisfação pessoal do homem, atingem diretamente os direitos humanos das mulheres. Partindo do pressuposto de que certas exposições midiáticas – comerciais, programas televisivos, filmes e músicas - estão na contramão das lutas feministas por igualdade de gênero, promoção dos direitos humanos e direito a uma vida sem opressão, pretendemos demonstrar ao longo deste trabalho a presença de um tipo peculiar de violência: a violência midiática de gênero. Deste modo, foram realizadas pesquisas em obras bibliográficas e estudos já divulgados, que fornecem dados sobre o assunto. A revisão de literatura auxilia na interpretação, compreensão e discussão do problema que foi proposto e auxilia na elaboração de uma descrição sobre o tema. Palavras-chave: violência de gênero; mídia; direitos humanos das mulheres. 1
Versões anteriores deste artigo foram publicadas nas revistas Interfaces Científicas – Direito (2014) e De Jure (2014). Devido a um número expressivo de citações notado pelos autores, resolvemos atualizar o escrito a partir de novos fundamentos, mais atuais e coerentes com nossas pesquisas, abandonando o tom apocalíptico dos trabalhos anteriores. Por esta razão, a presente versão conta com novo referencial teórico (contrário à ideia de indústria cultural como um ente puramente conservador, a partir dos estudos de Douglas Kellner) e desloca a discussão de uma violência simbólica para uma violência midiática (ou, violência de gênero propagada pela mídia).
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Doutoranda em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC e Mestra em Direito pela mesma Universidade. É pesquisadora do “Núcleo de Estudos Conhecer Direito – NECODI” (UFSC) e do Grupo de Pesquisa “Modelagem e Compreensão de Sistemas Sociais: Direito, Estado, Sociedade e Política” (UFSC), no qual participa do Projeto de Pesquisa “Lilith: Direito das Mulheres”. Bolsista CAPES. E-mail: [email protected]
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Doutorando em História pelo Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), integrante do Núcleo Interdisciplinar de Estudos Medievais (MeridianumUFSC), Grupo de Estudos entre o Feminino e o Masculino na Longa Duração (GEFEM-UFSC) e Bolsista CAPES. E-mail: [email protected]
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1. Introdução O presente artigo tem por objetivo analisar como certos discursos propagados pela mídia, segundo o qual a mulher é apresentada de forma depreciativa, sexualizada, objetificada e responsável pela satisfação pessoal do homem, atingem diretamente os direitos humanos das mulheres. As produções midiáticas (ou a “cultura da mídia”, como veremos adiante), por vezes, (re)produz um discurso patriarcal, o que contribui para a permanência de um determinado status quo4 nas relações sociais entre homens e mulheres. Como uma das principais constituidoras na formação da opinião pública, as produções veiculadas pelos meios de comunicações influenciam a propagação de certas imagens sobre o feminino, que contribuem para disseminação do preconceito e da discriminação. Partindo do pressuposto de que certas exposições midiáticas – comerciais, programas televisivos, filmes e músicas - estão na contramão das lutas feministas por igualdade de gênero, promoção dos direitos humanos e direito a uma vida sem opressão, pretendemos demonstrar ao longo deste trabalho a presença de um tipo peculiar de violência: a violência midiática de gênero. Deste modo, foram realizadas pesquisas em obras bibliográficas e estudos já divulgados, que fornecem dados sobre o assunto. A revisão de literatura auxilia na interpretação, compreensão e discussão do problema que foi proposto e auxilia na elaboração de uma descrição sobre o tema. A (re)produção de imagens femininas como um simples objetos de desejo fere direitos humanos universais, além de auxiliar na propagação de ideias machistas que, por vezes, legitimam a própria violência física. Em uma época em que as produções midiáticas parecem ser o centro de entretenimentos e divulgação de conhecimentos, faz-se necessário atentarmos para a situação da representação feminina na mídia – sobretudo quando esta transmite e perpetua a violência midiática de gênero, trabalhando em favor da manutenção dos papéis paradigmáticos das relações entre homens e mulheres, em uma sociedade ancorada em um imaginário feminino submetido ao masculino.
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Expressão latina que se refere ao estado atual de coisas ou situações. Origina-se do termo “in statu quo ante bellum”, cujo significado é “no estado (em que se estava) antes da guerra”.
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No primeiro tópico, será desenvolvido o conceito de “cultura da mídia”; para tanto, recorreu-se aos estudos, principalmente, do filósofo Douglas Kellner. Em um segundo momento, realiza-se uma análise sobre o gênero e sobre a violência de gênero na mídia, presente nos meios de comunicação de longo alcance (com maior acessibilidade entre as pessoas). Posteriormente, demonstra-se que tal tipo de violência fere Direitos Humanos Femininos Universais; para corroborar tal assertiva, destacou-se dois tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário: A Convenção Sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra a Mulher e A Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra a Mulher. Por fim, conclui-se que o Direito constitui poderosa ferramenta no que tange a luta contra a violência midiática de gênero.
2. A Cultura da Mídia e as Relações de Gênero Os meios de comunicação de massa firmaram-se como verdadeiros formadores de opinião. Por meio do entretenimento, da informação e da propagação da cultura produzida, eles influenciam as relações dos indivíduos com o mundo e entre si mesmos. Diariamente, os indivíduos absorvem os mais diversos tipos de mensagens propagadas por estes meios de comunicação – mensagens estas, na maioria das vezes, recebidas de forma acrítica, ao menos para alguns teóricos da Escola de Frankfurt5. Tendo por base esta passividade social, esses teóricos demonstraram que tais mecanismos contribuem de forma significativa para a manutenção do status quo, uma vez que os produtos comercializados através dos meios de comunicação de massas obstam a emergência de um pensamento crítico, contestador e ativista (PEREIRA NETO; LOIOLA; QUIXANDÁ; 2010). Segundo Adorno e Hockheimer (1985), a cultura torna-se industrializada e obedece a certos padrões de produção. Tais padrões são originários das necessidades dos consumidores e, por isso, seriam aceitos sem resistência. Os meios de comunicação transformam os indivíduos em telespectadores e ouvintes, tratando-os como verdadeira massa igual e uniforme. Assim, tais indivíduos são entregues a programas e canções padronizados, pré-fabricados, que inibem o 5
Escola de teoria social vinculada ao Instituto para Pesquisa Social da Universidade de Frankfurt, Alemanha.
Foi composta por pensadores neo-marxistas, que teciam críticas tanto ao capitalismo quanto ao socialismo.
Estudaram a questão da Cultura, analisando a transformação desta em simples mercadoria.
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pensamento crítico e massificam a sociedade. A Cultura passa a ser controlada, de forma que a “espontaneidade no público é dirigido e absorvido, numa seleção profissional, por caçadores de talentos, competições diante do microfone e toda espécie de programas patrocinados” (ADORNO; HOCKEIMER, p. 57, 1985). Douglas Kellner (2001) afirma que as produções midiáticas, chamadas pelo autor de “cultura da mídia”, influenciam e regulam o cotidiano, o comportamento, as opiniões e mesmo as identidades individuais. Todavia, defende que esta influência não é homogênea, já que tais produções também oferece elementos capazes de questionar a ideologia dominante e permitir que os sujeitos façam suas próprias leituras críticas, se apropriando da cultura de massa e dos recursos que ela apresenta. Neste sentido, a “cultura da mídia” pode tanto induzir as pessoas a aceitarem o que está estabelecido, quanto permitir que ideias contrárias emerjam, gerando um rompimento com a ideologia dominante. Ocorre que para Kellner (2001) é interessante que os produtores dos meios audiovisuais dialoguem com o maior número de ideias, grupos, movimentos ou ideologias vigentes na sociedade. Por tal motivo, elementos progressistas e conservadores estão sempre presentes nas produções midiáticas, variando em maior ou menor intensidade. Para Kellner (2001, p.12-13): [...] a cultura da mídia pode constituir um terrível empecilho para a democratização da sociedade, mas pode também ser uma aliada, propiciando o avanço da causa da liberdade e da democracia. A cultura da mídia pode constituir um entrave para a democracia quando reproduz discursos reacionários, promovendo o racismo, o preconceito de sexo, idade, classe e outros, mas também pode propiciar o avanço dos interesses dos grupos oprimidos quando ataca coisas como as formas de segregação racial ou sexual, ou quando, pelo menos, as enfraquece com representações mais positivas de raça e sexo.
A “cultura da mídia”, que está em sintonia com a de consumo, é capaz de apresentar em seu conteúdo, por exemplo, os resquícios dos imaginários sociais que regulam e constituem as relações sociais das hierarquias de gênero e poder, sobre o feminino (e masculino). Neste contexto, mesmo sendo possível encontrar elementos tanto de dominação como de resistência, essas produções, especialmente às direcionadas para o grande público (cinema hollywoodiano, músicas de grandes gravadoras de “sucesso em rádios”, programas de televisão da TV aberta, telejornalismos, novelas, comerciais, entre outros dispositivos au-
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diovisuais) tendem a (re)produzir, (re)criar, (re)atualizar, estereótipos e modelos de feminilidade que submetem o feminino a autoridade masculina, bem como outros tipos de divisões e hierarquizações binárias. Para Kellner (2001, p. 09), “O rádio, a televisão, o cinema e os outros produtos da indústria cultural fornecem os modelos daquilo que significa ser homem ou mulher, bem sucedido ou fracassado, poderoso ou impotente”. Essa “cultura da mídia” fornece os elementos para a construção das noções de classe, sexualidade, raça, etnia, etc., para as pessoas e seu meio social. Desta forma, para a dominação simbólica é importante o controle dos meios de transmissões e instrumentos de persuasão, pressão e subjetivação de valores e crenças, para (re)produzir, (re)criar e (re)atualizar a influência dos imaginários sociais sobre os modos de pensar, papeis sociais, comportamentos e relações de gênero. Os filmes de Hollywood, por exemplo, atacam com freqüência as mulheres e o feminismo, que, segundo Kellner (2001, p.31), celebram “[...] as mais grotescas formas de poder masculino e machismo irrestritos. A ‘paranóia masculina e branca’ é evidente em todos os meios culturais, desde monólogos dos cômicos até as entrevistas de rádio, e a ofensiva cultural conservadora alastra-se invicta” (KELLNER, 2001, p.31). Segundo Rodolpho Bastos e Joanna Nogueira (2016), sabe-se que a história das mulheres na sociedade é marcada por uma trajetória em que preconceito, discriminação e todos os tipos de violências se fizeram constante. Apesar dos avanços ocorridos ao longo das décadas do século XX, a visão social da mulher foi forjada pelo poder patriarcal e sexista, a qual ainda se encontra, associada às funções de mãe e dona-de-casa. Louise Tilly (1994) informa que as mulheres, embora definidas pelo sexo, ultrapassam a categoria biológica, uma vez que existem socialmente e compreendem todas as pessoas do sexo feminino, estando estas moldadas por regras sociais e costumes, conforme crenças e opiniões decorrentes de estruturas de poder. Linda Nicholson (2000) destaca que o gênero é usado em oposição ao sexo para descrever o que é socialmente construído em oposição ao que é biologicamente dado. Assim, o gênero é pensado como referência à personalidade e comportamento e não ao corpo, sendo o gênero e sexo compreendidos como duas coisas distintas. Guacira Louro (1997), não se limita à diferença sexual entre homens e mulheres, mas sim em como o indivíduo é representado culturalmente através do seu 165
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modo de falar, pensar e agir sobre a própria sexualidade. Judith Butler (2007) critica à concepção dualista que opõe sexo e gênero, afirmando que ser homem ou ser mulher configura-se como uma construção cultural, resultante de normas que sustentam as práticas sociais e operam sobre nossos corpos de modo potente e incisivo. O gênero, segundo Scott (1995), diz respeito ao elemento que constitui as relações sociais baseadas sobre as diferenças percebidas, e implicam em quatro aspectos: 1) símbolos culturalmente disponíveis que evocam representações simbólicas; 2) conceitos normativos que põem em evidência as interpretações do sentido dos símbolos expressos nas doutrinas religiosas, educativas, políticas e cientificas; 3) instituições e organização social; e 4) a identidade subjetiva. 6 Deste modo, pode-se compreender o gênero como um conjunto de códigos manipulados, de costumes, que se corporificam. Diferentemente do sexo, ditado pela biologia e estabelecido logo ao nascimento, o gênero é uma construção social, em que mulheres devem incorporar certos padrões aceitáveis e os homens, outros. Teresa de Lauretis (1994) pontua que a construção do gênero ocorre hoje principalmente através do cinema e discursos institucionais, com o poder de controlar o campo do significado e assim produzir, promover e ‘implantar’ representações de gênero. Para ela, o cinema certamente é uma tecnologia de gênero, uma maquinaria capaz de controlar e produzir significados, imaginários e representações. A compreensão do cinema como uma tecnologia social, como “aparelho cinematográfico”, se desenvolveu na teoria do filme paralela, mas independentemente, de Foucault; pelo contrário, como sugere a palavra aparelho, essa compreensão foi diretamente influenciada pelo trabalho de Althusser e de Lacan. Não há quase dúvida, de qualquer modo, de que o cinema - aparelho cinematográfico - é uma tecnologia de gênero [...] (LAURETIS, 1994, p. 221).
Para a referida autora, é preciso, depois de distinguir o gênero da diferença sexual, percebê-lo como produto de inúmeras tecnologias, fruto da linguagem, do imaginário e das várias tecnologias políticas produzidas nos corpos. Assim, os gêneros são produzidos por uma maquinaria de produção de várias tecnologias sexuais, que formam discursos apoiados nas instituições do Estado (família, 6
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Dentro dessas quatro dimensões que se intercruzam, analisaremos a dimensão institucional – a mídia – que reitera através dos seus discursos as desigualdades de gênero, contrapondo-se diretamente a direitos humanos universais.
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escola, autoridades religiosas, mídia, psicologia, entre outros), criando categorias, como homem e mulher, para todas as pessoas. Com isso, o gênero interpela a todos do tecido social, em que uma representação social é aceita e absorvida como sua própria representação, onde “[...] se torna real para ela, embora seja de fato imaginária” (LAURETIS, 1994, p. 220). A “cultura da mídia” compõe um sistema que possui uma dada coerência, tanto em cada uma de suas manifestações (cinema, novela, propagandas, músicas, etc.) quanto no conjunto destas. Tal coerência pode ser percebida no comprometimento das produções midiáticas na manutenção dos imaginários sociais sobre as relações e hierarquias de gênero em sociedades tributárias de um substrato cultural patriarcal, como a brasileira. Desta forma, faz-se necessário refletir sobre os impactos causados pela “cultura da mídia” como formadora de opinião e produtora de modismos que interfere nas relações sociais de gênero e as violências que se engendram a partir daí. É neste sentido que propomos perceber nas produções midiáticas um dispositivo (re)produtor que auxilia na produção de estereótipos no que tange ao papel da mulher – estereótipos estes que, por sua vez, ferem Direitos Humanos inalienáveis, propagando a violência midiática de gênero.
3. A Violência Midiática de Gênero Apesar dos diversos direitos humanos atribuídos às mulheres, o preconceito oriundo da ordem patriarcal que, ainda impera na nossa sociedade de forma velada ou explícita, permite a constante disseminação de “piadas, canções, comerciais, filmes, novelas, etc.” (Cruz, 2008) degradantes e constrangedoras para o gênero feminino. Mesmo diante das inúmeras conquistas no que tange a igualdade formal e a diversos direitos positivados, a imagem da mulher como objeto de desejo sexual masculino ainda prevalece qunado, por exemplo, ligamos nossos televisores e testemunhamos uma série de imagens produzidas sobre as mulheres de forma depreciativa e objetificada. Tudo isso pode ser compreendido como uma violência midiática de gênero, ou seja, entendida como “constrangimentos morais impostos pelas representações sociais de gênero – sobre o masculino e o feminino.” (CRUZ, 2008)
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A opressão feminina passou a adquirir novos contornos, veiculada como forma de entretenimento – o que retira seu caráter sério, no qual encontra legitimidade do publico alvo das produções midiáticas. A “a cultura da mídia” consegue estabelecer seus moldes e modelos de feminilidades para as mulheres da contemporaneidade, fato que auxilia na propagação de preconceito e discriminação, legitimando o pensamento patriarcal ainda existente. As imagens midiáticas refletem padrões estabelecidos na sociedade, perpetuando estereótipos dos modelos femininos, nos quais essas imagens são vistas como reais e naturais; fenômeno denominado por Thompson (1995) de “reificação”: uma estratégia para a permanência de determinadas normas, valores e posturas como elementos contemporâneos, justamente por serem consideradas pertencentes a uma tradição “eterna” e, por esta razão, aceita e justificável, onde uma situação transitória é representada como permanente ocultando seu caráter sócio-histórico. Cabe destacar, por exemplo, o papel de certas produções musicais no que tange a perpetuação da violência contra a mulher, em toda sua amplitude. A naturalização de condutas violentas, por exemplo, é refletida nas letras de músicas de certas canções. Segundo Feitosa, Lima e Medeiros (2010, p.4) ao analisarem uma letra do gênero musical “forró estilizado”: As letras das músicas do forró estilizado trazem essa naturalização. Nelas, a violência contra as mulheres é tratada, muitas vezes, como instrumento que dá prazer às mulheres, alimentando, assim, o mito de que “mulher gosta mesmo é de apanhar”, a exemplo da letra da música Tapa na Cara: Ela é safada, mas gosta de apanhar. E diz que é gostoso na hora de amar. Apanha pra dormir, apanha pra acordar. Apanha todo dia, toda hora sem parar. Eu sei o que fazer pra ela não brigar. É tudo diferente, seu remédio é apanhar [...]. O povo na minha rua já tá desconfiando. Pensando que eu bato com ciúme da mulher. Todo mundo pensa que eu sou um mau marido. Mas só que eles não sabem a cachorra que ela é...
No que tange as letras do funk carioca, diz Aragão (2011, p. 81): É possível ver como, por meio da linguagem, as formações ideológicas e discursivas de sujeitos que repetem o já-dito de que a mulher está submissa ao homem, “Fico tarado/Quando vejo o rebolado dessa mina”. Vejamos também uma autoria feminina, que representa discursos de mulheres que aceitam sua submissão sexual, “Sou cachorra, sou gatinha/Não adianta se esquivar/Vou soltar a minha fera/Eu boto o bicho pra pegar”. Há em outras
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músicas outras representações de tais formações ideológicas e discursivas, através da linguagem nos textos, que o universo feminino é aproveitado principalmente e apenas sexualmente, até mesmo vulgarmente.
A “cultura da mídia”, por intermédio das musicas (mas não só) (re)atualiza um imaginário de submissão em torno do feminino. É importante destacar que esse imaginário foi construído e divulgado por uma elite clerical medieval, em que as mulheres deveriam ser recatadas, submissas e restrita ao ambiente doméstico e aos papeis sociais de boa esposa e mãe, sendo suscetíveis a quaisquer tipos de violências. De acordo com Bastos (2016) os discursos clericais medievais estão repletos de referências negativas em relação ao feminino, com intenso investimento discursivo para depreciá-las, reprimi-las e controlá-las, pois elas, as mulheres, são descendentes de Eva, interpretada pelos teólogos medievais como a culpada pelo pecado original. Os discursos referentes a Eva transmitiram alguns estereótipos às suas descendentes, tais como: Orgulho, pois se deixou encantar com a fala da serpente que lhe disse que, se comesse do fruto, seria igual a Deus; Desobediência, pois a mulher transgrediu as ordens dadas pelo Criador; Sensualidade e influência, porque a mulher persuadiu e encantou o homem através de seus atributos físicos; Maligna, pois sua transgressão levou à expulsão do paraíso e a uma vida de sofrimento, entre muitos outros. O pecado de Eva, no final, é um pecado contra as mulheres, pois transforma sua natureza em algo perverso (BASTOS, 2016, p.76).
Neste sentido, as produções midiáticas ressignificam esse imaginário, sendo o produtor e reprodutor desse mesmo imaginário sobre as mulheres, mas com outras roupagens e contornos históricos, culturais e sociais, mesmo que estas imagens femininas estejam em desacordo com direitos fundamentais.
3. Os Direitos Humanos das Mulheres Pode-se afirmar que os direitos humanos “São poderes aparados pela comunidade, que geram condutas obrigatórias para os demais, e dos quais se é titular pelo simples fato de ser um membro da espécie homo sapiens sapiens.”(RABINOVICH, 2007).
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São direitos especiais, dotados de características particulares. São universais, pois são aplicáveis a qualquer pessoa, se entendendo a toda cultura humana; são indisponíveis, pois não se pode renunciar à própria dignidade humana; proíbem o retrocesso, vez que uma proteção conquistada jamais poderá ser retirada; inalienáveis, pois não podem ser transferidos; imprescritíveis, vez que não são perdidos com o passar do tempo; invioláveis, porque não podem ser atingidos por agentes públicos ou leis infraconstitucionais7 e ainda, são dotados de efetividade, pois o Poder Público deve garantir sua aplicabilidade no mundo dos fatos (LAVORENTI, 2009). Diversas foram às discussões sobre os direitos humanos das mulheres – discussões essas tratadas em conferências, culminadas em declarações e planos de ação. Para efeitos deste estudo, entretanto, abordaremos dois dos principais tratados8 sobre direitos femininos: a Convenção sobre Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, em âmbito global, e a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra a Mulher, em âmbito regional. O sistema internacional de proteção dos direitos humanos é constituído por duas esferas: a esfera global, formada pela ONU, e a esfera regional, constituída, no caso brasileiro, pela Organização dos Estados Americanos -OEA. Tais sistemas, e seus respectivos instrumentos específicos (...) são complementares, pelo que coexistem com o propósito de salvaguardar os mesmos direitos, objetivando a máxima eficácia na tutela de proteção aos direitos humanos (LUCK, 2010).
Analisemos a Convenção sobre Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher.
3.1. Convenção sobre Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher Adotada pela Organização das Nações Unidas em 18 de dezembro de 1979 e assinada pelo Brasil na mesma data, a Convenção compõe-se de um pre-
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Entende-se por infraconstitucional toda e qualquer lei hierarquicamente inferior à Constituição Federal – tal qual os Códigos, Leis Complementares, Portarias, etc...
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É importante ressaltar que os tratados internacionais são passíveis de aplicação apenas aos Estados signatários.
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âmbulo9 e 30 artigos, divididos em seis partes. São elas: disposições gerais (arts. 1° ao 6°); direitos políticos (arts. 7° a 9°); direitos econômicos e sociais (arts. 10 a 14); direito à igualdade ( arts. 15 e 16); implementação da Convenção (arts. 17 ao 22) e disposições regulamentares (arts. 23 ao 30). O preâmbulo desta Convenção (1979) acentua que a igualdade entre homem e mulher só será alcançada quando o tradicional papel de ambos na sociedade e na família forem alterados- ou seja, refere-se diretamente a questão do gênero (LAVORENTI, 2009). Assim, pode-se afirmar que a violência midiática de gênero contribui para a permanência dos tradicionais papéis sociais discriminadores que obstam a busca por uma igualdade de gênero. No que tange a discriminação, a Convenção (1979) a define em seu artigo 1° como [...] toda a distinção, exclusão ou restrição baseada no sexo e que tenha por objeto ou resultado prejudicar ou anular o reconhecimento, gozo ou exercício pela mulher, independentemente de seu estado civil, com base na igualdade do homem e da mulher, dos direitos humanos e liberdades fundamentais nos campos político, econômico, social, cultural e civil ou em qualquer outro campo.
Vez que a violência midiática de gênero realiza uma distinção baseada no gênero e no papel social de homem e mulher, de forma a resultar em prejuízo sócio-cultural para a figura feminina como um todo, infere-se que a tal tipo de violência pratica e induz, pois veiculada pela mídia formadora de opinião, à discriminação. A discriminação só é reconhecida como tal se feita com base no sexo e tiver por objetivo prejudicar ou mesmo anular o reconhecimento, gozo ou exercício pela mulher dos direitos humanos em diversos campos, inclusive o social e cultural (LAVORENTI, 2009). A Convenção possui duas vertentes: a) repressivo-punitiva, como forma de suprimir a discriminação; b) positivo-promocional, que visa promover a igualdade. Através disso, os Estados são coagidos a adotar medidas que visem
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Justificativa do por que da elaboração do tratado. O preâmbulo indica as partes contratantes (os Estados ou as organizações internacionais que concluem o tratado) com a menção das credenciais dos representantes dos Estados (LAVORENTI, 2009).
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eliminar a discriminação, adotando princípios igualitários em suas leis internas e evitando que seus agentes pratiquem condutas discriminatórias. O Estado signatário também é obrigado a realizar medidas que visem eliminar posturas discriminatórias por organizações e empresas, de acordo com o artigo 2°, e. Vez que, em sentido jurídico, empresa é sinônimo de atividade econômica, percebe-se que o Estado deve coibir que a mídia continue a propagar suas ideologias patriarcais discriminatórias. Atenta à criação histórica e cultural dos papéis que submeteram as mulheres à dominação e exploração masculinas, a Convenção pugna para que haja o comprometimento dos Estados-Partes de modificar os padrões socioculturais que conduzem ao preconceito pelo entendimento de inferioridade ou superioridade de qualquer dos sexos ou com base em funções estereotipadas de homens e de mulheres (LAVORENTI, p.57, 2009).
Apesar da Convenção assim dispor, podemos perceber em nossa rotina diária que ao invés de suprimidos, tais padrões socioculturais são reverenciados como arte, enquanto produtos da cultura midiática. A fim de avaliar a execução da Convenção pelos Estados-membros, as Nações Unidas criaram no texto desta Convenção (1979), em seu art. 17, um Comitê sobre a Eliminação da Discriminação contra a Mulher. Por esta Convenção, os Estados-Partes comprometeram-se a submeter ao Secretário Geral das Nações Unidas, um Relatório que evidencie o modo pelo qual estão implementando a Convenção e quais as medidas seguidas para tornar efetivo o seu conteúdo. A cada quatro anos esse Relatório deverá ser atualizado e, mais uma vez, apresentado para exame do Comitê. Além disso, há um Protocolo Opcional à Convenção sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação contra a Mulher, que estabelece dois mecanismos de monitoramento, quais sejam, o mecanismo da petição, que permite o encaminhamento de denúncias de violação de direitos enunciados na Convenção à apreciação do Comitê sobre a Eliminação da Discriminação contra a Mulher; e um procedimento investigativo, que habilita o Comitê a investigar a existência de grave e sistemática violação aos direitos humanos das mulheres.
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3.2. Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a mulher A Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, também conhecida como Convenção de Belém do Pará, foi promulgada em solo brasileiro em 1° de agosto de 1996. Constituindo verdadeiro avanço no que tange à proteção internacional dos direitos das mulheres, a Convenção de Belém do Pará não apenas reconhece que a violência transcende os setores sociais, como também reconhece “que a violência ofende a dignidade humana e revela uma manifestação de relação de poder historicamente desigual entre homens e mulheres” (LAVORENTI, p. 86, 2009). Para efeitos da Convenção entende-se por violência “qualquer ato ou conduta baseada no gênero, que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher, tanto na esfera pública como na esfera privada” (AGENDE, p .9, 2004). No que tange ao sofrimento psicológico, cabe salientar a chamada violência moral. A violência moral é uma das manifestações da violência psicológica. Consiste em acusações que atingem a reputação da mulher. É comum nestes casos que a ofensa sofrida se relacione ao exercício da sexualidade pela mulher, tratando este exercício como algo reprovável e sujo (AGENDE, p. 10, 2004). Percebe-se que a violência moral relaciona-se com a violência midiática de gênero, que justamente denigre a imagem da figura feminina a partir de ofensas contra a honra e a reputação da mulher em geral. A Convenção (1994) elenca, em seu artigo 4°, diversos direitos que devem ser garantidos as mulheres como forma de evitar a violência e a discriminação. Dentre estes, cabe salientar o direito ao respeito de sua incolumidade física, psíquica e moral e ao respeito à sua dignidade – ambos ignorados pela cultura da mídia ao propagar a violência midiática de gênero. Segundo Lavorenti (2009): Do fato de a violência da mulher ter por base a questão do gênero, conforme definição dada pela própria Convenção, decorre que o direito a uma vida livre dessa violência conduz ao direito de a mulher ser valorizada e de ver erradicados padrões estereotipados de comportamento socioculturais com supedâneo em conceitos de inferioridade e subordinação. Esse caldo cultural é que fomenta a discriminação, que, por sua vez, propicia e facilita a prática da violência (LAVORENTI, p. 92, 2009).
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De forma a fiscalizar a implementação da Convenção (1994), os arts.10,11 e 12 dessa, estabelecem a necessidade de Relatórios nacionais enviados pelos Estados à Comissão Interamericana de Mulheres com informações sobre as medidas adotadas, as dificuldades enfrentadas na aplicação das mesmas e os fatores que contribuam para a violência contra a mulher (art.10). O sistema de Petições individuais também está presente, estabelecido no artigo 12 do referido diploma legal.
4. Considerações Finais De acordo com os referenciais teóricos sobre “cultura da mídia” e tecnologia de gênero, no contexto das produções midiáticas, foi possível perceber a presença de imagens e discursos depreciativos e misóginos que ainda circulam em nossa sociedade, como no Brasil, e que encontram eco e legitimação em determinados grupos sociais. Segundo Cruz (2008), o movimento feminista junto com alguns setores da sociedade vem fazendo um trabalho de conscientização e crítica da forma como a imagem da mulher vem sendo abordada na mídia. Leis estão sendo implementadas para que se proíba a veiculação de propagandas de cunho erótico. Por exemplo, o Projeto de Lei nº11/2003 da Deputada Iara Bernardi (PT-SP), limitando a veiculação de propagandas que utilizem imagens sensuais ou pornográficas nos meios de comunicação do País. Porém, sabe-se que leis como esta atingem diretamente os interesses dos grandes publicitários e empresários televisivos, detentores de pleno poder aquisitivo, capazes, portanto, de interferir a qualquer tempo contra este tipo de “empecilho”. Podemos citar a reação de Sergio Valente, diretor de criação da DM9DDB, uma das maiores agências publicitárias do país, para quem a proibição presente no PL 11/2003 é um acinte a democracia: Não vou mostrar pessoas esfaqueando às outras, porque isso é um exemplo ruim... não se deve criar uma ‘patrulha’ ideológica sobre os criativos. Mas também não acho que vincular mulher bonita a cerveja seja algo machista, isso é brasileiro... O único papel da propaganda é o resultado em vendas. Não acredito em campanhas caretas que dêem resultados à empresa. (apud MADUREIRA, 2002).
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Apesar de todas as dificuldades citadas, medidas alternativas podem ser realizadas. O Direito, que por vezes é utilizado como legitimador de atrocidades, ainda oferece égide aos hipossuficientes – seja pelos seus princípios gerais, seja pelas normas universais dos direitos humanos. Destarte, para proteger, garantir e efetivar uma situação de dignidade para as mulheres, historicamente reprimidas, faz-se mister compreender, estudar e aplicar as normas jurídicas que as favorecem. O jurista, neste caso, deve atuar de forma zelosa. Sabe-se que há grande discrepância entre o que se escreve na lei e o que se aplica ao mundo dos fatos. Contudo, a possibilidade de recorrer a medidas internacionais, com o intuito de efetivar direitos e garantias básicas a qualquer ser humano, lança luz em meio a esta obscura batalha.
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Traços para uma Metodologia Feminista do Ensino no Direito: Recorte Decolonial para o Brasil1 Juliana Alice Fernandes Gonçalves2 Grazielly Alessandra Baggenstoss Resumo: O presente trabalho pretende apresentar um panorama sobre influência e dependência histórico-estrutural eurocêntrica da educação jurídica no Brasil, a partir dos estudos decoloniais e com enfoque à realidade latino-americana, e de como tal cenário influencia no tratamento dispensado às mulheres, especialmente pela ótica educacional. Propõe-se, nesse sentido, a rejeição da concepção de universalidade e neutralidade, no intuito de estudar estrategicamente acerca das novas possibilidades para o âmbito jurídico dentro de uma perspectiva crítica de educação e processo de ensino-aprendizagem que promova um questionamento crítico sobre a realidade das mulheres no Brasil, especialmente no que tange ao Ensino Jurídico. Palavras-chave: Direito. Decolonialidade. Feminismo. Gênero. Metodologias jurídicas feministas.
1. Introdução Pretende-se no presente trabalho pesquisar sobre a influência e dependência histórico-estrutural eurocêntrica da educação jurídica no Brasil, a partir dos estudos decoloniais, no intuito de examinar estrategicamente acerca das 1
Capítulo baseado substancialmente no artigo publicado na Revista Captura Críptica, v. 6, n. 1, em 2017, sob o título “Decolonialidade do conhecimento no âmbito jurídico: a possibilidade das teorias jurídicas feministas na perspectiva do ensino do Direito no Brasil”, com a autoria de Juliana Alice Fernandes Gonçalves.
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Mestranda em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), bolsista CAPES. Graduada em Direito pela Universidade do Extremo Sul Catarinense (UNESC). Pesquisadora do Grupo de Pesquisa Modelagem e Compreensão dos Sistemas Sociais. Pesquisadora do Grupo de Extensão Lilith: Direito e Interseccionalidade. E-mail: [email protected]
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novas possibilidades para o âmbito jurídico dentro de uma perspectiva crítica de educação e processo de ensino-aprendizagem. Assim, pretende-se verificar a questão do ingresso das mulheres na área do Direito, primordialmente pelo viés feminista e de estudos de gênero, a fim de refletidamente analisar a alternativa acerca de metodologias jurídicas feministas, num âmbito plural que abrace a todos, justamente para que atenda o viés da historicidade. Em questionamento sobre a inserção de metodologias jurídicas feministas no cenário do Direito brasileiro, a hipótese primária é pela sua corroboração, visto que o aporte teórico dos estudos decoloniais fornecem uma nova visão a respeito do conhecimento em si desvinculando-se da concepção neutra e universal, bem como sobre o próprio suporte do feminismo teórico e estudos sobre gênero, que demonstram por meio de dados históricos e sociais a complexidade da desigualdade social e estruturas de opressão presente, de forma a lançar a reflexão sobre a necessidade de ocupação de espaços pelas mulheres, e do necessário comprometimento em romper com tais lógicas opressoras. A hipótese secundária é negativa, no sentido de que o cenário jurídico atual é visto e entendido como propiciador da teoria das relações de poder não abrindo espaço a pautas progressistas, justamente por encontrar-se na lógica da sociedade de capitalista vigente tendo sido (re)construído estrategicamente para isto. O objetivo geral da pesquisa é o de verificar a possibilidade de metodologias jurídicas feministas no cenário do Direito, para isso, especificamente estudará num primeiro momento quanto aos aspectos históricos da educação jurídica no brasil e a influência e dependência histórico-estrutural eurocêntrica, de forma a explanar no segundo momento sobre as novas possibilidades para a educação jurídica dentro de uma perspectiva crítica de processo de ensino-aprendizagem, e por fim, no terceiro momento analisar o ingresso das mulheres na área do direito e a possibilidade de metodologias jurídicas feministas. O método de abordagem da presente pesquisa será o dedutivo, ou seja, partindo-se de teorias e leis para a análise e explicação de fenômenos particulares, do geral para o particular. O tipo de pesquisa se dará por meio do modo bibliográfico, baseando-se em consulta de todas as fontes secundárias relativas a teoria dos estudos decoloniais, bem como dentro da perspectiva de gênero, feminismos e interseccionalidades.
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2. Aspectos Históricos da Educação Jurídica no Brasil: Influência e Dependência Histórico-Estrutural Eurocêntrica De suma relevância, para este estudo, apresentar recortes acerca dos aspectos históricos da Educação Jurídica no Brasil, bem como localizar e reconhecer a influência e dependência histórico-estrutural eurocêntrica no cenário jurídico latino-americano, mais precisamente no brasileiro. Pois de antemão deve-se considerar que tanto a cultura jurídica quanto as instituições legais (tribunais, codificações e operadores do Direito) derivam da tradição legal europeia ocidental, representada aqui pelas fontes clássicas do Direito Romano, Gêrmanico e Canônico. Portanto, há de ser considerada a herança colonial luso-hispânica e os processos normativo-disciplinadores provenientes da mesma (BRAVO;WOLKMER, 2016). É neste sentido que reconhece o jurista mexicano, Jesus Antonio de La Torre Rangel, ter penetrado na América hispânica no século XIX o individualismo liberal, “dentro de uma sociedade fundamentalmente agrária, onde o desenvolvimento urbano e industrial era praticamente nulo. Portanto, a juridicidade moderna de corte liberal vai repercutir diretamente sobre a propriedade da terra” (1997, p. 69-70). Como tradição na América Latina os dispositivos legais e constituições tem prezado pela “neutralidade científica”, pela independência de poderes, condição imperante do Estado de Direito, e pelas garantias liberais individuais. Devem-se reconhecer as necessárias contribuições luso-hispânicas para a realidade jurídica da América Latina, mas de pronto refletir quanto a necessidade de reconhecer as particularidades das localidades para que se dê conta cabalmente da realidade. Em 1827, abrem-se os primeiros cursos de Direito no Brasil, inicialmente em Olinda e São Paulo, nos moldes de Coimbra. Desde então tais cursos foram passíveis de 15 reformas. De acordo com os períodos históricos houve restritas modificações nas diretrizes dos cursos jurídicos, como por exemplo na República Velha onde exclui-se o jusnaturalismo e passou-se a adotar o juspositivismo, sendo neste cenário possível a abertura de novos cursos e aumento de número de egressos, inclusive da classe média. A partir da Era Vargas proliferou-se de vez o número de cursos de Direito no país, porém não houve reforma estrutural efetiva. A maioria das reformas foram impostas pelo Estado, não havendo debate acerca da tratativa entre os mais interessados, sendo que apenas na última 181
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revisão possibilitou-se em certa medida liberdade para as instituições interessadas elaborarem os projetos, com participação discreta da Associação Brasileira de Ensino do Direito (BASTOS, 1998). Pode-se afirmar que o Ensino Jurídico Brasileiro historicamente foi construído sobre o viés do modelo Liberal e que, por meio da cristalização desse modelo, calcado na adoção de metodologias pedagógicas tradicionais e currículos privatistas não ocorreram de fato mudanças na evolução dos cursos jurídicos no país. A tardia influência do modelo de Estado social intervencionista divergiu e impactou com o paradoxo da expansão do ensino jurídico como mercado na década de 1990. Sendo que as mudanças qualitativas ao não mergulharem ao principal ponto que é o da produção do ensino, a sala de aula, restaram por omitir-se do necessário enfrentamento do centro da crise histórica, que se caracteriza pelo afastamento da academia do contexto da realidade social (MARTÍNEZ, 2006). Fato ainda atual, daí a necessidade da problematização emancipatória sobre o tema. O padrão advindo da colonização jurídica se apresenta em todo este contexto como o único caminho para humanidade plena, de forma que deve ser ampliado para o resto do mundo. Colocando-se como único conhecimento válido a partir da Europa, todos os demais saberes subalternizam-se tanto no interior de sua própria história quanto em relação aos territórios colonizados. Trata-se da substituição da diversidade dos saberes locais pelo suposto conhecimento universal e neutro. Na medida da consciência deste cenário urge o resgate pela pluralidade de perspectivas de estudos na América Latina, que reconheça sua plurinacionalidade e seu pluralismo jurídico. Nesse viés surge o pensamento decolonial, que reflexiona sobre a colonização como “um grande evento prolongado e de muitas rupturas e não como uma etapa histórica já superada. Neste sentido fala em “colonialidade”. Porém não se trata de um campo exclusivamente acadêmico, mas refere-se, sobretudo, a uma nova tendência política e epistemológica” (COLAÇO; DAMÁZIO, 2012, p. 8). A perspectiva do pensamento decolonial envolve vários atores e reflete acerca do desembaraço de um processo que ao mesmo tempo questiona os discursos “ocidentais” e modelos explicativos imperantes, e também evidencia a existência de distintos saberes a partir de lugares diferentes de pensamento. Portanto é possível compreender que o modelo de direito “ocidental” universal contribuiu para estabelecer a “colonialidade do conhecimento e assim subalternizar saberes. Para fraturar esta relação colonial é necessário romper com este 182
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padrão e começar a pensar o direito a partir dos diferentes mundos e culturas” (COLAÇO;DAMÁZIO, 2012, p. 8). Constituiu-se historicamente um pretenso saber jurídico universal que se imaginou como “deslocalizado” e assim subalternizou os saberes locais, tornando-se o discurso de desenvolvimento um apoio a postura disfarçada para o esmagamento dos saberes locais. Por isso a extrema relevância dos estudos pós-coloniais, e sobretudo decoloniais, estes que surgem na América Latina, e da necessidade de reflexão sobre o direito e o pensamento decolonial, para as novas perspectivas de estudos para a área jurídica como um todo na América Latina. Necessita-se “não apenas de uma nova maneira de pensar o direito, mas de novas formas de pensamento que descentralizam e pluralizam o que tem sido considerado como jurídico ou direito” (COLAÇO; DAMAZIO, 2012, p. 11). A nossa realidade é distinta da europeia ou norte-americana, e, por tal motivo, deve ser tratada com distinção, para que então se consolide uma teoria forte do nosso próprio Direito e se dê conta da realidade social e de ensino jurídico no país.
3. Novas Possibilidades para a Educação Jurídica: Necessidade de Perspectiva Crítica da Educação e Processo de Ensino-Aprendizagem De forma a repensar o ensino e aprendizagem jurídicos é importante salientar que ambos podem ser reconhecidos como resultado do esforço de superação a si mesmo, do sujeito enquanto sujeito, vencendo obstáculos. O local de disseminação de conhecimento tem como objetivo ser uma espécie de ferramenta de organização e canalização de sua atividade docente, no sentido de que ofereça aos alunos os meios necessários para que eles elaborem seus próprios conhecimentos. “Teoricamente aprendizagem é isso: atividade de criação, esforço pessoal que conduz cada indivíduo ao conhecimento” (OLIVEIRA, 1987, p. 56). O processo de ensino-aprendizagem é bastante complexo. A realidade da educação jurídica por sua vez mostra-se igualmente complexa pois cada vez mais despertam reflexões sobre a tratativa que despontam em críticas construtivas ou não ao modelo de educação jurídica vigente. Alguns autores intitulam como “crise” no âmbito do Direito, outros mais otimistas encaram como período de transição daquilo que talvez já não encaixe mais no contexto atual 183
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para algo que dê conta cabalmente do cenário jurídico, e por consequência do cenário social. De acordo com Rodrigues, a nível micro a utilização de estratégias específicas, que geralmente estão incluídas no campo da didática, pode facilitar a aprendizagem do aluno, “permitindo-lhe uma melhor compreensão dos conteúdos e o desenvolvimento das competências e habilidades desejadas” (RODRIGUES, 2012, p. 323). Tais estratégias didáticas podem ser agrupadas de acordo com a forma de relacionamentos existentes entre os sujeitos e elementos que compõe o processo de ensino-aprendizagem3: professores, alunos e conteúdos. Existem as estraté3
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Em tal cenário, importante ressaltar que são variadas as abordagens de ensino que podem ser adotadas pelo professor em sua atuação, das quais se mencionam cinco (MIZUKAMI, 1996): a) Tradicional, que se fundamenta na prática educativa e na transmissão através dos anos, privilegiando-se o especialista, os modelos e o professor na ideia de que o papel do professor se caracteriza pela garantia de que o conhecimento seja conseguido independentemente do interesse e da vontade do aluno. O aluno é considerado um receptor passivo até que, repleto das informações necessárias, pode repeti-las a outros que ainda não as possuam – perspectiva que é advindo da psicologia sensualempirista, do ensino verbalista da Idade Média e Renascença e defendido nos séculos XVIII e XI. A interação professor-aluno é vertical, em que o professor detém o poder decisório quando à metodologia, conteúdo, avaliação, forma de interação, etc. e, em um formato mais extremado, as relações sociais são quase que praticamente suprimidas e a classe, como consequência, permanece intelectual e afetivamente dependente do professor; b) comportamentalista, inspirada em Skinner, em que se defende que o conhecimento é uma descoberta, apesar de já se encontrar presente na realidade exterior, tanto a ciência quanto o comportamento são considerados como uma forma de conhecer os eventos, o que torna possível a sua utilização e o seu controle. Os modelos são desenvolvidos a partir da análise dos processos por meio dos quais o comportamento é modelado e reforçado. Recompensa e controle, planejamento cuidadoso das contingências de aprendizagem, das sequelas de atividades de aprendizagem, modelagem do comportamento humano, a partir da manipulação de reforços, desprezando os elementos não observáveis ou subjacentes a este mesmo comportamento. Assim, o ensino é comporto por padrões de comportamento que podem ser mudados através do treinamento, segundo objetivos pré-estabelecidos. c) Humanista, com referências teóricas em Neil e Carl Rogers. Em tal abordagem, o enfoque é no sujeito, em que o sujeito é o principal elaborador do conhecimento humano. A ênfase é sobre as relações interpessoais e ao crescimento que delas resulta, centrado no desenvolvimento da personalidade do indivíduo, em seus processos de construção e organização pessoal da realidade, e em sua capacidade de atuar, como uma pessoa integrada. Dá-se primazia à vida psicológica e emocional do indivíduo e à preocupação com a sua orientação interna, com o autoconceito, com o desenvolvimento de uma visão autêntica de si mesmo, orientada para a realidade individual e grupal. Desse modo, o professor não transmite o conteúdo, dá assistência, sendo um facilitador da aprendizagem. Assim, tem-se que a experiência pessoal e subjetiva é o fundamento sobre o qual o conhecimento abstrato é construído, não havendo modelos prontos, mas processo de vir-aser; d) Cognivitista, com bases nas teorias de Piaget e Bruner, em que o ensino é considerado mais do que um produto do ambiente, das pessoas ou de fatores que são externos ao aluno. É dada ênfase em processos cognitivos e na investigação separada dos problemas sociais contemporâneos, com as emoções articuladas. O aluno e seu meio são analisados conjuntamente, já que o conhecimento é o produto da interação entre sujeito e objeto, não se enfatizando polo nenhum da relação. Nessa
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gias centradas no professor, que baseiam-se em aulas expositivas onde o docente é o sujeito central de todo o processo. As estratégias interativas, onde há a interação entre professor e alunos, e também entre alunos, e evidencia-se construção conjunta na elaboração de trabalhos em grupos, painéis e representações. E por fim, estratégias centradas no aluno, onde o professor adquire papel de facilitador criando condições para que o aluno aprenda por si mesmo. As duas últimas técnicas são consideradas estratégias ou metodologias ativas, e tem sido consideradas apostas como novas possibilidades para a educação jurídica, a nível de didática, principalmente nos programas de pós-graduação tendo em vista o afastamento dos modelos tradicionais imperantes (RODRIGUES, 2012). A influência estrangeira que nossos cursos de Direito sofreram desde a sua criação é latente até nos dias atuais pois impera a lógica da ciência universal e neutra. Como consequência toda estrutura jurídica é afetada, desde a concepção de teorias que perpassam as salas de aula através de mecanismos de didática até a posterior prática dos operadores do direito nas mais diversas áreas deste conhecimento. De acordo José Eduardo Faria, a racionalidade imperante é meramente formal e abre espaço para tal senso comum teórico, implicando por sua vez em uma saturação ideológica na área do conhecimento do Direito, resultando num fechamento na possibilidade de discussões epistemológicas, e, consequentemente, a uma inércia reflexiva, a falta de anseio pela reforma social, ao conformismo (FARIA, 1987).
perspectiva, o indivíduo é um sistema aberto, em reestruturações sucessivas, em busca de um estágio final nunca alcançado por completo. O desenvolvimento do ser humano consiste, de forma genérica, em se alcançar o máximo de operacionalidade em suas atividades, motoras, verbais ou mentais. Assim, caberá ao professor criais situações, propiciando condições onde possam se estabelecer reciprocidade intelectual e cooperação ao mesmo tempo moral e racional.; e) Sócio-cultural, em que se prima pela atenção à cultura popular e tem-se, como referência, Paulo Freire. É considerada uma síntese de tendências como: neotomismo, humanismo, fenomenologia, existencialismo e neomarxismo. O foco, então, é criar condições para que os indivíduos assumam os valores, e não só os consumam. Para tanto, relação professor-aluno é horizontal e o professor deve estar engajado numa prática transformadora procurará desmitificar e questionar, com o aluno, a cultura dominante, valorizando a linguagem e a cultura deste, criando condições para que cada um deles analise seu contexto e produza cultura. Logo, Haverá preocupação com cada aluno em si, com o processo e não com produtos de aprendizagem acadêmica padronizado. Assim, o diálogo é desenvolvido, ao mesmo tempo em que são oportunizadas a cooperação, a união, a organização, a solução em comum dos problemas (Cf. BAGGENSTOSS, Grazielly A. análise da pertinência jurídica do programa escola sem partido com base no critério da proporcionalidade e nos controles de evidência e justificabilidade aplicados pelo Supremo Tribunal Federal. Revista de Argumentação e hermenêutica jurídica. v.. 2, n. 2 (2016). e-ISSN: 2526-0103).
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O direito não deve mais ser (apenas) praticado, mas sim estudado. Não temos uma tradição própria de teoria e/ou filosofia do direito. Temos dificuldade de olhar pra nós mesmos. Preferimos importar. Importar teorias oculta o nosso próprio direito, nossa própria existência. Não temos um ciclo fechado da nossa teoria do direito. Urgente pensar a teoria do direito, que passa pela compreensão da expansão indiscriminada dos cursos e currículos, da desconstituição da pesquisa, dos privilégios das corporações jurídicas no país. Quais são as teorias importadas? Qual o papel do Direito nos contextos? Como se dá o império e o domínio através das instituições postas? Segundo Edgar Morin, a educação deve seguir modelos e regras próprias de acordo com cada sociedade e cultura. O contexto, o global, o multidimensional, o complexo, devem tornarem-se evidentes através da educação para que o conhecimento seja pertinente. Na lógica do autor o conhecimento especializado contribui para a abstração, pois se a educação ensina a separar, compartimentar, isolar, e, não a unir os conhecimentos, o conjunto deles resulta num quebra-cabeças ininteligível (MORIN, 2000). Desta forma, faz-se a interpretação de que é necessário compreendermos o sistema no qual estamos inseridos e de onde viemos para então distinguirmos aquilo que serve à nossa existência enquanto sociedade brasileira, principalmente na perspectiva do cenário jurídico e teoria do direito por meio das metodologias de ensino. Ensina-nos Paulo Freire que “a libertação, por isto, é um parto. E um parto doloroso. O homem que nasce deste parto é um homem novo que só é viável na e pela, superação da contradição opressores-oprimidos, que é a libertação de todos” (FREIRE, 1987, p. 19). Nesse viés se mostra imprescindível o reconhecimento do surgimento de novas possibilidades para a educação jurídica, porém dentro de uma perspectiva crítica da educação e processo de ensino-aprendizagem, que por meio de uma análise do todo consiga alcançar as particularidades da própria sociedade e cultura. Para que se reconheça uma teoria do Direito voltada às especificidades da nossa realidade jurídica-política-social, e que para isso abra-se a aportes distintos dos que foram até agora trabalhados, desde que sirvam de apoio e fortalecimento a essa ideia. A realidade social é resultado do produto da ação das pessoas, transformar a realidade opressora, portanto, é uma tarefa histórica, tarefa destas pessoas. “Num pensar dialético, ação e mundo, mundo e ação, estão intimamente solidários. Mas, a ação só é humana quando, mais que um puro fazer, é um que fazer, isto é, 186
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quando também não se dicotomiza da reflexão” (FREIRE, 1987, p. 22). De forma a costurar as ideias deste trabalho, pontua-se o que diz o autor brasileiro “se essa descoberta não pode ser feita em nível puramente intelectual, mas da ação, o que nos parece fundamental, é que esta não se cinja a mero ativismo, mas esteja associada a sério empenho de reflexão, para que seja práxis” (FREIRE, 1987, p. 29).
4. O Ingresso das Mulheres na Área do Direito: Metodologias Jurídicas Feministas A história da raça humana é contada predominantemente por homens e este fato resulta em prejuízo para as mulheres pois o que lhes compete é esquecido ou simplesmente ignorado. Perceptível os abusos da Antropologia geral quanto a atuação e o papel das mulheres perante o mundo, entretanto, pelo viés feminista têm-se percebido os níveis universais de opressão e suas origens transculturais. Não se trata somente de obscurecer feitos e realizações das mulheres durante os milênios, mas repensar em que isto acarreta, a desimportância com que temas relacionados às mulheres vem sendo tratados estruturalmente em cada fase de (des)humanização da sociedade (MILES, 1989). Fica comprovado com dados históricos e feitos sociais que as mulheres possuem uma história vívida de opressão e que em certo momento surgiu a tomada de consciência destas, como coletivo humano de opressão e exploração por parte do que representa os homens diante do sistema patriarcal frente às diferentes fases históricas, e, assim sendo, pode-se dizer que neste cenário nasceu a definição de feminismo, sendo este também uma articulação da filosofia política e movimento social (BIROLI;MIGUEL, 2014). De acordo com a autora Muriel Dimen, o patriarcado pode ser compreendido como um sistema psicológico-ideológico – ou seja, representativo – bem como um sistema político-econômico. O processo de dominação pela qual passou a mulher e ainda passa, é fruto de uma transformação social secular onde o interesse pessoal das mulheres foi dissuadido em favor e em vontade dos detentores sociais do poder (DIMEN, 1997). A autora Michelle Perrot, em sua obra “Os Excluídos da História – Operários, mulheres e prisioneiros”, narra situações referentes às mulheres dos séculos XVII, XVIII, XIX e XX, primordialmente na Europa. Cita escritos referentes à era do matriarcado, mas principalmente as condições a que mulheres eram sub187
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metidas na época citada, e como até mesmo intelectuais (homens) encaravam os papéis sociais das mulheres. Como exemplos, no sistema capitalista liberal as mulheres estavam relacionadas com o consumo e os homens com a produção, eles eram considerados aptos para a razão, quanto a elas cabia papéis referentes à emoção (PERROT, 1988, p. 176-178). À época de seus escritos, nos anos 1940 e 1950, a filósofa francesa Simone de Beauvoir já apontava em suas obras as condições desiguais à que estavam submetidas às mulheres sob os homens, relatara sobre mudanças favoráveis, porém também sobre a pesada desvantagem, afirmando que “mesmo quando os direitos lhe são abstratamente reconhecidos, um longo hábito impede que encontrem nos costumes sua expressão concreta” (BEAUVOIR, 2009, p. 21), pode-se dizer que assim ainda o é, apesar de conjunturas diferenciadas e com soma maior de direitos adquiridos. Na obra “Mulheres, raça e classe”, Angela Davis demonstra de forma interseccional como a história das mulheres pode ser relatada como um todo, mas que principalmente deve ser analisada sobre um viés fragmentado, tendo em vista as diferentes realidades perante as quais vêm sendo inseridas durante toda a trajetória. Todas fomos oprimidas de acordo com o nosso gênero, entretanto a nossa raça e classe interferem em graus diferenciados nestas distintas formas de expressão. De acordo com a autora é importante ocupar espaços, mas mais do que isto, é necessário real envolvimento em romper com as lógicas opressoras (DAVIS, 2016). A América Latina, portanto o Brasil, possui particularidades, enquanto região colonizada e todas as conseqüências daí adquiridas, com suas situações econômicas, sociais e culturais. Dentro do recorte, mais recortes. A distinção entre as realidades urbanas e rurais, a sociedade de classes, os (des)níveis culturais, a representação de cada um nestes espaços. Neste viés que se deve refletir sobre a dinâmica dos Direitos Humanos conjuntamente com a condição de ser mulher no Brasil e no mundo, como lecionam Wolkmer e Bravo, “a historicidade dos direitos humanos reflete a aquisição, a transformação e a efetividade de questões concretas da vida, como, por exemplo, a cultura, a religião, o trabalho, a raça, o gênero, a crença, a condição socioeconômica, etc” (WOLKMER; BRAVO, 2016, p. 40). Demonstra relevância quanto ao reconhecimento das trajetórias pelas quais passaram as mulheres em distintas épocas e locais do globo, pois se verificam contextos históricos, sociais, econômicos e culturais opressores para este público. Necessário reconhecer as particularidades e reali188
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dades sociais para entender como os sistemas tem progredido ou não, e, tratar as principais causas do não desenvolvimento coletivo. Para que serve a história das mulheres? E a resposta viria, simples: para fazê-las existir, viver e ser. E mais fazer a história das mulheres brasileiras significa apresentar fatos pertinentes, ideias, perspectivas não apenas para especialistas de várias ciências – médicos, psicólogos, antropólogos, sociólogos etc. –, como também para qualquer pessoa que reflita sobre o mundo contemporâneo, ou procure nele interferir. Esta é, afinal, uma das funções potenciais da história (DEL PRIORI, 1997, p. 9).
O movimento feminista no Brasil, desde suas primeiras manifestações, ainda no fim do século XIX, caracterizou-se por reunir mulheres intelectuais que se manifestavam por meio de palestras, jornais, peças de teatro, romances etc. Essa peculiaridade de parte significativa das feministas pertencer aos grupos intelectuais difere o movimento dando-lhe uma posição particular quanto a outros grupos que se organizam em movimentos, como os sem-terra, indígenas e os negros. Nos primeiros anos da década de 1970 as mulheres que se reuniam eram professoras universitárias e profissionais liberais, em sua maioria ligadas às áreas de ciências sociais, história, letras, psicologia e direito, assim como na área da saúde. Raro, até então, encontrar mulheres relacionadas às ciências exatas. Céli Regina cita a obra de 1967 de Heleieth Saffioti, “A mulher na sociedade de classes: mito e realidade4” como marco para a produção acadêmica, bem como para o feminismo acadêmico (JARDIM PINTO, 2003, p. 85-86). Portanto através dos estudos feministas e de gênero têm-se caminhado para a verificação das discriminações estruturais, sendo neste ângulo de análise pelo suporte dado pela teoria da interseccionalidade, que busca refletir acerca das hierarquias entre gênero, raça e classe dentro da análise dos poderes político, social e cultural. Diante da realidade jurídica faz-se valoroso captar estes aportes teóricos em favor do universo do Direito, para quem sabe construir um caminho mais razoável para dentro e fora deste cenário. A desigualdade de gênero é gritante na realidade das carreiras jurídicas brasileiras, conjuntamente com a racial.
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Trata-se da tese de livre-docência defendida em 1967 por Heleieth Saffioti, orientada por Florestan Fernandes e publicada como livro em 1969, com prefácio de Antonio Cândido de Mello e Souza (JARDIM PINTO, 2003, p. 86).
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A construção histórica e social das carreiras jurídicas apresenta inúmeras causas para proporcionar tamanha dessemelhança, algumas óbvias e outras nem tanto. Ela Wiecko W. de Castilho, que atuou como Vice-Procuradora-Geral da República e é membro do Ministério Público Federal, levanta os dados em recente pesquisa de que são 318 mulheres e 767 homens no Ministério Público Federal. As mulheres correspondem a cerca de 30% do total dos membros, representando a minoria numa instituição que defende a sociedade brasileira na qual as mulheres somam mais do que 50% da população. A instituição também tem cor, no sentido de que não reflete a composição racial da sociedade brasileira (WIECKO, 2016). De acordo com pesquisa divulgada pelo IBGE em 20135, o Brasil conta com 103,5 milhões de mulheres, o equivalente a 51,4% da população, trazendo estas informações para o universo jurídico, segundo os dados do Censo do Poder Judiciário6, divulgado pelo Conselho Nacional de Justiça em 2014, apenas 35,9% dos membros da magistratura são mulheres, percentual este que diminui ainda mais nos altos cargos do Poder Judiciário: no estágio inicial da carreira (juiz substituto) há um percentual de 42,8% de mulheres, diminuindo para 36,6% dos Juízes Titulares, 21,5% dos Desembargadores e somente 18,4% dos ministros de tribunais superiores. No Supremo Tribunal Federal, mais alta Corte do país, em todos estes anos apenas três mulheres pontuaram como ministras: Ellen Gracie, Cármen Lúcia e Rosa Weber7, o órgão máximo do Poder Judiciário Brasileiro não contou com a presença de uma ministra negra. Tal desigualdade não se restringe aos cargos públicos, sendo também evidenciado na advocacia. Apesar de as mulheres representarem mais de 46% dos advogados do país8, o percentual de mulheres em altos cargos da advocacia ainda é baixo. Apenas duas mulheres já ocuparam cargos na diretoria do Conselho Federal da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil), Clea Carpi (secretária-geral na gestão 2007-2010)
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e Márcia Melaré (secretária-adjunta na gestão 2010-2013). Todos os integrantes da chapa única que disputou a última eleição para a diretoria da OAB foram homens9. A área da docência no Brasil não foge à regra, pois de acordo com os dados encontrados no relatório realizado pela Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas em 2013, o cenário é destoante entre os gêneros. Em termos de distribuição nacional, 62% são representados por docentes do gênero masculino, enquanto que 38% das funções docentes são preenchidas por docentes do gênero feminino. Quanto às funções docentes da rede pública, 36% são de docentes do gênero feminino e 64%, do gênero masculino. Já nas instituições privadas, há maior proporção de funções docentes do gênero feminino (39%) em relação à rede pública. Afins de exemplo e localização geográfica, a região sul, contrariando as demais, conta com a maior proporção de docentes do gênero feminino (41%), mas não difere do cenário de maioria absoluta de docentes do gênero masculino (59%). Em aspectos gerais quanto as posições geográficas, mostra que a proporção de docentes do gênero feminino nas IES públicas manteve-se entre 33% e 40%. Fazendo interseccionalmente o recorte de gênero e de raça, se forem consideradas apenas as funções docentes nas quais houve declaração de cor de pele, que representa 78%, a maioria absoluta é de brancos (78%), seguida de pardos (20%) e pretos (2%) (GHIRARD, 2013). Importante fazer a conexão entre o feminismo no Brasil e atuação das mulheres no âmbito jurídico do país. Como a historiadora Céli Regina afirma, “o movimento feminista não é um movimento popular, nem no sentido de classe nem no sentido de seu raio de ação. A chegada até as camadas populares ocorre ao longo de sua história como uma escolha política estratégica, e não como decorrência natural de seu desenvolvimento” (JARDIM PINTO, 2003. p. 85), o feminismo mesmo com todas as suas vertentes, não abraça a todas as mulheres brasileiras. E a falta do feminismo no espaço que for, afeta o resultado para com as minorias. Nós mulheres somos, ainda, um pequeno grupo quando da representatividade, e as feministas são um grupo ainda menor dentro do primeiro. Nesta altura do processo é necessário refletir sobre os cortes de privilégios e o que eles representam para então verificar o desempenho de cada ser humano para o desenvolvimento positivo coletivo. O curso de Direito, de acordo com Sabadell, nasceu masculino e perdura até datas recentes, justo por este 9
Acesso em 02 de jun de 2017. Disponível em: < http://www.oab.org.br/institucionalconselhofederal/diretoria >
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motivo tem direcionado suas atenções de forma singular, abarcando desigualmente os direitos entre homens e mulheres, e consequentemente entre os mais marginalizados. “O direito é considerado racional, ativo e abstrato. Como tais características são interpretadas como masculinas, o direito se identifica com o masculino e por isso é valorizado e reflete uma forma masculina de ver o mundo” (SABADELL, 2013, p. 217). Guacira Lopes Louro que é doutora em educação fala sobre a construção escolar das diferenças, diz que a escola – e aqui inserimos livremente em nosso contexto, portanto universidade, especialmente o curso de Direito – incumbe de separar os sujeitos, fazendo com que aqueles que irrompem seu espaço tornem-se distintos dos demais, aqueles que não tem este acesso. Fala também que neste ambiente ocorre uma espécie de divisão interna, “através de múltiplos mecanismos de classificação, ordenamento, hierarquização” (1997, p. 57). Concebida inicialmente para acolher alguns —mas não todos — ela foi, lentamente, sendo requisitada por aqueles/as aos/às quais havia sido negada. Os novos grupos foram trazendo transformações à instituição. Ela precisou ser diversa: organização, currículos, prédios, docentes, regulamentos, avaliações iriam, explícita ou implicitamente, “garantir” — e também produzir — as diferenças entre os sujeitos (LOURO, 1997, p. 57).
De acordo com o aporte apresentado, da colonialidade do conhecimento no qual estamos inseridos, sobretudo quanto à “influência” eurocêntrica nos cursos de Direito no Brasil desde os moldes iniciais até os dias atuais, da história de opressão de mulheres e o movimento feminista, a desigualdade que se apresenta a nível social, portanto refletida nos cursos de Direito, quanto ao gênero e por conseguinte à raça e classe, e a urgente necessidade de se repensar e compreender um modelo que abarque as nossas especificidades enquanto sociedade brasileira (jurídica), interessante refletir quanto a possibilidade de metodologias jurídicas feministas, que nada mais representariam que a luta e reconhecimento por igualdade nos três eixos citados – gênero, raça e classe – no âmbito do Direito, dentro de sala de aula, e como consequência, fora dela. María Lugones, filósofa argentina feminista, trabalha com a teoria do feminismo decolonial, onde destaca a importância de conceituar e reconhecer o gênero como uma das formas de opressão colonial e daí construir um feminismo que questione os padrões eurocêntricos (LUGONES, 2014). Dentro 192
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desta lógica, imaginamos ser possível construir uma teoria feminista para as metodologias jurídicas atuais. Isso significa introduzir o feminismo no ensino do Direito para que numa visão mais plural e igualitária consiga-se aproximar da realidade social, e, além disto compreender as teorias jurídicas, com aporte de áreas comuns, no intuito de alcançar concepção e prática que abarque a todos ou o maior número de pessoas possível, de forma realmente democrática. Horácio Wanderlei Rodrigues leciona quanto as prioridades e possibilidades frente ao que ele chama de “aspecto multifacético da crise da educação jurídica”, discorrendo sobre o que entende ser o alvo de atenção preferencial. Diz que aparentemente o que se pode realizar (ou buscar realizar), a curto e médio prazo, dentre alguns pontos é “estabelecer, claramente, quais devem ser os objetivos visados e as funções a serem desempenhadas pelos cursos de Direito” (RODRIGUES, 2000, p. 127). Quais devem ser? O despertar de que o modelo eurocêntrico imposto não mais nos cabe (ou talvez nunca tenha efetivamente servido) é latente, a inevitabilidade de percepção voltada à nossa existência social, histórica, cultural, econômica é presente, portanto, a transformação de que tanto falam, que alguns intitulam como “crise jurídica”, não deveria passar por uma incorporação feminista no âmbito jurídico que nada mais seria que assentir sobre as diferenças existentes e que para tanto devem ser trabalhadas dentro desta perspectiva? Levando-se em consideração o tímido espaço que mulheres ainda alcançam no cenário jurídico do país, principalmente no que diz respeito às posições de poder. O que se busca quando questionado o modelo atual nos cursos de Direito no Brasil, as teorias importadas, o distanciamento do lecionado da realidade fática? A história do Direito e dos Estados de Direito sofreu modificações de acordo com “atualizações” nos contextos econômico e social, portanto precisamos localizar em que momento estamos inseridos para então refletir sobre possível mudança. Na prática o direito tem se aplicado pelas imposições políticas e de força, para legitimar certas configurações de poder. Os sistemas jurídicos modernos correspondem às características e necessidades das sociedades de economia capitalista, sendo que essas sociedades se diferenciam no conteúdo, nas estruturas, comportamentos e etc., opondo-se por um lado ao estado de polícia e por outro o nepotismo. De outra forma os movimentos sociais tem ganhado corpo na medida em que conquistas sociais de grupos menos privilegiados tem sido alcançadas. O Direito como uma construção histórica, como realmente o é, deve ser encarado sob essa perspectiva: nós construímos a história do Direi193
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to. A academia deve retomar o seu papel. Refletir sobre novas alternativas a abraçar aquelas que parecem legítimas e urgentes no contexto jurídico e social. Neste cenário nos parece justificável, mais que isto, premente, de que os cursos de Direito assumam postura feminista em suas metodologias de ensino e pesquisa, de acordo com as diretrizes existentes e novas, para que se compreenda o sistema desigual social, se perceba o escasso espaço dado às mulheres num todo, e neste caso, no cenário jurídico brasileiro. Importante reconhecermos a necessidade de nos desprendermos das bases eurocêntricas de conhecimento, para que valorizemos as histórias locais e para que mesmo neste cenário em que nos encontramos jurídico-socialmente, possamos inserir ensino e pesquisa feministas na busca por compreensão interseccional da igualdade de maneira a desenvolvermos melhor enquanto pensadores do direito o próprio Direito.
5. Considerações Finais A partir do exposto, verifica-se que a hipótese básica foi corroborada, ficando evidenciado argumentativamente que há a possibilidade de inserção de metodologias jurídicas feministas no cenário do Direito brasileiro, desde que sejam aplicados os aportes teóricos dos estudos decoloniais, os quais rejeitam a concepção neutra e universal de conhecimento. Assim, será possível o posicionamento dos sujeitos, dentro de seu universo particular, acerca de suas próprias especificidades a partir de um ideal coletivo predominantemente latino-americano. É salutar, igualmente, o recurso a autoras mulheres que possibilitem o questionamento não só dos modelos de ensino jurídicos no Brasil, refletindo este cenário como potencial para novas possibilidades, mas, também, das próprias narrativas que são contatas pelo autor masculino10. Nesse sentido, as teorias decoloniais são férteis espaços de construção do pensamento, pois promovem o reconhecimento dos saberes locais das próprias especificidades qualidades e defeitos enquanto sociedade periférica e não enquadrada ao discurso hegemônico – o que possibilita, concretamente, a formulação de métodos que sejam adequados para observar e transformar a nossa realidade social e jurídica. 10 Ressalva-se, aqui, o recorte epistemológico da produção feminista, o qual será pontuado no artigo a seguir.
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O feminismo tem como finalidade alcançar a igualdade entre os gêneros nos mais variados âmbitos, e como demonstrado na pesquisa, o cenário jurídico indica forte desigualdade entre homens e mulheres no que diz respeito à espaço de atuação, sobretudo em cargos condizentes a poder, seja em qual esfera jurídica for. Levando-se em conta neste momento que a pesquisa não voltou-se para como o Direito opera com relação à população atendida por ele, mas sim, para aquela que se insere em seu próprio seio. Portanto a percepção atribuída de acordo com a elaboração do presente trabalho é de que além da possibilidade das metodologias de ensino e pesquisa no cenário jurídico brasileiro, é de extrema relevância que assim ocorra, para que se alcance nos três eixos da interseccionalidade – gênero, raça e classe – a igualdade entre suas pensadoras e pensadores, e para que de fato possamos construir uma linguagem jurídica própria e que dê conta satisfatoriamente da realidade. Ademais, além da plena verificação dos eixos mencionados, é imprescindível, igualmente, que as particularidades dos fenômenos em que as mulheres participem sejam levados em consideração a fim de que não caiamos no abismo do qual pretendemos sair: o discurso universal, causador de violência epistêmica e de silenciamento de vozes.
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O Discurso Universal e a Construção de Categorias Teóricas de Gênero: uma Análise Elementar do Direito Brasileiro sob o Viés da Epistemologia Feminista Grazielly Alessandra Baggenstoss1
Resumo O objetivo deste estudo é observar, de forma elementar, o Direito brasileiro sob os eixos da epistemologia feminista e a partir do critério identitário gênero. Para tanto, traz-se como marco teórico Sandra Harding, que estrutura dois eixos de teorização feminista e suas limitações, assumindo a possibilidade de, por ora, se utilizar construções científicas advindas do pensamento tradicional. A metodologia perfaz-se pela abordagem dedutiva, de modo bibliográfico e documental. Palavras-chaves: Epistemologia; Feminismos; Direito brasileiro
1. Considerações Iniciais As perquirições do movimento multifacetado feminismos enraízam-se nas concepções mais sedimentadas de nossas práticas e discursos. Nesse sentido, lança, também, um olhar inquietante sob as balizas da ciência tradicional e dos métodos de como coletar, pensar e produzir o conhecimento.
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Doutora e Mestra pela Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC, Professora da mesma instituição, no Curso de Graduação em Direito e nos Programas de Pós Graduação em Direito e de Pós-Graduação Profissional em Direito. Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UFSC. Coordenadora Líder do Grupo de Pesquisa Modelagem e Compreensão dos Sistemas Sociais/ CNPq, Coordenadora do Programa de Extensão Lilith.
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Em tal perspectiva, tem-se Sandra Harding, como marco teórico epistemológico, que apresenta as setas de interrogação sob o pensamento científico tradicional, que, sob o prisma feminista, pretende-se neutro e universal, mas se consolida pelo olhar de um pesquisador masculino, provido de privilégios que lhe favoreçam o labor exploratório. Por consequência, a mesma pretensão de imparcialidade atinge outros discursos, especialmente os políticos e jurídicos, os quais, com o objetivo de um determinado projeto estatal, legitimam-se como discursos oficiais de um dado grupo social. Assim, pode-se olhar o Direito brasileiro enquanto discurso do Estado pela ótica epistemológica dos feminismos. A partir disso, pretende-se expor o pensamento de Sandra Harding e de sua compreensão epistemológica feminista, com as ressalvas necessárias acerca da construção de uma teoria feminista e de subsequentes categorias analíticas. Em seguida, apresenta-se um delineamento sobre o ordenamento jurídico brasileiro, a partir de Foucault para a crítica ao sujeito e ao discurso universal. Com isso, localizam-se alguns fatores de discriminação que remanescem no discurso jurídico – seja pelo dinamismo social, seja pela pretensão da manutenção binária e engessada do ser mulher e do ser homem.
2. Questionamentos Epistemológicos para e Sobre as Teorias Feministas O paradigma temporal que se assume aqui é o de modificação de pressupostos epistemológicos, construído a partir dos dinamismos políticos, culturais, jurídicos, econômicos, havidos nas últimas quatro décadas no Brasil, influenciado, logicamente, pelo contexto mundial – especialmente pelos países que se denominam desenvolvidos. Nesse cenário, guiado pelo pensamento de Sandra Harding, destacam-se a ideia de questionamento da ciência como se entende consolidada na contemporaneidade (a partir de um discurso universal, pretensamente neutro, objetivo, pautado na linearidade), e o consequente rechaço promovido por categorias analíticas feministas, as quais desenham a construção de uma epistemologia feminista. A par disso, confessa-se que as “categorias analíticas feministas devem ser instáveis - teorias coerentes e consistentes em um mundo instável e incoerente são obstáculos tanto ao conhecimento quanto às práticas sociais” 200
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(HARDING, 1993, p. 11). Ademais, reconhece-se que seria um “delírio imaginar que o feminismo chegue a uma teoria perfeita, a um paradigma de ‘ciência normal’ com pressupostos conceituais e metodológicos aceitos por todas as correntes” (HARDING, 1993, p. 11), exatamente em virtude das bases fundantes da ciência que os feminismos pretendem questionar. O plano fático da observação do pensamento feminista é vida social, de onde a pessoa pesquisadora poderá extrair, a partir de seu conhecimento prévio, as categorias analíticas mencionadas, formulando-as teoricamente e testando-as. Como é cediço, emana-se, das filosofias tradicionais da ciência, a “imagem anacrônica do pesquisador como um gênio isolado da sociedade, selecionando problemas para pesquisar, formulando hipóteses, criando métodos para testar as hipóteses, recolhendo dados e interpretando os resultados da investigação” (HARDING, 1993, p. 26). Quando se pretende a neutralidade da pessoa que pesquisa determinado fenômeno, “presume-se a separação entre aquele que conhece e aquilo que é conhecido, entre sujeito e objeto”, a partir do que poderá ser possível “uma visão eficaz, exata e transcendente, pela qual a natureza e a vida social tomam a perspectiva que nos parece correta” (HARDING, 1993, p. 10) – que é uma postura patriarcal acerca do conhecimento, em que se pretende eleger o conhecimento legítimo advindo de apenas um sujeito, de que se extrai o discurso universal. O discurso universal, notadamente androcêntrico, é questionado extamente quando se empreende pesquisas sobre as experiências femininas em lugar das masculinas. A partir disso, são observados fenômenos e aspectos da pesquisa que, até então, eram invisibilizados nas categorias e conceitos teóricos tradicionais. Por conseguinte, pode-se chegar ao questionamento da legitimidade das estruturas analíticas centrais de tais teorias (HARDING, 1993). Aí, essa caricatura do pesquisador universal esbarra na compreensão da circunstancialidade da pessoa pesquisadora frente ao objeto de estudo e da própria concretização do sujeito político, enquanto ser existente em um dado tempo e espaço, e constituído de significados advindos de seu meio social. Não se pode questionar, igualmente, sobre a procedência das teóricas feministas, que se advêm, igualmente, dessa situação circunstancial. E, claramente, isso se justifica “em virtude do padrão histórico que faz com que apenas indivíduos a elas
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pertencentes disponham de tempo e recursos para fazer teoria e que unicamente mulheres dessa origem social possam se fazer ouvir” (HARDING, 1993, p. 9). Nesse contexto, uma teoria que se pretenda feminista deve articular a função de demonstrar (ou continuar demonstrando) que nunca existiu nem existe um homem ou uma mulher genérica, que seja modelo de exemplo para todas as demais pessoas, para fins de legitimação de sua existência. Assim, perante a inquietação acerca da figura de homem genérica, que se faz desconstruída pelo questionamento do discurso universal, deve-se seguir a perquirição acerca da mulher genérica – ou ideal –, levando-se em consideração a “[...] infinidade de mulheres que vivem em intrincados complexos históricos de classe, raça e cultura” (HARDING, 1993, p. 10). Por isso, Harding alerta que a construção teórica feminista deve atentar para que não se reproduza, sob a justificativa de teorização, “[...] o que nos parece ser uma associação patriarcal entre saber e poder, em detrimento das mulheres cujas experiências ainda não foram inteiramente expressas na teoria feminista” (1993, p. 10). Isso porque, além da coerência científica que se busca na teorização feminista ao identificar análises androcêntricas – e, assim, recusando -se ao discurso universalista –, as inferências mais transformadoras advêm de “situações de pesquisa em que feministas isoladas, ou em pequenos grupos, identificaram um fenômeno problemático, formularam uma hipótese provisória, imaginaram e realizaram a coleta de dados e depois Interpretaram os resultados” (HARDING, 1993, p. 26-27). Em polo contrário, pondera-se que, quando o planejamento e a execução da pesquisa são realizadas por pessoas externas ao grupo social de onde se depreende o fenômeno objeto da pesquisa, a atividade exploratória geralmente é “[...] desempenhada por um grupo privilegiado, enquanto a execução cabe a um grupo dominado”, garantindo-se, assim, os pressupostos científicos do grupo primeiro. Assim, evita-se contestação à adequação dos conceitos, categorias, métodos e interpretações dos resultados (Harding, 1993, p. 27). Diante do risco de distorção da análise das vidas em razão das extensões e reinterpretações promovidas pela pesquisa, é imprescindível que, na teorização feminista, o discurso universal científico seja questionado para que possamos dialogar com outras mulheres, e não com patriarcas (HARDING, 1993).
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Com a compreensão do mito acerca do homem universal2, duvida-se da legitimidade de uma análise que encontra como sujeito ou objeto uma mulher universal, tal “como agente ou como matéria do pensamento” (HARDING, 1993, p. 8), tendo em vista que as categorias utilizadas também podem advir de um sujeito pretensamente universal, mas, desta vez, a partir da experiência social de mulheres brancas, ocidentais, burguesas e heterossexuais. Ciente dos riscos de eleição de um sujeito universal, mesmo que em recorte ao gênero, faz-se necessário o alerta sobre a utilização das temáticas científicas manejadas para a compreensão do meio social. Pela visão de Harding, “a teoria política liberal e sua epistemologia empirista, o marxismo, a teoria crítica, a psicanálise, o funcionalismo, o estruturalismo, o desconstrutivismo, a hermenêutica e outros modelos teóricos aos quais recorremos, ao mesmo tempo se aplicam e não se aplicam às mulheres e às relações de gênero” (1993, p. 7-8) – exatamente em razão da suposta universalidade do discurso. O desafio, ainda, portanto, é complexo. Alenta Hardin, por fim, que, “até que sejam mudadas nossas práticas dualistas (separação da experiência social em mental e manual, em abstrata e concreta, emocional e negadora das emoções), somos forçadas a pensar e a existir no interior da própria dicotomização que criticamos” e, igualmente, “[...] devemos persistir na distinção entre cultura e natureza, gênero e sexo (principalmente diante do refluxo do determinismo biológico), mesmo que, por experiência e análise, possamos perceber que são inseparáveis dos indivíduos e das culturas. As dicotomias são empiricamente falsas, mas não podemos descartá-las como irrelevantes enquanto elas permanecem estruturando nossas vidas e nossas consciências (1993, p. 26).
2. Delineamentos oara uma Teoria Feminista A sugestão para o planejamento de categorias analíticas de uma construção feminista é, exatamente, compreender e aceitar a sua instabilidade e a ausência de uma coerência formal e permanente de construção das explicações.
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A autora ressalta que “[...] as teorias patriarcais que procuramos estender e reinterpretar não foram criadas para explicar a experiência dos homens em geral, mas tão-somente a experiência de homens heterossexuais, brancos, burgueses e ocidentais” (HARDING, 1993, p. 8).
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Na sequência, é possível localizar em tal instabilidade a reflexão teórica sobre os aspectos da experiência em observação (HARDING, 1993). Ainda, pode-se fazer uso de aspectos ou elementos dos discursos pretensamente universais exatamente para esclarecer temas feministas. Assim, pode ser viável refletir sobre “[...] os limites propostos pelas teorias, reinterpretar suas afirmações centrais ou tomar emprestados conceitos e categorias para tornar visíveis as vidas das mulheres e a visão feminista das relações de gênero” (HARDING, 1993, p. 8)3. Assim, “cada desafio relaciona-se com o uso ativo da teoria para nossa própria transformação e a das relações sociais, na medida em que nós, como agentes, e nossas teorias, como concepções de reconstrução social, estamos em transformação” (HARDING, 1993, p. 9). Para a pesquisa e a construção de teorias feministas, é imprescindível reconhecer a utilização de marcadores advindos das teorias patriarcais. E isso se justifica não pelo fato de se promover releituras advindas da ciência tradicional, mas pelo fato de as pesquisadoras não saberem ou de não deverem compreender o que, de fato, representa a “[...] série de opções conceituais que nos são oferecidas: exceto que as próprias opções criam dilemas insolúveis para o feminismo” (HARDING, 1993, p. 11-12). Assim, sugere Harding que, Em vez da fidelidade ao princípio de que a coerência teórica é um fim desejável por si mesmo e a única orientação válida para ação, podemos tomar como padrão a fidelidade aos parâmetros de dissonância entre os pressupostos dos discursos patriarcais e dentro de cada um deles. Essa visão do processo de teorização capta o que alguns consideram ser uma ênfase tipicamente feminina na reflexão e na tomada de decisão contextuai e nos processos necessários ã compreensão de um mundo que não foi criado por nós - isto é, um mundo que não encoraja à fantasia sobre os modos de ordenar a realidade segundo nossos desejos’’’. Tal concepção define as maneiras como uma “consciência alienada”, “dividida” ou “contestadora” funcionaria no plano da construção de teorias - bem como no plano do ceticismo e da revolta. Precisamos ser capazes de acolher certos desconfortos intelectuais, políticos e psíquicos, de considerar inadequados e até mesmo derrotistas determinados tipos de soluções luminosas aos problemas que nos colocamos (1993, p. 12).
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Nesta hipótese, a atenção deve ser redobrada, pois “[...] na melhor das hipóteses após todo esse esforço, não é raro que as teorias acabem por perder qualquer semelhança com as intenções originais de seus formuladores e adeptos não-feministas (e isso na melhor das hipóteses)” (HARDING, 1993, p. 8).
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Nesse esforço, Harding vislumbrou a compreensão de dois eixos da teoria feminista em formação: o empirismo feminista e o pós-modernismo feminista. Ambas as séries teóricas apresentam propostas questionadoras da ciência tradicional, mas também esbarram em limitações epistemológicas – e, assim, caracterizam-se como produto do tempo atual.
2.1 O Empirismo Feminista A proposta da pesquisa empirista não é promover o câmbio do olhar a partir do gênero, mas promover a transcendência deste, pretendendo fortalecer a objetividade, em busca de produtos científicos isentos de juízos de valor – que é a pretensão, igualmente, de Harding (1993, p. 13-14). Em sua formulação, portanto, informa que o feminismo, enquanto movimento político, o feminista, contribui para o aumento da objetividade do conhecimento científico, denunciando, como preconceitos sociais, o sexismo e o androcentrismo. No entanto, a partir disso, o empirismo apresenta, como pressuposto, “a irrelevância da identidade social do observador para a qualidade dos resultados da pesquisa”. O argumento, nesse sentido, é de que mulheres e homem feminsitas podem, quando unidos, apresentar resultados objetivos e que sejam destituídos de tendenciosidade – ao contrário de homens ou pessoas não- feministas (HARDING, 1993, p. 14). Além disso, esse eixo científico defende a proposta de explicação ou justificação das problemáticas, insistindo nas normas metodológicas tradicionais, e não de uma busca por suas descobertas. Nesse ponto, o empirismo falha por reiterar métodos científicos que não alcançam os objetivos propostos pelo feminismo, visto que se configuram inadequados e impotentes pela visão androcêntrica que os macula. Finalmente, em subversão ao critérios científicos questionados pelo feminismo, o empirismo, ao adotar normas lógicas e sociológicas de investigação, promove, além da generalização mencionada acima, a corroboração de observações advindas de “parte da comunidade científica já existente (ocidental, burguesa, homófoba, branca , sexista)”, que é feita por seres masculinos (HARDING, 1993, p. 14). Pelas considerações de Harding, tem-se que as conclusões da “[...] pesquisa feminista no campo das ciências naturais e sociais parecem ser, de fato, mais
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fiéis ao mundo e, portanto, mais objetivas, do que as alegações sexistas destes que vieram substituir” (HARDING, 1993, p. 16). O risco reside pontualmente na compreensão do mundo natural e do mundo cultural de forma transcendental às restrições de performatividade de cada gênero. Assim, tais não são examinadas como interpretações subordinadas a gêneros (HARDING, 1993).
2.2 Pós-Modernismo Feminista Também cunhado como eixo das epistemologias da posição alternativa, o pós-modernismo feminista parte da compreensão marxista de que a reflexão científica “pode refletir “como o mundo é” e pode contribuir para a emancipação da humanidade” (HARDING, 1993, p. 16), em questionamento da objetividade e da visão racionalista de mundo4. Essa epistemologia é fundada em uma visão teoria alternativa da atividade propriamente humana (modos de existir, viver e conviver), em que as mulheres ou feministas5 são como agentes potencialmente ideais do conhecimento. Nesse viés marxista, “a experiência social característica dos homens, assim como a da burguesia, oculta a natureza política das relações sociais que eles veem como naturais” (HARDING, 1993, p. 18). Por conseguinte, Os padrões dominantes do pensamento ocidental justificam a subjugação da mulher como necessária ao progresso da cultura e as visões muito parciais e mais despropositadas do homem como sendo as únicas dotadas de excelência humana. A mulher é capaz de usar a análise e a luta política para oferecer uma compreensão menos parcial, menos defensiva, menos descabida tanto das relações sociais humanas como da natureza (HARDING, 1993, p. 18).
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“Um projeto destes já é, por si mesmo, radical, porque a concepção iluminista explicitamente negava que as mulheres possuíssem a racionalidade e a capacidade de observação desapaixonada e objetiva exigidas pelo pensamento científico. As mulheres podiam ser objeto da razão e da observa- ção masculinas, mas nunca seus sujeitos, jamais po- deriam ser mentes humanas reflexivas e universalizantes. Somente os homens eram vistos como formuladores Ideais de conhecimento; e. en- tre eles, apenas os que pertenciam à classe, raça e cultura corretas eram vistos como detentores de capacidade inata para o raciocínio e a observação socialmente transcendentes. As finalidades e propó- sitos de tal ciência se revelaram tudo menos libertadoras”. (HARDING, 1993, p. 16).
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Não há dissenso sobre isso.
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A crítica que se promova à tal modo de observação dos fenômenos e de construção científica toma por base um ceticismo com relação à racionalidade e sua ideal capacidade de compreensão de um mundo perfectibilizado. Tal rechaço se adere à “rejeição do valor das formas de racionalidade, da objetividade desapaixonada e do rigor arquimediano que deveriam servir de instrumentos do conhecimento”, mas justificam teoricamente seus posicionamentos com outros “[...] céticos do modernismo como Nietzsche, Wittgenstein, Derrida, Foucault, Lacan, Feyerabend, Rorty, Gadamer e aos discursos da semiótica, psicanálise, estruturalismo e desconstrutivismo” (HARDING, 1993, p. 18). Por isso, Harding afirma que “o que surpreende é a maneira como a idéia da ciência alternativa e o ceticismo pós-moderno são igualmente defendidos por essas teóricas, sendo que os conceitos tão diametral- mente opostos nos discursos não-feministas” (HARDING, 1993, p. 18)6. Apesar das divergências (salutares em um ambiente que se pretende a democracia7), as correntes do pensamento feminista que se formam, em delineamento de uma “epistemologia em um mundo onde o pensamento não necessite de controle”. De um lado, tem-se o pensamento sobre o “poder aos “saberes dominados” das mulheres, sem os quais a situação epistemológica pós-moderna não poderá nascer”; de outro, a falha no “questionamento da legitimidade da pretensão de uma única história feminista da realidade” (HARDING, 1993, p. 20). No entanto, a constatação de tais instabilidades não deve ser utilizada para fins de descarte de tais pensamentos, mas sim de esforço em seu aprimoramento. A par disso, adota-se, considerando o questionamento acerca do discurso universal, bem como a expressa menção sobre a subjugação de determinadas formas de saberes e existências, questionando-se, inclusive, a formação do Direito, o pensamento de Foucault para se promover o exame acerca do ordenamento jurídico brasileiro no que se refere à gênero, nos seus descritores de identidade e de expressão.
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Nessa linha de raciocício, “vista da perspectiva da tendência pós-moderna no pensamento feminista, a proposta de uma ciência alternativa pode parecer ainda demasiado arraigada a modos tipicamente masculinos de estar no mundo” (HARDING, 1993, p. 18).
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Com todas as ressalvas acerca deste ideal, construído como um mito e reconhecido como não visto ou experienciado ainda.
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3. Direito Enquanto Pretensão de Discurso Universal O discurso dos direitos intrínsecos à pessoa humana é fecundo enquanto, resguardados limites culturais8, se é viável a sua concretização aos mais diversos espectros da personalidade e do exercício de existir e co-existir do sujeito. No entanto, nem sempre tal obviedade é simples, especialmente quando o conteúdo fático de determinados direitos esbarra em valores morais de grupos sociais específicos. Para tanto, o conteúdo de tais direitos deve permitir a complementação de variações humanas que estejam em consonância com a forma jurídica. Além disso, especificamente no Direito brasileiro, o pluralismo político e o constitucionalismo fraterno predominam na orientação de respeito à diversidade de existências e de expressão. A uma forma mais visceral, ainda, desnuda-se que o próprio ordenamento jurídico brasileiro é fundado em conceitos ocidentais (como estado, democracia, direitos humanos, entre outros) que representam a universalização de uma determinada forma de organização e interação sociais – o que, de um prisma sistêmico, observa-se que eventualmente pode produzir o silenciamento de saberes, práticas, convivências e modos de existir que não se enquadrem com o discurso universal. Isso porque, na compreensão de Foucault, uma das consequências do discurso universal/universalizante é a imposição de uma verdade como universal, ao passo em que encobre e invisibiliza existências e saberes (FOUCAULT, 2002)9. Tal forma ampla de organização, embasada no discurso jurídico, estabelece o molde de um sujeito universal, revestido pelo manto da verdade, como se tempo e espaço fossem fatores inexistentes e não necessários para a própria concretização do ser. Em função disso, há, no imáginário coletivo, o que se denomina de ponto zero, que representa uma conjecturada observação neutra sobre o mundo – sem o devido questionamento de quem a realiza. No âmbito jurídico, trata-se da mesma observação a partir de padrões que se entendam pretensamente neutros também. Esse hipotético início epistêmico das formas jurídicas confere o poder de construção de ordens que é considerada legítima pelo Estado.
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No que se refere a relativismo cultural, que não é objeto deste estudo.
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FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas. 3. ed. Rio de Janeiro: Nau Editora, 2002.
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No entanto, as planificações jurídicas acerca de existências e formas de existir não são neutras, pois se tratam de prescrições devidamente localizadas em tempo e espaço, dirigidas a um determinado grupo social que se funda em peculiaridades culturais, morais, econômicas, etc. E outorgar um caráter neutro a normas impregnadas de concepções valorativas, além de silenciar outras formas de existência e interação, é ocultar casuais interesses e objetivos da formatação jurídica tida como universal. Essa leitura é conferida por Foucault, que esclarece que o discurso tido como verdade é resultado da construção da articulação das regras poder e da fluidez das práticas discursivas, encampando o seu aspecto linguístico e jogos estratégicos de ação e de reação e de insurgências (FOUCAULT, 2002)10. É nesse ponto que os modos de existir e co-existir silenciados, denominados por Foucault como “saberes sujeitados”, são tidos por conhecimentos folclóricos, ou locais, quiçá até risíveis, pois não são legitimados pelo discurso padronizador (FOUCAULT, 1999)1112. Assim, por via de consequência, nasce a hierarquização dos saberes, em que o discurso universal, enquanto legitimado, é mais valorado; e os demais, que não estejam de acordo com as exigências da verdade, são desconsiderados – pela exclusão do seu conhecimento, pela forma jocosa (e desrespeitosa) ao serem mencionados ou pelo repúdio violento (FOUCAULT, 1999).
3.1 O discurso da heteronormatividade e as facticidades de existência e interação da pessoa humana São diversas as delimitações teóricas de gênero, bem como dos termos que lhe são correlatos e da própria subjetividade humana, pois variam de acordo referencial científico utilizado – seja o tradicional, ou o potencial feminista. Pelos estudos de gênero, nesse sentido, tem-se o questionamento de como as subjetividades se constituem a partir do pensamento, construído histórica e culturalmente, do binômio mulher-homem – o qual designa relações assimétri10 FOUCAULT, 2002. 11 FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. Curso do Collège de France (1975-1976). São Paulo: Martins Fontes, 1999. 12 FOUCAULT, 1999.
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cas de poder e, ainda, a naturalização da ligação inexorável entre sexo e gênero. Em tais inquietudes, inclusive, também são apresentadas interrogações acerca da binariedade de sexo e de gênero, as quais provocam incidências importantes em todos os campos científicos e culturais – especialmente no Direito, que adota a concepção dual da pessoa humana em sexo e gênero. Importa destacar que tais estudos não pretendem negar a diferença entre homens e mulheres, mas alertar que considerar o gênero enquanto característica imutável, tornando-se algo similar à essência humana, “descontextualiza a constituição do sujeito como um ser histórico, datado no tempo e situado no espaço social. Sem dúvida, as questões de gênero como hoje são concebidas e faladas, foram construídas também pelos discursos das ciências” (NOTHAFT, 2015)13. Da compreensão de gênero, é importante ressaltar que não há nenhuma determinação que vincule identidade de gênero, expressão de gênero e identidade sexual. Tal esclarecimento faz-se imprescindível exatamente para a visualização das nuances diversas da identidade da pessoa humana. Do gênero, conforme mencionado, pode-se distinguir a identidade e a expressão. Dentro da concepção binária mulher-homem, a identidade de gênero caracteriza-se como o reconhecimento da pessoa humana enquanto feminina ou masculina, em correspondência às convenções sociais e independente de sua anatomia. Nessa linha de raciocínio, no contexto brasileiro, a identificação do gênero do nascituro ainda é feita com a observação dos adultos de sua anatomia externa da genitália. A partir disso, tem-se a reação da rede social em que a criança está imersa, iniciando a socialização de gênero do nascituro14. Desse modo, gênero constitui-se como o conjunto de normas, obrigações, comportamentos, pensamentos, capacidades e até mesmo o caráter que se exigiu que as mulheres tivessem por serem biologicamente mulheres, por exemplo. Assim, ao se fazer referência ao gênero, fala-se em normas e comportamento determinados para homens e mulheres em função do
13 NOTHAFT, Raíssa Jeanine. Questionando binarismos na problematização da oposição sexo/gênero. Caderno Espaço Feminino, Uberlândia,v. 28, n. 2, jul./dez. 2015. 14
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Nos termos da Lei de Registros Públicos (Lei 6.015, de 1973), em seu art. 54, item 2º, “o assento do nascimento deverá conter”, além do dia, mês, ano e lugar do nascimento e a hora certa, sendo possível determiná-la, ou aproximada (1º) e do nome e o prenome, que forem postos à criança (4º), “o sexo do registrando”.
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sexo (GARCIA, 2015)15– o que estaria em consonância aparente com a lição de Fausto-Sterling, referida no tópico anterior. Em tal espectro, tem-se que é cisgênero (a) a pessoa que apresente uma identidade de gênero mulher correlacionada com o gênero que lhe fora atribuído ao nascimento, o qual se identifica com aparelho reprodutor denominado culturalmente como feminino; ou (b) a pessoa que apresente uma identidade de gênero homem correlacionada com o gênero que lhe fora atribuído ao nascimento, o qual se identifica com aparelho reprodutor denominado culturalmente como masculino16. Por conseguinte, é transgênero (a) a pessoa que apresente uma identidade de gênero mulher correlacionada com o aparelho reprodutor denominado culturalmente como masculino ou (b) a pessoa que apresente uma identidade de gênero homem correlacionada com o aparelho reprodutor denominado culturalmente como feminino (NOTHAFT, 2015)17. Afere-se que a indicação do gênero, em vinculação com a genitália observada, representa uma gama de ações e situações pelas quais a pessoa humana será submetida, dentro do contexto do papel social indicado pelo que lhe fora atribuído – aquilo que lhe é esperado socialmente, tendo enraizamento não só em sua identidade como pessoa humana, mas também no que se refere à sua orientação sexual e à sua expressão perante os demais. Nesse ponto, a expressão de gênero, por sua vez, refere-se à forma da pessoa humana se expressar. Em razão dos papéis de gênero enraizados no imaginário coletivo, construídos culturalmente, há a classificação das pessoas em femininas ou masculinas, dependendo de sua forma de se comportar, de se vestir, de seu aspecto físico, interesses. Há, ainda, o etiquetamento de androginia ou neutralidade à pessoa que se exprime de modo ambivalente, apresentando fatores masculinos e/ou femininos ou uma aparência que não permite identificar o gênero. 15 GARCIA, Carla Cristina. Breve história do feminismo. São Paulo: Claridade, 2015. 16 Os termos cis, cisgênero e cisgeneridade foram cunhados por pessoas identificadas por transexualidades, as quais promoveram a denominação daquele segmento de pessoas que apresentava diferenças generificadas e que já tinham, previamente, as nomeado enquanto “trans”. 17 Nesse sentido, “há diversos critérios que contribuem para o sexo biológico, tais como: cromossomas (XY, XX, ou outras combinações), genitais (estruturas reprodutivas externas), gonadas (testículos ou ovários), hormonas (testosterona, estrogénios), etc. Uma pessoa intersexo tem órgãos genitais/ reprodutores (internos e/ou externos) masculinos e femininos, em simultâneo, ou cromossomas que não são nem XX nem XY”. Cf. NOTHAFT, 2015.
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Além dessas caracterizações, pode-se delinear, também, a concepção de orientação sexual. A identidade sexual ou orientação sexual diz respeito à afetividade e à sexualidade da pessoa humana. Assim, a designação pode variar de acordo com o seu par afetivo-sexual, podendo ser heterossexual, homossexual, bissexual, pansexual, dentre outros. Frente a tais concepções, é possível trazer a reflexão de que a internalização da heterossexualidade como norma (ou seja, identidade sexual considerada padrão) promove a confusão entre expressões de gênero, identidades de gênero e identidades sexuais. Mas “não existe uma forçosa, inescapável e linear correspondência entre esses conceitos”, pois “comportamentos não correspondem necessariamente a assunções identitárias”18. Para tanto, “bastaria notar que podemos ser ou parecer masculinos ou femininos, masculinos e femininos, ora masculinos ora femininos, ora mais um ora mais outro, ou não ser nenhuma coisa ou outra, sem que nada disso diga necessariamente respeito a nossa sexualidade. Para ser “homem” alguém precisa ter pênis, ser agressivo, saber controlar a dor, ocultar as emoções, não brincar com meninas, detestar poesia, bater em “gays”, ser heterossexual ou estar sempre pronto para acossar sexualmente as mulheres?”19 O padrão característico desses critérios identitários, veiculado pelo sistema mainstream, é a heteronormatividade, a qual se consubstancia em um conjunto de agências, informais e institucionalizadas, por meio de discursos, valores, práticas e procedimentos, por meio das quais a heterossexualidade e suas consequências são impostas e vivenciadas como a única opção natural e legítima de expressão2021 Esse conjunto de normas regula a heterossexualidade, enquanto identidade sexual, como núcleo, e várias vertentes regulativas, tais como a identidade de gênero (na binariedade cisgênera mulher-homem), a expressão de gênero (mulher deve se expressar de modo feminino; homem de forma masculina). Nesse compasso, as disposições heteronormativas pretendem “naturalizar, impor, sancionar e legitimar uma única sequência sexogênero-sexualidade: a cen18 JUNQUEIRA, Rogério Diniz. A pedagogia do armário: heterossexismo e vigilância de gênero no cotidiano escolar. Revista Educação On-line, Rio de Janeiro - PUC-Rio, nº 10, p. 64-83, 2012. 19 JUNQUEIRA, 2012. 20 WARNER, Michael. Fear of a queer planet. Minneapolis: University of Minnesota, 1993. 21 JUNQUEIRA, 2012.
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trada na heterossexualidade e rigorosamente regulada pelas normas de gênero, as quais, fundamentadas na ideologia do dimorfismo sexual, agem como estruturadoras de relações sociais e produtoras de subjetividades”22. Portanto, dentre vários os ganchos da heteronormatividade, a heterossexualidade é produzida, reiterada histórica e culturalmente em sua configuração como norma padrão de identidade, relacionamento e expressão23. Remanescendo no imaginário coletivo como padrão, dever de todas e todos, o grupo social sustenta “um regime de controle e vigilância não só da conduta sexual, mas também das expressões e das identidades de gênero, como também das identidades raciais”, marcados pelo heterossexismo e pela homofobia24. Desse modo, “podemos afirmar que o heterossexismo e a homofobia são manifestações de sexismo, não raro, associadas a diversos regimes e arsenais normativos, normalizadores e estruturantes de corpos, sujeitos, identidades, hierarquias e instituições, tais como o classismo, o racismo, a xenofobia”25. Diante disso, entende-se, enquanto fenômeno social, a homofobia vinculada “[...] a preconceitos, discriminação e violência voltados contra quaisquer sujeitos, expressões e estilos de vida que indiquem transgressão ou dissintonia em relação às normas de gênero, à matriz heterossexual, à heteronormatividade”26, cujas disposições determinam “processos heteronormalizadores de vigilância, controle, classificação, correção, ajustamento e marginalização com os quais todos/as somos permanentemente levados/as a nos confrontar”27. A heteronormatividade encontra-se impregnada em diversas formas de interação do grupo social e, portanto, testa-se, a seguir, a sua influência no ordenamento jurídico brasileiro.
22 BUTLER, Judith. Problemas de gênero. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. 23 LOURO, Guacira Lopes. Heteronormatividade e homofobia. In: JUNQUEIRA, Rogério Diniz. Diversidade sexual na educação. Brasília: MEC, Unesco, 2009a. 24 JUNQUEIRA, 2012. 25 JUNQUEIRA, Rogério Diniz. Educação e homofobia: o reconhecimento da diversidade sexual para além do multiculturalismo liberal. In: JUNQUEIRA, Rogério Diniz. Diversidade sexual na educação. Brasília: MEC, Unesco, 2009b. 26 JUNQUEIRA, 2012. 27 JUNQUEIRA, 2009b.
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3.2 O discurso jurídico brasileiro acerca do gênero No ordenamento jurídico brasileiro, a ideologia mencionada no item anterior aparentemente não é diferente. Constitucionalmente, há a clara menção somente de sexo biológico na distinção entre mulher e homem, mas não acerca do gênero. Na legislação infraconstitucional, as menções relativas às expressões e identidade de gênero, bem como de identidade sexual são parcamente desenvolvidas, provocando, muitas vezes, confusão entre tais expressões e mais: redução da existência da pessoa humana e violação de direitos. Acerca do gênero, o ordenamento jurídico brasileiro define tal critério identitário no art. 1º, parágrafo único, inciso II, do Decreto nº 8.727, de 28 de abril de 2016, in verbis: identidade de gênero - dimensão da identidade de uma pessoa que diz respeito à forma como se relaciona com as representações de masculinidade e feminilidade e como isso se traduz em sua prática social, sem guardar relação necessária com o sexo atribuído no nascimento. Verifica-se que o gênero reconhecido pelo ordenamento jurídico é o de caráter binário e excludente – mulher ou homem – em nítida ausência de contemplação às demais formas de gênero que estejam sendo questionadas socialmente e estudadas no meio acadêmico28. Além disso, por se tratar de um critério de identidade da pessoa humana que é albergado de modo implícito ou raro pela legislação, há uma forte tendência ao predomínio do discurso da cisgeneridade, enquanto identidade exigida pelas heteronormatividade. Um prova disso é que o modo normal a ser verificado seria a pessoa cisgênera, em que há correspondência entre o gênero atribuído ao nascimento e aquele por que se identifica – a ordem da linguagem, aqui tem sua usual primazia. Esse discurso entranha-se em uma perspectiva regulatória cujo escopo é adequar as pessoas que se identifiquem de modo divergente ao sistema binário imposto. E a consequência direta é tornar o desvio uma patologia supostamente justificada na ciência médica e em desconsideração de outros estudos científicos, inclusive médicos, e também os que envolvam a antropologia, a psicologia e a sociologia. 28 Vide, por exemplo, a diversidade de identidade de gênero reconhecida pelo Governo de Nova Iorque, tendo em vista a determinação de que, na cidade de Nova York, é ilegal discriminar com base na identidade e expressão de gênero no local de trabalho, nos espaços públicos e na habitação, cf. https://www1.nyc.gov/assets/cchr/downloads/pdf/publications/GenderID_Card2015.pdf
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Por conseguinte, em tantos outros casos, e com poucas referências jurídicas, muitas ainda não tão compreendidas pelas práticas judiciárias, tem-se, na legislação brasileira, o imperativo conceito de heteronormatividade, em que se vislumbra a prescrição da cisgeneridade, da heteroafetividade e da necessidade de que o gênero tenda à expressão que culturalmente lhe foi atribuída como correspondente – ou seja, que a identidade de gênero feminina apresente-se como feminina, e a identidade de gênero masculina expresse-se como masculina. Exemplos disso são (a) a demanda exaustiva de casais homoafetivos pelo reconhecimento de sua união, tendo em vista que o ordenamento jurídico reconhece, expressamente, tanto o casamento quanto a união estável entre homem e mulher, mas não há menção às uniões homoafetivas29; bem como pela luta das pessoas trans* para a retificação de nome e gênero em seus documentos de identificação oficiais30. Essa constatação infrajurídica brasileira é um contraponto ao sistema internacional de proteção de direitos humanos, mesmo com a cláusula de abertura do art. 5º, § 2º, da Constituição Federal. No sistema jurídico humanitário, há uma grande normatização acerca da não-discriminação às diversas formas de vida humana, da proteção da vida privada e do respeito à autonomia – tais como as Resoluções ONU nº 17/19 e OEA AG/RES nº 2863 (XLIV-O/14) e, especialmente, os Princípios de Yogyakarta (Princípios 3 e 19). O arcabouço jurídico internacional, bem como as normativas internas brasileiras, buscam a conferir proteção ao que se defende neste escrito: o direito 29 Muitos argumentos de resistência acerca da multiplicidade dos espectros da personalidade humana acerca das identidades aqui em relevo refletem fundamentos religiosos, em que se determina que, conforme os textos sagrados de determinadas crenças, somente é permitida a união entre homem e mulher, caracterizando em pecado a união entre pessoas do mesmo sexo/gênero. Aqui, urge esclarecer que é legítima a reprovação moral da diversidade humana, com cunho religioso, desde que se limite à expressão de sua crença e de seu pensamento de modo que não comprometa a esfera jurídica de dignidade das pessoas que não se enquadram em sua concepção mais correta de interação social, considerando que é direito de todos se expressar e de defender dogmas, valores e convicções. No entanto, confronta a razão pública é o intento de criminalizar, violentar, excluir ou diminuir a importância da existência e do modo de viver do outro, considerando que suas convicções restritivas de personalidade servem-lhe para bem conduzir a sua própria vida, e não como arauto fiscalizador dos modos de vida alheios. 30 O que foi reconhecido, em julgamento pelo Supremo Tribunal Federal, pela ADI 4275 RE 670.422, em 1º de março de 2018, foi reconhecido que, por unanimidade, pessoas trans podem alterar o nome e o sexo no registro civil sem que se submetam à transgenitalização ou procedimento médico-hormonal. Contudo, aponta-se que tal reconhecimento dá-se na forma de interpretação conforme a Constituição, em que não se alteram dispositivos legais, apesar da alteração da interpretação judicial sobre tais casos. Os efeitos da decisão são vinculantes, contudo, não contemplam a força simbólica de letra de lei,
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da pessoa humana desenvolver-se de acordo com a identidade, seja de gênero ou sexual, e poder se manifestar como se convier, diante das inúmeras e possíveis identidades de gênero do ser humano. Apesar disso, enquanto discurso pretensamente universal, o direito brasileiro carece de compreensão acerca das nuances pelas quais a pessoa humana pode existir ou conviver. Assim, a esta, em sua plena multiplicidade de sujeitos, resta a invisibilização e o silenciamento, visto que, sem a previsão de direitos, é impossível a sua reivindicação. Os sujeitos não contemplados pela norma, ou que não se enquadrem no preceito ideal de mulher ou de homem (conforme questionado no primeiro tópico), restam em situação de vulnerabilidade, enquanto questão política, em que se pode perquirir acerca de um projeto necropolítico, nos termos delineados por Mbembe.
Considerações Finais É da compreensão pós-moderna, seja do eixo feminista, seja pela teoria foucaultiana, que o discurso universal que legitima uma determinada forma de existir e saber, promove a ocultação de outros modos de vida, tornando-os excluídos e silenciados. Assim, enquanto o Direito se perfaz em um discurso universa, a heteronormatividade, enquanto uma agência de valores referente à identidade e expressão de gênero e à identidade sexual, impõe, com reforço de algumas normas do Direito brasileiro, a heteroafetividade e a binariedade, em formatos da masculinidade e da feminilidade. O discurso universal da heteronormatividade, tido como o hegemônico e, por sua vez, hierarquizante, promove o não reconhecimento de direitos personalíssimos e fundamentais das pessoas humanas que não se enquadram neste padrão, provocando uma ordem de vulnerabilização de tais pessoas. Havendo ou não um projeto político com tal formato, não importa. O que importa é que, mesmo que seja omissão ou inconsciência política acerca das existências mencionadas e de tantas outras (existências que sempre importam!), há uma biopolítica, para onde se perfazem os discursos em vida, e uma necropolítica, para onde se vão os corpos em morte.
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Referências Bibliográficas BUTLER, Judith. Problemas de gênero. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas. 3. ed. Rio de Janeiro: Nau Editora, 2002. ___________. Em defesa da sociedade. Curso do Collège de France (1975-1976). São Paulo: Martins Fontes, 1999. GARCIA, Carla Cristina. Breve história do feminismo. São Paulo: Claridade, 2015. HARDING, Sandra. A instabilidade das categorias analíticas na teoria feminista. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 1, n. 1, 1993. JUNQUEIRA, Rogério Diniz. A pedagogia do armário: heterossexismo e vigilância de gênero no cotidiano escolar. Revista Educação On-line, Rio de Janeiro - PUC-Rio, nº 10, p. 64-83, 2012. ___________. Educação e homofobia: o reconhecimento da diversidade sexual para além do multiculturalismo liberal. In: JUNQUEIRA, Rogério Diniz. Diversidade sexual na educação. Brasília: MEC, Unesco, 2009b. LOURO, Guacira Lopes. Heteronormatividade e homofobia. In: JUNQUEIRA, Rogério Diniz. Diversidade sexual na educação. Brasília: MEC, Unesco, 2009a. NOTHAFT, Raíssa Jeanine. Questionando binarismos na problematização da oposição sexo/gênero. Caderno Espaço Feminino, Uberlândia,v. 28, n. 2, jul./dez. 2015. WARNER, Michael. Fear of a queer planet. Minneapolis: University of Minnesota, 1993.
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Epílogo Por uma Educação Crítica, Confrontando Discursos, Práticas e Corpos Grazielly Alessandra Baggenstoss Educação traduz-se como um conjunto de processos por meio do qual indivíduos são transformados ou se transformam em sujeitos de uma cultura. Esse conjunto de processos, portanto, refere-se a um processo que muitos autores chamam de “civilizador” (o que é ser civilizado e o que não é), que ocorre em uma instituição determinada cujo caráter é disciplinar. A educação, assim como, também, a religião, são elementos representativos da cultura de uma determinada sociedade e estabelecem diversas conexões com várias formas da prática social, configurando as dimensões do pluralismo na convivência entre os indivíduos. Nessa perspectiva, incluem-se as representações simbólicas, que aqui são definidas como os significados conferidos a determinada pessoa, comportamentos ou fatos específicos. No plano simbólico, a religião, por exemplo, reveste-se com uma conotação disciplinadora e, ao mesmo tempo, consoladora. Sua inserção na cultura ocorre quando intenta estabelecer valores e normas, “ditando hábitos e costumes, normatizando corpos e esculpindo mentes, numa escalação axiológica que regra comportamentos”1. Com isso, os dogmas religiosos alcançam e influenciam a compreensão das pessoas especialmente nas relações entre homens e mulheres. A educação, por sua vez, transita no grupo social com a função de transmitir e veicular a cultura geral de um povo – a qual se mostra representada, em tese, por um mundo plural e condizente com as mais diversas formas de relações sociais no contexto histórico de uma época. Por meio da educação, são alicerçados os valores culturais e religioso, em defesa de uma determinada ideologia 1
ALMEIDA, Jane Soares de. Os paradigmas da submissão: mulheres, educação e ideologia religiosa – uma perspectiva histórica. In SILVA, Gilva Ventura da; NADER, Maria Beatriz; FRANCO, Sebastião Pimentel (org.). História, mulher e poder. Vitória: Edufes; PPGHis, 2006, p. 59 e 72.
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e são configurados os parâmetros de “um espaço essencial de inculcação moral [...], nas quais também se ancoram as relações de poder”2. Frente a tal perspectiva religiosa e educativa, homens e mulheres, por sua vez, “convergem para si o imaginário social que lhes atribui simbologias próprias ao que se espera de seu sexo”3. E aqui se alerta para o seguinte: a educação e a religião, por muito, foram consideradas como porta-vozes de uma aparente neutralidade – com vistas à manutenção da convivência pacífica no meio social. Sob tal justificativa, são encobertos mecanismos e interesses invisibilizados por um manto encantado da imparcialidade4. A normalização de comportamentos indicados pela representação simbólica reflete-se no olhar dominante nas relações de poder, em que se atribui defeitos e qualidades. Na sequência, à medida que determinada conduta é tida por “normal”, correta”, ou, ainda, “errada” ou “desviante”, há a repressão e sanção com a mesma força com a qual é criado tal esquema de simbologias nas relações humanas. No entanto, ao mesmo tempo em que esse discurso “neutro” confere normalidade a determinados comportamentos, também suprime a humanidade de outras ações. Assim, é nítido que não descrevem uma situação de “anormalidade”, ou de pecado ou de incorreção: mas, sim, produzem tal situação5. Ao se analisar, por esse prisma, o meio pátrio social, político e jurídico em que se encontram mulheres, é possível identificar as representações simbólicas estabelecidas pelos parâmetros morais da religião e da educação, as quais refletem nos discursos normativos que visam a manter padrões de seus comportamento. E mais: essa normatização de condutas transborda a fala e se concretiza em “ações concretas e atitudes discriminatórias difíceis de serem detectadas, porque são encobertas de poder inerentes à orientação e protagonismo sexual, nas quais as mulheres representam a parcela sobre a qual se exerce a domi2
ALMEIDA, 2006, p. 59-60.
3
ALMEIDA,2006, p. 59.
4
BENTO, Berenice. Corporalidades transexuais: entre a abjeção e o desejo. In WOLFF, Cristina Schibe; FÁVERI, Marlene de; RAMOS, Tânia Regina Oliveira. Leituras em rede: gênero e preconceito. Florianópolis, Editora Mulheres, 2007, p. 55. É o discurso de mel, rimado por Lola Salles (na música Medo) e mencionado por Helena Martinez Faria Bastos Régis, no artigo “O namoro qualificado e a desqualificação da mulher no direito de família”, in .
5
BENTO, 2007, p. 55.
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nação sexual”6. De plano, vê-se claramente que as representações simbólicas referentes ao sexo feminino emergem como categorizações distintas do mundo masculino, pois são interpretadas como portadoras de diferenças relacionais.7 A transformação do sujeito para seu pertencimento em uma cultura envolve a sua inserção e adaptação uma estrutura sistêmica de formas de interação e de forças e processos de aprendizagem que pode ser chamada de socialização. Assim, a socialização contempla uma infinidade de instituições e “lugares pedagógicos” além da família, da igreja e da escola, englobando uma ampla e variada gama de processos educativos8. Os processos educativos verificados nessa estrutura sistêmica podem ser denominados intencionais e não-intencionais, dependendo da voluntariedade ou da consciência com que os valores são apreendidos pelo sujeito. Além disso, na própria formação intencional, podemos também encontrar processos intencionais e não-intencionais9, quais sejam os elementos de socialização compreendidos pelo currículo formal ou pelo currículo oculto – como se verá adiante. O questionamento acerca da formação não intencional passou a ser feito há pouco tempo no que se refere a gênero, raça e sexualidade, em que tais fatores promovem importante produção de identidades10. Por conta disso, são problematizados em razão das pedagogias utilizadas11 resulta, na maioria das 6
ALMEIDA, 2006, p. 59.
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ALMEIDA, 2006, p. 55.
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MEYER, Dagmar; SOARES, Rosângela. Corpo, Violência e Educação: uma abordagem de gênero. In: JUNQUEIRA, Rogério Diniz. Diversidade Sexual na Educação: problematizações sobre a homofobia nas escolas. Brasília : Ministério da Educação, Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade, UNESCO, 2009.
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MEYER, 2009.
10 MEYER, 2009. 11 Pedagogia da sexualidade No dizer de Louro (1999, p. 31), “na escola, pela afirmação ou pelo silenciamento, nos espaços reconhecidos e públicos ou nos cantos escondidos e privados, é exercida uma pedagogia da sexualidade, legitimando determinadas identidades e práticas sexuais, reprimindo e marginalizando outras”. Cf. LOURO, G. L. (Org.). O corpo educado: pedagogias da sexualidade. 2 ed. Belo Horizonte: Autêntica, 1999.
Pedagogia da desumanização
Na esteira do processo de desumanização do “outro”, a indiferença em relação a esse sofrimento e a cumplicidade para com os algozes exprime um autêntico “estado de alheamento, isto é, uma atitude de distanciamento, na qual a hostilidade ou o vivido persecutório são substituídos pela desqualificação
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vezes, de pedagogias que envolvem estratégias sutis, refinadas e naturalizadas, exaustivamente repetidas e atualizadas que quase não percebemos como tais mas que reproduzem violências no meio acadêmico. E essas formas de ensino, que representam poderosos mecanismos de controle social, disciplina e normalização de condutas, presentes em na forma de interação dos professores com seus pares e desses com a classe discente, estimulam processos educativos potentes quando se trata de instituir relações entre corpo, gênero e sexualidade12. Na Pedagogia, a descrição do espaço acadêmico não é a de transformar realidades ou de promover potencial evolução em determinado grupo social. Atualmente, consolida-se a ideia de que a escola não somente transmite ou constrói conhecimento, “mas o faz reproduzindo padrões sociais, perpetuando concepções, valores e clivagens sociais, fabricando sujeitos (seus corpos e suas identidades), legitimando relações de poder, hierarquias e processos de acumulação” 13.
do sujeito como ser moral, não reconhecido como um agente autônomo ou um parceiro” (COSTA, 1997, p. 70). Cf. COSTA, Jurandir Freire. A ética democrática e seus inimigos. In: NASCIMENTO, Elimar Pinheiro do (Org.). Ética. Brasília: Garamond, 1997, pp. 67-86.
Pedagogia do Insulto
Às voltas com uma “pedagogia do insulto”, constituída de piadas, brincadeiras, jogos, apelidos, insinuações, expressões desqualificantes. Tais “brincadeiras” são poderosos mecanismos de silenciamento e de dominação simbólica. Por meio dessa pedagogia, estudantes aprendem a mover as alavancas da homofobia mesmo antes de terem a mais vaga noção do que elas significam (SULLIVAN, 1997). E, não raro, fazem com que a pedagogia do insulto seja acompanhada de tensões de invisibilização e revelação (frequentemente involuntária), próprias de uma pedagogia do armário. Cf. SULLIVAN, Andrew. Praticamente normal. São Paulo: Cia das Letras, 1997.
Pedagogia do Armário
Vale lembrar que o “armário” (como é conhecido o processo de ocultação da posição de dissidência em relação à matriz heterossexual), por um lado, regula a vida social de pessoas que se relacionam sexualmente com outras do mesmo gênero, submetendo-as ao segredo, ao silêncio ou expondo-as ao desprezo público – e, não raro, a tudo isso. Por outro, privilegia as que se mostram conformadas à ordem heterossexista e reforça as instituições e os valores heteronormativos. Cf. SEDGWICK, Eve Kosofsky. A epistemologia do armário. Cadernos Pagu, Campinas, n. 28, jan./jun. 2007.
Cf. JUNQUEIRA, Rogério Diniz. Currículo heteronormativo e cotidiano escolar homofóbico. Espaço do currículo, v.2, n.2, pp.208-230, setembro de 2009 a março de 2010.
12 MEYER, 2009. 13 JUNQUEIRA, Rogério Diniz. Homofobia nas Escolas: um problema de todos
. In: JUNQUEIRA, Rogério Diniz. Diversidade Sexual na Educação: problematizações sobre a homofobia nas escolas. Brasília : Ministério da Educação, Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade, UNESCO, 2009. p. 14.
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Direitos e Feminismos
E essa descrição e uma análise objetiva dos formatos acadêmicos é essencial para que se questione suas lógicas e compromissos, enquanto “campo que se constitui historicamente como um espaço disciplinador e normalizador” 14. Na histórica acadêmica do Brasil, há alguns fatores históricos que destacam o mencionado caráter da educação brasileira. Por conta da ditadura militar, os cursos superiores de formação de professores passaram a ter currículo obrigatório, ao contrário do caráter multidisciplinar que respalda a educação em outros países democráticos. Nas décadas de 60 e 70, os Ensinos Superior e Médio foram amplamente modificados, com redução do conteúdo de humanas, além de determinados textos serem considerados “subversivos”. Além disso, no que se refere às formas de interação entre os sujeitos educacionais e a arquitetura do espaço acadêmico, houve dois projetos possíveis: o denominado escola nova, de espaços abertos e com a opção de flexibilização curricular; o outro, chamado de polivalente ou econômico, aproveitava todo o espaço e isolava cada sala – sendo este o escolhido pelo governo ditatorial.15 Desse cenário, extrai-se que a formação acadêmica do Brasil inclinou-se à estruturação de seus processos de aprendizagem a crenças disciplinadoras e maniqueístas, advindo de uma dinâmica de interação, valores e normas, responsável por caracterizar o que seria o comportamento ou o corpo “padrão” e o que seria o comportamento ou o corpo “errante”, na redução da figura do “outro” (considerado “estranho”, “inferior”, “pecador”, “doente”, “pervertido”, “criminoso” ou “contagioso”). Em tal compasso, o “outro” era caracterizado como aquele ou aquela que não se sintonizasse com o sistema hegemônico de valores defendidos pelo que se entende como padrão. Nesse ponto, resta registrar que, de plano e no recorte do medievo europeu, o espaço escolar, enquanto espaço público, era um espaço exclusivamente masculino, nos quais as meninas e mulheres não tinham o direito de ingressar
14 JUNQUEIRA, 2009, p.14. 15
Pelo início do século passado, “os espaços escolares tinham fachada monumental, janelas verticais, jardins e pátios
internos. Mesmo as construções modernas e de ângulos retos dos anos 1950 e primeira metade dos anos 1960 mantinham áreas livres e
salas ventiladas. Por economia para
expansão e alinhamento à ideologia
de formação individualizada, isso tudo
foi considerado supérfluo”. Ademais, “Na escola, ela vê uma “verdadeira luta” dos educadores para romper com a verticalização hierárquica e a segmentação das aulas, mas diz que as iniciativas ainda não encontram respaldo no sistema educacional”. Cf. http:// www.cartaeducacao.com.br/reportagens/nao-se-fez-%E2%80%A8tabula-rasa/
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– tanto que as primeiras reivindicações das mulheres, registradas pelo protofeminismo, referem-se ao direito à educação. Daí, também, compreende-se que a internalização dos corpos que possuem direitos à educação acabam refletindo no imaginário social, o qual, sem questionamento, assimila o corpo/comportamento padrão e o corpo/comportamento do outro. Aqui, então, tem-se o corpo do outro enquanto o corpo da mulher. Enquanto pesquisadora da área e docente, enquanto o corpo diverso, verifica-se que são considerados textos “desnecessários” aqueles que contam as histórias das mulheres, suas lutas e, especialmente, sobre os seus direitos. Diante disso, o campo escolar configura-se um espaço invisibilidade e silenciamento daquele corpo, que acaba, em sua ânsia de pertencimento, respaldando-se na heterodesignação para conseguir trilhar os caminhos de formação. Em outras palavras, também pode-se apontar que o espaço se torna um campo de “opressão, discriminação e preconceitos, no qual e em torno do qual existe um preocupante quadro de violência a que estão submetidos milhões” de estudantes que “vivem, de maneiras distintas, situações delicadas e vulneradoras de internalização da homofobia, negação, autoculpabilização, auto-aversão. E isso se faz com a participação ou a omissão da família, da comunidade escolar, da sociedade e do Estado”. 16 No questionamento do que se aprende e o que se deve aprender, temos os chamados currículos formal, oculto e de ação. Currículo é um artefato político, de produção cultural e mediante prática discursiva, que comporta a organização do conhecimento oficial de determinada formação. De outro modo, pode ser reconhecido como o conjunto de conhecimentos teóricos, técnicos e práticos que serão ministrados no campo acadêmico para fins de formação educacional e profissional. Por esse prisma, alerta-se para o fato de que a formação educacional, especialmente no que se refere a uma profissão, não contempla somente os conhecimentos produzidos na área em específico, mas também os comportamentos e os sujeitos que manejam o instrumental profissional. O campo da educação formal, portanto, nunca é somente o aprendizado técnico, mas também, e especialmente, o aprendizado interacional entre pares.
16 JUNQUEIRA, 2009, p.15.
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Nessa linha de pensamento, considera-se que a definição do currículo acima afirmada contempla o currículo oficial – o qual, como visto, não é integrado por toda a aprendizagem da formação acadêmica. Assim, surge a formação do que se chama de currículo oculto. O currículo oculto é formado pelas peculiaridades do campo acadêmico, as quais, extrapolando os aspectos daquele ambiente e do currículo oficial, contribuem e reforçam, implicitamente, aprendizagens sociais relevantes. Assim, aprende-se, do currículo oculto, atitudes, comportamentos, valores e orientações, especialmente o conformismo, a obediência, o individualismo. Além disso, “aprende-se, no currículo oculto como ser homem ou mulher, como ser heterossexual ou homossexual, bem como a identificação com uma determinada raça ou etnia” (SILVA, 2002, p.78-79) 17. Contudo, em uma perspectiva maior que envolve os currículos mencionados, a análise da trama do cotidiano acadêmico demonstra um complexo de situações e procedimentos pedagógicos e curriculares (ora mais explícitos, ora mais implícitos) intimamente atrelados a processos sociais reveladores de marcadores discriminatórios. O ambiente acadêmico, assim, pode formar e aprofundar “diferenças, distinções e clivagens sociais que interferem, direta e indiretamente, na formação, no desempenho escolar de cada um/a e na desigualdade da distribuição do “sucesso” e do “fracasso” escolar”18. É dessa percepção que surge a ideia de que, da interação entre os dois currículos, tem-se o que Junqueira chama de “currículo em ação”, tido como “a pluralidade de situações de aprendizagem (formais e informais, planejadas ou não, dentro e fora da sala de aula), no âmbito das quais constroem-se saberes, sujeitos, identidades, diferenças, desigualdades, hierarquias e aprofundam-se processos de marginalização e exclusão”19. É o que “ocorre de fato nas situações típicas e contraditórias vividas pelas escolas, com suas implicações e compreensões subjacentes, e não o que era desejável [...] e/ou o que era institucionalmente prescrito”20.
17 JUNQUEIRA, 2010, p. 209. 18 JUNQUEIRA, 2010, p. 210 19 JUNQUEIRA, 2010, p. 209. 20 GERALDI, Corinta. Currículo em ação: buscando a compreensão do cotidiano da escola básica. Proposições, Campinas, v. 5, n. 3 [15], nov. 1994. p. 117.
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E como pensar o Direito a partir desse cenário? Percebe-se, na forma jurídica, que a idealização de uma forma de ser, conhecer e estar no mundo produz silenciamento e exclusão – o que se caracteriza como discriminação e violência contra aquele sujeito que não se enquadre ao modelo padronizador, especialmente em razão da condição social da pessoa humana e sua necessidade de aceitação e pertencimento. Em decorrência disso e somada a tal percepção, pode-se afirmar que a violência também é reforçada àquele que, além de não se enquadrar no modelo idealizado, também não se adequa ao formato de interação destinado a ele em virtude da dissociação inicial – se não se enquadra ao modelo proposto, deve-se, então, invisibilizar-se e silenciar-se. Muitos fatores ocasionam a contemplação da mulher como o outro, aquele secundário no papel educacional. Aqui, contudo, apontam-se dois fatores relevantes: o histórico e o epistêmico. Como mencionado, não era reconhecido o direito à educação às mulheres, situação que começou a mudar com a separação do Estado e da Igreja. Apesar da mudança material e jurídica, parte do imaginário social ainda resiste na ideia de o lugar das mulheres não é no espaço público, mas no privado. Atrelado ao fator histórico, está o fator epistêmico condizente determinadas características humanas e o modo de se fazer ciência. O formato moderno do pensamento científico hegemônico, em que se prima pela objetividade, pela certeza e pela fragmentariedade do conhecimento, vem sendo questionado em suas verdades e em sua eficácia, pelo fato de desconsiderar aquilo que é subjetivo, complexo, incerto e holístico. Há, aqui, uma crise de como analisar o objeto de pesquisa: se pelas suas partes ou pelo todo; se por seu modo estático ou pelo modo dinâmico; se por seus objetos ou por sua conexões. Pelo pilar da objetividade, ainda, pode-se contemplar a contraposição aparente ao eixo da subjetividade; esta, considerada da natureza feminina; aquela, da masculina. Autores do pensamento sistêmico defendem que a denominada cultura patriarcal e a supremacia do racionalismo está em crise exatamente porque reconhece tais valores como masculinos, em detrimento do feminino, como a intuição, a criatividade, a sensibilidade, a emotividade e todos estados ampliados de percepção da consciência. Assim, pode-se afirmar, por um complexo de valores que minoram a importância daquilo que é relegado 226
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como feminino, de como a prioridade do que é masculino afeta o imaginário social e, também, as práticas sociais e profissionais. No entanto, a polarização de tais características reduzem a pessoa humana em razão de sua identidade ou expressão de gênero, não concebendo que a humanidade perfaz-se em uma constelação de peculiaridades, as quais são humanas, e não necessariamente masculinas ou femininas21. É a partir de tal panorama que se contempla o Direito, enquanto formado e formatado, bem como reproduzido, pelo viés da redução da humanidade e pela perspectiva limitada – pois única – de quem é a pessoa humana. Pelo currículo oficial do Direito, tem-se a estruturação de aprendizagem baseada em teorias jurídicas, legislação brasileira e práticas judiciais e extrajudiciais. Daí, tem-se a inquietude de quais são as teses fundantes de tais teorias, qual os motivos e os valores expostas pelo arcabouço normativo do Brasil e como são praticados os atos necessários às profissões jurídicas. No que se refere à legislação, é visível o aperfeiçoamento do campo jurídico na questão de gênero. Percebe-se, assim, a assimilação de determinados ideais políticos e sociais, que promoveu alguns questionamentos sobre a formação do próprio Direito na insurgência de se visibilizar a mulher e perquirir sobre o modelo masculino tido como universal, como único ponto de referência. No entanto, ainda não suficiente para a evolução de alguns valores sociais atinentes a determinadas temáticas. Quanto ao currículo oculto, em estudos voltados à área de ciências humanas, é habitual a consideração de que uma comunicação não violenta é dificultosa para os profissionais do Direito em razão do caráter da relação de poder que forma a legitimidade do Direito – o monopólio da violência, por parte do Estado, e o monopólio das exigências de comportamento, por parte do Direito. Aqui, tem-se o apelo à pinguinização do estudante do Direito (dilema de Warat), o qual, no curso de sua graduação, molda-se nos formatos exigidos pelas práticas forenses, seja na vestimenta, no linguajar, no modo de ser, existir e interagir. Tal diferenciação consiste em uma gama de comportamentos envolvendo os profissionais e acadêmicos do Direito que se pretendem, pela natureza coercitiva do Direito, colocar-se em uma posição de hierarquia frente às demais
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Afeta a como é a construção da masculinidade e feminilidade no meio social atual, com os devidos recortes.
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pessoas não pertencente a este meio, não só da sociedade como um todo, mas também frente à família e a entes queridos. A formação jurídica perfaz-se, assim, em um ambiente obstinado à produção, reprodução e atualização de parâmetros de relevância de quem é (aparenta) ser bem sucedido na área jurídica e de exigências de masculinidade e feminilidade. Nesse sentido, assim como observado no currículo oficial, pode-se afirmar que o Direito também reforça parâmetros da heteronormatividade22. E, destaca-se: não é algo originado no próprio Direito; mas sim a reprodução de regras habituais evidenciadas no meio cultural brasileiro. A jusnormatividade, aqui entendida pela conjunção das exigências de comportamento daquele que está no meio jurídico e da heteronormatividade, condiz com disposições (discursos, valores, práticas etc.) por meio dos quais tais comportamento são instituídos e vivenciada como única possibilidade legítima de prática jurídica, além de identidade de gênero e de identidade sexual.23 E aquele que não se submete a tais agências, acaba sendo alvo de opressões veladas, sob a roupagem de “brincadeiras”, as quais “[...]constituem-se poderosos mecanismos de objetivação, silenciamento, dominação simbólica, normalização, marginalização e exclusão”24. É a partir desse cenário que se faz extremamente urgente o reconhecimento dos corpos que existem e sobrevivem, cujo silenciamento, por vezes, por conta de uma ideia enraigada, é compreendido como “natural”. A par disso, a continuidade do projeto educacional feminista ruma para seu terceiro ano, com a orientação essencial de se possibilitar falas, instrumentalizar pesquisas e reconhecer espaços (que já são ocupados, mas cujos corpos não são vistos).
22 O padrão característico desses critérios identitários, veiculado pelo sistema mainstream, é a heteronormatividade, a qual se consubstancia em um conjunto de agências, informais e institucionalizadas, por meio de discursos, valores, práticas e procedimentos, por meio das quais a heterossexualidade e suas consequências são impostas e vivenciadas como a única opção natural e legítima de expressão, assim como aquilo que entendemos como algo de mulher ou algo de homem – feminino/ masculino. Cf. JUNQUEIRA, 2010, p. 209. 23 JUNQUEIRA, 2010, p. 212-213. 24 JUNQUEIRA, 2010, p. 212-213.
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